REVISTA
LAMPE
REVISTA E L E T R Ô N IC A OE F IL O S O F IA E I C UL T U R A
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DOSSIÊ Edição especial ISSN 2238-5274
I
m N* 6-02/2014
Indice APRESENTAÇÃO Trapeza tes pisteos: a atualidade do mistério da fé, em Benjamin e Agamhen Apresentação João Emiliano Fortaleza de Aquino_
Reginaldo Oliveira S ilv a ________________________________________ 133 03
Waiter Benjamin: Linguagem e experiência iiistérica
DOSSIÊ II JORNADA BENJAMINIANA
Robson Breno Dourado de A ra ú jo ____________
152
A perda da aura no ensaio Pequena iiistéria da fotografia de Waiter Benjamin Francisco Rihelder Batista Bezerra | Marcius Aristóteles Loiola Lo pes_______________________________________________________________ 04
Cantigas de capoeira contestando a iiistéria dos vencedores José Olímpio Ferreira Neto (UECE)_______________________________ 13
Biniieiro e inversão universai: sociedade moderna, contradição e ambigüidade na crítica da economia poiAica Álvaro Lins Monteiro M aia________________________________________27
Fotografia 3x4: Beiciiior e a faísca reiampejar - Uma anáiise críticoiiterária em Waiter Benjamin Francisco Gabriel Soares da S ilv a _______________________________ 42
Histéria e tradição dos vencidos: Benjamin e 0 juigamento de Lucuius de Bertoit Breciit Francisca Palloma Soares Paulino_______________________________ 58
Insurgência e emergência no novo tempo do mundo Pedro Henrique Magalhães Q ueiroz__________
69
Revista Lampelo ISSNZZ3BÜZ74
JUÍZO FINAL Ou SPBUNG? - Oláiogos e interrogações nas tramas da iiistéria Flávia Maria de Menezes | Priscila de 0 . Dornelles M ach ad o __ ______________________________________________________________________ 81
0 pessimismo como critica do progresso no ensaio sobre o surreiismo de Waiter Benjamin Felipe Yuri Gino de A b re u ________________________________________95
Os Cactos: ordens em questionamento Carlos Augusto de Oliveira Azevedo F ilh o .
Editores: Luana Diogo, Daniel Carvalho,W illiam Mendes, Ruy de Car valho, Gustavo Costa
Conselho Editorial: Prof. Dr. Daniel Santos da Silva; Prof. Dr. Ernani Chaves; Prof. Dr. Jair Barboza; Prof. Dr. Ivan Maia de Mello; Prof. Dr. José Maria Arruda; Prof Dr. Luiz Orlandi; Prof Dr. Miguel A. de Barrenechea; Porf Dr. Olímpio Pimenta; Prof Dr. Peter Pál Peibart; Prof Dr. Roberto Machado; Prof Dra. Rosa M=> Dias
Comissão Editorial: 102
Beforma ou revoiução: Para uma crítica da vioiência como crítica da sociaidemocracia Adriano Costa Cardoso_________________________________________ 120
Ruy de Carvalho, Gustavo Costa, Fernando Barros, William Mendes, Daniel Carvalho, Marilia Bezerra, Rogério Moreira, Luana Diogo, Paulo Marcelo, Atila Monteiro, Gisele Gailicchio, Fabien Lins
Projeto Gráfico e Diagramação: Herlany Siqueira
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APRESENTAÇÃO JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AOUINO Coordenador do Grupo de Estudos Benjaminianos (UECE)
Os artigos que compõem este “ Dossiê” foram escritos tendo por base alguns trabalhos inscritos e/ou apresentados na 2® Jornada Benjaminiana, ocorrida em 26 de setembro deste ano no Porto Iracema das Artes. Este é um evento anual organizado pelo Grupo de Estudos Benjaminianos, da Universidade Estadual do Ceará (U ECE), vinculado ao Grupo de Pesquisa em Dialética e Teoria Crítica da Sociedade e ao Laboratório de Estudos sobre Poder, Violência e Linguagem (Lapovili), com o apoio do Mestrado Acadêmico em Filosofia da mesma instituição. Constituem-se, via de regra, em pesquisas em andamento, de professores e alunos de graduação e pós-graduação de várias instituições, e versam sobre questões estéticas e políticas do pensamento de Walter Benjamin. Nesta ocasião, queremos agradecer aos colegas professores que gentilmente, e em prazos curtos, emitiram pareceres às propostas de artigos e, especialmente, aos editores da revista Lampejo, animada pelo Grupo de Estudos em Schopenhauer e Nietzsche, que aceitaram a proposta desta publicação.
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A PERDA DA AÜRA ND ENSAID PEQÜENA HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA DE WALTER DENJAMIN FRANCISCO RIHELDER BATISTA BEZERRA - Aluno de Filosofia pela Universidade Federal do Cariri (UFCA). rielder_18_@hotmail.com MARCIUS ARISTÓTELES LOIOLA LOPES
- Prof. pela Universidade Federal do Cariri (UFCA). marcius_re@hotmail.com
Resum o: A teoria da aura e de seu declínio se constitui em um dos principais temas da reflexão benjaminiana sobre a modernidade. Neste artigo, concentramo-nos na questão da perda da aura apontada por Benjamin a partir das transformações na percepção humana oriunda dos avanços técnicos, tomando como fio condutor principalmente os primeiros textos em que este problema é posto. Desta forma, 0 enfoque do nosso trabalho se concentra especificamente na perda da aura no ensaio Pequena história da fotografia, mas antes trataremos de forma sucinta da emergência do termo aura em um relatório benjaminiano acerca do uso do haxixe.
Palavras-chave: Aura; fotografia; técnica N° 6 - 02/2014
Introdução odemos dizer expressamente que a questão do declínio da aura é tão importante
P
no contexto da obra do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) quantos outros temas mais estudados de sua obra, como a pobreza da experiência e
0 declínio da narratividade. De fato, o desaparecimento da aura se insere no âmbito das investigações benjaminianas acerca da modernidade e podemos com isso afirmar que tal temática pode muito bem ser abordada em consonância com o estudo de sua
teoria da experiência e da narratividade. Entretanto, não pretendemos fazer aqui um estudo entrelaçando estes temas. Neste trabalho, nos concentramos principalmente no surgimento do termo aura e na questão de sua ruína em uma arte específica, no caso a fotografia. A princípio, abordaremos a origem do termo aura mostrando que seu primeiro uso já tem uma conotação estética, muito embora, nesse primeiro momento, não possa ser considerado um conceito filosófico. É somente com a temática da ruína da aura inaugurada pelo ensaio Pequena história da fotografia de 1931, que Benjamin irá dar relevância filosófica á palavra aura que em suas origens gregas significa sopro de ar, brisa, vento^ Posteriormente em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica (1935) Benjamin tratará novamente da teoria da ruína da aura se concentrando principalmente na mudança de percepção oriunda da intensa reprodutibilidade das obras de arte tradicionais ao passo que em Sobre alguns temas em Baudelaire (1939) haverá uma mudança na abordagem do tema da aura.
Haxixe e aura É somente nos escritos de maturidade deWalter Benjamin que surge o conceito de aura e a questão de sua ruína. Assim, só podemos falar da aura como conceito
' No que concerne a origem da palavra aura e sua significação filosófica, Taisa Helena Pascale Palhares escreve: “Do ponto de vista da história da estética, o termo aura somente recebe significado filosófico pelas mãos deWalter Benjamin. Semanticamente, a palavra origina-se na tradução do grego aúra para o latim aura, que significa sopro, ar, brisa, vapor. Sua ilustração como círculo dourado em torno da cabeça, tal como aparece em imagens religiosas, talvez derive da identificação vulgar entre o termo grego e o latino aureum (ouro), que deu origem à palavra auréola. Simbolicamente, entretanto, ambas (aura e auréola) indicam um procedimento universal de valorização sagrada ou sobrenatural de um personagem: a aura designa a luz em torno da cabeça dos seres dotados de força divina, sendo que a luz é sempre um índice de sacralização. (PALHARES, 2006, p. 13).
filosófico a partir do seu ensaio de 1931 sobre a fotografia. Antes, Benjamin já utilizava a palavra aura, mas sem uma delimitação filosófica precisa. Por conseguinte, já em um contexto materialista de sua filosofia, Benjamin passa a empregar o termo aura. O seu primeiro uso significativo se dá em um texto de 1930, no contexto dos textos benjaminianos que tratam de sua experiência com o haxixe. Desta forma, escreve:
Trata-se de observações que fiz sobre a natureza da aura. Tudo o que disse a respeito implicava uma aguda polêmica contra os teósofos, cuja ignorância e bisonhice me repugnavam profundamente. Apresentei, embora certamente não de forma sistemática, três aspectos da verdadeira aura que contrariam as concepções banais e viciadas dos teósofos. Em primeiro lugar, a verdadeira aura transparece em todas as coisas, e não apenas em algumas, como imaginam as pessoas. Em segundo, a aura se modifica radicalmente a cada movimento do objeto que a contêm. Em terceiro, a verdadeira aura absolutamente não se identifica com aquele sortilégio espiritualístico que incide sobre as coisas à maneira de um raio de luz, tal como o representam e descrevem os livros de misticismo barato. Pelo contrário, o que distingue a verdadeira aura ê o ornamento, um invólucro ornamental onde a coisa ou o ser aparece engastado como num estojo. Nada pode dar uma ideia mais exata da verdadeira aura do que as últimas telas de Van Gogh, nas quais, se ê que podemos descrevê-las assim, a aura parece pintada em cada uma. (BENJAMIN, 1984, p. 88).
Esta passagem é muito interessante, não somente porque faz de forma pertinente, pela primeira vez, menção a um termo que se tornará central nos ensaios posteriores que tratam de questões estéticas, mas também já faz uma distinção da verdadeira aura como sendo algo que é envolvido por um revestimento ou um estojo protetor. Esta primeira caracterização da aura se coaduna com sua formulação no texto Pequena história da fotografia, quando se diz que as primeiras fotografias tinham uma dimensão aurática já que, entre outras coisas, eram consideradas peças raras, pois guardadas em estojos como jóias^. O uso do termo se insere em um momento de
^ “Eram peças únicas; [...] Não raro, eram guardadas em estojos, como jóias.” (BENJAMIN, 1996, p. 93.)
controvérsias acerca da natureza da aura em que Benjamin se põe claramente contra o uso vulgarizado do termo por parte dos teósofos. A recorrência benjaminiana as últimas obras do pintor holandês Van Gogh em que a aura estaria pintada por inteiro nas telas, não nos parece ser acidental e mostra a associação entre aura e obra de arte tradicional que se repetirá em textos ulteriores como A obra de Arte na era de sua reprodutibilidade
técnica. A perda da aura em Pequena história da fotografia O ensaio Pequena história da fotografia de 1931 surgiu durante o projeto das Passagens (obra inacabada) iniciado por Benjamin em 1927. Para uma melhor elucidação da teoria da aura e seu declínio coube-nos uma consideração das fases da fotografia; é a partir da perda da aura que Benjamin irá fazer uma periodização e avaliação crítica da fotografia. Assim, o ápice da fotografia, assinalado por sua dimensão aurática, vai de seu nascimento em 1839 se estendendo por uma década, até mais ou menos o ano de 1850, época em que a fotografia começa a entrar em declínio devido ao processo de industrialização; esta época, em que começam a surgir os primeiros ateliês fotográficos, corresponde ao período de declínio da arte fotográfica e há aqui a perda de sua aura. O terceiro período corresponde á destruição, por meio do trabalho do fotógrafo francês Eugêne Atget de uma falsa aura que os fotógrafos do segundo período tentaram restabelecer em vão por meio de alguns artifícios. A aura das primeiras fotografias é exemplificada pelo trabalho do fotógrafo escocês David Octavius Hill (1802-1870). Hill que antes de se tornar fotógrafo era pintor, ficou muito conhecido por seus retratos singulares. No entanto, a aura das suas fotografias se devia a algo mais que seu insigne talento:
Mas na fotografia surge algo de estranho e de novo: na vendedora de peixes de New Haven, olhando o chão com um recato tão displicente e tão sedutor, preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo Hill, algo que não pode ser silenciado, que reclama como insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto ê real, e que nãoquerextinguir-sena “arte”. (BENJAMIN, 1996, p. 93).
Toda uma conjuntura de imperativos técnicos e materiais contribuíam para a singularidade das primeiras fotografias. Assim, as primeiras imagens do mundo fotográfico nascente que eram formadas nas chapas metálicas de câmeras escuras tinham como marca a longa exposição do modelo (a sua imobilidade impedia que a imagem saísse borrada), o que exigia por parte do fotógrafo uma grande e cuidadosa concentração. Essa temporalidade envolvida no ato fotográfico e que foi perdida com a sua industrialização, dava consistência às imagens, era como se o modelo e o fotógrafo estivessem imersos profundamente naquele mesmo instante que ficaria resguardado da passagem do tempo em uma chapa de cobre: “O próprio procedimento técnico levava
0 modelo a viver não ao sabor do instante, mas dentro dele; durante a longa duração da pose, eles por assim dizer cresciam dentro da imagem,^[...].” As primeiras fotografias que exigiam esse tempo condensado se assemelhavam a quadros bem pintados e eram rodeadas por um mistério e uma magia"^. Ao serem fotografadas, as pessoas tinham toda sua singularidade gravadas, por assim dizer, nas placas de metal. Em contraposição ao período da produção de imagens instantâneas que para Benjamin corresponderá á época de decadência da fotografia, nas primeiras fotografias “O rosto humano era rodeado por um silêncio em que o olhar repousava^” É a partir da descrição benjaminiana de um retrato do menino Kafka que vamos ter propriamente a primeira menção á aura no ensaio Pequena história da fotografia. Este retrato, muito marcante pela artificialidade e extravagância do cenário, pertence á época do surgimento dos grandes ateliês e já corresponde á fase de decadência da fotografia:
Mbid.,p. 96. Segundo o relato do fotógrafo Dauthendey as pessoas tinham medo de olhar por muito tempo às primeiras fotografias, pois sua nitidez e expressões vivas eram notáveis: as pessoas não ousavam a princípio olhar por muito tempo as primeiras imagens por ele produzidas. A nitidez dessas fisionomias assustava, e tinha-se a impressão de que os pequenos rostos humanos que apareciam na imagem eram capazes de ver-nos, tão surpreendente era para todos a nitidez insólita dos primeiros daguerreótipos. (BENJAMIN, 1996, p. 95). Assim, Cláudio Araújo Kubrusly também confirma este espanto causado pelas primeiras fotografias: “No mundo onde as imagens eram muito mais raras que em nossos dias, deve ter sido fascinante contemplar miniaturas da vida, projetadas por uma lente no fundo de uma caixa escura.” (KUBRUSLY, 2009, p. 22). 'O p . cit.,p. 95.
Em sua tristeza, esse retrato contrasta com as primeiras fotografias, em que os homens ainda não lançavam no mundo, como o jovem Kafka, um olhar desolado e perdido. Flavia uma aura em torno deles, um meio que atravessado por seu olhar lhes dava uma sensação de plenitude e segurança. (BENJAMIN, 1996, p. 98).
Havia alguns condicionamentos técnicos significativos e determinantes para que as primeiras fotografias tivessem uma dimensão aurática tais como o círculo de vapor que ficava em volta do rosto fotografado e a luz que florescia da sombra, “o continuum absoluto da luz mais clara à sombra mais escura®.” Igualmente, nas primeiras fotografias a relação entre o fotógrafo e a sua técnica era fundamental para a sua qualidade; o fotógrafo que manejava sua câmera fotográfica de forma habilidosa era comparável a um bom violinista ao tocar seu instrumento. Ora, essa convergência completa entre o objeto a ser fotografado e a técnica usada pelo fotógrafo não mais foi encontrada nas fotografias posteriores: “Pois aquela aura não é o simples produto de uma câmera primitiva. Nos primeiros tempos da fotografia, a convergência entre o objeto e a técnica era tão completa quanto foi sua dissociação, no período de declínio^” Com 0 avanço da técnica e a maior reprodutibilidade da fotografia com o intuito de se conseguir maiores ganhos com a sua comercialização, (principalmente a partir das últimas duas décadas do século X IX) temos a fase de decadência da fotografia. O tempo dilatado exigido antes para se realizar o ato fotográfico é perdido e surgem as fotos instantâneas que podem ser tiradas por qualquer pessoa; o próprio aparelho fotográfico se torna mais barato possibilitando sua banalização e uso corriqueiro. A aura e junto com ela o mistério das antigas fotografias são perdidos, ocorrendo uma uniformização e massificação dos indivíduos na imagem tecnicamente produzida. Esta fase em que os artistas fotográficos saem de cena para darem lugar aos homens de negócio é marcada pelo desenvolvimento do processo negativo-positivo (técnica que possibilitava a reprodução de várias cópias de uma mesma foto). O declínio da fotografia é acompanhado por uma tentativa de restauração da aura extraviada
«Ibid.,p. 98. ’ Ibid.,p. 99.
nos meandros do novo domínio técnico. Os fotógrafos deste período irão tentar, por meio de recursos artiíiciosos, recuperar as sombras das primeiras fotografias, embora conseguindo efeitos de penumbra nas fotos, não conseguiram restabelecer sua aura devido aos avanços técnicos:
Pouco depois, com efeito, a ótica, mais avançada, passou a dispor de instrumentos que eliminavam inteiramente as partes escuras, registrando os objetos como espelhos. Os fotógrafos posteriores a 1880 viam como sua tarefa criar a ilusão da aura através de todos os artifícios do retoque, especialmente pelo chamado off-set; essa mesma aura que fora expulsa da imagem graças à eliminação da sombra por meio de objetivas de maior intensidade luminosa, da mesma forma que ela fora expulsa da realidade, graças à degenerescência da burguesia imperialista.(BENJAMlN, 1996, p. 99).
Esta falsa aura, que Benjamin chama de “a ilusão da aura”, será destruída na passagem do século X IX para o século X X pelo trabalho original daquele que é considerado um precursor da fotografia surrealista, o fotógrafo francês Eugène Atget (1857-1927). As fotos de Atget, comparadas por Benjamin a lugares em que ocorre um crime, têm por escopo não fisionomias humanas, mas a cidade esvaziada e sem aura; cenários marginais da cidade de Paris, como ruas periféricas e pátios despovoados serão uma das principais referências para a sua produção fotográfica. Atget trouxe uma nova proposta para a fotografia, segundo Benjamin ele:
Foi 0 primeiro a desinfetar a atmosfera sufocante difundida pela fotografia convencional, especializada em retratos, durante a época de decadência. Ele saneia essa atmosfera, purifica-a: começa a libertar
0 objeto de sua aura, nisso consistindo o mérito mais incontestável da moderna escola fotográfica. [...] Ele buscava as coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se voltam contra a ressonância exótica, majestosa, romântica, dos nomes da cidade; elas sugam a aura da realidade como uma bomba suga a água de um navio que afunda. .(BENJAMIN, 1996, p. 100-101).
Subentende-se que o uso da fotografia por este precursor do movimento surrealista tem conotações políticas já que as suas fotos revelam, por assim dizer, o lado não oficial da cidade de Paris: seus prédios abandonados, seus pátios destituídos de pessoas, a pobreza manifesta de uma cidade em acelerado processo de modernização. Benjamin elogia às fotos de Atget; estas foram as responsáveis por eliminar a aura artificial que surgiu como tentativa de restabelecimento da aura das primeiras fotografias. É a partir desta segunda crise aurática da fotografia desencadeada por Atget que Benjamin formulará pela primeira vez a sua definição clássica de aura que irá se repetir no ensaio sobre A obra de arte: “Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, compostas de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que esteja.” (BENJAMIN, 1996, p. 101). Destarte, o que podemos entender desta enigmática definição de aura e a que tipo de objetos ou coisas ela se aplica? Tentaremos responder a esta pergunta em outra oportunidade.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e
técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura. 7®. ed. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. Obras escolhidas, Vol. 1. São Paulo, SP: Ed. Brasiliense, 1994a.
______. Pequena história da fotografia. In: Magia e técnica, arte e política. 7. ed. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994e.
_. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire um lírico no auge
do capitalismo. Tradução: José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. Obras escolhidas, Vol. III. São Paulo, SP: Ed. Brasiliense, 1989.
_____ . Haxixe. Tradução Flávio de Menezes e Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
KUBRUSLY, Cláudio Araújo. O que é fotografia. São Paulo: Brasiliense, 2006. Coleção Primeiros Passos.
PALHARES, Taisa Helena Pascale. Aura: A crise da arte em Walter Benjamin. São Paulo: Barracuda, 2006.
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CANTIGAS DE CAPOEIRA CONTESTANDO A HISTÓRIA DOS VENCEDORES José Olímpio Ferreira Neto (UECE)
Resum o: Este trabalho é uma análise crítico-reflexiva das cantigas de capoeira a luz do pensamento benjaminiano. A Capoeira é uma cultura popular presente nos ambientes formais de ensino que pode dialogar com a disciplina de História, porém, ainda se verifica que o material didático que está disponível para o corpo docente e discente é aquele que mantém empatia com a história do vencedor. A Roda de Capoeira é o espaço onde os vencidos contam, através das cantigas, suas dores e glórias, onde se constitui seus ídolos, diferentes dos personagens impostos pelo dominador. Benjamin (1994) diz em sua tese V I do texto Sobre o conceito de História que a transmissão dos bens culturais, da história deve ser arrancada das mãos do vencedor. Pergunta-se, então, se as cantigas de capoeira podem ser identificadas como instrumento de contestação da história oficial.
Palavras-chave: História. Capoeira. Cantigas.
Introdução As pesquisas em História tem sofrido mudanças em seu foco, novas áreas e interesses tem surgido ao historiador. O ensino nas escolas públicas não correm na mesma velocidade que as pesquisas. No interior das instituições, pode-se observar cartazes que são confeccionados nas aulas que reproduzem a história dos vencedores, a história oficial. Ao mesmo tempo, a escola abre as portas para a comunidade, para a diversidade cultural. A Capoeira é uma importante ferramenta nessa nova perspectiva do ambiente escolar. Atividade que representa o povo brasileiro, fruto da mistura das raças que já ganhou o mundo e se aperfeiçoa como instrumento de educação (FERREIRA NETO, 2009). O presente trabalho é uma reflexão filosófica sobre as cantigas como forma de expressão dos vencidos contestando o ensino da História oficial. Entende-se, aqui, que a escola é um espaço de conflito, pois, além da educação oficial, penetram nesse ambiente diversas culturas como a Capoeira que colaboram para um discurso que se opõe ao que é imposto pelos dominadores. Para nortear essa reflexão utiliza-se o filósofo da Escola de Frankfurt, a saber, Walter Benjamin (1994) através de seu artigo intitulado
Sobre o conceito de História presente no primeiro volume do livro Obras Escolhidas. Para melhor penetrar no pensamento benjaminiano faz-se uso dos estudos de Aquino (2009) pesquisador do pensamento do citado filósofo. Em relação ã História recorre-se aos seguintes autores: Rodrigues (2009), Le Goff (2003), Hunt (2001) e Burke (2008). Quanto ao conteúdo referente a Capoeira, buscou-se fundamento nos estudos de Rego (1968), Castro Júnior (2003), Silva (2007), Vieira (1998) Vasconcelos (2009,2010) e Capoeira (2009). O tema foi inspirado na vivência escolar, na participação nas rodas e nos estudos de filosofia, sobretudo nas disciplinas ministrados pelo professor Ivan Fiúza. Ressalte-se ainda a participação no NHIM E - Núcleo de Pesquisa em História e Memória da Educação da FACED/UFC sob coordenação do Professor Doutor Gerardo Vasconcelos.
Esse trabalho se divide em três seções, além da introdução e conclusão, que se acredita serem relevantes para o tema proposto, a saber: A pesquisa e o ensino
de História; A s cantigas de capoeira ã luz do pensamento benjaminiano; e A Escola e a Capoeira. Esses tópicos são direcionados ao estabelecimento de um pensamento de contestação ao ensino de história tal como ele se desenha hoje e utiliza a Capoeira para se fazer ouvir.
I. A pesquisa e o ensino de História
A chamada História Nova está mais interessada na cultura e nos aspectos sociais, conferindo menos importância às grandes personagens e acontecimentos singulares. Ela se interessa mais pelos costumes e pelos protagonistas anônimos (RODRIGUES, 2009). Benjamin (1994) diz em sua tese VI de seu último texto em vida, já citado nesse texto, a saber. Sobre o conceito de História que a transmissão dos bens culturais, da história deve ser arrancada às mãos do vencedor. Mas será que essa é a realidade em que vive as escolas? Antes de refletir sobre essa questão faz-se necessário conhecer um pouco sobre as mudanças no foco dos estudos de história.
No flnal da década de 1980, a expressão Nova História Cultural entrou em uso através de uma historiadora norte-americana chamada Lynn Hunt (2001) que publicou um livro com esse nome. A nova história cultural é, hoje, uma forma de história cultural bastante utilizada nas pesquisas. O interesse pela cultura popular aumentou, tornando a antropologia mais relevante para os historiadores. Uma forma de nova história cultural que é muito utilizada atualmente é a história da memória, descrita também como memória social ou memória cultural (BURKE, 2008). A história que quer se constituir, hoje, é a do tempo presente, a história dos vivos, não se trabalha mais apenas com o passado, com os grande nomes.
No Brasil, o ensino de história também vêm sofrendo modiflcações em sua abordagem, pelo menos em teoria. Em março de 2003, o governo Lula sancionou a Lei 10.639/03, que altera a LDB, A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira. A mesma estabelece diretrizes curriculares e sua implementação. Seu teor resgata historicamente a contribuição dos negros na construção e formação da sociedade brasileira. Trata-se de um marco para o movimento negro no Brasil.
O art. 26, § 4° da Lei n°. 9.394/96, a LDB, diz que: “O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.” Já o art. 26-A, § 1° e 2° da Lei supracitada nos diz o seguinte:
1.
Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e políticas pertinentes à História do Brasil (Incluído pela Lei n°. 10.639, de 9.1.2003).
Tal texto é a valorização da cultura de matriz africana e afro-brasileira, onde a Capoeira figura em seu rol e pode dar significativa contribuição para sua efetivação. Sabe-se que o negro, assim como o índio são as figuras oprimidas e vencidas da História do Brasil. Hoje, o governo brasileiro tenta através de políticas afirmativas como essa reparar o dano causados a essas matrizes do povo brasileiro. Mesmo com essa nova abordagem, o ensino de história que acontece nas escolas públicas não está muito voltado para o pensamento dos vencidos. Geralmente,
0 ensino se processa com foco nos vencedores, mais parece um cortejo ao triunfo das classes dominantes. No interior das instituições, pode-se observar cartazes que são confeccionados nas aulas que reproduzem a história dos dominantes, a história oficial. Ao mesmo tempo, a escola abre as portas para a comunidade, para a diversidade cultural. A Capoeira é uma importante ferramenta nessa nova perspectiva do ambiente escolar. Atividade que representa o povo brasileiro, fruto da mistura das raças que já ganhou o mundo e se aperfeiçoa como instrumento de educação (FERREIRA NETO, 2009). Abaixo tentar-se-á descrever o pensamento benjaminiano sobre o conceito de história e sobre o combate que se processa dentro dessa área do conhecimento humano, entre os vencedores e os vencidos. Esse será relacionado às
cantigas de capoeira tentando identificar esse elemento estético com um instrumento de contestação a história dos vencedores.
II. As cantigas de capoeira à luz do pensamento benjaminiano.
No texto intitulado Sobre o conceito da História o filósofo da Frankfurter
Schuler, Walter Benjamin (1994), diz, em sua tese VII, que o historiador desenvolve uma relação de empatia com o vencedor. A seguir seu texto:
[...] se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores (BENJAMIN, 1994).
Essa tese é concernente ao problema da empatia ou da identificação afetiva com 0 passado. Ele afirma segundo Aquino (2009, p. 18) que “[...] quando de trata da história e da transmissão histórica, deve-se buscar saber com quem, nesse plano, se dá a empatia ou tal identificação afetiva”. Como foi visto a reposta só pode ser com
0 vencedor, com a classe que domina. “Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais” (BENJAMIN, 1994, p. 225). Ora 0 ensino de história não poderia se dirigir senão ao cortejo dos vencedores, pois o material produzido para as escolas durante muito tempo só privilegiava o discurso da classe dominante. Esses “ [...] bens culturais, a cultura
(Kultur), situam-se num processo histórico de transmissão que ele identifica metaforicamente a um ‘cortejo de triunfo’ dos vencedores” (AQUINO, 2009, p. 19).
A Capoeira sempre foi perseguida durante toda a história do Brasil e até hoje ainda permanece na mente de muitos, uma conotação perniciosa de sua prática. Ela ainda não é vista com bons olhos pois é prática daqueles que foram dominados. Suas cantigas, elementos estéticos indissociáveis de sua prática carregam em seu bojo conteúdo crítico que põe em xeque a tradição oriunda dos vencedores. Ora, pelos dois parágrafos acima percebe-se que há um disputa pela transmissão da história. Segundo Aquino (2009, p. 20) na tese VI do texto em estudo, Benjamin (1994) considera que todo o presente ao receber a cultura transmitida “configura-se num ‘instante de perigo’, visto que toda transmissão, dada sempre num instante histórico de disputa, repõe a luta entre vencedores e vencidos da história [...]” nessa luta, mais uma vez, os vencedores podem voltar a vencer “[...] o conteúdo da tradição quanto a própria transmissão histórica tornam-se objeto de disputa” (idem). Os vencidos não podem mais uma vez serem dominados, nas palavras de Benjamin (1994, p. 224): “O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apodera-se dela”. Aqueles que articulam o conhecimento histórico, sobretudo os historiadores ou os que propagam a história e a cultura necessitam ter o cuidado para fazerem justiça frente aos vencidos e dá voz a esses.
Articular o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. [...] O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (Benjamin, 1994, p. 224-225).
Aquino (2009) afirma que nessa tese há um convite a arrancar das mãos do vencedor a transmissão do saber histórico. As cantigas de capoeira realizam essa
tentativa, tanto em sua manifestação mais espontânea quando as composições brotam do homem mais simples, quanto quando essas composições seguem as regras e os estudos sobre a mesma realizadas pelos estudiosos da capoeira. Segundo Vieira (1998), Doutor em sociologia e Mestre de Capoeira, as cantigas possuem três funções básica, a saber, função ritual, mantenedor das tradições e de constante repensar histórico. Os cantos não são destituídos de significados, elas trazem inúmeras nuances da história do passado e do presente, dos grandes nomes da história e dos homens simples da Capoeira, mensagens de vida que permite ao cidadão comum identificar-se como membro de uma sociedade. Abaixo, aponta-se dois exemplos de cantigas onde os vencidos tomam a cena e figuram como personagens principais. A primeira é uma composição de Mestre Moraes, ele é uma grande referência para o mundo da Capoeira. Abaixo, transcreve-se parte de uma de suas cantigas intitulada Rei Zum bi dos Palmares:
A história nos engana dizendo pelo contrário até diz que a abolição aconteceu no mês de maio Comprovada essa mentira [...] [...] Viva 20 de novembro Momento pra se lembrar No dia 13 de maio Nada pra comemorar [...] [...] muito tempo se passaram E 0 negro sempre a lutar Zumbi rei nosso herói De Palmares foi senhor Pela causa do homem negro Foi ele quem mais lutou Apesar de toda luta Negro não se libertou [...] (sic)
Percebe-se a crítica em relação a História oficial. Em sua composição, nega, claramente, a versão oficial. Prossegue ressaltando a data que se comemora o Dia da
Consciência Negra e o grande símbolo da resistência negra, Zumbi. Mestre Moraes, finaliza sua cantiga lembrando que a luta pela liberdade ainda acontece nos dias atuais. O fim da escravidão não foi o início de um período de reparação, muito tempo se passou para que a consciência nacional acordasse para a responsabilidade que tem perante os afrodescendentes. 0 13 de maio é rejeitado, o verdadeiro herói é Zumbi. Em Isabel que história
é essa, cantiga do Mestre Tony Vargas, percebe-se as mesmas veredas percorridas pela composição anterior, apontando Zumbi como o grande herói, criticando a história da escola e ressaltando a vida cotidiana da favela, os quilombos de hoje, como fonte verdadeira. É a luta contra o conformismo expressa através de uma composição de origem popular.
Dona Isabel que história é essa; De ter feito a abolição De ser princesa boazinha [...] Estou cansado de conversa Estou cansado de ilusão Abolição se fez com sangue [...] A abolição se fez [...] Com a verdade da favela Não com a mentira da escola {sic) (VARGAS apud MATTOS & MATTOS, 1995, p. 98)
III. A Escola e a Capoeira
Na escola percebe-se um ambiente de disputa, o conhecimento histórico é objeto de disputa entre os vencedores e os vencidos. E percebe-se, claramente, pelas posturas dos educadores e dos interesses que permeiam esses espaços. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana há um princípio chamado consciência politica e histórica da diversidade que encaminha para
“valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, por exemplo, como a dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da leitura; educação patrimonial, aprendizado a partir do patrimônio cultural afro-brasileiro, visando a preservá-lo e difundi-lo” consta ainda que “o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africano se fará por diferentes meios, em atividades curriculares ou não” (MEC, 2004, p. 20). Tais tarefas podem ser realizadas a partir da Capoeira. Pois esta trabalha o corpo envolvido com a música. A escola não é a grande responsável pela transformação social, mas essa transformação não se fará sem ela. Ela só poderá ser o lugar onde os oprimidos adquirirão sua autonomia, se eles puderem adentrar nesse espaço. O primeiro passo é abrir suas portas para que eles possam entrar (GADOTTI, 1995). Hoje, o capoeirista, outrora marginalizado, já está dentro desse espaço educacional, realiza a antítese do pensamento dominante. “A educação informal convida a escuta dos anônimos [...] circunstância que faz da história oral uma escolha quase obrigatória no referido campo de investigação” (RO D RIG U ES, 2009, p. 438). A memória preserva a tradição e evita deformações e distorções sobre a história dos vencidos ou esquecidos. As cantigas são composições que resgatam a memória e perpetuam as tradições promovendo o constante repensar das mesmas. A memória pode preencher as lacunas deixadas pela história escrita ou encontrar um canal que possibilite o diálogo com o universo simbólico da história recente (VASCONCELOS, 2010, p. 102). Na Roda, quando o capoeirista está no jogo, sua expressão corporal é manifestada de várias formas, para Vasconcelos (2009, p. 15) “É como se o corpo se deslocasse o tempo inteiro em profundo equilíbrio que dança, interpreta, canta, chora, ri [...]”. O mundo se inverte e a figura do oprimido não é mais um sujeito sem importância, ele se reconhece como protagonista de sua história e interfere em sua comunidade deixando a marca de sua passagem, a história deixa de ser construída apenas pelo dominante (BENJAMIN, 1994). Seu saber oferece a manutenção viva da memória do conjunto de conhecimentos não formais, não institucionalizados e que compõem e mantém viva a consciência coletiva ritualística e ancestral dessa prática cultural. Tais características
remete ao entendimento de Le Goff (2003) que constantemente defende a pesquisa da memória do homem comum, das recordações e histórias locais. Entende-se, aqui, a figura do Mestre como um educador, antigamente e ainda hoje, o Mestre de Capoeira tem um grau de intimidade com o aluno, ele quer saber como está a vida deste. No contato do aprendiz com o Mestre de Capoeira se desenvolve uma relação de afeto que vai se construindo aos poucos. Abreu apud (CASTRO JÜN IOR, 2005p. 150) diz que:
A relação do mestre com o aluno na capoeira é uma relação extremamente importante porque ela é pessoal, e os ensinamentos são transmitidos como se fossem um segredo, com certo grau de intimidade [...] o mestre preocupa-se em está próximo dos alunos.
O capoeirista nega a realidade do estabelecido e prefere “viver a malandragem e a malícia na trama cotidiana da capoeiragem” (VASCONCELOS, 2009, p. 15). A mandinga, a malícia, as cantigas, a ancestralidade, o aprendizado mimético são alguns dos elementos que negam o status quo, negam a história oficial. A Capoeira tem um forte caráter negativo que se opõe ao Estabelecido. Sua essência libertadora, luta desde sua gênese, pela liberdade dentro e fora do universo da roda.
Considerações finais
As pesquisas de História mudaram bastante, tem-se, cada vez mais, dado a voz ao homem comum, os grandes homens e os grandes acontecimentos não são mais os únicos contemplados com a preocupação dos historiadores. Porém, o ensino que se processa nas instituições formais é bem diverso. A história oficial ainda é o foco do ensino. O Brasil não é o país do europeu, em sua constituição há pelo menos três matrizes, a saber, o índio que já estava em Terras brasilis, o branco, invasor, colonizador;
e 0 negro, escravizado por este último. As leis brasileiras tem caminhado no sentido de dar voz aos outros integrantes dessa matriz cultural. O problema que as mudanças se processam lentamente e o que se vê ainda é a história dos dominadores ou vencedores. Nesse período de adaptação aos novos parâmetros, a escola permite a constituição de espaços de resistência, embora sejam controlados de longe pelos gestores. A escola abre as portas para a comunidade e esta expressa através de suas inúmeras manifestações culturais o sentimento de contestação ao estado imposto pelos dominantes. A Capoeira através das rodas é um desses espaços de afirmação do oprimido. Refletiu-se aqui sobre a roda de capoeira como um espaço de resistência cultural onde o dominador tem dificuldade de se estabelecer. A cultura oral que se processa na composição das cantigas não demonstra empatia com o vencedor. Esse é rechaçado nas composições e os ídolos e heróis são louvados como representantes dessa arte marginal.
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DINHEIRO E INVERSÃO ÜNIVERSAL: SOCIEDADE MODERNA, CONTRADIÇÃO E AMBIGÜIDADE NA CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA ÁLVARO LINS MONTEIRO MAIA - Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). alvarolinsmm@gmail.com
Resum o: Pretende-se expor, com base na crítica social de Marx, certa leitura das relações que se estabelecem na sociedade moderna, no âmbito da circulação de mercadorias. O dinheiro, onde se incorpora do modo mais luminoso a natureza reificada das relações sociais, é uma forma que ofusca o caráter coletivo dos trabalhos privados e, com isso, as relações sociais entre os trabalhadores. A contradição presente na mercadoria entre valor de uso e valor (que adquire independência como valor de troca no dinheiro) desdobra-se na forma ambígua dos produtos da atividade social, como processo social que aparece como natural. Na apresentação das relações fetichistas que se mostram na aparência social desse sistema econômico, intenta-se expor como, nas próprias formas alienadas, desenvolvem-se as condições sociais de emancipação dos indivíduos modernos sob 0 aspecto de uma inversão universal das individualidades, operada pela forma dinheiro da produção social, nas relações cotidianas da circulação de mercadorias.
Palavras-chave: dinheiro, inversão universal, contradição, ambigüidade
N° 6 - 02/2014
Introdução
om base na crítica da experiência social em Marx, a análise e apresentação da
C
gênese, essência e desenvolvimento das formas do dinheiro é o topos de onde se pode acompanhar de maneira mais clara o desenrolar lógico que busca
traduzir o processo histórico da formação social atual, não obstante aí a crítica teórica ter de lidar justamente com as figuras da aparência e do falso (nas suas relações com a
verdadeira essência do sistema). Isso porque o processo desencadeado pela relação capital, no desenvolvimento pleno das formas mercadoria e dinheiro, opera um avanço contraditório das forças produtivas sociais, na medida em que esse avanço processa-se de modo alienado em relação aos indivíduos membros dessa sociedade, pois que o impulso da relação capital é 0 de apropriar-se da atividade social fazendo-a aparecer como seu desenvolvimento próprio, como um desenvolvimento que se processa alheio aos indivíduos, submetendoos como meros joguetes e espectadores. Nesse avançar alienado das forças produtivas sociais, contudo, o capital põe em ação também as condições sociais que permitem a superação da forma de sua própria potência alienada. A contradição imanente ã relação capital banha com sua luz dúbia os produtos e relações sociais dessa sociedade; sendo a ambigüidade a forma aparente na qual se desdobra a contradição originária e fundamental da ordem social vigente. Isso na medida em que essa relação fundante - de submissão da atividade social viva desenvolve-se na base da relação monetária (para a qual ela cria ao mesmo tempo as condições de possibilidade de desenvolvimento); relação essa que é ilusória e ofuscante “por natureza”.
Capital e aparência social: a vida cotidiana como inversão universal das
individualidades^ nas relações sociais mediadas pelo dinheiro
A redução do trabalho humano concreto a trabalho abstrato sob a forma do valor, decorrente do assalariamento - processo que se imbrica com a determinação do valor dos produtos como preço por meio dos custos de produção
foi o processo através do
qual a relação monetária se generalizou como a relação universal entre os indivíduos dessa sociedade.
O pressuposto elementar da sociedade burguesa é que o trabalho produz imediatamente valor de troca, por conseguinte, dinheiro; e então, igualmente, que o dinheiro compra imediatamente o trabalho e, por isso, o trabalhador tão somente na medida em que ele próprio aliena sua atividade na troca. Portanto, trabalho assalariado, por um lado, e capital, por outro, são apenas outras formas do valor de troca desenvolvido e do dinheiro enquanto sua encarnação^.
Assalariar significa tornar um indivíduo livre de toda e qualquer propriedade em sentido capitalista, portanto, propriedade dos meios de produção da vida - exceto a posse da sua força de trabalho pessoal, para que assim ele seja livre para escolher a quem vender essa força de trabalho a fim de garantir sua sobrevivência. Vender a força de trabalho significa que em troca do salário alguém cede toda a sua produção ao comprador desse único produto que aquele indivíduo dispunha para pôr à venda. Com isso garante-se que a grande massa da população de assalariados não tenha outra forma de reproduzir a própria existência a não ser por meio da compra das mercadorias (produzidas pelos próprios assalariados) com o dinheiro que obteve da venda da única mercadoria que possuía.
' MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, p. 160. ^ MARX, Karl. Grundrisse [149-150], p. 169.
Pela mediação do dinheiro - que se generaliza por força do próprio assalariamento a situação de exploração é constantemente ofuscada. O dinheiro como capital é a forma universal mais determinada do tempo de trabalho, cujo valor constitui a forma abstrata. O tempo de trabalho se torna valor na medida em que os trabalhos concretos se relacionam uns com os outros como equivalentes, quer dizer, na medida em que cada qual vale tanto quanto qualquer outro, aceitando diferenças apenas quantitativas: mais ou menos tempo de trabalho. Essa atividade abstraída das suas qualidades cria um produto abstrato, o valor, que na sua existência abstrata habita os corpos particulares das mercadorias. Quando, pelo hábito das trocas - que aparece como pressuposto de todo 0 processo -, uma mercadoria se sobressai como encarnação do valor (união das duas naturezas: a universal e a particular, a infinita e a finita), essa mercadoria se torna dinheiro^ Pela sua única determinação qualitativa de só aceitar variações quantitativas,
0 dinheiro emerge de toda metamorfose das trocas com o mesmo semblante com o qual imergiu^ Mesmo que entre ou saia do mercado mais ou menos dinheiro, ou que ele se troque uma, duas ou 666 vezes, todavia, o dinheiro não carrega nenhum termo circunstancial de ocorrência. Ele circula livre, e o modo como se apresenta agora é o mesmo de como foi e de como será, sem medo e sem mácula. O assalariado, devido à capacidade do dinheiro de tornar universal e abstrata toda relação reaP - e com isso ofuscar, ao mesmo tempo em que medeia, as particularidades em relação -, permanece, no geral, incônscio do grau real de sua exploração até que amadureça a luta social que faz despertar a consciência adormecida. No mesmo sentido, o desenvolvimento desigual entre o capital do proprietário e 0 salário da massa proletarizada beneficia-se desse caráter ofuscante da relação expressa pela forma monetária. Assim, a exacerbação da luta de classes põe às claras não só essa ilusão difusa na aparência social da troca de equivalentes, mas o próprio caráter fundamentalmente beligerante dessa sociedade, na medida em que éjustamente a relação contraditória entre capital e salário - denominações monetárias dos dois
^ M dem [97-98], pp. 112-113. MARX, Karl. 0 Capital, 1,4,1, pp. 226-227. ' MARX, Karl. Grundrisse [18], p. 100.
polos em guerra - que funda essa formação histórico-social e possibilita a extensão e generalização das formas difusas da mercadoria e do dinheiro a toda esfera de relação entre os indivíduos. Querdizer,ocapital-leia-se,asmercadoriaseodinheiroempossedo proprietário capitalista
no seu processo de conservação, que implica em sua autovalorização,
busca erigir-se como único sujeito de todo o processo. Com isso, busca consumir, no seu autodesenvolvimento - no seu devir-sujeito-absoluto do processo de produção e reprodução social -, a sua contraparte: a força de trabalho viva dos indivíduos.
Aparece aqui também uma mistificação inerente à relação capitalista: a faculdade que o trabalho possui de conservar o valor apresentase como faculdade de autoconservação do capital; a faculdade que possui 0 trabalho de gerar valor (apresenta-se) como faculdade de autovalorização do capital - e, no conjunto, e, por definição, o trabalho objetivado aparece como se utilizasse o trabalho vivo.®
Mas se a força de trabalho (nos termos do capital, o salário, a sua denominação monetária) é o único componente capaz de fazer valorizar o capital pela absorção de trabalho vivo, o processo de devir-sujeito-absoluto do capital é utópico e autodestrutivo, possibilitando a emergência da luta de classes, gestadora do instante revolucionário: ou seja, a tentativa dos reais sujeitos do processo - os indivíduos por meio de sua atividade sensível-prática - de se reapropriarem do mesmo e de suas vidas expropriadas. Nesse sentido, os únicos meios pelos quais o capital pode se manter como processo são a coerção direta - operada sobretudo pelo aparato policial do Estado ou 0 segredo, a mentira e a ilusão - produzidas “naturalmente” pelo sujeito capital mistificado no desenvolvimento e generalização das formas difusas fetichizadas do dinheiro e da mercadoria, que, como se disse, velam os processos de gênese e desenvolvimento do capital e a sujeição dos indivíduos no processo de trabalho.
’ MARX, Karl. Capítulo VI inédito de 0 Capital, p. 89.
Na ilusão objetiva dessa sociedade, os indivíduos aparecem como estranhos aos demais, sua comunicação e sua linguagem como um instrumental exterior e estranho a eles. E o mesmo indivíduo aparece como estranho a si, na medida em que seu desenvolvimento e formação próprios obedecem às leis de uma existência abstrata de si mesmo - contudo a existência pela qual é reconhecido socialmente -, uma existência como valor, como mercadoria, como Ersatz à disposição do mercado, que submete seu devir vivo existente a ela, conformando a atividade material e aquilo que ela implica necessidades, desejos etc. - aos seus imperativos, e descartando como resto a matéria inconformada. Quer dizer, essa potência abstrata se constitui da atividade humana produtora de valor de uso, apropriando-se contudo dela e transfigurando-a em imagem sua. Essa transfiguração e reciclagem da atividade material, evidentemente, não se resume somente ao âmbito psicológico subjetivo, mas estende seu domínio ã totalidade das “configurações da vida, das construções duradouras às modas passageiras”^ de modo que se trata tanto da situação em que a aparência sensível mostra-se subjugada, transfigurada e conformada à imagem do sistema, que se expressa como aparência objetiva do cotidiano da sociedade produtora de mercadorias em grau generalizado, como também se trata da conformação operada por essa mesma aparência objetiva do sistema, que nada mais é do que controle do trabalho e sua submissão à lógica de acumulação de capital por meio do processo de produção e circulação mercantil, que nada mais é, portanto, do que controle e submissão dos corpos dos trabalhadores, seja policialmente ou persuasivamente por meio da “sugestão hipnótica” da circulação mercantil. Ademais, juntamente com a compreensão do processo de transfiguração da realidade na abstração - que passa a valer como realidade efetiva -, trata-se de, fazendo retroagir toda relação exposta até aqui, compreender o imbricamento dessa inversão universal das individualidades com a condição social mediada objetualmente sob a regência da relação de valor autorreferida (em seu processo de autovalorização), quer dizer, sob a regência do capital.
’ BENJAMIN, Walter. Passagens. Exposéde 1935, p. 41.
A dicotomia expressa na forma elementar da mercadoria entre valor de uso e valor - resultado já da dicotomia presente na produção entre processo de trabalho e processo de valorização - atualiza-se ainda em outra dicotomia entre mercadoria e dinheiro*, na medida em que o valor adquire forma autônoma como valor de troca no preço e na moeda. Estas formas autonomizadas, tendo-se despregado do seu conteúdo real na atividade social, trocam-se com essa mesma atividade - o trabalho social - como se fossem potências estranhas, de outras instâncias, em um movimento no qual causa e efeito do processo se diluem mutuamente metamorfoseando-se em seu contrário. Nesse sentido, preço e moeda parecem se relacionar com o trabalho como símbolos arbitrários em cuja aparência é ofuscada a relação lógica e histórico-social com o mesmo. Por conta disso, a relação de exploração contida na troca de não equivalentes, expressa na relação de assalariamento, aparece como uma troca de equivalentes entre a força de trabalho e o “símbolo arbitrário” do dinheiro, que esconde o fato de que o trabalhador, com o trabalho apropriado pelo capitalista, paga seu próprio salário e dá ao capitalista o mais valor pelo qual seu capital se valoriza.
Esta perpetuação da relação entre o capital como com prador e o operário como vendedor do seu trabalho constitui um a forma da mediação im anente a esse m odo de produção; é contudo um a forma que só form alm ente se diferencia das outras formas mais diretas de sujeição do trabalho e da propriedade das condições de produção por parte dos possuidores dessas condições. Encobre, como mera relação monetária, a transição real e a dependência perpétua que tal m ediação da com pra/venda renova constantemente. N ão são apenas as condições deste comércio que se reproduzem de maneira constante: o que um com pra e o outro se vé obrigado a vender é um resultado do processo. A renovação constante desta relação de com pra/venda não faz mais do que mediar a continuidade da relação específica de dependência e confere-lhe a aparência falaz de um a transação, de u m contrato entre possuidores de mercadorias dotados de iguais direitos e que se opõem de m aneira igualmente livre. Esta relação introdutória agora apresenta-se, inclusivamente, como elemento im anente desse predom ínio do trabalho objetivado sobre o trabalho vivo que é gerado na produção capitalista.®
« MARX, Karl. Grundrisse [79], p. 94. 9 MARX, Karl. Capítulo VIinédito de 0 Capital, p. 137.
O trabalhador assalariado não percebe facilmente na forma alienada do salário
0 grau de sua exploração (e do mesmo modo o capitalista, que pela posição que ocupa torna-se mais lento para percebê-lo). A abstração resultante da forma dinheiro - que, enquanto nega a individualidade do trabalho e dos produtos gerados, universaliza as relações que os produzem - apaga toda diferença qualitativa expressa no valor das mercadorias - capital contante e variável, matérias-primas, instrumentos de trabalho, salário e mais valor - em uma figura matemática fria, no seu preço. Porém, as relações que a gestam ainda estão lá, na figura nada inocente da mercadoria. “O processo imediato de produção é aqui, de maneira permanentemente indissolúvel, processo de trabalho e processo de valorização assim como o produto é unidade de valor de uso e do valor de troca, isto é, mercadoria”“. No símbolo matemático expresso no preço das mercadorias esconde-se, portanto, toda particularidade da produção social no sistema capitalista. Esconde-se aí toda a expropriação das condições sociais de vida elaborada pelos indivíduos dessa sociedade. Na medida em que no dinheiro não se diferenciam as partes que o compõem, todo montante de dinheiro que adentra o mercado para funcionar potencialmente como capital, na proporção em que vai absorvendo mais valor e incorporando-o a si, não se mostra qualitativamente diferente de como iniciou todo o processo. Assim,
0 preço da força de trabalho pode aparecer como se nele fosse pago o preço de todo 0 trabalho. Quer dizer, mesmo que o capital inicial já se tenha duplicado, e que o investimento do capitalista já tenha sido pago pelo trabalho alheio de seus empregados assalariados; ainda assim, o capital jamais aparece como propriedade coletiva daqueles trabalhadores associados, mas aparece sempre como propriedade de si mesmo na sua figura personificada, o capitalista
Compreende-se, assim, a importância decisiva da transformação do valor e do preço da força de trabalho na forma-salário ou em valor e preço do próprio trabalho. Sobre essa forma de manifestação, que torna invisível a relação efetiva e mostra precisamente o oposto dessa relação, repousam todas as noções jurídicas, tanto do trabalhador
'"Ibidem, p. 144.
como do capitalista, todas as mistificações do modo de produção capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as tolices apologéticas da economia vulgar.^
Dinheiro, inversão universal e hierarquização social
A inversão e apagamento das particularidades da produção social operadas pela forma dinheiro desses produtos é também inversão universal da individualidade dos membros dessa sociedade, na medida em que sua força de trabalho se põe igualmente como mercadoria no assalariamento. As diferenças reais - de classe - aparecem veladas por diferenças de renda e salário: destaca-se na hierarquia social a figura aparente de uma classe intermédia que, na maioria dos casos, não se identificando nem com a classe proletária e nem com a classe proprietária, surge como sustentáculo de valores sociais passados, numa relação reacionária com o presente. Para se compreender esse aspecto, é necessário ter presente que o processo de abstração do trabalho e da produção sob a relação capital opera uma espécie de planificação social potencial. Todo produto é mercadoria, em cujo valor social universal desvanece toda diferença qualitativa. Da mesma forma, todo trabalho, como produtor de mercadorias, vale como qualquer outro. Por conseguinte, todo trabalhador, sob a condição do assalariamento, vale qualitativamente tanto quanto qualquer outro. Sobretudo com a introdução da maquinaria na fábrica - e com a facilidade de operação do maquinário - a igualdade social dos trabalhadores cristaliza-se e assume o caráter de “valor moral eterno”. Potencialmente, portanto, como assalariados, toda diferença racista, sexista, etária etc. é negada diante da abstração mesma da determinação que forma a essência universal do indivíduo moderno. Contudo, aquilo que determina potencialmente a condição universal do indivíduo moderno - quer dizer, diante da abstração qualitativa, autorizar tão somente diferenças quantitativas -, essa determinação, portanto, que se efetiva na figura
" MARX, Karl. 0 Capital 1,17, p. 610.
do direito abstrato moderno, opera em ato não uma negação cabal das diferenças hierárquicas tradicionais, mas uma transfiguração dessas diferenças em novas configurações hierárquicas, que aderem à aparente arbitrariedade do signo monetário - resultado, como já se comentou antes, do desenvolvimento das relações entre valor, preço e moeda inerentes á mercadoria-dinheiro. Assim como dinheiro não é imediatamente capital e, dado o desenvolvimento cada vez maior das relações de produção capitalistas, a capacidade do dinheiro de se tornar capital está ligado á crescente magnitude de sua determinação quantitativa - de modo que, com a amplitude do seu montante, uma diferença quantitativa se converte em diferença qualitativa
da mesma forma, a dita arbitrariedade aparente do
signo monetário adapta-se aos preconceitos sociais tradicionais e, ao mesmo tempo, configura novos patamares hierárquicos^^. O homem branco, heterossexual e cristão possui mais valor de mercado - e, por conseguinte, mais valor, pura e simplesmente do que a mulher negra, homossexual, de religião afro-descendente. Desse modo, as diferenças salariais - fruto das formações profissionais diferenciadas que, desde o início do processo, já são determinadas socialmente pelas hierarquias tradicionais - gestam no seio da classe proletária uma hierarquização monetária de classe - classe B, C, D... - que mantém, forma e sustenta toda espécie de preconceito social na base da inversão universal operada pela figura do dinheiro. Querdizer,desdeoinstanteemqueosindividuosproletarizadossãoreconhecidos como iguais e de igual valor - pois que aparecem negadas as suas diferenças sob a base do reconhecimento universal como assalariados: trabalhadores que trocam sua força de trabalho pelo valor universal do dinheiro, o penhor universal que planifica e abstrai toda a realidade sob um mesmo denominador comum e aparentemente arbitrário - a partir desse instante, então - e na medida em que a figura do dinheiro reflete a figura mais obscura da relação capital -, a desigualdade é mantida, reformada e reposta. Todavia, a transfiguração das hierarquias tradicionais sob a base do signo monetário avança inclusive, contraditoriamente, na forma da própria luta contra a
Cf. DEBORD, Guy. 0 declínio e a queda da economia espetacular-mercantil; e também, AMARAL, Ilana Viana. Teses pelo fim do sistema de gêneros.
cristalização desses preconceitos sociais herdados. Nesse sentido, a especificidade das minorias excluídas, tal como se fossem mercadorias exóticas em exibição no mercado - uma especialidade da produção posta a venda -, adquirem um caráter narcisico que erige uma individualidade contra as demais individualidades, em um processo que, ao invés de superar essas determinações sociais tradicionais - libertando os indivíduos sob uma base universalmente concreta -, enrijece essas determinações sob uma base universalmente abstrata^, no modelo das relações entre mercadorias.
Dinheiro, desejo, “individuidade” e estruturas inconscientes
Porém, sobeja ainda do caráter universalizante da relação monetária outras implicações, intimamente associadas às anteriores. Na medida em que as relações sociais entre os indivíduos - e por conseguinte o poder social de que cada pode dispor existe exteriormente de forma reificada no dinheiro, essa coisa - o dinheiro - dá forma e permite a expressão - por meio da elaboração de um impulso desmesurado de desejo - de uma força desejante não mais particular - ligada a um objeto particular da riqueza -, mas a um desejo universal, infinito e desmesurado do indivíduoi^; pode-se dizer, a um desejo essencial ou ã essência do desejo. Isso se soma ao fato de, nessa sociedade, a existência privada desses indivíduos não constituir uma individualidade verdadeiramente desenvolvida e concreta, de modo que 0 desenvolvimento dessa “individuidade” opera-se de forma alienada na coisa que concentra em si a condição de sociabilidade da existência desses indivíduos: a coisa que existe como materialização da relação social. Dessa forma, o impulso de constituição dos indivíduos modernos existe como desejo universal encarnado no produto mais característico dessa ordem social: o dinheiro como conexão social alienada. Marx esclarece que esse desejo insaciável - porque se alimenta, não obstante, de um objeto particular que encerra em si a relação universal - constituía um fator
Cf. AMARAL, Ilana Viana. Teses pelo fim do sistema de gêneros. MARX, Karl. Grundrisse[146], p. 165.
dissolutor das ordens sociais antigas; daí sua condenação explícita pelos antigos e o recalcamento desse desejo do indivíduo voltado à forma social universal reificadai^ Contudo, desde que a sociedade moderna se erige sobre o fundamento mesmo da relação universal do dinheiro, esse desejo insaciavelmente desejante- que corresponde à própria elaboração da “individuidade” dos indivíduos - encontra vazão para se expressar. Com isso, as estruturas psíquicas e sociais ligadas a esse desejo universal são capazes de manifestar-se por meio da elaboração objetiva da coisa-dinheiro. Nesse sentido, pode não parecer surpreendente que o desenvolvimento da psicanálise - e o descortinamento das estruturas inconscientes da psiquê humana, em um processo mesmo de constituição da “individuidade” dos indivíduos - tenha se tornado possível (e esse seria mais um aspecto positivo da existência dessas formas alienadas, juntamente com seus aspectos miseráveis) com o estabelecimento pleno do modo de produção capitalista no século X IX e a generalização da relação monetária como modelo de relação social objetiva. Se o isso do inconsciente é essa massa desejante amorfa, no dinheiro como objeto universal - muito embora sob a forma de uma coisa particular - esse desejo encontra um modo de expressão. Contudo, a consideração de que, não obstante expresse a relação universal, o dinheiro seja um objeto particular é tudo menos irrelevante para o problema em questão. Deus ou 0 Absoluto são objetos universais. Todavia, o Cristo, como espírito que se fez carne, é, tal qual o dinheiro - espírito social encarnado -, um objeto universal encerrado em forma particular. Por essa razão Marx considera o Cristianismo, como culto do homem abstrato - sobretudo em sua versão protestante -, a religião mais apropriada ao espírito burguês“ . Daí autores contemporâneos como Giorgio Agamben - guiado pelo aporte benjaminiano da questão - afirmarem que Deus não morreu, tornou-se dinheiro^^ [Não cause espanto, ademais, o poder desagregador que também
0 cristianismo potencialmente gerou em relação às estruturas de organização social tradicionais- ao mesmo tempo em que transfigurou essas estruturas sob novas formas.]
M dem [147], pp. 165-166. MARX, Karl. 0 Capital1,1,4, pp. 153-154. “Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro”. Entrevista com Giorgio Agamben. In: http://www.ihu. unisinos.br/noticias/512966-giorgio-agamben
Mas 0 fato é que, tal como Deus - ou a figura de um Pai primevo - o dinheiro igualmente, como forma social alienada, portanto, como objeto que apela para a ausência de controle e autonomia dos indivíduos em relação às suas vidas - é capaz de ativar estruturas inconsciente ligadas à culpa e ao desejo de redenção e salvação que a submissão e a posse do mesmo pode proporcionar. Quer dizer, mesmo as estruturas super-egóicas também extraem força da relação reificada do dinheiro. Nisso, pelo fato de todo produto da sociedade moderna produtora de mercadorias ser marcado pela ambigüidade - que expressa nada mais do que a forma aparente da contradição universal fundante dessa ordem social -, o dinheiro - como forma social mais característica da atual sociedade - carrega - não obstante como forma alienada e estranhada das relações dos indivíduos - uma possibilidade de libertação individual, na medida em que, com a sua posse, o indivíduo pode ter acesso ao gozo de toda a realidade que se lhe apresenta.
Considerações finais
Juntamente com o fenômeno da transfiguração das estruturas hierárquicas tradicionais, essa válvula de escape para a expressão das estruturas sociais inconscientes - possibilitadas pela existência das condições sociais modernas alienadas na figura da coisa dinheiro - constituem verdadeiros motores para a eclosão de revoltas e regimes fascistas por toda a face do mundo moderno. Nesse sentido, a hierarquização social sustentada na base da abstração monetária ativa uma série de ordens hierárquicas inconscientes que encontra solo fértil justamente na camada social que mais teme se proletarizar - posto que acredita não ser já desde sempre proletarizada
as chamadas
classes médias. É por isso que a luta proletária realmente revolucionária é somente aquela capaz de negar o dinheiro e sua figura embrionária: a mercadoria. Ou seja, se mercadoria e dinheiro fornecem a forma alienada através da qual as condições sociais de libertação dos indivíduos são elaboradas sob a regência da relação capital, na mesma proporção
- justamente por serem formas alienadas de elaboração dessas condições sociais essas formas sociais do produto e das relações condenam os indivíduos, sob a base das condições sociais mais modernas, às relações sociais e hierarquizações mais arcaicas^* - por exemplo, os regimes fascistas. A submissão e conformação dos corpos aparece como um esvaziamento das condições sociais dos indivíduos, que se elaboraram exteriormente a eles, de forma reificada e autônoma. Essa pobreza de experiência social^^ dos indivíduos modernos lança-os em uma nova barbárie cujo objeto de pilhagem é justamente o controle imediatamente coletivo das condições sociais alienadas dos mesmos. Nesse sentido, a crítica da economia política de Marx fornece amplos elementos à contraparte teórica revolucionária da luta insurrecional dos indivíduos pela tomada de consciência e controle da vida que lhes tem sido expropriada - muito embora seja um fruto também dessa luta. Assim, a destruição das formas sociais sob as quais se elaboraram as condições alienadas de libertação dos indivíduos, na construção de formas sociais autônomas de produção e gestão, é a senda pela qual passa toda luta verdadeiramente revolucionária. Do mesmo modo, é o destino de toda luta de libertação revolucionária sua associação com 0 crime; o que tão somente revela que, sob as leis de exploração do capital e da circulação de dinheiro e mercadorias, toda crítica real e verdadeira assume não apenas a figura inocente do crime político, mas é, sobretudo, para essa sociedade, um crime social.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Exposéde 1935, p. 41. Cf. MARX, Karl. Manuscritos econômico-fllosóficos', e também, BENJAMIN, Walter. Experiência e
pobreza.
Referências bibliográficas MARX, Karl. 0 capital: crítica da economia política: Livro 1:0 processo de produção do
capital, [tradução de Rubens Enderle]. São Paulo: Boitempo, 2013. _________ . Capítulo VI inédito de 0 Capital, resultado do processo de produção imediata. tr. br. Klaus Von Puchen. São Paulo: Centauro, 2004. _________ . Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da
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Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1994. D EB O RD , Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução Esteia dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. _________ . 0 declínio e a queda da economia espetacular-mercantil. In: Sopro 2^/29. Trad. Leonardo D ’Ávila de Oliveira e Rodrigo Lopes de Barros Oliveira. Desterro: Cultura e Barbárie, maio-junho de 2010. Publicação quinzenal da editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
“Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro”. Entrevista com Giorgio Agamben. In: Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/ noticias/512966-giorgio-agamben
Acesso em: 14/11/2014.
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FOTOGRAFIA 3X4: BELCHIOR E A FAÍSCA RELAMPEJAR UMA ANÁLISE CRÍTICO-LITERÁRIA EM WALTER BENJAMIN FRANCISCO GABRIEL SOARES DA SILVA - Graduando em Filosofia Licenciatura pela Universidade Federal do Cariri (UFCA). gabriel.engmat@gmail.com
Resum o: A partir dos conceitos de experiência em “Experiência e Pobreza” e dos elementos narrativos de “O Narrador” em Walter Benjamin, propomonos a uma leitura que busque uma mediação com Belchior, musico cearense, em “Fotografia 3x4”, tomando essa manifestação artística e cultural, podemos incinerar, e retirar desde o início das chamas, até a sua completa combustão e conversão em cinzas, elementos que permeiam uma retratação de um tempo vivido por camadas de pessoas que se deslocam para terras distantes na intenção de buscar a felicidade. Belchior vive a experiência, de forma que sua dor é transfigurada na mais sublime forma estética, ao contar o que vivera de forma tão singular. As concepções benjaminianas de um declínio da experiência e de uma forma literária nos mostram caracterizações de novos tempos, marcados por um esvaziamento de sentido. Nosso cantor vem colocar-nos a necessidade de disputa, resistência e reconfiguração do papel da narração em nosso tempo.
Palavras-chave: Experiência, Belchior, Arte, Benjamin N° 6 - 02/2014
I -“VIVIA O DIA E NÃO O SOL, A NOITE E NÃO A LUA” -SOBRE AS QUESTÕES DA EXPERIÊNCIA.
As experiências estão em baixa! Isso é absurdamente incompreensível, mas olhe novamente, pegue a lupa e vamos passear pelo laborioso mundo das formulações de Walter Benjamin, um homem que poderia muito bem ser uma lenda, não pelo seu legado material, mas sim pelas histórias que marcaram a sua vida. Em Experiência e Pobreza, texto escrito em 1933, ano em que o Nazismo ascende categoricamente na Alemanha e passa a perseguir, sobretudo, judeus e comunistas/marxistas e qualquer um que não se enquadrasse na concepção Ariana que
0 Partido Nazista reivindicava. Esse foi o ano em que Walter Benjamin foi obrigado a fugir para a França, e a essa época sua vida havia se tornado suntuosamente horrenda, banhada de miséria em cada passo, em cada esquina. Uma das perspectivas de ter escrito “Experiência e Pobreza” foi marcado pela necessidade objetiva de comer, pois havia enviado para a revista Die Welt im Wort coordenada por Willy Hass que se instalara em Praga. Concluído o escrito e enviado para a publicação recebe a tardia noticia de falência da revista, ficando assim Benjamin sem receber seus honorários.^ Para além do aspecto sócio-histórico da escrita desse texto, ele é um legado que transpassa desde a filosofia, estética até a política. Benjamin vai mostrar o que seria a experiência (Erfahrung), por que ela estaria em baixa e quais as implicações disso no cotidiano. Pois bem, nosso autor coloca que não temos mais a capacidade de parar, sentar ã lareira e ouvir nossos velhos, os tempos são outros, a alta velocidade é o que define nossa vida no mundo contemporâneo. Perdemos a concepção de tradição,^ ao modo grego, que fora construída individualmente, mas pelo reforço da memória coletiva de um povo, presentes em seus cultos e rituais. O declínio da experiência está completamente atrelado ao desenvolvimento da técnica. Quando nasce a imprensa, é manifesta a marca do início da perda da tradição
' Walter Benjamin. Comentários: Experiência e Pobreza. In: OAnjo da História. São Paulo: Autêntica, 2013. p. 216. ^ Entender tradição como cultura que é construída coletivamente e não enquanto dogmas irrevogáveis.
oral, onde a experiência que era passada oralmente de pai pra filho vai perder lugar para os livros. Os livros atrofiaram com o tempo nossa capacidade mimética, pois o que é considerado memória coletiva ficou encrustado agora na tinta e no papel, calando assim as bocas e afastando os homens de suas tradições, das experiências compartilhadas coletivamente. Com 0 passar do tempo há aspectos mais emudecedores orquestrados pelo desenvolvimento da técnica. Quando da P Guerra Mundial o combate não é mais honrado pela espada e nem o combate corpo-a-corpo, as armas de destruição em massa, bombas químicas não vieram a destruir apenas corpos, a carne e os ossos dos combatentes, mas vem introjetar uma configuração no imaginário humano, sobretudo nos soldados que foram para os campos de batalha e passaram intimamente pelo contato com o massacrante da guerra, pois o aspecto radicalmente destrutivo das armas lhes arrancou a voz, tornando-os perplexos e traumatizados.
[...] Não se tinha, naquela época, a experiência de que os homens voltavam mudos do campo de batalha? Não voltavam mais ricos, mas mais pobres de experiências compartilháveis. Aquilo que, dez anos mais tarde, na grande vaga dos livros de guerra, era tudo menos experiência contada e ouvida.^
A técnica no seu desenrolar, vem também formatar a vida e o tempo das pessoas, o contatocom a máquina vaimecanizando-as, transfigurando-asem autômatos que na reprodução de seus trabalhos não refletem, mas apenas mantém o ritmo fabril em suas vidas. A humanidade que se encontra completamente esvaziada de sentido, calada e afastada de sua cultura pela velocidade das coisas faz com que se distancie e atrofie aquilo que Benjamin vai conceber como experiência autêntica (Erfahrung), que está ligada á memória coletiva, mas ao mesmo tempo individual, onde as pessoas através de rituais^ têm experiências isoladas, mas que se contextualizam tornando-se
^Walter Benjamin. Experiência e Pobreza. In: 0 Anjo da História, p. 86.
assim experiência coletiva, manifestando uma cultura e tradição que é repassada aos mais novos pelos rituais, sendo tocadas pelas palavras anciãs. Havia um sentido na vida. O homem moderno está exposto a uma série de excitações externas que lhe pedem em cada esquina, em cada outdoor, em cada fachada luminosa, sua completa atenção, e com isso é exposto a choques que o fazem atrofiar a memória como autodefesa do psiquismo, que não consegue se atentar a tudo na velocidade que lhe é imposto, então num grito tenta conscientizar-se de todos os processos, mas retirando suas significações. A partir da modernidade o sentido é perdido e esvaziado pelo cansaço físico e psíquico, pois a vida torna-se veloz e frenética. A concepção cristã do inferno torna-se viva no cotidiano: o corpo é deteriorado durante todo o dia e recomposto ã noite para que no dia seguinte sofra novamente as mesmas mazelas infinitamente. Com isso 0 cansaço psíquico e físico vai destruindo aos poucos o corpo humano, esvaziando de sentido a vida, pois essas experiências nada lhe agregam, são apenas um amontoado de informações. O Olho tem que atentar-se para tudo. E essas “experiências” Walter Benjamin vai distanciar da concepção de Erfahrung, chamando- as de Erlebnis (vivência), pois são apenas coisas vividas que não agregam nada ao indivíduo. Isso é a configuração do mundo em nossos tempos, aparentemente não se pode nada fazer senão sobreviver. W illi Bolle esclarece essa questão numa nota de rodapé presente no livro das Passagens, onde pontua que:
Um traço marcante do pensamento de Benjamin é a diferenciação entre “experiência” e “vivência”. Enquanto
Erfarung
originalmente
(do
significa
verbo “viajar”,
erfahren,
que
“atravessar”)
pressupõe tradição e continuidade. Erlebnis, que ê algo mais espontâneo, implica em choque edescontinuidade. Em notas relacionadas com o ensaio “UbereinigeMotive
bei Baudelaire” (Sobre Alguns Temas em Baudelaire), Benjamin escreve que as “vivências são, por natureza, não utilizáveis para a produção poética” e que se trata de “transformar as vivências em experiências.'*
4 B O LL IE ,W Caderno M: Ócio e Ociosidade. In: BENJAMIN, W Livro das Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 840.
Há em Walter Benjamin, uma relação muito ténue entre a concepção de experiência e memória. Nosso autor toma como base uma dicotomia pontuada por Freud, entre memória e consciência, ambas (para ambos teóricos) são completamente incompatíveis. A memória e a consciência não podem coexistir num mesmo momento. A consciência recebe as excitações externas sem que se guarde traços dessas excitação, cabendo a ela apenas a filtragem e a transmissão ã outros sistemas psíquicos responsáveis por armazenar aquilo que torna-se importante.^ A memória torna as coisas eternas na validade da mente. A memória se enquadra no mesmo sentido cultural que a experiência, na verdade dependendo desta, aquilo que se armazena na memória é o que advêm de experiências autenticas. Já a consciência vem funcionar como defesa, principalmente em nosso tempo, pois as exposições intermitentes da vida frenética precisam ser absorvidas, e não havendo tempo para digerir as informações que nos são impostas o organismo dá uma resposta, para não sobrecarregá-lo ele torna consciente tudo que vê sem que isso lhe afete, sem que isso seja alocado na memória, são traços rápidos de imagens que ficaram pouco tempo guardado, e esse processo faz com que atrofie a experiência e consequentemente a memória, como assinala Rouanet:
A memória e a consciência pertencem a sistemas incompatíveis, e uma excitação não pode, no mesmo sistema, tornar-se consciente e deixar traços mnêmicos, o que significa que quando uma excitação externa ê captada, de forma consciente, pelo
sistema
percepção-consciência,
ela
por
assim dizer se evapora no ato mesmo da tomada de consciência, sem ser incorporada a memória [...] Ao serem interceptadas pelo Reizschutz^ as excitações demasiadamente intensas produzem um choque traumático [...] Pertencem á esfera
^ ROUANET, Sérgio. Édipo e o Anjo - Itinerários Freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008, p. 44. ®Em uma tradução literal, Reizschutz significa para-excitação, que pode ser compreendida como um processo que visa reduzir danos, impedindo sobrecarregar o organismo humano quanto aos estímulos externos. Freud vem abordar essa questão emJenseits desLustprips (Além do Principio do Prazer).
da experiência as impressões que o psiquismo acumula na memória, isto é, as excitações que jamais se tornaram conscientes, e que transmitidas ao inconsciente deixam traços mnêmicos duráveis. Pertencem à esfera da vivência aquelas impressões cujo efeito de choque é interceptado pelo sistema percepção-consciência, que tornam conscientes, e que por isso mesmo desaparecem de forma instantânea, sem se incorporarem à memória.^
II - “ENQUANTO HOUVER ESPAÇO, CORPO E TEMPO E ALGUM M O D O DE D IZE R NÃO EU CANTO” -ALGUMA COISA SOBRE A ARTE DE NARRAR.
^Quem viaja tem o que contar”.*
As questões da experiência em Walter Benjamin são tratadas também em outro texto, como sintoma da perda de uma manifestação cultural: a narração. Em 0
Narrador. Considerações sobre a obra de um Nikolai Leskov, datado de 1936, nosso autor vem colocar que a narrativa está em vias de extinção. Ele norteia essa discussão baseado no fato de que na Antiguidade, e até mesmo no medievo, havia uma grande ligação com a oralidade. As histórias eram repassadas oralmente, os mais velhos presenteavam os jovens com suas experiências, as coisas que ouviram em suas viagens ou mesmo o que seus pais e avós lhes contavam. Mas assim como em Experiência e
Pobreza, novamente o desenvolvimento da técnica, especificamente a criação da imprensa, começa a atrofiar a capacidade de intercambiar experiências a partir da oralidade, com isso, aquilo que era dito pelas bocas é marcado agora pela tinta e o papel, as bocas assim como as tradições vão se calando com o tempo, ã medida que a tecnicização da vida aumenta.
’ ROUANET, Sérgio. Édipo e o Anjo - Itinerários Freudianos em Walter Benjamin, p. 44-48. * BENJAMIN, Walter. 0 Narrador -Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, p. 198.
Para além de qualquer ideia ou reforço nostálgico quanto à narração, Benjamin coloca que a tradição oral ou mesmo a falta dela são questões que representam um caráter de reconfiguração social, ou dito de outra forma, a vida é configurada e direcionada a partir dos elementos presentes na cultura, em um dado modo de vida. Se de certo modo era caro aos gregos o ócio, o tempo lento e de dedicação a polis, em nosso tempo acompanhamos a velocidade das máquinas, e os elementos presentes em uma dada cultura transformam como se vive ou compreende-se a realidade. Em 0 Narrador, Benjamin caracteriza que ainda há relampejos de uma sobrevida essencialmente narrativa ou até mesmo uma reconfiguração em nosso tempo apesar de nossa cultura. Com isso ele parte de uma análise que tenta exemplificar dois grandes tipos de narradores. Benjamin fala da figura do narrador que formou-se em terras distantes, que é a marca da figura de algum jovem que saí de sua terra e que no decorrer de suas viagens incorpora uma série de histórias e experiências de outros povos e culturas, sua narrativa vai ser enriquecida por esses fatores de outras localidades. Há também a formação de outra categoria de narradores, que a certo ponto se distancia da primeira. O Jovem que nunca saíra de sua terra pode também ter 0 que dizer, ter o que narrar, ele pode verbalizar a experiência pelo que aprendeu e apreendeu do que contaram seus pais e avós. As histórias populares foram mantidas pelo povo e são repassadas àqueles que lá vivem. É possível fazer um encontro dessas duas concepções, que são ricamente importantes na compreensão da narrativa. Pois esse jovem que saí de sua terra e anda pelos mais distantes países, afastando-se de suas raízes, em algum momento vai assentar-se em algum lugar ou retornar a sua origem, e ele que incorporou outras tradições e histórias, as contará no seu povoado, é nesse momento que eles se cruzam, pois seus filhos e seus netos ouvirão e incorporarão essas histórias. Compreende-se que esses dois tipos podem ser facilmente ligadas às estórias épicas de Homero (marinheiro viajante) e de Hesíodo (camponês sedentário), não são adversativas, mas se entrecruzam. Mas a narrativa, ou a figura do narrador, por mais familiar que possa parecer não é puro devaneio daquilo não existe mais próximo à nós, mas sim, cada vez
mais distante em tempo e espaço,® pois para Walter Benjamin, além dos ensinamentos “morais” presentes na manifestação desse ato de narrar, a narrativa traz consigo também ensinamentos práticos e úteis à vida de um indivíduo. Essa questão, segundo nosso autor, tem grande importância, principalmente quando ele articula dentro de um campo de conformação/interação entre as duas escolas já citadas. Cito Benjamin: “o senso prático é uma das características de muitos narradores natos (...) tudo isso esclarece a verdadeira narrativa”.“
III - 3X4: A FOTOGRAFIA DE UM N A RRA D O R
É preciso demorar-se sobre as coisas todas, pois há muito de muita coisa em cada minúsculo grão. Sendo assim, antes de tecermos qualquer comentário a Antônio Carlos Belchior, que em nossa análise é visto não como um mero cantor, mas ascende a um patamar de poeta-cantor. Foi preciso elucidar os conceitos benjaminianos de
experiência e narrativa que nos permitirá ter uma compreensão mais ampla de uma possível relação entre as duas figuras e seus “escritos”. É sempre preciso ter a sensibilidade para criarmos distâncias e para estabelecermos aproximação.
Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei. Jovem que desce do Norte pra cidade grande. Os pés cansados e feridos de andar légua tirana... nana. E lágrima nos olhos de ler o Pessoa e de ver
0 verde da cana...“
Uma das mais ricas melodias de Belchior não poderia deixar de ser marcada pelos duros traços da realidade brutal. O nosso Poeta-cantor, antes de usar um belo apanhado de palavras bem alinhadas e uma magnífica melodia, vem manifestar através
®BENJAMIN, Walter. 0 Narrador -Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, p. 197. Idem, p. 200. " BELCHIOR, Carlos. Fotografia3X4. Alucinação. São Paulo: Polygram, 1976.
da música sua interação com a realidade. Podemos, creio eu, analisar Belchior como um representante da melancolia dentro do cenário brasileiro, mas também a melancolia de todo um tempo. Suas músicas trazem dor, angústia, medo, desânimo, pessimismo... suas belas melodias nos dão a impressão de que o Poeta-cantor distancia-se desses sentimentos, parecendo ele mesmo estranho a estas sensações, tais sensações são colocadas em sua frente, manifestando-se como coisas alheias a ele. É preciso entender esse processo como uma melancolia positiva, pois ela mobiliza ao invés de imobilizar ou engessar alguma manifestação de vida, por isso Antônio Carlos Belchior vai gritar que apesar da desesperança e da dor, “enquanto houver espaço, tempo e algum modo de dizer não eu canto”.E s s e grito lembra muitos dos últimos parágrafos dos escritos de B e n ja m in ,q u e trazem também um grito de desespero, um desespero que traz uma perturbação e inquietação quanto ã vida e de como lidamos com ela, é um grito desesperador que pode ser ouvido como uma tarefa dada ao nosso tempo. Isso pode ser apreendido, ou pelo menos aproximado quando se lê 0 último paragrafo de “Experiência e Pobreza”. Rouanet pontua quanto ã questão do melancólico em Walter Benjamin que:
O Homem Barroco - o melancólico, na medicina clássica é aquele que tem o poder de penetrar no objeto até que ele se revele, até a morte do objeto, que coincide com essa revelação [...] O Melancólico alegoriza o mundo, e se anula nessa alegorização [...]. A visão alegórica resulta da consciência da culpa, e do desejo de redimir-se. A natureza é culpada, e busca reabilitar-se através da palavra pela qual o homem a nomeia, ou da leitura pela qual o alegórico lhe atribui significações; o
BELCHIOR. Divina comédia Humana.Todos os Sentidos. São Paulo: W EA Discos Ltda, 1978. Uma marca presente em alguns escritos de Walter Benjamin é a tarefa que ele coloca ao leitor no ultimo paragrafo, como em Experiência e Pobreza e O Narrador. Segundo me parece, o que advém ao texto, é uma análise que nos leva ao ponto central que é lançado ao final: tarefa histórica de nosso tempo, a partir dos elementos expostos.
homem é culpado, e somente nessa leitura, que proclama a caducidade do mundo e de si mesmo, pode encontrar perdão.“
Começamos, intencionalmente, só agora a aproximar Walter Benjamin e Antônio Carlos Belchior. Quando o segundo fala que se lembra de um fato (de sua vida), ou melhor, se lembra muito bem, é um fato que não deve escapar ao crivo de uma análise benjaminiana, diante de sua ênfase, pois é a relação com a memória que define um afastamento da vida moderna, pois com o desenvolvimento da técnica o homem vive numa multidão onde é exposto às excitações. A humanidade é exposta a choques por conta da velocidade de imagens bruscas e rápidas que se colocam diante da multidão que passa, onde Rouanet coloca que “o homem moderno vai perdendo a memória, individual e coletiva. O homem privado de experiência é o homem privado de história e da capacidade de integrar-se numa tradição”.^^ Num
eminente processo de sobrecarga mental, ocasionado pelos
constantes choques, o psiquismo desenvolve uma autodefesa tentando conscientizar tudo que vê e acaba por não mais guardar nada na memória. Rouanet vem nos colocar que “a memória e a consciência pertencem a sistemas incompatíveis, e uma excitação não pode, no mesmo sistema, tornar-se consciente e deixar traços mnêmicos (...) ‘a consciência nasce onde acaba o traço mnêmico’”.^® Com base nessas questões. Belchior mantêm uma relação de presença e distanciamento (do mundo moderno), pois é perpassado pelas excitações, velocidade brusca das imagens sobrepostas, o choque da vida contemporânea sem ser, aparentemente, afetado profundamente. Os estímulos do “mundo” correm por onde ele caminha, mas não há um processo de conscientização dos choques, com isso os traços mnêmicos são conservados nas coisas “vividas” pelo Cantor-poeta. Pela dor ele as mantém na memória, que quando musicada revela os mais sutis traços de refinamento nos detalhes.
ROUANET, Sérgio. Édipoeo Anjo-Mmerárxos Freudianos em Walter Benjamin, p. 17-19. '^Idem, p. 47. Idem, p. 44.
Mas 0 fato de Antônio Carlos se deslocar do Norte/Nordeste para o sul é
0 início do ponto de sintonia que começa a ser traçado ou aproximado entre a canção “Fotografia 3x4” e os textos “Experiência e Pobreza” e “O Narrador”. Primeiro pelo fato desse deslocamento representar um processo importante num aspecto histórico, ou melhor, na construção e manifestação da memória coletiva, notando que quando Belchior desce para o Sul ele não vai sozinho. Há uma série de elementos ocasionados pela dor e pela miséria que faz o sertanejo, o nordestino, sobretudo as famílias de regiões interioranas largarem suas terras para procurar trabalho e felicidade no Sudeste do Brasil, carregando em suas malas a esperança utópica da salvação. Quando desce. Belchior leva consigo uma tradição construída de que 0 Sudeste do país é onde se encontra a felicidade, onde todos os sonhos são realizados, e esse processo foi repassado e reivindicado pelo meu pai, pelo avô de alguém, assim como pelo nosso cantor, que se afasta de sua terra sem deixar de demonstrar que o faz com o maior pesar. A ideia de encontrar um guarda em cada esquina pode ser associada ao conceito de choque, que Walter Benjamin vai desenvolver em “Alguns temas sobre Baudelaire”. Na concepção do mundo moderno^^ todas as coisas são delimitadas pelo seu preço, esvaziando assim as coisas mesmas de seus sentidos, em um tempo em que tudo que é novo é imediatamente superado e substituído por algo milésimos de segundos (hipérbole) mais novo; não há tempo de assimilação, a velocidade lhe obriga a não pensar e ã cada esquina sofreu-se mais um assalto, as luzes das dezenas de fachadas que lhe chamam atenção, as garotas e garotos que lhe entregam os pequenos panfletos dos dentistas populares. É impossível não ser chocado com o ritmo frenético que a vida toma hoje. E isso causa o imenso vazio em cada membro da humanidade que se individualiza cada vez mais, pois é, com o tempo, tornado incapaz de verbalizar, de falar de si com os seus pares, há um processo que vai esfacelando as experiências coletivas e tornando muito mais presentes as vivências individuais de cada sujeito. A humanidade a cada passo se esvazia completamente de sentido e passa a se assegurar em cada corda que vê, em cada
É preciso entender aqui, moderno enquanto expressão do novo.
revólver que toca contra o rosto. Tornamo-nos meros passantes da vida, vamos de um lado pra outro sem muitas vezes nos perguntar se há um sentido em cada atividade que desenvolvemos. Nos encontramos aos montes, somos multidão. Mas há quem consiga fugir dessa lógica, e é
0 que aparentemente faz Belchior, que na busca de sua felicidade no Rio de Janeiro era exposto às coisas do mundo moderno, mas sem prender-se a elas em demasia. Na sua busca, nosso Poeta-cantor, parecia olhar a tudo que uma grande capital lhe oferecia: os grandes monumentos, as extravagâncias arquitetônicas, o marketing apelativo presente em cada espaço da rua, o amontoado de pessoas que passavam frenéticas de um lado para outro, e tudo aparentemente sem nada fazer o menor sentido em seus deslocamentos, nem se perguntando qual a importância de tudo aquilo. Belchior passava por entre essa gente, sentindo esse frenesi. E com esse estilo de vida “Benjamin constata novas maneiras de viver, sentir e perceber a experiência do choque como regra para o citadino”.^*^
Em cada esquina em que eu passava um guarda me parava, pedia os meus documentos e depois sorria examinando a 3x4 da fotografia e estranhando o nome do lugar de onde eu vinha.
Para além de todo esse prolegômenos acerca da conceituação da experiência,
0 esvaziamento de sentido da humanidade ocasionada pelo desenvolvimento da técnica, a velocidade frenética da vida que é absorvida nas informações todas, ou de outra forma, os excessos de informações (excitações externas) e velocidade com que chegam, afetam
0 organismo humano numa perspectiva de sobrecarrega-lo, pois as informações que chegam, não tem tempo hábil para ser processada. Para além de todas essas questões, é importante ressaltar que isso afeta diretamente as configurações literárias.
TRAVASSOS, Milena. “Modernidade - Mundo de sonho. Experiência do choque". In: Cadernos Walter Benjamin,Yo\ame 3, Fortaleza, Eduece, 2009, p. 7. BELCHIOR, Carlos. Fotografia 3X4.
Em 0 Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, assim como falamos um pouco anteriormente nesse texto, as narrativas estão em vias de extinção, pois 0 mundo contemporâneo não é um tempo de continuidade e tradição, mas sim um tempo descontinuo, desenraizado de um contexto cultural. Não há mais algo que nos ligue a uma cultura. O que permite, às mulheres e homens, a capacidade de narrar algo, é a experiência (Erfahrung), que torna-se manifesta dentro de um dado contexto cultural, sobretudo, marcada pelos rituais. E quando se perdem os rituais, não há mais experiência que nos ligue a nada, e com isso, não há mais espaço para a narrativas, pois não há nada que valha a pena narrar. Nesse desenraizamento cultural, se esvazia de sentido a vida, marcada pelas vivências que não representam nenhuma ligação com uma tradição, torna-se patente a marca do homem em nosso tempo: um individuo desenraizado e tem a vida esvaziada de sentido. Esse esvaziamento é também de palavras, pois nem mesmo se pode hoje verbalizar a dor sentida pelo indivíduo para se solicitar conselhos, não se pode porque não se tem mais essa capacidade de comunicar experiências.^® Os narradores estão em vias de extinção, mas não desapareceram ainda, segundo atesta Walter Benjamin, há uma capacidade nata dos narradores, que é a articulação de um ensinamento prático a partir de uma narrativa. Segundo a minha concepção, nesse trecho, que cito a seguir. Belchior desenvolve ou apresenta essa capacidade de um ensinamento prático, pois vem nos mostrar um engenhoso pensamento de articular as dores, os pesares presentes nesse sofrimento de não estar feliz em seu lugar, por almejar encontrar essa felicidade em outras terras, e ser marcado pela frustração e poder exemplificar a terceira lei de Isaac Newton como quem diz com a maior naturalidade e segurança da ciência a normalidade ou seqüências dos fatos de uma vida.
Pois 0 que pesa no Norte pela lei da gravidade, isso Newton já sabia, caí no Sul grande cidade. São Paulo Violento. Segue o Rio que me engana.^^
BENJAMIN, Walter. 0 Afarra<ior - Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, p. 200. BELCHIOR, Carlos. Fotografia 3X4.
Essa passagem traz consigo uma singular e dúbia aproximação de Belchior com os conceitos dos textos já citados de Walter Benjamin. Ora, o individuo que na modernidade não faz nada além de sofrer ou sobreviver ao inferno que é a modernidade,
0 faz como o autômato que lhe foi induzido a ser, onde apenas reflete os choques que lhe afetam. É vazio, ou melhor, o indivíduo foi esvaziado de sentido, sem ligação nenhuma com a cultura que lhe cerca, vaga pelas ruas e igual a ele, muitos outros passantes, são uma multidão agora. Apesar de todo esse recorte, o pessimismo presente na modernidade, e que a certa medida pode-se também ser observado em Belchior, onde esse contrasta toda a dor e falta de sentindo da vida de quem sobrevive ã noite, que além de escura é fria, da presença do sofrimento algo pode nascer, experiências podem brotar, no caso de Belchior isso possibilitou a verbalização de suas dores. Apesar da vida, pôde ter a certeza de que tem coisas novas para dizer.
A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia, pela dor eu descobri o poder da alegria e a certeza de que tenho coisas novas, coisas novas pra dizer.^^
Éprecisoterclareza queomar,nãotãoclaro,dasformulaçõesbenjaminianas são águas espessas e que não são facilmente transponiveis, nem mesmo para os mais experientes marujos. Fazer aproximações de Walter Benjamin com quaisquer outros aspectos que ele não tenha trabalhado se torna uma tarefa que pode nos conduzir a completos absurdos ou a profundos devaneios. Assim sendo, quando tento aproximar nosso esteta (com suas formulações e concepções, ancoradas centralmente no que concerne ã modernidade) do cantor cearense, pode-se correr o risco de entrar numa espécie de labirinto conceituai de associação dos pensamentos do cantor e do filósofo. Tecemos crítica ao moderno, concebendo ele, do ponto de vista benjaminiano, esvaziado de sentido pleno, atrofiador de experiências que causa no devir histórico desconstrução.
- Idem.
OU melhor, perda de aspectos históricos que enriqueceram os homens e as tradições: como a perda da narração, a morte do narrador. Poderíamos dizer, quem sabe afirmar, que Antônio Carlos Belchior seria um autêntico narrador que se perdeu no tempo e veio parar num mundo moderno, contemporâneo.
A minha história é talvez, talvez igual a sua. Jovem que desceu do norte e no sul viveu na rua. E que ficou desnorteado, como é comum em seu tempo. E que ficou desapontado, como é comum no seu tempo. E que ficou apaixonado e violento assim como você. Eu sou como você, eu sou como você, eu sou como você que me ouve agora.^^
Mas principalmente por conta de todas essas análises que Benjamin vem fazer sobre nosso tempo, é impossível atestar ou aproximar nosso trovador cearense da figura de um genuíno narrador, pois a história da vida dele se aproxima, se encontra e se confronta com a vida e a história de tantos outros sujeitos, que sobretudo se encontram completamente desnorteados e desapontados, algo que é comum em nosso tempo, tendo a violência que perpassa sua sobrevida. Belchior é, não sendo, como cada passante, cada componente da multidão. Está na multidão, mas se afasta dessa, vendo-a de longe, estando dentro, a se perder no jogar-se no abismo do vazio. Torna-se, nosso Poeta-cantor, um
legítimo representante de uma
experiência individual (que pode ser tomada como ritualística), pois também perpassar muitos retirantes do Norte/Nordeste brasileiro que vão ao Sul, e esse processo pode ser visto, diante das formulações benjaminianas, como uma experiência (Erfahrung) coletiva, conseguiu-se comunicar experiência. Assim sendo. Belchior dialoga, a certo modo, com uma tradição, pois na parte superior do território brasileiro, foi-se mantida durante algum tempo relações narrativas, principalmente nos interiores, onde, sobretudo a tecnologia não se fazia presente de forma latente.
Idem.
Belchior pode não ser um narrador em nosso tempo, mas é preciso compreender que esse não manifesta os traços de nossa época como quem é conduzido pela marcha da história, sem poder intervir em seu curso. Esse jovem cearense que desceu do norte para tentar a felicidade em terras distantes vem configurar o cenário literário-musical no Brasil. Há em Belchior uma reconfiguração da narrativa, num processo de disputa social.
Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: 0 Anjo da História. Tradução e organização de João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2013. ______. Comentários: Experiência e Pobreza. In: 0 Anjo da História. Tradução e organização de João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2013. ______. O Narrador - Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica.
arte epolítica. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. BOLLIE, W. Caderno M: Ócio e Ociosidade. In: BENJAMIN, W. Livro das Passagens. Belo Horizonte: UEMG, 2007. ROUANET, Sérgio. Édipo e o Anjo - Itinerários Freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008. BELCHIOR, Carlos. Fotografia 3X4. Alucinação. São Paulo: Polygram, 1976. ______. Divina comédia Humana. Todos os Sentidos. São Paulo: W E A Discos Ltda, 1978. TRAVASSOS, Milena. “Modernidade - Mundo de sonho, Experiência do choque”. In:
Cadernos Walter Benjamin, Volume, 3, Fortaleza, Eduece, 2009.
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HISTÓRIA E TRADIÇÃO DOS VENCIDOS: BENJAMIN E O JULGAMENTO DE LUCULUS DE BERTOLT BRECHT FRANCISCA PALLOMA SOARES PAULINO - Mestranda em Filosofia na Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Resum o: A construção proposta por este texto compreende como seu ponto de partida a relação de convergência teórica entre a teoria da história de Walter Benjamin e, especificamente, uma peça de Bertolt Brecht O Julgamento de Luculus (Das Verhõr des Lukullus) escrita entre os anos de 1938 e 1939. Pretendese construir com os dois autores um paralelo de observação entre a intenção da peça dentro da proposta de teatro épico brechtiano e o modo com que Walter Benjamin pensa a história em suas Teses Sobre o Conceito de história, de 1940. O desenvolvimento propõe apresentar algumas imagens apresentadas na peça e, a partir delas, tornar viável sua compreensão por meio da mediação com o último escrito de Benjamin, localizando como ponto encadeador o conceito de tradição dos vencidos. Trata-se de estabelecer contato breve e conciso entre os dois textos e explorar as confluências nas relações entre seus autores e suas leituras históricas.
Palavras-chave: Benjamin, Brecht, História.
Quem ainda está vivo não diga: nunca O que é seguro não é seguro. As coisas não continuarão a ser como são Depois de falarem os dominantes Falarão os dominados Bertolt Brecht, 0 Elogio da
Dialética.
O
Julgamento deLuculus (Das Verhõr des Lukullus) é uma peça escrita entre os
anos de 1938 e 1939 com o intuito de pensar sobre a relação entre o poder e a construção da história, apresentando-se sob o modelo da peça radiofônica.
O rádio é considerado um importante veículo para Brecht, que aposta nas inovações
técnicas de seu tempo como uma nova via de ação crítica e de interlocução. O processo de produção
0 Julgamento deLuculus, no entanto, estendeu-se dada a necessidade
de converter o texto em uma ópera, impulsionada pelo Ministério da Cultura Popular da Alemanha. A partir dessa nova mudança estrutural, a peça mudou também seu título para Die Verurteilung des Lukullus, ou seja, A Condenação de Luculus. Segundo os registros, depois de 1940, Brecht mantém a atenção nesse texto, considerando-o inacabado até 1951^ Essa peça foi contemporânea da escrita de peças como Mãe Coragem e Seus Filhos (Mutter Courage und ihre Kinder), Galileo Galilei (Leben des
Galilei) e Quanto Custa o Ferro? (Was kostet das Eisen ?). Brecht evoca como cena principal do texto o cortejo de morte do General Luculus. Os escravos levam o seu catafalco e nele encontram-se gravadas as conquistas e glórias do império romano conquistadas sob o domínio de Luculus. No cortejo de despedida em direção ao túmulo, observa-se que os comentários dos populares são os mais distintos. Entre vangloriações das vitórias conquistadas por Roma e reclamações
' É importante registrar que a edição de O Julgamento de Luculus sob a qual esse artigo encontra-se debruçado consta no sétimo volume da coleção Teatro Completo de Bertolt Brecht, publicado pela editora Paz e Terra. No referido volume, as mudanças ocorridas na peça radiofônica para a ópera estão anexadas como adendo e atentas aos interesses do autor ao longo de suas intervenções no texto. A tradução é de Gilda Oswaldo Cruz e Geir Campos.
da situação de fome e miséria ocasionadas pelas guerras empreendidas pelo general,
0 corpo de Luculus desfila levado por escravos para o lugar onde está reservado seu julgamento. O friso triunfal trazido pelos servos chega ao mausoléu do sepultamento onde a condenação de Luculus será discutida. É interessante ressaltar que Brecht insiste na imagem de ironia dos acompanhantes de Luculus. Junto com o general seguem no cortejo como guardas da honra um filósofo e um advogado, impedidos de entrar no Reino das Sombras, assim como os escravos. Luculus vê-se, então, sozinho e despreparado para defender-se das acusações que terá de responder antes de ser condenado ao Hades ou ao Retiro dos Bem-aventurados. Após aguardar impacientemente por sua vez, o general é chamado por sua infeliz alcunha - Lôuculus -e apresentado pelo Porta-Voz do Júri dos Mortos à sua banca de julgamento. Diz-nos o autor:
PORTA-VOZ DO JÚRI DOS MORTOS Perante o supremo tribunal do Reino das Som bras A presenta-se Lôuculus, o general Que d iz cham ar-se Luculus. Sob a presidência do Juiz dos Mortos, Cinco jurados procedem ao julgam ento: Um deles foi lavrador, 0 segundo fo i escravo depois de ser professor, 0 terceiro fo i peixeira 0 quarto fo i padeiro, 0 quinto fo i cortesã. Estão sentados em cadeiras altas. Sem mãos para segurar, nem bocas para comer, E olhos de há m uito apagados Epouco afeitos às pom pas do mundo. Incorruptíveis se m ostram Os jurados de Além-Túm ulo. 0 Ju iz dos M ortos dá início ao julgam ento^
^ BRECHT, Bertolt. 0 Julgamento de Luculus, in Teatro Completo, vol. Vll, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 26e27.
O recorte aqui realizado permite observar sob qual ponto de vista interessa para Brecht validar as conquistas ocorridas na vida do general. É imperativo à narração do teatro épico tomar como ponto de partida a desconstrução histórica dos vencedores e pôr imediatamente em sua contestação aqueles que são “engolidos” pela narração da história oficial, os vencidos. Dar voz e poder ao oprimido não é apenas uma figuração poético-literária preciosa, mas uma evidência de ação política construída com base na crítica das relações sociais que o modelo político capitalista violento e sistematicamente naturaliza, impossibilitando quaisquer contestações. Dar às “classes mais baixas” a responsabilidade de julgar um general de guerra é evidenciar a necessidade de cultivar como exercício político a elevação de uma tradição dos vencidos, termo que dá forma ao ponto de convergência onde Brecht encontra a filosofia da história de Walter Benjamin. É importante ressaltar nessa análise que a leitura da obra dos dois autores mantém, fora de compreensão estrutural, uma relação biográfica bastante forte. A discussão sobre história encontra-se intrínseca ã produção de Benjamin e de Brecht e se manteve em diálogo entre eles. O materialismo histórico característico de suas posturas, inevitavelmente, encontra-se apto a estabelecer os encontros mais precisos e não ocasionais entre suas obras, numa correspondência interna coesa. Todavia, é preciso ressaltar que a considerações de filosofia da história estão presentes em Benjamin desde seus primeiros escritos, ou escritos dejuventude, como são conhecidos. O que nos permite pensar num encontro teórico e não numa relação de referenciação ou de influência.
Sobre a tradição dos vencidos e a tarefa das Teses Sobre o Conceito de história
Benjamin reconhece que o conhecimento histórico é transmitido e explorado através de sua narração. O que se conhece sobre determinados períodos históricos está essencialmente ligado ao ponto de vista que se dispõe materialmente a contar sobre este recorte. A disposição material que embasa esta descrição é possível de se tornar efetiva, consequentemente, quando se trata daquele lado cuja transmissão foi
viabilizada por seu “sucesso histórico”, ou, para usar termos benjaminianos, por sua “vitória”. Nesse sentido, pode-se dizer que o discurso tradicional da história constrói em seu desenvolvimento uma “tradição dos vencedores”. Longe de se portar como algo espontâneo ou desinteressado, o que cerceia esse processo são a violência e o poder que garantem o estabelecimento perpétuo dos detentores da “ação histórica” efetiva. O que faz com que uma guerra represente sempre o mesmo jogo onde os personagens,
0 cenário e o objetivo permanecem sempre os mesmos. De modo contrário a essa “naturalização” dos acontecimentos, Walter Benjamin aponta para o que se denomina “tradição dos vencidos”, ou seja, a mobilização das forças que foram silenciadas, que sucumbiram ao domínio da violência do vencedor. Ahistória tradicional, segundo Benjamin, é um cortejo de triunfo dos vencedores que avança austeramente e se ergue sob os destroços daqueles que foram vencidos. O passado é o lugar no qual o sofrimento e a luta dos vencidos mantêm-se sepultados, esquecidos sob a opulência da classe dominante. O presente da “anti-história” é mantenedor desta barbárie, visto que é a ele que cabe a tarefa de condensar e dar seguimento ao cortejo, obedecendo a uma transmissão de cultura sangrenta. Ou seja, as conquistas alcançadas através da força e da opressão do inimigo estão resguardadas sob a tutela da classe dominante que possui a responsabilidade de sua transmissão, logo, de sua perpetuação. A tarefa histórica da visão materialista é a de salvar a marcha dos vencidos de seu esquecimento e proporcionar a quebra da transmissão realizada pelos vencedores de turno. Na famosa Tese VII, comenta o autor:
Todo aquele que, até hoje, obteve a vitória, marcha junto no cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje [a marcharem] por cima dos que, hoje, jazem por terra. A presa, como sempre de costume, é conduzida no cortejo triunfante. Chamam-na bens culturais. Eles terão de contar, no materialismo histórico, com um observador distanciado, pois 0 que ele, com seu olhar, abarca como bens culturais atesta, sem exceção, uma proveniência que ele não pode considerar sem horror Sua existência não se deve somente ao esforço dos grandes gênios, seus criadores, mas, também, ã corvéia sem nome de seus contemporâneos. Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, também não o está oprocesso de sua transmissão, transmissão na qual
ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o m aterialista histórico, na m edida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo
O “olhar distanciado” exigido pelo historiador materialista tratado por Benjamin é aquele que se dispõe a encontrar na história tradicional os vestígios de desconfiança que possibilitam centrar a tradição dos vencidos como um grito, um alarme, uma consideração apagada com uma força inesgotável. Os documentos de cultura, os bens culturais, são heranças agressivas, condições de manutenção da ordem vigente. A linha de continuidade da barbárie anunciada por cada “troca de turno” do vencedor não torna quaisquer contestações visíveis, práticas. Somente a partir da recusa do cortejo, é possível construir uma relação histórica com o presente. Escovar a história a contrapelo é um exercício político. E sobre isso, destaca Low^:
Escovar a história a contrapelo - expressão de um form idável alcance historiográflco e político - significa, então, em primeiro lugar, a recusa em se juntar, de um a m aneira ou de outra, ao cortejo triunfal que continua, ainda hoje, sobre aqueles que ja zem por terra. Pensase nessas alegorias barrocas do triunfo, que representam os príncipes no alto de um a m agnífica carruagem imperial, às vezes seguidos por prisioneiros e arcas transbordando de ouro e jóias; ou nesta outra imagem, que aparece em M arx para descrever o capital: o Juggernaut, a divindade hindu instalada em um a imensa carruagem, sob as rodas da qual são lançadas crianças destinadas ao sacrifício. M as o antigo modelo, presente no espírito de todos os judeus, é o Arco de Tito em Rom a, que representa o cortejo triunfal dos vencedores romanos contra a sublevação dos hebreus, portando os tesouros pilhados no Templo de Jerusalém
As imagens que se encontram dispostas no julgamento do general não são
3 BENJAMIN, Walter. Teses Sobre o Conceito de história in Walter Benjamin: aviso de incêndio, LOWY, Michael. Tese VII, p. 70. 4 LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio, São Paulo, Boitempo, p. 73.
ocasionais. O arco de Tito, por onde o corpo do personagem célebre desfila em meio aos populares, figura que foi escolhida para o pôster da peça, ilumina a consideração negativa de Brecht e também de Benjamin acerca dos monumentos históricos elevados em nome de falseamentos e usurpações das lutas reais no campo da história tradicional. Sua crítica compromete-se com a contestação desses espaços de conquistas. Interromper o “cortejo de triunfo” da classe dominante é a tarefa das classes subjugadas. De acordo com o pensamento benjaminiano, é no presente que se encontra a possibilidade de quebra da linearidade histórica. A interrupção histórica é uma experiência edificadora do novo, portanto, uma ação política livre da aparência repetitiva da história oficial. A ação política da interrupção histórica reconhece no presente o tempo messiânico, ou seja, o tempo de mudança, de redenção dos vencidos. É ao presente que se destina a tarefa de redimir o passado. O futuro é para Benjamin - e neste ponto não é equívoco estabelecer uma relação com a tradição judaica - é um tempo de esperança, mas, em mesma medida, apresenta-se como um tempo desconhecido, a respeito do qual nada pode ser dito. O momento de luta, portanto, é o tempo presente. A interrupção histórica é uma ação política própria da consciência revolucionária. A eclosão da marcha contínua da história é um ato consciente de si no mesmo instante de sua efetivação. De acordo com Benjamin: “A consciência de fazer explodir o contínuo da história é própria das classes revolucionárias no instante de sua ação”J E para ilustrar dá-nos o exemplo do novo calendário que a Grande Revolução introduziu para marcar a exclusividade da experiência histórica ali configurada. Ou seja, com esse exemplo torna-se claro que os calendários não representam uma marcação apenas cronológica de tempo, mas são determinações históricas erigidas sob efeito das ações e concessões estabelecidas. Calendários são monumentos históricos. Quando uma classe revolucionária instaura um novo calendário ou mesmo recusa a imposição de uma marcação cronológica, neste momento essa classe desvenda a marcha da história tradicional e explode sua continuidade. No julgamento de Luculus, seusjuízes são as pessoas que viveram e sofreram sob seu regime de poder. Elas são as únicas que podem declarar seu verdadeiro desacordo, investigar as contradições que viviam. As conquistas estampadas no friso de triunfo do
' BENJAMIN, Walter. TeseXV, p. 123.
general são chamadas para falar, como sombras. Os bens culturais reclamam - ou não - a posição que o vencedor não cansa de ostentar. Deslocar do espaço de poder o que se mantém como verdadeiro e absoluto é permitir a entrada do verdadeiramente novo. A tentativa de uma nova narração histórica é a forma possível de estabelecer uma ação também histórica. Prossegue Brecht na figuração do julgamento onde explica por meio do Juiz dos Mortos:
Juiz dos mortos Que sejam cham adas as testem unhas! Quem escreve a história dos vencidos É sempre o vencedor, E 0 algoz m ostra sempre diferente A figura da vítima. 0 m ais fraco É varrido do mundo e em lugar dele Fica a m entira. Nós, aqui embaixo, N ão precisam os dessa pedra: A qui se encontram M uitos dos que cruzaram teu caminho. General. E m lugar desses retratos. Preferimos cham ar os retratados: Em vez da pedra, nós vamos ouvir A s próprias som bras ^
A contestação dos personagens de Brecht figura a recusa da historiografia tradicional, o reconhecimento de sua força histórica nessa recusa e concentra em si
0 potencial revolucionário desta ação. As figuras utilizadas por Brecht neste escrito trazem às vistas inequivocamente a postura pensada por Benjamin em sua filosofia da história. Ambos os autores trataram como questão fundamental a desnaturalização da visão histórica, viabilizada pela quebra da empatia com os vencedores. Seja no âmbito da prática teatral ou da ação política, Benjamin e Brecht se confrontam com a identificação afetiva e atentam para a necessidade de tratar observar o mundo com o
’ BRECHT, O Julgamento de Luculus, p.
olhar distanciado capaz de considerar as relações sociais como relações mutáveis. O ponto de vista no qual se apóia a obra brechtiana é exatamente o oposto daquele que alimenta a postura de que “O que permanece inalterado há muito tempo, parece ser inalterável” ^ O distanciamento funciona na representação do teatro épico de modo diferente da concepção do teatro antigo, medieval e asiático, - onde máscaras e cartazes encarregavam-se de “caricaturar” o texto - ou seja, não se comporta unicamente enquanto uma intervenção estética, mas ganha caráter político, tendo como seu principal objetivo “desfazer” as amarras da alienação ideológica. O estranhamento permite que as condições sociais possam ser vislumbradas de acordo com o seu caráter histórico, transitório. O teatro de Brecht preocupa-se em, num esforço heraclitico, apresentar a realidade social como o campo incessante das transformações, onde a relação dos homens com as coisas é constantemente modificada com a modificação da relação dos homens entre si. Na continuação da peça, Brecht ressalta a consciência de que as construções e monumentos históricos escondem seus verdadeiros artífices e que aquilo que é consentido como conhecimento histórico foi desenhado a partir de intenções bastante específicas da classe dominante. Conduz-nos:
Luculus Que espécie de romanos são vocês: Rendendo homenagem ao inimigo? E u não fu i lá por iniciativa m inha, Fui lá cum prindo ordens: Quem m e m andou lá fo i Rom a! ProfessorRom a! R om a! Rom a! Quem éR o m a ? Quem te m andou foram os pedreiros
' BRECHT, ^QVtoXt. PequenoÓrgwonparao teatro, 2005, §43.
Que a construíram ? Quem te m andou foram os padeiros E os peixeiros e os lavradores E os granjeiros e os boiadeiros Que a ela dão alim ento? Foram os alfaiates e os peleiros E os tecelões e os tosquiadores Que a ela dão vestim enta? Quem te m andou foram os escultores E os pintores Que a ela dão ornam ento? Ou foram os cobradores de impostos E os usuários e os traficantes de escravos E os banqueiros que sugam dela
0 próprio susten to?^
Benjamin e Brecht fazem de suas produções verdadeiros instrumentos contra o caráter repetitivo da história. O materialismo histórico foi absorvido de modo bastante peculiar e até mesmo reinventado pelos dois autores e aplicado em distintas vias, mas ambos visam ao mesmo objetivo o que, nas palavras de Benjamin, representa impedir que 0 inimigo continue vencendo. O Julgamento em que Luculus foi condenado ao Hades é um exercício, um panorama, da recusa da permanência à submissão ao poder dominante e o vislumbre de uma ação negativa no espaço da luta presente, a fim de confirmar a tradição dos vencidos como uma esperança.
'' Idem, p. 53.
Bibliografia
BENJAMIN, Walter. Teses Sobre o Conceito de história in Walter Benjamin: aviso de incêndio. Tradução: BRECHT, Bertolt. Estudos Sobre Teatro. Tradução: Fiama Pais Brandão. Rio de Janei ro: Nova Fronteira, 1978. BRECHT, Bertolt. 0 Julgamento de Luculus inTeatro Completo, vol. VII. Rio de Janei ro: Paz e Terra, 1992. LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio.TraduçãoiW.N.Brant. São Paulo, Boitempo, 2005.
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INSURGÊNCIA E EMERGÊNCIA NO NOVO TEMPO DO MONDO PEDRO HENRIQUE MAGALHÃES QUEIROZ - Graduando em Filosofia/Licenciatura pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). pedrohenrique_ec@hotmail.com
Resum o: Paulo Arantes em seu recente livro intitulado 0 novo tempo do mundo (2014), afirma que oZeitgeist da nossa época é a reversão do horizonte de ilimitadas expectativas próprio à geocultura do Progresso em uma era de expectativas decrescentes. Nesse sentido, as contradições e os limites socioambientais e econômico-financeiros instaurados pela ordem capitalista, agora em escala planetária, instituem uma política de emergência por parte do Estado, sob a forma da austeridade econômica, ambiental e do controle policial. Tais medidas passam também a serem incorporadas pela esquerda institucional, as quais se apresentam sob a forma da escolha do mal menor. É nesse contexto que entram as atuais insurgências como um mecanismo de interrupção do curso catastrófico do mundo. No entanto, as mesmas vêm paulatinamente sendo reintegradas pela reação do Estado, se tornando outro ponto de apoio para a manutenção do status quo.
Palavras-chave: insurgência; em ergência; novo tem po do m undo
I. Capitalismo globalizado
É no último quartel do século X X que se consolida a hegemonia global do
sistema-mmdo^ da economia capitalista, sob a alcunha apenas de globalização. Tal hegemonia planetária foi a linha do horizonte desde as grandes navegações e - na ótica dos vencedores, que costuma servir de lente para a miopia dos vencidos - a descoberta do novo mundo. Nesse percurso parece ter havido uma reviravolta: se o estabelecimento da separação entre espaço de experiência e horizonte de expectativa^, oriunda do rompimento com a tradição, é a marca fundante do moderno tempo do mundo^ e de sua política progressista orientada para o futuro em aberto; parece ser a partir do decrescimento das expectativas no capitalismo globalizado da virada do séc. X X para
0 séc. X X I que se estabelece a reconciliação entre experiência e expectativa “depois de seu longo divórcio progressista”"^, configurando, assim, o novo tempo e sua gestão emergencial do presente. Atendo-nos a um panorama da globalização capitalista - a mudança de época que aqui interessa apontar -, a sua origem dá-se em torno dos anos de 1970 do breve, ou longo, séc. X X . Os anos de chumbo nos países do Cone Sul e da Europa Ocidental, por exemplo o auge do regime militar no Brasil e do regime democrático de exceção na Itália, foram o marco inicial da reestruturação produtiva a nível global; da derrota e conseqüente integração dos movimentos revolucionários após 1968; e do limite da relação ambiental predatória estabelecida até aqui. No que toca a reestruturação produtiva, as três principais características econômicas do mundo globalizado são: (a) a financeirização da economia, ou
' WALLERSTEIN, \mmar\Me\. 0 SistemaMundialModerno, Vb/./:AAgricultura Capitalista e as Origens da Economia-Mundo Européia no Século XVI. Porto: Edições Afrontamento, 1990. ^ KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2006. ^ BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo - Séculos XV-XVIII: Tempo do Mundo, Vol. 111. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ARANTES, Paulo. 0 novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo,2014, p. 97.
predomínio do capital financeiro; (b) a terciarização, ou aumento do setor de serviços; e (c) a terceirização, ou privatização neoliberal com respectiva precarização das relações de trabalho. Essas características estão situadas no interior da contradição entre o desenvolvimento técnico e as relações sociais de produção:
De fato, as bases técnicas para a superação da pré-história da humanidade estão finalmente dadas, e, no entanto, esse limiar emancipatório brilha sob a luz negra de um atoleiro sem fim, o vasto aterro sanitário de homens e mulheres a um tempo descartados e ‘recapturados’ por motivo de irrelevância econômica. Esse buraco de agulha para elefantes é a contradição terminal do nosso tempo:
0 reino da liberdade está enfim à vista e todavia iremos todos morrer na praia da mais crassa necessidade material, como se ainda engafinhássemos nos tempos da pedra lascada. A contradição deste último capítulo que não acaba de acabar - a liberação possível do fardo da exploração como condição do progresso tornou-se a rigor uma verdadeira expulsão, por assim dizer, na boca do guiché -, foi no entanto identificada por Marx desde a origem: a compulsão do capital a eliminar do processo de valorização econômica a fonte mesma de todo o valor, o trabalho vivo.^
II. O moderno e o novo tempo do mundo
O conceito de tempo do mundo, por um lado, demarca para a história universal uma descontinuidade entre as épocas e, por outro, uma descontinuidade no interior de cada época. Falar de um dado momento do desenvolvimento das forças produtivas ou da experiência política não significa anular as diferenças de época em uma leitura materialista linear da história. Trata-se, sim, de definir “em que ‘hora do mundo’ nos encontramos” no interior do “tempo do mundo que nos interessa [...] o da economiamundo europeia em expansão na forma de ciclos sistêmicos de acumulação”®.
'Idem , p. 315. ®Idem, p. 30
No que toca a primeira descontinuidade, a questão é dimensionar “a mudança social substantiva na origem do mundo moderno”^. Já em relação à segunda,
[...] esse Tempo do Mundo não pode ser a totalidade da história dos homens. Estamos às voltas com [...] um ‘tempo excepcional’ que governa, segundo os lugares e as épocas, certos espaços e certas realidades. Neles é que se vive verdadeiramente na ‘hora do mundo’[...] É assim que podemos encontrar por toda parte zonas em que 0 ‘tempo do mundo’ não repercute... mesmo nas Ilhas Britânicas da Revolução Industrial.*
O moderno tempo do mundo instaurado pela economia capitalista é constituído de modo paradoxal: “uma economia-mundo capitalista, em expansão permanente desde o nascedouro, só se legitima perante uma combinação paradoxal entre o sempre igual da acumulação como fim em si mesmo e um horizonte igualmente ilimitado de expectativas”®. Trata-se da interpenetração do tempo cíclico pagão e do tempo linear judaico-cristão sob a forma da acumulação de capital como eterno retorno, nas palavras de Walter Benjamin, ou, nas palavras de Guy Debord“ , como presente perpétuo, e sua respectiva “geocultura de legitimação”^, o Progresso. O novo tempo do mundo é a reversão desse horizonte de ilimitadas expectativas em uma era das expectativas decrescentes^^ sob forma de um “estado de perpétua emergência”^^ no qual o presente, como único futuro possível, ou permitido, é agenciado pelo princípio do “mal menor”^"^.
’ Idem, p. 28. * Idem, p. 30. ®Idem, p. 48. A tese do eterno retorno se encontra em BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. A tese do presente perpétuo se encontra em DEBORD, Guy.Asociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. " ARANTES, op. d í., p. 53-54 LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em Declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983. '^ARAN TES,op.dí.,p. 77. '"t Idem, p. 357.
III. Movimentos anti-sistêmicos, espetacular integrado, questão ambiental
É nessa esteira que, após a derrubada do muro de Berlim e a queda da URSS, quando se fala no fim da história e das utopias, se insurge no México o “marco zero de todo 0 novo período, o levante zapatista de 1° de janeiro de 1994”^^ contra a entrada em vigor do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA). Nessa mesma conjuntura também se insurge outro movimento anticapitalista anti-sistêmico, mais conhecido por “movimento antiglobalização” ou “movimento de movimentos”, enquanto resistência, simultaneamente espontânea e articulada pela Ação Global dos Povos (AGP), ao modo como o capitalismo, a partir dos encontros de órgãos como OMC, FMI e BID^®, reconfigurava sua atuação em plano mundial. Tem-se como exemplos dessa resistência Seattle, no encontro da OM C (1999); Praga, no encontro do FMI e do BID (2000); e Gênova (2001), no encontro do G8. Esses dois movimentos apresentam certas particularidades. Para o movimento zapatista, “A história não se transforma a partir de praças cheias ou multidões indignadas, e sim [...] a partir da consciência organizada de grupos e coletivos que se conhecem e reconhecem mutuamente, abaixo e ã esquerda, e constituem outra política”^^ AAGP, por sua vez, nasce em 1998 no Encontro Pela Humanidade e Contra
0 Neoliberalismo, convocado pelos zapatistas, com “uma postura de confronto através da ação direta e, ao mesmo tempo, a construção de alternativas globais para o poder do povo”^^ Ambos trazem consigo, a seu modo, formas libertárias de enfrentamento: a autogestão (não se visa o controle do Estado); a autonomia local e dos grupos de afinidade; a horizontalidade da coordenação em rede; o anonimato. Ainda no ano de 1994, se suicidava Guy Debord. Dentre os seus textos, os
Idem, p. 377. Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário Internacional e Banco Interamericano de Desenvolvimento, respectivamente. MARCOS, Subcomandante Insurgente. Nem o centro e nem a periferia - sobre cores, calendários e geografias. Porto Alegre: Deriva, 2008, p. 56-57. ANDREOTTl, Bruno. Movimentos antiglobalização & práticas anarquistas. Disponível em: <http:// www.nu-sol.org/agora/pdf/brunoandreotti.pdf>. Acesso em 8 de novembro de 2014.
Comentários sobre a sociedade do espetáculo^"’ (1988) são particularmente importantes, pois apontam, vinte anos após o maio de 1968 francês, a integração entre espetacular difuso/liberal e concentrado/burocrático, denominado por ele de espetacular integrado, para o qual confluem fatores históricos como “papel importante de partido e sindicato stalinistas na vida política e intelectual, fraca tradição democrática, longa monopolização do poder por um único partido governamental, necessidade de acabar com a contestação revolucionária surgida de repente”^®. O principal laboratório do espetacular integrado foi a Itália em seus anos de chumbo:
A Itália resume as contradições sociais de todo o mundo e tenta [...] amalgamar num só país a Santa Aliança repressiva do poder de classe, burguês e burocrático-totalitário... Sendo no momento o país mais avançado no movimento em direção à revolução proletária, a Itália é também o laboratório mais moderno da contra-revolução internacional.^!
Esse novo tempo do mundo, o tempo do espetacular integrado, é também marcado pela emergência da crise ambiental, “Apoluição dos oceanos e a destruição das florestas equatoriais ameaçam a renovação do oxigênio na Terra; a camada de ozônio não suporta o progresso industrial; as radiações de origem nuclear se acumulam de modo irreversível”^^. Emergência ao mesmo tempo global e quotidiana enquanto riscos e conseqüências reais, e dispositivo de controle: “Rastreio, transparência, certificação, eco-taxas, excelência ambiental, polícia da água auguram o estado de exceção ecológico que se anuncia”, em outros termos, “É em nome da ecologia que será necessário apertar os cintos daqui para frente, tal como o foi em nome da economia até aqui”^l
Texto incluso em DEBORD, op. cit. ^“ Idem, p. 172-173. Idem, p. 159-160. Ao contrário das demais, essa citação foi retirada do Prefácio à 4° edição italiana (1979) do \\Mm A sociedade do espetáculo. Idem, p. 193. 23 COMITÊ \NV\SlVEL. A insurreição que vem. Brasil: Edições Baratas, 2013, p. 82-83.
Em decorrência disso, observa-se o surgimento de inúmeras medidas que visam 0 melhor controle da produção tendo em vista não apresentar grandes danos ambientais. Assim, desde os anos de 1970 se circunscrevem aos novos imperativos da acumulação o apelo à sustentabilidade, tanto como discurso das Nações Unidas, quanto como práticas alternativas integráveis, por exemplo, a permacultura.
IV O Brasil na rota de colisão do novo tempo e o caráter das insurgências
Em terras nada tupiniquins atualmente confluem alguns dos elementos até aqui indicados, por exemplo, a herança da Ditadura civil-militar na ordem supostamente democrática^"^ e os doze anos do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) com respectivo atrelamento sindical ao Estado e construção de uma “Cidadania Regulada”^^ Em uma relativa contramão da ordem global, o gigante acordou^® (economia emergente e ascensão conservadora) e tem a maior fatia de recursos naturais do planeta; mas possui atravessada na garganta a terceira maior população carcerária do mundo e a insurgência iniciada em junho de 2013 contra o aumento das passagens e os gastos com a Copa do Mundo. Economia emergente e ascensão conservadora, ou desenvolvimento econômico e segurança pública, são o antigo binômio da ditadura militar, agora sob a forma de uma gestão armada da vida social, particularmente nas periferias^^ e de um
“Assim sendo, poderemos ser mais específicos na pergunta de fundo: o que resta da ditadura na inovadora Constituição dita Cidadã de 1988? Na opinião de um especialista em instituições coercitivas, Jorge Zaverucha, pelo menos no que se refere às clausulas relacionadas com as Forças Armadas, Polícias Militares e Segurança Pública - convenhamos que não é pouca coisa -, a Carta outorgada pela Ditadura em 1967, bem como sua emenda de 1969, simplesmente continua em vigor. Simples assim [...] Do Banco Central ao Código Tributário, passando pela reforma administrativa de 1967, a Constituição de 1988 incorporou todo o aparelho estatal estruturado pela Ditadura” (ARANTES,op. cit, p. 289 e p. 298). Idem, p. 386-387. “ Em uma “aula pública” intitulada “Tarifa zero e mobilização popular”, a 27 de junho de 2013, Paulo Arantes levanta uma questão que pode ter uma diálogo fecundo com o “Passagens” de Walter Benjamin: “se ‘o gigante acordou’, cabe nos perguntar com o que sonhava ele nos vinte anos em que esteve mergulhado em um sono profundo?”. Disponível em: <http://blogdaboitempo.com.br/2013/07/03/ tarifa-zero-e-mobilizacao-popular/>. Acesso em 14 de novembro de 2014. O maior exemplo disso são as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro, cuja experiência piloto foi a ocupação militar brasileira no Haiti. Paulo Arantes faz esse cruzamento na
crescente aumento da criminalização dos movimentos sociais^^ mais recentemente dos manifestantes “vândalos” e adeptos da tática black bloc. Ressaltando apenas a diferença, nem tão conhecida, de que para os primeiros a bala não é de borracha; desde a insurgência das Jornadas de junho em 2013 a resistência a esse binômio ganhou proporções até então inexistentes: a ação generalizada de tomar a rua como espaço de luta, de modo direto, horizontal e permanente. O dispositivo de controle estatal, sobretudo no interior do atual refluxo das manifestações, é para ambos o mesmo: “Pensando em termos de história militar, contrainsurgência hoje, afirma Bacevich, é uma moeda falsa, uma fraude destinada a perpetuar o estado de guerra no mundo, pois a ‘segurança da população’, por definição, é uma porta que nunca se fecha”^®. Mesmo que no Brasil e na Turquia (Ocupação da Praça Taksim) em 2013 o contexto seja distinto dos Indignados na Espanha, do Occupy Wall Street no coração financeiro do mundo (EUA) e da Primavera Árabe em 2011, ou do levante na Grécia em 2008 e nos subúrbios parisienses em 2005; e mesmo que existam diferenças entre cada contexto em específico, houveram características comuns que podem ser apontadas:
As assembleias gerais eram descentralizadas e funcionavam como uma continuação das reuniões e demandas dos grupos de afinidades menores... O caráter de ocupar uma parte da cidade e torná-la aberta a quem quer que seja para se juntar e construir em conjunto novas relações com as pessoas e o espaço foi fundamental para dissociar a ação política e o ‘protagonismo’ de uma identidade engessada, como ‘trabalhadores’ ou ‘estudantes’ - categorias identitárias simplesmente inacessíveis para crescente parcela da população no novo capitalismo - e abrir espaço para a ação e a livre associação rebelde independentes do seu papel na máquina imperial.^”
“aproximação UPP-Minutash” (ARANTES, op. c it, p. 370). No entanto, é a ocupação dos territórios da Palestina a “mãe de todas as ocupações que hoje povoam o mundo” (Idem, p. 358). “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra” (Sobre o conceito da história em BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 245). ARANTES,op. cit, p. 367. 30 FlCÇÂO FICTÍCIA. Balaklava: um chamado à guerra nômade. São Paulo: 2014. Disponível em: <http://balaklava.noblogs.org/o-texto/>. Acesso em 8 de novembro de 2014.
Mas não se trata apenas de multitude. Ao menos no Brasil a influência das Jornadas foi nítida na greve dos garis no Rio de Janeiro, no carnaval de 2014^\ e dos rodoviários de São Paulo, nas vésperas da Copa do Mundo. Ambas foram abertamente apresentadas pela mídia ao público de espectadores como greves selvagens ao não seguirem a ordem legal e seus respectivos sindicatos. De algum modo, a aparente equivalência entre legitimidade e legalidade foi rompida: “Pode-se simplesmente predizer uma coisa: vai ser muito difícil que os atos de contestação, que não deixarão de aumentar nos próximos anos, respeitem os parâmetros da ‘legalidade’ concebidos precisamente no objetivo de condená-los ã ineficácia”^^. Em um presente prolongado no qual as expectativas de mudança radical nas estruturas da sociedade existente se reduzem a uma administração do mal menor, o aumento de vinte centavos ou a austeridade do desmantelo do Estado social, 0 autoritarismo de um regime democrático e sua reforma urbana predatória e excludente ou o assassinato de um jovem negro da periferia, são faíscas que ateiam fogo em um descontentamento bem mais generalizado. Nessas situações o presente não é experimentado enquanto transição, mas enquanto interrupção^^ e aquilo que se apresentava como empobrecimento da experiência e redução das expectativas se desdobra em um nada a perder positivo análogo ao que Walter Benjamin fala em 0
caráter destrutivo e Experiência e pobreza^"'. Sua principal característica é a profanação como crítica prática da alienação-separação^^
Sobre isso há o artigo “Aprender com os garis” disponível no site do coletivo Passa Palavra: <http:// passapalavra.info/2014/03/93110>. Acesso em 8 de novembro de 2014. JAPPE, Anselm. Violência, masparaquê?. São Paulo: Hedra, 2013, p. 75. ” “Se Walter Benjamin pudesse incluir postumamente um parágrafo na entrada ‘Alarme de incêndio’ de sua Rua de mão única - entrada na qual redefinia a luta de classes, não como correlação de forças sopesadas numa gangorra sem fim, mas como urgência de apagar o incêndio geral que de qualquer modo os dominantes já atearam -, é bem provável que reconhecesse nesse aparente eterno retorno de uma conjuntura em que campo de experiência e horizonte de expectativa voltaram a se sobrepor, depois de seu longo divórcio progressista, a fisionomia mesma da Revolução, o Acidente original, em suma” (ARANTES, op. cit, p. 97). O texto “Experiência e pobreza” se encontra em BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte epolítica: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012.0 texto “O caráter destrutivo” se encontra em BENJAMIN, Walter. Imagens de pensamento/Sobre o haxixe e outras drogas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. “[...] a crítica materialista da alienação-separação [...] principiou historicamente pela crítica da religião como instituição do sagrado enquanto dispositivo ou poder que subtrai e confisca coisas, lugares, animais e pessoas da livre circulação entre os homens. Portanto, desse ângulo, toda crítica ê um ato profanatório - o que Debord chamava de prática negativa. Ora, a conclusão de Agamben ê que
V. Sobre os recentes legados
Desde que se deu a ambígua insurgência sob o território do Estado brasileiro, muito se ouviu acerca da antiga polarização espontaneismo/trabalho de base. Diante dessa falsa dicotomia a questão talvez seja não recair em unilateralidade. Se a via insurrecional for a única, ela constituirá apenas outra forma de ideologia, uma forma de pensamento, organização e ação coagulada, incapaz de lidar com as particularidades de cada contexto. Coloca-se na mesma ordem o fato de que não podemos atribuir aos mais diferentes “trabalhos de base”, mesmo o do Movimento Passe Livre (MPL), a centralidade diante do conjunto multifacetado dos protestos de rua. Nenhuma greve de trabalhadores ter sido convocada diante da revolta que se alastrou em 2013 demonstra o atraso dos seus setores organizados. No entanto, o saldo da desobediência nas ruas teve continuidade em greves e ocupações^®. A ineficácia da tática black bloc no primeiro ato contra a Copa do Mundo convocado pelo MPL em São Paulo é um exemplo do limite da via insurrecionaP^ Mas de modo algum anula a importância de tal tática para a continuidade do anonimato, da ação direta e da horizontalidade existentes até aqui. Não anula, sobretudo, que essa autodefesa em conjunto com as assembleias de rua foram cruciais para os poucos, mas rápidos ganhos desse periodo^l
0 capitalismo contemporâneo enquanto religião total, quer dizer, um ritualismo integral, impulsionado por imperativos meramente cultuais, tornou-se um sistema inteiramente voltado para a ‘criação de algo absolutamente Improfanável’ - e assim sendo, a profanação do improfanável tornou-se a tarefa política da geração que vem [...] é essa a tarefa da insurgência que vem” (ARANTES,op. cit.,’ç>. 399). Dentre as ocupações, a do Parque do Cocó no Ceará, a do Cais José Estelita em Pernambuco, a da Câmara Municipal de Belho Horizonte e de Porto Alegre, são alguns dos exemplos. Sobre isso há o artigo “Agora só faltam três reais... e um imenso desafio” no site do coletivo Passa Palavra: <http://passapalavra.info/2014/06/97065>. Acesso em 8 de novembro de 2014. “Foi preciso muito bloqueio, muito ônibus depredado, muita lixeira queimada, muito enfrentamento com a polícia, mas também muita assembleia de rua [...] foi preciso, enfim, adicionar à desobediência civil uma forte dose de todas aquelas práticas que a paz armada de nossa interminável transição colocou na ilegalidade [...] Para que os vinte centavos caíssem foi preciso então profanar, nos termos do visionário Silvio Mieli - algo muito mais intolerável que as vidraças quebradas de agências bancárias e assemelhados de marca de luxo -, os santuários do único monopólio que realmente importa, e pior, por gente comum, autoconvocada” (ARANTES, op. cit, p. 434).
A questão é saber lidar com os refluxos das grandes manifestações e ampliar os laços construídos. Afinal, vale lembrar que sobre o atual estado de controle “Ninguém deixa [...] tão claro como o oficial italiano, que, após as manifestações em Gênova, em julho de 2001, declarou que o governo não queria que a policia mantivesse a ordem, mas que gerisse a desordem”^®. A gestão da desordem, da insegurança é a principal oferta do Estado. Esse percurso nos deixa, por fim, além do legado libertário, a unificação das polícias militar, civil e federal e uma nova legislação sobre o crime organizado. Como diz 0 título do último artigo no livro de Paulo Arantes, “Depois de junho a paz será total”. Paz esta sustentada por uma braço armado e fascismo cotidiano cada vez mais ostensivo"^®. Mas isto “Já o sabem as bichas, sapas e trans; pobres, negrxs e moradorxs de favelas; pessoas em situação de rua, as comunidades indígenas e os animais silvestres”'^^ Quanto maior o ruído das crises e das insurgências, tanto maior a marcha da emergência.
Passagem de Giorgio Agamben citada no texto “Rumo ao estado de controle global?”, de Jerome Roos. Disponível em: <http://outraspalavras.net/posts/gerindo-a-desordem-rumo-ao-estado-de-controleglobal/>. Acesso em 8 de novembro de 2014. “[...] os ‘coxinhas’ também se insurgiram” (ARANTES, op. c it, p. 399). « FACÇÃO FICTÍCIA, op. cit, p. 13.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDREOTTI,
Bruno.
Movimentos antiglobalização & práticas anarquistas.
Disponível em: <http://www.nu-sol.org/agora/pdf/brunoandreotti.pdf>. Acesso em 8 de novembro de 2014. ARANTES, Paulo. 0 novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte epolítica: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução brasileira de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012 -(Obras Escolhidas v. 1). D EB O RD , Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução brasileira de Esteia dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. FACÇÃO FICTÍCIA. Balaklava: um chamado ã guerra nômade. Disponível em: <http:// balaklava.noblogs.org/o-texto/>. Acesso em 8 de novembro de 2014. COMITÊ \NW\^\WEL. A insurreição que vem. Tradução brasileira de Edições Baratas. Brasil: Edições Baratas, 2013. JAPPE, Anselm. Violência, mas para quê?. Tradução brasileira de Robson J. F. de Oliveira. São Paulo: Hedra, 2013. MARCOS, Subcomandante Insurgente. Nem o centro e nem a periferia - sobre cores, calendários e geografias. Tradução brasileira de Coletivo Protopia e Danilo Ornelas Ribeiro. Porto Alegre: Deriva, 2008. PASSA PALAVRA. Aprender com os garis. Disponível em:
<http://passapalavra.
info/2014/06/97065>. Acesso em 8 de novembro de 2014. ______. Agora só 'faltam 3 reais... e um imenso desafio. Disponível em: passapalavra.info/2014/06/97065>. Acesso em 8 de novembro de 2014.
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JUÍZO FINAL OU SPRUNG? DIÁLOGOS E INTERROGAÇÕES NAS TRAMAS DA HISTÓRIA FLÁVIA MARIA DE MENEZES - PROPED/UERJ. flaviamaria37@yahoo.com.br PRISCILA DE O. DORNELLES MACHADO - PROPED/UERJ. pridornelles@hotmail.com
Resum o: A proposta deste artigo é contribuir com nossas interpretações, indagações e reflexões acerca da perspectiva histórica de Walter Benjamin em diálogo com a obra Juízo Final, do pintor alemão Fritz Lohmann. Fritz foi um artista que nos seus 85 anos de vida nunca desejou publicar suas telas, preferindo 0 anonimato, mas acreditamos, ao analisar a obra referida, que ele encontrouse com Benjamin em pensamento e reflexão, sem nunca tê-lo conhecido. Na tela Juízo Final, é possível perceber impressões que nos possibilitarão interpretar algumas ideias que Walter Benjamin desenvolveu nas teses que escreveu sobre o conceito de história, como as ideias de melancolia e redenção, que nos permitirão colocar a obra de Fritz em diálogo com este pensador.
Palavras-chave: história, in tertexto , reflexões
N° 6 - 02/2014
O céu de ícaro tem mais poesia que o de Galileu E lendo teus bilhetes, eu lembro do que fiz
Querendo ver o mais distante e sem saber voar Desprezando as asas que você me deu... (Os Paralamas do Sucesso)
Introdução
N
ão somente a extraordinária filosofia de Walter Benjamin como também a de muitos brasileiros anônimos ou não, nos instigaram a encaminhar uma proposta de artigo e discussão para participar da II Jornada Benjaminiana.
Ouvindo pelo rádio a canção Tendo a Lua, da banda Os Paralamas do Sucesso, pensamos que trazer parte desta canção na epígrafe do texto seria um bom começo para nossa discussão. O céu de ícaro é um céu mítico e trágico; um jovem sonhador, que ignorou os conselhos de seu pai colocando a frente de qualquer coisa sua ânsia juvenil por conhecer e desvendar as maravilhas da liberdade, voando ao encontro do sol e da morte. Galileu com seu telescópio mostrou que, muito mais do que mistérios, lendas, mitos, o universo é explicado pelas leis da ciência; entretanto, mesmo a ciência de Galileu não se distanciou da poesia. “M as que céu pode satisfazer teu sonho de céu?”, nos pergunta Manoel Bandeira. O céu de ícaro ou o de Galileu (acrescentamos)? Acreditamos que tem sido “o sonho de céu”, como nos convida a refletir o poeta, a nutrição para muitos pensadores, com os quais nos encontramos no percurso da pesquisa no curso de mestrado, produzirem suas filosofias, suas ideias, interrogações e reflexões. No mesmo sentido pensam os poetas que escrevem as poesias e as canções, que nos instigam a olhar nossa trajetória como pesquisadora por outras lentes, às vezes pouco nítidas, porém sempre reveladoras. Nosso encontro com Walter Benjamin começou em uma disciplina do curso de mestrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), coordenada pelas professoras Rita Ribes e Maria Luiza Oswald, duas desbravadoras do pensamento benjaminiano. Pensamos que um encontro com este pensador não tem hora marcada
para terminar. A filosofia benjaminiana nos levou a compreender que para um pesquisador da área das Ciências Humanas como somos, o céu de Galileu pode ser revelador, mas não basta, é preciso nutrir a pesquisa com o céu de ícaro q ue, para nós, tem sido possível através de Benjamin. Portanto, nossa proposta é contribuir nesta Jornada com nossas interpretações, indagações e reflexões acerca da perspectiva histórica de Benjamin em diálogo com a obra Juízo Final, do pintor alemão Fritz Lohmann^ Fritz foi um artista que nos seus 85 anos de vida nunca desejou publicar seu trabalho, preferindo o anonimato, mas acreditamos, ao analisar a obra referida, que ele encontrou-se com Walter Benjamin em pensamento e reflexão, sem nunca tê-lo conhecido, ou melhor, sem ter tido o prazer da leitura de suas obras, e que trazê-lo para dialogar com as perspectivas históricas Benjamin seria, para nós, uma experiência fascinante no exercício reflexivo sobre a obra deste pensador. Fritz Lohmann nasceu na cidade de Berlim, na Alemanha, no ano de 1916. Aos onze anos, veio para o Brasil com sua família e aqui permaneceu até a sua morte, em 2001. As telas foram, ao longo de sua vida no Brasil, o modo pelo qual Fritz expressava sua filosofia. Na tela Juízo Final é possível perceber impressões deste artista que nos possibilitaram interpretar algumas ideias que Benjamin desenvolveu nas teses que escreveu sobre o conceito de história, como as ideias de melancolia e redenção, que nos permitiram colocar a obra de Fritz em diálogo com este pensador. Nossas interpretações estão ancoradas nas obras de Walter Benjamin (1986, 1987), Michael Lõwy (2005), Boaventura Sousa Santos (2002), e outros interlocutores que nos têm atravessado nas leituras benjaminianas.
O quê de Benjamin atravessa o Juízo Final?
O salto benjaminiano é, para nós, uma ideia fascinante para falar de história.
' Fritz Lohmann é avô de uma das autoras do artigo. Optamos em não detalhar aspectos de sua vida pessoal respeitando, assim, seu desejo de permanecer no anonimato.
Fomos educados a pensar a história a partir da força da correnteza, ou melhor, levados a “ver” os fatos históricos e acreditar naquilo que nos foi contado, como faz a força da correnteza que nos leva para onde o curso das águas caminha, o tempo todo nesta direção; até porque nadar contra a correnteza exige fôlego e coragem; é sempre uma situação de enfrentamento do que parece ser inevitável, sem medo; é como se desconfiássemos daquilo que nos é colocado como verdade, com provas legítimas, como narrou Benjamin em sua Tese XI: “nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente”^. O salto benjaminiano nos encantou pelo fato deste pensador não trazer, na sua filosofia, 0 desmascaramento das verdades históricas, mas sim e sempre, outra forma de conhecê-las, ou seja, um reconhecimento de uma história contada sob outros pontos de vista. Outros pontos de vista possíveis, pois o que Benjamin nos tem possibilitado é pensar quais seriam os enredos e os desdobramentos se os fatos acontecessem de outra forma; se fossem protagonizados por outros “heróis”; se os heróis da história tivessem no lugar dos vencidos e os vencidos no lugar dos heróis; se o poder se rendesse às forças da resistência. Exatamente, no ano em que a família de Fritz larga sua história alemã para construir uma outra história no Brasil, em 1927, a República de Weimar, como assim passou a ser chamado o sonho de democracia alemã, instituía o seguro desemprego para tentar minimizar a miséria de boa parte das famílias alemãs em decorrência da Primeira Guerra Mundial, inclusive a da sua família. Fritz dizia que seu pai era um conservador que desejava a Alemanha de outrora. Culpava seu pai por não ter se criado na sua terra de origem; queria ter podido dar uma chance às promessas da social democracia pela qual sempre demonstrou simpatia, mas se lamentava pelo fato desse mesmo sonho de democracia, aliado ao medo da realidade e a uma certa nostalgia de um passado imperial terem fortalecido Adolf Hitler e o terror do nazismo que, ao mesmo tempo,
0 fazia agradecer ao seu pai por ter escolhido deixar as esperanças para trás. Assim, pensando na trajetória de Fritz, como seria pintado o Juízo Final se sua família tivesse resistido à tentação de abandonar a pátria para fugir da recessão? Será que a dor social que moveu a criação de Fritz existiria em seu peito?
^ BENJAMIN, 1987, p. 227.
Lohmann, Fritz. Juízo Final, 1989
Para nós, a tela Juízo Final, pintada por Fritz no ano de 1989, é uma das obras em que este pintor dialoga com mais intensidade com a filosofia histórica de Walter Benjamin. Deus, o velho vestido de branco, representa toda a dor social que Benjamin colocou na sua filosofia, dor essa presente em cada reflexão, em cada alegoria, em cada palavra que escreveu em suas teses para tratar o conceito de história. A melancolia foi mais que um sentimento, podemos arriscar dizer que foi um conteúdo que Benjamin utilizou para escrever suas obras. Vejam a tela Juízo Final: a melancolia está em Deus, que carrega o fardo de sua criação e sofre pela ausência da necessária “inveja de cada presente com relação ao seu futuro”% que Walter Benjamin já denunciava em suas teses. A melancolia está, também, presente na paisagem de fundo, nas cores da terra e do céu; na expressão de alguns estadistas, como Napoleão, por exemplo, cuja causa revolucionária o fez imperador, mas também o entorpeceu pelo poder, transformando-o em um dos maiores ditadores da história. Muitas interpretações podem surgir desta obra, entretanto, para nós, chama a atenção os grandes estadistas da história da humanidade que Fritz reuniu para representar o que estamos entendendo como o fardo mais pesado da criação de Deus: “heróis do bem” e “heróis do mal” compartilham, pelos seus ideais, a responsabilidade de muitas perdas, da miséria social, da competição desleal, da ânsia pelo poder, do holocausto, das guerras, da desigualdade, da exclusão, da segregação racial e cultural.
■Mdem,1987, p. 222
da colonização econômica e muitas outras situações que escureciam as possibilidades de um novo século, mais solidário e mais livre para toda a humanidade. As expectativas para a chegada do século X X I (já que a tela em referência data do ano de 1989) eram de pouca esperança e o artista tentava expressar sua melancolia já que os grandes heróis não tinham percebido, ou simplesmente ignoraram o “aviso de incêndio” anunciado nas tramas da história, aquelas que não foram rememoradas porque esses heróis não escutaram os ecos das vozes que eles mesmos emudeceram. Com as mãos na cabeça. Deus parece sentir-se derrotado e entrega ao Diabo (o monstro que surge por entre as nuvens) sua criação para o juízo final, porque sem redenção não há salvação! Benjamin nos convida a pensar as narrativas históricas sem distinção de grandes e pequenos acontecimentos; sem distinguir grandes e pequenos homens e mulheres:
O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriarse totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um de seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à
Vordredu jo u r - e esse dia éjustamente o do juízo final.'*
Lõw^ comenta na obra que escreveu sobre as Teses de Benjamin, que para o pensador seria preciso que a humanidade se rendesse ao passado para narrar uma história que coubesse o seu passado em toda a sua “inteireza”, sem deixar para trás nenhum acontecimento, nenhuma perda, nenhum sofrimento^ Assim, explicamos a melancolia de Fritz ao olhar para o seu passado e reconhecer que a sua Alemanha se esqueceu de narrar o sofrimento das muitas famílias que abandonaram seus sonhos e se aventuraram em um futuro sem passado, em terras desconhecidas. O que na verdade
BENJAMIN, 1987, p. 223. 'LOW Y,M ichaeI,2005,p. 54.
essas pessoas deixaram para trás? Aquilo que foi deixado e, com o tempo, esquecido (se é que isso é possível) ficou aprisionado na memória, na história não contada, e por isso, uma vez aprisionado, não permitiu que novos sonhos libertassem essas pessoas da culpa, do medo, do rancor, da saudade. Entretanto, nas telas, ao contrário de seus atos, Fritz mostrou uma consciência de que, como nos coloca Lówy, “a relação entre o hoje e 0 ontem não é unilateral: em um processo eminentemente dialético, o presente ilumina o passado, e o passado iluminado torna-se uma força no presente”®. Assim, atravessado pela dor, pela saudade, pela culpa, pelo medo e por muitos sentimentos Fritz mostrou nas suas telas (assim acreditamos) que sabia o que era “escovar a história a contrapelo”, como sugere Benjamin na escrita da Tese VIF, e que, mais ainda, trazia essa forma benjaminiana de pensar o passado ã luz do presente”, ou melhor dizendo, “ a verdadeira imagem do passado perpassa veloz, o passado só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”^
A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que no momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participaram do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses desposjos são o que chamamos de bens culturais.®
Nesse sentido, podemos entender que Deus não carregava para o Juízo Final os despojos da sua criação: os vencidos, os dominados, pois esses nasceram e morreram assujeitados pela força da submissão aos dominadores. Se por eles lutaram, se neles acreditaram e depositaram suas esperanças, foi porque o fascínio pelas promessas
®Idem, p. 61 ’ BENJAMIN, 1987, p. 225 « Idem, p. 224. ®Idem, p. 225.
de um futuro de vitórias e conquistas provocou nesses sujeitos o apagamento do compromisso com as suas próprias perspectivas.
Assim, é de estranhar logo na primeira página a afirmação de que “o século em que se luta, por que idéias e com que armas são coisas secundárias”. E o mais espantoso é que, com essa afirmação, Ernst Jünger se apropria de um dos principios do pacifismo, um dos mais contestáveis e abstratos. Mas o que há por trás dele e de seus amigos não é tanto um padrão doutrinário, mas sim um arraigado misticismo perverso, segundo todos os critérios de um pensamento viril. O seu misticismo da guerra e o ideal estereotipado do pacifismo se eqüivalem. No momento, mesmo o pacifismo mais tisico está um passo á frente de seu irmão acometido por ataques epilépticos: ele tem certos pontos de referência na realidade, inclusive, uma concepção da próxima guerra. (...) Com prazer e com ênfase, os autores falam da “Primeira” Guerra Mundial. Mas a obtusidade com que falam em guerras futuras, sem noção do que estão falando, prova a falta de assimilação, pela sua experiência, de uma realidade a qual chamam de “real de alcance mundial”, com estranhissima exaltação. Esses pioneiros da Wehrmacht quase levam a crer que o uniforme é para eles um objetivo supremo, desejado com todas as fibras de seu coração, objetivo que quase faz esquecer as circunstâncias nas quais
0 uniforme é utilizado.[...]
Na obra que utilizamos como uma das interlocuções benjaminianas neste texto,
Documentos de Cultura. Documentos de Barbárie (Escritos Escolhidos), Benjamin faz uma resenha crítica (Teoria do Fascismo Alemão) da coletânea organizada por Ernest Jünger, Krieg undKrieger (Guerra e guerreiros)“ . Na sua crítica, entre muitas questões que Benjamin nos coloca para reflexão, uma delas é que provavelmente os autores da coletânea não conseguiram avaliar o que é, para os vencidos, ganhar ou perder uma guerra. Benjamin faz sua crítica, mas não culpa e nem acusa os autores da coletânea
''■Walter Benjamin, “Theorien des deutschen Faschisrnus” (Teoria do Fascismo Alemão), in Documentos de Cultura. Documentos de Barbárie. Resenha da coletânea Krieg und Krieger (Guerra e guerreiros), org. por Ernst Jünger, Ed. Junker e Dunnhaup, 1930.
pelas suas palavras. Reconhece que esses autores, além de narradores da guerra foram soldados nos confrontos e viveram na alma a experiência da guerra; porém, revela em suas críticas certa ingenuidade nas ideias desses autores, e de muitos líderes: o que significa ganhar ou perder a guerra para aqueles que não lutaram, mas que perderam muito mais que batalhas, pois perderam a “substância material e espiritual de um povo”?“ Na sua arte, na sua filosofia e nas muitas escolhas que fez ao longo da vida, Fritz deixou escapar sentimentos como culpa, arrependimento, revolta e também nostalgia em relação à Alemanha, sua terra natal. Fazia correspondência com entidades alemãs que lhe enviavam jornais e revistas do país, e ele os lia, assim como suas revistas e livros de arte, que também eram alemãs (alguns franceses ou ingleses, línguas que aprendeu de forma autodidata), de maneira que se sentia alemão morando no Brasil, e por isso nunca se naturalizou brasileiro. Seu sotaque era bem carregado. Isso parecia estranho; uma negação. Não ao Brasil que lhe acolheu, mas ã própria Alemanha que dizia lhe ter expulsado. Talvez essa forma de se colocar estrangeiro permitiu que desenvolvesse uma bela filosofia sobre ser brasileiro, que demonstrou de forma surpreendente em sua arte. No mesmo sentido, Fritz mostra como seria a Alemanha e os alemães se as escrituras históricas tivessem outras narrativas, por outros narradores. Como interpretou Lõw^ (2005), “o passado espera de nós sua redenção”. A redenção (Erlôsm g), para Benjamin, tem seu sentido na rememoração da história. Rememorar a história trazendo para as narrativas as experiências coletivas de todos os sujeitos. Narrar o passado como um desvio para pensarmos o presente: “nada de salvação sem transformações revolucionárias da vida material”^^. E foi assim que Fritz expressou em o Juízo Final: era certo, para o Diabo, que Deus colocaria a parte mais valiosa de sua criação aos seus “cuidados”. Do seu lugar o “mal” apenas contemplava e esperava, sem interceder, pelo o juízo final. Na crítica literária que Benjamin escreveu sobre o surrealismo, há uma passagem em que se refere a uma obra de Dostoievski que muito nos disse sobre a tela Juízo Final:
" BENJAMIN, 1986, p. 132. LÕWY. Michael, 2005, p. 58.
Para sermos mais rigorosos, podemos selecionar da obra completa de Dostoievski exatamente o texto que de fato somente foi publicado em 1915: “A confissão de Stavrogin, dos Demônios. Esse capitulo, que tem estreitas analogias com o terceiro canto dos Chants de
Maldoror, contém uma justificação do Mal que exprime certos motivos do surrealismo com mais força com que jamais conseguiram os seus propugnadores atuais. Pois Stavrogin é um surrealista avant
la lettre. Ninguém como ele compreendeu como é falsa a opinião do pequeno burguês de que, embora o Bem seja inspirado por Deus, em todas as virtudes que ele pratica, o Mal provém inteiramente da nossa espontaneidade e nisso somos autônomos e responsáveis por nosso próprio ser. [...] O Deus de Dostoievski não criou apenas o céu e a terra e o homem e o animal, mas também a vingança, a mesquinharia e a crueldade. E também aqui o Diabo não interferiu com o trabalho.
No Juízo Final, Deus condenou os “justos” e os pecadores. Condenou os “grandes heróis” de Fritz Lohmann, da mesma forma como condenou seus vilões. Foi um julgamento sem perdão, porque não houve redenção em nenhum dos dois lados. Os ideais pareciam antagônicos, porém forças opostas lutaram com as mesmas armas e, dessa forma, os ideais progressistas não transformaram o curso da história como prometeram às classes oprimidas, e os entregaram como instrumentos para fortalecer ainda mais as classes dominantes, prevalecendo a diferença entre classes,
0 individualismo, a segregação social, o “poder do Estado estrangeiro autônomo se opondo aos membros da sociedade”, temas essenciais da obra de Marx que Benjamin criticou com veemência. Segundo Gagnebin, Benjamin sofreu grande impacto com o acordo firmado entre Stalin e Hitler, em agosto de 1939, que o inspirou na escrita de suas teses sobre história, que para muitos críticos são um dos maiores legados que ele deixou para seus contemporâneos.^^ No final da década de 1970 e início dos anos de 1980, o Brasil,
BENJAMIN, 1987, p. 31. '"t LOWY, Michael, 2005, p. 59. Jeane Marie Gagnebin prefaciou a obra Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas í , traduzida por Sergio Paulo Rouanet, publicada em V edição no Brasil em 1985, pela Editora Brasiliense. A edição que estamos utilizando como referência neste texto é datada de 1987.
pátria emprestada de Fritz, fervia com o final do regime militar: anistia, fim da ditadura, eleições diretas, liberdade de expressão, enfim, nessa efervescência a juventude encontrou espaço para criar formas irreverentes de resistência cultural, cantando, escrevendo, pintando e poetizando seus protestos, suas denúncias e opiniões. A Bancfa
Titãs surge em 1982 com a promessa de “dar um soco no estômago da hipocrisia”^®e colocar a juventude brasileira para pensar e incomodar a “burguesia”. Em uma de suas canções. Homem Primata, encontramos um trecho que poderia representar, de forma contundente, a figura do Diabo na tela Juízo Final, ou melhor, o seu veredito:
Eu aprendi Avidaéum jogo Cada um por si E Deus contra todos Você vai morrer E não vai pro céu É bom aprender A vida é cruel Homem primata Capitalismo selvagem Titãs
Portanto, se essa é a regra, só sairemos fortalecidos dessa batalha se encontramos no “estado de exceção” a verdadeira regra para viver e fazer história, como nos aconselhou Benjamin na escrita de sua Tese VIII.^^Walter Benjamin mostrou-nos, com a sua concepção de história que não há como materializar o futuro; logo, esperar por ele é perder o presente. Perder, sim, a possibilidade de potencializar as nossas chances de narrar e fazer o presente a partir do avesso dos fatos, das conquistas e das vitórias, enfim, do “estado de exceção”. Nem Fritz e nem Benjamin viram as Torres Gêmeas caírem, e também não viram
www.titas.net/historia. consulta em 16/11/2014. " BENJAMIN, 1987, p. 226.
um operário e um negro assumirem a presidência de uma nação; não viram a crise econômica da Grécia, berço da civilização ocidental, como também não conheceram
0 universo virtual da internet e do mundo digital. Não falaram ao celular e nem se conectaram em redes de relacionamento; entretanto, talvez suas pinturas e narrativas críticas não fossem tão diferentes se elaboradas no tempo de agora. Boaventura de Sousa Santos reconheceu a pobreza da experiência contemporânea nos estudos que desenvolveu para investigar as formas como os movimentos sociais e as ONGs vêm reagindo aos processos de exclusão e discriminação social e econômica mundiais:
Fundada na razão metonímiai^ a transformação do mundo não pode ser acompanhada por uma adequada compreensão do mundo. Essa inadequação significou violência, destruição, silenciamento para todos quantos fora do Ocidente foram sujeitos ã razão metonímia; e significou alienação, malaise e uneasiness no Ocidente. Esse desconforto foi bem sentido por Walter Benjamin ao mostrar o paradoxo que então passou a dominar- e domina hoje, mais ainda - a vida no Ocidente: o facto de a riqueza dos acontecimentos se traduzir em pobreza da nossa experiência e não em riqueza. Este paradoxo veio coexistir com um outro: o facto de a vertigem das mudanças se transmutar frequentemente numa sensação de estagnação^®.
Assim, 0 presente vai mostrando que “começar tudo de novo” com a certeza de que o sol nasce todos os dias para todos, não significa voltar ao princípio e nem tampouco pouco esperar pelo “nada como um dia após o outro”. Como nos coloca Lôw^ (2005), “a relação entre hoje e ontem não é unilateral: em um processo eminentemente dialético, 0 presente ilumina o passado, e o passado iluminado torna-se uma força no presente”^®. Nesse sentido, é preciso olhar o espelho retrovisor primeiro. Vamos tomar aqui 0 espelho retrovisor como uma metáfora. Ao olharmos através dele, as coisas parecem menores em relação ao reflexo de um espelho comum, mas em função da sua
Conceito desenvolvido por Boaventura Sousa Santos, que compreende a “ideia da totalidade sob a forma de ordem” (2002, p. 241) SANTOS, 2002, p. 244 LOWY, Michael, 2005, p. 61
forma curva, o espelho retrovisor aumenta o nosso campo de visão. Nesse sentido, o passado refletido no espelho retrovisor pode ampliar nosso campo de visão do presente e aumentar as chances de enfrentamento e de ruptura, criando, assim, novas formas de emancipação social, cada qual na dimensão de sua real necessidade como sugere Boaventura: “formas de emancipação sociais concretas de grupos sociais concretos” (2002, p. 274). Se não é desta forma, esperamos o Juízo Final de Fritz que, hoje, certamente, acrescentaria muitos outros personagens.
Considerações Finais
Desde o início do século X X , Walter Benjamin vem causando impacto com a sua filosofia e trazendo importantes questões não só para os pensadores da modernidade, como para os estudiosos da contemporaneidade, o que nos leva a considerar suas ideias sempre correlatas com o tempo ( diríamos até para além do tempo de agora). Aversão benjaminiana do conceito de história nos revela uma história que não evolui em linha reta, mas que se dá no “salto” (Sprm g) em direção ao novo, ao inusitado, ao acontecimento, uma possibilidade de articular a tradição e o passado com o presente, e é exatamente essa impressão que nos causa a tela Juízo Final, de Fritz Lohmann. A dor social que foi um conteúdo para as criações de Benjamin, também nutriu a produção artística de Fritz Lohmann. Essa dor social não pode ser sentida em sofrimento ou angústia, mas como inspiração, como possibilidade de reinvenção das experiências, ou como sugere Boaventura, como “possibilidade de um futuro melhor” que “não está, assim, num futuro distante, mas na reinvenção do presente”^^ Talvez, Fritz tenha tido esta intenção, mas pelas circunstâncias da vida, ao contrário da obra de Benjamin, sua obra ficou no anonimato, como uma recordação de sua vida, uma presença nas casas de seus filhos e netos. Entendemos que esta dor social ou melancolia que atravessou a obra de ambos os artistas aqui referendados, deveria atravessar de forma criativa o trabalho do
SANTOS, 2002, p. 274
pesquisador. Para Benjamin, tornar-se melancólico é fundamental para a produção de subjetividades, portanto a possibilidade de expandir a condição criadora e encorajar o pesquisador a resistir às constatações, às verdades e ao pessimismo, buscando o avesso da realidade, a outra face das coisas.
Referências Bibliográficas
BENJAMIN, W. Documentos de Cultura. Documentos de Barbárie: escritos escolhidos/ seleção e apresentação Willi Bolle; tradução Celeste H. M. Ribeiro de Sousa et al. São Paulo: Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo, 1986 __________________ . Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história
da cultura. Obras Escolhidas Vol. 1. Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. LÒWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o
conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia
das emergências. Coimbra: Sociais, out. 2002, p. 237-280.
Site
http:7www.titas.net/historia http://vyyyw.vagalume.com.br
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0 PESSIMISMO COMO CRITICA DO PROGRESSO NO ENSAIO SODRE 0 SORRELISMO OE WALTER RENJAMIN FELIPE YURI GINO DE ABREU - Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (CMAF/UECE). felipe.yuri.abreu@gmail.com
Resum o: Em seu ensaio O surrealismo: o últim o instantâneo da inteligência europeia (1929), Walter Benjamin afirma que a aproximação entre surrealismo e comunismo está relacionada à proposta surrealista de pessimismo total. Benjamin aponta como resultado desse pessimismo uma desconfiança quanto ao destino da liberdade, quanto ao rumo da história, quanto ao entendimento entre as classes, ou seja, uma suspeita quanto a qualquer esperança ou ideia de progresso. Resulta desta percepção o objetivo principal deste trabalho que é o de discutir a relação entre esse pessimismo surrealista e a crítica de Benjamin ao progresso. Com a finalidade de alcançar a tal objetivo, buscaremos desenvolver uma explanação sobre o modo como tais conceitos são abordados por Benjamin tanto no texto sobre o surrealismo de 1929 quanto nas teses Sobre o conceito de história de 1940.
Palavras-chave: Surrealismo; Vanguarda; Crítica do Progresso.
N° 6 - ESPECIAL - 02/2014
Introdução azer uma descrição sobre a experiência surrealista com todos os seus
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pormenores não é a finalidade maior de nosso trabalho, assim como, não era a meta final de Walter Benjamin em seu ensaio sobre o surrealismo. Ao contrário,
concentraremosnossadiscussãonumrecortebemprecisoacercada crítica benjaminiana
a este movimento de vanguarda que não deve e nem poderia ser considerado apenas como um movimento artístico ou poético.^ A atitude surrealista, que o leva a ser um movimento com a pretensão de ir além da arte, nos parece ser fruto de seu tempo. Visto que 0 movimento se desenvolve no período entre as duas grandes guerras do século XX, e seus grandes nomes são testemunhas do horror da guerra, da crise econômica e da possibilidade de revolução. Diante deste horizonte histórico a lírica surrealista se põe em oposição ao eu cartesiano. Enquanto este mergulha em si mesmo a fim de que pelo processo de reflexão a razão possa livrar-se do erro indubitavelmente, o surrealismo, como testemunha das contradições de seu tempo, não é capaz de confiar cegamente nas certezas da razão e propõe uma visita às possibilidades advindas do erro. Como salienta Jeanne Marie Gagnebin:
Com efeito, não se trata mais de não ser enganado — esse medo constante de Descartes — , mas sim de aproveitar o(s) erro(s), a(s) errância(s), o errar sob todas as suas formas para poder fugir da prisão da identidade, da razão, do cotidiano e do aborrecimento.^
Contudo, essa fuga do cárcere da razão não significa uma adesão a um irracionalismo, é antes, um experimento, o de levar a linguagem e a própria razão a seus limites.^ É, por desconfiar das certezas da razão, operar no limiar entre esta e a loucura, entre o sonho e a vigília. A desconfiança quanto ã razão, iluminadora e guia do mundo moderno, é, no nosso entender, análoga a desconfiança quanto ao progresso histórico.
' Cf. BENJAMIN, Walter. 0 surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. In: Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos, p. 106. ^ GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete A ulas sobre Linguagem, M emória e História, p. 156. ^Cf.Idem, p. 157.
tema central de nossa discussão. Portanto, fixamos os limites de nossa exposição em tratar da posição pessimista assumida por Benjamin acerca do desenvolvimento histórico. Pessimismo este, evocado pelo crítico alemão em seu ensaio sobre o surrealismo, e que, como salienta Michael Lõwy:
O pessimismo está aqui a serviço da emancipação das classes oprimidas. Sua preocupação não é com o “declínio” das elites ou da nação, mas sim com as ameaças que o progresso técnico e econômico promovido pelo capitalismo faz pesar sobre a humanidade.'*
No texto sobre o surrealismo é evidente que o pessimismo, ou melhor, o pessimismo total deve ser compreendido como uma característica inconteste do movimento. Na obra supracitada, além de afirmar esta propriedade do surrealismo, Benjamin a põe em confronto com o otimismo em relação ao progresso, presente no programa dos partidos burgueses e socialdemocratas. Em nosso trabalho, discutiremos o modo como Walter Benjamin aborda esse caráter pessimista do surrealismo, sendo tal discussão guiada pela seguinte tese: a questão do pessimismo presente no texto de 1929 pode ser entendida como um dos momentos germinais da crítica benjaminiana ao progresso e a socialdemocracia que aparece nas teses Sobre o conceito de história de 1940, o que torna possível uma articulação entre os conceitos presentes nesses dois textos.
LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de
história”, p. 23
Pessimismo e surrealismo A obra A revolução e os intelectuais (1928) do escritor surrealista Pierre Naville contém em sua proposição de “organizar o pessimismo” como ordem do dia o ponto de encontro entre o surrealismo e o comunismo.^ O pessimismo aparece então em sentido antagônico frente à postura otimista da socialdemocracia que com sua fé incessante na marcha da história acredita num futuro onde o fim das contradições sociais surgiria como resultado final do curso natural do progresso.® Benjamin ilustra sua posição a respeito desse devaneio socialdemocrata da seguinte forma:
O socialista vê aquele “futuro melhor para nossos filhos e netos” num mundo em que todos agem “como se fossem anjos”, em que todos têm posses “como se fossem ricos”, e todos vivem “como se fossem livres”. De anjos, riqueza e liberdade -nem sombra. Apenas imagens.^
Mas, 0 que faz com que o pessimismo aproxime surrealismo e comunismo? Para elucidar tal questão recorremos ã nona tese de Sobre o conceito de história, pois nesta, ao descrever o quadro Angelus novus de Paul Klee, Benjamin acaba desenhando com suas palavras um novo quadro, no qual o Anjo da história vê com espanto a mesma catástrofe se repetindo continuamente: “Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés”.^ Então, poderia, aquele (o materialista histórico) que percebe no contínuo da história a repetição cíclica de uma mesma catástrofe, ter a vã esperança de que a sociedade sem classes seja inevitavelmente alcançada como uma meta final do progresso? Entendemos que tanto a resposta surrealista para essa questão quanto a do
^ Cf. BENJAMIN, Walter. Op. cit. p. 114. ^ Sobre essa questão afirma Michael Lowy: “(...) para a ideologia conformista, o Progresso é um fenômeno ‘natural’, regido pelas leis da natureza e, como tal, inevitável, irresistível.” LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história’’, p. 93.
’ BENJAMIN, Walter. Op. cit. p. 114. * BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Tese IX. In. LOWY, Michael. W alter Benjam in: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”, p. 87.
materialismo histórico seria negativa, pois como afirma Benjamin:
O surrealismo tem se aproximado cada vez mais de uma resposta comunista. E isso significa: pessimismo total. Desconfiança quanto ao desfino da literatura, desconfiança quanto ao desfino da liberdade, desconfiança quanto aos rumos da história europeia, e sobretudo uma desconfiança total em todo tipo de entendimento: entre as classes, entre os povos, entre os individuos. E uma confiança ilimitada apenas na indústria bélica e no aperfeiçoamento da força aérea para fins pacificos.®
A urgência desta desconfiança quanto ao futuro aproxima o surrealismo do comunismo, ao mesmo tempo, fortalece a crença no presente que é o lugar por excelência da ação política. Contudo, entendemos ser aí que se encontra um dos limites do movimento surrealista, pois apesar do reconhecimento quanto ao pessimismo de Pierre Naville, não podemos deixar de lembrar o incômodo que Benjamin demonstra em relação ao Nadja de André Breton. Quando a curiosidade quanto ao futuro leva Paul Éluard a bater na vidraça da vidente a fim de saber a respeito do seu porvir,“ uma questão logo vem ã tona: como tornar compatível uma visão pessimista em relação ao futuro com uma curiosidade esperançosa a respeito deste? Compreendemos que a resolução de Benjamin para esta questão seja a seguinte: o sujeito histórico não tem a necessidade de saber seu futuro, pois o instante da redenção é o presente, o materialista histórico deve saber que é caminhando que se abrem os caminhos (parafraseando Belchior).“ Walter Benjamin aponta para esta solução em 0 caráter destrutivo, texto de 1931, ao afirmar que: “O caráter destrutivo não se fixa numa imagem ideal. Tem poucas necessidades, e a menos importante delas seria: saber o que ocupará o lugar da coisa destruída.”^^
® BENJAMIN, Walter. 0 surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. In: Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos, p. 114. BENJAMIN, Walter. Op. cit. p. 108. " Cf. FERNANDES. Antônio Carlos Gomes Belchior Eontenelle. Brincando com a vida. In. Belchior. Todos os sentidos. Rio de Janeiro: Warner, 1978. Faixa 3. Mp3. BENJAMIN, Walter. O Caráter destrutivo. In: Documentos de cultura, documentos de
Eis aí 0 problema da socialdemocracia, abandonar a prática revolucionaria em prol de uma confiança otimista na marcha do progresso. Um otimismo que fixa sua visão numa imagem ideal de futuro. E isto é justamente o que defendiam os defensores do neokantismo,^^ sustentáculo filosófico da socialdemocracia, que concebe a busca pela sociedade sem classes como um ideal, que não é outra coisa senão, uma tarefa infinita. Contudo, 0 materialista histórico deve ter a clareza de que, como nos adverte Benjamin:
“A sociedade sem classes não é a meta final do progresso na historia, mas, sim, sua interrupção, tantas vezes malograda, finalmente efetuada”. A desconfiança em relação ã razão e o pessimismo quanto ao futuro aparecem como duas faces de uma mesma moeda. Ambas brotam da percepção de que, seja por se esperar um futuro onde não existam mais contradições entre classes, ou ainda, por crer que o desenvolvimento técnico e científico, resultantes do protagonismo da razão, resolveria os problemas da humanidade, não é prudente confiar a experiência cotidiana aos desígnios de um ideal. Assim, concluímos que o entusiasmo demonstrado por Walter Benjamin em relação ao surrealismo se deve ã postura negativa adotada pelo movimento frente às questões aqui discutidas. Deste modo, o surrealismo desenvolveu sua prática estética e política tendo em vista a expor a crise do protagonismo da razão e acaba apontando para novas possibilidades de percepção, compreensão e intervenção social.
barbárie: escritos escolhidos, p. 187. Na tese XVII a de Sobre o conceito de História, Benjamin, se referindo ao neokantismo afirma que: “E essa doutrina era a filosofia elementar do partido socialdemocrata - de Schmidt e Stadier a Natorp e Vorlander.”. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Tese XVII a. In. LOWY, Michael. W alter Benjam in: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”, p. 134 Idem. p. 134
Referências bibliográficas
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BENJAMIN, Walter. 0 surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. In: Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. Willi Bolle; tradução Celeste H.M. Ribeiro de Sousa... I et. al.l. - São Paulo: Cultrix : Editora da Universidade de São Paulo. 1986.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Muller In. LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. -São Paulo: Boitempo, 2005.
FERNANDES. Antônio Carlos Gomes Belchior Eontenelle. Brincando com a vida. In. Belchior. Todos os sentidos. Rio de Janeiro: Warner, 1978. Faixa 3. Mp3.
GAGNEBIN, Jeanne Marie . Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1997. v. 1. I p .
LÕWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o
conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant, [tradução das teses] Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Muller. -São Paulo: Boitempo, 2005.
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os CACTOS: ORDENS EM QUESTIONAMENTO CARLOS AUGUSTO DE OLIVEIRA AZEVEDO FILHO - Graduado em Artes Cênicas pelo Centro Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Ceará (CEFET CE); Graduando em Licenciatura em Teatro pelo Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Ceará (IFCE).
Resum o: O presente trabalho tem como meta desenvolver um estudo sobre a apresentação da peça Os Cactos, encenada pelo Grupo Expressões Humanas de teatro na cidade de Fortaleza, em abril de 2014. Tal estudo tem como orientação m inha experiência enquanto público da apresentação mencionada, além da trajetória de manifestações artísticas vinculadas às intervenções sociais, assim como a relação entre teatro e política. Pesquisas de Ernst Ficsher (1987), Gerd Bornhein (1992) e Walter Benjamin (1994) exercem forte influência sobre o trabalho em questão. A avaliação levada a cabo ao longo desse estudo tem como ponto de partida a observação exercida na apresentação supramencionada, entretanto outras fontes foram adotadas para o engrandecimento desta pesquisa, como a visualização da encenação de trechos da peça, assim como gravação em vídeo de uma apresentação do espetáculo de modo integral. Acredito que este trabalho seja relevante para pesquisadores, profissionais das artes cênicas e para a sociedade em geral devido ao seu caráter investigativo e sua disposição crítica.
Palavras-chave: teatro épico, subversão e liberdade.
I. Apresentação a noite de 25 de abril de 2014, o Grupo Expressões Humanas de teatro apresentou a peça Os Cactos, de autoria de Emmanuel Nogueira, sob direção de Herê Aquino. Tal apresentação fazia parte de um evento promovido pela organização Desaparecidos Políticos, em memória de quem se doou na luta pela liberdade e em repúdio à ditadura civil e militar instaurada no Brasil em 01 de abril de 1964, permanecendo oficialmente até o ano de 1985.
Os Cactos traz em sua estrutura narrativa a dor e o desespero ocasionados pelo processo de privações de direitos decorrentes de uma ditadura, expondo o desalento de uma família que desconhece o paradeiro de um de seus membros, o jovem Pedro, que participava do movimento de resistência contra o governo ditatorial. Pedro passa por sessões de interrogatório nas quais é brutalmente torturado por um agente do Estado, que assume para si a responsabilidade de extrair as informações necessárias a fim de que as instâncias de repressão obtivessem avanço, ou seja, eliminassem qualquer grupo ou pessoa que se opusesse às ideias e práticas do governo ditatorial. A apresentação de Os Cactos em foco esbanjou ousadia. Com espaço cênico montado no meio da Rua Instituto do Ceará, no Benfica, bairro universitário da região central da cidade de Fortaleza, entre os muros de algumas residências, da sede da Anistia 64/68 e do grupo
Desaparecidos Políticos e da FEAAC^, com uma lona preta e um grande manto da mesma cor, além de projeções de imagens relacionadas às pessoas que desapareceram durante a ditadura civil e militar^ citada, compunham o espaço da apresentação. Vestidos com
1 Faculdade de Economia, Administração, Atuárias e Contabilidade da Universidade Federal do Ceará. ^ Insisto no termo ditadura civil militar, pois identifico neste uma maior proximidade com o que de fato aconteceu por aqui. A ditadura instaurada por meio de um golpe militar em 01 de abril de 1964 teve certo apoio popular, o que a caracteriza como uma ação militar com aprovação de parte da população, sobretudo as de situação mais abonada e de posição reacionária às conquistas dos trabalhadores; mas o que motivou esse golpe e consequentemente o apoio a ele? Para se ter a precisa noção de alguns estímulos que permitiram esse processo de privação de direitos e cerceamento da liberdade é necessário entender a conjuntura sócio política do Brasil e do mundo nesta época. O fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945 não representou apenas a derrocada do Nazismo alemão, do Fascismo italiano e das demais forças que compunham o Eixo. A vitória dos Países Aliados possibilitou um fenômeno relacionado a uma nova forma de imperialismo, em que os Estados Unidos da América do Norte pelo lado do ocidente e a União Soviética do lado oriental, saíram fortalecidas, sobretudo no sentido bélico. A partir daí a geopolítica mundial passou a ser interpretada pela divisão do globo em dois blocos econômicos: capitalista, liderado pelos os EUA e socialista liderado pela URSS. Tais blocos se esforçaram na garantia de acúmulo de poder e passaram a ser determinantes na situação econômica política dos países que infiuenciavam. Em janeiro de 1959 era defiagrada a Revolução Socialista de Cuba, devido sua relevância não só para
blusas e calças de cores mornas, o elenco após breve concentração em formato espiral em uma das esquinas da rua, sob o batuque de um bumbo introduz o público na peça cantando em coro a música Pesadelo^ A intenção de envolver o público com a encenação foi meritória, tanto é que em determinado trecho do espetáculo, como nas cenas de tortura, o público era convidado a ajudar o elenco a erguer o manto que representava as paredes do cárcere. A maneira hábil de trabalhar os ambientes distintos sem perda de ritmo é um dos pontos máximos da peça, pois apesar da situação de tortura física, moral e psicológica, assim como da aflição causada pela falta de informação sobre o paradeiro do ente familiar desaparecido ter a violência como foco, as energias empreendidas nos distintos ambientes se colocam como fundamentais para a compreensão e participação do público, que mesmo frente a uma obra teatral com denso conteúdo teve toda a liberdade para transitar e ver a peça de diversos ângulos ou até mesmo ignorá-la. “E o que é o Teatro, se não a organização das ações do homem no espaço e no tempo?” (BOAL, 2009, p. 116).
esse país, mas pra toda a América Latina este acontecimento, apoiado pela URSS, fez com que os EUA ampliassem sua política de intervenção militar nos países ocidentais, pois a possibilidade de modificação estrutural dos países latinos fomentava a pretensão e a perspectiva dos trabalhadores, ao mesmo passo que se apresentava como uma grande ameaça aos grupos/famílias de certa concentração econômica. Desde então os EUA ampliaram sua política de intervenção, intensificando e revitalizando o que era conhecido como propaganda anticomunista. O Brasil nos anos que antecederam o golpe militar, de sete de setembro de 1961 a primeiro de abril de 1964, foi presidido por João Goulart, (1919 - 1976), um político que no máximo poderia ser chamado de progressista, que dentre algumas características de seu governo, apontava um plano de reformas sociais que tinham como meta o crescimento sócio-econômico brasileiro. Somada a esse plano de reformas, Jango, comoera mais conhecido, interveio no funcionamento de algumas empresas norte americanas que atuavam na área portuária de alguns estados brasileiros, por inadimplência e descumprimento de acordos feitos com o governo de seu país. O posicionamento hostil de Jango em relação à falta de compromisso e honestidade destas empresas norte americanas e sua abertura a determinadas camadas dos movimentos sociais fizeram os EUA dimensionar que ele não seria um político interessante para a manutenção imperialista que chefiava e logo passou a investir de todas as formas para a derrubada desse presidente brasileiro. Vale à pena ressaltar a existência do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais - IPES - 1961, como recurso comunicativo de propaganda anticomunista e anti-Jango, e que através dos meios de comunicação, diariamente este instituto apresentava fortes acusações ao Governo Federal, relacionando-o como representação de organizações comunistas. Outro fator determinante para o acontecimento do golpe de 64 e a ausência de um contra golpe popular foi à posição confusa de personalidades da academia, da cultura e da política brasileira, que apoiaram o golpe com justificativas que perpassavam a necessidade de moralização do país. A postura da Igreja Católica, em promover a “Marcha com Deus pela Família” também pode ser analisada como decisiva para a defiagração do golpe. ^ De autoria de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, gravada originalmente pelo grupo vocal MPB4, no álbum Cicatrizes de 1972.
O bairro do Benfica sofre com o inchaço relativo ao de toda a região metropolitana da cidade de Fortaleza nos diais atuais, onde os espaços são cada vez mais reduzidos e consequentemente mais disputados. Faço tais considerações a respeito da situação do bairro em questão devido ã escolha do espaço a ser apresentada a peça, ao lado de um centro universitário, em uma rua que não costuma ser palco deste tipo de manifestação cultural, em que durante toda a apresentação ocorria a intromissão involuntária de transeuntes, à procura de entendimento do que aquilo ali se tratava; muitos até tentando ou de fato cruzando o espaço cênico, o que elevava o nível de concentração e domínio por parte dos atores. Um dado curioso é que nesta mesma sexta-feira, através da imprensa, tomavase conhecimento do assassinato do Coronel reformado do exército brasileiro, Paulo Malhães, que foi encontrado em sua residência supostamente vítima de crime de latrocínio, porém com a forte suspeita que este militar aposentado tenha sido eliminado por conta do grau de envolvimento que tinha com crimes de terrorismo de Estado durante a última ditadura"^. O conteúdo expresso na narrativa de Os Cactos remete a uma experiência de imposições políticas e de perseguição a quem enfrentasse as determinações referentes aos investimentos repressivos estabelecidos pelo governo ditatorial do Brasil de 1964 a 1985. É salutar a compreensão de que um processo de ditadura civil e militar, como o que ocorreu no Brasil entre os anos supramencionados implica em várias restrições às quais toda a população é submetida. A obra de Emmanuel Nogueira em estudo conta as dores de uma família separada em virtude das perseguições políticas instauradas no período em foco, transitando no universo das personagens que não se encontram fisicamente no decorrer das cenas, mas que estão ligadas por laços afetivos, atordoadas pela conjuntura política que assombrava qualquer lampejo de liberdade e sensatez. Toda a carga de signos, símbolos e sentidos lançada pelo espetáculo me remetia, além da evidente proposta de uma obra cênica vinculada a um teatro ritualístico, às
Paulo Malhães em um de seus depoimentos à Comissão da Verdade, instância jurídica responsável por apurar crimes do período da última ditadura, tinha abertamente assumida a existência de prisões arbitrárias, torturas e morte de militantes políticos participantes do movimento de resistência à ditadura instaurada em 1964, relatando inclusive participação direta na prisão e assassinato do Deputado Rubens Paiva.
experiências do que passou a ser conhecido como “teatro popular”, “teatro proletário” e que chamaremos ao longo deste trabalho de teatro político, não somente a título de organização ou preferência semântica e sim porque faz parte desta iniciativa averiguar
0 conceito de teatro político, entendendo que a apresentação da peça Os Cactos na ocasião referida é uma considerável iniciativa em que podemos nos debruçar sobre a perspectiva de compreensão da relação entre política e arte. É imprescindível destacar que a peça Os Cactos já vem em processo de montagem desde o ano de 2007 e que também por isso a realização desta obra seja tão dotada de maturidade e amplitude. Porém, 0 que de fato faz com que a peça pudesse ser admitida como uma manifestação de teatro político? Como se fundamenta a conceituação de teatro político? A prática teatral não seria em si uma prática política?
II. Posições e oposições
Por muito tempo prevaleceu em plano ocidental, sob clara influência de Aristóteles (384 a.C- 322 a.C), a teoria de que a atividade artística era fundamentalmente distinta e por isso, distante das atividades políticas. Analisando com atenção, podemos perceber que esta hipótese não se sustenta, não só pelas características que concebem o teatro como uma prática essencialmente política, mas pelos laços estreitos entre arte e política que apontam que toda atividade humana não isolada tem seu potencial político, e não será a arte exemplo de exceção deste quadro, assim como pela preocupação de Aristóteles^ em estabelecer distinções gerais entre política e arte. Entretanto, a partir de iniciativas teatrais na Europa, em especial na Alemanha, no começo do século X X foi concebido o conceito de teatro político que seria as manifestações cênicas vinculadas às organizações de trabalhadores em oposição ao Capitalismo, em que o teatro deixaria de ser uma linguagem meramente contemplativa e de entretenimento, passando a ser um recurso de conscientização e de propaganda política, contrapondo-se às tradições do drama burguês, atrelado a objetivos que o próprio Aristóteles atribuía à tragédia. “Se,
^ Sempre considerando que pouco nos chegou das obras de pensadores antigos como é o caso de Aristóteles.
portanto, a tragédia é superior por todos esses méritos, e ainda por melhor atingir o objetivo próprio da arte - pois produz não qualquer prazer, mas o indicado -, é evidente que, alcançando melhor sua finalidade, é superior a epopéia.” (ARISTÓTELES, 2000, p. 75). O estabelecimento da tragédia como obra superior é, no mínimo, objeto gerador de suspeitas e que nos instiga a seguir adiante com nossas buscas. A figura de Piscator (1893 - 1966) foi de suma importância para o desenvolvimento do dito teatro político europeu. Para ele.
O teatro não devia mais agir apenas sentimentalmente ao espectador, não devia mais especular apenas sobre a sua disposição emocional; pelo contrário, em plena consciência, voltava-se para a razão do espectador. Não devia tão-somente comunicar elevação, entusiasmo, arrebatamento, mas também esclarecimento, saber, reconhecimento. (PISCATOR, 1963, pág. 53).
Muitas vezes interpretado como teatrólogo que subjugava a arte em prol de um teatro funcional, Piscator, além de influenciar diretamente muitos trabalhos, instiga até hoje discussões a respeito da relação entre arte e política, pois dedicou-se a inovar espaços, adereços teatrais e demais recursos e elementos cênicos na tentativa de modificar a linguagem teatral, provando, inclusive para si, que em arte nenhum tipo de avanço ou propósito põe sua existência em segundo plano. O próprio Piscator foi responsável por esta impressão que expôs ao mundo parte de suas limitações de entendimento, com afirmações tais como: “A arte não passa de um meio para alcançar um fim. Um meio político. Propagandístico. Pedagógico.” (PISCATOR, 1963, p. 39). A crítica a uma arte que se voltava contra as necessidades da vida em sociedade, sendo indiferente às relações humanas, está explícita no legado de Piscator, que não foi
0 único a notar esta perversão ou inversão da realização artística. O pensador Ernst Ficsher (1899 - 1972), em seu livro a Necessidade da Arte
(1987), apropriando-se de contribuições teóricas de Karl Marx, elabora uma análise da relação da arte com a sociedade capitalista e apresenta uma série de questionamentos que considero indispensáveis para o andamento deste trabalho de pesquisa, consideramos que a partir do entendimento da relação entre arte e capitalismo é possível obter clareza nos impasses que envolvem esta discussão:
O produtor de mercadorias, a tudo estendendo a crescente divisão do trabalho, a dilaceração do trabalho, o anonimato de certas forças econômicas, destruiu as relações humanas diretas e levou o homem a uma crescente alienação da realidade social e de si mesmo. Em tal mundo, a arte também se tornou uma mercadoria e o artista um produtor de mercadorias. (FICSHER,1987,pág.59).
A afirmação acima ajuda a entender parte das mudanças implementadas pela ascensão do sistema capitalista e como estas afetaram a arte. O artista, para garantia de sua sobrevivência, passou a ter a obrigação de adaptar o seu processo de criação a uma forma de produção de mercadorias e pela nova lógica socioeconômica elaborada pela sociedade capitalista, toda a ação que não seguisse esse raciocínio estaria fadada ao insucesso e, consequentemente, ã exclusão dos acessos aos bens gerados pela produção.
A mera orgia da novidade das dinâmicas visuais imediatas sem uma compreensão de suas origens e de sua direção de crescimento apenas nos impede de encontrar a saída de nossos caminhos cegos. Algumas tentativas de entender-se como o nosso mundo explosivo empacaram nessa saída fácil de excitação; o interesse central de muitos artistas foi absorvido pelo aspecto superficial mímico de nosso meio circundante. (KEPES, 1975, pág. 60).
Z. Barbu tenta situar as criações artísticas posteriores a arte medieval em relação ao aspecto funcional:
Tanto a arte primitiva quanto a medieval estão intimamente integradas com a totalidade da vida social, ou para colocar diferentemente e talvez mais acuradamente, elas são em grande medida (socialmente) funcionais do que é normalmente a arte moderna europeia. (1975, pág. 22 e 23).
No que se trata das expressões cênicas, sobretudo do teatro e dos seus elementos, chama-nos a atenção Denis Guénoun:
O teatro é portanto, uma atividade intrinsecamente politica. Não em razão do que aí é mostrado ou debatido - embora tudo esteja ligado - mas, de maneira mais originária, antes de qualquer conteúdo, pelo fato, pela natureza da reunião que 0 estabelece. O que é político, no princípio do teatro, não é 0 representado, mas a representação: sua existência, sua constituição “física”, por assim dizer, como assembleia, reunião pública, ajuntamento. (2003, pág. 15).
Não à toa, membros do Grupo Expressões Humanas, incluindo a diretora Herê Aquino, participam ativamente do movimento Todo Teatro éPolítico.^ Entre todas as leituras em que encontro estreiteza no trabalho que vem sendo elaborado, o ensaio intitulado Que é o Teatro Épico (1931), desenvolvido pelo historiador e filósofo alemão Walter Benjamin (1892 - 1940), se destaca pela
®Todo Teatro é Político, movimento da classe teatral do Estado do Ceará que se organiza em prol da valorização das artes cênicas, fiscalizando e sugerindo alternativas às instituições governamentais responsáveis pela cultura, fomentando discussões e lutando pela valorização das artes cênicas de um modo geral.
fluidez da análise e pela clareza nas definições que se colocam como essenciais para a compreensão da experiência do teatro político europeu do início do século passado. A partir da apresentação da peça 0 Homem é um Homem de Bertold Brecht (1898 1956), Benjamin realiza um valioso estudo a respeito do fenômeno do teatro épico e coloca que:
A dialética visada pelo teatro épico não se limita a uma seqüência cênica no tempo; ela já se manifesta nos elementos gestuais, que estão na base de todas as seqüências temporais e que só podem ser chamados de elementos no sentido figurado, porque são mais simples que essa seqüência. (1994, pág. 88).
Benjamin enxerga no teatro épico de Brecht uma realização equilibrada, e por isso avançada, de um teatro essencialmente político em todos os seus aspectos. Diferente de outras tentativas de efetivação de um teatro político, o teatro épico de Brecht surgia para provar que uma pretensão dotada de ousadia deve ser abrangente e profunda, arrojada e prenhe de consciência ética e estética.
III. Aproximação com a obra: contato inicial com Os Cactos
A obra teatral exige contato direto para qualquer tipo de análise, pois diferente de outras linguagens artísticas, os registros de uma apresentação de teatro não se eqüivalem a sua execução em si; é preciso participação no rito teatral, mesmo enquanto público. Tomei conhecimento de Os Cactos por meio de amigos ligados e entregues às práticas teatrais, a direção deste espetáculo é de responsabilidade de Herê Aquino, nome destacado dado meio artístico brasileira e que tive o privilégio de ser dirigido na peça Rainha Lear (2006), adaptação da tragédia de W illian Shakespeare (1564 1616) Rei Lear, em montagem de conclusão do Curso Superior em Artes Cênicas do
CEFETCE^ Porém meu contato direto com Os Cactos deu-se por meio da observação de fragmentos desta peça em um ato de repúdio à última ditadura civil militar brasileira, realizado na Praça do Ferreira, centro da cidade de Fortaleza, na tarde de 31 de março de 2014. A ocasião que permitiu meu primeiro contato com a peça merece relevo, pois enquanto várias pessoas, grupos e organizações políticas, expressavam indignação com todo 0 atraso e violência promovidos pelo golpe de 1964 e consequentemente pela ditadura que o seguiu em um dos lados daquele lugar, do outro lado desta mesma praça, outra aglomeração de pessoas, sob proteção do batalhão de choque da polícia militar e munida de um trio elétrico, comemorava o golpe e o pior: estas pessoas apontavam a conveniência de uma nova ditadura civil militar devido a insatisfações com o atual regime. O clima neste dia não era dos melhores, na medida em que alguns desfolhavam a dor que o processo de castração dos direitos gerou, em outra parte, o riso cínico ilustrava a promessa de moralização via força. Os fragmentos de Os Cactos que tive oportunidade de presenciar nesta tarde me trouxeram a certeza de que aquele trabalho cênico muito tinha a contribuir para com a abertura de novos horizontes; estava frente a uma obra teatral crítica e arrojada. Quando tive a oportunidade de assistir ã peça de modo integral, na apresentação destacada neste trabalho, muitas das inquietações surgidas em mim a partir da visualização do trecho que presenciei na Praça do Ferreira geraram conclusões, das quais considero de extrema relevância, como a constatação de uma proposta cênica com a clara intenção de acender reflexões a respeito da vida em sociedade, da liberdade de expressão, da precariedade estabelecida pela privação de direitos etc. A apresentação em foco, sob a minha perspectiva é um importante exemplo de uma realização artística disposta a provocar discussões, sem se perder na indução de uma arte meramente panfletária. Todo teatro é político, mas será possível um acontecimento cênico que leve em conta a intensificação das reflexões sociais sem cair na “cacimba” das tentativas de convencimento? Pode haver equilíbrio entre objetividade e subjetividade na arte? Ouso dizer que sim e Os Cactos prova isso.
’ Antigo Centro Federal de Educação, CiênciaseTecnologia do Ceará, atual Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Ceará - IFCE.
Analisando as origens do teatro épico alemão, Gerd Bornhein (1992) frisa a expressão
ação direta^ mencionada por Piscator e identifica nesta expressão o norte da construção do teatro a qual este perseguia, totalmente distinto das montagens vinculadas ã pretensão de entretenimento que dominava a Alemanha, assim como a Europa, desde
0 fim do século IX ao início do século XX, embora, como possamos comprovar com a passagem a seguir o próprio Piscator não mais tenha reproduzido este termo:
N u m ensaio escrito a propósito de um espetáculo de revista, “político proletário” e revolucionária, cujo título era Revue Rotes Rum m el (Revista barulho vermelho), aparece a expressão “ação direta” ; como ela aparece entre aspas, é possível que tenha sido extraída de algum documento oficial ou oficioso de algo como o Parfido Com unista, ao qual, evidentemente, Piscator era filiado; mas parece que a expressão não voltou a ser empregada. (B O R N H E IM , Gerd. Brecht, A estética do teatro. 1992 Pág. 122,).
Anegação da relação entre teatro e política sempre se mostrou pretensiosa, o que no entendimento de muitos já é por si só uma ação política. O exemplo da Grécia Antiga continua sendo um indispensável recurso para entender algumas questões deste campo. É sabido que, ao passo que o Estado interveio nas manifestações dionisíacas, o teatro passou a ter espaço oficial de realização e os cidadãos passaram a ter como obrigação comparecer às apresentações teatrais que constituíam os grandes festivais. Sem querer estabelecer nenhum tipo de determinismo, mas muitos dos textos que chegaram aos dias de hoje expressam considerável teor político em sua estrutura, como é o caso da comédia Lisístrata (411 a.C.), de autoria de Aristófanes (447 a.C. a 386 a. C.), que
* O termo ação direta passou a ganhar espaço no final do século X X , sobretudo nas manifestações ocorridas em países das Américas e da Europa, que se contrapunham à mundialização da economia. Tendo como meta a intervenção no cotidiano das sociedades capitalistas, defiagrando críticas às relações do mercado e de Estado, as ações diretas passaram a ser concebidas como modo de atuação social apartado das formas desgastadas que os movimentos sociais institucionalizados teimavam em reproduzir. Foge ao escopo deste trabalho promover qualquer tipo de debate comparativo entre o termo ação direta, empregado por Piscator e o que passou as ser intitulado de ação direta dá década de 1990 até os dias de hoje, apenas acredito que seja útil salientar o termo em discussão para que não haja qualquer tipo de má interpretação.
narra as conseqüências de uma assembléia feminina em que as mulheres das cidades de Atenas e Esparta decidem iniciar conjuntamente uma greve de sexo até que seus respectivos esposos acabem com a guerra entre as duas cidades. Aristófanes expõe uma crítica à Guerra do Poleponeso, em que as duas cidades citadas, dando continuidade aos conflitos, ficariam cada vez mais débeis, tornando ambas vulneráveis a uma inevitável invasão persa. Independente da condição que ocupava em Atenas, temos que relevar
0 apelo crítico a qual essa sua comédia envereda, sugerindo a privação dos prazeres em prol da harmonia entre as partes em conflito. Aristófanes permite-nos a revelação de uma problemática que não se restringe ã relação entre arte e política; levando em consideração os ideários sociais e filosóficos de Aristófanes, claramente reacionários, temos um exemplo que contraria a impressão de que o ato político é em si algo salutar ã humanidade em sua essência. Até hoje os objetivos que podemos relacionar com a elaboração de Lisístrata fazem menção ã carência do fim da guerra, mas não queria Aristófanes moralizar o sexo? O estabelecimento de níveis de importância entre os gêneros de representação poética (M UNIZ, 2013, pág. 14) marca o empreendimento da negação da relação entre política e arte ao passo que assume a incoerência de uma nítida contradição. Durante o período da última ditadura, os meios de comunicação e expressão passaram a ser sumariamente controlados, a censura estabelecida pelo governo golpista tinha o claro objetivo de restringir qualquer tipo de reflexão a respeito do regime que controlava o país; além disso, a ditadura cooperava inclusive financeira e logisticamente com ações de grupos que se dispusessem a contribuir para com o extermínio de organizações populares que resistiam as investidas dos golpistas como podiam. O caso da invasão do Teatro Ruth Escobar em São Paulo por parte dos membros do CCC® paulista foi um dos casos mais emblemáticos de ataque ao meio teatral, às artes e a liberdade em geral, em que os cinco membros do elenco da peça Roda Viva (1968), sob direção de José Celso Matninez Corrêa, foram covarde e brutalmente agredidos por cerca de 100 participantes do CCC, que também destruiu a cenografia da montagem.
®Comando Caça Comunista. Grupo paramilitar de extrema direita da cidade de São Paulo, como a própria sigla expressa, seguia orientação anticomunista.
assim como figurinos e adereços. Pouco tempo depois, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul a peça sofreu novo atentado durante apresentação.
Roda Viva tornou-se um marco da resistência ao regime totalitário implantado pela ditadura, mas um fato curioso chama a atenção: chegou ao conhecimento do autor da peça, o poeta e compositor Chico Buarque de Hollanda que a invasão e as agressões ao elenco de Roda Viva até certo ponto se tratavam de um engano, pois as investidas do CCC eram inicialmente direcionadas ao elenco de outra peça intitulada Primeira
Feira Paulista de Opinião (1968), sob coordenação de Augusto Boal. Porém, devido a um possível erro de horário, a peça que sofreu o atentado foi justamente a Roda Viva. Esta versão ganha sustentação quando o próprio Chico Buarque de Hollanda, em sessão de interrogatório prestada a um oficial de alta patente, representando o Estado Brasileiro é acusado de pretensão subversiva na figura de autor de texto com objetivos difamatórios ao regime vigente. Entretanto a cena utilizada por esse oficial como exemplo de incitação ao desrespeito pelo governo ditatorial não era da peça Roda Viva e sim da Primeira Feira Paulista de Opinião. O que já era ruim passou a ser pior a partir da instituição do AI-5“ no final de 1968, mas o teatro brasileiro seguiu adiante, mesmo com toda a atmosfera inóspita inerente a um processo de ditadura civil e militar. Não foram poucos os trabalhos comprometidos com a continuidade das práticas teatrais no Brasil; é certo que muitas pessoas ligadas ao teatro, (entre atores, diretores, dramaturgos, etc.) foram exilados, assim como artistas de outras linguagens e opositores do regime militar em geral. As perseguições se acirravam e fazer arte no Brasil nesse período era cada vez mais difícil, porém a luta do meio teatral não se restringia a resistência ã ditadura que assolava a sociedade brasileira, a luta em defesa do teatro sempre ocorreu a contragosto do Estado, que quando não jogava contra a existência das artes cênicas, negligenciando necessidades, sendo indiferente ã precarização da cultura e da educação, incentivava
0 empobrecimento do teatro por meio de criação de instâncias de controle, nomeando pessoas para dirigi-las com o propósito de manter tudo sob as rédeas do governo
Ato Institucional número 05, expedito pelo então ditador Arthur Costa e Silva. Representou uma implacável perseguição a liberdade de expressão e comunicação no Brasil, enorme enrijecimento da censura e aumento das perseguições políticas; entre outros desmandos, oficializou a tortura como recurso de repressão às oposições.
golpista. Além das limitações impostas pela ditadura, o teatro brasileiro vivia em constante afirmação - como é até hoje - na perspectiva de ser compreendido e a partir daí valorizado. É neste incessante clima de afirmação sócio-artistica que surge na cidade de Fortaleza o GRITA^^ (1973 -1986). Sendo um grupo de teatro amador o GRITA se projeta como uma tentativa de construção de teatro popular. Logo tal projeto ganha dimensões admiráveis, na certeza de que o teatro, sob a situação que passava o país precisava ser atuante em espaços outros, como assembléias de trabalhadores, reuniões de comunidades da periferia da cidade e até na luta em comunidades ainda em processo de ocupação, como foi o caso da Favela da Zé Bastos.
Desde o inicio de sua atuação, o Grupo demonstrava um a constante preocupação com a questão do hom em diante do m undo, o hom em e seu papel social, daí a conseqüente avidez pela função social do indivíduo e a sua inserção da sociedade brasileira. Essa questão foi abordada de forma existencialista em Calígula e aprofundada em estudos subseqüentes, na ocasião em que se deteve nos ensinamentos do criador do teatro épico e do teatro didático, Bertold Brecth, onde o hom em era o centro das suas teorias artísticas. (SILVA, 1992, pág. 73).
Vale salientar que assim como outros grupos que destacavam a necessidade de um teatro em diálogo direto com os conflitos sociais, o GRITA realizou aprofundamento, passando a pesquisar estéticas ligadas ao teatro popular, estudando obras e técnicas como as de Bertold Brecht, rompendo com a alegação de que toda arte com empenho social, que prima pela reflexão da vida em sociedade, se esgotava no determinismo esquerdista, na agitação popular seca e alienada de princípios estéticos. Mesmo sendo muito criticado, inclusive por afirmações que davam a entender que os propósitos políticos suplantam a arte, o próprio Piscator foi responsável por uma série de implementações e inovações que modificaram o teatro. Talvez não o tenha sido clara a
" Grupo Independente de Teatro Amador. Teve como membros José Carlos Matos e Oswald Barroso, além de Eurotildes Honório dentre outros nomes.
necessidade de assumir que em arte todo objetivo requer a elaboração de técnicas que os permita alcançar suas metas. Brecht demonstrando nitidamente esse entendimento elaborou o conceito e as técnicas do que ficou conhecido como teatro épico - expressão usada por Piscator anteriormente a Brecht. Sobre tal teatro ele afirma:
O teatro épico interessa-se pelo com portamento dos homens uns para com os outros, sobre tudo quando é u m com portamento (típico) de significação histórico-social. D á relevo a todas as cenas em que os homens se com portam de tal form a que as leis sociais a que estão sujeitos surjam em toda a sua evidência. E o fazê-lo, cabe-lhe descobrir definições praxísficas dos acontecimentos em processo, isto ê, definições que, ao serem utilizadas, possibilitem um a intervenção nesses mesmos acontecimentos (BRECHT, 2005, pág. 228).
Assim como o GRITA, muitos grupos Brasil adentro efetivaram a transmissão de ideias e posições por meio das artes cênicas, apresentando para o povo uma possibilidade de uma arte popular, sem os paradigmas do populismo, sendo acima de tudo uma ação educacional. No entanto é preciso honestidade e admitir que as discussões em torno da relação entre política e arte rendem muitos debates, devido a impasses como, por exemplo os que se referem ã questão das vanguardas. Sobre estas Ferreira Gullart nos alerta:
Aidenfificação equivocada entre vanguarda e a criação artísfica conduz m uitas vezes a se perder de vista o fato de que, por exemplo, os quadros cubistas de Braque e Picasso são, m uitas vezes, obras de alto valor não por serem cubistas mas por sua qualidade estêfica intrínseca. (2006, p á g .11)
No ano de 1985, a ditadura civil militar implantada no Brasil em abril de 1964 oficialmente tem seus dias finais anunciados, muito por conta da imensa insatisfação popular observada em manifestações em prol das eleições diretas e ã implementação
dos direitos civis. Mas para alguns, também por conta de demandas do próprio sistema capitalista, que assim como em toda a sua trajetória histórica acabara de passar por uma intensa crise no final dos anos 1970 e a manutenção de uma ditadura atrapalharia os anseios emergenciais do mercado. E então, a necessidade da construção de um teatro crítico, de cunho popular estaria esgotada por conta da democracia que se firmava? Acredito que não e dois fatores são responsáveis por esta conclusão. O primeiro corresponde ã discussão em torno das necessidades de uma arte popular, comprometida com debates de suma relevância para a vida em sociedade. Teatro de entretenimento ou meramente contemplativo não são vazios ou supérfluos em si, predestinados ao nada. Toda criação artística tem sua parcela de contribuição para a humanidade e até mesmo na continuidade da arte. Entretanto, até os dias de hoje, e este não é um desprivilegio somente do teatro, a arte contemplativa ou de entretenimento, de certo modo, acaba reforçando, juntamente com os meios de comunicação de massa a alienação do ser humano sobre o meio que faz parte e sobre a sua própria existência. Segundo porque o que se pode constatar no Brasil após o fim do governo golpista foi um modo de sobrevivência dos trabalhadores em geral extremamente comprometido pelos altos índices de inflação, desemprego, entre outras limitações. Muito se fala de conquistas e estas jamais devem ser renegadas, até por uma questão de justiça histórica, porém é percebível como o Brasil se mostra como um país frágil, cheio de carências estruturais e vícios administrativos, que tornam a sobrevivência nestas paragens um tanto quanto desalentador para boa parte de seus habitantes. Isso se comprova a partir de lacunas, como, por exemplo, nas áreas da saúde e educação, assim como na questão da segurança. Um dos piores legados deixados pela última ditadura civil militar está justamente na violência que aterroriza a população, se croniflca por razão da falta de resoluções e torna o futuro (sobretudo de crianças e adolescentes) incerto, pois a qualquer momento alguém pode ser vítima de atentados contra a vida que se deve pelo desenfreado consumismo ou mesmo pelo terrorismo efetuado pelo Estado através de suas instituições repressivas. Para além dos insucessos da política institucional brasileira, ainda submissa aos ditames do capital, o planeta demonstra cansaço e essa exaustão aliada ao desgaste das relações humanas que propiciam as
coisas como elas estão pode criar dimensões irreversíveis. A experiência na observação de Os Cactos aponta para um empolgante e consciente horizonte no qual a praxe teatral se coloca como caminho revolucionário, como escreve a atriz e pesquisadora:
Percebemos no Grupo Expressões H um anas um a ativa participação política dentro do contexto do teatro cearense. Tem algo para discutir, reclamar, refletir, o Expressões H um anas ta lá, percebendo e analisando o contexto social, político e estético do qual estamos inseridos. (S A L D A N H A , Kelly Enne Merdra, 2014, pág. 04)
Talvez o que o universo das artes, não só no que concerne Brasil, nestes momentos de indecisões e afetações distorcidas, precise seja justamente de energias empreendidas aliadas a elaborações estéticas contundentes como a que Grupo Expressões Humanas efetiva em Os Cactos, dispondo uma experiência cênica crítica, indo além da esfera discursiva, profundamente compromissada com a vida e inteiramente humana. Rememorar tempos tão difíceis como os vividos entre 1964 e 1985 no Brasil requer coragem e sensibilidade. O respeito ao período em que a narrativa é desenvolvida, reconhecendo que o que foi perseguido pela ditadura não fora apenas às ideologias que se contrapunham a sua permanência enquanto regime sócio político e sim todo esboço de luta por liberdade, é exposto ao público por meio de ações dotadas de imenso rigor estético e ético. Os Cactos não retrata apenas a dor, retrata o desespero de uma geração, que mesmo com diversos fatores desfavoráveis ousou se organizar e enfrentar o que se colocava como imbatível e intocável e não podemos perder de vista a relevância desse período para a compreensão do nosso presente. A abordagem exercida pela montagem do Grupo Expressões Humanas em Os Cactos de modo tão consciente lembra que é preciso coragem para celebrar a vida.
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ROVII^IA
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REFORMA OU REVOLUÇÃO: PARA UMA CRÍTICA DA VIOLÊNCIA COMO CRÍTICA DA SOCIALDEMOCRACIA ADRIANO COSTA CARDOSO -M estrando em Filosofia pelo Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Resum o: Em 1919, fracassa a Revolução Alemã, e com isso. Rosa Luxemburgo (1871-1919) e vários de seus companheiros são assassinados. Walter Benjamin (1892-1940), nesse momento, escreve uma série de textos sobre violência, dos quais chegou até nós apenas o forte escrito intitulado “Para uma crítica da violência” (1921). Nesse texto, Benjamin busca compreender a violência, analisando-a a partir de sua condição de “meio”, mas sem referi-la a um “fim ”. Assim, percebe-a, na história humana, em particular na Europa daquele momento, como intrinsecamente ligada ao Direito, seja como sua instauradora ou como sua mantenedora. Investiga, então, a possibilidade de haver uma “violência pura”, isto é, uma violência que encerre o ciclo mítico da própria violência, permitindo o exercício dos “meios puros” (aqueles que se opõem ã violência). A essa violência pura ele chama violência divina, contraposta ã violência mítica do direito. Ahipótese do presente trabalho é a de que o confronto entre violência mítica e violência divina representa o confronto entre reforma e revolução, presente no título de uma famosa obra de Rosa Luxemburgo, em que ela enfrenta os teóricos da socialdemocracia, a mesma cujos representantes viriam a encomendar seu assassinato anos depois. P alavras-chave: R eform a; Revolução; V iolência; M ito.
O
D
final de 1918 ao início de 1919, a Alemanha viveu um processo
revolucionário do qual um dos principais atores foi a Liga Espartaquista, que contava, entre outros, com Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. O levante
dos espartaquistas foi sufocado pelo governo social-democrata recém-estabelecido, que encomendou a morte dos dois revolucionários. Nesse contexto, Benjamin escreve
três textos sobre temática política, dos quais apenas o denso Para uma crítica da
violência (1921)^ chegou até nós. A tese que aqui defendemos é a de que as formulações de Benjamin no referido texto constituem uma crítica ao reformismo próprio da socialdemocracia^ usando como mote o título de uma publicação de Rosa Luxemburgo contra o revisionismo da socialdemocracia. Reforma ou Revolução^ Aviolência é investigada aqui como dada necessariamente no interior de relações éticas, às quais Benjamin delimita às relações com o Direito, não tocando, nessa obra, nas suas relações com a Justiça. O objetivo do autor é refletir sobre o estatuto próprio da violência, que se encontra necessariamente na esfera dos meios, não dos fins. Dentre as teorias do Direito, uma, o Direito Natural, não é interessante aos objetivos do texto, uma vez que pensa a violência com relação aos fins. Benjamin parte, então, do Direito Positivo, que pensa a violência a partir de si mesma enquanto meio, embora partilhe com 0 Direito Natural do mesmo dogma, a saber, que fins justos se relacionam com o uso adequado da violência. Esse dogma aparece invertido em cada uma das orientações, na medida em que, conforme o Direito Natural, fins justos justificam a violência e, segundo o Direito Positivo, a violência justa garante fins justos, mas o autor deseja
' O texto foi escrito em torno da passagem de 1920 para 1921 e deveria ser publicado na revista Die Weifien Blatter, mas foi considerado muito longo e difícil pelo editor, Emil Lederer, que aproveitou-o no Arquivo de Ciências Sociais, de que era diretor. Os outros textos, que se perderam, se chamavam “Vida e Violência” e “Política”, este divido em duas partes, cuja primeira. Der wahre Politiker [O verdadeiro político], segundo SCHOLEM (1989), era um longo ensaio sobre o romance utópico Lesabéndio, de Paul Scheerbart, a quem, ele afirma, Benjamin teria se convertido em meados de 1917 (a segunda parte de “Política” seria “A verdadeira política”). ^Aescrita do presente artigo se dá em meio a minha pesquisa sobre a crítica de Benjamin ao neokantismo da Escola de Marburg como Filosofia do Partido Social-Democrata. Se, nas teses de Sobre o conceito de história (1940) e principalmente nas anotações a essas teses, vemos a crítica aos dois em conjunto (à social-democracia e ao neokantismo), nas décadas de 1910 e 1920, encontramos essa crítica dividida: 0 neokantismo é criticado em obras como Sobre o programa de uma filosofia por vir (1917) ou no Prefácio ao livro sobre o Drama barroco (1928), enquanto que o texto Para uma crítica da violência é lugar privilegiado pra acompanhar já uma primeira invectiva de Benjamin no campo político, contra as concepções dos social-democratas. ^ LUXEM BUGO (1986).
fugir a esse ciclo, mudando, portanto, de perspectiva. Ele parte, então, da noção do Direito Positivo, mas indo além dessa sua compreensão, visando “estabelecer critérios mutuamente independentes tanto para fins justos como para meios justificados”^ De acordo com o Direito Positivo,a violência não é um dado natural, mas fruto do devir histórico, e sua justificação independe da justiça de seus fins, reportando-se antes ao seu reconhecimento histórico, como violência sancionada ou não-sancionada. Tal será o critério adotado por Benjamin para a diferenciação entre fins naturais, que prescindem desse reconhecimento, e fins de direito. Nesse ponto, o autor voltase ã análise das relações de Direito na Europa do seu tempo. Ali ele identifica um procedimento, pelo qual todos os fins naturais que dependam da violência para serem atingidos são substituídos por fins de direito, “que apenas o poder jurídico pode desse modo realizar”^. Aqui tem início a exposição da esfera onde fica claro o sentido da diferenciação proposta pelo Direito Positivo, que, segundo Benjamin, “apenas a reflexão histórico-filosófica sobre o direito”'^pode tornar claro. O primeiro elemento a ter em mente é esse monopólio da violência por parte do Direito, o qual teme que ela seja utilizada pelos indivíduos. O autor vai além e afirma que esse temor não tem em vista o risco de que se busque fins contrários ao Direito, mas simplesmente a ideia da impossibilidade de aceitar uma violência externa a si. Ele escreve:
...talvez se devesse levar em conta a possibilidade surpreendente de que 0 interesse do direito em m onopolizar a violência com relação aos indivíduos não se explicaria pela intenção de garantir os fins de direito, mas, isso sim, pela intenção de garantir o próprio direito; de que a violência, quando não se encontra nas mãos do direito estabelecido, qualquer que seja este, o ameaça perigosamente, não em razão dos fins que ela quer alcançar, mas por sua mera existência fora do direito^
''BENJAMIN (2011),p. 124. ' Ibidem, p. 126. «Ibidem, p. 125. ’ Ibidem, p. 127.
Apenas a um sujeito externo ao ordenamento jurídico se concede o direito à violência: este é o proletariado organizado, e esta violência se apresenta no direito de greve. Benjamin dá dois indícios do porquê de se conceder um tal direito: em primeiro lugar, “na perspectiva do Estado, ou do direito, no direito à greve não é concedido aos trabalhadores o direito à violência, mas tão só o direito de se subtrair a uma violência exercida de maneira indireta pelo patrão” *; em segundo lugar, como ele escreve mais à frente, a greve foi uma concessão que visava uma diminuição da revolta proletária, uma vez que antes a classe trabalhadora recorria mesmo à sabotagem da produção^ Esse direito ã greve pode, então, ser exercido como um mero “virar as costas” pacífico, mas Benjamin alerta que a violência se exerce necessariamente no momento da chantagem do trabalhador com relação ao patrão“ . O que chama mais a atenção, entretanto, é que, a depender das proporções tomadas pelo movimento grevista, se ele leva a uma greve geral revolucionária, esse direito concedido de exercer a violência pode chegar mesmo a destituir a ordem de Direito estabelecida. Isto é, o Direito concede o direito à violência, ademais do Estado, apenas àquele sujeito que justamente tem interesse e poder de dar um fim a esse mesmo Direito. Segundo o autor, isto não deve ser uma total surpresa, na medida em que o fenômeno originário“ da violência seria a guerra, e nesta já se percebe um movimento
« Ibidem, p. 128. ®Cf.Ibidem,p. 140. Essa noção da chantagem como violência fica clara tendo em vista o desenvolvimento posterior da natureza da violência e de sua relação com o Direito, mas neste momento da discussão, e tomada como premissa, ela aparece como problemática. BARBOSA (2013) discute basicamente apenas o sentido da reine Gewalt (violência pura), não chegando a problematizar a chantagem entendida como violência. " O fenômeno originário (Urphãnomen) ê uma categoria extremamente utilizada por Benjamin nos escritos dessa época até o seu livro sobre o Trauerspiel e se relaciona também com categorias de textos posteriores, como as imagens oníricas e dialéticas. Ele o toma emprestado a Goethe, a partir da oposição que faz entre este autor e os autores do Primeiro Romantismo alemão, no último capítulo de sua tese de doutoramento, “O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão”. O Urphãnomen seria o equivalente da ideia platônica, compreendida como um arquétipo que se encontra nos próprios fenômenos de forma refratada e que, embora seja apenas inteligível, pode ser captado diretamente naquilo que é sensível. Além dessa referência a Platão, o Urphãnomen pode ser assimilado às mônadas de Leibniz, como pode ser visto no Prefácio à Origem do Drama Barroco Alemão, na medida em que elas “não tem janelas”. Com efeito, há uma dupla descontinuidade, em se tratando de fenômenos originários ou ideias: por um lado, eles não se apresentam tal qual realmente são nos fenômenos, mas de maneira refratada; por outro, eles são descontínuos entre si, não possibilitando a formação de nenhum sistema fechado e homogêneo. Essa concepção expressa uma oposição forte á Filosofia do neokantismo, tanto pela crítica ao sistema (muito defendido pelo fundador da Escola de Marburg, Hermann Cohen) como pela diferenciação, apresentada no Prefácio, entre ideia e conceito, sendo aquela guiada pelos extremos e nada tendo a ver com médias estatísticas (Cohen e Natorp, dois neokantistas de Marburg, interpretaram a ideia platônica como uma
análogo. Na guerra, tal como na greve, torna-se explícito, em primeiro lugar, que, para os sujeitos de direito, aqueles que sancionam ou não a violência, os fins que sua violência persegue permanecem sendo fins naturais e podem, portanto, entrar em conflito com seus próprios fins de direito ou naturais. Por outro lado, e mais importante, a violência se mostra, na guerra como na greve, como instauradora do Direito, o que se evidencia nas cerimônias de paz que se sucedem às guerras. De fato, a “paz” é aí estabelecida independente de haver ou não quaisquer condições de uma retomada do conflito pela parte vencida, pois o que ela simboliza é muito mais o reconhecimento das novas relações como um novo Direito. Pode-se interpretar essa paz como a ausência de guerra, no sentido de que não mais há dois sujeitos com direito à violência em conflito. Isto demonstra que, na guerra, é conferido, tal como vimos no caso da greve, a um outro sujeito 0 direito à violência, que então se apresenta como violência instauradora de Direito, na medida mesma em que solapa o Direito anterior. Benjamin escreve:
Se é perm itido deduzir que a violência da guerra, enquanto forma originária e arquetípica, é modelo para toda violência que persegue fins naturais, então ê inerente a toda violência desse tipo u m caráter de instauração do direito. [...] [Esse conhecimento] explica a tendência do direito moderno, acim a mencionada, de retirar, pelo menos do indivíduo enquanto sujeito de direito, qualquer violência, mesmo aquela que se dirige a fins naturais^^.
A violência possui, contudo, uma outra função, que se apresenta no militarismo juntamente com a função instauradora do Direito: seu caráter mantenedor desse mesmo Direito. Assim, se a violência serve, em sua função instauradora, ã aplicação de fins naturais, ela serve também, em sua função mantenedora, ã aplicação de fins de direito. Aqui, a ordem do Direito se apresenta como uma esfera em que a violência se encontra em toda parte, na forma da ameaça. Benjamin identifica tal ordem com a
hipótese, nos moldes da ciência moderna). A esse respeito, pode-se ver alguns elementos no artigo de RESENDE (2007), mas pretendo apresentar a discussão mais detalhadamente em minha dissertação. '^BENJAMIN (2011),p. 131.
ordem do destino^. A indeterminação própria à ameaça do Direito se apresenta com fulgor no domínio das penas, notadamente na pena de morte, pois esta, em condições primitivas de Direito, é aplicada contra crimes com relação aos quais ela se mostra bastante desproporcional. O autor afirma que isso se dá em virtude de a pena não ter
0 sentido de uma punição simplesmente, mas o de uma afirmação do próprio Direito, sua instauração^^ Dá-se, portanto, na pena de morte, a mistura entre as funções instauradora e mantenedora do Direito da violência, o que ocorre igualmente na figura da polícia - não discutiremos, no entanto, as questões relativas a esta^^. Desse modo, a violência é pensada por Benjamin como necessariamente atrelada ã esfera do Direito, seja como sua instauradora ou como sua mantenedora. O autor indaga, então, se não haveria meios não-violentos de resolução de conflitos entre os indivíduos. Esses chamados “meios puros” não podem ser encontrados nem na forma do contrato, que pressupõe a violência como medida seguinte ao descumprimento do mesmo por uma das partes, nem na forma do parlamentarismo, o qual possui uma origem violenta, mas se esqueceu da mesma, tornando-se mesmo vazio de sentido^. Aqui, Benjamin faz a crítica do parlamentarismo ao mesmo tempo que desenvolve o aspecto do Direito como instância marcada pelo ciclo sem fim da violência:
SCHOLEM (1989) apresenta um momento no passado, cerca de julho de 1916 em que Benjamin já dava indícios dessa associação. Pode-se ler: “Durante uma discussão sobre se Hegel teria querido deduzir o mundo, passamos a falar de matemática, filosofia e mito. Benjamin aceitava o mito apenas como ‘o mundo’. Disse que ele próprio ainda não sabia qual era o propósito da filosofia, já que não era preciso descobrir o ‘sentido do mundo’: ele já era dado no mito. O mito era tudo; todo o resto, inclusive a matemática e a filosofia, era apenas um escurecimento, uma aparência que nasceu dentro dele mesmo. [...] Neste contexto, já naquele tempo Benjamin falou da diferença entre lei e justiça, qualificando a lei como uma ordem que só podia ser fundamentada no mundo do mito. Quatro anos mais tarde, discorreu com maiores detalhes sobre este pensamento, em seu ensaio Zur Kritik der Gewalt [‘Critica da Violência’]”, (pp. 40-41) Um exemplo disso se pode ver na peça Measure forMeasure (Medida por Medida), de Shakespeare, onde a questão que move a trama é justamente a desproporcionalidade entre a infração da Lei e sua respectiva punição, em meio a uma situação onde aquela precisa se afirmar. Sobre a polícia, ler as pp. 135-136 (BENJAMIN, 2011). Marx e Lenin já haviam criticado fortemente o parlamentarismo. Pode-se ler no terceiro tópico do terceiro capítulo de 0 Estado e a Revolução: “Reparem em qualquer país de parlamentarismo, desde a América á Suíça, desde a França á Noruega, etc.: a verdadeira tarefa ‘governamental’ é feita por detrás dos bastidores, e são os ministérios, as secretárias, os estados-maiores que a fazem. Nos parlamentos, só se faz tagarelar, com o único intuito de enganar a ‘plebe’”. As refiexões de Benjamin, entretanto, baseiam-se mais no pensamento de Erich Unger.
Por desejável e satisfatório que possa ser, comparativamente, um parlamento de alto nivel, a discussão dos meios, por principio não-violentos, de entendimento politico não poderá incluir o parlamentarismo. Pois o que este consegue alcançar em questões vitais só podem ser aquelas ordenações do direito que têm a marca da violência tanto na origem como no desfecho^^.
Os meios puros elencados por Benjamin são aqueles em que a violência não se apresenta nem explícita nem implicitamente. “Cortesia do coração, inclinação, amor ã paz, confiança^*, e o que mais poderia ser citado aqui, são seu pressuposto subjetivo”i^ Os meios puros se dão sempre de forma mediata, dizendo respeito a conflitos que envolvem coisas, e seu melhor exemplo é o diálogo, sobre o qual o Direito agiu apenas muito tardiamente: não havia originalmente em nenhuma legislação qualquer punição contra a mentira, e a punição contra o logro surgiu principalmente em virtude de possíveis reações violentas a esse que é um meio não-violento. A violência, afinal, tende a ser evitada na medida em que os indivíduos naturalmente temem desvantagens contra ambas as partes, independente do resultado do conflito^». Isto é mais dificilmente perceptível a nível de classes ou nações, o que torna o recurso ã violência mais recorrente, mas, ainda assim, no segundo caso, temos o exemplo da diplomacia^^
"B E N JA M IN (2011),p. 138. A guisa de sugestão ou curiosidade, ver a adaptação ao cinema de “O caso dos dez negrinhos”, de Agatha Christie, realizada por René Clair, sob o nome de “And Then There Were None” (1945), onde a confiança é o elemento não computado por aquele que exerce a violência, e que permite a saída do ciclo ameaçador em que as personagens se vêem enredadas. Ibidem, p. 139. Aqui, Benjamin parece desconsiderar que a violência pode ser uma motivação em si. O que leva a pensar isso ê também o fato de ele aqui se remeter bastante a Sorel, pertencente ao grupo dos anarco-sindicalistas, os quais forneceriam ao emergente fascismo fortes elementos teóricos e culturais, notadamente na atitude belicosa. (Isto pode ser acompanhado em uma sêrie de matérias publicadas no site Passa Palavra, a começar pela seguinte: http://passapalavra.info/2014/03/92734. Tais matérias surgiram a partir de uma discussão sobre a tradução da introdução de um livro de Zeev Sternhell publicada no mesmo site, em quatro partes, a partir do link: http://passapalavra.info/2014/03/92786.) Vale notar, igualmente, que anos depois, Benjamin publicaria seu Teorias dofascismo alemão, sobre a obra de Ernst Jünger, onde critica justamente essa atitude belicosa e a teoria (anti-teórica) que vem em sua defesa. Discutida brevemente na p. 145 (BENJAMIN, 2011). Embora Benjamin nada afirme nesse sentido, talvez possa-se considerar a diplomacia como análoga à atividade parlamentar, na medida em que ambas - aquela no âmbito das nações, esta, no das classes - servem-se de meios puros na resolução de confiitos em cuja base encontra-se sempre a marca da violência. Em entrevista recente, Viveiros de Castro cita o pensador alemão Günther Anders em uma imagem interessante que ajuda a visualizar o que Benjamin fala nesse ponto, a ideia do “supraliminar”, algo que ê tão grande que não conseguimos ver - embora
Benjamin fala, então, de um tipo de violência que seria igualmente um meio puro. Esta junção aparentemente contraditória se daria no interior de determinado tipo de greve, e aqui o autor lança mão da obra de Georges Sorel, sindicalista revolucionário francês do começo do século^^. Sorel divide a greve geral em dois tipos: greve geral política e greve geral proletária. A primeira seria aquela em que a atual ordem do Direito não é questionada, sendo, muito pelo contrário, fortalecida, ao passo que, na segunda, visa-se o aniquilamento do Direito. Aqui, embora não faça a distinção explicitamente, Benjamin já não mais compara a greve geral ã guerra como fenômeno originário da violência. Isto, porque, na medida em que a revolução aniquila o Direito, ela não é instauradora de nenhuma outra ordem e, portanto, aniquila com ele a própria violência^^ A muito custo se pode aqui compreender que a eliminação do direito realizada pela greve geral proletária faria surgir uma era onde os indivíduos usariam apenas meios não-violentos na resolução dos conflitos. O sentido da diferenciação entre o que Benjamin chama de “violência mítica” e “violência divina” é o da supressão do ciclo interminável da reposição da violência no atual ordenamento jurídico^^. O autor esclarece esse ponto na medida em que relaciona a violência do Direito ã violência mítica. A violência mítica, a exemplo da cólera, não é um meio para nenhum fim, é pura manifestação. A violência dos deuses, que Benjamin exemplifica com aquela exercida pela deus Leto sobre Níobe, não consiste em castigo contra determinada infração a um Direito pré-existente, mas muito mais na afirmação, na instauração de um Direito. Ela possui, portanto, similitude com a violência do Direito, sob o qual permanece sempre a
na entrevista se trate de uma outra discussão. A entrevista se encontra aqui: http://brasil.elpais.com/ brasil/2014/09/29/opinion/1412000283 365191.html. ^Wernota 20, supra. “ Essa distinção ganha forte significado pelo que se disse na nota 20, tendo em vista, portanto, a ideologia fascista que crescia por aqueles anos. Não posso dizer até que ponto Benjamin estava ciente a essa altura da emergência do ideário fascista, mas a diferenciação entre a guerra entre nações e a guerra de classes, com a clara valorização da segunda em detrimento da primeira, fornece elementos à crítica daquele ideário. Note-se que, embora as ideias expressas nesse texto de Benjamin sejam mais revolucionárias do que muitas das ideias de vários teóricos ditos marxistas de seu tempo, a perspectiva adotada por ele não parece jamais levarem conta os pressupostos da Crítica da Economia Política, falando sempre em termos de Direito, mesmo quando se refere às classes e á sua atuação política: elas são sujeitos de Direito, a quem é permitido excepcionalmente o exercício da violência. Isso irá mudar em meados dos anos 1920, quando o autor se rende ao materialismo histórico, embora á sua maneira, e preservando a riqueza do seu pensamento desenvolvido nessas primeiras décadas do seu trabalho.
ordem do destino, que ameaça cada indivíduo. Escreve Benjamin:
...esta conexão [entre a violência mítica e a violência do direito, estreitamente aparentadas, ou mesmo idênticas] promete lançar uma luz mais ampla sobre o destino, que subjaz em todos os casos à violência do direito, e levar, em traços largos, sua crítica a termo. Pois a violência na instauração do direito tem uma função dupla, no sentido de que a instauração do direito almeja como seu fim, usando a violência como meio, aquilo que ê instaurado como direito, mas no momento da instauração não abdica da violência; mais do que isso, a instauração constitui a violência em violência instauradora do direito - num sentido rigoroso, isto ê, de maneira imediata - porque estabelece não um fim livre e independente da violência [Gewalt\, mas um fim necessário e intimamente vinculado a ela, e o instaura enquanto direito sob o nome de poder [Macht\. A instauração do direito ê instauração de poder e, enquanto tal, um ato de manifestação imediata da violência. A justiça ê o princípio de toda instauração divina de fins, o poder [Macht\ ê o princípio de toda instauração mítica do direito^^
A violência mítica não foge jamais ao ciclo mítico de reposição da violência, isto é, à instauração e manutenção sempre novas de um Direito que é Poder^®. O quanto ela pode ser identificada não apenas ã ordem do Direito “sem contradições”, por assim dizer, mas igualmente ã greve geral política, como definida por Sorel, fica claro em uma citação que Benjamin reproduz do revolucionário francês:
^'BENJAMIN (2011),p. 148. “ Aqui, temos mais um elemento de permanência dos primeiros textos de Benjamin aos últimos. O ciclo mítico da violência se dá claramente na lógica moderna do progresso, que decorre sobre um tempo homogêneo, onde o novo é sempre a reposição do arcaico. Nesse sentido, pode-se estabelecer pelo menos desde esse texto de 1921 um fio que une a análise do Mito - e da Modernidade que o repõe, conforme exposto nos textos dos anos 30 - à crítica à noção de História que está na base tanto do Historicismo como da Socialdemocracia (Scholem diria também do socialismo real, em SCHOLEM, G. WBenjamin und sein Engel. In: Zur Aktualitát Walter Benjamins. Frankfurt: S. Unseld, 1972, p. 129, citado em LOWY, 2005), que podemos ler nas teses de 1940.
A base de suas concepções [dos partidários da greve geral política] é 0 fortalecimento do poder do Estado [Staatsgewalt\\ em suas organizações atuais, os politicos (a saber, os socialistas moderados) preparam desde já a instituição de um poder forte, centralizado e disciplinado, que não se deixará perturbar pela critica da oposição, saberá impor o silêncio e baixar seus decretos mentirosos^^.
Portanto, tanto o Direito como aqueles que se põem docilmente sob sua lógica, isto é, os reformistas da socialdemocracia, para os quais há “uma segurança muito maior, para um sucesso duradouro, no processo de avanço firme do que nas possibilidades oferecidas por um choque desastroso ou catastrófico” e cujo “mais importante problema tático” do partido seria “o de delinear os melhores métodos de ampliação dos direitos políticos e econômicos das classes trabalhadoras”^*, encontramse sob 0 âmbito da violência mítica, que deve ser rechaçada. A associação entre Direito e Mito, por meio da violência instauradora presente em ambos, confere “certeza quanto ao caráter pernicioso de sua função histórica, tornando tarefa a sua abolição”^^ Vale dizer ainda que a crítica de Benjamin é ainda mais severa, “mais anarquista”, do que, por exemplo, a crítica de Lênin ao kautskysmo e ao oportunismo, entre outras formas “moderadas” de socialismo, em seu Estado e Revolução, na medida em que o autor chama atenção ao seguinte:
Na esteira de algumas observações de Marx, Sorel recusa para o movimento revolucionário qualquer tipo de programas, utopias, numa palavra, de instaurações de quaisquer formas de direito: “Com
Sorel, apud BENJAMIN (2011), pp. 141-142. O texto apresenta leves modificações por parte de Benjamin. Ambas as citações são de BERNSTEIN (1997), pp. 26 e 27, respectivamente. Embora suas teses revisionistas só tenham sido aceitas pela socialdemocracia bem tardiamente, elas representavam melhor a atuação do Partido Socialdemocrata Alemão do que quaisquer outros escritos que os mesmos produzissem ou louvassem. A esse respeito, ver o seguinte trecho de Para uma crítica da violência: “Enquanto a primeira forma de suspensão do trabalho é violenta, uma vez que provoca só uma modificação exterior das condições de trabalho, a segunda, enquanto meio puro, é não-violenta” (BENJAMIN, 2011, p. 143). Ibidem, p. 150.
a greve geral, desaparecem todas essas belas coisas; a revolução aparece como uma revolta clara e simples, e não há lugares reservados nem para os sociólogos, nem para os elegantes amadores de reformas sociais, e nem para os intelectuais que escolheram a profissão de pensar pelo proletariado”^®.
Se, nos anos seguintes, Benjamin recuou dessa posição e teve ilusões com o governo soviético não cabe discutir aqui. O que se apresenta nesse texto é uma visão que já dá fortes indícios do que o autor irá expor em suas teses de 1940, quanto à teoria da revolução.
É na ruptura desse circulo atado magicamente nas formas miticas do direito, na destituição do direito e de todas as violências das quais ele depende, e que dependem dele, em última instância, então, na destituição da violência do Estado, que se funda uma nova era histórica^^
Ibidem, pp. 143-144. ^'Ibidem, p. 155.
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TRAPEZA TES PISTEOS: A ATUALIDADE DO MISTÉRIO DA FÉ, EM BENJAMIN E AGAMBEN. REGINALDO OLIVEIRA SILVA - Universidade Estadual da Paraíba rgnaldo@uol.com.br
Resum o: No ensaio O capitalismo como religião, Walter Benjamin levanta a hipótese do capitalismo como fenômeno religioso, puramente cultuai, sem redenção ou objeto, o qual faz da culpa o seu principal fim. Com Trapeza tes pisteos, em grego “banco de crédito”, inscrito na fachada de um banco em Atenas, Giorgio Agamben investe numa interpretação do ensaio de Benjamin, sob a hipótese de que se o capitalismo é uma reli-gião, trata-se de uma religião da fé, na qual o crédito substitui Deus, enquanto o banco ocupa o lugar da Igreja. Neste sentido, a presente reflexão visa examinar o fio condutor que tece a compreensão do capitalismo como religião da culpabilização universal, mas também como religião do crédito e da dívida. Nessa perspectiva, a atualidade dos misté-rios da fé residiria no entendimento de que a relação entre fé e crédito melhor esclarece a ausência da redenção na religião capitalista.
Palavras-chave: C apitalism o; R eligião; Fé; D ívida; Redenção.
U
ma das frases mais enigmáticas do século X IX surgiu da escrita de Ludwig Feuerbach (2002, p. 18): “a pretensa era moderna é a Idade Média protestante”. Com esta, o filósofo, por um lado, denunciava a continuidade
do Cristianismo nas metafísicas modernas; por outro, lançava a tarefa política associada à tarefa da transformação da filosofia, por conseguinte, da filosofia do futuro, para a qual diz ser necessária a dissolução do cristianismo. A crença de que a idade média teria sido superada pela elevação da razão ã condição de rainha já aí encontra um primeiro desapontamento, o qual não cessará de motivar a escrita filosófica desse século barulhento. Assim, Feuerbach parece ecoar nos cursos proferidos por Augusto Comte (1983), quando este cientista, ao acolher a problemática da filosofia em ruína, estabelece, talvez inspirado na Filosofia da História de Hegel, um fio condutor entre a
teologia, a metafísica e, no seu dizer, o espirito positivo, quando afirma ser a metafísica a conversão de seres sobrenaturais em seres abstratos. Também não escapa a Nietzsche (2005), na II Consideração intempestiva: sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida, ao comparar o que ele chama de cultura histórica, o valor exagerado devotado ao passado histórico, com a herança da ideia do juízo final, veiculada na Idade Média. Não seria novidade, portanto, a suspeita de que no fundo de toda a empreitada moderna escondam-se resquícios, velados ou não, daquilo que acredita o moderno se contrapor e pretender destruir. Ou seja, entre o Cristianismo e a idade moderna, ao invés de ruptura, tem-se uma cumplicidade que os filósofos oitocentistas compreenderam como tarefa expor, ainda sob a perspectiva da maneira de pensar surgida com o Iluminismo, no século XVIII, abrindo o caminho para empreitadas outras, as quais, de diferentes modos, serão por eles elaboradas. Era necessário atravessar o árido caminho da crítica do até então vigente, que, embora caduco e em queda vertiginosa, insistia em refugiar-se no pensamento ávido de secularização. Essa foi a compreensão do jovem Marx (1993, p. 78), na Introdução ã Contribuição da filosofia do direito de Hegel, ao afirmar ser a tarefa da filosofia, em face da então consumada crítica da religião, “desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas não sagradas”, em que a crítica do céu teria dado lugar ã crítica da terra. No entanto, apesar dos esforços e coragem desses filósofos, mas também da crença de Marx de que estaria aberto o caminho para, enfim, a filosofia voltar o olhar
para o aquém e exercer o seu labor crítico, não mais voltado para o céu ou para o cérebro do filósofo, e sim para os enredamentos de homens de corpo e sangue nas veias; com os fragmentos póstumos de Walter Benjamin, intitulados “O capitalismo como religião”, não apenas a tarefa de Marx para a filosofia ganha nova atualidade, bem como a frase de Feuerbach teria de ser repensada. Isto é, os fragmentos de Benjamin convidam à continuidade da crítica da terra, bem como à compreensão de que, talvez, a Idade Média ainda não tenha sido de todo suprimida, de modo que a tarefa que fora lançada no século X IX , em termos de transformação da filosofia ou em termos de tarefa política, ainda teria a sua atualidade. Segundo essa linha de raciocínio, os fragmentos de Benjamin não apenas surpreendem porque oferecem ao presente uma significativa chave de interpretação e crítica, sobretudo, porque atualizam a problemática de desconstrução do presente nas suas raízes arqueológicas, o que oportuna ao filósofo italiano Giorgio Agamben aprofundar os achados, segundo ele, do seu brilhante Homo sacer. Se com Benjamin a necessidade da crítica do céu transferido para a terra surge como denúncia inóspita; com Agamben, ao desdobrar as conseqüências do que em poucas páginas se anuncia, transforma a tarefa crítica, nele arqueológica, não apenas em compreensão do presente, um presente ainda teológico, como também permite apreender em que consiste a tarefa política para este mesmo tempo. Nesse sentido, a presente reflexão objetiva examinar a hipótese da religião capitalista, lançada por Benjamin, quanto ao uso que dela faz Agamben, sob o fio condutor dos elementos teológicos persistentes nos manejos do capitalismo mais recente. Trapeza tes pisteos é o que de início espanta o italiano, porque sugere a apropriação da fé pelos expedientes bancários, o que modifica a compreensão de que a mitologia e os rituais cristãos estabelecem a cadência do mundo da vida nos dias que correm. Porque Agamben não para por aí, ã maneira de Feuerbach no século X IX, ao afirmar que a política entrou para o lugar da Igreja e da religião, diz ele que o banco substituiu a Igreja e os seus sacerdotes - a reflexão aqui proposta perscruta, com o conceito de “profanação”, outro aspecto da hipótese de Benjamin, desta vez, com ênfase no ritual de separação e atitudes profanatórias capturadas pela religião capitalista, como 0 que indica a tarefa política deste século ainda nos seus inícios.
Trapeza tes pisteos e profanação constituem, pois, os dois âmbitos com os quais se pretende, aqui, examinar o alcance da religião capitalista denunciada por Benjamin quando dela se apropria Agamben. Ao tomar esse caminho, vem à luz o sentido da atualidade da fé, e, com esta, algumas hipóteses. Em primeiro lugar, indicar, na apropriação da fé pelo banco, o que denuncia o capitalismo como uma religião, a qual, porque fundada no endividamento, ou seja, na fé convertida em crédito bancário, a redenção será esvaziada do seu conteúdo anterior. Em segundo, que ao retirar dos rituais de separação a possibilidade da profanação, os indivíduos, por meio do crédito, não apenas creditam ao banco a fé, como também são privados da recuperação daquilo que foi em algum momento devotado aos deuses. Ou seja, a religião capitalista não somente se apropria da fé, mas, também, toma para si o intercurso entre homens e deuses, entre profano e divino. De 1921, com tradução publicada, em 2013, pela Boitempo, junto a outros textos similares, “O Capitalismo como religião” levanta a hipótese expressa no título, porque
0 capitalismo está a serviço das mesmas preocupações, aflições e inquietações da religião. Aparentemente sombrio - pois, com o anúncio da morte de Deus, proferido por Nietzsche, em A gaia ciência, acreditou-se que doravante se instituiria uma sociedade de ateus ou de consumada secularização -, afirmar ser o capitalismo uma religião lança nova luz ã compreensão do presente. A hipótese se baseia em três traços característicos da nova religiosidade: o capitalismo é uma “religião puramente cultuai” (Benjamin, 2013, p. 21), a forma mais extrema da religião, mas sem dogmática ou teologia; nele, dá-se uma “duração permanente do culto” (Benjamin, 2013, p. 21), e investe na espera enquanto tal, sem que qualquer objeto se apresente como substância da esperança, sendo, por isto, esvaziado de sonho e de futuro; por fim, que “esse culto é culpabilizador” (Benjamin, 2013, p. 22), não visa ã expiação, antes, prefere alimentar uma “monstruosa consciência de culpa”, a fim de torna-la universal e, assim, martelar a culpa nos indivíduos, o que implica no envolvimento do próprio Deus na culpa. A expiação não poderia ser esperada nem por meio de uma reforma nem pela recusa, de modo a se opor ao que sugere a religião capitalista; antes, promove-se a intensificação do desespero, até a exaustão, a fim de neste encontrar a esperança. Desta maneira, trata-se de uma religião para a qual a “transcendência de Deus ruiu” (Benjamin, 2013, p. 22), o qual em vez de morto foi incluído no destino humano do
perecimento. E, neste sentido, aos três traços incialmente indicados, surge um quarto aspecto: na religião capitalista “Deus precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite da sua culpabilização” (Benjamin, 2013, p. 22). Talvez seja este o sentido da afirmação de Agamben sobre Deus não estar morto, ao contrário, ele se converteu em dinheiro. Diz Benjamin, ainda, que Freud, Marx e Nietzsche teriam parte no império sacerdotal do culto capitalista. Em Freud, o reprimido seria o “capital que rende juros para o inferno do inconsciente”; o super-humano, com o qual Nietzsche ergue o seu projeto filosófico de transvaloração da ética cristã da compaixão, será visto como o salto apocalíptico para a intensificação do arrependimento, da expiação e da penitência - 0 homem que despreza Deus e se autodetermina e engendra. No dizer de Benjamin, “o super-humano é o ser humano histórico que chegou lá sem conversão, que cresceu através do céu” (Benjamin, 2013, p. 23). Quanto a Marx, pesa o fato de ser o capitalismo impenitente um socialismo com juros ejuros sobre juros como função da culpa. A ambigüidade da palavra alemã Schuld, que designa tanto culpa quanto dívida, esclarece essa incidência do juros sobrejuros como mecanismo culpabilizador, conforme a genealogia de Nietzsche sobre a moral da compaixão, na segunda dissertação da Genealogia da moral, ao traçar o fio condutor que rege o caminho da dívida para com os ancestrais fundadores do estado de paz e da sociedade ã culpa em relação ao Deus no céu. O juros sobre juros, acumulado desde um longínquo, resvala na intensificação da culpa, ritualizada e intensificada na religião capitalista. Causa de espanto para Agamben, os fragmentos póstumos de Benjamin servem de mote para todo um empreendimento arqueológico, no propósito de desdobrar a hipótese esclarecedora sobre a conversão, em virtude da Reforma, do capitalismo em religião ou do cristianismo em capitalismo (Benjamin, 2013, p. 24). Embora o alcance da pesquisa de Agamben, o seu labor arqueológico iniciado com o engenhoso Homo sacer, sobre o qual diz o italiano ter oportunado a descoberta de um rico campo de investigação, origem de livros como O reino e a glória. Opus dei e Altíssima pobreza, com os quais buscou desvendar as raízes teológicas do mundo moderno; quando se trata de examinar a recepção do texto de Benjamin no pensamento de Agamben, interessam, no momento, os ensaios e entrevistas concedidas por ele, nos quais são abordados
OS
fragmentos. Alguns publicados pelo blog da Boitempo e o provocador “Elogio da
profanação”, ensaio publicado e traduzido junto a outros sob o título Profanações. Nestes, a hipótese de Benjamin será desenvolvida nos aspectos da fé e do ritual da separação. Assim, Trapeza tes pisteos e sacralização das coisas são expressões chaves para a leitura que faz Agamben dos fragmentos de Benjamin. De saída, a decisão, em 1971, do governo americano de suspender a conversão do dólar em ouro abre o artigo “Benjamin e o capitalismo”. O significado bíblico de “sinal dos tempos” será empregado por Agamben a fim de classificar esse evento que, embora desapercebido, marca o início de uma nova época. Como todo sinal dos tempos, não foi captado no sentido de uma nova realidade, como algo que anuncia uma nova etapa do capitalismo. Doravante, o dinheiro perde de vez toda a referência a uma coisa, a sua substância, e, por conseguinte, torna-se autorreferenciado, ao dar-se a desmaterialização da moeda. O dinheiro apresenta-se como o “crédito que se funda unicamente em si mesmo e que corresponde a si mesmo” (Agamben, 2013a). O efeito dessa mudança na caracterização do dinheiro, o que aí se designa como sinal dos tempos, Agamben busca pensar recorrendo aos fragmentos de Benjamin, dos traços com os quais o filósofo alemão visa sustentar a sua hipótese. O capitalismo como religião cultuai, que investe na duração permanente de um culto culpabilizador. Trapeza tes pisteos, em grego, “banco de crédito”, inscrição num banco de Atenas, informação colhida de um cientista da religião, parece ao italiano esclarecedor, não apenas ã compreensão da nova feição adquirida pelo dinheiro, bem como da possibilidade de ratificar o que Benjamin tão brilhantemente intui sobre o capitalismo. O exercício etimológico indica o caminho para explicitar o que se revela quando a pistis aparece na fachada de um banco, quanto ao estatuto da fé na religião capitalista. Pistis, fé, é
0 crédito na palavra de Deus e de que essa palavra goza junto aos fiéis quando nela se crê - por meio da fé, dá-se “crédito e realidade àquilo que ainda não existe” (Agamben, 2013a). Creditum, de credere, é aquilo em que se coloca a fé, quando se empresta a alguém dinheiro. A desmaterialização da moeda e o novo emprego da pistis dão ao capitalismo como religião a sua razoabilidade: “o capitalismo é uma religião inteiramente fundada sobre a fé, cujos adeptos vivem sola fide (unicamente da fé)”, diz Agamben (2013a),
“uma religião na qual o culto se emancipou de todo objeto e a culpa se emancipa de todo pecado, em conseqüência, de toda possível redenção”. O capitalismo, do ponto de vista da fé, “crê no puro fato de crer, no puro crédito, ou seja, no dinheiro”. Neste sentido, o banco torna-se guardião da fé e substitui a Igreja, bem como, contrariando as expectativas dos apologetas do ateísmo, do séc. X IX ao atual. Deus não morreu, ele converteu-se em dinheiro, não mais é evocado nos templos da tradição cristã, sobretudo, é buscado sob a mediação dos novos sacerdotes, os gerentes de agências bancárias. A suspensão da convertibilidade do dólar em ouro marca a “passagem decisiva para a purificação e cristalização da própria fé” (Agamben, 2013a), então esvaziada da referência a um objeto. Não mais podendo-se associar ao crédito uma coisa, a fé tornase ela mesma a coisa ã qual se dá crédito. A substância da fé, a coisa esperada, “foi aniquilada e deve sê-lo, pois o dinheiro é a essência última da coisa, a sua ousia, a substância do futuro” (Agamben, 2013a). Em virtude desse movimento, a sociedade está fadada a viver de crédito, o que sugere duas conseqüências. Por um lado, a intensificação da culpa - daí tratar-se, na religião capitalista, segundo o entendeu Benjamin, da recusa da redenção, cujo perigo supõe que viver de crédito, de dívida, requer o mergulho mais e mais no universo da culpa, no mesmo sentido descrito por Nietsche na sua polêmica Genealogia do moral. No dizer de Agamben (2013a), “a religião capitalista, em coerência com a tese de Benjamin, vive de um contínuo endividamento que não pode nem deve ser extinto”. Por outro lado, o banco, como depositário da pistis, também se apropria e seqüestra o futuro. Sendo a fé a guardiã das coisas esperadas e, por isto, antecipação da realidade do que se espera, com 0 banco a expectativa do futuro reduz-se ao mero endividamento, apresentandose aos endividados, sejam estes pessoas ou países, como aquele que regula e tutela a esperança no vindouro (Agamben, 2013c). Com 0 ensaio “Elogio da Profanação”, Agamben explora “O capitalismo como religião” dando ênfase ao ritual da separação e da sacralização das coisas, e resgata
0 sentido da profanação, conforme os juristas romanos a compreendiam e contavam entre as formas de restituição ao uso dos homens o que fora consagrado aos deuses. Profano é aquilo que “de sagrado ou religioso, é devolvido ao uso e ã propriedade dos homens”, diz Agamben, citando o jurista Trebácio. A religião subtrai as coisas da sua pertença ao mundo humano, dispondo-as numa esfera separada; por meio do sacrifício
(Agamben, 2007, p. 65), retira-as do uso humano para consagra-la aos deuses. O ritual de separação na religião melhor se esclarece com a etimologia de religio, a qual, ao contrário do que geralmente se crê, não é o que une, mas o que separa e mantém a distinção entre as duas esferas, a humana e a divina. Não deriva de religare - o que liga humano e divino -, antes, de religere, a atitude de escrúpulo e atenção às formas e fórmulas que presidem a separação entre homens e deuses, entre sagrado e profano. À religião se opõe a negligência “diante das coisas e do uso, diante das formas de separação e o seu significado” (Agamben, 2007, p. 66). Por conseguinte, como negligência, profanar sugere “abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, dela faz um uso particular” (Agamben, 2007, p. 66). Por isto, a profanação se distingue da secularização - diferença que diz muito sobre as críticas novecentistas da secularização de conceitos religiosos em abstrações metafísicas. Na secularização de conceitos teológicos, quando se transmuta a monarquia celeste para a monarquia terrestre, ocorre apenas o deslocamento de um lugar para outro. Seria este o sentido da crítica da terra, conforme Marx pensou a tarefa crítica da filosofia. A profanação, por sua vez, neutraliza o que profana, promove a queda da aura de sagrado, restituindo ao uso o que foi ofertado aos deuses. Embora tarefas políticas, secularizar tem a ver com o poder, e o mantem mesmo que se trate de fazer descer o além para o aquém; em contrapartida, profanar desativa o dispositivo do poder e devolve “ao uso comum o espaço que [o poder] havia confiscado” (Agamben, 2007, p. 68). Em face dos ritos de separação, Agamben pontua duas práticas da profanação, cujo efeito reside em desfazer o encanto sagrado, passagem do sagrado ao humano, no sentido da restituição da negligência, parte dos rituais, ou presentes como perspectiva da encenação religiosa ou como algo a ser vigiado seja como algo a ser evitado. São elas 0 contato e o jogo. No contato, trata-se de um “tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado” (Agamben, 2007, p. 66) - nos rituais de consagração uma parte da vítima sacrificial é oferecida aos deuses, enquanto
0 restante, pelo toque, se destina ao consumo humano. No jogo, dá-se uma profanação por meio de um uso ou reuso “totalmente incongruente do sagrado” (Agamben, 2007, p. 66). Embora semelhante às práticas divinatórias, “o jogo exerce a mesma função de separação, sem no entanto destituir o sagrado ou devolver o objeto sagrado ao uso
humano, antes, destinando-o a um uso diferente de ambas esferas” (Agamben, 2007, p. 67). Se no ritual religioso ou ato sagrado o mito que narra a história do sacrifício conjuga-se com o rito que reproduz o sacrifício, no jogo, ou o mito é conservado sem o rito ou 0 rito sem o mito. Dá-se, com isto, uma quebra na continuidade entre mito e a sua atualidade no rito. Assim, “o jogo libera e destina a humanidade da esfera sagrada, mas sem a abolir simplesmente” (Agamben, 2007, p. 67). No entender do filósofo italiano, com 0 jogo tem-se uma nova dimensão do uso, que as crianças, quando concebem as coisas como brinquedos, deslocam-nas para uma dimensão limiar, nem profana nem sagrada (ou seja, quando separam as coisas da sua utilidade pragmatista, sem devotar aos deuses), e, também, quando os filósofos, ao desvincular a palavra do seu uso pragmático, dela fazem um uso especial. Tanto 0 contato quanto o jogo, como a brincadeira das crianças, só são possíveis devido à ambigüidade do significado da profanação, observável no sentido filológico de profanare, o qual sugere, ao mesmo tempo, o tornar profano e sacrificar. Essa ambigüidade constitutiva da profanação guarda semelhança com o sacer, e deste faz-se mais compreensível quando se recorre ao homo sacer. Aqui, Agamben retoma o que ele desenvolve sobre o sacer, em Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, nas figuras do soberano e do devoto, a fim de elucidar o alcance político da profanação. A transição do profano ao sagrado e do sagrado ao profano - ou seja, a possibilidade de separação e, em seguida, da restituição ao mundo humano - dá-se por conta da prevalência em todo objeto tornado sagrado de algo de profanidade, do mesmo modo que em todo objeto profanado persiste vestígios de sacralidade. Daí ser possível não só às coisas serem separadas do uso, tornando-se sagradas, como, uma vez sagradas, poderem retornar ã comunidade dos humanos por meio da profanação (Agamben, 2007, p. 68). Assim ocorre com o homo sacer, quando o substantivo sacer, o que pela sacratio ou devotio foi entregue aos deuses, converte-se em adjetivo de homo. Aqui, Agamben retoma a definição do homo sacer como o indivíduo que, porque excluído da comunidade, pode ser morto impunemente, ao passo que não mais pode ser sacrificado aos deuses. O homo sacer habita uma zona limiar, entre a comunidade humana e a esfera divina, e sendo ao mesmo tempo humano e não humano oscila entre os dois mundos, entre
profano e sagrado, sem pertencer nem a um nem a outro. Ele é “um homem sagrado, ou seja, pertencente aos deuses, [mas] sobreviveu ao rito que o separou dos homens e continuara levando uma existência aparentemente profana entre eles” (Agamben, 2007, p. 69). Nele, há um resíduo do profano e do sagrado e, por isto, na esfera humana, pode ser morto impunemente, pois está fora do alcance da lei; na esfera divina, não mais pode ser sacrificado e fica fora do culto, porque já fora sacralizado. Essa estrutura da separação religiosa e da profanação vê-se modificada quando se trata da religião capitalista, e, neste ponto, tem lugar a leitura de Aganbem dos fragmentos de Benjamin, agora, pensada não mais nos termos da pistis, sobretudo no intercurso entre separação e profanação, que envolve, ainda, a relação do mito com o rito religiosos. Diz Agamben: “a religião capitalista realiza a pura forma da separação, sem mais nada a separar” (Agamben, 2007, p. 71). Na religião capitalista, tudo acaba sendo dividido e deslocado para uma “esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna diretamente impossível”, como é o caso do consumo (Agamben, 2007, p. 71). Como religião, o capitalismo esvazia a sentido da profanação, banindo a restituição ao uso, inerente ao ritual da separação; instaura, portanto, a impossibilidade de profanar. Se de início o banco substitui a Igreja, quando não mais o dinheiro se refere a uma substância material; face aos rituais da separação e da profanação, outras instituições serão indicadas como substitutos do templo e do cumprimento da separação, a fim de fazer possível a experiência da impossibilidade de usar. Nestes termos, compreende-se as funções do Museu e o turismo, ambos como maneiras de tornar patente o não uso das coisas e do mundo, tutelados pelo ritual de separação ou consagração do capitalismo. O museu e o turismo são templos nos quais se leva a cabo a separação das coisas da esfera do uso humano, sem, no entanto, permitir o retorno ao uso; são eles forma e visibilidade da consagração das coisas na nova religiosidade. O capitalismo como religião, além de tomar para si a fé, a realidade das coisas esperadas, também toma para si a profanação, ao privar o homem de realiza-la. São duas, portanto, as incidências, segundo a leitura que Agamben faz de “O capitalismo como religião”: a fé se atualiza como autorreferência, quando o dinheiro se converte em crédito, por conseguinte, encarna a figura de Deus, e a separação como
ritual de consagração, para a qual não há um contrarritual de reconversão. Ao retirar as coisas do uso sem deixar margem para que seja ao uso restituidas, priva as pessoas, ao mesmo tempo, do futuro e do presente. Fecha-se, de um só golpe, a fronteira entre o divino e o profano, aparentando não mais existir um resíduo profanável. Dessa maneira, o banco, o museu e o turismo surgem como os novos templos do sagrado, sob a tutela do capitalismo. O banco porque captura a fé, elevando-a a objeto de si mesma, e tem no dinheiro a expressão de um Deus em quem se credita a fé. O museu, diz Agamben (2007, p.73), porque configura-se como a “dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo”; porque é a “exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiências”. Daí, em muitos museus, embora o filósofo não esteja, conforme se apressa em prevenir, referindo-se ã instituição, e muito mais a um modo de relação com as coisas, a recomendação de não tocar, talvez devido ao mesmo zelo que os sacerdotes nutriam quanto aos ritos de separação, recomendação presente também em algumas lojas dos grandes centros comerciais, como prevenção do contato cujo risco seria restituir ao uso humano. Assim, ã impossibilidade de profanar corresponde a de usar, como também a de habitar, conforme o filósofo italiano percebe no turismo. Como os fiéis nos templos, comportam-se os turistas, os quais passeiam num mundo estranhado, porque transformado em museu. Os turistas, no dizer de Agamben (2007, p. 73), “celebram, sobre a sua própria pessoa, um ato sacrificial que consiste na angustiante experiência da destruição de todo possível uso”. Doravante, sem a ambigüidade do sacer, são eles, sob esta perspectiva, sem uso e sem pátria, tão somente espectadores, despossuídos e expropriados do mundo, das coisas separadas da esfera humana e tornadas sagradas. A experiência dos turistas, os passeios pelas cidades, ã maneira do fianeur, pelas galerias e vitrines, estende-se da experiência com as coisas para a experiência do mundo, por eles vivenciado não mais como habitar do homem, sobretudo como estranho, porque separado do uso. Sem a experiência do uso e sem a do habitar, o capitalismo como religião consuma
0 que Theodor Adorno (1985, p. 40) denuncia na Dialética do esclarecimento: “no mundo conhecido, a mitologia invadiu a esfera profana. A existência expurgada dos
demônios e de seus descendentes conceituais assume sem sua forma naturalizada o caráter numinoso que o mundo outrora atribuía aos demônios”. E noutro lugar, diz Adorno ser a tentativa de aproximar o divino do profano a transformação do imediato em numinoso, conforme o projeto de desencantamento do mundo. Nas coisas e nas cidades, o ritual da religião capitalista impossibilita o uso das coisas e das cidades, sem, no entanto, permitir a restituição, e todos assimilam na experiência do museu e do turismo 0 mundo estranhado como o que se consagra aos deuses, cuja única forma de esperança reside no crédito, na fé que se credita ao dinheiro. Apesar de instituída a impossibilidade de profanar, já que se trata de pensar a atualidade dos dispositivos da religião, ante a tese do capitalismo como religião, defende Agamben que a profanação é mais astuta, pois nela não se trata apenas de devolver ao uso. Nela também se encontra, para além ou aquém, nas palavras do filósofo, a possibilidade de um uso não contaminado, o propósito de conduzir-se para a esfera dos meios puros, onde predomina um uso que não seja nem sagrado nem profano, a exemplo do jogo e da natureza como manifestações de profanação. São exemplos dessa maneira de profanar, não mais como restituição ao uso humano, antes da separação, as brincadeiras do gato com o novelo de lã e a defecação. No entanto, acusa o filósofo, se a religião capitalista anula a profanação, e conserva o ritual da separação, também ela, tão astuta quanto a profanação, exerce um domínio sobre o meio puro, possibilidade da profanação, para a qual, mais uma vez, perscruta por todos os lados as ocasiões de destinação das coisas para um novo uso. Em conformidade com a vigilância do sacerdote, o zelo obsessivo com que este busca evitar a negligência e o contato, em face das formas e fórmulas dos rituais religiosos, a religião capitalista mantem constante vigilância na esfera dos meios puros, a fim de evita-los ou deles se apropriar. Neste ponto, interessa pensar a tarefa política que o autor sugere para o presente, para tempos de religião capitalista. Já que profanar, assim como a secularização, possui uma dimensão política, a profanação não teria apenas a finalidade de restituir ao uso humano o que fora consagrado aos deuses, ela se propõe, também, a criar um novo uso. Precaução necessária porque a religião capitalista como domínio e controle de todas as formas de separação, o faz no propósito de sacralizar todas as coisas e conceitos. Ao
brincar com o novelo de lã, o gato simula a caça do rato e exerce a atividade predatória, mas os comportamentos são destinados para um novo uso, uma vez que a captura do rato é deslocada para o novelo. Trata-se aí de “libertar um comportamento da sua inscrição genética” (Agamben, 2007, p. 74), mantendo-o sem a finalidade natural prescrita, fazendo surgir um novo uso, o qual se designa como meio puro, ou seja, o meio libertado da finalidade. O deslocamento da atividade predatória no jogo do gato com o novelo de lã sugere como horizonte a inoperosidade, a anulação dos usos já consolidados, que Agamben entende, numa entrevista publicada com o título “O pensamento é a coragem do desespero”, não como inércia, mas como exercício de atividades que alteram as finalidades previstas, conforme pensadas por Aristóteles na Ética a Nicômaco. À diferença dos objetos cuja excelência reside no uso daquilo para o qual foram fabricados, ao homem não foi dada de antemão qualquer finalidade, a ele não se inscreve um talento específico, o que também designa a liberdade de o homem para si inventar um talento, concepção que se arrasta até os dias atuais numa longa tradição, de Pico Delia Mirandolla a Foucault. Segundo o modelo da brincadeira do gato, a astúcia do profanar repousa na anulação das atividades, tornando-as inoperosas, não apenas destinandoas a um novo uso, mas desfazendo as suas finalidades. Daí, a defecação também constituir, para o italiano, uma forma de profanação que ocorre na natureza, uma vez que se trata da separação na esfera do corpo, que dispõe, como repressão e opressão, um “campo de tensão polar entre a natureza e a cultura, privado e público” (Agamben, 2007, p. 75). É neste sentido que “profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas” (Agamben, 2007, p. 75) - ou seja, brincar com as fezes, fazendo da defecação um novo uso (como na prática do selfie, muito recorrente nas redes sociais, enquanto se defeca), diferente da opressão que se exerce, em nome da cultura e da higiene, especialmente, quando se observa as primeiras experiências das crianças com as fezes, como objeto que se separa do corpo e, de imediato, tem de ser reprimido. Não se trata somente de restituir as coisas ao uso anterior ã separação, e sim de instituir um novo uso, um meio puro, já que, na religião capitalista, a separação eleva-
se a ritual sem o contraponto da profanação. No dizer de Agamben (2007, p. 75) “a criação de um novo uso só é possível ao homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante”. Entretanto, e eis que se delineia a tarefa política que se impõe face ao ritual de separação e recusa da profanação na religião capitalista, como religião do Improfanável, e levando em conta a fragilidade dos meios puros, também estes serão capturados pelas novas formas de rituais. O jogo acaba, o novelo de lã e o brinquedo da criança voltam ao seu lugar na ordem pragmática - o novelo de lã deixa de ser o rato com 0 qual brinca o gato; o objeto tomado pela criança como brinquedo deixa de ser brinquedo, perde a sua magia. Suscetíveis, novamente, nas palavras do autor, ao “mago malvado”, o sacerdote da religião capitalista, o novelo e o brinquedo são novamente disponibilizados ã ordem pragmatista, consequentemente, são por ele capturados. Essa fragilidade permite ã religião capitalista se apropriar, e criar, não apenas dispositivos de separação, sobretudo exercer o seu domínio sobre os meios puros, segundo Agamben, conforme ocorre com a linguagem, dispositivo profanatório por excelência, quando empregada pelos meios de comunicação, mas também com a pornografia, a se observa a evolução da exposição do corpo das atrizes pornôs, as pornstars, em revistas ou filmes. Neste sentido, como religião, o capitalismo se converte num “gigantesco dispositivo de captura dos meios puros, ou seja, dos comportamentos profanatórios” (Agamben, 2007, p. 76). Na propaganda, a linguagem é instrumento de “captura e centralização do meio puro por excelência, isto é, a linguagem que se emancipa dos seus fins comunicativos e assim se separa para um novo uso” (Agamben, 2007, p. 76). Isto é, nos meios de comunicação, a palavra foi expropriada do seu poder profanatório, porque bloqueia a possibilidade de um uso diferente da comunicação cotidiana e de uma nova experiência da palavra. Isto, no mesmo sentido do que ocorreu com a pistis, a fé, a qual foi reelaborada por Paulo, a ela atribuindo um uso diferente da realidade e atualidade do ainda não existente, o futuro. Primeiro, a Igreja dela se apropriou como meio puro, em seguida, como se viu anteriormente, o banco dela fez moeda de troca. Assim, “no sistema da religião espetacular”, diz Agamben (2007, p. 76), “o meio puro suspenso e exibido na esfera midiática, expõe o próprio vazio, diz apenas o próprio nada, como se nenhum uso novo fosse possível, como se nenhuma outra experiência da palavra fosse possível”.
Considerada por Agamben a realização mais bem sucedida do capitalismo, a pornografia também serve à produção do Improfanável, quando destina ao uso mercantil
0 potencial profanatório do olhar indiferente da pornstar. O modo como se exibe para a câmera não é o mesmo da inicial expressão romântica e sonhadora, passando pela consciência de estar diante da câmera, até a indiferença estudada do olhar para lugar nenhum. Depois que a pornstar toma consciência de estar exposta ã objetiva, surge um contato “despudorado e direto com o espectador”, a exemplo do cinema, quando
0 olhar se dirige ã câmera. Esse olhar resoluto da atriz pornô, se a princípio designava um suposto desprezo ao parceiro e maior interesse pelo espectador (Agamben, 2007, p. 77), a este momento sucede outro, no qual o olhar se torna indiferente tanto ao parceiro quanto ao espectador. Com isto, ela enaltece um valor de exibição do corpo, de caráter puro, 0 que melhor descortina o engenho do capitalismo, ao que parece, quando simula instituir a experiência com as coisas para além do valor de uso e do valor de troca, anulando-os. Esse olhar indiferente da atriz pornô é o que acena para o potencial profanatório da pornografia, porque revela um novo uso, quando está em jogo a capacidade humana de reinventar a sexualidade. Na evolução da exposição da pornstar, indiferente ao espectador e ao parceiro, manifesta-se “um dar a ver nada mais do que um dar a ver”, em que 0 rosto humano é “exibido como puro meio para além de toda necessidade concreta, [e] ele se torna disponível para um novo uso, para uma nova forma de comunicação erótica” (Agamben, 2007, p. 78), já que “em vez de simular prazer [a pornstar] simula e exibe a mais absoluta indiferença” (Agamben, 2007, p. 78). No entanto, se essa indiferença do rosto da pornstar, comparável ao das manequins nas lojas, suspende, ou melhor, profana a utilidade inicial da pornografia: exibir o prazer proporcionado pelo parceiro, a indústria pornográfica, no mesmo sentido dos meios de comunicação em relação ã palavra, anula esse potencial profanatório. Daí, para Agamben, não ser reprovável o comportamento da pornstar, podendose dizer, inclusive, que ela serviria a uma “finalidade” revolucionária, como forma de contestação da ordem capitalista e os seus rituais de separação. Se a pornografia estimula o prazer para com este obter lucros, o olhar indiferente da atriz permite pensar a pornografia num horizonte diverso do pragmático. Porque é um desvio do uso comum da pornografia, promove a criação de um meio puro, quanto ã indiferença seja ao prazer
do parceiro seja ao deleite do espectador. O que deve ser denunciado, por conseguinte, é 0 dispositivo da pornografia como captura do meio puro, uma vez que a indústria da pornografia faz uso do rosto indiferente das atrizes para incentivar a pornografia, impedindo-a de exercer o seu potencial profanatório. Assim, a religião capitalista captura tudo o que pode acenar para a profanação, inclusive quando se trata da finalidade de em vez de restituir o antigo uso promover a criação do meio puro, suspensão das finalidades inscritas seja no comportamento genético seja na pragmática cotidiana do uso das coisas. A instituição do Improfanável, cara ã religião capitalista, se daria, portanto, não somente por meio do museu, que instaura a incapacidade de usar ou por meio do turismo que faz da experiência do outro, experiência da incapacidade de habitar. Também ela se apropria do aspecto da profanação voltado para o meio puro, a exemplo da propaganda em relação ã palavra e da pornografia em relação ã exposição do corpo. O valor de exposição, assim pensado, não sem levar em conta o que Benjamin dele fala sobre a obra de arte na época das técnicas de reprodução, conduziria a uma expectativa para além do valor de uso e do valor de troca, seria ele a instituição de um meio puro, o qual não se vê nem no uso nem na troca mercantil. Porque tanto nos dispositivos midiáticos quanto no dispositivo pornográfico (pode-se também dizer nos dispositivos bancários do endividamento, como meio de seqüestrar a fé e a esperança) está em questão a captura dos meios puros, consequentemente, da capacidade humana de profanar; porque o Improfanável da pornografia, bem como qualquer outro Improfanável, baseia-se no “aprisionamento e na distração de uma intenção anteriormente profanatória” (Agamben, 2007, p. 79); na religião capitalista a profanação não pode constituir-se como restituição do uso comum, tampouco a criação do meio puro, pois num e noutro caso restaria malograda a contrapartida ao capitalismo, uma vez que ambos fazem parte da astúcia da nova religião e religiosidade. Trata-se, portanto, diz Agamben, de profanar o Improfanável, ou seja, profanar a captura do meio puro e do inoperoso, como tarefa política para a atualidade. Nada mais atual a sentença de Feuerbach quanto a ser a era moderna a Idade Média protestante, face a qual a filosofia do futuro deveria ser opor, bem como uma
interpretação que abriga uma tarefa política; nada mais atual que a tarefa que Marx vislumbra para a filosofia: fazer a crítica da terra. O texto de Benjamin não apenas designa a atualidade da suspeita de Feuerbach como ainda previne quanto à crença de Marx de que a crítica da religião já teria sido feita. No entanto, o que se encontra em Benjamin é a não dissociação da crítica do céu da crítica da terra, uma vez que, afirmar ser 0 capitalismo uma religião, que a Reforma foi a conversão do cristianismo em capitalismo, sugere afirmar, diretamente, que os deuses desceram ã terra. Essa descida implicou no tornar divino o profano e profano o divino, algo que se cristaliza nos novos templos religiosos: o banco, o museu e o turismo, nos quais os rituais caros ã religião são desprovidos de qualquer conteúdo ou substância. A crítica da religião capitalista, como crítica do céu na terra, nesses termos, torna-se mais urgente, uma vez que não se apresenta, nas suas práticas e rituais, na relação dos fieis da nova religião com a fé, com a separação e com a contrapartida da profanação, não se apresenta como religião. Ao contrário, mantém o caráter de profanidade e secularização, instaura, pois, uma religiosidade aparentemente não religiosa. Talvez seja este o sentido da purificação da fé, da intensificação da culpa e da ausência da redenção. Esta que nem sequer viria com a engenhosa profanação, maneira de relação dos homens com os deuses, na qual restava, ainda, uma perspectiva de retomada daquilo que do mundo humano aos deuses foi consagrado. Se Deus se tornou dinheiro, conforme afirma Agamben, e se a hipótese da religião capitalista se sustenta, não somente ao dinheiro se credita a fé no futuro; sobretudo é ao dinheiro que a separação serve, é ao dinheiro que as coisas são separadas do uso humano; e porque
0 Deus da religião capitalista está ocultado - este teria sido o efeito da morte de Deus -, também a profanação perde o seu sentido e lugar no rito religioso, e isto se faz com a captura das formas de profanação. Daí, para Agamben, ser a tarefa política do tempo presente, profanar o Improfanável.
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WALTER BENJAMIN: LINGUAGEM E EXPERIÊNCIA HISTÓRICA ROBSON BRENO DOURADO DE ARAÚJO - Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) robson.araujo@aluno.uece.br
Resum o: Esse trabalho quer pensar como a crítica benjaminiana à linguagem burguesa (bürgerlichen Ansicht der Sprache) aparece entrecortada pela mística judaica (mystische Sprachtheorie) e em que medida, nessa articulação, é possível afirmar a linguagem como afirmação histórica e negação prática das relações sociais reificadas. Portanto, tal análise colocase como pressuposto interpretativo de nossa investigação na proporção em que ela aponta para o problema da linguagem na experiência moderna.
Palavras-chave: Linguagem , H istória, N egação, E xperiência.
Algumas palavras à guisa de introdução
0 âmbito da filosofia da linguagem o problema que constitui o elemento crucial de toda a reflexão sobre as potências do dizer e aquilo que é subjacente a sua composição enquanto especificidade humana, na medida em que posicionada no cerne da comunicação, é a relação entre pensamento e linguagem, sobretudo quando dispostas nos domínios da teoria social onde nesses dois conceitos (pensamento e linguagem), no que diz respeito ã mediação, a fala se apresenta como veículo pressuposto e fator mediato do primeiro. Qualquer tentativa de exteriorização quer seja de conteúdos meramente conceituais quer seja de experiências dadas na esfera do sensível, encontrarão seus entraves quando a linguagem for limitada e na limitação desta, por sua vez, todo pensamento é fragmentário na sua tentativa de exposição. Nesse sentido, a linguagem é somente a corporificação do pensamento que se condensa no dito enquanto coisa sensível-suprassensível\ Porém, a questão que se faz mais difícil e urgente, no que se refere ao teor expressivo que a linguagem assume em sua afinidade com o pensamento, é especificamente o de pensar esse mediato da comunicabilidade enquanto objeto unívoco da representação pelo sujeito (signo), uma vez que, nos passos dessa tradição, ambos os conceitos (pensamento e linguagem) são apontados como realidades fundamentalmente opostas justamente ali onde são designados como instâncias do “dentro” e do “fora”. Ora, seguindo as determinações desta hipótese, a forma discursiva do pensamento assume o caráter da singularidade do falante que é somente a extensão de uma dada experiência interior. Os limites da
' MARX, 1996, p. 147. [O diálogo aqui com a crítica da economia política de Marx é visitado objetivando expor a crítica às relações sociais burguesas, crítica essa que, embora em outro domínio, é central para Benjamin. Não se trata, portanto, de dar relevo a uma mera identidade teórica, ou de supor uma leitura que incorpore uma mescla conceituai, mas apontar que ali onde a linguagem é extensão de uma egoidade, essa extensão, por sua vez, tem a sua determinação muito precisa na história. Portanto, nossa leitura afasta-se de uma interpretação genealógica e cartográfica que introduz um “corte epistemológico” entre um Benjamin de juventude prolixamente metafísico e teológico e um Benjamin materialista histórico pós anos 20 leitor de História e Consciência de Classe. Ao contrário, apontamos a centralidade critica da história e da crítica histórica nos escritos dejuventude; como bem aporta em 1914 emA vida dos Estudantes: “vamos considerar a história à luz de uma situação determinada que a resuma em um ponto focal.” BENJAMIN, W, 1971, p. 37. ]
expressividade do sujeito, portanto, se dão na tentativa de fazer do discurso a condução desta mesma subjetividade que se afirma na fala, ou seja, a exteriorização do sujeito falante é precisamente uma falsa exteriorização, na proporção em que esse falante regressa a si mesmo^ no escopo de dizer esse Si que retorna sempre nessa repetição mítica onde a expressão é uma mera mesmidade lingüística. Nessa ordem, propomo-nos a expor a crítica de Walter Benjamin acerca da linguagem enquanto expressão abstrata do signo. Para tanto, buscamos indicar, como chave interpretativa, o uso por Benjamin da mística judaica no que concerne ã teoria da linguagem, enquanto crítica da alienação desta, para suspender uma categoria lingüística própria do homem - o nomear - e submetê-la ao desvio que se efetiva como negação da “tagarelice” na esfera da mera comunicação. Nessa ordem, tomamos como ponto de orientação de nossa discussão um duplo esforço: 1- traçar a dinâmica geral de como a concepção de linguagem benjaminiana aparece concatenada ã teoria lingüística do judaísmo e 2- mostrar como o recurso a esta teoria aparece ressignificado pela via da crítica ã concepção burguesa da linguagem (bürgerlichen Ansicht der Sprache).
Linguagem: hic hodus hic salta da história
É como apropriação da teoria lingüística da cabala no judaísmo que Benjamin traz ã tona um conceito - o nomear -quQ no terreno de sua crítica ã teoria burguesa da linguagem, assume a forma da negatividade e contradição em si mesmo. “Linguagem, a mãe da razão e da revelação seu alfa e seu ômega”.^ Essa citação de J.G. Hamann por Benjamin no ensaio Sobre a linguagem em geral e a linguagem do homem de 1916 demarca o contexto teológico que se apresenta como background no pensamento do autor e que aqui tomaremos como ponto de partida para a exposição de nossa hipótese.
^ A expressão de Santo Agostinho “o homem recai sobre si mesmo, como em centro próprio” expõe estilisticamente aquilo que nos propomos a discorrer acerca da linguagem reificada. 7 r á .X II,ll,1 6 . ^ Ibidem. p. 59.
No contexto da teoria judaica da linguagem a categoria do Nome aparece, enquanto “substância mesma do venerável” \ como a verdade de Deus que se faz sensível. Essa verdade enquanto Revelação divina é fundamentalmente situada num processo acústico dado imediatamente no ato da criação com a sua essência - a linguagem, já que a “palavra é a verdade desde o princípio”.^ A Revelação enquanto linguagem e a linguagem enquanto Revelação é o alicerce ontológico que resulta na essência lingüística humana como desdobramento do Nome de Deus. Convém notar que, em concordância com ojudaísmo, Benjamin assinala uma concepção da linguagem vista como unidade inerente a tudo, uma vez que as noções de Criação, conforme essa tradição, e Revelação pela linguagem vinculam-se na imanência das coisas dadas nesse processo. Nesta ordem, o ponto focal a ser destacado, no que propriamente se refere a essa relação espiritual entre o elemento sensível da criação e a experiência humana da linguagem, é o pressuposto “essencial” da Criação que permite ã essência humana e das coisas serem lingüísticas. Ora, tendo sido criadas todas as coisas pela palavra de Deus, é, portanto, da constituição das criaturas, ou melhor, é da ordem de suas essências a Palavra criadora; a matéria, portanto, se conserva no produto. Sem dúvida, a ideia segundo a qual o Nome guarda estreita identidade com a essência, marca o núcleo da imbricação do pensamento benjaminiano pelo judaísmo. No livro da Cabala mística Sefer letzirá, ou “o livro da Criação”, as letras da Árvore Sefirótica, ou Árvore da Vida, delimitam a configuração da atuação de Deus como processo lingüístico. As 22 letras encerradas nas dez Seflrot, enquadram a exteriorização da energia divina nos domínios da emanação, dito com rigor mais justo: de sua manifestação. Para os cabalistas, esse processo de vir-a-ser é representado pelo símbolo da luz, sua propagação e refração, o que significa dizer que a atividade divina é puramente movimento lingüístico, ou simplesmente, nos termos demasiado místicos da Cabala, assinatura^’ de Deus. No texto 0 nome de Deus e a teoria da linguagem
cabalística, Scholem expõe uma interpretação do Sefer letzirá que nos permite divisar
^SCHOLEM,1988, p. 73. ^ “Dein Wort ist nichts ais Wahrheit, alie Ordnungen deiner Gerechtigkeit wáhren ewiglich.” Psalm 119:160. DieBibel nach Martin Luthers Übersetzung, 1985, p. 614. [A Bíblia de Lutero, tradução nossa.] ®“A palavra hebraica ot não significa apenas letra, mas também, num sentido mais restrito, [...] assinatura.” Ibidem, p. 71.
0 caráter lingüístico da manifestação divina e, portanto, enxergar aquela definição da categoria do Nome como a totalidade da essência das coisas.
O início de todas as manifestações da Divindade oculta, do Ein-sof, ou do Infinito, pode ser descrito, de acordo com sua tese [de Isaac, o Cego], em estágios, pelos quais o pensamento (de Deus) vai passando em seu avanço progressivo em direção à “Fonte do Discurso” e a partir daí em direção às palavras ou logoi de Deus. [Esses logoi são a] Sofia [que] de acordo com a terminologia de Isaac, [consiste no] “início do discurso” e o ponto de origem da linguagem de Deus.^
As letras enquanto predomínios formais do ato divino remetem exatamente ao movimento lingüístico no contínuo da Criação e a introdução, nesse percurso, da palavra de Deus nas coisas criadas, e também na linguagem humana. Nessa perspectiva, há uma reflexão da linguagem divina, ela é em si mesma a coexistência paradoxal do finito com 0 infinito, e é precisamente em sua forma terrena (criaturas) que a linguagem de Deus adquire corpo e alma. Vale ressaltar que a criação das coisas pela palavra já é em si mesmo fenômeno estético, na medida em que constitui um dado acústico, portanto sensível, da realidade divina, e, que nos possibilita afirmar que sua corporificação não se constitui em uma substancialização no real, mas especificamente um desdobramento de uma realidade já existente. O Nome de Deus revelado a Moisés na sarça ardente*, o Tetragrama IHW H, consiste, aos olhos da tradição judaica, na raiz de todos os outros nomes, arquinome e gene do processo cosmogônico. A forte influência do pensamento neoplatônico na mística judaica - dos séculos II e III para a qual o Livro da Criação tem magistral importância^ -aponta para o processo de manifestação divina e, portanto, para as categorias hipostasiadas de uma substância originária, mais especificamente no que
’ Ibidem. p. 31 * “Quando o Senhor, porém, o viu chegando para olhar, chamou-o Deus do meio da sarça e falou: “Moisés, Moisés! ” Ele respondeu: “Aqui estou”. [Ais aber der Herr sah, dass er hinging, um zu sehen, rief Gott ihn aus dem Busch und sprach: Mose, Mose! Er antwortete: Hier bin ich.” 2Mose 3:4. DieBibel nach Martin Luthers Übersetzung, 1985, p. 62. (A Bíblia de Lutero, tradução nossa.)] ®SCHOLEM,2001,p.20.
se refere ao reencontro do Nome de Deus na linguagem do homem. Por conseguinte, a linguagem humana, na sua constituição elementar, conserva em si o caráter sagrado de sua originalidade na medida em que na sua estrutura mantém o eco do pneuma divino. É através do pneuma, ou sopro divino, que Deus incorpora sua linguagem ao homem. A constatação fundamental da reflexão benjaminiana sobre a linguagem parte precisamente dessa concepção judaica da totalidade lingüística das coisas, o que eqüivale dizer que tudo possui linguagem. No ensaio de 1916 supracitado, Benjamin introduz o elemento central de sua análise sobre a essência lingüística do homem e de seu carácter nomeador. A expressão que em alemão designa o que na tradução para
0 português optou-se por “comunicação” é Mitteilung^\ ou seja, Benjamin foge ã significação que a palavra Kommunikation alude, não sendo, deste modo, arbitrário o uso da expressão Mitteilung. Esta que é formada pela preposição m it (com) e o verbo
teilen (partir, dividir), ou seja, partilhar com, participar, expõe justamente a noção sobre a qual a linguagem se desdobra. A não utilização do termo Kommunikation aponta exatamente o equívoco que Benjamin pretende evitar ao dizer que a linguagem é 0 princípio que se volta para a comunicação“ , ou seja, a comunicação não se resume ã esfera da mera exteriorização do dizer, antes ela é uma potência participativa do todo. Nesse sentido, conforme o ensaio, todas as coisas participam da linguagem, e, nessa perspectiva, é da qualidade de suas essências a comunicação, pois “é essencial a tudo comunicar seu conteúdo espiritual”.!^ No que diz respeito, portanto, ã linguagem humana, toda tentativa de sua manifestação se encontra recaída sobre si. É exatamente porque a linguagem não pode ser suspendida ou escandida de si mesma para uma autoanálise que, qualquer pergunta que se volte para a linguagem é um gesto que se dá dentro de sua própria extensão. Toda manifestação da vida espiritual humana é concebida como um modo no todo da linguagem. No entanto, vale ressaltar que a necessidade de comunicação inerente às coisas, ou comunicação de seus conteúdos espirituais (gestiger Inhalt), foge a qualquer noção pragmática e utilitarista frente á linguagem, pois na linguagem não há conteúdo separado de sua forma; a linguagem não se restringe a uma mediação comunicativa. Esta noção mediativa que perpassa a
BENJAMIN, 1991, p. 140 " Ibidem. p. 49-50. Ibidem. p. 51.
teoria da linguagem é o que Benjamin aponta como concepção burguesa da linguagem. Noquesereferepropriamenteàslinhasgeraisdalinguagem,atesedeterminante que delimita a composição teórica de Benjamin se funda na concepção de que toda a linguagem comunica a si mesma.“ Nessa perspectiva faz-se necessário aclarar dois conceitos que estão às voltas e são recorrentes nas suas indagações sobre a linguagem, a saber: essência espiritual (geistiges W esen)t essência lingüística (sprachliches Wesen). Podemos apanhar esses dois conceitos como unidade paradoxal da linguagem, o que significa dizer que o dito e o dizer estão respectivamente identificados em ambas as formas. Ora, sendo a essência lingüística a instância modal da linguagem, ou seja, a própria língua, e, por outro lado, a essência espiritual o fator que se expressa no dizer enquanto objetividade mesma da linguagem, conclui-se, pois, que no dito está o modo de dizer, ou seja, na fala do homem; concentra-se uma ambigüidade intrínseca à sua forma, uma vez que nela ele mesmo está insinuado e nela também seu “querer dizer” é apresentado. É nesse terreno que se concentra o esforço crítico benjaminiano de apontar negativamente a expressão como imediatidade, já que toda possibilidade de mediação incide na esfera da significação e, portanto, na linguagem burguesa. Benjamin, ao indicar o paradoxo da linguagem, reporta-se ã palavra grega logos^\ que no pensamento antigo remonta exatamente ã totalidade do real enquanto dimensão participativa
(méthexis) do ser no conceito, e que, no nosso autor, remete justamente ã fala paradoxal que imbrica em si mesma a materialidade e a idealidade que encontra seu lugar no homem, isto é, ao falar o homem participa (mitteilen). Nesta ordem, a essência lingüística do homem, enquanto instância modal da linguagem é sua própria língua, e por outro lado, sua essência espiritual constitui aquilo mesmo que decorre, na tradição judaica, do elemento primordial da criação: o nome. Benjamin ao fazer uso da narrativa do livro bíblico do Gênese esboça precisamente a
'^BENJAMIN, 2011, p. 53. “É interessante notar que Heródoto, quando se refere às várias partes da sua obra, não usa a palavra história, mas sim a palavra logos (discurso) para identificá-las; não fala da “história” dos Seitas, do Egito ou de Darius, mas sim do logos Seita, do logos egípcio ou do logos a respeito de Darius etc”. GAGNEBIN, 1999, p. 36. [Essa colocação de J.M. Gagnebin demarca exatamente a concepção de nossa hipótese: a de que, no pensamento benjaminiano, na sua analise sobre a linguagem, o ato do dizer comporta em si uma esfera historicamente determinada.]
razão pela qual o nomear aparece como imagem da linguagem de Deus. Segundo a narração, Deus criou todas as coisas no Verbo, ou seja, pela palavra criadora o ritmo da criação foi realizado; como bem salienta Santo Agostinho nas suas Confissões: “para Vós não há diferença nenhuma entre o dizer e o criar”. Contudo, a concepção do homem não foi dada nessa mesma seqüência criadora: “Haja, Ele criou, Ele chamou” “ como é também do corte interpretativo da tradição judaica cabalistica, a vida do homem foilhe conferida pelo sopro, “Deus insuflou no homem o s o p r o e nesse ato o pneuma divino 0 incorporou, o que em outras palavras significa dizer que a linguagem, que é
0 pneuma divino, foi-lhe dada diretamente por Deus e, por conseguinte, nesta ordem, que a palavra criadora, enquanto Verbo divino, é doada ao homem constituindo-lhe vida e, portanto, história, “pois é a partir da história [...] que pode ser determinado, em última instância, o domínio da vida”.i* Vale expor que o recurso ao livro do Gênese não tem em si a tentativa de apontar uma reconstrução histórica do homem, mas como aponta J.M. Gagnebin:
antes visa lembrar outra compreensão da linguagem humana, compreensão quase esquecida até mesmo repelida pela hipótese da arbitrariedade do signo e da comunicação como função primordial da linguagem. A importância do texto do Gênese vem do fato de que ele nos faz recordar a uma função da linguagem humana, função essencial, a de nomear, que não se pode explicar nem em termos de comunicação nem em termos de arbitrariedade.^®
O encadeamento dos termos lembrar, esquecer e recordar, na citação acima definem com exatidão o caráter de “reencontro” que o nome na linguagem humana assume nos domínios do pensamento de Benjamin e no judaísmo. O conceito de
Eingedenken (rememoração) não pretende apontar, no que diz respeito ã linguagem do
Conf. XI, 7,9. '«BENMIN,2011,p.61. "BEN JA M IN , 2011, p. 60. Ibidem, p. 117. GAGNEBIN, 1999, p. 194.
homem pós queda do paraíso, uma restitutio imediata com o passado na sua inteireza, mas; redimi-lo enquanto abertura histórica no presente. No nomear “não há nem meio, nem objeto, nem destinatário da comunicação. [...] 0 nome é aquilo através do qual nada mais se comunica”.2“Tal afirmação incorpora a apreensão de uma negatividade imanente ao ato da nomeação direcionada ã mera reprodução do sentido. A apropriação do conceito do nomear assume precisamente
0 centro da crítica benjaminiana ã linguagem burguesa da mera reprodução do signo enquanto fantasmagoria do espírito. O paradoxo encontra no homem seu lugar como negação da mera comunicação, ou melhor, o nomear como comunicação que não comunica. O carácter não mediativo e não significante do Nome Benjamin aponta na sua resolução do paradoxo de Russell. O paradoxo que gira em torno das “propriedades da impredicabilidade” sustenta que: um juízo impredicável não pode derivar de si mesmo. O impredicável é predicável ou impredicável. Se tomarmos a primeira alternativa, a de que 0 impredicável é predicável, segundo o paradoxo, para ser verdadeira a proposição,
0 predicado deveria derivar de si mesma, mas ao tornar predicável o impredicável logo teríamos um impredicável que é impredicável, segundo a lógica. Se tomarmos a segunda forma, a de que o impredicável é impredicável, a proposição automaticamente já se anula. Benjamin soluciona o paradoxo ao determinar o impredicável como um Nome e não uma propriedade atribuível, isto é, não se tratam de termos que permeiem a veracidade ou a falsidade do juízo, ao contrário, o Nome nada significa, ele está aí como “apropriação” e como autodesignação: “A essencial logicidade de um juízo não surge sob a forma ‘é verdadeiro que...’, mas, ao contrário, vem á tona no juízo de nomeação ‘S é P denomina que S é P’4 ”.^^ É nesse sentido que o conhecimento do bem e do mal para o qual a serpente do Jardim do Éden seduziu, a que Benjamin faz referência no texto de 1916, como diz: não tem nome. Nesse conhecimento, o nome sai de si mesmo: o pecado original é
Ibidem, p. 56. B E N JA M IN ,W .1991,p.ll.
a hora de nascimento da palavra humana, aquela em que o nome não vivia mais intacto, aquela palavra que abandonou a lingua que nomeia, a lingua que conhece, pode-se dizer: abandonou sua própria magia imanente para reivindicar expressamente seu caráter mágico, de certo modo a partir do exterior. [Ela é, portanto] paródia da palavra imediata, da palavra criadora de Deus, [uma vez que] o conhecimento do bem e do mal é uma “tagarelice”.^^
Com efeito, o que Benjamin está a nos mostrar é que o momento da queda é, sobretudo, queda da linguagem e que está manifestamente ligada ao nascimento mítico do Direito2^ uma vez que, a palavra vã é palavra que julga; a ordem judicante é, pois, a banalidade, sobre a qual a linguagem incidiu, ela é em última análise, a instância da instauração do poder. Se entendermos que na reflexão benjaminiana o terreno em que se edificam as estruturas do Direito remetem absolutamente à designação ambígua do termo Gewalt (violência-poder), entendemos que no que diz respeito ao Direito; a
Gewalt assume a forma potestas, ao poder como violência, essa mesma que, afinal, se efetiva na forma Estado, uma vez que a “instauração do direito é instauração de poder e, enquanto tal, um ato de manifestação imediata da violência”^^, determinação esta que aprisiona a vida em sua totalidade. A estrutura da linguagem da sociedade burguesa, derivada do pecado original enquanto suspensão do signo e que de fora se autonomiza na mediação do sentido, é situada fundamentalmente na ordem do Direito. O nome que sai de si é, portanto, a instrumentalização mediativa do sentido que imediatiza a abstração, e por sua vez, é palco da instrumentalização representativa da soberania na lei positiva, que noutras palavras significa apontar uma babelização da linguagem e sua susceptibilização às artimanhas ideológicas do poder. A forma abstrata da comunicação é subsunção da imediatidade concreta da linguagem (expressão da verdade no Nome). A negatividade imanente ao nomear é intrínseca ao caráter apropriativo da designação que se apresenta como apropriação histórica da vida enquanto recusa da esfera da mera circulação do
Ibidem. p. 67. “ Ibidem. p. 69. Ibidem, p. 149.
sentido; ela é, portanto, negação que se faz da ordem reificada, que manifestamente é espelho da experiência cotidiana moderna e, nessa perspectiva mantém uma relação negativa com o presente, em outras palavras, o Nome, é a remissão da verdade na linguagem.
Considerações finais
A objetividade histórica e, portanto, ressignificativa, que se inscreve no Nome como renúncia à lógica do uso da linguagem submetido à produção e distribuição do sentido, ou seja, ã troca, tem como medula a libertação da linguagem da servidão da paródia da palavra e expõe a nu sua verdade como esfera negadora da gestação do poder pela e na palavra. É neste horizonte que, no prefácio ao Trauerspiel, Benjamin assinala que “o drama barroco é ideia”^^ exatamente para apontar que os períodos de decadência, na qual se assenta o Barroco alemão, possuem o seu espelhamento na linguagem, a fragmentação histórico-cultural sobre a qual se ancora é determinante para o uso histórico da linguagem enquanto denúncia das contradições reais. A imediatidade do abstrato que configura a linguagem profana expressa, pois, uma inversão da ordem real das coisas, e, portanto, da linguagem reprimida no estatuto mítico da circulação, como aponta Mallarmé^^ como mera moeda de troca. O nomear é notadamente negação das determinações fantasmagóricas da forma reificada da linguagem, isto é, resgata em sua inteireza a insubmissão das palavras da tradição ínsurrecionaF que levou na bagagem de sua crítica a experiência da liberdade aliada às forças revolucionárias do proletariado na tentativa de aniquilar o poder do Estado^*. Ali onde a linguagem seja experiência humana como mediação abstrata da abstração, e, portanto, onde se veicula a palavra judicante, ela se reduzirá à prosa vulgar da mera informação e estabelecerá seu lugar na produção do mero sentido.
BENJAMIN, 1984, p. 60. “ MALLARMÉ,2013,p.5. BENJAMIN, 1996, p. 31. ^«BENJAMIN, 2011, p. 142.
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