A religião e o riso & outros textos de filosofia e sociologia

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A religiĂŁo e o riso & outros textos de filosofia e sociologia



A religiĂŁo e o riso & outros textos de filosofia e sociologia

Ricardo Ernesto Rose

SĂŁo Paulo 2013


© 2013, Autor Editor responsável: Cristiano Cabral Diretor de produção: Marisa Cecília da Silva Bento Roque Impressão e capa: Oxdealer Com. Livros e Copiadora Ltda www.oxdealer.com.br Foto da capa: Priscila Anne Rose

______________________________________________________________________ Ricardo Ernesto Rose A religião e o riso & outros textos de filosofia e sociologia – 1. Ed. São Paulo: LPB, 2013 ISBN 978-85-63044-17-4 1. Filosofia 2. Ciências Sociais

3. Ensaios

CDD-190

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Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo ainda o uso da internet, sem a permissão expressa da LPB, na pessoa de seu editor (lei nº 9.610, de 19.02.1998). Todos os direitos desta edição reservados pela:

Rua Augusta, 1414 - Consolação 01304-001 - São Paulo - SP Tel: 11 3288.4900 www.editoralpb.com.br


ÍNDICE

Parte 1. Filosofia 1. A religião e o riso 2. A angústia e o existencialismo 3. A educação e o método cartesiano 4. A evolução da metafísica e a crítica kantiana 5. A filosofia de Baruch Espinosa 6. Empirismo e racionalismo 7. Razão e fé no período medieval 8. Religião: origem, crítica e função Parte 2. Sociologia 1. A sociologia evolutiva 2. A ética protestante e o capitalismo 3. A indústria cultural 4. A psicologia evolutiva 5. A sociedade medieval e o novo modelo renascentista 6. Marx e as idéias dominantes de cada época 7. Diferença entre o modelo aristotélico de política e o modelo jusnaturalista 8. Tecnologia e dominação ideológica na Escola de Frankfurt 9. Max Weber e os “tipos ideais”

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A religião e o riso Introdução A idéia de escrever este ensaio sobre o tema da religião e do riso me ocorreu em 2008, quando assisti no Youtube a um vídeo do humorista americano George Carlin, falecido por aquela época. No filme, Carlin faz uma engraça crítica à religião (Religion is bullshit Religião é besteira), que arrancou muitas gargalhadas da audiência em Nova York. Ator, humorista e comediante, George Carlin (1937-2008) sempre foi um grande crítico do “American way of living” (o jeito americano de viver). Ridicularizava o excessivo patriotismo dos americanos, seu impulso consumista e até o exagerado engajamento ambiental. O maior alvo de Carlin, no entanto, sempre foram as religiões; em tudo o que elas têm de autoritário, obscurantista e fanático. O comediante era um ardoroso defensor da democracia, da liberdade individual e dos valores seculares.

A peça humorística de Carlin coloca a seguinte questão: por que em alguns países com uma forte base religiosa, onde ainda hoje as igrejas têm grande influência na sociedade, como nos Estados Unidos, o humor com a religião é praticado e tolerado, ao passo que em sociedades aparentemente mais liberais e informais, como a brasileira, existe pouco humor com temas religiosos? Analisando o assunto com mais rigor, chegamos ao enfoque principal deste trabalho, ou seja, de que o riso da religião é só um aspecto superficial, um sintoma de todo um processo cultural e social, no que se refere à relação da sociedade com o fenômeno religioso e com tudo o que ele implica. É, pois, necessário estudar alguns aspectos do pensamento crítico sobre a religião, o passado e o atual; procurar entender estas idéias e compreender para o que elas apontam; o que parecem nos mostrar para além da

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crítica. Ou seja, analisar, por exemplo, por que Platão vê na religião o mais sublime jogo que o homem pode jogar (apud Huizinga) e por que os Goliardos pareciam querer indicar com sua crítica à religião para algo além dela (apud Minois)? São estes alguns dos questionamentos com os quais se preocupa e ocupa o presente texto. Trata-se, todavia, apenas de uma análise pontual que não pretende ser um estudo sistemático. Mesmo porque, outros autores, utilizados neste trabalho como fonte de pesquisa de conteúdo e método – Huizinga, Minois, Campbell, Febvre e Bakhtin, entre outros –, tiveram muito mais talento e conhecimentos para a empreitada.

Introdução ao tema

O trabalho A religião e o riso aborda o tema inicialmente em sua dimensão propriamente dita, descrevendo o significado do riso e sua relação com a religião ao longo do tempo. O período considerado neste estudo vai aproximadamente da Pré-história ao Renascimento, já que é neste espaço de tempo que a influência da religião sobre as sociedades é mais acentuada. O texto, entretanto, não esgota o assunto; apresenta apenas alguns fatos e análises que caracterizaram a relação do riso com a religião durante este período histórico.

Em seguida, serão descritos alguns aspectos da relação entre a religião e o riso, sob ponto de vista filosófico e cultural. É fato que pouquíssimos filósofos se ocuparam especificamente do fenômeno do riso, menos ainda do riso em relação à religião, o que fez com que as fontes de pesquisa para este trabalho fossem bastante reduzidas e tivessem que ser encontrados subsídios em um universo bibliográfico mais amplo e não dirigido exclusivamente para este tema. Assim, o estudo se vale das contribuições de filósofos e escritores que abordaram o assunto da

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religião sob um aspecto crítico, mas que também olharam além do simples fenômeno religioso, tentando apontar-lhe outros significados. A análise filosófica e cultural, todavia, não coincidirá necessariamente com os períodos históricos focados, já que as informações disponíveis sobre a história da religião e da filosofia, no que se refere ao riso, não são necessariamente de períodos históricos coincidentes.

Ao final o estudo apresenta uma conclusão, na qual se pretende demonstrar que a crítica da religião – seja através do riso ou da argumentação – longe de ter como alvo principal a divindade e sua instituição é, na realidade, um estudo crítico da sociedade e do homem. Examinar o fenômeno religioso, seja sob que aspecto for – inclusive o riso – é analisar o homem e sua cultura, tentando entendê-los através de uma abordagem diferente.

O riso, o que é?

Em sua própria visão o homem sempre imaginou ocupar um lugar único no universo. Apesar de reverenciar os deuses com mais ou menos temor, o homem sempre enxergou a si mesmo (e ainda assim se considera) como o interlocutor privilegiado dos céus. No entanto, por sua própria posição no universo não poderia ser diferente. Os animais eram, quando muito, bestas de carga, alimento e fonte de matéria prima. É verdade que o desenvolvimento das ciências ao longo da história foi gradualmente mudando esta visão antropocêntrica. Todavia, mesmo até há pouco tempo, o homem se considerava diferente dos outros animais, por ter aptidões que lhe eram únicas, como criar uma cultura, fazer instrumentos, possuir uma linguagem; aparentemente não partilhados por nenhuma outra espécie. Entrementes, descobrimos que os Neanderthais, ramo evolutivo

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da espécie Homos, com os quais não temos ligação genética direta, também tinham uma cultura; desenvolveram instrumentos, detinham rudimentos de linguagem e talvez até enterrassem os seus mortos – covas encontradas não atestam definitivamente um rito fúnebre. O golpe final no nosso antropocentrismo foi dado quando, nos últimos trinta ou quarenta anos, cientistas descobriram que macacos antropóides também utilizavam técnicas para se alimentar com o uso de ferramentas, que não eram herdadas, mas foram desenvolvidas ao longo do tempo através da “tentativa e erro” e transmitidas aos seus semelhantes. Em outras palavras: possuíam uma rudimentar cultura. Além disso, descobriu-se que espécies como os macacos e golfinhos conseguem comunicar-se com um grau de complexidade na mensagem, que até então era desconhecido. O zoólogo Frans de Waal em seu livro “O macaco em nós – por que somos como somos” (no original alemão “Der Affe in uns – Warum wir sind, wie wir sind”), escreve: Mais tarde, a elaboração de ferramentas era tido como algo tão importante, que foi escrito um livro com o título O homem como construtor de ferramentas. Esta definição tinha fundamento, até se descobrir que chimpanzés selvagens fazem esponjas, ao mastigarem folhas até que se transformem em algo parecido a um chumaço de algodão ou ao arrancarem as folhas de um galho, transformando-o em vara para cutucar. (DE WAAL, 2006, p. 246, tradução nossa).

Assim, pouco ou quase nada sobrou de único para a espécie humana. Todas as aptidões que temos em grau altamente desenvolvido e que a ciência havia sempre considerado como únicas de nossa espécie, os outros animais também possuem em estado rudimentar. O que então permaneceu especificamente humano? Qual é a característica que a nossa espécie, Homo Sapiens Sapiens, tem de única na natureza?

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A maior parte dos antropólogos, paleontólogos, zoólogos e demais especialistas que se dedicam ao estudo do tema, dizem – concordando com Aristóteles – que o homem é talvez a única espécie que ri, que tem senso de humor. Isto, porém, só permanecerá válido até que a ciência não avance mais um pouco e nos tire também esta pequena vantagem evolutiva. Mas, mesmo nesse ponto a posição dos pesquisadores não é unânime. Frans de Waal afirma que os chimpanzés e os bonobos (espécie aparentada dos chimpanzés) quando jovens, abrem suas bocas de uma maneira que se parece com a risada humana. O assunto permanece inconcluso, mas certamente por ora não afetará esta pesquisa.

Atendo-nos apenas ao nosso universo humano, temos informações suficientes para afirmar que entre 40 e 60 mil anos atrás, ocorreu com nossa espécie aquilo que o arqueólogo Steven Mithen descreve como o big bang da cultura humana. Referindose a este período, escreve Mithen: É muito fácil pensar que a transição entre o Paleolítico Médio e o Superior é uma explosão, ou um big bang – das origens do universo da cultura humana.” [...] “notaremos que não existe um único big bang e sim uma série de faíscas culturais que acontecem em momentos diferentes e partes diferentes do mundo, entre sessenta e trinta mil anos atrás. (MITHEN, 1998, p. 248). Acompanhando a gradual evolução da cultura humana, também ocorre o desenvolvimento da consciência e da nossa capacidade de achar certas coisas risíveis, engraçadas. Assim o humor, associado ao riso, deve ter se aprimorado bastante ao longo dos últimos 60 mil anos, período no qual a cultura humana se desenvolveu muito mais rapidamente do que nos três ou quatro milhões de anos anteriores na existência da espécie Homo. É bem provável que sentados a cada noite ao redor das fogueiras, durante dezenas de milhares de anos, contando histórias de

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grandes animais, aparições de criaturas mágicas ou fazendo troça de um companheiro desastrado durante a caça, nossos antepassados devam ter lentamente contribuído para aguçar o senso de humor da nossa espécie e para desenvolver a cultura.

Não muito longe do exemplo dos nossos antepassados sentados ao redor do fogo, rindo com o azar de um companheiro, está a descrição feita por Sigmund Freud (1856-1939) em O Humor, relatando que: Há duas maneiras pelas quais o processo humorístico pode realizar-se. Ele pode dar-se com relação a uma pessoa isolada, que, ela própria, adota a atitude humorística, ao passo que uma segunda pessoa representa o papel de expectador que dela deriva prazer; ou pode-se efetuar entre duas pessoas, uma das quais não toma parte alguma no processo humorístico, mas é tornado objeto de contemplação humorística pela outra. (FREUD, 2006, p. 165). Nossos antepassados devem ter tido muitas oportunidades para desenvolver seu senso de humor, que mais tarde terá um importante papel na cultura humana. O riso sempre teve a função de reduzir tensões (individuais ou grupais) e deve ter se aprimorado junto com outras duas atividades humanas, com a mesma característica de atenuar o sofrimento humano: a cultura, através da arte e das ferramentas; e a religião, com práticas de cura, aconselhamento e adivinhação. Ainda é Freud que escreve: Como os chistes e o cômico, o humor tem algo de libertador a seu respeito, mas possui também qualquer coisa de grandeza e elevação, que faltam às outras duas maneiras de obter prazer da atividade intelectual. Essa grandeza reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido por provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade,

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que esses traumas para ele não passam de ocasiões de obter prazer. Esse último aspecto constitui um elemento inteiramente essencial do humor. (ibid., p. 166). E conclui dizendo: Além disso, a pilhéria feita por humor não é o essencial. Ela tem apenas o valor de algo preliminar. O principal é a intenção que o humor transmite, esteja agindo em relação quer ao eu quer as outras pessoas. Significa: “Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!” (ibid., p. 169). Quantas brincadeiras e piadas não teriam inventado os nossos antepassados do Paleolítico, contando histórias sobre caçadas de renas e mamutes, algumas mal sucedidas? O riso com certeza contribuiu para desafiar a realidade, atenuar o medo daquelas forças da natureza, que pareciam tão fortes e perigosas àqueles homens.

Na filosofia, foi o filósofo Henri Bergson (1859-1941) um dos poucos a tentar uma explicação do riso. Iniciando com a definição do objeto do riso, a comicidade, Bergson escreve que: Não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; nunca será risível. Rimos de um animal, por termos surpreendido nele uma atitude humana ou uma expressão humana. Rimos de um chapéu; mas então não estamos gracejando com o pedaço de feltro ou de palha, mas com a forma que os homens lhe deram, com o capricho humano que lhe serviu de molde. (BERGSON, 2007, p. 3). Avançando em sua análise do riso, Bergson se admira que até a sua época tão poucos filósofos tenham tratado do tema; “como um

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fato tão importante, em sua simplicidade, não chamou mais a atenção dos filósofos?”, pergunta. O filósofo também descreve várias situações nas quais transparece o aspecto engraçado. Em especial ressalta a rigidez do lado cerimonioso da vida, das cerimônias em si, que tem uma “comicidade latente, que só precisará de uma oportunidade para vir à luz.” (BERGSON, 2007, p. 33).

Mas o que pensamos quando rimos? Rimos de alguém, de algum fato envolvendo pessoas, rimos de idéias ou até de uma instituição. Não rimos de algo inanimado, como uma montanha ou um rio, como escreveu Bergson. Rimos quando um rosto humano, de feições grotescas, é representado em uma nuvem. Mas o esboço da silhueta de uma águia ou da face de um gato, observados na mesma nuvem, desperta admiração, não o riso. Só aquilo que se refere ao humano, que tem ligação com o humano – o pingüim mimetizando um homem de fraque – nos faz realmente rir. Imagens de animais, em diversas situações, podem nos suscitar sentimentos de compaixão, simpatia, admiração, nojo, medo; mas nunca o riso. Filhotes de animais, como os mamíferos, mais perto de nós na aparência e na convivência, fazem-nos rir porque nos lembram crianças pequenas.

Rimos de uma situação ou de alguém que a nós parece engraçado. E o que é risível é o inesperado ou o paradoxal, aquilo que está fora de lugar, representado por um acontecimento, uma situação ou uma palavra. O filósofo Quentin Skinner (1940), citando o pensador renascentista Nicander Jossius, escreve: Ele propõe que consideremos como reagiríamos “se uma mulher colocasse roupas masculinas, ou pusesse a espada à cintura e se dirigisse à praça pública, ou se um soldado cheio de glórias sentasse com meninos na escola para aprender gramática, ou se o príncipe se vestisse como um camponês”. Certamente iríamos rir, mas a razão da nossa hilaridade seria a completa

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incongruência dessas coisas, o fracasso em se dar o devido respeito “ao tempo, ao lugar, à moderação ou à adequação”. Embora estas situações sejam, sem dúvida, ridículas, Jossius parece sugerir que iríamos rir delas menos por desprezo do que por pura perplexidade. (SKINNER, 2002, p. 46). No entanto, o engraçado só pode ser aquilo que para nós não representa perigo e o que está dentro dos nossos limites morais de respeito e consideração com o próximo. Não achamos engraçado o assalto ao banco, no qual quase fomos atingidos por um tiro, mesmo que os assaltantes usassem máscaras de palhaço. Também não desperta nosso riso a notícia de que o vizinho, bêbado, tenha caído, e agora se encontra internado no hospital. Ainda em relação ao que é considerado risível, existe uma tênue diferença, que varia de pessoa para pessoa, dependendo de sua origem social, do meio cultural onde vive do seu nível de instrução, sua idade, a religião a que pertence o sexo, entre outros fatores. A corrida atrás do touro percorrendo as estreitas ruas de certas localidades da Espanha pode ser muito engraçada para indivíduos daquela cultura, mas não deve despertar a mesma risada em membros de uma entidade protetora de animais de outro país. O quadro humorístico mostrado pela televisão leva às gargalhadas o expectador médio, mas é visto como pantomima grotesca pela elite mais instruída. Assim também deve ter sucedido como as muitas festas populares que aconteciam nas cidades européias da Alta Idade Média. A hierarquia eclesiástica e social era ridicularizada, o que proporcionava um espetáculo hilário para o povo que delas participava. As vítimas das chacotas e brincadeiras, no entanto, não deviam gostar das festividades – e assim fizeram de tudo para bani-las.

Outro aspecto é que rimos de algo ou alguém porque acreditamos que o fato de nos divertirmos à custa deste sujeito ou desta

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situação não terá uma represália contra nós; admitimos que o alvo ou sujeito de nosso riso não nos punirá nem reagirá pelo fato de estarmos rindo – pelo menos é o que consideramos naquele momento. Seja pelo motivo de não haver razão para tal reação ao nosso riso (que culpa temos nós, por ter ele caído na poça de água?) ou porque nosso suposto delito não será descoberto (como o ditador saberá que rimos de suas imagens na TV, tentando aparentar bondade, abraçando criancinhas na praça?). No entanto, nestes exemplos, parte-se do pressuposto de que o riso é, em algumas situações, algum tipo de ofensa. Dependendo das condições, o riso pode representar efetivamente uma ofensa, uma humilhação, um ato de prepotência e opressão em relação a alguém mais fraco. Em outras circunstâncias também pode ser considerado ofensivo criticar e fazer piadas sobre crenças, instituições e ideologias, sobre pessoas que ocupam altos postos na hierarquia social; todos considerados mais importantes e, por isso, investidos de mais poder do que o sujeito individual, aquele mesmo que ousa rir ou criticar.

Assim, nas situações hilárias tudo também dependerá de quem é detentor do poder. Muitas vezes, o poder de calar o riso é exercido abertamente: quantas pessoas ousaram rir dos ditadores e permaneceram sem punição? Os comediantes, os trovadores satíricos e os imitadores sempre foram alvos de perseguições e suas piadas e críticas eram proibidas. O grande ditador (1940), filme de Charles Chaplin ridicularizando o ditador Adolf Hitler, teve sua exibição proibida no Brasil, durante parte do governo Vargas. O humor de Chaplin na película era bastante crítico, mas não suscitava o tipo de riso descrito pelo filósofo Quentin Skinner, ao referir-se a um texto de Descartes: A conexão do riso com o ódio e o desprezo é algo a que Descartes dá uma particular atenção; ele retorna mais tarde a esse ponto em sua discussão de la moquerie. “O escárnio ou a zombaria é um tipo de alegria misturada com ódio, e quando este

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sentimento surge inesperadamente, o resultado é que desatamos a rir.” (ibid., p. 54). Outras vezes, o riso crítico não é frontalmente reprimido, mas rechaçado de maneira sutil, ao se afirmar que a instituição ou a idéia criticada é inatacável, por representar algum valor muito elevado e respeitado. Este posicionamento transforma os críticos em transgressores aos olhos do resto do grupo social e atua como uma defesa contra a crítica, já que disseminam o medo e a submissão, apoiados na ignorância.

O riso e a religião

Por que não é comum rir-se da religião? Por que são tão poucas as piadas sobre este tema tão influente na história da cultura brasileira, a erudita e a popular? Para analisar este quadro, partimos da hipótese de que quanto à relação do riso com a religião existem três tipos de posicionamentos. O primeiro inclui as pessoas que tem pouco contato com a religião e para as quais as piadas e a crítica sobre o assunto pouca graça tem, já que o tema não lhes diz respeito. Este grupo de indivíduos é bastante reduzido no Brasil, porque existem poucas pessoas completamente indiferentes à religião e que no decorrer de suas vidas não tiveram nenhum contato com a instituição. O segundo grupo é constituído por pessoas que praticam alguma religião, ou possuem forte preocupação religiosa. Para estes, a piada ou crítica sobre suas crenças é quase sempre considerada ofensiva. O tipo de reação que terão à crítica vai depender muito de seu nível educacional e cultural e até do tipo de igreja ou religião a que pertencem. Em uma pesquisa informal que fizemos, constatamos a existência de um terceiro perfil. Trata-se do indivíduo nãopraticante, mas que ainda se apega a algum tipo de crença. É bastante liberal em assuntos de religião e geralmente não é contra

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piadas sobre o tema, desde que certos limites, geralmente subjetivos e diferentes de indivíduo para indivíduo, não sejam ultrapassados.

Já no âmbito da religião é preciso fazer uma distinção: existem piadas de padres, de sacerdotes, de santos, onde estes quase sempre são retratados de maneira simpática ou em posição de vantagem nos relatos. No entanto, nada ou pouco se ri sobre os dogmas, a divindade e de personagens de grau mais elevado na hierarquia das religiões. Será deste tipo de riso que este trabalho tratará: o riso da religião. Que fique claro que o propósito deste estudo não é desrespeitar quaisquer valores religiosos e muito menos seus praticantes. Trata-se de uma reflexão crítica sobre o riso em relação à religião, através da abordagem de alguns aspectos históricos e culturais.

Se bem que a situação na maior parte do mundo não seja mais a mesma do passado, ainda hoje, em nome da religião, são cometidos crimes contra pessoas, a liberdade individual, a autonomia do Estado, contra a liberdade de pesquisa científica, liberdade de imprensa e de criação, e contra a própria liberdade religiosa. Assim, mesmo em uma sociedade bastante secularizada, ainda estamos em uma situação na qual as pessoas têm medo de rir das divindades (ou do conceito que delas fazem as diversas religiões), de sua igreja e de seus representantes. Neste campo ainda persiste uma espécie de tabu, uma proibição implícita no inconsciente coletivo; como uma barreira contra o riso e contra quase todo tipo de crítica séria baseada em argumentos. Cabe aqui perguntar a quem as religiões estão defendendo contra os críticos: se à instituição religiosa criada pelos homens ou a uma divindade, supostamente todo-poderosa e que por isso não precisaria de advogados.

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Principais aspectos históricos: da pré-história até o século XVI

O homem, parece, não se sustenta no universo sem uma crença em algum pacto com a herança geral do mito. Na verdade, a plenitude de sua vida pareceria estar na relação direta entre profundidade e extensão, não do seu pensamento racional, mas de sua mitologia local. De onde provêm a força desses temas impalpáveis, força que lhes dá o poder de galvanizar populações, fazendo delas civilizações cada uma com sua beleza e destinos próprios? E por que, sempre que o homem procurou algo sólido sobre o qual fundar sua vida, ele escolheu não os fatos, que são abundantes no mundo, mas os mitos de uma imaginação imemorial – preferindo mesmo transformar a vida num inferno – para si e para seus vizinhos, em nome de algum deus violento, a aceitar agradecido a generosidade do mundo? (CAMPBELL, 2005, p. 16). O riso, reação humana a um estímulo e característico de uma sociedade humana com sofisticado grau de comunicação (através do uso de uma linguagem) surgiu junto com a religião, já que ambos requerem uma elevada capacidade de pensamento simbólico. Os primeiros mitos foram possivelmente relatos sobre personagens sobrenaturais, que nas sociedades caçadoras da pré-história eram representados por espíritos da natureza, ligados às práticas mágicas e xamanistas. As pinturas em cavernas como as de Lascaux, na França, e de Altamira, na Espanha, e as esculturas em marfim de Hohlenstein-Stadel, do sudeste da Alemanha (datados de 35 a 17 mil anos atrás), são belos exemplares da arte deste período, representando animais e personagens híbridos (homem-rena, homem-leão), provavelmente figurando feiticeiros. Nesta época, provavelmente, apareceram grupos humanos que haviam elaborado uma estrita relação entre o riso e o sagrado. Escreve o historiador José Rivair Macedo sobre o assunto:

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Em certos grupos tribais cuja sobrevivência fundamenta-se na caça, por exemplo, os gestos risíveis indicam com relativa clareza aspectos da relação da comunidade com a esfera mágica do sagrado. Deste modo, é permitido quase rebentar de rir ao matar ou enterrar homens e/ou animais. De acordo com Vladimir Propp, a suposição plausível para este comportamento é a de que os caçadores rissem a fim de que os mortos renascessem para uma nova vida. De fato, em determinados rituais de iniciação dos jovens púberes era proibido rir. Nesses rituais, que correspondiam, no plano simbólico, à entrada e saída da região da morte, o riso era velado porque sua manifestação denunciaria algo próprio dos vivos. (MACEDO, 1990, p. 89 e 90). Este tipo de riso, usual entre estes grupos humanos, sem dúvida não tinha o mesmo sentido humorístico que damos ao riso atualmente. Além disso, não existem dados empíricos para provar que há 20 ou 10 mil anos estes fatos efetivamente ocorriam desta maneira. Para formular estas hipóteses, os antropólogos basearam-se em estudos de campo, feitos pela observação das culturas de povos chamados de primitivos, como as tribos indígenas das Américas, os povos africanos e da Oceania.

Mais recentemente, em torno de 7.000 a.C., coincidindo com a invenção da agricultura e do estabelecimento das primeiras cidades na Mesopotâmia, surgiram os primeiros deuses, cercados de relatos mitológicos bastante elaborados. O homem, com o desenvolvimento crescente da cultura espiritual e material, torna a religião cada vez mais sofisticada. Esta deixa de ter o caráter mágico que possuía na era Paleolítica. Nesta nova fase do desenvolvimento das sociedades, os deuses são personagens que – diferentemente dos espíritos da natureza do período dos feiticeiros – passam a ter um interesse maior na vida das sociedades humanas, protegendo e patrocinando a agricultura, a construção de templos, a cultura religiosa e a guerra contra outros

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agrupamentos. O santuário (construção menor de uma fase histórica mais antiga) ou templo (construção mais ampla, característica de aglomerações urbanas maiores), junto com os servidores do deus, os sacerdotes, passam a ter um papel cada vez mais preponderante nas sociedades. Esta estrutura investe-se de uma importância e seriedade muito maior, do que a do feiticeiro das tribos de caçadores. Pode-se dizer que alguns valores culturais e religiosos que permanecem vivos até nas sociedades atuais foram criados nestas Cidades-Estado agrícolas, dirigidas pela religião, no final do período Neolítico. Don Cupitt, filósofo e teólogo inglês analisa esta fase da história da seguinte forma: Na visão que estou apresentando, as antigas mitologias acertam ao dizer que os deuses foram os primeiros reis, os primeiros senhores da terra e a primeira classe alta. É razoável postular que a crença nos deuses desse tipo essencial se desenvolveu lentamente no período após 7.500 a.C., quando tiveram início as atividades agrícolas e a fixação ao solo. Os deuses corporificavam, e eram as concentrações maciças de autoridade sagrada e poder disciplinar necessárias para a evolução das primeiras sociedades estatais. A única maneira de transformar um nômade em um cidadão era induzir nele o temor a um deus. (CUPITT, 1999, p. 21). Não sabemos, já que não temos documentos específicos em relação ao tema, se os povos do Levante – sumérios, acádios, assírios, caldeus, babilônios, hebreus e dezenas de outros que transitaram ou se estabeleceram na região entre o quinto e primeiro milênios antes de nossa era, tinham deuses que riam, ou se estes povos dispunham de textos com alguma crítica religiosa, que se manifestasse pelo riso. É provável que aqui ou acolá, nas ruínas ainda por escavar na região, entre milhares de tabuinhas de barro cobertas com textos religiosos, ainda se encontre alguma onde um deus esteja gargalhado, ou algum sacerdote tenha escrito algo com certo senso de humor. No entanto, apesar da (aparente) ausência de crítica, as sociedades enfrentaram muitos problemas. Por volta de 2.000 a.C., segundo o historiador das

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religiões Mircea Eliade (1907-1986), crises espirituais assolaram a Babilônia e outras regiões, resultado da revolta contra a injustiça generalizada na qual “os maus triunfam, as orações não surtem efeito; os deuses parecem indiferentes aos problemas humanos”. (ELIADE, 1978, p. 106). Os judeus, inseridos na tradição do Oriente Médio até pelo menos o século I d.C., quando ocorreu a destruição do templo de Jerusalém e a dispersão de parte da população pelo mundo, são ricos em piadas de humor religioso. O humor judaico zomba de todos – inclusive de Deus. Muitas vezes satiriza personalidades e instituições religiosas, assim como os rituais e os dogmas. Ao mesmo tempo afirma as práticas e tradições religiosas, buscando uma nova compreensão entre o sagrado e o mundano. (SCLIAR, FINZI e TOKER, apud SILVA, 2006, p. 2) Este humor possui anedotas interessantes, de grande profundidade e que foram incorporadas ao patrimônio da cultura ocidental. A história a seguir é contada pelo historiador JeanClaude Carrière: Uma clássica história judaica, que poderia acontecer em qualquer país europeu e que recoloca Deus no devido lugar, conta que, determinada noite, dois rabinos iniciaram subitamente uma discussão sobre a existência de Deus. Eles trocaram os argumentos conhecidos sobre este assunto e finalmente, lá pelas quatro ou cinco horas da madrugada, concluíram que Deus não existe. Sobre isto estavam totalmente de acordo. No dia seguinte, pela manhã, um dos rabinos – que havia convidado o outro, de passagem pela cidade, a pernoitar em sua própria casa – procura o colega e o encontra num canto do jardim recitando suas preces habituais. Ele se espanta e pergunta: - Mas o que você está fazendo?

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- Bem, como você vê, estou recitando minhas preces matinais. - Mas, lembre-se: discutimos a noite inteira e chegamos juntos à conclusão de que Deus não existe. E então? Pode me dizer por que está fazendo as suas preces? O outro rabino lhe diz, muito simplesmente: - Mas o que Deus tem a ver com isso? (CARRIÈRE, 2008, p. 175 - 176)

O espírito crítico da religião, aliado ao humor e à chacota, não é uma exclusividade da cultura ocidental – se pudermos chamar de ocidental toda a tradição do Oriente Médio, além da Grécia. Também da antiga Índia existem relatos sobre uma crítica engraçada à religião. Dispomos de evidências históricas de que entre 600 e 500 antes de nossa era, a vida cultural e religiosa do norte da Índia estava em grande efervescência. O hinduísmo vinha se desenvolvendo desde aproximadamente 2.000 a.C., dando espaço para muitas seitas e dissidências, como o jainismo e o budismo, ambos de tendência atéia. A sociedade culturalmente avançada e em franco crescimento econômico, propiciou o aparecimento de diversos tipos de pensadores: fatalistas, materialistas radicais, ascetas, céticos, pragmáticos, místicos e de monges de todo o tipo e tendência. Apesar da imagem de “terra da espiritualidade religiosa”, os estudiosos admitem que o materialismo ateu foi uma força importante no universo cultural da antiga Índia, antes até do surgimento do budismo. Carvaka é uma das primeiras escolas materialistas da Índia, tendo tomado o nome de um de seus maiores professores, mas tendo sido fundada pelo filósofo Brhaspati. O outro nome dado á escola, Lokayata, significa “o sistema filosófico que tem sua base na vida comum, no mundo profano”, “a arte da sofística” e também “a filosofia que nega de que existe outro mundo além deste”. Os Carvakas também negavam a autoridade das escrituras religiosas indianas. Estas, diziam, eram caracterizadas por três erros: a falsidade, a

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autocontradição e a tautologia. “Ajita Keshakambalin, um filósofo Carvaka famoso contemporâneo de Buda, declarou que os humanos literalmente vão da terra para a terra, cinzas para as cinzas, pó para o pó” (SHUNYA´S NOTES, 2009: 2, tradução nossa). O pensamento Carvaka também consta do Ramayana. Neste poema épico Rama não é o deus que se tornará mais tarde, mas sim um herói épico que tem muitas qualidades e algumas fraquezas – incluindo a de cultivar suspeitas sobre a fidelidade de sua esposa, Sita. No poema um pundit (guerreiro) chamado Javali, não somente deixa de tratar Rama como um deus, mas classifica suas ações como insanas, especialmente sob a ótica de um homem velho e sábio (Javali se referia a si mesmo). Utilizando a doutrina Carvaka, Javali afirma que não há outro mundo, nem prática religiosa para lá chegar e que as injunções sobre a adoração dos deuses, os sacrifícios e as penas, foram incluídos nas escrituras por pessoas espertas, somente para legislar sobre outras pessoas. (SHUNYA´S NOTES, 2009, p. 3, tradução nossa). Os Carvakas representam, com certa dose de humor, uma das primeiras críticas à religião em toda a história, baseada em princípios filosóficos.

O riso tem acompanhado a religião grega desde seus primórdios. Já na Ilíada de Homero, um dos mais antigos relatos sobre os deuses da Grécia antiga ao lado da Teogonia de Hesíodo, a vida dos deuses, convivendo de perto com os homens, é contada em muitos detalhes, focando diversos aspectos da vida dos imortais. Os deuses brigavam, traiam, enganavam, furtavam, se apaixonavam e com isso expressavam todas as reações humanas possíveis, inclusive o riso. Percorrendo os dois poemas destes dois bardos gregos, aprendemos que os deuses também riem por

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vários motivos, muitas vezes por acontecimentos dos quais eles próprios são os protagonistas. Georges Minois (1946) escreve: Todos, (os deuses) um dia ou outro conheceram acessos de hilaridade, e por motivos que não eram sempre dignos, palavra de Homero! Zeus não é o último, ele que assiste hilário, ao tumulto geral dos olímpicos: “Eles caem uns em cima dos outros com grande estrépito; a vasta terra treme; em volta, o grande céu faz soar as trombetas. Zeus o escuta, sentado no Olimpo, e seu coração ri de alegria quando ele vê os deuses entrarem nesta briga. (MINOIS, 2003, p. 23). Num outro texto, um historiador escreve: No Canto VIII da Odisséia, Homero narra a infidelidade conjugal de Afrodite com Ares, ambos surpreendidos pelo deus enganado: Hefestos. A revelação do adultério, e as circunstâncias em que veio a ser descoberto, produziram a gargalhada dos demais. (MACEDO, 1997, p. 91). Em outras passagens, os deuses fazem troça uns dos outros, riem com o que sucede com seus pares e com os homens. Os relatos míticos sobre os deuses gregos – e foi assim em todas as tradições indo-européias; dos hindus aos romanos, passando pelos gregos, germanos, celtas e persas – atendiam à mentalidade da maioria do povo da época. Ainda com relação aos gregos, eram comum que durante os festivais religiosos a população se entregasse ao riso e ao humor irreverente. A vida das divindades, com suas brigas e intrigas, suas histórias de amor, sua maldade e sua bondade, deviam impressionar e entreter as populações da época, assim como os divertimentos de massa das mídias atuais – as novelas, os seriados, os filmes e a apresentação de artistas famosos – divertem grande parte da população do mundo eletronicamente globalizado.

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As comédias de Aristófanes (447-385 a.C.) não eram encenadas em qualquer dia do ano em Atenas, mas apenas por ocasião das festas em homenagem a Dioniso: as Lenéias e as Antestérias. Nesta última, os homens ficavam em pé sobre carroças e zombavam dos passantes. Durante as procissões dos atenienses para a localidade de Elêusis, a fim de que fossem iniciados nos mistérios de Deméter, a procissão passava pela ponte sobre o rio Kéfisos, na qual uma prostituta disfarçada ou um homem se postava para zombar dos cidadãos mais importantes da cidade, chamando-os pelo nome. Em relação a este costume, escreve Jan Bremmer: Tanto Dioniso quanto Deméter eram deuses intimamente ligados à inversão da ordem social e ambos ocupavam uma posição “excêntrica” no panteão grego. O humor podia ser perigoso, e seu lugar na cultura tinha de ser limitado a ocasiões estritamente definidas. Os gregos sabiam muito bem que o riso poderia conter um lado muito desagradável. (BREMMER, 2000, p. 30). Não existe certeza se o povo acreditava em todos os relatos da tradição religiosa e mítica na antiga Grécia. O que se sabe, entretanto, é que a partir do século VI a. C., as elites intelectuais passaram a perder a crença nos relatos sobre seus deuses. Estes tornaram-se então o que as narrações bíblicas são para os estratos instruídos da civilização ocidental nos dias atuais: relatos incorporados à cultura e que algumas vezes tem um significado simbólico, mas sem qualquer fundamento real. Representantes desta elite intelectual da população grega dirigiam suas críticas aos mitos, principalmente com relação aos aspectos grotescos dos relatos. Entre estes críticos estava o filósofo e poeta Xenófanes de Colofão (ca. 570-528 a.C.) quem, segundo o filósofo Hegel, foi o primeiro pensador a determinar o ser absoluto como o um, Deus presente em todas as coisas. Sexto Empírico, filósofo cético do século II d. C., atribui ao pensador a seguinte crítica aos bardos gregos: Tudo aos deuses atribuíram Homero e Hesíodo,

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tudo quanto entre os homens merece repulsa e censura, roubo adultério e fraude mútua. (SOUZA, 1996, p. 70) Em Roma a alegria e a diversão coletiva também faziam parte dos cultos ao deus romano Baco (o grego Dioniso); deus do vinho e das representações teatrais. Havia rituais onde o riso era parte integrante da cerimônia. Nas festas chamadas de Hilárias, realizadas a 25 de março de cada ano, celebrava-se a ressurreição do deus oriental Attis e qualquer manifestação de tristeza ou pesar em proibida. Ainda em Roma ocorriam outras celebrações de origem agrária, as Vinalia, realizadas durante os festejos chamados Liberalia, Saturnais e Lupercais. Estas festas foram as precursoras do atual Carnaval, tendo sofrido diversas modificações ao longo do período medieval. As festividades que celebravam a fertilidade, a orgia sexual e ao mesmo tempo a alegria, faziam parte da cultura popular de todo o império romano. Para finalizar esta análise do período greco-romano sob aspecto da religião e do riso, apresentamos as palavras de Ernst Cassirer (1874-1945), um dos pensadores que melhor analisaram a relação do homem com a cultura e com os deuses: O que o homem retrata em seus deuses é ele mesmo, em toda a sua variedade e multiformidade, sua disposição mental, seu temperamento e até suas idiossincrasias. Mas não é tal como na religião romana o lado prático de sua natureza que o homem projeta na deidade. Os deuses homéricos não representam ideais morais, mas exprimem idéias mentais muito característicos. Não são deidades funcionais e anônimas que devem assistir a uma atividade especial do homem: estão interessadas em homens individuais, e favorecem-nos. Cada deus ou deusa tem os seus favoritos, que são apreciados, amados e auxiliados, não com base em uma mera predileção pessoal, mas em virtude de um tipo de relação mental que liga o deus ao homem. Mortais e imortais não são corporificação de ideais morais, mas de talentos e tendências mentais especiais. Nos poemas homéricos encontramos com

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frequência expressões muito claras e características desse novo sentimento religioso. (CASSIRER, 2005, p. 163). Há uma grande mudança na visão de mundo da religião grecoromana para a religião cristã. Os deuses clássicos eram imortais, mas ao mesmo tempo trafegavam constantemente pelo mundo humano; apaixonavam-se e tinham filhos com os humanos, tomavam partido em suas guerras, apoiavam alguns preferidos em detrimento de outros. Já o deus judaico-cristão era único, não partilhava seu poder com outros deuses. As atividades do judeu Jahvé ou do cristão Deus-Pai eram ignoradas pelos humanos – diferente dos deuses clássicos, cujas vidas eram literalmente um livro aberto. A vida do Deus-Pai cristão passou a se tornar mais conhecida dos homens depois que a nascente Igreja, no Concílio de Nicéia (325 d.C.), apoiou a proposta do bispo Eusébio de Cesaréia, declarando Jesus homem, Deus e Filho de Deus – tudo ao mesmo tempo. Outro aspecto importante é que para a nascente religião cristã a vida dos homens e a história tinham um sentido, dado por Deus. O Deus cristão era o condutor da história, diferente dos gregos, para os quais a história humana e a do universo eram cíclica, dividida em períodos ou Idades: Idade do ouro, Idade da Prata, Idade do Bronze e Idade do Ferro, às quais os próprios deuses estavam sujeitos.

Da mesma forma, a moral do nascente cristianismo não era mais a mesma da já então decadente civilização greco-romano. No entanto, muito da cultura e dos hábitos do mundo clássico continuavam permeando a nascente civilização; agora de outra maneira, sob uma nova ótica, muitas vezes sem que as pessoas tivessem o conhecimento do significado e das origens de certos hábitos. Festas pagãs, como a festa da colheita e do solstício do verão europeu, foram transformadas em festas de santos cristãos (João e Pedro). O solstício de inverno, data significativa para a antiga astrologia, foi mudado para a festa do nascimento de Jesus. Sob este aspecto escreve o folclorista e historiador Câmara Cascudo:

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Imenso número de nossos hábitos atuais foram gestos religiosos comuns e rituais. Evaporou-se a essência, perdendo-se a função sagrada, ficou-nos o ato indispensável e natural às necessidades modernas. Dançamos sem música na cadência do velho bailado, seguindo simples notas perdidas de uma melodia interior e silenciosa. (CÂMARA CASCUDO, 1971, p. 176). No âmbito político, a Pax Romana garantia a ausência de conflitos maiores e permitia devido em parte à mobilidade de pessoas e idéias, ampla concorrência neste grande mercado religioso que era o então império romano. Neste ambiente, os membros do nascente culto cristão tinham que disputar as mentes e corações dos fiéis com outros cultos – o culto de Mani, o culto a Ísis, de Serápis, de Atagártis, o de Mitra, os adoradores da Grande Mãe e de Apolônio de Tiana, entre outros – e ainda combater dissensões dentro das próprias fileiras: valentinianos, marcionistas, montanistas, gnósticos, arianos e outros. Com relação à doutrina, ainda não havia unidade dentro do cristianismo nascente e esta só começou a ser estabelecida em seus contornos principais após o Concílio de Nicéia, quando parte importante da doutrina foi definitivamente estabelecida. Em 367, para unificar os textos da Escritura (Evangelhos, Atos e Cartas), Atanásio de Alexandria estabelece o cânon oficial e proíbe a leitura das outras cerca de 50 diferentes versões dos Evangelhos – muitas delas restritas a uma só comunidade – que então circulavam pela bacia do Mediterrâneo.

Este período histórico, com sua profusão de textos religiosos sobre o nascente cristianismo, mostra a diferença de mentalidade e de visões do novo culto, que persistiram até que o catolicismo – uma das várias correntes de pensamento dentro da nascente religião – conseguiu eliminar gradualmente os concorrentes e tornar-se a corrente oficial, com o apoio do poder secular. Muitos textos apócrifos mostram aspectos da variedade doutrinária entre

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as diferentes comunidades cristãs. No exemplo a seguir, trata-se de um comentário sobre o texto Pistis Sophia, do século III, de inspiração gnóstica. Chama atenção a hilária descrição do comportamento do apóstolo Pedro: [...] É interessante notar que aqui reaparecem a mesma inimizade e antipatia entre Maria e Pedro que já constam do Evangelho de Tomé e do Diálogo do Salvador – provavelmente refletindo a disputa de duas congregações. Pedro é invariavelmente retratado como truculento, estúpido e fanfarrão. Fica enciumado porque Maria monopoliza a atenção de Jesus e lidera o grupo e manda que ela cale a boca; o que lhe vale (como sempre) uma tremenda descompostura, pois Jesus diz que, entre os inspirados, não há diferença de sexo. (FIORILLO, 2008, p. 240). Outro exemplo interessante é sobre o Evangelho da Infância, atribuído a Tomé e datando provavelmente do século VI. O texto tem um aspecto engraçado, pois [...] relata as diabruras do Jesus criança, dos cinco aos 12 anos. Capaz de raciocínios que deixam estarrecidos os adultos, é também capaz das crueldades próprias da idade. Num dos episódios, seca a mão de outro garoto. Opera milagres marotos e vingativos, como cegar ou fazer cair duro seu rival nas brincadeiras para, claro, depois restituí-lo são e salvo. (ibid., p. 241). O ambiente cultural do final da Antiguidade e início do período medieval havia mudado completamente a maneira dos intelectuais encararem a herança da cultura clássica ainda presente. As referências aos cultos do passado eram feitas com o maior cuidado possível, evitando qualquer menção mais detalhada aos cultos da fertilidade. Eusébio de Cesaréia, Arnóbio e Clemente de Alexandria escrevem sobre o mito de Deméter e Perséfone/Kóre, sem entrarem em detalhes quanto aos seus aspectos sexuais. Ainda com relação a este mito, os autores cristãos enfatizam o aspecto nefasto do riso, que com o tempo acaba se transformando

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em gesto obsceno, passando a ser associado à falta de pudor, à idolatria e ao pecado. Com isso os teólogos cristãos desenvolveram uma visão crítica e até aversão pelo risível. Sobre este posicionamento em relação ao riso, escreve o historiador Jacques Le Goff: Vê-se, portanto, que em torno do riso travou-se um grande debate, que vai longe, porque, se Jesus não riu uma única vez em sua vida humana, ele é o grande modelo humano, [...] o riso torna-se estranho ao homem, ou pelo menos ao homem cristão. Inversamente, se é dito que o riso é próprio do homem, é certo que, ao rir, o homem estará exprimindo melhor sua natureza. (LE GOFF apud SILVA, 2006, p.1) O humor perdeu qualquer relação com o sagrado, com os deuses, e transformou-se em um gesto puramente profano, revestido de conotações negativas, associado com a desordem e o caos. Clemente de Alexandria preocupou-se tanto com o tema, que decidiu escrever um longo texto, intitulado Paedagogus, no qual Cristo é colocado como professor dos fiéis, ajudado por textos das Escrituras, de Platão, Aristóteles e Sêneca. A obra reunia diversos preceitos de conduta cristã, destinados a ajudar o cristão na vida do dia-a-dia. Referindo-se ao riso, Clemente afirma que este deve ser reduzido na vida do fiel e que as pessoas dadas à derrisão não poderiam ser incluídas na comunidade dos fiéis. O riso dentro dos limites ajudaria no equilíbrio da alma; fora de controle, o riso seria perigoso e indicaria desregramento espiritual, sendo comparado ao riso despudorado de prostitutas e proxenetas. No entanto, com relação à sua aversão ao riso e humor, Clemente ainda foi considerado um moderado. No início do século V esta posição foi sendo substituída por uma atitude muito mais severa, como a do bispo de Constantinopla, São João Crisóstomo. Vivendo no período da dissolução final do império romano, época de crise social, econômica, política e espiritual, Crisóstomo tornou-se um pessimista e passou a defender a renúncia radical aos prazeres. Em seus sermões e homilias o bispo se opunha veementemente

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ao riso e à diversão, pregado que a via da purificação seria “chorar no mundo, para que pudéssemos rir na vida eterna”. Os cenobitas que viviam em mosteiros e que viriam a exercer uma grande influência sobre o ascetismo medieval também estabeleceram o mesmo posicionamento rígido em relação ao riso. A Regra de São Basílio, escrita em 365 em Cesaréia, traz os primeiros argumentos contra a derrisão; os mesmos que viriam a influenciar as regras das outras ordens religiosas – a começar pela de São Bento – e que exerceriam uma grande influência sobre toda a vida religiosa medieval. Na regra, o riso imoderado é considerado sinal de falta de controle e relaxamento espiritual. Em uma passagem, o texto da regra diz: Como o Senhor condena os que riem agora, é evidente não haver para o fiel tempo algum próprio ao riso, principalmente sendo tão grande a multidão dos que ofendem a Deus, por violação da lei, e morrem no pecado; por todos eles devemos contristar-nos e gemer. (apud MACEDO, 1997, p.105). Foi o mesmo São Basílio, autor da regra monástica, que com sua influência estabeleceu as bases para o posicionamento da Igreja – e assim em grande parte da sociedade medieval – no que concerne a maneira como daqui em diante a instituição lidará com o riso. Em suas Grandes Regras, Basílio escreve que [...] “Os relatos evangélicos o atestam, jamais ele (Jesus) cedeu ao riso. Pelo contrário, ele chama de infelizes aqueles que se deixam dominar pelo riso” (apud MINOIS, 2003: 121). A mesma reação de oposição ao riso se encontra em Santo Agostinho, fundador da Patrística, a filosofia oficial da Igreja durante pelo menos 800 anos na Idade Média, e o mais importante filósofo do período. Referindo-se ao riso e às brincadeiras o filósofo afirma que estes atos são o que há de mais ínfimo no homem. A exceção à regra são apenas alguns intelectuais cristãos, grandes satiristas como Minucius, Felix, Tertuliano, Arnóbio, Lactâncio e Prudêncio, que fazendo chacotas e sátiras – algumas bastante vulgares – utilizam-se do riso para combater os deuses e mitos pagãos, junto com os seus sacerdotes.

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Foi, sobretudo na Idade Média que a religiosidade percorreu um longo caminho, no qual esteve exposta tanto a fatores favoráveis como a influências perigosas. A elite intelectual orientava-se geralmente pela evolução da teologia, que por sua vez era animada e cheia de conflitos. Ao lado disso, as devoções populares costumavam seguir seus próprios rumos, com a tendência de se ramificar num grande numero de fenômenos isolados. Toda essa evolução fascinava cada vez mais os fiéis individualmente, mas de modo geral o povo não se afastava da doutrina fundamental da Igreja. (LENZENWEGER et al., 2006, p. 200). A citação resume muito bem a situação da Igreja e dos fiéis a partir dos séculos XI e XII. A retomada do comércio entre as cidades, o desenvolvimento de novas tecnologias e a maior disseminação da cultura, principalmente através das escolas dominicais e das universidades, dão à sociedade medieval um novo impulso. O sistema feudal começa a perder sua solidez, em parte devido aos servos fugidos, que irão exercer atividades artesanais nas cidades, aumentando assim a oferta de produtos manufaturados, mas desfalcando os campos senhoriais de mãode-obra. Surgem as grandes heresias, para cujo combate a Igreja criará a Inquisição, estabelecida em 1231 pelo Papa Gregório IX e consolidada por Inocêncio IV em 1252. A Idade Média, principalmente a Alta Idade Média a partir do século XII, foi um dos períodos da história ocidental em que a religião e as festas populares – seculares ou religiosas – tiveram mais influência na vida social. As festividades, realizadas nas igrejas e ao ar livre, reuniam autores, atores, comediantes, músicos, malabaristas e poetas em um pequeno espaço no interior das cidades. Estes acontecimentos, além de ser a ocasião para encenação de peças teatrais, também eram local para outras atividades culturais como a leitura de poesias, manifestos, apresentação de canções e pregações religiosas. Toda esta

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atividade atraia diversos tipos de pessoas para as cidades, promovendo a troca de idéias e a elaboração de novos projetos humanos (era divulgada uma nova heresia, apresentava-se um novo tipo de arado, o aldeão arranjava um casamento, o camponês vendia seu melhor leitão). Esta intensa interação social em torno destas festividades foi possivelmente um dos fatores impulsionadores do desenvolvimento da sociedade humana da época. Bakhtin, referindo-se ao papel social da praça pública neste período, escreve: A praça pública no fim da Idade Média e no Renascimento formava um mundo único e coeso onde todas as “tomadas de palavra” (desde as interpelações em altos brados até os espetáculos organizados) possuíam alguma coisa em comum, pois estavam impregnados do mesmo ambiente de liberdade, franqueza e fraternidade. (BAKHTIN, 2008, p. 132). Neste ambiente cultural forma-se uma cultura do riso, baseada nas festas populares, nas peças cômicas, nas apresentações artísticas. A característica destes eventos, chamados genericamente de carnavais, é a participação geral do povo. Representantes de quase todas as classes – servos, artesãos, membros do baixo clero e da baixa nobreza, pequenos comerciantes, padres, monges, estudantes e todo tipo de outsiders; todos são envolvidos na brincadeira. Durante estas festas eram apresentadas paródias da liturgia, paródias das leituras evangélicas, das orações (inclusive das mais sagradas como o Pai-Nosso, a Ave-Maria, etc.), das litanias, dos hinos sagrados, dos Salmos e das diferentes passagens dos Evangelhos. Os personagens colocados em cena nestas paródias representam desde as autoridades eclesiásticas (o bispo, o papa), passando por animais (o asno, o porco) até os bufões, os malandros e os tolos. Muitas destas festas também estavam misturadas com movimentos heréticos. Um texto de uma farsa de 1300, a Farsa do Perdoador explora um tema cômico recorrente na época: as falsas relíquias. Nesta farsa vê-se um charlatão

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apresentar ao povo metade de uma prancha da Arca de Noé e uma pena da asa de um dos serafins. Temas como este, serão muito usados pelos membros de seitas heréticas, para criticar e ridicularizar a atuação da igreja católica.

Outro grupo medieval, constituído por ex-clérigos, estudantes, intelectuais pobres e vagabundos foi chamado de Goliardos. A etimologia do nome permanece desconhecida, mas parece derivar de gula em latim, goela, talvez relacionado com o fato de que gritavam quando declamavam suas falas em praça pública. Outras fontes informam que seu nome é derivado do gigante filisteu Golias, o adversário que foi derrotado por Davi, revelando assim uma origem ruim. Em todo caso, a reputação dos Goliardos não era boa. Eram acusados de utilizarem idéias dos cultos pagãos e de rituais satânicos. Suas críticas e blasfêmias contra o clero e seus vícios, contra as cerimônias do culto e contra as crenças fundamentais da religião levantam suspeita de ateísmo. Os Goliardos riem de tudo, em particular do sagrado. Mas suas brincadeiras e piadas não ultrapassam o que normalmente ocorre nas festas de Carnaval. O aspecto subversivo do grupo, no entanto, é o fato de serem vagabundos, de não terem lugar fixo de morada. Segundo Minois, O Goliardo, vagabundo semidelinquente, pretende reativar e personificar a idéia do Cristo-palhaço, do saltimbanco de Deus, que ri de tudo porque o verdadeiro sagrado está além do sensível, fora do alcance dos gracejos humanos.” [...] “É exatamente isso que o torna insuportável. O riso do Goliardo é o único riso subversivo da Idade Média clássica, porque não se contenta em zombar: ele vive de maneira diferente e sugere, com isso, que é possível existir outro sistema de valores. O riso da festa dos bobos ou do Carnaval mostra a loucura do mundo às avessas; o riso do Goliardo mostra a loucura do mundo do lado direito. E isso não é mais jogo. (MINOIS, 2003, p. 187 e 188).

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O Goliardo foi tão perseguido à sua época pela Igreja e depois estranhamente esquecido pela história. Sua função social de crítico e de humorista intelectualizado deve ter assustado os detentores do poder e defensores da visão de mundo da época. O especialista no tema Antonio Ozaí da Silva escreve: O riso suspende a razão, desarma-a. Na linguagem religiosa do bibliotecário Jorge de Burgos (do romance O nome da rosa), o riso liberta o indivíduo do medo do demônio. Se o homem tiver liberdade de rir o que o impedirá de afrontar a autoridade instituída e, no limite, o próprio Deus, com o seu riso? Toda religião se fundamenta no temor. Paradoxalmente, o crente ama e teme a divindade; aceita-a e voluntariamente submete-se. Em alguns contextos históricos o medo chega mesmo a se tornar terror – como escapar de um Deus onipresente e onisciente? (SILVA, 2006, p. 5). Análise semelhante é feita pelo teólogo e antropólogo americano Harvey Cox, a partir de um texto do filósofo polonês Leszek Kolakowski, onde este último discute duas posições perante a teologia: a do padre e a do folião medieval. O padre mantém a posição do sistema, do (aparentemente) imutável contido na tradição. O folião, por outro lado – poderia ter sido um Goliardo? – é o questionador daquilo que é considerado evidente e para o qual, assim dizem, não existem alternativas. No entanto, a atividade do folião não é apenas a de divertir o público e provocar o riso da audiência – isto qualquer humorista medíocre também poderia fazer. O que o folião está efetivamente fazendo é expor ao ridículo justamente aquelas coisas que a audiência insiste em não examinar criticamente. Todavia, era persistente a oposição das elites religiosas e políticas a estas festas; consideradas como pagãs e influenciadas por Satã, que sorrateiramente havia se introduzido nestes divertimentos, paganizando-os e utilizando-se deles para confundir o povo e subverter a ordem instituída. Assim,

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Todos os que exerciam o ofício da paródia eram considerados profanadores dos sacramentos e dos dignatários eclesiásticos e estavam fazendo troça dos assuntos sagrados, segundo um comunicado da Faculdade de Teologia de Paris, em um édito de 1444. (DELUMEAU, 1978, p. 404, tradução nossa). A Alta Idade Média foi marcada por grandes eventos sociais como as Cruzadas (nove entre os anos de 1096 e 1272), fome generalizada em certas regiões, seguido da Peste Negra (13471350) que vitimou quase um terço da população européia. Ao final deste período, o sistema feudal já não oferecia mais proteção aos camponeses; estes eram cada vez mais explorados e procuravam fugir para as cidades. Norman Cohn nos pinta o quadro social desta nova Europa, campo fértil para o desenvolvimento de todo tipo de oposição ao status quo: O milenarismo revolucionário tira a sua força de uma população vivendo à margem da sociedade – camponeses sem terra ou cuja terra não chega para a subsistência; jornaleiros e trabalhadores sem qualificação vivendo sob a ameaça constante do desemprego; pedintes e vagabundos – de fato a massa amorfa do povo que além de pobre era incapaz de encontrar um lugar assegurado e reconhecido na sociedade. A essa gente faltava o apoio material e emocional garantido pelos grupos sociais tradicionais; os seus grupos de parentesco tinham-se desintegrado e estavam efetivamente organizados em comunidades de aldeia ou corporações; para eles não existiam métodos regulares, institucionalizados, de fazer ouvir as suas queixas ou adiantar as suas reclamações. Esperavam então a vinda de um propheta para uni-los em um grupo específico. (COHN, 1981, p. 232).

Formou-se assim um clima ideal para as revoltas populares, apoiadas nas inúmeras heresias e grupos itinerantes que vagavam pela Europa. Um deles era o movimento dos Flagelantes, formado por pessoas sem posses que percorriam vastas regiões mendigando, pregando o arrependimento e a autoflagelação para

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expiação dos pecados. No outro extremo, estavam os Irmãos do Livre Espírito, que advogavam uma total liberdade para seus fiéis. Estes, efetivamente acreditavam que podiam agir como queriam, pois “estavam sempre na presença de Deus”. Uma das características desta seita era a total promiscuidade de seus membros, praticando o sexo livre, a poligamia, a poliandria, além de roubos e outros crimes. A Igreja Católica, sempre atenta a movimentos contestatórios, combatia tais grupos através da Inquisição (que havia sido criada para combater outro grupo de heréticos, os cátaros, do sul da França), com a ajuda do braço secular.

O fim do período medieval coincide com o movimento cultural do Renascimento e o início da revolução religiosa, iniciada pela Reforma Protestante. Ainda se trata de um período bastante conturbado, de grandes mudanças sociais, culturais e tecnológicas. Por esta época também tem início as Grandes Navegações (aprox. entre 1450 e 1530), através das quais, em pouco mais de 80 anos, os habitantes da Europa mudariam toda a sua visão de mundo; de sua extensão e da quantidade de povos e culturas que existiam no globo. Copérnico divulga o seu sistema planetário heliocêntrico, tendo o Sol como centro do universo conhecido da época. Tal descoberta, encontrando resistência de parte da Igreja Católica, representaria o primeiro golpe no antropocentrismo cultural, já que tirava do homem seu lugar especial na hierarquia da criação. “Por que”, perguntavam-se muitos, “se somos o ápice da Criação, feitos à imagem de Deus, moramos em um planeta que ocupa uma posição secundária na eterna ordem cósmica?”.

Todos estes questionamentos terão, evidentemente, uma forte influência sobre a religião. Por um lado, surgem as igrejas protestantes, a igreja anglicana se separa de Roma e uma

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profusão de pequenas seitas de tendência protestante se espalha pela Europa. Por outro, cada igreja cristã tem a pretensão de ser a única detentora da verdade e classifica as concorrentes de heréticas. Na prática, as igrejas protestantes sobrevivem porque a católica já não tem mais a força para impor sua exclusividade. Com isso, dada a diversidade de correntes, sobra pouco para ser criticado no novo cristianismo. As opções a escolher eram tantas, desde as igrejas principais como a luterana, calvinista e anglicana, até os grupos menores, como os menonitas, anabatistas, seekers, quackers, etc. As perseguições religiosas que ocorriam, era muito mais o resultado da disputa entre as diversas igrejas, do que da ação contra dissidentes. Não havia heréticos; todos o eram. O novo dissidente não tem mais o perfil do cátaro, valdense ou bogomilo medieval, que partilhava muitas crenças com a religião oficial, o catolicismo. O novo crítico tem agora três caminhos a seguir: 1) aderir à outra igreja diferente da sua; 2) fundar uma nova igreja, opondo-se a todas as outras; ou 3) assumir uma atitude de oposição a qualquer igreja, o que o tornava o crítico especialmente perigoso, porque passava a criticar o cristianismo; talvez até qualquer teísmo. Este dissidente tem muito pouco em comum com as igrejas cristãs, aproximando-se do panteísmo, de Bernardo Telesio (1508-1588), Giordano Bruno (1548-1600), Thomas Campanella (1568-1639) e Baruch de Spinoza (16321677) ou do epicurismo e atomismo, como Pierre Gassendi (15921655).

Inicia-se assim um novo período na história religiosa do Ocidente. Os Estados, dada a diversidade de igrejas e de crentes, se colocarão gradativamente ao largo da questão religiosa. A igreja católica se manterá ainda com certa influência até a Revolução Francesa; muito mais como instituição política do que religiosa, disputando espaço institucional com as outras igrejas cristãs. Depois da Revolução Francesa – e da tradição política criada pela independência americana – é definitivamente estabelecido o paradigma da separação entre a Igreja e o Estado. Sobre este

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processo religioso e político, cultural e social, que em última instância iria levar à moderna sociedade secularizada, escreve Wilhelm Dilthey: E à medida que, em seguida, se foi estendendo século para século o panorama da distribuição geográfica das formas humanas de existência, dos costumes e modos de pensamento, até abarcar toda a terra, alastrou irresistivelmente, face àquele dogma, na maioria dos homens uma atitude cética; foi diminuindo incessantemente a força da fé num saber transcendente, primeiro, nas condições do investigador científico, em seguida, nas classes cultas, por último, até a massa dos trabalhadores, e nenhuma metafísica transcendente conseguia já o tipo de autoridade, como a que outrora possuíra a de Platão ou de Aristóteles ou de Santo Tomás. (DILTHEY, 1992, p. 16).

Aspectos filosóficos e culturais ao longo da história

Xenofonte (430-350 a.C.), discípulo de Sócrates, escreveu sua obra Simpósio em 380 a.C. e com ela pretendia oferecer a sua própria visão do venerado mestre. No texto, descrevendo um jantar oferecido pelo rico Calias, do qual também participa Sócrates, o autor utiliza um interessante recurso literário, introduzindo na trama a figura de um gelotopoios, literalmente, um “produtor de riso”. O comediante ou bufão participa de todo o banquete e ao final é advertido por Sócrates de que “fosse reticente em assuntos sobre os quais não se deveria falar” e “assim acabar com este desconforto entre os convivas”. (apud Bremmer, 2000, p. 28). Que assuntos seriam estes sobre os quais, a pedido de Sócrates, o bufão não deveria falar? As palavras de Sócrates no Simpósio refletiam com certeza a posição do próprio autor, Xenofonte, que, no entanto, estava apresentando as idéias de seu mestre retratado, Sócrates. Bremmer cita uma frase que Estobeu (séc. V d.C.) atribuiu a Sócrates: “Deve-se usar o riso como se usa o sal – com parcimônia”, mostrando o modo como o

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riso era visto por este filósofo. Nesse ponto Sócrates se coloca junto com Pitágoras e Anaxágoras, os quais, segundo menciona Diógenes Laércio (200-250 d.C.) em Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, tinham fama de nunca ou raramente rirem.

A atitude de Sócrates perante o riso parece ter feito escola, já que Platão também se opunha à hilaridade grosseira e vulgar, enfatizando a necessidade do riso contido, inofensivo. Na República, Platão proíbe o riso em diversas passagens; os guardiões são proibidos de se entregarem e ele, porque em exagero é seguido de reação violenta. A comédia, por outro lado, pode fazer com que as pessoas queiram imitar suas situações na vida real. Em sua outra obra As Leis, o fundador da Academia recomenda que a comédia seja completamente abolida e a bufonaria deixada apenas para os escravos e estrangeiros. Aparentemente Platão também era pouco afeito ao riso no ensino, já que o proibia na Academia. Seus inimigos se vingaram de sua falta de humor, representando-o nas comédias como um charlatão. O filósofo Simon Blackburn, se referindo a Platão, escreve: Sabemos muito pouco sobre Platão e o que há para saber não é, de um modo geral, atraente. Integrado em seu contexto histórico, podemos encontrar um velho azedo típico, um aristocrata desiludido, odiando a democracia ateniense, convencido de que governam as pessoas erradas, com um medo profundo da própria democracia, constantemente escarnecendo dos artesãos agricultores e, afinal, de qualquer trabalho produtivo, desprezando radicalmente todo o anseio dos trabalhadores pela educação, e em última análise, manifestando um apelo indefectível ao regime intolerável de Esparta. (BLACKBURN, 2007). Já com relação à religião, Platão tem uma visão própria, bastante diferente da maior parte de seus contemporâneos. O filósofo vê a vida e a relação com a divindade como se fosse um grande jogo.

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Este aspecto da filosofia de Platão, analisado pelo filósofo Johan Huizinga (1872-1945), parte do pressuposto de que sempre houve uma identificação da cerimônia religiosa com o jogo, já que ambos dividem uma série de características, como: ocorrerem em espaço fechado ou restrito, serem isolados do cotidiano; terem delimitação da duração temporal; disporem de regras, atitudes e vestimentas diferentes às da vida cotidiana; terem vocabulário específico, entre outras. Em sua obra Leis, Platão escreve que É preciso tratar com seriedade aquilo que é sério. [...] Só Deus é digno da suprema seriedade e o homem não passa de um joguete de Deus, e é esse o melhor aspecto da natureza. Portanto, todo homem e mulher devem viver a vida de acordo com essa natureza, jogando os jogos mais nobres, contrariando suas inclinações atuais... [...] Qual é, então, a maneira mais certa de viver? A vida deve ser vivida como jogo, jogando certos jogos, fazendo sacrifícios, cantando e dançando, e assim o homem poderá conquistar o favor dos deuses e defender-se de seus inimigos, triunfando no combate. (PLATÃO apud HUIZINGA, 1980, p. 22). Esta idéia da vida como um jogo também é, coincidentemente, comum ao pensamento religioso indiano, mais especificamente o bramanismo. Este enxerga o universo, sua formação, desenvolvimento e destruição como um grande jogo eternamente repetido, envolvendo Brahma, a divindade máxima da trindade hinduísta: Brahma, Vishnu e Shiva. Este conceito da eterna repetição dos universos se aproxima também das concepções elaboradas pela moderna cosmologia, na teoria do universo cíclico, de Steinhardt e Turok. Sobre este antiqüíssimo mito religioso escreve o estudioso von Glasenapp: No final de mil grandes Períodos do Mundo, finda também um Dia de Brahma. Segue-se então uma destruição parcial do universo, seguida por um período de inatividade, chamado de Noite de Brahma. Dessa forma, se sucedem Dias e Noites de Brahma, até que a Vida de Brahma também tem um fim. Então, sucede uma

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destruição total do universo, seguida por uma Grande Noite. A seguir, inicia-se novamente o eterno Jogo de Criação Divino e nasce um novo Brahma, que assumirá exatamente as mesmas funções de seu antecessor. (VON GLASENAPP, 1926, p. 137, tradução nossa). Resta acrescentar que a idéia de encarar tudo como um jogo, proporciona uma visão diferente da vida do homem e da organização das sociedades. Se toda a vida humana e o próprio universo é um grande jogo, sério, mas não de uma importância absoluta, nossas alegrias, sofrimentos, opiniões e crenças – sob aspecto individual ou social – perdem sua excessiva seriedade, seu valor definitivo. Assim, o soberano perde um pouco de sua imponência, porque esta não é absoluta. Ele apenas é o personagem de um jogo (um “joguete de Deus”, como escreveu Platão), do qual também participam o rico e ocupado executivo, a pobre mulher negra, o pedreiro ignorante e o professor universitário; o doente terminal e o recém nascido, o índio isolado na floresta e o palhaço no circo, o crente e o ateu. O tema da eterna repetição dos universos e de sua implicação como um jogo, será retomado inúmeras vezes na cultura ocidental, por intelectuais tão díspares quanto Shakespeare, Nietzsche e Spengler.

No final de sua vida Platão pode ter se dado conta da dimensão cósmica do jogo. Sempre tão sério inimigo do riso, dizem os registros que Platão, em seu leito de morte, estava lendo Aristófanes, o autor cômico. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), comentando o fato, escreveu: [...] nada me fez meditar tanto na natureza secreta e esfíngica de Platão do que o felizmente conservado episódio de que, debaixo da almofada de seu leito de morte não havia uma bíblia, nem nada de egípcio, pitagórico ou platônico – mas um livro de Aristófanes. Como poderia Platão ter suportado a existência – uma existência

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grega que ele repudiou – sem Aristófanes? (NIETZSCHE apud BLACKBURN, 2007) Aristóteles escreveu todo um livro dedicado ao humor, Sobre a Comédia, que infelizmente se perdeu. Discutindo a fisiologia dos animais, o filósofo formulou um paradigma que até hoje ainda em parte é válido, ao escrever que “o homem é o único animal que ri”. Uma síntese da galhofa e do riso Aristóteles apresenta na Ética a Nicômaco, na qual se refere ao bufão, aquele que tem um humor mais pesado e faz de tudo para conseguir o riso; seja fazendo galhofas sobre os outros, ou sobre si próprio. Ao bufão, Aristóteles antepõe o cavalheiro, o homem de humor fino, na linha do humor preconizado por Platão – o riso contido e inofensivo. Alguns autores falam de um “aburguesamento” da vida social ateniense no século IV a.C. Bremmer informa que os aristocratas passam a freqüentar os simpósios, as discussões culturais na forma de banquetes; a vida social se sofistica e ocorre um refinamento moral: saber contar piadas de uma forma refinada era sinal de “agudeza de espírito” (eutrapelia). Caracterizando bem o tipo humano, Aristóteles escreve: Aqueles que levam a jocosidade ao excesso são considerados bufões vulgares; são os que procuram provocar o riso a qualquer preço, e na sua ânsia de fazer rir, não se preocupam com a inconveniência do que dizem, nem em evitar o mal-estar daqueles que elegem como objeto de seus chistes; (ARISTÓTELES, 2002, p. 100). Por outro lado, Aristóteles parece não ver uma função contestatória no humor, ao contrário: Por conseguinte, há gracejos que este homem (o cavalheiro refinado) nunca fará, pois o gracejo é uma espécie de insulto, e há coisas que os legisladores nos proíbem insultar, e talvez devessem também proibir-nos de gracejar a respeito delas. (ibid., p.101, itálico nosso).

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Não satisfeito em valorizar o aristocrata refinado, detentor de um humor fino – longe da bufonaria apreciada pela massa -, Aristóteles ainda propõe a censura para si mesmo e para os outros. Há também o fato de que existiam coisas que os magistrados proibiam que fossem insultadas, ou seja, o riso em certas circunstâncias era considerado um insulto. Mas que coisas seriam estas e porque o riso seria um insulto?

O cinismo, a filosofia cínica, foi iniciada pelo filósofo grego Antístenes aproximadamente em 400 a.C. Mas foi seu discípulo, Diógenes de Sinope (413-323 a.C.), o maior divulgador do movimento. Não Platão, mas o cinismo e a escola cirenaica (fundada por Aristipo de Cirene, 435-355 a. C.) seriam os verdadeiros sucessores de Sócrates, segundo o filósofo francês Michel Onfray. Esta interpretação também é defendida pelo filósofo alemão Malte Hossenfelder (1935). No prefácio de sua obra Antike Glückslehren (Antigas doutrinas da felicidade) o autor escreve que Platão só alcançou certa divulgação no final da Antiguidade, com o platonismo, e Aristóteles somente na Idade Média. Herdeiros da mesma informalidade do mestre Sócrates, cirenaicos e cínicos percorreram caminhos diferentes e na posteridade não tiveram a mesma influência que o mestre da Academia. É verdade que a doutrina platônica das Idéias e a simpatia que o filósofo tinha pela religião aproximaram seu pensamento – através de Plotino – do nascente cristianismo, servindo de base para a formação da filosofia cristã. Os cínicos – nos quais se concentra esta análise – não tiveram a mesma influência, já que sua doutrina era voltada para objetivos práticos, com pouca valorização da teoria.

O objetivo principal da filosofia cínica é a felicidade, a tranqüilidade de alma, alcançada através de uma ascese sobre o corpo e a mente. Levando uma vida errante em Atenas e arredores, Diógenes ficou famoso pelas várias histórias sobre suas atitudes

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peculiares. Na longa lista de anedotas sobre o filósofo, autores posteriores separaram-nas em alguns grupos: a crítica das autoridades; a crítica do comportamento dos seus concidadãos; e a crítica da sociedade em geral. Um dos principais alvos das críticas de Diógenes e de outros cínicos – sempre na forma de anedotas – é a religião. Diógenes Laércio, a maior fonte que temos sobre Diógenes, relata várias histórias engraçadas sobre o filósofo. Em uma delas, escreve que Diógenes disse também que, quando viu a vida de timoneiros, médicos e filósofos, achou que o homem era o ser vivo mais inteligente. Por outro lado, quando viu intérpretes de sonhos, adivinhos e aqueles que os ouviam, ou aqueles envaidecidos de orgulho e riquezas, achou que não havia nada mais tolo que o homem” [...] “Da mesma forma, ele zombava dos que eram ingênuos a ponto de acreditar que os iniciados dos Mistérios tinham direito aos melhores lugares no Hades. “Quero rir! Argesilau e Epaminondas ficarão agachados na lama, enquanto qualquer bobalhão, desde que seja um iniciado, estará nas Ilhas dos Bem-Aventurados! (DIÓGENES LAÉRCIO apud GOULETCAZÉ, 2007, p. 72). Com relação à crítica à religião popular, o cinismo seguia uma linha que também era compartilhada por diversas outras correntes filosóficas do período. Epicuristas, cirenaicos, sofistas, céticos, estóicos; nenhuma dessas correntes filosóficas compartilhava as crenças religiosas do povo. Se não eram essencialmente ateístas, negando a existência dos deuses da tradição, não acreditavam que esses pudessem exercer qualquer influência sobre a vida dos mortais. Os cínicos, além de não compartilharem as crenças do povo, não faziam nenhum tipo de concessão com relação à religião, como sacrifícios ou visitas aos templos. Em relação à ação dos deuses, há outra anedota sobre Diógenes: Diógenes vendo algumas pessoas fazendo sacrifícios aos deuses para terem um filho, disse-lhes: Vocês não fazem sacrifício pelo tipo de pessoa que seu filho vai se tornar? [...] É esse mesmo

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Diógenes que faz piada com as placas comemorativas de Samotrácia, oferecidas em agradecimento aos cabires, protetores dos viajantes durante as tempestades do mar. Com sua agudeza habitual, ele comentou com alguém que estava impressionado com as placas: Haveria muito mais se elas fossem oferecidas por aqueles que não se salvaram. (GOULET-CAZÉ, 2007, p. 72).[...] Para todos os cínicos, escreve Goulet-Cazé, a religião popular é parte das convenções sociais, e é por isso que eles a criticavam. Foi isso que levou aos comentários desrespeitosos de Diógenes, que devem ter chocado seus contemporâneos. Ele disse, por exemplo, que não havia nada impróprio em roubar um templo. Para Diógenes, a partir do momento em que os templos são uma instituição humana, o respeito pelos deuses dentro deles torna-se mera convenção social. (ibid., p. 73), A crítica do cinismo à religião e à cultura continua atual. Não se trata, porém de repetir as críticas exatamente no contexto nas quais elas foram feitas há 2.300 anos. A atualidade da filosofia cínica consiste essencialmente em levantar novas questões e colocá-las da mesma forma contundente, como os cínicos o faziam. Nosso mundo não é mais uma Atenas do período do helenismo, com seus cerca de 150.000 habitantes. No entanto, temos a grande vantagem da globalização dos sistemas de comunicação, que pode levar mensagens e críticas a todos os pontos do planeta. Assim, como os antigos cínicos afirmavam, hoje mais ainda “somos cidadãos do mundo”.

Os Goliardos são dignos de menção quanto aos aspectos de sua contribuição para a crítica da cultura da Idade Média. Opositores em um sistema social dominado pela Igreja e pela nobreza medieval, os Goliardos contribuíram decisivamente para a divulgação de idéias modernas e seculares. Eram formados originalmente por grupos de estudantes universitários medievais, muitos deles com dons poéticos. Nos séculos XII e XIII fizeram

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parte do intercâmbio de estudantes entre as universidades de Paris, Bolonha, Oxford, Cambridge, Colônia e Pádua e formaram uma das primeiras comunidades internacionais da Europa fora do âmbito da Igreja. O objetivo destes intercâmbios era o aprimoramento da carreira universitária, ouvindo novos professores. Quanto à língua, não tinham dificuldades, já que o latim era a língua internacional da época, falado pelas classes instruídas. Alguns destes poetas-estudantes posteriormente se transformaram em grandes escolásticos. Com o passar do tempo, muitos clerigi vagantes, como também eram chamados na França, abandonaram os estudos e transformaram-se em vagabundos, vivendo como jogadores, mendigos e ladrões. A eles juntaram-se clérigos fugidos da rígida disciplina religiosa, e criminosos comuns, dos quais as estradas medievais estavam cheias. No decorrer do século XIII os Goliardos se envolveram em diversas arruaças e em 1227 organizaram uma verdadeira revolta em Paris. A Igreja reagiu e no Concílio de Colônia de 1300 os vagantes foram proibidos de fazer sermões nos púlpitos das igrejas. Entre estes intelectuais errantes surgiram muitos menestréis, que estabeleceram as bases da poesia dos Goliardos.

A poesia dos Goliardos é antiascética e aborda temas satíricos, dirigidos contra a Igreja, seus sacramentos e dignatários, apresentada muitas vezes na forma de paródias maldosas de hinos latinos ou de trechos da liturgia. As poesias, escritas sempre em latim e rimadas, tratam do amor, inclusive físico, do vinho, da fortuna, da natureza e da alegria das tavernas e dos bordéis. O surpreende nestes poetas, anônimos em sua maioria, é seu estilo completamente diferente do resto da poesia medieval, bastante aproximado das canções populares. Parte dos textos dos Goliardos, deixados para a posteridade, constam do manuscrito Carmina Burana (do latim carmen, canto, cantiga e buram, pano grosseiro de lã, designando um hábito de um frade ou uma freira), encontrado no início de século XIX na Alemanha. A obra reúne poesias anônimas e descreve a vida diária das pessoas comuns;

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suas alegrias, dissabores e prazeres. O texto é formado por 315 composições poéticas, das quais apresentamos alguns exemplos interessantes, relacionados com os temas mencionados anteriormente: Fortuna (Fortuna no original latim) Ó Fortuna És como a Lua mutável, sempre aumentas e diminuis; a detestável vida ora escurece e ora clareia [...] (CARMINA BURANA, libreto original) Eis a cara da primavera (Ecce gratum) Eis a cara e desejada primavera que traz de volta a alegria flores púrpuras cobrem os prados o sol a tudo ilumina já se dissipam as tristezas [...] (CARMINA BURANA, libreto original) Queimando por dentro (Estuans interius) [...] Se é este o caminho do homem sábio, construir sobre a pedra as fundações da casa, então sou um louco comparável ao rio que corre, e que em seu curso nunca se altera. [...] (CARMINA BURANA, libreto original) Quando estamos na taberna (In taberna quando sumus) Quando estamos na taberna, não pensamos na morte, corremos a jogar,

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o que nos faz sempre suar. O que se passa na taberna, onde o dinheiro é hospedeiro, podeis querer saber, escutais pois o que digo. Uns jogam, uns bebem, uns vivem licenciosamente [...] [...] Oito aos irmãos desgarrados, nove monges errantes, dez aos navegantes, onze aos brigões, doze aos penitentes, treze aos viajantes. Tanto ao Papa quanto ao Rei bebem todos sem lei. (CARMINA BURANA, libreto original) O amor voa por toda parte (Amor volat undique) O amor voa por toda parte, prisioneiros do desejo. Rapazes, raparigas unem-se como devem. Se a jovem não tem parceiro, Desaparece-lhe toda a alegria. [...] (CARMINA BURANA, libreto original)

Poetas Goliardos famosos foram magister Hugo de Orléans (10931160) que escreveu poesias sobre o amor e o vinho, contendo lamentos sobre a pobreza, a velhice e a brevidade da vida. Outro poeta conhecido é o inglês Walter Mapes (1140-1209) autor de versos violentos contra o celibato clerical e da blasfêmia “mihi est propositum in taberns mori” (meu propósito é morrer em uma taberna). No aspecto filosófico os Goliardos, apesar de não constituírem uma escola de pensamento estruturada, mantêm uma posição de crítica e desafio à Igreja e seus dogmas. A atuação destes grupos deixou vestígios posteriores na cultura européia. François Villon, o últimos dos Goliardos, condenado à morte no início do século XVI, é considerado um dos maiores poetas

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franceses – moderno, apesar do tempo que nos separa de suas poesias. Referindo-se a um trecho de suas composições, Lucien Febvre (1878-1956) escreve sobre A incredulidade do desespero, aquela traduzida pelo clamor do pobre homem sofredor, o grito de angústia do pobre Villon, Em meu país estou em terra distante, Perto um braseiro estremece todo ardente, Nu como um verme, vestido como presidente, Rio em prantos e espero sem esperança... (FEBRVE, 2009 p. 390) Escrevendo sobre sua incredulidade, os Goliardos, perseguidos pela Igreja e pelo poder secular, contribuíram para o riso da religião e, sem o saber, abriram novas perspectivas para o pensamento humano.

De onde viemos, onde estamos

Neste estudo foram percorridos alguns períodos da história humana, nos quais se procurou identificar a relação da religião com o riso, em seus aspectos históricos e culturais. É a partir do início da civilização moderna, no século XVI, que a importância social da religião começa gradualmente a diminuir, devido a vários fatores sociais e culturais já mencionados anteriormente. A doutrina e a instituição religiosa passam a ocupar um lugar secundário, comparado ao destaque que tinham nas culturas anteriores. Deus, a salvação da alma, o cumprimento dos sacramentos, ainda continuavam a ser temas que preocupavam o homem, mas equiparam-se agora aos outros, como o comércio, as ciências e a política. Em relação a este processo, escreve o teólogo e antropólogo Harvey Cox (1929) em A cidade do homem: As forças da secularização não têm nenhum interesse sério em perseguir a religião. A secularização simplesmente contorna a religião e avança rumo a outras coisas. Relativizou as concepções

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religiosas do mundo e as tornou inócuas. A religião passou a ser privativa. Tem sido aceita como a prerrogativa e o ponto de vista particular de uma pessoa ou de certo grupo. A secularização conseguiu o que a fogueira e a cadeia não conseguiram: convenceu o crente de que podia estar errado e persuadiu o devoto de que há coisas mais importantes do que morrer pela fé. Os deuses das religiões tradicionais sobrevivem como fetiches particulares ou como patronos de grupos congeniais, mas não desempenham nenhuma função significativa na vida pública da metrópole secular (COX, 1971, p.13). A diminuição da importância da religião na sociedade é um processo que, iniciado na Renascença, se estenderá pelos próximos 400 anos, passando pela Reforma, pela Revolução Francesa, para chegar ao século XIX, quando sua influência tornase cada vez mais diminuta, inclusive nos países de forte tradição católica. É evidente que esta evolução histórica não foi um processo simples, como também não são simples as forças que atuam no interior das sociedades e nas vidas dos indivíduos. Este gradual processo de secularização das sociedades foi chamado pelo sociólogo e economista Max Weber (1864-1920) de “desencantamento do mundo”. Sobre este conceito escreve a acadêmica Silvia E. de Oliveira Basso: [...] Weber denomina todo este processo de apropriação mundana e racional de conceitos sagrados ou mágicos como desencantamento do mundo. [...] Processo iniciado no monoteísmo judaico, o desencantamento do mundo pode ser definido como desmagificação no campo religioso, ruptura com as formas mágicas e sacramentais pelas quais o homem buscava salvação. Para Weber, os profetas judaicos iniciaram o que ele chama de eticização do mundo, ao estabelecer a crença em um único Deus, que é ético e assim leva um sentido religioso para dentro do dia-a-dia, uma condução do agir na vida ordinária [...] Por vezes, desavisados, desinformados, ou ainda, pretensamente sabidos, somos levados a crer que Weber dedicava-se ao estudo

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da religião, ou ao racionalismo filosófico, quando na verdade seu campo de interesse, e o nosso neste artigo, é como este processo de desencantamento do mundo, esta desmagificação da busca da salvação, levou a uma racionalização do agir, a racionalização prático-ética e prático-técnica, definidora cultural da mentalidade capitalista moderna. Weber está tentando nos mostrar a construção histórica do agir do homem moderno, construção esta iniciada pelos profetas bíblicos e consumida pelos reformadores dos séculos XVI e XVII. (BASSO, s/d, p.3) O próprio desenvolvimento da filosofia durante este período já não permite mais falar da religião nos termos usados na escolástica medieval. A evolução das outras ciências, principalmente a física, a astronomia, a medicina e o estudo dos textos clássicos antigos permitiram, já a partir do século XVII, elaborar uma crítica a muitos aspectos da religião cristã. A iniciativa começou na filosofia, onde os filósofos se julgavam modernos por terem rompido com a antiga tradição filosófica e a autoridade da igreja, afirmando que só o que pudesse ter o crivo da razão era julgado possível de conhecimento. Supunham os filósofos que com a nova metafísica, elaborada por Descartes, o mundo poderia ser todo racionalizado em suas relações. Com isso, toda a metafísica se tornou mais simples e passou a operar basicamente com três idéias: A idéia do ser infinito como causa eficiente da natureza e do homem; a idéia do ser pensante finito como causa eficiente dos pensamentos, dos conceitos e das ações humanas; a idéia do ser extenso ou natureza como causa eficiente que, pelas relações de movimento produz todos os corpos. Deus, homem e natureza são objetos da metafísica. (CHAUÍ, 2006, p.197). No início do século XVIII surge o filósofo David Hume, que efetua uma crítica radical a este racionalismo, negando três princípios de sua estrutura: o princípio de identidade, o de não-contradição e o da razão suficiente. Partindo desta argumentação, Hume consegue colocar em cheque toda a filosofia cartesiana e com isso

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corroer toda a base da metafísica. A solução ao impasse criado por Hume foi dada anos depois por Kant, que estabeleceu uma nova base para o conhecimento e tirou de vez a racionalidade da metafísica. Com isso, conceitos da religião como Deus, alma, infinito, eterno e muitos outros, perderam sua base racional, apesar das várias tentativas de filósofos posteriores a Kant tentarem revalidá-los novamente. No entanto, a derrota da metafísica em seus termos clássicos, com vinha sendo praticada desde os gregos, era irreversível.

E hoje, no que se transformou a crítica e o riso da religião? Muitos autores consideram que tais idéias já não têm mais apelo intelectual, pelo menos para as classes mais instruídas. Depois do iluminismo (final do século XVIII), do ceticismo radical de David Hume (1711-1776), da Crítica da Razão Pura de Kant (17241804), da crítica à religião formulada por Ludwig Feuerbach (18041872) e Karl Marx (1818-1883), da teoria da evolução de Darwin (1809-1882), da negação da metafísica de Friedrich Nietzsche (1844-1900), da teoria do inconsciente de Freud (1856-1939); da evolução da física (primeiras décadas do século XX), do neoevolucionismo (a partir da década de 1940), da moderna cosmologia (segunda metade do século XX), da biologia genética (a partir da década de 1970) e da neurologia (a partir da década de 1980), não resta mais muito espaço para a religião – pelo menos aquela com pretensões de explicar o mundo em todos os seus aspectos – e menos ainda para seus dogmas, baseados em uma metafísica ainda nos moldes pré-kantianos. Uma grande parte dos indivíduos instruídos em todo o mundo é indiferente em relação ao sentimento religioso e o que sobra é um sentimento difuso, como escreve o filósofo Marcel Gauchet (1946): Deus desantropomorfiza-se, em seguida, no terreno moral. Deixa de ser um prescritor (que prescreve) e retribuidor que leva em conta com exatidão as condutas. Ele tem mais o que fazer além de castigar e recompensar as boas e más obras. As investigações sobre a evolução das crenças religiosas registram bem esse

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deslocamento. O inferno não faz mais sucesso, o paraíso não é mais plausível como um lugar de delícias prometido aos justos. A crença na sobrevida pessoal, que permanece forte, desconecta-se da passagem por um tribunal de virtudes e vícios. A imagem de Deus e a esfera do divino, que a morte permite reintegrar, se impessoaliza. É aqui, aliás, que se opera o encontro com o budismo. (FERRY e GAUCHET, 2008, p.53). Ao mesmo tempo em que parte da população mundial tem uma atitude indiferente em relação à religião, correntes fundamentalistas continuam em expansão, e não se vê, em curto prazo, um arrefecimento deste entusiasmo religioso. Como causas do crescimento deste fundamentalismo – seja cristão, muçulmano ou judaico – estão a dificuldade na divulgação da idéia de uma sociedade laica e democrática, os desafios em entender as novas descobertas da ciência e a desestruturação cultural e social em várias sociedades; tudo gerando uma reação de medo e apego a valores do passado. As profundas mudanças pelas quais o mundo passou nos últimos 50 anos, ampliadas pela globalização, causam temor perante o novo em muitos indivíduos e sociedades. A tendência então é de fuga, através da negação. Como exemplo, podemos considerar os Estados Unidos, a nação mais rica e tecnologicamente desenvolvida do mundo. Segundo o filósofo americano Sam Harris em Carta a uma nação cristã, uma pesquisa recentemente realizada pelo Instituto Gallup em todo o país, concluiu que somente 12% dos cidadãos acreditam que a vida na Terra tenha evoluído através de um processo natural, sem interferência de nenhuma divindade. A mesma enquête constatou que para 31% da população americana a evolução foi “guiada por Deus”. Com relação especificamente à fé cristã, “nada menos que 44% dos americanos estão convencidos de que Jesus vai voltar para julgar os vivos e os mortos, em algum momento dos próximos cinqüenta anos.” (HARRIS, 2007, p. 17, itálico do autor).

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Todavia, mesmo com a aceleração do processo de secularização, é provável que o homem nunca abandone completamente seu interesse e sua procura pelo mito. Este não se manifesta somente na religião, já que esta é uma atividade relativamente recente da mente humana, enquanto que a crença em mitos, no sagrado, no “além do homem”, existe desde que começamos a usar nosso cérebro como Sapiens Sapiens – talvez até antes. A vida humana completamente secularizada, como algumas correntes teológicas do início dos anos 1960 defendiam com a teologia da morte de Deus, não é possível. Como contraposição a este processo de “dessacralização” surgem diversos grupos sociais, para os quais a Natureza tomou o lugar da divindade e a vida voltada para a preservação do ambiente seja talvez o mais novo substituto da ascese medieval cristã. Em relação a este assunto, escreve Mircea Eliade em O sagrado e o profano: É preciso acrescentar imediatamente: tal existência profana jamais se encontra em estado puro. Seja qual for o grau da dessacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso. [...] até a existência mais dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização religiosa do mundo. (ELIADE, s/d, p.37) Conclusão

Como conclusão e resultado deste estudo sobre a relação da religião com o riso, foram identificados três tipos de crítica da religião, de “riso da religião”, na acepção que vem sendo dada ao termo no decorrer de todo este texto. A cada tipo de posicionamento crítico em relação à religião com a ajuda do humor, associaremos aqui o perfil de um intelectual de um período histórico específico e representando um tipo de atitude em relação à religião, exteriorizada através do riso, do humor. A forma através da qual cada autor tratou da religião utilizando-se do riso,

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esclarece – indiretamente – a maneira como a religião influenciou aquela sociedade e como o fato religioso era encarado pelos homens daquele período. Por suas características de estilo, temas abordados e período histórico em que viveram, foram escolhidos três escritores e grandes intelectuais em seu tempo: Gregório de Mattos, H. L. Mencken e Machado de Assis. Cada um deles representa um determinado nível de “riso da religião”, de crítica à religião, que foram identificados no decorrer deste estudo.

Gregório de Matos: o riso satírico e a crítica cuidadosa O Brasil, colônia de Portugal no século XVII, estava fortemente influenciado pela religião. O catolicismo era a religião oficial do país e outras crenças eram proibidas e ferozmente perseguidas. A Inquisição não estava estabelecida no território brasileiro, mas seus agentes visitavam regularmente as principais cidades, principalmente no nordeste. Isto não quer dizer que todos os habitantes tivessem um conhecimento da doutrina católica, seus dogmas e seus ritos. Fora dos centros urbanos desenvolvia-se uma religiosidade simples, mais baseada no culto aos santos, já que a presença do padre não era constante. Esta falta de apoio da igreja oficial também propiciava a formação de um sincretismo religioso, fruto da mistura das crenças dos indígenas, dos negros e do camponês português emigrado. O ambiente cultural, mesmo na capital da colônia, a cidade de Salvador, era bastante atrasado em relação às cidades européias. A primeira faculdade brasileira e o primeiro jornal editado no país, só viriam a existir quase 150 anos depois de Gregório de Matos ter falecido. Os poucos cidadãos instruídos eram geralmente membros da Igreja ou representantes das elites econômicas locais, que tinham ido estudar em Portugal. A vida cultural no Brasil do século XVII não era nada atrativa. Neste ambiente surge o poeta Gregório de Matos (1636-1696), apelidado de Boca do Inferno por sua crítica ferina à sociedade baiana da época e aos membros do clero. Gregório de Matos é considerado o primeiro poeta autenticamente brasileiro, usando

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temas e expressões características da cultura local. Grande satírico envolvia-se constantemente em disputas judiciais, pelos excessos praticados por sua pena. Foi denunciado ao tribunal da Inquisição “por não descobrir a cabeça à passagem da procissão”, mas foi absolvido. Apesar de ser oriundo da elite local, Gregório de Matos viveu constantemente em conflito com os representantes do poder político e religioso. Foi exilado para Angola e retornou de lá já doente, morrendo logo depois em sua Salvador da Bahia. Conta a história que estando prestes a morrer, mandou chamar dois padres para que ficassem um de cada lado de sua cama. Assim, segundo suas palavras, “poderia morrer como Jesus Cristo: cercado por dois ladrões”. Esta passagem – cuja veracidade é discutível – dá uma amostra da atitude de Gregório de Matos em relação à hierarquia eclesiástica da Bahia da época, o que lhe deve ter trazido muitos inimigos dentro do clero. Em um de seus poemas, que provavelmente circulavam através de panfletos, o autor satirizava um padre, que já o havia atacado anteriormente: Ao mesmo clerigo appellidando asno ao poeta Padre Frisão se vossa Reverência Tem licença do seu vocabulário Para me pôr um nome incerto, e vário, Pode fazê-lo em sua consciência. Mas se não tem licença em penitência, De ser tão atrevido, e temerário Lhe quero dar com todo o Calendário, Mais que a testa lhe rompa, e a paciência. Magano, infame, vil alcoviteiro, Das fodas corretor por dous tostões, E enfim dos arreitaços alveitar. Tudo isso é notório ao mundo inteiro, Se não seres tu obra dos culhões De Duarte Garcia de Bivar. (site O CORONISTA REÇUSITADO) O ponto importante da crítica à religião, do “riso da religião” em Gregório de Matos é que esta era dirigida a indivíduos: clérigos,

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bispos e leigos, mas nunca aos princípios da religião católica. A doutrina da Igreja era plenamente aceita pelo poeta e são vários os poemas nos quais o autor declara se arrepender de seus pecados, de seus escritos, esperando obter o perdão de Deus. Por isso, Gregório de Matos dedica poemas à Virgem, ao Santíssimo Sacramento, ao menino Jesus, escrevendo poemas como: Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade É verdade, meu Deus, que hei delinqüido, Delinquido vos tenho, e ofendido, Ofendido vos tem minha maldade [...] (site O CORONISTA REÇUSITADO) A posição de Gregório de Matos é a de um crítico de pessoas, membros de uma instituição religiosa; ataca padres e demais religiosos em suas atitudes individuais. A instituição, no entanto, não era atacada em seus poemas satíricos; muito menos a doutrina cristã. O poeta, apesar de tanto festejado como contestador, era menos incisivo em suas críticas do que a maior parte dos dissidentes medievais analisados em outras passagens deste estudo.

Henry Louis Mencken: critica tudo, depois ri O segundo tipo de crítica da religião, de “riso da religião” que consideraremos é o do jornalista e escritor norte-americano Henry Louis Mencken (1880-1956). Filho de um abastado comerciante alemão imigrado para os Estados Unidos, Mencken não chegou a terminar seus estudos universitários, tendo muito cedo entrado para a carreira jornalística, ocupando posições de destaque nos melhores jornais da época. Lia de tudo e era informado sobre as novidades em todas as áreas do conhecimento humano de sua época. Escrevia sobre qualquer assunto que interessasse ao grande público dos jornais Sun e Evening Sun e das revistas Smart Set e American Mercury, para os quais regularmente contribuía. Seu estilo era simples, claro e crítico – às vezes

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satírico. Falava sobre o governo, a democracia, a economia, a psicologia, a moral, a morte a moda e sobre a religião; tudo que fosse de alguma forma interessante era comentado pelo jornalista. Mencken viveu grande parte de sua vida em Baltimore, na costa leste dos Estados Unidos, região em franco desenvolvimento econômico à época. A sociedade em que convivia era rica, moderna, sofisticada, secular, intelectualizada e livre de qualquer influência religiosa. Tratando sobre a religião, Mencken escreveu textos que devem ter divertido bastante parte de seus leitores. Quanto aos ministros da religião escreveu em 1924: Nenhuma outra categoria parece tão apinhada de falsas suposições como as que cercam os reverendíssimos padres e pastores, nossos legítimos delegados junto ao Trono da Graça. Começo imediatamente por um exemplo crasso: a suposição de que os clérigos são necessariamente religiosos. Óbvio, esta suposição é vastamente alimentada, até pelos próprios clérigos. O mais irreverente de todos nós, na presença de um funcionário da fé, adota uma atitude grave. [...] Na realidade, ele é muito menos pio do que um honesto americano médio, e duvido seriamente que as bruxarias a que ele se entrega como profissional no dia a dia lhe despertem qualquer emoção mais sublime do que o enfado. (MENCKEN, 2009, p.54). Já em outro texto, Mencken vai mais longe e escreve com humor sutil, tratando das instituições religiosas e de seus ministros: O aprendizado (religioso), na verdade, não é tido em alta estima pelo sectarismo evangélico, e qualquer matuto que saiba ler, se inflamado pelo Espírito Santo, é declarado apto a sair pregando. Mas eles são mandados antes para um treinamento numa universidade? Sim, mas que universidade! Aquela lá no fundo de um vale, com seu único edifício rodeado de pastagens, e com um corpo docente formado por pedagogos semi-idiotas e pregadores gagás. Tais homens, numa faculdade dessas, ensinam oratória, história antiga, aritmética e a exegese do Velho Testamento. O aspirante sai da estrebaria e volta à sua cidade em um ano ou

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dois. Sua bagagem de conhecimentos é a mesma de um chofer de ônibus ou a de um ator de circo. (MENCKEN, 2009, p. 68-69). A crítica e o humor de Mencken vão tão longe que nem Deus escapa de sua língua (pena) ferina: [...] A exata natureza de tal alma vem sendo discutida há milhares de anos, mas é possível falar com autoridade a respeito de sua função. A qual seria a de fazer o homem entrar em contato direto com Deus, torná-lo consciente de Deus e, principalmente, torná-lo parecido com Deus. Bem, considere o colossal fracasso desta tentativa. Se presumimos que o homem realmente se parece com Deus, somos levados à inevitável conclusão de que Deus é um covarde, um idiota e um pilantra (MENCKEN, 2009, p.14). Mencken em sua crítica à religião, seu “riso da religião”, já vai muito além de Gregório de Matos. Enquanto este último ataca um ou outro membro da instituição – eximindo esta de sua crítica –, Mencken é muito mais demolidor, não poupando o religioso, a igreja e nem o próprio Deus, muitas vezes de uma maneira bastante contundente. Tal crítica só seria possível em uma sociedade gozando de total liberdade de expressão e de crítica, sem qualquer interferência de outros poderes – sejam políticos ou religiosos – ou grupos de pressão.

Machado de Assis e a sutileza do bruxo O terceiro exemplo de crítica à religião, de “riso da religião” não é tão direto quanto os apresentados acima. Trata-se de uma abordagem muito mais sutil, feita em um nível de sofisticação intelectual bem acima dos autores anteriores. Esta é a crítica de Joaquim Maria Machado de Assis, o Machado de Assis, maior escritor brasileiro, comparável aos cem maiores escritores da literatura universal, segundo o crítico americano Harold Bloom. Mulato, nascido em uma sociedade ainda escravocrata, Machado

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de Assis assim como Mencken não chegou a freqüentar a faculdade, tendo adquirido os seus vastos conhecimentos através do próprio esforço. Trabalhando em uma gráfica, iniciou sua carreira escrevendo pequenos artigos para a imprensa, o que lhe valeu uma grande prática no uso de sua ferramenta, a linguagem. Alcança sua maturidade literária com a publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881, inaugurando sua fase Realista. Até lá o escritor já havia percorrido um longo caminho, iniciado no Romantismo, com a obra Ressurreição (1872). Escreve o filósofo Benedito Nunes sobre a suposta influência filosófica recebida por Machado: Pascaliano sem o consolo jansenista da Graça distribuída aos eleitos da Salvação, schopenhaueriano que substituiu pelo ódio à vida a moral de renúncia da vontade de viver, e cético radical, pirrônico, derivando para o niilismo – eis os traços fisionômicodoutrinários, carregados nas tintas do negativismo, com os quais a tradição crítica revestiu o perfil filosófico de Machado de Assis que fez chegar até nós, emoldurando-o na autoridade das fontes principais que o criador de Dom Casmurro teria abeberado seu pensamento. (NUNES, 1993, p.129). Em sua fase realista Machado demonstrou uma forte influência do pessimismo e do ceticismo, que soube misturar com pitadas de fino humor, aliado a um profundo conhecimento da índole humana. A obra na qual desenvolve toda a sua visão cética da vida, entranhada nos diálogos e na própria trama do romance, é no Memorial de Aires, (1908) a última obra do artista.

Apesar de descrente, Machado em nenhum de seus escritos elaborou uma crítica direta e clara à religião e a seus ministros, como o fizeram Gregório de Matos e Mencken. Talvez quisesse evitar um embate direto com a instituição, que àquela época ainda tinha forte influência nos assuntos políticos do país, era aliada histórica das elites econômicas e ainda mantinha o monopólio

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quase absoluto da crença. Conhecia as condições da sociedade onde vivia e o quanto havia sido difícil ascender socialmente, já que provinha dos níveis mais pobres da população. Um confronto direto com a Igreja poderia ter-lhe custado a já estabelecida carreira de escritor. Além disso, como bom pirrônico, Machado sabia que o embate não mudaria nada, já que nada havia a mudar. Cumpria observar a humanidade e escrever, já que Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cotejo de sistemas, de idéias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva [...] (MACHADO DE ASSIS, 1997, p.32) A crítica em Machado – quando acontece – tem uma sutileza única, dando-nos uma visão muito mais ampla do problema, apontando a árvore e ao mesmo tempo mostrando toda a floresta para aqueles que querem ver, como diz a anedota budista.

Um dos melhores exemplos é o seu conto A igreja do diabo, publicado em uma coletânea de textos curtos (Histórias sem Data, 1884). Neste relato o Diabo decide fundar uma igreja, pois “sentiase humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânone, sem ritual, sem nada.“ (MACHADO DE ASSIS, 1996, p.11). [...] Diz ainda o Diabo: [...]“E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.” (ibid. p. 12, itálico nosso). Antes de partir para sua empreitada o Diabo ainda tem um diálogo com Deus, explicandolhe seu intento. Então, parte para a Terra para fundar sua igreja.

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Esta estabelecida, o Diabo consegue converter muitas pessoas e aumentar bastante o tamanho de seu rebanho. [...] “O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de causas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.” (Ibid., p.18). Tudo corria às mil maravilhas e a religião do Diabo havia ficado conhecida em todo o mundo, sendo fielmente praticada por multidões. [...] “Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes” (ibid., p. 21). Até seus melhores discípulos, os que haviam cometido as maiores falcatruas e maldades, estavam praticando o bem às escondidas; se confessavam, rezavam. Desiludido, o Diabo abandona tudo, vai para o céu e conta toda a história para Deus. Este escuta o Diabo sem interrompê-lo, sem repreendê-lo, “com infinita complacência”. Ao final, Deus olha para o Diabo e diz:[...] “Que queres? É a eterna contradição humana” (Ibid., p. 22, itálico nosso).

Poucas vezes na literatura um texto tão conciso consegue transmitir tantas idéias ao mesmo tempo. Com este conto, o “velho bruxo do Cosme Velho” nos dá uma lição de profunda sutileza filosófica. Machado não faz críticas, não ri às gargalhadas, daquilo que seriam os alvos usuais: a igreja, seus ministros, suas doutrinas ou Deus. Como um velho e experiente mestre zenbudista – e aqui fazemos uma referência às incontáveis anedotas envolvendo tais sábios – Machado nos deixa desconcertados; sua crítica tem outro endereço e é muito mais profunda. O filósofo Plínio Smith escreve que “o que distinguiria o cético do não-cético não seriam as crenças, mas sua atitude em relação a elas” (SMITH, 2007, p.12). Machado com sua descrição cria uma história onde ambos, Deus e o Diabo, se vêem às voltas com a “eterna contradição humana”. Não critica ou ridiculariza os dois personagens, Deus e o Diabo, ao contrário. Descreve-os como dois conhecidos, quase amigos, mas que tem lá as suas desavenças. O mais importante é que ambos têm um problema em comum: a humanidade. Machado, em outras palavras, quer

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dizer que o tema central da religião não é Deus ou o Diabo, nem as igrejas e todos os seus dogmas e sacramentos. O problema central da religião é o homem. A crítica à religião é, pois, a crítica ao homem. O homem, com suas eternas contradições, das quais a religião é uma delas. Sobre esta idéia, escreve o filósofo Ludwig Feuerbach: Deus tem seu nascimento na miséria do homem. Só do homem Deus tira todas as suas finalidades, Deus é aquilo no qual o homem quer se transformar – sua própria individualidade, seu próprio objetivo, apresentado como um ser real. (FEUERBACH, 1967, P. 84, tradução nossa). Esta a grande sutileza do “riso” de Machado de Assis. Com A igreja do Diabo concluímos que a crítica e o riso da religião é, na realidade, a crítica do homem; de sua atuação na história através da religião.

Ao final deste trabalho, fazendo um retrospecto de tudo aquilo que foi pesquisado; os diversos períodos históricos, os personagens e as idéias, enfim, fragmentos da história humana; terminamos o texto com o pensamento do teólogo e filósofo inglês Don Cupitt: E aqui estou eu, para dizer que apesar de nossos melhores esforços não podemos planejar, conhecer controlar ou avaliar clara e conscientemente o que fizemos ou qual foi o valor de nossa contribuição. Podemos ficar felizes de termos dito a nossa fala e de termos nos manifestado. Mas o que dissemos o que fomos e o valor disso tudo, nós não sabemos e não poderemos saber. Não existe qualquer lugar onde se encontre a Real Verdade sobre nós e não chegará o dia em que ela será proclamada. Assim, não existe um Ser real e nunca saberemos o que alcançamos com nossa vida e nosso trabalho. (CUPITT, 1998, p 142, tradução nossa)

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A angústia e o existencialismo A palavra “angústia” é um termo relativamente recente no linguajar filosófico. Não é possível identificar exatamente sua origem, mas parece ter sido utilizado pela primeira vez em seu sentido atual na obra “O conceito de angústia”, de Sören Kierkegaard, em 1844. O termo passou a ser cada vez mais empregado pelos filósofos voltados aos problemas humanos em sua essência e foi traduzida para diversas línguas. Sartre e outros franceses falam em angoisse; Heidegger, Jaspers e outros alemães utilizam a palavra Angst (que também quer dizer medo); Abbagnano em sua "Introdução ao Existencialismo” usa a palavra angoscia; e John Macquarrie, filósofo e teólogo escocês, prefere em sua obra “Existentialism” o termo anxiety ao invés de dread; esta, segundo ele, palavra mais relacionada com medo do que com angústia.

A expressão, com a acepção moderna que tem nas línguas ocidentais, não era conhecida pela filosofia grega com o mesmo sentido. Foram necessários dois mil e quinhentos anos de metafísica e cristianismo, para que o homem ocidental desenvolvesse a consciência para a qual a palavra angústia – e tudo que o termo implica sob o aspecto psicológico, emocional, social e filosófico – tivesse o significado que lhe damos na modernidade. O monoteísmo; a metafísica; os conceitos de individualidade, liberdade individual e de responsabilidade; foram idéias – paradigmas culturais – que levaram à formação da idéia de angústia. De uma maneira geral a palavra angústia sempre foi utilizada pelos pensadores quando descrevem uma situação emocional ou intelectual da qual o indivíduo não pode fugir; falam de uma decisão que precisa ser tomada sob grave risco; mostram que a escolha é difícil. Três aspectos principais caracterizam situações de angústia: 1) O autor fala de ou dirige-se a um indivíduo, ou

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seja, seu objeto de estudo ou interlocutor é um indivíduo concreto e específico; 2) A situação descrita pelo filósofo é de liberdade, isto é, o indivíduo tratado pela análise ou aquele a quem se dirige o discurso é livre, tem poder de escolha; 3) A situação ou tema descrito pelo pensador requer uma decisão, não existe a possibilidade de não escolher – isto já seria uma escolha, segundo o filósofo francês Sartre.

Outro aspecto que consideramos importante em nossa análise, é que para entender melhor as diversas maneiras como a palavra angústia foi utilizada ao longo da história do pensamento, é necessário estudar os principais autores que a empregaram. Estes foram, em sua maioria, classificados como sendo filósofos existencialistas, apesar de muitos não aceitarem este rótulo. A filosofia existencialista é aquela que se ocupa especialmente do indivíduo em sua vida concreta e – ponto importante em nossa análise – se utiliza extensamente de “situações de angústia”, como descrito no parágrafo anterior. Mas o existencialismo não tem só esta característica. Uma das outras e importantes qualidades desta escola filosófica é descrita por Miguel de Unamuno (18641936), filósofo existencialista católico espanhol. Em sua principal obra, “O sentido trágico da vida”, Unamuno escreve: “O homem com o qual nós temos a ver é o homem de carne e osso – eu, você, meu leitor, o outro homem distante, todos nós que solidamente caminhamos sobre a terra. E este homem concreto, este homem de carne e osso, é ao mesmo tempo o tema e o supremo objetivo de toda filosofia, mesmo que filósofos com estilo próprio gostem ou não”. (Unamuno, 1954, p. 2 – tradução nossa).

Para nos aprofundarmos no conceito de angústia, descreveremos aspectos do pensamento de importantes pensadores existencialistas.

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A angústia e o movimento existencialista Nesta parte de nosso estudo tomamos a liberdade de incluir um pensador que na maioria dos manuais de filosofia não é considerado como um dos filósofos existencialistas. Trata-se do francês Blaise Pascal (1623-1662), grande matemático e físico, mais tarde convertido ao jansenismo (corrente herética do catolicismo) e autor de tratados científico-matemáticos e obras apologéticas. Planejava também escrever uma “Apologia do cristianismo”. Devido à morte prematura do pensador a obra nunca foi concluída, permanecendo apenas na forma de fragmentos esparsos reunidos sob o nome “Pensamentos”, editados pela primeira vez em 1669. Nesta obra Pascal critica aqueles que em sua época eram chamados de “libertinos” (materialistas e atomistas); sua posição perante a moral e, principalmente, em relação à religião. Em seu texto Pascal descreve a miséria do homem quando afastado de Deus. Escreve: “Que poderá fazer (o homem), portanto, senão perceber alguma aparência das coisas num eterno desespero por não poder conhecer nem seu princípio nem seu fim? Todas as coisas saíram do nada e foram levadas para o infinito; quem seguirá estes caminhos assombrosos? O autor destas maravilhas conhece-as; e ninguém mais.” (Pascal, 173, p. 56).

Analisando a posição do homem em sua precária situação no universo, Pascal escreve: “Afinal que é o homem dentro da natureza? Nada em relação ao infinito; tudo em relação ao nada; um ponto intermediário entre o tudo e o nada” (ibidem, p.56). Com seu conhecimento da vida mundana de sua época, das ciências, da história e da filosofia – principalmente as de Descartes e Montaigne – o filósofo conduz seu leitor (aqui ele se dirige a pessoas específicas, seus leitores) através dos mistérios da vida, ressaltando a grandeza e a desgraça do homem. As questões

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metafísicas – ou a principal: a existência ou não de Deus – é o tema mais alto de sua argumentação. O filósofo coloca seu leitor em uma “situação de angústia”: se Deus não existe, não teremos perdido nada se tivermos tido fé e seguido os preceitos da religião. Mas se Deus existe, e for verdade aquilo que a religião fala, ou seja, que por nossa falta de fé e atitudes podemos ser condenados eternamente ao inferno, então vale a pena pensar no assunto. E é por isso que Pascal é um dos precursores do existencialismo, já que nos coloca em uma situação na qual precisamos decidir apostar: nossa crença ou não na existência de Deus. A decisão é nossa. Escreve magistralmente o filósofo: “Sim: mas é preciso apostar. Não é coisa que dependa da vontade, já estamos metidos nisso. Qual escolhereis então? Vejamos. Já que é preciso escolher, vejamos o que menos nos interessa. Tendes duas coisas a perder: a verdade e o bem; e duas coisas a empenhar: vossa razão e vossa vontade, vosso conhecimento e vossa beatitude; e vossa natureza tem que fugir das duas coisas: o erro e a miséria. Vossa razão não se sentirá mais atingida por terdes escolhido uma coisa de preferência a outra, já que é preciso necessariamente escolher. Eis um ponto liquidado. Mas, vossa beatitude? Pensemos o ganho e a perda, escolhemos a cruz, que é Deus. Consideremos estes dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, não perdereis nada. Apostai, pois que ele (Deus) existe, sem hesitar” (ibidem, pág. 99).

Temos, pois, uma verdadeira “situação existencialista”: o indivíduo é único, sua própria alma está em jogo; ele tem liberdade de escolha e precisa tomar uma decisão; a decisão é importantíssima, já que dela depende sua bem-aventurança ou danação eterna, segundo Pascal.

Sören Kierkegaard (1813-1855) estudou teologia e filosofia, mas não conseguiu adaptar-se ao ambiente cultural e principalmente

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religioso da Dinamarca de seu tempo. O grande tema que o ocupava é a relação do homem com Deus: “O cristianismo é de uma seriedade tremenda: é nesta vida que se decide a tua eternidade” [...] (Kierkegaard apud Reale e Antiseri, p. 238). Opondo-se à filosofia idealista de Hegel – o sistema hegeliano era dominante nas primeiras décadas do século XIX – Kierkegaard elaborou uma filosofia que coloca o indivíduo perante Deus, sem intermediários; pastores e professores que ele chama de velhacos, e que só querem adular seus contemporâneos ao invés de se voltarem a Deus. Na obra “O conceito de angústia” o pensador escreve que “A angústia é a possibilidade da liberdade: somente esta angústia, através da fé, tem a capacidade de formar absolutamente, enquanto destrói todas as finitudes, descobrindo todas as ilusões” (ibidem, p. 239). Em sua situação, segundo o filósofo dinamarquês, o homem é livre para escolher como viver sua vida e como se posicionar perante o chamado de Deus. Assim, segundo Reale e Antiseri, o modo de ser da existência, para Kierkegaard, não é a realidade e a necessidade, mas sim a possibilidade.

A angústia, para o filósofo, se caracteriza pelo fato de que o homem que vive no pecado se angustia pela sua situação de “estar em pecado”. Todavia, mesmo aquele que se libertou do pecado, se angustia pela possibilidade de nele recair. Mais ainda: segundo Kierkegaard, a angústia acaba formando o caráter do homem, pois “destrói todas as suas finitudes, descobrindo suas ilusões”. Assim temos aqui o que usualmente se considera o começo do movimento (ou escola) existencialista. Enquanto Pascal não afirmava, mas já deixava intuir que a existência de Deus não podia ser provada, Kierkegaard já parte deste pressuposto. Escreve Macquarrie: “Ele rejeitava a idéia de que a razão pode amparar a fé ou construir um sistema de crenças que incluísse a crença. “Eu não tenho aptidão para verdades, princípios ou sistemas; mas para

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migalhas, fragmentos, fantasias, súbitas inspirações.” Ou ainda: “Se é loucura falar em seu coração, “Deus não existe”, aqueles que tentam provar esta existência são mais loucos ainda” (Kierkegaard apud Macquarrie, 1973, p. 52).

Em sua filosofia, Kierkegaard ressalta a liberdade individual do homem e o coloca perante a possibilidade de viver como “homem estético”, “homem ético” ou como “homem religioso”; seu ideal de posicionamento humano perante a vida e Deus. É esta situação, segundo o filósofo, que desperta no homem o sentimento de angústia.

O alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) não foi um filósofo caracteristicamente existencialista. A princípio educado para ser pastor protestante, desistiu e se voltou para os estudos filologia. Sua filosofia foi inicialmente muito influenciada por seus estudos da cultura clássica – principalmente os gregos antigos – e sua leitura da obra de Arthur Schopenhauer (1788-1860), de quem tomou muitos conceitos que transparecem em seus primeiros textos. Assim como Kierkegaard, Nietzsche também não considerava ser possível ascender através da razão, isto é, do pensamento metafísico para Deus e outros valores absolutos. Mas, diferentemente do filósofo dinamarquês, também não valorizava a fé; ao contrário. A fé e a metafísica, com todas as suas implicações, Nietzsche renegava completamente. O homem, dizia, se encontra em uma situação trágica, já que vivia em um mundo que não se importa com ele. Por isso, precisou criar valores que considerava eternos, que agora, no entanto, já não tinham mais nenhuma validade. Escreve Nietzsche em “O Anticristo”: “No cristianismo, nem a moral nem a religião estão em contato com a realidade. Somente encontramos nele causas imaginárias (“ Deus”, “alma”, “eu”, “espírito”, o “livre” - ou também o “não-livre

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arbítrio”); só efeitos imaginários (“pecado”, “salvação”, “graça”, “castigo”, “remissão dos pecados”); um comércio entre seres imaginários (“Deus”, “espíritos”, “almas”); uma ciência natural imaginária (antropocentrismo, ausência do conceito de causa natural)” [...] “Este universo das ficções puras distingue-se, com grande desvantagem sua, do mundo dos sonhos, que pelo menos reflete a realidade, ao passo que este mais não faz do que falseála, desprezá-la e negá-la.” (Nietzsche, 1988, p. 32).

Nietzsche era iconoclasta e desta maneira também não antepunha à fé religiosa ou à metafísica uma suposta verdade científica. Esta para o filósofo também não existia, já que considerava a ciência, com sua pretensão de ser a única explicação do mundo, outra forma de metafísica.

A parte do pensamento nietzscheano que mais possui relação com o conceito de angústia e com a liberdade do indivíduo, está registrada em seu livro “Assim falava Zaratustra”, onde o filósofo se refere às três metamorfoses do espírito, representadas pelo camelo, o leão e a criança. Na metáfora, a figura do camelo significa o “tu deves”, quando o homem vive ainda submisso ao dever, à crença e ao conhecimento usual. O leão luta contra o “tu deves” (confronta o sistema ideológico), mas ainda se encontra a ele ligado por sua necessidade constante de confronto. A terceira parte da metáfora, a criança, representando a mudança pela qual passa o espírito, significa o mais alto grau de liberdade.

Interpretamos estas fases como três diferentes estágios, que aparecem quando o homem é colocado em face de uma “situação”. O camelo representa o estágio de inconsciência; o indivíduo se resigna à sua posição de cumpridor das leis, crente e detentor do senso comum. O leão mostra o homem defrontandose com aquilo que quer ou precisa enfrentar; sua luta por

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afirmação e liberdade. A criança é a fase da liberdade do homem; libertação cujo resultado será a criatividade e a superação de todas as situações que o limitavam. Todo o processo – apesar de Nietzsche não o apontar explicitamente – é marcado pela angústia.

Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão, foi um dos maiores pensadores do século XX e de todos os tempos. Iniciou sua carreira estudando teologia e filosofia, como discípulo do criador da fenomenologia Edmund Husserl (1859-1938). Sua obra máxima é Ser e Tempo, lançada em 1927. Para Heidegger o homem é o único ente que pode fazer a pergunta sobre o ser, interrogando-se pelo sentido do ser. Mas em sua atividade diária, o homem manipula a natureza, estabelece relações com outros homens. E nesta relação com o plano ôntico, com os entes em sua factualidade, o homem permanece na existência inautêntica. Assim, a existência inautêntica representa quase uma “queda” para o homem, já que perde completamente seu senso crítico sobre o mundo e sobre sua situação de alienação. De certo modo existem várias maneiras, através das quais o homem pode existir em seu contato com o plano ôntico. Mas se permanece no patamar da factualidade, o homem levará sempre uma existência inautêntica, ou seja, sem perguntar pelo sentido do ser.

No entanto, existe um acontecimento do qual o homem não pode escapar: a morte, sua aniquilação, a certeza do término da relação do homem com sua alienante factualidade. Através da certeza da morte iminente, todas as outras possibilidades do homem – que representam sua liberdade – tornam-se impossíveis. Instala-se então a angústia. A voz da consciência nos apresenta a nossa própria morte, revelando a nulidade de qualquer projeto humano. Escreve Heidegger sobre esta situação:

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"A angústia, porém, é a disposição que permite que se mantenha aberta a ameaça absoluta e insistente de si mesma, que emerge do ser mais próprio e singular da presença. Na angústia, a presença dispõe-se frente ao nada da possível impossibilidade da existência. A angústia se angustia pelo poder-ser daquele ente assim determinado, abrindo-lhe a possibilidade mais extrema. Porque o antecipar simplesmente singulariza a presença e, nessa singularização, torna certa a totalidade de seu poder-ser, a disposição fundamental da angústia pertence ao compreender de si mesma, própria da presença.” (Heidegger, 2006, p. 343).

Portanto, o “viver para morte”, segundo Heidegger, constitui o autêntico sentido da vida do homem. O homem sai do nível da existência inautêntica e, mediante a experiência do nada, apreende “o sentido do ser dos entes”.

Esta experiência, no entanto, não se dá por uma argumentação intelectual, mas pelo sentimento de angústia, que é a apreensão do homem como sendo ele mesmo um “ser-para-a-morte”. A angústia (Heidegger não fala da angústia como um sentimento) coloca o homem perante o nada, o nada de sentido, a radical negação de todos os seus projetos, da própria impossibilidade de sua existência. Na filosofia de Heidegger a angústia se apresenta quando o homem livre é colocado perante uma situação inevitável, incontornável: sua morte. Partindo de uma situação de alienação, o homem é confrontado com uma situação (a sua morte) e a partir daí precisa tomar uma decisão, que o levará à possibilidade de apreender “o sentido do ser dos entes”.

O último filósofo – mas não o menos importante – que focaremos neste estudo é o francês Jean Paul Sartre (1905-1980). Iniciou sua atividade profissional como professor de filosofia no curso secundário. Ligado à atividade política e ao jornalismo, Sartre

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colocou muito de sua filosofia em romances, peças de teatro e ensaios. Sua obra mais importante foi “O ser e o nada”, lançada em 1943. Sartre trata do tema da angústia, no sentido que lhe vimos dando ao longo deste estudo, em “O ser e o nada”, quando se refere ao problema da liberdade. A angústia, segundo Sartre, aparece quando o indivíduo se dá conta de que são suas escolhas individuais, feitas com liberdade, que irão determinar a essência daquilo que ele é ou será. Consciente de que é livre e de que tem que usar esta liberdade ao defrontar-se com aquilo que Sartre chama de “situações” – impedimentos, confrontos, pressões sobre sua liberdade –, o homem torna-se angustiado. Escreve Sartre: “Vou emergindo sozinho, e, na angústia frente ao projeto único e inicial que constitui meu ser, todas as barreias, todos os parapeitos desabam, nadificados pela consciência da minha liberdade: não tenho nem posso ter qualquer valor a recorrer contra o fato de que sou eu quem mantém os valores no ser; nada pode me proteger de mim mesmo; separado do mundo e da minha essência por esse nada que sou, tenho de realizar o sentido do mundo e de minha essência: eu decido, sozinho, injustificável e sem desculpas.” (Sartre, 2007, p. 84).

Assim, para Sartre, o homem é completamente livre, já que a liberdade é o ser do homem, é constitutiva de sua consciência. O homem é condenado a ser livre; não tem outra alternativa. Só ele pode mudar seu projeto inicial, sendo responsável por tudo que faz. A angústia é a experiência do nada, fruto da liberdade incondicional do homem. Também na filosofia de Sartre a angústia aparece quando nos confrontamos com desafios à nossa liberdade, sem sabermos qual serão os resultados de nossas escolhas.

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Bibliografia Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. Verbete “angústia”. São Paulo. Martins Fontes: 2007, 1.210 pgs. Heidegger, Martin. Ser e tempo. Petrópolis. Editora Vozes: 2009, 598 p. Kaufmann, Walter. Existentialism from Dostoievsky to Sartre. New York. Meridian Books: 1975, 384 p. Macquarrie, John. Existentialism. New York. Penguin Books: 1973, 314 p. Nietzsche, Friedrich. O anticristo. Lisboa. Guimarães Editores: 1988, 142 p. Olson, Robert G. Introdução ao Existencialismo. São Paulo. Editora Brasiliense: 1970, 251 p. Pascal, Blaise. Pensamentos. São Paulo. Abril Editora: 1973, 280 p. Reale, Giovanni; Antiseri, Dario, História da Filosofia – Vols. II e III. São Paulo. Paulus Editora: 1990. Sartre, Jean Paul. O ser e o nada. Petrópolis. Editora Vozes: 2007, 782 p. Unamuno, Miguel. Tragic Sense of Life. New York. Dover Edition: 1954, 332 p.

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A educação e o método cartesiano A prática da educação formal, com o estabelecimento de escolas e professores, teve sua origem na antiga Suméria, onde, nas cidades-Estado do IV milênio A.C., tiveram início os rudimentos do ensino nos templos. A escrita utilizada era a cuneiforme, assim chamada porque tinha letras em forma de cunha, sendo mais tarde utilizada como “língua sagrada” – a exemplo do sânscrito e do latim – pelas civilizações que sucederam a suméria na região; assírios, caldeus e babilônios. O conhecimento desta escrita era quase exclusividade dos escribas reais e dos sacerdotes dos templos, que mantinham registros sobre a religião, a produção agrícola, o comércio e a astrologia. Ainda na Antigüidade, foi a civilização egípcia que mais deu importância à educação. Desde as dinastias mais antigas, atestam documentos, já existiam as “casas de instrução”, destinadas a transmitir o ensino elementar. Nestas escolas primitivas, os alunos aprendiam a reproduzir trechos dos livros sagrados, tarefas que eram revisadas pelos mestres. Assim como na Babilônia, a educação formal era transmitida e mantida pelas instituições religiosas, diretamente ligadas às classes dominantes e ao governo.

O papel da educação era principalmente reproduzir a ordem social e as relações econômicas vigentes nas sociedades. Durkheim, também pesquisador das civilizações, deve ter levado estes fatos históricos em consideração, quando se referia ao processo de educação da seguinte maneira: “Observe o modo como são educadas as crianças. Quando reparamos nos fatos tais como são, e como sempre foram, salta aos olhos que toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente.” (Émile Durkheim, 2002, pág.35).

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Mais adiante, referindo-se especificamente à educação formal, o sociólogo comenta que “Esta pressão permanente exercida sobre a criança é a própria pressão do meio social que tende a moldá-la à sua imagem, e do qual os pais e os professores são meros representantes e intermediários.” (Ibidem, pág. 35). O principal papel da educação sempre foi o de socializar o indivíduo, capacitando-o a participar da sociedade e exercer certo tipo de atividade para seu sustento. Eventualmente, de acordo com suas aptidões e suas origens – já que o meio social de onde provêm terá forte influência em sua vida – poderá, eventualmente, participar da condução das instituições, sejam religiosas ou civis.

O conceito grego de paidéia teve origem em tal contexto social. Segundo o historiador Werner Jaeger, foram os sofistas que pela primeira vez empregaram esta palavra com o sentido que hoje conhecemos, significando “educação”. A sociedade grega do século V A.C. criou uma estrutura educacional, capaz de satisfazer aos ideais da polis, estendendo os princípios educacionais da elite a todos os cidadãos. Deste modo, os privilégios que no passado pertenciam a apenas uma pequena classe – a aristocracia – passam a ser oferecidos a todos os cidadãos livres da Atenas de Péricles. Esta iniciativa, no entanto, não foi baseada em um despertar do sentimento democrático ou valorização da meritocracia. A sociedade grega, voltada para o comércio ultramarino e com pretensões expansionistas em toda a bacia do Mediterrâneo, necessitava de cidadãos mais instruídos, capazes de participar nas instituições. Jaeger afirma: “O nascimento da paidéia grega é o exemplo e o modelo deste axioma capital de toda a educação humana.” (W. Jaeger, 2003, pág. 337).

O próprio Platão coloca como um dos objetivos da educação – o principal – a tarefa de formar cidadãos que possam participar na

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administração da polis, ao escrever: “Então, quando tiverem vislumbrado o bem em si mesmo, usá-lo-ão como um modelo para organizar a cidade, os particulares e a sua própria pessoa, cada um por sua vez, pelo resto da sua vida.” (Platão, 2004, pág. 255).

O grande avanço ocorrido no campo da educação na Grécia Antiga – talvez pela primeira vez na história humana até então – foi a secularização do ensino. A transmissão do conhecimento e o seu desenvolvimento não estavam mais exclusivamente sob controle das religiões e de seus funcionários. A educação passa então a ser transmitida por leigos, conhecidos como pedagogos (do grego paidós, significando criança e agogé, condução) que a título de remuneração ou não, ensinavam aos seus alunos todos os conhecimentos que tinham acumulado. Esta nova maneira de sistematicamente produzir, acumular e transmitir conhecimento ficou caracterizada em instituições como a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles, estendendo-se no espaço e no tempo, até alcançar o Império Romano.

A disseminação das escolas perdeu seu impulso no final da Antiguidade, entre outros motivos principalmente devido à desestruturação política e social do então decadente Império Romano. A partir do século V, o conhecimento e a educação refugiam-se nos primeiros mosteiros, tornando-se monopólio da instituição religiosa; a Igreja Católica. Assim, depois de um hiato de apenas mil anos (do século V a.C. em Atenas, ao século V d.C. no fim do Império Romano) o círculo se fecha e a educação volta a ser monopólio da instituição religiosa.

Fatores sociais e econômicos durante o período carolíngio (século IX) fazem com que a organização do ensino seja reestruturada na Europa. A expansão política e econômica do Sacro Império Romano-Germânico, fundado por Carlos Magno (742-814),

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provoca uma necessidade crescente de formação de quadros mais capacitados, preparados para ajudarem na administração do nascente império carolíngio. Convocada a retribuir o apoio político que sempre recebera do poder temporal – principalmente de Carlos Magno, que provocou verdadeiras chacinas para converter as tribos germânicas ao cristianismo – a Igreja inicia um movimento de expansão das atividades de ensino, já que era à época a única instituição que detinha o conhecimento e a infraestrutura para transmiti-lo.

Começando com escolas anexas aos mosteiros, o desenvolvimento da dinâmica econômica e social exige a expansão e a sofisticação do ensino, o que culmina com a criação das primeiras universidades no século XII. Inicia-se então novamente um processo de laicização do conhecimento, que tendo começado no século IX só se concretizará no final do século XVIII com a Revolução Francesa, e no início do século XIX, quando se institui o ensino público leigo na maior parte das nações européias e nos Estados Unidos.

Descartes: a crítica filosófica e a filosofia da educação A filosofia de Descartes está inserida neste contexto histórico. Filho do período das Guerras Religiosas (1562-1599), refletindo a rivalidade entre as igrejas reformadas e a católica, o filósofo é contemporâneo do processo de desenvolvimento das ciências físicas, médicas, da astronomia e da matemática. Na economia e na política, a burguesia mercantilista passa a dominar as finanças mundiais, enquanto países como a Inglaterra, França e Holanda disputam o comércio e as colônias com as potências do passado, Espanha e Portugal. Este é também o período em que o tomismo – a filosofia de Santo Tomas de Aquino que dominou o universo filosófico da cristandade durante 400 anos – está em decadência, sem que nenhuma outra corrente de pensamento representativa,

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capaz de incorporar todos estas mudanças sociais e culturais, tivesse surgido.

Como pensador, Descartes não era alheio a todas estas mudanças. Ao contrário, estava profundamente imerso na cultura de seu tempo, e é por isso que seu desenvolvimento intelectual e filosófico é emblemático para a filosofia e a educação. Descartes consegue integrar todas estas contradições em seu pensamento, desenvolvendo uma nova síntese, que dará início ao período moderno da filosofia e assentará as bases matemáticas da moderna ciência.

A primeira parte da mais famosa e importante obra do pensador, o “Discurso do Método”, representa o prelúdio de um processo intelectual através do qual Descartes irá reestruturar seu pensamento e a maneira de fazer filosofia no ocidente. O filósofo parte do conhecimento adquirido de diversas maneiras, em diversas fontes; em várias etapas Descartes faz a crítica e a relativização de seus pressupostos, de suas idéias. Ao final, sem as certezas iniciais, conclui que é necessário ir além e analisar a si mesmo mais detidamente. Vejamos como:

1. Os pressupostos: é necessário partir de um conhecimento mínimo Descartes afirma que todos os seres humanos são dotados de bom senso e razão, tendo capacidade para aprender. Descreve os vários tipos de assuntos que aprendeu na infância e juventude: línguas, matemática, história, artes, ciências; enfim, grande parte do conhecimento disponível à sua época.

2. A relativização do conhecimento adquirido: o aumento do conhecimento começa a gerar dúvidas

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Em outra fase o filósofo percebe que, apesar do conhecimento, aumenta sua ignorância. Compara seus costumes com os de outros, observa as incongruências das diferentes filosofias, religiões e ciências. Tudo isto convence o filósofo que suas idéias não são necessariamente verdadeiras. Todavia, sabe (ou assume) que existe uma verdade.

3. A procura da prática: testar o aprendizado na prática O pensador resolve afastar-se de todo o pensamento teórico (que em seu tempo em grande parte era baseado em pressuposições não testadas na prática, como a física aristotélica e a astronomia ptolomaica) e dedica-se a viajar pelo mundo, escutando as pessoas e observando seus costumes. Escreve Descartes: “E decidido não buscar mais outra ciência senão a que se poderia achar em mim mesmo, ou no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha juventude em viajar, em ver cortes e exércitos, em freqüentar pessoas de diversos humores e condições, em recolher diversas experiências...” (Descartes, 2004, pág.44).

4. Aprofundar o questionamento: necessidade de reavaliar o conhecimento Descartes questiona cada vez mais suas idéias adquiridas no passado. Constata que existem diversas opiniões, filosofias, ciências e costumes; todos diferentes. Aos poucos vai se desfazendo “dos erros que ofuscavam seu raciocínio” (o senso comum). Finalmente depois de viajar, ver e ler muito, Descartes toma a decisão de estudar a si mesmo.

O trajeto descrito por Descartes no primeiro capítulo do “Discurso do Método” representa o caminho a ser percorrido por todos aqueles que pensam a educação a partir de uma ótica filosófica. Em uma primeira fase – a exemplo de Descartes – o indivíduo

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incorpora-se ao sistema de ensino (sem que façamos aqui um juízo da qualidade do ensino), recebendo informações e conhecimento. Em uma segunda fase, o indivíduo – comparando os diversos conhecimentos de já dispõe – começa a colocar em questão a educação que lhe é proposta, já que há uma profusão de visões do mundo, crenças, costumes, etc. Isto vem a provocar uma necessidade de aprofundar o conhecimento adquirido (livros, viagens, observações, contatos com diferentes pessoas), conforme descreve Descartes. A fase final deste processo gradual de “desconstrução” do conhecimento, obtido através de diferentes maneiras de aprendizado, é a reflexão filosófica; uma análise de todo o percurso educacional percorrido. Descartes descreve este processo da seguinte maneira: “(De modo que o maior proveito que eu retirava era aprender)... a não crer muito firmemente naquilo que me fora persuadido apenas pelo exemplo e os costumes, e assim livrar-me aos poucos de muitos erros que podem ofuscar nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão.” (...) “tomei um dia a resolução de estudar também em mim mesmo, e de empregar todas as forças do meu espírito em escolher os caminhos que devia seguir.” (Descartes, 2004, págs. 45 e 46). Ao terminar este trabalho cabe ressaltar a semelhança entre o processo empreendido por Descartes na crítica do conhecimento (que em outra parte de sua obra citada será aprofundada mais ainda, resultando em uma reestruturação do conhecimento, em outras bases) e aquela empreendida por Sócrates. A filosofia – que começou oficialmente com Sócrates – teve início com a crítica do conhecimento, através dos métodos da ironia e da maiêutica. O marco da modernidade no pensamento filosófico foi a obra de Descartes, levantando um novo questionamento de toda a estrutura do pensamento ocidental. A filosofia da educação tem este mesmo papel em relação à educação: crítica do existente e proposição de novos parâmetros.

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BIBLIOGRAFIA Assman, Silvino, Sobre a política e a pedagogia em Rousseau, disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/selvino2htm> – acesso em 04/09/2007 Descartes, Discurso do Método, Porto Alegre: L&PM Editores, 2004, 123 p. Durkheim, Émile, As Regras do Método Sociológico, São Paulo: Editora Martins, 2002, 155p. Enciclopédia Mirador, Volume VII, verbete “educação”, São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, 1982 Jaeger, Wener, Paidéia – A formação do homem grego, São Paulo: Martins Fontes, 2003, 1.413 p. Kohan, Walter Omar, Três Lições de Filosofia da Educação, Revista Educação Social, Vol. 24 n.82, pág. 221-228, abril 2003, disponível em: <http//:www.cedes.unicamp.br> – acesso em 05/09/2007 Platão, A República, São Paulo: Editora Nova Cultural, 2004, 352 p. Reale, Antiseri, História da Filosofia, Vol. I e Vol. II, São Paulo: Paulus, 1999, 683 p. Stirner, Max, O falso princípio de nossa educação, São Paulo: Editora Imaginário, 2001, 87 p.

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A evolução da metafísica e a crítica kantiana

A metafísica como disciplina filosófica tem sua origem em Aristóteles, que caracterizava sua “filosofia primeira” como “o estudo do ser enquanto ser”. No livro IV da Metafísica, Aristóteles faz a seguinte afirmação: “Há uma ciência que investiga o ser como ser e as propriedades que lhe são inerentes devido à sua própria natureza” (Aristóteles, 2006).

As origens da metafísica, no entanto, remontam ao período anterior ao Estagirita. Já Parmênides de Eléia estabelece o início da ontologia, afirmando que “o Ser é, o Não-Ser não é”; “o Ser é único e imutável”. Este Ser único e imutável foi posteriormente transformado por Platão no mundo das essências, em contraposição ao mundo sensível, o mundo das aparências. O mito da caverna, famosa metáfora elaborada por Platão e descrita no livro VII da República, é uma referência ao mundo das essências, onde se encontram todas as idéias; uma clara relação com o "Ser" de Parmênides. Escreve Platão: “Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz e o soberano da luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e pública.” (Platão, 2004). O posicionamento de Aristóteles em relação à filosofia já é diferente daquele de seus antecessores. Diferente de Platão, o Estagirita não faz distinção entre um mundo sensível e outro

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inteligível. A essência das coisas, segundo Aristóteles, está nas próprias coisas e é tarefa da filosofia, mais especificamente da metafísica, conhecê-las. As coisas estão em constante transformação, diz Aristóteles, e através de um constante aperfeiçoamento estas esperam encontrar sua essência divina, equiparando-se assim ao ser divino, o Primeiro Motor Imóvel. A essência ou ousía é a realidade ultima de um ser e é esta – chamada substância – que é o objeto de estudo da metafísica. Explica Aristóteles no livro VII da Metafísica: “Respondemos que se não há uma substância além das que são naturalmente compostas, a física será a ciência primeira; mas se há uma substância que não está sujeita ao movimento, a ciência que estuda essa substância será anterior à física e será a filosofia primeira, e neste sentido, universal, porque é primeira. E caberá a essa ciência investigar o ser enquanto ser – tanto o que é quanto os atributos que lhe pertencem enquanto ser.” (Aristóteles, 2006).

A metafísica aristotélica e o platonismo serão posteriormente incorporados à filosofia cristã, dando origem à metafísica cristã. Para a formação desta metafísica, pelo lado da filosofia grega, foram importantes três escolas de pensamento: o neoplatonismo, o estoicismo e o gnosticismo. O neoplatonismo era uma escola de pensamento baseada em Platão, mas com fortes tendências místicas. Criou uma dicotomia bastante forte entre matéria e espírito – mundo sensível e mundo inteligível – que foi de grande influência na doutrina e filosofia cristã posterior. Do estoicismo a filosofia cristã absorveu o conceito da Razão Universal, que governa toda a realidade de acordo com um plano e à qual os estóicos davam o nome de Providência. O gnosticismo, por sua vez, era um dualismo metafísico, afirmando a existência de dois princípios – Bem e Mal – que governam o universo em constante luta. Para o gnosticismo era possível alcançar a Verdade e o Bem intelectualmente. Sobre os gnósticos escreve a historiadora Marília Fiorillo:

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“Para eles, o contato com a divindade é um assunto pessoal e direto e intransferível; isto é, não se precisa nem nunca se precisou da intermediação de uma casta sacerdotal. E se para eles a origem de todos os males está na matéria, o mal maior não é o pecado herdado do casal original, Adão e Eva, e sim a profunda ignorância em que estamos mergulhados, e que corrompe nossa existência.” (Fiorillo, 2008).

O cristianismo fez um amálgama com estas escolas filosóficoreligiosas – afora outras que indiretamente também contribuíram para o cristianismo primitivo, como a filosofia cínica e cética, o maniqueísmo, o mitraísmo – e formou o que posteriormente veio a ser conhecido como a filosofia e metafísica cristã. Evidentemente que se trata de assunto para especialistas, mas valeria a pena um estudo da influência de todas estas filosofias e doutrinas religiosas na formação da metafísica cristã, incorporando os conceitos de um Deus criador, pessoal, trinitário; da alma imortal; da criação do mundo ex nihilo; da não-contradição entre a liberdade humana – o livre arbítrio – e a onipotência e onisciência de Deus. Assim, serão estas as idéias que balizarão toda a metafísica ocidental, desde o pensamento patrístico de Agostinho, passando pela escolástica com Tomás de Aquino, até o início da era moderna, quando então diversos conceitos metafísicos passam a perder a credibilidade.

A partir de Descartes a filosofia passa por uma reestruturação, principalmente a metafísica. Diferentemente da tradição até então vigente, que dizia haver tantas substâncias quanto havia gêneros e espécies, os modernos filósofos falavam em três substâncias: a pensante (o homem); a extensa (os corpos) e a infinita (Deus). Com estes conceitos, os empiristas e racionalistas elaboraram diferentes visões da metafísica, que basicamente se apoiavam nos conceitos de substância pensante, extensa e infinita.

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A metafísica, de uma maneira ou de outra, já vinha sofrendo críticas desde o início da Era Moderna. Estes detratores, vivendo em um ambiente cultural ainda dominado pela doutrina católica – sempre apoiada na ação da Inquisição –, eram atacados e perseguidos, muitas vezes classificados como ímpios e ateus. Em relação a este período relata o historiador Georges Minois: “Quando Voltaire acusa Descartes de influenciar o ateísmo, claro, não estava inteiramente errado. Na origem das idéias mais evidentes, na origem do cogito, está a dúvida metódica, de que não se sai tão facilmente como o filósofo julga.” (Minois, 2004). A metafísica clássica ou moderna desde Descartes vinha se apoiando na idéia de que o pensamento humano possui a capacidade de conhecer a realidade como ela é em si mesma (conhecer “o ser do ser”). Isto significa, em outras palavras, que as idéias correspondem à realidade e esta correspondência era garantida por um Ser infinito (Deus). Esta relação era sustentada por três princípios básicos da filosofia, desde Aristóteles: a) o princípio de identidade; b) o princípio da não-contradição; c) o princípio de causalidade.

Na Inglaterra do século XVIII o filósofo empirista David Hume coloca em questão todos estes princípios da metafísica ao afirmar que tais pressupostos não existiam – e consequentemente não eram idéias que tínhamos “impressas” em nossas mentes ou almas – tratando-se apenas de hábitos mentais, resultado de repetições constantes, que observamos na natureza. Assim também os conceitos metafísicos de substância, alma, matéria, causa-efeito, forma, etc., seriam apenas conceitos que povoam nossas mentes, fruto da associação de idéias (resultantes de percepções) e sem nenhum fundamento real. Sobre a posição indefensável da metafísica, Hume escreve:

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“Esta é, na verdade, a objeção mais justa e mais aceitável contra uma parte considerável da metafísica que não forma propriamente uma ciência, mas brota tanto pelos esforços estéreis da vaidade humana que queira penetrar em recintos totalmente inacessíveis à inteligência humana, como pelos artifícios das superstições populares que, incapazes de se defenderem lealmente, arquitetam essas sarças emaranhadas, para cobrir e proteger suas fraquezas” (Hume 2007). Depois de Hume a metafísica não poderia mais ser a mesma, como vinha sendo praticada desde os gregos.

O primeiro filósofo a levar a sério a crítica de Hume ao pensamento metafísico foi Immanuel Kant. Segundo ele mesmo declarou, "Hume o havia acordado de seu sono dogmático", forçando-o a repensar toda a validade do conhecimento e refazendo, assim, a filosofia ocidental. Kant assume a tarefa de colocar a filosofia sobre bases mais sólidas, interrogando-se sobre as próprias possibilidades da razão. Segundo Georges Pascal, Kant levanta duas grandes questões: 1) Como é possível explicar a existência de conhecimentos certos e racionais na matemática e na física?; e 2) É possível que exista tal conhecimento na metafísica? A resposta à primeira pergunta proporcionaria a solução da segunda, “pois é pela reflexão sobre como a matemática e a física chegaram a certezas a priori que descobriremos as possibilidades da razão”. (Pascal, 2007).

A grande “revolução copernicana” de Kant; a reestruturação que dá à filosofia, é na realidade a substituição, em teoria do conhecimento, de uma hipótese idealista por outra realista. O realismo admite que a realidade nos seja dada através das impressões, fazendo com que o espírito tenha uma atitude passiva. Esta é a posição epistemológica criticada por Hume. O idealismo parte do pressuposto de que o espírito intervém na

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elaboração do conhecimento e que a realidade é resultado desta construção. Os objetos assim como os conhecemos são em parte elaboração nossa e é por isso que podemos ter um conhecimento a priori. Assim, Kant conclui que nosso saber sobre a realidade: “(...) longe de coincidir com a verdade absoluta das coisas, é todo ele travejado por elementos inscritos na nossa faculdade de conhecer, cuja estrutura antecede a experiência e determina os parâmetros no interior dos quais ela se torna possível” (Figueiredo, 2005).

No entanto, apesar de partir da crítica humeana, Kant, todavia, não adere totalmente às suas teses, por serem demasiadamente céticas. Para Kant trata-se de reformar a filosofia, estabelecer os limites da metafísica, mas manter o primado da razão. Hume com sua filosofia colocava em risco mesmo o conhecimento da natureza, que, segundo ele, baseava-se na indução e não na razão. Cabia, então, achar um novo caminho para estruturar a possibilidade do conhecimento. Essa iniciativa de Kant parte de uma posição idealista: a razão não depende das coisas e nem é regulada por elas; mas são as coisas que dependem da razão e por ela são condicionadas. Assim, o filósofo faz a distinção entre as duas formas de conhecimento: o que depende do objeto e constitui a matéria do conhecimento; e o que depende do sujeito e constitui a forma de conhecimento. Com relação a este ponto escreve Kant na Crítica da Razão Pura: “Sensação é o efeito que um objeto causa na capacidade de representação, quando o mesmo objeto nos afeta. A intuição é chamada de empírica quando, mediante sensação, refere-se ao objeto. Fenômeno é o objeto indeterminado de uma intuição empírica. Matéria é o que no fenômeno corresponde à sensação. Forma é o que o múltiplo do fenômeno, em determinadas relações, deve ser ordenado.” (Kant, 2007).

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Segundo Kant, apesar de possuirmos conhecimento a priori, como das proposições matemáticas, nem todo conhecimento a priori tem o mesmo valor. Para explanar bem a diferença entre certo tipo de conhecimento, Kant faz a distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos. O primeiro extrai conhecimento do próprio sujeito, por simples análise. Como exemplo, Kant cita o fato de que todos os corpos são extensos. O conceito, neste caso, está no próprio sujeito – todo corpo tem extensão. O juízo sintético é aquele cujo predicado acrescenta alguma coisa ao sujeito, por exemplo: todos os corpos são pesados. É através dos juízos que as coisas passam a existir para nós, por se tornarem objeto de nosso conhecimento. Uma coisa passa então a existir quando pode tornar-se objeto de conhecimento de uma estrutura a priori universal da razão humana, aquilo que Kant denominou como Sujeito Transcendental.

Para Kant existem dois tipos de realidade. A primeira, aquela que recebemos através da sensibilidade e das categorias, e que se transforma em fenômeno. A segunda, que não se oferece à experiência e não recebe formas e categorias, permanece sendo o noumeno, a “coisa-em-sí”, inapreensível e misteriosa ao conhecimento humano. A metafísica – pela definição filosófica – era aquele conhecimento que se ocupava de entes que eram dados ao pensamento sem qualquer relação com a experiência. No entanto, de acordo com Kant só podemos conhecer aquilo que apreendemos no tempo e no espaço, segundo as formas do conhecimento. O que extrapolava disso, o que estava fora desta classificação, era o noumeno, o objeto da metafísica, impossível ao nosso conhecimento. Desta forma, todos os conceitos anteriores da metafísica, como: ser imaterial, Deus, alma, infinito, etc., não têm mais nenhum fundamento racional, já que não são objeto da percepção e, desta forma, não são mais objeto de estudo da filosofia.

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Eliminando assim a possibilidade de conhecer os entes metafísicos, Kant acaba com a fatuidade de uma metafísica. Na dialética transcendental o filósofo mostra que as provas da existência de Deus – a cosmológica, a ontológica e a teológica – tão valorizadas pela metafísica tradicional, não tem fundamento racional. “A grande originalidade de Kant consiste provavelmente em ter tido a audácia de colocar uma pergunta que aflorava constantemente nos discursos filosóficos referentes à verdade desde Platão, mas que jamais, creio, nenhum pensador havia radicalizado verdadeiramente. Kant, em suma, tem a audácia excepcional de colocar a pergunta: Como é possível a verdade? Desde sempre os filósofos, em particular os grandes metafísicos clássicos – Descartes, Spinoza, Malebranche, Leibniz – tinham como evidente que a verdade existia.” (Châtelet, 1993).

No entanto, apesar de provar a impossibilidade da metafísica e de seus pressupostos, Kant foi sempre um entusiasta da disciplina e tentou mais tarde – em sua obra Crítica da Razão Prática – retomar as provas metafísicas baseado nos argumentos morais, com fundamento na liberdade. Assim, a ética tornou-se o grande tema da metafísica, como estudo da Razão Prática.

A metafísica depois de Kant nunca mais foi a mesma de antes. Com seu sistema filosófico Kant acabou transformando a teoria do conhecimento em metafísica, afirmando que esta investiga a possibilidade de um conhecimento universal e necessário. Outro aspecto importante é que o filósofo mostrou que o sujeito do conhecimento é uma estrutura universal, compartilhada por todos os seres humanos: a razão ou Sujeito Transcendental. A realidade é assim estruturada pelas idéias, produzidas pelo sujeito. Com isso a metafísica torna-se uma exteriorização das idéias do sujeito, isto é, torna-se idealista.

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“Kant mostrou que pensamos “legitimamente” os objetos metafísicos, sem cair em contradição conosco. Mas Kant mostrou que do ponto de vista teórico esta correspondência (entre nossas idéias e a existência de entes metafísicos) necessariamente não é verdadeira. Mas, por outro lado, a filosofia de Kant também demonstrou que se por um lado não é possível provar os conceitos metafísicos, por outro lado também não é possível provar sua inexistência.” (Bento Prado Jr., s/d).

Bibliografia Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. Verbete “metafísica”. São Paulo. Martins Fontes: 2007, 1.210 pgs. Aristóteles. A metafísica. São Paulo. Edições Profissionais: 2006: 363 pgs. Châtelet, François. Uma historia de la razon – Conversaciones com Emile Noel. Buenos Aires. Ediciones Nueva Visión: 1993, 191 pgs. Chauí, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo. Editora Ática: 2006, 424 pgs. Figeiredo, Vinicius de. Kant & A crítica da razão pura. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 2005, 74 pgs. Fiorillo, Marilia. O Deus exilado – breve história de uma heresia. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira: 2008, 303 pgs. Gray, John. Cachorros de palha. Rio de Janeiro. Record Editora: 2006, 255 pgs. HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano. São Paulo. Editora Escala: 2007, 173 pgs. JR. BENTO, Prado. Curso sobre Heidegger: Kant e o problema da metafísica. <Disponível em http://www.conciencia.org/heideggerkantcursabento1.shtml.> acesso em 16/05/09 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo. Ícone Editora: 2007, 541 pgs. MINOIS, Georges. História do Ateísmo. Lisboa. Editorial Teorema: 2004, 739 pgs.

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PASCAL, Georges. Compreender Kant. Rio de Janeiro. Vozes Editora: 2007, 206 pgs. PLATÃO. A República. São Paulo. Editora Nova Cultural: 2004, 352 pgs. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario, História da Filosofia – Vol II. São Paulo. Paulus Editora: 1990, 956 pgs.

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A filosofia de Baruch Espinosa Dados biográficos Baruch (Benedito) Espinoza (também grafado por alguns como Spinoza), nasceu em Amsterdam, na Holanda, em 1632. Descendia de uma abastada família de comerciantes originários da Espanha, cujos antepassados haviam sido expulsos de Portugal. Espinoza cresceu na comunidade judaica portuguêsa de Amsterdã e, ainda pequeno, iniciou estudos da Tora e do Talmud. Jovem, passou a freqüentar a escola de Francisco van den Enden, doutor de formação católica que se tornou livre pensador - o que à época era quase equivalente a ser ateu - despertando a ira dos agrupamentos de fanáticos. Foi na escola de van den Enden que Espinoza travou contato com outros pensadores clássicos, como Cícero, Sêneca e Aristóteles; estudou a filosofia medieval e a filosofia moderna, entre os quais Descartes, Bacon e Hobbes. Neste círculo intelectual Espinoza também teve oportunidade de se aprofundar na matemática, geometria e as ciências de sua época, principalmente na obra de Galileu.

Por volta dos 22 anos, Espinoza passou a ter problemas com a sinagoga que frequentava. Isto porque, seu pensamento não se coadunava com as orientações ortodoxas da religião judaica. Inicialmente, os doutores da sinagoga ofereceram-lhe uma pensão anual para que se calasse. A oferta não foi aceita, tendo somente contribuído para que a firmeza de propósitos do pensador ainda aumentasse mais, precipitando a situação de confronto com a instituição. Com a morte de seu pai em 1654, a posição de Espinoza na comunidade tornou-se insustentável, quando um fanático tentou esfaqueá-lo. Espinoza escapou incólume do atentado, mas logo em seguida foi excomungado e expulso da sinagoga, em 1656.

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Na evolução do seu pensamento, dada a diversidade de interesses e de temas estudados, Espinoza sofreu muitas influências. Uma das primeiras foi, segundo o pensador brasileiro Alcântara Nogueira, o filósofo medieval judeu Bahya ou Bhai bem Josef bar Pakuda. Aristotélico, mas também ligado ao neoplatonismo, foi autor do livro Obrigação dos corações (Hobot há-Lebatot, em hebraico). Bahya desenvolveu idéias místicas e tentou dividir a ciência em natural, matemática e divina. Na argumentação utilizada em sua obra, Bahya escreve “como se fossem três axiomas que oferecessem base à argumentação de um teorema, à semelhança de Espinoza, em forma “geométrica” e que assim esse processo teria antecedido a Ética” (Nogueira, 1974). Outro pensador estudado por Espinoza foi Levi bem Gerson, conhecido pelos cristãos medievais como Magister Leo Hebraeus. Gerson foi um estudioso das Escrituras e filósofo que defendia a eternidade do mundo, criticando a criação ex nihilo. Além desses pensadores medievais, Espinoza também sofreu forte influência de dois contemporâneos seus, Juan de Prado e Uriel da Costa; ambos da mesma comunidade judaica à qual havia pertencido. Prado era um médico emigrado da Espanha, suspeito de incredulidade, que teve graves disputas religiosas com os membros de sua sinagoga. Uriel da Costa era português de Porto, educado no catolicismo e reconvertido ao judaísmo. Na comunidade judia de Amsterdã fez graves críticas à religião, mas posteriormente se retratou. No entanto, pouco tempo depois, voltou a criticar o judaísmo. Causando grande oposição na comunidade, foi excomungado. Mais tarde, assaltado por dúvidas e remorsos, Uriel da Costa suicidou-se – fato que muito impressionou Espinoza.

Depois de ter sido excomungado, Espinoza passa a viver em uma aldeia perto de Amsterdã, onde começa a praticar o ofício de cortador de lentes para telescópios – instrumento ótico que havia

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sido inventado há pouco e se tornava popular. Isolado da comunidade judaica, leva uma vida pacata e modesta. No campo intelectual tornara-se uma referência, travando contato com representantes de correntes religiosas liberais, cientistas e outros filósofos. Em 1677, por influência de Leibniz, foi convidado a ocupar a cátedra de filosofia da universidade de Heildelberg, na Alemanha – cargo que não aceitou para poder manter sua independência intelectual.

As obras de Espinoza foram escritas ao longo de menos de duas décadas. Seu primeiro trabalho, redigido em torno de 1660 foi o Breve Tratado sobre Deus, o homem e a felicidade. O escrito permaneceu inédito, tendo sido descoberto e publicado no século XIX. O Tratado da Reforma do Entendimento é datado de 1661 e sempre foi considerado uma introdução à obra do filósofo. A obraprima do pensador foi a Ética demonstrada à maneira dos geômetras, ou simplesmente Ética. Esta foi iniciada em torno de 1661, tendo sido publicada postumamente em 1667, juntamente com o Tratado Político e suas Cartas. O Tratado PolíticoTeológico, uma das primeiras obras de exegese bíblica utilizando métodos racionais de crítica histórico-filosófica, foi publicada anonimamente em 1670.

Deus e o mundo Logo no início de sua carreira filosófica, Espinoza escreve no Tratado da Reforma do Entendimento que a busca do prazer e das honras trazia mais males do que bem e que todos os males da humanidade derivavam da busca destes bens. Espinoza passou então a inquirir se o verdadeiro bem, “uma vez encontrado e adquirido, proporcionasse a fruição eterna da suprema e contínua alegria.” (Espinoza, 1987). Esta era a base intelectual sobre qual o pensador pautaria toda a sua vida prática e intelectual. Em sua obra máxima, Ética, Espinoza nos dá uma visão do conceito de

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Deus, único em toda a filosofia ocidental. Diferentemente de Descartes e outros autores, Espinoza não se propõe a provar a existência de Deus.

A sua Ética já inicia a parte I com a seguinte definição: “Entendo por causa de si aquilo cuja essência implica a existência; ou, em outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente.” (Espinoza, 2002). Isto, cuja existência é evidente, é a substância. Enquanto Descartes defendia a existência três substâncias – a pensante (o homem), a extensa (os corpos) e a infinita (Deus) – para Espinoza só existia uma substância, cuja existência é evidente aos sentidos: “Entendo por substância o que é em si e se concebe por si: isto é, aquilo cujo conceito não tem necessidade de outra coisa, do qual deve ser formado.” (ibidem). O argumento seguinte a este apresentado por Espinoza é que esta substância é Deus, como especifica na VI definição da parte I da Ética: “Entendo por Deus um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância constituída por uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.” (ibidem).

Em suma, Espinoza pressupõe que a substância é necessariamente existente, e, por isso, infinita. A partir deste raciocínio, Espinoza afirma que Deus é necessidade absoluta e dele procedem os infinitos atributos (o que se afirma ou se nega do sujeito) e infinitos modos (formas de ser) de que é formado. A seguir, Espinoza define que entre os modos da substância estão todas as coisas, já que estes (os modos) são infinitos. Portanto, cada ente individualmente é um modo da substância e parte dela. O mundo é a “conseqüência” necessária de Deus, segundo Reale e Antiseri, referindo-se a este ponto do pensamento do filósofo holandês (Reali e Antiseri, 1990). Existem, pois, duas maneiras de ser: a da substância e a de seus atributos, e a das manifestações

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da substância. Às manifestações da substância Espinoza dá o nome de modos da substância. “Deus, demonstra Espinosa, não é causa existente transitiva de todas as coisas ou de todos os seus modos, isto é, não é uma causa que se separa dos efeitos após havê-los produzido, mas é causa eficiente imanente de seus modos, não se separa deles, e sim se exprime neles e eles O exprimem.” (Chauí, 1995).

Em última instância, este pensamento significa que nós somos formas de Deus e que todo o universo é forma de Deus. Isto, por outro lado, não quer dizer que Deus se limite ao universo “material” que conhecemos, já que Espinoza fala em infinitos modos. Desta forma, podem existir modos que nós desconhecemos, já que o res extensa e o res cogitans, através dos quais percebemos o mundo, são apenas dois dos infinitos atributos da substância, segundo o pensador. Cabe aqui lembrar a influência de Giordano Bruno sobre o pensamento de Espinoza, no conceito de mundos infinitos – influência esta ressaltada pelo pensador alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911), mas negada por outros pensadores.

Por identificar Deus (ou a substância) à matéria, Espinoza foi classificado como filósofo ateu; no mínimo monista. Em seus textos, principalmente na Ética, caso se substitua a palavra “Deus” ou “substância” pela palavra “matéria” as argumentações do filósofo ficam bem mais claras.

O conhecimento Espinoza distingue três formas de conhecimento: a) O empírico, ligado às percepções sensoriais;

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b) O conhecimento segundo a ratio (razão), representado pelas ciências; c) O conhecimento da ciência intuitiva, que é a visão das coisas na visão do próprio Deus.

As coisas, diz Espinoza, não são como no-las apresenta a imaginação, baseada no conhecimento empírico; mas como são apresentadas pela razão. Desta maneira, analisando o mundo com a razão, sabemos que este é manifestação da substância eterna e infinita (conforme definição VI da parte I da Ética) e, portanto, necessário. Considerar o mundo necessário (não podendo não existir) significa considera-lo “sub specie aeternitatis”, sob certa espécie de eternidade. Da mesma forma, se o mundo e tudo que existe é necessário, não há lugar para uma vontade livre, uma vontade não condicionada. Qualquer vontade é determinada por fatores conhecidos ou desconhecidos, que por sua vez, são determinados por outros fatores, até que em determinado ponto da seqüência a vontade (ou a mente) não tenha mais controle sobre estes fatores. Desta forma, a vontade é determinada em última instância por fatores que desconhecemos e sobre os quais não temos controle. Portanto, para Espinoza a vontade não é livre. Esta idéia será posteriormente retomada por grandes pensadores como Schopenhauer e Nietzsche, que também negarão a existência do livre-arbítrio. A questão é tema de grandes debates ainda na filosofia moderna, fortemente influenciada pelas descobertas da ciência (psicologia e neurologia).

Como conseqüência deste raciocínio, Espinoza deduz que agimos necessariamente pela vontade de Deus (ou pela vontade/impulsos da matéria). A partir deste pressuposto (ou corolário, como escreve o filósofo) Espinoza infere toda uma ética baseada na vontade, na compreensão dos obstáculos da vida; separando

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aquilo que podemos mudar daquilo que não podemos. Toda esta ética é baseada na constatação de que tudo que ocorre, acontece de maneira predeterminada.

As paixões As paixões, diz Espinoza, não são o resultado da fraqueza humana, da fraqueza da vontade (mesmo porque esta não é livre), mas resultado da potência da natureza. Por isso, diz o filósofo, as paixões não devem ser condenadas, mas explicadas e compreendidas. É bastante significativa a semelhança destas idéias e análises com as que quase 300 anos depois foram feitas por Sigmund Freud. Referindo-se aos conceitos de Freud sobre a agressividade, escreve a psicanalista Betty Fuks: “Na realidade, se ele próprio advogava o fato de que no homem, amor e ódio intensos convivem conflitantes (ambivalência de sentimentos), e que as pulsões são aquilo que são – nem boas nem más, dependendo do destino que seguem na história do sujeito e da civilização – tinha de reconhecer que o mal, a destruição e a desumanização dos laços sociais não são apenas momentos efêmeros, fadados à superação no futuro.” (Fuks, 2003).

Estas conclusões se assemelham bastante às conclusões de Espinoza sobre as paixões. As paixões, diz o filósofo, são uma tendência a permanecer no próprio ser, como se fosse um instinto de conservação, chamado por Espinoza de conatus. Quando se referem à mente chama-se vontade, quando ao corpo, chama-se apetite. Aquilo que favorece positivamente o conatus, Espinoza chama de alegria. O que atua negativamente em relação ao conatus, o filósofo chama de dor. Comparando as paixões às forças da natureza, Espinoza constata que não temos controle sobre elas e uma (paixão) leva à outra. Isto cria, segundo ele, a ilusão da liberdade porque os homens são “conscientes de suas

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ações e ignorantes pelas quais elas são determinadas”. Gilles Deleuze chama este engano de a ilusão psicológica da liberdade. “(...) retendo apenas efeitos cujas causas ignora essencialmente, a consciência pode julgar-se livre, e confere então ao espírito um poder imaginário sobre o corpo, quando na verdade não sabe sequer o que “pode” o corpo em função das causas que o fazem realmente agir.” (Deleuze, 2002).

Virtude sem finalismo Para Espinoza o mundo não tem finalidade alguma (pelo menos que nós possamos descobrir pelo conhecimento). A maneira de analisarmos os acontecimentos, a história, a natureza, sempre de acordo com alguma finalidade, é próprio dos homens; quando estes enxergam tudo sob a forma empírica do conhecimento. Sob a perspectiva sub specie aeternitats não há teleologia alguma por trás das coisas; elas apenas são. Conseqüentemente também não existe o perfeito e o imperfeito, o bem e o mal. Tais conceitos são apenas comparações que o homem faz entre o objeto que produz e outros na natureza (quando na verdade é tudo parte da natureza). Da mesma forma, bem e mal não são coisas em si, mas modos de pensar; o bem sendo o que é útil e o mal o que não é.

O homem que entende todas as coisas, acontecimentos e situações como procedentes de Deus (como seus modos e atributos), sabe que elas são Deus e ele mesmo é Deus (ou está em Deus). Retomando então suas raízes socráticas e estóicas, Espinoza afirma que a verdadeira bem-aventurança não é o prêmio da virtude, mas a virtude em si.

Política e Estado Os homens, sujeitos às paixões e iras, são inimigos uns dos outros por sua própria natureza. Todavia, a exemplo daquilo que já

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havia sido afirmado por Hobbes, Espinoza diz que através de um pacto os homens constroem um Estado. Desta forma, os homens podem viver mais facilmente ao abrigo das intempéries e em relativa paz uns com os outros. Nesta forma de organização, o regime ideal é a democracia, onde todos têm o mesmo direito e nenhum poderá oprimir o outro, já que a organização política tem como fim assegurar a liberdade de todos os membros. Joseph Moreau escreve que: “o Estado, assegurando a paz pública, não somente permite os homens cooperar tendo em vista o bem-estar material e as comodidades da vida, senão que é ainda e unicamente na cidade que o homem pode alcançar a perfeição de sua natureza, realizar o ideal da vida racional.” (Moreau, 1982).

O pensamento de Espinoza introduziu muitas idéias novas na filosofia. Reduzindo a realidade à substância e admitindo que esta seja infinita e eterna, chamando-a de Deus, Espinoza transformouse no mais célebre dos monistas ateus. Todavia, toda a sua metafísica tem uma falha: Espinoza parte do pressuposto de que à realidade do mundo correspondem as nossas percepções. Mais tarde, Kant provará que o mundo é sempre uma intermediação entre o que existe e nossa percepção; não havendo assim uma realidade absoluta. O pensamento abrangente de Espinoza influenciou outros pensadores como Hegel, Marx e Nietzsche, e ainda continua a influenciar outros pensadores modernos.

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Bibliografia Blackburn, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 1997, 437 pgs. Delbos, Victor. O Espinosismo. São Paulo. Discurso Editorial: 2002, 274 pgs. Büchner, Luiz. Força e Matéria. Lisboa. Livraria Chardron, de Lello & Irmão Ltda.: 1926, 386 pgs. Chauí, Marilena. Espinosa uma filosofia da liberdade. São Paulo. Editora Moderna: 1995, 112 pgs. Deleuze, Gilles. Espinosa filosofia prática. São Paulo. Editora Escuta: 2002, 135 pgs. Espinoza, Baruch de. Ética demonstrada à maneira dos geômetras. São Paulo. Editora Marin Claret: 2002, 423 pgs. Espinosa, Bento de. Tratado da reforma do entendimento. Lisboa. Edições 70: 1987, 109 pgs. Fuks, Betty B. Freud & Cultura. Rio de Janeiro. Zahar Editor: 2003, 72 pgs. Moreau, Joseph. Espinosa e Espinosismo. Lisboa. Edições 70: 1982, 106 pgs. Nogueira, Alcântara. O método racionalista – história em Spinoza. São Paulo. Editora Mestre Jou: 1976, 205 pgs. Reale, Giovanni; Antiseri, Dario. História da Filosofia, Vol II. São Paulo. Paulus Editora: 1990, 956 pgs. Scruton, Roger. Espinoza. São Paulo. Edições Loyola: 2001, 135 pgs.

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Empirismo e racionalismo Desde as origens da filosofia o problema do conhecimento sempre ocupou a maioria dos filósofos. O tema já era tratado pelos pensadores pré-socráticos, os quais, dada a maneira como abordavam o assunto, se dividiam entre racionalistas e empiristas - se bem que esta classificação não existia à época. O racionalismo e o empirismo representam visões diferentes na maneira de explicar como o homem adquire conhecimentos. A classificação desta idéias em correntes de pensamento empiristas e racionalistas, aqui utilizadas, evidentemente foi realizada por pensadores posteriores, já que nem gregos, romanos ou medievais tinham clara a separação entre as duas tendências. Parmênides (cerca de 530 A.C. - 460 A.C.) e os pitagóricos (século VI A.C.) concordam que além do conhecimento empírico existe também o racional, e é somente este último que efetivamente tem valor absoluto. Por outro lado, os sofistas Protágoras (480 A.C. - 410 A.C.) e Górgias (480 A.C. - 375 A.C.) reconhecem somente o conhecimento sensível. Assim, como sabiam que as experiências eram falhas e que não eram as mesmas para todo e qualquer indivíduo, os sofistas concluíram pela relatividade do conhecimento, o que os permitiu afirmar que “o homem é a medida de todas as coisas”, negando qualquer conhecimento necessário e universal. Avançando mais no tempo, encontramos a filosofia de Platão (427 A. C. - 347 A. C.), cujo pensamento é classificado como racionalista. O grande filósofo afirmava que para se chegar à verdade era preciso ultrapassar os dados da experiência, falhos e mutáveis, e através do raciocínio alcançar o mundo da Idéias, princípios eternos e perfeitos. Segundo Platão, antes de viver neste mundo, as almas humanas habitavam o mundo das Idéias e ali conheciam o Bem, o Belo, as Proporções e outras idéias. Ao

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nascerem em corpos humanos, as almas esqueciam o que haviam vislumbrado neste mundo superior. Somente através de uma ascese e da atividade filosófica é que as Idéias poderiam ser relembradas. O exemplo clássico desta crença é o Mito da Caverna, descrito no livro “A República”. A base de todo o mito é o argumento de Platão, depois incorporado de diversas formas à filosofia pelos pensadores racionalistas, de que existem conceitos que são inatos ao ser humano (como a Razão, o Bem, a Justiça, etc.), os quais precisamos apenas recordar. Um dos grandes provas apresentadas ao longo da história em favor do inatismo (o fato destes conceitos serem inatos, de já nascermos com eles) era a capacidade de realizarmos operações matemáticas. Segundo os racionalistas, não havia como aprender conceitos e raciocínios matemáticos pela experiência; estes deveriam ser inatos. O mais famoso exemplo desta argumentação é apresentado em um dos diálogos de Platão, o “Menon”. Neste texto Sócrates inicia uma conversa com um jovem escravo, que passava pelo local onde o filósofo confabulava com alguns amigos. Fazendo uma série de perguntas devidamente dirigidas, Sócrates consegue que o escravo realize diversos raciocínios matemáticos e geométricos, sem que nunca antes tivesse estudado estas ciências. A historicidade do ocorrido narrado por Platão nunca pôde ser provada. Fato é que com aquele relato, Platão queria provar que certas idéias matemáticas eram inatas, já que com elas tínhamos tido contato no mundo das Idéias. Sabemos, por outro lado, por dados históricos e arqueológicos, que a álgebra e a geometria sofreram um lento desenvolvimento, desde a contagem de dias, registrados em ossos há mais de 15.000 anos, até as técnicas desenvolvidas para observação dos astros, construção de canais, medição de terras, construção de templos e uso no comércio, pelas grandes civilizações do Oriente Médio, Ásia e Mesoamérica. Tudo isto – podemos acompanhá-lo por diversos documentos – foi o resultado de um lento aprimoramento de certos conceitos e práticas a princípio bastante simples e elementares, por força das necessidades econômicas.

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Aristóteles (384 A.C. - 322 A. C), discípulo de Platão, tinha uma posição diferente de seu mestre. Defendia que a observação era a atividade básica para poder entender o mundo. Em outras palavras, dizia que dos dados empíricos podiam-se tirar conclusões e destas criar regras que explicassem o funcionamento da Natureza. Com esta maneira de interpretar os dados da experiência, Aristóteles tornou-se o fundador de diversas ciências e um dos maiores representantes do empirismo (chamado de realismo). Após Aristóteles, a maioria dos filósofos do período helênico seguiria a orientação empirista. Mesmo porque, estas correntes filosóficas eram voltadas para temas práticos, como a ética e a física, e pouco para o desenvolvimento de um pensamento mais sutil, como a metafísica. A escola cirenaica, fundada por Aristipo de Cirene (435 A.C. - 356 A.C.), afirmava que só as sensações eram critério de conhecimento. O mesmo ocorria com pequenas variações com os cínicos, escola fundada por Antístenes (444 A.C. - 365 A.C.), e com os estóicos, que tinham em Zenon de Cítium (334 A.C. - 262 A.C.) seu iniciador. Esta última escola filosófica antecipou-se ao pensador inglês John Locke (do qual falaremos adiante) em quase dois mil anos, afirmando que a alma humana não continha qualquer tipo de idéia inata no nascimento, e que todo desenvolvimento posterior era resultado da experiência através dos sentidos. Outra corrente bastante importante e com uma orientação empirista foi o epicurismo, fundada por Epicuro de Samos (341 A.C.-271 A.C.), para quem todo o conhecimento provinha das sensações, causadas pelos átomos. A última escola de pensamento empirista da Antiguidade foi o ceticismo, fundada por Pirro de Elis (360 A.C. - c. 270 A.C.). O último grande representante desta escola foi Sexto, cognominado de “O Empírico” (que também quer dizer médico). Os céticos partiam do pressuposto de que a base do conhecimento eram os sentidos, que, no entanto, não eram dignos de confiança. Sendo assim,

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afirmavam que nada se poderia conhecer verdadeiramente e que a cada afirmação era possível contrapor uma afirmação contrária. Durante grande parte da Idade Média, pelo menos até o século XIII, a filosofia dominante teve uma orientação racionalista. Isto se deve principalmente à grande influência exercida pela filosofia neoplatônica (século III D.C.), de Amônio Sacas (175 - 242) e Plotino (205 - 270), sobre vários pensadores dos primeiros séculos da nossa era. Dentre estes filósofos estava Santo Agostinho (354 431), que com sua obra moldaria toda a teologia e filosofia medieval até o aparecimento de São Tomás de Aquino (1225 1274). Os conceitos de Idéias, elaboradas por Platão, foram substituídas por outros, como Deus, Alma e Bem; princípios que, segundo Agostinho, Deus já tinha colocado na alma do homem e que este descobria ao se converter ao cristianismo. A partir do século XII, com os frequentes contatos com a cultura árabe, o ocidente cristão toma conhecimento das obras de Aristóteles. Os escritos do filósofo grego, desaparecidos da cultura ocidental por longo tempo, passariam a exercer uma grande influência sobre os teólogos da Igreja. A obra aristotélica chegou a ser proibida por certo tempo, para depois adquirir plena aceitação após ter sido incorporada à filosofia cristã por São Tomás de Aquino. Este pensador não era empirista, mas acreditava que esta tendência filosófica não excluiria a fé. Através dos dados dos sentidos, segundo Tomás, o conhecimento pode abstrair de cada objeto individual a sua essência, sua forma universal. Deus, para Aquino, é cognoscível por meios sensíveis e racionais. Com base nisso, o filósofo propõe as “Cinco Vias”, as cinco sentenças com as quais Tomás de Aquino tenta provar a existência de Deus, baseadas em parte no empirismo e no racionalismo. Uma importante corrente de pensamento derivada da escola Escolástica, iniciada por Tomás de Aquino, foi a escola nominalista. Seu maior representante, Guilherme de Ockham, argumentava que as idéias abstratas ou universais não

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correspondiam ao mundo real, sendo apenas conceitos. A partir do Nominalismo registra-se uma gradual dissociação da filosofia e da teologia. Ockham chega a afirmar que através dos meios racionais não se podia provar a existência de Deus. Racionalismo e empirismo "No que se refere à ciência e à filosofia, a síntese medieval culminou com o sistema abrangente de Tomás de Aquino. O racionalismo escolástico estava unido ao misticismo cristão e o conhecimento dos gregos estava amoldado aos ensinamentos da Igreja, formando uma imagem do universo. As causas finais estavam por trás de cada processo da natureza. Uma inteligência divina permeava tudo. E a vontade de Deus, apesar de incompreensível em seus detalhes, proporcionava racionalidade e sentido a todas as coisas”. (Werkmeister, 1940, tradução nossa). O texto do pensador americano Werkmeister proporciona uma clara imagem do paradigma teológico-filosófico que vigorou durante a maior parte da Idade Média. Todavia, o Renascimento inauguraria uma nova mentalidade, uma maneira diferente de enxergar o universo, já bastante influenciada pelo princípio de desenvolvimento das ciências naturais. Um dos primeiros cientistas-filósofos da época (ainda não havia clara distinção entre ambas as ciências), Bernardino Telésio, é um típico representante da nova mentalidade empírico-científica da época. Segundo Höffding, Telésio considerava que mesmo o mais alto e mais perfeito conhecimento simplesmente consistia na habilidade de descobrir atributos e condições desconhecidas do fenômeno, através de suas similaridades com outros casos conhecidos. Ou seja, novas descobertas devem ser feitas empiricamente, baseadas na observação dos fenômenos da natureza, como já ensinava Aristóteles. É neste ambiente cultural que o empirismo e o racionalismo moderno se desenvolvem. Um dos grandes precursores do empirismo – e por sinal também um dos ideólogos do moderno

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método científico – foi Francis Bacon (1561-1626). Dizia ele que todo conhecimento tinha que ser baseado em dados da experiência. As informações, no entanto, deveriam ser reunidas e utilizadas de acordo com um método, de modo a possibilitar fazer inferências cientificamente aproveitáveis. Os sucessores intelectuais de Bacon foram os empiristas ingleses, dos quais os principais representantes eram Thomas Hobbes (1588-1674), John Locke (1632-1704), George Berkeley (16851753) e David Hume (1711-1776). O ponto de partida das investigações destes filósofos não foram os problemas do ser, mas do conhecer. No entanto, enquanto filósofos continentais europeus (os racionalistas) encaram o problema do conhecimento a partir das ciências exatas, os empiristas ingleses voltam-se para as ciências experimentais. O próprio ambiente cultural e sócioeconômico da Inglaterra da época coopera para tanto, já que ocorria um grande florescimento das ciências experimentais – botânica, astronomia, química, mecânica, entre outras. Seguindo a linha de raciocínio das ciências experimentais, o empirismo parte de fatos, eventos constatados pela experiência. Agindo assim, chega à seguinte problemática epistemológica: como, partindo da experiência sensível, é possível chegar às leis universais? A solução encontrada pelos filósofos foi a de que partindo do pressuposto de que todo o conhecimento é originário da experiência, conclui-se que mesmo as idéias abstratas e as leis científicas têm a mesma incerteza, instabilidade e particularidade do conhecimento empírico. A alma (a mente) não possui ideias inatas, como afirmava o racionalista Platão. As impressões, obtidas pela experiência, isto é, pela sensação, percepção e pelo hábito, são direcionadas à memória e desta – através de um processo de associação de idéias, segundo o filósofo Hume – formam-se os pensamentos. O próprio hábito de associar idéias, pelas diferenças ou semelhanças, forma a razão, ainda segundo Hume. A mais famosa tese do empirismo, desenvolvida por John Locke, é a da tabula rasa. Com este conceito o filósofo queria dizer que ao nascermos não temos nenhum princípio ou idéia

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inata e tudo que aprendemos e processamos em nossa mente provêm das experiências feitas durante a vida. A escola racionalista, inaugurada por René Descartes (15961650), tem um posicionamento diferente em relação à maneira como é adquirido o conhecimento. Vivendo em um ambiente diverso dos empiristas ingleses, assolado por guerras (Guerra dos 30 anos de 1618 a 1648) e perseguições religiosas (Massacre de São Bartolomeu em 1572), os filósofos racionalistas foram mais apegados a conceitos imutáveis, como os das ciências teóricas (matemática e geometria). Para os filósofos racionalistas, cujos representantes principais foram Descartes, Nicolas Malebranche (1638-1715), Baruch Espinosa (1632-1677) e Leibniz (1646-1716), é necessário descobrir uma metodologia de investigação filosófica sobre a qual se pudesse construir todo o conhecimento. A resposta a esta questão encontrada por Descartes, foi que o conhecimento válido não provém da experiência, mas encontra-se inato na alma. Em relação ao método para atingir este conhecimento, o filósofo francês propõe colocar em dúvida qualquer conceito que não seja claro e distinto. Este conhecimento pode ser obtido através da análise racional, com a qual é possível apreender a natureza verdadeira e imutável das coisas. Trata-se, de certa forma, de uma reedição do platonismo, possibilitando a metafísica e a aceitação de uma moral baseada em princípios tidos como racionais e universalmente válidos. A solução de Kant A dicotomia entre racionalismo e empirismo perpassa toda a filosofia dos séculos XVII e XVIII. A possibilidade do conhecimento efetivo e absoluto, afirmado pelos racionalistas e negado pelos empiristas, é estudada detalhadamente pelo filósofo Immanuel Kant (1724-1804). Este teve sua atenção despertada para o problema do conhecimento após ler a obra do empirista Hume, que, segundo o próprio Kant, o acordou do “sonho dogmático”. A solução para a oposição entre o racionalismo e o empirismo foi chamada por ele mesmo de “Revolução copernicana da filosofia”,

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numa referência à revolução paradigmática feita por Copérnico na astronomia, que mudou nossa visão do mundo e de sua posição no universo. De certo modo, Kant tentou provar que tanto os inatistas (os racionalistas, que consideram certas idéias inatas na alma) quanto os empiristas estavam errados. Ou seja, os conteúdos do conhecimento não eram inatos nem eram adquiridos pela experiência. Kant postula que a razão é inata, mas é uma estrutura vazia e sem conteúdo, que não depende da experiência para existir. A razão fornece a forma do conhecimento e a matéria é fornecida pelo conhecimento. Desta maneira, a estrutura da razão é inata e universal, enquanto os conteúdos são empíricos, obtidos pela experiência. Baseado nestes pressupostos, Kant afirma que o conhecimento é racional e verdadeiro. Todavia, segundo o filósofo, não podemos conhecer a realidade das coisas e do mundo, o que ele chamou de noumeno, “a coisa em si”. A razão humana só pode conhecer aquilo que recebeu as formas (cor, tamanho, etc.) e as categorias (elementos que organizam o conhecimento) do sujeito do conhecimento, isto é, de cada um de nós. A realidade, portanto, não está nas coisas (já que não as podemos conhecer em última análise), mas em nós. Assim, vemos o mundo “filtrado e processado” pela nossa razão, depois que as percepções passaram pelas categorias. Efetivamente, depois de Kant a Teoria do Conhecimento tomou um rumo bastante diverso daquele do racionalismo e empirismo originais. A solução dada ao tema pelo filósofo de Königsberg não eliminou as discussões, mas deu-lhes uma profundidade muito maior.

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Bibliografia Blackburn, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro: 1997, 437 p. Hessen, Johannes. Teoria do Conhecimento. Martins Fontes. São Paulo: 2003, 173 p. Höffding, Harold. A brief history of modern philosophy (Uma breve história da filosofia moderna). The MacMillan Company. New York: 1935, 324 p. Mondin, B. Introdução à filosofia. Edições Paulinas. São Paulo: 1980: 272 p. Werkmeister, W.H. A philosophy of science (Uma filosofia da ciência). Harper & Bros. Publishers. New York: 1940, 551 p.

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Razão e fé no período medieval Em 313 da era atual, com a promulgação do Édito de Milão, os cristãos obtiveram liberdade de culto. Com a cessação das perseguições os cristãos passam a ter outras preocupações, já que na ausência de uma pressão externa – a perseguição do império romano – apareceram as dissensões internas: as heresias. Para estruturar a doutrina e combater as correntes de pensamento deviantes, organizam-se os Concílios. Os principais Concílios da igreja nascente foram os de Nicéia (325), que estabeleceu a divindade de Cristo; o de Éfeso (431), que definiu que em Cristo há duas naturezas e que a Virgem Maria é verdadeiramente a mãe de Deus; e o concílio de Calcedônia (451), que estabeleceu que Cristo tivesse uma só personalidade, que ora agia como Deus, ora como homem.

Ao mesmo tempo em que se expande, utilizando-se de todas as vantagens que a infra-estrutura do império romano oferecia (estradas, serviço de correios, inexistência de fronteiras, difusão do latim como língua oficial do império), o cristianismo concorria com outras religiões (maniqueísmo, gnosticismo, mitraísmo, entre várias outras) e com a filosofia. O problema da fé e da razão refere-se ao embate do cristianismo com a filosofia.

O confronto da fé com a razão, remonta aos primeiros tempos do estabelecimento da religião cristã. O apóstolo Paulo já é um exemplo emblemático, quando tenta converter os gregos, aproximando-se de sua filosofia. Posteriormente, em outra fase de sua atividade apostólica, o apóstolo ataca a filosofia, considerando-a um conhecimento que não leva ao Cristo. Esta atitude de por um lado tentar uma composição com a filosofia e

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por outro lado confrontá-la, estará presente em toda a história medieval da Igreja.

Um dos primeiros cristãos a utilizar-se de expressões originárias da filosofia em suas pregações e escritos religiosos, foi Clemente de Alexandria (150-215). Este bispo utilizou-se, por exemplo, da expressão gnosis (conhecimento), o que propiciou o aparecimento de uma seita cristã conhecida como gnósticos. Outros membros da Igreja, como Tertuliano, Cipriano, Hilário de Poitiers e Ambrósio, mais tarde chamados de “padres da Igreja” por terem contribuído para estruturar sua doutrina, também se ocuparam da filosofia. Todavia, o maior expoente deste período, que mais tarde foi chamado de período da filosofia patrística (referente à época dos “pais” da Igreja), foi o filósofo e teólogo Agostinho de Hipona (354-430).

Se a filosofia Patrística representa, desde o seu início, o esforço de unir a filosofia (razão) à fé (cristianismo), Agostinho foi o pensador que mais se destacou neste esforço. O período em que vive é caracterizado na história da filosofia como uma época em que domina o pensamento cético. De uma maneira geral, a filosofia está em uma fase de baixa criatividade e a única exceção é a filosofia de Plotino. Foi Agostinho quem, dentro da filosofia, restaurou a certeza da razão, utilizando-se da certeza oferecida pela fé. O filósofo parte do pressuposto bastante aceito pelo pensamento da época de que o homem e seu intelecto, sendo mutáveis, não podiam ser critérios últimos para o estabelecimento da verdade. A verdade, segundo Agostinho, só pode ser garantida por algo acima dos homens e das coisas: Deus. Por isso a razão, para encontrar a certeza, deve render-se à fé, que permite resgatar a dignidade da razão: “compreender para crer, crer para compreender”, é o famoso argumento do bispo de Hipona. Agostinho influenciou todo o pensamento medieval, através das

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diversas obras que escreveu, dentre as quais se destacam “As Confissões” (397) e a “Cidade de Deus” (413-427).

Depois de Agostinho, o pensador medieval de maior destaque foi Escoto Eurígena, que fez uma síntese do pensamento filosófico de seu tempo (século X) sendo fortemente influenciado pelos escritos do Pseudo-Dionísio, autor místico que escreveu por volta do século V. Eurígena abole toda a distinção entre fé e razão ao afirmar: “A verdadeira filosofia outra coisa não é do que religião e, inversamente, a verdadeira religião, outra coisa não é do que verdadeira filosofia” (Reale, Antiseri, 1999).

Cronologicamente, Anselmo de Aosta ou de Canterbury é outro filósofo medieval que se preocupa com a questão da fé e da razão. Em sua obra Poslogion, Anselmo elabora um argumento que sozinho pudesse fornecer provas adequadas sobre aquilo que o cristão crê no que diz respeito à substância divina. Anselmo parte de um dado da fé e procura exclusivamente através da razão, provar que o dado da fé corresponde à verdade. O argumento de Anselmo é que deve haver um ser maior do que qualquer coisa imaginável em todos os aspectos; sendo este ser existente também na realidade. De sua argumentação Anselmo conclui que deve haver “um ser sobre o qual não se pode pensar nada maior.” Este argumento é conhecido como “argumento ontológico”. Mas, a tese de Anselmo não permaneceu sem críticas. Muitos autores argumentaram que não bastava ter uma idéia de Deus – o ser sobre o qual não se pode pensar nada de maior – para se poder afirmar sua realidade objetiva. Foi Anselmo quem deu a fórmula definitiva da primazia da fé sobre a razão, porque se a razão quer ser plenamente racional, se ela quer se satisfazer como razão, o único método seguro para a razão consiste em escutar a racionalidade da fé. Anselmo, por sua atuação na filosofia e no uso que fez da razão, foi considerado o iniciador do pensamento escolástico.

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Pedro Abelardo (1079 – 1142) também foi um dos pensadores medievais preocupados com a questão da fé e da razão. O filósofo jamais pôs em dúvida que a revelação seja fundamento das verdades divinas, mas afirmava constantemente que a verdade da fé pode ser entendida também por intermédio da razão.

Para Tomás de Aquino, o maior filósofo da Baixa Idade Média, não há conflito entre a fé e a razão, a tal ponto, que lhe é possível tentar demonstrar a existência de Deus. Tomás fez isto através de uma linha de argumentação, cujos cinco pontos principais são: a) O caminho da mutação: tudo o que muda, deve ter mudado por causas anteriores. A causa imutável, origem de todas as mudanças é Deus. b) O caminho da causa eficiente: cada coisa tem uma causa, a causa eficiente, origem de tudo, é Deus. c) O caminho da contingência: as coisas podem ser e não ser, pois aparecem e desaparecem. Deve haver um ser não sujeito a este devir, e este é Deus. d) O caminho dos graus de perfeição: todos os seres são mais ou menos perfeitos. Deve existir um ser que totalmente perfeito e este ser é Deus. e) O caminho do finalismo: tudo caminha para um determinado fim, mesmo sem conhecê-lo. O fim último de toda a criação é Deus.

Tomás de Aquino tornou-se o maior filósofo na questão da razão e da fé, por elaborar os pressupostos racionais da fé. Sua filosofia, o tomismo, permaneceu como referência durante toda a Idade Média, tendo influenciado a filosofia moderna. Descartes em sua

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argumentação para provar a existência de Deus, utiliza-se também da filosofia de Tomás de Aquino.

A Idade Média ainda apresentou outras formas de abordagem da relação entre a fé e a razão. Siger de Brabante (1240-1284), por exemplo, separou a questão da razão e da fé. Brabante afirma que ambas podem ser separadas sem qualquer conflito, já que caso a razão concluísse coisas que conflitassem com a fé, deveria se optar pela fé.

A independência da fé em relação à razão ocorre com Guilherme de Ockham (1280-1349). O pensamento medieval – depois de tantas elaborações argumentativas – havia chegado a um ponto em que Ockham conclui que a fé e a razão não são conciliáveis e que os artigos de fé não podem ser provados pelo intelecto. O problema da fé e da razão surgiu na Antigüidade, nos primórdios do cristianismo, quando era necessário conciliar a fé de origem judaica com o pensamento racional grego. Havia muitos intelectuais que foram convertidos à nova fé e que tentaram a síntese entre fé e razão, visando dar uma explicação completa do mundo e do homem. A tarefa foi terminada por Agostinho, que baseou sua argumentação a fé. Posteriormente, todavia, a filosofia sofreu influência do pensamento árabe, que trouxe o pensamento de Aristóteles ao conhecimento dos filósofos europeus. Tornava-se necessário fazer uma nova síntese entre fé e razão, desta vez provando que os pressupostos da fé, ou seja, Deus, efetivamente era verdadeiro. Esta obra foi iniciada por Anselmo e definitivamente estruturada por Tomás de Aquino.

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Finalmente, no final da Idade Média, chega-se aos poucos à conclusão de que os pressupostos da fé não podem ser provados pela razão, o que eliminava a possibilidade de uma síntese. A partir deste período, então, para a maioria dos filósofos, a fé e a razão passaram a caminhar separadamente. Bibliografia Abrão, Bernadette Siqueira. História da Filosofia. São Paulo. Editora Nova Cultural: 1999, 470p. Benmakhlouf, Ali. Averróis. São Paulo. Estação Liberdade: 2006, 223 p. Cunha, Eliel Silveira; Florido, Jaice. Grandes Filósofos – Biografia e Obras. São Paulo. Editora Nova Cultural: 2005, 280 p. Gilson, Etienne. O Espírito da Filosofia Medieval. São Paulo. Martins Fontes: 2006, 581 p. Gracioso, Joel. As relações entre fé e razão – Biblioteca de Livros – Santa Filosofia. São Paulo. Duetto Editorial: 2007, 97 p. Os Pensadores. Anselmo e Abelardo. São Paulo. Abril Cultural: 1973, 282 p. Reale; Antiseri. História da Filosofia, Vol. I e Vol. II. São Paulo. Paulus: 1999, 683 p. Schlesinger, Hugo, Porto, Humberto. Dicionário Enciclopédico das Religiões – Volume I. Petrópolis. Editora Vozes: 1995, 1486 p. Von Natzmer, Gert. Weisheit der Welt (Sabedoria do mundo). Berlin. Deutsche Buchgemeischaft: 1954, 367 p.

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A religião: origem, crítica e função Origem e desenvolvimento A religião é uma das mais antigas práticas culturais da humanidade, tendo aparecido no período do Paleolítico Superior, há aproximadamente 50.000 anos. Todavia, nossa espécie, homo sapiens, não foi a única a se dedicar a práticas cujo fim era chamar a atenção de entidades superiores. Escavações revelaram que os Neandertais, outra espécie de hominídeo, mais antiga que a nossa, dedicavam especial atenção aos seus mortos. Alguns aspectos destas descobertas ainda não estão esclarecidos, mas tudo indica que este cuidado com os mortos demonstra alguma crença em uma sobrevivência individual após a morte. O interessante neste fato é que a crença em uma sobrevivência, em um rudimento de pensamento metafísico, não é exclusividade dos humanos sapiens. Antropólogos culturais e etnólogos são de opinião de que originalmente a religião consistia em práticas mágicas, visando aplacar as forças aterradoras da natureza, dos espíritos dos mortos ou criar vínculos mágicos com os animais caçados pela tribo, de maneira semelhante ao que ainda hoje é praticado por algumas tribos indígenas. As pinturas rupestres da França e Espanha, datando de cerca de 30.000 a 14.000 anos a.C. parecem representar aspectos deste relacionamento mágicoreligioso que nossos antepassados tinham com a natureza. Ainda no final do Paleolítico surgem os cultos da fertilidade, cujas deusas, de formas voluptuosas, foram representadas em diversas estatuetas esculpidas em ossos de urso e rena. A partir do período Neolítico, há cerca de 8.000 anos, quando em determinadas regiões (Oriente Médio, noroeste da Índia e sul da China) começa a ser praticada regularmente a agricultura, surgem

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as religiões organizadas. Estas já haviam evoluído para uma organização permanente, dispondo de um corpo sacerdotal, ritos estabelecidos, local de culto fixo e organização eminentemente patriarcal. Don Cupitt, filósofo inglês contemporâneo, escreve que “... as antigas mitologias acertam ao dizer que os deuses foram os primeiros reis, os primeiros senhores da terra e a primeira classe alta. É razoável postular que a crença nos deuses desse tipo essencial se desenvolveu lentamente no período após 7.500 a.C., quando tiveram início as atividades agrícolas e a fixação ao solo. Os deuses corporificavam, e eram, as concentrações maciças de autoridade sagrada e poder disciplinar, necessários para a evolução das primeiras sociedades estatais. A única maneira de transformar um nômade em um cidadão era induzir nele o temor a um deus.” Cupitt ainda se refere à transição das crenças dos povos nômades – baseadas em espíritos da natureza – para a religião dos primeiros centros urbanos, sustentados pela agricultura e pelo comércio: “Propus um limite para o uso da palavra deus, limite este que reconhece um sistema simples: vejo a crença nos espíritos como típica da velha ordem nômade, e a crença nos deuses propriamente ditos surgindo com a ascensão das primeiras sociedades-estado, pois, para haver um Estado, era preciso existir um centro e fonte de legitimação e poder que fosse estável e reconhecido por todos – e isso era fornecido por um deus. A imortalidade do deus garantia a continuidade do Estado.” As sociedades se desenvolvem e praticamente não existe diferença entre o poder secular o poder espiritual. No Antigo Egito o Faraó, além de rei, era uma personificação de um deus. Na Babilônia o rei era filho de um deus em especial, o mesmo acontecendo na China ou em Teotihuácan, no México. A influência da religião e dos sacerdotes na vida do Estado e do indivíduo era quase total; da política, da agricultura, à guerra e ao comércio, passando pelas leis e pela cultura – os sacerdotes

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exerciam influência em todas as áreas. Referindo à religião das cidades-Estado gregas, Jean-Pierre Vernant relata que “entre o religioso e o social, o doméstico e o cívico, portanto, não há oposição nem corte nítido, assim como entre sobrenatural, natural, divino e mundano. A religião grega não constitui um setor à parte, fechado em seus limites e superpondo-se à vida familiar, profissional, política ou de lazer, sem confundir-se com ela.” (Vernant, 2006).

Crítica Apesar do imenso poder de dominação dos corpos e das mentes, nem sempre a ideologia religiosa foi totalmente hegemônica. Ao longo da história, em todas as culturas, grupos ou indivíduos criticaram a religião estabelecida ou as crenças sobrenaturais em geral. A partir do II milênio a.C. surgem, em diversas regiões (Egito, Babilônia, Irã, Grécia) movimentos de vigorosa crítica às religiões dominantes. “Esse desespero”, segundo Mircea Eliade, “não surge de uma meditação sobre a inutilidade da existência humana, mas da experiência da injustiça generalizada: os maus triunfam e as orações não surtem efeito; os deuses parecem indiferentes aos problemas humanos” (Eliade, 1978). Na Babilônia aparece neste período um texto célebre, o Diálogo sobre a Miséria Humana; também conhecido como o Eclesiastes Babilônico (em referência ao Livro do Eclesiastes da Bíblia cristã, famoso por sua visão pessimista da vida humana). Em uma de suas passagens o livro faz a seguinte constatação: “Suba nos montículos das velhas ruínas, vá e volte pelo mesmo caminho; olhe os crânios dos homens de outrora e os dos nossos dias: quem é o malfeitor e quem o amável filantropo?” (Eliade, 1978). Outro exemplo é a antiga Índia, onde em torno do século VI a.C. surge a escola de pensamento dos Çarvakas, que além de se opor ao sistema de castas, nega qualquer tipo de divindade ou esfera sobrenatural. Aproximadamente no mesmo período

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aparece na Grécia a escola atomista, criada por Leucipo e Demócrito e posteriormente desenvolvida por Epicuro. Segundo Diógenes Laércio, o atomismo de Epicuro, ainda mais que o de Demócrito, pelo simples fato que substitui a vontade dos deuses pelo livre querer dos átomos, incita os homens a desinteressaremse daí por diante de todo o palavreado mítico (Henry Avron, 1967). Ao mesmo tempo surge na Grécia a escola dos sofistas, cujo mais famoso expoente, Protágoras, dizia que “o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são o que são, e das coisas que não são o que não são”. Esta escola de pensamento, muito atacada por Sócrates, Platão e seus sucessores, foi a primeira a defender um secularismo – o conhecimento era originado pelo homem e sobre o homem; as divindades, se as havia, eram incognoscíveis. Entre os séculos V e III a.C. surgiram diversas escolas filosóficas na Grécia, como os atomistas, epicuristas, céticos, cínicos, cirenaicos e os estóicos, que mantiveram uma posição crítica em relação às concepções metafísicas e religiosas. Os deuses, caso existissem, tinham pouca ou nenhuma influência sobre a vida humana. Os humanos tinham somente a vida terrena, a qual cabia viver da melhor forma possível. O aspecto principal destas escolas filosóficas era seu apelo ao indivíduo; não havia nenhuma teoria sobre a forma de organização da sociedade. Ao longo da Idade Média, principalmente na Baixa Idade Média, apesar da profusão de movimentos heréticos, que pretendiam reformar sem suprimir o cristianismo, não houve fortes críticas às crenças religiosas. Assim, desde o início da Idade Média até praticamente o Renascimento, no século XVI, a religião oficial da civilização ocidental – o cristianismo – permaneceu quase que isenta de críticos, mantendo sua hegemonia e, em troca, validando a política de países alinhados ideologicamente. Os poucos opositores eram ignorados ou, em casos extremos, eliminadas, como ocorreu durante o período da Inquisição em países de forte influência católica.

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Todavia, durante o Renascimento (século XV ao XVII), as mudanças sociais, econômicas e religiosas, aliadas à redescoberta da cultura clássica grega e romana e dos estudos científicos (principalmente a astronomia, a física e a medicina), propiciaram o desenvolvimento de um pensamento crítico da metafísica cristã - a existência de Deus, a imortalidade da alma, entre os principais temas. Tais ataques, porém, estavam limitados aos círculos filosóficos e eram duramente perseguidos pela Igreja e pelo braço secular. Um dos maiores críticos da religião deste período (século XVII) foi o filósofo holandês Baruch Espinosa (1632-1677). Espinosa criticou a religião em diversos aspectos, tendo sido perseguido tanto por seu grupo social de origem, os judeus, quanto por cristãos católicos e protestantes. Um tema atacado por Espinosa foi o da visão teleológica que temos da natureza (de que a natureza é sujeita a intenção ou fim); visão esta que projetamos na religião. Espinosa afirma sobre isso: Não puderam (os homens), com efeito, tendo considerado as coisas (da natureza), como meios, supor que elas tivessem sido produzidas por elas mesmas, mas, tirando a sua conclusão dos meios que se acostumaram a obter, tiveram que persuadir-se de que existiam um ou mais diretores da Natureza, dotados de liberdade humana, que tivessem provido todas as necessidades deles e tivessem feito tudo para seu uso (dos homens). Não tendo jamais recebido (a) respeito do propósito destes seres informação alguma, tiveram também de julgar segundo o seu próprio, e assim admitiram que os deuses dirigem todas as coisas para uso dos homens, a fim de que esses se lhes liguem e para que sejam tidos por esses na maior honra. Do que resulta que todos, referindo-se ao seu próprio propósito, inventaram diversos meios de render culto a Deus, a fim de que fossem amados por ele acima de todos, e para que obtivessem que dirigisse a Natureza inteira em proveito de seu desejo cego e de sua avidez insaciável.” (Ética, Prop. XXVI, Apêndice )

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Foi somente durante o Iluminismo, no século XVIII, que surgiram os primeiros críticos sistemáticos da religião como pensamento metafísico e como instituição legitimadora de um sistema de poder absolutista. Até este período a Igreja esteve intimamente associada ao poder secular, seja na França e em outros países de forte influência católica, como a Áustria, a Polônia, a Espanha e Portugal. Os filósofos iluministas, como La Mettrie (1709-1751), Helvetius (1715-1771) e d`Holbach (1723-1789) eram defendiam uma filosofia claramente anti-metafísica. Em suas proposições defendiam um materialismo mecanicista, baseado no qual o universo e todos os seus constituintes eram partes de um mecanismo gigantesco, determinado exclusivamente pela matéria, cujo movimento é regulado pela causalidade. Outros filósofos iluministas mais famosos, D´Alembert e Voltaire, foram influenciados pela política e filosofia inglesas e eram deístas. Em seu Dicionário Filosófico, Voltaire define o deísta como alguém que sabe que Deus existe, mas “o deísta ignora como Deus pune, favorece ou perdoa, porque não é temerário a ponto de iludir-se que conhece como Deus age” (citado em Reale e Antigesi, História da Filosofia volume II). A partir do período do Iluminismo, notadamente na França e na Inglaterra, desenvolve-se uma crítica sistemática da religião e do pensamento metafísico. As ações praticadas durante o Período do Terror (1789-1792) da Revolução Francesa, como o assalto e destruição de templos, assassinato e execução de religiosos e declaração oficial do Estado laico, foram um rude golpe à hegemonia da religião na cultura ocidental, do qual ela (a religião) nunca mais se recuperou. Produto da filosofia iluminista e do romantismo alemão, o pensamento do século XIX foi rico em filósofos que se opunham à religião. Bastam citar apenas alguns, a começar por Hegel e toda a esquerda hegeliana, como: Bruno Bauer, Max Stirner, Ludwig

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Feuerbach, Leo Strauss, Karl Marx e Friedrich Engels, que em suas análises críticas da religião, valeram-se da História, do estudo comparado de religiões, da Economia e da Antropologia. Não ligados ao pensamento hegeliano, Schopenhauer e Nietzsche também foram grandes críticos de todo o pensamento metafísico e da religião.

Função A religião tem uma função social e outra privada. Sob o aspecto social, a religião cimenta a união entre grupos humanos; sejam tribos, povos ou países. Representando um corpo de crenças comuns ao grupo, com as quais este se identifica, a religião atua como elemento de coesão social, mantendo as relações sociais. Ao mesmo tempo – baseado em um conjunto de crenças – a religião legitima estruturas sociais, leis, costumes e práticas políticas. Se, por um lado, as religiões têm atuado como elemento de pacificação social, por outro, em determinadas situações sociais, a religião tem servido para motivar ou canalizar comportamentos de modificação das estruturas sociais. A religião não tem, portanto, unicamente o efeito de fomentar a apatia das massas, como em muitos aspectos criticava o marxismo. Ocorre que a crença também pode ser motor de revoluções sociais, como ocorreu durante as revoltas camponesas do século XVI, na Alemanha. Em relação ao Brasil, podemos apontar duas situações diametralmente opostas: 1) A escravidão no Brasil, tolerada e apoiada pela Igreja Católica, que atuou na legitimação desta estrutura social; e 2) A oposição das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica ao governo militar, durante o período da ditadura. No âmbito do indivíduo, a religião fornece uma explicação da vida e de seu sentido. Esta explicação das “expectativas privadas”

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acaba correspondendo ao nível intelectual e à personalidade do fiel. O que ocorre é que tanto o pensamento individual do crente influencia a religião que pratica (com suas visões particulares sobre certos aspectos da doutrina ou da prática), quanta esta influencia a visão que o crente tem da vida e do universo. Sobre este aspecto da crença David Hume em Diálogos sobre a Religião Natural observou: “Que privilégio peculiar tem esta pequena agitação no cérebro, que nós chamamos de pensamento, que precisamos fazê-la o modelo de todo o universo?” (Hume, Dialogues, parte II). Por outro lado, afirmar que a religião é apenas um conjunto de crenças de determinado grupo é, sob diversos aspectos, uma simplificação. A complexidade das diferentes teologias religiosas, as elaboradas cosmologias e os variados rituais de culto têm uma riqueza muito maior e representam muito mais do que um simples conjunto de crenças. Não podemos deixar de considerar o quanto às religiões influenciam as sociedades nas quais são praticadas, em seus diversos aspectos: artes, moral, costumes, tecnologias, práticas econômicas, entre outros. As religiões têm seus aspectos mais populares, envolvendo crenças, rituais, costumes e até o folclore, ao lado de uma faceta mais intelectual, que se fundamenta em uma produção cultural (teologia, filosofia, arte) geralmente elaborada pelas elites. Assim, concluímos que a religião é um sistema de idéias de uma determinada sociedade, através do qual este grupo social procura explicar sua situação no universo e sua relação com a divindade. Baseado neste sistema de crenças justifica-se as leis, os costumes e as instituições.

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Bibliografia Avron, Henri O Ateísmo – 2ª ed. Lisboa: Publicações EuropaAmérica, 1967 Cupitt, Don Depois de Deus – 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999 Eliade, Mircea História das Crenças e das Idéias Religiosas – 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978 Espinosa, Baruch Ética Demonstrada à maneira dos geômetras – 1ª ed. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002 Hume, David Dialogues Concerning Natural Religion London: Penguin Books, 1990 Merton, Robert K. Sociologia – Teoria e Estrutura – 1ª ed. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970 Onfray, Michel. Tratado de ateologia – física de la metafísica – 2ª ed. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2006 Reale Giovanni, Antiseri, Dario Histório da Filosofia Volume I e II – 5ª ed. São Paulo: Paulus, 1990 Vernant, Jean-Pierre Mito e Religião na Grécia Antiga – 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006

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A sociologia evolutiva A sociologia evolutiva e sua relação com a sociologia clássica A sociologia evolutiva é ciência recente. Surgiu com este nome há cerca de trinta anos, como sucessora da sociobiologia. Esta nova área de estudos da sociologia tem sua base científica tanto nas ciências sociais, quanto nas biológicas e no neodarwinismo; a teoria da evolução de Darwin associada às descobertas genéticas de Mendel, chamada de síntese evolucionária moderna. A expressão foi proposta pelo biólogo Julian Huxley, em seu livro Modern Synthesis (Síntese Moderna) publicado em 1942. Outra disciplina associada à sociologia evolucionista é a psicologia evolucionista, igualmente fundamentada nos corolários teóricos do neodarwinismo e voltada para o estudo da mente humana. Ainda pouco conhecida no Brasil, a sociologia evolutiva – também por vezes titulada como sociologia evolucionista – é mais praticada nos Estados Unidos, onde se desenvolveu, mesmo assim de maneira ainda limitada. Contando atualmente com alguns estudiosos famosos, como os sociólogos Robert Boyd (Universidade da Califórnia), Peter Richerson (Universidade da Califórnia Davis) e William Wimsatt (Universidade de Chicago), a disciplina ainda não é amplamente difundida, inclusive entre os sociólogos americanos. Assim, foi somente em 2006 que a ASA – American Sociology Association (Associação Americana de Sociologia) criou uma seção regular chamada Evolution and Sociology (Evolução e Sociologia), contado àquela época com pouco mais de 300 membros associados. Trata-se, portanto, de uma disciplina nova dentro da sociologia que, até onde pudemos pesquisar, ainda não tem uma rede regularmente estabelecida de especialistas no Brasil.

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Por motivos que desenvolveremos adiante, a sociologia evolutiva em grande parte ainda é encarada com desconfiança por muitos sociólogos, sendo incorretamente associada com a antiga biossociologia ou sociologia biológica, que por muitos sociólogos foi considerada um reducionismo científico. No Brasil, já Gilberto Freyre em seu grande trabalho Sociologia – Introdução ao estudo dos seus princípios, cuja primeira edição data de 1945, referia-se à relação dos estudos sociológicos com a biologia da seguinte maneira: A Sociologia, no seu primeiro esforço para firmar status de ciência, baseou-se quase exclusivamente sobre a Biologia, adotando-lhe a terminologia (organismo social, evolução, sobrevivência do mais apto) e por tal modo identificando o social com o biológico ou com o sócio-biológico que acabou por não restar quase lugar nenhum, em tal sociologia biológica, para o cultural, muito menos dentro do cultural, para o elemento histórico-biográfico a que acabamos de nos referir. Tentou-se a explicação do fato sociológico pelo fato biológico: do processo sociológico pelo processo biológico (FREYRE, p. 230, 1973 – negrito nosso). No segundo volume da mesma obra o sociólogo brasileiro ainda dedica todo um capítulo à sociologia biológica. Freyre escreve que no final do século XIX, falando sobre as origens da sociologia, esta ainda tinha forte influência da biologia, tomando dessa a terminologia e o que Freyre chama de “a filosofia predominante dos biólogos: a (filosofia) evolucionista”. Sobre a relação entre as duas ciências, o sociólogo brasileiro diz que os chamados sociólogos bioorganicistas querem “submeter à totalidade de fenômenos sociológicos e de cultura a processos biológicos e leis naturais”. No caso de Freyre e de outros sociólogos da primeira metade do século XX, devemos levar em conta que naquela época a teoria da evolução ainda não dispunha dos sólidos fundamentos experimentais que só adquiriu ao incorporar a teoria genética,

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transformando-se na síntese evolucionária moderna. Este avanço científico deu-se durante os anos 1930 e 1940 nos Estados Unidos e Inglaterra e lentamente se popularizou ao longo das décadas seguintes. Assim, antes disso, havia certo receio de que a sociologia fosse influenciada em demasia pelo evolucionismo, transformando a ciência em uma sociologia biológica. Mesmo assim a teoria da evolução despertava o interesse de muitos sociólogos, que a utilizavam como método de trabalho em suas pesquisas, empregando o evolucionismo como base daquilo que o sociólogo Robert K. Merton chamou de “sistema global de teoria sociológica”. Os trabalhos desenvolvidos por estes estudiosos, no entanto, tiveram apenas um papel secundário na posterior estruturação do corpus doutrinário da sociologia. Até hoje as relações entre a sociologia evolutiva e a sociologia clássica ainda não estão claras. Se, por um lado, os sociólogos evolucionistas estão convencidos de trabalharem com uma nova ciência sobre bases científicas, por outro os sociólogos clássicos, em sua maioria, ainda encaram a sociologia evolucionista como um reducionismo ou, na melhor das hipóteses, uma biologia que toma emprestado expressões e temas da sociologia. “Porque de todas as ciências sociais, a sociologia é a disciplina mais resistente a um diálogo com a biologia e com a teoria evolutiva. Quanto mais nos aproximamos das especialidades centrais da sociologia, maior a resistência”, escreve o sociólogo André Luiz Ribeiro Lacerda.

Como se originou a sociologia evolutiva As primeiras idéias da sociologia evolutiva tiveram sua origem nos anos 1950, quando o neodarwinismo começou a ser aplicado aos estudos das comunidades de símios antropomorfos – os orangotangos, gorilas, chimpanzés, bonobos e gibões –; as espécies de macacos mais aparentadas com o homem. Estudando estes animais em seus ambientes naturais e

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descrevendo suas organizações sociais, antropólogos, primatólogos e etólogos descobriram que havia muita similaridade entre as sociedades dos macacos e a humana. A partir dos anos 1960 a teoria neodarwinista já estava sendo utilizada em outras áreas do conhecimento, gerando grande quantidade de dados científicos nos campos da zoologia (Goodall), paleontologia e antropologia física (Leakey) e ecologia (Odum), entre outros. Em 1975 o biólogo americano Edward Osborne Wilson lança Sociobiology – The new synthesis (Sociobiologia – A nova síntese), livro que reunia informações de recentes pesquisas sobre o comportamento animal e desenvolvia novas idéias sobre a seleção natural. No capítulo final de seu livro, Wilson faz uma projeção destes dados sobre as sociedades humanas, entrando no terreno da sociologia. Em relação a esta ciência Wilson escreve: Considere a perspectiva (futura) para a sociologia. Esta ciência está agora no estágio de história natural de seu desenvolvimento. Houve tentativas de construir um sistema, mas, como na psicologia, elas foram prematuras e não foram suficientes. Muito do que em sociologia é considerado atualmente teoria, é na realidade, classificação de fenômenos e conceitos, na maneira como é feito na história natural. O processo é de difícil análise, porque as unidades fundamentais são vagas, talvez inexistentes. As sínteses geralmente consistem em tediosas referências cruzadas de diferentes conjuntos de definições e metáforas elaboradas pelos mais imaginativos pensadores (WILSON, p. 574, 2000 – tradução e negrito nossos). Os conceitos apresentados na publicação se alinhavam com os trabalhos de biólogos e zoólogos famosos à época, como George Williams (1926-2010), William Hamilton (1936-2000), John Maynard Smith (1920-2004) e Robert Trivers (1943). Com seu trabalho, Wilson apresentou pela primeira vez ao grande público as teorias que especialistas já utilizavam há anos em seus laboratórios e blocos de anotações: de que grande parte do

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comportamento humano tinha também origem genética e não somente social. O assunto em si não era novo tendo já sido abordado por Charles Darwin no século XIX. No entanto a maneira como Wilson apresentou a teoria causou grande impacto à época. R. S. Machalek, do departamento de sociologia da Universidade do Wyoming escreve com relação aos objetivos práticos da sociobiologia: Quando aplicado ao estudo das sociedades humanas, o escopo da análise sociobiológica foi expandido, para incluir fenômenos sociais mais complexos e mais amplos, como sistemas familiares e de parentesco, sistemas de estratificação, padrões criminais e causadores do crime, relações étnicas, urbanização e industrialização, evolução social. A diversidade de sociedades humanas e de comportamentos sujeitos à análise evolucionista dos sociólogos contemporâneos continua a se expandir (Machalek, s/d – tradução e negrito nossos). Sociobiology recebeu críticas negativas, tanto por parte de outros biólogos quanto do mundo acadêmico. Colegas de Wilson, como o paleontólogo Stephen Jay Gould e o geneticista Richard Lewontin, atacaram o conteúdo da publicação, classificando-a como “proponente da eugenia e do darwinismo social”, entre outras coisas. Sobre as críticas que caíram sobre o biólogo e sua obra, escreve o psicólogo evolucionista Steven Pinker: Também acusaram Wilson de discutir “as salutares vantagens do genocídio” e de fazer “instituições como a escravidão [...] parecerem naturais em sociedades humanas devido à sua existência universal no reino biológico”. Para o caso de a relação não estar suficientemente clara, um dos signatários escreveu em outro texto que “em última análise, foram os textos da sociobiologia [...] que forneceram a estrutura conceitual pela qual a eugenia foi transformada em prática genocida” na Alemanha nazista (PINKER, p. 159, 2004). Pinker toma a defesa de Wilson, admitindo que o biólogo tenha utilizado alguns dados imprecisos e elaborado raciocínios

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incorretos em partes do seu trabalho. Escreve que, no entanto, as críticas feitas a Wilson através de manifestos e até por livros (o biólogo Marshall Sahlins com Uso e abuso da biologia) não são justificadas. Todo o desenrolar dos ataques à sociobiologia, envolvendo alguns dos mais famosos biólogos americanos e ingleses (como Stephen Rose, Leon Kamin, Richard Dawkins, além dos já citados), bem como lances de falseamento de dados científicos, calúnia e difamação, são descritos em vários detalhes por Pinker em um capítulo de seu clássico Tábula Rasa – A negação contemporânea da natureza humana. Na obra o psicólogo rebate todas as críticas e demonstra que – ao contrário do que diziam os objetores da sociobiologia – o ser humano ao nascer não é uma tábula rasa, isto é, dispõe de um cérebro que já tem algum conteúdo preexistente, transmitido geneticamente. Os principais críticos da sociobiologia, termo que foi substituído pela expressão sociologia evolutiva a partir do final dos anos 1990, negam que caracteres adquiridos através da evolução e transmitidos pelos genes possam influenciar o comportamento social humano – alguns até ignoram completamente a existência destes caracteres, como o psicólogo Skinner. Argumentam que caso isso fosse possível, uma série de práticas consideradas desumanas, como o darwinismo social, seriam aceitáveis. A Enciclopédia Stanford de Filosofia (Stanford Encyclopedia of Philosophy) escreve que os opositores da sociobiologia humana defendem que seus modelos são inadequados para serem aplicados ao comportamento humano, porque ignoram a contribuição da mente e da cultura; baseiam-se no determinismo genético e aprovam tacitamente o status quo. Sobre a confusão normalmente feita por aqueles que não conhecem a teoria da evolução e suas implicações, escreve o zoólogo Frans de Waal em Der Affe in uns – Warum wir sind, wie wir sind (O macaco em nós – por que somos como somos): Dado o popular uso e mau uso da teoria da evolução, quase não causa surpresa que o darwinismo e a seleção natural tenham se tornado sinônimo de competição desenfreada. Darwin mesmo

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era tudo menos um darwinista social. Ele acreditava, ao contrário, de que na natureza humana como também no ambiente natural a convivência teria seu lugar. (DE WAAL, p. 232, 2006 – tradução e negrito nossos).

Ciências e correntes de pensamento que contribuíram para a formação da sociologia evolutiva A sociologia evolutiva é produto intelectual do neodarwinismo e de pesquisas de campo em diversas áreas ligadas à biologia, etologia, genética, citologia e outras ciências afins. Para explicar as bases teóricas da sociologia evolutiva, abordaremos sucintamente: a) O neodarwinismo; e b) A psicologia evolutiva. O neodarwinismo: A teoria da evolução de Darwin surgiu em 1859, com a publicação de A origem das espécies. O cientista só lançou sua teoria depois de uma preparação de mais de 20 anos em pesquisas, precedida por uma viagem de estudos por todo o globo. Uma parte da teoria, o conceito de mutação ou transformação das espécies, já era conhecida e tida como provável por grande parte do público instruído do início do século XIX e até antes. O próprio avô de Darwin, Erasmus Darwin (1731-1802), já havia elaborado um esboço de uma teoria da mutação das espécies (Zoonomia, 1792) que teve considerável impacto no meio científico inglês da época. A grande inovação da teoria de Darwin, portanto, foi explicar cientificamente como ocorria a evolução das espécies em todos os seus aspectos. Darwin estruturou sua teoria da seleção natural em torno dos seguintes pontos: a) As espécies evoluem através dos tempos. A geologia e a paleontologia, já na época de Darwin, provavam que no passado outros tipos de criaturas povoavam a Terra; b) Espécies aparentemente diversas têm um ancestral comum; fato comprovado por Darwin, tanto na pesquisa com animais

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domésticos quanto com espécies selvagens. A mais acalorada discussão sobre este ponto da teoria de Darwin foi com relação aos antepassados e à evolução do ser humano; c) A transformação evolutiva sempre acontece gradualmente (gradualismo) e nunca aos saltos (saltacionismo). Este aspecto da teoria de Darwin sempre foi motivo de críticas, inclusive de seus colegas, como Thomas H. Huxley. Tal parte da teoria da evolução, no entanto, começou a se provar verdadeira quando da elaboração da síntese evolucionista, com a ajuda da teoria genética. Mesmo assim o debate continua em nossos dias (Stephen Jay Gould e outros); d) A multiplicação das espécies resulta em grande diversidade. Darwin explicou este aspecto de sua teoria como sendo causado pelo isolamento geográfico de grupos pertencentes originalmente à mesma espécie. A comprovação final deste aspecto da teoria da evolução também ocorreu com a ajuda da teoria genética; e) A seleção natural, a parte mais inovadora e importante da teoria da evolução. Diz basicamente que dentro de uma grande variedade de indivíduos (a multiplicidade de espécies) ocorre um processo seletivo por mecanismos sexuais e de sobrevivência (acasalamento, ambiente, concorrência por alimento). Como resultado deste processo, apenas alguns indivíduos sobrevivem, que então transmitem suas características aos seus descendentes. Este ponto também ficou posteriormente provado, quando se verificou que a transmissão das singularidades – e de eventuais mutações – ocorre através do gene. Segundo o biólogo alemão Ernst Mayr, a teoria da evolução passou por etapas distintas. A princípio aceita com entusiasmo, perdeu gradualmente sua força como teoria científica, porque muitos pontos de sua argumentação só puderam ser definitivamente provados no decorrer do século XX, notadamente após sua composição com a teoria genética. Sendo assim, coincidentemente na época da estruturação da sociologia no final do século XIX e início do século XX, a teoria da evolução exercia

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muito mais influência intelectual como filosofia e ideologia, do que como ciência. Nesta parte do texto faremos um parêntesis para esclarecer interpretações incorretas do neodarwinismo, quando aplicado ao estudo humano como na sociologia evolutiva. Por vezes a crítica se vale das expressões “a sobrevivência do mais apto” em seu sentido tendencioso, fora do contexto da teoria da evolução; e “darwinismo social”, numa acepção que não tem relação alguma com o pensamento de Darwin. O mal-entendido repetido ad nauseam, geralmente por aqueles que não conhecem o assunto, está baseado em fatos que ocorreram no final do século XIX. Nesta época o filósofo, biólogo e sociólogo inglês Herbert Spencer criou a expressão “a sobrevivência do mais apto” (Princípios de Biologia, 1864). Spencer, grande polímata, contribuiu em diversas áreas do conhecimento de sua época, tendo sido forte defensor do liberalismo econômico. Como cientista social e biólogo, sua interpretação da Origem das Espécies de Darwin era parcial, porque projetava incorretamente aspectos da teoria de Darwin sobre a sociedade inglesa da época, que apresentava grandes problemas sociais, comparáveis aos dos países em desenvolvimento atuais. Cientificamente, Spencer tinha fortes influências do lamarckismo – que dizia que o uso propicia o desenvolvimento ou desaparecimento dos órgãos –, teoria elaborada por Lamarck (1744-1824) e refutada cientificamente pela teoria da evolução. Spencer uniu sua visão deturpada de Darwin às suas posições de política social e econômica – defendendo a eliminação da ajuda aos pobres e atuando como arauto de um intransigente laissez-faire econômico – e acabou fazendo muitos adversários intelectuais e inimigos políticos. Esta posição de Spencer foi chamada por seus opositores à época de “darwinismo social” – talvez mirando em um alvo, mas querendo acertar outro. Depois disso, na década de 1930, o darwinismo social reapareceu ligado a movimentos políticos direitistas, confundindo a idéia de progresso ininterrupto com evolução. Nessa linha de raciocínio, um indivíduo mais adaptado é aquele

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que ocupa uma posição social ou econômica superior, ou seja, os pobres são como são porque são evolutivamente mal-sucedidos. Este determinismo reducionista nada tem a ver com a teoria da evolução. Este foi um dos motivos pelos quais havia grande cuidado entre os primeiros sociólogos em não deixar que a “filosofia dos biólogos” (o evolucionismo, nas palavras de Gilberto Freyre) influenciasse as bases da sociologia. Provavelmente também foi a razão de outros expoentes do pensamento sociológico, como Durkheim, Simmel, Weber, e Talcott-Parsons, entre outros, pouco ou em nada se referiram ao evolucionismo darwiniano. Atualmente, com o acúmulo de dados da geologia, paleontologia, biologia, ecologia, etologia, entre outras ciências, o conhecimento científico permite dar uma forma mais elaborada e científica à teoria da evolução. Ponto importante é que esta não é teleológica, isto é, não se prevê um objetivo na teoria da evolução; a evolução (transmutação segundo Darwin) age aleatoriamente através dos genes. O que atualmente se conhece como “teoria do desenho inteligente”, hipótese de que a evolução é dirigida (por Deus) e de que tem um objetivo determinado, não tem fundamento científico. A ciência prova que toda a evolução ocorre por acaso, baseada em mutações apresentadas pelos indivíduos, que as transmitem aos seus descendentes. Estas transformações fazem com que as espécies atualmente existentes se desenvolvam gradualmente em outras. Estas, se sobreviverem às condições ambientais, terão igualmente grande variedade de descendentes, dos quais novamente só sobreviverão alguns, que terão que se adaptar e sobreviver no ambiente novo – o exemplo de um mar, que ao longo de milhões de anos vai secando e se transformando em um deserto como o Saara, permite imaginar o quanto espécies têm que se adaptar para sobreviver. A teoria da evolução, apesar de bem fundamentada por Darwin, possuía uma grande lacuna. Devido ao total desconhecimento da teoria genética, não era possível demonstrar como se dava o processo de seleção e como

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as mutações aleatórias eram transmitidas aos descendentes. Sobre este ponto escreve Mayr: A dificuldade começa com a descrição exata do processo de seleção. Depois de ter descoberto seu novo princípio, Darwin buscou uma terminologia apropriada e pensou tê-la encontrado com o termo “seleção” (1859), que os criadores de animais utilizavam para seu estoque reprodutor. No entanto, como Herbert Spencer e depois Alfred Russel Wallace o alertaram, não existe na natureza um agente, que, como os criadores, “selecione o melhor de todos”. Em lugar disso, os beneficiários da seleção são os indivíduos que restam depois que os menos aptos foram eliminados. A seleção natural, portanto, é um processo de “eliminação não aleatória”. A frase de Spencer, “sobrevivência do mais apto”, foi de todo legítima, desde que o termo “mais apto” seja apropriadamente definido (Mayr, 1963: 199) como sucesso reprodutivo (ibidem, p. 156, 2005 – negrito nosso). Com a redescoberta da teoria genética no início do século XX, esquecida desde a morte do monge e biólogo Gregor Mendel (1822-1884), os biólogos se deram conta de que o gene seria o componente que faltava para explicar uma grande quantidade de fatos da biologia, previstos na teoria da evolução. Hoje, quanto mais evoluem as pesquisas na área da genética, microbiologia e biotecnologia, tanto mais fica fundamentada a exatidão da teoria da evolução. A psicologia evolutiva: Já em Principles of Psychology (Princípios de Psicologia, 1890), o psicólogo e filósofo americano William James, influenciado pela teoria evolução, afirmava que a menos que tenha rudimentos de conhecimento inato, a mente humana não poderia incorporar a imensa quantidade de fatos e conhecimentos que absorvia. Contrariando a moda do empirismo que imperava na filosofia e ciência da época, James afirmava que os seres humanos dispunham de tendências inatas, que não provinham somente da

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experiência, mas do processo darwiniano de seleção natural. Escreve sobre William James o biólogo Matt Ridley: William James afirmava que os seres humanos tinham mais instintos que os outros animais, e não menos. “O homem possui todos os impulsos que têm [as criaturas inferiores], e muitas outras além destas (...) Será observado que nenhum outro mamífero, nem mesmo o mico, mostra um leque tão amplo deles”. Ele afirmou que era falso opor o instinto à razão (RIDLEY, p. 56, 2003 – negrito nosso). As idéias de James contribuíram para a criação da psicologia funcionalista e chegaram a fazer escola com seu discípulo William McDougall. O funcionalismo, no entanto, foi eclipsado por outras escolas de psicologia ao longo do século XX, como a escola behaviorista ou comportamentalista, de orientação empirista. Esta, fortemente representada em todas as ciências humanas, foi gradativamente adquirindo hegemonia, transformando-se na base teórica da psicologia. Em toda a sua história, a psicologia nunca chegou a estabelecer um pensamento único sobre os seus pressupostos básicos em relação ao empirismo ou funcionalismo (nativismo). Assim, uma das grandes dificuldades é a construção de uma história desta ciência. Usualmente tem se descrito o desenvolvimento da psicologia em uma seqüência cronologicamente ordenada – porém não logicamente correta –, no que se refere à análise dos problemas e tentativas de soluções. No entanto, as posições com relação aos fundamentos desta ciência, mesmo entre seus precursores – com exceção de William James e alguns outros – nunca chegaram a ser claras. Desenvolveram-se assim várias teorias sobre o funcionamento da mente, sem que fosse dada grande importância à maneira como operaria o substrato de todo o sistema: o cérebro. A maior parte dos autores encarava este órgão como uma massa de certa maneira amorfa, dotada de algumas propriedades, que, no entanto, pouca influência tinha no funcionamento da mente – exceção seja feita a casos de

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malformação, acidentes ou doenças, que já eram conhecidos desde a Antiguidade e afetavam a atuação da mente. Referindo-se ao pensamento de Wilhelm Wundt (1832-1920), um dos fundadores da psicologia, em relação à maneira como este encarava sua ciência, escreve o filósofo José Antonio Damásio Abib: Para Wundt, a psicologia como ciência é psicologia empírica. E, como tal, interpreta a experiência psíquica a partir da própria experiência psíquica; deduz os processos psíquicos de outros processos psíquicos; faz uma interpretação causal de processos psíquicos com base em outros processos psíquicos; não recorre a substratos diferentes destes processos, tais como mente-substância ou processos e atributos da matéria para explicá-los (ADIB, p. 197, 2009 – negrito nosso). O mesmo vale para outro expoente da psicologia – mais especificamente psicanálise –, Sigmund Freud. Apesar de estar envolvido desde o princípio de sua carreira com a pesquisa psicológica estudando a histeria com o psiquiatra Charcot (18251893), Freud nunca estabeleceu uma posição em relação ao empirismo ou funcionalismo. Winograd em Freud e a Filogenia Anímica, escreve que: Freud aderiu às idéias de Darwin e participava dos esforços para demonstrar os caminhos da evolução. Porém seu darwinismo não o impediu de fazer uso de outras teorias evolutivas, o que custou críticas severas à psicanálise (WINOGRAD, 2007).

Diferentemente de James, ao que parece, Freud nunca tentou associar sua teoria da mente aos pressupostos do evolucionismo – provavelmente por metodologia de trabalho. Escreve Ripley que o pensamento que imperou por muito tempo na psicologia (e em outras áreas como a sociologia e a antropologia) tinha como característica o que é conhecido como tábula rasa. A expressão latina que literalmente quer dizer “tábua

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raspada” e é utilizada no sentido de “folha em branco”, foi inicialmente empregada pelo filósofo inglês John Locke (16321704) em seu Ensaio Acerca do Entendimento Humano. Considerado o principal expoente do empirismo inglês e o ideólogo do liberalismo, Locke dizia que o homem nascia com a mente em branco, sem idéias inatas; ao contrário do que diziam filósofos anteriores como Descartes (1596-1650) e Malebranche (1638-1715). Para estes, o ser humano já vinha ao mundo munido de conceitos como “Justiça”, “Bem”, “Deus” e vários outros, colocados em sua alma pela divindade. Locke, ao contrário, dizia que tais idéias o homem adquiria ao longo da vida, através do processo de interação com seu ambiente, formando desta maneira sua personalidade. O princípio da tabula rasa, associado ao empirismo, permeou toda a filosofia ocidental até praticamente o século XX, e ao mesmo tempo exerceu forte influência sobre todo o desenvolvimento do pensamento científico, culminando com o início da psicologia e da sociologia, na segunda metade do século XIX. Mas, havia algumas vozes que destoavam deste coro de unanimidades. Charles Darwin em sua obra A expressão das emoções no homem e nos animais (1872), fez uma descrição das várias expressões faciais e corporais de diversos tipos de animais, de acordo com a emoção que sentiam. Em seguida mostrou as reações dos macacos, para então descrever pormenorizadamente (documento por fotografias da época) as diferentes expressões gestuais e faciais dos seres humanos, quando estavam sentindo as mais variadas emoções. O objetivo de Darwin, evidentemente, foi mostrar que existe uma ligação entre as expressões e reações humanas e as dos outros animais. De seu trabalho conclui Darwin: Pelo que sabemos, apenas uns poucos movimentos expressivos, como aqueles aos quais acabamos de fazer referência, são aprendidos individualmente; isto é, foram realizados consciente e voluntariamente nos primeiros anos de vida com algum objetivo definido, ou por imitação, tornando-se depois habituais. A grande maioria dos movimentos expressivos, inclusive os mais

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importantes, é inata ou hereditária, como vimos; eles não podem ser dependentes da vontade do indivíduo. Entretanto, todos aqueles incluídos sob nosso primeiro princípio foram de início desempenhados voluntariamente com um objeto definido, a saber, fugir de alguma ameaça aliviar um sofrimento ou satisfazer um desejo (DARWIN, p. 299-300, 2012 – negrito nosso). A partir da década de 1920, com a diminuição da influência do funcionalismo de William James, o behaviorismo e o comportamentalismo, de origem empirista, passam a dominar não só a psicologia (com John B. Watson e B. F. Skinner), mas também a antropologia (Franz Boas), a psicanálise (Sigmund Freud) e a sociologia (Émile Durkheim, que foi aluno de Wundt e exerceu grande influência teórica sobre Freud). Em 1958, analisando um trabalho sobre a linguagem (Comportamento Verbal, 1957) do psicólogo Burrhus F. Skinner – o maior expoente do behaviorismo à época – o linguísta Noam Chomsky defendeu a tese de que era impossível uma criança aprender as regras da linguagem somente através de exemplos da experiência, fato já intuído por James setenta anos antes. Afirmava que a criança deveria ter as regras inatas, pelas quais o vocabulário da linguagem é fixado. Para o linguísta, as gramáticas gerativas das línguas individuais são variações de um único padrão, que Chomsky denominou de gramática universal. Sobre esta descoberta, escreve Matt Ridley em Genome – The autobiography of a species (Genoma – A autobiografia de uma espécie): Estudando a maneira como os seres humanos falam, Chomsky concluiu de que há similaridades na base de todas as línguas, o que prova a existência de uma gramática universal humana. Todos nós sabemos como usá-la, embora raramente estejamos cônscios desta habilidade. Isto deve significar, de que parte do cérebro humano vem equipada por seus genes com uma habilidade especializada para aprender línguas. Simplesmente, o vocabulário não pode ser inato, ou nós todos falaríamos uma só

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invariável língua. Mas talvez uma criança, ao adquirir o vocabulário de sua sociedade nativa, insira estas palavras em um jogo de regras mentais inatas (RIDLEY, p. 93, 1999 – tradução e negrito nossos). Muitos psicólogos evolucionistas consideram a teoria de Chomsky como uma das primeiras confirmações de uma estrutura cerebral inata, mostrando que já nascemos com certas capacidades mentais herdadas. Chomsky atualizou sua teoria em 1984, com a teoria de princípios e parâmetros. Atualmente, apesar de diversos críticos da teoria (Dell Hynes, Dan Everett e outros), esta ainda não foi definitivamente refutada. Grande parte dos psicólogos e psiquiatras considera que se estruturas cerebrais herdadas existem, estas são irrelevantes para o estudo da ciência psicológica. Entretanto, atualmente já existem outras disciplinas como a neurologia, que vem avançando na pesquisa da mente e também trabalham com a hipótese de que esta contenha informações preexistentes. O neurologista português Antonio Damásio em Der Spinoza-Effekt – Wie Gefühle unser Leben bestimmen (O efeito Spinoza – Como sentimentos determinam nossa vida) faz uma análise da influência dos sentimentos no comportamento humano. Para o cientista, os sentimentos e as emoções são reações do corpo sobre o cérebro e demonstra que desde o nascimento não há maneira de separar um do outro. Sobre a questão da mente do tipo tabula rasa, escreve o autor: Aqui eu talvez devesse complementar minha discussão com mais esclarecimentos. Quando eu digo que a mente é formada por idéias, que de uma ou de outra maneira são representações do corpo no cérebro, facilmente se poderia chegar à idéia de que o cérebro é uma folha em branco, que virgem e intocado aguarda que o corpo lhe inscreva sinais. Nada poderia ser mais errado. O cérebro não principia como tabula rasa. Já no início de sua existência, ele dispõe do conhecimento, como o organismo deve ser “acionado”, ou seja, como o processo vital deve ser

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dirigido e como um grande número de acontecimentos do mundo exterior deve ser dominado. (DAMASIO, p. 238-239, 2003 – tradução e negrito nossos). Outro autor originário da neurologia, o neurocientista David Eagleman, ainda vai mais longe e dá uma autonomia muito maior ao cérebro; não só em relação ao fato de conter informações preexistentes, mas até quanto ao próprio controle que temos desse órgão durante nosso tempo de vida. Eagleman escreve quanto ao aspecto funcionalista do cérebro: O cérebro é um sistema complexo, mas isto não significa que seja incompreensível. Nossos circuitos neurais foram gravados pela seleção natural para resolver problemas que nossos ancestrais enfrentaram durante a história evolutiva de nossa espécie. Seu cérebro foi moldado por pressões evolutivas, assim como seu baço e os olhos. E o mesmo ocorreu com a consciência. A consciência se desenvolveu porque era vantajosa, mas vantajosa apenas de forma limitada (EAGLEMAN, p. 14, 2012 – itálico do autor, negrito nosso) Em todo seu livro Incógnito – As vidas secretas do cérebro o autor desenvolve a teoria – fundamentada por inúmeros fatos científicos – de que nosso controle sobre o cérebro, nossa mente, é muito menor do que imaginávamos. O cérebro escreve Eagleman, já é geneticamente dotado de um programa de funcionamento, e nossa mente consciente em muitas ocasiões é apenas um coadjuvante desnecessário de nossas ações – fato que não pode ser o resultado de aprendizado, interações sociais ou experiências. Apesar de este não ser o tema da obra, o livro de Eagleman é um forte argumento científico contra na crença da tábula rasa: A primeira lição que aprendemos no estudo de nossos circuitos é simples: a maior parte do que fazemos e sentimos não está sob nosso controle consciente. A vasta selva de neurônios opera seus próprios programas. O você consciente – o eu que ganha a vida quando você acorda pela manhã – é a menor parte do que se

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revela de seu cérebro. Embora sejamos dependentes do funcionamento do cérebro em nossa vida interior, ele cuida de seus próprios negócios. A maior parte de suas operações está acima do espaço de segurança da mente consciente. O eu simplesmente não tem o direito de entrar. (EAGLEMAN, p. 14, 2012 – itálico do autor, negrito nosso). Para finalizar estes comentários sobre as diversas teorias que formam as diferentes correntes psicológicas, é preciso ressaltar o fato de que nunca houve e há cada vez menos consenso sobre o campo próprio da pesquisa psicológica. Até hoje ainda não existe uma idéia comum sobre o conceito de comportamento e as relações – biológicas e psicológicas – entre a sociedade humana e animal. Para alguns especialistas como Jacques Cosnier, autor de Clefs pour la psychologie (Chaves para a psicologia, 1971), a psicologia não seria mais uma ciência que estuda o comportamento, mas que se ocupa dos processos intercomunicativos, com raízes na biologia e na linguística. Cosnier considera que a fase comportamentalista da psicologia estaria ultrapassada, dada a impossibilidade de superar o hiato entre teoria e prática. Assim, seguindo a linha argumentativa de Cosnier, daqui para frente a discussão na psicologia parece ser clara: é possível continuar com as práticas comportamentalistas, atuando na ponta final do sistema (exteriorizada pelo comportamento humano); ou pode-se enveredar por técnicas que também levem em consideração o substrato genético do cérebro e da mente – fato mais que demonstrado por diferentes correntes da psicologia e aprofundado cada vez mais pela neurologia. Especialmente nos Estados Unidos, despontaram nos últimos trinta anos vários especialistas em diversas áreas influenciados pela sociobiologia. Em sua maior parte, tais profissionais atuam nos campos da biologia, antropologia, psicologia, filosofia e sociologia, utilizando-se, sob diversas formas, do ferramental teórico da psicologia evolutiva. Walter Neves, biólogo, antropólogo e arqueólogo brasileiro, responsável pelo estudo de Luzia – o

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esqueleto humano mais antigo do continente americano – escreve o seguinte sobre a psicologia evolutiva no prefácio ao livro A préhistória da mente, de Steven Mithen: A psicologia evolutiva tem crescido muito no exterior e grande parte dos profissionais envolvidos nessa abordagem é formada por antropólogos, tendo se tornado, na verdade, uma nova subárea da antropologia evolutiva. Esta última, para ser praticada em nível aceitável, requer que os profissionais envolvidos tenham uma grande erudição sobre o fenômeno humano no espaço e no tempo. Requer, também, que esses profissionais acreditem, ainda que apenas parcialmente, que é possível identificar as relações de causa e efeito no comportamento social humano [...] (NEVES in MITHEN, p. 10, 2002). Por um lado a maior parte dos sociólogos e psicólogos ainda considera a mente um mecanismo de aprendizado geral, sem qualquer conteúdo prévio ao nascermos. O conhecimento e as idiossincrasias comportamentais são adquiridos através da interação cultural. De acordo com esta teoria da mente, a biologia tem um papel secundário, quase irrelevante. No entanto, muitos antropólogos chegaram à conclusão que como melhor hipótese de trabalho, a mente deve ser encarada como um sistema de módulos, com diferentes funções. Segundo essa concepção do formato da mente, nosso cérebro levou milhões de anos para evoluir e para desenvolver suas capacidades. Esta é a hipótese da psicologia evolutiva, teoria formulada pela primeira vez no início da década de 1980, pelo filósofo e cientista cognitivo americano Jerry Fodor. Nos anos 1990 foi desenvolvida pelo antropólogo John Tooby e pela psicóloga Leda Cosmides. Segundo a psicologia evolucionista, a constituição biológica tem uma forte influência em nossa maneira de pensar. A mente é formada por vários sistemas cognitivos especializados, cada qual dedicado a um tipo específico de comportamento. Os autores da psicologia evolutiva comparam a mente a um canivete suíço com várias lâminas, uma para cada função. Por isso, ao nascermos,

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nosso cérebro já está de certa maneira preparado – devido aos sistemas cognitivos especializados – a enfrentar o mundo. Em um artigo escrito em 2010, descrevi as principais características da psicologia evolutiva da seguinte maneira (baseado no texto original dos autores Evolutionary Psychology: a primer): A psicologia evolutiva, segundo Cosmides e Tooby, estuda: 1) Cérebros; 2) Como cérebros processam informações; 3) Como os programas de processamento de informações do cérebro geram comportamento. Se assumirmos que a psicologia é um ramo da biologia, várias ferramentas poderão ser aplicadas à psicologia. Os cinco princípios básicos, utilizados como métodos pela psicologia evolutiva, são: 1º Princípio: O cérebro é um sistema físico, que atua como um computador. Seus circuitos são projetados para gerar comportamento que seja apropriado às nossas circunstâncias ambientais. O cérebro é um sistema físico, cuja operação é governada unicamente pelas leis da química e da física. Sua função é processar informações, ou seja, é um computador feito de componentes à base de carbono. Nesta estrutura, neurônios são conectados uns os outros, de uma maneira altamente organizada e são por sua vez conectados aos circuitos neurais, que percorrem o corpo humano. Receptores sensórios são conectados a neurônios, que transmitem informação ao cérebro. Em suma, os circuitos do cérebro são projetados para gerar movimento, respondendo às informações do ambiente. A função do cérebro, este computador “molhado”, é gerar comportamento que seja apropriado às circunstâncias encontradas pelo restante do corpo no ambiente. 2º Princípio: O sistema neurônico e neural foi projetado pela seleção natural, para resolver problemas que nossos ancestrais enfrentaram durante a história evolutiva de nossa espécie. Nossos circuitos neurais formaram-se para resolver problemas adaptativos, ou seja, como o organismo sobrevive: o que come, de

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quem é presa, com quem se acasala, com quem se associa, como se comunica, e assim por diante. 3º Princípio: A consciência é apenas a ponta do iceberg; a maior parte do que ocorre no cérebro permanece desconhecido. Como resultado, nossa experiência consciente pode nos iludir e fazer-nos pensar que a estrutura da mente é mais simples do que parece. A maior parte dos problemas que experimentamos como fáceis de resolver são difíceis – requerem um circuito neural bastante complexo. A complexidade do funcionamento da mente humana é muito grande. Podemos apresentar grandes generalizações, que, todavia não explicam como a estrutura efetivamente funciona. 4º Princípio: Diferentes circuitos neurais são especializações para resolver diferentes problemas de adaptabilidade. Segundo a psicologia evolutiva, temos todos estes circuitos neurais especializados, porque o mesmo mecanismo raramente é capaz de atender diferentes necessidades de adaptação, como escutar, enxergar, sentir raiva, medo, náusea, etc. Consequentemente, o cérebro deve ser composto de grandes grupos de circuitos, com diferentes subcircuitos, especializados para resolver diferentes desafios. 5º Princípio: Nosso moderno crânio abriga uma mente da Idade da Pedra. A seleção natural levou muito tempo para produzir suas mudanças e construir novos circuitos em nossos cérebros. Quase 99% do tempo de existência de nossa espécie despendemos como caçadores-coletores. Nossos ancestrais viviam em pequenos grupos nômades, com poucas dúzias de indivíduos, obtendo seu alimento diário – quando disponível – caçando animais e colhendo plantas. Desta forma, a chave para entender o funcionamento da mente moderna é compreender que seus circuitos não foram projetados para problemas diários de um cidadão moderno – foram desenvolvidos para problemas diários de nossos ancestrais caçadores-coletores. Isto, todavia, não quer dizer que nossa mente não tenha mecanismos de aprendizado,

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capazes de permitir que criemos novos ambientes e nos adaptemos a eles (ROSE, 2010 – negrito nosso).

Os pressupostos científicos nos quais se baseia a sociologia evolutiva

Fizemos uma breve apresentação, ressaltando os pontos mais importantes das duas principais bases teóricas da sociologia evolutiva: o neodarwinismo e a psicologia evolutiva. Esta última efetivamente é uma conseqüência, em sua teoria e prática, da sociobiologia de Wilson. Cabe ressaltar, que em nossa metodologia de análise da questão, consideramos que é exatamente a psicologia evolutiva, com seus pressupostos teóricos sobre o funcionamento da mente, que trará os argumentos e as fundamentações científicas para uma abordagem da sociologia sob o aspecto do neodarwinismo.

Pesa ainda sobre a psicologia evolutiva a imagem de ser um reducionismo e para alguns um determinismo genético. No entanto, se isto fosse efetivamente assim, as próprias descobertas da psicologia, antropologia, paleontologia, genética, neurologia e demais ciências refutariam esta teoria. É muito provável, como acontece com todas as teorias – principalmente aquelas envolvendo os seres vivos – que muitos pontos daqueles defendidos por Cosmides e Tooby venham a ser revistos; é a prática do próprio processo científico. No entanto, é pouco provável que certos fatos básicos da psicologia evolutiva sejam negados, mesmo no futuro. Dificilmente poderá se provar o contrário de que, assim como todos os outros animais, também nascemos com certos instintos e condicionamentos. Apesar de várias pesquisas estarem em andamento nesta área, será tarefa da psicologia no futuro analisar o grau de influência dos genes

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sobre as emoções, comportamentos e idéias dos indivíduos. Como escreve Steven Pinker: Significa apenas que os sistemas hereditários de aprendizado, sentimento e pensamento, possuem uma organização que, no ambiente onde evoluíram nossos ancestrais, terá conduzido, em média, a maiores chances de sobrevivência e reprodução (PINKER, p. 84, 2004).

Nunca, evidentemente, será possível explicar a complexa realidade da vida – e principalmente da experiência humana – baseado somente em uma teoria genética e algumas outras conseqüências práticas e teóricas. O que como corolário também quer dizer que nem todos os aspectos da vida humana são produtos do gene; a cultura também tem um papel importante. Quanto a esta questão, que os cientistas americanos chamam de dilema nature and nurture (algo como “qualidades inatas versus experiência”), escreve o zoólogo Matt Ridley: Devo me repetir para ser absolutamente claro. Não há nada de factualmente errado em afirmar que os seres humanos são capazes de aprender, ou que podem ser condicionados a associar estímulos, ou a reagir a recompensas e punições ou qualquer outro aspecto da teoria do aprendizado. Esses são fatos verdadeiros e tijolos essenciais na parede que estou construindo. Mas não se segue daí que os seres humanos não têm instintos, e menos ainda que os seres humanos sejam incapazes de aprender se têm instintos. As duas coisas podem ser verdadeiras (RIDLEY, p. 240, 2003). Alguns aspectos da sociologia clássica Nesta parte do trabalho apontaremos algumas características da sociologia clássica e as compararemos com a sociologia evolutiva. O objetivo de nossa argumentação é demonstrar que a sociologia

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evolutiva é uma nova disciplina na sociologia clássica, que não pretende – e nem pode – suplantá-la, mas que tem condições de atuar na pesquisa sociológica com uma teoria básica específica, o neodarwinismo. O principal instrumento que esta nova disciplina utiliza é a psicologia evolutiva, não necessariamente em seu formato atual, já que também esta psicologia está em fase de construção, como toda ciência. Em nossa abordagem, consideramos importantes as seguintes palavras de Lacerda: Vista a partir das especialidades estruturalmente sociológicas, as áreas centrais dominadas por generalistas que zelam pela tradição da teoria sociológica, a teoria evolutiva não pode ajudar na explicação do comportamento social humano. Para sociólogos não faz sentido pensarmos os comportamentos sociais humanos em termos de causas últimas. A teoria da evolução é aceita para explicar nossa anatomia só até o pescoço. Para um sociólogo tradicional, o comportamento social humano é moldado inteiramente pelo processo de socialização, que é um processo exclusivamente sociocultural. O advento da psicologia evolucionista nos anos de 1990 ajudou a popularizar explicações do comportamento social humano que conjugam causas últimas com causas próximas, mas a sociologia continua como a última trincheira contra as explicações neodarwinistas do comportamento humano (LACERDA, pag. 2, 2009 – negrito nosso).

Inicialmente abordaremos alguns tópicos em relação à sociologia clássica, baseados em textos de sociólogos conhecidos. Em relação à sociologia clássica, trataremos: a) Seus pressupostos teóricos básicos; b) Sua metodologia de pesquisa; c) Seus principais objetos de pesquisa.

Com relação aos pressupostos básicos da sociologia observamos que esta ciência não dispõe de um corpo unitário de premissas

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teóricas básicas; uma teoria unificada na qual se acomodam os tijolos teóricos com os quais se constroem as metodologias e seus objetos de pesquisa. Sobre isso, escreve o sociólogo americano Robert K. Merton: A predileção dos sociólogos do século XIX em desenvolver cada um seu “próprio sistema” de sociologia – e que se manifesta ainda hoje em certos setores – significa que os mesmos são elaborados, tipicamente, como sistemas opostos de pensamento, mais do que consolidados num produto cumulativo (MERTON, p. 37, 1970 - negrito nosso).

Esse aspecto dos estudos sociológicos, caracterizando a falta de uma base na qual os autores possam desenvolver seu sistema, dá mais força à interpretação de que a sociologia não é uma ciência unificada. O sociólogo André Luiz Ribeiro de Lacerda, referindo-se ao surgimento da sociobiologia e à reação na área da sociologia, relata que o acontecimento provocou aumento das críticas em relação à natureza do conhecimento sociológico clássico. Se anteriormente Merton já desaprovava a falta de uma linha-mestra na ciência (como vimos no texto acima), a celeuma só acabou aumentando. Nos anos 1970, Gouldner (o sociólogo americano Alvin W.Gouldner, 1920-1980) diagnosticou uma crise na sociologia ocidental. Uma crise teórica e metodológica que se manifestou na fragmentação da disciplina. A recepção hostil que a sociobiologia recebeu no mainstream foi contrabalanceada pela simpatia de alguns sociólogos, que se manifestaram e continuam a se manifestar, intensificando críticas à sociologia e ampliando o diagnóstico de Merton e Gouldner (LACERDA, p.160, 2009 – itálico e negrito nosso).

Merton, por seu lado, não tem ilusões a respeito de uma teoria unificada permeando os estudos sociológicos, já que escreve:

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As páginas seguintes levam a admitir que essa procura por um sistema global de teoria sociológica, no qual as observações sobre todos os aspectos do comportamento, da organização e da mudança social, encontrariam prontamente seu lugar preordenado, têm o mesmo desafio estimulante e as mesmas promessas insignificantes daqueles sistemas filosóficos que procuravam tudo abarcarem e que caíram num merecido esquecimento (MERTON, p. 57, 1970 – negrito nosso).

Merton neste comentário praticamente nega a possibilidade de uma teoria científica básica na sociologia. Na filosofia, Merton parece estar se referindo aos grandes pensadores sistemáticos, como Aristóteles, Tomás de Aquino e, especialmente, Georg W. F. Hegel, cujo sistema tinha a pretensão de encampar e explicar toda a realidade humana. Mas isto já seria esperar demais de uma ciência humana como a sociologia, que se propõe a explicar e não só interpretar, como a filosofia. Merton até faz referência a alguns sociólogos, como Comte e Spencer, que tentaram construir sistemas abrangentes. Outros, como Gumplowicz (1838-1909), Ward (1841-1913) e Giddings (1855-1931), experimentaram elaborar um arcabouço teórico que se destinava “a guiar a investigação de problemas sociológicos específicos, dentro de uma estrutura provisória e evolutiva”, segundo Merton. Na praxis sociológica, entrementes, não existe uma teoria central, como a teoria tectônica das placas na geologia e geografia ou a teoria da oferta e demanda na economia.

Com relação à metodologia na sociologia, ainda nos baseamos em Merton, em seu clássico Sociologia – Teoria e Estrutura: A condição das ciências físicas e biológicas permanece muito diferente das ciências sociais e da sociologia em particular. Se o físico, como tal, não tem necessidade de impregnar-se dos Princípios de Newton, e o biólogo, como tal, não precisa ler e reler

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A origem das espécies de Darwin, o sociólogo, mais como sociólogo do que como historiador da sociologia, tem amplos motivos para estudar os trabalhos de Weber, Durkheim e Simmel e até mesmo para remontar, ocasionalmente, às obras de Hobbes, Rousseau, Condorcet, e Saint Simon (Ibidem, p, 48 – negrito nosso).

Em mais este aspecto a sociologia se aproxima de ciências como a filosofia, a psicologia e a história. O cerne do aprendizado se dá através da leitura dos clássicos da disciplina, descobrindo os modelos de trabalho intelectual estabelecidos pelos fundadores; Comte (1798-1857), Marx (1818-1883), Weber (1864-1920), Durkheim (1858-1917), Tönnies (1855-1936), Simmel (1859-1918), Talcott-Parsors (1902-1979), Mannheim (1893-1947) e muitos outros. Tudo aliado à observação empírica e um ceticismo metodológico, a fim de eliminar os aspectos “incontroláveis” do processo de investigação. Assim, é através dos clássicos, os libri fecondatori (livros fecundadores) segundo o escritor Salvemini, que o pesquisador também poderá identificar um bom problema sociológico a ser estudado. Em outras palavras: seguem-se os mestres, mesmo sabendo que estes tinham opiniões diferentes e às vezes divergentes. Ainda sobre o método sociológico, escreve Merton a título de recomendação para os futuros profissionais: A teoria sociológica se pretende progredir de modo significativo, deve prosseguir nestes planos interconexos, 1) desenvolvendo teorias especiais das quais possam derivar hipóteses que permitam ser investigadas empiricamente e, 2) evolvendo (e não revelando repentinamente) um esquema conceptual progressivamente mais geral, adequado a consolidar grupos de teorias especiais. Concentrar-nos exclusivamente em teorias especiais traz-nos o risco de ficarmos envolvidos em hipóteses específicas que explicam aspectos limitados do comportamento, organizações e

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mudanças sociais, mas que inconsistentes (Ibidem, p. 63).

permanecem

mutuamente

Para finalizar este subcapítulo sobre a sociologia clássica, cabe discutir ainda sobre quais seriam os objetos de estudo da sociologia. Neste caso, existem várias orientações genéricas. Não entraremos em detalhes, apenas mencionaremos algumas interpretações de sociólogos famosos. Para Augusto Comte, considerado tradicionalmente o fundador da ciência sociológica, a sociologia deve-se concentrar no estudo da ordem e do progresso social. Émile Durkheim, considerado o sistematizador da ciência, ensina que o objeto de estudo da sociologia são os fatos sociais, os quais difíceis de serem estudados têm como características a generalidade, a exterioridade e a coercitividade. Como amostras de fatos sociais, Durkheim cita as leis e as religiões. Como exemplo desta metodologia, citamos um trecho de seu As regras do pensamento sociológico: Conseguimos, então, representar-nos, de um modo preciso, o domínio da sociologia. Este só compreende um determinado grupo de fenômenos. Um fato social reconhece-se pelo poder de coerção externa que exerce ou o suscetível de exercer sobre os indivíduos; e a presença desse poder se reconhece, por sua vez, pela existência de uma sanção determinada ou pela resistência que o fato opõe a qualquer iniciativa individual que tende a violála. (DURKHEIM, p. 37-38, 2002).

Outra figura precursora da sociologia, como o alemão Max Weber, afirma sinteticamente que o objeto de estudo da sociologia são as conexões e a significação das manifestações culturais por trás dos fatos sociais. Weber assim define os objetivos da sociologia: A ciência social que nós pretendemos praticar é uma ciência da realidade. Procuramos compreender a realidade da vida que nos rodeia e na qual nos encontramos situados naquilo que tem de

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específico; por um lado, as conexões e significação cultural das suas diversas manifestações na sua configuração atual, e por outro, as causas pelas quais se desenvolveu historicamente assim e não de outro modo (WEBER apud COHN, p. 88, 1989).

Dadas as características da sociologia clássica em relação à teoria, à metodologia e aos objetos de pesquisa expostos acima, concluímos que a sociologia evolutiva, sem querer substituir a sociologia clássica como já escrevemos, tem todas as condições de ocupar seu espaço na pesquisa sociológica brasileira. Os diversos campos de pesquisa da sociologia evolutiva Neste ponto do estudo comentamos alguns temas que já estão sendo pesquisados pela sociologia evolutiva. As questões – que colocamos na forma de tópicos – são resultado de nossas pesquisas e análises, realizadas no decorrer da preparação deste trabalho.

A) A origem da linguagem: este talvez o primeiro grande problema que separa a sociologia clássica da sociologia evolutiva. Para a maior parte dos sociólogos clássicos, a pergunta nem se apresenta. Em Durkheim a questão da linguagem não existe; toda a cultura é classificada como “maneiras de agir e de sentir que apresentam notável propriedade de existir fora das consciências”. O mesmo vale para a maior parte dos outros sociólogos que não se ocuparam do assunto, por colocarem o tema fora da área da sociologia. Com relação à origem da linguagem escreve o biólogo alemão Ulrich Kull, também seguidor da linha clássica: Não é improvável que no caso do homem tenha havido um aumento do tamanho do cérebro e com isso a capacidade de raciocínio e sua relação com os aspectos sociais. A importância das características sociais no homem tem sua origem no forte

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desenvolvimento da linguagem, já que esta tem como função a comunicação (KULL, p. 158, 1979 – tradução nossa).

Esta é a resposta mais comum que encontramos depois de pesquisar em diversas fontes. A origem da linguagem explica a cultura, que explica mais linguagem, e assim por diante: linguagem  cultura  mais linguagem  mais cultura... Na prática o processo evidentemente não é linear, mas dialético. Entretanto, poucos se colocaram a questão se a capacidade de aprendizado da linguagem – e outros aspectos da vida – não poderia ser um fato de adaptação evolutiva, gravado nos genes. Nesse caso, somos os descendentes daqueles indivíduos que em seu grupo tiveram mais capacidade de absorver e processar todo tipo de informação, transmitindo esta capacidade (evidentemente não a informação!) aos seus descendentes. Com a interação natureza inata/experiência (nature/nurture) a cultura espiritual e material das sociedades – influenciando por sua vez também os indivíduos – se desenvolveu cada vez mais.

Os indícios apresentados pela genética já são em tão grande número, que não é mais possível admitir que apenas características físicas, como a propensão a desenvolver tipos de doenças e outros fatores fisiológicos, tenham origens genéticas, sendo apenas nosso cérebro imune a este processo. Não se trata, afirmamos mais uma vez, de um determinismo, mas de tendências mais ou menos acentuadas, de acordo com fatores ambientais. “Não há um único fenômeno nem um único processo no mundo vivo que não seja parcialmente controlado por um programa genético contido no genoma. Não há uma única atividade, em qualquer organismo, que não seja afetada pelo tal programa” (Mayr, 2005).

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B) O desenvolvimento da cultura material e espiritual influenciada por fatores genéticos: a evolução da cultura e da tecnologia já encontra diferentes interpretações na sociologia clássica. No entanto, com o desenvolvimento das ciências, identificamos diversos aspectos, para os quais uma abordagem sociológica clássica não é suficiente. O Jornal da Fundep, sob o título de Freud explica? publicou reportagem sobre pesquisas realizadas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no programa de pós-graduação em Neurociências. Nesta universidade está em andamento um programa sobre Neuroimunologia, coordenado pelo professor Antonio Lúcio Teixeira Junior, do Departamento de Clínica Médica, que demanda conhecimentos das áreas de Psiquiatria, Neurologia, Biologia Celular e Molecular e Imunologia. Segundo o professor, “é possível ilustrar a importância da interdisciplinaridade com pesquisas em Neuroimunologia, que visam elucidar como processos inflamatórios são capazes de influenciar o comportamento humano”. Segundo o professor, há evidências de que infecções viróticas como a gripe, provocam mudanças na conduta das pessoas. No futuro, a equipe pretende desenvolver um modelo capaz de delinear a relação entre os sistemas imunológicos e nervosos, o que pode trazer alternativas para o tratamento de males como a depressão, que possui proporções endêmicas. Desta reportagem podemos concluir que fatores genéticos podem influir no aparecimento de doenças – a depressão muito provavelmente tem origens genéticas – que por sua disseminação têm consequências sociais. Neste caso o sociólogo evolutivo pode pesquisar temas como: a depressão era comum no passado da humanidade, que tipo de reações provocou nos indivíduos e nas sociedades? O que significa tal fato sob o aspecto evolutivo e quais suas consequências atuais?

Ainda acrescentaremos à lista outras quatro questões que, segundo Lacerda (conforme Crippen, 2006) estão sendo estudadas pelos sociólogos evolucionistas:

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1 – Como o comportamento funciona? Quais são as causas próximas? 2 – Qual é a ontogenia (descrição da origem e desenvolvimento de um organismo) do comportamento? Como ele se desenvolve ao longo do curso da história de vida do organismo? 3 – Qual é a função do comportamento? Qual é a sua contribuição para a sobrevivência e o sucesso reprodutivo do organismo? 4 – Como o comportamento evoluiu no contexto do ambiente ancestral do organismo?

Com referência à diferença de abordagem entre a sociologia clássica e a sociologia evolutiva, completamos este capítulo com as palavras do sociólogo zoólogo alemão Rupert Riedel: Afirmava o behaviorismo (comportamentalismo): “O comportamento é conseqüência do meio”; toma um posicionamento oposto a sociobiologia: “Todo comportamento é uma conseqüência da herança genética”. Ali afirmam os de esquerda: “Culpa pelo teu comportamento é somente o meio”. Ali afirmam os de extrema direita: “Culpa pelo teu comportamento é somente tua herança genética”. Ambas as posições querem justificar um mundo sem responsabilidades e por isso desumano. Ainda bem que em suas conseqüências radicais as duas idéias estão erradas (RIEDL, p. 53, 1987). Estudo de caso: a sociologia evolutiva e o estudo da religião Uma área onde houve grande desenvolvimento na utilização do arcabouço teórico do neodarwinismo e da psicologia evolutiva foi na antropologia social, especificamente nos estudos da religião. Resumidamente, a visão neodarwinista diz que assim como qualquer outro órgão ou função do corpo humano, a mente também tem um efeito de seleção natural e de contribuição para a

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evolução – lembrando que nunca utilizamos a palavra evolução no sentido de melhoria, mas apenas de melhor adaptabilidade ao ambiente, aumentando as chances de sobrevivência do indivíduo. Produto da mente, a religião é estudada pela psicologia, antropologia e sociologia evolutivas, vendo nela uma atividade humana que também tem ou tinha a função de contribuir para a melhor sobrevivência da espécie (com foco nos indivíduos). Importante lembrar que estas ciências não se preocupam com a existência ou não de Deus – já que isto é tema para a filosofia e a teologia – mas apenas com os eventuais efeitos da crença na evolução humana.

Com relação ao papel da religião como instrumento da seleção natural, existem duas orientações teóricas básicas. A primeira, afirma que a religião é realmente produto da evolução e confere vantagem adaptiva aos seus praticantes. A outra visão é que a crença é produto secundário da evolução da mente humana, sem que tivesse sido selecionada por proporcionar qualquer vantagem evolutiva. Fato é que a crença em deus ou deuses incorpóreos, crença na vida além-túmulo, crença em orações e ritos para mudar o curso dos eventos humanos, tem sido encontrado em todas as culturas.

Para a maior parte dos estudiosos ainda não está clara a função da religião sob a perspectiva evolucionista. Segundo reportagem no jornal The New York Times, em seu recente livro In Gods we trust: the evolutionary landscape (Nós confiamos nos deuses: a paisagem evolucionária) o antropólogo Scott Atran escreve: “Imagine qualquer outro animal que toma ferimento por saúde, grande por pequeno, rápido por lento ou morto por vivo. É pouco provável que tal espécie possa sobreviver”. Assim, Atran procurou outra explicação: se a crença religiosa não era um processo adaptivo, talvez estivesse associada com outra necessidade que, esta sim, era adaptiva.

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Uma teoria que tenta explicar a origem da crença em seres supranaturais como prática secundária de outro processo adaptivo é a da “detecção do agente”. Segundo ela, nossos antepassados provavelmente tinham que se precaver contra qualquer movimento, sombra, barulho; em suma, qualquer “agente” ameaçador, mesmo que não tivessem visto nada de maneira nítida. Uma sobra na savana poderia, ou não, ser um predador. Assim, fugir à primeira impressão poderia significar a diferença entre continuar vivo ou virar almoço de uma hiena. Na caverna escura, a impressão de ter visto um “agente” – talvez um urso – e se precaver com fogo e lanças, também poderia ser a diferença entre a vida e a morte. Milhares e milhares de anos dessa prática condicionaram nosso cérebro a ver coisas, “agentes” onde não os havia. Experimentos efetuados pelos psicólogos Heider e Simmel nos anos 1940 chegaram a conclusões que permitem comprovar esta teoria. Deste comportamento adaptivo, provavelmente presente em nossos antepassados mais primitivos e pré-humanos, pode ter se desenvolvido a crença em seres não presentes; espíritos, deuses e outros.

Outra hipótese que explicaria a crença no sobrenatural é do psicólogo Justin Barrett, que em 2004 escreveu um artigo intitulado Why would anyone believe in God? (Por que alguém acreditaria em Deus?). Barrett argumenta que um dos motivos para a crença seria a necessidade de encontrar um causador para os fatos que nos afetam, tanto na nossa vida, quanto na natureza. Precisamos precaver-nos da chuva, do calor sufocante, das secas e carestia. Deste tipo de comportamento adaptivo (correr para um abrigo, procurar água ou alimento), fortemente entranhado em nossos genes, derivou a pergunta sobre a origem destes fatos; da fome, da sede, do medo. Com isso, deuses e outras potências seriam fortes candidatos para ocupar esta função na mente dos nossos ancestrais.

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Uma terceira teoria chama-se “teoria da mente” e já é conhecida da psicologia. Em sua formulação básica diz que toda a nossa vida social está baseada no fato de que sabemos o que outros pensam e que podemos antecipar ações e fazer com que acreditem o que queremos. Trata-se de uma constatação de como qualquer ser humano, mesmo o membro de uma tribo primitiva, se comporta socialmente. O passo seguinte é a assunção de que os mortos ou um deus poderiam ter este tipo de mente. Assim, poderíamos “saber” o que esta divindade espera de nós e o que dela poderíamos esperar, de acordo com nosso comportamento.

Depois do aparecimento dos espíritos e deuses através de processos iguais ou semelhantes aos descritos, os humanos passariam a associar estas entidades com outros tipos de comportamento que poderiam conferir vantagens adaptivas ao grupo: paz de espírito, coesão social, transformação de sentimentos sociais – compaixão com os fracos, respeito pelos mais fortes ou mais velhos, espírito de cooperação, sentimento de equidade. Segundo pesquisas recentes, grande parte destes sentimentos já estava presentes entre chimpanzés e bonobos (De Waal, Taylor, Lewis-Williams).

Outra visão científica do surgimento da crença no sobrenatural coloca o problema de forma diferente. Para esta linha de pensamento, representada principalmente pelos antropólogos – entre eles Steven Mithen e David Lewis-Williams – alterações genéticas aleatórias no cérebro, provocaram na mente fenômenos diversos. Mithen, por exemplo, se refere a um “big-bang” da cultura humana, ocorrido há 35-40 mil anos, quando ocorreu um repentino desenvolvimento na arte, religião e linguagem. LewisWilliams segue aproximadamente a mesma linha de pesquisa, afirmando que a religião apareceu antes como sentimento do

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sagrado em certos indivíduos, que depois foi transformado em outras funções sociais (arte, religião, instituições, entre outros).

Sem dúvida, a religião posteriormente teve uma função primordial na organização das primeiras sociedades organizadas agrárias. O antropólogo Joseph Campbell em seu clássico As máscaras de Deus dá à religião o papel de organizadora das primeiras cidadesestado da Suméria, em cerca de 3.200 A.C. Atualmente, os movimentos religiosos assumiram outras funções e têm influência na política e nos grandes movimentos sociais. Apesar de tudo, no entanto, a religião não perde sua atratividade como fenômeno humano antiquíssimo, sempre presente e como matéria de estudo para compreensão da natureza humana.

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A ética protestante e o espírito do capitalismo de Max Weber Max Weber realizou extensos estudos sobre economia, história e as grandes religiões. Em suas analises desenvolveu teorias sobre a sociedade e se interessou particularmente pelas relações entre o capitalismo e o cristianismo. Partindo do pressuposto de que é preciso conhecer a concepção global que anima o ator social e o ambiente no qual este vive, Weber dedicou grande parte de seus estudos à religião. O sociólogo alemão tinha a convicção de que as concepções religiosas têm um papel preponderante na condução econômica de uma sociedade e são assim causa das transformações econômicas. Uma das principais perguntas que se fazia na sociologia do final do século XIX, era em que medida as idéias religiosas das diferentes sociedades influenciaram seu comportamento econômico. Grande parte das pesquisas realizadas por Weber nesta área figura nos três volumes de seu estudo incompleto Sociologia da Religião. O conteúdo básico deste trabalho é uma análise dos aspectos mais importantes da ordem social e econômica da sociedade ocidental, nos diversos períodos históricos. Sociologia da Religião de certo modo é uma resposta de Weber, para solucionar o dilema que em grande parte preocupava a intelectualidade da época: saber qual seria o fator primordial a influenciar as mudanças sociais – e uma das grandes mudanças sociais analisadas à época era a formação do capitalismo. Para Marx, cujas idéias foram bem fundamentadas filosófica e economicamente através da obra O Capital e outros escritos, o fator causador das alterações sociais eram as condições econômicas. Para outros analistas, mudanças sociais eram motivadas pelas condições geográficas, climáticas ou políticas. Pensadores de diversas tendências, como o filósofo

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Dilthey, o teólogo Troeltsch e o sociólogo Sombart, estavam convencidos de que as mudanças sociais eram basicamente motivadas pelas idéias e convicções éticas. Para eles, o capitalismo não poderia ter surgido sem que houvesse uma profunda mudança espiritual, como a Reforma Protestante, ocorrida no final da Idade Média. Todavia, foi somente o estudo de Weber que conseguiu apresentar consistência suficiente para se contrapor à teoria de Marx, detentora dos mais fortes argumentos e seguidores à época. No entanto, diferente de Marx, que com a ajuda do materialismo dialético pretendia explicar a natureza e com o materialismo histórico ambicionava encampar todo o devir histórico, Max Weber não tinha tais pretensões. Escreve Cohn que: “Weber combate resolutamente a idéia de que a Ciência possa engendrar “concepções do mundo” de validade universal, fundadas no sentido objetivo do decurso histórico. Esse sentido objetivo não existe e por isso mesmo não existe uma ciência social livre de pressupostos valorativos.” (Cohn, 1989: p. 21) Em seus estudos, Weber fez uma comparação entre as diversas sociedades ocidentais, local de origem do capitalismo, e as sociedades orientais, onde nenhum sistema econômico parecido se desenvolveu. Depois de exaustivas análises, concluiu que o protestantismo, mais especificamente o calvinismo, foi o fator principal do desenvolvimento do capitalismo. “Weber volta-se então para outras formas de protestantismo diversas do luteranismo, em especial para o calvinismo e outras seitas, cujo elemento básico era o profundo isolamento espiritual do indivíduo em relação a Deus, o que na prática significava a racionalização do mundo e a eliminação do pensamento mágico como meio de salvação. Segundo o calvinismo, somente uma vida guiada pela reflexão contínua poderia obter vitória sobre o estado natural, e foi essa a racionalização que deu à fé reformada uma vertente ascética” (Os Pensadores: 1980, p. XX) E mais à frente, completando este raciocínio:

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“Em síntese, a tese de Weber afirma que a consideração do trabalho (entendido como vocação constante e sistemática) como o mais alto instrumento de ascese e o mais seguro meio de preservação da redenção da fé e do homem deve ter sido a mais poderosa alavanca da expressão dessa concepção de vida constituída pelo espírito do capitalismo” (Ibidem, p. XXI). Todavia, Weber não considera o espírito do capitalismo como consequência direta da Reforma Protestante. Em sua análise, o sociólogo procura muito mais identificar em que medida o protestantismo contribuiu para modelar este sistema econômico. Weber afirma, no entanto, que não existe um só tipo de capitalismo, mas diversos. Em consequência desta constatação, passa a definir um “tipo ideal” de capitalismo, que na sua concepção – claramente explicitada em seu A ética protestante e o espírito do capitalismo – tem, segundo Raymond Aron, características como: “Segundo Max Weber, o capitalismo é definido pela existência de empresas (Betrieb) cujo objetivo é produzir o maior lucro possível, e cujo meio é a organização racional do trabalho e da produção. É a união do desejo de lucro e da disciplina racional que constitui historicamente o traço singular do capitalismo ocidental. Em todas as sociedades conhecidas houve sempre indivíduos ávidos de dinheiro, mas o que é raro, e provavelmente único, é o fato de este desejo tender a satisfazer-se não pela conquista, especulação ou aventura, mas pela disciplina e pela ciência” (Aron: 2008, p. 773774) O livro A ética protestante e o espírito do capitalismo é o mais conhecido de Max Weber e de certo modo enfoca suas principais conclusões sobre a relação entre o surgimento e a evolução do capitalismo e o protestantismo (especificamente o calvinismo). O autor inicia a obra com uma análise de diversos períodos históricos, em diversas sociedades, relacionando a atividade econômica com as crenças religiosas. A partir do capítulo II – "O espírito do capitalismo", começa um extenso e profundo estudo

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relacionando práticas industriais, agrícolas e comerciais com a religião da época (séculos XVI-XVIII), com ênfase no protestantismo e suas diversas seitas, espalhadas por toda a Europa. O ponto alto do livro é o capítulo V – "O ascetismo e o espírito do capitalismo", no qual o autor coloca as suas principais conclusões. Aspecto interessante deste livro, que em uma enquete realizada pelo jornal Folha de São Paulo em 1999 foi eleito por vários intelectuais como um dos mais importantes do século XX, é que tenha somente 132 páginas de texto (na versão integral brasileira). As notas de Weber, por outro lado, ocupam 90 páginas de citações e referências, demonstrando e fundamentando os raciocínios e fatos apresentados no texto. A redação do texto (1905) se deu após o retorno de Max Weber de uma viagem aos Estados Unidos (o texto só foi publicado na forma de livro em 1920, ano da morte de Weber). A publicação, no entanto, não faz uma análise do capitalismo nos Estados Unidos, mas das origens desta forma de organização econômica e social. Inegável, porém, é que o sociólogo foi fortemente influenciado pela dinamicidade e pujança do capitalismo americano, que àquela época já despontava como a mais forte “roda propulsora” do sistema – situação acentuada após a 1ª Guerra Mundial (19141918). Fica a questão sobre o que Weber efetivamente queria dizer com sua principal obra. Segundo Anthony Giddens, para Weber “a Revolução Industrial e a emergência do capitalismo eram provas de uma tendência maior no sentido de racionalização”. Outro aspecto importante na análise de Weber é a associação do capitalismo com a burocracia – e aí temos novamente os tipos ideais –, a única maneira de organizar e gerir eficientemente um grande número de pessoas em um ambiente de crescente complexidade econômica e social. Por fim cabe assinalar outro importante aspecto do pensamento de Weber, cada vez mais patente no horizonte cultural,

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principalmente depois da 2ª Grande Guerra (1939-1945). Trata-se do gradual processo que o pensador chamou de desencantamento, a forma pela qual o pensamento científico (fortemente influenciado pelo capitalismo e pela Revolução Industrial) fez desaparecer as forças “sobrenaturais” (religião, crenças diversas) do passado. As interpretações míticas da realidade foram gradualmente sendo substituídas por uma visão racional.

Bibliografia: Aron, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo. Martins Fontes: 2008, 883 p. Cohn Gabriel. Weber. São Paulo. Editora Ática: 1989, 159 p. Giddens, Anthony. Sociologia. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian: 2010, 725 p. Weber, Max. Os Pensadores. São Paulo. Abril Cultural: 1980, 268 p. Weber, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo. Editora Martin Claret: 2002, 223 p.

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A indústria cultural O conceito de indústria cultural foi elaborado por dois representantes da Escola de Frankfurt: Theodor Adorno e Max Horkheimer. O termo originalmente empregado pelos filósofos foi “cultura de massa” (Massenkultur). Para evitar interpretações erradas – como aquela de considerar “cultura de massa” o conhecimento legitimamente elaborado pelo povo, pelos não-intelectuais – o conceito foi abandonado por seus criadores, firmando-se Kulturindustrie, indústria cultural. A indústria cultural surgiu em uma fase avançada do capitalismo, entre o final do século XIX e inicio do século XX, tendo estreita relação com o aparecimento dos meios de comunicação de massa e a produção de mercadorias em grande diversidade e quantidade: a produção em massa. Este desenvolvimento se deu inicialmente nos Estados Unidos, que neste período despontava como a sociedade capitalista onde, devido ao forte desenvolvimento econômico, ocorriam as maiores inovações na maneira de produzir e vender mercadorias. Foram os americanos que, ainda antes da 1ª Grande Guerra, introduziram a linha de produção, que padronizava e barateava mercadorias. Ao mesmo tempo, surgiram novas tecnologias midiáticas, como a fotografia, o linótipo (que revolucionou as técnicas de composição das páginas de jornais), o rádio e o cinema. Existindo de um lado os veículos de comunicação em massa e de outro a produção de grande variedade de produtos, aparece então a propaganda. Esta atividade, surgida ainda na primeira década do século XX, utiliza-se dos diversos tipos de mídia para transmitir mensagens comerciais ao grande público. Mais tarde, os meios de comunicação em massa também serão utilizados para transmitir mensagens culturais e ideológicas. Este é o contexto social no qual Adorno e Horkheimer, através de suas análises, desenvolvem o conceito de “indústria cultural”. Em sua acepção inicial esta classificação se aplica às produções ditas

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culturais – objetos de arte, arquitetura, cinema, música, literatura, etc. – mas não à simples propaganda comercial. Adorno e Horkheimer iniciam sua análise da sociedade capitalista no início da década de 1930, pouco antes do Partido Nacional-Socialista tomar o poder. Estudavam a sociedade alemã, mas também tinham os olhos voltados para o que acontecia nos Estados Unidos, já naquela época o principal pólo de desenvolvimento e irradiação do capitalismo industrial moderno, como se pode depreender de vários exemplos apresentados no livro Dialética do Esclarecimento. De suas pesquisas, Adorno e Horkheimer concluem que na indústria cultural a arte se transforma também em mercadoria, tornando-se sujeita às leis da oferta e procura. Neste processo, a verdadeira arte erudita e popular desaparece com a indústria cultural, pois esta não permite a participação crítica de seus espectadores. Desta forma, encoraja-se uma atitude acrítica, já que se oferece ao público apenas o que ele quer (ou pensa querer); o que faz com que este passe a ter uma atitude passiva em relação às produções culturais apresentadas. Escrevem Adorno e Horkheimer: “Sob o poder do monopólio, toda cultura de massa é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem.” (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 100) Este o aspecto “mercantilista” da indústria cultural, onde o público é levado a gostar daquilo que, de uma maneira ou de outra, já vinha gostando – mais do mesmo, como dizem os críticos. “Não somente os tipos das canções de sucesso, os astros, as novelas ressurgem ciclicamente como invariantes fixos, mas o conteúdo do espetáculo é ele próprio derivado deles e só varia na aparência” (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 103). Nesta situação o público almeja aquilo que os “donos da indústria cultural” querem vender; aquilo que estes sabem que será consumido em grande quantidade: estilos de roupa, toda sorte de entretenimento, objetos de consumo em geral. Uma das

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principais atribuições da indústria cultural é incentivar o consumo, não a fruição estética, a análise ou o raciocínio; incentivar o consumo do produto e não a incorporação do conhecimento. Para Adorno e Horkheimer, a indústria cultural surgiu junto e também através do cinema, que já em seu início ditava padrões de consumo e comportamento (moda, costumes, cultura). Alguns autores, como o filósofo italiano Nicola Abbagnano, afirmam que a indústria cultural é especificamente a manipulação das consciências, através dos meios de comunicação. Com isso, diminuem-se todas as atitudes críticas, facilitando assim a reprodução ideológica do sistema. Em relação a isso lemos em Adorno e Horkheimer: “Mas a afinidade original entre negócios e diversão mostra-se em seu próprio sentido: a apologia da sociedade. Divertir-se significa estar de acordo. Isso só é possível se isso se isola do processo social em seu todo, se idiotiza e abandona desde o início a pretensão inescapável de toda obra, mesmo da mais insignificante, de refletir em sua limitação o todo. Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. A impotência é sua própria base. É na verdade uma fuga, mas não, como afirma, uma fuga da realidade ruim, mas da última idéia de resistência que essa realidade ainda deixa subsistir. A liberação prometida pela diversão é a liberação do pensamento como negação.” (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 119) Este é o aspecto ideológico da indústria cultural. Foi, por exemplo, a maneira como a cultura de massa produzida pelos Estados Unidos – utilizando-se das mídias como a imprensa, o cinema, o rádio, a TV e, mais recentemente, a internet – conseguiu ao mesmo tempo divulgar toda a ideologia implícita no american way of living, o modo americano de viver. O individualismo, a meritocracia, o antiintelectualismo, a valorização da livre-iniciativa, a praticidade, o anticomunismo, entre outros, foram “constructos” culturais e ideológicos incorporados à indústria cultural americana e espalhados por todo mundo, principalmente depois da Segunda Grande Guerra como contraponto à propaganda comunista soviética. Assim, os Estados Unidos desenvolveram uma boa união entre negócios e

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ideologia (que por sua vez tem interesse em manter e expandir o negócio). A indústria cultural desenvolveu-se cada vez mais com o próprio capitalismo, principalmente ao longo dos últimos sessenta anos. Utilizando-se das tecnologias mais sofisticadas – que muitas vezes são seu subproduto – a indústria cultural está atuante, faturando alto e, por isso mesmo, trabalhando para manter o status quo. Não é preciso dizer quais grupos estão por trás desta engrenagem, levando o homem e o planeta até este estado: “A indústria cultural realizou maldosamente o homem como ser genérico. Cada um é tão-somente aquilo mediante o que pode substituir todos os outros: ele é fungível, um mero exemplar. Ele próprio, enquanto indivíduo é absolutamente substituível, o puro nada, e é isso mesmo que ele vem a perceber quando perde com o tempo a semelhança.” (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 120)

Bibliografia Adorno, Theodor W. & Horkheimer, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro. Jorge Zahar editor. 2006: 223 p. Abbagnano, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo. Martins Fontes: 2007, 1210 p. Industria Cultural em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ind%C3%BAstria_cultural> acesso em 24/01/12

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A psicologia evolutiva Uma das grandes dificuldades apontada por diversos autores na psicologia é a construção de uma história desta ciência. A maneira mais simples consiste em descrevê-la em uma seqüência cronologicamente ordenada – porém não logicamente correta – no que se refere à análise dos problemas e tentativas de soluções. A perspectiva mais coerente focaria as questões isoladas, seguida das análises lógica e cronologicamente ordenadas das soluções que lhe foram propostas.

Usualmente, divide-se a história da psicologia em dois períodos: o filosófico-especulativo e o científico. A primeira fase tem suas origens no pensamento grego, e se estende até o final do século XIX e início do século XX. Neste primeiro período incluem-se todas as contribuições – notadamente no campo da filosofia – desde Platão e Aristóteles, passando por Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Descartes, Locke, Hume e outros. Ainda na segunda metade do século XIX surgem os primeiros avanços no estudo do sistema nervoso e ocorre a introdução de práticas experimentais, com as desenvolvidas pelo pesquisador alemão Wilhelm Wundt (1832-1920). É por esta época que se produzem os primeiros trabalhos de envergadura de pesquisa experimental sobre aprendizagem, com Ebbinghaus, no domínio da memória e Thorndike, em torno da formação de hábitos, com a utilização de animais. A este último deve-se a transposição das idéias de Darwin para o campo da aprendizagem.

A corrente psicológica inaugurada por Thorndike foi bastante influenciada pelo filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910), também o mais importante representante da corrente filosófica do pragmatismo. Esta linha de pensamento dá grande

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valor à interação da teoria com a práxis. Segundo o próprio James, “teorias não são mais respostas para charadas, respostas com as quais podemos nos satisfazer; teorias transformam-se, sobretudo, em ferramentas” (James, 1994, pág. 23 e 24 – tradução nossa). William James, além de grande filósofo, é considerado por muitos o pai da psicologia americana. Em sua obra Principles of Psychology (Princípios de Psicologia), afirma que a mente não poderia aprender a menos que tivesse rudimentos de conhecimento inato. O psicólogo estava convencido de que os seres humanos dispunham de tendências inatas, que não seriam provenientes da experiência, mas eram herdadas, tendo se originado através do processo da seleção natural. Na mesma obra, James afirmava que os seres humanos tinham mais instintos do que outros animais, e não menos.

As idéias de William James, que contribuíram para a criação da psicologia funcionalista e influenciaram outros autores, foram aos poucos perdendo o interesse do mundo acadêmico. O funcionalismo foi eclipsado por outras escolas da psicologia, como a escola behaviorista ou comportamentalista. Todavia, o princípio do funcionalismo ressurgiu parcialmente em 1958, quando o linguista Noam Chomsky retomou a idéia dos “rudimentos de conceitos inatos”, defendido por James anteriormente, e que Chomsky chamava agora de “gramática profunda”. Nesta teoria, o linguista afirma que era impossível que uma criança – dado o pouco tempo de vida e a complexidade do arranjo – aprendesse as regras inatas na linguagem, como defendido pelo behaviorismo. Chomsky apresentou exemplos onde criticava a posição comportamentalista e tentava provar que a mente da criança deveria ter as regras inatas, através das quais o vocabulário da linguagem é fixado.

O desenvolvimento conjunto de várias ciências como a biologia, a genética, a neurologia, a antropologia, a paleontologia e a

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psicologia, permitiu que nos últimos trinta anos se reunissem um número cada vez maior de informações, que propiciaram o ressurgimento do funcionalismo, agora em novas roupagens. O primeiro indício do reaparecimento desta corrente de pensamento psicológico foi a publicação do livro Sociobiology: The New Synthesis, do biólogo Edward O. Wilson, que causou grande impacto no mundo acadêmico quando surgiu, em 1975. A obra, interpretada à época tendenciosamente por vários autores e professores de universidades americanas, acabou gerando forte oposição e foi acusada de defender o darwinismo social. O psicólogo americano Stephen Pinker, referindo-se a Wilson em seu livro Tábula Rasa, defende-o das acusações e resume sua proposta da seguinte maneira: “(Wilson) analisa princípios sobre evolução da comunicação, altruísmo, agressão, sexo e criação de prole e os aplica aos principais grupos taxonômicos dos animais sociais como insetos, peixes e aves. O capítulo 27 faz o mesmo para o Homo Sapiens, tratando nossa espécie como mais um ramo do reino animal. Inclui um exame da literatura sobre os universais e variação de sociedades, uma discussão sobre linguagem e os seus efeitos sobre a cultura e a hipótese de que alguns universais (incluindo o senso moral) podem provir de uma natureza humana moldada pela seleção natural. Wilson manifestou a esperança de que sua idéia pudesse ligar a biologia às ciências sociais e à filosofia...” (Steven Pinker, 2004, pág.157).

A partir da década de 1990, dois acadêmicos de Harvard, John Tooby e Leda Cosmides retomam muitos pontos defendidos pela sociobiologia e criam a psicologia evolutiva. O zoólogo inglês Matt Ridley define esta corrente psicológica da seguinte maneira: “Foi uma tentativa de fundir o melhor do nativismo (funcionalismo) de Chomsky – a idéia de que a mente não pode aprender a não ser que tenha rudimentos de conhecimento inato – com o melhor do selecionismo da sociobiologia: a forma de compreender uma

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parte da mente é entender o que a seleção natural planejou que ela fizesse.” (Ridley, 2003, pág. 308).

Para se compreender a evolução da corrente psicológica do funcionalismo, desde os tempos de William James até a psicologia evolutiva, é necessário entender a evolução do darwinismo ao longo dos últimos 150 anos – já que a teoria de Darwin influenciou bastante esta psicologia. Segundo um dos maiores biólogos do século XX, Ernst Mayr, o darwinismo teve seis fases; cada uma agregando mais dados e aprofundando as bases da teoria da evolução, cobrindo o período de 1859 (ano da publicação de A origem das espécies) até por volta do ano 2000. Eliminando falsas interpretações como o lamarckismo (para o qual a evolução se dá por transmissão de características adquiridas); o saltacionismo (no qual a evolução acontece “aos saltos”, por mudanças abruptas); a ortogênese (segundo a qual a evolução teria uma meta, sendo teleológica); e incorporando a genética e a biologia molecular; a teoria da evolução é hoje tão bem comprovada quanto às teorias da física, como a Teoria da Gravitação Universal (Newton) e a Teoria da Relatividade (Einstein).

Segundo escrevem Leda Cosmides e John Tooby em seu estudo Evolutionary Psychology: A Primer (Psicologia evolutiva: um guia) “o objetivo de estudo da psicologia evolutiva é descobrir e entender o projeto da mente humana. A psicologia evolutiva é uma abordagem da psicologia, na qual conhecimentos e princípios da biologia evolucionista são colocados em uso na pesquisa da estrutura da mente humana.” (Cosmides, Tooby, 2007, pág. 1 – tradução nossa).

Baseada na teoria da evolução, a psicologia evolutiva encara a mente como um conjunto de “máquinas de processamento de

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informações”, projetadas pela seleção natural, para resolver problemas de adaptação enfrentados por nossos ancestrais caçadores-coletores. Retomando a afirmação já feita por William James, no final do século XIX, Cosmides e Tooby dizem que tendemos a considerar o ser humano como uma espécie que transcendeu ou sublimou (para usar uma expressão cara a Sigmund Freud) seus instintos, substituindo-os em grande parte pela racionalidade. Todavia, se observarmos todas as coisas que automaticamente fazemos com nosso cérebro, como olhar, falar, gostar de alguém, devolver um favor, ter medo de doenças, apaixonar-se, iniciar um ataque, deslocar-se na paisagem, e uma gama de outras coisas, percebemos que estas ações só são possíveis porque há um vasto e heterogêneo sistema computacional em nosso cérebro, ajudando e regulando estas atividades. Este sistema trabalha tão bem que nem percebemos que existe.

Entre filósofos e cientistas, antes e depois de Darwin, sempre prevaleceu a idéia de que a mente humana quando nascemos, era uma folha em branco, uma “tabula rasa”, virtualmente sem nenhum conteúdo. Tomás de Aquino já escrevia que “não há nada no intelecto que não estivesse antes nos sentidos”, e nisso foi seguido por John Locke (1632-1704), o pai do empirismo inglês, que entre outros influenciou a filosofia de Rousseau (1712-1778 “o homem é bom por natureza, a sociedade é que o corrompe”) e todo o pensamento marxista, além do behaviorismo. De acordo com esta corrente de pensamento, todo conteúdo da mente humana tem origem “externa”; a arquitetura mental consiste de mecanismos independentes, classificados sob nomes como “aprendizado”, “indução”, “inteligência”, “imitação”, “racionalidade” ou “cultura”. Tais mecanismos mentais não possuem estruturas de processamento, o que implica que tudo o que pensamos e sentimos vem do exterior e do mundo social.

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A psicologia evolutiva, por outro lado, afirma que toda a mente humana tem uma estrutura de circuitos especializados, propiciando estruturas universais de sentido, que nos permitem entender as ações e as intenções dos outros. Steven Mithen em seu livro A pré-história da mente, descreve a psicologia evolutiva da seguinte maneira: “... Cosmides e Tooby tratam a mente como tratamos qualquer órgão do corpo – é um mecanismo evoluído, construído e ajustado em resposta às pressões seletivas enfrentadas por nossa espécie durante a evolução.” (...) “como conseqüência disso, Cosmides e Tooby argumentam que a mente é um canivete suíço com um grande número de lâminas altamente especializadas”. (Steven Mithen, 2002, pág. 68).

A psicologia evolutiva, segundo Cosmides e Tooby, estuda: 1) Cérebros; 2) Como cérebros processam informações; e 3) Como os programas de processamento de informações do cérebro geram comportamento. Se assumirmos que a psicologia é um ramo da biologia, várias ferramentas podem ser aplicadas à psicologia. Os cinco princípios básicos, utilizados como métodos pela psicologia evolutiva, são: 1º Princípio: O cérebro é um sistema físico, que atua como um computador. Seus circuitos (neurônios, axônios, sinapses, etc.) são projetados para gerar comportamento que seja apropriado às nossas circunstâncias ambientais. O cérebro é um sistema físico, cuja operação é governada unicamente pelas leis da química e da física. Sua função é processar informações, ou seja, é um computador feito de componentes à base de carbono. Nesta estrutura, neurônios são conectados uns os outros, de uma maneira altamente organizada e são por sua vez conectados aos circuitos neurais, que percorrem o corpo humano. Receptores sensórios são conectados a neurônios, que transmitem informação ao cérebro. Em suma, os circuitos do cérebro são projetados para gerar movimento, respondendo às informações do ambiente. A função do cérebro, este computador “molhado”, é gerar

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comportamento que seja apropriado às encontradas pelo restante do corpo no ambiente.

circunstâncias

2º Princípio: O sistema neurônico e neural foi projetado pela seleção natural, para resolver problemas que nossos ancestrais enfrentaram durante a história evolutiva de nossa espécie. Nossos circuitos neurais formaram-se para resolver problemas adaptativos, ou seja, como o organismo sobrevive: o que come, de quem é presa, com quem se acasala, com quem se associa, como se comunica, e assim por diante. 3º Princípio: A consciência é apenas a ponta do iceberg; a maior parte do que ocorre no cérebro permanece desconhecida. Como resultado, nossa experiência consciente pode nos iludir e fazernos pensar que a estrutura da mente é mais simples do que parece. A maior parte dos problemas que experimentamos como fáceis de resolver são difíceis – requerem um circuito neural bastante complexo. A complexidade do funcionamento da mente humana é muito grande. Podemos apresentar grandes generalizações que, todavia, não explicam como a estrutura efetivamente funciona. 4º Princípio: Diferentes circuitos neurais são especializações para resolverem diferentes problemas de adaptabilidade. Segundo a psicologia evolutiva, temos todos estes circuitos neurais especializados, porque o mesmo mecanismo raramente é capaz de atender diferentes necessidades de adaptação; como escutar, enxergar, sentir raiva, medo, náusea, etc. Conseqüentemente, o cérebro deve ser composto de grandes grupos de circuitos, com diferentes subcircuitos, especializados para resolver diferentes desafios. 5º Princípio: Nosso moderno crânio abriga uma mente da Idade da Pedra. A seleção natural levou muito tempo para produzir suas mudanças e construir novos circuitos em nossos cérebros. Quase 99% do tempo de existência de nossa espécie despendemos como caçadores-coletores. Nossos ancestrais viviam em pequenos grupos nômades, com poucas dúzias de indivíduos,

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obtendo seu alimento diário – quando disponível – caçando animais e colhendo plantas. Desta forma, a chave para entender o funcionamento da mente moderna é compreender que seus circuitos não foram projetados para problemas diários de um cidadão moderno; foram desenvolvidos para problemas diários de nossos ancestrais caçadores-coletores. Isto, todavia, não quer dizer que nossa mente não tenha mecanismos de aprendizado, capazes de permitir que criemos novos ambientes e nos adaptemos a eles.

Estes são os principais aspectos da psicologia evolutiva, ramo da psicologia – ou da biologia – que vem despertando a atenção de cientistas e filósofos envolvidos com a questão do neodarwinismo e do estudo da mente. As implicações filosóficas desta teoria ainda não foram avaliadas completamente, mas deverão ter grande ressonância nos próximos anos, haja vista o enorme impacto provocado pela teoria da evolução e pela teoria da psicanálise na filosofia.

Para terminar esta exposição, citamos as palavras do neurobiólogo Wolf Singer que, referindo-se ao estudo da evolução do cérebro e de seu impacto, afirma: “Finalmente precisamos reconhecer que estamos enredados em sistemas cujo desenvolvimento não podemos prognosticar, nem efetivamente dirigir. Para complicar ainda mais, junte-se a isto o fato de que não conseguimos imaginar a dinâmica de sistemas não-lineares mais complexos. Já que processos não-lineares dificilmente são previsíveis ou direcionáveis, não surgiu durante o processo evolutivo necessidade de desenvolver sistemas cognitivos que pudessem “imaginar” acontecimentos complexos, não-lineares." (Wolf Singer, 2003, pág. 301 – tradução nossa).

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Bibliografia Bastos, Cleverson Leite. Mente, Cogniçao e a Teoria da Mente Ornamental. Revista de Filosofia. Curitiba. v.18 n. 21, p.111-123, julho/dez 2005 Becker, Mehr. e outros. Gene, Meme und Gehirne (Genes, Memes e Cérebros). Suhrkamp Verlag: Frankfurt am Main, 2003 Cosmides, Leda, Tooby, John, Evolutionary Psychology: A Primer (Psicologia Evolutiva: Uma manual – sem tradução), Center for Evolutionary Psychology, disponível em <http://www.psych.ucsb.edu/research/cep/primer.html> acesso em 06/09/2007 Enciclopédia Mirador. Vol 17, verbete Psicologia. Editora Encyclopaedia Britannica: São Paulo, 1982 Hogan, John. A mente desconhecida. Editora Schwarcz. São Paulo: 2002 James, William. Was ist Pragmatismus? (O que é pragmatismo?). Beltz Athenäum Verlag: Weinheim, 1994 Mayr, Ernst. Biologia, Ciência Única. Editora Companhia da Letras: São Paulo, 2005 Mithen, Steven. A pré-história da mente. Fundação Editora da Unesp: São Paulo, 2002 Pinker, Steven. Tábula Rasa. Editora Companhia da Letras: São Paulo, 2004 Ridley, Matt, O que nos faz humanos, Editora Record: São Paulo, 2003 Ruse, Michael. Levando Darwin a sério. Editora Itatiaia Limitada: Belo Horizonte, 1995

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A sociedade medieval e o novo modelo renascentista Para estabelecer o contraponto entre os dois tipos de sociedade, a medieval e a pós-renascentista, é necessário inicialmente apresentar as características de cada sociedade. Comecemos pela sociedade medieval. Sob o aspecto econômico a sociedade medieval é baseada na exploração da terra, na atividade agrícola. As terras pertencem em sua maior parte à Igreja e à nobreza. A posse da terra se dá através da vassalagem, relação na qual um nobre se torna vassalo, servidor do rei, recebendo certa extensão de terra em troca de apoio militar. Esta prática tem suas origens na sociedade germânica, na qual os chefes tribais recebiam lotes de terra de seus reis ou senhores, como contrapartida por apoio prestado em batalhas. Na sociedade medieval, a terra que o vassalo (nobre) recebia do suserano (um rei ou outro nobre mais poderoso), permanecia na posse da família por tempo indeterminado; não havia compra e venda de terra. A Igreja, por sua vez, também detinha a posse de grandes extensões de terra na Europa medieval. Alguns historiadores registram que em determinados períodos - principalmente a partir do início do século XI quando o celibato foi oficializado - a Igreja chegou a ser a maior proprietária de terras no continente. O que acontecia é que os nobres, ao entrarem na vida religiosa, não tinham descendentes a quem deixar suas propriedades e assim as entregavam à ordem religiosa na qual haviam ingressado. Todo o sistema de produção medieval se baseava no trabalho do servo, que vivia na propriedade do nobre e que não podia deixar. Este representava a mais baixa classe na sociedade medieval e pertencia à propriedade agrícola assim como os celeiros, os moinhos e as outras benfeitorias. Nascia, vivia e morria na terra, na gleba - por isso a denominação de "servo de gleba". Aos servos cabia plantar, cuidar dos animais e manter a infraestrutura da propriedade agrícola, geralmente sob a coordenação de um capataz – este também um servo – que respondia diretamente ao nobre ou ao seu pressuposto. De seu trabalho, o servo tinha direito a uma parte menor, já que o

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volume maior era entregue ao senhor, que utilizava os produtos para seu consumo ao longo do ano. Não havia comércio de produtos agrícolas (pelo menos não em volumes consideráveis) e todos os instrumentos utilizados na propriedade agrícola - ferramentas, utensílios domésticos, móveis – geralmente eram manufaturados pelos servos, que faziam às vezes de carpinteiros, marceneiros, ferreiros e artesãos. Mais tarde, no final da Idade Média, esta habilidade adquirida pelo servo, transmitida de pai para filho, servirá para que este se possa estabelecer como artesão nas cidades, longe do domínio do senhor feudal. Outra característica da sociedade medieval era sua estrutura política. A maior parte da Europa medieval era dividida em propriedades de diversos tamanhos - principados, condados, ducados, etc., que pertenciam aos nobres e suas famílias. Estes, em suas terras, tinham uma autoridade quase que ilimitada; criavam suas próprias leis, taxas, impostos e outras obrigações. Tinham poder de polícia e de juiz, já que à época não havia uma organização social semelhante ao estado moderno. Os nobres respondiam a seus suseranos - que por sua vez eram também nobres ocupando um nível mais alto dentro da hierarquia da sociedade medieval - ou ao rei. Para com este o vassalo tinha basicamente uma e principal obrigação: apoio militar. Este um dos motivos pelos quais tantos nobres participaram e morreram nas Cruzadas (1096-1272); de cima a baixo a hierarquia pôde ser convocada pela Igreja para lutar contra os muçulmanos, que haviam tomado a Terra Santa e Jerusalém. Esta estrutura econômica e social perdurou praticamente por mil anos no Velho Continente. Todavia, há que se levar em conta que a sociedade feudal não se estabeleceu em toda a Europa no mesmo período. Na França e na Itália, por exemplo, o feudalismo teve início logo após a queda do império romano no século V. Por outro lado, em vastas regiões da Germânia (grande parte da atual Alemanha), Polônia e Rússia, o feudalismo como estrutura político-econômica só se estabeleceu mais ou menos a partir do século X, sendo que algumas de suas estruturas sociais (o servo ligado à propriedade) só foram abolidas na Rússia durante a segunda metade do século XIX.

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No aspecto cultural as mudanças durante a Idade Média se dão com bastante vagar. O horizonte cultural era completamente dominado pela igreja católica - apesar das recorrentes heresias. A elite cultural pertencia quase inteiramente ao corpo eclesiástico, já que por longos períodos era a Igreja que em seus mosteiros manteve a cultura, copiando e comentando textos dos autores clássicos. Inserida na estrutura doutrinária da Igreja estava toda a ideologia do catolicismo; sua cultura, ciência e filosofia; em suma toda a Weltanschauung (visão de mundo) cristã e católica. Depois da criação da Inquisição, no século XIII, a possibilidade de desenvolver uma crítica ao arcabouço religioso-filosófico-cultural elaborado e mantido pela hierarquia religiosa tornava-se mais difícil ainda. Tanto que até intelectuais pertencentes às ordens religiosas - como Roger Bacon (1214-1294) ou Meister (mestre) Eckart (1260-1327) - foram perseguidos e encarcerados pela repressão religiosa. Analisando a visão medieval da ciência, W.H. Werkmeister, em seu livro A Philosophy of Science, escreve: “No que concerne à ciência e à filosofia, a síntese medieval culminou no todo-abrangente sistema de Tomás de Aquino. O racionalismo escolástico foi aqui fundido ao misticismo cristão, e o conhecimento dos gregos foi soldado aos ensinamentos da Igreja, formando uma visão única do universo. Fins últimos eram vistos por trás de todo processo da natureza. Uma inteligência divina permeava o todo. E a vontade de Deus – mesmo incompreensível em detalhes – dava racionalidade e sentido a todas as coisas. O fato de que uma criatura de Deus pudesse existir à parte do curso da Providência, de que uma única pedra pudesse cair sem o conhecimento e o planejamento do Construtor do Céu e da Terra, era um pensamento intolerável.” [...] ”esta visão tomística do mundo era sublime em sua concepção. Foi pelo menos, como exaltado, comparável à melhor criação do gênio grego. Mas, infelizmente, era amarrada pelas falsas concepções das leis naturais feitas por Aristóteles e o esquema geocêntrico de Ptolomeu.” (Werkmeister, 1940, p. 3 - tradução nossa). O universo cultural medieval era estático. Explicado, justificado e mantido pela Igreja e pela nobreza, era bastante avesso às mudanças, inclusive as tecnológicas. Aliás, muitos equipamentos e máquinas desenvolvidos ainda na época do helenismo (século IV

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A.C.), utilizando-se do uso do vapor e de elaborados conceitos de mecânica, foram esquecidos durante parte da Antiguidade e todo o período medieval, sendo "redescobertos" (ou inventados novamente) no início da Revolução Industrial, no final do século XVIII. No aspecto religioso a Idade Média sempre foi lembrada – muitas vezes de maneira pejorativa – por ter sido um período eminentemente religioso, dominado pelo catolicismo. Hoje, muitos historiadores colocam em dúvida esta suposta hegemonia da Igreja. Sobre isso, escreve Georges Minois: “Algumas dezenas de milhares de pessoas que vivem ao longo de anos fora do enquadramento religioso provam que é preciso seriamente rever a imagem de uma Idade Média unanimemente cristã e crente. Jean Delumeau demonstrou já amplamente a parte da lenda que se pretende com a expressão “Idade Média cristã”: esta religião cheia de superstições, magia, astrologia, restos de crenças pagãs, que tem realmente a ver com a “mensagem evangélica”?” (Minois, 1998, p. 117). Estas são algumas características - econômicas, políticas, culturais e sociais - da sociedade medieval, principalmente em seu primeiro período, a Alta Idade Média (século V ao X). Toda a visão reducionista, procurando retratar os longos mil anos da Idade Média como um período no qual pouca coisa de interessante ocorreu é tendenciosa e limitante. A visão da Idade Média como "idade das trevas" é produto da ignorância de muitos autores do período iluminista, por oposição à Igreja. Outra simplificação é encarar o longo período medieval como uma coisa única, do começo ao fim. É necessário considerar que a partir do século XI diversas modificações na sociedade medieval provocaram uma lenta mudança, que acabaria resultando no Renascimento, com todas as suas características. O novo modelo de sociedade que surge com o Renascimento ocorre a partir de fatores econômicos, culturais e sociais gestados já na Baixa Idade Média, desde o século XI. Dentre os principais fatores que caracterizam esta mudança, estão: - Inovações tecnológicas como o desenvolvimento de ferramentas; como a charrua, melhorias em carroças e carruagens, arreios para

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animais de carga e a utilização de moinhos d'água (caso típico de "redescoberta", já que os moinhos eram conhecidos pelos romanos). Neste período também foi inventado o relógio mecânico, que mudou radicalmente a concepção do tempo; - A volta do comércio entre as cidades e regiões, que estava praticamente estagnado durante toda a Alta Idade Média. O aumento das relações comerciais propiciou o crescimento das cidades, a construção de estradas e pontes. O aumento da população forçou as novas gerações – principalmente aquelas que ocupava o território onde hoje se localiza a Alemanha – a expandir a fronteira agrícola para o leste europeu, região antes pouco povoada. Ao mesmo tempo, as trocas comerciais fazem com que surja uma nova figura: o burguês. Este é originariamente um comerciante, que vai acumulando cada vez mais capital diversificando seus negócios e seus investimentos. No séculos XI ao XIII a atividade comercial ainda era limitada pela Igreja. A usura (cobrança de juros) era proibida e a venda só poderia ter lucros limitados. A partir do século XIV, no entanto, a prática estava de tal maneira disseminada (caso das cidades italianas de Gênova, Veneza e Florença e a Liga Hanseática no norte da Europa) que foi sendo aos pouco tolerada por Roma. Com isso, muitos burgueses acabam tornando-se banqueiros, como ocorreu na Itália do século XIV e XV; outros tornam-se produtores de manufaturados, contratando centenas ou milhares de artesãos, estabelecidos em oficinas. - No aspecto político ocorre o gradual enfraquecimento do sistema feudal. Os camponeses fogem para as cidades, abandonando as terras às quais estavam ligados há gerações, para tornarem-se artesãos nas cidades. Muitos destes, respirando o ar da liberdade (“Stadtluft macht frei” – “O ar da cidade nos torna livres”, diz o antigo provérbio medieval alemão) tornam-se também comerciantes e empresários. A nobreza, por outro lado, sem ter quem produza para ela (tarefa desempenhada até há pouco pelo servo), perde poder econômico e político. O rei, passa a contar com o suporte político e financeiro da burguesia, conseguindo unificar seu reino – como ocorre com Portugal, Espanha, França e Inglaterra. A burguesia, em contrapartida, receberá todas as benesses do rei, deixando a nobreza em um segundo plano (foram os ricos burgueses e banqueiros, por exemplo, que financiaram as Grande Navegações).

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- No aspecto cultural, inicia-se no século XIII um movimento chamado de humanismo. Este caracteriza-se por uma valorização do homem, da cultura clássica (grega e romana) e por uma visão otimista do universo – diferentemente da visão de mundo no período medieval, marcada por um fatalismo que colocava Deus como centro do mundo. O autor que, segundo a tradição cultural, escreveu pela primeira vez um texto com este novo enfoque da vida, foi o italiano Francesco Petrarca (1304-1374), por isso considerado o "pai do humanismo". - A religião católica sofre uma importante reviravolta teológica no século XIII. Até aquele período, a teologia era marcada pelo pensamento agostiniano, a chamada patrística (referente aos Padres da Igreja). Segundo Agostinho, o homem já estava predestinado à salvação ou à condenação, desde toda a eternidade; tese mais tarde retomada por Lutero (1483-1546) e mais profundamente por Calvino (1509-1564) e Jansenius (1585-1638). Até então a teologia e a filosofia tinham forte influência do pensamento platônico. Mas a partir do final do século XI, começaram a aparecer na Europa as primeiras traduções dos textos de Aristóteles, feitas a partir do árabe. No decorrer de algumas décadas, toda a elite intelectual européia - que era em sua grande maioria formada por teólogos - passou a ler e ser influenciada pela filosfia aristotélica. Fato clássico é o de Tomás de Aquino, cujos textos trazim forte influência do Estagirita. Ao mesmo tempo a teologia deixou de ser fatalista e passou a valorizar as obras e o cumprimento dos sacramentos, como instrumentos para a salvação da alma. A grande mudança no pensamento teológico, pois, foi o fato de que a salvação do homem não dependia mais da vontade de Deus, mas muito mais das ações e inciativas do ser humano. Muitos autores colocam este fato como sendo de grande influência em todo o pensamento da Baixa Idade Média. Ainda com relação a esta nova visão teológica, foi criado o conceito do Purgatório, que inexistia na teologia católica anterior e cuja elaboração e divulgação foi tão bem descrita no livro "Le Purgatoire" (O Purgatório) de Jacques Le Goff. Ponto importante no conceito do Purgatório, é a admissão pela Igreja de um lugar intermediário entre o Céu e o Inferno, abrindo assim a possibilidade para a “salvação de um maior número de almas”. - No campo social a Igreja também perde aos poucos sua hegemonia. Além de sofrer um constante ataque dos movimentos heréticos

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durante toda a Baixa Idade Média, como o dos cátaros, os irmãos do Livre Espírito, os valdenses e os hussistas, que já haviam colocado em cheque o domínio católico em vastas regiões por mais de uma vez. Nos séculos XIV e XV torna-se cada vez mais comum o surgimento de líderes, que por motivos políticos e religiosos – ou ambos – opõem-se ao domínio católico. Figuras como o inglês John Wycliff e o tcheco Johann Huss, foram queimados por sua oposição a Roma. As mudanças tecnlógicas, econômicas, políticas, religiosas e culturais apresentadas acima não ocorreram, evidentemente, todos de uma vez; nem de maneira igual em todas as regiões e muito menos de forma sequente. Trata-se, como toda a história, de uma grande generalização; uma forma que - baseados o mais possível nos fatos os historiadores encontraram para tornar o passado inteligível. A própria dialética hegeliana (ou do materialismo histórico) não explica muito bem este desenvolvimento histórico da sociedade medieval para a moderna. Na dialética aplicada à história fica difícil estabelecer, por exemplo, quando um fato social que tomamos por tese (o catolicismo patrístico, a cidade medieval típica ou a situação do camponês, por exemplo) deixa de ser tese e passa a ser antítese. Da mesma forma, quando a antítese (o artesão que era camponês e começa a ter atividades comerciais, por exemplo) deixa de ser antítese e passa a ser síntese (que por sua vez também poderia ser uma nova tese). Concluo que são grandes generalizações, destinadas a sistematizar e tornar mais compreensível - se bem que baseado em uma ideologia - a compreensão da história. Resumindo, podemos estabelecer as seguintes diferenças (novamente generalizações necessárias à compreensão da história) entre a Idade Média - mais especificamente a Baixa Idade Média - e o período do Renascimento. Para isso, nos utilizaremos novamente da divisão do período em setores (por exemplo, economia, política, cultura, etc.). Sob o aspecto econômico (não o único condicionante, mas o mais importante) podemos contrapor a uma sociedade medieval com atividade econômica ainda limitada (feiras sazonais, poucos comerciantes, lucro visto como pecado) à sociedade pós-

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renascentista; esta já plenamente envolvida em navegações ultramarinas, comércio de especiarias e produtos agropecuários (açúcar e lã), produção de manufaturados, e um desenvolvido sistema financeiro. Do ponto de vista político, existe um passado na forma de uma sociedade medieval dominada pelos nobres feudais e pela Igreja, senhores absolutos de suas terras, sem um poder central capaz de proporcionar a união de condados, ducados, principados e papados. Não existe uma centralização política, o que impede a formação de países com políticas unificadas. A sociedade pós-renascentista, por outro lado, já tem regimes completamente centralizados na figura de um rei, apoiado pelo poder econômico da burguesia comercial, legislando em benefício destes mesmos burgueses. Trata-se de reis absolutistas que governam por "direito divino". Unificados, os países do período pós-renascentista podem se dedicar ao comércio ou à rapina internacional, às guerras contra outros países, etc. Sob o aspecto cultural, a sociedade medieval tem uma visão estática do universo. Este é governado por Deus, cujas leis já foram explicitadas e explicadas pelo filósofo Aristóteles e pelo astrônomo Ptolomeu. Na natureza não ocorre nada, nem a queda de uma folha, que não seja por vontade de Deus; não há, pois, muito a investigar – esta mais a visão da Alta Idade Média, já que a Baixa estava influenciada pelo humanismo; o estudo das ciências e pela Letras Clássicas. Neste aspecto, o período pós-Renascentista já havia plenamente incorporado os autores clássicos (muitos deles traduzidos do árabe no final do período medieval); realiza experiências científicas (Copernico, Kepler, Galileu, Bacon); coloca as bases da moderna matemática e do pensamento filosófico (Descartes); e dá início a uma sociedade mundial - as Grandes Navegações abriram caminho para um comércio mundial já no século XVI, segundo Fernand Braudel. O panorama religioso do Renascimento é completamente diferente do período medieval. Em um texto “A religião e o riso” escrevo sobre o tema:

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"Todos estes questionamentos terão, evidentemente, uma forte influência sobre a religião. Por um lado, surgem as igrejas protestantes, a igreja anglicana se separa de Roma e uma profusão de pequenas seitas de tendência protestante se espalha pela Europa. Por outro, cada igreja cristã tem a pretensão de ser a única detentora da verdade e classifica as concorrentes de heréticas. Na prática, as igrejas protestantes sobrevivem porque a católica já não tem mais a força para impor sua exclusividade. Com isso, dada a diversidade de correntes, sobra pouco para ser criticado no novo cristianismo. As opções a escolher eram tantas, desde as igrejas principais como a luterana, calvinista e anglicana, até os grupos menores, como os menonitas, anabatistas, seekers, quackers, etc. As perseguições religiosas que ocorriam, era muito mais o resultado da disputa entre as diversas igrejas, do que da ação contra dissidentes. Não havia heréticos; todos o eram. O novo dissidente não tem mais o perfil do cátaro, valdense ou bogomilo medieval, que partilhava muitas crenças com a religião oficial, o catolicismo. O novo crítico tem agora três caminhos a seguir: 1) aderir à outra igreja diferente da sua; 2) fundar uma nova igreja, opondose a todas as outras; ou 3) assumir uma atitude de oposição a qualquer igreja, o que o tornava o crítico especialmente perigoso, porque passava a criticar o cristianismo; talvez até qualquer teísmo. Este dissidente tem muito pouco em comum com as igrejas cristãs, aproximando-se do panteísmo, de Bernardo Telesio (1508-1588), Giordano Bruno (1548-1600), Thomas Campanella (1568-1639) e Baruch de Spinoza (1632-1677) ou do epicurismo e atomismo, como Pierre Gassendi (1592-1655)." (Rose, 2009, p. 38). Ficam assim registrados alguns contrapontos que existem entre a sociedade medieval - notadamente em seu período final na Baixa Idade Média e o período Renascentista. Como já escrito, são apenas generalizações, elaboradas com base em literatura existente sobre o assunto.

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Bibliografia Werkmeister, W. H. A Philosophy of Science. New York. Harper & Brothers Publishers: 1940, 551 p. Minois, George. História do ateísmo. Lisboa. Editorial Teorema: 1998, 741 p. Rose, Ricardo E. A religião e o riso. Disponível em <http://www.consciencia.org/a-religiao-e-o-riso> acesso em

3/6/2011.

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Marx e as idéias dominantes em cada época Estudando a filosofia de Hegel, Marx passou gradativamente a criticá-la, utilizando como instrumento, entre outros, os autores materialistas da Antiguidade – Demócrito e Epicuro – os quais examinou em sua tese de doutorado. Ainda neste período de formação de sua filosofia, Marx foi também influenciado pela chamada “esquerda hegeliana”; grupo de filósofos que se utilizando da dialética hegeliana, combatia a visão idealista de Hegel, tendo como pressuposto uma abordagem materialista. A maior parte das críticas de filósofos como Bruno Bauer (18091882), David Strauss (1808-1874), Max Stirner (1806-1856) e Ludwig Feuerbach (1804-1872), principais expoentes da esquerda hegeliana, eram dirigidas à religião. Estas críticas, no entanto, segundo Marx, ainda não atingiam diretamente o ponto. Os membros da esquerda hegeliana criticavam as idéias religiosas como produto da consciência; atacavam-nas como idéias incorretas sobre a realidade. Marx dizia que esta crítica ainda era metafísica, idealista, pois não ia às causas das idéias religiosas. Não cabia provar que conceitos metafísicos como “alma”, “Deus”, “eternidade” eram ilusões; era necessário identificar as origens de tais conceitos. Em relação a este ponto, escreve Marx na segunda nota das Teses sobre Feuerbach: “A questão de saber se é preciso conceder ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão de teoria, porém uma questão de prática. É na prática que o homem deve comprovar a verdade, isto é, a realidade efetiva e a força, o caráter terrestre de seu pensamento. A disputa referente à realidade ou à não-realidade efetiva do pensamento – que está

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isolada da prática – é uma questão puramente escolástica.” (Marx apud Labica, 1990, p.31) Marx aprofunda então sua crítica, dizendo que os integrantes da esquerda hegeliana são conservadores, já que combatem, segundo Reale e Antiseri, “contra frases e não contra o mundo real de que tais frases são o reflexo”. Ainda é Marx que escreve: “Não veio à mente de nenhum desses filósofos procurar o nexo existente entre a filosofia alemã e a realidade alemã, o nexo entre a sua crítica e o seu próprio ambiente material” (Marx apud Reale e Antiseri, 1991, p. 187) É a partir da crítica à religião que Marx mais adiante passará à crítica de toda a ideologia e terá condições de explicar a origem da superestrutura – as idéias e instituições que mantêm a sociedade. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, escreve Marx: “Este é o alicerce da crítica irreligiosa: o homem faz a religião; a religião não faz o homem. Mas o homem não é um ser abstrato, acovardado fora do mundo. E a religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a perder-se. O homem é o mundo do homem, o Estado a coletividade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido.” (Marx, 2005, p. 45 – negrito nosso). Nestes escritos Marx já identifica a religião como sendo algo criado pelo homem; pelos mesmos que dominam o Estado e a sociedade. Daí para explicar o restante das produções do espírito humano foi apenas um passo. Marx identificou dois aspectos nas sociedades, que para nós podem ser evidentes depois de tanto terem sido repetidas por vários pensadores, mas que foram revolucionários à sua época: a) Que a religião, junto com todo o resto da cultura é uma produção humana, espelho das condições socioeconômicas; e

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b) Que a produção espiritual do homem (a cultura e as instituições) reflete o modo de produção e serve aos interesses dos detentores dos meios de produção. Em outras palavras, Marx identificou a relação existente entra as idéias e as instituições de uma sociedade e a maneira como funcionava sua economia. Em relação a esta idéia, escreve Marx em A Miséria da Filosofia: “As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens mudam seu modo de produção e, mudando o modo de produção, a maneira de ganhar a vida, mudam todas as suas relações sociais. O moinho manual nos dará a sociedade com o suserano; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalismo industrial. Os mesmos homens que estabelecem as relações sociais em conformidade com sua produtividade material produzem também princípios, as idéias, as categorias, em conformidade com suas relações sociais. Assim, essas idéias, essas categorias são tão pouco eternas quanto às relações que exprimem. São produtos históricos e transitórios. (Marx, 2007, p. 100-101 – negrito nosso). Um exemplo clássico desta análise é o da sociedade feudal; estática, dividida basicamente em três classes: a nobreza, os religiosos e os servos. Esta divisão de classes reflete a maneira como a sociedade feudal era economicamente estruturada; o seu modo de produção (pelo menos em grande parte da alta Idade Média). Os senhores feudais; a nobreza eram, junto com a Igreja, detentores das terras agricultáveis – a agricultura era a principal atividade econômica. Os servos de gleba eram responsáveis pela produção, pela manutenção material da sociedade. Sob ponto de vista econômico eram os servos, que praticando a agricultura e o artesanato, proviam a sociedade. A principal atividade dos nobres eram os torneios e as batalhas, além de gerirem a política; aos religiosos cabia cuidar dos aspectos

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espirituais da sociedade: a religião e a cultura. Nobres e religiosos viviam, pois, a custa dos servos. Para manter e justificar esta estrutura social, este “modo de produção feudal”, como dizia Marx, havia necessidade do uso da força e de idéias. A força era largamente aplicada, principalmente durante as perseguições aos hereges (que questionando a religião, colocavam em dúvida a estrutura social) e na repressão de levantes de agricultores e artesãos, notadamente no final da baixa Idade Média. Além disso, havia a violência diária, praticada pelo nobre e pelo bispo através de seus agentes. As idéias foram sendo elaboradas aos poucos, sempre adaptadas às necessidades espirituais de cada período (não podemos esquecer de que a Idade Média é um nome para um longo período de mil anos na história da sociedade ocidental). Alguns exemplos refletem bem a relação entre a superestrutura e a infraestrutura; e a justificação desta pela outra: - Assim como a sociedade era formada por servos e nobres – estes divididos em marqueses; condes; barões; príncipes; e reis, etc. – a hierarquia celestial também era formada por anjos; arcanjos; querubins; etc., até chegar a Deus. Havia também uma hierarquia infernal, formada por figuras como Astarot, Asmodeu, Belzebu, etc., cada um com uma atribuição, até chegar a Lúcifer ou o Demônio; - O próprio inferno, segundo Dante Alighieri escreve na Divina Comédia (e nisso se baseava em uma tradição cultural que já estava formada à sua época), era dividido em nove círculos e diversas seções – havia até uma hierarquia entre os pecadores e seus pecados; - As próprias guildas, as associações de artesãos da baixa Idade Média, tinham uma rígida hierarquia, refletindo graus de experiência e conhecimento; os mestres e os deferentes graus de aprendizes.

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Outro aspecto da sociedade feudal é sua visão estática do mundo. Nada mais havia a explicar – e, consequentemente a pesquisar – já que tudo havia sido estabelecido por alguns sábios da Antiguidade, como Ptolomeu (astronomia), Aristóteles (ciências naturais) Hipócrates e Galeno (medicina), entre outros. Os escritos destes sábios, por outro lado, havia sido aprovada pela Igreja, a representante de Deus na terra, e deste modo eram lei. Dentro desta estrutura social e culturalmente estática – exatamente para justificar e manter as relações de produção – as inovações eram lentas e controladas. A análise de Marx permitiu que enxergássemos a sociedade e seu desenvolvimento sob outra ótica, ultrapassando as visões metafísicas e “místicas”. Finalizamos este texto com a oitava nota das Teses sobre Feuerbach: “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que orientam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão desta prática” (Marx apud Labica, 1990, p.34).

Bibliografia: Labica, Georges. As “Teses sobre Feuerbach de Karl Marx”. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 1990, 194 p. Marx, Karl. A miséria da filosofia. São Paulo. Editora Escala: 2007, 156 p. Marx Karl. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo. Editora Marin Claret: 2005, 198 p. Reale, Giovanni. Antiseri Dario. História da Filosofia Vol. III. São Paulo. Paulus Editora: 1991, 1113 p.

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Diferença entre o modelo aristotélico de política e o modelo jusnaturalista Há uma grande diferença entre o modelo político aristotélico e o modelo jusnaturalista ou hobbesiano. A diferença entre ambos os modelos políticos é baseada em divergentes maneiras de ver o homem e sua relação com seus semelhantes, intermediada pela cultura e pelo Estado.

O modelo político aristotélico Aristóteles considera que o homem é, a exemplo de outros animais, levado a viver em comunidade por sua própria natureza. Escreve no primeiro capítulo de A Política: “Sabemos que toda a cidade é uma espécie de associação, e que toda a associação se forma almejando um bem, pois o homem trabalha somente pelo que ele considera um bem.” (Aristóteles: 2007, p.13). A vida em sociedade, “almejando um bem”, é característica do homem; aqueles que não vivem em uma cidade, que não mantêm relações sociais com seus semelhantes, estão acima ou abaixo dos humanos (ou seja, dos gregos da época). Ensina o filósofo: “Assim é evidente que a cidade faz parte das coisas da natureza e que o homem é naturalmente um animal político destinado a viver em sociedade. Aquele que por instinto – e não porque qualquer circunstância o inibe – deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser desprezível ou superior ao homem.” (Ibidem p. 16) Definido a propensão natural do homem a viver em sociedade, o Estagirita passa a estabelecer os diversos tipos de agrupamentos humanos, começando pela família, que considera a base do Estado. Escreve o filósofo:

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“Assim, naturalmente, a primeira sociedade constituída para prover as necessidades cotidianas é a família, formada por aqueles que Carondas chama de “parceiros de pão” e que Epimêmides de Creta denomina “parceiros de comer” (ibidem, p.14). O ajuntamento de várias famílias forma o burgo, uma sociedade humana maior, e que já possui um governo – geralmente uma monarquia, segundo Aristóteles. Neste processo de formação do Estado Aristóteles também já identifica uma divisão entre governantes e dos governados “[...] por obra da natureza e para conservação das espécies, um ser que ordena e outro que obedece.” (ibidem, p.14). Há, segundo o filósofo, aquele que é mais inteligente e possui capacidade de previsão, naturalmente talhado para assumir uma posição de chefia. Por outro lado, existem aqueles (a grande maioria) que tem apenas a força física e a capacidade de executar e de servir, consequentemente, os governados. Todo este processo tem por fim a sobrevivência da sociedade e dos indivíduos, visando o que Aristóteles chama de “uma vida feliz”. Escreve o pensador: “Esta é a razão por que toda sociedade se integra na natureza, uma vez que a própria natureza foi a formadora das primeiras sociedades, e a natureza é o verdadeiro fim de todas as coisas.” (ibidem p.15 – negrito nosso). O centro da reflexão de Aristóteles não é, todavia, o indivíduo, mas sim a sociedade ou o Estado. Recorremos mais uma vez ao texto do pensador: “Na ordem da natureza, o Estado se coloca antes da família e de cada indivíduo, pois o todo deve ser colocado, obrigatoriamente, antes da parte.” (Ibidem, p.16). E mais a frente completa: “Evidentemente o Estado está na ordem da natureza antes do indivíduo, pois cada indivíduo isolado não se basta em si mesmo, assim também se dará com as partes em relação ao todo” (Ibidem, p. 16). Isto significa que somente sob a

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organização do Estado – independente de força bruta, interesses passageiros ou ordenamentos dos deuses – é que o homem pode realizar a justiça. Ao que parece Aristóteles forma uma categoria de “homem” que está acima do homem concreto de “carne, ossos e sangue”, como diria o filósofo espanhol Miguel de Unamuno. A somatória das ações dos homens concretos forma o Estado, cuja função é promover a “vida feliz” deste ser humano abstrato. Ao final do primeiro capítulo de A Política Aristóteles deixa claro o quanto a vida em sociedade é a situação ideal para o homem. Na realidade, o estado natural da espécie humana é a associação. Fora da sociedade, o homem deixa de ser humano para se tornar uma fera. Conforme Aristóteles: “Assim, a natureza compele todos os homens a se associarem. Aquele que primeiro estabeleceu isso fez o maior bem, pois o homem perfeito é o mais excelente de todos os animais, é também o pior quando vive isolado, sem leis.” (Ibidem, p.16). Aristóteles conclui que o homem só pode praticar a prudência e a justiça se vive em sociedade. Fora da associação com seus semelhantes ele vive sem leis “sendo o mais cruel e o mais feroz de todos os seres vivos, e não sabe, por vergonha, além de amar e comer.” (Ibidem p. 17). Aristóteles sabia que a paidéia, a cultura, em seu mais alto grau, só era possível na pólis, na cidade. Toda a cultura desenvolvida pelos gregos, aliás, é bastante relacionada com a atividade política nas cidades gregas. Escreve Werner Jaeger: “Todo o futuro humanismo deve estar essencialmente orientado para o fato fundamental de toda a educação grega, a saber: que a humanidade, o “ser do Homem” se encontrava essencialmente vinculado às características do Homem como ser político.” (Jaeger: 2003, p. 17). Este o principal ponto do pensamento político de Aristóteles: o homem é essencialmente político porque só em associação é que

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pode realizar seu ideal de virtude, arethé, que é segundo Sócrates “fazer aquilo a que cada um se destina”. Uma das componentes da arethé é a paidéia. Esta a razão porque todos aqueles que estavam fora da sociedade – segundo Aristóteles – ou eram comparáveis aos animais selvagens ou aos deuses.

O modelo político hobbesiano ou jusnaturalista Os pressupostos dos quais Thomas Hobbes parte para analisar o homem já são bastante diferentes daqueles utilizados por Aristóteles. Neste caso, não podemos esquecer que o pensador grego vivia em um ambiente cultural onde não havia um pensamento filosófico-religioso hegemônico, como a cultura cristã. Já Hobbes viveu quase dois mil anos depois, em um ambiente cultural impregnado pela filosofia e pela religião cristã, apesar do século XVII ser um período no qual se apresentaram as primeiras críticas estruturadas ao cristianismo, seja em bases filosóficas ou em bases científicas. E é exatamente destes conceitos que parte Hobbes: para ele o homem é um corpo sujeito às forças mecânicas de ação e reação, que se exteriorizam no âmbito humano em apetites como atração e repulsão. Estas forças geram no homem um desejo cada vez maior de poder e de domínio. Escreve o filósofo: “Assim, considero como principal inclinação de toda a humanidade um perpétuo e incessante afã de poder que cessa apenas com a morte”. (Hobbes: 2011, p. 78). Neste contexto, é completamente sobre outros pressupostos que Hobbes constrói sua visão do homem e do Estado. Em seu estado natural, antes da formação de um Estado, o homem, segundo Hobbes, está em constante conflito com seus semelhantes. Escreve Hobbes no Leviatã: “Assim, existem na natureza humana três causas principais de disputa: competição, desconfiança e glória. A competição impulsiona os homens a se atacarem para lograr algum benefício,

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a desconfiança garante-lhes a segurança e a glória, a reputação. A primeira causa leva os homens a utilizarem a violência para se apossar do pessoal, da esposa, dos filhos e do gado de outros homens; a segunda os leva a usar a violência para defender esses bens; a terceira os faz recorrer à força por motivos insignificantes, como uma palavra, um sorriso, um escárnio, uma opinião diferente da sua ou qualquer outro sinal de subestima direta de sua pessoa, ou que se reflita em seus amigos, sua nação, sua profissão ou o nome de sua família.” (Ibidem, p. 95). Assim, é exatamente em seu estado natural que o homem se torna mais perigoso ao seu semelhante – o homem é o lobo do homem, segundo Hobbes. É neste aspecto que o pensamento de Hobbes se aproxima do de Aristóteles. Ambos são categóricos ao dizer – por motivos bastante parecidos – que o homem natural, fora da organização social, vive da agressividade e a da rapina de seu semelhante. Hobbes diz que a condição natural do homem é um obstáculo para que ele atinja os objetivos que mais almeja: a segurança e a prosperidade. Escreve sobre este ponto o filósofo Quentin Skinner: “Para Hobbes, ao contrário, é a nossa liberdade natural que constitui o principal e imediato obstáculo à nossa obtenção de qualquer uma das coisas que queremos da vida. Ele não apenas insiste que nossa liberdade é “de pouco uso e benefício” para nós (Hobbes, 1969ª, 14, 10, p.72); prossegue argumentando, na mais forte oposição possível em relação à ortodoxia prevalente, que quem quer que “deseje viver em tal um estado tal, como sendo o estado de liberdade e de direito de todos com todos, se contradiz a si mesmo” (Hobbes, 1969ª, 14.12, p.73)”. (Skinner: 2008, p. 55). Segundo Hobbes, o Estado não é um mal necessário, mas efetivamente a única possibilidade de os homens poderem viver de uma maneira relativamente aceitável sobre a Terra. No estado natural, utilizando seu direito natural a tudo que quiser, os homens necessariamente viveriam em constante guerra entre si. Decididos a abrirem mão de parte de seus direitos naturais em benefício de

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outras vantagens, os homens fundam o Estado para garantir-lhes a paz e assim a possibilidade de alcançar os seus objetivos – que, no entanto, são muito mais concretos do que a “virtude” almejada para os homens por Aristóteles. Como conseqüência, Hobbes afirma que ao restringirmos nossa liberdade natural, estamos nos submetendo a um poder soberano, formado por um indivíduo (monarquia), um grupo (aristocracia) ou todo um povo (democracia). Vários autores concordam que Hobbes não é necessariamente defensor de uma monarquia absolutista, mas de um estado, seja de que tipo for, com força para manter a coesão social.

Conclusão Apesar do pensamento de Aristóteles e de Hobbes coincidir na visão que ambos têm do homem em seu estado pré-civilizacional, sendo Hobbes até mais incisivo quanto à agressividade inata do homo sapiens, as semelhanças, no entanto, param por aí. Para Hobbes, de modo que possa viver em comunhão com seus semelhantes, o homem é forçado a abrir mão de seus desejos ilimitados do estado natural – nisso lembrando alguns aspectos do pensamento de Freud, em O mal-estar da civilização – para que todos possam viver com certa segurança e prosperidade. Para gozar da relativa estabilidade na vida em sociedade, o homem precisa abdicar de parte de seus instintos naturais, geradores de conflitos e morte. Para Aristóteles, o homem, assim que se associa aos seus semelhantes para viver em sociedade, passa a pavimentar seu caminho para a arethé, a virtude; o mais nobre objetivo da vida do homem, segundo o pensador grego. Além disso, em todo este processo civilizacional por que passa o “homem aristotélico”, este

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adquirirá também uma formação cultural e política cada vez mais elaborada; a paidéia no sentido grego. Fica claro que, se por um lado, para Aristóteles o processo de formação da sociedade e do Estado é algo que agrega qualidades ao homem natural, para Hobbes é um processo de supressão de impulsos naturais. É como se na análise do homem feita por Aristóteles, este fosse necessariamente predestinado a viver em sociedade, sendo este seu estado natural. Já para Hobbes, o homem vive uma eterna contradição: premido por impulsos naturais (competição, desconfiança e glória), precisa suprimir estes apetites para obter alguma paz e prosperidade na vida em sociedade. Daí a pergunta de Aristóteles ser: “Como surgiu o Estado?”, ao passo que a de Hobbes é “Por que surgiu o Estado?”

Bibliografia Aristóteles. A Política. São Paulo. Ícone Editora: 2007, 272 p. Châtelet, François et al. História das idéias políticas. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 1985, 399 p. Hobbes, Thomas. Leviatã – 5ª. Reimpressão. São Paulo. Editora Martin Claret: 2011, 489 p. Jaeger, Werner. Paidéia. São Paulo. Martins Fontes: 2003, 1413 p. Skinner, Quantin. Hobbes e a liberdade republicana. São Paulo. Editora Unesp: 213 p.

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Tecnologia e dominação ideológica na Escola de Frankfurt A Escola de Frankfurt foi formada por intelectuais cuja linha de pensamento estava fortemente influenciada pelas teorias de Karl Marx. No entanto, estes pensadores – entre eles filósofos, economistas, sociólogos, psicólogos, teólogos e musicólogos - não foram simples repetidores das teorias marxianas. Incorporaram às suas análises – além dos aspectos econômicos – a questão da tecnologia, da indústria cultural, da psicanálise; abordando a situação do homem nas sociedades capitalistas modernas sob diversos aspectos. Grande parte das idéias produzidas pelos integrantes da Escola de Frankfurt teve grande influência nas ciências humanas; nomes como Horkheimer, Adorno, Habermas, Marcuse, Fromm, Benjamim e Bloch exerceram e ainda exercem uma forte influência na filosofia, na sociologia, na política, na literatura e psicologia. Neste curto texto focaremos nossa análise nas teorias e obras de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. A produção dos membros da Escola de Frankfurt, por sua diversidade de interesses – basta verificar os diferentes temas abordados, por exemplo, por Horkheimer, Adorno e Fromm – não resultou em grandes sistemas de pensamento. Trata-se muito mais de análises temáticas, apresentadas em ensaios de algumas dezenas de páginas ou até livros inteiros. Outra razão é que uma das características dos pensadores da Escola de Frankfurt era a aversão intelectual à elaboração de amplos sistemas de pensamento. Adorno, por exemplo, já em seu trabalho A atualidade da filosofia (1931), que nega a possibilidade de o pensamento filosófico perscrutar a realidade. Com isso eliminava a possibilidade do pensamento filosófico captar algum eventual aspecto “oculto” do mundo e elaborar um sistema com pretensões de explicá-lo racionalmente. Escreve Adorno:

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“[...] quem escolhe hoje o trabalho filosófico como profissão deve renunciar à ilusão da qual partiam anteriormente os projetos filosóficos: a ilusão de que, por força do pensamento, é possível captar a totalidade do real. Nenhuma razão justificativa poderia encontrar-se em si mesma em uma realidade cuja ordem e cuja forma rejeitam e reprimem toda pretensão da razão.” (Adorno apud Reale & Antiseri: 1991, p. 841) Em sua obra Dialética negativa (1966), Adorno desenvolve esta linha de pensamento com mais profundidade e, partindo da dialética hegeliana, desenvolve sua “dialética negativa”, que nega a identidade entre o pensamento e a realidade. Como consequência, também critica esta pretensão nas correntes filosóficas, como as metafísicas tradicionais; o idealismo; a fenomenologia; o marxismo; e, significativamente o iluminismo, que tanto valorizava a razão como instrumento de progresso para o homem. Adorno escrevia que era preciso denunciar a falácia dos sistemas filosóficos, “que tentam eternizar o estado presente da realidade e bloquear qualquer ação transformadora e revolucionária.” (ibidem, p. 842) A partir da dialética negativa, Adorno e Max Horkheimer passariam a desenvolver uma crítica sistemática da cultura; uma “teoria crítica da sociedade”. Uma das obras que segue esta linha de análise é o livro Eclipse da Razão, resultado de uma série de palestras dadas por Horkheimer nos Estados Unidos e reunidas em livro em 1947. Com uma forma de apresentação característica da Escola de Frankfurt, o trabalho contem cinco ensaios tratando de temas diversos, como a razão, a ciência, a tecnologia, a democracia e o indivíduo. Em um dos textos, Panacéias em conflito, o tom é de crítica em relação a uma ciência instrumentalizada, usada para atender aos interesses de grupos de poder dentro da sociedade. Escreve Horkheimer: “A ciência hoje, sua diferença de outras forças e atividades sociais, sua divisão em áreas específicas, seus procedimentos, conteúdos e organização, só podem ser entendidos em relação

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com a sociedade para a qual ela funciona. A filosofia positivista, que considera o instrumento “ciência” como o campeão automático do progresso, é tão falaciosa quanto outras glorificações da tecnologia. A tecnocracia econômica espera tudo dos meios materiais de produção, Platão queria transformar os filósofos em governantes; os tecnocratas querem transformar os engenheiros em componentes do quadro de diretores da sociedade.” (Horkheimer: 1976, p.69) Preocupado com a liberdade do indivíduo e bastante crítico em relação à pressão que a sociedade capitalista exerce sobre ele, principalmente através da propaganda e dos produtos da indústria cultural, Horkheimer escreveu um dos mais contundentes parágrafos de seu livro. Interessante notar que o autor constata uma identificação cada vez maior entre os produtos da indústria cultural – chamada no texto de “cultura industrial” – e a propaganda. Outro aspecto apontado pelo filósofo é que a cultura de massa (indústria cultural) tem como função justificar o status quo: “Assim como a criança repete as palavras da mãe, e os mais jovens repetem as maneiras grosseiras dos mais velhos que os submetem, assim o alto-falante gigantesco da cultura industrial, berrando através da recreação comercializada e dos anúncios populares – que cada vez menos se distinguem uns dos outros – replicam infinitamente a superfície da realidade. Todos os engenhosos artifícios da indústria de diversão reproduzem continuamente cenas banais da vida, que são ilusórias, contudo, pois a exatidão técnica da reprodução mascara a falsificação do conteúdo. Essa reprodução nada tem em comum com a grande arte realista, que retrata a realidade a fim de julgála. A moderna cultura de massas, embora sugando livremente cediços valores culturais, glorifica o mundo como ele é. Os filmes, o rádio, as biografias e os romances populares têm todos os mesmo refrão: esta é a nossa trilha, a rota do que é grande e do que pretende ser grande – esta é a realidade como ela é como deve ser, e será. (ibidem, p. 153 – negrito nosso)

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Juntos, Horkheimer e Adorno desenvolverão sua teoria crítica no livro Dialética do Iluminismo, obra que concentra uma forte crítica cultural à sociedade capitalista. Em nossa concepção, esta crítica pode ser dividida em dois principais aspectos: a) no aspecto cultural, através do conceito de “racionalização do mundo”; e b) no aspecto sócio-político, o conceito de razão instrumental. O conceito de “racionalização do mundo” tem a ver com a maneira como Horkheimer e Adorno entendem o conceito de “iluminismo”. Para os autores o iluminismo não se refere somente ao movimento filosófico-cultural do século XVIII, mas tem origens muito mais antigas. Consideram que o processo teve início já na Grécia Antiga, quando os primeiros pensadores tentaram interpretar racionalmente o mundo, tornando-o manipulável pelo homem. A partir deste período da história, a crescente racionalização do mundo – pela ciência e tecnologia – só aumentou, até chegar aos nossos dias. Todavia, durante este processo o iluminismo sofreu uma deformação: passou a prevalecer a idéia de que o saber é mais técnica do que crítica. Assim, nossa cultura perdeu a confiança na razão objetiva; o que importa não é veracidade da teoria, mas sua funcionalidade. A razão deixou de ser objetiva, para se transformar em simples instrumento para determinado fim: a maior dominação do mundo e do homem. Escrevem Reale e Antiseri: “Em outros termos, a razão é pura razão instrumental. Ela é inteiramente incapaz de fundamentar ou propor em discussão os objetivos ou finalidades com que os homens orientam suas próprias vidas. A razão é razão instrumental porque só pode identificar construir e aperfeiçoar os instrumentos ou meios adequados para alcançar fins estabelecidos e controlados pelo “sistema”. Nós vivemos em sociedade totalmente administrada, na qual “a condenação natural dos homens é hoje inseparável do progresso social” (Reale e Antiseri: 1991 p. 844 – negrito nosso)

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Evidentemente a razão instrumentalizada não é como é per se; os “fins estabelecidos e controlados pelo sistema” que atende, interessam a determinados grupos de poder. Desta forma, são estas forças que ao longo da história instrumentalizam a razão em seu próprio interesse. Assim sendo, a razão – pelo menos aquela que em grande parte informa a ciência e, principalmente, a tecnologia – não pode ter veleidades de ser objetiva. É, isto sim, uma ideologia que atende aos interesses de grupos sociais. O esquema de dominação funciona grosso modo esquematicamente da seguinte maneira: Razão instrumentalizada (RI)  Ciência  Tecnologia  Economia  Dominação  RI  Ciência Tecnologia ... O sistema de dominação esquematizado acima, mantido o status quo, tende a permanecer inalterado. Um dos principais instrumentos para sustentar esta estrutura ao longo do tempo é indústria cultural, à qual nos já referimos em trecho anterior deste texto. No livro Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer fazem uma análise crítica de diversos aspectos da sociedade, ocultados por ideologias inerentes ao “sistema”, incluindo a indústria cultural. Sobre esta escrevem os autores: “Os produtos da indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los alertamente. Cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho, quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho. É possível depreender de qualquer filme sonoro, de qualquer emissão de rádio, o impacto que não se poderia atribuir a nenhum deles isoladamente, mas só a todos em conjunto na sociedade. Inevitavelmente, cada manifestação da indústria cultural reproduz as pessoas tais como as modelou a indústria em seu todo” (Adorno & Horkheimer: 2006, p. 105). Assim sendo, a tecnologia e a dominação ideológica têm uma relação íntima, segundo a análise da Escola de Frankfurt. A tecnologia é produto da pesquisa científica, que por sua vez é

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dirigida por uma razão instrumentalizada. Esta reflete a visão de mundo e os fins de grupos de poder que têm forte influencia na sociedade. Segundo Marx (cujas idéias também são compartilhadas pela Escola de Frankfurt), estes grupos são exatamente aqueles que dominam os meios de produção, isto é, detêm o poder econômico. Para continuar mantendo seu poder, as elites dominantes elaboram a ideologia que informa a razão instrumentalizada. Esta por sua vez condiciona a ciência, que por sua vez é “materializada” pela tecnologia... E assim se realimenta indefinidamente o sistema de dominação, até que rupturas – guerras, revoluções, inovações tecnológicas com conseqüências imprevisíveis, crises econômicas, etc. – possam romper este círculo vicioso.

Bibliografia: Adorno, Theodor W., Horkheimer, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 2006, 223 p. Reale, Giovanni, Antiseri Dario. História da filosofia – Vol. III. São Paulo. Paulus Editora: 1991, 1113 p. Horkheimer, Max. Eclipse da razão. Rio de Janeiro. Editorial Labor do Brasil: 1976, 198 p.

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Max Weber e os “tipos ideais” Quando Max Weber começou a se dedicar ao estudo da sociologia, depois de ter se aprofundado no estudo da história e da economia, além de ter obtido graduação em direito, esta era uma ciência ainda em sua fase inicial de desenvolvimento. As bases deste conhecimento haviam sido estabelecidas por Comte e – depois de contribuições de vários pensadores – Durkheim estava dando sequência à estruturação desta disciplina, estabelecendo regras de pesquisa e definindo algumas áreas de atuação da nascente ciência. Este é o período em que Weber começa a se dedicar à sociologia, entre o final do século XIX e o início do século XX. Apesar de serem contemporâneos, Weber e Durkheim nunca se conheceram ou tiveram acesso um às obras do outro. É interessante assinalar que este período da história foi um dos mais férteis em todos os tempos, no que se refere ao desenvolvimento e à criação de novos conhecimentos. A física e a química, cuja evolução tanto entusiasmou Comte quando este colocava as bases da sociologia, mostravam uma nova fase de desenvolvimento neste final de século. Novos experimentos e teorias na área do eletromagnetismo acabaram permitindo o desenvolvimento de duas teorias físicas que influenciaram radicalmente toda a ciência e tecnologia do século XX: a mecânica quântica, iniciada por Max Planck (1900) e a teoria da relatividade de Einstein (1905 e 1910). Na química, novas pesquisas permitiram a criação de substâncias e produtos de larga aplicação na agricultura (fertilizantes, adubos e herbicidas) e no desenvolvimento de novos materiais (borracha, polímeros, etc.).

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A biologia, além das pesquisas de campo realizadas por botânicos, zoólogos, biólogos em todo o mundo, também mostrou um grande impulso com a difusão da teoria da evolução, elaborada por Darwin em 1859. Spencer e Huxley (Inglaterra), Haeckel e Weismann (Alemanha) entre outros, foram os impulsionadores desta grande teoria, que, no entanto, só começou a ganhar real importância a partir dos anos 1930, quando a teoria da evolução gradualmente passou a incorporar os conceitos da teoria genética, elaborada por Mendel e estruturada por Bateson (1908). As ciências humanas (para usar uma terminologia cara a Weber) também mostraram um grande desenvolvimento entre o final do século XIX e início do XX. A antropologia (Boas, Malinovsky) a psicologia (escola freudiana) e etnologia (Mauss, discípulo de Durkheim); a estruturação da moderna economia clássica (Marshall) foram todos acontecimentos que contribuíram com um aumento exponencial do conhecimento humano entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. O período em que Weber viveu foi marcado fortemente por um processo que ele mesmo denominou de racionalização, que considerou como sendo uma das características da sociedade ocidental. O principal fator que colocou este complexo processo em movimento, segundo a análise de Weber, foi a religião protestante, mais especificamente na forma do calvinismo. Esta prática religiosa em interação com as condições sociais e materiais da época deu início ao desenvolvimento do capitalismo. Este, em sua prática, criou uma nova forma da sociedade ocidental posicionar-se no mundo, na qual o processo histórico de racionalização terá um papel importante e influenciará todo desenvolvimento material e espiritual posterior. Escreve Aron: “Tal como Weber a entende, a ciência é um aspecto do processo de racionalização característico das sociedades ocidentais modernas. Weber chegou mesmo a sugerir, e a afirmar, que a ciência histórica e sociológica da nossa época representa um

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fenômeno historicamente singular, na medida me que não houve, em outras culturas, o equivalente a esta compreensão racionalizada do funcionamento e do desenvolvimento das sociedades” (Aron: 2008, p. 730-731). É neste ambiente que Weber se dedica ao estudo da sociologia. Na necessidade de estruturar seu método de análise social, Weber – como todo pioneiro na ciência – se vê obrigado a desenvolver sua própria metodologia, seus instrumentos; suas teorias. Inicialmente, o objetivo de Weber é “compreender o sentido que cada ator dá à própria conduta. A compreensão dos sentidos subjetivos implica uma classificação dos tipos de conduta e leva à percepção da sua estrutura inteligível” (Ibidem, p. 728). Por outro lado, Weber era perfeitamente cônscio de que a teoria científica era uma escolha subjetiva, que deveria ser testada a partir da verificação na realidade. Os fatos históricos e sociológicos se referem a acontecimentos observáveis, patentes na conduta dos homens e dos significados que estes dão aos seus atos. Assim, Weber considera a sociologia “uma ciência da conduta humana na medida em que esta conduta é social” (Ibidem, p. 743). É a motivação da ação humana que Weber considerará um dos grandes temas de estudo da sociologia. Outro aspecto do pensamento de Weber, ligado ao da motivação humana, é o da causação sociológica. Este princípio pressupõe que um determinado fenômeno fortemente favorece o aparecimento de outro; não como uma consequência fatalista, mas como parcialmente condicionante. Por exemplo: uma situação social de anarquia, na qual a classe dominante se sente ameaçada, pode precipitar a instituição de um regime autoritário, de uma ditadura. Este era o sentido da instituição do ditador, o “governante temporário chamado para colocar a casa em ordem”, na antiga Roma.

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Aspecto importante no pensamento de Weber – e sob esta ótica atualíssimo em nossos tempos de crítica a todo tipo de fundacionismo – é sua oposição a todo tipo de determinismo histórico, econômico, político ou religioso. Neste ponto, Weber se opunha frontalmente ao materialismo histórico e dialético de Marx, que pretendia criar uma teoria unificadora da sociedade, baseado no pressuposto econômico. Sobre este aspecto do pensamento de Weber escreve Aron: “Max Weber concebe as relações causais da sociologia como relações parciais e prováveis. São relações parciais no sentido de que um fragmento da realidade torna provável ou improvável um outro fragmento.” (Ibidem,p. 753-754). Esta posição não dogmática do pensador alemão, esta oposição a deduzir e explicar toda a realidade – inclusive a social – a partir de certos pressupostos, ao contrário do que fizeram Hegel e Marx, por exemplo, fizeram com que Weber precisasse desenvolver algumas “ferramentas” de análise da realidade. Com estas “ferramentas”, estes instrumentos epistemológicos, Weber poderia ressaltar certos aspectos da realidade social, torná-los mais visíveis, e assim proceder análises e criar teorias sobre os diversos aspectos da realidade. A teoria dos tipos ideais é uma destas “ferramentas” de análise. O tipo ideal é uma construção teórica, um modelo abstrato. Este, desenvolvido como padrão de comparação, permite-nos observar certos aspectos do mundo real de forma mais clara. O tipo ideal necessariamente não precisa se adequar exatamente à realidade, já que o objetivo do tipo ideal é ressaltar aspectos comparativos, a partir dos quais fazemos observações e criamos hipóteses (ou teorias) sobre a realidade analisada. Importante ressaltar que os tipos ideais são meros constructos e não tem nenhum objetivo normativo ou teleológico. Sobre esta característica do tipo ideal de Weber, escreve Johnson: “O totalitarismo não é menos ideal como tipo do que a democracia, por exemplo, porquanto ambos são constructos abstratos, com os quais podemos comparar e contrastar sistemas políticos reais,

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com o objetivo de observar com mais clareza suas várias características” (Johnson: 1997, p. 240). Weber classifica como tipos ideais três espécies de conceitos: a) tipos ideais de indivíduos históricos, como por exemplo: o capitalismo, a cidade ocidental, o feudalismo, entre outros. O tipo ideal, neste caso, é uma reconstrução de uma realidade, um fato histórico amplo, mas específico. Amplo ou global, porque se trata de um regime econômico (capitalismo), de uma forma de ajuntamento humano (cidade), ou de um tipo de organização social (feudalismo). Específico, porque Weber se referia a um tipo único, quando falava do capitalismo, da cidade ocidental ou do feudalismo. b) O segundo tipo ideal de Weber se refere a elementos abstratos da realidade histórica, que, no entanto, encontramos em grande numero de situações. Dentro desta categoria se incluem, por exemplo, a burocracia, que tem um caráter abstrato (em ralação ao capitalismo, por exemplo), e que aparece em diversos períodos históricos. Esta segunda categoria de tipos ideais, localizada em um nível mais elevado de abstração, ainda pode ser dividida em três tipos de dominação: a racional, baseada em leis e regulamentos; a tradicional, baseada na tradição e no costume; e a carismática, pela virtude ou “carisma” de um chefe ou líder. c) O terceiro tipo ideal se baseia na reformulação teórica (Aron fala em “reconstruções racionalizantes de condutas”) de comportamentos e condutas de um tipo em particular. O conjunto de proposições da teoria econômica, segundo Weber, não passa de uma idealização do comportamento dos agentes econômicos, ou seja, das pessoas. É evidente que estas teorias não são absolutas, representando neste caso apenas as “ferramentas” de análise das quais Weber

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se muniu para realizar suas análises sociológicas, a fim de estruturar suas teorias sociais. No entanto, tais instrumentos de análise, lembra-nos Aron, não são um fim em si mesmo, constituindo apenas meios (que podem ser ultrapassados por outros caso aqueles se mostrem melhores) para entender e interpretar melhor a realidade social. Os tipos ideais ajudaram Weber a desenvolver sua visão da sociologia, que em grande parte ainda é válida até hoje. Por isso, o conceito dos tipos ideais ainda é amplamente utilizado pela sociologia, antropologia e ciências relacionadas até hoje. Neste sentido, cabe ressaltar que: “As soluções encontradas por Weber para os intrincados problemas metodológicos que ocupavam a atenção dos cientistas sociais no começo do século XX permitiu-lhe lançar novas luzes sobre vários problemas sociais e históricos, e fazer contribuições extremamente importantes para as ciências sociais.” (Os Pensadores, Weber: 1980, p. XIV).

Bibliografia: Aron, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo. Martins Fontes: 2008, 884 p. Cohn, Gabriel. Weber. São Paulo. Editora Ática: 1989, 167 p. Johnson, Allan G. Dicionário de Sociologia. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 1997, 300 p. Weber, Max. Coleção Os Pensadores. São Paulo. Abril Cultural: 1980, 268 p.

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