Por uns definida como “lembrança grata de pessoa ausente, de um momento passado, ou de alguma coisa de que alguém se vê privado”, do latim vem “solitas” que significa solidão, e do galego “soedade”. A partir daí, de boca em boca, e influenciada pela palavra “saúde”, dá-nos hoje a tão romantizada “saudade”. Desde os tempos dos Descobrimentos, em que reluzimos e ajudámos a desvendar mundo, às batalhas perdidas e lutas sentidas de um povo sofrido, trazemos saudade ao peito e vestimo-la de vermelho, verde e amarelo. Com o fado, Amália aprendeu a libertar da prisão esta “dor sem ter fim”, e muitos, alados a Pessoa, dizem que “só portugueses conseguem senti-las bem, porque têm essa palavra para dizer que as têm.” Curiosamente há também ligações feitas entre a palavra e o corpo: de saud, saudá e suaida, especialistas dizem poder significar “sangue pisado”, e pelos árabes as-saudá, referir-se a doença do fígado, sendo a “melancolia do paciente”. Doença ou não, portuguesa ou não, é uma palavra hoje do mundo, que só tão sua nos sabe fazer sentir e fazer valer cada recanto de paixão enquanto este perdura, enquanto não se fica apenas como saudade.
Isabela Queimadela
Saudade em Tempos de Pandemia
À medida que crescemos, vamos aprendendo o que é a saudade, aquela palavra que nos dizem que é tão portuguesa e tão difícil de explicar o seu verdadeiro significado.
Talvez não a consigamos explicar, mas conseguimos sentir. Sentimos quando nos vem aquele sorriso ao rosto ao relembrar as brincadeiras de infância, a primeira escola em que fomos tão felizes, ou a casa dos avós, com a família à volta da mesa, quando isso já não acontece mais. Sentimos também quando temos de nos isolar do mundo a estudar, quando ainda há pouco tempo era verão, íamos para a praia com os amigos e festejávamos até o sol nascer.
E de repente, quando menos esperamos, a saudade vem em força, sem sequer nos deixar preparar para a receber. E vem nas coisas mais simples, aquelas que nunca pensámos que iríamos perder.
É tão sentida no abraço que queríamos dar e não podemos. Aquele abraço forte, apertado, que nos enche o coração e a alma. O abraço à mãe, ao pai, aos avós e aos amigos. O abraço às crianças pequenas, que sem entender, imploram por um, e nós, com o coração muito apertadinho, enviamos um abraço à distância, mas que é tão forte como aquele que daríamos fisicamente, com tanto amor que depositamos nele.
E é isto, esta saudade, que nos mostra o que realmente importa na vida. Para além dos restaurantes, das viagens, dos lugares bonitos e das festas, existe aquilo que nunca nos imaginamos sem e, de repente, foi tirado de nós: o contacto social que tanto damos por garantido.
Por isso é tão importante, e cada vez mais, não nos esquecermos daquilo que realmente somos feitos. Somos feitos de abraços, de amor, de sorrisos e de gargalhadas. Somos feitos de tudo aquilo que deixa uma saudade imensa.
Sabem o que aprendi com esta pandemia? A saudade que quero sentir é aquela que deixa um sorriso no rosto, por tudo o que vivi. Não quero levar comigo os abraços que não dei e as coisas que não fiz. Quando isto tudo passar, vamos abraçar muito, para que, um dia, sejamos uma coleção de saudade dos tempos felizes que vivemos.
Sara Gomes
Saudade
Tingiria a saudade a lilás, Quando sobre a cadeira, reclino e pasmo E sou montra do passado e do que jaz E nos lábios o meio termo doce, meio termo rude De te saber longe, mas sentir perto; Tingiria a saudade a azul, Quando me não reconheço, mas recordo Quando já não me compreendo, mas transbordo O lameiral de difusos “eus” que fui despindo e que esqueci E os “eus” tantos ainda etéreos, e eu já os querendo em mim; Tingiria a saudade a branco, Quando abraço o mundo e me chora o pranto Quando fere o orgulho, arde o rosto e cai o manto E se revela a raiva nos olhos de milhares e o abandono E com nada disto coaduno e sonho com o abraço uno e o mundo sonho; Tingiria a saudade a preto, Quando o ciclo da vida cerra e cá ficamos Desajeitados nas manhas e perdidos sobre o regaço Na testa, cravado a traço, o cansaço e o medo O amanhã de breu e o sentir danado e enfermo; Mas perder-me-ia a despir as tuas cores, Não nos fosses tu pele e sangue, e quem diria Que nascida da terra virgem, de onde vimos de igual, És, de amor, uma língua universal, tolos os tantos Que ainda não viram, irmão, que somos uno.
Isabela Queimadela