lampejo vol.3 n.2

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REVISTA

IAM PI

A P O E N A I G ru p o d e estudos S ch o p e nha u e r

líetzsche

ARTIGOS ENSÂfÕS RESENHA FOTOGRAFIA

460 anos da deglutigj^ do bispo Sordi

Filosofia, Estética e Política ISSN 2238-5274 EDIÇÃO ESPEaAL - N® 6 - 02/2014 / ^


Indice EDITORIAL

Uma breve compreensão sobre o Dasein de Heidegger Marcus Vinícius Gomes de Araújo___________

Editorial Editorial_____

03

0 aparente confiito eudemonoiógico presente na ética scbopenbaneriana Gustavo Augusto da S. Ferreira_________________________207

DOSSIÊ OSWALD DE ANDRADE

Crítica ao sujeito do conhecimento em Nietzscbe e Frend Hermann Roínor Kulitz_________________________________222

Oswaid de Andrade: 0 bomem cordiai e a fiiosofia (brasiieira) David Barroso________________________________________ 04

ENSAIOS

A recepção da antropofagia na arte brasiieira contemporânea

0 riso ético: "opções" deienzianas peia aiegria

Irina H ie bertG run____________________________________ 24

Daniel Santos da Silva

A morta de Oswaid de Andrade e o desespero da forma

RESENHAS

235

Marcelo Paiva de Souza________________________________ 49

Por que somos eternamente decadentes? Um breve comentário sobre a interpretação de Evaido Sampaio

ARTIGOS

Fernando R. de Moraes B arro s________________________251

Nietzscbe e a ambivaiência do fiiésofo e doartista: uma necessidade estética de (des)construção do mundo e davida

ENSAIO FOTOGRÁFICO

Ivan Resafíi de Pontes_________________________________68

Resto Oemoiido por Paulo W inz_______________________________________ 260

A vontade de poder como afirmação da vida Wlisses de Freitas Freire____________

96

Oa tentação à negação do suicídio: Um diáiogo entre Scbopenbauer e Camus Nathan Menezes A.Teixeira___________________________ 108

Soberania versus estado: crítica ao binômio poder-vioiência em Waiter Benjamin Raquel Célia Silva de Vasconcelos______________________ 120

ISSNZZ38ÜZ74 Editores:

Luana Diogo, Daniel Carvalho,William Mendes, Ruy de Car­ valho, Gustavo Costa

0 iVIundo reificado ou Oa Natureza da economia Manuel Bezerra Neto_________________

Revista Lampejo

132 Conselho Editorial:

Foucauit 0 a geneaiogia da verdade. Notas sobre a onipresença, a irrefutabiiidade, a ausência e a universaiidade da verdade PabloSeveriano Benevides |Diva Rodrigues Daltro Barreto____ 140

Heidegger e Cioran ieitores de Nietzscbe: repercussões da questão do niiiismo nos pensamentos do ser e do nada Filipe Caldas Oliveira Passo s__________________________ 166

Considerações acerca da "consideração especuiativa" no Pés-escrito às iVligaibas Fiioséficas William Mendes Damasceno__________________________ 187

Prof. Dr. Daniel Santos da Silva; Prof. Dr. Ernani Chaves; Prof. Dr. Jair Barboza; Prof. Dr. Ivan Maia de Mello; Prof. Dr. José Maria Arruda; Prof Dr. Luiz Orlandi; Prof Dr. Miguel A. de Barrenechea; Porf Dr. Olímpio Pimenta; Prof Dr. Peter Pál Peibart; Prof Dr. Roberto Machado; Prof Dra. Rosa M=> Dias Comissão Editorial:

Ruy de Carvalho, Gustavo Costa, Fernando Ba rros, William Mendes, Daniel Carvalho, Marilia Bezerra, Rogério Moreira, Luana Diogo, Paulo Marcelo, Atila Monteiro, Gisele Gailicchio, Fabien Lins Projeto Gráfico e Diagramaçâo:

Herlany Siqueira


RO\'I!^rA

LAMP

EDITORIAL É com grande satisfação que o A poena - G rupo de E studos S chopenhauer N ietzsche traz a público m ais um núm ero da Revista Lam pejo - Revista Eletrônica de Filosofia e Cultura. Trata-se de um a edição dupla, com vários artigos, ensaios, um a resenha e dois dossiês. A prim eira parte dessa sexta edição conta com um dossiê em hom enagem ao poeta Oswald de A ndrade, aos 60 anos do aniversário de sua m orte, intitulado: 460 anos de deglutição do Bispo Sardinha: Oswald de A ndrade - Filosofia, Estética e Politica. Os textos abordam diferentes aspectos da produção osw aldiana, articulam a dim ensão filosófica, estética e politica de sua obra e ressaltam sua relevância para 0 pensam ento brasileiro e para arte brasileira contem porânea. Alêm do dossiê, a prim eira parte da sexta edição conta com onze artigos, um ensaio, um a resenha e um ensaio fotográfico, este últim o assinado pelo fotógrafo cearense Paulo W inz. Os textos versam sobre tem áticas e autores variados, de N ietzsche e S chopenhauer a Michel F o u cau lteA lb ertC am u s.

Já na segunda parte dessa sexta edição da Revista Lam pejo o leitor terá a oportunidade de ler um a seleção de textos escritos com base nos trabalhos apresentados na 11 Jornada B enjam iniana, que ocorreu no dia 26 de setem bro de 2014 no Porto Iracem a das A rtes e teve com o tem a Benjam in e Debord: A rte e Revolução. O evento foi organizado pelo Grupo de Estudos B enjam inianos da U niversidade Estadual do Ceará (U ECE), coordenado pelo professor João Em iliano Fortaleza de A quino (UECE) e vinculado ao G rupo de Pesquisa em D ialética e Teoria Critica da Sociedade e ao Laboratório de Estudos sobre Poder, Violência e Linguagem (Lapovili), com apoio do M estrado Acadêm ico em Filosofia da m esm a instituição. Com esta sexta edição, a Revista Lam pejo - Revista Eletrônica de Filosofia e Cultura reforça sua vocação m ultifacetada, o seu em penho em acolher as boas intuições presentes na produção discente e reflexões pautadas pelo diálogo com autores de um am plo espectro do conhecim ento.

D esejam os a todos um a ótim a leitura! Os editores


RO\'I!^rA

LAMP

OSWALD DE ANDRADE: 0 HOMEM CORDIAL E A FILOSOFIA (BRASILEIRA) DAVI D BARROSO DE OLIVEIRA - Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Resum o: No período entre o final do século XIX e início do XX, houve uma efervescência cultural no Brasil. Em 1922, com a Semana de Arte M oderna, os questionam entos voltam -se à sua origem . Surge a “velha q uestão”: filosofia do Brasil, filosofia no Brasil, filosofia brasileira?. Com a significação de “homem cordial” em função de uma problem ática brasileira, pensam os a filosofia da A ntropofagia osw aldiana, uma Filosofia antropofágica. Palavras-chave: Antro^oiagxa. B rasil. C ordialidade. C u ltu ra. M odernism o

Abstract: Between the late nineteenth and early tw entieth centuries, there was a cultural effervescence in Brazil. In 1922, on the Sem ana de Arte M oderna, the questioning is backto its origin. Is the “old issue” : philosophy of Brazil, philosophy in Brazil, brazilian philosophy?. W ith the m eaning of “cordial m an” according to a brazilian problem atic, think the philosophy of oswaldian A nthropophagy, an anthropophagic Philosophy. Keywords: Anthropophagy. Brazil. Cordiality. Culture. M odernism.

N° 6 - 02/2014


NÓS éramos xifópagos. Quási chegamos a ser deródimos. Hoje somos antropófagos. E,foi assim que chegamos á perfeição. Abre-alas. Antônio de Alcântara Machado Sem muito mais fazer. Nada queremos provar. Com muito mais prazer. Tudo queremos devorar. Antropofagia. O Litorâneo

Ano 460 da Deglutição do Bispo Sardinha - aos remanescentes “brasileiros”, daquele povo primitivo do Novo Mundo, a “vida na praia” não é mais a mesma. Com 0 movimento modernista de 22 (ano 368)\ experimentamos uma concepção dessa

“vida” junto à problemática do “homem ” e da “cultura”. O Manifesto Antropófago (ano 374), escrito por Oswald de Andrade, expressão mordaz do Modernismo brasileiro, começa: “ Só A ANTROPOFAGIA NOS UNE. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”^. Na Antropofagia está o “homem” e(m) sua “cultura”. Precisamente, 0 tipo homem antropófago. Genericamente, o tipo homem brasileiro. Seus “escritos

doutrinários” versam sobre os aspectos antropofágicos do “brasileiro” e(m) sua “cultura”, sem desconsiderar a crítica criadora da história cultural do Ocidente. O

methodos é em-nossa-querida-rede. Sua funcionalidade permite-nos estar

na zona intermediária de um só plano, entre a particularidade e a universalidade da W eltanschauung antropofágica, balançando-nos juntos ao seu horizonte. Nele, jaz um raio solar: A Antropofagia pode reputar-se como uma filosofia brasileira e, esta como uma Filosofia dita universal? - Nossa visão: estudaremos uma problemática brasileira para pensarmos uma Filosofia antropofágica. Depois, caracterizaremos a Antropofagia e, valorando sua universalidade de impacto, discutiremos a significação de “homem

1 “A Semana da Arte Moderna (São Paulo, 1922) foi realmente o catalisador da nova literatura brasileira, coordenando, graças ao seu dinamismo e à ousadia de alguns protagonistas, as tendências mais vivas e capazes de renovação, na poesia, no ensaio, na música, nas artes plásticas. Integram o movimento alguns escritores intimistas como Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida; outros, mais conservadores, como Ronald de Carvalho, Menotti dei Piccha, Cassiano Ricardo; e alguns mais novos que estrearam com livre e por vezes desbragada fantasia: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, na poesia e na ficção; Sérgio Milliet, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes Neto, no ensaio. Dirigindo aparentem ente por um momento, e por muito tempo proclamando e divulgando, um escritor famoso da geração passada [Escola de Recife]: Graça A ranha” (CÂNDIDO, Antonio. Literatura e sociedade, p. 124-125). ^ANDRADE, O. Manifesto antropofágico, p. 67.


cordial”, em relação à moral, ao sexo e ao trabalho. Se desse modo compreendemos a Filosofia antropofágica (oswaldiana), é pelo modo como simboliza aquela “vida”. I O Brasil e os “brasileiros”, Darcy Ribeiro: “ Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvicolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos”^. Para Fernando de Azevedo: “Cada povo tem o seu temperamento e o seu gênio próprio que, elaborados através dos séculos, são o produto do meio físico, dos elementos raciais, e do progresso de sua evolução social”"^. Perguntamos: Quais o temperamento e o gênio de um povo surgido da confluência do entrechoque cultural? - Fernando de Azevedo, levantase: “Já temos um caráter próprio, uma feição particular, uma personalidade viva e, a certos respeitos, m arcada”^ Numa expressão feliz, Sérgio Buarque de Holanda: “A contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o ‘homem cordial’”®. Uma singularidade é essa cordialidade. O “homem cordial”, pelas palavras

^ RIBEIRO. O povo brasileiro, p. 17. Assim pensada, a formação do povo brasileiro deu-se na interculturalidade. Fala Fernando Novais: “Mobilidade, dispersão, instabilidade, enfim, são características da população nas colônias, que vão demarcando o quadro dentro do qual se engajaram os laços primários e se foi desenrolando a vida do dia a dia. [...] A miscigenação foi, assim, ao mesmo tempo, um canal de aproximação e uma forma de dominação, um espaço de amaciamento e um território de enrijecimento do sistem a” (NOVAIS. Condições da privacidade na colônia, p. 22-28). Tudo isso devido à qualidade da vida privada (intimidade) e à sexualidade pluriétnica na vida colonial brasilica. Ronaldo Vainfas prossegue: “Sexo pluriétnico, escravidão, concubinato, eis um tripé fundamental das relações sexuais na Colônia [...]. Era, pois, em meio às deleitações de portugueses e índias, senhores e escravas, padres e suas mucamas que se ia processando a miscigenação e o povoamento na Colônia [brasilica]” (VAINFAS. M oralidades..., p. 236238). Para mais, veja nota 34. ^AZEVEDO. A cultura brasileira, p. 45. 5 Ibidem. p. 207. HOLANDA. Raízes do Brasil, p. 146. Notável semelhança com as letras de Ribeiro Couto, precursoras da “teoria do homem cordial”: “Nossa América, a meu ver, está dando ao mundo isto - o Homem Cordial” (Couto apud Bezerra, Ribeiro Couto e ..., p. 29). EIvia Bezerra diz-nos: “Se há, na concepção dos dois, alguma coincidência no que diz respeito a um ‘fundo emotivo extremamente rico e transbordante’ que caracteriza o homem cordial, o poeta [R. C.] destaca nesse homem o ‘espírito hospitaleiro e a tendência á credulidade’, enquanto o historiador [S. B. H.] analisa a natureza do ‘fundo emotivo’ que dá origem ao tipo de cordialidade brasileira, afirmando que ‘a inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração, procedem da esfera do íntimo, do familiar, do privado’” (Ibidem. p. 32). A definição do “homem cordial” de Ribeiro Couto segundo EIvia Bezerra, aproxima-se do “caxias”, o “otário” sempre do “m alandro”, conforme Roberto DaMatta (ver nota 35). Isso mostranos a fiuidez da noção de cordialidade no Brasil. A cordialidade é tam bém estudada por Gilberto Freyre, Cassiano Ricardo, Castro Rocha, Amado Cervo.


de Fernando de Azevedo, pode ser aquele em quem há o predomínio “do afetivo, do irracional e do místico que se infiltra por todo ser espiritual, [...] e dando-lhe à inteligência um aspecto essencialmente emocional e carregado de imaginação”^. Para Sérgio Buarque de Holanda: “A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, [...] um traço típico definido do caráter brasileiro, [...] são antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”^ Fernando Novais cuida da “clivagem intransponível entre as gentes”, para dizer da “criação de zonas intermediárias ou momentos de aproximação” entre as camadas sociais do público e privado. E diz mais: “ Diversidade, fiuidez, dispersão, aparecem então como categorias intermediárias que enquadram as manifestações do privado e do cotidiano, modelandolhe 0 perfil”®. Uma “grande mobilidade” cuja vida colonial brasileira esbanjava condição favorável á gênese do caráter cordial na formação cultural do povo brasileiro. A atividade do pathos desta cordialidade, um “viver nos outros”, pode ser mais um encontrar-se com o “O utro” no fluxo vital da confluência cultural. Alfredo Bosi adianta-nos: “Estamos acostumados a falar em cultura brasileira, assim, no singular, como se existisse uma unidade prévia que aglutinasse todas as manifestações materiais e espirituais do povo brasileiro”^. As culturas brasileiras entrechocam-se, uma nas outras assimilam-se, sedimentando o caráter cordial do “brasileiro”. Apesar de sua rica interculturalidade, é-nos dito sobre a inexistência de “tradições intellectuaes”. Com a palavra, Sylvio Romero: “Na historia do desenvolvimento espiritual no Brasil há uma lacuna a considerar: a falta de seriação

^AZEVEDO. Op. cit. p. 211. * HOLANDA. Op. cit. p. 146-147. Com sentimentos não unfanistas, Fernando de Azevedo: “De todos os traços distintivos do brasileiro, talvez um dos mais gerais e constantes, que constitui a sua fôrça e a sua fraqueza a um tempo, o mais atraente e comunicativo, e o que mais destaca, nos primeiros contatos, e mais se acentua, no convívio, é, pois, a sua bondade que parece brotar da alma do povo, do seu tem peram ento natural. A sensibilidade ao sofrimento alheio, a facilidade em esquecer e em perdoar as ofensas recebidas, a um certo pudor em manifestar os seus egoismos, a ausência de qualquer orgulho de raça, a repugnância pelas soluções radicais, a tolerância, a hospitalidade, a largueza e a generosidade no acolhimento, são outras tantas manifestações dêsse elemento afetivo, tão fortemente marcado no caráter nacional” (AZEVEDO. Op. cit. p. 214). Ver nota 7. ^ NOVAIS. Op. cit. p. 26-27 “ BOSl. Dialética da colonização, p. 308. Alfredo Bosi empreende um registro analítico das culturas brasileiras. Para ele, teríamos: “Cultura universitária, cultura criadora extra-universitária, indústria cultural e cultura popular. Do ponto de vista do sistema capitalista tecnoburocrático, um arranjo possível é colocar do lado das instituições a Universidade e os meios de comunicação de massa; e situar fora das instituições a cultura criadora e a cultura popular” (Ibidem. p. 309).


nas ideias, a ausência de uma genetica [sic]”“ . Perguntamo-nos: Se formou-se a cordialidade no caráter brasileiro, qual a condição espiritual favorável para que se expresse também o daimon desse “homem cordial”? - Apresentação de uma história brasileira dos problemas filosóficos, invenção de uma tradição, um modo de (vida) enfrentar a existência?. Sylvio Romero favorece-nos ao considerar Tobias Barreto avis rara odiada por “alguma cousa de forte e original”: “grande patriota”, “reactor”, “propagandista”, “monarchista theorico”, “nobre

individualidade”. Enquanto

enaltece o “nosso philosopho”, é uma constante a “philosophia no Brasil”. Para Roberto Gomes, é de 2° grau: “ Há filosofia no Brasil porque ela aqui se encontra entrenós, manifestando sua presença. [...] Isso não esgota a problemática a respeito de uma filosofia brasileira”^^. É aquela “velha questão”: filosofia do Brasil, filosofia no Brasil, filosofia brasileira? - Sem muito esforço, lembramos das declarações dos filósofos sobre as supostas condições desfavoráveis á filosofia na região tropical. Contudo, lembramos também das favoráveis. Apesar disso, não foi ã toa o aparecimento dessa “velha questão” e, isto hoje já nos diz muito. A significação do termo filosofia do Brasil indica uma historiografia filosófica brasileira, intimamente ligada ao termo filosofia no Brasil. Este indica entre-nós um estudo sério e presente de temáticas filosóficas; quando muito uma novidade. Entre essas duas modalidades filosóficas há diferença, mas pouca. Já 0 termo filosofia brasileira denota a originalidade do streap-tease cultural. Isto é para

Roberto Gomes: “ Dar forma e consistência a este tempo e apresentar uma revisão crítica das questões de sua época, aí tendo origem. O pensamento é superior não por ser situado, mas por situar-se”^^ Brincamos de despir-se para vemos a maioria dos seduzidos por a “velha questão” no máximo situada sem situar-se no próprio domínio intelectual - “Uma Filosofia brasileira só terá condições de originalidade e existência quando se descobrir no Brasil”, secunda Roberto Gomes. E segue dizendo que a

“ ROMERO. A philosophia no Brasil, p. 35. GOMES. Critica da razão tupiniquim , p. 56-57. Continua: “Confundir autores entre-nós com Filosofia nossa; buscar dissolver a oposição entre o isolamento e o alheamento; negar que tenham os capacidade de pensar por conta própria; projetar nossa falta de pensam ento numa possível insuficiência da língua portuguesa. Nada disso diz respeito à essência possível de um pensar brasileiro: são, ao contrário, tantos outros sinais de nosso esquecimento. D estruir esses equívocos é a condição indispensável da possibilidade de um juízo filosófico brasileiro” (Ibidem. p. 68). « Ibidem. p. 21.


Filosofia precisa “estar no Brasil para poder ser brasileira. [...] Desde sempre nosso pensar tem sido estranho, providenciado no estrangeiro”^"^. À “intuição do original” é preciso levar a sério o streap-tease cultural. Urge o “brasileiro” despir(-se em) sua “cultura” para encontrar o Outro de si e ver, no “avesso do estranho e do novo”, o Outro do Outro de si. Silvio Gallo mostra-nos duas posições assumidas no Brasil: “a) A de que existe uma filosofia genuinamente brasileira; b) a de que existe apenas uma divulgação das ideias filosóficas entre nós, sem que, entretanto, haja uma filosofia de fato nativa”^^ A primeira fala “das múltiplas perspectivas que têm os brasileiros dos sentidos” e a segunda sistematiza o “humano em geral, buscando a universalização dos sentidos”. Se a última busca o universal Sentido dos sentidos, a primeira diz do “enraizamento espacial e temporal”, pelo qual se logra atingir este Sentido válido para todos os homens de todas as épocas. Desse modo, uma filosofia brasileira não inviabiliza uma Filosofia dita universal, mas esta expande aquela. Para Antonio Paim: “Toda a filosofia nacional autêntica, isto é, conscientemente estruturada em torno de determinados problemas, por isto mesmo é autenticamente universal”^®. Sendo a “cultura brasileira” em sua confluência um entrechoque cultural, e realizando seu streap-tease, encontramos inúmeros sentidos que dizem da presença do Outro no “brasileiro” e, vice-versa. Vários trajes culturais em apenas um “estilo” cujas perspectivas dos sentidos são despidas - Uma temática em cada problemática.

Ibidem. p. 23. GALLO. Modernismo e filosofia: o caso Oswald, p. 91. “ PAIM. As filosofias nacionais, p. 18-19. Complemento: “A relação entre as filosofias nacionais não pode, portanto, ser a do estabelecimento de subordinações hierárquicas, mas da busca de um diálogo verdadeiro”. Devido à peculiaridade da “cultura brasileira”, é possível haver outras preferências e problemáticas; todas com possibilidades universais. Leiamos Roberto DaMatta: “Dir-se-ia que o primeiro ‘brasil’ é dado nas possibilidades hum anas, mas que o segundo ‘Brasil’ é feito de uma combinação especial dessas possibilidades universais. O mistério da escolha é imenso, mas a relação é importante. Porque ela define um estilo, um modo de ser, um ‘jeito’ de existir que, não obstante estar fundado em coisas universais, é exclusivamente brasileiro. [...] É precisamente aqui, nessa zona intermediária, mas necessária, que nascem as diferenças e, nelas, os estilos, os modos de ser, os ‘jeitos’ de cada qual. [...] No fundo, essa questão do relacionamento dos universais de qualquer sistemas com um sistema específico é das mais apaixonantes de quantas existem no panoram a das Ciências H um anas” (DaMatta. O que faz brasil. Brasil?, p. 12-13). Não nos aventuramos no “problema dos universais”, quando muito exploramos a zona intermediária entre os universais, que são necessários, e os particulares, contingentes, enquanto nos balançamos em-nossa-querida-rede.


Novamente Antonio Paim: “Afilosofia brasileira dá preferência a questão do homem”^^, distinguindo-se de outras filosofias nacionais pelo tipo de interesse e interpretação. E assim como todos os problemas filosóficos não possuem Verdade, pois históricos, a problemática brasileira deve já possuir algumas “tradições intellectuaes”^^ Pensar significações para a concepção de “hom em” e(m) “cultura”, caracteriza uma filosofia brasileira a partir de determinadas origens e, no interior de uma historiografia filosófica brasileira, em diálogo com alguma tradição. Há também um plano de fundo pelo modo de (vida) enfrentamento da existência, dando vazão às paixões e perspectivas próprias dos “brasileiros”. Uma filosofia brasileira levada a sério portanto pode não apenas existir, como ser considerada uma Filosofia dita universal. Pois ao pensar o “homem cordial” outra Filosofia não seria essa que comunica um Sentido válido para todos os homens de todos épocas. II Perguntamo-nos: Se há filosofia brasileira, qual se vale como Filosofia? Duas questões dobradas em uma. Primeira. Uma problemática própria do brasileiro: o “homem”. Precisamente, o “homem cordial” e(m) sua cultura. Segunda. O critério de universalidade da filosofia: o Sentido dessa problemática. Uma zona intermediária entre uma problemática nacional e sua validade universal. Plano no qual caracterizaremos um tipo “homem cordial”, na Antropofagia oswaldiana, em sua relação com a moral, 0 sexo e o trabalho. Estas três vias acessam a utópica trajetória dialética Matriarcado-

Patriarcado da história cultural do Ocidente, enquanto “formulação essencial do homem como problema e como realidade”, alcançando sua “tríplice base” (Estado,

PAIM. Op. cit. p. 16. Tomamos como exemplo o próprio Tobias Barreto, estudado por Sylvio Romero (ref.: nota 11). José Maurício de Carvalho fala sobre o culturalismo brasileiro: “A maneira como pensamos a Filosofia amadureceu no diálogo com alguns pensadores brasileiros. Queremos lembrar Miguel Reale (nascido em 1910) e Djacir Menezes (1907-1966), herdeiros do legado culturalista de Tobias Barreto (1839-1889). [...] O culturalismo incorporou a tarefa de pensar a existência e o significado do sentido de uma vida singular na cultura” (CARVALHO. Entrevistas). Atualmente, há diversas obras sobre o tema daquela “velha questão. Para Luiz Alberto Cerqueira, esse amadurecimento tem um fundador: “Gonçalves Magalhães é o primeiro brasileiro a assum ir atitude teórica em face da filosofia moderna e a partir do aristotelismo constituinte de sua própria tradição filosófica. [...] O fato que marca o nascimento da filosofia brasileira no século XIX é a introdução da liberdade como princípio de ação. Cabe a Magalhães esse m érito” (CERQUEIRA. Filosofia brasileira ..., p. 114-138). Mérito devido a uma mudança de princípio cuja consolidação deu-se com Tobias Barreto. Confira, de Antonio Paim, Afilosofia brasileira contemporânea.


propriedade, parentesco). O núcleo vital dessa utópica trajetória é a “operação metafísica” da totemização: a “transformação do tabu em totem ”. Isto é para Oswald de Andrade: “Do valor oposto, ao valor favorável. [...] Que é o tabu senão o intocável, o limite?”!®. A “tríplice base” do Matriarcado: “governo da mulher”, ao mesmo tempo uma “ausência de Estado”, “propriedade comum do solo” e “filho de direito m aterno”, quer dizer, um filho (social) de todas as mulheres e sem pai^°. E a do Patriarcado: “governo do homem”, com “Estado de classes”, “propriedade privada” e “filho de direito paterno” (pai, esposo, filho). O índio antropófago (brasileiro) simboliza o “homem primitivo” do Matriarcado (freudiano), sem aquele pathos rousseauneano^^: “tese - o homem natural”. “ Sem culpa de origem e sem necessidade alguma de redenção ou castigo”^^, sua cultura (antropofágica) matriarcal não conhece o casamento (monogamia), porque “poli” - “a promiscuidade originária é um fato”^l Em acordo: “O Matriarcado precedeu ao Patriarcado em toda a terra”^^ O segundo irrompe do primeiro, moralizando-o. Para Oswald de Andrade, “a ruptura histórica com o mundo matriarcal produziu-se quando o homem deixou de devorar o homem para fazê-lo seu escravo”^^ E a totemização surgiu como “fenômeno de ocaso”: “antítese - o homem civilizado”. Em sua cultura (messiânica) patriarcal ocorre a divisão de trabalho, a técnica e o sacerdócio. Contra este “ócio sagrado”, o nec otium (negócio): a “imoralidade fecunda” da “força terrena da revolução industrial”. O ideal comum do “homem civilizado” é “a aposentadoria, a metafísica do ócio”^'’, o “Ócio puro”. Mas “no mundo supertecnizado”, reitera Oswald de Andrade, “quando caírem as barreiras do Patriarcado, o homem

ANDRADE. A crise da filosofia messiânica, p. 139. Confira, de Platão, A república, e, de Nietzsche, 111 Consideração extemporânea: Schopenhauer como educador. Confira, de Freud, Totem e tabu, e, de Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundam entos da desigualdade entre os homens. 22ANDRADE. A marcha das utopias, V lll, p. 278. Idem. A crise ..., p. 149. Para a cultura patriarcal, poligâmica que derivada em poliamor é tida como infâmia. Talvez isso não referencie exatamente aquilo o que Oswald de Andrade vislumbrou na cultura m atriarcal, mas melhor aproxima-se daquilo que compreendemos. Ver nota 34. Para mais: h ttp :// polvportugal.blogspot.com.br/: http://w w w .poliam or.pt/. 2"* Idem. Variações sobre o M atriarcado, p. 302. 25 Idem. A c rise ..., p. 143. 2<5Ibidem. p. 145.


poderá cevar sua preguiça inata, mãe da fantasia, da invenção e do am or”^^ Parece não tardar a totemização com a “crise do Sacerdócio” e a “crise do parentesco”: “síntese - o homem natural tecnizado”. Sua “conquista do ócio”, pelo uso da técnica, é a “restituição de si mesmo” na “síntese da técnica que é a civilização e da vida natural que é a cultura, o seu instinto lúdico”^^ O “homem natural tecnizado” é quem vive o otium cum dignitate na W eltanschauung matriarcal, gozando com o modo de vida e a visão de mundo de sua “antropofagia ritual”. Consideração: “A periculosidade do mundo, a convicção da ausência de qualquer socorro supraterreno, produz o ‘Homem cordial’, que é o primitivo, bem como as suas derivações no Brasil”^®. O “homem cordial” surge não na “cultura matriarcal do mundo sem Deus”, mas durante a totemização na “crise do Patriarcado” para a chegada do “novo Matriarcado”; na transvaloração do “homem civilizado” ao “homem natural tecnizado”. A “transformação do tabu em totem ” dá-se por vários viéses dentro da sociedade patriarcal, em referência à sua “tríplice base” que relacionamos com a moral, o sexo e o trabalho. Por esta relação, derivamos o “homem cordial” em formas subjetivas oriundas de arquétipos (literários), traçando alguns elementos comuns. Devido á sua universalidade de impacto, valida-se um Sentido às formas subjetivas do “homem cordial” caracterizando seu aspecto antropofágico. Vejamos: Primeiro. O “homem cordial” tem dentro de si o duplo aspecto moral “agressividade-cordialidade”^°. Em um “mundo sem Deus”, o paganismo tupi é o enredo mítico da totemização social ã cultura matriarcal fluindo na “imanência do perigo”. Não está tão longe do que compreendemos do “espírito livre” de Nietzsche. Como figura paradigmática, o tipo espírito livre é aquele “homem” de nobreza espiritual cuja moral, baseada no grau de sofrimento suportado, está em conflito com a moral

27lbidem. p. 145-146. Ibidem. p. 146. Confira, de Bertrand R ussellePaul Lafargue, A economia do ócio, e, de Domenico de Masi, O ócio criativo. Idem. Um aspecto antropofágico..., p. 219. No plano econômico, Manuel Soares Bulcão Neto: “Aética capitalista [...] pressupõe a total subimissão do homem a um Absoluto, in casu, devoção absoluta ao totem-dinheiro. [...] Todas as coisas têm um valor monetário (o dinheiro é o equivalente universal, algo a qual tudo é redutível) e é esse valor que as consagra, que as sacraliza. Tudo mais é profano” (BULCÃO. O anti-hum anism o..., p. 73). Defrontamonos com a totemização da economia (capitalista) patriarcal. Na transição ao “governo da m ulher”, todas as leis do organismo psicossocial e político-econômico são abaladas.


do tipo homem de rebanho. Fala Nietzsche: “Acrescento de imediato que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem também tentativas de mediação entre as duas morais”^^ Ao “espírito livre” nietzscheano, “‘bom’ e ‘ruim ’ significa tanto quanto ‘nobre’ e ‘desprezível’”. Ao “homem cordial” há “avessão” e “inimizade” ao resto do mundo e, “am or” e “auxílio” aosmem bros do próprio clã (comunidade). Ambos verossímeis. A função do “espírito livre” na civilização ocidental, por correspondência axiológica e semântica, diz da mesma do “homem cordial” na totemização social. Temos uma das formas subjetivas do “homem cordial”: o tipo espírito livre. Segundo. Como a cultura matriarcal em relação ao sexo é “poli”, o filho (social) de direito materno relaciona-se natural e livremente também com as mulheres de sua comunidade - seja nas relações incestuosas indígenas ou na extrapolação prática sexual pluriétnica. Durante a “crise de parentesco” (pai, esposo, filho), pelo qual o casamento preserva a instituição e transmite a propriedade, o “homem cordial” é uma afronta ã “organização institucionalizada de Eros”. Considerado um mito, a figura arquetípica de Don Juan, “símbolo duma erupção anti-social” ou “encarnação do princípio erótico não reprimido”, é um “sedutor” (persuasor ou involuntário) e, incorpora o “homem cordial” na totemização do sexo”^^. Apresenta Margarida Losa: “Don Juan é um homem num mundo dominado por homens (homens proprietários). [...] Em qualquer dos casos [literários] o que permanece é a sua qualidade de, inter hominem, constituir uma ameaça ao patriarcado”^l Representando uma “força” (erótica), o tipo Don Juan assume outra das formas subjetivas do “homem cordial”. Terceiro. Modo de vida, o “homem cordial” aproxima-se do modelo

NIETZSCHE. Além do bem e do mal, 260, p. 155. Para mais. Genealogia da moral: uma polêmica. O arquétipo literário Don Juan possui outros equivalentes: Don Giovanni. Casanova, o alter ego em carne e osso de Don Juan. Entre tantos. Franco Cuomo: “Dongiovanni è un seduttore, Casanova un sedotto. Entrambi a vita. [...] Ideologia e storia, al di là dei numeri, dividono irrimediabilmente questi due opposti (ed estremi) modelli di seduzione” (CUOMO. Elogio dei libertino, p. 11-12). ” LOSA. Don Juan: ameaça do patriarcado, p. 19. Sendo o “am or” uma construção social, diz-nos Regina Navarro: “Os modelos tradicionais de am or e sexo não estão dando mais respostas satisfatórias e isso abre um espaço para cada um escolher sua forma de viver. [...] É provável que o modelo de casamento que conhecemos seja radicalmente modificado. A cobrança de exclusividade sexual deve deixar de existir. Acredito que, daqui a algumas décadas, menos pessoas estarão dispostas a se fechar numa relação a dois e se tornará comum ter relações estáveis com várias pessoas ao mesmo tempo, escolhendo-as pelas afinidades. A ideia de que um parceiro único deva satisfazer todos os aspectos da vida pode vir a se tornar coisa do passado” (NAVARRO. Entrevista). Ver nota 24.


prototípico do malandro. Fala Roberto DaMatta: “O malandro é um ser deslocado das regras formais, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás definido por nós como totalmente avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de falar, andar e vestir-se”^"^. Um tipo malandro é Pedro Malasartes. Aos mais íntimos, o famoso Mala. Suas artim anhas confundem-se com o típico “jeitinho” brasileiro. Continua Roberto DaMatta: “É, como Macunaíma, um relativizador das leis, regulamentos, códigos e moralidades que sufocam o indivíduo sem berço no jugo do trabalho e servem para perpetuar as injustiças sociais”^^ Esse burlador do pão suado, vive em várias personas, como dândi e os vitelloni^®. Sua “conquista do ócio” vai pelo “jeitinho” malandro. Chega Roberto Gomes: “O jeito é, portanto, uma maneira marota de desrespeitar a extrema formalidade em respeito a valores maiores”^^. Àtotem ização do trabalho, diz Oswald de Andrade: ”dialeticamente através do negócio, estímulo dorsal da técnica que 0 homem poderia concretamente aspirar ao seu contrário, o ócio, e, enfim, conquistá-

lo”^^ Mala, 0 “homem cordial” tem o “ócio de selva” como impulso vital na dialética do ócio. Travestindo o “valor oposto” do “ócio de classe” em “valor favorável”, Malasartes, 0 malandro veste mais uma das formas subjetivas do “homem cordial”.

Resumo da derivação: Na síntese das formas subjetivas (espírito livre, Don Juan, malandro), ocorridas na totemização moral, sexual e trabalhista, os sentidos do “homem cordial” universalizam-se. A Antropofagia, genuinamente brasileira, faz seu streap-tease cultural numa problemática brasileira (o “homem”) e alcança o píncaro filosófico ao encontrar-se consigo mesma (pelo Outro de si) no Outro do Outro de si, desde suas origens - a devoração de si equilibra-se com a devoração do “O utro”. O encontro é devoração e a derivação antropofágica. Cada forma subjetiva do “homem cordial” é um “O utro”, devorado e assimilado. Sua cordialidade, “sinal remanescente

DaM atta. Carnavais, m alandros e herois, p. 263. Complemento: “Sabemos que os herois dos carnavais, isto é, os tipos que denunciam aquele período como ‘carnavalesco’ são os marginais de todos os tipos. [...] Se quisermos reunir todos esses tipos numa só categoria social, sabemos que todos eles são m alandros” (Ibidem. p. 263). Para algo mais, ver nota 7. 35 Ibidem. p. 276. Também, um bon vivant. A íntima aproximação com Don Juan sugere alguma relação entre a malandragem e a sedução. Sobre dândi, há diversas obras. Sobre os vitelloni, confira, de Fellini, Os boasvidas. GOMES. Op. cit. p. 44. 3*ANDRADE, O. A marcha ..., Vlll, p. 282. Complemento: “O Brasil foi apenas a profecia e o horizonte utópico do ócio. Mas o foi esplendidam ente”.


da cultura m atriarcal”, é antropofágica. - Devoração da moral, devoração do sexo, devoração do trabalho. Sendo tudo arrolado até agora, para uma Filosofia antropofágica, um homem cordial antropófago. O Sentido e o caráter deste antropófago cordial da Filosofia oswaldiana, podem apresentar-se em outra figura paradigmática presente na literatura brasileira. III “O século literário começa para nós com o Modernismo”^®, acentua Antonio Cândido. E mais: “As nossas deficiências, supostas ou reais, são superinterpretadas como superioridades. [...] O primitivismo é agora fonte de beleza e não mais empecilho à elaboração da cultura”"^®. Mário de Andrade, em Macunaima (ano 374), desnuda “como a cada valor aceito na tradição acadêmica e oficial correspondia, na tradição popular, um valor recalcado que precisava adquirir estado de literatura”'^^ Para Alfredo Bosi, suas motivações são “por um lado, o desejo de contar e cantar episódios em torno de uma figura [...] que trazia em si os atributos do herói. [...] Por outro lado, o desejo não menos imperioso de pensar o povo brasileiro, nossa gente”"^^. “Seria a mais alta expressão” da poesia Pau Brasil e da Antropofagia, devido ã sua “atitude de devoração em face dos valores europeus, e a manifestação de um lirismo telúrico, ao mesmo tempo crítico, mergulhado no inconsciente individual e coletivo”"^^. Essa atitude de devoração vem do “modo de formar rapsódico, mas semelhante ao da bricolagem, pois recolhe, transforma, desloca a função de materiais diversos”"^^ Em Macunaima “coabitam no corpo narrativo os dois valores: O moderno da perspectiva crítica e o arcaico da composição rapsódica”"^^ A interculturalidade do “brasileiro” é condizente ã intertextualidade de Macunaima. Entre uma “brincadeira” e um “ai! Que preguiça”, eis Macunaima imperador. “Filho do medo da noite” e nascido no “fundo do mato-virgem”, perde os amigos, mas não perde a piada, nem uma aventura (amorosa) - até os manos Maanape e Jiguê

CÂNDIDO. Op. cit. p. 120. Ibidem. p. 127. « Ibidem. p. 127-128. ''^BOSl. Céu, inferno ... p. 187-188. « CÂNDIDO. Op. cit. p. 130. LOPEZ. M acunaim aM arapiara ou ... p. 14. BOSl. Céu, inferno ,, p. 197.


“verificaram que Macunaíma era muito safado e sem caráter”"^®.Igual “filósofo”, passou “mais de seis anos não falando” e, sempre “botando a mão na graça” das mulheres, vive uma “vida de rede”. Um picaresco anti-heroi de romance de tipo marginal que, ainda por cima, tem as mesmas qualidades do homem cordial antropófago. No auge do streap-tease deste antropófago cordial, Macunaíma simboliza (na literatura) a formação do povo brasileiro. Mesmo “heroi sem caráter”, Macunaíma é “heroi de nossa gente” - porque se sutiliza na zona intermediária da moral (patriarcal) vigente e, é “obra central” do movimento modernista assimilando suas “diversas tendências”. Segundo Alfredo Bosi, “não há em Macunaíma a contemplação serena de uma síntese. Ao contrário, o autor se insiste no modo de ser incoerente e descontraído desse ‘caráter’ que, de tão plural, resulta em ser ‘nenhum ’”'^^ Como “marginália”, sua rapsódia constitui-se matriz ao processo criativo. Na “imanência do perigo”, Macunaíma devora, mas também é devorado. Roberto Gomes diz que Oswald de Andrade, vicejando a Antropofagia do modernismo brasileiro, “representou um momento de devastadora destruição e, portanto, de máxima criação”'^^ E confirmamos. Vimos pela derivação do “homem cordial” significações de seu aspecto antropofágico. Devido á assimilação de novas formas subjetivas na relação de enfrentamento da “tríplice base” da cultura patriarcal, o “homem cordial” pela devoração plasma-se em personagens arquetípicos incorporando em si seus impulsos vitais. Quando essas formas combinam-se entre si, temos a chance de compreender qual o comportamento psicossocial do (homem) antropófago cordial. Na W eltanschauung matriarcal, o “homem cordial” é a ruptura com a cultura patriarcal para formar o modo de viver e pensar do “homem natural tecnizado” e(m) sua cultura. O caráter desse “homem cordial” é ruptura devido á totemização, tal como o tipo espírito livre, o mítico Don Juan e o típico malandro tensionam o mundo da cultura patriarcal. Sua cordialidade é própria de seu caráter (brasileiro) que é também pathos no “homem natural tecnizado”. Inclusive, é essa cordialidade o impulso vital, o pathos (ativo) que impulsiona a totemização, a devoração e compõe o aspecto antropofágico desse “homem”. Sendo assim, o “homem cordial” equivale-se ao Macunaíma,

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ANDRADE, M. Macunaíma, p. 171. BOSl. Céu, inferno ..., p. 200-201. GOMES. Op. cit. p. 30.


enquanto ruptura, e ao antropófago cordial, enquanto “homem natural tecnizado”, ao comporem juntos essa narrativa. A perspectiva oscila conforme a referência, todavia permanece o pathos cordial. O que diz da problemática brasileira do “homem” que pela rica confluência de entrechoques culturais, mas não só, eleva-se ao pensamento filosófico atingindo um Sentido universal com um “homem cordial” e um “heroi sem caráter” - originalmente brasileiros. Com Macunaima, a literatura modernista finca os pés no Brasil, ergue o corpo e fala para todos os homens de todas as épocas. Com o “homem cordial” a Filosofia antropofágica volta aos primórdios, recria toda a história ocidental e apresenta um tipo cordialidade para todos os homens de todas as épocas - damos ao mundo o antropófago cordial. A peculiaridade desse tipo cordialidade da Antropofagia é não andar muito com os outros tipos (ver nota 7), mas estar próximo do tipo buarqueana - os dois sabem ser cordiais, mas qual sabe ser feroz? - Perguntamos a eles o que os unem. Juntos e de mãos dadas, respondem uníssonos: A cordialidade é o contrário da polidez do “homem civilizado”; é a “forma natural e viva” das manifestações do “sentimento do outro” no “brasileiro”. Polidez como “organização de defesa ante a sociedade” e, cordialidade como “uma verdadeira libertação do pavor que ele [o “homem cordial”] tem em viver consigo mesmo. [...] Ela é antes um viver nos outros”"^®.Com o “horror às distâncias”, encaram-se e a agressividade começa. Para Sérgio Buarque de Holanda, os “valores cordiais” estão associados a “outros aspectos típicos do nosso comportamento social”. Ao invés do “decisivo triunfo do espírito sobre a vida” do “homem civilizado” (polidez), “a vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social”^®. Antes um “viver nos outros”, devido ao pavor de si, a força vital do cordial buarqueano é negativa. Ele precisa viajar para viver - “é livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente

HOLANDA. Op. cit. p. 147. Fala Oswald: “Os modernos estudos de sociologia, de etnologia e de história primitiva confirmam esse ponto de vista de Sérgio Buarque de Holanda” (ANDRADE, O. Um aspecto antropofágico ..., p. 218). Sobre polidez, há diversas obras, mas gostamos das dos moralistas franceses (e alguns espanhóis). “ HOLANDA. Op. cit. p. 151.


sem maiores dificuldades”^^ Ainda que o tipo cordialidade buarqueana aceite a inimizade tanto quanto a amizade como cordiais, pois ambas nascem do íntimo do coração, o cordial oswaldiano, aquele antropófago cordial, tem dentro de si a própria oposição agressividade-cordialidade. Para Oswald de Andrade, ele “compreende a vida como devoração e a simboliza no rito antropofágico, que é a comunhão”^^. Na vida há a “imanência do perigo” e esse antropófago cordial precisa devorar o “O utro” para não ser o devorado, e viver. Sua força vital é afirmativa no “viver nos outros”, em devoração no encontro com o “O utro”. O cordial buarqueano, ainda que “livre”, é devorado e incorporado dialeticamente em apenas ao que é comum em um único tipo, o antropófago cordial. Eis a “antropofagia ritual”, com seu rito antropofágico, que “dá a ideia de exprimir um modo de pensar, uma visão de mundo, que caracterizou certa fase primitiva de toda a humanidade”^^ E todos comungam-se, devoram-se uns aos outros; em uma singular “solidariedade social que se define em alteridade”^"^ (filosófica?). Mutatis mutandis - “A alteridade é no Brasil um dos sinais remanescentes da cultura matriarcal”^^ Essa alteridade antropofágica quer aos seus: “nós, nosso, os bons”. A alteridade do pathos cordial, propulsionada pelo “instinto de aproximação” inerente ao “viver nos outros”, diz o mesmo que o solidarismo indicado por Câmara Cascudo. Intimamente a esse solidarismo é “o sentimento do ‘nacional’ ante o ‘estrangeiro’. Nós, os bons. Vós, os maus. [...] É um critério inconsciente de autovalorização. Estende-se, naturalmente, ao plano sentimental”^® - Kurá, talqualmente o duplo aspecto moral do antropófago cordial em uma ética de fundo emotivo. O impulso vital desse “instinto de aproximação” compõe o pathos cordial associado ã alteridade ou ao solidarismo do homem antropófago em seu “viver nos outros” em comunhão. Uma comunhão antropofágica relativa ao empreendimento do grau de resiliência e assimilação. Assim compreendemos a cordialidade do caráter brasileiro pela perspectiva antropofágica da Filosofia oswaldiana. Ela diz do aspecto antropofágico do “homem cordial” que por extensão diz também do “brasileiro”.

Ibidem. p. 151. ANDRADE. O. U m aspecto antropofágico ..., p. 219. ” Idem. A crise da filosofia ..., p. 138. Idem. U m aspecto antropofágico ..., p. 219. Ibidem. p. 216. “ CASCUDO. Civilização e cultura, p. 205-206.


Precisamente, o tipo homem antropófago (cordial). Genericamente, o tipo homem brasileiro. Nessa Filosofia, o (homem) antropófago cordial possui um caráter singular que 0 diferencia dos demais tipos de “homem cordial”. Símbolo da Filosofia oswaldiana, 0 antropófago cordial é o agente da história cultural do Ocidente. E também personagem

principal do streap-tease cultural para uma filosofia brasileira. Ainda em frente àquele mesmo horizonte da W eltanschauung antropofágica, acordamos com todos, quando de um visão enformamos o pathos cordial do homem antropófago da Filosofia oswaldiana - aquele “viver nos outros”, o encontrar-se com 0 “O utro” em devoração na confluência cultural. O encontro é fatal na comunhão pela

devoração do “O utro” que é em última instância devoração de si. Devorar o “O utro”, o rompimento do limite e o toque no intocável, a (res)sacralização do profano diz também do enfrentamento da existência que morde de volta sem tormento a própria morsus conscientiae que impede o streap-tease cultural. Sinal de fumaça! - Vislumbramos: Se o “homem cordial” valida um Sentido universal em uma concepção filosófica ao mesmo tempo que possui o pathos inerente ao caráter do “brasileiro”, então seria autêntica uma filosofia brasileira compreendida na perspectiva do modo de vida cordial do “brasileiro” no qual ela é ao mesmo tempo meio e expressão. A Antropofagia oswaldiana ao ser meio e expressão de uma maneira de viver comum ao “brasileiro” e(m) sua “cultura”, conforme vemos até agora, adquire a conotação não ideológica de filosofia brasileira e 0 valor universal da Filosofia. Filosofia antropofágica como W eltanschauung.

Compreendemos: Se o “homem cordial” é o impulso vital da totemização e esta 0 processo instaurador do valor favorável, na comunhão ocorre, pela dialética cordial do

encontro com o “O utro”, a “transvaloração dos valores” patriarcais para os matriarcais. Na comunhão da antropofagia ritual dá-se a transvaloração dialeticamente. A dialética cordial - o encontro com o Outro de si em sua própria cultura e na estrangeira, e o encontro com o Outro do Outro de si: a devoração de si. A transvaloração totêmica - a incorporação em si de novas perspectivas com os valores indicativos do “O utro” e(m) sua “cultura”. A “imanência do perigo” - a cordialidade antropofágica intensificada que seleciona seu interesse na cultura e nos valores do “O utro”. Com o methodos em-nossaquerida-rede, nosso experimento de uma concepção de “vida na praia” constata toda essa periculosidade do mundo. A Filosofia volta ao “medo ancestral”. A Antropofagia é cultural e ao “homem cordial” com sua filosofia brasileira - a vida, tudo é devoração.


Se fui senhor Da própria vida, Agora 0 sou Da minha morte. — Será assim Que partem os fortes? A arte do conceito. Manuel Soares Bulcão Neto

(Salve nosso) Icarai - CE; agosto, 2014.


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A RECEPÇÃO DA ANTROPOFAGIA NA ARTE RRA8ILEIRA CONTEMPORÂNEA IRINA HIEBERT GRUN - Doutoranda pela Universidade de Trier (Alemaniia).

Resum o: Na arte visual contem porânea brasileira há, em diferentes aspectos, uma referência ao conceito da antropofagia de Oswald de A ndrade. Este artigo consiste num a análise com parativa de obras contem porâneas de Ricardo Basbaum , Anna Maria Maiolino, Cildo Meireles, Ernesto Neto e A driana Varejão, que dem onstrará como a influência da A ntropofagia se m anifesta nas obras contem porâneas desses artistas e como eles desenvolvem e atualizam o program a oswaldiano de m aneira diferenciada. Neste sentido, é necessário constatar que a antropofagia não deve ser vista como uma narrativa cultural, geralm ente inscrita á arte brasileira, m as sim que seus artistas contem porâneos se referem explicitam ente ao conceito de Oswald de A ndrade, aplicando-o como uma estratégia cultural. Palavras-chave: A n tro p o fag ia, O sw ald de A n d rad e, a rte c o n te m p o râ n e a , R icardo B asb au m , A nna M aria M aiolino, Cildo M eireles, E rn e sto N eto e A d rian a V arejão.


A antropofagia de Oswald de Andrade^ Um imaginário sobre o canibalismo, referente à prática de comer carne humana por humanos, já era existente na Europa durante a antiguidade e idade média. Neste contexto, a acusação de canibalismo se revela como um estereótipo, que foi utilizado para a caracterização de povos primitivos, a fim de expor suas supostas desumanidade e crueldade, estabelecendo assim um diferencial em relação à sua própria sociedade, dita civilizada. Na esteira do colonialismo, a metáfora da antropofagia poderia servir de forma eficaz para legitimar a subjugação e escravização dos habitantes do Novo Mundo e para reforçar a posição de domínio dos colonizadores. No transcorrer do século XVI, 0 canibalismo foi finalmente transcrito como protótipo da principal característica da

forma de vida bárbara aos índios brasileiros.^ No Brasil dos anos vinte do século XX, o tema do canibalismo é retomado e metaforicamente jogado devolta para a Europa por Oswald de Andrade em seu conceito de antropofagia. Partindo de uma reflexão crítica sobre a herança colonial do país, surge, nesta fase inicial do modernismo brasileiro, uma necessidade de emancipação cultural e de definição de uma identidade nacional em contrapartida ao domínio europeu. Deste modo, em seu manifesto antropofágico de 1928, Oswald de Andrade traça um projeto para a descolonização da cultura nacional e para uma revolta contra a cultura europeia. Ele exorta a cultura brasileira a adotar uma atitude antropofágica, por meio da devoração de influências europeias e através da mistura com tradições locais, criando um produto cultural híbrido e especificamente brasileiro.^ Com sua estratégia de incorporação, Oswald de Andrade inverte o sentido tradicional da figura do canibal: enquanto a metáfora da antropofagia tradicionalmente estabelecia uma alteridade, no sentido de forjar a exclusão do estrangeiro, ela agora representa a possibilidade de integração de influências culturais externas, revogando

1Texto traduzido do alemão para a língua portuguesa pela autora e por Ivan Risafi de Pontes. ^ Erwin Frank: „Eles comiam pessoas, como a sua aparência hedionda comprova" /„Sie fressen Menschen, wie ihr scheuíàliches Aussehen beweist...“Kritische Überlegungen zu Zeugen und Quellen der Menschenfresserei, em: Hans-Peter Duerr (Ed.): A uthentizitãt und Betrug in der Ethnologie. Frankfurt/M ain 1987, p. 199-224,: aqui p. 210. ^ Oswald de Andrade: „Manifesto Antropófago”, em: Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, Maio de 1928.


dicotomias hegemônicas como próprio/estrangeiro, civilização/barbárie ou centro/ periferia. A formulação de um ponto de vista nacional desta abordagem da antropofagia não está ligada a conceitos de pureza étnica; ao contrário, o conceito de Oswald salienta 0 processo de hibridação e o aspecto da heterogeneidade da sociedade brasileira."^ Por

meio de sua compreensão cultural híbrida, a qual se baseia na integração de influências culturais estrangeiras, o conceito de antropofagia oswaldiano se diferencia frente a outros movimentos e estratégias de libertação pós-colonial, que alvejam uma autoetnicização.^ O conteúdo da antropofagia passa então a ser usado na década de vinte pelo movimento antropófago e implementado pelos artistas visuais do modernismo brasileiro em suas obras, em primeiro lugar pela pintora Tarsila do Amaral (1886­ 1973). Na década de sessenta, o programa oswaldiano é revisitado e atualizado pela primeira vez no movimento do Tropicalismo. Os tropicalistas constatam a continuação de mecanismos de exploração hegemônicas e o domínio ocidental no Brasil. Assim, a formação de uma identidade pós-colonial altiva volta a ser novamente fomentada. A estratégia de Oswald de Andrade de incorporar influências culturais estrangeiras representa para os tropicalistas uma maneira de emancipação, com qual a avant-garde brasileira deve ser formada. No contexto da repressão sócio-cultural da ditadura militar incipiente, a estratégia modernista da antropofagia também se torna uma possibilidade de articular a resistência contra as formas de opressão em seu próprio país. Nas artes visuais, os artistas Hélio Oiticica e Lygia Clark são os principais representantes das idéias e conceitos da Tropicália, ocupando-se em suas obras também com a antropofagia oswaldiana.®

Thom as Sandführ: Só a Antropofagia nós une: Assimilation und Differenz in der Figur des Anthropophagen. Düsseldorf 2001, URL: http://deposit.ddb.de/cgi-bin/dokserv?idn=963602896 (01.06.2009), p. 8. ^Assim, por exemplo, a filosofia da Négritude, que foi desenvolvida no curso da descolonização no ano de 1930 em Paris, interveio em favor de um retorno aos valores da cultura negra e de sua história. No entanto, teóricos pós-coloniais criticam que a Négritude permaneceu presa num pensamento euro-centrista de opostos essencialistas. Neste sentido, Frantz Fanon observou em uma palestra do ano de 1956 sobre Racismo e Cultura, que a négritude, basicamente, seria uma inversão em um “racismo negro". Ulrike Auga: Intellektuelle - Zwischen Dissidenz und Legitimierung: Eine kulturkritische Theorie im Kontext Südafrikas. Berlin, 2007, p. 130. Carlos Basualdo: Tm pkáüa. A Revolution in Brazilian Culture (1967-1972). Museum of Contem porary Art, Chicago. Chicago 2005, p. 12 ss.


A recepção da antropofagia na arte brasileira contemporânea A estratégia da antropofagia representa para as gerações posteriores de artistas visuais brasileiros também uma fonte de referência central, embora estas gerações não possam ser caracterizadas como um movimento de vanguarda cultural comum, como ocorreu no caso do modernismo e do tropicalismo. Uma recepção da antropofagia acontece não só na geração seguinte, imediatamente posterior ã Tropicália - a qual Cildo Meireles (*1948) e Anna Maria Maiolino (*1942) pertencem - mas também numa nova geração de artistas contemporâneos brasileiros - na qual se incluem Adriana Varejão (*1964), Ernesto Neto (*1964) e Ricardo Basbaum (*1961). Partindo da sua formação no Modernismo dos anos vinte, passando por sua primeira retomada durante o Tropicalismo, no final da década de sessenta e, finalmente, alcançando sua recepção na arte contemporânea, o conceito de antropofagia ainda vivência um desenvolvimento histórico. A atual recepção da antropofagia se dá de forma diferenciada: por um lado, estes artistas visuais brasileiros continuam a crítica póscolonial, que foi formulada na antropofagia do modernismo brasileiro, por outro lado, há uma busca de abertura para outros níveis de sentido e reflexão além das polaridades dos anos vinte. Os artistas contemporâneos usam este conceito como uma estratégia cultural para intervir contra outras formas de opressão e de hierarquias de dominação. A característica comum de todos os trabalhos contemporâneos que tratam da antropofagia consiste no estudo sobre os conceitos de corporalidade, identidade e hibridismo. A afirmação de uma posição nacional, tão relevante na primeira geração do movimento, perde por completo o seu significado. Assim, a estratégia da antropofagia é usada por artistas contemporâneos como uma estratégia que revoga tanto hierarquias interculturais como construções de identidades culturais fixas, em favor de um tratam ento criativo de alteridades. A criação de espaços transculturais e posições de identidade híbridas são elementos centrais na apropriação contemporânea da antropofagia.


Questões pós-coloniais: Cildo Meireles e Adriana Varejão Uma continuação da crítica pós-colonial de Oswald de Andrade pode ser encontrada em uma parte da recepção contemporânea da antropofagia. Uma referência a temas antropofágicos serve tanto a Cildo Meireles como a Adriana Varejão para debater em suas obras questões pós-coloniais, por esta razão eles podem ser vistos como criticos pós-coloniais. Estas estratégias artísticas são definidas segundo a teoria científica do pós-colonialismo, que foi desenvolvida no fim dos anos setenta pelos pesquisadores Edward Said, Homi K. Bhabha e Gayatri Spivak. Estes principais representantes do pós-colonialismo tomam como ponto de partida as mesmas abordagens, problemas e questões do movimento antropofágico brasileiro. Desta maneira, o pós-colonialismo quer ser entendido como uma articulação de resistência frente às formas coloniais de governo e suas conseqüências. O foco de seus interesses é a análise das relações coloniais e a questão de como uma descolonização pode ser alcançada. O pós-colonialismo tenta restituir ao mundo colonizado sua própria língua e provocar uma mudança capaz de libertar as culturas colonizadas da sua situação periférica e de sua posição de opressão.^ Os modelos teóricos do pós-colonialismo fornecem, por conseguinte, um instrumento adequado para analisar as obras de arte contemporânea, que tratam da antropofagia. As idéias e conceitos da antropofagia se manifestam nas obras de Cildo Meireles de tal maneira, a ponto de ser reatada a modalidade central da realização da antropofagia, postulada por Oswald de Andrade: num gesto canibal, Cildo F ig u ra 1. C ild o M e ire le s. C ru z e iro d o S u l, 1 9 6 9 1 9 7 0 , p in iio e c a rv a lh o , 0 ,9 x 0 ,9 x 0 ,9 .

Meireles se apropria dos movimentos europeus e americanos de arte, combinando-os com elementos locais específicos, deste modo, ele se concentra na críação de uma obra de arte híbrida. Neste sentido, as esculturas Cruzeiro do Sul e Fio se constituem como objetos híbridos, pois o artista se apropria do vocabulário formal do minimalismo, especializando-o no contexto brasileiro por meio de um conteúdo simbólico e

X M d r e i e s . Fio. 19 9 0 - 19 9 5 , p a v e ia s

polítíco. A cscultura Cruzcíro do Sul de 1970 surge, portanto,

e o u ro 18 q u ila te s , 8 0 0 x 8 0 0 x 8 0 0 .

Nikita D haw an/M aría do MarCastwVare\a:PostkolonialeTheorie. EinekritischeEinführung. Bielefeld 2005, p. 25f.


como um cubo em miniatura. Os materiais pinho e carvalho se referem a técnica dos índios Tupinambás para acender o fogo mediante a fricção destes materiais.^ Cildo Meireles discute por meio dessa redução do objeto a extinção da cultura indígena pela cultura colonial, que pode ser fisicamente experimentada pelo espectador frente à pequeneza da escultura. O imperceptível cubo em miniatura contém a ideia de uma energia comprimida inerente e de um potencial capaz de desenvolver uma imensa força destrutiva, ®articulando uma força defensiva da cultura oprimida. O conteúdo simbólico dessa escultura se refere a um contexto mais amplo e assim toma uma posição completamente oposta ao minimalismo americano autoreferencial. Também o uso de materiais “pobres” contraria a estética brilhante da arte de Minimalismo. Cildo Meireles utiliza para este tipo de trabalho, relacionado com os objetos de Minimal Art, o termo “humiliminimalismo”, uma fusão das palavras “humildade” e “minimalismo”, ou também o nome “minimalismo dos pobres”.“ A escultura se apresenta, portanto, como um objeto híbrido que resulta de uma devoração antropofágica da Minimal Art, que, por sua vez, passou por uma reformulação crítica e irônica. Através da pequeneza da escultura, Cildo Meireles também ilustra a posição marginalizada do Brasil em relação ao domínio das capitais de arte, Europa e os Estados Unidos.“ Este jogo com proporções simboliza a relação entre a periferia e 0 centro do mundo da arte global.^^ O trabalho Fio, criado entre 1990 e 1995, dá continuidade a este discurso. Fio é um cubo, formado por paveias, mantidas juntas por um fio de ouro. Dentro do cubo, há ainda uma barra de ouro, visível por via de uma fonte de luz embutida. A mensagem da obra contém o aspecto da resistência que se expressa no objeto híbrido: as coisas pequenas se impõem nas grandes. Além disso, 0 trabalho de materiais contrastantes, palha e ouro, coloca em questão a distribuição

* Paulo Herkenhoff (Ed.): Cildo Meireles. New Museum o f Contemporary Art, New York. Londres 1999, p. 29. ^ Udo Kittelmann (Ed.): Cildo Meireles undLawrence Weiner: The Southern Cross. ^ 5 Far as the Eye Can See. Kolnischer Kunstverein e Kunstverein Heilbronn. Karlsruhe 2000, p. 1. “ Cécile Dazord (Ed.): Cildo Meireles. Musée d’A rtContem porain de Strasbourg. Gand 2003. p. 170. “ Guy Brett (Ed.): Cildo Meireles. Tate Modern, Londres. Londres 2008, p. 116. Paulo Herkenhoff (Ed.): Cildo Meireles. New M useum of Contemporary Art, Nova Iorque. Londres 1999, p. 29.


desigual de riquezas no mundo global. Cildo Meireles adverte com a sua obra que seu país ainda está exposto a uma situação de repressão política, econômica e social frente à dominação europeia e norte-americana e permanece numa posição periférica em relação aos centros de arte, dado que uma continuação de mecanismos coloniais ainda persiste. Ao mesmo tempo, Cildo Meireles se apropria da metáfora antropofágica, que envolve uma transformação permanente da identidade cultural, para questionar e superar dicotomias culturais, articulando com seus objetos híbridos uma visão cultural que rejeita as noções de pureza étnica. Sua concepção de hibridismo está intimamente ligada a questões pós-coloniais, podendo ser relacionada com a reflexão de representantes dos estudos pós-coloniais sobre o mesmo tema. Em particular, seus objetos híbridos podem ser relacionados aos conceitos da teoria de Homi K. Bhabha, tais como: hibridismo, bem como sua figura de pensamento do terceiro espaço, por meio dos quais o confronto de culturas rompe com uma abordagem dualista, mas ainda é visto como uma fusão de várias influências culturais num terceiro espaço híbrido, pelo qual são superados os dualismos e as hierarquias entre o próprio ser e o componente estrangeiro.^^ Homi K. Bhabha aborda o hibridismo como uma forma de resistência, na qual ocorre uma inversão estratégica do processo de dominação. Segundo o autor, no processo de colonização há um uso ambivalente do mimetismo e de seus recursos, no qual uma imitação da cultura do colonizador pelos colonizados é realizada, ou seja, ela resulta de uma estratégia de domínio colonial. Dado o fato que os colonizados não se adaptaram totalmente ã cultura do colonizador, sua imitação levou inevitavelmente a uma desestabilização da posição de domínio, pois os colonizados se apropriaram de elementos da cultura da metrópole, e ao integrá-los em sua própria cultura, ocorreu uma transformação da cultura do colonizador. A criação deste chamado terceiro espaço, não corresponde nem ã cultura do colonizador nem ã do colonizado. Dentro deste espaço, o qual é baseado no hibridismo e não na diversidade, símbolos culturais podem ser renegociados. Assim, o hibridismo de Homi K. Bhabha se torna um ponto de

HomiK. Bhabha: DieVerortung der Kultur. Tübingen 2000, p. 165. A primeira edição foi publicada em 1994 sob o título The Location of Culture.


partida para uma subversão do discurso colonial. O processo de mimetismo corresponde à implementação do conceito antropofágico de fusão de influências culturais estrangeiras com tradições locais. Por chamar a atenção para o momento de resistência do colonizado, Bhabha atribui a ele uma capacidade de ação, pela qual ele é libertado de sua posição passiva de vítima, o que corresponde ã concepção de canibalismo encontrada na obra de Oswald de Andrade, ou seja, uma capacidade de ação que se manisfesta como um ato de emancipação, de autoafirmação e de resistência. Neste sentido, a recepção da estratégia de incorporação de Cildo Meireles, realizada em seus objetos híbridos, corresponde novamente a um gesto de libertação pós-colonial. Da mesma forma como Cildo Meireles, a artista Adriana Varejão se refere ao tema da antropofagia para tratar em suas obras de questões pós-coloniais. Enquanto Cildo Meireles se ocupa com estratégias de hibridização, Adriana Varejão se apropria, em primeiro lugar, de documentos coloniais, nos quais o Brasil é tematizado. Uma crítica dos estereótipos coloniais, bem como a desconstrução desses ocupam um aspecto central nessas obras da artista. Num gesto antropofágico, a artista se apropria das representações europeias dos habitantes do Brasil como bárbaros canibais em ilustrações do século XVI. Primeiro, ao citá-las, e, logo após, descontextualizandoas, ou seja, destruindo-as, Adriana Varejão realiza uma espécie de autópsia de suas estruturas. Na pintura Proposta para uma Catequese de 1993, a artista se refere ã iconografia dos relatos de viagens dos europeus ao Novo Mundo, a fim de desvendála como imagens de propaganda do colonialismo. Sob a arquitetura monumental de um pórtico barroco, cenas de um ritual de canibalismo indígena são apresentadas, tais como as citações das ilustrações Grand Voyages de Theodor de Bry, um diário de viagem muito popular da época, publicado em 1593.^^ No centro da imagem, uma cena de

1"*Idem. No início do séculoXVI, inicia-se uma onda de relatos de viagens sobre Brasil, nos quais os exploradores europeus alegam ter sido testem unhas oculares de práticas canibais. Estes relatos de viagens e suas ilustrações contribuíram , portanto, para que a figura do canibal, no final do século XVI, se tornasse um símbolo do Brasil. No terceiro volume do livro Grand Voyages de Theodor de Bry, publicado em Frankfurt em 1953, encontram -se sete gravuras que detalham o ritual canibal, vide: Anne Rose Menninger: Die M achtderAugenzeugen. N eueW eltund Kannibalen-Mythos, 1492-1600. Stuttgart 1995.


matança é representada. Um europeu com barba é visto com o braço direito levantado em um gesto de bênção. Ele se encontra preso através de uma corda amarrada em seu torno segurada por um índio, enquanto um segundo habitante do novo mundo eleva uma cachaporra para executá-lo. Ao centro, na parte inferior da imagem, vemos um caldeirão borbulhante à espera de uma vítima do sexo masculino, o qual é preparado por algumas mulheres indígenas. Como referência a uma atitude antropofágica, a artista destacou com tinta vermelha alguns elementos particulares da imagem. Na decoração do estuque do arco pórtico, uma inscrição em latim expressa a seguinte frase: „Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem in me manet et ego in 1110.“^®, assim cita Adriana Varejão as palavras de Jesus no Evangelho segundo João, no qual Jesus testemunha a eucaristia. A artista associa, portanto, o ritual antropofágico com a prática eucarística, devolvendo, assim, o canibalismo ã cultura colonial. O título Proposta para uma Catequese ilustra essa inversão. j

Com esta apropriação e transformação dos elementos da cultura europeia, a artista mantém a tradição do movimento antropofágico. Este desmascaramento do sistema europeu de descrições de culturas estrangeiras como um estereótipo

F ig u ra 3.

AdrianaVarejão. Proposta ParaUma

coloníal por Adriana Varejão estabelece uma analogia

C a te q u e s e , 1 9 9 3 , ó leo so b re te la , d íp tic o ,

140X240cm.

^fundamental com a apropriação de Oswald de Andrade e com a sua reformulação da figura do canibal, a qual foi desconstruída Te metaforicamente devolvida para a Europa. Esta estratégia artística também pode ser relacionada com posições científicas existentes na teoria pós-colonial.

T h e o d o r d e B ry .A m e ric a e , livro III, 1 5 9 2 ,

gravuracomcobre.

i i o i i r-i

Assim, relata Edward Said de forma mcisiva em seu livro Orientalismo de 1978, que os relatos literários sobre os

habitantes do novo mundo não tinham como objetivo uma reprodução de suas realidades, mas sim que eles eram construções europeias que serviam para fortalecer a posição de domínio de sua cultura dominante e para legitimar a violência imperial.

“ Jesus fala: “Quem comer a minha carne e beber o meu sangue irá perm anecer em mim e eu nele” (João 6,57.) Nikita Dhawan/M aría do Mar Castro Varela: Postkoloniale Theorie. Eine kritische Einführung. Bielefeld 2005, p. 29 ss.


Oswald de Andrade e Edward Said, ambos como cidadãos de antigas colônias, realizam através de suas análises sobre o discurso europeu de dominação, uma mudança criativa de perspectiva, ambicionando com isso um novo tipo de percepção do Brasil e do Oriente. A recepção contemporânea da antropofagia por Adriana Varejão tematiza, como foi analisado, exatamente estes aspectos. Desta maneira, tanto Cildo Meireles como Adriana Varejão se apropriam de elementos culturais europeus e norte-americanos para invertê-los ironicamente e analisá-los criticamente, seguindo a tradição da antropofagia. Deste modo, os dois artistas se referem ao conceito da antropofagia para tem atizar em seus trabalhos questões pós-coloniais. A recepção da antropofagia corresponde aqui novamente a um gesto de resistência pós-colonial e, portanto, deve ser lida como parte de um processo de descolonização. Partindo de um contexto pós-colonial a antropofagia representa também uma concepção cultural, cujo campo de significação é ampliado por outros artistas contemporâneos, como será demonstrado a seguir.

Antropofagia como um conceito com uma dimensão universalista: Anna Maria Maiolino Com base nas obras da artista Anna Maria Maiolino, pode-se demostrar a forma como 0 conceito da antropofagia, partindo do seu contexto pós-colonial, é ampliado por artistas contemporâneos como uma estratégia de intervenção contra outras formas de discriminação. Assim, atua a estratégia de incorporação na juvenilia da artista, por meio da reflexão sobre suas experiências com a ditadura militar brasileira, assim como 0 próprio Tropicalismo, entendido como um gesto de resistência contra formas de

opressão política, já o havia feito. Além disso, com o uso da metáfora da incorporação, Anna Maria Maiolino articula em suas obras posições feministas. Partindo de sua origem como imigrante europeia adolescente, oriunda da Itália, a antropofagia cultural de Anna Maria Maiolino também resulta em um conceito com dimensão universalista. Sua biografia e o tema da busca de identidade ocupam um ponto central na obra de Anna Maria Maiolino. Em suas obras e textos poéticos, ela desenvolve, em


relação ao conceito da antropofagia, um termo de identidade, que ela aborda de forma heterogênea e transformativa. Em seu texto Anthropophagous Banquet, escrito em 2009, referindo-se ao Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, ela descreve o processo de desenvolvimento de sua própria identidade como antropófaga e como um produto antropofágico. Em seu processo de integração no Brasil, ela foi devorada pela cultura brasileira, sendo, então, excretada com uma identidade híbrida, italiana e brasileira. Dentro desse processo de imigração, ela se tornou da mesma forma uma canibal por ter incorporado a arte e cultura brasileira, em particular, as obras de Oswald de Andrade, Hélio Oiticica e Lygia Clark.^^ Anna Maria Maiolino ilustra este processo de imigração antropofágica em várias obras. O título da obra “Glu Glu Glu” de 1967 faz uso do termo “engolir” da língua Tupi, sendo evidente a referência ã antropofagia cultural de Oswald de Andrade. Numa espécie de vitrine, encontra-se um busto, sobre o qual uma boca arreganhada foi pintada. Logo abaixo, os Pig„^g5

intestinos de um torso são plasticamente apresentados numa

A n n a M a ria M a io lin o : G lu , G lu , G lu,

i967,acríiicoetecidoemmadeira,iiox místura híbrida das corcs das bandeiras italiana e brasileira. ^

5 9 x 1 2 , 5 cm .

Contudo, na obra de Anna Maria Maiolino, a antropofagia não é mais abordada como “comer” da arte europeia no sentido de resistência pós-colonial. Desta forma, a artista atualiza o conceito oswaldiano, conceituando a antropofagia como um processo produtivo do diálogo cultural, no qual uma revogação de diferenças é executada e construções de identidades híbridas são desenvolvidas. No vídeo In-Out-Antropofagia de 1973, encontra-se uma referência ã antropofagia na forma de um gesto de resistência contra a repressão política do governo militar, conectada com pontos de vista feministas. O vídeo mostra consecutivamente close-ups de bocas femininas e masculinas. Na primeira cena, uma boca feminina é vista tentando dialogar e interagir. F ig u ra 6. A n n a M a ria M a io lin o : In -O u t ( A n tro p o fa g ia ), 1 9 7 3 , v íd eo , 8 m in /1 4 s e c .

Anna Maria Maiolino: A nthropophagous Banquet, 2009, publicado em Catálogo: Helena Tatay: Anna Maria Maiolino. Fundado Antonie Tápies, Barcelona. Barcelona 2010, p. 99. « ld e m ,p .4 1 .


porém sem sucesso, com uma boca masculina. Em suas tentativas espasmódicas de se comunicar, as imagens dessas bocas são congeladas sendo possível ao espectador ouvir somente balbucios incompreensíveis, em algumas destas seqüências uma fita adesiva foi colada à boca feminina. Este trabalho tematiza o clima de repressão política do governo militar, os problemas de comunicação entre os sexos, bem como a opressão das mulheres em uma sociedade dominada pelos homens.^® Ao lidar com o conceito da antropofagia as seqüências do vídeo mostram uma transformação permanente entre o interior e o exterior do corpo: fios saem das bocas e são novamente sugados, fumaças são inaladas e exaladas. Esses tipos de penetrações são também visualizados por meio da expelição de um ovo, o qual é, em seguida, novamente engolido. Por outro lado, este ovo é uma referência ao processo de nascimento, representado, assim, também o corpo feminino, devendo ser lido no contexto da obra de Anna Maria Maiolino como uma metáfora para o perigo. O momento de resistência é indicado na obra pelos dentes arreganhados. O momento de resistência é, portanto, também um ponto central na apropriação do conceito antropofágico de Anna Maria Maiolino, como foi visto também na obra de Cildo Meireles e Adriana Varejão, contudo, esta artista amplia o conceito a outros níveis de significado. Conectada com as suas obras, nas quais ela foca a criação de posições de identidade híbrida, a recepção da antropofagia de Anna Maria Maiolino resulta em um instrumento de intervenção e em uma atitude ética contra a repressão política, o racismo e o sexismo.

Atualização de conteúdos tropicalistas: Ernesto Neto e Ricardo Basbaum Também os artistas contemporâneos Ernesto Neto Ricardo Basbaum usam a estratégia modernista da ntropofagia independente de seu contexto pós-colonial, stendendo, assim, o conceito oswaldiano a outros níveis de ignificado. Embora o foco nas obras de Anna Maria Maiolino ermaneça na aplicação da metáfora antropofágica como uma ___________ _________ stratégia de resistência, este aspecto não é relevante para F ig u ra 7. Lygia C lark: B ab a a n tro p o fá g ic a , 1 9 7 3 , P e rfo rm a n c e .

20

I d e m ,p .ll7 .


OS

trabalhos dos dois artistas em questão. No entanto, a referência à antropofagia se

manifesta no trabalho destes artistas principalmente em uma atualização do conceito de participação tropicalistas: a participação física dos recipientes e a fusão da arte e da vida ocupam, portanto, o foco central da obra. Ambos artistas fazem uso do conceito antropofágico para articular formas de diálogos interpessoais e transnacionais. O objetivo do Hélio Oiticica e Lygia Clark foi criar um sentimento físico e sensual de comunidade entre os recipientes das suas obras tropicalistas tendo como referência a metáfora canibal. Assim, o conceito da antropofagia encontrou uma significativa expressão na concepção do corpo coletivo de Lygia Clark, desenvolvida por ela em suas performances no início da década de 70. O trabalho Baba Antropofágica foi realizado pela primeira vez em 1973, como uma performance interativa. Como alusão a uma aranha, que envolve sua vítima em um casulo, vários participantes encobrem uma pessoa deitada no chão com fios encharcados com saliva. Quando, afinal, essa pessoa se encontrou coberta por uma densa rede de filamentos, os atores envolveram os seus próprios rostos com esses fios encharcados de saliva. Através desta operação, segundo a qual o conceito da antropofagia de uma identidade cultural híbrida é realizado, o interior de cada pessoa deve ser virado ao externo e incorporado pelo grupo. O fio conecta os indivíduos entre si, incorporando-o a um corpo coletivo. A metáfora da antropofagia é utilizada por Lygia Clark principalmente numa reflexão sobre a comunicação, assim, a artista aborda os termos canibalismo e incorporação como processos que possibilitam a comunicação e produzem a formação de um coletivo.^^ A referência de Hélio Oiticica aos conteúdos antropofágicos é vista claramente nos seus Parangolés, desenvolvidos por ele em 1964. Estas obras representam capas, que o recipiente, ao som de sambas, pode vestir e com elas dançar durante uma performance junto com outras pessoas. Em analogia com a reutilização, pelos moradores da favela, de objetos descartados pela sociedade de consumo, o artista usou para a fabricação de suas capas: jornais, sacos de lixo ou tecidos, nos quais foram

Manuel J. Borja-Villel/Nuria Enguita Mayo (Ed.): Lygia Clark. Fundado Antoni Tàpies, Barcelona. Barcelona 1998, p. 292,296. Lygia Clark: O Corpo Coletivo, 1970, citado em: Sabine Breitweiser (Ed.): vivências. Generali Foundation, Vienna. Colonia 2000, p. 146.


colocados poemas, pinturas e fotografias.^^ Assim, esta obra se afirma, como visto na abordagem de Cildo Meireles, como um objeto híbrido, já que o modelo de corte da roupa faz uma referência à pintura geométrica do norte-americano Hard Edge, que, por sua vez, combinada com elementos locais e em contato com os corpos dos participantes alcança uma forma orgânica e transformativa.^"^ A obra é criada apenas F ig u ra 8. H élio O itic ica : P a ra n g o lé , 1 9 6 4 , P e rfo rm a n c e no Rio d e J a n e iro

por meio da participação do espectador, que ofusca o papel do artista como ator e liberta a obra da sua reclusão no espaço da

galeria reservado a um público elitista, transferindo-a para a cultura cotidiana brasileira. Somente através do movimento, o conceito do trabalho se desenvolve em sua plenitude, pois, dançando e ouvindo a música, os participantes interagem e se envolvem com a obra e também entram em comunicação com os outros participantes.^^ Deste modo, de forma semelhante à concepção de Lygia Clark, o resultado pode ser visto numa unificação dos participantes em um corpo coletivo, no qual a separação entre sujeito e objeto, arte e recipiente é anulada, dando continuidade ao conceito de antropofagia. Por meio desta abordagem artística, é produzida uma concepção de cultura que se encontra em permanente mudança, pois sua natureza é aberta a transformações.^® Tanto Ernesto Neto como Ricardo Basbaum se apropriam destes elementos das obras tropicalistas nos seus trabalhos, criando um desenvolvimento e uma atualização dos conteúdos antropofágicos. Com seus objetos e instalações, Ernesto Neto oferece ao recipiente a possibilidade interagir com a obra. A forma e o material do trabalho do artista tomam como base o corpo humano, para permitir aos recipientes uma expansão da consciência de seus corpos. As Humanóides, criados em 2001, são sacos de poliéster em cor branca ou salmão enchidos com bolinhas de isopor. Eles contêm

Guy Brett: Carnival of Perception. Selected W ritings on Art. Londres 2004, p. 61 ss. Simone Osthoff: Lygia Clark and Hélio Oiticica. Alegacy of ineractivity and participation for a telematic future, em: Coco Fusco (Ed.): Corpus delecti: performance art of the Américas. Londres 2000, p. 156­ 173, aqui: p. 164,166. Assim, segundo Hélio Oitcica, o samba, que “nasceu do ritmo do coletivo”, representa uma espécie de arte plástica originária e contém uma prática corporal baseada numa transform ação constante. Através do aspecto do movimento é dado, portanto, continuidade ao conceito antropofágico. Hélio Oiticica: Parangolé: da anti-arte às apropriaçoes, em: GAM, 15, Maio, Rio de Janeiro 1967. Guy Brett: Carnival of Perception. Selected W ritings on Art. Londres 2004, p. 62.


^ '

^

espaços vazios, nos quais OS visitantes podem sentar OU tatear. *

Cl \ Figura9.

Estes objetos funcionam como cadeiras ou vestimentas, com os quais é possível descansar ou se movimentar pela sala. Com referência ao conceito de corpo nas obras tropicalistas. 3 metáfora da incorporação é realizada aqui, através de uma

E rn e sto N eto: H u m a n ó id e s , 2 0 0 1 ,

esculturasdelycraedestyrofoam,

fusão simbiótica do recipiente com 0 objeto, de forma a anular

d im e n s õ e s v a riá v e is.

a diferença entre os dois. Com estas esculturas passíveis de serem vestidas, Ernesto Neto implementa uma penetração nas fronteiras do corpo. O conceito da obra como um corpo, que inclui e devora o espectador antropofagicamente, foi elaborado por Ernesto Neto também em instalações de grande escala. Num trabalho de 2000, exibido na Coleção Daros em Zurique, a entrada da instalação funciona como uma boca aberta, que devora seus visitantes.^^ Dentro da instalação, o observador passa por um labirinto de túneis, que o leva a se apertar através de estruturas orgânicas de lycra elástica. No fundo da instalação, este material é colocado a poucos centímetros acima do chão e ao ser pisada pelos visitantes ele é deformado, retornando, logo após, ao seu estado original. Os visitantes da exposição entram, assim, em contato tátil com a materialidade da instalação e a obra é percebida como um organismo vivo, por não se encontrar num estado estático, mas em permanente movimento.^^ A utilização de um material como a lycra, que possui elasticidade, leveza e transparência, combinado com uma coloração branca cria um espaço de grande luminosidade dentro da instalação. As formas das estruturas plásticas individuais incluem referências hum anas e animais, que dão origem a associações com o corpo, a pele, a células ou com as sinapses. Esta instalação deve ser, portanto, entendida como uma metáfora para o corpo.^®

Paulo Herkenhoff aponta para a referência ao conceito antropofágico em Globiobabel: A instalação „[...] provides an imagery source informed by anthropophagic thought. The m outh-door is a hyperporous space. The mouth suckles, swallows, bites, devours, assimilates, vomits, drools - and opens up Globiobabel to take in the audience.” Ernesto Neto em entrevista com Hans Michael Herzog, em: Hans-Michael Herzog (Ed.): Seduções: ValeskaSoares, CildoMeireles, Ernesto. Daros-Latinemarica AG, Zurique. Ostfildern 2006, p. 140-149, aqui: p. 141. Cecilia Pereira (Ed.): Ernesto Neto. O Corpo, Nu Tempo. Centro Galego de Arte Contemporânea, Santiago de Compostela. Santiago de Compostela 2001, p. 29. Ernesto Neto em entrevista com Hans-Michael Herzog, em: Hans-Michael Herzog (Ed.): Seduções: Valeska Soares, Cildo Meireles, Ernesto. Daros-Latinemarica AG, Zurique. Ostfildern 2006, p. 140-149, aqui: p. 141.


Além disso, o trabalho se refere também em seu título ao aspecto antropofágico do hibridismo. Com referência à história da Babilônia, Ernesto Neto intitula sua instalação Globiobabel nudelioname landmoonaia, uma composição feita por várias palavras originárias de diferentes línguas.^® Ao contrário do ocorrido na história da torre de Babel, no qual as pessoas não podiam se comunicar uns com os outros, devido à confusão de línguas, Ernesto Neto representa em seu trabalho uma “Babel Global”, como um lugar de encontro, onde um diálogo e uma compreensão entre si são produzidos pelos sentidos. Assim, torna-se evidente a proximidade desta obra de Ernesto Neto com a concepção de corpo coletivo de Lygia Clark e Hélio Oitcica. .M

Também ^

F ig u ra s 10 e 11. E rn e sto N eto: G lo b io b ab e l n u d e lio n a m e la n d m o o n a ia , 2 0 0 0 , ly cra, a re ia e e s p e c ia ria s , 4 3 5 x 75 0 x 1 8 4 5 c m , in sta la ç ã o n a C o le ç ão D a ro s L atin A m e ric a , Z u riq u e .

o

trabalho

Ricardo

Basbaum

conceito

antropofágico,

principalmente da

abordagem

em

se

sua

artístico

de

ocupa

do

manifestado continuação

tropicalista.

Ricardo

Basbaum projetou instalações, realizou performances e oficinas, nas quais foram criadas identidades híbridas, nas quais foram buscados e atualizados conteúdos da antropofagia. Seu objetivo foi criar novas formas para o corpo coletivo. Segundo Basbaum, o conceito oswaldiano pode ser usado, atualmente, como um método artístico, que se concebe como um diálogo produtivo entre os indivíduos e deve ser pensado além das polaridades dos anos vinte. A diferença essencial entre indivíduos passa a estar contemplada, portanto, como uma base estratégica para um projeto contínuo de hibridização. O projeto Você gostaria de participar de uma experiência artistica? foi iniciado por Ricardo Basbaum em 1994 como um “work in progress”, e é realizado até os dias de hoje. Esse projeto foi concebido com a intenção de reunir atores de cidades, países e continentes diferentes numa zona de contato, na qual possa ser criado um possível espaço para momentos de troca e diálogos, apesar de suas diferentes origens e experiências diversificadas. O impulso inicial deste projeto é um objeto de metal.

O título inclui várias palavras de origens lingüísticas diferentes: Babel, Globo, nude, nam e/m e, lion, bio, land, moon, iaiá. Idem, p. 147.


deixado à disposição dos participantes por um tempo limitado, para que através dele seja realizada uma experiência artística subjetiva. As diversas formas de experiência feitas pelos participantes são documentadas através de imagens, vídeos ou textos postados numa página da internet pelos próprios participantes.^^ A proposta do artista se encontra já no início do projeto, mesmo se tratando de um gesto com o propósito de tornar o espectador ativo. Seu objetivo é inverter o papel do artista e do público, assim, ele faz uso explicitamente da “política do Tropicalismo” em sua obra. Todos aqueles que hospedam o objeto por um período determinado são responsáveis pela decisão de como deve ser a interação com o objeto e a forma de registro desta experiência. Desta maneira, Ricardo Basbaum cria uma autoria coletiva e uma fusão da arte com a vida cotidiana, que critica os mecanismos de exclusão existentes na experiência da arte, dando continuidade ao projeto tropicalista.^^

F ig u ra 12. R ic a rd o B a sb a u m : V ocê g o s ta r ia d e p a rtic ip a r d e u m a e x p e riê n c ia a rtís tic a ?

Contudo, 0 elemento central do projeto é ampliar o conceito tropicalista de corpo coletivo. Este projeto de Ricardo Basbaum é uma prática social coletiva, que propõe unir todos participantes por um interesse coletivo, a participação em uma experiência artística, e um objetivo coletivo, a documentação de todas a ações num arquivo, onde todas as ações se c o n v e rg e m .O artista nomeia seu projeto como uma “escultura social”; sua pretensão é realizar relações sociais, criando um espaço social coletivo

URTL: www.nbp.pro.br (12.07.2014). Sabine Gebhardt Fink: W ahrnehm ung und Erfahrung. Ricardo Basbaum - „Mõchten Sie an einer künstlerischen Erfahrung teilnehmen?“, em: Sabine Gebhardt Fink: Process - Embodiment - Site. A m bientin derK unstderG egenw art, W ien 2012, p. 101-114, aqui: p. 104 ss. ” Idem, p. 109 ss.


para discussões. O arquivo virtual promove uma visualização do corpo coletivo híbrido, no qual não só diferentes nacionalidades são reunidas, mas especialmente opiniões e formas de ação diferenciadas, já que cada participante expõe no projeto suas próprias experiências, seus pontos de vista, seus caracteres e seus conflitos. Assim, a diferença entre as pessoas e a singularidade de cada um são tomadas como ponto de partida para 0 projeto.^"^

Neste sentido, esta visão de um corpo coletivo híbrido pode ser entendida de forma análoga ao conceito de hibridização da linguagem de Mikhail Bakhtin. Segundo ele, 0 uso da linguagem é uma demonstração contínua do processo de hibridização, pois um enunciado sempre é bilíngüe. Através do uso da língua ocorre uma apropriação e uma transformação dos elementos estrangeiros, o que leva, inevitavelmente, ã formação de uma diferença. Este processo de hibridação não é visto, contudo, como uma perda da pureza, mas sim como uma diferença, uma coexistência e como um dialogismo produtivo.A ssim , o uso da língua se constitui como um elemento essencial no trabalho de Ricardo Basbaum. Ao fazer uso de termos antropofágicos em seus gráficos, dando ao projeto uma base teórica e analítica, Ricardo Basbaum define sua ação de modo análogo ao conceito da antropofagia cultural. Assim, o artista designa a experiência, que o recipiente faz na ação com o objeto como uma “incorporação”, que contém em si um processo digestivo e transformativo, do qual ele surge novamente com uma identidade híbrida. Este projeto faz parte de um projeto maior chamado NBP - Novas Bases para fma Personalidade, no qual Ricardo Basbaum une propostas diferentes, que incluem ações para modificar e ampliar a ,personalidade e nas quais conceitos de identidade híbrida são desenvolvidos. Além dos projetos de NBP, no qual um F ig u ra 13.

RicardoBasbaum: eu-você, camisetas, corpo coletívo é formado vírtualmente e, portanto, não há p e rfo rm a n c e e m D ia m a n tin a , 2 0 0 0 .

um contato real entre os participantes, também ocorrem

Octávio Cam argo/Brandon LaBelle: Manual para construção de um carrinho como um dispositivo para elaboração de conexões sociais. Berlin 2009, p. 52. Andreas Ackermann: Das Eigene und das Fremde: Hybriditat, Vielfalt und Kulturtransfer, em: Friedrich Jaeger/Jõrn Rüsen (Ed.), Handbuch der Kulturwissenschaften, Bd. 3: Themen und Tendenzen. Stuttgart 2004, p.139-150, aqui: p. 140 ss.


interações performativas, onde um intercâmbio interpessoal direto é possível. Ricardo Basbaum propõe por exemplo, aos participantes, usar camisetas vermelhas e amarelas, que são impressas com os pronomes “eu” e “você”. Ao representarem de forma lúdica o papel do outro, obtém-se uma mudança constante das posições “eu” e “você”, e, deste modo, a experiência de uma mudança de identidade.^® Os termos aparentemente fixos “eu” e “você” são objetivados e uma concepção de identidade alternativa e híbrida é processada. O objetivo é a criação de um “superpronome”, um novo pronome, formado pela combinação das palavras “eu” e “você”, representando tanto um sujeito e como um F ig u ra 14. R ic a rd o B a sb a u m : c o n v e rs a s c o le tiv a s, 2 0 1 2 , d ig ra m a , d e ta lh e . B ien al d e São P aulo 2 0 1 2 .

objeto.-’’' Por trás dessa hibridização se manifesta a ideia que um sujeito singular não pode ser desenvolvido sem a presença intensa do outro. A dinâmica de grupo, que foi criada na

própria performance, desemboca num espaço coletivo, no qual as diferenças entre os participantes podem existir uma ao lado da outra. Neste espaço híbrido, as hierarquias e dicotomias das pessoas são dissolvidas. Deste modo, Ricardo Basbaum se refere explicitamente ao conceito da antropofagia cultural, contextualizando-o na era da globalização.

Ricardo Basbaum: Differences between us and them , em: E lkeA us dem Moore/Giorgio Ronna (Ed.): EntrePindorama. ZeitgenõssischeKunst unddieAntropofagia. Künstlerhaus Stuttgart. N ürnberg 2005, tam bém URTL: http://www.ludlow38.org/files/usandthem rev.pdf (24.10.2012).

^^Idem.


Conclusão Como ficou evidente, o conceito da antropofagia de Oswald de Andrade tem uma relevância atual, representando uma fonte essencial para artistas visuais brasileiros. Esta recepção contemporânea da antropofagia se dá, no entanto, de forma diferenciada. Uma relação fundamental com o conceito modernista é encontrada na continuação da crítica pós-colonial, como mostrou a análise das obras de Cildo Meireles e Adriana Varejão. Para Cildo Meireles, as teorias e as questões do programa antropofágico, fundadas por Oswald de Andrade no modernismo brasileiro, não perderam sua relevância atual. Assim, ele constata uma continuação das estruturas coloniais no Brasil. Também Adriana Varejão utiliza a estratégia de incorporação para formular uma crítica dos estereótipos coloniais através de uma desconstrução dos sistemas europeus para representar culturas estrangeiras. A recepção da antropofagia corresponde aqui novamente a um gesto de resistência pós-colonial e, portanto, deve ser lida como parte de um processo de descolonização. Da mesma forma, Anna Maria Maiolino utiliza o conceito da antropofagia como um gesto de resistência, porém, alcançando outros níveis de sentido e desprendendoos do contexto pós-colonial. A metáfora do canibalismo se apresenta, portanto, em sua recepção como uma possibilidade de tomada de posição contra outras formas de opressão e de catequese. Por isso, em seus primeiros trabalhos, a estratégia da antropofagia serve como uma crítica ao governo militar e como uma formulação de posições feministas. Nas obras de Ernesto Neto e Ricardo Basbaum, a referência ao conceito da antropofagia se manifesta principalmente em uma atualização do conceito dos conteúdos tropicalistas. Ambos os artistas se apropriam da estratégia antropofágica para articular formas de diálogo interpessoal e transnacional e, assim, para fundar um espaço híbrido e coletivo, no qual diferenças possam existir lado a lado. Estes dois artistas desenvolvem conceitos artísticos que desafiam e realizam uma penetração de fronteiras e a destruição de categorias étnicas e culturais. Assim, o significado atual da antropofagia, para artistas contemporâneos brasileiros, pode ser destacado como um meio de articulação da tolerância e como uma aceitação de uma perspectiva coletiva e cosmopolita.


Ricardo Basbaum, Anna Maria Maiolino, Cildo Meireles, Ernesto Neto e Adriana Varejão são artistas contemporâneos de duas gerações diferentes que já não estão mais em busca de uma expressão brasileira específica ou uma identidade nacional. O fato de esses artistas se apropriarem de um conceito histórico, nascido de um desejo de emancipação nacional, é resultado da abertura universalista e da visão cosmopolita da antropofagia. O mérito e o potencial para uma retomada da atualização da antropofagia se encontra, portanto, na ênfase dada ao aspecto de hibridismo com o qual a luta de libertação contra estruturas coloniais é realizada. Assim, a estratégia da antropofagia pode servir para artistas brasileiros contemporâneos como um instrumento artisticopolitico de intervenção, com o qual hierarquias e dicotomias de qualquer espécie são revogadas, em favor de uma convivência criativa com a alteridade.


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Compostela 2001. Fig. 10: Herzog, Hans-Michael (Hrsg.): Seduçþes: Valeska Soares, Cildo Meireles, Ernesto Neto. Ausst.-Kat. Daros-Latinemarica AG, Zurique. Ostfildern 2006. Fig. 11: Idem. Fig. 12: Ricardo Basbaum: Differences between us and them. URTL: http://www.ludlow38.org/files/usandthemrev.pdf (24.10.2012). Fig 13:Idem. Fig. 14: Fotografia da autora


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A MORTA DE

OSWALD DE ANDDADE E D DESESPEDO DA FDRMA MARCELO PAIVA DE SOUZA - Universidade Federal do Paraná (UFPR). mrclpvdsz@hotmail.com

Resum o: Este artigo aborda a questão do retrato do artista como revolucionário em A m orta, deO sw alddeA ndrade. Procede-seaum a sucinta leituradaobraesubm ete-sea exame o im bricam ento m etafórico entre m orte e criação em sua estrutura dram ática. Palavras-chave: A m orta; O sw ald de A n d ra d e; dra m a brasileiro do séc. X X .

Abstract: This article deals w ith the them e of the portrait of the artist as a revolutionary in Oswald de A ndrade’s play A m orta (The D ead). A b rief reading of the dram a is provided, and the m utual relationship between death and creation in its key m etaphors is examined. Keywords:A m orta (The Dead); Oswald de Andrade; Brazilian 20th-century drama.

N° 6 - 02/2014


assados sessenta anos desde a morte do escritor, em 1954, esta edição especial

P

da Lampejo, sob o estandarte antropófago da Deglutição do Bispo Sardinha, vem render homenagem a Oswald de Andrade, propondo-se revisitá-lo pela

via promissora e necessária - conquanto intrincada - das articulações entre filosofia, estética e política. De minha parte, felicito a meritória, muito bem-vinda iniciativa do novo facho de luz que se acende sobre a persona e o opus oswaldianos. E dadas as peculiaridades da contribuição que tenho a oferecer ao número, caberá talvez um breve preâmbulo a título de esclarecimento. O que se vai ler mais à frente é a tradução para a língua portuguesa de um fragmento de Teatr niepokoju: studium porównawcze dramaturgii Stanisíawa Ignacego Witkiewicza i Oswalda de Andrade (O teatro do desassossego: estudo comparativo da dramaturgia de Stanisíaw Ignacy Witkiewicz e Oswald de Andrade), obra de minha autoria publicada em Cracóvia, na Polônia, em 2001. Com ligeiros retoques, o livro reproduziu a tese de doutorado que defendi no ano anterior na Faculdade de Filologia da Uniwersytet Jagiellonski. Na alça de mira da investigação estavam os textos do polonês e do brasileiro, o arrojo inventivo, a riqueza, a complexidade de sua linguagem. Verificada a vizinhança cronológica e certo ar de família na poética das peças, buscou-se perquiri-las, umas ã luz das outras, em quadros analíticos determinados. A hipótese era que alguns dos principais problemas em pauta na produção dramática witkiewicziana e oswaldiana se deixariam abordar com proveito mediante o cotejo, fosse em razão das semelhanças ou dos contrastes entre um caso e outro. E, de fato, a partir do exame de pares de títulos escolhidos de ambos os dramaturgos, foram-se patenteando vetores equivalentes nos universos criativos sob escrutínio: uma dialética feroz do grotesco (em Szewcy/Os sapateiros e O rei da vela, especialmente) e da utopia (em Janulka, córka Fizdejki/Janulka, filha de Fizdejko e O homem e o cavalo), um empenho obstinado de autorrefiexividade e de crítica da forma (em Sonata Belzebuba/A sonata de Belzebu e A morta), vetores a perpassar, ademais, as órbitas próprias, mas não raro bastante afins, das criações de muitos nomes importantes do drama e do teatro modernos. De volta a nosso país em fins de 2000, cogitei a possibilidade de traduzir o trabalho e publicá-lo em versão brasileira. Em meio às urgências de outros deveres e afazeres, entretanto, a ideia tem permanecido ã espera de ocasião propícia. O tributo ora prestado a Oswald será quem sabe, enfim, o empurrão capaz de fazer deslanchar


a empreitada. A justificá-la, eu apontaria hoje um estado de coisas que não difere substancialmente do que motivou tempos atrás meu projeto de doutorado. Entre as sucessivas metamorfoses de Oswald e as várias facetas do legado criativo do autor, a seara do teatro continua a receber muito menos atenção do que merece. Longe de tal afirmativa qualquer insinuação de desmerecimento no que concerne à respeitável fortuna crítica acumulada graças a estudiosos como Ruggero Jacobbi (1991), Sábato Magaldi (1999 e 2004), Haroldo de Campos (1995), Fernando Peixoto (1989), Mário da Silva Brito (1972), Lucia Helena (1985), David George (1985) ou Orna Messer Levin (1996 e 2013), por exemplo. Contudo, quer se considere a incontornável relevância de Oswald de Andrade em nossas letras, por um lado, quer se evoquem, por outro, realizações tão marcantes do palco brasileiro do século XX como o histórico Rei da vela do Oficina, em 1967^ ou, em data mais recente, A morta da Companhia dos Atores, em 1992^, parece imperioso reconhecer que a pesquisa especializada se acha em débito para com as audazes investidas dramatúrgicas do criador da Poesia Pau-Brasil. Relativamente ã trinca filosofia-estética-politica, senha de acesso preferencial eleita pelos Editores em sua proposta de retomada das obras oswaldianas, seria difícil atinar com viés analítico mais adequado ao corpus textual que aqui nos interessa. Basta lembrarmos a esse respeito que O rei da vela, de 1933, O homem e o cavalo, de 1934, e A morta, de 1937, as três peças maduras de Oswald, resultam “de uma guinada na direção do engajamento político de esquerda” (LEVIN, 2013, p. 28), uma “fase de adesão ã utopia marxista, sucedânea da utopia antropofágica dos anos 1920” (p. 29), na qual o escritor se dedica “a criar uma literatura interessada pelas questões sociais” (ibidem; grifo da autora). Em prol da causa que abraça, mas “sem com isso se desfazer das conquistas da Semana” (p. 28), arrazoa Orna Messer Levin, Oswald proclama então “o necrológio da burguesia” (ibidem; grifo da autora), leva a cabo o “enterro simbólico de si mesmo e de todas as formas artísticas alienadas, a começar pela literatura vanguardista brasileira” (p. 29). A dramaturgia oswaldiana constitui-se, portanto, sob a tensão de um duplo

^ Sobre O rei da vela encenado por José Celso Martinez Corrêa, ver SILVA, 1981, p. 141-156 ^ Sobre A morta (e tam bém O rei da vela) da Companhia dos Atores, ver FERNANDES, 2010, p. 131­ 150.


gesto: ruptura, (auto)crítica violenta e apaixonada das formas e destemida, sôfrega experimentação formal. Evidentemente, o crispado campo de forças entre esses polos de negatividade e positividade possui feições específicas em cada uma das obras mencionadas. A morta, desse ponto de vista, fornece farta matéria-prima para reflexão. Nela, o momento negativo é de tal ordem, questiona-se com tal veemência 0 estatuto da própria criação, que parece ser o caso de indagar, nos termos da Teoria

estética adorniana, se o processo artístico assim desencadeado não “começou a minar as categorias” (ADORNO, 1982, p. 11) em função das quais se originou, se a arte, ali, não se volta “contra o que constitui seu próprio conceito” (p. 12), tornando-se, “por conseguinte, incerta até ao mais íntimo de sua textura” (ibidem); se ela afinal “pode ainda ser possível”, a despeito disso, ou se acaso “eliminou e perdeu os seus pressupostos” (p. 11). Já deve estar claro por agora por que me debrucei sobre o Capítulo III do meu livro, “A morta e A Sonata de Belzebu - o desespero da forma”, para dele recortar e verter em português para este número da Lampejo um trecho^ no qual se acha em foco, precisamente, a peça oswaldiana de 1937. Escrita na maré montante autoritária que tem seu ápice no Estado Novo varguista, A morta assinala um ponto de inflexão muito significativo na trajetória de Oswald de Andrade. Concluindo o ciclo inaugurado por O rei da vela - e tendo vindo a ser a última realização da dramaturgia do autor - , a peça ilumina de modo singular alguns dos dilemas de uma decisiva conjuntura histórica e 0 emaranhado dos conflitos sociais a eles subjacentes. Na “Carta-Prefácio” que apôs

à obra, Oswald enfatiza “o drama do poeta [...] a quem a hostilidade de um século reacionário” privou da “linguagem útil e corrente”, levando-o, assim, para “longe dos chamados populares” (ANDRADE, 1991, p. 25). Todavia, prossegue, as “catacumbas líricas ou se esgotam ou desembocam nas catacumbas políticas” (ibidem). O militante ansiava pelas barricadas e exigia do artista a coragem de pôr cobro ao que este fora até ali. Que não se pense, entretanto, que esse torturado autojulgamento haja produzido uma obra datada, a considerar apenas na tangente da trama histórico-social a que se

^ Exatamente falando, as páginas 128-139. As citações de obras literárias estrangeiras foram mantidas no respectivo original, acom panhado agora, porém, por tradução disponível no Brasil.


vincula, como um dos marcos no impetuoso ir e vir da marcha das utopias oswaldianas, ou pelo prisma da infausta ciência facultada pela estética de Adorno. Décio de Almeida Prado, cujo Teatro brasileiro moderno não prima por desvelo ao apreciar as peças de Oswald, muda sintomaticamente de tom quando traz A morta à baila, ressaltando-lhe o caráter “estranho e hermético”, de “decifração [...] ainda por se completar” (PRADO, 2001, p. 33). Mais reveladoramente ainda, para José Celso Martinez Corrêa A morta tornou-se a viva dos anos 1990. Na esteira do centenário de nascimento de Oswald, Zé Celso apontou no mundo descortinado na peça “os círculos dos Infernos” de “nossa nada Divina/e muito sem graça Comédia atual” (CORRÊA, 1995a, p. 214), “um rito de passagem” (p. 219) que “queima tudo” (p. 218) para “preparar com as cinzas/ a alquimia de outros Poemas” (p. 219). “ [...] A morta é o manifesto de nossa época”, afirma o encenador, assim como “O rei da vela foi o manifesto precursor de 1968” (CORRÊA, 1995b, p. 207). Contestando as comemorações de um centenário “sem ter nada de Oswald” (p. 210), Zé Celso declara sua vontade de m ontar A morta. Mas alerta igualmente para outro tipo de tributo devido à obra: “Acho que seria necessário ler o texto, ouvi-lo, trabalhá-lo, trazer á tona o que ele pode dar” (ibidem; grifo meu). Enquanto esperamos pel’A morta rediviva na usina cênica de Zé Celso, cumpre não deixar passar essa oportunissima recomendação.

*****

A ação de [A morta] tem início [...] no inferno. O “Ato lírico em três quadros” do dramaturgo [Oswald de Andrade] remete ã Divina Comédia de Dante, de cuja estrutura tripartite deriva seu eixo construtivo. Como na Comédia, o sentido e a configuração do tríptico de Oswald são determinados pela travessia metafísica de um poeta. As partes de que se compõe a totalidade do drama - O País do Indivíduo, O País da Gramática e O País da Anestesia - correspondem á topografia teleológica do poema italiano: Inferno, Purgatorio e Paradiso. As semelhanças, no entanto, terminam aí. A relação d’A morta com a obra de Dante, a rigor, é polêmica, pauta-se pela deformação paródica


em vez de espelhamento inerte ou estilizador. O inferno oswaldiano é habitado por cinco personagens: Beatriz, a Outra de Beatriz, o Poeta, o Hierofante (mais as quatro respectivas Marionetes), e a Enfermeira Sonâmbula. A descrição do local de seus tormentos não lembra em nada a monumentalidade e a macabra minúcia arquitetônica da condenação eterna no imaginário dantesco:

A cena se desenvolve tam bém na platéia. O único ser em ação viva é a Enferm eira, sentada no centro do palco em um banco m etálico, dem onstrando a extrem a fadiga de um fim de vigília noturna. Ao fundo, arde um a lareira solitária. E stá-se n um cenáculo de m arfim , unido, sem janelas, recebendo a luz inquieta do fogo. Em torno da Enferm eira, acham -se colocadas sobre quatro tronos altos, sem tocar o solo. Q uatro M arionetes, fantasm ais e m udas, que gesticulam exorbitantem ente as suas aflições, indicadas pelas falas. E stas partem de m icrofones, colocados em dois cam arotes opostos no meio da platéia. No cam arote da direita, estão Beatriz, despida, e a O utra, num m anto de negra castidade que a recobre da cabeça aos pés. No da esquerda, o Poeta e 0 H ierofante, caracterizados com extrem a vulgaridade. Expressam -

se todos estáticos, sem um gesto e em câm ara lenta, esperando que as M arionetes, a eles correspondentes, executem a m ím ica de suas vozes. Sobre os quatro personagens da plateía, jorram refletores no teatro escuro. É um p anoram a de análise. (ANDRADE, 1991, p. 35)'*

Não há eflúvios de enxofre nem rios de sangue, não há demônios nem corpos humanos se contorcendo de dor. Oswald renuncia inteiramente à herança dos topoi e à riquíssima iconografia do temor cristão do inferno. As descrições exaustivas da Comédia cedem lugar a um punhado de traços e o complexo aparato das penas infernais é reduzido a proporções minimalistas. O despojamento do quadro constitui sua virtude. Graças ã parcimônia da composição, cada um dos elementos cênicos adquire particular importância e pronunciada expressividade. No País do Indivíduo, o inferno de cada personagem são as outras e, sobretudo, ela mesma.^ As bizarras ferramentas

Nas referências à peça, doravante - M, seguido do número da página. ^ Nesse aspecto, a concepção oswaldiana antecipa em sete anos a versão existencialista do inferno de Huis cios (1944), de Sartre. Assim como o escritor brasileiro, Sartre evita cuidadosamente o


de tortura de imediato atraem o olhar no recinto claustrofóbico da cena. Aprisionados em camarotes na platéia, o Poeta, o Hierofante, Beatriz e seu alter ego têm de assistir ao espetáculo grotesco de suas próprias aflições, na mímica exorbitante e ininterrupta das marionetes que os representam no palco. A Enfermeira, por sua vez, comparece como um símbolo ironicamente despido de seu significado. O único socorro que oferece aos condenados é a expressão desamparada de sua fadiga. O inferno de Oswald de Andrade é um panorama de análise, no sentido etimológico deste último termo: decomposição, desarticulação, desmembramento. O espaço cênico hermeticamente fechado isola as personagens de um suposto exterior, ao qual - caso exista - já não têm ou nunca tiveram acesso. Os camarotes na platéia dividem-nas entre si e além disso como que apartam a consciência de cada qual delas de seu respectivo corpo, projetado metaforicamente em uma marionete. Acresce a tanto que as personagens se ecoam e se duplicam. Beatriz reflete-se simetricamente em sua Outra, e no Hierofante também está insinuado uma espécie de Outro do Poeta. Uma vez que não lhes foi tolhida a capacidade de falar, as personagens falam, entretanto, não é 0 fio de suas palavras que haverá de emendar seus membra disjecta:

A O utra - Estão batendo. O Poeta - Aqui não há portas. Beatriz - Abre aquela porta. (M, p. 36)

imaginário tradicional ligado aos infernos. Em seu dram a, a pena infernal limita-se ao convívio forçado de três pessoas enclausuradas em um mesmo cômodo. Recordemos a célebre fala de Garcin, um dos protagonistas da peça: “Le bronze... (11 le caresse.) Eh bien, voici le moment. Le bronze est là, je le contemple et je comprends que je suis en enfer. Je vous dit que tout était prévu. lls avait prévu que je me tiendrais devant cette cheminée, pressant ma main sur ce bronze, avec tous ces regards sur moi. Tous ces regards qui me m angent... (11 se retourne brusquem ent.) Ha! Vous n ’êtes que deux? Je vous croyais beaucoup plus nombreuses. (11 rit.) Alors, c’est ça Tenfer. Je n ’aurais jam ais cru... Vous vous rappelez: le soufre, lebúcher, legril... Ah! quelle plaisanterie. Pasbesoin degril: 1’enfer, c’est lesautres.” (SARTRE, 1998, p. 93) Leia-se o trecho em uma versão brasileira: “A estátua de bronze... (Ele a acaricia.) Pois bem, este é 0 momento. A estátua de bronze está aí, eu a contemplo e compreendo que estou no inferno. Eu garanto que tudo estava previsto. Eles previram que eu ia ficar na frente desta lareira, passando a mão nesta estátua, com todos estes olhares sobre mim. Todos estes olhares que me devoram... (Ele se vira de repente.) E vocês, são apenas duas? Ah, eu pensava que vocês seriam muito mais numerosas. (Ri.) Então, é isto o inferno. Eu não poderia acreditar... Vocês se lembram: enxofre, fornalhas, grelhas... Ah! Que piada! Não precisa de nada disso: o inferno são os O utros.” (SARTRE, 2009, p. 125)


No inferno da clausura e da desintegração interior a possibilidade de comunicação seria uma bênção. Mas a troca de falas não consegue ser diálogo. Frases sucedem-se em um fluxo aparentemente coeso, contudo, é como se se referissem a mundos de todo distintos um do outro. Embora o Poeta afirme que não existe porta alguma ali. Beatriz responde ordenando-lhe que a porta seja aberta. Quem bate? Para onde se abre essa porta que não há?

A O utra - Estão batendo outra vez, escutem ... O Poeta - Vou abrir. N ão vou. Beatriz - Tens m edo que seja um personagem novo!

[...] O H ierofante - N ão é preciso abrir, eu já estava aqui. (M, p. 36-37)

O continuum incessante das réplicas deixa atrás de si lacunas semânticas, meias palavras e despropósitos. “Não é preciso abrir, eu já estava aqui” - proclama debalde o Hierofante, pois como quer que seja não se fará compreender. As falas das personagens não se conjugam em uma progressiva unidade lógico-semántica, colidem umas contra as outras em imprevisíveis incongruências. Mas 0 que levou essas criaturas ã danação? Por que pecado foram acabar no inferno imaginado por Oswald? A fatura do drama não facilita uma resposta, as réplicas são demasiado fragmentárias e polissêmicas, contudo, seu obscuro avanço aos poucos constitui um traçado legível. Lembremos primeiramente que, de acordo com as didascálias, a ação transcorre em um cenáculo de marfim. Suponhamos agora que Beatriz é não apenas musa, mas também personificação da obra do poeta.

A O utra - Vives enterrada em ti diante do espelho! O Poeta - És sem pre um a Vitória de Sam otrácia, com os olhos e os


cabelos presos a um horizonte sem fundo.

[...] Beatriz - N ão ouço nada... senão os m eus gritos, um atropelo e o silêncio... O Poeta - Paz a teu corpo! A Enferm eira - Q uem a tratará? (M, p. 38)

Com efeito, o subtítulo “Ato lírico” já antecipava que o drama se circunscreve à dimensão subjetiva de um “eu”. Se admitirmos portanto a hipótese de que a figura de Beatriz encarna o conjunto das obras criadas pelo Poeta, então as disparatadas vozes a ressoar no texto ganharão a textura polifônica característica de uma situação de autoanálise. As falas da Outra e do Poeta vibram em acordes de reprimenda e crítica. Como Narciso, Beatriz caiu na armadilha da fria superfície de seu reflexo; inebriada pelo narcótico de si mesma, definha na volúpia solitária e ascética de seu vício. Nua perante um hermético cenáculo de marfim, sua imagem parece sugerir a arrogante autossuficiência da forma. Não é de se excluir que exatamente essa vida enterrada em si mesma constitua condição, ou quiçá até a única possibilidade de sua sobrevivência. Se Beatriz for a arte, em especial a arte moderna, o preço a pagar a fim de que exista não consistirá na indiferença a tudo que não se submeta ã lei intransigente de sua forma? A Outra não leva argumentos assim em consideração, no labirinto de espelhos da estrutura dramática de A morta, sua função é antes negativa. Ela duplica a imagem de Beatriz, porém ao mesmo tempo a desfigura, ressaltando apenas suas imperfeições e defeitos. Como percebemos anteriormente, a perspectiva do Poeta tampouco se mostra favorável á sua amada. Por um lado, a bem dizer, chamando-a uma Vitória de Samotrácia, o Poeta reconhece a perfeição das obras que Beatriz presumivelmente personifica; por outro, todavia, divisa nessa mesma perfeição o estigma da pobreza e da incompletude de sua musa. No indestrutível equilíbrio de suas linhas a estátua doma a resistência da matéria e a torrente do tempo. Para o Poeta, não obstante, a Níké é sobretudo a falta de algo, uma falta que ele nota também em Beatriz. E condena. O vazio sem fundo dos olhos da escultura, os cabelos inexistentes, que vento nenhum agita, insinuam que o belo não


basta e que a perfeição artística é frágil e mutilada. Concentrada em seu próprio âmago, Beatriz não ouve nada além de seus gritos, um atropelo e logo após o silêncio. Que se passou com ela? Do que está falando? O Poeta responde como se não a ouvisse, deseja paz a seu corpo, e suas palavras têm a dureza de um impaciente gesto de abandono. A Enfermeira Sonâmbula ainda intervém, no panorama de análise do inferno subjetivo de Oswald fala por intermédio dela um instinto de autopreservação: quem tratará Beatriz? Seu reflexo, no entanto, mostra-se vão e impotente. Ninguém responde ã pergunta da Enfermeira e seu torpor não lhe permite sequer perguntar uma vez mais. A morta de Oswald de Andrade é uma espécie de psicodrama. Suas personagens desempenham a função de vozes no diálogo interior de uma consciência materializada no palco. A tradicional categoria da motivação não será portanto de grande préstimo para a compreensão do mecanismo que governa o desenrolar das cenas. Sem dúvida, a conduta do Poeta, do Hierofante, de Beatriz e da Outra resiste tenazmente ao estabelecimento de nexos de causa e efeito. A despeito disso, a situação na qual se acham tem sentido. O País do Indivíduo é o inferno da forma. A perfeição mutilada e o narcisismo de Beatriz conduzem-na ã sua perda, e em sua queda ela arrasta consigo o Poeta.®

O contraponto paródico com a Divina Comédia fica bastante nítido aqui. No poema de Dante, Beatrice é uma personagem alegórica que representa a teologia, ou seja, a ciência da verdade revelada que leva 0 homem à salvação e à beatitude eterna. Beatrice intercede em favor de Dante, pede pessoalmente a Virgílio que o ampare na custosa travessia que ele terá pela frente: “e donna mi chiamò beata e bela, tal che di com andare io la richiesi. Lucevan li occhi suoi piu che la stella; e cominciommi a dir soave e piana, con angélica voce, in sua favella: ‘O anima cortese mantovana, di cui la fama ancor nel mondo dura, e durerà quanto ‘1mondo lontana, Tamico mio, e non delia ventura, nella diserta piaggia è impedito si nel cammin, che volt’ è per paura; e temo che non sia già si smarrito, ch’io mi sia tardi al soccorso levata, per quel ch’i’ ho di lui nel cielo udito. O r movi, e con la tua parola ornata e con ciò c’ha mestieri al suo campare, Taiuta, si ch’i’ne sia consolata. r son Beatrice che ti faccio andare;


Acerta altura, a Outra volta-se para o Poeta: “Emparedado! Criaste uma grande doença!” (M, p. 41) É uma fala-chave. O Poeta é um escravo de sua criação, a qual lhe parece, contudo, insuficiente, indigna de sua submissão. Ele é um refém das obras que criou e continua a criar, mas nas quaisjá não se reconhece. Em seu lamento está contido um amargo juízo de si mesmo, e também da arte: “Minha vida reduzida, prisioneira, entum ulada.” (M, p. 42) O artista dá-se conta de tudo a que renunciou em prol de sua vocação. Seu sacrifício não se consumou em vão, o voluntário empobrecimento de sua vida encontrou justificativa na realização estética, no gesto criador. A beleza de Beatriz sublima quiçá todas as perdas, porém não as compensa, e o Poeta rejeita sua magnífica nudez:

Beatriz - Meu amor. O Poeta - N ão é possível m ais... Beatriz - Por quê? O Poeta - O professor te dissociou. Fujam os. N ão há crim e ainda visível. (M, p. 42)

A análise chega a termo, uma decisão enfim é tomada. A recusa da forma eqüivale a um primeiro passo rumo ã salvação. As paredes de marfim do País do Indivíduo já não

vegno dei loco ove tornar disio; amor mi mosse, che mi fa parlare.’” (ALIGHIERI, 1943, p. 15-16) Na já clássica tradução de Xavier Pinheiro, o fragmento tem a seguinte forma: “ [...] eis requerido/ Por Dama fui tão bela, tão donosa,/ Que as ordens suas presto lhe hei pedido./ Brilhavam mais que a estrela radiosa/ Os seus olhos; suave assim dizia/ De anjo com voz, falando-me piedosa:/ ‘De Mântua alma cortês, que inda hoje em dia/ No m undo gozas fama tão sonora,/ Que, enquanto existir mundo, mais se am plia,/A m igo meu, que a sorte desadora,/ Pela deserta falda indo, im pedido/ De medo, atrás os passos volta agora./Tem o que esteja tanto já perdido,/Q ue tarde eu tenha vindo a socorrê-lo,/ Pelo que lá no cêu dele hei sabido./ Parte, pois, e com teu discurso belo/ E quanto o salvar possa do perigo/ Lhe acode; e me console o teu desvelo./ sou Beatriz, que envia-te ao que digo,/ De lugar venho a que voltar desejo:/Am or conduz-me e faz-me instar contigo.” (ALIGHIERI, s.d., p. 27) É graças a Beatrice, “donna di virtú”, que Dante reencontrará o caminho atê a graça divina. Em A morta a situação se inverte: Beatriz constitui o instrum ento da condenação do Poeta, sua soberba, a arrogante soberba da forma, ê de fato o inferno em que ele foi dar.


podem deter o Poeta. Beatriz hesita, teme a extensão desconhecida e potencialmente hostil do que lhe é estranho. Afinal, entretanto, concorda com a proposta do Poeta: “Fujamos. Foi a outra que morreu.” (M, p. 43) O herói da peça oswaldiana deixa para trás os horrores do inferno. Há de saber em breve que o percurso até a libertação ainda será longo. A passagem para o segundo quadro do “Ato lírico” faz-se acom panhar por uma resoluta mudança de tom. ^ O País da Gramática é um purgatório futurista, repleto de balbúrdia e confusão. O espaço de clausura do inferno é substituído por uma praça pública “onde vêm desembocar várias ruas” (M, p. 49), a lista de dramatis personae amplia-se bastante. Além do Poeta, Beatriz e o Hierofante, incluem-se nela Horácio, O Cremador, O Juiz, Uma Roupa de Homem, um Grupo de Cremadores e um Grupo de Conservadores de Cadáver, Mortos, Vivos, O Turista Precoce e O Polícia Poliglota. A cena apresenta o tumultuoso campo de batalha dos Vivos contra os Mortos. Intrigado diante de toda a celeuma, o Turista dirige-se ao Polícia, o qual lhe explica a razão da generalizada contenda. O mundo é um grande dicionário de palavras vivas e vocábulos mortos, encerrados em um sistema de regras “indiscutíveis e fixas” (M, p. 49). Os impulsos vitais de mudança e de renovação são sufocados pelo poder dos mortos. A anarquia dos vivos, contudo, resiste ao poder de seus opressores, quer sobrepujar e destruir a autoridade de todas as academias, museus, códices... Nesse pano de fundo, entram em cena Horácio e o Poeta, conversando como velhos conhecidos. Oswald afasta-se decididamente aqui do modelo dantesco. Em vez de Virgílio, torna Horácio

^ Oswald não descuida do jogo das sutis associações com a Divina Commedia. No proêmio do primeiro canto da segunda parte do poema, dando as costas às trevas infernais, Dante tam bém invoca o alento de uma outra musa - “ [...] qui Calliopè alquanto surga” - , para que seu engenho possa fazer justiça às paragens mais suaves descortinadas no Purgatório: “ Per correr migliori acque alza le vele omai la navicella dei mio ingegno, che lascia dietro a sè m ar si crudele; e canterò di quel secondo regno dove 1’umano spirito si purga e di salire al ciei diventa degno.” (ALIGHIERI, 1943, p. 299) Na versão em português já referida, lê-se no passo correspondente: “Do engenho meu a barca as velas solta/Para correr agora em m ar jucundo,/ E ao despiedoso pego a popa solta./A quele reino cantarei segundo,/ Onde pela alma a dita é m erecida/ De ir ao céu livre do pecado im undo./ [...] Unir ao canto meu seja servida/Caliope o som alto e sublim ado” (ALIGHIERI, s.d., p. 245).


0 guia do Poeta. O autor da célebre Epistola ad Pisones parece mais adequado à

simbologia de normas e prescrições do País da Gramática. Ademais, Oswald modifica 0 caráter da relação entre o Poeta e seu companheiro. Em conformidade com a sólida e

clara hierarquia de valores na Comédia, a atitude de Dante em face de Virgílio é cheia de solenidade e reverência: “tu duca, tu segnore, e tu maestro” (ALIGHIERI, 1943, p. 19). A familiaridade superficial entre o Poeta e Horácio soa mais consentânea com o provisório e tenso equilíbrio de forças do caótico purgatório d’A morta. Na verdade, 0 protagonista da peça de Oswald está absolutamente só. Os vínculos com a tradição,

representada por Horácio, ainda não foram rompidos por completo, mas já não desempenham papel apreciável em suas decisões. O Poeta conta que abandonou Beatriz. Horácio reage com ceticismo, pondera que 0 sentimento que o Poeta nutre por ela o “imobiliza e am ortalha” (M, p. 51). Nesse ínterim, adentram o palco para um comício os conservadores de cadáver. Comovido, 0 Poeta percebe junto a eles, estática, encoberta por um véu, sua amada. À revelia das

admoestações de Horácio, aproxima-se dela e a interpela. Invade o palco nesse meiotempo 0 grupo dos cremadores, que de pronto avançam contra seus adversários. O Hierofante, que toma parte na manifestação, ergue uma Bíblia e grita: “In illo tempore!” (M, p. 53), ao que respondem sem rodeios os cremadores: “Fora, fora!” (Ibidem) As didascálias informam que

O tum ulto cresce. Juntam -se aos crem adores galicism os, solecism os, barbarism os. Do lado dos m ortos cerram colunas graves interjeições, adjetivos lustrosos e senhoriais arcaísm os.

Coro das Interjeições - Oh! Ah! Ih! Os C rem adores - Fora a estupidez das interjeições! O H ierofante - M assa desprezível de pronom es mal colocados! U m C re m a d o r-F o ra ! [...] (M ,p . 53)

A suspeita ingerência do Juiz interrompe a disputa e decide a querela com um veredito


favorável aos mortos. Todavia, a causa dos vivos arrebata o coração do Poeta. Ele tenta convencer Beatriz a juntar-se a eles na luta contra a tirania dos defuntos. Sua musa, porém, mostra-se fria e distante. Cruza então o palco Uma Roupa de Homem e cortesmente a cumprimenta: “Boa tarde, linda!” (M, p. 55) Beatriz havia se encontrado com ela no dia anterior. Mas é um morto, diz ainda o Poeta, a quem Beatriz já não ouve, saindo de cena levada pelo exército da morte. Inconformado com o fato de tê-la perdido, O Poeta decide salvá-la. Horácio adverte-o de novo, mas é tarde. O Poeta está em um caminho sem volta, ele acaba de partir - para o País da Anestesia. As personagens do terceiro quadro do “Ato lírico” oswaldiano aguardam com impaciência. Sabem da iminente chegada do Poeta e alimentam a esperança de que ela atenuará um pouco - ao menos por alguns instantes - o tédio mortal do além-túmulo. A vista que se descerra não é nem um pouco paradisíaca. À direita, vislumbra-se um aeródromo que serve igualmente de necrotério. No centro do palco, ergue-se um jazigo de família. Do lado esquerdo, “a árvore desgalhada da Vida, em forma de cruz, onde arde pregado um facho” (M, p. 63). Conversam nos degraus do jazigo O Radiopatrulha, A Dama das Camélias, O Atleta Completo, A Senhora Ministra e O Hierofante, quando de súbito estronda um berreiro:

C adáveres - Q ue é isso? Q ue é isso? O H ierofante - U m a cena de família. A S enhora M inistra - Q ue pessoal escandaloso! A D am a das Cam élias - B rigam sem pre. N unca pensei que fosse assim no seio da sociedade honrada! O H ierofante - G ente católica. E extrem am ente conceituada. O dram a que os trouxe para cá teve a m ais tétrica repercussão nos m eios distintos. A S enhora M inistra - Como foi? O H ierofante - Gás! Suicídio coletivo. A D am a das Cam élias - E ninguém escapou?


A C riança (pela vigia) - Esse sujeito, além de me ter suicidado, não quer m e d ar doce! O P a i-C a la a boca! A C riança - Depois diz que é p a i! O Pai - O am ante da tua m ãe te dava doces! A C riança - É por isso que eu gostava dele... O Pai - Cinico, bastardo, filho de um a...

Pancadaria, urros, choros. (M, p. 64-65)

Sob a irreversível narcose da morte, os habitantes do País da Anestesia continuam a representar a trama caricata das vulgaridades, das frustrações e das comezinhas intrigas que viveram em vida. Oswald opera com desenvoltura as convenções do melodrama, do boulevard e da farsa, combina ostentosamente em sua peça elementos de diversas épocas e estéticas. Um Hierofante, uma Dama das Camélias e um Radiopatrulha dividem o mesmo palco que às vezes é atravessado pela sombra funesta de um pássaro negro, o Urubu de Edgar... Eis aí, não existe um paraíso, parece sugerir-nos Oswald, e se acaso existir ele não será mais do que isto: um entulhado armazém de ilusões e surradas quinquilharias de cena. Escuta-se então o ruído de um motor e logo em seguida desce verticalmente sobre o palco o autogiro de Caronte. O provecto barqueiro (?!) das almas toma em seus braços o corpo amortalhado de Beatriz, deposita-o sobre a mesa de mármore do necrotério e, solicitado por seu interminável mister, torna a decolar sem demora. Não muito depois, em seu planador bafejado pelos “sopros augurais da terra” (M, p. 68), surge triunfalmente o Poeta: tudo está pronto para o gran íinale. Cheios de ansiosa curiosidade quanto ao curso dos eventos, o Radiopatrulha, o Atleta Completo, a Dama das Camélias, o Hierofante e a Senhora Ministra descem do palco e acomodam-se na primeira íila da platéia para assistirem ao esperado encontro do Poeta com sua musa.


Beatriz, contudo, não abandonará o País da Anestesia. A decomposição já imprime marcas em seu semblante, letargo e necrose embaraçam seus movimentos. O Poeta deseja salvá-la, deseja levá-la de volta para a vida, o sol da manhã e a terra. Exorta, insiste, repreende: “És a máscara de um ser que se dispersa.” (M, p. 69) Mas as mãos impassíveis de Beatriz são a única resposta a seus apelos: “A tua mão termina em reta! O teu braço está rígido e reto!” (M, p. 71) - exclama em desespero, enquanto os cadáveres retornam ao palco e se alinham ao fundo da cena. O gesto que se segue é tão rápido “Morta! Beijei inútil a labareda extinta de teu corpo!” (ibidem) - que só nos damos plena conta de suas conseqüências após o alerta do Urubu de Edgar: “Socorro! Socorro! Fogo!” (ibidem). Se a forma está morta, se Beatriz só perdura ainda como negação da vida, o Poeta tampouco abandonará o País da Anestesia. A imolação suicida é um derradeiro sacrifício pela arte e, ao mesmo tempo, seu fim. O palco de A morta arde em chamas, o agudo estrídulo de uma sirene anuncia a vitória inelutável dos cremadores. O paraíso do psicodrama oswaldiano é o estertorar de um mundo e a promessa nebulosa de uma outra realidade, onde o bordão futurista das parole in libertãjá não há de ganhar corpo na ribalta, apenas, mas antes no chão áspero da existência cotidiana do homem. O dramaturgo Oswald de Andrade não oculta o teor didático da obra. A morta principia com um procedimento que tem algo de brechtiano, uma breve cena na qual 0 Hierofante rompe a quarta parede da ilusão teatral e, sentando-se sobre a caixa do

ponto, interpela o público: “Senhoras, senhores, eu sou um pedaço de personagem, perdido no teatro. Sou a moral.” (M, p. 29) Oswald induz um distanciamento “épico” para suscitar uma atitude crítica no espectador. As palavras do Hierofante salientam 0 caráter exemplar do “Ato lírico”, o psicodrama do Poeta é o drama de cada um:

“Não vos retireis das cadeiras horrorizados com a vossa autópsia. Consolai-vos em ter dentro de vós um pequeno poeta e uma grande alma!” (Ibidem) Assim como em uma Lehrstück de Brecht, não se trata para o autor de angariar uma hipnótica identificação emocional dos receptores da peça com as personagens no palco. A exumação cênica das consciências tem em mira a concretude da práxis e o horizonte da revolução. No desfecho do drama, em meio ao fogo que se alastra, o Hierofante dirige-se mais uma vez ã platéia:


Respeitável público! N ão vos pedim os palm as, pedim os bom beiros! Se quiserdes salvar as vossas tradições e a vossa m oral, ide cham ar os bom beiros ou se preferirdes a policia! Som os com o vós m esm os, um im enso cadáver gangrenado! Salvai nossas podridões e talvez vos salvareis da fogueira acesa do m undo! (M, p. 73)

O canto de cisne da forma em Amorta clama por uma mudança no âmago do espectador. O fogo simbólico consome o passado carcomido que obstrui a marcha do porvir. Alternativas, com efeito, não há: seja como for, o público não escapará às chamas de um mundo em transformação.


RE FE RÊN CIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NIETZSCHE E A AMBIVALÊNCIA DO FILÓSOFO E 00 ARTISTA: UMA NECESSIDADE ESTÉTICA DE (DES) CONSTRUÇÃO DO MUNDO E DA VIDA^ Dr. IVAN RESAFFI DE PONTES- Humboldt-Universitát zu Berlin

Resumo: Por meio da (des)construção artística da realidade, o artista nietzschiano busca a ampliação de sua natureza, instinto e poder na criação de uma obra de arte ambivalente como expressão da união e conciliação entre a profundidade do mundo dionisíaco e a superficialidade das aparências apolíneas. À luz da paródia da sabedoria do Sileno e da recepção da figura mitológica do Sátiro em seu pensamento, N ietzsche desenvolve uma teoria da tragédia que fornece ã sua reflexão filosófica, estética e política um caráter ambivalente, cujo valor revela uma ampla relevância para a compreensão de sua crítica à cultura moderna e ao seu tempo. Este artigo analisa alguns aspectos da formação do artista nietzschiano com relação à sua crítica ao homem moderno, e expõe a dimensão desta crítica frente à reflexão estética de sua obra. Palavras-chave: D ionísio, Apoio, Sileno, sátiro, am bivalência, (des)construção, aparência e realidade.

A bstract: By means of the artistic (de-)construction of reality, Nietzsche’s artist seeks the expansion of his nature, instinct and power in creating an artwork as an ambivalent expression of unity and reconciliation between the depth of the Dionysian world and the shallowness of the Apollonian appearances. In the light of the parody of the wisdom of Silenus and the reception of the mythological figure of the Satyr, Nietzsche develops in his a work a theory of tragedy that gives his philosophical, aesthetic and political reflections an ambivalent character, whose value reveals a broad relevance for understanding his critique of the modern culture and his time. This article examines some of these aspects of the Nietzschean artistic formation in relation to his critique of the modern man, and shows the extent of this criticism compared to the aesthetic reflection of his work. Keywords: Dionysos, Apollo, Silen u s, th e satyr, am bivalence, (de-)construction, appearance a n d reality. * Este artigo contém resultados da minha tese de doutorado realizada na Humboldt-Universitat zu Berlin, publicada em outubro de 2014 pela Editora KOnigshausen & Neumann com o seguinte título: “ Satyrs Spiel und Silens W eisheitbei Nietzsche. Eine âsthetischeund philosophische U ntersuchung”.


“Assim surge aquela figura fantástica e aparentem ente tão repulsiva do sábio e entusiástico sátiro, que é ao m esm o tem po o ‘hom em sim ples’ em oposição ao deus: im agem da natureza de seus im pulsos m ais vigorosos, até m esm o simbolo desta e sim ultaneam ente proclam ador da sua sabedoria e arte: m úsico, poeta, dançarino, visionário em um a p essoa.”^ (KSA, GT, 1 ,6 3 ) “So entsteht denn jen e phantastische und so anstõssig scheinende Figur des w eisen und begeisterten Satyrs, der zugleich ,der tum be M ensch‘ im G egensatz zum Gotte ist: Abbild der N atu r und ihrer starksten Triebe, ja Symbol derselben und zugleich V erkünder ihrer W eisheit und Kunst: M usiker, Dichter, Tánzer, G eisterseher in einer P erson.“ (KSA, G T ,1,63) Friedrich Nietzsche

curiosidade e reflexão sobre uma suposta fronteira entre o ser humano e os

A

animais levou a imaginação e fantasia humana a formar diversas figuras mitológicas como tentativa de resposta à pergunta: onde se encontra e como

pode ser estabelecida uma fronteira entre o humano e a animalidade? Centauros, sereias e medusas são algumas destas figuras que simbolizam a união de duas naturezas comtempladas como contrárias. Como figuras de pensamento, também não raras na reflexão nietzschiana sobre a natureza humana, estas ambivalentes criações incorporaram e se tornaram de fato expressão de um paradoxismo que permeia tanto a abordagem estética como a política deste pensador. A anormalidade e o asco que a aparência grotesca dessas figuras evoca, o desafio ao hábito que elas impõem ao seu observador, bem como o estranhamento que seus habitats geram, refletem já na sua origem um posicionamento primitivo do pensamento humano, bem como medos e inseguranças do homem face à sua natureza e ao mundo. Nietzsche analisa estas criações e as relações com estes seres imaginários e mitológicos no contexto de seu pensamento estético e político á luz da capacidade

1Todas as citações em alemão foram traduzidas para a língua portuguesa pelo autor.


humana de criar metáforas e símbolos, assim como por meio de seu questionamento sobre o valor e a transvaloração da cultura. Segundo o exemplo do homem trágico grego, Nietzsche aponta que em busca do entendimento da sua própria natureza, esse homem da antiguidade grega se posicionou frente a um espelho, do qual tanto a religião, como a ciência e a arte retiram o material e o conteúdo para suas respectivas produções culturais. Já no texto Die dionysischen Weltanschaung, o jovem Nietzsche analisa a função da visão da imagem humana sobre um espelho para o seu entendimento do homem da antiguidade grega: “Seu ser, tal como ele é, vê-lo num espelho esclarecedor e, com este espelho, proteger-se contra a medusa — foi a estratégia genial da ‘vontade’ helênica, principalmente para poder sobreviver“ / “ Sein Dasein, wie es nun einmal ist, in einem verklârenden Spiegel zu sehn und sich mit diesem Spiegel gegen die Meduse zu schützen — das war die geniale Strategie des hellenischen ‘Willens’, um überhaupt leben zu kõnnen“. Desta forma, tanto o espelho, como instrumento de observação, como a imagem apolinea sobre ele refletida se tornam uma fonte para a reflexão nietzschiana sobre o homem e sua natureza. “O ponto de partida é a ilusão do espelho” escreve Nietzsche em um fragmento do ano de 1880, “nós somos i m a g e n s

do

espelho

vivas”

/ „Der Ausgangspunkt ist die Táuschung des Spiegels, wir sind 1 e b e n d i g e S p i e g e l b i l d e r “ (KSA, NF, 9,311) e ainda numa imagem poética três anos mais tarde se lê: “Uma criança deve segurar para mim o espelho, sobre o qual o mundo está escrito” / „Ein Kind soll mir den Spiegel halten, auf dem die Welt geschrieben steht“ (KSA, NF, 10,428). Assim, torna-se ainda mais clara a importância do jogo de imagens produzidas por um espelho para o poeta-pensador em busca do entendimento da natureza humana e do mundo. A necessidade deste jogo e da dinâmica do conhecimento mediante espelhos, no qual surge a visão do que é o homem e o mundo, deslumbra para Nietzsche não apenas todo 0 poder e força do ser humano para se apropriar do mundo, de seu potencial e de seus destinos, mas também as incertezas de sua natureza. À elas Nietzsche sujeita em sua filosofia também a religião e a ciência, pois, sem um confronto direto com a obscuridade da existência humana, suas procuras pela origem e pelo sentido da vida não alcançariam algum êxito. A perspectiva nietzschiana sobre a natureza humana se direciona e encontra o seu foco, portanto, nas profundezas do ser humano; em seu


âmago, nesta profundidade do ser, Nietzsche diagnostica a própria ruína ou perecer da existência humana, ou seja, o seu ocaso e destruição, “sein U ntergang”. Uma formulação clara desta visão do destino humano expressa de forma incisiva o seguinte fragmento do início do ano de 1874: “O sentido da vida não se encontra na manutenção de instituições ou nos seus progressos, mas sim nos indivíduos. Estes devem ser quebrados.“ „Der Sinn des Lebens liegt nicht in der Erhaltung der Institutionen, oder in deren Fortschritt, sondern in den Individuen. Diese sollen gebrochen werden.“ (KSA, N F ,7 ,777). Do mesmo modo como a iconografia e as artes se ocupam destas figuras como um antigo objeto de estudo, das quais irrompe um oximoro próprio ao homem, a im­ portância filosófica da ambivalência dessas figuras reside para Nietzsche não somente no mistério sobre suas existências, mas, na dupla natureza figurativa que elas repre­ sentam e em seu caráter emblemático, que revela um autoconhecimento do observador frente ao espelho. Nesse sentido, deve ser entendido algumas características da figura ambivalente do sátiro, pois como figura mitológica e seguidor do deus Dionísio, ele apresenta um caráter filosófico no pensamento nietzschiano, que possibilita por fim elucidar a dimensão da sua crítica da cultura, cujo significado representa um papel fundamental para o entendimento da concepção nietzschiana da tragédia e a da arte. Apesar do longo caminho percorrido pelo sátiro na história iconográfica é possível caracterizar de maneira distinta este ser originário da floresta: sua aparência humana e animal é provida, amiúde, com um descomunal fálus de natureza equina, simbolizando o poder vital e procriador da natureza humana e animal; suas pernas, por sua vez, demostram a herança e o potencial de sua natureza caprina; sem abrir mãos de traços animalescos, seu tronco e sua face dão forma a visão de um animal racional e suas orelhas pontudas a uma audição aguda; de acordo com o objetivo perseguido, sua composição artística o dota com uma cauda ou com chifres bestiais; por fim, como expressão maior de uma capacidade genuinamente humana, seu sorriso distinto e onipresente demonstra orgulho e altivez face ã sua natureza ambivalente.


A humanidade e a animalidade do sátiro são retratadas, frequentemente, em suas perseguições a ninfas, com as quais ele também extravasa sua natureza de músico e dançarino, e desdobra seus jogos de sensualidade. Como ser mitológico, o sátiro é tomado pelos mais diversos artistas em diferentes épocas para ilustrar o instinto artístico. Este ser cercado de obscuridade, o qual possui seu habitat original nas selvas da antiguidade representa, desde de Aristóteles, a origem da tragédia grega:

“Ainda, quanto à im portância: de pequenas histórias e elocução própria ao ridículo, por ter se form ado a p artir de elem entos satíricos, tardiam ente conquistou m ajestade, e o m etro de tetrâm etro se fez iâm bico. Pois prim eiro fez-se uso de tetrâm etro, por ser a poesia satírica e m ais própria para a dança, m as quando a fala se im pôs, a natureza m esm a encontrou o m etro próprio.”^

Uma passagem do Drama Musical Grego / Die griechische Musikdrama expõe de maneira clara como Nietzsche segue a teoria aristotélica da origem da tragédia em sua reflexão sobre o significado estético do sátiro e do Sileno, o primeiro dos sátiros e o preceptor do deus Dionísio:

“No que era a tragédia originalm ente contrária a um a lírica objetiva, um a canção cantada, provinda do estado de determ inados seres m itológicos e, de fato, com as fantasias dos próprios. Prim eiro, era necessário um coro de hom ens transvestidos em sátiros e silenos, eles m esm os, d ar a entender o que o teriam levado a tal excitam ento: ele indica um corso da história de luta e de dor do Dionísio rapidam ente com preensível aos espectadores.” „Was w ar die Tragõdie ursprünglich anders ais eine objektive Lyrik, ein Lied aus dem Z ustande bestim m ter m ythologischer W esen heraus gesungen, und zw ar im K ostüm derselben. Z u erst mul^te ein dithyram bischer C hor von zu Satyrn und Silenen verkleideten M ánnern selbst zu verstehen geben, w as ihn in solche A ufregung versetzt habe: er deutete hin auf einen den Z uhorern schnell verstándlichen Z ug aus der Kampf- und Leidensgeschichte des D ionysos.“ (K S A ,G M D ,1, 527).

2 Aristóteles - P o é tic a - Traduzido e comentado por Maciel Gazoni, Fernando. São Paulo 2006, 44. Vide: file:///C:/ Users/Ivan/D ow nloads/TESE_FERN A N D O _M A C IEL_G A ZO N I.pdf


O sátiro musicante adotou, portanto, a flauta descoberta pela deusa Diana como instrumento, cujas melodias e harmonias o leva ao semelhante estado do êxtase, no qual ele se encontra na tragédia, e que, por sua vez, o permite exercer a função de epopta e o papel de adorador do deus Dionisio. Por meio desta constituição, o sátiro assume as características do “homem dionisiaco“, o qual, guiado pelos seus instintos mais primitivos e naturais, comtempla-se como “músico, poeta, dançarino, visionário em uma pessoa”. Todas essas qualidades, da mesma forma que seu instinto sexual, desenvolvem-se e agem de forma desenfreada e em equilíbrio com a sua própria natureza. Uma análise profunda do conteúdo iconográfico e mitológico do sátiro pressupõe uma reconstrução do desenvolvimento de sua força expressiva no transcorrer da história arte. Contudo, já que uma respectiva análise não pode ter lugar aqui, interessa-nos, no contexto duma reflexão sobre a estética nietzschiana, apenas a constatação de que essa figura, originalmente da cultura e mitologia grega, conquistou seu lugar em diversos outros contextos culturais, como por exemplo na estética, na religião e na política em diferentes épocas da história antiga e moderna do ocidente. No que diz respeito ao pensamento de Nietzsche, toda reflexão sobre os papéis que o sátiro e o Sileno ocupam e as intenções com as quais suas características são empregadas em sua filosofia levam, primeiramente, a importantes constatações sobre o que representa para Nietzsche o uso de instintos na produção da arte e de valores morais, abrindo um espaço para uma fecunda análise de diversos aspectos estéticos de seu pensamento. Certamente, Friedrich Nietzsche não é responsável pelo renascimento do sátiro, visto que, ao contrário da tragédia, cujo renascimento o pensador do Nascimento da Tragédia esperou vivenciar na obra musical de Wagner, o ditirámbico servidor do deus Dionisio, como já dito, nunca foi banido do cenário cultural do Ocidente. Como figura cunhada por uma ambivalência ímpar, a idiossincrasia do sátiro marcou na literatura e nas artes plásticas o imaginário de diversas formas humanas e animalescas. Por um lado, Nietzsche segue o espírito de sua época com a recepção do sátiro em sua obra, por outro lado ele confere a esta apropriação características essenciais de sua filosofia que, assim, transforma um produto cultural tradicional para demonstrar toda a particularidade formal e conceituai de seu modo de filosofar.


O próprio Nietzsche descreve o escritor e poeta Heinrich Heine na biografia de seu pensamento, Ecce Homo, como um dos seus mais importantes contemporâneos, o qual, como ele próprio, incorporou em seu estilo filosófico e artístico o ritmo oculto e original de uma natureza ocultada pelo tempo. Por meio das imagens e tons da obra de Heinrich Heine, escreve Nietzsche, é possível perceber o espectro de cores e melodias necessário para a representação satírica do mundo em contraposição ao Olimpo habitado por antigos ídolos. Da prosa e da lírica de Heine soa nos ouvidos de Nietzsche um sentido satírico para a verdade das sensações e um “evoé Bacho”, o qual não pode deixar de ser ouvido por aqueles que compartilham dessa mesma natureza:

“O conceito m ais alto do lírico m e foi dado por Heinrich Heine. Eu procuro em vão, por todos os reinos dos séculos, por um a sem elhante m úsica em doçura e paixão. Ele possuía aquela m aldade divina, sem a qual não sou capaz de pensar a plenitude, — eu aprecio o valor do hom em e da raça por meio do qual esses sabem entender o deus não isolado do sátiro.” „D en hochsten Begriff vom Lyriker h at m ir Heinrich Heine gegeben. Ich suche um sonst in allen R eichen der Jahrtausende nach einer gleich süssen und leidenschaftlichen M usik. E r besass jen e gottliche Bosheit, ohne die ich m ir das Vollkom mne nicht zu denken verm ag, — ich schâtze den W erth von M enschen, von R assen darnach ab, wie nothw endig sie den G ott nicht ab g etren n tv o m S aty rzu verstehen w issen.“ (KSA, EH, 6 ,2 8 6 ).

Mesmo considerando o fato de que nem sempre Nietzsche expressa uma avaliação somente positiva sobre o autor da obra Os Deuses no E xílio /D ie Gotter im Exil, com estas entusiásticas afirmações sobre a natureza de Heinrich Heine, Nietzsche reconhece, no entanto, uma irmandade de instintos e impulsos estéticos, a qual vislumbra cada momento da vida como uma sátira. Somente aqueles que pertencem a esta mesma sociedade e possuem esta mesma natureza podem entender a vida como um ato estético de consagração a este deus e seus seguidores.^

^N ãosedeveesquecer,contudo,queopensam entodeN ietzschenosobrigaa colocara este reconhecimento de irm andade e cumplicidade a seguinte ressalva: “ Perceber que eu concordo com outros, me deixa ligeiramente desconfiado sobre aquilo que concordam os.” / „Die W ahrnehm ung, daíà ich mit Anderen übereinstimme, macht mich leicht miíàtrauisch gegen das, w orüber wir übereinstimmen." (KSA, NF,


Nesse mundo dominado pelo poder e instinto de deuses e sátiros, o pensamento de Nietzsche é guiado por uma preocupação estética em relação à produção da aparência / “ Schein” e dos órgãos passíveis de percepção do mundo sensível. É sabido que em relação a todos os objetos e situações, com os quais a mente e o olhar humanos entram em contato, sejam eles paisagens, regiões, livros ou épocas da história, uma pergunta essencial para Nietzsche representa o modo como se desdobra a percepção da aparência do mundo percebido. O que paira, portanto, entre o observador e o objeto observado, Nietzsche se opõe veementemente a chamar de “verdade”. Em contrapartida, sua filosofia impõe a conceitos como aparência, mentira, símbolo e metáfora o trabalho de forjadura da percepção do homem. Todos os objetos apresentados pelo mundo a nós passam a estar, por conseguinte, submetidos à dinâmica dos olhos e dos mecanismos da percepção humana, os quais, por sua vez, estão subjugados a uma determinada e incontestável regra, a saber: a inexatidão do corpo e do aparelho perceptível humano.

“Ao conceito corresponde prim eiram ente a im agem , im agens são pensam entos prim itivos, quer dizer a superfície da coisa resum ida no espelho dos olhos. A im agem é um a, a som a é outra. Im agens nos olhos hum anos! Isso é dom inado por todos os seres hum anos: a p artir dos olhos! Sujeito! O ouvido ouve o som! U m a inteiram ente diversa concepção m aravilhosa do m undo. A arte se baseia na inexatidão da visão. Tam bém no ouvido inexatidão no ritm o, tem peratura etc. a arte se baseia novam ente n isso.”

„D em Begriff entspricht zuerst das Bild, Bilder sind U rdenken d. h. die O berflachen der D inge im Spiegel des Auges zusam m engefaftt. Das Bild ist das eine, das Rechenexem pel das andre. Bilder in m enschiichen Augen! Das b eherrscht alles m enschiiche W esen: vom Auge aus! Subjekt! das O hr hõrt den Klang! Eine ganz andere w underbare C onception derseiben W elt. Auf der U ngenauigkeit des Sehens b eruht die K unst. A uch beim O h r U ngenauigkeit in R hythm us, T em peratur usw. darauf b eruht w iederum die K unst.“ (KSA, NF, 7 ,4 4 0 ).

10,99).


Resta concluir que esta concepção do mundo dada pelos órgãos dos sentidos obriga o indivíduo dentro de sua condição humana a se adaptar à imagem ilusória da natureza e a se deixar guiar por seus instintos mais profundos a fim de evitar a precipitação de sua inevitável degeneração. Nietzsche analisa de que forma este ser, cercado pelas inexatidões e incertezas de seu aparelho sensorial e frente a este inexorável destino, busca ampliar suas chances de sobrevivência através da encenação e do uso da astúcia. A vontade, o prazer e o poder humano em brincar e jogar encontram, segundo Nietzsche, as suas formas mais preponderantes em sua capacidade de encenação. O prazer humano em usar máscaras e seu instinto de ator são, assim, para Nietzsche passíveis de se desenvolverem de maneira irrefreável, a ponto de se tornarem senhor frente a todos os outros instintos. A capacidade humana de representar e o poder de seus instintos naturais de adaptação manifestam na concepção estética do homem nietzschiano o parentesco de sua natureza com a dos animais. Por um lado, os instintos podem se voltar contra a vida e contra si mesmo, por outro lado, quando um instinto benéfico ao fortalecimento da vida se impõe frente a outros instintos, novas formas de vida podem surgir:

“U m tal instinto tem seform ado m ais facilm ente em fam ílias de povos inferiores (...) com o m estre daquela incorporada e encarnada arte de um infinito jogo de esconde-esconde, que se cham a entre os anim ais m im etism o: até finalm ente este poder chicoteado de gerações para gerações se to rn ar senhor, irracional, indom ável, com o instinto de outros instintos aprender a com andar e criar o ator, 0 arfista’ (o bufão, o contador de histórias, o côm ico, insano, palhaço, tam bém o serviçal clássico, o Gil Blas: pois em tais tipos tem se a pré-história dos artistas e m uito frequentem ente até m esm o a do ‘génio’) ” „Ein solcher Instinkt wird sich am leichtesten bei Familien des niederen Volkes ausgebildet haben (...) ais M eister je n e r einverleibten und eingefieischten K unst des ewigen Verstecken-Spielens, das m an bei T hieren m im icry nennt: bis zum Schluss dieses ganze von G eschlecht zu G eschlecht aufgespeicherte Verm ogen herrisch, unvernünftig, unbándig w ird, ais Instinkt andre Instinkte kom m andiren lernt und den Schauspieler, den ,K ünstler’ erzeugt (den Possenreisser, Lügenerzáhler, H answ urst, N arren, Clown zunáchst, auch


den classischen B edienten, den Gil Blas: denn in solchen Typen h at m an die V orgeschichte des K ünstlers und oft genug sogar des ,G enies’) “ (KSA, FW, 3, 608).

A ambivalência que envolve a natureza artística destes personagens, visto que ela se direciona ao ocaso, sendo, ao mesmo tempo, capaz de se recriar, contextualiza-se, assim, no âmbito do sofrimento e do estado de dor da natureza humana. A importância desta dinâmica do instinto do ator em assumir papéis e representá-los por meio da imitação para o desenvolvimento da natureza humana é analisada por Nietzsche em seu pensamento estético e político também num contexto da ambivalência: primeiro, mediante uma avaliação do desenvolvimento interno construtivo da própria vontade do indivíduo e, segundo, por uma ação externa manipulativa. Estes dois movimentos contrários juntam ente como os efeitos proveitosos e nocivos da ação do instinto de ator para o conhecimento e desdobramento de sua natureza podem ocorrer num indivíduo quando sua ambivalência alcança uma esfera política, cultural e social que é, por sua vez, analisada por Nietzsche por intermédios tanto de exemplos da antiguidade como da modernidade:

“Como anim al im itador o ser-hum ano é superficial: é suficiente para ele, da m esm a form a que para os seus instintos, a aparência da coisa. Ele assum e juízos de valores, isso pertence a necessidade m ais antigas, representar um papel. Desenvolvim ento de m im etism o entre os hom ens, em virtude de sua fraqueza. O anim al de rebanho representa um papel que lhe é ordenado.” „Als nachahm endes T hier ist der M ensch oberfláchlich: es genügt ihm , wie bei seinen Instinkten, der A nschein der Dinge. E r nim m t U rtheile an, das gehõrt zu dem âltesten Bedürfnift, eine Rolle zu spielen. Entw icklung der m im icry u n ter M enschen, verm õge seiner Schw ache. Das H eerdenthier spielt eine Rolle, die ihm anbefohlen w ird.“ (KSA, NF, 1 1 ,111).


Nietzsche chama atenção para dois pólos destas diferenças de instintos e para o modo de lidar com o potencial artístico da natureza humana. Por um lado, são analisados por ele a psicologia e os instintos do animal do rebanho / “Herdentier”, que envolto também pela natureza humana e animalesca, ao contrário do sátiro, é impulsionado pela crença na verdade. Como conseqüência deste impulso, Nietzsche aponta um absolutismo do impulso à verdade / “Triebe nach W ahrheit”, em oposição, ao outro pólo dos instintos humanos, o qual determina a natureza humana segundo a visão dionisíaca do mundo / “dionysische W eltanschauung”. A sobrevalorização da razão, segundo Nietzsche, teria, assim, sua incorporação mais monstruosa, demoníaca e radical na figura de Sócrates, a qual representa para ele um desenvolvimento agressivo e nocivo do domínio da razão contra o corpo e a vontade de viver, que tem como conseqüência direta o rechaço e a destruição da percepção humana como forma de conhecimento e apropriação do mundo. Portanto, em conformidade com a sua própria natureza, o impulso da arte dionisíaca não busca imagens já existentes, mas sim exercer o poder de criação de novas aparências e imagens, pois, no campo desta arte, o mundo é comtemplado como ilusão e regra do universo, segundo a própria filosofia de Heráclito, como um jogo de uma criança. Esta produção artística busca no invisível o potencial para a produção de novas imagens, já que ela conhece e respeita a regra que rege o corpo: ser inevitavelmente passível de erro, devido a constituição dos órgãos do sentido, da própria complexidade do objeto e da dinâmica da sua percepção, ou seja, face ã infinita quantidade de imagens que podem representar o conhecimento do mundo, o corpo não é munido de um órgão adequado ã identificação da verdade, como Nietzsche afirma na Gaia Ciência:

“Nós não tem os de fato nenhum órgão para r e c o n h e c e r ,

para a

‘verdade’: nós ‘sabem os’ (ou acreditam os ou im aginam os) o tanto quanto for p r o v e i t o s o ao hom em -rebanho,à espécie: e até m esm o o que é cham ado aqui de ‘proveito’, finalm ente é tão som ente tam bém um a crença, um a ilusão e talvez aquela tolice, na qual nós perecem os.” „ W irh a b e n e b e n g a rk e in O rg a n fü rd a sE r k e n n e n ,fü rd ie ,W a h rh e it‘:w ir ,w issen‘ (oder glauben oder bilden uns ein) gerade so viel ais es im Interesse der M enschen-H eerde, der G attung, n ü t z 1 i c h

sein mag: und selbst, w as hier


,N ützlichkeit‘ genannt w ird, ist zuletzt auch n u r ein Glaube, eine Einbildung und vielleicht gerade jen e verhangnissvollste D um m heit, an der w ir einst zu G runde g eh n .“ (KSA, FW, 3, 593)

Assim, Nietzsche parte em busca dos componentes estéticos que determinam um posicionamento do indivíduo frente à incessante mutabilidade das aparências do mundo e da vida. Seu questionamento sobre o papel exercido na natureza humana pela história, religião, ciência e, enfim, pelas artes visa o conhecimento dos mecanismos de determinação da constituição da percepção estética do homem. Portanto, são determinadas exigências estéticas de seu corpo que o levaram, por exemplo, a venerar a poesia de Heinrich Heine ou partir em direção às paisagens e aos ares mediterrâneos da costa do sul da Itália e da França. Já ao moderno filisteu, ao homem teórico e cristão resta desviar os olhos com asco face ao mistério do mundo das aparências, o qual propaga a ele uma onda de medo e horror oriunda da imensa ilusão e indeterminação do conhecimento do mundo e da vida. Nietzsche pretende, ao contrário, conferir a percepção de seu artista uma segurança satírica, bem como uma sabedoria de um epopta, que não desconhece os riscos que envolvem o conhecimento e o desrespeito aos mistérios de sua religião. Em oposição a Penteu, rei de Tebas, que ao desrespeitar o culto dionisíaco foi punido mortalmente pela própria mãe, este artista satírico reconhece na (des)construção e remodelação do indivíduo a maior forma de veneração da natureza humana. O ideal de beleza dessa estética passa a ser comparável a um sorriso de uma máscara trágica face á natureza ambivalente do ser humano, ao temor de reconhecê-la e se deixar perder nela. Dessa risada satírica do primeiro ator da cultura ocidental diante do horror da natureza humana, advêm para Nietzsche o poder produtivo da arte: “A humanidade cresce apenas através da adoração da rara grandeza. Mesmo o considerado como raramente grande, por exemplo o milagre, exerce este efeito. O espanto é a melhor parte da humanidade.” / „Die Menschheit wãchst aber nur durch die Verehrung des Seltnen Groften. Selbst das ais Selten Groft Gewãhnte, z. B. das Wunder, übt diese Wirkung. Das Erschrecken ist der Menschheit bestes Theil.“ (KSA, NF, 7,447). A curiosidade que custou a vida de Penteu sugere que a festa do ditirámbico


adorador do deus Dionísio, na qual o retorno à natureza humana originária é possibilitado pelo convívio com o deus, pode ser apenas entendida e vivenciada pelos seus semelhantes. A execução deste jogo mimético é um acontecimento de uma sociedade que, a fim de venerar o seu deus, não se orienta para o mundo exterior, mas para seu próprio ser. Assim, o Sileno, deus da floresta, seguido e apoiado por sátiros, abandona-se ao estado de êxtase. Agora, impulsionados por sua natureza saltitante de cabra, os sátiros dançam em círculos como possuídos e das suas flautas soam melodias orgiásticas, que envolvem as imagens do mundo ao seu redor numa nuvem de fumaça como aquelas procedentes de um narguilé de ópio do Oriente. Neste estado de êxtase, 0 conjunto de instintos domesticados são num instante transformados em impulsos

primaveris e as convenções culturais em uma natureza predadora. Ao alcançar o mundo dos sonhos, os sátiros extasiados observam seus próprios sonhos e se colocam á espreita do seu próprio eu. Ao destruí-lo, ouve-se gritos e gargalhada como expressão de seus gozos. Sob a consciência deste estado, todo o passado é esquecido em face da realidade dionisíaca. A excitação satírica, durante este jogo com o êxtase, é vivenciada em alto grau como um sentimento de poder que os levam, como homem dionisíaco, a reconhecer a beleza do destino humano:

“Toda estátua grega pode ensinar que a beleza é som ente negação. — A vontade tem o m aior gozo na tragédia dionisíaca, porque aqui até m esm o a face espantosa da existência hum ana estim ula, através da excitação do êxtase, a seg u ira viver.” “Jede griechische S tatue kann belehren, daft das Schóne n u r N egation ist. — Den hõchsten Genuft h at der W ille bei der dionysischen Tragõdie, weil hier selbst das Schreckensgesicht des D aseins durch ekstatische Erregungen zum W eiterleben reizt. (KSA, NF, 7 ,1 4 5 )

Deste modo, é evitada uma completa dissolução do indivíduo no mundo do êxtase. Com repugnância, o sátiro percebe a aproximação e retorno da realidade cotidiana e a observação de seu estado por um forasteiro que, aterrorizado, bate em retirada. A concepção estética de Nietzsche e seu conhecimento trágico da vida se voltam também a este espectador, que dominado pelo asco em vivenciar o êxtase


satírico, afasta-se da possibilidade de conhecer a sabedoria trágica do Sileno e as suas conseqüências estéticas para o fortalecimento da vida. “Precisamos, contudo, clamar a este espectador que acaba de nos dar as costas: ‘Não se vá daqui sem antes ouvir o que a sabedoria popular grega declara sobre esta mesma vida, que diante de ti se desdobra com tam anha inexplicável alegria’” / „Diesem bereits rückwárts gewandten Beschauer müssen wir aber zurufen: ,Geh’ nicht von dannen, sondern hõre erst, was die griechische Volksweisheit von diesem selben Leben aussagt, das sich hier mit so unerklárlicher Heiterkeit vor dir ausbreitet(...)‘ “ (KSA, GT, 1, 35), escreve Nietzsche ao leitor do Nascimento da Tragédia. Entre a sabedoria do Sileno - “o melhor de todas as possibilidades para ti é totalmente inalcançável: nunca ter nascido, não e x i s t i r , não ser n a d a . A segunda melhor possiblidade, porém, para ti é: morrer o mais breve possível” / „Das Allerbeste is tfü rd ic h g ã n z lic h u n e rre ic h b a r:n ic h tg e b o re n z u s e in ,n ic h tz u s e in ,n ic h ts zu sein. Das Zweitbeste aber ist für dich — bald zu sterben“ (KSA, GT, 1,35) - e a figura do rei Midas como representante da vulgar estirpe humana e seu desenfreado impulso de conhecimento, entre estas duas paródias nietzschianas para representar a ambivalência da natureza humana se constitui o mesmo abismo existente entre o mundo das imagens apolíneas e o mundo da obscuridade e das trevas dionisíacas. Este abismo representa o espaço existente entre a arte e a religião, a ciência e a estética, entre o poder da fisiologia do corpo e a crença na razão pura. Ao desenfreado e temerário desejo de conhecimento do rei Midas, paródia do impulso e da vontade de verdade humana, o pensamento de Nietzsche contrapõe uma sabedoria de um outro povo do sul da Europa, a saber, a sabedoria de um “ancião espanhol”: “Que coisas o ser humano não abriga em si, que ele nunca deve saber: por esta razão o ancião espanhol dizia ‘Defenda me Dios de my’ ‘Deus, defenda-me de mim mesmo’” / „Was birgt nicht alies der Mensch in sich, was er nie kennen lernen darf: weshalb der alte Spanier sagte ,Defienda me Dios de my’ ,Gott behüte mich vor mir’“ (KSA, NF, 7,706). Declarada após uma estridente gargalhada, a sabedoria do Sileno soa ao decadente homem moderno nietzschiano com o mesmo efeito de um olhar de medusa, do qual só é possível se afastar com horror, espanto e asco. A verdade filosófica e estética do Sileno, deus da floresta, deflagra no homem teórico e otimista uma tentativa de transform ar todas ameaças, obscuridades, deformidades e sofrimentos da vida em


uma harmonia de forma e tons, a qual Nietzsche chama no Nascimento tragédia de cultura apolínea. Portanto, a arte apolínea representa para Nietzsche uma tentativa de superação artística do medo existencial através da criação de aparências, que buscam uma fixação da transitória forma humana sobre um “espelho esclarecedor” / „einen verklàrenden Spiegel“ (KSA, GG, 1,589). A paródia do “homem comum”, representada por Nietzsche na figura do rei Midas, expressa uma filosofia popular que guarda uma esperança provinda do Olimpo: erradicar todas os traços e características bestiais e demoníacos da figura humana. Na claridade e harmonia da arte apolínea se reflete, portanto, para Nietzsche, a visão de uma forma humana criada a partir dos harmoniosos traços e contornos de seu deus, que, ao contrário dos ensinamentos do deus Dionísio, cunhou sua sabedoria segundo a convicção: “A pior de todas possibilidades seria para eles: morrer em breve. A segunda pior possibilidade seria meramente morrer um dia” / „Das Allerschlimmste sei für sie, baldzu sterben, dasZweitschlimmste, überhaupteinm al zu sterben.“ (KSA, GT, 1,36). Por meio desta verdade das formas claras, cria-se uma estrutura que cunha como medida para a interpretação e a percepção do mundo a crença na fixidez e rigidez do ser. Estando o corpo humano liberto de todas as formas indefinidas da existência, e sendo ele guiado pelo movimento da consciência, que pode levar a um ponto passivo 0 turbilhão de impulsos e instintos que corrompem a natureza humana, este corpo

de alegada rigidez apolínea é moldado, portanto, como prova da inexorabilidade do indivíduo. O poder desta arte é, por conseguinte, a criação de uma forma acabada da harmonia da natureza com o cosmos, representada na unidade da aparência humana e do indivíduo como o maior produto da natureza. Nietzsche avalia que este otimismo em relação ã natureza humana é resultante da percepção de um “espectador do mom ento”, que ao observar o presente como o ponto mais alto da sua sabedoria, acredita que a realidade, tal como ela é vista, representa uma forma de segurança face a todas as incertezas do destino e do tempo. Instituída desta forma, o domínio da arte apolínea na cultura, segundo a estética nietzschiana, promove, tanto na produção estética antiga como na moderna, uma despotencialização do potencial questionamento estético e um aniquilamento da energia plástica / “plastischen Kraft” da arte: “O socratismo do nosso


tempo é a crença nos ser acabado: a arte está pronta, a estética está pronta. A dialética é a prensa, a ética a poda otimista da visão de mundo cristã. “ „Der Sokratismus unsrer Zeit ist der Glaube an das Fertigsein: die Kunst ist fertig, die Aesthetik ist fertig. Die Dialektik ist die Presse, die Ethik die optimistische Zurechtstutzung der christlichen W eltanschauung.“ (KSA, NF, 7,13). Esta expulsão do caráter bestial da natureza humana da superfície mundana da arte tem como conseqüência a ocupação do Hades / „Unterwelt“ por demônios e seres que desmembram, nas profundezas do reino do subconsciente humano, seus impulsos e instintos como um poder e energia produtiva para a arte. Feiura e beleza se tornam categorias estéticas, pelas quais a ação da razão constrói uma representação do humano e da animalidade através de um dualismo com dimensões estéticas e políticas. Segundo esta polarização, partindo de suas linhas regulares e harmoniosas, o corpo humano apresenta o que deve ser entendido como “o belo em si”. Membros degenerados do corpo e suas alegadas semelhanças com o corpo animal, passam a valer como expressão do feio. Desta forma, um tipo particular do ser humano é colocado como padrão, ou seja, como medida para a completude e unidade do mundo, bem como para a fronteira entre o estético e o não-estético e em alguns casos, como se viu na história moderna, como padrão político para o governante. O que Nietzsche acredita diagnosticar nessa categorização do mundo e do homem é mais do que um julgamento estético. O filólogo lê neste simbolismo e avaliação da natureza humana como “feia” uma reação, ou seja, um sintoma. Colocar-se a si mesmo como medida do belo representa para o homem uma reação ã sua decadência e ao seu declínio:

„(...) Tudo isso ocasiona a m esm a reação, o juízo de valor “feio”. Aqui em erge um ódio: quem o ser hum ano odeia aqui? M as, não há dúvida: o declínio do seu tipo. Ele odeia, aqui, do profundo instinto da espécie; nesse ódio há estrem ecim ento, precaução, profundidade, am plo horizonte, — isso é o ódio m ais profundo que existe. Por esta razão a arte é p rofunda...” „(...) das Alies ruft die gleiche R eaktion hervor, das W erthurtheil ,hásslich“’. Ein H ass springt da hervor: w en hasst da der M ensch? A ber es ist kein Zweifel: den N iedergang seines Typus. E r h asst da aus dem tiefsten Instinkte der


G attung heraus; in diesem H ass ist Schauder, Vorsicht, Tiefe, Fernblick, — es ist der tiefste H ass, den es giebt. U m seinetwillen ist die K unst tief

(KSA,

G D ,6 ,1 2 4 ).

Nietzsche encontra um paradoxo na natureza tanto do homem antigo como do moderno, pois as duas soluções radicais para a sua existência, isto é, a decisão de se abandonar ou de se afastar de sua natureza e instinto pressupõem o conhecimento da própria natureza:

“O abandono à natureza, das kata physin zen do estóico e de R ousseau, a m ens sana in corpore sano etc 1. Q uem conhece o escopo da natureza e quem estaria sim plesm ente apto ao inatural? 2. A natureza não é tão inofensiva, que seria possível se abandonar a ela sem nenhum trem or. 3. A principal p ergunta a ser colocada é se nós podem os algo contra a natureza e se nós principalm ente podem os nos abandonar a ela?” „Die H ingabe an die N atur, das kata physin zen der Stoiker und des R ousseau, die m ens sana in corpore sano usw. 1. W er kennt die Ziele der N a tu r und w er üb erh au p t verm ochte das U nnatürliche? 2. Die N atu r ist nichts so H arm loses, dem m an sich ohne Schauder übergeben kónnte. 3. Es fragt sich überhaupt, ob w ir etw as kónnen, gegen die N atur, und ob w ir uns der N atu r üb erh au p t hingeben k õnnen?“ (KSA, NF, 7 ,1 9 9 ).

A estética nietzschiana vislumbra a radicalidade que se cria face a este dilema da existência humana: seguir a sabedoria do Sileno, aceitando o inevitável declínio da existência ou se declarar partidário do otimismo socrático, o qual Nietzsche diagnostica como uma vontade contra a vida. A natureza, portanto, possuída pelo impulso à verdade, possuiria uma “própria incoerência fisiológica” / „physiologischen Selbst-W iderspruch“ (KSA, GD, 6, 143), a qual até mesmo a sabedoria do Sileno, rei da floresta, não seria capaz de solucionar: “se alguém tivesse retirado a aparência


artística daquele mundo intermédio, teria sido necessário seguir a sabedoria do deus da selva, do companheiro dionisíaco.” „Hatte jem and den künstlerischen Scheinjener Mittelwelt weggenommen, man hatte der Weisheit des Waldgottes, des dionysischen Begleiters folgen müssen.“ (KSA, DW, 1, 560). Em um mundo, no qual a razão se tornou senhora de todos os instintos, o homem se encontra para Nietzsche numa fuga tanto diante da sua própria natureza como frente à tarefa de conferir um valor à vida, já que ela não o possui intrinsecamente. Guiado apenas pela razão, o homem que busca a verdade apenas na aparência do belo, é descrito por Nietzsche como o protótipo do homem decadente moderno, que não se permite olhar nas profundezas da natureza humana, onde a ambivalência entre o horror e o prazer, entre o sofrimento e a alegria representam juntos a maior força vitalizadora do homem: “Decadência da música, do mito e da tragédia. A seriedade da contemplação do mundo precisou fugir para o Hades“ /„Verfall der Musik, des Mythus und der Tragõdie. Der Ernst der W eltbetrachtung muftte in die Unterwelt flüchten“ (KSA, NF, 7, 378).

“Eu não quero dizer que a contem plação do m undo trágica tenha sido destruída em todos os lugares e com pletam ente pelo penetrante espírito do não-dionisíaco: nós sabem os som ente, que ela precisou fugir da arte com o que para o H ades num a degeneração em culto secreto.” „Ich will nicht sagen, dass die tragische W eltbetrachtung überall und võllig durch den andrãngenden Geist des U ndionysischen zerstort w urde: w ir w issen nur, dass sie sich aus der K unst gleichsam in die U nterw elt, in einer E ntartung zum G eheim cult, flüchten m u sste“ (KSA, GT, 1 ,1 1 4 ).

Segundo o pensamento de Heráclito, o refúgio para este fugitivo dever ser entendido como o mundo dionisíaco"^, do qual “os três abismos da tragédia“ devem ser

„Não seria Dionísio, ao qual em honra as procissões se colocam em movimento e cantam canções dedicadas aos órgãos genitais, assim aconteceria a maior impudicicia. Dionísio, ao qual em honra eles se com portam como loucos e furiosos, é o mesmo que o Hades.” / „Ware es nicht Dionysos, dem zu Ehren sie die Prozesseion begehen und das den Schamgliedern gewidmeten Lied singen, so geschahe das Unverschamteste. Dionysos, dem zu Ehren sie sich wie Verrückte und Rasende benehmen, ist ja


vivenciados: “loucura, vontade e dor”. A diversidade da natureza ambivalente do sátiro “belo“ e “feio“, “hum ano“ e “animar* representa um modo de contemplação que, segundo Nietzsche, apresenta a arte grega como uma fonte de conhecimento estético para o homem moderno: “A arte grega ensinou a nós que não existe nenhuma superfície verdadeiramente bela sem uma terrível profundidade” / „Uns hat die griechische Kunst gelehrt, daft es keine wahrhaft schõne Flâche ohne eine schreckliche Tiefe giebt“ (KSA, NF,7, 352). Após essa derrocada da natureza e da arte, o homem trágico e satírico precisa apontar as suas orelhas para ouvir o tom de dor e sofrimento na natureza dionisíaca e humana, com a segurança e certeza que uma sabedoria sobre a sua natureza pode ser alcançada nas profundezas do mundo e da vida. Desta forma, o homem moderno, ao contrário do decadente, não deveria procurar um “melhoramento“ da realidade, mas sim buscar sua destruição, ou seja, sua (des)construção. Sua sabedoria toma como conseqüência que a natureza não aponta a sua seta a uma pessoa ã espera de um futuro melhor, mas sim àquele que age contemporaneamente. A natureza não atinge o seu escopo, quando um indivíduo que se orienta somente pela história e pelo presente é impulsionado pelo seu instinto de manutenção da vida. Ao contrário, aquele que está armado contra o presente é seduzido por cada aterrorizante traço e movimento da natureza a afirmar categoricamente o doloroso processo de degeneração da vida como parte essencial da busca da transformação e determinação da sua própria natureza. Como conseqüência da irradicação do feio do reino da música, ouve-se o som harmonioso da citara de Apoio. Através da unidade dos tons, ou seja, por meio dos toques e vibrações de suas cordas, são expressadas a arte arquitetônica apolínea e suas sutilíssimas nuances. Como deus musicista. Apoio persegue a rigidez do ritmo. Dar uma medida ao movimento é um dos principais objetivos da sua arte. Das canções populares, no entanto, soam outros tons, e da flauta do sátiro ecoa uma melodia lamentosa do Hades, na qual a música, “a santa protetora do instinto“ / „die heilige Bewahrerin der Instinkte“ (KSA, NF, 7, 141) canta em uma língua que não busca a temperança do mundo visual através de conceitos e símbolos, mas a sua dissolução.

derselbe wie Hades." Heraklit in - Die V orsokratiker- Stuttgart 1983,251.


Esta música, no entanto, pode ser apenas suportada por ouvidos que visam ultrapassar os limites de sua percepção, ampliando com ela também a fronteira da convenção que estabelece a dor e o prazer, o conhecimento e o instinto, o belo e a feiura, sendo reconhecido assim pelos seus ouvintes a ambivalência que envolve todos os afetos. Por meio desta outra linguagem, “a linguagem mais clara do gênio” / „die deutlichste Sprache des Genius“ (KSA, NF, 7, 66), Nietzsche caracteriza os sátiros como homens da natureza e entusiastas do deus Dionisio. Os gritos de dores e de contorções ouvidos pelo homem fugitivo face ao êxtase satírico e à sabedoria do Sileno são uma expressão ambivalente do nascimento e da morte vivenciados no êxtase dionisíaco. A natureza encontra nessa música uma nova forma de expressão, dirigindo-se, assim, ao seu declínio:

“Agora, a essência da natureza deve se expressar: um novo m undo de sím bolos se to rn a necessário, as im aginações acom panhantes aparecem em im agens de um ente hum ano elevado num sím bolo, elas são representadas com a m ais alta energia física através de um a com pleta sim bologia corporal, por meio da gesticulação da dança.” „Jetzt soll sich das W esen der N atu r ausdrücken: eine neue W elt der Symbole ist nõthig, die begleitenden V orstellungen kom m en in Bildern eines gesteigerten M enschenw esens zum Symbol, sie w erden m it der hochsten physischen Energie durch die ganze leibliche Symbolik, durch die Tanzgeberde dargestellt.“ (KSA, DW, 1 ,5 7 7 ).

No tom expelido pelo corpo, no grito como expressão dos instintos, o pensamento mais profundo da natureza alcança a sua voz mais vigorosa. Como reação ã visão, ao movimento de diferentes imagens do mundo, a gesticulação e a dança se tornam conseqüência da união entre os deuses Dionisio e Apoio. A arte trágica deve, conforme a visão nietzschiana da tragédia grega, ser entendida como a glorificação dessa conciliação. Quando a verdade dionisíaca faz uso da aparência, quando ela se faz ver e representar em forma e imagens da vida e do mundo, ou seja, por meios apolíneos, o instintivo êxtase da natureza perde o seu caráter originário das trevas e o dionisíaco sobe ao mundo da aparência (KSA, DW, 1, 570). Este simbolismo marca uma importante


relação entre a verdade e a aparência, cujo o símbolo mais vital é a máscara da tragédia usada pelo sátiro para representá-la. O sátiro atinge através do som e do grito, contudo, ainda uma outra transgressão da capacidade simbólica da cultura:

“Agora, nós entendem os o significado da linguagem da gesticulação e da linguagem dos tons para a

obra

de

arte

dionisíaca.

No

prim itivo ditiram bo da prim avera do povo, o hom em quer se expressar não com o indivíduo, m as sim com o h o m e m

da

e s p é c i e . Por deixar

de ser um hom em individual, a linguagem dos gestos por meio dos sím bolos dos olhos é expressada de tal form a que ele com o s á t i r o , com o ente da natureza entre entes da natureza se expressa em gestos e, de fato, na linguagem de gestos elevados, n a g e s t i l u l a ç ã o

da

d a n ç a . Através do tom

ele expressa o pensam ento m ais interior da natureza; não som ente o génio da espécie, com o na gesticulação, m as sim no génio do ser em si, a vontade se faz aqui im ediatam ente com preensível. Com a gesticulação, portanto, ele perm anece dentro da fronteira da espécie, ou seja, do m undo das aparências, com os tons, porém , ele dissolve o m undo das aparências quase em sua unidade original, o véu da M aia desaparece face ã sua m agia. Q uando o hom em da natureza alcança a sim bologia dos tons? Q uando a linguagem dos gestos não é m ais suficiente? Q uando o tom se torna m úsica? Principalm ente no estado m ais alto do prazer e desprazim ento da vontade, com o vontade jubilante ou apavorante até a m orte, em sum a, no êxtase do sentim ento: no grito” Jetzt begreifen w ir die B edeutung von G eberdensprache und Tonsprache für

das

d i o n y s i s c h e

K u n s t w e r k .

Im

urw üchsigen

F rühlingsdithyram bus des Volkes will sich der M ensch nicht ais Individuum , sondern ais G a t t u n g s m e n s c h individueller M ensch zu sein, wird

aussprechen. Dal^ er aufhõrt durch die Symbolik des Auges,

dieG eb erd en sp rach eso au sg ed rü ck t,d afteralsS a t y r ,alsN atu rw e sen u n ter N aturw esen in G eberden redet und zw ar in der gesteigerten G eberdensprache, in der T a n z g e b e r d e . D urch den Ton aber spricht er die innersten G edanken der N atu r aus: nicht n u r der Genius der G attung, wie in der Geberde, sondern der G enius des Daseins an sich, derW ille m acht sich hier unm ittelbar verstãndlich. M it der Geberde also bleibt er innerhalb der G renzen der G attung, a lso d e rE r s c h e i n u n g s w e l t , m it dem Tone aber lõ ste r die W elt der E rscheinung gleichsam auf in seine ursprüngliche Einheit, die W elt der Maja verschw indet vor seinem Zauber. W ann aber kom m t der N aturm ensch zu der Symbolik des Tons? W ann reicht


die G eberdensprache nicht m ehr aus? W ann wird der Ton zur M usik? Vor aliem in den hõchsten Lust- und U nlustzustanden des W illens, ais jubelnder W ille oder zum Tode geangsteter, kurz im R ausche des Gefühls: im S chrei.“ (KSA,DW , 1 ,5 7 5 ).

No Hades / „Unterwelt“, consequentemente, deve ser procurado, segundo Nietzsche, a causa primeira de todos os instintos e impulsos, pois lá estes se encontram livre de toda a carga cultural que pesa sobre o homem civilizado. No grito de horror e de alegria vindo das profundezas do homem seria possível perscrutar a origem da sua natureza, da moral e do gosto estético. Nietzsche analisa as causas e o limite do sofri­ mento humano a fim de vivenciar o ser dionisíaco e examinar a causa primordial do seu mundo. A cultura e a linguagem se constituem, desta forma, efetivamente como símbolos por trás dos quais reações e percepções da fisiologia humana face ao mundo se apresentam como um objeto a ser pesquisado pela filosofia. Resta ao filósofo e ao ar­ tista um trabalho de dissecação e autópsia, a fim de retirar da natureza da coisa aqueles símbolos não pertencentes a ela e acumulados pela ação do tempo e da cultura. Por sua vez, 0 filósofo dionisíaco nietzschiano acredita estar protegido face ao tremor e horror desse procedimento por sua natureza, pois sua faculdade auditiva não possui uma suscetibilidade cultural frente a dor e aos gritos, que poderiam adverti-lo e amedrontá-lo a não dar um passo em direção a essência do mundo. Ele ouve neste grito tanto a origem da cultura como a causa do juízo moral sobre o “belo e o feio“, “o bem e o mal”.

„Com isso penetram os na definição do gênio dionisíaco com o daquele hom em que, em com pleto esquecim ento de si, tornou-se uno com a causa prim ordial do m undo, o qual, agora, partindo da d or prim ordial, criou o reflexo da m esm a para a sua redenção: tem os que venerar este processo no santo e no grande m úsico, am bos são apenas repetição do m undo e duas fundições do m esm o”. „D am it w erden w ir zur Definition des dionysischen G enius gedrãngt, ais des in volliger Selbstvergessenheit m it dem U rgrunde der W elt eins gew ordenen M enschen, d e rje tz t aus dem U rschm erze heraus den W iederschein desselben zu seiner E rlósung schafft: wie w ir diesen Prozeft in dem Heiligen und dem groften M usiker zu verehren haben, die beide n u r W iederholungen der W elt und zweite A bgüsse derselben sind.“ (KSA, NF, 7 ,3 3 5 ).


Contudo, sendo a percepção humana passível de falha, ela tende, fortalecida ainda pelo costume, a criar uma imagem da realidade por meio de uma sensação proveniente de uma única perspectiva. Assim, a tarefa da filosofia e da arte dever ser entendida, segundo Nietzsche, como um empenho em (des)construir esta percepção presa a um espaço e à lei da causalidade. O sátiro como figura filosófica transmite, também através da ambivalente máscara da tragédia, um doloroso e prazeroso grito, o qual na filosofia e estética nietzschiana é ouvido como expressão da dor primordial do mundo e do infinito prazer da vida. Nietzsche se opõe a uma possível correção do mundo e da vida, recusando-se a abordá-los através do domínio exclusivo da razão. A tarefa da filosofia não seria, por­ tanto, exercer uma correção do ser, mas sim uma tentativa de criar uma estética partin­ do dos assustadores mistérios da natureza e do corpo humano. Devido ã natureza de seu aparelho sensorial, o ser humano está fadado ao erro e a se dirigir às profundezas de sua existência, onde o temor face á obscuridade da sua natureza também representa um prazer artístico em recriar a vida. Esta ambivalência da natureza e existência do artista se faz perceptível para Nietzsche quando a possibilidade de agir frente às mais diferen­ tes situações é dada à natureza humana como o maior de seus poderes e de suas forças:

„Como todas

a as

n a t u r e z a

do

grego

c a r a c t e r í s t i c a s

sabe

utilizar

a s s u s t a d o r a s :

A felina raiva aniquiladora (das tribos etc.) na com petição O im pulso inatural (na educação do jovem através do hom em adulto) O ser o r g i á s t i c o asiático no dionisíaco O isolam ento hostil do indivíduo (Erga) no apolíneo. A utilização do nocivo com o proveitoso é idealizado na visão de m undo de H e r á c 1i t 0 . 7. Conclusão: o D itiram bo n a

arte

e

no

a r t i s t a : porque eles

criam prim eiro o hom em e tran sp o rtam todos os seus im pulsos na cu ltu ra.” „Wie

die

g r i e c h i s c h e

E i g e n s c h a f t e n

zu

Na t u r

b e n u t z e n

alie

f u r c h t b a r e n

weift:

die tigerartige V ernichtungsw uth (der Stam m e usw.) im W ettkam pf


die u nnatürlichenT riebe (in der E rziehung des Jünglings durch den M ann) das asiatische O r g i e n w esen im Dionysischen diefeindseligeA bgeschlossenheitdes Individuum s (Erga) im A pollinischen. Die V erw endung des Schâdlichen zum N ützlichen ist idealisirt in der W eltbetrachtung H e r a c 1 i t s . 7 . S c h lu l^ :D ith y ra m b u s a u fd ie

Kunst

und

den

Künst l er:

weil sie den M enschen erst herausschaffen und alie seine Triebe in die Kultur üb ertrag en “ (KSA, NF, 7 ,3 9 9 ).

Neste sentido, a tarefa da filosofia não é empreitar um melhoramento da realidade, mas a sua transformação, nas palavras de Nietzsche: “a escamoteação da realidade” / „das Hinwegtãuschen des W irklichen“ (KSA, NF, 7, 768). Esta mesma convicção pode ser comtemplada em sua visão do homem e do esforço terrível / „schreckliche Bemühung“ (KSA, SE, 1, 341) e (KSA, NF, 7, 711), o qual a tarefa da (des)construção representa. Neste contexto, Nietzsche cita Goethe e sua sabedoria do jardineiro: “Goethe ,um ancião jardineiro costumava dizer: a natureza se deixa de fato forçar, mas não se sujeitar’” / „Goethe ,ein alter Hofgãrtner pfiegte zu sagen: die Natur lãsst sich wohl forciren aber nicht zwingen’“ (KSA, NF, 7, 688). Estas duas filhas da natureza, a filosofia e a arte, se esforçam, portanto, em afastar da natureza humana todos os aspectos inaturais da cultura, religião e ciência: “A arte é para nós o afastamento do inatural, fuga da cultura e formação.” / „Die Kunst ist für uns Beseitigung der Unnatur, Flucht vor der Kultur und Bildung“ (KSA, NF, 7, 305). Este processo ambivalente de (des)construção da cultura permanece, no entanto, frequentemente inalcançável, dado o trabalho exaustivo e cercado de sofrimento que ele impõe. Para tanto é necessária uma natureza satírica, a qual Nietzsche emprega na construção de sua estética e na figura de seu ideal de artista. Todavia, para se proteger contra a conseqüência lógica da razão face ã sabedo­ ria do Sileno, ou seja, contra o aniquilamento da existência humana, como a melhor das hipóteses para a solução do seu dilema, torna-se necessário contrapô-la ã sabedoria do jardineiro. Assim, o artista que não segue a aparente lógica da sabedoria do Sileno, busca desenvolver uma maneira de lhe dar com sua natureza „irracional“ através da realização de um experimento, no qual a vida é vista como uma obra de arte a ser reali­


zada, não exclusivamente segundo a lógica da razão, mas por meio do desenvolvimento de uma fisiologia estética / ,ãsthetischen Physiologie’. Capacitar o homem a afirmar a vida, independente do sofrimento que a envolve, estabelece um dos principais objetivos da filosofia e da arte em Nietzsche. Nesta experiência e não no seu acabamento, em seu resultado final, se encontra a razão de ser da arte e da vida para Nietzsche. Como nos périplos do ardiloso aventureiro Ulisses, aqui, o caminho e a viagem são o próprio obje­ tivo da vida e da experiência. A despeito do resultado final ser visto e julgado como uma obra de um insano ou de um enganador, abrir mão dessa experiência estética seria para Nietzsche a verdadeira obra da escravidão:

“Como se pode tom ar estilo e representação de form a tão im portante! Tudo depende som ente do entendim ento. — Adm itido: isso não é fácil e algo m uito im portante. Pensa-se, que ser com plicado é o ser-hum ano: com o é infinitam ente difícil para ele se expressar de fato: a m aioria das pessoas perm anecem m esm o coladas nelas m esm as e não conseguem se desprender, m as isso é um a escravidão. Poder falar e escrever significa libertar-se: adm itido que nem sem pre disso resulta o m elhor; porém , é bom que isso se torne visível, que isso encontre palavra e cor. O bárbaro é um a pessoa que não pode se expressar, que papagueía com o um escravo. — ‘o belo estilo’ não é certam ente nada m ais do que um a nova gaiola, um a barbaridade de ouro. (...)“ „Wíe kann m an n u r Stíl und D arstellung so w íchtíg nehm en! Es kom m t doch n u r darauf an, dass m an sích verstándlích m ache. — Zugegeben: aber das íst níchts Leíchtes und etwas sehr W íchtíges. M an denke, w as für eín com plícírtes W esen der M ensch íst: wíe unendlích schw er für íhn, sích wírklích auszudrücken: Díe m eísten M enschen bleíben eben ín sích kleben und kònnen nícht heraus, das íst aber Sklavereí. Sprechen- und Schreíbenkônnen heísst freíwerden: zugegeben dass nícht ím m er das Beste dabeí herauskom m t; aber es íst gut, dass es síchtbarw írd dass e sW o rtu n d Farbefindet. B arbar íst eíner, der sích nícht ausdrücken kann, der sklavenhaft plappert. — ,Schõner Stíl’ freílích íst níchts ais eín neuer Káfig, eín vergoldetes B arbarenthum . (...).“ (KSA, NF, 7 ,8 3 4 )

Portanto, quais as chances de felicidade para este artista ambivalente face ao paradoxo de sua existência? Quais os limites para o conhecimento da realidade, do entendimento e do corpo humano, e em que medida a filosofia e a arte representam um contraponto às repostas dadas pela religião e ciência a estas perguntas? A discussão


destas questões também constitui o pano de fundo do questionamento nietzschiano sobre o papel filosófico e estético da figura ambivalente do sátiro e da sabedoria do Sileno, que envolvem a necessidade em seu pensamento de uma estética dionisíaca da (des)construção das aparências do mundo e da realidade da vida.


B IBLIO G R AFIA

Aristóteles - Werke - Traduzido e comentado por Arbogast Schmitt. Akademie Verlag, Berlin 2008. ............ - Poética - Traduzido e comentado por Fernando Maciel Gazoni. São Paulo 2006. Heine, Heinrich - Sâmtliche Gedichte im zeitlicher Folge - Insel Verlag, Frankfurt am M ain/Leipzig2001. ............-W erk e - Insel Verlag, Frankfurt am Main 1968. Nietzsche, Friedrich - W erk - Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari Deutsche Taschenbuch Verlag GmbH & Co. KG, München / W alter de Gruyter, Berlin / New York 1999. ............

- Briefe - Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und

Mazzino Montinari Deutsche TaschenbuchVerlag GmbH & Co. KG, M ünchen/W alter de Gruyter, Berlin / New York 1986. Risafi de Pontes, Ivan - Satyrs Spiel und Silen Weisheit bei Nietzsche. Fine âsthetische und philosophische Untersuchung - Kõnigshausen & Neumann, W ürzburg 2014. Seidensticker, Bernd - Satyrspiel - Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt 1989. Solies, D irk - „Die K u n st- eine Krankheit des Leibes? Zum Phanomen des Rausches bei Nietzsche“ - In: Nietzscheforschung. Jahrbuch der Nietzsche - Gesellschaft Band 5/6. ORganizador por Volker Gerhardt e Renate Reschke, Akademie Verlag GmbH, Berlin 2000. Vernant, Jean-Pierre - Gõtter und Menschen - DuMont, Kòln 2000.


â– - Der Mensch der griechische Antike - Magnus Verlag GmbH, Essen 2004. VĂľgel, Martin - Apollinisch und Dionysisch Geschichte eines geniales Irrtums - Gustav Bosse Verlag, Regensburg 1966.


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A VONTADE DE PDDER CDMO AFIRMAÇÃO OA VlOA WLISSES DE FREITAS FREIRE - Bacharelado em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). wlissesweb@gmail.com

Resum o: O presente artigo tem como proposta explorar o conceito nietzschiano da vontade de poder desde sua em ergência a partir do evento histórico da Morte de Deus no qual resulta no com pleto esvaziam ento de valores e sentido, inclusive da vida m esm a. Nesse sentido, busca-se aqui alcançar uma com preensão do conceito de vontade de poder enquanto afirm ação da vida. Palavras-chave: Nietzsche; Vida; Vontade de Poder. A bstract: This article aim s to explore N ietzsche’s concept will to power since its em ergence from the historical event of the Death of God in which results in a complete emptying of values and m eaning, even of life itself. Accordingly, we seek to reach an understanding of the concept of will to power as affirm ation of life. Keywords: Nietzsche; Life; Will to power.


I. Introdução presente trabalho procura apresentar uma perspectiva sobre o célebre

O

conceito nietzschiano da vontade de poder enquanto afirmação da vida em sua absoluta escassez de sentido ou justificação. Surgindo pela primeira vez

na obra Assim falou Zaratustra, este conceito central da filosofia nietzschiana possui uma multiplicidade de interpretações, mas uma se destaca, que é justam ente a de que

vida é vontade de poder, isto é, a vontade de poder é a ideia através da qual o filósofo traduz vida. Não possuindo nenhuma conotação metafísica, religiosa ou idealista. A vontade de poder é o princípio ontológico responsável pela totalidade do real, distinguindo-se dos outros princípios elaborados pela tradição filosófica ocidental já que Nietzsche não busca uma fundamentação da realidade a partir de algo situado para além dos fenômenos e das relações que os produzem ao formular a vontade de poder. Nesse sentido, a vontade de poder surge como uma nova compreensão, ou seja, como novo horizonte hermenêutico que não nega a vida em favor do nada. Para se chegar a isto se faz necessário entender o percurso dessa acepção, ou seja, o surgimento desse conceito na filosofia de Nietzsche. Sabe-se que desde a obra O nascimento da tragédia Nietzsche já busca formular uma concepção trágica. Nessa mesma obra ele formula sua teoria dos impulsos ao apresentar uma noção que se poderia enxergar como semelhante ao que posteriormente seria chamado de vontade de poder^, pois os impulsos brotavam da própria natureza e apresentavam uma dinâmica de forças vitais na criação artística e mesmo numa transfiguração da existência através da arte, uma justificação estética da existência. Essa ideia veio a ser em sua filosofia, alinhada ao trágico, uma inspiração para a autopoiesis, ou seja, uma proposta de construir modos singulares de vida, criar a si mesmo por meio do jogo de impulsos vitais que apresentam novas possibilidades de afirmação. Mas como surge a vontade de poder?

1 “Presentes nos primeiros trabalhos do filósofo, desem penharam papel relevante na análise da arte grega. [...] No período da transvaloração dos valores, a idéia reaparece. Pulsões cósmicas, apolineo e dionisíaco são aspectos que o conceito de vontade de poder recobre. Dionisíaco é o princípio que quebra barreiras, rompe limites, dissolve e integra; apolineo, o que delineia, distingue, dá forma. Ora, por seu caráter intrínseco, as forças querem exercer-se sempre mais; da luta entre elas, surgem novas formas, outras configurações.” (MARTON, 1990, p. 56.)


II. “Morte de Deus” e ascensão do niilismo Após constatar a morte de Deus, torna-se evidente para Nietzsche que todo 0 plano de efetividade do mundo sucumbe num completo falecimento da unidade

estrutural e isto acaba por se constituir como um golpe na vida, afinal isto conduz à instauração do niilismo, num completo esvaziamento de valores e de sentido, pois Deus era, segundo a tradição de pensamento filosófico ocidental, o pilar central que possibilitaria o mundo e a própria vida. Cabe observar que ao fazer referência à “morte” de Deus, Nietzsche apresenta uma margem para ampliar a interpretação desse pensamento e atentar para um processo vital. De imediato se pode evidenciar que 0 conceito nietzschiano de Deus diverge da tradição, pois a chave ontológica muda, nesse entendimento é a vida que possibilita Deus, isto é, para haver possibilidade de um questionamento qualquer sobre a vida, seria necessário que a vida mesma tivesse se dado. Nesse sentido. Deus não pode ser considerado como fundamento originário, mas sim como uma criação, isto é, uma expressão do pensamento, pois:

O caráter geral do m undo, no entanto, é caos por toda a eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, m as de ausência de ordem , divisão, form a, beleza, sabedoria e com o quer que se cham em nossos antropom orfism os estéticos. (N IETZSCH E, 2012, pp. 126­ 127)

Assim sendo, “Deus” surge enquanto parâmetro interpretativo e valorativo tardio para apresentar resposta ã questão da vida. Isto posto, Nietzsche faz o anuncio da morte de Deus na narrativa do homem louco na seguinte passagem da obra A gaia ciência:

D eus está m orto! D eus continua m orto! E nós o m atam os! Como consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O m ais forte e m ais sagrado que o m undo possuíra sangrou inteiro sobre nossos punhais (N IETZSCH E, 2012, p. 138)


Com base nessa passagem se pode compreender que, ao se referir a Deus como tendo sido “o mais forte”, o filósofo se remete a noção de vontade de poder, pois a força liga-se à conservação e ampliação do âmbito de poder para dominar outras forças. De modo amplo, tal força refere-se também ao poder de dominar submetendo às diferentes interpretações a uma especifica. Assim, Nietzsche enxergou Deus como o mais forte que existiu devido sua capacidade de se manter enquanto hermenêutica hegemônica, permanecendo vigente por longo período enquanto unidade estruturadora e valorativa de uma compreensão do mundo e da vida. A morte de Deus tal como é apresentada por Nietzsche traz ã luz uma porção de novos questionamentos sobre a vida especificamente, sobretudo em relação ao seu valor e sentido. É a partir desta necessidade que ele desenvolve um novo operador teórico para conceber o mundo e a vida, não mais em negação, fundamentado pela esfera transcendente, mas sim numa afirmação. E isto significa um esforço para construção de nova perspectiva sobre mundo e sobre a vida, resultando assim na ideia de vontade de poder através da qual se afirma a totalidade do real em sua multiplicidade de forças. Todavia, antes de trabalhar essa perspectiva de afirmação da vida se faz necessário explicitar e compreender as conseqüências do evento central da morte de Deus em certos aspectos que necessitam aqui ser mencionados. Além de ser tema central no pensamento nietzschiano, a “morte de Deus” também é recorrente, pois sempre volta a ser abordada de diferentes formas. Aqui é preciso compreender que se trata de um evento histórico inescapável do qual resulta na supressão das categorias metafísicas e no fim da visão platônica dualista entre mundo aparente e mundo verdadeiro, sendo que tal evento é um resultado do próprio desenvolvimento histórico do pensamento ocidental, na medida em que a dicotomia entre sensível e suprassensível foi se mostrando insustentável. Nota-se que Nietzsche se refere em tal evento ao Deus cristão de acordo a seção 343 da obra A gaia ciência, todavia a morte de Deus está atrelada a toda a metafísica, significa dizer o fim da síntese metafísica, o ruir da distinção cosmológica de dois mundos. É preciso, portanto, assumir as conseqüências históricas desse evento, pois tal dicotomia era 0 que fundamentava todos osvaloresa partir do valor da verdade enquanto valor supremo, assim sendo, a morte de Deus representa simbolicamente o esgotamento


desses valores e mesmo do valor da vida. “Deus está m orto”, afirma Nietzsche, assim toda “a confiança parece ter se transformado em dúvida” e “tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada. Porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado” (NIETZSCHE, 2012, p.207). Por conseguinte, pode-se afirmar que a morte de Deus e o niilismo encontram-se necessariamente interligados, pois quando desmorona o fundamento máximo do mundo e da vida, todo e qualquer sentido e valor acabam por ser lançados ao nada. Esse acontecimento significa a perda da referência máxima de valor e sentido:

Som os todos seus assassinos! M as com o fizemos isso? Como conseguim os beber inteiram ente o m ar? Q uem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Q ue fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? P ara onde se move ela agora? P ara onde nos m ovem os nós? Para longe de todos os sóis? N ão caím os continuam ente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cim a’ e ‘em baixo’? N ão vagam os com o que através de um nada infinito? [...] N ão anoitece eternam ente? (N IETZSCH E, 2012, p .137)

Tal é 0 diagnóstico feito pelo filósofo da experiência do homem moderno que se encontra numa situação na qual toda a determinação que estruturava, definia e orientava mundo e vida se reduz ao nada. Nesse sentido, o niilismo é a condição imediatamente decorrente da morte de Deus onde são suprimidas as categorias metafísicas que fundamentavam mundo e vida.^ Fica evidente para Nietzsche que a metafísica estabelece o nada como parâmetro para o mundo e para a vida, visto que sua justificação, sentido e valor são fornecidos através da dimensão suprassensível, ou seja, significa em última instância fixá-los sobre o nihil uma vez que o processo de desenvolvimento da própria metafísica ocidental culminou no absoluto esgotamento. E isso conduz propriamente á suspensão da possibilidade de verdade, pois não é possível uma fundamentação última. E diante disso a verdade se reduz ao nihil, uma vez que “o próprio Deus se revela como a nossa

' N F /F P 11 [99] Novembro de 1887 - Março de 1888.


mais longa m entira” (NIETZSCHE, 2012, p. 210), percebe-se que o nada foi definido como critério para a vida com base numa crença irrestrita no valor da verdade. Posto isto, resta ao pensamento a tarefa de questionar o valor dos valores. E é nessa direção que “a genealogia não interpreta simplesmente, ela avalia” (DELEUZE, 1976, p. 5) para delimitar tipologias de vida a partir da emergência dos valores, identificando negação ou afirmação. A dimensão suprassensivel é tão somente uma projeção do sensível que surge de uma perspectiva humana tal como é mostrado no discurso Dos transm undanos de Zaratustra^ sendo uma configuração vital que não suporta 0 devir e por isso busca sentido e justificação numa fantasia vazia, preferindo o nada em detrimento da vida, isto é, nega a vida. A morte de Deus teve um efeito catastrófico já que o mundo perdeu sua determinação e a vida acabou por cair num estado niilista como explicitado anteriormente. É nesse contexto que o novo empreendimento filosófico nietzschiano surge. A vontade de poder aparece como alternativa ã concepção de mundo que até então prevalecia como hegemônica, ou seja, enquanto nova consideração do mundo e da vida para além da concepção niilista, pois agora o mundo será concebido como vontade de poder. A vontade de poder é caracterizada pela luta por mais poder, dominação e superação, sustentando o caráter dinâmico da vida através da luta incessante dos impulsos presentes em tudo que vive, porém a vontade de poder não se limita ã vida, mas tudo é vontade de poder, diz Nietzsche: “ Esse mundo é a vontade de poder - e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de poder - e nada além disso!” (NIETZSCHE, 1999, p. 450), significa então dizer que tudo está submetido a essa mesma dinâmica cuja expressão é o pluralismo no embate pela expansão.

*NIETZSCHE, 2011, pp. 31-34.


III. A vontade de poder como afirmação da vida A vontade de poder aparece pela primeira vez, na obra publicada, em Assim falou Zaratustra ligada à ideia de vida. A vontade de poder é a doutrina da vida, Zaratustra é o advogado da vida. É a partir dela que Nietzsche pensa a efetividade do mundo e da vida em sua multiplicidade de impulsos. Essa concepção aparece de forma clara na obra Assim falou Zaratustra: “Apenas onde há vida há também vontade: mas não vontade de vida, e sim - eis o que te ensino - vontade de poder!” (NIETZSCHE, 2011, p. 110). Nesse sentido, na visão nietzschiana a vida é vontade de poder e surge já como uma vontade de expansão e de crescimento, como resistência a partir de um enfrentamento entre os impulsos, onde cada impulso quer expandir-se, desse modo a vida brota enquanto resultado da expansão do poder inicial. Contudo, não se pode fazer aqui um reducionismo e afirmar a vontade de poder como simples realização do poder, pois a vontade de poder está presente tanto no comando como também na obediência, conforme diz Nietzsche:

É virtuoso que um a célula se transform e num a função de outra célula m ais forte? Ela tem de fazé-lo. E é m au que a m ais forte a assim ile? Ela tem de fazé-lo tam bém ; é necessário que o faça, pois procura abundante substituição e quer regenerar-se. [...] Alegria e desejo coexistem no m ais forte, que quer tran sfo rm ar algo em função sua; alegria e vontade de ser desejado, no m ais fraco, que gostaria de tornar-se função. (N IETZSCH E, 2012, p. 133-134)

Em adição, cabe mencionar que o filósofo critica a moral devido a sua recorrente pretensão de julgar o valor da vida com base em construtos antropomórficos limitados. Em sua concepção a vida é o valor máximo e, portanto, o valor que não pode ser avaliado já que para haver avaliação precisa haver vida. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que a vida não pode ser avaliada porque a avaliação surge sempre a partir da parcialidade, ou seja, de uma perspectiva limitada do reduto humano na dimensão da vida e, deste modo marcado pelo fluxo do devir. No entendimento nietzschiano, a moral, o corpo e toda a realidade podem ser descritos a partir do âmbito dos impulsos. O pensamento


nietzschiano se situa em torno da vida, pois ela é a esfera fundamental onde se efetiva a dinâmica dos impulsos. Essa compreensão conduz a afirmação do próprio Nietzsche que diz que: “a própria vida é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do alheio e do mais fraco, opressão, dureza, imposição das formas próprias, incorporação e, pelo menos, no caso mais ameno, exploração” (NIETZSCHE, 2013, p. 210). Conceber a vida como multiplicidade de forças significa entender a dinâmica através da qual se constrói a compreensão da vida que perpassa todo vivente e, deste modo, em sua relação, cada impulso quer impor uma determinada perspectiva, cada impulso busca o comando. É dessa forma que o mundo se apresenta ao vivente como conjunto de interpretações possíveis de acordo com uma específica hierarquia de impulsos. E é a partir disso que se constrói a vida, moral e os valores. Conforme a afirmação de Nietzsche: “Não há quaisquer fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral dos fenômenos...” (NIETZSCHE, 2013, p. 95). É por isso que se pode concluir que a cada e todo instante 0 vivente está se relacionando com diversas possibilidades de interpretação de um dado

fenômeno e da própria vida em seu caráter geral, ou seja, o vivente está em constante processo de mutações, pois ele se encontra marcado pelo fluxo do vir-a-ser. Nesse sentido, os modos de viver tem sua conotação estruturada com base na relação do ininterrupto conflito dos impulsos, sendo assim é possível compreender a afirmação de Nietzsche sobre a vida que elucida o caráter inerente a ela dizendo: “a vida mesma é vontade de poder” (NIETZSCHE, 2013, p. 35). Já que a vontade de poder se mostra como a “única qualidade que se deixa encontrar” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 83). É com base nessa explanação acima que fica inviabilizado ao vivente julgar a vida com base numa perspectiva moral, pois ele não está fixado, mas sim marcado pelo devir e, portando, em constantes transformações, oscilações e afetos inerentes a vida, isto é, marcado pelo devir. É por isso que a vida é, conforme Nietzsche, o valor dos valores. E tendo em vista que a vida compreendida como plenificação de instintos não pode ser avaliada, ela se torna critério de avaliação já que a partir dela se pode distinguir os fracos e fortes, enfermos e convalescentes, conforme expressa Nietzsche na dimensão artística em A gaia ciência:

Q uanto aos valores artísticos todos, utilizo-m e agora dessa distinção principal: pergunto, em cada caso, ‘foi a fom e ou a abundância


que aí se fez criadora?’. De início, um a outra distinção parece antes recom endar-se - ela salta bem m ais à vista

ou seja, aten tar

se a causa da criação, é o desejo de fixar, de eternizar, de ser, ou o desejo de destruição, de m udança, do novo, de futuro, de vir a ser. (N lE T Z S C H E ,2 0 1 2 ,p .2 4 6 )

Parece claro que é a vida enquanto manifestação do poder que se apresenta como critério para avaliação. E é através dela que o filósofo alemão identifica os mecanismos de empobrecimento, fuga e negação da vida. Nietzsche cita como exemplo Sócrates, pois de acordo com o próprio Nietzsche ele teria afirmado: “Oh Críton, a vida é uma doença!”, nessa perspectiva “Sofreu da vida!” (NIETZSCHE, 2012, p.204) A mesma característica é encontrada nos fundadores de religiões, conforme diz 0 filósofo, estes “sofrem de empobrecimento da vida” e por isso negam a vida com suas ficções escatológicas, por outro lado existem aqueles que “sofrem de abundância de vida” enfrentam o sofrimento inerente a ela já que são plenos de tal modo que se permitem a “visão do terrível”, pois neles “o mau, sem sentido e feio parece como que permitido, em virtude de um excedente de forças geradoras, fertilizadoras, capaz de transform ar todo deserto em exuberante pom ar” (NIETZSCHE, 2012, p. 246). Retomando, a vida enquanto critério de avaliação para identificar os modos de viver, apreendendo se há uma negação ou uma afirmação, conforme a citação acima, 0 que significa em suma a ideia de transform ar deserto em pomar? Se nessa acepção a

vida é vontade de poder e, portanto, se pode pensar nessa vontade enquanto uma força transbordante criadora e destruidora. Com base nisto, o desenvolvimento dessa ideia desde O nascimento da tragédia, onde Nietzsche já busca formular uma concepção trágica no qual afirma o sofrimento como inerente á vida, assim como, compreende os aspectos sombrios e luminosos e sua alternância na existência. Considerando isto, em sua afirmação de que tudo é vontade de poder, significa então dizer que a existência não tem nenhum sentido, nenhuma justificação moral, “Deus está m orto” e assim não há fundamentos últimos ou bases sólidas sob os quais a vida possa permanecer, há apenas 0 conflito incessante. A vontade de poder, entendida como um impulso criador do

mundo se assemelha a um instinto artístico, afinal age na qualidade de arte na função


de interpretação pela perspectiva, que é capaz de uma criação de valores na mesma medida em que é capaz de desconstrui-los e desse modo o perspectivismo se liga a vida, pois: O que quer que tenha valor no m undo de hoje não o tem em si, conform e sua natureza - a natureza é sem pre isenta de valor: - foi-lhe dado, oferecido um valor, e fom os nós esses doadores e ofertadores! O m undo que tem algum interesse para o ser hum ano, fom os nós que criam os! (N IETZSCH E, 2012, p. 181)

Isso consiste em aceitar a existência com sua escassez, pois tal potência da vontade de poder perpassa o indivíduo e nele instaura a possibilidade de assumir novas conotações e, dessa forma essa vontade age como força plasmadora e, portando, criadora. Nesse sentido, tal perspectiva é afirmadora já que nasce a partir da superabundância de vida que é capaz de aceitar a vida tal como ela é permeada de sofrimentos, sem nenhum sentido, justificação ou mesmo escatologia. O mundo, nessa perspectiva, é um jogo dos impulsos em permanente conflito, lutando para expandir seu poder. Assim, nada se fixa, há apenas o movimento perpetuo do vir-a-ser, assim sendo, a vontade de poder é o impulso primordial que constrói, destrói, junta, separa e articula tudo para além de qualquer critério moral ou transcendente e, portanto, além de bem e mal. Essa concepção de vontade de poder se aproxima da descrição nietzschiana sobre o pensamento de Heráclito na obra A filosofia na época trágica dos gregos sobre o devir: “Só neste mundo, o jogo do artista e da criança conhece um devir e uma morte, construído e destruído sem qualquer imputação moral, no seio de uma inocência eternamente intacta” (NIETZSCHE, 1995, p. 21). Nesse sentido, afirmar a vida é afirmar a vontade de poder, pois através dela o homem supera a resistência presente como força em uma perspectiva fossilizada, cria novos valores e configurações vitais e afirma a totalidade do real. Desse modo, tornase possível fazer aquilo que deseja a vida que é superar-se a si mesma e dessa forma abandonar o paradigma do homem moderno que é autoconservação já que, segundo Nietzsche:


Q uerer preservar a si m esm o é a expressão de um estado indigente, de um a lim itação do verdadeiro instinto fundam ental da vida, que tende à expansão do poder e, assim querendo, m uitas vezes questiona e sacrifica a autoconservação. (NIETZSCFIE, 2012, p. 217)

Essa vontade de superação descrita na obra Assim falou Zaratustra significa em absoluto a vontade de poder, buscando gerar mais vida, potencializando-a para superar e, desse modo, a vida encontra então uma perspectiva afirmadora-criativa, pois “a luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de crescimento e expansão, de poder, conforme a vontade de poder” (ibdem, p. 217), diante disso surge a possiblidade de apoderar-se da “abundância” de forças vitais. A vontade de poder exige necessariamente uma concepção trágica da existência numa bela afirmação, pois a vida é afirmada no próprio vir-a-ser como possibilidade de criação artística, ou seja, uma autopoiesis ousando “tornar-se o que se é”, assim significa assumir uma visão do terrível, isto é, aceitar que a vida não tem nenhum sentido e nenhuma teleologia, mas apenas o eterno conflito no fluxo do devir, e mesmo diante disso, afirmar.


R E F E R Ê N C IA S BIBLIOGRÁFICAS: DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução: Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Editora Rio - RJ. 1976. MARTON, Scarlett. N ietzsch e-d as forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo. Editora Brasiliense: 1990. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Tradução de Oswaldo Giacóia Junior. São Paulo: ANNABLUME, 1997. NIETZSCHE, Eriedrich.AGaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. _______ . Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2013. _______ . A filosofia na idade trágica dos gregos. Tradução de Maria Inês Madeira. Rio de Janeiro: Elfos; Lisboa: Edições 70,1995. _______ . Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução, notas eposfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. _______ . Fragmentos Póstumos. Vol. VII: 1887 - 1889. Tradução: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. _______ . Obras incompletas. Col. Os pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. _______ . O Nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo.2® ed. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.


ROVII^IA

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DA TENTAÇAO A NEGAÇÃO DO SÜICÍDIO: UM DIÁLOGO ENTRE SCHOPENHAUER E CAMUS. NATHAN MENEZES A. TEIXEIRA - Mestrando em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal Fluminense (UFF). nathan.menezes.teixeira@hotmail.com

Resum o: Em O m undo como vontade e representação, Schopenhauer estabelece 0 “enigm a do m undo” enquanto Vontade que estaria constantem ente devorando a si mesm a dando origem ao sofrim ento. Aqui a questão do suicídio surgiria, pois este poderia apresentar-se como solução a tal sofrim ento; porém , Schopenhauer 0 nega, pois tal ato não afetaria a Vontade, apenas o fenôm eno. Por sua vez, em O mito de Sisifo de Albert Camus, observam os sua preocupação com a questão do suicídio. Após considerar o absurdo como condição intrínseca ã existência, Cam us apresenta que o suicídio deve ser desvinculado deste, uma vez que seria uma atitude desesperada de dar solução a algo que m antém -se ju n to com a própria vida. Assim, a proposta do presente trabalho consistirá em m ostrar em que m edida Schopenhauer e Camus convergem ao rejeitarem o suicídio por verem tal ato como uma tentativa inútil de pôr fim a uma condição constituinte da própria vida. Palavras-chave: S ch o p en h a u er; C am us; S uicídio; A bsurdo.


O sofrimento da Vontade e a inutilidade do Suicídio em Schopenhauer. questão acerca do suicídio e sua conseqüente negação, ganham espaço

A

na íilosoíia de Schopenhauer a partir de uma ligação fundamental com a sua Metafísica da Vontade e, em conseqüência, com o problema acerca do

sofrimento da existência. Tomando as considerações que o filósofo nos apresenta em seu livro O mundo como vontade e representação, tem-se a postulação da Vontade

como aquilo que subjaz a todos os fenômenos constituintes da vida. A chegada a esse “enigma do m undo” é dada por Schopenhauer a partir da experiência que o indivíduo tem de seu próprio corpo. Por ser capaz de olhar a si mesmo não apenas externamente, como faz com os demais objetos, mas também a partir de uma perspectiva interna, o homem descobre como atuando em si uma força volitiva intermitente e que está além de sua capacidade de determiná-la conscientemente a partir de motivos, sendo chamada por Schopenhauer de “sem fundamento”. Tem-se então que é no corpo que cada indivíduo faz a experiência de ser guiado por uma força que lhe é estranha e que atua antes mesmo que este possa elevá-la a sua consciência, sendo então também o momento em se faz a experiência daquilo que não se mostra na representação, a Vontade. A possibilidade de que essa mesma Vontade seja estendida ao restante dos objetos é dada uma vez que, como aponta Schopenhauer, esta é a única possibilidade que se abre a nós para pensarmos a realidade além do modo como é dada nos fenômenos, de modo que, se estes podem ser algo além de mera representação, eles devem ser “aquilo que encontramos imediatamente em nós mesmos como vontade” ^ Porém, a atribuição ao restante do mundo desse mesmo “ímpeto cego” que se encontra presente em nós, acaba por conferir ã existência como um todo a mesma ausência de finalidade presente nesse eterno dirigir-se a algo enquanto um querer que nunca encontra satisfação. Deste modo, se o lado que a vida nos oferece enquanto representação sempre guia-se segundo aquilo que Schopenhauer chama de princípio de razão - que considera todos os acontecimentos fenomenais como dotados de uma causa que os fundamente

,

1 SCHOPENHAUER, A. O m undo como vontade e representação. São Paulo, UNESP, 2005, p. 163. ^ Para Schopenhauer, o princípio de razão determina todos os objetos que são possíveis de estarem em relação ao sujeito, e tais objetos teriam quatro classes que os dividem e em relação às quais o principio


0 lado em que encontra-se a Vontade, alheio a tal princípio, a faz “sem razão”, impossível

de ser explicada por uma orientação racional segundo fins. A sua característica de constantemente “desejar” algo não encontrará satisfação absoluta posto que não há um lugar em que ela possa ser saciada plenamente e estagnar-se de modo definitivo, e sendo tal Vontade insaciável aquela que dá origem á vida, esta encontra-se como reflexo do trabalho absurdo e nulo da primeira. Como colocado de modo preciso por Clément Rosset:

O m undo, a existência são grundlos, isto é, privados de fundam ento, e porque são o Tudo, é que por conseguinte é impossível de encontrar um ponto situado no exterior do Tudo para fazê-lo repousar. Não há nada que motive, que funde, que solicite, que cause, que deseje ou que odeie a existência e a Vontade que a habita, posto que não há nada que não esteja agora e já na existência. A existência ê sem origem , posto que essa origem faria já parte desta existência, [...] por conseguinte, tudo o que se m anifesta ê, em prim eiro lugar a necessidade da V ontade^

Ou seja, diante de tal cenário, tanto o sujeito quanto o mundo no qual ele vive mostram-se como manifestações dessa única e mesma Vontade, que por ser uma unidade fundadora de todos os fenômenos, acaba por condenar a si própria e toda a existência a voltar-se sempre a si mesma instaurando o sofrimento como algo inerente á vida. Decorre disto então que, condenado a viver sob o imperativo da Vontade, o indivíduo sempre encontrar-se-á em um estado de privação que lhe impulsionará a outro e assim sucessivamente, pois tal estado de privação sempre retornará. Seja

de razão adquire uma de suas quatro figuras. Assim, as intuições empíricas seriam a primeira classe de objetos, correspondendo a elas a figura do principio de razão do devir, lhes determinando a lei de causalidade segunda a qual todo efeito deve ter uma causa que o preceda, regularmente. A segunda classe de objetos seriam os conceitos, cuja figura especifica do principio de razão seria o do conhecer, segundo o qual todo juízo verdadeiro deve ter uma razão de conhecimento. As intuições puras do tempo e do espaço formariam a terceira classe de objetos, sendo-lhes correspondente o principio de razão de ser, expressando no tempo a sucessão e no espaço a posição dos fenômenos. Por fim, a quarta classe seria formada pelo sujeito do querer, constituindo o principio de razão do agir, segundo o qual toda ação realizada seria resultante de um motivo anterior. ^ ROSSET, Clément. Schopenhauer, philosophe de 1’absurde. Paris, PUF, 1967, p. 77-78.


através do aumento e prolongamento de uma carência anterior na medida em que o objeto buscado não foi alcançado, ou pelo fato de que, mesmo tendo sido encontrado um estado satisfatório este logo será interrompido por uma nova carência, o que se tem é a necessidade de querer que sempre irá se impor. Ainda, sendo o objeto ao qual se dirige também manifestação da Vontade, assim como o indivíduo e o restante do mundo, a introdução de mais querer na vida resulta em mais auto-discórdia da Vontade consigo mesma, logo, mais manifestações de sofrimento"^. Assim, “o bem, isto é, toda a felicidade e satisfação, é o negativo, ou seja, a mera supressão do desejo e da eliminação de um torm ento” ^ Neste momento é o que o suicídio, a princípio, poderia mostrar-se como relevante, pois, se em sua vida, o homem vê-se continuamente diante da possibilidade da dor que lhe impede o desfrute de qualquer felicidade positiva, por que não deveria ele buscar tornar tal existência a mais breve possível? Entretanto, a resposta dada por Schopenhauer será radicalmente negativa e decorrerá como que de modo necessário da mesma consideração metafísica do mundo que inicialmente lhe legou uma constituição essencialmente trágica. A rejeição do suicídio será posta a partir da atitude que Schopenhauer identifica como presente no ascetismo, cuja característica mais fundamental é a de negação da vontade. Tal atitude pode ser vista como uma radicalização da experiência que segundo Schopenhauer obtemos através da arte. Segundo as considerações apresentadas pelo autor no Livro III de O Mundo, a característica mais fundamental da contemplação estética consiste em que, neste estado, o indivíduo torna-se aquilo que ele chama de “puro sujeito do conhecimento destituído de vontade”. Tal mudança subjetiva ocorre, pois, frente ã obra de arte bela “o pensamento abstrato e os conceitos da razão não mais ocupam a consciência, [...] a gente se perde por completo nesse objeto, isto é, esquece 0 próprio indivíduo, a própria vontade, [...] e não se pode mais separar quem intui da

Como diz José Thomaz Brum: “ Essa imagem de uma natureza que se devora a si mesma por meio de suas figuras fenomênicas diferentes serve de mola para Schopenhauer desenvolver uma concepção geral do caráter da própria vontade. Ele diz que ao olhar essa luta perpétua compreendemos a vontade que se divorcia dela mesma. Essa imagem do combate, da guerra perpétua que sustenta a vida, é fundamental em sua visão pessimista da existência”. BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p. 26. 5 SCHOPENHAUER, A. Sobre a ética. São Paulo, Hedra, 2012, P 148.


intuição, ambos se tornaram unos [...] ”

6

O problema se dá uma vez que, tal estado de libertação do querer, é meramente provisório, de modo que uma vez que seja terminada a experiência estética volta-se inevitavelmente à submissão da Vontade. Assim, o modo que Schopenhauer encontra como capaz de manter tal suspensão da Vontade de modo mais eficaz e duradouro seria pela renúncia radical da mesma, ou seja, sua negação tornada possível através da prática ascética. Segundo o filósofo, o asceta é aquele que enxerga através da vontade de afirmação de seu “eu” individual, toma consciência da ilusão da divisão no mundo fenomenal e compreende o sofrimento como intrínseco ã existência, somente acalmado pela abstenção de todo querer. Tal indivíduo seria aquele que compreendeu que, diante dos sofrimentos inevitáveis da vida, esta vista como reflexo da Vontade essencialmente auto-discordante, a única liberdade coerente a ser buscada consiste em realizar práticas que não mais estimulem a sua vontade e façam com que sua vida se dê além do princípio de razão contradizendo-o radicalmente de modo a que ele experimente constantemente 0 mesmo estado de suspensão do querer presente na experiência estética. Nas palavras

do autor:

No hom em , por conseguinte, a V ontade pode alcançar a plena consciência de si, o conhecim ento distinto e integral da própria essência tal qual esta se espelha em todo m undo. Em função da existênciarealdessegraudeconhecim ento,[...]origina-seexatam ente a arte. [...] entretanto, [...] porinterm édio do m esm o conhecim ento, é possível um a supressão e autonegação da V ontade em seu fenôm eno m ais perfeito, quando ela refere um tal autoconhecim ento a si m esm a. Assim, a liberdade, jam ais se m ostrando no fenôm eno, [...] pode neste caso en trar em cena no próprio fenôm eno, ao suprim ir a essência subjacente ao seu fundam ento [...]; surge daí um a contradição do fenôm eno consigo m esm o, expondo desse m odo o estado de santidade e auto-abnegação^.

6 246. 7

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. São Paulo, UNESP, 2005, p. Ibidem ,p. 373.


Neste momento, o suicídio é radicalmente negado, pois é visto como um ato de afirmação radical da Vontade. Segundo Schopenhauer, o suicida é o indivíduo que, por não alcançar seus interesses e não satisfazer o seu querer, renuncia à vida mas não ã Vontade; sua negação se dirige apenas aos obstáculos que lhe causam sofrimento ao lhe negarem a satisfação desejada, e não suportando tal estado de coisas, acaba por aniquilar sua própria vida em nome do mesmo princípio que o levou a desejá-la de m aisl Neste contexto que Schopenhauer considera tal atitude como filosoficamente vã; além de não alterar a Vontade enquanto inerente ã existência justam ente por ser ela que motivou tal ato, a mesma não pode ser afetada por uma atitude meramente fenomênica, e ainda, um outro aspecto da sua inutilidade se mostra na medida em que não fornece nenhum estado de ausência de sofrimento, dado que após a morte não resta nenhuma consciência capaz de usufruir desta nova condição. Ou seja, “o suicídio [...] substitui a efetiva redenção deste mundo de lástimas por uma meramente aparente” Temos então que, a atitude de negação da Vontade não é, para Schopenhauer, uma negação da existência como um todo, mas sim aquela que se constitui no mundo fenomênico, e isto a partir de um constante cuidar de si mesmo para que a Vontade de vida não sobressaia novamente. Assim, o que sustenta a prática do asceta é sua “revolta metafísica”, é o constante embate entre a negação da Vontade e o perigo de que ela retorne; suas práticas negadoras só se sustentam enquanto ações que continuamente colidem contra algo que a elas fazem frente, conscientes ainda de que esse eterno embate é inevitável á vida mesma e dá sentido á sua revolta de manter-se sempre em um limite e encontrar neste mesmo limite a única forma de vida coerente frente às determinações absurdas da Vontade. Em suma, “a negação da vontade de viver de modo algum significa a aniquilação de uma substância, mas o mero ato do não querer: 0 mesmo que até agora quis, não quer mais” “ .

* “O suicida nega tão somente o individuo, não a espécie. Como à Vontade de vida a vida é sempre certa e a esta o sofrimento é essencial, o suicídio, a destruição arbitraria de um fenômeno particular é uma ação inútil e tola, pois a coisa-em-si permanece intacta [...]. O suicídio é a obra-prima de Maia na forma do mais gritante índice de contradição da Vontade de vida consigo m esm a.” SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. São Paulo, UNESP, 2005, p. 504-505. ^ SCHOPENHAUER, A. Sobre a ética. São Paulo, Hedra, 2012, p. 169. 1» lb id e m ,p .l7 3 .


O absurdo da existência e a negação do suicídio em Camus. Tomando a frase inicial apresentada por Camus em O mito de Sisifo, tem-se delineada a questão central de seu ensaio. Se, de fato, “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio”

todo o movimento textual posterior consistirá em

apresentar a possibilidade de que se responda afirmativamente à indagação acerca do valor da existência. A urgência de tal questão é dada uma vez que, tomando o absurdo como ponto de partida, como o momento em que o sentimento de não explicabilidade total do mundo se mostra em sua radicalidade, aquilo que se apresenta é um problema essencial que toca diretamente a existência. Trata-se, em última instância, de se desfazer a vinculação vista como necessária entre a constatação da ausência de sentido da vida e a declaração de que ela não vale a pena ser vivida. Segundo Camus, o sentimento do absurdo pode surgir a qualquer momento da vida de um indivíduo, e tal momento é aquele em que a cadeia mecânica dos nossos gestos cotidianos é quebrada e “o vazio se torna eloqüente”

Diante de tal cenário, o

que se manifesta radicalmente é o divórcio entre o homem e o mundo, ou seja, entre o desejo humano de que o mundo no qual agora este se sente como um estrangeiro possa ser explicado em termos familiares e o fato de que este mesmo mundo constantemente lhe nega sua vontade; é neste abismo surgido entre ambos os lados que o absurdo se instaura. Há como que uma exigência feita pela sensação de se estar acorrentado a um mundo que constantemente escapa, e que, uma vez elevada ã clareza do pensamento, a certeza que se evidencia de maneira mais imediata é a de que este mundo é absurdo, e é esta mesma clareza que, para Camus, deverá pautar toda a conduta de uma vida extraindo dela todas as suas conseqüências. Trata-se da tomada do absurdo como único dado, uma vez que sua descoberta nada mais é do que a evidenciação daquilo que já estava dado anteriormente como condição intrínseca a toda a existência, de maneira que, o próprio ato de viver implica manter vivo tal sentimento. Assim, irremediavelmente ligado ã vida, o absurdo deve estar constantemente claro para a consciência, de maneira que nenhuma solução que tenha a pretensão de por fim a essa impossibilidade de explicação do mundo em termos

“ CAMUS, Albert. O m ito d eS ísifo . Rio de Janeiro, Record, 2009, p. 17 i^Ibidem, p. 27.


humanos deve ser admitida. Nas palavras do próprio Camus:

E estas duas certezas, m eu apetite pelo absoluto e pela unidade e a irredutibilidade deste m undo a um princípio racional e razoável, sei tam bém que não posso conciliá-las. [...] Devo afirmar, m esm o contra m im, aquilo que m e aparece com o evidente. E o que constitui o fundo do conflito, da fratu ra entre o m undo e m eu espirito, senão a consciência que tenho dela?!^

Diante desta única certeza que inaugura todo o universo da sua vida absurda, 0 indivíduo sente a revolta da sua consciência, pois sabe que não pode prescindir de

uma exigência contínua de explicação do mundo ao mesmo tempo em que sabe ser esta fadada ao fracasso. É neste exato momento em que, segundo Camus, tal indivíduo reconhece que não há opção pelo absurdo, o que há apenas é esta vida com sua ausência de sentido e tragicidade, esta é a sua verdade da qual não há como escapar. Trata-se do instante decisivo em que, o próprio homem torna-se absurdo, que a sua revolta sem esperança consuma-se como sua única paixão e que precisamente por isso deverá ser mantida, e, mais ainda, é o momento em que a opção pelo suicídio é totalmente descartada. É após 0 contato com o absurdo que o homem percebe que permaneceu encerrado dentro dos muros que as metas imaginadas para dar sentido ã sua vida criavam, e que o espaço surgido diante de tal constatação não pode ser negado uma vez que isso implicaria novamente em uma aposta de sentido que este já constatou ser falha. Assim, optar pelo suicídio seria novamente introduzir uma espécie de esperança, uma vez que tal ato nada mais seria do que a espera desesperada de que ainda possase encontrar uma solução definitiva, mesmo que na morte. Suicidar-se, para o homem absurdo, seria a renúncia radical do ambiente de tensão no qual a vida se mantém, seria um afastamento da sua revolta que é um eterno confronto e que se mostra como a atitude mais coerente com a experiência absurda^"^. Trata-se do reconhecimento vivido

« Ibidem ,p.63-64. 1"*“o suicídio representa um salto para fora da condição absurda que ele aparente reconhecer e a destruição


de que “o destino humano, com todas as suas contradições, deve ser aceito como é e a vida deve ser vivida em acordo com esta aceitação” No entanto, após tais considerações, surge ainda uma questão que é colocada pelo próprio Camus: “Sendo-me dada esta face da vida, posso então acomodar-me a ela?”; sua resposta é dada logo em seguida quando este afirma que “se eu admitir que esta vida tem como única face o absurdo, se eu sentir que todo seu equilíbrio reside na perpétua oposição entre minha revolta consciente e a obscuridade em que a vida se debate, [...] devo reconhecer que o que importa não é viver melhor, e sim viver mais” Sentindo-se alheio a todas as determinações que tentam encobrir o abismo que o separa do mundo, o que sobra ao homem é o espaço necessário para que este possa percorrê-la e preenchê-la como quiser de maneira a esgotar todas as possibilidades que se encontram permanentemente em aberto. Diante das imagens possíveis que as vidas humanas lhe oferecem, cada indivíduo que aceita “jogar segundo as regras do absurdo” sente a necessidade de multiplicar-se, abre mão de qualquer justificativa que não seja a simples exigência de esgotar a si mesmo e ao mundo, consciente de sua revolta sem esperança e fazendo dela sua paixão. Vemos então que, para Camus, não se trata de superar o absurdo ou de resolvêlo através da busca de algo que findasse sua tensão intrínseca, trata-se antes de utilizá-lo para dar forma a essa ausência insondável entre o ser humano e o mundo, ou seja, para dar forma ao próprio destino e conseguir viver no deserto que tal sentimento instaura^^ Isto dado privilegiadamente através de uma atitude, que sabe de seus limites e se contenta em fazer uso das possibilidades que se pode ter em uma vida, abandonando

das próprias tensões e contradições no coração do absurdo que ele pretendia afirmar. O pensamento absurdo, enquanto um pensam ento da diferença, da separação e do divórcio, se esforça por m anter estas tensões e fazer delas as razões de viver”. CARROLL, David. “ Rethinking the absurd: Le mythe de Sisyphe”, in. Edward J. Hughes (org.) The Cambridge companion to Camus. Cambridge, Cambridge University Press, 2007, p. 57. i^THODY, Philip. Albert Camus. A study of his work. New York, Grove Press, 1959, p. 6. “ CAMUS, Albert. O mito de Sisifo. Rio de Janeiro, Record, 2009, p. 72. " “O absurdo possui significado apenas na medida em que não for aceito. Afirmado porém sem estar acordo com, resistido porém sem ser negado, engajado na falta de esperança porém ao mesmo tempo sem ações desesperadas para viver, pensando e agindo, significado e valor emergem precisamente a partir desta ausência e no deserto profundam ente niilista que tanto os nega quanto os faz possíveis. Porém isto se dá apenas se as condições do deserto são reconhecidas pelo o que elas são.” CARROLL, David. “ Rethinking the absurd: Le mythe de Sisyphe”, in. Edward J. Hughes (org.) The Cambridge companion to Camus. Cambridge, Cambridge University Press, 2007, p. 59.


então a possibilidade de um salto desesperado na morte. Pois, como Philip Thody afirma, “Camus descobriu que o absurdo do mundo era, paradoxalmente, um convite à felicidade”

Considerações Finais.

A partir das colocações anteriores podemos então traçar o paralelo intentado neste trabalho. A princípio observamos um distanciamento entre Schopenhauer e Camus; enquanto o filósofo alemão estabelece metafisicamente uma explicação para 0 mundo visto como fenômeno da Vontade, procurando veementemente uma opção de

ir contra este mundo através de uma atitude ascética, o escritor francês nega qualquer explicação metafísica da vida sendo justam ente no abismo que ai surge que o absurdo se instaura e faz deste a paixão necessária para manter-se neste mundo. Porém, apesar deste distanciamento inicial, naquilo que podemos considerar como 0 que é mais fundamental na caracterização da situação do indivíduo frente ã sua existência, assim como o problema que o suicídio oferece e o movimento de sua negação, vemos uma aproximação significativa. Tanto Schopenhauer quanto Camus colocam o homem como não conciliados com seu mundo, o primeiro a partir de uma Vontade que divorcia-se de si mesma enquanto conflito e sofrimento, e o segundo a partir do sentimento de que este mundo sempre irá silenciar-se frente a seu apelo de justificação. O homem absurdo de Camus, revolta-se contra um mundo que o supera mas que sabe não poder negar, realiza uma ascese frente a tal destino irracional o desprezando, e não se suicida pois sabe que precisa manter-se exatamente no limite do abismo que se instaura para que possa aceitar radicalmente este mundo e vivenciá-lo mais. No entanto, como o próprio Camus diz:

THODY, Philip. Albert Camus. A study of his work. New York, Grove Press, 1959, p. 8.


“partim os aqui de um a aceitação do m undo. M as o pensam ento oriental ensina que se pode em preender o m esm o esforço lógico optando contra 0 m undo. [...] quando a negação do m undo é exercida com o m esm o

rigor, chega-se com freqüência (em certas escolas vedantas) a resultados sim ilares”

Assim, apesar de Schopenhauerverno ascetismoum movimento profundamente inverso de opção contra o mundo, pode chegar, como indicado na passagem anterior, a um resultado similar. Aquele que realiza o ascetismo schopenhauriano, envolve-se em uma tarefa absurda, de negar a Vontade de vida em seu próprio fenômeno, a vida. Constantemente consciente de que tal tensão não terá fim e de que somente através das práticas contínuas que nela realiza é que pode chegar a libertar-se completamente da Vontade, considera o suicídio como algo destituído de valor.

'^CAMUS, Albert. Om itodeSísifo. Rio de Janeiro, Record, 2009, p. 17.


R E F E R Ê N C IA S BIBLIOG RÁFICAS:

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de janeiro, Record, 2009. CARROLL, David. “Rethinkingthe absurd: Le mythe de Sisyphe”, in. Edward J. Hughes (org.) The Cambridge companion to Camus. Cambridge, Cambridge University Press, 2007. BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro, Rocco, 1998. SCHOPENHAUER, A. Sobre a ética. Tradução e organização pó Flamarion C. Ramos. São Paulo, Hedra, 2012. SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tradução, apresentação, notas e índices por Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005 ROSSET, Clément. Schopenhauer, philosophe de 1’absurde. Paris, PUFE, 1967. THODY, Philip. Albert Camus. A study of hiswork. New York, Grove Press, 1959. YOUNG, Julian. Schopenhauer. New York, Routledge Press, 2005.


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SOBERANIA VERSUS ESTADO:

CRÍTICA AO BINÔMIO PODER-VIOLÊNCIA EM WALTER BENJAMIN RAQUEL CÉLIA SILVA DE VASCONCELOS - Faculdade Metropolitana da Grande Fortaleza, raquelcsvasconcelos@gmail.com


Introdução sociedade contemporânea, herdeira dos valores culturais do lucro do

A

capital, não pode conceber o conceito de soberania sem se remeter à política representativa, cujo poder está centrado no governo legitimado

pela política a serviço do Estado. O poder é instituído nas relações legitimadas pela

violência. A legalização dessa violência se realiza no direito e na justiça, haja vista o interesse do Estado em manter a lógica do sistema capitalista mediante o controle das relações de gerenciamento da vida da população que permite a condição de inclusão e, simultaneamente, exclusão de pessoas como mecanismo de mantê-las sempre na mesma situação sociopolítica. Por certo, pensar a soberania como validação e perpetuação do poder político de quem está no centro das decisões, com suporte na concepção de Benjamin (1984), é 0 mesmo que pensar as transformações históricas conduzidas pelo Estado e suas instituições. A intenção do Estado é sustentar a dominação que caracteriza toda relação política estabelecida na representação governamental. A ideia de soberania, no entanto, que permeia a identificação entre governo legal e Estado, de algum modo, conserva a convicção de que a soberania se torna a instância de definição da relação política entre Estado representado por um governo legalizado - e sociedade - instância última em que se presencia toda ação do poder soberano estatal. Contrapondo-se a tal concepção, W alter Benjamin se dedica a estabelecer uma distinção entre soberania e Estado com amparo no conceito de soberania como algo presente na ação. A soberania é determinante nas relações de poder estabelecidas pelo próprio homem, uma vez que ela se realiza na condição de um Estado de Exceção (Ausnahmezustand) na alma, com o qual o homem desloca esse poder para ação moral. Com efeito, a hipótese central deste ensaio é a de que a soberania reivindicada pelo poder estatal se tornou um elemento central da política contemporânea, que se inicia no século XIX, com uma crescente massificação do homem ocasionada no interior das fábricas e pelo domínio da técnica. A massificação se estende às relações políticas, facilitando o avanço imperialista de caráter liberal que culmina em duas grandes guerras no século XX. É justam ente no referido século que se presencia um controle social pelo poder vigente.


No ensaio A Modernidade, Benjamin (2000b, p.12) assevera que “ [...] o herói é o verdadeiro tema da modernité. Isso significa que para viver a modernidade é preciso uma formação heróica”. E em Experiência e pobreza, Benjamin (1994a, p. 115) relata que a guerra conduz o homem à “nova barbárie”, isto pode ser refletido na vulnerabilidade do próprio corpo que é jogado “ [...] num campo de forças de correntes e explosões destruidoras”. Esses ensaios expressam um controle, de vida e de morte, que nega a possibilidade de escolha, anulando o poder de soberania do próprio homem. Nesse sentido, por que não pensar um aspecto biopolitico nos escritos de Benjamin, quando ele pensa o Estado de exceção como a realização de uma soberania ligada ao poder de decisão do próprio homem? Essa soberania é anulada pela massificação auxiliado pelo avanço técnico-cientifico na Modernidade, a qual inviabiliza a capacidade do homem pensar a própria condição miserável e o gerenciamento de sua vida pelo poder estatal. Nesse aspecto, pode-se analisar a categoria biopolitica em Benjamin para compreender as possíveis transformações do ponto de vista político e econômico. Essas transformações, em meados do século XIX, podem ser vistas no fenômeno da massificação, isto é, uma crescente expropriação do corpo mediante a constituição abstrata do sujeito cuja consciência se torna finita. Não resta dúvida de que o conceito de biopolitica foi enunciado por Eoucault pela primeira vez em palestra intitulada O nascimento da medicina social. Neste texto, Eoucault (1990, p.80) aponta um deslocamento significativo nas estratégias de poder: “o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Eoi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolitica”. No quinto capítulo de A vontade de saber Eoucault (1988) esclarece e aborda o conceito de biopoder, para contrapô-lo ao direito de morte que caracteriza o poder do soberano no século XVII. Embora o conceito de biopolitica tenha sido enunciado por Michel Eoucault (1990), não há intenção aqui de conceber qualquer diálogo entre Benjamin e Eoucault.


O ensaio tem o objetivo de tentar entender, com respaldo em textos de Walter Benjamin, as condições históricas que legitimaram práticas de submissão em nome do bem comum. Sem perder de vista a ideia de que a industrialização no Ocidente demarca a expansão do controle por intermédio da linguagem performativa, que impõe um único sentido para as coisas, dificultando ao corpo e à natureza transitarem pela linguagem como num jogo capaz de inventar sentidos transitórios. A ausência da linguagem como jogo facilita a violação do corpo e da natureza, vistos como espaços de intervenção e controle.

Melancolia e Spleen: faces de uma fragmentação do homem

A Revolução Industrial amplia as necessidades naturais e do trabalho, conduzindo o artesão - conhecedor de toda a produção do objeto de caráter único e durável - à condição de trabalhador cuja preocupação primordial é a manutenção da própria vida e existência da sociedade, obedecendo ã lógica da produção em escala. Isto corresponde ao que H annahA rendt (2009), em A Condição Humana, define como transição da condição de homo faber (ser fazedor) ã condição de animal laborans (ser trabalhador), isto é, transita do status de artesão ao estatuto de operário que não possui mais 0 domínio total da produção do objeto. Por certo, a Modernidade concebe a ideia de homem que alimenta o status quo, sobretudo porque as sociedades de produção em massa veem no trabalho, entendido como categoria ontológica, um fator determinante ã sobrevivência da espécie. Portanto, 0 status quo se firma por meio da produção industrial de bens destinados ao consumo

imediato, os quais precisam atender continuamente ao mercado realizado por meio da inserção do homem no mundo do trabalho, num ciclo constante e infindável, no término do qual se firma a privatização do espaço público mediante trocas econômicas permanentes. A mercadoria cria necessidades que se firmam no desejo permanente de objetos que tragam sentido e significado ao mundo social do consumo, condicionando 0 sentido da existência.


É nesse mundo do fetiche simbólico da mercadoria que a cultura entra como condição de possibilidade de perpetuação dos desejos infindáveis de consumo e, como consumação desse fenômeno, o trabalho é a via para realização desses desejos. Esse é 0 contexto no qual Benjamin mergulha para tentar compreender as transformações e/ou mudanças presentes na Alemanha do século XX, sobretudo, do ponto de vista da cultura burguesa submetida ã relação político-econômica, estabelecendo sob a civilização um “monumento de barbárie”. Benjamin percebe que a cultura alemã na República de W eimar é uma herança do triunfo da ideologia burguesa em favor do historicismo como resultado da facies hipocrática - degeneração descoberta na imanência da História com a Natureza. Em seu ensaio. Teorias do fascismo alemão, Benjamin (1986, p.l35) assinala:

[...] 0 sentim ento alem ão pela natureza experim entou um a intensificação inesperada. [...] Com um lança-cham ase trincheiras, a técnica tentou realçar os traços heróicos no rosto do idealism o alem ão. Foi um equívoco. Pois o que ela julgava serem heróicos eram traços hipocráticos, os traços da m orte. Assim , profundam ente im pregnada por sua própria perversidade, a técnica m odelou o rosto apocalípfico da natureza, fazendo-a em udecer, em bora pudesse ter sido a força capaz de lhe d ar voz. A g u erra com o abstração física, [...] nada m ais é do que a tentativa de desvendar por meio da técnica, de m aneira m ísfica e im ediata, o segredo de um a natureza concebida em term os idealistas.

É notório o fato de que Benjamin analisa a situação política alemã do século XX ã luz do século XVII, verificando a convergência entre a ação do homem barroco e a ação do homem na Modernidade. Ele percebe, no século XVII, um homem desprovido de qualquer ação, haja vista que toda decisão é atrelada ã ação do príncipe e ã moral luterana. O mesmo acontece no século XX, quando o homem entrega seu poder de decisão ao Estado.


A Reforma Protestante, contrapondo-se à Igreja Católica, contribui para o fortalecimento da tese do direito divino, que facilita o afastamento da ação intermediária de Roma. Por sua vez, o soberano vê na Reforma a possibilidade de sair da tutela papal e assumir também o comando da vida espiritual dos súditos. Com o direito divino, o soberano possui, de direito e de fato, a soma total dos atributos do poder, conduz o soberano ao estado de melancolia (acedia). Segundo Benjamin (1984), a acedia^ é o estado de espírito do homem barroco, expresso na linguagem formal do drama barroco. Ela caracteriza a ausência de paixões na linguagem estóica e demonstra o drama do príncipe. O príncipe é afortunado pelo estado de melancolia, comprometendo sua função de governante. Benjamin vê a melancolia como instrumento que salvaguarda à ação do soberano, conduzindo-o ao Estado de Exceção (Ausnahmezustand) na política e ã prática da Justiça. Nesse sentido, 0 Estado de Exceção representa o poder que se desloca para ação individual do homem

por meio da ação moral. A exclusão da ação pela moral luterana, no entanto, manifesta no povo europeu 0 paganismo, sujeição ao destino e o estreitamento da relação finitude-infinitude por

meio da fé, cuja função é resolver o conflito interior do homem com a liberdade do espírito que não precisa da ação, pois a salvação só depende do desígnio de Deus. A ação para a moral luterana é privada de todo valor, conduzindo o homem barroco ao mundo vazio de significação. O rigor da fé priva o homem do mérito da ação, facilitando 0 desenvolvimento da melancolia. Com efeito, a razão procura prolongar a vida por

intermédio da ciência. O homem barroco vive sob a pressão de duas forças atuantes no mundo: razão (ratio) e fé (fides), decisivas ã interiorização e ã espiritualidade do homem, fontes da verdade e da vida, porque dão significação ã existência. Por isso, o barroco preenche 0 mundo de significação por meio da arte. As forças que atuam na natureza do

1 É 0 termo em latim que designa o tédio no Período Medieval: o torpor ou a inércia em que caíam os monges que se dedicavam à vida contemplativa. Segundo Benjamin (1984, p .l7 7 ), “a acedia é o quinto elo na sequencia dos pecados capitais. No circulo infernal que lhe corresponde, reina um frio glacial, que alude aos dados da patologia dos hum ores, à composição fria e seca da terra”. É uma espécie de torpor espiritual que impede de iniciar o bem. Com o tédio, a acedia tem em comum o estado que a condiciona que não é de necessidade, mas de satisfação, bem característico do estado de melancolia.


homem barroco são expressas na arte pelo contraste entre a luz e a escuridão o que, respectivamente, corresponde à razão e à fé. Essa ambivalência faz o homem criar uma consciência que neutraliza a contradição necessária para o discernimento entre o bem e 0 mal, tanto do ponto de vista racional quanto religioso.

Assim, a morte é expressa no destino do homem barroco, pois, na alegoria do século XVII, 0 cadáver é a transposição da melancolia e o melancólico busca o prolongamento da vida por meio da ciência. Na alegoria do século XIX, no entanto, segundo Benjamin (1994b, p. 180, grifo do autor) “o teor heróico da inspiração baudelairiana consiste em que nele a memória desapareça completamente em favor da lembrança. Nele existem estranhamente e poucas ‘memórias da infância’”. Isto pressupõe que a lembrança reflete a melancolia do Spleen de Baudelaire. No barroco. Descartes expressa a melancolia por intermédio da dúvida, que desestabiliza a verdade escolástica, permitindo-lhe a interiorização e o questionamento. A dúvida espelha a desordem do mundo, que obriga o homem a ordená-lo pelo pensamento. Essa ordenação é expressão da dúvida cartesiana^, que aponta a fragilidade do homem ante a sensação de abandono, por não mais se assegurar da transcendência. A melancolia barroca concebe a experiência histórica para o homem perceber que não existe no mundo um ponto fixo capaz de estabilizar, sustentar e orientar as coisas. A reflexão de Benjamin acerca do período barroco demonstra que, no século XVII, existem total desestabilização política e desesperança no plano religioso e espiritual. Para o homem do Barroco, o sentimento que paira é o de fragmento. Com a bipartição (corpo e alma), o homem se apega ã existência mediante o incentivo ao desenvolvimento da arte e da ciência, na tentativa de encontrar a felicidade terrena no instante. A fugacidade é o resultado da rigidez da moral luterana. Ela incentiva a ação do carpe diem^ (fruição do instante), que facilita ã alegoria unir o eterno e o transitório.

^ A dúvida cartesiana compactua com a expansão da moral luterana por toda a Modernidade. As ideias difundidas por Lutero desprendem , de certa forma, o homem do poder papal. Essas ideias contribuíram para mudanças im portantes que levaram a hum anidade ao avanço das ciências empíricas. ^ No teatro alemão barroco, os sentidos e as paixões representam a afirmação da vida mundana. Esta é ilusória e conduz o homem à morte, cuja salvação e aproximação entre finito e infinito ocorre com a mediação da Igreja. A Igreja Protestante, quando retratava a finitude hum ana ante a ausência de transcendência, conduz o homem ao sofrimento por estar entregue ao destino.


Portanto, a fruição do momento é o reflexo da desconfiança espiritual e religiosa do homem em relação ao mundo. Isto contribui para o segundo perceber que as significações do mundo são vazias, pois Deus deixa de ser o centro, ou seja, tudo passa a ser transitório. Para fugir do estado de melancolia, o príncipe incentiva a ciência e a arte que tinham como principais aliadas a Geometria e a Matemática. No Barroco, o fragmento alimenta-se do eterno retorno do tempo (dia e noite), que se assemelha ao do progresso na Modernidade. O Barroco não camufla a história, quando apreende o tempo viciado (dia e noite). A Modernidade traz esse tempo viciado quando concebe no progresso o retorno do velho como sendo novo. Barroco e Modernidade concebem o destino fechado. No Barroco, a concepção de destino fechado resulta da dualidade natural do homem. Na Modernidade, essa concepção origina-se da imposição do trabalho que conduz o homem ã fragmentação no interior das fábricas. Assim, como na natureza - céu e terra, o Barroco concebe o conflito entre claro e escuro, evitando a camuflagem da história. A dualidade torna-se presente na ação do príncipe, a qual compromete sua soberania. O poder do soberano pressupõe a presença do conflito dual na história que tramita com base na personalidade ambígua do monarca: em alguns momentos, ele se faz m ártir e em outros se faz tirano. A dualidade do soberano, no entanto, aponta a atuação do fragmento na política e na história, facilitando a ação da consciência do homem histórico, que permite ler a história sob os dois aspectos da natureza contraditória. Assim, o soberano não está sujeito á lei, uma vez que ele é a própria lei e, nessa condição, ele tem o poder de direito e de fato para decidir sobre o destino dos súditos e conduzir a história. O príncipe não pode ser submetido ã lei e sua maior virtude é conservar o bem-estar da res publica. Conceber a Modernidade ã luz do Barroco possibilita Benjamin compreender a situação caótica em que culminou a democracia social alemã. Para Benjamin, é necessário compreender a história do Barroco como ruína (Trümmer), uma vez que ela é resultado da dessacralização e do Racionalismo. No Barroco, o príncipe vive a condição de suprema criatura, mas não escapa ã ordem natural (sofrimento e morte) que subjuga o destino de todos. Por isso, afirma Benjamin (1984, p. 93), ele está submetido às “faces de Janus do monarca, os dois


extremos da condição principesca”. Na condição de criatura, são estabelecidos na natureza do príncipe o tirano e o mártir. Na condição de tirano, é seu dever estabelecer a ordem e proteger o Estado, mesmo que seja necessário criar um Estado de Exceção na política. Ele comporta dualidade e simboliza a Criação, vítima da desigualdade entre sua condição hierárquica no reino das criaturas e a miséria de sua condição humana. O tirano assume a condição de mártir, quando demonstra uma atitude estóica perante a repressão das paixões. Para Benjamin (1984, p.89).

No pensam ento teológico-jurídico, tão característico do século, m anifesta-se o efeito de retardam ento

provocado por um a

superexcitação do desejo de transcendência, que está na raiz dos acentos provocativam ente m undanos e im anentistas do Barroco. Pois ele está obcecado pela ideia da catástrofe, com o antítese ao ideal da R enascença. É sobre essa antítese que se constrói a teoria do estado de exceção.

Assim, a luta pelo poder na história do Absolutismo leva o monarca às últimas conseqüências. O príncipe, com a atitude ambivalente, vê-se acometido pela acedia (a sombria indolência da alma - um sintoma da melancolia), que o conduz ã fronteira entre a condição de criatura e sua soberania. Na posição de criatura, ele está sujeito á natureza, e, como soberano, tem o dever de subjugá-la, pois a melancolia principesca é 0 reflexo da incerteza da vida.

Expropriação e violação do corpo

No século XVII, a melancolia determina o comportamento político do soberano e 0 conduz ã razão de Estado. Ela é a certeza da individualidade do homem que se vê abandonado e entregue ao destino. E a individualidade deve comportar a dimensão do caráter, pois qualquer ação individual compromete a instância coletiva, pois a ação política do homem em qualquer sociedade está relacionada á atitude soberana presente na ação moral.


Para Benjamin (1984), a verdadeira dicotomia corresponde a dois polos: em um se encontra a história (natureza cega) e no outro polo a anti-história (história naturalizada)"^. É dessa forma que a história barroca, na concepção de Benjamin, ainda permanece no inconsciente coletivo do povo europeu por meio da política. Na Modernidade, ela é presenciada no controle da ação do homem pelo Estado e na tentativa de dar significação para existência por intermédio do fragmento. Quando 0 barroco utiliza a inicial da palavra com letra maiúscula é a forma encontrada pelo

homem para dar significação ã existência das coisas. Na Modernidade, essa significação se realiza pelo viés profano da mercadoria. O Barroco e a Modernidade neutralizam a ação da consciência do homem histórico quando depositam na razão abstrata o poder de transformação. A melancolia do Splee baudelairiano, de certa forma, apreende a fruição do instante na mercadoria. Em Baudelaire, a mercadoria age como uma prostituta, porque ambas realizam desejos inconscientes, transformando o espaço em uma zona comercial que faz 0 transeunte saborear gozo e receio. Estes são estados de devaneio que aguçam o imaginário da “massa de habitantes”, cuja relação estabelecida com a mercadoria é de fetiche. Nesta condição, a mercadoria precisa “estender-se sobre vastos setores da cidade”, como fazem as prostitutas, pois, como diz Benjamin (1994, p.53), “ [...] só a massa permite ao objeto sexual inebriar-se com a centena de efeitos excitantes que exerce ao mesmo tem po”. Assim, prostituta e mercadoria realizam os desejos que se encontram na fronteira entre necessidade e vontade. Elas permitem o corpo se impor ã alma para experienciar a fruição no instante presente no consumo deliberado pelo jogo de sedução que ambas proporcionam.

Na concepção de história-natureza do drama barroco, a mentalidade do século XVll descreve um m ártir para a história, um conspirador e agenciador da catástrofe, um santo vitimado pelo luto, e a corte como lugar infernal e pervertido da história. Na anti-história, o tirano é responsável pela naturalização da história, o conspirador exerce o papel de conselheiro do Príncipe, a corte é o paraíso e teatro da antihistória; no entanto, esses polos derivam de um princípio comum que os concebe: a imanência. Somente na perspectiva da secularização, concebida como responsável pela ausência de transcendência, pensa-se a história como natureza cega, sem fim aparente, com a qual se pode conduzir a criatura a conceber a salvação pelo viés profano.


Considerações finais Do ponto de vista da exposição dos relatos históricos presentes neste ensaio, é possível discutir a possibilidade de uma biopolitica em Benjamin. Esse debate é, no mínimo, pertinente, haja vista que os ensaios de Benjamin de crítica à cultura burguesa permeiam, de forma consistente, os conflitos presentes na constituição de uma sociedade presa à lógica do capital. Esta escamoteia as contradições por intermédio da razão absoluta que nega a ação histórica do homem e submete o corpo ao desejo permanente da mercadoria. Na Modernidade, o corpo é violado e expropriado pelo desejo incessante de autorrealização da existência na mercadoria. Para Benjamin (2000), é na interpenetração entre corpo e espaço de imagem que surgem as inervações do desejo do corpo coletivo, de inserção no processo de decisões. No desejo de autorrealização da existência, presencia-se o lado irônico das razões do capital: ao mesmo tempo em que o corpo supre as necessidades impostas pela mercadoria, paralelamente, ele é reportado ã falta de sentido e significado presente na pseudoexistência de uma felicidade fugaz. Assim, a utilização da mercadoria como mecanismo de inserção social demonstra que a Modernidade, como herdeira de um sujeito que se realizou por meio do espírito absoluto, foi responsável pela formação abstrata desse mesmo sujeito, cuja consciência se torna finita e desprovida de reflexão e ação. A mercadoria, como símbolo de inserção no mundo burguês, desloca-se, na qualidade de valor simbólico, para o domínio intencional da linguagem, por intermédio dos discursos (ou falácias), que só demonstram a inclusão-exclusão mediada pela ação coercitiva do poder central. Esse processo tem por função deliberar, através da violência simbólica, um processo de exclusão permanente do poder de resistência das diferenças. Isso significa afirmar que o mercado cria mecanismos de inclusão da diversidade, e não da diferença. O mercado opera com base em imperativos de controle da vida da população, em que o corpo se torna o espaço desses imperativos fundamentados na governamentalidade que delineia uma pseudoinserção da população no modo de vida burguês.


R E FE R Ê N C IA S

ARENDT, H. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. ______ . Teorias do fascismo alemão. In:______ . Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. Seleção e apresentação de Willi Bolle. São Paulo: Cultrix, 1986. p. 130-137. ______ . Experiência e pobreza. In :______ . Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994a. p .114-119. (Obras escolhidas, v.l). ______ . Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994b. (Obras escolhidas, v.3). BENJAMIN, W. A Modernidade. In:______ . A modernidade e os modernos. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000b. p. 7-36. EOUCAULT, M. A vontade de saber: história da sexualidade. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. v.l. ______ . O nascimento da medicina social. I n :______ . Microfísica do poder. 9. ed. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1990. p. 79-98.


RO\'I!^rA

LAMP

0 MUNDO REIFICADO OU DA NATUREZA DA ECONOMIA MANUEL BEZERRA NETO - filósofo e professor de Filosofia da Educação e Sociologia do Departamento de Educação da Universidade Regional do Cariri (URCA).

Resum o: Propõe-se fazer uma abordagem sobre a questão da econom ia, não como expressão da atividade produtiva do ser hum ano em sociedade, m as no âm bito da sociedade capitalista, na qual a atividade econômica é reduzida à racionalização de meios e fins voltados para a produção de valores de troca como condição de extração de mais-valia. Procura-se com preender porque as m ercadorias aí adquirem uma aura de sacralização, ao invés de se apresentarem como objetivação dos indivíduos, enquanto estes é que se tornam objetivação do capital - problem a com o qual Marx deu início ã sua crítica radical da sociedade burguesa. Palavras-chave: Fetiche da m ercadoria; reificação; racionalidade produtiva; eficiência; valores de troca.

A bstract: It is proposed to make an approach on the issue of the economy, not as an expression of the productive activity of the hum an being in society, but in the context of capitalist society in which economic activity is reduced to the rationalization of m eans and ends facing the production of swap values as a condition of extracting surplus value. One seeks to understand why the goods acquire an aura of enshrining, rath er than present them selves as objectification of individuais, while these become objectification of the capital - problem with w hich Marx began his radical critique of the bourgeois society. Keywords: Fetishism o fth e commodity; reification; productive rationality; efficiency; swap values.


O

A

tomarmos como ponto de partida para uma compreensão do ser humano

as condições materiais objetivas que ele deve encontrar, devemos deduzir que esse indivíduo terá como sua primeira e primordial preocupação

encontrar os meios necessários e suficientes que garantam sua sobrevivência material concreta. Isto implica na necessidade de ter que colocar toda a sua capacidade criativa e transformadora a serviço da exigência de garantia de suas condições reais de vida.

Assim sendo, o homem passa a estabelecer com o mundo uma relação metabólica que só pode ser possibilitada por meio de sua atividade sensível que, por sua vez, dará início a todas as formas sociais complexas de vida do indivíduo; isto é, neste momento é que se instala uma dimensão primordial que faz distinguir e definir o que é propriamente humano. É o momento específico de instalação da sociabilidade humana, que é, ao mesmo tempo, o momento de humanização da realidade, porque é precisamente pela atividade produtiva, como expressão geral do trabalho, que se torna possível encontrar 0 fundamento ontológico do homem enquanto ser social e histórico.

Sem dúvida, este é um passo fundamental, porque significa não apenas um salto ontológico da vida natural para o gênero humano, mas continuará também a ser este fundamento a condição natural infinita da vida humana, independentemente da forma como ele se realize. O que nos interessa acentuar aqui, por conseguinte, é que a forma real em que 0 trabalho se realiza em cada período da história se constitui numa determinada forma de sociabilidade humana. Em conseqüência, o trabalho associado passa a ser considerado como ato fundante, daí nunca ser demais considerarmos este aspecto, dadas as deformações e tentativas de desqualificação promovidas a seu respeito pela forma social capitalista. Desta forma, o que se torna importante a destacar são as formas como o trabalho foi encarado no âmbito dos processos históricos: ora como condição de emancipação humana das limitações impostas pelo mundo natural; ora apenas como meio para alcançar outras finalidades, ou como meio capaz apenas de produzir va/or; isto porque, nenhuma das formas de trabalho até hoje existentes - seja a escravista ou a assalariada, etc. - foram capazes de permitir ao homem tornar-se minimamente livre. Muito menos, quando, sob a forma de trabalho assalariado, percebeu-se na expansão


e aprofundamento da divisão do trabalho o mecanismo evidente de dominação e expropriação do trabalhador, bem como a possibilidade de reprodução social do capital. E é precisamente sob a categoria dos fatores econômicos que precisamos encarar a problemática dos processos produtivos, os quais a economia burguesa considera apenas sob a perspectiva da eficiência metafísica da relação entre meios e fins, em vista da impossibilidade de ela permitir sequer considerar as necessidades humanas de emancipação de sua condição genérica.

O fetiche da mercadoria

A economia, em face da questão da eficiência da produção material, aparentemente exigida pelas condições de possibilidades atuais da existência humana, não tem conseguido dissimular, nem mesmo se desvencilhar de uma forma conceituai inequivocamente abstrata das determinações objetivas do lucro, este, enquanto condição sine qua non das exigências de reprodução social do capital. Por esta razão, a economia passa a trabalhar com um conceito que expressa apenas eficiência produtiva, precisamente pela abstração das condições de possibilidade da própria existência humana, dados os efeitos perigosamente ameaçadores que ela representa em termos de destruição provocada pela economia capitalista sobre as condições da vida natural. Certamente, não seria em conseqüência de um estado de carência vital generalizado imposto às condições hum anas de sobrevivência que as atividades produtivas hoje estivessem procurando sua razão de existir, através ou do mau uso intensivo da ciência e da técnica, ou pelas novas formas de organização da produção e do trabalho, senão que, simplesmente, pela falsa consciência da forma social capitalista de que esta é uma grave contradição que o desenvolvimento capitalista não consegue superar, uma vez que a produção de valores de troca sempre constituiu a finalidade de sua existência. Para o capital, a imagem do planeta - hoje, de forma mais evidente - sempre foi a de uma imensa e infinita planície, da qual se destrói uma parte para em seguida, passar-se a outra, sem que isso possa se constituir num problema de graves


conseqüências para apropria sobrevivência do planeta, o qual só é avaliado e encarado sob 0 aspecto de uma racionalidade instrumental e mecanicista entre meios e fins. Sob a ótica da economia enquanto ciência da racionalidade produtiva de riquezas, os indivíduos submetidos à lógica da cientificidade dos meios e dos métodos, em vista dos objetivos das trocas de equivalentes financeiros, passariam a ser apenas observadores externos - res cogitans - do movimento espetacular das mercadorias produzidas e lançadas no mercado, frente a uma realidade empírica, enquanto o sujeito das ações mercantis seria somente um fato inerte, reduzido à lógica do cálculo matemático das utilidades reificadas; isto é, apenas a partir das puras determinações do valor de troca, não cabendo, assim, discutir-se os impulsos concretos e verdadeiros das ações humanas, nem da busca teleológica de uma significação que não seja a de uma produção fetichizada para aquelas ações. Por esta razão é que compreendemos que a questão essencial do trabalho produtivo consiste exatamente em considerá-lo para além das exigências meramente biológicas dos seres humanos no seu processo de relações metabólicas com o mundo natural. Desta perspectiva, portanto, devemos levar em conta, todavia, o papel da consciência, por representar o momento crucial de separação entre o ser genérico do homem e seu ser biológico. Assim, o trabalho produtivo torna-se fundamentalmente uma categoria social, na qual se acham imbricados não apenas um estado real de carências vitais, mas também uma posição teleológica que lhe atribui sentido humano no âmbito do próprio ser social. Consequentemente, na utilização dos meios de produção, a economia aparece simplesmente como mera força inerente às determinações do capital; apenas como modelo para a produção capitalista. É que essa representação apenas dissimula na relação capitalista sua estrutura interna, pela indiferença e pela alienação nas quais o trabalhador se encontra, em face das condições do seu próprio trabalho, dado que os meios de produção se apresentam para ele apenas como meios de exploração. Decorre, portanto, dessa relação, que a descoberta do trabalho abstrato, como fonte de exploração da força de trabalho termina conduzindo, de forma inelutável.


ao fetichismo das mercadorias, transformando as coisas num mundo encantado às avessas; autonomizando e personificando as coisas. Em suma, essa verdadeira religião do cotidiano acaba por mistificar o mundo das mercadorias e por apresentar as relações sociais apenas como relações entre coisas, desfigurando assim as verdadeiras características humanas. Na verdade, a lógica prevalecente dos objetivos de uma produção econômica reificada de bens mercantis fala apenas da produção de objetos segundo a racionalidade das trocas e da eficácia entre meios e fins. A riqueza produzida não se apresenta como finalidade do atendimento de um estado concreto de necessidades vitais da sociedade, nem das exigências subjetivas autênticas dos indivíduos, pois o desenvolvimento da produção econômica versa tão somente sobre as possibilidades de qual forma de apropriação - privada, sem dúvida - satisfaz a determinados “cidadãos”, e não ã sociedade por inteiro. Como fim em si mesmo, a riqueza se apresenta na sociedade burguesa, de um lado, como coisas objetivadas em coisas - uma “imensa coleção de mercadorias”, como percebia Marx - produtos materiais diante do homem como sujeito do processo; de outro, porém, como valor de troca, como simples controle do capital sobre o trabalho do produtor direto, e não como meio de extinção da dominação dos proprietários dos meios de produção. Quer dizer, a riqueza é produzida somente para o usufruto privado e para assegurar as condições de reprodução social do capital. Evidentemente, em todas as formas, a riqueza não é mais que um conjunto de coisas reiflcadas. Seu único sentido está em somente expressar as múltiplas relações entre os indivíduos pela única e simples relação entre coisas. Por esta razão, isto está exprimindo o aspecto reificado da economia, que acaba engendrando o fetiche da mercadoria que, por sua vez, gera um processo de alienação do consumidor, em vez de permitir sua consumpção e emancipação por meio da utilização consciente da riqueza produzida pela sociedade. A antiga visão pela qual o ser humano, em suas condições reais de existência, aparecia como o fim da produção das riquezas parece uma ideia utópica e idealista para a sociedade capitalista. Nesta, sim, as coisas aparecem invertidas em seus significados, “e a produção em si que aparece como finalidade do ser humano, e a riqueza, como fim da


produção” (Marx, 1976). Para se ter maior clareza sobre a natureza da mercadoria, Marx perguntava ainda: “o que é a riqueza senão a universalidade das carências; forças produtivas dos indivíduos engendradas na troca universal?” (ibidem). Sem dúvida, ele se referia à forma social capitalista. Uma

apreciação

crítica

sobre

os

vários

aspectos

reificados

da

categoria economia, além de demonstrar que ela é parte integrante da própria realidade humana, revela ainda que, não obstante, tornaram-se aspectos reificados e incorporados não só nas teorias, mas sobretudo, nas ideologias que têm dado sustentação às concepções que encaram o ser humano apenas da perspectiva do “homo economicus” e enquanto fator econômico gerador de riquezas. Esta observação implica em se ter que efetuar uma análise crítica capaz de revelar a verdadeira natureza daquelas concepções que vinculam a economia tão somente às exigências de eficiência e objetividade da produção como fator gerador de valores de troca, e não como ponto de partida para uma compreensão mais ampla e objetiva do ser humano enquanto ser social e histórico. Neste sentido, torna-se necessário retomarmos a questão da articulação entre os aspectos natural e social da vida humana, a partir da ruptura epistemológica que 0 trabalho representa no intercâmbio entre o ser natural e o ser social do gênero humano pois, segundo Marx, esse intercâmbio se configurou como uma lei eterna do devir humano. Quer dizer, o aspecto predominante do desenvolvimento econômico não deverá ser constituído apenas por leis naturais, mas, acima de tudo, por leis de caráter histórico e social. O reconhecimento disto está no fato de que se torna mais evidente a intervenção consciente do homem em relação à sua própria dimensão natural. E é precisamente neste sentido que o trabalho se revela como a condição fundante da essência humana, desde que, sem dúvida, a atividade produtiva humana esteja revestida de um caráter eminentemente social; isto é, se configure como trabalho associado, o que não significa simplesmente trabalho coletivo ou cooperativo, mas por permanecer diretamente social, do começo ao fim na produção, na distribuição e no consumo. Como podemos perceber, a grande diferença em relação à produção capitalista - ainda que esta também seja social - é que sob o comando do capital, a associação é imposta externamente aos produtores por um poder que lhes é estranho e que lhes


subtrai o controle e a compreensão do próprio processo de trabalho. O que importa acentuar, portanto, é a necessidade de se compreender que não basta apenas colocar as forças individuais em associação, nem levar em conta somente o fim da produção voltada para os interesses sociais gerais. O que é importante para a afirmação genérica do homem é liberar a produção das finalidades de acumulação e do controle estrito do capital, uma vez que ela se configura especificamente dirigida para a produção de valores de mercado, e coloca-la, por sua vez, sob o controle livre e consciente dos produtores diretos, em vista de seus interesses e necessidades de emancipação. Entretanto, observemos que não devemos ter uma compreensão idealista e subjetiva, de fundo moral, para que o trabalho possa representar efetivamente a possibilidade de emancipação do indivíduo. Como conseqüência do processo histórico real, é preciso que a humanidade possa alcançar um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas para que essa possibilidade realmente se torne realidade. Sobre a questão da realização da liberdade, mediada pelo trabalho, Marx enfatizou que: “Com efeito, o reino da liberdade só começa ali onde termina o trabalho imposto pela necessidade e pela coação defins externos; situa-se, por sua própria natureza, para além da órbita da produção material propriamente dita” (Marx, 1974). Portanto, que se deixe claro, no entanto, que Marx já havia se referido, desde os Manuscritos de Paris, que o trabalho é, para além dos seus aspectos negativos, a “condição eterna de existência hum ana”, e o fator essencial para a autorrealização de suas potencialidades. Em vista disto, torna-se necessário então opormo-nos ao cálculo da eficiência produtiva, uma vez que o trabalho, enquanto atividade objetiva do homem, pelo qual se cria a realidade humano-social, é o trabalho no sentido ontocriativo, e não no sentido puramente da eficiência econômica, criador da forma específica, social e histórica da riqueza. Como categoria econômica, ele se manifesta apenas como regulador das relações sociais de produção; é um trabalho determinado e abstrato, e somente sob essa forma, é tratado pela economia burguesa. Entretanto, ao se fazer abstração das ações racionalizadoras, de caráter mercantil, não podem efetivamente realizar as finalidades reais da economia, voltada para as necessidades vitais concretas do ser humano, fazendo abstração dos riscos que a pura produção de riquezas representa para as próprias condições de possibilidades de autorrealização do ser genérico do homem.


R E FE R ÊN CIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LUKÁCS, Gyorgy. Ontologia do Ser Social. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. MARX, Karl. O Capital. 2®. Ed. Trad. Ronaldo Schmidt Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. Vol.l. ___________. Crítica da economia política. 2®. Ed. Trad. Reginaldo Barbosa Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. . Manuscritos econômico-filosóficos. 2® Ed. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores. MARX, Karl; ENGELS, Eriedrich. A Ideologia alemã. 5® Ed. Trad. José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Hucitec, 1986. MESZÁROS, István. Produção destrutiva e estado capitalista. Trad. Georg Toscheff. São Paulo: Ensaio, 1989.


RO\'I!^rA

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FOUCAULT E A GENEALOGIA DA VERDADE NOTAS SOBRE A ONIPRESENÇA, A IRREFUTABILIDADE, A AUSÊNCIA E A UNIVERSALIDADE DA VERDADE PABLO SEVERIANO BENEVIDES - Professor pela Universidade Gederal do Ceará (UFC); Coordenador do diferenSa. DIVA RODRIGUES DALTRO BARRETO - Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Resum o: Este trabalho objetiva apresentar algum as das principais características atribuídas à verdade tal como nos revela uma genealogia da verdade a partir do pensam ento de Michel Foucault. Trata-se, pois, de estabelecer uma relação entre a onipresença da verdade, a irrefutabilidade da verdade, a ausência da verdade e a universalidade da verdade - características historicam ente atribuídas à verdade, cujo m apeam ento, significação e inteligibilidade serão perspectivadas tom ando por referência a genealogia foucaultiana. Por fim, será estabelecida um a relação entre a universalidade da verdade e as form as jurídicas que instauram , m ediante os procedim entos do inquérito, a veridição testem unhai como signo da evidência da verdade. Palavras-chave: M ichel Foucault, Genealogia.

Abstract: This study presents some of the m ain characteristics attributed to the tru th as revealed in a genealogy of tru th from the thought of Michel Foucault. It is therefore to establish a connection between the ubiquity of the tru th , the irrefutability of the truth, the absence of the tru th and the universality of tru th - characteristics historically attributed to tru th , w hose m apping, m eaning and intelligibility are conceptualized w ith reference to Foucault’s genealogy. Finally, it will be settled a link between the universality of tru th and the juridical form s th at establish, through the procedures of inquiry, the production of testim onial tru th as a sign of evidence of the truth. Keywords: M ichel Foucault; Genealogy; Truth.


II. Introdução

O ra, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na m etafísica, o que é que ele apreende? Q ue atrás das

coisas h á “algo inteiram ente diferente” : não seu segredo essencial e sem data, m as o segredo de que elas não têm essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas (FOUCAULT, 1988, 17-1^, grifas meus).

genealogia é a arte de restituir a mentira na própria mentira - trata-se de,

A

escutando a voz que fala por trás, trazer à frente a voz que fala. A genealogia é posta em marcha por um conjunto de minhocas que perfuram a terra para

fertilizá-la; estes seres rastejantes, cegos e pequenos o suficiente para se infiltrarem na estranheza das entranhas que separam os pequenos grãos, revelam para nós o segredo da terra. Pois a genealogia é a descoberta de um segredo: o segredo de que não há

segredo. Eis porque o segredo mente: ele é “algo inteiramente diferente” porque ele não é 0 que diz ser, ele não é o que dele dizem, ele não é um segredo. É, portanto, a pesquisa de origem que constitui esse segredo a ser dessacralizado pela genealogia; e é aí que encontramos o principal postulado de origem que, segundo Foucault (1988), liga os postulados de que as coisas portam um segredo e de que há uma plenitude viva em seu início. Esta ligação entre o segredo e a origem situa, portanto, o lugar da verdade. Encontramos essas formulações de modo bastante claro no texto Nietzsche, a Genealogia e a História (Foucault, 1988). Longe, portanto, de ser o ponto mais manifesto, mais vivo e mais explícito, o lugar da verdade é aqui uma região sombria que se desprende tão logo sobre ela recaia a vontade de conhecer e de saber daquele que faz a história. Há aqui uma interessante disjunção, pouco freqüente nos escritos e cursos de Foucault, entre verdade e saber.

Ponto totalm ente recuado e anterior a todo conhecim ento positivo, ela [a origem ] tornará possivel um saber que, contudo, a recobre e não deixa, na sua tagarelice [do saber], de desconhecê-la; ela [a origem]


estaria nessa articulação inevitavelm ente perdida onde a verdade das coisas se liga a um a verdade do discurso que logo a obscurece, e a perde (FOUCAULT, 1988, p.18-19).

Essa “articulação perdida” entre a verdade do discurso e a verdade das coisas constitui uma espécie de relaxamento, amolecimento, cozimento da potência e da força do discurso. O discurso não é mais o lugar da verdade - mas isto indica tão-somente que, se 0 discurso não possui esses poderes mágicos para dizer o verdadeiro, para garantir o verdadeiro ou para manifestar o verdadeiro, o discurso não terá mais o poder de refutar a verdade. É que a verdade recuou à origem que lhe resguardou o tranqüilo estatuto de irrefutável; assim, essa verdade-origem irrefutável é ao mesmo tempo ausente e onipresente.

A verdade, espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutada, sem dúvida porque o longo cozim ento da história a tornou inalterável. E, além disso a questão da verdade, o direito que ela se dá de refutar o erro, de se opor à aparência, a m aneira pela qual alternadam ente ela foi acessivel aos sábios, depois reservada apenas aos hom ens de piedade, em seguida retirada para um m undo de fora de alcance, onde desem penhou ao m esm o tem po o papel de consolação e de im perativo, rejeitada enfim com o ideia inútil, supérflua, por toda parte contradita - tudo isto não é um a história, a história de um erro que tem o nom e de verdade? (FOUCAULT, 1988,

^.\9,grifos meus).

Ora, mas a genealogia da verdade mostrará que essa coisa que não pode ser refutada é também qualificada como algo que não existe: “na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente” (FOUCAULT, 1988, p.21,grifosmeus). O que não pode ser refutado e o que não existe é - pasmemo-nos! - precisamente aquilo que se encontra em todo e qualquer lugar: “em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista (...) ela está presente aqui e em todo lugar” (FOUCAULT, 1988, p .ll3 ) . É exatamente essa onipresença da verdade que aparece no texto A Casa dos Loucos, mesma circunstância


em que Foucault (1988) analisa as condições externas, estranhas e inconfessáveis da verdade para que esta apareça como universal. Porestescaminhos, encontramos, portanto, quatrocaracteristicasfundamentais da verdade tal como nos deixa ver uma genealogia da verdade como genealogia da mentira da verdade (Benevides, 2013). Sigamos aqui na trilha analítica do dispositivo da verdade (Benevides, 2013a) a partir do pensamento de Foucault para encontrarmos, em sua genealogia, essas modalidades de inscrição da existência da verdade.

a) A Onipresença da Verdade: a verdade está em qualquer lugar e, portanto, pode ser encontrada em todo lugar; sobre qualquer coisa pode-se fazer um a pergunta pela verdade. Em todo lugar e em todo tem po há um a verdade que pode ser alcançada, dita, revelada. b) A Irrefutabilidade da Verdade: a verdade não pode ser refutada; o que podem os fazer é tão-som ente refutar um erro, denunciar um a m entira, redim ensionar um a ilusão à sua sobriedade, desm istificar um a ideologia ou restabelecer, em um delírio, um acordo com a realidade. M as a verdade não pode, ela m esm a, tom bar, ser dissolvida, desm ontada ou refutada, precisam ente porque refutar algo é d em onstrar sua não-verdade e reconduzi-la à verdade. c)

A Ausência da Verdade: a verdade não está no jogo político, m esquinho e cam biante do discurso, é avessa às am bições do saber, encontra-se em esquiva da política das ciências, é digna o suficiente para não se deixar aparecer na baixeza das palavras voluptuosas e sem pre apressadas. A verdade não está aí - nas certezas, nas opiniões e nas crenças que falam em seu nome.

d) A Universalidade da Verdade: a verdade não tem tem po, espaço e nem sujeito de enunciação de antem ão privilegiados. Ao contrário, ela poderá ser dita em qualquer tem po, em qualquer lugar e por qualquer um.

Novamente, uma genealogia da verdade como genealogia da mentira da verdade deverá refutar, ponto por ponto, essas quatro características da verdade, pois:


a)

A verdade é um acontecim ento específico, pode ser discernida em suas m anifestações, em seus aparecim entos, em seus efeitos. Ela não é onipresente.

b)

A verdade é refutável - quer dizer: é um a m entira, um erro, um a ilusão. Há que refutar a verdade m ostrando que ela não é aquilo que ela é, m as sim “algo inteiram ente diferente”. Ela não é irrefutável.

c)

A verdade é algo presente, existente, real - ela é deste m undo, do nosso m undo (seja do nosso m undo-aparência ou do nosso outrom undo). Ela não é ausente.

d)

A verdade, por fim, é sem pre especifica, singular, local. Ela não pode ser dita em qualquer tem po, por qualquer um e em qualquer lugar. A genealogia deverá m o strar que existem m om entos, lugares e sujeitos privilegiadam ente qualificados para que a verdade aconteça, se m anifeste, seja dita. Ela não é universal.

Prosseguirei esta exposição mostrando a íntima associação que há entre as duas primeiras características e as duas últimas - a saber, entre a onipresença e a irrefutabilidade da verdade e entre a ausência e a universalidade da verdade.

II. A mentira da onipresença e da irrefutabilidade da verdade: a verdade-céu e a verdaderaio

A referência a qualquer coisa como uma onipresença da verdade aparece de forma explícita, no pensamento de Foucault, em dois momentos: no curso de 1974, intitulado 0 Poder Psiquiátrico, e no texto A Casa dos Loucos. Uma problematização arqueogenealógica da onipresença da verdade deverá fazer emergir esses discursos sobre a verdade que a fazem aparecer e acontecer e, ainda, deverá m ostrar que eles são “algo inteiramente distinto”, algo bem diferente de como se enunciam e anunciam. Foucault também percebera, à sua maneira e com suas metáforas, essa relação entre a onipresença da verdade, sua permeabilidade, sua plasticidade e todo o seu poder de


irrefutabilidade. Em A Casa dos Loucos (FOUCAULT, 1988), a verdade aparece como aquilo que adormece em todo e qualquer tempo e lugar, à espera de que um olhar apurado possa fazê-la tom ar consciência de sua luz e despertá-la de seu sono.

No fundo de um a prática científica existe um discurso que diz: “nem tudo é verdadeiro; m as em todo lugar e a todo m om ento existe um a verdade a ser dita e a ser vista, um a verdade talvez adorm ecida, m as que no entanto está som ente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa m ão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrum entos necessários, pois de qualquer m aneira ela está presente aqui e em todo lugar” (p .113,

grifos meus).

Uma das formulações mais explícitas acerca desta onipresença da verdade aparece, contudo, em 0 Poder Psiquiátrico. Na ocasião, Foucault (2012) faz referência a uma determinada posição filosófico-científica acerca da verdade, cujo princípio consiste na suposição de que: a) em qualquer coisa, se pode encontrar algo como “a verdade”; b) é possível encontra-la unicamente mediante tecnologias de demonstração. A esta verdade, suposta onipresente e revelada mediante demonstração, Foucault (2012) chamou de verdade-céu.

U m saber com o o que cham am os científico é um saber que supõe, no fundo, que haja verdade em toda parte, em todo lugar e em todo o tem po. (...) sem pre há verdade; a verdade está presente em toda coisa ou sob toda coisa, a propósito de tudo e de qualquer coisa pode-se colocar a questão da verdade. (...) a verdade nela m esm a percorre 0 m undo inteiro, nunca é interrom pida. N ão há buraco negro na

verdade. (...) D igam os, para falar ainda m ais esquem aticam ente, que tem os aí certa posição filosófico-científica da verdade que é ligada a certa tecnologia da construção ou da constatação em direito universal da verdade, um a tecnologia da dem onstração (FOUCAULT, 2012, p.301-302).


É esta verdade-céu que reside em todos os lugares para onde se lança o olhar. Trata-se de uma verdade que não acontece, mas que já está e já é sempre, que é completamente indiferente em relação ao seu destinatário e ao seu caçador. Existe, pois, uma coisa um tanto mágica chamada verdade que apaga as fronteiras e as diferenças entre o que /a está ali, o que nunca pode estar inteiramente aqui, o que está em todo canto e o que sempre estará. A esta verdade-céu, Foucault (2012) opõe a verdade-raio: “eu gostaria de fazer valer a verdade-raio contra a verdade-céu” (p.305,

meus).

A verdade-raio é uma verdade que não se dá por uma relação de conhecimento, mas por uma relação de choque; que não é demonstrada, mas caçada; que não habita as regiões sombrias e serenas que se escondem por trás das nuvens, mas que aparece de seu nomadismo como um relâmpago, um raio, um brilho - uma verdade, enfim, “arriscada, reversível, beliciosa” (FOUCAULT, 2012, p.304). A verdade-raio é, portanto, uma verdade que acontece de tempo em tempo, onde bem entender, e somente em certos lugares - quer dizer: uma verdade que tem uma cronologia, uma geografia e um calendário específicos. Precisamente por isso, ela não é uma verdade indissolvível, inquebrantável e irrefutável. Trata-se, aqui, de uma verdade rara, dispersa e descontínua (verdade-raio) em oposição a uma verdade onipresente, unificada e contínua (verdadecéu). Foucault (2012) chama também a verdade-raio de verdade-acontecimento ou verdade-ritual, assim como nomeia a verdade-céu deverdade-demonstração. Seguindo esse fio condutor que traça os territórios de duas formas distintas de fazer uma história da verdade, Candiotto (2007) estabelece uma distinção entre uma história da verdade daquilo que é e uma história da verdade daquilo que acontece:

Segue a possibilidade de duas histórias da verdade: um a da m anifestação daquilo que é: verdade-apofânica, verdade-descoberta, verdade-abstrata, constante, dem onstrada e objetiva que faz uso da m ediação de instrum entos; outra, da ordem daquilo que acontece, das técnicas de produção, de captação m ediante rituais e recusas, efeito de jogos de verdade que ocorrem nas práticas concretas (p.2).

É interessante perceber uma semelhança entre a referência trazida por Foucault (2012) em relação ao jogo de forças entre uma verdade-céu e uma verdade-raio e a


metáfora utilizada por Deleuze (2009) para falar do caráter unilateral da diferença. A diferença em si mesma, segundo este último, é a diferença que difere de uma coisa que, por sua vez, não difere da diferença. A diferença é o processo de um divórcio unilateral: separar-se daquilo que não opera uma separação. O exemplo utilizado por Deleuze (2009) é precisamente o movimento que ocorre entre o relâmpago e o céu negro:

O relâm pago, por sua vez, distingue-se do céu negro, m as deve acom panhá-lo, com o se ele se distinguisse daquilo que não se distingue. Dos dois lados há algo de cruel e m esm o de m onstruoso nesta luta contra um adversário inapreensível, luta em que aquilo que se distingue se opõe a algo que não pode distinguir-se dele e que continua a esposar o que dele se divorcia. A diferença é esse estado de determ inação com o distinção unilateral (p.55).

O importante para uma analítica do dispositivo da verdade (Benevides, 2013a) não constitui, todavia, em optar por uma verdade em detrimento de outra. Ao contrário, a analítica deste dispositivo deverá m ostrar o jogo de forças presentes entre a verdadecéu e a verdade-raio. Talvez ocorra aí um jogo de forças semelhante a esse jogo da diferença entre o relâmpago e o céu-negro: não seria a verdade-raio uma verdade que tenta se distinguir de uma verdade-céu que, por sua vez, persiste em acompanhar todas as manifestações do raio sem separar-se dele? A verdade-céu é esse território onde ocorrem a onipresença e a irrefutalibidade da verdade, características essas que não cessam de tentar acompanhar a verdade-raio em todas as suas formações, buscando fazer do raio não uma rachadura com o céu, mas uma rachadura no céu. A explicitação desse jogo de forças é feita por Foucault (2012) nos seguintes termos:

[Eu gostaria de m ostrar como] essaverdade-dem onstração [verdadecéu] deriva na realidade da verdade-ritual, da verdade-acontecim ento, da verdade-estratégia, com o a verdade-conhecim ento não passa de um a região e de um aspecto, um aspecto que se tornou pletórico, que ad q u iriu dim ensõesgigantescas,m asum aspectoouum am odalidade, m ais um a vez, da verdade com o acontecim ento e da tecnologia dessa


verdade-acontecim ento. M ostrar que a dem onstração científica no fu n d o nada m ais é que um ritual, m o strar que o sujeito supostam ente universal do conhecim ento na realidade nada m ais é do que um individuo historicam ente qualificado de acordo com certos núm eros de m odalidades, m o strar que a descoberta da verdade é na realidade certa m odalidade de produção da verdade, trazer assim o que se dá com o verdade de constatação ou com o verdade de dem onstração para o em basam ento dos rituais, o em basam ento das qualificações do individuo cognoscente, para o sistem a da verdade-acontecim ento. (p. 305-306, grifos meus).

Este movimento operado por Foucault (2012) ao dizer que isto é, na realidade, aquilo ou que isto é, no fundo, aquilo não consistirá simplesmente em uma atitude de tradução, de codificação ou de representação da verdade-céu na verdade-raio. Diferentemente deste entendimento, penso que “no fundo” e “na realidade” significam, aqui, na imanência. Esta imanência da verdade constituiria um modo de perspectivação que permite não somente perceber os efeitos de deformação na imanência operados pela transcendência da verdade (a verdade-céu), mas também efetivamente situar-se em um registro contrário, de oposição ou de resistência a esta transcendência. Isto implica uma força a mais, uma vontade excedente, uma alegria transbordante. Não é simplesmente que o raio consiga se livrar e se fazer diferença em seu divórcio com o céu: mas 0 raio é a própria queda do céu\

III. A mentira da ausência e da universalidade da verdade

Começarei explicitando em que sentido é possível aqui falar na ausência da verdade. Em A Coragem da Verdade, antes de adentrar as temáticas relativas ao cinismo e à verdadeira vida, Foucault (2011) retoma alguns lembretes “extremamente elementares” (p. 192) sobre a noção de verdade. Neste momento, chamo atenção para um ponto bem específico, referente ã etimologia do termo verdade. Verdade: Alethéia. Verdadeiro: Alethés. Foucault (2011) faz aqui uma importante referência ã estrutura


negativa do termo Alethéia: A-létheia, o que não se esconde, o que não é esquecido, 0 que não é dissimulado, o que é completamente visível. Ao fazer referência a essa

forma negativa deA-léthes, Foucault (2011) opera também um curioso deslocamento, mostrando uma afinidade de A-léthes com A-trekes. Se A-léthes significa algo como “não-oculto”, A-trekes “quer dizer reto, etimologicamente significa exatamente 'nãocurvo’” (FOUCAULT, 2011, p.l92, grifos meus). O verdadeiro é, portanto, aquilo que é reto, aquilo que é reto por ser não-curvo, não-torto, não-dobrado, não-penso. Trata-se de uma cisão bastante explorada por Foucault (2011a), no curso de 1982: A Hermenêutica do Sujeito, no que diz respeito ã relação entre o sujeito e a verdade.

O que não recebe nenhum a adição e suplem ento, o que não sofre nenhum a m istura com outra coisa além de si m esm o. Aquilo cujo ser não só não é velado e dissim ulado, m as tam bém aquilo cujo ser não é alterado por um elem ento que lhe seria estranho e que, assim , alteraria e term inaria por dissim ular o que ele é na realidade (FOUCAULT, 2011, p. 192).

Assim, tudo o que diz respeito às produções de um sujeito, às marcas de sua individualidade ou singularidade, seus titubeios e hesitações, seus quereres - mas também toda a sua pretensão de objetividade, toda sua vontade de saber, todo o seu empenho em alcançar a verdade - tudo isto, em suma, serão acontecimentos que irão repelir a verdade. Tudo isto se refere a esse “elemento que lhe seria estranho”, a essa coisa curva, pensa, hesitante, incerta, dobrada - e, portanto, não-reta, que é o sujeito. Neste momento, todavia, convém tão-somente dar a ver um dos traços da verdade tal como referido anteriormente, a saber, a ausência da verdade. Isto deverá significar: a ausência da verdade no sujeito; ou, para aqueles que assim preferem, a ausência de verdade no nosso mundo. E possível aqui citar dois exemplos de como Foucault tematiza essa ausência da verdade. O primeiro diz respeito à relação entre o sonho e a verdade, tal como analisado no curso de 1980, intitulado Do Governo dos Vivos. Nesta ocasião, Foucault (2010), dando o exemplo do sonho como forma privilegiada de aleturgia (a saber, de


manifestação da verdade), nos mostra como a Psicanálise nada mais faz do que reativar 0 tipo de aleturgia que, há séculos, tem realizado a cisão entre o sujeito e a verdade. No

sonho a verdade é dita precisamente porque o sujeito não fala por si, na segurança de si, no território de si.

Em quê e por quê o sonho diz o verdadeiro? Ele diz o verdadeiro porque precisam ente dele não se ê m estre e ê qualquer outra coisa que vem no sonho, ê um outro que em erge, ê um outro que fala, ê um outro que dá sinais e ê por isso que nasceu nas civilizações ocidentais, m as tam bém em outras civilizações, esse elem ento extraordinário, quase constante e quase universal, que ê o sonho dizendo o verdadeiro: se ele 0 diz ê precisam ente porque não sou eu quem fala no m eu sonho (FOUCAULT, 2010a, p.52).

O segundo exemplo é retirado do texto Nietsche, a Genealogia e a História, nos momentos em que Foucault (1988) opõe a atitude genealógica (de uma história efetiva) à atitude comumente adotada pela “história dos historiadores”, ou “história tradicional”. Esta última, por aspirar à neutralidade e à imortalidade, há desde o início que fazer 0 jogo de morte, ausentar-se de seu próprio olhar e honrar humildemente a dignidade daqueles que nunca se julgarão ã altura da verdade.

Assim com o o dem agogo deve invocar a verdade, a lei das essências e a necessidade eterna, o historiador deve invocar a objetividade, a exatidão dos fatos, o passado inamovível. (...) o historiador ê levado à ao aniquilam ento de sua própria individualidade para que os outros entrem em cena e possam to m ar a palavra. Ele [o historiador] terá, portanto, que se obstinar contra sí m esm o: calar suas preferências e superar 0 nojo, em baralhar sua própria perspectiva para lhe substituir um a geom etria ficticíam ente universal, im itar a m orte para en trar no reino dos m ortos, adquirir um a quase inexistência sem rosto e sem nom e (FOUCAULT, 1988, p. 31).


Temos aqui a não-escolha como o traço fundamental que liga o sonhador ao historiador. Ora, se aquele que sonha não escolhe sonhar com o que sonha (o que constitui signo de que o que aparece no sonho é a verdade), o historiador igualmente não há que escolher os lugares que irá olhar, as coisas que irá vasculhar, nem mesmo deverá decidir por si os percursos da pesquisa histórica - ao contrário, assim como o sonhador, ele há que ser levado pela verdade. E, igualmente, nem o sonhador e nem o historiador conseguirão capturar a verdade.

U m a das características da história [a história dos historiadores] é a de não escolher: ela se coloca no dever de tudo com preender sem distinção de altura; de tudo aceitar, sem fazer diferença. Os historiadores dirão que isto é um a prova de tato e discrição: com que direito fariam intervir seu gosto quando se trata daquilo que se passou realm ente (FOUCAULT, 1988, p .30-31)?

Eis aqui os traçados de uma formação discursiva para a compreensão da qual se faz necessário o desprendimento de qualquer apego às exigências de coerência e não contradição: o sonhador e o historiador estão próximos da verdade o suficiente para sabê-la inalcançável e ausente. Mas estes casos constituem particularidades de uma tendência bem mais ampla e geral, como bem explica Foucault (2010).

Vocês têm essa forte tendência de dependência, em toda um a sêríe de civilizações, m as em todo caso na civilização grega arcaica, de fazer aparecer o dizer verdadeiro e de autenticar o dizer verdadeiro com o cuidado de que aquele que fala não ê o m esm o que detêm a verdade, e que a verdade que passa no seu dito ê sem pre um a verdade que vem do exterior (p.62-63).

A verdade, se é que ela aparece no dito, não provirá deste. A verdade - houve uma “forte tendência” para assim colocar as coisas - aparece sempre como exterior ao sujeito que enuncia e ao dito que diz alguma coisa. A verdade vem sempre de fora, chega


sempre dofora - e se este fora indica o lugar da ausência, poderá indicar também o lugar da universalidade. Ora, se a verdade vem sempre do fora, qualquer um, em princípio, estará capacitado para dizer a verdade. O correlato disto, contudo, será precisamente 0 de que ninguém poderá dizer efetivamente o que é a verdade em sua inteireza ou em

sua exatidão. Esse ponto foi explorado por Foucault (2012), em 0 Poder Psiquiátrico, quando fala sobre aqueles qualificados para dizer algo sobre a verdade-céu, ou verdadedemonstração - a saber, a verdade que está em todo lugar á espera de qualquer um para (não de qualquer modo) desvelá-la.

A verdade habita tudo e qualquer coisa, inclusive aqueles célebres restos grotescos de que falava Platão. Isso q uer dizer não apenas que a verdade habita toda parte e que a todo instante pode-se colocar a questão da verdade, m as q u er dizer tam bém que não há ninguém que seja exclusivam ente qualificado para dizer a verdade; não há ninguém tão pouco que, de saída, esteja desqualificado para dizer a verdade, a parfir do m om ento em que, é claro, disponha dos instrum entos necessários

para

descobri-la, as categorias

necessárias

para

pensá-la e a linguagem adequada para form ulá-la em proposições (FOUCAULT, 2012a, p .3 0 2 ,g n /o s meus).

Concluamos disto o seguinte: não existe posição subjetiva em princípio privilegiada para dizer a verdade, mas não há também desqualificação prévia para dizê-la. Assim, por meio da relação entre a onipresença, a irrefutabilidade, a ausência e a universalidade da verdade, reencontramos aquilo que, no empreendimento de uma analítica do dispositivo da verdade (Benevides, 2013a), chamei de roda-viva do dispositivo da verdade: todos possuem a verdade, mas ninguém possui a verdadel


IV. A história da universalidade da verdade: a verdade-produção, a verdade-viagem e a verdade-conhecimento

No texto A Casa dos Loucos, Foucault (1988) aponta com uma sublinhável perspicácia três momentos de uma história da verdade: a) Momento de passagem de uma verdade-prova para uma verdade-constatação e imposição da verdade sob a forma de conhecimento; b) Momento de universalização da verdade pelo desbravamento das terras inexploradas; c) Momento da produção calculada da verdade.

Considerarei, aqui, esses três momentos como etapas demarcadoras do processo de universalização da verdade. Eles consistem, portanto, em modos de configuração e produção da verdade, tal como se mostraram dominantes e vitoriosos até os dias atuais. É preciso pensar esses momentos, pois, em termos de “acontecimento ‘verdade’” (FOUCAULT, 1988, p. 115). Nos termos de Foucault (1988): “a verdade ao não é aquilo que é, mas aquilo que se dá: acontecimento. Ela não é encontrada, mas sim suscitada: produção em vez de apofânica” (p. 14).

IV. I. Universalidade como verdade-produção

Foucault (1988) refere-se aqui ao século XIII, momento em que a Química e a Eletricidade permitiram que fenômenos fossem produzidos. Isto se refere a algo inteiramente diferente de uma prova de verdade (um juram ento, uma promessa, um ritual), tal como veremos mais adiante. O que está em jogo é o controle e a repetição de fenômenos, a possibilidade de criar um mundo mediante uma técnica que suscita um estado de coisas, mas também a certeza de que, sempre que se estiver em posse dessa técnica, ter-se-á nas mãos um poder, poder esse cuja característica é precisamente a segurança do sucesso de seu exercício.


Produzir fenôm enos num a aparelhagem de laboratório não é o m esm o que suscitar ritualm ente o acontecim ento da verdade. É um a m aneira de co n statar um a verdade através de um a técnica cujas entradas são universais. A p artir dai, a produção da verdade tom ou form a da produção de fenôm enos constatáveis por todo sujeito de conhecim ento (FOUCAULT, 1988, p .ll 7 ) .

O uso de uma técnica para a produção de fenômenos, produção esta que carrega o signo do controle (ele não se dá ao acaso) e da possibilidade de repetição (ele não se dá como acontecimento único), só foi possível, entretanto, graças a outro acontecimento histórico no âmbito das tecnologias da verdade. Porque uma técnica, se tem por característica o fato de produzir algo, tem também por traço distintivo algo fundamental: ela não é um dom, portanto pode ser exercida (em princípio) por qualquer um.

IV. II. Universalidade como verdade-viagem

Este momento é referido por Foucault como a conquista das terras, a era das grandes navegações, o tempo das grandes viagens - todo o desbravamento de um mundo até então inexplorado. A partir disto, foi possível agenciar o procedimento jurídico-político do inquérito sobre a própria natureza: a natureza é que deveria ser interrogada e responder às questões fundamentais, colocadas agora pelo “Homem em Geral”. Trata-se, assim, de um tipo de tecnologia que é não somente anterior ã técnica de produção, mas que constitui condição de possibilidade para ela.

Tecnologia que não é m ais aquela dos instrum entos destinados ã localização, aceleração e am adurecim ento da verdade, m as dos instrum entos que devem apreendé-la em qualquer tem po e em qualquer lugar. Instrum entos que tém por função atravessar distância, levantar o obstáculo que nos separa de um a verdade que nos espera em toda parte e em todos os tem pos (FOUCAULT, 1988,

,grifosmeus).


E neste salto do qualquer um para o todo mundo que temos a universalização como tecnologia da verdade. Se isto foi necessário para a produção da verdade, este momento consiste precisamente na circunstância em que se afirma: a verdade não precisa ser produzida, mas deverá ser achada a cada vez que for procurada. Qualquer um que procure há de achá-la, há de achá-la em qualquer lugar, há de achá-la em qualquer tempo; logo: a verdade aparecerá a todos que a procurem, em todos os períodos em que for procurada, e em todos os lugares em que for procurada. Não há privilégios! A verdade não abre concessões: ela se abre aos instrumentos.

O instrum ento deve ser tal que nenhum instante e nenhum lugar seja privilegiado. A viagem introduziu o universal na tecnologia da

verdade-, lhe im pôs a norm a do ‘qualquer lu g ar’, do ‘qualquer tem p o ’, do ‘qualquer u m ’. A verdade não tem m ais que ser produzida. Ela terá que se apresentar cada vez que for procurada (FOUCAULT, 1988, p . 117, grifos meus).

Não é possível, todavia, que essa verdade possa se abrir aos instrumentos de inquisição e aventura sem que, antes, a própria verdade não tenha sido recoberta e codificada sobre aforma-conhecimento.

IV. III. Universalidade como verdade-conhecimento: da verdade-prova ã verdadeconstatação

Que a verdade seja praticamente sinônimo de conhecimento, isto certamente é algo que está tão na superfície, tão diante dos olhos, e tão colado em nossa face que não mais conseguimos perceber o processo que tornou isto possível e efetivo. Precisamente por esta razão, poucas coisas seriam tão importantes para uma genealogia da mentira da verdade do que analisar o modo como a verdade passou a ser recoberta pela formaconhecimento. Isto modo algum se trata de uma análise epistemológica, de uma teoria do


conhecimento. Estamos ainda no território da genealogia; e é nele que pergunto: como ocorreu que a verdade, que em sua origem era coisa bem distinta de um conhecimento, passasse a ser tão fortemente recoberta sob o signo do conhecimento?

A história desse recobrim ento seria aproxim adam ente a própria história do saber na sociedade ocidental desde a Idade M édia; história que não é a do conhecim ento, m as da m aneira pela qual a produção da verdade tom ou a form a e se im pôs a norm a de conhecim ento (FOUCAULT, 1988, p.116).

Teríamos, portanto, vivido um momento em que a verdade não era algo que deveria se constatar, mas se provar. A manifestação da verdade não era uma descoberta, mas uma demonstração ritualistica de força, um juram ento, uma promessa, uma dramatização, um teste. Para que a verdade se manifestasse, era necessária não uma exatidão ou uma integração daquilo que era manifesto com um mundo anterior. Um discurso, um ritual ou uma prova eram verdadeiros não porque descobriam uma verdade, mas porque faziam a verdade acontecer. Como bem percebe Larrauri (1999), 0 discurso poderoso era verdadeiro porque fazia acontecer a verdade em seu ato de

enunciação, ou seja, que com o que ele dizia ocorria que as palavras e as coisas passavam a coincidir. Assim, a verdade-prova era verdadeira não porque revelava, descobria ou mostrava nada, mas porque possuía força para fazer as coisas acontecerem. Assim, Foucault (1988) enfatiza este momento do seguinte modo: “a passagem da verdade/prova ã verdade/constatação é sem dúvida um dos processos mais importantes da história da verdade” (p.116). Foucault (1988) não admitirá essa passagem e nem se contentará com aquilo que dizem ser seus efeitos sem, todavia, passar antes uma rasteira típica dos bons genealogistas:

A verdade/constatação, na form a de conhecim ento, talvez não passe de um caso particular da verdade/prova na form a do acontecim ento; acontecim ento que se produz com o podendo ser de direito repetido sem pre e em toda parte. Ritual de produção que tom a corpo num a


instrum entação e num m étodo a todos acessíveis e uniform em ente eficaz; saida que aponta um objeto perm anente de conhecim ento e que qualifica um sujeito universal de conhecim ento. É esta form a singular de produção da verdade que pouco a pouco foi recobrindo as outras form as de produção da verdade, ou que, pelo m enos, im pôs sua form a com o universal (FOUCAULT, 1988, p .116).

Foi assim que “a forma jurídico-política do inquérito” (idem) vem agenciar a produção da verdade-conhecimento como verdade-constatação. Eis aqui talvez a artimanha mais audaciosa da verdade: o momento em que todo esse processo culmina na produção da verdade como evidência - a partir de então, a verdade deverá ser a reconstituição do que efetivamente aconteceu, a colagem das peças de um quebracabeças cujo desenho é a realidade, o encaixe entre metades perdidas e lançadas ã distância, a articulação sucessiva, paciente e meticulosa dos fragmentos que habitam os esconderijos mais imprevisíveis. A verdade virá da poeira! Na reunião dessas coisas sujas, eis que todo um trabalho de detetive restituirá a unidade e dará forma a este monstro, cuja nitidez e aparência redonda esconderão os sacrifícios mais baixos e ardilosos de seu ofício. Falo aqui da verdade-evidência. Ela será, pois, inseparável da verdade-testemunhal e das formas jurídicas que a produzem e capturam.

V. A veridição testemunhai como passagem da prova ao inquérito: um paralelo entre a história do direito e a história da verdade

Gostaria, neste tópico, de apontar para o encontro entre dois acontecimentos de fundamental importância para uma história da verdade. Trata-se, por um lado, do que Foucault (2010), em Do Governo dos Vivos, chamou de “a inscrustração da primeira pessoa na aleturgia” (p.53) - a saber, o momento em que, apesar de a verdade se apresentar como o que vem de fora, do exterior, ou como o que está ausente nas marcas individuais do discurso, foi uma vez possível afirmar: “eu sei a verdade, eu tenho a verdade”. Por outro lado, há que relacionar essa possibilidade de enunciação


da verdade na primeira pessoa com aquilo que, em A Verdade e as Formas Jurídicas, Foucault (2011b) designa como a passagem de um discurso profético para um discurso testemunhai no que diz respeito à produção da verdade, bem como à função jurídica exercida pelo inquérito no que diz respeito à reconstituição do acontecimento dessa verdade. Portanto, se foi possível afirmar a verdade na primeira pessoa, este procedimento é inseparável dos mecanismos do inquérito e do aparecimento da testemunha como condições de possibilidade para que se possa afirmar, de forma definitiva, irrefutável e peremptória: “eu tenho a verdade porque eu vi, e, tendo visto, eu estou com a verdade”. Em síntese: trata-se de reconstruir a genealogia dessa aleturgia testemunhai a partir de uma correlação entre uma história da verdade e uma história do direito, aleturgia que possui a seguinte fórmula: “eu vi, logo eu tenho a verdade”.

Então, 0 problem a é saber a p artir de qual m om ento, com o e em que condição, por que, etc., chegou o dia em que o dizer verdadeiro pôde autenticar-se de sua verdade, pôde afirm ar-se com o m anifestação de verdade, precisam ente na m edida em que aquele que fala pôde dizer: sou eu quem detém a verdade e sou em quem a viu, e tendo-a visto eu a digo (Foucault, 2010, p .63).

Para tanto, me utilizarei, no tópico da análise feita por Foucault do mito Édipo-Rei, de Sófocles^ Por razões inteiramente diversas daquelas mencionadas por Freud, Foucault (2011b) diz: “parece-me, que há realmente um complexo de Édipo em nossa civilização” (p.31). Esse complexo de Édipo que ainda haveria no presente, na atualidade, no contemporâneo nada teria a ver com as relações entre o desejo e o inconsciente, muito menos com a inscrição dessas relações na previsível triangulação familiar. Ele se refere, diferentemente, a “um tipo de relação entre o poder político e 0 conhecimento de que nossa civilização ainda não se libertou” (FOUCAULT, 2011b,

1 O interesse de Foucault pelo mito Édipo-Rei é algo que se manifesta em distintos momentos de sua obra. Citamos aqui cinco ocasiões em que este mito foi por ele trabalhado: no custo ministrado em 1971 no Collège de France intitulado Aulas sobre Vontade de Saber, em uma conferência proferida em 1972 em Buffalo intitulada O Saber de Édipo, no ciclo de conferências A Verdade e as Formas Jurídicas, proferida no Rio de Janeiro em 1973, no curso Do Governo dos Vivos e, por fim, no curso O Governo de Si e dos O utros tam bém m inistrado no Collège de France intitulado em 1983.


p.31). Édipo, portanto, constitui não um símbolo do desejo e da culpa, mas o signo de uma partição entre saber e poder que teve suas origens em um modo de produzir a verdade inteiramente dependente de uma aleturgia testemunhai. Ora, mas não seria evidente que a verdade dependeria de algo como uma aleturgia testemunhai? Não faz parte da própria verdade que haja alguém que tenha visto, presenciado, compartilhado o acontecimento para que se possa dizer: “eis a verdade”? Isto não é efetivamente evidente, e o que Foucault (2011b, 1988) faz, tanto em A Verdade e as Formas Jurídicas quanto no texto A Casa dos Loucos, é m ostrar a passagem de uma produção da verdade enquanto prova, teste, demonstração de força e uma produção da verdade enquanto constatação, testemunho, revelação, verificação ou reconstrução da realidade precisa de um acontecimento. Ambas, contudo, constituem formações de verdade ancoradas em procedimentos jurídicos. Primeiramente: o que é a verdade-prova? Como todo um campo jurídico agenciou-se em torno dessa produção da verdade-prova? Em A Verdade e as Formas Jurídicas, VoncawM (2011b) nosdá três exemplos: o primeiro éum a “pesquisa da verdade no procedimento judiciário grego” (p.31), que está presente na Ilíada; o segundo diz respeito ao Direito Germânico e terceiro, por fim, refere-se ao Direito Feudal. No primeiro exemplo, trata-se de uma corrida de cavalos em que Antíloco e Menelau se encontravam próximos à linha de chegada. Nesta ocasião, os organizadores haviam escolhido Homero como o responsável pela regularidade do procedimento. Antílogo chega primeiro e, portanto, vence a corrida. Diante disto, Menelau o acusa: “Tu, Antílogo, cometeste uma irregularidade!”; do que escuta de seu adversário: “Eu, Menelau, não cometi irregularidade alguma!”. Curiosamente, Menelau aqui não faz referência ã figura de Homero como aquele que, estando a postos para garantir a regularidade da prova, poderia ter visto a irregularidade de Antílogo e, portanto, testem unhar a seu favor. Em vez disso, Menelau propõe uma prova ã Antílogo reproduzo-a conforme consta no texto de Foucault (2011b): “ Põe tua mão direita na testa de teu cavalo e jura diante de Zeus que não cometeste uma irregularidade” (p.32). Antílogo recusa a prova proposta por Menelau e não faz o juramento, possivelmente temendo receber um raio na cabeça lançado por Zeus - o que seria, simultaneamente, manifestação da verdade e punição pela mentira. Menelau vence a corrida: eis o


desfecho da prova-verdade. Neste contexto, não aparece a figura da testem unha que diz: “é verdade, eu vü”, ou então: “não é verdade, eu v ü ”. Semelhante procedimento da prova era utilizado pelo Direito Germânico. Tal como nos explicita Foucault (2011b) na terceira conferência de A Verdade e as Formas Jurídicas, no Direito Germânico não há: ação pública (um Estado ou um Soberano que seja lesado por um crime), oposição justiça-paz x vingança-guerra (o direito é uma espécie de regulamentação ritualizada da guerra e da vingança); e, por fim, também não há a noção de falta, de culpa, ou de infração moral. O mais interessante, entretanto, é que todo o funcionamento do Direito Germânico não passa por qualquer coisa semelhante ã procura da verdade, tal como veremos, mais adiante, ter ocorrido quando a peça jurídica fundamental vem a ser o inquérito. A prova de inocência não era o testemunho, mas coisas que hoje consideramos como as mais extravagantes possíveis: 0 acusado deveria pronunciar uma fórmula sem cometer um erro gramatical (caso

contrário, seria culpado); aquele que cometeu um dano tinha sua mão direita amarrada ao pé esquerdo e era jogado na água (caso afundasse, perdia o processo porque a água o rejeitara); ou, ainda, deveria andar por cima de ferros quentes sem apresentar cicatrizes após dois dias (caso apresentasse, novamente perderia o processo). A prova poderia, ainda, ser tão-somente uma quantia em dinheiro que o acusado teria que dar àquele a quem ele causou um dano. E o mais importante: caso rejeitasse a prova, qualquer que fosse, 0 sujeito era declarado imediatamente culpado. No que diz respeito ao sistema judiciário feudal, temos igualmente o mesmo funcionamento em termos de prova. Foucault (2011b) cita aqui quatro características do Direito Feudal: a) não há a pesquisa da verdade, há prova: o sujeito vence ou fracassa (diante disso, é inocente ou culpado); b) não existe uma sentença: o processo encerra com a prova; c) a prova é automática e substituível: tanto não existe juiz que interfira de forma significativa (ele garante tão-somente a regularidade, não a verdade), como pode ser transferida para outra pessoa (um irmão mais forte, um pai); d) a prova é uma maneira de identificar quem é o mais forte. Esse sistema de práticas jurídicas baseadas não na verdade, na constatação, no testemunho, mas na prova desapareceu ou restou cada vez mais raro e escasso a partir dos séculos XII e XIII. O eclipse da função jurídica da prova abrirá caminho para três


acontecimentos de extrema relevância para este paralelo entre uma história do direito e uma história da verdade: a) A figura do soberano como alguém que, representando todo 0 povo, é lesado pelo crime e deve ser ressarcido; b) A figura da testemunha que constitui aquele que viu e pode falar a verdade do crime; c) O procedimento do inquérito (na falta da testemunha ou do flagrante) como aquilo que pode restituir a atualidade do acontecimento do crime. Quanto ao primeiro ponto, Foucault (2011b) chama atenção também para o aparecimento da figura do procurador como aquele que vai falar em nome da vítima. Ora, mas quem é a vítima? A vítima é precisamente o soberano. É porque o soberano vai assumindo e recobrindo esse lugar da vítima que o procurador, representando a vítima, faz funcionar seus ofícios como uma dublagem do soberano-vítima. Eis, também, o aparecimento de qualquer coisa como um poder público.

O procurador vai dublar a vítim a, vai estar por trás daquele que deveria d ar a queixa, dizendo: “Se é verdade que este hom em lesou um outro, eu, representante do soberano, posso afirm ar que o soberano, seu poder, a ordem que ele faz reinar, a lei que estabeleceu foram igualm ente lesadas por esse indivíduo. Assim , eu tam bém m e coloco contra ele”. O soberano, o poder político vêm , desta form a, pouco a pouco substituir a vítim a. Este fenôm eno, absolutam ente novo, vai perm itir ao poder político apossar-se dos procedim entos judiciários. O procurador se apresenta, portanto, com o o representante do soberano, lesado pelo dano (FOUCAULT, 2011b, p .66).

Paralelo ao aparecimento do poder político mediante a figura do soberanovítima, dublado pelo procurador, eis que agora o soberano “é não somente a parte lesada, mas a que exige reparação” (FOUCAULT, 2011b, p.67). Aqui aparecem os mecanismos das multas, das apropriações, das grandes confiscações - o que foi o responsável pelo enriquecimento das monarquias europeias. Ora, mas se aqui entra em jogo 0 enriquecimento do soberano, a multiplicação de seus bens, de suas riquezas e, consequentemente, de sua potência, como pôr todo esse enriquecimento em função das incertezas da prova? Desta forma, “compreende-se que a liquidação judiciária não pode


mais ser obtida pelos mecanismos da prova. O rei ou seu representante, o procurador, não podem arriscar suas próprias vidas ou seus próprios bens cada vez que um crime é cometido” (FOUCAULT, 2011b, p.67). Como então assegurar o confisco e, com ele, a riqueza e o poder sem submeter-se ao azar, ao acaso, à imprevisibilidade da prova? Eis aqui uma questão fundamental que uma genealogia da mentira da verdade mostra como sendo uma das grandes mesquinharias e baixezas atuantes na construção deste templo magno na verdade. A solução será ainda mais rasteira e rastejante - e, segundo Foucault (2011b), “este é um dos grandes momentos da história do Ocidente” (p.68). No próprio Direito Germânico, mas também no Direito Feudal, já havia um caso em que algo como uma coletividade, ou um poder público, poderia intervir diretamente: tratava-se do flagrante de delito. Todavia, é bastante raro que um conjunto de pessoas consiga surpreender o infrator no momento exato do delito e possam dizer: “aconteceu: nós vimos!”. Assim, aparecerá aqui um mecanismo fundamental presente nesses procedimentos jurídicos que dizem respeito à generalização doflagrante de delito mediante 0 procedimento do inquérito. Trata-se, na ausência da atualidade do crime, na impossibilidade de capturá-lo no instante de seu acontecimento, de reconstituí-lo. E, de reconstituí-lo peça por peça. Este grande acontecimento implicou, desde já, a adoção de um procedimento “extrajudiciário” (FOUCAULT, 2011b, p.68). O modelo do inquérito é encontrado precisamente nas instituições religiosas e administrativas. Reagenciando este modelo para as práticas jurídicas, foi possível, então, conseguir três grandes façanhas: a) que 0 flagrante de delito fosse reatualizado; b) que a infração passasse a receber uma conotação moral (“quase religiosa”); c) e que, por fim, a verdade do crime devidamente atualizada, recomposta e tornada inteira pelo inquérito - constituísse o brasão da garantia e da certeza da punição em termos de confisco de bens. Prestemos atenção nesta extensa, porém bastante elucidativa passagem de Foucault (2011b):

O procurador do Rei vai fazer o m esm o que os visitantes eclesiásticos faziam nas paróquias, dioceses e com unidades. Vai procurar estabelecer, por inquisitio, por inquérito, se houve crim e, qual foi ele e quem com eteu. (...). O inquérito teve dupla origem . O rigem adm inistrativa ligada ao surgim ento do Estado na época carolíngia;


origem religiosa, eclesiástica, m ais constantem ente presente na Idade Média. É este procedim ento do inquérito que o procurador do rei - a ju stiça m onárquica nascente - utilizou para preenche a função de flagrante de delito de que falei anteriorm ente. O problem a era o de saber com o generalizar o flagrante delito a crim es que não eram de dom inio, do cam po da atualidade. (...) Tem-se ai um a nova m aneira de p rorrogar a atualidade, de transferi-la de um a época para outra e de oferecé-la ao olhar, ao saber, como se ela ainda estivesse presente. Esta inserção do procedim ento do inquérito reatualizado, tornando presente, sensivel, im ediato, verdadeiro, o que aconteceu, como se o

estivéssemos presenciado, constitui um a descoberta capital. (p.7172,grifos meus).

E como funciona o inquérito? “O inquérito se exerce primeiramente/azencfo perguntas, questionando. Não sabe a verdade e procura sabê-la” (Foucault, 2011b, p.69, grifas meus). Portanto, o inquérito procede através de perguntas; e, mediante essas perguntas, o inquérito deverá trazer a sensação de que o crime está sendo revivido. Que relação possui o sujeito perguntado com o crime cometido? O que ele pode dizer para reconstruir o acontecimento perdido? Qual fragmento da verdade do crime ele porta? Esse jogo de perguntas do inquérito possui certamente uma meta: que, da resposta, possa ser extraído qualquer coisa como um testemunho. De que o sujeito a ser perguntado é testemunha? Aquilo de que ele é testemunha tem alguma relação com 0 crime cometido? Eis, portanto, a utopia do inquérito: que cada resposta dada á sua

pergunta seja um testemunho do crime cometido. Ela expressa, pois, a utopia da vontade de poder sob a forma da vontade de verdade e, ao mesmo tempo, que da superposição de ambas as vontades seja reconhecida qualquer coisa como uma e-vidência da verdade. A interrogação do inquérito (e dos pequenos inquéritos de todos os dias) expressam, talvez, a maior artimanha da vontade de verdade-poder: continuar o olhar através das palavras.


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HEIDEGGER E CIORAN LEITORES DE NIETZSCHE: REPERCUSSÕES DA QUESTÃO DO NIILISMO NOS PENSAMENTOS DO SER E DO NADA FILIPE CALDAS OLIVEIRA PASSOS - Professor do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). filipepassos87@hotmail.com

Resum o: O presente artigo aborda a influência da filosofia de N ietzsche, mais especificam ente, da questão do niilism o, nos pensam entos de Heidegger e Cioran, salientando o modo como essa influência contribuiu para a divergência de am bos no que diz respeito a questões fundam entais como a do ser e do pensar. Portanto, tratam os neste artigo do modo como o tem a do niilismo, abordado por N ietzsche, influenciou tanto o pensam ento do ser, no sentido de uma ontologia fundam ental, pós-m etafisica, defendido por Heidegger, quanto o pensam ento do nada ou do vazio, no sentido de uma m ística desprovida de absoluto, sustentado por Cioran. Palavras-chave: Niilismo; metafísica; ontologia; mística; vontade de poder; ser; nada.

Abstract: This article explains the influence of N ietzsche’s philosophy, more specifically, of the question of nihilism in philosophical tho u g h ts of Heidegger and Cioran, em phasizing the m anner how this influence has contributed to the divergence of both about the fundam ental questions of being and thought. So we explain in this article the m anner how the them e of nihilism , according to N ietzsche, has influenced the thought of being, in the sense of a fundam ental, post-m etaphysician ontology, defended by Heidegger, and the thought of nothing or empty, in the sense of a mystic w ithout absolute, sustained by Cioran. Keywords: Nihilism; metaphysics; ontology; mystic; will to power; being; nothing.


Introdução

tema deste artigo é a influência exercida pela questão do niilismo, de

O

acordo com a interpretação nietzschiana^ sobre os pensamentos de Martin Heidegger e Emil Cioran. Para tratar de forma adequada o referido tema,

selecionamos um conjunto de obras em que ele é explicitamente abordado pelos autores

cujos pensamentos, bem como a relação destes, são analisados na presente pesquisa. Isso quer dizer que selecionamos escritos de Nietzsche, Heidegger e Cioran nos quais a questão do niilismo se encontra explicitada, o que permite, primeiramente, uma interpretação precisa do modo como cada um dos autores supracitados compreendeu 0 tema em questão e, por conseguinte, do modo como cada um deles se apropriou do

referido tema. No que diz respeito a Nietzsche, escolhemos obras da maturidade, nas quais 0 conceito de niilismo se torna explícito e adquire contornos mais definidos. Essas

obras são, sobretudo, a Genealogia da moral (1887), o Crepúsculo dos ídolos (1888) e A Vontade de poder (1906). Também utilizamos, quando se mostrou necessário, demais obras do autor, tais como A gaia ciência (1882, 1887), Além do bem e do mal (1885), Assim falou Zaratustra (1883), Aurora (1881, 1886) e, inclusive, 0 nascimento da tragédia (1872), um de seus primeiros escritos. No que concerne a Heidegger, escolhemos os dois volumes do conjunto de preleções intituladoMeíz5c/ze (1936-1939,1940,1941,1944-1946), a ohra Introdução ã metafísica (1935) e os seguintes textos, publicados pela Editora Vozes no volume intitulado Marcas do caminho: 0 que é metafísica? (1929), o Posfácio a “0 que é metafísica?” (1943), a Introdução a “0 que é metafísica?” {1949), A teoria platônica da verdade (1931/1932,1940) e a Carta sobre o humanismo (1946).

1 Esclarecemos que se trata aqui da interpretação nietzschiana do conceito de niilismo porque há outras interpretações acerca do referido conceito, como por exemplo, a que é defendida por Heidegger no conjunto de preleções sobre Nietzsche, elaboradas no período que se estende do ano de 1936 ao de 1946 e cuja compilação tem como título o nome deste último, além de textos como A teoria platônica da verdade (1931/1932,1940) e a Carta sobre o hum anismo (1946). O conceito de niilismo também está fortemente presente no pensamento de Gianni Vattimo, herdeiro do pensamento de Heidegger e que associa esse conceito ao de pós-modernidade na sua obra mais conhecida, intitulada O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna (1985).


Quanto a Cioran, destacamos História e utopia (1960), Silogismos da amargura (1952), Breviário da decomposição (1949) e o livro intitulado Entrevistas (1990), que consiste no registro das entrevistas concedidas por Cioran a Sylvie Jaudeau. Empregamos também como referência seu primeiro livro, intitulado Nos cumes do desespero (1934). Utilizamos também, na elaboração da presente pesquisa, livros de estudiosos e discípulos dos referidos autores, como 0 niilismo (1996), de Franco Volpi; Cioran: a filosofia em chamas (2004), de Rossano Pecoraro; 0 nascimento do trágico (2006), de Roberto Machado; Humanismo do outro homem (1972), de Emmanuel Lévinas; 0 fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna (1985), de Gianni Vattimo, e Verdadeemétodo (1960), de Hans-Georg Gadamer. Tomando como base as referências bibliográficas mencionadas no parágrafo anterior, desenvolvemos a ordem de exposição do presente artigo. Primeiramente, abordamos a questão do niilismo em Nietzsche. Logo em seguida, tratam os do modo como essa questão foi apropriada pelo pensamento heideggeriano, mais especificamente, por seu projeto de uma ontologia fundamental, implicando aquilo que Heidegger definia como o fim da metafísica. Por fim, a apropriação cioraniana da referida questão, devidamente exposta na divergência de seu pensamento em relação ao de Heidegger, bem como o de Nietzsche, pensamento caracterizado como uma mística desprovida de absoluto, diante da qual o projeto nietzschiano de transvaloração de todos os valores e o projeto heideggeriano de uma “superação”^ da metafísica por

^ Colocamos a palavra superação entre aspas para designar o fato de que, no pensam ento heideggeriano, a metafísica não é superada no sentido de algo que se deixa para trás e que, portanto, nada mais tem a nos dizer. A “superação” da metafísica está presente em Heidegger sob a forma de um incessante diálogo com a tradição, como esforço de um pensam ento originário a resgatar certa unidade de sentido entre nossa atualidade histórica e seu passado, sem retomar, no entanto, essa unidade segundo os critérios teleológicos característicos do pensam ento metafísico. Para designar essa forma de “superação”, Gianni Vattimo, um dos expoentes do pensamento hermenêutico e, portanto, discípulo de Heidegger, emprega o termo alemão Verwindung, contraposto a outro, no caso, Ueberwindung. A esse respeito, diz Vattimo: “Verwindung é a palavra que Heidegger usa, de resto bastante raram ente (uma página de Holzwege, um ensaio de Vortrage und Aufsatze e, sobretudo, o primeiro dos dois ensaios de Identitat und Differenz), para indicar algo análogo á Ueberwindung, a superação ou ultrapassam ento, mas que se distingue desta por nada possuir da Aufhebung dialética, nem do ‘deixar para trás’ que caracteriza a relação com um passado que não tem mais nada a dizer-nos.” (VATTIMO, 2007, p. 169). O conceito de Verwindung consiste, portanto, em “um ultrapassam ento que, na realidade, é reconhecimento de vínculo, convalescença de uma doença, assunção de responsabilidade” (Ibidem, p. 28) no que diz respeito á questão do ser, que nada mais é senão “a transm issão das aberturas histórico-destinais que constituem.


intermédio de um pensamento originário são reduzidos a nulidades.

A questão do niilismo no pensamento nietzscheano

Nietzsche é o pensador que trouxe, para o âmbito do pensamento filosófico, a questão do niilismo. Essa questão, bem como suas implicações no interior dos pensamentos de Heidegger e Cioran, é o tema de nosso artigo. Logo, para que avancemos em nossa abordagem, é necessário alcançarmos uma definição preliminar do que é o fenômeno do niilismo, de que trata Nietzsche. Ora, o conceito de niilismo aparece no pensamento nietzschiano como referente à crise dos valores considerados supremos pela tradição cultural ocidental. Nas palavras de Nietzsche: “Que significa niilismo? - Que os valores supremos desvalorizam-se. Falta o fim; falta a resposta ao ‘Porquê?’.”3 Niilismo, portanto, é um conceito que designa, no interior do pensamento nietzschiano, a crise dos valores supremos de nossa tradição. Essa definição preliminar, que, no parágrafo anterior, encontra respaldo em uma citação de Nietzsche, suscita alguns questionamentos. O primeiro deles é o seguinte: o que são esses valores supremos? Um segundo questionamento pode ser formulado assim: uma vez que se determine quais são esses valores, qual o critério utilizado para considerá-los supremos? Logo a seguir, poderíamos lançar este outro questionamento: o que teria provocado a crise desses valores? Por fim, com base em que Nietzsche sustenta que esses valores entraram em crise? Trataremos, primeiramente, dos valores supremos de nossa tradição cultural e, mais especificamente, da tradição do pensamento filosófico ocidental. Com isso, queremos dizer que nosso ponto de partida será uma caracterização desses valores supremos.

para cada hum anidade histórica, je und je, a sua específica possibilidade de acesso ao m undo” (Ibidem, p. 184). 3 NIETZSCHE, 2008b, p. 29.


A noção de valor supremo se refere, basicamente, a um conceito que serve de orientação para a totalidade do existir humano, abrangendo suas realizações teóricas, práticas e produtivas. Em nossa tradição cultural, esses valores foram definidos em termos de verdade, justiça e bem. É precisamente a crise desses valores, melhor dizendo, da compreensão até então vigente desses valores, que é abordada pelo pensamento filosófico nietzschiano. Segundo Nietzsche, os valores supremos de nossa tradição cultural, tais como a verdade, a justiça e o bem, se consolidaram a partir da interpretação que lhes foi conferida pelo pensamento socrático-platônico e, mais adiante, pela moral cristã, que, de acordo com ele, consistiria numa tradução daquele para a linguagem do vulgo"^. Essa afirmação suscita, porém, dois breves questionamentos. Primeiro: o que caracteriza a interpretação socrático-platônica desses valores, responsável por sua instituição? Segundo: que relação existe entre a interpretação socrático-platônica desses valores e sua interpretação cristã? Nietzsche defende que a interpretação socrático-platônica inaugura uma forma de pensar essencialmente moralista e que esse moralismo consiste em uma tentativa de caluniar a vida. Segundo ele, o moralismo socrático-platônico é a origem do niilismo, na medida em que, substituindo o pensamento trágico até então vigente, inaugura uma forma de olhar para a vida baseada em valores eternos e imutáveis, válidos por si mesmos, portanto, situados em um trás-mundo, fora do devir, do ágon (luta ou conflito) constitutivo da vida. A instauração dessa tábua de valores, sobretudo no que diz respeito á sua inerente vontade de verdade, conduziu á decadência da cultura ocidentaP. Essa decadência é caracterizada por Nietzsche em termos de niilismo.

A interpretação moral do mundo, iniciada com o pensamento socrático e continuada ao longo da cristandade, é, segundo Nietzsche, uma ilusão perniciosa à vida, pois nega a sua riqueza agonistica. A respeito do caráter ilusório da interpretação moral do mundo, Nietzsche afirma em Aurora: “A ilusão da ordem moral do mundo. Não há justiça eterna que exija seja expiada e paga toda a falta. Crer em tal obrigação era uma terrível ilusão, muito pouco útil, do mesmo modo que é uma ilusão crer que tudo quanto se considera como uma falta o seja na realidade. Não são as coisas que têm am argurado a vida dos homens, mas as opiniões que se formam de coisas que não existem .” (NIETZSCHE, 2008a, p. 261) ^ Essa questão da decadência tam bém aparece no pensam ento de Cioran. Há passagens de História e utopia, por exemplo, em que esse tem a é abordado. Obviamente, Cioran trata dessa questão de um modo diferente de Nietzsche, pois, enquanto este a associa à questão da superação do niilismo e, por conseguinte, da transvaloração de todos os valores, o filósofo romeno, cujo pensam ento do nada ou do vazio consiste num a verdadeira mística sem absoluto, a pensa através da antinomia insuperável entre


OU,

por outras palavras, Nietzsche considera essa decadência como conseqüência do

niilismo, que encontra suas raízes no socratismo. A respeito do pensamento trágico, Nietzsche afirma: “ [...] A existência e o mundo aparecem justificados somente como fenômeno estético: nesse sentido precisamente o mito trágico nos deve convencer de que mesmo o feio e o desarmônico são um jogo artístico que a vontade, na perene plenitude de seu prazer, joga consigo própria.” ® A justificativa moral da existência apresentada pelo pensamento socráticoplatônico substituiu, segundo Nietzsche, sua justificativa estética, presente no interior do pensamento trágico^ Por outras palavras, o socratismo deu origem a um modo de pensar a vida em termos morais. Esse modo de pensar, por sua vez, se baseia nos valores supremos mencionados logo acima, isto é, os valores metafísicos da verdade, da justiça e do bem. É, portanto, com base nesses valores que a totalidade da existência passa a ser valorada. Tudo isso em nome da verdade, do tipo de compromisso que, a partir de Sócrates e Platão, tem o filósofo para com a verdade. Esse compromisso, formulado em termos metafísicos, Nietzsche o chama de vontade de verdade. Esse conceito de vontade de verdade, compreendido como o impulso moralmente alimentado para a verdade, inaugurado pelo pensamento socrático-platônico, é, de acordo com Nietzsche, essencialmente niilista. Há aqui um caminho que se estende do “conhece-te a ti mesmo” socrático, passando pelo ascetismo da moral cristã, até a crise dos valores supremos da tradição cultural ocidental, que é a explicitação do niilismo. Vimos em que medida o moralismo socrático é niilista. Resta-nos compreender sua relação com a moral cristã. Com base nisso, teremos uma compreensão adequada do que Nietzsche chama de vontade de verdade, que subjaz ã crise dos valores supremos

a embriaguez da ambição e a lucidez estéril, antinomia que reduz a afirmação da vida, defendida por Nietzsche, à condição de mera nulidade. Trataremos disso mais adiante. « NIETZSCHE, 1992, p. 141. ^ Sobre isso, diz Machado: “ [...] Para aclarar o mito trágico, a primeira exigência é procurar o prazer a ele peculiar na esfera esteticam ente pura, sem qualquer intrusão no terreno do tem or (Furcht), da compaixão ou do moralmente sublime (Sittlich-Erhabenen). [...] A vida não pode ser justificada moralmente. Mas, contrapondo-se a uma interpretação moral da tragédia, o que ele faz é propor uma interpretação metafísica, que vê na tragédia musical, na tragédia em que o mito trágico é expressão da música, uma ‘metafísica de artista’.” (MACHADO, 2006, p. 239-240) Essa “metafísica de artista”, mencionada por Machado, assum irá, no Nietzsche da maturidade, o sentido da afirmação dionisíaca, incondicional da vida, inclusive em seus aspectos problemáticos, consistindo numa vontade que diz sim á vida, entendida como vontade de poder.


e, por conseguinte, nos remete aos questionamentos levantados no início desta seção, mais especificamente, sobre o que teria ocasionado essa crise e em que se fundamenta 0 diagnóstico nietzschiano.

Nietzsche compreende que, da mesma forma como ocorria com pensamento socrático-platônico, a moral cristã implica uma tentativa de caluniar a vida. Subjacente ao seu moralismo há um ressentimento para com a vida, o ressentimento dos fracos, daqueles que, não podendo afirmá-la em toda a sua exuberância, põem-se a negá-la com base em sua tábua de valores. Aqui, o amor á Verdade, identificada com o Deus cristão, envolve uma postura reativa, ressentida perante o devir agonistico da vida. Essa postura, Nietzsche a investigou, desde suas origens mais remotas, na obra Genealogia da moral, sobretudo, nas seções referentes ã diferença entre a moral dos senhores e a moral dos escravos e o fenômeno do ascetismo. O que interesse a Nietzsche, no que diz respeito ã distinção entre as duas referidas formas de moral, é o traço de caráter dos senhores, que se afirmam no interior do devir agonistico, valorando a partir de si 0 que se lhes apresenta, e o dos escravos, dos ressentidos, que instauram seus valores

não a partir da afirmação de si mesmos, mas da negação dos fortes, dos que dizem sim ã vida e, por conseguinte, não ao gregarismo, ã moralidade do rebanho, ao nivelamento moralista do existir humano, tentativa de elidir o conflito e a diversidade que lhe são inerentes^ Quanto a esse traço de caráter dos nobres ou senhores, Nietzsche alega o seguinte:

[...] Os nobres se sentiam hom ens de categoria superior. É verdade que, talvez na m aioria dos casos, eles designam a si m esm os conform e sim plesm ente a sua superioridade no poder (como ‘os poderosos’,

* Esse gregarismo, essa moral do rebanho, que consiste numa forma de nivelamento por baixo e implica uma revolta dos tipos fracos, dos escravos, contra os indivíduos que possuem o traço de caráter dos senhores, isto é, que afirmam incondicionalmente a vida, pode assum ir a forma do fanatismo. Quanto a isso, diz Nietzsche em sua A gaia ciência: “ [...] O fanatismo é a única ‘força de vontade’ que tam bém os fracos e inseguros podem ser levados a ter, como uma espécie de hipnotização de todo o sistema sensóriointelectual, em prol da abundante nutrição (hipertrofia) de um único ponto de vista e sentimento, que passa a pred o m in ar- o cristão e sua fé. Q uando a pessoa chega à convicção fundamental de que tem de ser com andada, torna-se ‘crente’; inversamente, pode-se imaginar um prazer e força na autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em dançar até mesmo à beira de abismos. Um tal espírito seria o espírito livre por excelência.” (NIETZSCHE, 2001, p. 241)


‘os senhores’, ‘os com andantes’), ou segundo o signo m ais visivel desta superioridade, por exemplo, ‘os ricos’, ‘os possuidores’ (este o sentido de arya, e de term os correspondentes em iraniano e eslavo). Mas tam bém segundo um traço típico de caráter: e é este o caso que aqui nos interessa.®

Assim, por detrás do amor à verdade do filósofo e do cristão, esconde-se um traço de caráter que não corresponde ao daqueles que afirmam a vida, mas ao dos que a denigrem. Esse amor à verdade, posto em termos de vontade de verdade, também se encontra no pessimismo do século XIX e no objetivismo da ciência moderna, visto que em ambos há uma postura reativa perante a vida, negando-a quer em nome da compaixão, quer em nome do método. Trata-se aqui, portanto, de uma vontade de verdade negadora da criatividade, da inventividade inerente ao devir agonístico, e é precisamente essa vontade de verdade que, ao assumir diferentes configurações ao longo da história, acaba por solapar os valores supremos de nossa tradição cultural, portanto, a verdade como algo em si e a conseqüente redução do devir ã simples aparência. O ponto culminante desse processo Nietzsche o exprime da seguinte forma, na seção intitulada Como o “mundo verdadeiro” se tornou finalmente fábula, contida na obra Crepúsculo dos ídolos: “Abolimos o mundo verdadeiro: que mundo restou? o aparente, talvez?... Não! Com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente! (Meio-dia; momento da sombra mais breve; fim do longo erro; apogeu da humanidade; INCIPITZARATUSTRA [começa Zaratustra].)” Essa crise dos valores supremos, ou niilismo, Nietzsche a pensa de forma ambígua. Se, por um lado, ela pode ser compreendida no sentido de uma decadência, melhor dizendo, da vida que se tornou decadente pela incapacidade de o ser humano se afirmar criativamente perante o devir, por outro, somente com o seu advento é que o ser

^NIETZSCHE, 1998, p. 22. “ NIETZSCHE, 2006, p. 32. O incipit Zaratustra (começa Z aratustra), contido na citação a que a presente nota se refere tem o sentido da superação de uma postura ressentida em relação à vida, postura presente no socratismo, no cristianismo, no pessimismo, no cientificismo, etc. Zaratustra simboliza a vitória sobre o ressentim ento. Nietzsche a exprime, por exemplo, na belíssima passagem final de Assim falou Zaratustra: “Muito bem! O leão chegou, meus filhos estão próximos, Zaratustra amadureceu, minha hora chegou: - Esta é a minha m anhã, o meu dia raiou: sobe, então, sobe, ó grande meio-dia!” (NIETZSCHE, 2011, p. 311)


humano pode romper com as sucessivas formas de negação da vida até então vigentes. É precisamente aqui que incide a noção nietzschiana de transvaloração de todos os valores, ou seja, a superação de uma forma de pensar baseada em valores que denigrem a vida e sua substituição por valores que a afirmem como o que ela é, ou seja, vontade de poder. A respeito da vida entendida como vontade de poder, Nietzsche declara:

A vida, com o a form a do ser [Seins] que é m ais fam iliar para nós, é especificam ente um a vontade de acum ulação de força processos da vida têm aqui a sua alavanca

todos os

nada quer conservar-se,

tudo deve ser som ado e acum ulado. A vida com o caso isolado: a partir daí, essa hipótese se estende sobre o caráter total da existência - : a vida anseia por um sentimento maximal de poder - : ê essencial um ansiar por m ais poder - : essa vontade perm anece o m ais elem entar e interior: m ecânica ê m eram ente um a sem iótica das conseqüências.^

Para concluir a presente seção, retomaremos os quatro questionamentos levantados em seu início. O primeiro consistia na pergunta pelo que são os valores supremos cuja crise Nietzsche denomina niilismo. Vimos que esses valores são, sobretudo, os de verdade, justiça e bem. Vimos também que esses valores são assim considerados pela orientação que conferem ao existir humano. Essa orientação, por sua vez, foi formulada em termos de uma neutralidade metafísica, no sentido de que esses valores seriam válidos por si mesmos. No entanto, segundo Nietzsche, essa valoração é invenção humana e esconde uma tentativa de caluniar a vida e, por conseguinte, o devir agonístico em nome de supostos valores eternos e imutáveis. Para Nietzsche esse foi 0 critério de sua supremacia, isto é, uma postura ressentida em relação ã vida. Quanto ã crise desses valores, vimos que ela se deveu ã vontade de verdade que essa consideração moral da existência alimentou, vontade de verdade que, por exemplo, no cientificismo moderno, desmascarou o caráter fictício desses valores. É com base nisso que Nietzsche sustenta seu diagnóstico do niilismo e defende uma transvaloração de todos os valores no sentido de uma postura afirmativa perante a vida, ou seja, criadora

'^Idem ,2 0 0 8 b ,p . 350.


de valores, que, ao invés de denegri-la, a celebrem como aquilo que, segundo nosso autor, ela é - vontade de poder.

Implicações do niilismo no pensamento heideggeriano

Na primeira parte do presente artigo, abordamos a questão do niilismo, isto é, da crise dos valores supremos da tradição ocidental segundo o pensamento nietzschiano. Vimos como o conceito de niilismo se relaciona com o de vontade de poder e como, com base nisso, Nietzsche sustenta a noção de uma transvaloração de todos os valores. Essa redução de tudo ao conceito de valor e a necessidade de uma transvaloração constituem 0 antissocratismo ou antiplatonismo nietzschiano.

No lugar da ideia platônica, isto é, da forma ou aspecto invariável de algo, portanto, sua significação universal, para além da transitoriedade das sensações, da mutabilidade das opiniões e das determinações culturais, Nietzsche estabelece 0 conceito de valor. Por outras palavras, Nietzsche chama de valor a ideia platônica,

sobretudo, a ideia do bem (o tò agathón), e seus sucedâneos ao longo da tradição do pensamento ocidental. A respeito dessa questão, diz Heidegger:

Tò agathón é traduzido pela expressão aparentem ente com preensível ‘o bem ’. Ainda se pensa aí na m aioria das vezes no ‘bem m oral’, que assim se cham a porque está em conform idade com a leí m oral. Esta interpretação fica aquém do pensam ento grego, m uito em bora a interpretação que faz Platão do agathón com o ídeía dê m argem para se pensar ‘o bem ’ ‘m oralm ente’, podendo-se acabar com putando-o erroneam ente com o um ‘valor’. A ídeía de valor, surgida no séculoX IX com o conseqüência da concepção m oderna de ‘verdade’, é o últim o e m ais fraco descendente do agathón. E na m edida em que ‘o valor’ e a interpretação que se baseia em ‘valores’ servem de suporte para a m etafísica de N íetzsche, e isto na configuração incondicional de um a ‘transvaloração de todos os valores’, tam bém N ietzsche faz às vezes de um seguidor platônico dos m ais desenfreados dentro da história da m etafísica ocidental, visto que, para ele, todo saber procede da


origem m etafísica do ‘valor’. U m a vez que ele concebe o valor com o a condição de possibilidade da ‘vida’, im posta pela ‘própria vida’, N ietzsche m antém naturalm ente intacta e livre de preconceitos a essência do agathón, de m aneira m enos preconceituosa do que aqueles que pelejam por esta deform idade absurda dos ‘valores válidos em si’.^^

O conceito nietzschiano de valor, por sua vez, está associado à noção de um devir agonístico, no sentido de um perspectivismo, isto é, no sentido de que a tessitura do que denominamos realidade sempre se constitui através do conflito de perspectivas, de interpretações e, por conseguinte, valorações. Isso consiste numa igualação entre ser e devir, melhor dizendo, na supressão do conceito metafísico de ser em prol do conceito trágico de devir. Essa supressão ou, dito de outra forma, redução faz com que a questão do ser, que antes era posta no interior da linguagem, da gramática da metafísica, seja silenciada^. De Platão a Hegel, essa questão é pensada metafisicamente. Em Nietzsche, ela por fim desaparece. É precisamente nesse ponto que incide a apropriação heideggeriana do conceito de niilismo^^ Essa apropriação, que abordaremos logo a seguir, se estabelece no que

12 HEIDEGGER, 2008, p. 239. Há, no segundo volume da obra intitulada Nietzsche, da autoria de Heidegger, uma apresentação do tradutor. Marco Antônio Casanova, na qual o desaparecimento da questão do ser, devido à interpretação nietzschiana da realidade como o devir agonístico da vontade de poder, é exposto de forma clara e sucinta. Eis a passagem que trata do referido tema: “ [...] Para Heidegger, a metafísica eqüivale à metafísica da presença, porque o que ela entende por ser se confunde incessantemente com aquela instância que realmente se presenta e que condiciona a priori a presença derivada dos entes. [...] A metafísica é efetivamente esquecimento do ser. Todavia, como ela se constitui como um tal esquecimento a partir da colocação expressa da questão acerca do ser do ente, há aqui algo assim como um aceno em direção ao ser enquanto tal. Esse aceno desaparece para Heidegger por completo no interior da consumação da metafísica em meio ao pensam ento de Nietzsche, na medida em que o pensamento de Nietzsche suprime até mesmo o modo metafísico de formulação da questão.” (HEIDEGGER, 2007, p. VIII) 1"* Hans-Georg Gadam er chama, inclusive, nossa atenção para uma significativa proximidade entre os pensam entos de Nietzsche e Heidegger, que vai além da questão do niilismo. A esse respeito, ele diz em sua obra Verdade e método: [...] Os verdadeiros precursores da posição heideggeriana na indagação pelo ser e no seu rem ar contra a corrente dos questionamentos metafísicos ocidentais não poderiam ser nem Dilthey nem HusserI, mas Nietzsche. Pode ser que o próprio Heidegger só tenha compreendido isso bem mais tarde. Mas, retrospectivamente, pode-se dizer: elevar a radical crítica de Nietzsche ao ‘platonism o’ até a altura da tradição criticada por ele, confrontar-se com a metafísica ocidental à sua própria altura e reconhecer e superar o questionam ento transcendental como uma conseqüência do subjetivismo moderno eram tarefas que já estavam esboçadas em Ser e tempo. (GADAMER, 2013, p. 345)


Heidegger denomina como fim da metafísica, isto é, o ponto culminante da histórica da metafísica, compreendida como histórica do esquecimento do ser. Nesse âmbito é que se compreende o que Heidegger chama de pensamento originário, que, através de uma incessante rememoração da linguagem, da gramática da metafísica, tenta pensar a questão fundamental do sentido do ser. Segundo Heidegger, retomando o que mencionamos nos parágrafos anteriores, a metafísica consiste numa forma de pensar que se volta para o ser do ente e não para o ser enquanto tal. Com isso, ele quer dizer que a questão do ser, que aparece como a questão fundamental do pensamento filosófico, nunca foi devidamente pensada. Somente um pensamento originário, no sentido de uma rememoração destrutiva dos enrijecimentos conceituais da gramática e, por conseguinte, da linguagem da metafísica seria capaz de pensar adequadamente a referida questão. Heidegger também chama esse pensamento originário de ontologia fundamental. Nas palavras de Heidegger: “ [...] Enquanto não se pensa a verdade do ser, toda ontologia continua sem fundamento. É por isso que 0 pensar, que em Ser e tempo se procurou pensar previamente na verdade do ser, é

designado como ontologia fundamental. Essa ontologia busca retornar ao fundamento essencial a partir do qual surge o pensar da verdade do ser Quanto ao conceito de niilismo, Heidegger o toma no sentido de fim ou consumação da metafísica. Portanto, o fim da metafísica consistiria na crise dos valores supremos da tradição cultural ocidental. Essa definição, porém, não é suficiente, pois Heidegger também toma o fim da metafísica no sentido da consumação da técnica. Logo, há para ele uma relação íntima entre niilismo e técnica. Por sua vez, a questão da técnica remete, no interior do pensamento heideggeriano, a do humanismo. Portanto, podemos dizer que existe aqui uma relação fundamental entre os conceitos de niilismo, humanismo e técnica. Trataremos da relação entre esses conceitos logo adiante e, com sua exposição, encerraremos esta seção, referente ã recepção do conceito nietzschiano de niilismo no pensamento heideggeriano. Heidegger interpreta o pensamento metafísico como uma forma de pensar 0 ser do ente e não o ser enquanto tal. Por outras palavras, trata-se de uma forma de

^HEIDEGGER, 2008, p. 369.


pensar que visa tão somente o conhecimento do ente e que desemboca, no caso da modernidade, no domínio progressivo do homem sobre os demais entes. Essa forma de pensar, bem como suas conseqüências, é tomada no sentido da técnica, ou seja, de um saber que, em última instância, está a serviço do fazer e do operar. Aqui se torna visível, para Heidegger, a essência técnica do modo de pensar metafísico. A respeito disso, Heidegger afirma:

[...] Se quiserm os um a vez aprender a experim entar de m aneira lím pida a citada essência do pensar, o que significa igualm ente levála a cabo, devemos nos livrar da interpretação técnica do pensar. Os com eços dessa interpretação rem ontam até Platão e Aristóteles. O próprio pensar eqüivale aí a um a tékhne, o proceder da refiexão a serviço do fazer e do operar. Mas, já aqui, a refiexão é vista sob a perspectiva da práxis e da poéisis. É por isso que, quando tom ado por ele m esm o, o pensam ento não é ‘prático’. A caracterização do pensar com o theoría e a determ inação do conhecim ento com o um com portam ento ‘teórico’ já se dão dentro de um a interpretação ‘técnica’ do pensamento.^®

Já 0 conceito de humanismo, este remete à instalação técnica do homem no meio do ente, ou seja, o homem se define como ente privilegiado e assim fundamenta sua relação com os demais entes. Ele ignora que só compreende a si mesmo e aos demais entes a partir da compreensão prévia que tem do ser, cujo dar-se consiste na abertura de um horizonte histórico-cultural no interior do qual essa compreensão prévia se torna possível. É por isso que, para Heidegger, a definição nietzschiana do niilismo no sentido de que “os valores supremos desvalorizam-se”^^ou “o homem rolou para fora do centro, para uma incógnita”^ são insuficientes. A essência do niilismo estaria, na verdade, no esquecimento do ser. É precisamente aí que o niilismo, segundo Heidegger, mergulha suas raízes. Por isso que, para ele, Nietzsche, mesmo em sua tentativa de transvaloração

HEIDEGGER,2008, p. 327. " NIETZSCHE, 2008b, p. 29. Ibidem, p. 28.


de todos os valores, permanece niilista. Quanto a isso, afirma Heidegger:

A m etafísica de N ietzsche não é, consequentem ente, nenhum a superação do niilism o. Ela é o derradeiro enredam ento no niilismo. Por meio do pensam ento valorativo oriundo da vontade de poder, ela se m antém , em verdade, junto ao reconhecim ento do ente enquanto tal, m as se am arra com a corda da interpretação do ser como valor na im possibilidade de m esm o apenas visualizar de m aneira questionadora o ser enquanto ser. Por meio desse enredam ento do niilism o em si m esm o, ele encontra inteiram ente o seu acabam ento naquilo que ele é. O niilism o assim inteiram ente pronto e perfeito é consum ação do niilism o propriam ente dito.^®

Implicações do niilismo no pensamento cioraniano

Tratamos, nas seções anteriores, do conceito de niilismo segundo Nietzsche e de sua apropriação pelo pensamento heideggeriano. Vimos que, para Nietzsche, o niilismo consiste na crise dos valores supremos da tradição do pensamento ocidental, que esses valores foram tentativas de caluniar a vida e que o pensamento nietzschiano formulava, diante disso, uma transvaloração de todos os valores, entendida como afirmação incondicional da vida, instauradora de valores que não a denegrissem, mas a celebrassem como o que, segundo Nietzsche, ela verdadeiramente é: manifestação do devir agonístico, logo, da vontade de poder. Vimos também que Heidegger, por outro lado, defende que o projeto nietzschiano de uma transvaloração de todos os valores permanece niilista, pois a essência do niilismo não se encontra no ressentimento em relação ã vida, mas antes no esquecimento da questão fundamental do sentido do ser. Trataremos agora da recepção da questão do niilismo no pensamento de Cioran, que, em sua juventude, foi leitor de ambos e que cedo se decepcionou com as suas filosofias. Abordaremos a repercussão da questão do niilismo no pensamento de Cioran

HEIDEGGER, 2007, p. 260.


tomando como ponto de partida a decepção deste em relação aos pensamentos de Nietzsche e Heidegger, como havíamos mencionado no parágrafo anterior. Essa decepção se deve ao fato de Cioran, desde jovem, ter intuído a nulidade ou o vazio subjacente à existência^". Essa intuição, por sua vez, relaciona-se com uma vivência recorrente e perturbadora do jovem Cioran: a insônia. Essa vivência contribuiu fortemente para a intuição do nada que subjaz a todo ser. Ela consiste numa espécie de conhecimento intuitivo, seu último grau sendo uma lucidez extremada, e que Cioran compreende nos termos de uma mística, melhor dizendo, de uma mística sem absoluto, cuja experiência da vida, do mundo e, sobretudo, do tempo assemelha-se a do gnosticismo. É precisamente essa relação entre lucidez, mística e gnosticismo em Cioran que, a nosso ver, permite compreender a decepção deste em relação às filosofias de Nietzsche e Heidegger e, por conseguinte, a repercussão da questão do niilismo, presente em ambas, no interior de seu pensamento. As crises de insônia do jovem Cioran permitiram-no encarar o tempo e, por conseguinte, a existência de um modo diferente ao da maioria dos mortais. Essa experiência, na medida em que o privava do sono, que é um intervalo do estado de vigília e, portanto, da consciência, despertou sua lucidez. Esta é definida por nosso autor como uma forma de conhecimento por meio da qual se vislumbra o vazio, o nada, a nulidade inerente ao ser, ao tempo e ã existência. Quanto a isso, afirma Cioran:

[...] A lucidez, g ra ça s ao vazio q u e deixa entrever, c o n v erte-se em c o n h e c im e n to . É en tão m ística sem ab so lu to . A lucidez ex trem a é 0 ú ltim o g ra u d a co n sciên cia e dá ao se r a sen sação de te r esg o tad o 0 u n iv erso , de te r sobrevivido a ele. Q u e m n ão p a sso u p o r essa e ta p a , ig n o ra u m a v arie d ad e especial de decep ção , p o rta n to o conhecim ento.^^

20

Em Nos cumes do desespero, sua primeira obra publicada, escrita quando tinha apenas 22 anos, Cioran já dá mostras dessa intuição, como na seguinte passagem: “ [...] Para o homem normal, a vida é uma evidência; só doente se encanta e a glorifica, para evitar a queda. Mas o que acontece com quem não pode glorificar a vida, nem o espírito?” (CIORAN, 2011c, p. 26) 21 CIORAN, 2001, p. 18.


Essa lucidez extrema aparta, de certa maneira, o indivíduo que por ela é tomado do fluxo do tempo e, por conseguinte, do frenesi da história. Como disse Cioran, ela consiste em uma forma de conhecimento, mais especificamente, um conhecimento intuitivo, uma espécie de iluminação que revela a gratuidade, a nulidade, a ausência de sentido da existência. Mais do que isso: ela torna esse indivíduo uma espécie de espectador absoluto, incapaz de se deixar entusiasmar pela loucura que subjaz a todos os ideais e a todas as utopias que movem a história da humanidade. A respeito dessa condição de espectador absoluto, desencantado em relação aos ideais e às utopias, diz Cioran:

[...] N enhum a am bição m ais, logo nenhum a possibilidade m ais de ser alguém ou algo; o nada em pessoa, o vazio encarnado: glândulas e entranhas clarividentes, ossos desenganados, um corpo invadido pela lucidez, livre de si m esm o, fora de jogo, fora do tem po, sujeito a um eu congelado em um saber total sem conhecimentos. O nde encontrar 0 instante que escapou? Por toda a parte frenéticos ou enfeitiçados,

um a m ultidão de anorm ais que a razão abandonou e vém refugiarse perto de ti, o único que com preendeu tudo, espectador absoluto, insubm isso para sem pre à farsa unânime.^^

O desencanto do espectador absoluto perante a existência converte, por exemplo, a celebração da vida, como ocorre no pensamento nietzschiano, ou a celebração do ser^3, como se dá com o pensamento heideggeriano, em nulidades. Ambos são frutos do tempo e este é encarado de um ponto de vista semelhante ao gnosticismo, ou seja, como

22CIO R A N ,2011b,p.48. Sobre a questão da celebração do ser, diz Lévinas: “É visível, pois, em toda esta concepção, que a expressão define a cultura, que a cultura é arte, e que a arte ou a celebração do ser constitui a essência original da encarnação. A linguagem, como expressão, é, antes de tudo, a linguagem criadora da poesia. A arte não é, por conseguinte, uma feliz errância do homem que se põe a fazer o belo. A cultura e a criação artística fazem parte da própria ontologia. Elas são ontológicas por excelência: tornam possível a compreensão do ser [...].” (LÉVINAS, 1993, p. 30-31) Portanto, a questão da celebração do ser remete à relação entre arte e ontologia, poesia e filosofia. Quanto a isso, diz Heidegger: “ [...] A linguagem é a morada do ser. Na habitação da linguagem mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardiões dessa morada. Sua vigília consiste em levar a cabo a manifestação do ser, na medida em que, por seu dizer, a levam à linguagem e nela a custodiam [...].” (HEIDEGGER, 2008, p. 326)


maldição, como queda, como o mal, cujos momentos, diferentemente da escatologia cristã, não são provações redentoras^"^, mas esforços infrutíferos, na medida em que tudo desemboca no nada. Essa intuição permitiu Cioran declarar o seguinte acerca da filosofia de Heidegger: “ [...] Traduzido em linguagem comum, um texto filosófico esvazia-se estranhamente. [...] O fascínio exercido pela linguagem explica, na minha opinião, 0 sucesso de Heidegger. Manipulador sem igual, ele possui um verdadeiro gênio verbal [...]. A linguagem assume uma importância vertiginosa.”^^ Assim, o pensamento de Heidegger aparece, ã luz nadificante da lucidez de Cioran, como mera fascinação, que se quer e se mostra profunda, embora na verdade não arranhe mais que a superfície das coisas, pois sua não é a verdade do ser; sua verdade é o nada^®. Quanto ã sua decepção em relação a Nietzsche, Cioran a formula afirmando que seu interesse, quando jovem, pelo pensamento deste não se deveu ã busca de uma visão, mas de um estimulante. A lucidez extrema de Cioran reduz, portanto, o pensamento de Nietzsche a uma nulidade, visto que ele é tratado como um simples estimulante para este esforço vão que é existir. Nas palavras de Cioran:

Q uando se é jovem, pratica-se a filosofia m enos para buscar nela um a visão que um estim ulante; perseguem -se as ideias, adivinhase 0 delírio que as produziu, sonha-se em im itá-lo e exagerá-lo. A adolescência se com praz no m alabarism o das alturas; em um pensador am a o saltim banco; em N ietzsche am ávam os Z aratustra, suas poses, suas palhaçadas m ísticas, v e rd a d e ira /d ra de cumes.

CIORAN, 2001, p. 21. 25 CIORAN, 2001, p. 14. Heidegger tam bém aborda o conceito de nada, sobretudo, na obra Introdução à metafísica e em textos tais como O que é metafísica?, o Posfácio a “O que é metafísica?” e a Introdução a “O que é metafísica?”. No entanto, o conceito de nada abordado nesses escritos não tem o mesmo sentido que lhe é atribuído por Cioran. Para Heidegger o nada consiste, em linhas gerais, no modo como a questão do ser se deixa entrever do ponto de vista da metafísica e do pensam ento científico, em certa medida seu herdeiro. Em Cioran, o conceito de nada não remete à questão fundamental do sentido do ser; é o conceito de ser que remete ao nada. Por outras palavras, Cioran sustenta a nulidade ou vacuidade do ser. Ele chega a declarar 0 seguinte em Breviário da decomposição: “ [...] O ser mesmo não é mais que uma pretensão do N ada.” (CIORAN,2011a,p. 70) 27CIORAN,2011d,p. 34.


Perante a mística sem absoluto de Cioran, que o teria conduzido ao patam ar de uma lucidez extrema, os pensamentos de Nietzsche e Heidegger se tornam superficiais na medida em que são incapazes, segundo ele, de ver a nulidade ou vacuidade inerente a tudo 0 que é. Logo, a questão do niilismo, que em Nietzsche está associada à celebração da vida e em Heidegger, à celebração do ser, também se mostra superficial. Para Cioran não há 0 que celebrar; o que há é tão somente o nada^l

Considerações finais

O presente artigo abordou, em linhas gerais, as implicações da questão do niilismo, formulada pelo pensamento nietzschiano, nas filosofias de Heidegger e Cioran. Vimos que o niilismo, segundo Nietzsche, consiste na crise dos valores supremos da tradição do pensamento ocidental, desde suas origens caluniador da vida. Essa crise também criava, segundo Nietzsche, as condições de sua superação através de uma transvaloração de todos os valores, ou seja, através da possibilidade de se criar valores que, ao invés de denegri-la, a afirmassem como vontade de poder. A recepção heideggeriana do conceito de niilismo se deu no horizonte da questão que, segundo Heidegger, seria fundamental: a questão do sentido do ser. Para ele, essa questão nunca foi pensada adequadamente pela tradição de pensamento metafísico, que visava não o ser enquanto tal, mas o ser do ente. O niilismo aparece no pensamento heideggeriano como o fim da metafísica, entendido como consumação da técnica, isto é, de um modo de pensar orientado para o fazer e o operar. Essa consumação, que o pensamento de Nietzsche representa, elimina até mesmo o aceno que o pensamento

Volpi, em sua obra O niilismo, e Pecoraro, em sua obra Cioran: a filosofia em chamas, sustentam que Cioran é um pensador niilista. Como vimos, a questão do niilismo remete a alguma forma de celebração, seja 0 niilismo ativo de Nietzsche, que celebra a vida como vontade de poder; seja o niilismo segundo Heidegger, que visa sua “superação” no sentido de uma celebração do ser. O próprio Cioran não se assume niilista, como deixa claro essa passagem de Entrevistas: “ [...] Não sou niilista, ainda que a negação sempre me tenha tentado. Eu era muito jovem, quase uma criança quando experimentei pela primeira vez o sentimento do nada, na seqüência de uma iluminação que não consigo definir. Em mim, a recusa sempre foi mais poderosa que o deslumbramento. Animado ao mesmo tempo pela tentação do absoluto e pelo sentimento persistente da vacuidade, como eu poderia ter esperanças?”


metafísico faz à questão do sentido do ser. No entanto, somente a consumação da técnica, na medida em que liberta o pensamento da linguagem e da gramática da tradição metafísica, possibilita ao pensamento pensar o ser enquanto tal, ou, por outras palavras, celebrá-lo. Quanto a Cioran, sua mística sem absoluto nadifica até mesmo a questão do niilismo, pois, ao contrário do que ocorre nos pensamentos de Nietzsche e Heidegger, 0 niilismo implica uma possibilidade quer de afirmação da vida, quer de celebração

do ser. Essa afirmação e essa celebração parecem simplesmente vãs diante de um pensamento que sustenta a nulidade ou vacuidade do tempo, da vida, do ser. Com isso, encerramos o presente artigo, que, longe de ser conclusivo acerca das implicações da questão nietzschiana do niilismo nos pensamentos de Heidegger e Cioran, consistiu antes num ponto de partida para futuras pesquisas que desejamos fazer sobre o referido tema.


REFERÊNCIAS

CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011a. _______ . Entrevistas. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2001. _______ . História e utopia. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011b. _______ . Nos cumes do desespero. Trad. Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2011c. _______ . Silogismos da amargura. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011d. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. _______ . Marcas do caminho. Trad. Enio Paulo Giachini; Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. . Nietzsche /. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. . Nietzsche II. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Trad. Pergentino S. Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 1993. MACHADO, Roberto. 0 nascimento do trágico: de Nietzsche a Schiller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.


Além do bem e do mal. Trad. Mário Ferreira dos Santos. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. _. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Mário D. Ferreira Santos. Petrópolis: Vozes, 2008a. _______ . A vontade de poder. Trad. Marcos Sinésio Pereira Fernandes; Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008b. _______ . Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. _. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. _______ . 0 nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. PECO RARO, Rossano. Cíoran: a filosofia em chamas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. VATTIMO, Gianni. 0 fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pósmoderna. Trad. Eduardo Brandão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. VOLPI, Franco. 0 niilismo. Trad. Aldo Vannucchi. São Paulo: Edições Loyola, 1999.


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LAMP

UMA BREVE COMPREENSÃO SOBRE 0 DASEIN BE HEIBEGGER MARCUS VINÍCIUS GOMES DE ARAÚJO - Graduando em filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). marcusvgaraujo@hotmail.com

Resumo: O objetivo deste trabalho é m ostrar a im portância do Dasein na questão do ser de Heidegger. O Dasein é o ente mais im portante para a com preensão de todas as coisas, é o cam inho por onde devemos com eçar a questionar e a responder a questão sobre o ser, pois ele possui uma com preensão - e uma pré-com preensão - deste, e um modo de se relacionar com sua própria existência que não existe nos outros entes. Mas, afinal, qual é a questão do ser explicitada em Ser e tem po, e por que Heidegger decidiu trab alh ar essa questão? Perm ito-me dividi-la em dois pontos: qual é o sentido do ser?; como ele se m anifesta? (e não “o que é?”). Através desses dois pontos Heidegger abriu cam inho para que possam os ter uma nova com preensão sobre como somos, como vivemos e sobre a im portância de nos m anterm os abertos para a com preensão da questão resgatada por ele. Palavras-chave: D a se in . F en o m en o lo g ia . O n to lo g ia fu n d a m e n ta l. Ô ntico.

A bstract: The objective of this w ork is to show the im portance of Dasein in H eidegger’s question of being. Dasein is the m ost im portant entity for the understanding of all things, is the way by w hich we m ust begin to question and to answ er the question about being, because he has an understanding of it - and a pre-understanding - , and a way to relate to their own existence th at does not exist in the other ones. But ultimately, w h at’s the point of being explicit in Being and Time, and why Heidegger decided to w ork on this issue? Allow me split it into two points: w hat is the m eaning of being?; how it m anifests? (not “w h at?”). Through these two points Heidegger paved the way for us to have a new understanding of how we are, how we live and the im portance of keeping ourselves open to understanding the issue rescued by him. Keywords: Dasein. Phenomenology. Fundamental ontology. Ontic.


Introdução

M

artin Heidegger nasceu em 1889 na cidade de Messkirch, na Alemanha. No início de sua educação, que se deu na ordem jesuíta, estudou intensamente

a íilosoíia, a cultura e a língua grega. Em 1907, recebeu de Franz Brentrano

uma cópia de Sobre o múltiplo significado de ser em Aristóteles, que o levou para a questão do ser. Mas Heidegger só se aprofundou na questão após term inar seus estudos

teológicos no seminário. Em 1913 Heidegger recebe seu Ph.D, e em 1915 sua habilitação - quando se tornou professor da Universidade de Friburgo. É lá que conhece Husserl, por cuja fenomenologia tem o pensamento fortemente influenciado. Heidegger foi assistente de Husserl de 1919 a 1923, e isso inaugurou o que muitos chamam de sua “década fenomenológica”. Quando Husserl se aposenta, em 1928, escolhe Heidegger para assumir seu lugar na Universidade de Friburgo como professor de filosofia, pois via nele o potencial para continuar suas investigações. Entretanto, ao ter contato com Ser e Tempo, que lhe fora dedicado, essa visão muda e Husserl diz que Heidegger teve uma má compreensão do que tratava a fenomenologia. “Na perspectiva de Husserl, Heidegger tinha abandonado inteiramente as aspirações fenomenológicas de levantar e responder questões transcendentais para se tornar uma ‘ciência rigorosa’ [...]” (CERBONE, 2013, p. 66) A fenomenologia criada por Heidegger difere da de Husserl tanto em métodos como em resultados. De acordo com Cerbone:

Se a tarefa da fenom enologia é explicar a estru tu tu ra da com preensão pré-ontológica do D asein, então ele deve focar na atividade do Dasein, o que significa, por sua vez, que a fenom enologia não pode


proceder parentesando ou excluindo entidades. Em outras palavras, Heidegger enfaticam ente rejeita a redução fenom enológica com o o ponto de partida para a fenom enologia^

Isso mostra que havia uma discordância crescente entre Husserl e Heidegger, que se completou em 1929.

A fenom enologia de Heidegger e a importância do Dasein

A fenomenologia de Heidegger busca ser uma “fenomenologia fundamental”, e traz o ser como a abertura de possibilidade para todas as coisas. Heidegger considera a questão do ser a mais fundamental dentro da filosofia, e decide resgatá-la, também, porque ela foi negligenciada por muito tempo pelo fato de ser considerada a “ indefinível”, “o conceito mais universal”, ou mesmo como “autoevidente”. Essa questão inspirou Platão e Aristóteles em suas investigações, mas se perdeu com o tempo devido a essa negligência. Mas, resgatar essa questão traz para Heidegger um outro problema: por onde começar a responder tal questão? O lugar para começarmos a responder essa questão é em nós mesmos, mas esse “nós mesmos” de que falo, em Heidegger se apresenta como Dasein, que é composto de “Da-”, significando “aí”, e “sein”, significando “ser.

Cerbone descreve a resposta de Heidegger da seguinte maneira:

O D asein é o lugar para com eçar a responder a questão sobre o ser porque ele, diferente dos outros tipos de entidades, sem pre tem um a com preensão do ser: entes hum anos são entes para quem as

‘ CERBONE, 2013, p. 72.


entidades são m anifestas em seu m odo de ser. Isso não significa que nós já tem os um a concepção desenvolvida sobre o que é ser (se tivéssem os, haveria pouco para Fleidegger e Ser e tempo realizarem ), m as, em vez disso, nossa com preensão é em grande m edida im plicita e pressuposta, o que Fleidegger cham a de “pré-ontológico”. U m a vez que 0 Dasein tem um a com preensão do ser, ainda que im plicita e não tem ática, Fleidegger argum enta que a ontologia fundam ental deve com eçar com a tarefa de in terp retar ou articular essa com preensão pré-ontológica do ser. Fazer isso fornecerá um a prim eira passagem para responder a questão do ser em geral, um a vez que com preender 0 D asein, ou seja, o que é ser o tipo de ente que som os, pressupõe

com preender o que com preendem os, ou seja, o ser^^.

Eis aí 0 ponto de partida para todo questionamento e o lugar de todas as respostas dentro da fenomenologia de Heidegger, o Dasein. O Dasein é o único ente capaz de compreender a si mesmo, e essa compreensão se dá na medida em que é, em que exerce o seu existir. Ele é um ente ontológico porque traz em si o sentido de ser, e é pré-ontológico por já ter uma (pré) compreensão desse sentido, uma compreensão antes mesmo de poder teorizá-la, o que Heidegger chama de uma compreensão pré-teórica. O Dasein é o único ente a possuir um sentido, o único capaz de criar, desejar, construir, destruir, e tudo mais que demonstre sua total interação com a própria existência, o que não é possível nos demais entes. Há uma interação entre 0 Dasein e o mundo como uma relação de troca constante, onde um se apresenta para 0 outro a todo momento, e dessa troca a existência flui para todos os outros entes. Mas

essa relação do Dasein com a sua própria existência, Heidegger descreve da seguinte forma: “A presença não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, ela se distingue onticamente pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser.” (HEIDEGGER, 2013, p. 48) A fenomenologia de Heidegger não tem a intenção de falar sobre o “quê” das coisas, mas do “como”. Heidegger não tem a intenção de dizer o que é o ser, nem o que é 0 Dasein, mas como são, como se apresentam. É esse “como” que nos mostra toda a

2C E R B O N E ,2013,p.69.


complexidade do Dasein e sua importância para caminharmos para uma compreensão do ser. O Dasein lida com sua existência de forma totalmente jogada, onde tudo é possibilidade e nada está pronto. Sendo assim, tudo é possibilidade no “sendo” do Dasein. Como nada está pronto para a presença, ela só se compreende sendo/existindo. Tal compreensão de ser é em si mesma uma compreensão de ser do Dasein, como Heidegger descreve, e nenhum ente traz em si essa determinação. Isso já deixa claro a importância da presença na questão do ser. Tendo a compreensão de que nós, seres humanos somos o Dasein, o ser-ai, não nos importa, segundo a fenomenologia de Heidegger, o conteúdo que cada um possui, mas como esse conteúdo se apresenta através de cada um. É como se ouvíssemos uma música e disséssemos que sua letra não nos importa, pois, no fim, todas as músicas falam dos mesmos assuntos, mas o que nos importa é somente sua melodia. É assim com 0 Dasein. Todos temos o mesmo conteúdo, passamos, de certa forma, pelos mesmos problemas, mas cada um de nós tem um jeito próprio, temos uma forma que é só nossa, e é aí que está o segredo dessa relação Dasein-mundo que nos traz a compreensão de nós mesmos. Nós, enquanto seres-aí, nos relacionamos com o mundo de acordo com nossa forma, nosso jeito, e ao mesmo tempo, nos relacionamos com a forma de todos as outras pessoas. Todas essas relações nos trazem uma compreensão de nós mesmos justam ente por conta dessa interação, pois somos obrigados a ser para 0 outro, e enquanto somos para o outro entendemos como somos. É justam ente por isso

que Heidegger diz que em nosso ser (sendo) está em jogo nosso próprio ser. Enquanto somos, nossa forma está em jogo, pois somos sempre para outro. Não podemos prever 0 que sai dessas relações, ainda que tenhamos intenções, nossas relações dependem

de um outro e, assim, entramos no jogo Dasein-mundo, onde tudo é possível, e tudo depende de experiências. “Chamamos existência (N2) ao próprio ser com o qual a presença pode relacionar-se dessa ou daquela maneira e com o qual ela sempre se relaciona de alguma maneira.” (HEIDEGGER, 2013, p .48) Tem osaíaexistênciacom oumentecomoqualo Dasein serelacionaindependente de qualquer coisa. Isso nos mostra que o Dasein está sempre se relacionando com o


mundo, isto é, sendo, independente de qual tenha sido a forma como escolheu ser. Mesmo quando está determinado a nada, o homem está se relacionando com sua existência e influenciando tudo ao seu redor. Daí temos que o Dasein é a própria expressão da existência. Toda a existência se expressa no fenômeno Dasein. Heidegger diz que “a presença sempre se compreende a si mesma a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ser ela mesm a.” (2013, p.48). Nesse momento Heidegger nos explica que a presença - que é o mesmo que o Dasein - é quem define/esclarece a questão da existência. O ser ou não ser ela mesma exposto por Heidegger no trecho citado, fala de ser com vontade de ser, de estar entregue àquilo que se é. Da mesma forma, o contrário também está contido nesse mesmo trecho, pois há a possibilidade de resignação, de apenas mover-se com as circunstâncias, sem objetivos claros e fortes. Dessa forma temos o Dasein como o ente que determina toda a investigação de Heidegger, sendo, portanto, o solo que possibilita toda a questão do ser. Mas e quanto aos outros entes? Aqueles que não possuem o modo de ser do Dasein? Esses são ontológicamente dependentes dele. Se a intenção de Heidegger é nos mostrar uma fenomenologia fundamental e o Dasein é o solo que possibilita toda a investigação heideggeriana, isso nos mostra que qualquer ente que não tenha o modo de ser do Dasein é determinado por ele. Como a compreensão de ser está somente no Dasein, pois, diferente de todos os outros entes, se compreende enquanto é, nele está a possibilidade de todas as outras ontologias. Não há nos outros entes o estar em jogo que há no Dasein, por isso não há a possibilidade de compreensão de si. Para esses entes tudo já está dado, e toda compreensão parte do Dasein para o Dasein, pois essa compreensão vem da interação com sua própria existência.


Considerações finais

Ao retomar a questão do ser e nos apresentar o Dasein, Heidegger toca profundamente a compreensão que temos de nossa existência, e isso explica o motivo pelo qual temos, muitas vezes, uma visão mais humanizada do Dasein. Isso se dá pelo fato de sermos um ente, que por mais que nos diferenciemos dos demais, somos também uma efetivação do ser. É importante que fique claro que o ser de Heidegger não é um ente fora de nós, como o deus dos cristãos e tantos outros entes criados pela metafísica. Ele é uma abertura constante que se dá na própria existência, no sendo/existindo, no acontecer. Por isso não podemos dizer que o ser que Heidegger nos mostra é mais um ente que podemos descrever dizendo o que é, mas, podemos apenas dizer como se manifesta, e 0 único caminho para tal explicação é o Dasein. O Dasein é a própria abertura de possibilidade(s) do acontecimento, é o próprio fenômeno, o próprio aparecer do ser.

Referências:

CERBONE, David R. Fenomenologia. Tradução de Caesar Souza. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.


LAMP

0 APARENTE CONFLITO EÜOEMONOLÚGICO PRESENTE NA ÉTICA SCHOPENHAÜERIANA GUSTAVO AUGUSTO DA S. FERREIRA - Mestrando pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). professorgustavoferreira@hotmail.com.br

Resumo: O presente escrito tem como objeto central a breve análise do conflito das interpretações brasileiras acerca do estatuto teórico da obra Aforismos para a sabedoria de vida e a sugestão crítica de uma nova perspectiva de interpretação do mesmo. A discussão acerca do estatuto teórico dos Aforismos não pode, contudo, prescindir da tem atização acerca da difícil articulação desta ultim a com a metafísica dos costum es, presente em O m undo como vontade e como representação. Os Aforismos propõem uma eudem onologia, escritos para uma vida feliz ou menos infeliz. A problem ática inerente ã questão do presente trabalho é a investigação da relação entre esta suposta eudem onologia e toda a m etafísica presente em O m undo (principalm ente no livro IV) e em alguns outros escritos, já que, ao que parece, existe um conflitoentretaistextosrcom opodehaverum aeudem onologiaem S chopenhauer se a existência é necessariam ente sofrim ento, segundo o próprio autor? Palavras-chave: Análise; Aforismos; Schopenhauer; Sofrimento.

A bstract: Este escrito tiene como objeto central delanálisis breve conflicto de interpretacionesbrasilehas de lasituación teórica de los Aforismos de trabajo por lasabiduría de la vida y de la crítica que sugiere una nueva perspectiva de lainterpretación. La discusión sobre elestatus teórico de aforism os no puede, sin em bargo, renunciar a latem atización de la difícil articulación de éstaconla m etafísica de la moral, presente en El m undo como voluntad y representación. Los Aforismos proponenuneudem onologia, escrito por una vida m enos feliz o infeliz. Los problem as inherentes a laem isión de este trabajo es investigar larelación entre esta supuestaeudem onologia y todos los presentes enel m undo (especialm ente enel Libro IV) y algunosotros escritos m etafísicos, ya que parece que hayunconflicto entre esos textos : ^cóm opuedehaber una eudem onologiaSchopenhauer Si laexistencia es necesariam entesufren, segúnel autor? Keywords: Análisis; Aforismos; Schopenhauer; Sufrimiento.

N° 6 - 02/2014


Introdução

O

sAforismosparaasabedoriadevida*,que fazpartedeum considerávdescrito de Schopenhauer, intitulado Parerga e ParaUpomena(k\einenSchnften/ Escritos menores), de 1851,propõem uma eudemonologia, escritos para uma

vida feliz ou menos infeliz. A problemática inerente à questão do presente trabalho é a investigação da relação entre esta suposta eudemonologia e toda a metafísica presente em 0 mundo como vontade e como representação **(pnncipa\mente no livro IV) e em alguns outros escritos, já que, ao que parece, existe um conflito entre tais textos: como pode haver uma eudemonologia em Schopenhauer se a existência é necessariamente sofrimento, segundo o próprio autor? Esta questão remete diretamente ã pergunta pelo estatuto teórico destes Aforismos. Julgamos que a questão aqui proposta não foi ainda definitivamente bem compreendida e finalizada em sua análise pelos especialistas brasileiros. Portanto, pretendemos não somente explicitar o debate no país referente ao problema, como também sugerir a possibilidade da formulação de uma nova perspectiva. A questão acerca do estatuto teórico dos Aforismos e a sua relação com o conjunto da obra schopenhauriana é colocada pela primeira vez em 1998, na tese doutorai de José Thomas Brum^ Em seguida, em 2002, em um pequeno texto de Jair Barboza^. Barboza afirma que “(•••) podemos definir o pensamento de Schopenhauer como pendular, vale dizer, ele oscila continuamente entre o pessimismo metafísico teórico e o otimismo prático.”^Ou, ainda de acordo com Barboza, “Apesar do sofrimento como marca registrada da existência, é possível um otimismo de natureza prática, sobretudo se formos guiados pela sabedoria de vida.”'^ Com isso, Jair Barboza parece pretender conciliar a perspectiva ética (pessimista) com a perspectiva eudemonológica (otimista). Assim, tanto a metafísica dos costumes quanto a eudemonologia seriam compreendidas no território da ética: a primeira, de um ponto de vista metafísico (pessimismo) e a segunda, de um ponto de vista empírico (otimismo).

* Aforismos para a sabedoria devida: a partis Aforismos. ** 0 mundo como vontadeecomo representação: a partir daqui, 0 mundo.


Temos ainda, em contrapartida, no ano de 2005, o posicionamento de Leandro Chevitarese.^ É com Chevitarese que propriamente inicia-se o debate. Para nós e para Ruy de Carvalho e Gustavo Costa:

C hevitarese tem , talvez não reconhecidam ente, um relevante mérito: p erg u n tar pelas condições da acom odação entre a m etafísica dos costum es (da vontade) schopenhaueriana e os A fo rism o s p a ra a sabedoria de vida. Em sua tese doutorai intitulada: A ética em Schopenhauer: que “liberdade nos r e s ta ” p a ra a p rá tica de v/<ia?,Chevitarese pergunta se e com o a Ética

de S chopenhauer articula-se com sua eudem onologia em pírica; e defende que esta últim a seria m ais bem com preendida com o um a m o ra l do com o se e, assim , com preendendo a noção de sabedoria de vida com o um a espécie, a /aThom az Brum®, de sabedoria te a tra lJ

Seria a proposta de Schopenhauer nos recomendar enfrentar de maneira positiva o inevitável, uma afirmação da vida frente o autoaniquilamento de nós mesmos que é o determinismo e o destino implacável? Podemos afirmar, como Leandro Chevitarese, que os Aforismos são uma “pedagogia da felicidade possível”?^ Para Chevitarese, há nos Aforismos uma espécie de “liberdade”. Segundo ele, Schopenhauer mostra-nos ali a “liberdade de ser o que se é”, ou seja, há ali uma ética. Porém, apesar das ilustres interpretações acerca da relação entre os Aforismos e as demais obras de Schopenhauer, ou seja, seu pensamento pessimista, não foi aqui avaliado suficientemente o estatuto teórico destes Aforismos. 1. B R l]M ,T. o pessimismo e suas vontades, p.50-1. 2. BARBOZA, Jair. Em favor de uma boa qualidade de vida. Prefácio à P Ed. De Aforismos para a sabedoria de vida. E ditora M artins Fontes. São Paulo-SP, 2002. P 13. 3. Ibidem. P 13. 4. Ibidem. P 13. 5. CHEVITARESE, Leandro. A ética em Schopenhauer: que “liberdade nos resta”para a prática de vida. PUC: Rio de Janeiro, 2005. 6. Cf. BRUM,T. O pessimismo e suas vontades, p.50-1. 7. RODRIGUES Jr, Ruy de Carvalho. COSTA, Gustavo Yi..Nietzshce-Schopenhaur, ecologia cinza, natureza agônica; Cai a cortina, misturam-se os papéis: desencontros e reencontros entre Schopenhauer eNietzsche.Orgwiz-aáoYQS,-. Ruy Carvalho, Gustavo Costa eT hiago Mota. Editora EDUECE, Fortaleza, 2013. P. 357. 8. Essa ‘pedagogia da felicidade possível’ parece ser o principal tem a abordado nos seguintes textos do professor


Capítulo I: a questão entre os intelectuais brasileiros e a sua repercussão

Ruy de Carvalho e Gustavo Costa constatam em seu artigo Cai a cortina, misturam-se os papéis: desencontros e reencontros entre Schopenhauer e Nietzsche, o que estamos a expor e acreditamos ser uma constatação bastante lúcida, a saber:

A esse respeito, ao que parece, existem no Brasil pelo m enos duas posições (e um a terceira que verem os logo a frente): um a que, com preendendo os A fo rism o s a partir de um deslocam ento de perspectiva em relação a 0 m u n d o , acom oda os pontos de vista ético e em pírico e, assim , se nos resta

um a liberdade, ela se exerce em um a espécie de teatro da vontade em que, de certa form a e dentro de certoslim ites, som os in teira m e n te livres p a ra ser o que som os, m esm o que perm aneça em aberto a pergunta pela

form a, individualm ente, m a is a d equada de ser si m esm o. Assim , haveria certa tensão, talvez insolúvel, entre o p essim ism o ético schopenhaueriano e a m o ra l do com o se que, em últim a análise propõe um a abertura, um a possibilidade de jogo em que as cartas e os jogadores são dados, m as a habilidade destes pode influenciar no andam ento do jogo, m esm o que este sem pre term ine. A segunda posição com preende que o ponto de vista em pírico deve, em últim a análise, ser subm etido ao m etafísico e, assim , ou a acom odação entre os planos é impossível - fatalism o ( 0 m u ndo) e liberdade (A forism os) - ou m anifestam apenas um a contradição ou paradoxo a m ais

na filosofia de Schopenhauer.®

Dr. Leandro Chevitarese: A Eudemonologia empírica de Schopenhauer: a “liberdade que nos resta para a prática de vida” e A ética em Schopenhauer: que “liberdade nos resta”para a prática de vida?. 9. RODRIGUES Jr, Ruy de Carvalho. COSTA, Gustavo E.. Nietzshce-Schopenhaur, ecologia cinza, natureza agônica; Cai a cortina, misturam-se os papéis: desencontros e reencontros entre Schopenhauer eNietzsche.Orgwiz-aáoYQS,-. Ruy Carvalho, Gustavo Costa eT hiago Mota. Editora EDUECE, Fortaleza, 2013. Pp. 357-358.


Surge aqui a incógnita que determina nosso problema: como é possível haver uma liberdade ou possível felicidade frente à tragédia da existência, frente ao determinismo que é o existir e a ausência de liberdade, já que somos tão somente uma expressão da Vontade, segundo Schopenhauer? Aliás, qualquer recomendação, aconselhamento ou máxima que nos guie ou nos aponte o que fazer e como viver já se torna, em si, no mínimo problemática, pois, não se pode, segundo Schopenhauer, não ser o que se é, ou melhor dizendo, não se pode não querer o que se quer, e, por sua vez, não se pode não fazer o que se faz, visto que o que se faz é o que necessariamente se quer, e o que se quer é o que se é.Pode-se notar que quase todos os pesquisadores e especialistas em filosofia schopenhauriana no país (Leandro Chevitarese (UFRRJ), Jalee O. Salviano (UFRB)“ , Jair Barboza (UFSC), José Thomaz Brum (PU C - RJ)“ e Flamarion Ramos (USP)^^) parecem ser adeptos da defesa da existência de uma liberdade em Schopenhauer (Aforismos), quer dizer, para eles, os Aforismos são “uma parte” da ética. Por mais que isso pareça altamente problemático, quando se observa o conjunto da obra, o posicionamento destes pesquisadores parece partir da confirmação de que existe uma liberdade (Aforismo) em Schopenhauer, uma outra perspectiva ética, distinta daquela apresentada no livro IV de 0 mundo. Ainda seguindo a concepção de Ruy de Carvalho e Gustavo Costa, acreditamos que: (...) tais posições com partilham um pressuposto im portante: os pontos de vista metafísico e empírico são isso m esm o, perspectivas de um a m esm a coisa, a ética. Isto é m ais visível, claro, quando se discute a significação da noção de liberdade. Aqui, o problem a quase sem pre aparece com o articular as significações, os pontos de vista; como transitar de um a outro, com o fazer com que a sabedoria prática acomode-se, sem deixar resto, à metafísica: ao pensam ento único! N ada m ais natural, um a vez que o próprio Schopenhauer

10. Salviano, J. O. S. Cadernos de Ética e Filosofia Política; Desconfortável consolo: a tese niilista de A rth u r Schopenhauer 6 ,1 /2 0 0 5 , pp. 83-109. 11. BRUM, ío séT hom az. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rocco: Rio de Janeiro, 1998. 12. RAMOS, Flamarion C.. A “M IR A G E M ”DO A BSO LU TO Sobre a contraposição de Schopenhauer a Hegel: Crítica, Especulação e Filosofia da Religião. São Paulo, 2008.


que, explicitam ente, fala de acom odação (A kkom m odatiorí) , ponto de vista superior ético-m etafisico {hóreren m etapriphysich-ethischen S ta n d p u n k te ) , ponto de vista com um e em pirico (gew òhnlichen em pirischen S ta n d p u n k te ),

etc.i3

Aparentemente, surge um terceiro posicionamento acerca desta questão, um posicionamento que não parte do pressuposto da ética (liberdade). Ruy de Carvalho, em um breve artigo escrito em parceria com Gustavo B. Costa, contraria os posicionamentos citados acima, ele afirma que:

(...) os A fo rism o s, talvez contra Schopenhauer, são m ais bem com preendidos sem a referência à ética; que seu estatuto não é propriam ente teórico-prático, m as perform ático. A pergunta que talvez se deva fazer é: quem fala no s A forism os? Q uem tem a palavra neles? M ais do que acom odação, que de resto é, reconhecidam ente, impossível para Schopenhauer, um a vez que os A fo rism o s conservam 0 erro de seu nascim ento, m ais do que acom odação ao corpus da

obra, com o dissem os, a questão é de estilo, de linguagem , talvez, de retórica. A noção central para com preender a obra, parece-nos, não é a liberdade, m as a sim ulação (p.217). Aqui, o problem a é o do to rnar-se o que se é. (...) no caso de Schopenhauer, sim, falar de um a

aproxim ação entre o que nos tornam os e aquilo que som os, talvez som ente faça sentido por meio de um a espécie de auto-apresentação m im ética, em que o filósofo, de algum a form a, deve confessar-se. (...) talvez os A fo rism o s sejam um a estran h a confissão. Se a sabedoria prática não pode ser prescritiva, se ela não constitui um a m oral das

1 3 .RO D RIG U ES k ,R u y deCarvalho.COSTA,GustawoB..Nietzshce-Schopenhaur,ecologíacinza, natureza agânica; Cai a cortina, misturam-se os papéis: desencontros e reencontros entre Schopenhauer eNietzsche.Organizadores: Ruy Carvalho, Gustavo Costa eT hiago Mota. Editora EDUECE, Fortaleza, 2013. Pp. 358.


virtudes, se opessim ism o e o determ inism o, rigorosam ente, detêm a últim a e verdadeira palavra para Schopenhauer, então qual o sentido de um a eudem onologia? Se a vida hum ana não pode corresponder a um a existência feliz, conform e dito explicitam ente pelo autor (p .l), então: ou os Aforismos são um a obra sádica; ou teoricam ente absurda e paradoxal; ou ela deve ser com preendida em um outro registro que não 0 teórico-prático.^'*

O posicionamento de Ruy de Carvalho mostra-se como ilustre, porém, sua análise é curta (devido o formato da apresentação: uma breve passagem presente em um breve artigo), aparentemente insuficiente, frente ao problema que aqui se abre (apesar de o mesmo ser um dos primeiros a contrariar a possibilidade dos Aforismos serem concebidos através de uma perspectiva ética, onde, aqui, deve-se a ele o mérito da abertura de uma terceira perspectiva)

Atribuir aos Aforismos qualquer

tipo de “liberdade” inerente à filosofia schopenhauriana (como quer a maioria dos pesquisadores que enxergaram a questão) resolve nosso problema? Acreditamos que não. Deve-se analisar com rigor o problema apresentado no presente escrito que, ao que tudo indica, aponta para um debate oculto até o presente momento no país. Podemos até mesmo desconfiar que o próprio Schopenhauerparecenão ter dado a devida atenção ã dimensão do problema, que o mesmo abrira, ao escrever os Aforismos (e, juntam ente com 0 compêndio de outros escritos, denomina-los de escritos menores). O próprio Schopenhauer, no primeiro parágrafo do livro IV de sua obra principal (0 Mundo) afirma que toda filosofia é necessariamente teórica, portanto, como compreender, teoricamente, a significação dos Aforismos? Tratar-se-ia, talvez, de construir um eu para o si. Evoco novamente Ruy e Gustavo, afirmando acerca do que foi dito que:

14. Ibidem. R 359. 15. Existe também uma segunda tese que nega que os Aforismos sejam uma ética. A tese de W ilham Damasceno defende que os aforismos são, na verdade, uma espécie de psicologia social. DAMASCENO, F. W ilham. Ética e metafísica em Schopenhauer: a coexistência da vontade livre com a necessidade das ações. Tese de M estrado, O rientador Dr. Fernando Ribeiro de Moraes Barros. UFC, março de 2012 - Fortaleza.


Isto parece ir bem ao encontro de um texto póstum o, igualm ente polêmico:

A arte de conhecer a si mesmo. Com o titulo de Eis heuatón, de inspiração em M arco Aurélio, S chopenhauer inicia, em 1821, as anotações de suas m editações para uso pessoal, algo com o um Oráculo manual (G racián), em que se trata m enos de um fatalism o estoico ou de um livro de erudição do que de um a tentativa de expressar a quintessência da m aneira de entender o saber filosófico; textos preocupadoscom um outro uso da inteligência, uso em que o que está em jogo ê a busca da^®:

“autarquia, autoestima, amor-próprio, vida solitária, aristocracia da inteligência, vida saudável, misantropia”, etc.

Então, vê-se aqui a extrema necessidade da investigação do estatuto teórico dos Aforismos, tal como também a sua relação com as demais obras do filósofo. O pensamento de Schopenhauer é o reflexo conturbado das problematizações sociais e filosóficas de sua época, assim, poder-se-ia até mesmo avaliar tais Aforismos a partir de uma perspectiva política(e dissipar-se-ia o mito malogrado de que Schopenhauer não escrevera nenhum texto necessariamente político), nota-se isto na análise feita por Horkheimer e Lukács acerca da filosofia de Schopenhauer.^^ Se a vida humana não pode corresponder a uma existência feliz, conforme dito explicitamente pelo autor (p .l), então: ou os Aforismos são uma obra sádica (como sugere Ruy de Carvalho);

16.Ibidem .P .360. 17. H orkheim er eleva e atualiza politicamente o pensam ento schopenhauiano: “a doutrina de Schopenhauer põe ante a vista do que se trata: os interesses materiais, a luta pela existência, o bem -estar e o poder formam o motor; a história o resultado. Schopenhauer não racionalizou filosoficamente a experiência do horror e da injustiça que se dá até nos países que são governados do modo mais hum ano; teve medo da história; lhe repugnavam as m udanças políticas violentas que tentaram levar a cabo na época contem porânea com ajuda de um a exaltação nacionalista”. (Horkheimer, Max. Votrãge und Aufzeichnungen 1949-1973. In: Gesammelte Schriften. Org. A. Schmidt. Frankfurt. Fischer Taschenbuch Verlag, 1985, vol. 7, p. 124-5. “ Schopenhauer y la Sociedad” . In: T. W Adorno e M. Horkheimmer, Sociologica, Madrid: Taurus, 1971, p. 125). Lukács minimiza o alcance das intuições schopenhauerianas ao considerá-las m eram ente como expressões de ranço de classe: “ Schopenhauer defende o existente de um modo tão decidido como o irracionalismo feudal ou semifeudal da restauração, m as com um método totalm ente oposto, com o método da apologética burguesa indireta. Os ideólogos da restauração defendiam a ordem social concreta de seu tem po, a ordem feudal absolutista, ao passo que a filosofia de Schopenhauer representa a defesa ideológica de toda ordem social existente, capaz de m anter em pé contra todos os perigos a propriedade privada burguesa” (Lukács, G. Op. Cit., p. 173).


OU teoricamente absurda e paradoxal; ou ela deve ser compreendida em um outro registro que não o teórico-prático (que foi a abordagem de compreensão até o presente momento pelos especialistas).

Capítulo II: a problemática inerente à presente questão

A questão central do presente artigo, como já foi aludido, é investigar o estatuto teórico da obra Aforismos para a sabedoria de vida de Schopenhauer frente ao conjunto dos escritos schopenhaurianos que são aparentemente totalmente contrários ã possibilidade de umafelicidade (ou vida menos infeliz) que é, em suma, aparentemente o objeto principal áos Aforismo st, em justapartida, expor o debate descrito logo acima. Ao mesmo tempo, este conceito (felicidade), é irrefutavelmente negado noutros escritos de Schopenhauer, inclusive em inúmeros momentos de sua obra principal: 0 Mundo como Vontade e como representação. Observemos agora a possibilidade de investigarmos a fundamentação de uma eudemonologiaschopenhaurianaivmit ã negação da vontade como única possibilidade de nossa resignação, pois, para Schopenhauer, o ascetismo, a negação da Vontade, a própria resignação seria a única saída para fugirmos ou livrarmo-nos do sofrimento conseqüente da Vontade. Em Schopenhauer a Vontade jam ais é livre, a ‘verdadeira liberdade’ é livrar-se dela (a santidade ou ascetismo). Poderse-ia dizer que a sabedoria de vida que nos é dada ou mostrada por Schopenhauer é 0 ensinamento de como ter um melhor desempenho no teatro da Vontade? Seria a

proposta de Schopenhauer nos recomendar enfrentar de maneira positiva o inevitável, uma afirmação da vida frente o inevitável autoaniquilamento de nós mesmos que é o determinismo e o destino implacável? Isso deve ser investigado. Analisar a ética e eudemonologia em Schopenhauer envolve algumas problemáticas. Inicialmente, devemos observar o peso teórico e o direcionamento de cada uma das obras (Aforismos e 0 mundo), pois é de fundamental importância compreender a indicação de cada obra por parte do autor. Sendo assim, é válido avaliarmos até que ponto as duas podem coexistir mutuamente e qual consideração deve-se atribuir a cada uma no que tange as contradições vigentes no pensamento


do filósofo quando se compara ambos os textos. Para Schopenhauer é mais sábio fazer o balanço de vida de uma pessoa não pelos prazeres que frui, mas pelos males que evitou. Sendo assim, a sabedoria de vida consiste em saber (assim como na ética estoica) como evitar a dor e o sofrimento o máximo possível. Isso seria o princípio da eudemonologia: “a instrução para uma existência feliz”. Mas, como compreender a instrução para uma vida feliz quando seria preferível a não-existência? Na divisão fundamental dos Aforismos podemos encontrar (além Daquilo que alguém é e Daquilo que alguém representa) a quinta parte: Parêneses [exortações] e máximas. Aqui, logo de início, Schopenhauer expõe as máximas gerais. O filósofo, no que concerne a questão dos prazeres e da dor afirma:

“ [O prudente aspira não ao prazer, m as a ausência de dor] (...) A verdade dessa m áxim a reside no fato de que todo prazer e toda felicidade são de natureza negativa. A dor, ao contrário, é de natureza positiva. (...) Q uando nosso corpo inteiro se encontra saudável e intacto, m as apresenta um a parte ferida ou dolorida, então a consciência deixa de perceber a saúde geral para dirigir sua atenção constantem ente para a dor da parte ferida, e a sensação de bem -estar vital ê anulada por com pleto. (...) quem quiser fazer o balanço da própria vida em term os eudem onológicos, deve fazer a conta não segundo os prazeres que fruiu, m as segundo os m ales que fugiu. (...) p or “viver feliz”, deve-se entender “viver m enos infeliz”, ou seja, de m odo suportável.

Para Schopenhauer a vida humana oscila entre a dor e o tédio, uma em virtude das necessidades e o outro em virtude da aparente supressão das mesmas. Segundo nosso filósofo “O panorama mais amplo nos mostra a dor e o tédio como os dois inimigos da felicidade humana."^‘'Schopenhauer leva o problema da dor e do tédio adiante, mas é nos Aforismos que ele afirma que “ Se a um estado sem dor ainda couber a ausência de tédio, então a felicidade terrena foi em essência alcançada; o resto é quimera.”^^ 15. SHOPENHAÜER, Arthm . Aforismos para a sabedoria de vida. Editora Martins Fontes. São PauloSP, 2002. R 140. Trad. Jair Barboza. 16. Ibidem. P. 24. 17. Ibidem. P 142


Eis a gigantesca consideração dada por Schopenhauer a tal problema; aqui vemos de perto a síntese do problema abordado: a eudemonologia e a possibilidade da “felicidade”, tal como também a questão intrínseca à mesma na filosofia determinista de Schopenhauer, ou seja, o problema da liberdade, em suma, o estatuto teórico de Aforismos para a sabedoria de vida. Assim,

podemos

analisar

o

que

Schopenhauer

compreende

por

“eudemonologia empírica”. Traçamos aqui o paralelo entre toda a construção filosófica de um pensamento determinista e pessimista frente à problemática da possibilidade de uma vida feliz ou menos infeliz, o direcionamento para viver quando o preferível é não viver, a que conclusão devemos chegar e como devemos agir frente a uma existência determinada, dolorosa e inevitavelmente fatalista. É importante observarmos a conceituação do que seria, segundo Schopenhauer, a eudemonologia empírica. Porém, nós mesmos nos perguntamos: seria ela o enfrentamento do inevitável frente ã tragédia?

Se a vida é sofrimento, conduzi-la bem seria mesmo a vingança contra a existência?

Considerações finais 18 Concluo 0 presente trabalho lançando meu olhar crítico sobre a questão e levantando uma hipótese no mínimo polêmica. Pudemos aqui observar o valoroso eao mesmo temo nebuloso debate que habita entre as entrelinhas do pensamento schopenhauriano no Brasil e, assim, temos acesso a dimensão do problema.

18. Q ueremos na presente conclusão apresentar nosso breve posicionam ento acerca da questão proposta no presente trabalho, tal como tam bém nossa entradano debate brasileiro acerca da questão do estatuto teórico dos Aforismos, já que, a nosso ver, seria demasiado penoso e bastante problemático escrever um terceiro capítulo no presente texto para apresentar nossa proposta interpretativa acerca do problema apresentado aqui. Provavelmente, com a formulação de um terceiro capítulo, a leitura ficaria demasiado extensiva e exaustiva para o nosso leitor e, em vista de nossa proposta, a fundam entação de um terceiro capítulo que dem onstrasse a base teórica de nossa interpretação, já seria por si só, tanto em conteúdo como em extensão, outro artigo que serviria como continuação e aprofundam ento deste.


Através da compreensão da eudemonologia empírica, aparentemente chegamos ao denominador comum na presente pesquisa: as hipóteses que representam nosso posicionamento: quer dizer, para nós, talvez, seria o problema fundamental aqui levantado um problema metodológico, onde, 0 mundo seria uma obra de estrutura e escrita sintética, enquanto os Aforismos seria uma obra analítica, já que trata de uma “prática” de vida. Acreditamos que, metodologicamente falando, é um fato no mínimo inusitado a estilística dos Aforismos, a forma como foi escrita (o simples fato de serem aforismos e não a abordagem tradicional teórica presente no estilo de escrita de Schopenhauer). O próprio Schopenhauer inicia o livro IV de 0 Mundo afirmando no primeiro parágrafo que não há filosofia prática, toda filosofia é necessariamente teórica, assim, reconhecemos que nossa hipótese é tão sagaz quanto polêmica e dificultosa, contudo, relativamente aceitável quando se aponta para uma intencionalidade obscura da parte do autor: quer dizer, talvez aqui, até mesmo pelo estilo de escrita, exista nada mais nada menos que uma orientação relativa ã civitas. Algo que como direcionado ao indivíduo no interior da comunidade, uma escrita que leva o estilo de alguns dos renascentistas italianos e de alguns filósofos helenistas; talvez, os Aforismos sejam em sua essência um breve tratado político transcrito em forma de oráculo manual. É até mesmo dificultoso efetuar uma análise moderna dos Aforismos, pois seu estilo de escrita não se propõe como moderno (justamente por serem “aforismos”, e isso aponta para a hipótese que acabamos de elaborar logo acima). Acreditamos poder dizer que os Aforismos são uma obra referente ã civitas, quer dizer, referente meramente ao comportamento do indivíduo no interior da comunidade, na sociedade, na vida civil. De qualquer forma, o problema continua ainda não completamente resolvido e o debate ainda está aberto, já que o presente trabalho se propôs somente a apresentar o problema e 0 debate que o acompanha sugerindo possíveis hipóteses para a problemática análise dos Aforismos e seu estatuto teórico.


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Outras obras BAILLOT, A. Infiuence de laphilosophie de Schopenhaueren France (1860-1900). Etudesuivied unEssaisur lês sourcesfrançaises de Schopenhauer. Paris: Archives Karéline, 1927. BARBERA, S. U nephilosophiedu confiit. Études sur Schopenhauer. Paris: PUE, 2004. BARBOZA, J. Infinitude subjetiva e estética - natureza e arte em Schelling e Schopenhauer. São Paulo: Unesp, 2003. _____ . Schopenhauer. A decifração do enigma do mundo. São Paulo: Editora Moderna, 1997. _____ . Metafísica do belo. São Paulo: Unesp, 2003. _____ . Três prefácios e alguns retratos: Schopenhauer e suas Eisionomias. In.:Arthur Schopenhauer no Brasil. Em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. D. Redyson (Org.), João Pessoa, Ideia, 2010. BEISER, E C. O desenvolvimento intelectual BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rocco: Rio de Janeiro, 1998. CHEVITARESE, Leandro. A ética em Schopenhauer: que “liberdade nos resta” para a prática devida. PUC: Rio de Janeiro, 2005.


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CRÍTICA AO SUJEITO 00 CONHECIMENTO EM NIETZSCHE E FREOO HERMANN ROHOR KULITZ - Estudante de Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). hermannkulitz@yahoo.com.br

Resum o: A m odernidade, como é entendida por Vattimo, foi o período em que predom inou a proposta de superação crítica e pensam ento do homem como centralidade no m undo. D urante esse período, buscou-se investigar as possibi­ lidades de conhecim ento no que fora form ulado por D escartes como “ Sujeito” , sendo o projeto que repercutiria na enunciação da em ancipação hum ana, visão esta fundam ental na proposta ilum inista K antiana, na afirm ação do “eu ” tra n ­ scendental, autônom o. Todavia, tais concepções são alvos de críticas de N ietzsche que pretende desconstruir a ideia do sujeito como D escartes a form ulou. Nessa esteira, Freud tam bém é identificado como pensador im portante no sentido de apresentar ao m undo outra proposta que não a do hum ano como consciente-desi. Lacan reforça a posição de Freud, lançando mão de um projeto de resgate da psicanálise a partir de sua ruptura com a consciência como instância privilegiada. Palavras-chave: filosofia contemporânea; sujeito; psicanálise

N° 6 - 02/2014


Introdução

presente trabalho teve como objetivo explicitar e relacionar as posições

O

de Nietzsche e de Freud no tocante à noção de Sujeito tal como era na Modernidade e a subversão que sofreu na Pós-modernidade. Fez-se um esforço no sentido de dialogar com autores modernos como Descartes

e Kant, observando as conseqüências de seus pensamentos e o ponto de rompimento, que era o foco deste projeto: fazer críticas à noção de sujeito do conhecimento. Nesse sentido, a crítica passa no cerne da questão metafísica como tentativa de buscar um fundamento último, que ã época teria garantido todo o conhecimento e posto 0 homem como centralidade da realidade. Procurou-se identificar as insuficiências

apontadas pelos autores contemporâneos, bem como as propostas oriundas do esforço desses. A posição de Nietzsche é eminentemente filosófica, portanto, uma visão interna da própria tradição filosófica. Já Freud, era neurologista, diferençando seus tipos de argumentos em relação aos que Nietzsche elabora, sem com isso perder força e importância. A reflexão acerca da questão colocada nesse projeto é de fundamental importância para que se pense uma intervenção na clínica psicanalítica. Ou até mesmo em qualquer uma, dado que uma intervenção parte de uma concepção de mundo e de homem.

O sujeito e seu ocaso

Desde os primórdios da construção do campo que se pode chamar de conhecimento, se olharmos de perto, iremos perceber que, das crenças antigas, dos mitos e lendas ã filosofia e ã ciência na atualidade, sempre os acompanharam a concepção de


homem ou, após Descartes, a de sujeito, que sofreram e sofrem modificações ao longo da história. Trata-se, no presente artigo, de apontar algumas destas modificações partindo do conceito de sujeito na filosofia, com Descartes, passando por Kant e pela via aberta por Nietzsche à subversão introduzida por Freud, com a psicanálise, na medida em que introduz no campo do saber e da clínica o conceito de inconsciente. A importância desta distinção reside no fato de que, a depender do modo como se considera este sujeito no campo das chamadas ciências humanas, teremos práticas e intervenções notadamente distintas, seja no registro mais particular da clínica seja no âmbito das ações no social. Quer se supor com isso que aí está o ponto epistemológico que distingue, por exemplo, a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise; estando as duas primeiras mais próximas e a última se colocando no pólo oposto, e isto justam ente em função da maneira como se considera, em cada um desses campos, o sujeito. Inclusive este é um dos critérios a partir dos quais se separa, hoje, não somente os campos do saber, mas principalmente indicam e nomeiam o tempo em que vivemos. A noção de sujeito, pois, é tributária da Modernidade. Termo fundamental no pensar cartesiano, é também uma condição lógica de sustentação de vários sistemas filosóficos desenvolvidos posteriormente, não deixando de ser utilizada e mais, sendo vez ou outra exaltada no vocabulário de linhas psicológicas. É importante, então, compreender de que forma foi cunhado o conceito de sujeito e qual a sua relevância, para que posteriormente seja possível entender sua subversão no pensamento de Freud e sua negação nas formulações de Nietzsche. Nesse sentido, é na modernidade que Vattimo observa a construção de tal termo e seus desdobramentos. Para Vattimo (2007), a modernidade pode ser caracterizada como o período em que os pensamentos eram considerados de forma a prosseguirem rumo ã iluminação, ou seja, cada vez mais próximos das noções de realidade e de verdade, partindo de fundamentos que possibilitavam esse projeto. O fundamento por excelência seria o Sujeito, tal como Descartes formula, que possibilitaria todo conhecimento e garantiria a centralidade do Homem no mundo, dando lugar assim a um determinado humanismo, valorizando a autonomia individual


e a aplicação pura da razão. Descartes (2005), em seu projeto de buscar uma certeza primeira, utiliza-se do método dos geômetras para que se possa extrair desta um encadeamento de conclusões e premissas que embasem e justifiquem o conhecimento. O filósofo francês parte dos sentidos, da percepção. Há nos sentidos uma enganação, algo que em experiências comparadas simples já mostram alterações da percepção; alguém prova o sabor de um alimento em condições normais e quando está com febre: o sabor se altera.

Tudo 0 que recebi até o presente com o m ais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos; ora, algum as vezes experim entei que tais sentidos eram enganadores, e é de prudência jam ais confiar inteiram ente naqueles que um a vez nos enganaram . (D escartes, 2005, p. 31)

Ora, a dúvida que abala tudo, método de Descartes, já então descarta o sensível como meio de comprovação de verdades. Uma hora percebemos determinado fato de uma forma, em outro momento o mesmo fato é percebido de outra forma. Tem-se então a negação dos sentidos como mecanismo de prova. Resta, portanto, passar por cima deste meio, a percepção, para algo mais fundamental, algo que sobreviva ao método da dúvida. Esse algo, o estatuto de toda a certeza possível, virá com a identificação do Eu com 0 Subjectum. O eu penso de Descartes será a condição de todo o conhecimento possível. Afirma que se pode duvidar de tudo, menos de que se duvida. Por dedução, se eu duvido, penso. E se há pensamento, há existência.

Mas 0 que é que sou então? U m a coisa que pensa. O que é um a coisa que pensa? Isto é um a coisa que duvida, que concebe, que afirm a, que nega, que quer, que não quer, que im agina tam bém e que sente. (D escartes, 2005, p. 47) Pois é por si tão evidente que sou eu quem duvida, entende e deseja que não é aqui necessário acrescentar nada para explicá-lo. (D escartes, 2005, p. 48)


Chegamos assim àquilo que transcende os sentidos, que é unidade, identidade, fundamento. Descartes fará esse salto, dos sentidos para algo além dos sentidos, afirmando ser o pensamento sinônimo de existência: Cogito ergo sum. Vemos a manifestação dessa proposta, o Sujeito, em Kant (1974). Em sua tentativa de garantir um conhecimento seguro, que diz não ter sido alcançado por seus antecessores, tentando investigar as condições de possibilidade do conhecimento no Sujeito, chegando à estética e à dialética transcendentais. Acrescenta, então, ao cogito cartesiano as categorias de espaço e tempo como a priori do conhecimento, ou seja, condições que possibilitam o conhecimento de acordo com as categorias do intelecto. Apesar de o conhecimento, para Kant, se dar num nível em que só é possível após a junção com a experiência, ainda permanece a ideia de um Sujeito universal, podendo chegar a si mesmo pela Razão e a possibilidade do conhecimento estar fundada no próprio Sujeito, pelo menos de início no a priori (tempo e espaço).

Pois a razão pura especulativa possui a faculdade peculiar de poder e dever m edir exatam ente a sua própria capacidade segundo as diversas m aneiras de escolher os objetos do seu pensar [...] Pois, por um lado, no conhecim ento a priori nada se pode atribuir aos objetos salvo aquilo que o sujeito pensante tira de si m esm o; e, por outro, no que diz respeito aos princípios do conhecim ento, a razão pura é um a unidade totalm ente à parte e auto-suficiente[...] (K ant, 1974, p. 44)

Esta é a proposta da Crítica da razão pura, a Razão que julga a si mesma podendo garantir o fundamento de todo conhecimento. Podemos salientar tal empresa quando Kant encara a Aufklarung como movimento emancipatório do humano, ou seja, quando o homem tem a capacidade de se autodeterminar, já que é formado por uma substância simples capaz de pensar a si mesma e “fazer existir” as outras, plenamente pelo uso correto da Razão.

Esclarecim ento [Aufklarung] é a saída do hom em de sua m enoridade,


da qual ele próprio é culpado. A m enoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendim ento sem a direção de outro individuo.

Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendim ento, tal é 0 lem a do esclarecim ento [Aufklârung] (Kant, 1974, p. 100)

Com essa proposta, através de uma estruturação lógica, estética e apriorística, vemos em Kant a razão como uma instância universal da qual todos os particulares compartilham da mesma forma. (Kant, 1974) Seria essa a concepção dominante em toda a modernidade e alvo das críticas nietzschianas diretamente, a fim de conseguir resgatar o devir, lenhando a árvore da metafísica e destruindo os ídolos, ou seja, tudo que pretende ser eterno, imutável, transcendente. (Onate, 2000) Tais críticas, de acordo com Vattimo (2007), marcaria o próprio fim da modernidade, que coincidiria com o esvaziamento desse Sujeito, em outros termos, do Homem como centro de todo o conhecimento e autodeterminado. O ponto culminante seria o anúncio da Morte de Deus que Nietzsche faz e, consequentemente, a queda dos valores supremos como: o imutável, o permanente, o eterno. O contingente passaria a ser considerado e não mais se sustentaria um fundamento último.

[...] se pode aceitar a tese de que o hum anism o está em crise porque Deus está morto [...] (Vattimo, 2007, p. 18) Por isso, a morte de Deus - momento culminante e, ao mesmo tempo, final da metafísica - tam bém é, inseparavelmente, a crise do humanismo. Em outras palavras ainda: o homem só mantém a posição de “centro” da realidade, a que alude a concepção corrente do humanismo, por força de uma referência a um Grund que lhe garante esse papel [...] O sujeito só afirma sua centralidade na história do pensam ento mascarando-se nos semblantes “im aginários” do fundamento. (Vattimo, 2007, p. 19)


A necessidade que havia de se chegar ao fundamento, a algo que desse garantia ou certeza de todo o desenvolvimento do pensamento, perde força e a noção de superação crítica, que assola a modernidade, é vista como algo inútil. Assim, Vattimo identifica que, com Nietzsche, chega-se, através de tentativas anteriores, ao descrédito da verdade como ponto fixo e, consequentemente, o fundamento perde seu status-quo, ficando a noção de sujeito comprometida.

Deus morre precisamente na medida em que o saber não precisa mais chegar às causas últimas, o homem não precisa mais crer-se uma alma imortal, etc. Mesmo se Deus morre por que deve ser negado em nome do mesmo imperativo de verdade que sempre nos foi apresentado como uma lei sua, com ele tam bém perde sentido o imperativo de verdade. (Vattimo, 2007, p. 9)

Com Nietzsche, em sua crítica a Metafísica e, consequentemente, a queda de toda grande certeza, a noção de sujeito desfaz-se. Nesse sentido, o que Vattimo relata como “a crise do hum anismo” é o acontecimento em que o sujeito da consciência apoiado na metafísica perde sua credibilidade e semântica. (Vattimo, 2007) Onate (2000) aponta o caminho que Nietzsche percorre para explicitar a genealogia da noção de Sujeito, que remonta ã genealogia da moral e sua equiparação com a vontade de verdade. Segue-se que a moral é “conjunto de valorações que determina vasta categoria de homens, levando-os a negar, caluniar, evenenar a vida” (Onate, 2000, p. 62). A moral, para Nietzsche, é ferramenta de dominação. Povos mais fracos, que não suportariam a contingência da vida e a falta de sentido que lhe é inerente, criaram ideais eternos e transcendentes visando extirpar a angustia provocada pelo advento do devir. Seria a tentativa de tornar a vida possível em um além-mundo, já que nesse não é possível.


A espécie ressentida de homens, historicamente a esmagadora maioria, necessitava acreditar num ser idêntico, unitário, capaz de refletir e escolher, pois só assim seu sofrimento, seu padecer perante a existência, transmutar-se-ia em fardo livremente aceito, cujo mérito seria recompensado no hipotético “mundo verdadeiro”. (Onate, 2000, p. 67)

Colocando conseqüências como fundamentos, inverteram a criatura e o criador. Aquilo que o homem decadente criou como eterno e imutável para que suprisse sua angustia num mundo de mudanças é colocado como causa de si ao invés de ocupar o lugar que realmente lhe cabia: o de invenção. O homem cria Deus, fórmula dos valores supremos, para depois deslocar-se como criatura do mesmo, subordinando-se aos valores que ele mesmo criou. (Nietzsche, 2006) Tem-se então o mundo verdadeiro, contrário ao real, e que possibilitaria uma segurança frente ao vir-a-ser da vida, a inconstância, que traz tanto prejuízo a quem não tem força para suportar as adversidades. Daí surge a concepção da vida que decai, em Nietzsche. Décadence.

É nesse campo de pusilanimidade, de décadence que frutificou(a) 0 anseio obstinado pela verdade, com seu corolário de noções

estabilizadoras, funcionando não apenas como alento para suportar a existência, mas em especial enquanto instrumento de transmutação, de usurpação obliqua das prerrogativas potenciais inerentes ao forte. (Onate, 2 0 0 0 ,7 5 )

Nesse sentido, Onate observa que, para Nietzsche, o sujeito é um apelo ã identificação desses valores criados com o objetivo de suportar a vida, que para esse tipo de homem, o decadente, é um tormento e merece medicação e alívio. Seria, o eu, somente uma faceta, o resultado de impulsos vitais que orientam o agir, o pensamento, o querer. O sujeito não é mais pensado como fator primário de onde deriva toda a realidade, mas é encarado como “uma pequena razão, instrumento e joguete da ‘grande razão’, das


funções orgânicas que permitem ao homem viver, expandir-se” (Onate, 2000, p. 71) Se por uma via, Nietzsche pretende fazer esse trabalho usando a razão contra si mesma, Freud o faz, talvez sem se dar conta, por um método descritivo, através seu empirismo excepcional. O fundador da psicanálise admite não ser muito afim de filosofia, tendo relatado sua dificuldade de entendimento da área, mas tendo lido algumas considerações importantes oriundas de Schoppenhauer e do próprio Nietzsche, e salientando a similaridade de algumas concepções com os mesmos. Freud afirma que:

Em anos posteriores, neguei a mim mesmo o enorme prazer da leitura das obras de Nietzsche, com o propósito deliberado de não prejudicar, com qualquer espécie de idéias antecipatórias, a elaboração das impressões recebidas na psicanálise. Tive, portanto, de me preparar e com satisfação - para renunciar a qualquer pretensão de prioridade nos muitos casos em que a investigação psicanalítica laboriosa pode apenas confirmar as verdades que o filósofo [Nietzsche] reconheceu por intuição. (Freud, 1996, p. 26)

Apesar disso, não lhe restou prejuízos. Foi capaz de realizar um trabalho que ele mesmo descreve como: observações clínicas que comprovam as elocubrações do filósofo de Sils-Maria. Se Nietzsche já buscava a destruição da razão e da consciência, a golpe de martelos, uma razão que buscava caçar-se a si mesma e o fazer ver da irracionalidade, Freud começa esse trabalho com seus Estudos sobre a Histeria. Extemporâneo, Freud (1996) vê-se escrevendo teses que desafiam a ortodoxia da medicina de seu tempo. A histeria, em sua época, por muitos era considerada loucura, fingimento. Inicialmente, o neurologista busca métodos heterodoxos que possibilitem uma abertura e avanço em sua pesquisa. Freud e Breuer, então, iniciam suas considerações acerca da Histeria utilizando-se da hipnose. Começam ambos a perceber, mesmo que de forma rudimentar, uma faceta que não era atribuída ao Homem, algo fora da consciência, distante da racionalidade.


Nesse direcionamento, Freud também vai de encontro àquela concepção de Sujeito moderno, não de forma incisiva, mas decisiva para o enfraquecimento de determinada compreensão. Não é de forma incisiva, pois ele não faz críticas ao modelo da modernidade, mas seus trabalhos caminham no sentido de oferecer dados e interpretações que contestam essa certeza fundada por Descartes e esse Sujeito que conhece e é fundamento. Mesmo que ainda, para Freud, o termo “ Sujeito” permaneça, é um sujeito que foi subvertido. Não é mais aquele univoco, mas dividido. Existe um hiato entre o que pensa e o que é pensado: o Inconsciente. O ea já não é mais uma substância simples, tão pouco de importância central.

O inconsciente, primeiro, se manifesta para nós como algo que fica em espera na área, eu diria algo de não-nascido. Que o recalque derrame ali alguma coisa, isto não é de se estranhar. É a relação da fazedora de anjos com os limbos. (Lacan, 2008, p. 30)

Lacan esforça-se por resgatar a radicalidade da criação do Inconsciente freudiano, pois aponta que, ao longo do tempo, como Freud previu na História do movimento Psicanalítico, o que foi formulado se perdeu pelo impacto que causara, que era a cisão fundante: a experiência da falta. Pois, nesse sentido, o inconsciente teria sido arrumado de forma a voltar ã forma anterior, meramente descritiva ou ortopédica, e não como uma fenda.

A bem dizer, essa dimensão do inconsciente, que eu evoco, estava esquecida [...] O inconsciente se havia refechado sobre sua mensagem graças aos cuidados desses ativos ortopedeutas em que se tornaram os analistas da segunda e terceira geração, que se dedicam, no que psicologizando a teoria psicanalítica, a suturar essa hiância. (Lacan, 2 0 0 8 ,p. 31)


A ênfase é dada justam ente em relação ao que Freud já havia escrito sobre o Inconsciente nos artigos sobre a metapsicologia, e também nos ensaios sobre o Das ich und das es, em relação aos vários conceitos sobre o tema. Várias definições que eram tomadas em um sentido descritivo: o inconsciente como aquilo que é não-consciente. Todavia, o esforço de Freud (1996) em delimitar tal campo nada tem a ver com 0 sentido descritivo, mas com o dinâmico, mas não é suficiente que se faça essa mera

diferenciação. Nesse sentido, deve-se especificar do que se trata então a criação de Freud e suas conseqüências. O Inconsciente como algo não realizado. Em outras definições o inconsciente está condicionado a consciência, algo que depende dela para se ter acesso. Em se tratando de uma psicanálise, o Inconsciente, nada tem a ver com isso. É uma situação prévia, anterior ã consciência e que a determina. Seus rastros são suas manifestações, e é percebido como algo que “m anca”, algo que não se realiza, diferençando assim do esforço de situá-lo como algo ligado a consciência. É um falta a ser na literalidade do discurso, uma tentativa de fazer acontecer algo e, por algum motivo, isso falha. (Lacan, 2008) É isso que abre a fenda no que se denominou outrora de Sujeito. A constatação de que algo “falha” é, portanto, a observação de Outra coisa que ultrapassa o que era univoco. A cisão, o “buraco”, que é essa possibilidade do Inconsciente dá brecha para que seja apontado que o eu, essa substância simples e independente, talvez não seja tão independente assim, mas seja constituída por um Outro que furará a certeza de que os pensamentos são sinais da existência autônoma e mais: que o existir não está condicionado ao pensamento consciente. Parte-se dos sinais observados que eram explicados como erro e que a partir de Freud são considerados testemunho do Inconsciente, subvertendo assim a noção dos sintomas como algo meramente patológico, mas dando um status de algo que quer dizer alguma coisa.

No sonho, no ato falho, no chiste - o que é que chama atenção primeiro? É o modo de tropeço pelo qual eles aparecem. Tropeço, desfalecimento, rachadura, Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenôm enos, e é neles que vai procurar o inconsciente. (Lacan, 2008, p. 30)


É nesse sentido que Lacan aponta a diferença entre Descartes e Freud, apesar de argum entar que o método de Freud tenha sido cartesiano. A cisão está justam ente na quebra da ligação entre pensar q existir. Cria-se um espaço na proposição de Descartes, e agora é possível não mais reduzir a existência ao pensamento, mas considerar o pensamento como algo, não totalizante, que pertence ao existir; não é mais privilegiado.

Descartesnosdiz-Estouseguro,porqueduvido, de que penso, e -d iria eu, para me manter numa fórmula não mais prudente que a sua, mas que nos evita debater o eu penso - Por pensar, eu sou. [...] Em suma, Freud está seguro de que esse pensamento está lá, completamente sozinho de todo o seu eu sou, se assim podemos dizer, - a menos que, este é 0 salto, alguém pense em seu lugar. (Lacan, 2008, p. 42)

Vemos similaridades no cerne da questão, em Nietzsche e Freud. Se por um lado são infecundas as teses no plano da filosofia: a Certeza, o Sujeito, a Unidade; por outro lado são infecundas as mesmas teses na observação empírica de Freud. Em Nietzsche, como vimos, a verdade como local fixo perde o sentido. Não é mais possível pensar em algo imutável, eterno, unívoco. Dessa forma, podemos também identificar em Freud o enfraquecimento da certeza, que era relacionada à verdade, pela descoberta do Inconsciente, tal como foram apresentadas as ponderações de Lacan, como algo que possibilitaria um furo no sentido de abrir uma possibilidade que torna a certeza uma afirmação débil. O trabalho de ambos os autores marcaram o surgimento de uma época, a PósModernidade. Pode-se afirmar que se possibilitou um novo modo de pensar, totalmente em contraposição ao que vinha se desenvolvendo até ã época.


Referências Bibliográficas

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Martins Fontes: São Paulo, 2005. FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1974. LACAN, Jacques. 0 Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos: ou Como se filosofa com o martelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. VATTIMO, Gianni. 0 fim da modernidade: Niilismo e hermenêutica na cultura pósmoderna. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ONATE, Alberto Marcos. 0 crepúsculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao filosofar sem metafísica. São Paulo: Discurso Editorial, 2000.


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0 RISO ÉTICO:

"OPÇÕES" DELEUZIANAS PELA ALEGRIA

DANIEL SANTOS DA SILVA

inda não tão longe do início do século passado, M aurice M erleau-Ponty

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percebeu a necessidade que se im punha de trazer à tona a questão de qual seria o objeto por excelência da filosofia no século XX, o que destaca

uma fina percepção de que os elem entos constitutivos dos questionam entos filosóficos tam bém ganham sua expressão a p artir da com preensão de um devir do pensam ento, ou melhor, em outras palavras, de que a filosofia apenas faz sentido - pelo m enos concreto - se suas questões e possíveis resoluções não se furtarem a entender, na medida do possível, o entranham ento do homem e de seu pensam ento com aquilo que o cerca, que o afeta, com aquilo sem o qual nada se pode afirmar, nem a existência própria. Sem dúvida a resposta de M erleau-Ponty colhe suas determ inações no plano da im anência, e, assim , tudo aquilo que se relaciona com a afetividade e com 0 que dela decorre em suas com plexidades específicas - na arte, na política, e, por que não, no registro tam bém da ontologia - tem em conta esse plano, que se dá, sob alguns aspectos, na forma da expressão, que, apesar de seus aspectos especialm ente m erleaupontyanos, recorre ã im anência em seu sentido mais antigo e já poderoso... sentido buscado e trazido ao século XX por m ais um autor francês, que não por acaso se utiliza do conceito de expressão para m ostrar a força que a im anência possui no discurso filosófico de alguns autores - desde sua forma “em brionária” em Plotino até sua elevação máxima em Espinosa, passando por Leibniz - e na constituição de seus pensam entos mais relevantes.


Em 1968 é publicado o livro Spinoza et le probème de la expression (um livro que se tornaria clássico nos comentários a Espinosa, e Martial Guéroult faz o mesmo de seu lado, publicando o primeiro volume de seu Spinoza, o que mostra, a nós pelo menos, que a filosofia moldada na imanência era uma fonte para o pensar numa época que imediatamente nos lembra uma peculiar agitação política), depois do qual vários comentários sobre o século XVII e Espinosa tiveram de ser revistos, e, mais profundamente, a partir do qual a maneira própria de se pensar e se fazer a política no século XX foi retomada e criticada. ^ A pergunta que nos traz a Deleuze e a suas notáveis interpretações da filosofia do século XVII - e de outros autores, como Nietzsche, que aqui nos será bem caro diz respeito á tentativa de compreender, em linhas gerais, o que ele vê nesses autores num século (XX) em que a urgência política cada vez mais enterrava o pensamento - e principalmente o pensamento político - na burocracia e na tentativa de respostas práticas e rápidas (consequentemente ralas e enganadoras no que respeitaàcompreensão das relações), que por essas qualidades mesmas falseiam conceitos basilares como o de liberdade, indivíduo e afetividade. Não poderia ser de outra forma: o que Deleuze busca e encontra de maneira genial nesses autores é a “resposta” que também buscava Merleu-Ponty, em sua forma própria, qual seja, aquilo que deve dirigir o pensamento filosófico em suas pretensões práticas, na tentativa de intervir no mundo de forma profundamente política, o que implica uma compreensão profunda do que é política. Porém não é o livro de 1968 o que nos traz - diretamente, pois não se pode escapar a ele - a este texto aqui delineado, sim seus cursos dados em Vincennes e algo lá colocado (por ser dado de forma mais direta, remetemo-nos a ele): a distinção entre um desenvolvimento jurídico-político de uma visão moral de mundo (CíceroSão Tomás) e o desenvolvimento, por sua vez a partir de Hobbes, de uma visão jurídico-política da ética, na qual os seres são definidos por sua potência própria. Ao compartilhar desta concepção, ao mesmo tempo em que esvazia os conceitos daquela, mostrando suas contradições inerentes, Espinosa dá corda a um movimento imanente das determinações jurídicas e políticas que, de sua parte, encontra na ontologia - e a seguir veremos resumidamente como - o alicerce a partir do qual vão se definir os arranjos afetivos que constituem suas instituições. É na profundidade desses arranjos que encontraremos os elementos que distinguem “uma visão moral de m undo” (que


em suas facetas contemporâneas muitas vezes busca evitar a alcunha de moral) de uma compreensão ética das relações afetivo-políticas. Em um aspecto se poderia objetar que moral e ética são a mesma coisa, ou se referem da mesma forma a uma projeção social (coletiva, pelo menos) no indivíduo em suas determinações do agir; contudo, já se partiria, nessa formulação, da suposição de que há uma, e apenas uma, maneira de se conceber o indivíduo, remetendo-o a uma essência estática, além de confiná-lo numa imobilidade contraditória às sempre dinâmicas relações sociais, configuração na qual a ordem a ser inteligida poderia ser aplicada a qualquer sociedade (a qualquer indivíduo, enfim) em qualquer momento histórico. A ética de que fala Deleuze implica a compreensão dos mecanismos que levam ã perseguição de uma essência moral e igualmente sua imposição na forma de um dever-ser (a genética desses mecanismos, embora perpasse toda a obra de Espinosa e Nietzsche, tem, a nosso ver, no Apêndice da parte I da Ética e no Wvro Aurora suas explicitações mais aproximadas, de tal forma que percebemos uma dinâmica dos afetos bem semelhante, com relevo para as paixões da tristeza e do medo - o medo sendo ele mesmo uma modificação da tristeza); e envolve, com isso, a compreensão de que as determinações do agir de cada um se dão pela potência ou força que define e distingue cada um, a própria essência apenas fazendo sentido se pensada como potência ou força, intensidade. Pela potência e pela força é que se faz, para Deleuze, com Espinosa e com Nietzsche (nas aulas aqui referidas Deleuze ressalta a faceta nietzscheana dessa concepção), a distinção entre os seres, em outras palavras: o próprio modo de distinguir será deslocado, a maneira pela qual se classificam os homens pelo seu modo de agir será a partir de então, junto a tal concepção, elaborada a partir de outros critérios. Assim, Deleuze aponta para o fato de que a ética não trabalha com os conceitos de bem e mal, bom e mau ^(“o homem mau e o homem de bem são o homem restituído aos valores em função de sua essência”), mas pela tonalidade com a qual a potência de cada um se expressa em sua vida, em sua prática. Essa fórmula é o que mais atrai Deleuze nesses dois autores, a necessidade prática e, de certa forma, a prática da necessidade. É por critérios outros, pois, que os do “essencialismo moral”, que se pode, então, dar sentido às diferentes maneiras de ser no mundo, e é com esses critérios outros que


se nos transparecem as diferenciações entre o servo e o homem livre, entre o escravo e o homem forte/ Essa démarche entre os tipos de existência - pois antes de tudo o que é analisado sãoosm odosde seexistir, amaneira pela qual sevive-proporcionaaD eleuze,m aisdoque a aproximação entre Espinosa e Nietzsche, enxergar quais os tipos mais determinados do homem impotente e escravo... e a sutileza política dos dois filósofos não passa à margem da análise do autor francês, pelo contrário, nada disso faria sentido, afirma Deleuze, se não chegássemos inevitavelmente ao ponto de perceber que as conclusões a que chegam essas filosofias são relevantes justam ente por se abrirem ã força dos afetos na determinação prática do agir entre homens; aqui, o escravo não é um ser social que não tem a posse (material?) de si mesmo, o impotente não é aquele que definha em função de doenças e carências econômicas, o fraco não se define pela quantidade de peso que consegue carregar: tanto que, ao lado desses escravos, impotentes e fracos, levando em conta a apreciação feita por olhos éticos, estão o tirano e o sacerdote. De fato, como não estariam presentes aqui esses dois tipos? Mais ainda, quem melhor do que eles, dada a perspectiva que Deleuze apresenta, para figurarem deste lado da força (o lado da impotência)? Porém a clareza dessas colocações vai depender de um esclarecimento da dinâmica afetiva que envolve tais potências, o que será aprofundado adiante. As potências afetivas que perpassam, mesmo que às vezes como um ruído de fundo apenas, as configurações favoráveis ao sacerdote e ao tirano são sempre negadoras da vida, na medida em que vão contra as potências geradoras de ações individuais e coletivas livres - a trama que prende e limita os afetos dos homens a tipos básicos de manifestações individuais e coletivas é sintomática: não se complexifica a rede de encontros e afetos, o que se faz é se dificultar o acesso de cada um ao “fundo” das relações e de si próprio por meio da interposição de uma tristeza e de um medo crônicos^ A vis humana definha com tais afetos, o que se gera é literalmente um círculo vicioso, 0 vício oposto da virtude, oposto da alegria, oposto do riso alto e contagiante provindo da apreciação ética das coisas; o que se gera, diz Deleuze, é um mau riso, um riso depreciativo, porém necessário para a sobrevivência dos impotentes, um riso que entristece, e é a tristeza o suporte de tais sobrevivências, a tristeza e o medo.


Em que medida os tipos tristes têm consciência do quanto precisam da tristeza? Ao que parece, se olhamos para a vida, percebemos que há níveis e níveis de consciência em relação a isso, há os que deliberadamente cultivam a morte em vida, há os que sem relutância a acatam, mas não é isso o que importa de fato, pois não se trata de nomear um culpado e eliminá-lo como em um processo pretensamente revolucionário; tratase sempre mais de compreender tais dinâmicas e combater pela vida com armas que sejam eficientes; de certa maneira, algo bem próximo ao que Espinosa já alertava: apenas um afeto pode vencer outro - o compreender por si é insuficiente -, e contra a tristeza que afunda nossa potência somente afetos alegres e fortes podem ter algum efeito. Igualmente Nietzsche, ressalta Deleuze, viu na “má consciência” dos sacerdotes a fundação de uma cultura da tristeza, única via para a obtenção e manutenção do poder sobre os outros. Combate-se, então, um riso com outro, contrapõe-se ao riso sarcástico dos tipos fracos o riso alegre dos tipos livres; na profundidade desse embate já existe a luta política, a ponto de Espinosa o colocar em primeiro plano quando elabora o Tratado político: contra o riso da sátira, que julga a natureza humana (antes de julgá-la mal, julga), 0 riso provocado pela compreensão, pela alegria que contempla a força própria, que da vida apenas quer o mais e o melhor, o que justam ente Deleuze chamou de o riso ético. Seja para Espinosa, seja para Nietzsche, o que Deleuze assim denominou de riso ético exige atenção e em certos casos até a superação de alguns aparentes paradoxos. Vejamos. Como Deleuze coloca em Espinosa, filosofia prática, o autor holandês denuncia, com sua filosofia, tudo aquilo que separa o homem da vida, ou seja, de sua potência própria, o que significa denunciar aquilo que atenta contra a natureza do indivíduo e sua tendência a perseverar na existência. Diante da “condição hum ana” podem surgir os que assumem a lamentação e o ódio, e Espinosa em algumas ocasiões fez questão de m arcar o quanto podem ser perigosos ã liberdade tais tipos, que não veem senão nas paixões tristes modos de exercer algum tipo de poder, o qual não poderia ser outra coisa senão um exercício de violência, na medida em que impede que o homem efetive de forma mais perfeita sua potência própria. Contudo, em certo momento, Espinosa fala daqueles que riem dessa “condição hum ana”, e podemos então nos perguntar como esse riso pode ser identificado ou aproximado a uma paixão triste, em outras palavras,


como pode o riso não provir da alegria; este é o riso da sátira, que carrega por trás de si uma ignorância notável das coisas e do homem como realmente são e ao mesmo tempo sustentam um ideal de homem e de natureza - ideal que, já Espinosa mostra, não é inocente, e que Nietzsche minuciosamente destrincha mostrando o quanto de má consciência (sentimentos reativos) e vontade de potência aí se envolvem. Por trás, pois, do riso zombador do tipo escravo, está um desejo infinito de dominação do outro (por que a crítica da utopia e da sátira abrem o Tratado Político?) e da expansão máxima da tristeza... porém os mecanismos de dominação política possuem uma complexidade tal que a alegria mesma pode ser a palavra de ordem - nas ditas democracias liberais e mesmo em outros regimes autoritários o povo deve se sentir alegre em sua condição e na condição de seus próximos, sem o que não se pode ter a conformação necessária para o estado tirânico de coisas, e, além disso, é de suma importância não apenas a conformação, mas igualmente o desejo por essa servidão, a luta das pessoas pela servidão. Quando “voltamos” ã ontologia de Espinosa, vemos que os modos da substância absolutamente infinita decorrem da essência dela como um efeito decorre de uma causa, só que a causalidade aí trabalhada e que perpassa a obra é a imanente, na qual não há uma separação ontológica entre a potência infinita da substância e as finitas potências que constituem seus modos, sendo estas uma parte daquela, uma expressão dela. A necessidade absoluta de todas as coisas já se “inicia” nesse momento, uma necessidade que, do ponto de vista da coisa finita, implica uma afirmação intrínseca do modo de ser individual simultaneamente ã impossibilidade de uma perseverança imune às ações das coisas exteriores: o modo finito da substância afirma sua própria potência, mas não 0 pode fazer sem instituir relações com aquilo que o cerca, relações que podem ser tanto

prejudiciais como úteis, porém que são perpassadas pela necessidade da Natureza. Recorremos a esse ponto não apenas porque seu desenvolvimento está bem explicitado na primeira parte da Ética (De Deo), mas porque a necessidade afirmativa do ser é aí desenvolvida, e é ela quem pode nos fornecer num primeiro momento a necessidade da natureza da substância como um suporte de crítica ao riso satírico - justam ente porque quem o produz trabalha com uma natureza humana e uma Natureza que não correspondem a nada de existente, senão a um dever-ser bem distante do ser.


A alegria é uma necessidade (o sentido mais comum dessa proposição, que corre pelas bocas, embora possa desfazer o sentido mais forte da necessidade, ainda parece guardar, mesmo que bem implicitamente, algo dessa necessidade ontológica), e 0 riso que expressa a fortaleza de um homem segue dessa necessidade, enquanto o riso da sátira a desconhece ou busca invalidá-la de todas as formas. Nesse sentido, a prática do riso ético é a prática da necessidade da potência humana (que decorre da necessidade da potência da substância). O riso da sátira não apenas camufla essa necessidade - introduzindo finalidades e mistérios, como a inverte. E, ainda assim, podemos identificar a necessidade que perpassa o fazer do sátiro (escravo-tiranosacerdote), porque da mesma forma que os afetos alegres seguem necessariamente uns dos outros, os tristes seguem necessariamente uns dos outros. Outra determinação de extrema importância no que diz respeito à dedução dos modos finitos a partir da natureza absolutamente infinita da substância é a da realidade desse modo finito e seu estatuto de coisa singular, pois estamos já diante de algo que, colocado á frente (EIII) como um conceito fundante, o conatus, demonstra a irredutibilidade de qualquer essência a gêneros e universais, ou mais apropriadamente, demonstra como necessariamente a essência de toda coisa é uma essência singular e se identifica com a potência de cada modo de ser. Deleuze chama essa potência singular de parte intensiva ou grau de intensidade ^ (Espinosa, filosofia prática, p. 104). O conatus é a essência atual de uma coisa existente em ato, sua potência de perseverança no existir, é a determinação afirmativa de todo ser singular, de todo indivíduo. Em seguida a isso, Deleuze subsume a essa primeira determinação uma segunda, imprescindível do ponto de vista afetivo: a tendência de se buscar ao máximo aquilo que aumenta a capacidade de ser afetado do modo, ampliando, assim, sua potência de agir do corpo e de conhecer da mente; o corpo, e isso cada afeto expressa de uma maneira singular, deseja aquilo que aumenta sua potência de agir, e a tristeza é um distanciamento dessa tendência, uma espécie de fracasso dessa tendência, que, contudo, se permanece em sua constituição formal (proporção específica entre os movimentos dos corpos componentes e constituintes do indivíduo, objeto da “pequena física” da Eli), se esforça para retomar 0 movimento de ampliação da potência.


É certo que, para Espinosa - e Deleuze bem o sabe, pois ao separar essas duas determinações não faz mais do que ressaltar a necessidade afirmativa da essência do modo enquanto potência (grau de intensidade) -, o desejo não passa de uma etapa a outra em sua afirmação na existência, antes o movimento mesmo de perseverar é um movimento de aum entar a potência própria,^ o que pode ser impedido de inúmeras formas pelos afetos fortuitos que determinam o corpo. Por outro lado, a mente deseja aquilo que aumenta a sua capacidade de compreensão, e se esforça, seja por qual gênero de conhecimento for, de conceber tudo aquilo que a aproxima de sua potência, e se alegra quando isso ocorre... esse “duplo” movimento do indivíduo (corpo e mente) é uma das principais armações que sustentam o paralelismo que Deleuze atribui a Espinosa ^ e, sem entrar no mérito da validade dessa conceitualização, está implicada em todo esse movimento a necessidade que tem o indivíduo de aum entar sua potência. É a partir dessa necessidade que o homem organiza seu meio; é por essa necessidade que existe a política; é por essa necessidade que somos afetados de amor, é por ela que podemos ser virtuosos; e é também por ela (e não temos certeza de quanto pode parecer paradoxal) que o homem se torna escravo dos afetos, pelo e com o que se torna escravo de outros homens e de imagens teológico-políticas, chegando a denominar democracia 0 que mais se aparenta a uma aristocracia ou oligarquia.

A alegria não é o fim já que é afirmação da tendência mesma. Não se pressupõe, aqui, um abrandamento primeiro das paixões para que em seguida se possam compreender profundamente as relações entre as coisas: ao contrário, no turbilhão mesmo de suas paixões o homem afirma sua potência de conhecimento e, consequentemente, de ação. Como dito de passagem mais acima, a compreensão mesma da necessidade de alguma coisa não é fator suficiente na supressão de uma paixão triste - 0 conhecimento há de ser um afeto para que produza efeitos na ação humana, ou melhor, para que haja ação humana propriamente dita. Esse aspecto presente na teoria dos afetos de Espinosa, nota Deleuze, é um dos elos mais fortes que esta filosofia possui com a de Nietzsche, aspecto salientado pelo próprio alemão em sua famosa carta de 1881 a Overbeck. Em Espinosa, reconhece Nietzsche, o conhecimento assume 0 lugar de o mais potente dos afetos - longe, pois, de uma neutralidade “passiva” do

conhecimento, este já teria ou seria uma tendência (ativa, essa tendência apenas existe como atividade), uma vontade de domínio, não sobre o outro, mas sobre si. ®Domínio


que exige, para o filósofo alemão, a capacidade de rir de si mesmo, como os deuses eles mesmos se riem, em seus lugares, da correnteza humana que se move às vezes sobre o leito de paixões contrárias, que disputam entre si a hegemonia da atividade no indivíduo. Diante de um movimento tão forte de afirmação e de alegria, como entender 0 poder de expansão tão grande das paixões tristes?

Mais uma vez, cremos que vale retomar aqui mais explicitamente este tópico; 0 conhecimento não limpa o terreno para a ascensão da virtude, já que ela se dá no

exercício mesmo dos afetos alegres e na afirmação destes contra os afetos tristes. Um conflito, sim, que não põe frente a frente somente o indivíduo e o infinito das forças que 0 cercam e que um dia acabarão por matá-lo, mas, “dentro” dele, entre determinações

contrárias que, cada uma a seu modo, se esforçam para vir á tona na ação. Em última instância, a alegria, afeto forte e de afirmação da existência individual, luta a cada instante para prevalecer, e isso por uma necessidade, não por uma escolha, não por uma disposição das coisas pensada para nós, nem por uma finalidade. Se a alegria não é uma força (mesmo paixão para Espinosa - um afeto que não se explica apenas pela natureza do indivíduo -, a alegria é um aumento de potência, de força) “ que se afirma apesar de todo conflito, a compreensão das coisas é um tanque vazio; mais, nem pode ser dito que existe, nesse caso, uma verdadeira compreensão das coisas como são, sim um acatamento de algumas proposições enquanto verdades. Mistérios e finalidades vêm preencher, então, a ausência da criação própria, da compreensão singular e do singular, vêm dar aparência de sabedoria àquilo que é ignorância. “ Vêm prender, como um peso a um papel, o indivíduo à servidão. Sem precisar desses “motivos”, o riso ético de que nos fala Deleuze é insensato, afrontador para aqueles que colhem seus risos somente das pupilas alheias e com permissão daqueles em quem já pesa o fardo do saber, ou melhor, o saber como fardo, os mesmos que clamam pelo testemunho da experiência: como rir da falta de finalidade das coisas, se a experiência já provou que o homem é incapaz de se prover sozinho? Como rir da horizontalidade de todas as coisas, se a experiência prova que o homem deve estar sempre acima da natureza? Como rir de todas as confusões presentes na mente, se a experiência prova que apenas a tranqüilidade da alma pode propiciar o conhecimento da verdade última das coisas? Rir porque a alegria é o móbil por excelência da filosofia, diz Deleuze.

A tranqüilidade da alma, muitas vezes exigida como condição sine qua


non para o conhecimento e para alegria dele advinda, compõe não menos um modo de se fazer filosofia, uma filosofia do dever-ser, normativa, moralmente exigente (uma filosofia que cria e exige a criação continuada de um homem capaz de fazer promessas e que concebe punições a quem não o consegue).

E é justam ente contra essa espécie

de filosofia que se põem o pensamento de Espinosa e o de Nietzsche enquanto pensamentos que valorizam os sentimentos alegres. E a experiência, antes evocada por aqueles difusores das paixões tristes, agora ganha um novo sentido, e se torna a principal fomentadora das paixões alegres. A experiência dos caluniadores da alegria (Aurora, 329) é a experiência da mágoa, mágoa pela vida, mágoa que se pretende racional: “Pessoas profundamente magoadas pela vida suspeitam de toda alegria, como se esta fosse sempre ingênua e pueril e demonstrasse irracionalidade, em vista da qual poderíamos sentir apenas comiseração e enternecimento...”. Tal tipo de apego ao que é “sério” e “triste” reflete uma impregnação de quem não esquece - o esquecimento ativo é a principal arma do insensato-alegre-dionisio, a qual, de fato, não é “racional”, pois não está na superfície, sim é usada desde as profundezas dos instintos mais afirmativos e dinâmicos. Avida pede 0 esquecimento, que é experiência: experiência da criação, da valoração individual, que

deixa para trás como sem valor (ou como algo perigoso) os valores já criados e aceitos por outros para os outros. O caráter ativo do esquecimento, visto por esse ângulo, é árduo (para jogar um pouco, “tão difícil quanto raro”) porque vai contra a tendência da civilização de gravar no homem tudo o que for necessário para sua sempiterna domesticação, é preciso que o homem possa fazer promessas, e não há outra forma mais forte de marcar na consciência os deveres “superiores” senão através da dor, da mutilação física e psíquica,

o que nos faz perceber que a manutenção da memória

(memória moral, digamos assim), mesmo que hoje não se utilize tão frequentemente da tortura, se utiliza do medo, o medo apenas se espalhando mais e mais - paradoxo, na medida em que o ofício por excelência do Estado e de forma mais geral da sociedade é 0 de minimizar o medo, otimizar a paz e a segurança, deixar o terreno livre para o exercício das potência individuais. Sabemos que Nietzsche não interpreta assim a formação do corpo político, ou pelo menos não somente assim, e que de fato não há paradoxos presentes aqui; a própria noção de experiência foi de tal forma moldada pela assembleia moral dos fracos que o


que se diz da vida, por aqueles ditos homens experientes, expressa exatamente uma carga de anos e anos de lembrança dos “erros”, das “dificuldades”, das “obrigações” e da cadeia de negações que, para esse tipo, define a vida como ela de fato é - como se ela fosse já algo, a vida julgada, a vida pesada na cabeça dos fracos. A partir dessa perspectiva, o que sai das bocas como o mais alto dos conhecimentos é: a experiência nos ensina a temer a vida, em muitos casos a negá-la, no mínimo a experiência nos ensina que não devemos rir com ela e dela. Nietzsche - e, como pudemos notar por cima, Espinosa - entranha os três conceitos (vida, experiência e conhecimento) numa mesma afirmação (como Espinosa entranha todas as formas de conhecer, imaginação, razão e intuição, na mesma afirmação vital que é o conatus - o que não serve para comparar os dois autores, mas, como o faz Deleuze, mostrar que ambos lutam com unhas e dentes contra qualquer forma de negação da vida),

afirmação no/do devir

na/e da multiplicidade. Para aquém do que pode ser compreendido pelos conceitos nietzscheanos de vida, experiência e conhecimento - as perspectivas afloram de forma diferente em cada obra, em cada momento, podendo às vezes parecer contraditórias -, nos dirigimos agora a uma seção dcAgaia ciência que envolve os três conceitos em um pensamento liberador: “Não, a vida não me desiludiu! A cada ano que passa eu a sinto mais verdadeira, mais desejável e misteriosa - desde aquele dia em que veio a mim o grande liberador, o pensamento de que a vida poderia ser uma experiência de quem busca conhecer - e não um dever, uma fatalidade, uma trapaça!”

É necessariamente que tal pensamento leva

ao riso, ã alegria,e, por que não, a mais uma compreensão de que a vida não se expressa fora das relações entre diversas forças e de que o conhecimento não se faz prescindindo de riscos e de que os sentimentos de vitória relacionados a ele são constituídos também por esses riscos. Riscos da guerra, pois, “com este princípio no coração (a vida como meio de conhecimento) pode-se não apenas viver valentemente, mas até viver e rir alegremente! E quem saberá rir e viver bem, se não entender primeiramente da guerra e da vitória?” As tipologias retomadas por Deleuze remetem, pois, não a dicotomias estáticas, sim a complexos de força que se relacionam entre si, constituindo a cada momento configurações mais ou menos favoráveis ao agente, mas, seja qual for a configuração, os sentimentos mais alegres se esforçarão constantemente em se impor, em elevar a


potência do agente - em última instância, em elevar a potência de si próprio enquanto impulso

a parte mais profunda da potência de um homem nunca está sozinha, como

0 homem mesmo tomado em suas articulações próprias também nunca está sozinho,

enfim, quem quer que se dirija à compreensão da natureza de uma força ou qualidade de uma potência precisa estar ciente da multiplicidade presente em qualquer configuração específica: o indivíduo mesmo é um complexo de relações, seu agir apenas pode ser qualificado a partir de contextos relacionais, bem longe de uma essência qualificada em si, valorada ou por si ou por algo superior ao homem. Podemos ter uma percepção, depois de assentados alguns pontos fundamentais, de que negar a realidade da essência enquanto denominador comum de existências ou como um ponto fixo a ser atualizado pela existência nos permite não só nos colocar contra o moralismo presente nisso e que traz como marca mais visível a necessidade da ignorância - mais determinadamente, da ignorância do devir e do múltiplo como constituintes do ser e do uno -, como, além disso, sempre abrir um espaço novo para uma nova ação, em outras palavras, ã experimentação de si enquanto agente (social, ético, político, etc.) e enquanto conhecedor. Dessa perspectiva, as forças afirmativas dos seres, do ponto de vista ético, seguem uma lógica outra que a do uso da potência como domínio do outro: essa lógica é a mais triste de que se tem notícia até os dias de hoje, é pesada e obriga verticalmente 0 “agente”, pois longe de estarmos nessa lógica submetidos ã necessidade horizontal

(diria Espinosa, imanente) que regula a infinidade de forças que se relacionam entre si, submetemos tanto o “agente” como o “paciente” a uma obrigação vertical imposta por valores já reconhecidos socialmente, os quais impõem até o que se deve mesmo entender por poder (geralmente as interpretações socialmente impostas tendem a emagrecer a gama de interpretação ou suas possibilidades, apontando não mais do que uma ou duas causas, contemporaneamente, para o poder - um saudosista de outros tempos teria pelo menos isto a seu favor: nunca se empobreceu tanto o que se pode entender por poder, resumido hoje a ter ou não dinheiro). Independente de estar afirmado literalmente ou não em algum texto de Deleuze, vemos claramente o quanto em sua própria filosofia pulula a necessidade da alegria, na medida em que a alegria - e o riso que a acompanha - é uma necessidade ética, ou seja, a alegria expressa a necessidade afirmativa do indivíduo que, mesmo em seu devir, em suas mudanças constituintes afetivas ou biológicas, nunca busca o sentido da vida fora


dela mesma e de si, que imiscui mesmo os dois a ponto de afirmar a vida ser o mesmo que afirmar a si próprio, que compreende - percebe na profundidade de toda contingência - a necessidade expansiva de tudo o que vive, e mesmo a necessidade insensata de tudo 0 que existe. Assim, Deleuze percebeu como poucos a alegria que surge da beatitude, 0 riso que segue a compreensão necessária da necessidade de todas as coisas, ou, com

seus matizes próprios, a alegria e o riso que surgem quando da compreensão da verdade do eterno retorno. Qualquer que seja o caso, Deleuze percebeu como o riso é uma arma tão poderosa que por poucos até hoje foi usada.


Referências bibliográficas

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Endnotes

1A contingência seria esse objeto. Cf. M. Merleau-Ponty, Signes, “L’homme et l’adiversité”. ^ Sobre essa relação com o passado da filosofia, um trecho de O que é a filosofia?, de Deleuze e Guatarri, acentua a tonalidade que nos faz recorrer às conexões aqui apresentadas, por essa razão vamos reproduzilo: “É verdade que camadas muito antigas podem ressurgir, abrir um caminho através das formações que as tinham recoberto e afiorar diretam ente sobre a camada atual, à qual elas comunicam uma nova curvatura. Mais ainda, segundo as regiões consideradas, as superposições não são forçosamente as mesmas e não têm a mesma ordem. O tempo filosófico é assim um grandioso tempo de coexistência, que não exclui o antes e o depois, mas os superpõe numa ordem estratigráfica. É um devir infinito da filosofia, que atravessa sua história mas não se confunde com ela. (...) Afilosofia é devir, não história; ela é coexistência de planos, não sucessão de sistem as.”p. 78. ^ Para o núcleo ético do que se pode entender por bem e mal em Espinosa, o fundamental é a leitura do Apêndice da primeira parte mencionado acima e o prefácio à quarta parte da Ética, após o qual se seguem as definições de bem e de mal. Para o mesmo em Nietzsche, é fundamental a leitura da primeira dissertação da Genealogia da moral, “Bom e mau, bom e ruim ”. p. 99: “Continuemos a ir pela noite, ali, e olhemos, conforme os textos, o que Espinosa chama o escravo ou 0 im potente.... é ali que - e creio não forçar os textos - as semelhanças com Nietzsche são fundamentais, porque Nietzsche não fará outra coisa que distinguir estes dois modos de existência polares e os repartir mais ou menos da mesma m aneira.” Grifos nossos. ^ Em tem pos de “dem ocracia”, sem um objeto específico e evidente que cause tal tristeza e tal medo, essa interposição serve até como m otor político, motivando as pessoas a irem às urnas de tempos em tempos na esperança (outro afeto eminentem ente político) de que agora, sim, alguém tom ará as rédeas e cuidará de nós com a devida atenção Na verdade, se respeitamos a literalidade do texto mencionado de Deleuze, a primeira determinação dessa essência singular ainda não é o conatus: “Q uando o modo passa à existência, é que uma infinidade de partes extensivas são determ inadas do exterior a entrar sob a relação que corresponde à sua essência ou a seu grau de potência. Então, e só então, esta essência é determinada como conatus ou apetite.” p. 104. Todavia a argum entação deleuziana segue do início ao fim identificando essência e potência - e se não 0 fizesse já não se referiria mais a Espinosa -, além do que em nenhum momento se perde o liame íntimo entre ambas as determinações, intimidade própria da imanência. ^ E Deleuze escreve: “E o conatus é o esforço para experimentar a alegria, ampliar a potência de agir, imaginar e encontrar o que é causa de alegria, o que mantém e favorece essa causa; mas é tam bém esforço para exorcizar a tristeza, imaginar e encontrar o que destrói a causa da tristeza.” (Espinosa, filosofia prática, p. 106). * Sobre as críticas ao paralelismo, conferir o livro de Chantal Jaquet , L’unité du corps et de 1’esprit. Affects, actions et passions chez Spinoza. Paris:Quadrige/PUF,2004, além da tese de Ericka Marie


Itokazu, Tempo, duração e eternidade na filosofia de Espinosa, 2008, a publicar e disponível no banco de teses da USR ^ Em outros momentos, Nietzsche parece não mais levar em conta, ou pelo menos não tom ar como prioritário, esse aspecto que pela carta o unia a Espinosa. Isso não pode ser um problema. Vale a pena somente ressaltar que uma das críticas do alemão à filosofia de Espinosa diz respeito justam ente ao estatuto do conatus, preso, conforme sua interpretação, à falácia da mera conservação de si. Aqui já adotam os a posição - que nos parece reconhecida em alguns momentos por Nietzsche - de que o conatus não é apenas força de conservação, mas igualmente de expansão. Quanto a D eleuze: “Não há nenhuma dificuldade na conciliação das diversas definições do conatus: mecânico (conservar, manter, preservar); dinâmico (aumentar, favorecer); aparentem ente dialético (opor-se ao que se opõe, negar o que nega).” Espinosa, filosofia prática, p .107. “ A paixão da alegria é de uma im portância, claro, fundamental para a ética espinosana. Essa importância é acom panhada pela complexidade envolvida na constituição e nas conseqüências desse afeto. Como o que pretendemos aqui é m ostrar como o esforço primordial de afirmação do indivíduo se expressa pelo aum ento de sua potência, as paixões alegres indicam esse esforço - a alegria pode ser causa acidental de uma tristeza e muitas vezes o é, como o indicamos a respeito da necessidade tirânica da alegria. A esse tipo de alegria, aqui, para fins de exposição, tam bém chamamos de paixões tristes. “ A gaia ciência 107: “Ocasionalm ente precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós; precisamos descobrir o herói e tam bém o tolo que há em nossa paixão do conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando, para poder continuar nos alegrando com nossa sabedoria.” Gilles Deleuze, Nietzsche, p.32. Sobre o processo de criação de um animal capaz de fazer promessas, conferir a segunda dissertação da Genealogia da moral. 1"*Para nós uma das análises mais fortes de Nietzsche, Genealogia da moral, segunda dissertação. Até a eternidade é experimentada para Espinosa: “Sentimos e experimentamos que somos eternos”. Mesmo na superfície de um conhecimento imaginativo, a experiência não tem nenhum ponto negativo em si. Na política, experiência e razão agem, senão como um, em uma espécie de tensão, sem a qual se cai na tirania ou na utopia. Anotamos isso para deixar claro que não temos a m enor pretensão aqui de dar conta do conceito de experiência nem em Espinosa nem em Nietzsche, até porque Deleuze também não 0 faz. “ A gaia ciência (324), “In media vita” (No meio da vida). Grifos nossos. " Idem. Grifos do autor.


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POR QUE SOMOS ETERNAMENTE DECADENTES?

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE A INTERPRETAÇÃO DE EVALDO SAMPAIO. FERNANDO R. DE MORAES BARROS - Professor Adjunto de Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Resum o: Trata-se, no breve texto que se segue, de tecer algum as considerações acerca da hipótese de interpretação afirm ada por Evaldo Sampaio, em seu livro Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo N ietzsche. Palavras-chave: N ie tzsc h e - décadence - estru tu ra lism o A bstract: The following short piece aim s at m aking some com m ents on the interpretation given by Evaldo Sampaio in his book Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche. Keywords: N ie tzsc h e - décadence - stru ctu ra lism

N° 6 - 02/2014

-

RESENHA


eferindo-se à “febre” ocasionada pelo seu célebre romance epistolar, Goethe

R

certa vez chegou a dizer: “Quando de seu surgimento na Alemanha, o ‘W erther’ de modo algum suscitara, tal como se lhe acusou, uma doença,

uma febre, senão que apenas despertara o mal que, às escondidas, jazia nos ânimos dos jovens.”^Ainda que nos emocionem, dando ensejo, inclusive, a hostis sentimentos desenfreados, os livros de filosofia raramente se deixam associar à espécie de comoção descrita pelo autor d’Os sofrimentos do jovem Werther. Antes de apelar à emotividade do leitor, o vocabulário crítico e técnico tem de passar pelo crivo da razão, único a

garantir a vigência prévia das significações. Acostumada a interpretar simbolizações e atividades apofânticas de enunciação - consideradas verdadeiras ou falsas, não por aquilo que nos fazem sentir, mas em virtude de descreverem corretamente ou não a estrutura da realidade “em si” -, a maioria dos filósofos tende a conceber a escrita como vetor objetivo de ideias, e não como exercício vivencial de reflexão. Não é isso, porém, o que se acha em jogo nos textos de Nietzsche. Frutos da sublimação artística dos complexos de impulsos que cruzam e constituem o animal-homem, os signos possuem, na escrita nietzschiana, um caráter epifenomênico. Expressão daquilo que se passa no corpo, a eles cabe reenviar o leitor, não a conceitos antecipadamente significados, mas a afetos que se candidatam, por assim dizer, ã esfera do sentido, indicando-nos que, ã significação imposta, subjazem afetos e vontades que a impõe. Daí, a definição teluricamente escalonada feita pelo filósofo alemão: “O que há de mais compreensível na linguagem não é a palavra mesma, mas 0 som, a força, a modulação, o tempo com os quais uma seqüência de palavras é dita - enfim, a música por detrás das palavras, a afetividade por detrás desta música, a pessoa por detrás de tal afetividade: tudo aquilo que, portanto, não pode ser escrito.”^ Da articulação das palavras, passar-se-ia ã esfera afetiva e, desta, para “pessoa” situada como que por detrás de tudo. Sendo que é justam ente aqui que adquire contorno e lastro a pregnante prescrição estilística: “A primeira coisa que se faz necessária é viver: o estilo deve viver.”^ O estilo deve ser vivo porque o pensamento por ele parido continua a viver

' Goethe, Johann Wolfgang v. Werke. H am burgerAusgabein 14Banden. Munique, dtv, 2000, p. 321. ^Nietzsche, F. Fragmento póstum o do verão/outono de 1882, n° 3 [1] 296; in: “Kritische Studienausgabe” (KSA). Ed. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim/Nova York, W alter de Gruyter, 1999, vol. 10, p. 89. ^ Id. Fragmento póstumo de julho/agosto de 1882, n° 1 [45]; in: “Kritische Studienausgabe” (KSA). Ed.


nele, e, na medida em que este último vem envolto por uma multiplicidade de impulsos, vive no estilo também esta multiplicidade e aquela multidão. Nesse sentido, um estilo generoso seria precisamente aquele que, deixando-se permear pelas vivências daquele que dele lança mão, consegue acolher e cultivar em si os mais variados estados internos. E, tratando-se de Nietzsche, isso se mostraria especialmente bem-vindo, haja vista que nele vigora, conforme suas próprias palavras, um número inacreditável de traços e vivências pessoais: “considerando que a multiplicidade de estados interiores é em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo - a mais multifária arte do estilo de que um homem já dispôs.”"^Taticamente ousado e estrategicamente arriscado, 0 livro de Evaldo Sampaio - Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida

segundo Nietzsche - vai, á primeira vista, de encontro a isso tudo. Ousado, porque toma sobre o dorso a tarefa de atrelar o inteiro legado nietzschiano a um problema específico, a “uma questão original da filosofia’V a saber, a pergunta pela “melhor maneira de viver”.® E, ao fazê-lo, termina por localizar as preocupações magnas do filósofo alemão em torno ã ponderação acerca das possíveis formas ascendentes ou declinantes de viver, razão pela qual o conceito de décadence, seminal no assim chamado período de maturidade, converte-se no principal operador teórico do trabalho - atuando como uma espécie de magneto teórico-especulativo em direção ao qual os demais conceitos são atraídos como limalhas caudatárias. Arriscado, porque opta por uma chave de leitura de corte estruturalista, refazendo os movimentos internos do texto não a partir de uma intenção pessoal - própria ao tempo vivido e a qual, como adverte Sampaio, “não pertence ao plano de conteúdo da obra”^ -, mas a partir de uma intenção acintosamente filosófica, atuante num “âmbito distinto da intenção psicológica ou da reconstituição histórica”.^ Se este tacteio metodológico acumula a vantagem de evitar o historicismo, acaba entretanto por fazer intervir uma separação entre reflexão e vivência - nesse trilho, Sampaio chega a dizer: “por ‘autor’ não designo

Giorgio Colli e Mazzino M ontinari. Berlim/Nova York, W alter deGruyter, 1999, vol. 10, p. 22. Id. Ecce homo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Cia. das Letras, 1995, “ Por que escrevo tão bons livros” §4, p. 57. ^ Sampaio, Evaldo. Por que somos decadentes?Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche. Brasília: Editora da UnB, 2013, p. 23. « ld .ib id .,p .2 3 . ’ ld .ib id .,p . 29. « ld .lb id .,p . 29.


sequer a pessoa que escreveu o texto, mas um índice ou componente textual latente ou manifesto no que foi escrito”;®e com o agravante - o que, no caso de Nietzsche, não é de pouca monta - de lançar os holofotes preferencialmente sobre a “obra assumida pelo autor”,“ a qual passa a servir de esmeril para o intérprete que espera entender o pensador “como ‘ele’ entende a si m e s m o .P e rig o s a jangada a ondular sobre as águas caudalosas de uma filosofia que se tornou célebre justam ente por embaralhar vida e obra e cultivar, sem trégua e com unhas e dentes, um caráter pluralista, o livro parece querer descerrar, a contrapelo da fortuna crítica, um horizonte hermenêutico inabitado, aparentemente expulsivo àquele que está acostumado com as interpretações canônicas do filósofo alemão. Engana-se, contudo, quem antevê aqui um naufrágio metódico. Equivoca-se quem lhe imputa, de saída, uma vontade de sistema. Pascaliana, a aposta lançada por Evaldo conduz, ao contrário do que se espera, a uma leitura responsável e qualificada, digna e valiosa, ganhando, digamos, precisamente por não ter nada a perder. Ocorre que o autor de Por que somos decadentes? faz um uso heterogêneo do método estruturalista. E, no contexto em questão, não poderia mesmo ser de outro modo. Se não é pertinente pressupor um único e unívoco sujeito ã base dos escritos de Nietzsche, sendo o ego do pensador somente um múltiplo e efêmero amálgama de forças em mútua e condicional relação, tampouco teria cabimento fazer da análise estrutural de texto um parti pris metodológico - vestindo, assim, uma camisa-de-força em nome de uma ordem das razões cujo próprio valor é colocado em questão pelo autor analisado. É preciso ter diante dos olhos o fato de que, para Nietzsche, a “verdade não é algo que uma pessoa pudesse ter e outra não.”^^ Feitas as devidas diferenças, talvez o mesmo pudesse ser dito em relação aos métodos. Assim, se traz ã baila a divisão entre “método ensinado” e “método praticado” afirmada por Victor Goldschmidt, Sampaio não 0 faz para reproduzir o preconceito segundo o qual o corpus nietzschiano não admite metodologia explícita, senão que para desassombrar os recursos de estruturação, emendando “em ato” o olhar estruturalista e sugerindo, outrossim, um outro modo de

M d.ibid.,p. 29 '“ Id.ibid.,p. 30 " Id . ib id .,p .3 2 Id. Der Antichrist. In:“Kritische Studienausgabe” (KSA). Ed. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim/Nova York, W alter deGruyter, 1999, vol. 6, §53, p. 234.


se ler Nietzsche: “Já que uma leitura estrutural de Nietzsche, segundo Goldschmidt, seria aquela na qual o sucesso pode como que comprovar em especial a fecundidade desta abordagem hermenêutica, aplicá-la neste meu exercício de leitura do pensamento de Nietzsche contribui tanto para consolidá-lo quanto auxilia ao leitor na resolução de algumas das principais dificuldades de interpretação acerca do filósofo.”^^ Algo semelhante se passa com o uso - constitutivo, mas, por vezes, também regulativo - que aqui se faz da noção mesma de décadence. Muito mais do que um tipo de alforje onde se juntam ideias com proximidade de berço, o termo é acolhido como fio condutor de uma “interpretação de uma autointerpretação” - asserida, em especial, a partir do Prólogo de 0 caso Wagner. A esse propósito, Sampaio escreve: “Tal autointerpretação nos assegura que aquilo que mais interessou a Nietzsche é 0 ‘problema da decadência’. A curiosa ‘originalidade’ aqui é que a maior parte dos

leitores ignora ou desconsidera essa autointerpretação do autor, de modo que assumila como fio condutor para se interpretar adequadamente a filosofia de Nietzsche é adotar uma posição antagônica quanto a inúmeras leituras exemplares.”^"^É certo que 0 termo décadence]k foi objeto de estudos inigualáveis e muitíssimo atentos em termos

de sua efetividade conceituai, fazendo jus tanto à acepção fisiológica da expressão quanto ao seu inexorável sentido artístico na obra de Nietzsche - vide, por exemplo, o importante artigo de Wolfgang Müller-Lauter a esse respeito.^^ É igualmente bem conhecida a aplicação estético-musical do vocábulo-talvez, a mais explícita nos escritos nietzschianos da maturidade. Sob o influxo de Paul Bourget, Nietzsche aplica o conceito de décadence literária á música de Wagner. Tomando esta última como um organismo, afirma então que, em seu interior, certas partes estruturalmente subordinadas se tornariam independentes em função de um processo de desagregação anárquico e aleatório, razão pela qual não lhe reconhece uma efetiva força organizadora. Mas não é apenas o sentido técníco-crítico de decadência que irá atrair a atenção de Sampaio. A ele interessa apontar para o significado poderosamente ambíguo que o termo adquire ã

'^Sampaio, Evaldo. Por que somos decadentes?Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche. Brasília: Editora da UnB, 2013, p. 41. > ''ld.ibid.„p.26. M üller-Lauter, Wolfgang. “Décadence artística enquanto décadence fisiológica. A propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard W agner”. Trad. Scarlett Marton. In: Cadernos Nietzsche. São Paulo, n. 6,1999, pp. 11-30.


luz da própria autocompreensão do filósofo alemão, o que implica, entre outras coisas, extrapolar o lugar relativamente confinante que até então era reservado à problemática decadencial. Sobre o alcance das ideias de ascensão e decadência dos impulsos vitais em Nietzsche, dir-se-á no livro, por exemplo: “tal doutrina ou teoria é o coração selvagem de sua filosofia.”^® Com isso, 0 autor de Por que somos decadentes? passa a depender de uma dialética dolorida. Ao lado do sentido negativo-disruptivo da décadence, ele tenciona encontrar, qual um desconhecido irmão siamês, seu significado positivo e transvalorado, polarizando o termo, mas sem flertar com a maneira dualista de pensar. Isso se lhe torna possível, porque Nietzsche, na medida em que vivenciou a décadence em si mesmo - vivência, nota bene, cujo testemunho é filosoficamente “assumido” nos textos de maturidade -, estaria em condições de descrever simultaneamente as duas faces da moeda, colocando-se face ao exaurimento e ã diminuição de potência como alguém que neles dormitou e ressurgiu para nos relatar as peripécias de sua autosuperação. Daí, o paradoxal dito do filósofo alemão: “sou um décadent, mas sou também o seu oposto. Cronista analítico e vivencial da décadence, Nietzsche sabe, por assim dizer, que ela remete a uma etapa intermediária - e quiçá inafugentável - do penoso processo de superação de si. Porque se fia neste movimento em que ascensão e declínio convergem sem se neutralizarem, Sampaio pode finalmente nos conduzir ã sua lapidar conclusão: “Não é por um conjunto de regras ou prescrições que Nietzsche procura realizar o panegírico da ascensão dos impulsos vitais - é, sim, pela demonstração prática de que tal grandeza é p o s s ív e l.V ê -s e , pois, que o intencional divórcio com as tradicionais abordagens hermenêuticas e o flerte flagrante com o estruturalismo não passavam de uma estratégia para mostrar que a filosofia de Nietzsche é “judicativa - diz o que é, sob a ótica da vida, superior ou inferior -, porém sem imperativos.”^® É claro que, antes de atingir esse patam ar reflexivo, o texto de Sampaio percorre

Sampaio, Evaldo. Por que somos decadentes?Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche. Brasília: Editora da UnB, 2013, p.26. Id. Ecce homo. ln:“Kritische Studienausgabe” (KSA). Ed. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim/ Nova York, W alter de Gruyter, 1999, vol. 6, „Warum ich so weise bin“ §2, p. 266. Sampaio, Evaldo. Por que somos decadentes?Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche. Brasília: Editora da UnB, 2013, p. 331. 'M d .ib id .,p .3 3 1 .


tópicos caros à história da filosofia, cujas ligações, por vezes insulares, formam um arquipélago que suplanta o perímetro em que se delineiam, em geral, as leituras acerca do legado nietzschiano - não raro, nomes tais como Rorty, Habermas e Descartes dividem as mesmas páginas. O mais importante, porém, está na articulação indicada pelas divisões e subdivisões dos capítulos, os quais, num crescendo, levam o leitor ao cume da decifração do mais nietzschiano dentre todos os mistérios nietzschianos, a saber: o que é alcançado com a transvaloração, ou, para reproduzir a glosa de Sampaio, com a “reavaliação de todos os valores”?^® Assim como a própria transvaloração, 0 caminho entrevisto para responder a tal questão é tripartite. Na primeira parte do

livro (“Estrutura e discurso genealógico”), evitando identificar assistemático com incoerente, mas também se furtando a operar uma distinção radical entre “pensador de sistemas” e “pensador de problemas”, Sampaio empenha-se em m ostrar que, no caso de Nietzsche, impõe-se ao leitor uma forma específica de leitura, baseada na autocompreensão do próprio filósofo. Ciente de que toda filosofia hospeda valores e que estes, por sua vez, pressupõem apreciações valorativas, encerra então esta etapa afirmando: “Nietzsche desconfia que uma filosofia é como uma transposição e até um esconderijo conceptual cuja leitura atenta permite em certa medida decifrar quais são os impulsos que motivam esta ou aquela explicação metafísica, este ou aquele imperativo moral.”2i É esse ímpeto sintomatológico que orienta a segunda parte do trabalho (“A moral de um imoralista”), trazendo ã tona, a partir da relação entre psicologia e história, bem como a partir do contraste entre afirmação e negação da vida, o “objeto” da filosofia “extramoral” de Nietzsche. Com isso, Sampaio dá pleno cumprimento ã etapa disruptivo-negativo de seu trabalho, de sorte a tornar operatória, em nosso entender, a acepção efetivamente intensiva da “teoria” da decadência, fazendo ecoar com precisão o seu processo de constituição, o qual coincide, por sua vez, com 0 processo de autointerpretação da filosofia nietzschiana. Nesta terceira e última

etapa do livro (“A filosofia do anticristo”), seu autor permite-se então refazer a assim chamada refutação genealógica do cristianismo e sua instigante análise congenialintuitiva do tipo psicológico de Jesus, mostrando que este fora falsificado desde a raiz

^“ Id.ibid.,p.327. ^ 'Id .Ib id .,p .l2 9 .


justam ente para que o cristianismo estatutário pudesse nascer e crescer. O resultado a que nos conduz, a partir daí, é o de que o ideal moderno de homem é conseqüência de uma dietética perversamente seletiva, que tem no exaurimento psicofisiológico e no declínio potencial seu critério de cultivo. E é precisamente aqui Sampaio roça o ponto de convergência entre vida e obra - sem, contudo, comprometer-se com as abordagens histórico-hermenêuticas e tampouco sem lançar mão do portentoso espólio do filósofo alemão; afirma então que, em Nietzsche, o principal argumento a favor da transvaloração dos valores é o próprio Nietzsche. Munido de tal ótica, conclui: “Não se trata de criar faticamente um tipo nobre, que já existiu e continua a existir, mas de estabelecer o mencionado contraideal pelo qual ele possa reconhecer a si mesmo e assim se proteger do ideal ascético.”^^ Contra a dietética vampírica e castradora do ascetismo, o contraideal nietzschiano faz as vezes de antídoto. Superando a decadência a partir dela mesma, Nietzsche inocula-se por meio do próprio decaimento. Reverberando o princípio de que o semelhante se cura pelo semelhante, o páthos (“doença”) afirmativo conquistado pelo pensador alemão é, antes de mais nada, uma conquista de si mesmo. Ao descrever tal reapropriação inventiva das forças ã base da animalidade humana a partir de um estudo “de caso” - Nietzsche, afinal de contas, teria fornecido a demonstração prática de sua transvaloração -, Sampaio avança com determinação e a passos largos em seu estudo, e isso justam ente lá, onde, muitas vezes, o arsenal hermenêutico só empreende voos de curto alcance. Fica, porém, a dúvida - da qual nos valemos como ensejo provocativo. Ainda que se considere apenas a obra publicada - filosófica e responsavelmente “assum ida”, para parafrasear o bordão estruturalista -, o proclamado resguardo frente ao ideal de negação da vida seria mesmo indício de uma espiritualidade “bem resolvida”? Que se lembre, a esse propósito, daquilo que é dito ao final da Terceira Parte de Assim falava Zaratustra: “Ah! O homem retorna eternamente! O pequeno homem retorna eternam ente!”^^ Trágica, a decadência também passaria a ser, nesse caso, eterna. E aqui mais uma provocação - desta feita, extratextual. Não seria precisamente este declínio sem data que estaria estampado na capa do livro, captado pela lente mordaz de Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd?

^M d.ibid.,p.331. “ \d. Also sprach Zarathustra III. In:“Kritische Studienausgabe” (KSA). Ed. Giorgio Colli e Mazzino M ontinari. Berlim/Nova York, W alter deGruyter, 1999, vol. 4, „Der Genesende" §2, p. 274.


Referências bibliográficas GOETHE, Johann Wolfgang v. Werke. Hamburger Ausgabe in 14 Bdnden. Munique, dtv, 2000. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. “Décadence artística enquanto décadence fisiológica. A propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard W agner”. Trad. Scarlett Marton. In: Cadernos Nietzsche. São Paulo, n. 6,1999, pp. 11-31. NIETZSCHE, Friedrich. Sâmtliche Werke (KSA). ). Ed. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim/Nova York, Walter de Gruyter, 1999. SAMPAIO, Evaldo. Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche. Brasília: Editora da UnB, 2013.


RFAISTA

LAMPEfò

Paulo W i r z

VIO LIDO


RESTO DEMOLIDO PAULO WINZ

Fotografo Cearense dedica sua pesquisa e criação fotográfica a partir de atos perform áticos ou perform ances realizadas para a câm era. Em obras realizadas observa-se um forte caráter investigativo de questões sobre o corpo e sua representação, deslocam ento, o universo feminino, resistência e a transitoriedade de estados em ocionais a exemplo da série em processo Sem Olhos onde um enredam ento de barbantes cobre todo seu rosto em um percurso ao encontro da liberdade e potência hum ana. Na série Resto Demolido aqui

apresentada, trata-se de um trabalho realizado a partir do conceito de demolição. D urante uma tarde solitária em uma casa em demolição 0 fotógrafo fez parte de seus entulhos, paredes e janelas vivenciando o estado de degradação do am biente que ainda carrega toda a força de anos de ocupação por pessoas que de algum a forma estão encrustadas naquele espaço e o espaço ainda se faz dentro delas por apego. Resto Demolido é necessariam ente um trabalho aberto a observação que traz um amplo espectro de interpretações por vezes não tão claras que surgem a p artir das

próprias im agens e da frase “uma vida não se faz de tijolos” . Esta obra não se resum iu na criação das im agens estas tiveram que ser dem olidas por Paulo W inz em perform ance. A m arreta que m utilou 0 próprio corpo tam bém foi usada pelo público presente finalizando a demolição da parede construída levando ju n to 0 resto de imagens que perm anecia. A voracidade em destruir a obra, o corpo e/ou a casa do outro foi aflorada ou apenas evidenciada tornando-se tão ou mais im portante que a apreciação visual das fotografias. fotos e texto: Paulo W inz




REVISTA

LAMPE

REVISTA E L E T R Ô N IC A OE F IL O S O F IA E I C UL T U R A

APOCNA ] Cfupo d« vviudpv

DOSSIÊ Edição especial ISSN 2238-5274

I

m N* 6-02/2014


Indice APRESENTAÇÃO Trapeza tes pisteos: a atualidade do mistério da fé, em Benjamin e Agamhen Apresentação João Emiliano Fortaleza de Aquino_

Reginaldo Oliveira S ilv a ________________________________________ 133 03

Waiter Benjamin: Linguagem e experiência iiistérica

DOSSIÊ II JORNADA BENJAMINIANA

Robson Breno Dourado de A ra ú jo ____________

152

A perda da aura no ensaio Pequena iiistéria da fotografia de Waiter Benjamin Francisco Rihelder Batista Bezerra | Marcius Aristóteles Loiola Lo pes_______________________________________________________________ 04

Cantigas de capoeira contestando a iiistéria dos vencedores José Olímpio Ferreira Neto (UECE)_______________________________ 13

Biniieiro e inversão universai: sociedade moderna, contradição e ambigüidade na crítica da economia poiAica Álvaro Lins Monteiro M aia________________________________________27

Fotografia 3x4: Beiciiior e a faísca reiampejar - Uma anáiise críticoiiterária em Waiter Benjamin Francisco Gabriel Soares da S ilv a _______________________________ 42

Histéria e tradição dos vencidos: Benjamin e 0 juigamento de Lucuius de Bertoit Breciit Francisca Palloma Soares Paulino_______________________________ 58

Insurgência e emergência no novo tempo do mundo Pedro Henrique Magalhães Q ueiroz__________

69

Revista Lampelo ISSNZZ3BÜZ74

JUÍZO FINAL Ou SPBUNG? - Oláiogos e interrogações nas tramas da iiistéria Flávia Maria de Menezes | Priscila de 0 . Dornelles M ach ad o __ ______________________________________________________________________ 81

0 pessimismo como critica do progresso no ensaio sobre o surreiismo de Waiter Benjamin Felipe Yuri Gino de A b re u ________________________________________95

Os Cactos: ordens em questionamento Carlos Augusto de Oliveira Azevedo F ilh o .

Editores: Luana Diogo, Daniel Carvalho,W illiam Mendes, Ruy de Car­ valho, Gustavo Costa

Conselho Editorial: Prof. Dr. Daniel Santos da Silva; Prof. Dr. Ernani Chaves; Prof. Dr. Jair Barboza; Prof. Dr. Ivan Maia de Mello; Prof. Dr. José Maria Arruda; Prof Dr. Luiz Orlandi; Prof Dr. Miguel A. de Barrenechea; Porf Dr. Olímpio Pimenta; Prof Dr. Peter Pál Peibart; Prof Dr. Roberto Machado; Prof Dra. Rosa M=> Dias

Comissão Editorial: 102

Beforma ou revoiução: Para uma crítica da vioiência como crítica da sociaidemocracia Adriano Costa Cardoso_________________________________________ 120

Ruy de Carvalho, Gustavo Costa, Fernando Barros, William Mendes, Daniel Carvalho, Marilia Bezerra, Rogério Moreira, Luana Diogo, Paulo Marcelo, Atila Monteiro, Gisele Gailicchio, Fabien Lins

Projeto Gráfico e Diagramação: Herlany Siqueira


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APRESENTAÇÃO JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AOUINO Coordenador do Grupo de Estudos Benjaminianos (UECE)

Os artigos que compõem este “ Dossiê” foram escritos tendo por base alguns trabalhos inscritos e/ou apresentados na 2® Jornada Benjaminiana, ocorrida em 26 de setembro deste ano no Porto Iracema das Artes. Este é um evento anual organizado pelo Grupo de Estudos Benjaminianos, da Universidade Estadual do Ceará (U ECE), vinculado ao Grupo de Pesquisa em Dialética e Teoria Crítica da Sociedade e ao Laboratório de Estudos sobre Poder, Violência e Linguagem (Lapovili), com o apoio do Mestrado Acadêmico em Filosofia da mesma instituição. Constituem-se, via de regra, em pesquisas em andamento, de professores e alunos de graduação e pós-graduação de várias instituições, e versam sobre questões estéticas e políticas do pensamento de Walter Benjamin. Nesta ocasião, queremos agradecer aos colegas professores que gentilmente, e em prazos curtos, emitiram pareceres às propostas de artigos e, especialmente, aos editores da revista Lampejo, animada pelo Grupo de Estudos em Schopenhauer e Nietzsche, que aceitaram a proposta desta publicação.


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A PERDA DA AÜRA ND ENSAID PEQÜENA HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA DE WALTER DENJAMIN FRANCISCO RIHELDER BATISTA BEZERRA - Aluno de Filosofia pela Universidade Federal do Cariri (UFCA). rielder_18_@hotmail.com MARCIUS ARISTÓTELES LOIOLA LOPES

- Prof. pela Universidade Federal do Cariri (UFCA). marcius_re@hotmail.com

Resum o: A teoria da aura e de seu declínio se constitui em um dos principais temas da reflexão benjaminiana sobre a modernidade. Neste artigo, concentramo-nos na questão da perda da aura apontada por Benjamin a partir das transformações na percepção humana oriunda dos avanços técnicos, tomando como fio condutor principalmente os primeiros textos em que este problema é posto. Desta forma, 0 enfoque do nosso trabalho se concentra especificamente na perda da aura no ensaio Pequena história da fotografia, mas antes trataremos de forma sucinta da emergência do termo aura em um relatório benjaminiano acerca do uso do haxixe.

Palavras-chave: Aura; fotografia; técnica N° 6 - 02/2014


Introdução odemos dizer expressamente que a questão do declínio da aura é tão importante

P

no contexto da obra do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) quantos outros temas mais estudados de sua obra, como a pobreza da experiência e

0 declínio da narratividade. De fato, o desaparecimento da aura se insere no âmbito das investigações benjaminianas acerca da modernidade e podemos com isso afirmar que tal temática pode muito bem ser abordada em consonância com o estudo de sua

teoria da experiência e da narratividade. Entretanto, não pretendemos fazer aqui um estudo entrelaçando estes temas. Neste trabalho, nos concentramos principalmente no surgimento do termo aura e na questão de sua ruína em uma arte específica, no caso a fotografia. A princípio, abordaremos a origem do termo aura mostrando que seu primeiro uso já tem uma conotação estética, muito embora, nesse primeiro momento, não possa ser considerado um conceito filosófico. É somente com a temática da ruína da aura inaugurada pelo ensaio Pequena história da fotografia de 1931, que Benjamin irá dar relevância filosófica á palavra aura que em suas origens gregas significa sopro de ar, brisa, vento^ Posteriormente em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade

técnica (1935) Benjamin tratará novamente da teoria da ruína da aura se concentrando principalmente na mudança de percepção oriunda da intensa reprodutibilidade das obras de arte tradicionais ao passo que em Sobre alguns temas em Baudelaire (1939) haverá uma mudança na abordagem do tema da aura.

Haxixe e aura É somente nos escritos de maturidade deWalter Benjamin que surge o conceito de aura e a questão de sua ruína. Assim, só podemos falar da aura como conceito

' No que concerne a origem da palavra aura e sua significação filosófica, Taisa Helena Pascale Palhares escreve: “Do ponto de vista da história da estética, o termo aura somente recebe significado filosófico pelas mãos deWalter Benjamin. Semanticamente, a palavra origina-se na tradução do grego aúra para o latim aura, que significa sopro, ar, brisa, vapor. Sua ilustração como círculo dourado em torno da cabeça, tal como aparece em imagens religiosas, talvez derive da identificação vulgar entre o termo grego e o latino aureum (ouro), que deu origem à palavra auréola. Simbolicamente, entretanto, ambas (aura e auréola) indicam um procedimento universal de valorização sagrada ou sobrenatural de um personagem: a aura designa a luz em torno da cabeça dos seres dotados de força divina, sendo que a luz é sempre um índice de sacralização. (PALHARES, 2006, p. 13).


filosófico a partir do seu ensaio de 1931 sobre a fotografia. Antes, Benjamin já utilizava a palavra aura, mas sem uma delimitação filosófica precisa. Por conseguinte, já em um contexto materialista de sua filosofia, Benjamin passa a empregar o termo aura. O seu primeiro uso significativo se dá em um texto de 1930, no contexto dos textos benjaminianos que tratam de sua experiência com o haxixe. Desta forma, escreve:

Trata-se de observações que fiz sobre a natureza da aura. Tudo o que disse a respeito implicava uma aguda polêmica contra os teósofos, cuja ignorância e bisonhice me repugnavam profundamente. Apresentei, embora certamente não de forma sistemática, três aspectos da verdadeira aura que contrariam as concepções banais e viciadas dos teósofos. Em primeiro lugar, a verdadeira aura transparece em todas as coisas, e não apenas em algumas, como imaginam as pessoas. Em segundo, a aura se modifica radicalmente a cada movimento do objeto que a contêm. Em terceiro, a verdadeira aura absolutamente não se identifica com aquele sortilégio espiritualístico que incide sobre as coisas à maneira de um raio de luz, tal como o representam e descrevem os livros de misticismo barato. Pelo contrário, o que distingue a verdadeira aura ê o ornamento, um invólucro ornamental onde a coisa ou o ser aparece engastado como num estojo. Nada pode dar uma ideia mais exata da verdadeira aura do que as últimas telas de Van Gogh, nas quais, se ê que podemos descrevê-las assim, a aura parece pintada em cada uma. (BENJAMIN, 1984, p. 88).

Esta passagem é muito interessante, não somente porque faz de forma pertinente, pela primeira vez, menção a um termo que se tornará central nos ensaios posteriores que tratam de questões estéticas, mas também já faz uma distinção da verdadeira aura como sendo algo que é envolvido por um revestimento ou um estojo protetor. Esta primeira caracterização da aura se coaduna com sua formulação no texto Pequena história da fotografia, quando se diz que as primeiras fotografias tinham uma dimensão aurática já que, entre outras coisas, eram consideradas peças raras, pois guardadas em estojos como jóias^. O uso do termo se insere em um momento de

^ “Eram peças únicas; [...] Não raro, eram guardadas em estojos, como jóias.” (BENJAMIN, 1996, p. 93.)


controvérsias acerca da natureza da aura em que Benjamin se põe claramente contra o uso vulgarizado do termo por parte dos teósofos. A recorrência benjaminiana as últimas obras do pintor holandês Van Gogh em que a aura estaria pintada por inteiro nas telas, não nos parece ser acidental e mostra a associação entre aura e obra de arte tradicional que se repetirá em textos ulteriores como A obra de Arte na era de sua reprodutibilidade

técnica. A perda da aura em Pequena história da fotografia O ensaio Pequena história da fotografia de 1931 surgiu durante o projeto das Passagens (obra inacabada) iniciado por Benjamin em 1927. Para uma melhor elucidação da teoria da aura e seu declínio coube-nos uma consideração das fases da fotografia; é a partir da perda da aura que Benjamin irá fazer uma periodização e avaliação crítica da fotografia. Assim, o ápice da fotografia, assinalado por sua dimensão aurática, vai de seu nascimento em 1839 se estendendo por uma década, até mais ou menos o ano de 1850, época em que a fotografia começa a entrar em declínio devido ao processo de industrialização; esta época, em que começam a surgir os primeiros ateliês fotográficos, corresponde ao período de declínio da arte fotográfica e há aqui a perda de sua aura. O terceiro período corresponde á destruição, por meio do trabalho do fotógrafo francês Eugêne Atget de uma falsa aura que os fotógrafos do segundo período tentaram restabelecer em vão por meio de alguns artifícios. A aura das primeiras fotografias é exemplificada pelo trabalho do fotógrafo escocês David Octavius Hill (1802-1870). Hill que antes de se tornar fotógrafo era pintor, ficou muito conhecido por seus retratos singulares. No entanto, a aura das suas fotografias se devia a algo mais que seu insigne talento:

Mas na fotografia surge algo de estranho e de novo: na vendedora de peixes de New Haven, olhando o chão com um recato tão displicente e tão sedutor, preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo Hill, algo que não pode ser silenciado, que reclama como insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto ê real, e que nãoquerextinguir-sena “arte”. (BENJAMIN, 1996, p. 93).


Toda uma conjuntura de imperativos técnicos e materiais contribuíam para a singularidade das primeiras fotografias. Assim, as primeiras imagens do mundo fotográfico nascente que eram formadas nas chapas metálicas de câmeras escuras tinham como marca a longa exposição do modelo (a sua imobilidade impedia que a imagem saísse borrada), o que exigia por parte do fotógrafo uma grande e cuidadosa concentração. Essa temporalidade envolvida no ato fotográfico e que foi perdida com a sua industrialização, dava consistência às imagens, era como se o modelo e o fotógrafo estivessem imersos profundamente naquele mesmo instante que ficaria resguardado da passagem do tempo em uma chapa de cobre: “O próprio procedimento técnico levava

0 modelo a viver não ao sabor do instante, mas dentro dele; durante a longa duração da pose, eles por assim dizer cresciam dentro da imagem,^[...].” As primeiras fotografias que exigiam esse tempo condensado se assemelhavam a quadros bem pintados e eram rodeadas por um mistério e uma magia"^. Ao serem fotografadas, as pessoas tinham toda sua singularidade gravadas, por assim dizer, nas placas de metal. Em contraposição ao período da produção de imagens instantâneas que para Benjamin corresponderá á época de decadência da fotografia, nas primeiras fotografias “O rosto humano era rodeado por um silêncio em que o olhar repousava^” É a partir da descrição benjaminiana de um retrato do menino Kafka que vamos ter propriamente a primeira menção á aura no ensaio Pequena história da fotografia. Este retrato, muito marcante pela artificialidade e extravagância do cenário, pertence á época do surgimento dos grandes ateliês e já corresponde á fase de decadência da fotografia:

Mbid.,p. 96. Segundo o relato do fotógrafo Dauthendey as pessoas tinham medo de olhar por muito tempo às primeiras fotografias, pois sua nitidez e expressões vivas eram notáveis: as pessoas não ousavam a princípio olhar por muito tempo as primeiras imagens por ele produzidas. A nitidez dessas fisionomias assustava, e tinha-se a impressão de que os pequenos rostos humanos que apareciam na imagem eram capazes de ver-nos, tão surpreendente era para todos a nitidez insólita dos primeiros daguerreótipos. (BENJAMIN, 1996, p. 95). Assim, Cláudio Araújo Kubrusly também confirma este espanto causado pelas primeiras fotografias: “No mundo onde as imagens eram muito mais raras que em nossos dias, deve ter sido fascinante contemplar miniaturas da vida, projetadas por uma lente no fundo de uma caixa escura.” (KUBRUSLY, 2009, p. 22). 'O p . cit.,p. 95.


Em sua tristeza, esse retrato contrasta com as primeiras fotografias, em que os homens ainda não lançavam no mundo, como o jovem Kafka, um olhar desolado e perdido. Flavia uma aura em torno deles, um meio que atravessado por seu olhar lhes dava uma sensação de plenitude e segurança. (BENJAMIN, 1996, p. 98).

Havia alguns condicionamentos técnicos significativos e determinantes para que as primeiras fotografias tivessem uma dimensão aurática tais como o círculo de vapor que ficava em volta do rosto fotografado e a luz que florescia da sombra, “o continuum absoluto da luz mais clara à sombra mais escura®.” Igualmente, nas primeiras fotografias a relação entre o fotógrafo e a sua técnica era fundamental para a sua qualidade; o fotógrafo que manejava sua câmera fotográfica de forma habilidosa era comparável a um bom violinista ao tocar seu instrumento. Ora, essa convergência completa entre o objeto a ser fotografado e a técnica usada pelo fotógrafo não mais foi encontrada nas fotografias posteriores: “Pois aquela aura não é o simples produto de uma câmera primitiva. Nos primeiros tempos da fotografia, a convergência entre o objeto e a técnica era tão completa quanto foi sua dissociação, no período de declínio^” Com 0 avanço da técnica e a maior reprodutibilidade da fotografia com o intuito de se conseguir maiores ganhos com a sua comercialização, (principalmente a partir das últimas duas décadas do século X IX) temos a fase de decadência da fotografia. O tempo dilatado exigido antes para se realizar o ato fotográfico é perdido e surgem as fotos instantâneas que podem ser tiradas por qualquer pessoa; o próprio aparelho fotográfico se torna mais barato possibilitando sua banalização e uso corriqueiro. A aura e junto com ela o mistério das antigas fotografias são perdidos, ocorrendo uma uniformização e massificação dos indivíduos na imagem tecnicamente produzida. Esta fase em que os artistas fotográficos saem de cena para darem lugar aos homens de negócio é marcada pelo desenvolvimento do processo negativo-positivo (técnica que possibilitava a reprodução de várias cópias de uma mesma foto). O declínio da fotografia é acompanhado por uma tentativa de restauração da aura extraviada

«Ibid.,p. 98. ’ Ibid.,p. 99.


nos meandros do novo domínio técnico. Os fotógrafos deste período irão tentar, por meio de recursos artiíiciosos, recuperar as sombras das primeiras fotografias, embora conseguindo efeitos de penumbra nas fotos, não conseguiram restabelecer sua aura devido aos avanços técnicos:

Pouco depois, com efeito, a ótica, mais avançada, passou a dispor de instrumentos que eliminavam inteiramente as partes escuras, registrando os objetos como espelhos. Os fotógrafos posteriores a 1880 viam como sua tarefa criar a ilusão da aura através de todos os artifícios do retoque, especialmente pelo chamado off-set; essa mesma aura que fora expulsa da imagem graças à eliminação da sombra por meio de objetivas de maior intensidade luminosa, da mesma forma que ela fora expulsa da realidade, graças à degenerescência da burguesia imperialista.(BENJAMlN, 1996, p. 99).

Esta falsa aura, que Benjamin chama de “a ilusão da aura”, será destruída na passagem do século X IX para o século X X pelo trabalho original daquele que é considerado um precursor da fotografia surrealista, o fotógrafo francês Eugène Atget (1857-1927). As fotos de Atget, comparadas por Benjamin a lugares em que ocorre um crime, têm por escopo não fisionomias humanas, mas a cidade esvaziada e sem aura; cenários marginais da cidade de Paris, como ruas periféricas e pátios despovoados serão uma das principais referências para a sua produção fotográfica. Atget trouxe uma nova proposta para a fotografia, segundo Benjamin ele:

Foi 0 primeiro a desinfetar a atmosfera sufocante difundida pela fotografia convencional, especializada em retratos, durante a época de decadência. Ele saneia essa atmosfera, purifica-a: começa a libertar

0 objeto de sua aura, nisso consistindo o mérito mais incontestável da moderna escola fotográfica. [...] Ele buscava as coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se voltam contra a ressonância exótica, majestosa, romântica, dos nomes da cidade; elas sugam a aura da realidade como uma bomba suga a água de um navio que afunda. .(BENJAMIN, 1996, p. 100-101).


Subentende-se que o uso da fotografia por este precursor do movimento surrealista tem conotações políticas já que as suas fotos revelam, por assim dizer, o lado não oficial da cidade de Paris: seus prédios abandonados, seus pátios destituídos de pessoas, a pobreza manifesta de uma cidade em acelerado processo de modernização. Benjamin elogia às fotos de Atget; estas foram as responsáveis por eliminar a aura artificial que surgiu como tentativa de restabelecimento da aura das primeiras fotografias. É a partir desta segunda crise aurática da fotografia desencadeada por Atget que Benjamin formulará pela primeira vez a sua definição clássica de aura que irá se repetir no ensaio sobre A obra de arte: “Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, compostas de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que esteja.” (BENJAMIN, 1996, p. 101). Destarte, o que podemos entender desta enigmática definição de aura e a que tipo de objetos ou coisas ela se aplica? Tentaremos responder a esta pergunta em outra oportunidade.


REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e

técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura. 7®. ed. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. Obras escolhidas, Vol. 1. São Paulo, SP: Ed. Brasiliense, 1994a.

______. Pequena história da fotografia. In: Magia e técnica, arte e política. 7. ed. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994e.

_. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire um lírico no auge

do capitalismo. Tradução: José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. Obras escolhidas, Vol. III. São Paulo, SP: Ed. Brasiliense, 1989.

_____ . Haxixe. Tradução Flávio de Menezes e Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.

KUBRUSLY, Cláudio Araújo. O que é fotografia. São Paulo: Brasiliense, 2006. Coleção Primeiros Passos.

PALHARES, Taisa Helena Pascale. Aura: A crise da arte em Walter Benjamin. São Paulo: Barracuda, 2006.


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CANTIGAS DE CAPOEIRA CONTESTANDO A HISTÓRIA DOS VENCEDORES José Olímpio Ferreira Neto (UECE)

Resum o: Este trabalho é uma análise crítico-reflexiva das cantigas de capoeira a luz do pensamento benjaminiano. A Capoeira é uma cultura popular presente nos ambientes formais de ensino que pode dialogar com a disciplina de História, porém, ainda se verifica que o material didático que está disponível para o corpo docente e discente é aquele que mantém empatia com a história do vencedor. A Roda de Capoeira é o espaço onde os vencidos contam, através das cantigas, suas dores e glórias, onde se constitui seus ídolos, diferentes dos personagens impostos pelo dominador. Benjamin (1994) diz em sua tese V I do texto Sobre o conceito de História que a transmissão dos bens culturais, da história deve ser arrancada das mãos do vencedor. Pergunta-se, então, se as cantigas de capoeira podem ser identificadas como instrumento de contestação da história oficial.

Palavras-chave: História. Capoeira. Cantigas.


Introdução As pesquisas em História tem sofrido mudanças em seu foco, novas áreas e interesses tem surgido ao historiador. O ensino nas escolas públicas não correm na mesma velocidade que as pesquisas. No interior das instituições, pode-se observar cartazes que são confeccionados nas aulas que reproduzem a história dos vencedores, a história oficial. Ao mesmo tempo, a escola abre as portas para a comunidade, para a diversidade cultural. A Capoeira é uma importante ferramenta nessa nova perspectiva do ambiente escolar. Atividade que representa o povo brasileiro, fruto da mistura das raças que já ganhou o mundo e se aperfeiçoa como instrumento de educação (FERREIRA NETO, 2009). O presente trabalho é uma reflexão filosófica sobre as cantigas como forma de expressão dos vencidos contestando o ensino da História oficial. Entende-se, aqui, que a escola é um espaço de conflito, pois, além da educação oficial, penetram nesse ambiente diversas culturas como a Capoeira que colaboram para um discurso que se opõe ao que é imposto pelos dominadores. Para nortear essa reflexão utiliza-se o filósofo da Escola de Frankfurt, a saber, Walter Benjamin (1994) através de seu artigo intitulado

Sobre o conceito de História presente no primeiro volume do livro Obras Escolhidas. Para melhor penetrar no pensamento benjaminiano faz-se uso dos estudos de Aquino (2009) pesquisador do pensamento do citado filósofo. Em relação ã História recorre-se aos seguintes autores: Rodrigues (2009), Le Goff (2003), Hunt (2001) e Burke (2008). Quanto ao conteúdo referente a Capoeira, buscou-se fundamento nos estudos de Rego (1968), Castro Júnior (2003), Silva (2007), Vieira (1998) Vasconcelos (2009,2010) e Capoeira (2009). O tema foi inspirado na vivência escolar, na participação nas rodas e nos estudos de filosofia, sobretudo nas disciplinas ministrados pelo professor Ivan Fiúza. Ressalte-se ainda a participação no NHIM E - Núcleo de Pesquisa em História e Memória da Educação da FACED/UFC sob coordenação do Professor Doutor Gerardo Vasconcelos.


Esse trabalho se divide em três seções, além da introdução e conclusão, que se acredita serem relevantes para o tema proposto, a saber: A pesquisa e o ensino

de História; A s cantigas de capoeira ã luz do pensamento benjaminiano; e A Escola e a Capoeira. Esses tópicos são direcionados ao estabelecimento de um pensamento de contestação ao ensino de história tal como ele se desenha hoje e utiliza a Capoeira para se fazer ouvir.

I. A pesquisa e o ensino de História

A chamada História Nova está mais interessada na cultura e nos aspectos sociais, conferindo menos importância às grandes personagens e acontecimentos singulares. Ela se interessa mais pelos costumes e pelos protagonistas anônimos (RODRIGUES, 2009). Benjamin (1994) diz em sua tese VI de seu último texto em vida, já citado nesse texto, a saber. Sobre o conceito de História que a transmissão dos bens culturais, da história deve ser arrancada às mãos do vencedor. Mas será que essa é a realidade em que vive as escolas? Antes de refletir sobre essa questão faz-se necessário conhecer um pouco sobre as mudanças no foco dos estudos de história.

No flnal da década de 1980, a expressão Nova História Cultural entrou em uso através de uma historiadora norte-americana chamada Lynn Hunt (2001) que publicou um livro com esse nome. A nova história cultural é, hoje, uma forma de história cultural bastante utilizada nas pesquisas. O interesse pela cultura popular aumentou, tornando a antropologia mais relevante para os historiadores. Uma forma de nova história cultural que é muito utilizada atualmente é a história da memória, descrita também como memória social ou memória cultural (BURKE, 2008). A história que quer se constituir, hoje, é a do tempo presente, a história dos vivos, não se trabalha mais apenas com o passado, com os grande nomes.

No Brasil, o ensino de história também vêm sofrendo modiflcações em sua abordagem, pelo menos em teoria. Em março de 2003, o governo Lula sancionou a Lei 10.639/03, que altera a LDB, A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira. A mesma estabelece diretrizes curriculares e sua implementação. Seu teor resgata historicamente a contribuição dos negros na construção e formação da sociedade brasileira. Trata-se de um marco para o movimento negro no Brasil.


O art. 26, § 4° da Lei n°. 9.394/96, a LDB, diz que: “O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.” Já o art. 26-A, § 1° e 2° da Lei supracitada nos diz o seguinte:

1.

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e políticas pertinentes à História do Brasil (Incluído pela Lei n°. 10.639, de 9.1.2003).

Tal texto é a valorização da cultura de matriz africana e afro-brasileira, onde a Capoeira figura em seu rol e pode dar significativa contribuição para sua efetivação. Sabe-se que o negro, assim como o índio são as figuras oprimidas e vencidas da História do Brasil. Hoje, o governo brasileiro tenta através de políticas afirmativas como essa reparar o dano causados a essas matrizes do povo brasileiro. Mesmo com essa nova abordagem, o ensino de história que acontece nas escolas públicas não está muito voltado para o pensamento dos vencidos. Geralmente,

0 ensino se processa com foco nos vencedores, mais parece um cortejo ao triunfo das classes dominantes. No interior das instituições, pode-se observar cartazes que são confeccionados nas aulas que reproduzem a história dos dominantes, a história oficial. Ao mesmo tempo, a escola abre as portas para a comunidade, para a diversidade cultural. A Capoeira é uma importante ferramenta nessa nova perspectiva do ambiente escolar. Atividade que representa o povo brasileiro, fruto da mistura das raças que já ganhou o mundo e se aperfeiçoa como instrumento de educação (FERREIRA NETO, 2009). Abaixo tentar-se-á descrever o pensamento benjaminiano sobre o conceito de história e sobre o combate que se processa dentro dessa área do conhecimento humano, entre os vencedores e os vencidos. Esse será relacionado às


cantigas de capoeira tentando identificar esse elemento estético com um instrumento de contestação a história dos vencedores.

II. As cantigas de capoeira à luz do pensamento benjaminiano.

No texto intitulado Sobre o conceito da História o filósofo da Frankfurter

Schuler, Walter Benjamin (1994), diz, em sua tese VII, que o historiador desenvolve uma relação de empatia com o vencedor. A seguir seu texto:

[...] se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores (BENJAMIN, 1994).

Essa tese é concernente ao problema da empatia ou da identificação afetiva com 0 passado. Ele afirma segundo Aquino (2009, p. 18) que “[...] quando de trata da história e da transmissão histórica, deve-se buscar saber com quem, nesse plano, se dá a empatia ou tal identificação afetiva”. Como foi visto a reposta só pode ser com

0 vencedor, com a classe que domina. “Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais” (BENJAMIN, 1994, p. 225). Ora 0 ensino de história não poderia se dirigir senão ao cortejo dos vencedores, pois o material produzido para as escolas durante muito tempo só privilegiava o discurso da classe dominante. Esses “ [...] bens culturais, a cultura

(Kultur), situam-se num processo histórico de transmissão que ele identifica metaforicamente a um ‘cortejo de triunfo’ dos vencedores” (AQUINO, 2009, p. 19).


A Capoeira sempre foi perseguida durante toda a história do Brasil e até hoje ainda permanece na mente de muitos, uma conotação perniciosa de sua prática. Ela ainda não é vista com bons olhos pois é prática daqueles que foram dominados. Suas cantigas, elementos estéticos indissociáveis de sua prática carregam em seu bojo conteúdo crítico que põe em xeque a tradição oriunda dos vencedores. Ora, pelos dois parágrafos acima percebe-se que há um disputa pela transmissão da história. Segundo Aquino (2009, p. 20) na tese VI do texto em estudo, Benjamin (1994) considera que todo o presente ao receber a cultura transmitida “configura-se num ‘instante de perigo’, visto que toda transmissão, dada sempre num instante histórico de disputa, repõe a luta entre vencedores e vencidos da história [...]” nessa luta, mais uma vez, os vencedores podem voltar a vencer “[...] o conteúdo da tradição quanto a própria transmissão histórica tornam-se objeto de disputa” (idem). Os vencidos não podem mais uma vez serem dominados, nas palavras de Benjamin (1994, p. 224): “O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apodera-se dela”. Aqueles que articulam o conhecimento histórico, sobretudo os historiadores ou os que propagam a história e a cultura necessitam ter o cuidado para fazerem justiça frente aos vencidos e dá voz a esses.

Articular o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. [...] O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (Benjamin, 1994, p. 224-225).

Aquino (2009) afirma que nessa tese há um convite a arrancar das mãos do vencedor a transmissão do saber histórico. As cantigas de capoeira realizam essa


tentativa, tanto em sua manifestação mais espontânea quando as composições brotam do homem mais simples, quanto quando essas composições seguem as regras e os estudos sobre a mesma realizadas pelos estudiosos da capoeira. Segundo Vieira (1998), Doutor em sociologia e Mestre de Capoeira, as cantigas possuem três funções básica, a saber, função ritual, mantenedor das tradições e de constante repensar histórico. Os cantos não são destituídos de significados, elas trazem inúmeras nuances da história do passado e do presente, dos grandes nomes da história e dos homens simples da Capoeira, mensagens de vida que permite ao cidadão comum identificar-se como membro de uma sociedade. Abaixo, aponta-se dois exemplos de cantigas onde os vencidos tomam a cena e figuram como personagens principais. A primeira é uma composição de Mestre Moraes, ele é uma grande referência para o mundo da Capoeira. Abaixo, transcreve-se parte de uma de suas cantigas intitulada Rei Zum bi dos Palmares:

A história nos engana dizendo pelo contrário até diz que a abolição aconteceu no mês de maio Comprovada essa mentira [...] [...] Viva 20 de novembro Momento pra se lembrar No dia 13 de maio Nada pra comemorar [...] [...] muito tempo se passaram E 0 negro sempre a lutar Zumbi rei nosso herói De Palmares foi senhor Pela causa do homem negro Foi ele quem mais lutou Apesar de toda luta Negro não se libertou [...] (sic)

Percebe-se a crítica em relação a História oficial. Em sua composição, nega, claramente, a versão oficial. Prossegue ressaltando a data que se comemora o Dia da


Consciência Negra e o grande símbolo da resistência negra, Zumbi. Mestre Moraes, finaliza sua cantiga lembrando que a luta pela liberdade ainda acontece nos dias atuais. O fim da escravidão não foi o início de um período de reparação, muito tempo se passou para que a consciência nacional acordasse para a responsabilidade que tem perante os afrodescendentes. 0 13 de maio é rejeitado, o verdadeiro herói é Zumbi. Em Isabel que história

é essa, cantiga do Mestre Tony Vargas, percebe-se as mesmas veredas percorridas pela composição anterior, apontando Zumbi como o grande herói, criticando a história da escola e ressaltando a vida cotidiana da favela, os quilombos de hoje, como fonte verdadeira. É a luta contra o conformismo expressa através de uma composição de origem popular.

Dona Isabel que história é essa; De ter feito a abolição De ser princesa boazinha [...] Estou cansado de conversa Estou cansado de ilusão Abolição se fez com sangue [...] A abolição se fez [...] Com a verdade da favela Não com a mentira da escola {sic) (VARGAS apud MATTOS & MATTOS, 1995, p. 98)

III. A Escola e a Capoeira

Na escola percebe-se um ambiente de disputa, o conhecimento histórico é objeto de disputa entre os vencedores e os vencidos. E percebe-se, claramente, pelas posturas dos educadores e dos interesses que permeiam esses espaços. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações

Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana há um princípio chamado consciência politica e histórica da diversidade que encaminha para


“valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, por exemplo, como a dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da leitura; educação patrimonial, aprendizado a partir do patrimônio cultural afro-brasileiro, visando a preservá-lo e difundi-lo” consta ainda que “o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africano se fará por diferentes meios, em atividades curriculares ou não” (MEC, 2004, p. 20). Tais tarefas podem ser realizadas a partir da Capoeira. Pois esta trabalha o corpo envolvido com a música. A escola não é a grande responsável pela transformação social, mas essa transformação não se fará sem ela. Ela só poderá ser o lugar onde os oprimidos adquirirão sua autonomia, se eles puderem adentrar nesse espaço. O primeiro passo é abrir suas portas para que eles possam entrar (GADOTTI, 1995). Hoje, o capoeirista, outrora marginalizado, já está dentro desse espaço educacional, realiza a antítese do pensamento dominante. “A educação informal convida a escuta dos anônimos [...] circunstância que faz da história oral uma escolha quase obrigatória no referido campo de investigação” (RO D RIG U ES, 2009, p. 438). A memória preserva a tradição e evita deformações e distorções sobre a história dos vencidos ou esquecidos. As cantigas são composições que resgatam a memória e perpetuam as tradições promovendo o constante repensar das mesmas. A memória pode preencher as lacunas deixadas pela história escrita ou encontrar um canal que possibilite o diálogo com o universo simbólico da história recente (VASCONCELOS, 2010, p. 102). Na Roda, quando o capoeirista está no jogo, sua expressão corporal é manifestada de várias formas, para Vasconcelos (2009, p. 15) “É como se o corpo se deslocasse o tempo inteiro em profundo equilíbrio que dança, interpreta, canta, chora, ri [...]”. O mundo se inverte e a figura do oprimido não é mais um sujeito sem importância, ele se reconhece como protagonista de sua história e interfere em sua comunidade deixando a marca de sua passagem, a história deixa de ser construída apenas pelo dominante (BENJAMIN, 1994). Seu saber oferece a manutenção viva da memória do conjunto de conhecimentos não formais, não institucionalizados e que compõem e mantém viva a consciência coletiva ritualística e ancestral dessa prática cultural. Tais características


remete ao entendimento de Le Goff (2003) que constantemente defende a pesquisa da memória do homem comum, das recordações e histórias locais. Entende-se, aqui, a figura do Mestre como um educador, antigamente e ainda hoje, o Mestre de Capoeira tem um grau de intimidade com o aluno, ele quer saber como está a vida deste. No contato do aprendiz com o Mestre de Capoeira se desenvolve uma relação de afeto que vai se construindo aos poucos. Abreu apud (CASTRO JÜN IOR, 2005p. 150) diz que:

A relação do mestre com o aluno na capoeira é uma relação extremamente importante porque ela é pessoal, e os ensinamentos são transmitidos como se fossem um segredo, com certo grau de intimidade [...] o mestre preocupa-se em está próximo dos alunos.

O capoeirista nega a realidade do estabelecido e prefere “viver a malandragem e a malícia na trama cotidiana da capoeiragem” (VASCONCELOS, 2009, p. 15). A mandinga, a malícia, as cantigas, a ancestralidade, o aprendizado mimético são alguns dos elementos que negam o status quo, negam a história oficial. A Capoeira tem um forte caráter negativo que se opõe ao Estabelecido. Sua essência libertadora, luta desde sua gênese, pela liberdade dentro e fora do universo da roda.

Considerações finais

As pesquisas de História mudaram bastante, tem-se, cada vez mais, dado a voz ao homem comum, os grandes homens e os grandes acontecimentos não são mais os únicos contemplados com a preocupação dos historiadores. Porém, o ensino que se processa nas instituições formais é bem diverso. A história oficial ainda é o foco do ensino. O Brasil não é o país do europeu, em sua constituição há pelo menos três matrizes, a saber, o índio que já estava em Terras brasilis, o branco, invasor, colonizador;


e 0 negro, escravizado por este último. As leis brasileiras tem caminhado no sentido de dar voz aos outros integrantes dessa matriz cultural. O problema que as mudanças se processam lentamente e o que se vê ainda é a história dos dominadores ou vencedores. Nesse período de adaptação aos novos parâmetros, a escola permite a constituição de espaços de resistência, embora sejam controlados de longe pelos gestores. A escola abre as portas para a comunidade e esta expressa através de suas inúmeras manifestações culturais o sentimento de contestação ao estado imposto pelos dominantes. A Capoeira através das rodas é um desses espaços de afirmação do oprimido. Refletiu-se aqui sobre a roda de capoeira como um espaço de resistência cultural onde o dominador tem dificuldade de se estabelecer. A cultura oral que se processa na composição das cantigas não demonstra empatia com o vencedor. Esse é rechaçado nas composições e os ídolos e heróis são louvados como representantes dessa arte marginal.


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DINHEIRO E INVERSÃO ÜNIVERSAL: SOCIEDADE MODERNA, CONTRADIÇÃO E AMBIGÜIDADE NA CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA ÁLVARO LINS MONTEIRO MAIA - Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). alvarolinsmm@gmail.com

Resum o: Pretende-se expor, com base na crítica social de Marx, certa leitura das relações que se estabelecem na sociedade moderna, no âmbito da circulação de mercadorias. O dinheiro, onde se incorpora do modo mais luminoso a natureza reificada das relações sociais, é uma forma que ofusca o caráter coletivo dos trabalhos privados e, com isso, as relações sociais entre os trabalhadores. A contradição presente na mercadoria entre valor de uso e valor (que adquire independência como valor de troca no dinheiro) desdobra-se na forma ambígua dos produtos da atividade social, como processo social que aparece como natural. Na apresentação das relações fetichistas que se mostram na aparência social desse sistema econômico, intenta-se expor como, nas próprias formas alienadas, desenvolvem-se as condições sociais de emancipação dos indivíduos modernos sob 0 aspecto de uma inversão universal das individualidades, operada pela forma dinheiro da produção social, nas relações cotidianas da circulação de mercadorias.

Palavras-chave: dinheiro, inversão universal, contradição, ambigüidade

N° 6 - 02/2014


Introdução

om base na crítica da experiência social em Marx, a análise e apresentação da

C

gênese, essência e desenvolvimento das formas do dinheiro é o topos de onde se pode acompanhar de maneira mais clara o desenrolar lógico que busca

traduzir o processo histórico da formação social atual, não obstante aí a crítica teórica ter de lidar justamente com as figuras da aparência e do falso (nas suas relações com a

verdadeira essência do sistema). Isso porque o processo desencadeado pela relação capital, no desenvolvimento pleno das formas mercadoria e dinheiro, opera um avanço contraditório das forças produtivas sociais, na medida em que esse avanço processa-se de modo alienado em relação aos indivíduos membros dessa sociedade, pois que o impulso da relação capital é 0 de apropriar-se da atividade social fazendo-a aparecer como seu desenvolvimento próprio, como um desenvolvimento que se processa alheio aos indivíduos, submetendoos como meros joguetes e espectadores. Nesse avançar alienado das forças produtivas sociais, contudo, o capital põe em ação também as condições sociais que permitem a superação da forma de sua própria potência alienada. A contradição imanente ã relação capital banha com sua luz dúbia os produtos e relações sociais dessa sociedade; sendo a ambigüidade a forma aparente na qual se desdobra a contradição originária e fundamental da ordem social vigente. Isso na medida em que essa relação fundante - de submissão da atividade social viva desenvolve-se na base da relação monetária (para a qual ela cria ao mesmo tempo as condições de possibilidade de desenvolvimento); relação essa que é ilusória e ofuscante “por natureza”.


Capital e aparência social: a vida cotidiana como inversão universal das

individualidades^ nas relações sociais mediadas pelo dinheiro

A redução do trabalho humano concreto a trabalho abstrato sob a forma do valor, decorrente do assalariamento - processo que se imbrica com a determinação do valor dos produtos como preço por meio dos custos de produção

foi o processo através do

qual a relação monetária se generalizou como a relação universal entre os indivíduos dessa sociedade.

O pressuposto elementar da sociedade burguesa é que o trabalho produz imediatamente valor de troca, por conseguinte, dinheiro; e então, igualmente, que o dinheiro compra imediatamente o trabalho e, por isso, o trabalhador tão somente na medida em que ele próprio aliena sua atividade na troca. Portanto, trabalho assalariado, por um lado, e capital, por outro, são apenas outras formas do valor de troca desenvolvido e do dinheiro enquanto sua encarnação^.

Assalariar significa tornar um indivíduo livre de toda e qualquer propriedade em sentido capitalista, portanto, propriedade dos meios de produção da vida - exceto a posse da sua força de trabalho pessoal, para que assim ele seja livre para escolher a quem vender essa força de trabalho a fim de garantir sua sobrevivência. Vender a força de trabalho significa que em troca do salário alguém cede toda a sua produção ao comprador desse único produto que aquele indivíduo dispunha para pôr à venda. Com isso garante-se que a grande massa da população de assalariados não tenha outra forma de reproduzir a própria existência a não ser por meio da compra das mercadorias (produzidas pelos próprios assalariados) com o dinheiro que obteve da venda da única mercadoria que possuía.

' MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, p. 160. ^ MARX, Karl. Grundrisse [149-150], p. 169.


Pela mediação do dinheiro - que se generaliza por força do próprio assalariamento a situação de exploração é constantemente ofuscada. O dinheiro como capital é a forma universal mais determinada do tempo de trabalho, cujo valor constitui a forma abstrata. O tempo de trabalho se torna valor na medida em que os trabalhos concretos se relacionam uns com os outros como equivalentes, quer dizer, na medida em que cada qual vale tanto quanto qualquer outro, aceitando diferenças apenas quantitativas: mais ou menos tempo de trabalho. Essa atividade abstraída das suas qualidades cria um produto abstrato, o valor, que na sua existência abstrata habita os corpos particulares das mercadorias. Quando, pelo hábito das trocas - que aparece como pressuposto de todo 0 processo -, uma mercadoria se sobressai como encarnação do valor (união das duas naturezas: a universal e a particular, a infinita e a finita), essa mercadoria se torna dinheiro^ Pela sua única determinação qualitativa de só aceitar variações quantitativas,

0 dinheiro emerge de toda metamorfose das trocas com o mesmo semblante com o qual imergiu^ Mesmo que entre ou saia do mercado mais ou menos dinheiro, ou que ele se troque uma, duas ou 666 vezes, todavia, o dinheiro não carrega nenhum termo circunstancial de ocorrência. Ele circula livre, e o modo como se apresenta agora é o mesmo de como foi e de como será, sem medo e sem mácula. O assalariado, devido à capacidade do dinheiro de tornar universal e abstrata toda relação reaP - e com isso ofuscar, ao mesmo tempo em que medeia, as particularidades em relação -, permanece, no geral, incônscio do grau real de sua exploração até que amadureça a luta social que faz despertar a consciência adormecida. No mesmo sentido, o desenvolvimento desigual entre o capital do proprietário e 0 salário da massa proletarizada beneficia-se desse caráter ofuscante da relação expressa pela forma monetária. Assim, a exacerbação da luta de classes põe às claras não só essa ilusão difusa na aparência social da troca de equivalentes, mas o próprio caráter fundamentalmente beligerante dessa sociedade, na medida em que éjustamente a relação contraditória entre capital e salário - denominações monetárias dos dois

^ M dem [97-98], pp. 112-113. MARX, Karl. 0 Capital, 1,4,1, pp. 226-227. ' MARX, Karl. Grundrisse [18], p. 100.


polos em guerra - que funda essa formação histórico-social e possibilita a extensão e generalização das formas difusas da mercadoria e do dinheiro a toda esfera de relação entre os indivíduos. Querdizer,ocapital-leia-se,asmercadoriaseodinheiroempossedo proprietário capitalista

no seu processo de conservação, que implica em sua autovalorização,

busca erigir-se como único sujeito de todo o processo. Com isso, busca consumir, no seu autodesenvolvimento - no seu devir-sujeito-absoluto do processo de produção e reprodução social -, a sua contraparte: a força de trabalho viva dos indivíduos.

Aparece aqui também uma mistificação inerente à relação capitalista: a faculdade que o trabalho possui de conservar o valor apresentase como faculdade de autoconservação do capital; a faculdade que possui 0 trabalho de gerar valor (apresenta-se) como faculdade de autovalorização do capital - e, no conjunto, e, por definição, o trabalho objetivado aparece como se utilizasse o trabalho vivo.®

Mas se a força de trabalho (nos termos do capital, o salário, a sua denominação monetária) é o único componente capaz de fazer valorizar o capital pela absorção de trabalho vivo, o processo de devir-sujeito-absoluto do capital é utópico e autodestrutivo, possibilitando a emergência da luta de classes, gestadora do instante revolucionário: ou seja, a tentativa dos reais sujeitos do processo - os indivíduos por meio de sua atividade sensível-prática - de se reapropriarem do mesmo e de suas vidas expropriadas. Nesse sentido, os únicos meios pelos quais o capital pode se manter como processo são a coerção direta - operada sobretudo pelo aparato policial do Estado ou 0 segredo, a mentira e a ilusão - produzidas “naturalmente” pelo sujeito capital mistificado no desenvolvimento e generalização das formas difusas fetichizadas do dinheiro e da mercadoria, que, como se disse, velam os processos de gênese e desenvolvimento do capital e a sujeição dos indivíduos no processo de trabalho.

’ MARX, Karl. Capítulo VI inédito de 0 Capital, p. 89.


Na ilusão objetiva dessa sociedade, os indivíduos aparecem como estranhos aos demais, sua comunicação e sua linguagem como um instrumental exterior e estranho a eles. E o mesmo indivíduo aparece como estranho a si, na medida em que seu desenvolvimento e formação próprios obedecem às leis de uma existência abstrata de si mesmo - contudo a existência pela qual é reconhecido socialmente -, uma existência como valor, como mercadoria, como Ersatz à disposição do mercado, que submete seu devir vivo existente a ela, conformando a atividade material e aquilo que ela implica necessidades, desejos etc. - aos seus imperativos, e descartando como resto a matéria inconformada. Quer dizer, essa potência abstrata se constitui da atividade humana produtora de valor de uso, apropriando-se contudo dela e transfigurando-a em imagem sua. Essa transfiguração e reciclagem da atividade material, evidentemente, não se resume somente ao âmbito psicológico subjetivo, mas estende seu domínio ã totalidade das “configurações da vida, das construções duradouras às modas passageiras”^ de modo que se trata tanto da situação em que a aparência sensível mostra-se subjugada, transfigurada e conformada à imagem do sistema, que se expressa como aparência objetiva do cotidiano da sociedade produtora de mercadorias em grau generalizado, como também se trata da conformação operada por essa mesma aparência objetiva do sistema, que nada mais é do que controle do trabalho e sua submissão à lógica de acumulação de capital por meio do processo de produção e circulação mercantil, que nada mais é, portanto, do que controle e submissão dos corpos dos trabalhadores, seja policialmente ou persuasivamente por meio da “sugestão hipnótica” da circulação mercantil. Ademais, juntamente com a compreensão do processo de transfiguração da realidade na abstração - que passa a valer como realidade efetiva -, trata-se de, fazendo retroagir toda relação exposta até aqui, compreender o imbricamento dessa inversão universal das individualidades com a condição social mediada objetualmente sob a regência da relação de valor autorreferida (em seu processo de autovalorização), quer dizer, sob a regência do capital.

’ BENJAMIN, Walter. Passagens. Exposéde 1935, p. 41.


A dicotomia expressa na forma elementar da mercadoria entre valor de uso e valor - resultado já da dicotomia presente na produção entre processo de trabalho e processo de valorização - atualiza-se ainda em outra dicotomia entre mercadoria e dinheiro*, na medida em que o valor adquire forma autônoma como valor de troca no preço e na moeda. Estas formas autonomizadas, tendo-se despregado do seu conteúdo real na atividade social, trocam-se com essa mesma atividade - o trabalho social - como se fossem potências estranhas, de outras instâncias, em um movimento no qual causa e efeito do processo se diluem mutuamente metamorfoseando-se em seu contrário. Nesse sentido, preço e moeda parecem se relacionar com o trabalho como símbolos arbitrários em cuja aparência é ofuscada a relação lógica e histórico-social com o mesmo. Por conta disso, a relação de exploração contida na troca de não equivalentes, expressa na relação de assalariamento, aparece como uma troca de equivalentes entre a força de trabalho e o “símbolo arbitrário” do dinheiro, que esconde o fato de que o trabalhador, com o trabalho apropriado pelo capitalista, paga seu próprio salário e dá ao capitalista o mais valor pelo qual seu capital se valoriza.

Esta perpetuação da relação entre o capital como com prador e o operário como vendedor do seu trabalho constitui um a forma da mediação im anente a esse m odo de produção; é contudo um a forma que só form alm ente se diferencia das outras formas mais diretas de sujeição do trabalho e da propriedade das condições de produção por parte dos possuidores dessas condições. Encobre, como mera relação monetária, a transição real e a dependência perpétua que tal m ediação da com pra/venda renova constantemente. N ão são apenas as condições deste comércio que se reproduzem de maneira constante: o que um com pra e o outro se vé obrigado a vender é um resultado do processo. A renovação constante desta relação de com pra/venda não faz mais do que mediar a continuidade da relação específica de dependência e confere-lhe a aparência falaz de um a transação, de u m contrato entre possuidores de mercadorias dotados de iguais direitos e que se opõem de m aneira igualmente livre. Esta relação introdutória agora apresenta-se, inclusivamente, como elemento im anente desse predom ínio do trabalho objetivado sobre o trabalho vivo que é gerado na produção capitalista.®

« MARX, Karl. Grundrisse [79], p. 94. 9 MARX, Karl. Capítulo VIinédito de 0 Capital, p. 137.


O trabalhador assalariado não percebe facilmente na forma alienada do salário

0 grau de sua exploração (e do mesmo modo o capitalista, que pela posição que ocupa torna-se mais lento para percebê-lo). A abstração resultante da forma dinheiro - que, enquanto nega a individualidade do trabalho e dos produtos gerados, universaliza as relações que os produzem - apaga toda diferença qualitativa expressa no valor das mercadorias - capital contante e variável, matérias-primas, instrumentos de trabalho, salário e mais valor - em uma figura matemática fria, no seu preço. Porém, as relações que a gestam ainda estão lá, na figura nada inocente da mercadoria. “O processo imediato de produção é aqui, de maneira permanentemente indissolúvel, processo de trabalho e processo de valorização assim como o produto é unidade de valor de uso e do valor de troca, isto é, mercadoria”“. No símbolo matemático expresso no preço das mercadorias esconde-se, portanto, toda particularidade da produção social no sistema capitalista. Esconde-se aí toda a expropriação das condições sociais de vida elaborada pelos indivíduos dessa sociedade. Na medida em que no dinheiro não se diferenciam as partes que o compõem, todo montante de dinheiro que adentra o mercado para funcionar potencialmente como capital, na proporção em que vai absorvendo mais valor e incorporando-o a si, não se mostra qualitativamente diferente de como iniciou todo o processo. Assim,

0 preço da força de trabalho pode aparecer como se nele fosse pago o preço de todo 0 trabalho. Quer dizer, mesmo que o capital inicial já se tenha duplicado, e que o investimento do capitalista já tenha sido pago pelo trabalho alheio de seus empregados assalariados; ainda assim, o capital jamais aparece como propriedade coletiva daqueles trabalhadores associados, mas aparece sempre como propriedade de si mesmo na sua figura personificada, o capitalista

Compreende-se, assim, a importância decisiva da transformação do valor e do preço da força de trabalho na forma-salário ou em valor e preço do próprio trabalho. Sobre essa forma de manifestação, que torna invisível a relação efetiva e mostra precisamente o oposto dessa relação, repousam todas as noções jurídicas, tanto do trabalhador

'"Ibidem, p. 144.


como do capitalista, todas as mistificações do modo de produção capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as tolices apologéticas da economia vulgar.^

Dinheiro, inversão universal e hierarquização social

A inversão e apagamento das particularidades da produção social operadas pela forma dinheiro desses produtos é também inversão universal da individualidade dos membros dessa sociedade, na medida em que sua força de trabalho se põe igualmente como mercadoria no assalariamento. As diferenças reais - de classe - aparecem veladas por diferenças de renda e salário: destaca-se na hierarquia social a figura aparente de uma classe intermédia que, na maioria dos casos, não se identificando nem com a classe proletária e nem com a classe proprietária, surge como sustentáculo de valores sociais passados, numa relação reacionária com o presente. Para se compreender esse aspecto, é necessário ter presente que o processo de abstração do trabalho e da produção sob a relação capital opera uma espécie de planificação social potencial. Todo produto é mercadoria, em cujo valor social universal desvanece toda diferença qualitativa. Da mesma forma, todo trabalho, como produtor de mercadorias, vale como qualquer outro. Por conseguinte, todo trabalhador, sob a condição do assalariamento, vale qualitativamente tanto quanto qualquer outro. Sobretudo com a introdução da maquinaria na fábrica - e com a facilidade de operação do maquinário - a igualdade social dos trabalhadores cristaliza-se e assume o caráter de “valor moral eterno”. Potencialmente, portanto, como assalariados, toda diferença racista, sexista, etária etc. é negada diante da abstração mesma da determinação que forma a essência universal do indivíduo moderno. Contudo, aquilo que determina potencialmente a condição universal do indivíduo moderno - quer dizer, diante da abstração qualitativa, autorizar tão somente diferenças quantitativas -, essa determinação, portanto, que se efetiva na figura

" MARX, Karl. 0 Capital 1,17, p. 610.


do direito abstrato moderno, opera em ato não uma negação cabal das diferenças hierárquicas tradicionais, mas uma transfiguração dessas diferenças em novas configurações hierárquicas, que aderem à aparente arbitrariedade do signo monetário - resultado, como já se comentou antes, do desenvolvimento das relações entre valor, preço e moeda inerentes á mercadoria-dinheiro. Assim como dinheiro não é imediatamente capital e, dado o desenvolvimento cada vez maior das relações de produção capitalistas, a capacidade do dinheiro de se tornar capital está ligado á crescente magnitude de sua determinação quantitativa - de modo que, com a amplitude do seu montante, uma diferença quantitativa se converte em diferença qualitativa

da mesma forma, a dita arbitrariedade aparente do

signo monetário adapta-se aos preconceitos sociais tradicionais e, ao mesmo tempo, configura novos patamares hierárquicos^^. O homem branco, heterossexual e cristão possui mais valor de mercado - e, por conseguinte, mais valor, pura e simplesmente do que a mulher negra, homossexual, de religião afro-descendente. Desse modo, as diferenças salariais - fruto das formações profissionais diferenciadas que, desde o início do processo, já são determinadas socialmente pelas hierarquias tradicionais - gestam no seio da classe proletária uma hierarquização monetária de classe - classe B, C, D... - que mantém, forma e sustenta toda espécie de preconceito social na base da inversão universal operada pela figura do dinheiro. Querdizer,desdeoinstanteemqueosindividuosproletarizadossãoreconhecidos como iguais e de igual valor - pois que aparecem negadas as suas diferenças sob a base do reconhecimento universal como assalariados: trabalhadores que trocam sua força de trabalho pelo valor universal do dinheiro, o penhor universal que planifica e abstrai toda a realidade sob um mesmo denominador comum e aparentemente arbitrário - a partir desse instante, então - e na medida em que a figura do dinheiro reflete a figura mais obscura da relação capital -, a desigualdade é mantida, reformada e reposta. Todavia, a transfiguração das hierarquias tradicionais sob a base do signo monetário avança inclusive, contraditoriamente, na forma da própria luta contra a

Cf. DEBORD, Guy. 0 declínio e a queda da economia espetacular-mercantil; e também, AMARAL, Ilana Viana. Teses pelo fim do sistema de gêneros.


cristalização desses preconceitos sociais herdados. Nesse sentido, a especificidade das minorias excluídas, tal como se fossem mercadorias exóticas em exibição no mercado - uma especialidade da produção posta a venda -, adquirem um caráter narcisico que erige uma individualidade contra as demais individualidades, em um processo que, ao invés de superar essas determinações sociais tradicionais - libertando os indivíduos sob uma base universalmente concreta -, enrijece essas determinações sob uma base universalmente abstrata^, no modelo das relações entre mercadorias.

Dinheiro, desejo, “individuidade” e estruturas inconscientes

Porém, sobeja ainda do caráter universalizante da relação monetária outras implicações, intimamente associadas às anteriores. Na medida em que as relações sociais entre os indivíduos - e por conseguinte o poder social de que cada pode dispor existe exteriormente de forma reificada no dinheiro, essa coisa - o dinheiro - dá forma e permite a expressão - por meio da elaboração de um impulso desmesurado de desejo - de uma força desejante não mais particular - ligada a um objeto particular da riqueza -, mas a um desejo universal, infinito e desmesurado do indivíduoi^; pode-se dizer, a um desejo essencial ou ã essência do desejo. Isso se soma ao fato de, nessa sociedade, a existência privada desses indivíduos não constituir uma individualidade verdadeiramente desenvolvida e concreta, de modo que 0 desenvolvimento dessa “individuidade” opera-se de forma alienada na coisa que concentra em si a condição de sociabilidade da existência desses indivíduos: a coisa que existe como materialização da relação social. Dessa forma, o impulso de constituição dos indivíduos modernos existe como desejo universal encarnado no produto mais característico dessa ordem social: o dinheiro como conexão social alienada. Marx esclarece que esse desejo insaciável - porque se alimenta, não obstante, de um objeto particular que encerra em si a relação universal - constituía um fator

Cf. AMARAL, Ilana Viana. Teses pelo fim do sistema de gêneros. MARX, Karl. Grundrisse[146], p. 165.


dissolutor das ordens sociais antigas; daí sua condenação explícita pelos antigos e o recalcamento desse desejo do indivíduo voltado à forma social universal reificadai^ Contudo, desde que a sociedade moderna se erige sobre o fundamento mesmo da relação universal do dinheiro, esse desejo insaciavelmente desejante- que corresponde à própria elaboração da “individuidade” dos indivíduos - encontra vazão para se expressar. Com isso, as estruturas psíquicas e sociais ligadas a esse desejo universal são capazes de manifestar-se por meio da elaboração objetiva da coisa-dinheiro. Nesse sentido, pode não parecer surpreendente que o desenvolvimento da psicanálise - e o descortinamento das estruturas inconscientes da psiquê humana, em um processo mesmo de constituição da “individuidade” dos indivíduos - tenha se tornado possível (e esse seria mais um aspecto positivo da existência dessas formas alienadas, juntamente com seus aspectos miseráveis) com o estabelecimento pleno do modo de produção capitalista no século X IX e a generalização da relação monetária como modelo de relação social objetiva. Se o isso do inconsciente é essa massa desejante amorfa, no dinheiro como objeto universal - muito embora sob a forma de uma coisa particular - esse desejo encontra um modo de expressão. Contudo, a consideração de que, não obstante expresse a relação universal, o dinheiro seja um objeto particular é tudo menos irrelevante para o problema em questão. Deus ou 0 Absoluto são objetos universais. Todavia, o Cristo, como espírito que se fez carne, é, tal qual o dinheiro - espírito social encarnado -, um objeto universal encerrado em forma particular. Por essa razão Marx considera o Cristianismo, como culto do homem abstrato - sobretudo em sua versão protestante -, a religião mais apropriada ao espírito burguês“ . Daí autores contemporâneos como Giorgio Agamben - guiado pelo aporte benjaminiano da questão - afirmarem que Deus não morreu, tornou-se dinheiro^^ [Não cause espanto, ademais, o poder desagregador que também

0 cristianismo potencialmente gerou em relação às estruturas de organização social tradicionais- ao mesmo tempo em que transfigurou essas estruturas sob novas formas.]

M dem [147], pp. 165-166. MARX, Karl. 0 Capital1,1,4, pp. 153-154. “Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro”. Entrevista com Giorgio Agamben. In: http://www.ihu. unisinos.br/noticias/512966-giorgio-agamben


Mas 0 fato é que, tal como Deus - ou a figura de um Pai primevo - o dinheiro igualmente, como forma social alienada, portanto, como objeto que apela para a ausência de controle e autonomia dos indivíduos em relação às suas vidas - é capaz de ativar estruturas inconsciente ligadas à culpa e ao desejo de redenção e salvação que a submissão e a posse do mesmo pode proporcionar. Quer dizer, mesmo as estruturas super-egóicas também extraem força da relação reificada do dinheiro. Nisso, pelo fato de todo produto da sociedade moderna produtora de mercadorias ser marcado pela ambigüidade - que expressa nada mais do que a forma aparente da contradição universal fundante dessa ordem social -, o dinheiro - como forma social mais característica da atual sociedade - carrega - não obstante como forma alienada e estranhada das relações dos indivíduos - uma possibilidade de libertação individual, na medida em que, com a sua posse, o indivíduo pode ter acesso ao gozo de toda a realidade que se lhe apresenta.

Considerações finais

Juntamente com o fenômeno da transfiguração das estruturas hierárquicas tradicionais, essa válvula de escape para a expressão das estruturas sociais inconscientes - possibilitadas pela existência das condições sociais modernas alienadas na figura da coisa dinheiro - constituem verdadeiros motores para a eclosão de revoltas e regimes fascistas por toda a face do mundo moderno. Nesse sentido, a hierarquização social sustentada na base da abstração monetária ativa uma série de ordens hierárquicas inconscientes que encontra solo fértil justamente na camada social que mais teme se proletarizar - posto que acredita não ser já desde sempre proletarizada

as chamadas

classes médias. É por isso que a luta proletária realmente revolucionária é somente aquela capaz de negar o dinheiro e sua figura embrionária: a mercadoria. Ou seja, se mercadoria e dinheiro fornecem a forma alienada através da qual as condições sociais de libertação dos indivíduos são elaboradas sob a regência da relação capital, na mesma proporção


- justamente por serem formas alienadas de elaboração dessas condições sociais essas formas sociais do produto e das relações condenam os indivíduos, sob a base das condições sociais mais modernas, às relações sociais e hierarquizações mais arcaicas^* - por exemplo, os regimes fascistas. A submissão e conformação dos corpos aparece como um esvaziamento das condições sociais dos indivíduos, que se elaboraram exteriormente a eles, de forma reificada e autônoma. Essa pobreza de experiência social^^ dos indivíduos modernos lança-os em uma nova barbárie cujo objeto de pilhagem é justamente o controle imediatamente coletivo das condições sociais alienadas dos mesmos. Nesse sentido, a crítica da economia política de Marx fornece amplos elementos à contraparte teórica revolucionária da luta insurrecional dos indivíduos pela tomada de consciência e controle da vida que lhes tem sido expropriada - muito embora seja um fruto também dessa luta. Assim, a destruição das formas sociais sob as quais se elaboraram as condições alienadas de libertação dos indivíduos, na construção de formas sociais autônomas de produção e gestão, é a senda pela qual passa toda luta verdadeiramente revolucionária. Do mesmo modo, é o destino de toda luta de libertação revolucionária sua associação com 0 crime; o que tão somente revela que, sob as leis de exploração do capital e da circulação de dinheiro e mercadorias, toda crítica real e verdadeira assume não apenas a figura inocente do crime político, mas é, sobretudo, para essa sociedade, um crime social.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Exposéde 1935, p. 41. Cf. MARX, Karl. Manuscritos econômico-fllosóficos', e também, BENJAMIN, Walter. Experiência e

pobreza.


Referências bibliográficas MARX, Karl. 0 capital: crítica da economia política: Livro 1:0 processo de produção do

capital, [tradução de Rubens Enderle]. São Paulo: Boitempo, 2013. _________ . Capítulo VI inédito de 0 Capital, resultado do processo de produção imediata. tr. br. Klaus Von Puchen. São Paulo: Centauro, 2004. _________ . Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da

economia política. Trad. br. Mario Duayer, Nélio Schneider (colaboração de Alice Helga Werner e Rudiger Hoffman). São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011. _________ . Manuscritos econômico-fllosóflcos. Trad. br., apresentação e notas Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010. AMARAL, Ilana Viana. Teses pelo fim do sistema de gêneros. Disponível em: https:// sites.google.com/site/comuneiro/home/teses-pelo-fim-do-sistema-de-generos Acesso em: 03/09/2014. BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. br. Irene Aron e Cleonice P. B. Mourão. Org. W illi Bolle e Olgária Matos. Belo Horizonte: Editora da UEMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. _________ . Experiência e pobreza, In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e

Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1994. D EB O RD , Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução Esteia dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. _________ . 0 declínio e a queda da economia espetacular-mercantil. In: Sopro 2^/29. Trad. Leonardo D ’Ávila de Oliveira e Rodrigo Lopes de Barros Oliveira. Desterro: Cultura e Barbárie, maio-junho de 2010. Publicação quinzenal da editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org

“Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro”. Entrevista com Giorgio Agamben. In: Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/ noticias/512966-giorgio-agamben

Acesso em: 14/11/2014.


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FOTOGRAFIA 3X4: BELCHIOR E A FAÍSCA RELAMPEJAR UMA ANÁLISE CRÍTICO-LITERÁRIA EM WALTER BENJAMIN FRANCISCO GABRIEL SOARES DA SILVA - Graduando em Filosofia Licenciatura pela Universidade Federal do Cariri (UFCA). gabriel.engmat@gmail.com

Resum o: A partir dos conceitos de experiência em “Experiência e Pobreza” e dos elementos narrativos de “O Narrador” em Walter Benjamin, propomonos a uma leitura que busque uma mediação com Belchior, musico cearense, em “Fotografia 3x4”, tomando essa manifestação artística e cultural, podemos incinerar, e retirar desde o início das chamas, até a sua completa combustão e conversão em cinzas, elementos que permeiam uma retratação de um tempo vivido por camadas de pessoas que se deslocam para terras distantes na intenção de buscar a felicidade. Belchior vive a experiência, de forma que sua dor é transfigurada na mais sublime forma estética, ao contar o que vivera de forma tão singular. As concepções benjaminianas de um declínio da experiência e de uma forma literária nos mostram caracterizações de novos tempos, marcados por um esvaziamento de sentido. Nosso cantor vem colocar-nos a necessidade de disputa, resistência e reconfiguração do papel da narração em nosso tempo.

Palavras-chave: Experiência, Belchior, Arte, Benjamin N° 6 - 02/2014


I -“VIVIA O DIA E NÃO O SOL, A NOITE E NÃO A LUA” -SOBRE AS QUESTÕES DA EXPERIÊNCIA.

As experiências estão em baixa! Isso é absurdamente incompreensível, mas olhe novamente, pegue a lupa e vamos passear pelo laborioso mundo das formulações de Walter Benjamin, um homem que poderia muito bem ser uma lenda, não pelo seu legado material, mas sim pelas histórias que marcaram a sua vida. Em Experiência e Pobreza, texto escrito em 1933, ano em que o Nazismo ascende categoricamente na Alemanha e passa a perseguir, sobretudo, judeus e comunistas/marxistas e qualquer um que não se enquadrasse na concepção Ariana que

0 Partido Nazista reivindicava. Esse foi o ano em que Walter Benjamin foi obrigado a fugir para a França, e a essa época sua vida havia se tornado suntuosamente horrenda, banhada de miséria em cada passo, em cada esquina. Uma das perspectivas de ter escrito “Experiência e Pobreza” foi marcado pela necessidade objetiva de comer, pois havia enviado para a revista Die Welt im Wort coordenada por Willy Hass que se instalara em Praga. Concluído o escrito e enviado para a publicação recebe a tardia noticia de falência da revista, ficando assim Benjamin sem receber seus honorários.^ Para além do aspecto sócio-histórico da escrita desse texto, ele é um legado que transpassa desde a filosofia, estética até a política. Benjamin vai mostrar o que seria a experiência (Erfahrung), por que ela estaria em baixa e quais as implicações disso no cotidiano. Pois bem, nosso autor coloca que não temos mais a capacidade de parar, sentar ã lareira e ouvir nossos velhos, os tempos são outros, a alta velocidade é o que define nossa vida no mundo contemporâneo. Perdemos a concepção de tradição,^ ao modo grego, que fora construída individualmente, mas pelo reforço da memória coletiva de um povo, presentes em seus cultos e rituais. O declínio da experiência está completamente atrelado ao desenvolvimento da técnica. Quando nasce a imprensa, é manifesta a marca do início da perda da tradição

' Walter Benjamin. Comentários: Experiência e Pobreza. In: OAnjo da História. São Paulo: Autêntica, 2013. p. 216. ^ Entender tradição como cultura que é construída coletivamente e não enquanto dogmas irrevogáveis.


oral, onde a experiência que era passada oralmente de pai pra filho vai perder lugar para os livros. Os livros atrofiaram com o tempo nossa capacidade mimética, pois o que é considerado memória coletiva ficou encrustado agora na tinta e no papel, calando assim as bocas e afastando os homens de suas tradições, das experiências compartilhadas coletivamente. Com 0 passar do tempo há aspectos mais emudecedores orquestrados pelo desenvolvimento da técnica. Quando da P Guerra Mundial o combate não é mais honrado pela espada e nem o combate corpo-a-corpo, as armas de destruição em massa, bombas químicas não vieram a destruir apenas corpos, a carne e os ossos dos combatentes, mas vem introjetar uma configuração no imaginário humano, sobretudo nos soldados que foram para os campos de batalha e passaram intimamente pelo contato com o massacrante da guerra, pois o aspecto radicalmente destrutivo das armas lhes arrancou a voz, tornando-os perplexos e traumatizados.

[...] Não se tinha, naquela época, a experiência de que os homens voltavam mudos do campo de batalha? Não voltavam mais ricos, mas mais pobres de experiências compartilháveis. Aquilo que, dez anos mais tarde, na grande vaga dos livros de guerra, era tudo menos experiência contada e ouvida.^

A técnica no seu desenrolar, vem também formatar a vida e o tempo das pessoas, o contatocom a máquina vaimecanizando-as, transfigurando-asem autômatos que na reprodução de seus trabalhos não refletem, mas apenas mantém o ritmo fabril em suas vidas. A humanidade que se encontra completamente esvaziada de sentido, calada e afastada de sua cultura pela velocidade das coisas faz com que se distancie e atrofie aquilo que Benjamin vai conceber como experiência autêntica (Erfahrung), que está ligada á memória coletiva, mas ao mesmo tempo individual, onde as pessoas através de rituais^ têm experiências isoladas, mas que se contextualizam tornando-se

^Walter Benjamin. Experiência e Pobreza. In: 0 Anjo da História, p. 86.


assim experiência coletiva, manifestando uma cultura e tradição que é repassada aos mais novos pelos rituais, sendo tocadas pelas palavras anciãs. Havia um sentido na vida. O homem moderno está exposto a uma série de excitações externas que lhe pedem em cada esquina, em cada outdoor, em cada fachada luminosa, sua completa atenção, e com isso é exposto a choques que o fazem atrofiar a memória como autodefesa do psiquismo, que não consegue se atentar a tudo na velocidade que lhe é imposto, então num grito tenta conscientizar-se de todos os processos, mas retirando suas significações. A partir da modernidade o sentido é perdido e esvaziado pelo cansaço físico e psíquico, pois a vida torna-se veloz e frenética. A concepção cristã do inferno torna-se viva no cotidiano: o corpo é deteriorado durante todo o dia e recomposto ã noite para que no dia seguinte sofra novamente as mesmas mazelas infinitamente. Com isso 0 cansaço psíquico e físico vai destruindo aos poucos o corpo humano, esvaziando de sentido a vida, pois essas experiências nada lhe agregam, são apenas um amontoado de informações. O Olho tem que atentar-se para tudo. E essas “experiências” Walter Benjamin vai distanciar da concepção de Erfahrung, chamando- as de Erlebnis (vivência), pois são apenas coisas vividas que não agregam nada ao indivíduo. Isso é a configuração do mundo em nossos tempos, aparentemente não se pode nada fazer senão sobreviver. W illi Bolle esclarece essa questão numa nota de rodapé presente no livro das Passagens, onde pontua que:

Um traço marcante do pensamento de Benjamin é a diferenciação entre “experiência” e “vivência”. Enquanto

Erfarung

originalmente

(do

significa

verbo “viajar”,

erfahren,

que

“atravessar”)

pressupõe tradição e continuidade. Erlebnis, que ê algo mais espontâneo, implica em choque edescontinuidade. Em notas relacionadas com o ensaio “UbereinigeMotive

bei Baudelaire” (Sobre Alguns Temas em Baudelaire), Benjamin escreve que as “vivências são, por natureza, não utilizáveis para a produção poética” e que se trata de “transformar as vivências em experiências.'*

4 B O LL IE ,W Caderno M: Ócio e Ociosidade. In: BENJAMIN, W Livro das Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 840.


Há em Walter Benjamin, uma relação muito ténue entre a concepção de experiência e memória. Nosso autor toma como base uma dicotomia pontuada por Freud, entre memória e consciência, ambas (para ambos teóricos) são completamente incompatíveis. A memória e a consciência não podem coexistir num mesmo momento. A consciência recebe as excitações externas sem que se guarde traços dessas excitação, cabendo a ela apenas a filtragem e a transmissão ã outros sistemas psíquicos responsáveis por armazenar aquilo que torna-se importante.^ A memória torna as coisas eternas na validade da mente. A memória se enquadra no mesmo sentido cultural que a experiência, na verdade dependendo desta, aquilo que se armazena na memória é o que advêm de experiências autenticas. Já a consciência vem funcionar como defesa, principalmente em nosso tempo, pois as exposições intermitentes da vida frenética precisam ser absorvidas, e não havendo tempo para digerir as informações que nos são impostas o organismo dá uma resposta, para não sobrecarregá-lo ele torna consciente tudo que vê sem que isso lhe afete, sem que isso seja alocado na memória, são traços rápidos de imagens que ficaram pouco tempo guardado, e esse processo faz com que atrofie a experiência e consequentemente a memória, como assinala Rouanet:

A memória e a consciência pertencem a sistemas incompatíveis, e uma excitação não pode, no mesmo sistema, tornar-se consciente e deixar traços mnêmicos, o que significa que quando uma excitação externa ê captada, de forma consciente, pelo

sistema

percepção-consciência,

ela

por

assim dizer se evapora no ato mesmo da tomada de consciência, sem ser incorporada a memória [...] Ao serem interceptadas pelo Reizschutz^ as excitações demasiadamente intensas produzem um choque traumático [...] Pertencem á esfera

^ ROUANET, Sérgio. Édipo e o Anjo - Itinerários Freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008, p. 44. ®Em uma tradução literal, Reizschutz significa para-excitação, que pode ser compreendida como um processo que visa reduzir danos, impedindo sobrecarregar o organismo humano quanto aos estímulos externos. Freud vem abordar essa questão emJenseits desLustprips (Além do Principio do Prazer).


da experiência as impressões que o psiquismo acumula na memória, isto é, as excitações que jamais se tornaram conscientes, e que transmitidas ao inconsciente deixam traços mnêmicos duráveis. Pertencem à esfera da vivência aquelas impressões cujo efeito de choque é interceptado pelo sistema percepção-consciência, que tornam conscientes, e que por isso mesmo desaparecem de forma instantânea, sem se incorporarem à memória.^

II - “ENQUANTO HOUVER ESPAÇO, CORPO E TEMPO E ALGUM M O D O DE D IZE R NÃO EU CANTO” -ALGUMA COISA SOBRE A ARTE DE NARRAR.

^Quem viaja tem o que contar”.*

As questões da experiência em Walter Benjamin são tratadas também em outro texto, como sintoma da perda de uma manifestação cultural: a narração. Em 0

Narrador. Considerações sobre a obra de um Nikolai Leskov, datado de 1936, nosso autor vem colocar que a narrativa está em vias de extinção. Ele norteia essa discussão baseado no fato de que na Antiguidade, e até mesmo no medievo, havia uma grande ligação com a oralidade. As histórias eram repassadas oralmente, os mais velhos presenteavam os jovens com suas experiências, as coisas que ouviram em suas viagens ou mesmo o que seus pais e avós lhes contavam. Mas assim como em Experiência e

Pobreza, novamente o desenvolvimento da técnica, especificamente a criação da imprensa, começa a atrofiar a capacidade de intercambiar experiências a partir da oralidade, com isso, aquilo que era dito pelas bocas é marcado agora pela tinta e o papel, as bocas assim como as tradições vão se calando com o tempo, ã medida que a tecnicização da vida aumenta.

’ ROUANET, Sérgio. Édipo e o Anjo - Itinerários Freudianos em Walter Benjamin, p. 44-48. * BENJAMIN, Walter. 0 Narrador -Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, p. 198.


Para além de qualquer ideia ou reforço nostálgico quanto à narração, Benjamin coloca que a tradição oral ou mesmo a falta dela são questões que representam um caráter de reconfiguração social, ou dito de outra forma, a vida é configurada e direcionada a partir dos elementos presentes na cultura, em um dado modo de vida. Se de certo modo era caro aos gregos o ócio, o tempo lento e de dedicação a polis, em nosso tempo acompanhamos a velocidade das máquinas, e os elementos presentes em uma dada cultura transformam como se vive ou compreende-se a realidade. Em 0 Narrador, Benjamin caracteriza que ainda há relampejos de uma sobrevida essencialmente narrativa ou até mesmo uma reconfiguração em nosso tempo apesar de nossa cultura. Com isso ele parte de uma análise que tenta exemplificar dois grandes tipos de narradores. Benjamin fala da figura do narrador que formou-se em terras distantes, que é a marca da figura de algum jovem que saí de sua terra e que no decorrer de suas viagens incorpora uma série de histórias e experiências de outros povos e culturas, sua narrativa vai ser enriquecida por esses fatores de outras localidades. Há também a formação de outra categoria de narradores, que a certo ponto se distancia da primeira. O Jovem que nunca saíra de sua terra pode também ter 0 que dizer, ter o que narrar, ele pode verbalizar a experiência pelo que aprendeu e apreendeu do que contaram seus pais e avós. As histórias populares foram mantidas pelo povo e são repassadas àqueles que lá vivem. É possível fazer um encontro dessas duas concepções, que são ricamente importantes na compreensão da narrativa. Pois esse jovem que saí de sua terra e anda pelos mais distantes países, afastando-se de suas raízes, em algum momento vai assentar-se em algum lugar ou retornar a sua origem, e ele que incorporou outras tradições e histórias, as contará no seu povoado, é nesse momento que eles se cruzam, pois seus filhos e seus netos ouvirão e incorporarão essas histórias. Compreende-se que esses dois tipos podem ser facilmente ligadas às estórias épicas de Homero (marinheiro viajante) e de Hesíodo (camponês sedentário), não são adversativas, mas se entrecruzam. Mas a narrativa, ou a figura do narrador, por mais familiar que possa parecer não é puro devaneio daquilo não existe mais próximo à nós, mas sim, cada vez


mais distante em tempo e espaço,® pois para Walter Benjamin, além dos ensinamentos “morais” presentes na manifestação desse ato de narrar, a narrativa traz consigo também ensinamentos práticos e úteis à vida de um indivíduo. Essa questão, segundo nosso autor, tem grande importância, principalmente quando ele articula dentro de um campo de conformação/interação entre as duas escolas já citadas. Cito Benjamin: “o senso prático é uma das características de muitos narradores natos (...) tudo isso esclarece a verdadeira narrativa”.“

III - 3X4: A FOTOGRAFIA DE UM N A RRA D O R

É preciso demorar-se sobre as coisas todas, pois há muito de muita coisa em cada minúsculo grão. Sendo assim, antes de tecermos qualquer comentário a Antônio Carlos Belchior, que em nossa análise é visto não como um mero cantor, mas ascende a um patamar de poeta-cantor. Foi preciso elucidar os conceitos benjaminianos de

experiência e narrativa que nos permitirá ter uma compreensão mais ampla de uma possível relação entre as duas figuras e seus “escritos”. É sempre preciso ter a sensibilidade para criarmos distâncias e para estabelecermos aproximação.

Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei. Jovem que desce do Norte pra cidade grande. Os pés cansados e feridos de andar légua tirana... nana. E lágrima nos olhos de ler o Pessoa e de ver

0 verde da cana...“

Uma das mais ricas melodias de Belchior não poderia deixar de ser marcada pelos duros traços da realidade brutal. O nosso Poeta-cantor, antes de usar um belo apanhado de palavras bem alinhadas e uma magnífica melodia, vem manifestar através

®BENJAMIN, Walter. 0 Narrador -Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, p. 197. Idem, p. 200. " BELCHIOR, Carlos. Fotografia3X4. Alucinação. São Paulo: Polygram, 1976.


da música sua interação com a realidade. Podemos, creio eu, analisar Belchior como um representante da melancolia dentro do cenário brasileiro, mas também a melancolia de todo um tempo. Suas músicas trazem dor, angústia, medo, desânimo, pessimismo... suas belas melodias nos dão a impressão de que o Poeta-cantor distancia-se desses sentimentos, parecendo ele mesmo estranho a estas sensações, tais sensações são colocadas em sua frente, manifestando-se como coisas alheias a ele. É preciso entender esse processo como uma melancolia positiva, pois ela mobiliza ao invés de imobilizar ou engessar alguma manifestação de vida, por isso Antônio Carlos Belchior vai gritar que apesar da desesperança e da dor, “enquanto houver espaço, tempo e algum modo de dizer não eu canto”.E s s e grito lembra muitos dos últimos parágrafos dos escritos de B e n ja m in ,q u e trazem também um grito de desespero, um desespero que traz uma perturbação e inquietação quanto ã vida e de como lidamos com ela, é um grito desesperador que pode ser ouvido como uma tarefa dada ao nosso tempo. Isso pode ser apreendido, ou pelo menos aproximado quando se lê 0 último paragrafo de “Experiência e Pobreza”. Rouanet pontua quanto ã questão do melancólico em Walter Benjamin que:

O Homem Barroco - o melancólico, na medicina clássica é aquele que tem o poder de penetrar no objeto até que ele se revele, até a morte do objeto, que coincide com essa revelação [...] O Melancólico alegoriza o mundo, e se anula nessa alegorização [...]. A visão alegórica resulta da consciência da culpa, e do desejo de redimir-se. A natureza é culpada, e busca reabilitar-se através da palavra pela qual o homem a nomeia, ou da leitura pela qual o alegórico lhe atribui significações; o

BELCHIOR. Divina comédia Humana.Todos os Sentidos. São Paulo: W EA Discos Ltda, 1978. Uma marca presente em alguns escritos de Walter Benjamin é a tarefa que ele coloca ao leitor no ultimo paragrafo, como em Experiência e Pobreza e O Narrador. Segundo me parece, o que advém ao texto, é uma análise que nos leva ao ponto central que é lançado ao final: tarefa histórica de nosso tempo, a partir dos elementos expostos.


homem é culpado, e somente nessa leitura, que proclama a caducidade do mundo e de si mesmo, pode encontrar perdão.“

Começamos, intencionalmente, só agora a aproximar Walter Benjamin e Antônio Carlos Belchior. Quando o segundo fala que se lembra de um fato (de sua vida), ou melhor, se lembra muito bem, é um fato que não deve escapar ao crivo de uma análise benjaminiana, diante de sua ênfase, pois é a relação com a memória que define um afastamento da vida moderna, pois com o desenvolvimento da técnica o homem vive numa multidão onde é exposto às excitações. A humanidade é exposta a choques por conta da velocidade de imagens bruscas e rápidas que se colocam diante da multidão que passa, onde Rouanet coloca que “o homem moderno vai perdendo a memória, individual e coletiva. O homem privado de experiência é o homem privado de história e da capacidade de integrar-se numa tradição”.^^ Num

eminente processo de sobrecarga mental, ocasionado pelos

constantes choques, o psiquismo desenvolve uma autodefesa tentando conscientizar tudo que vê e acaba por não mais guardar nada na memória. Rouanet vem nos colocar que “a memória e a consciência pertencem a sistemas incompatíveis, e uma excitação não pode, no mesmo sistema, tornar-se consciente e deixar traços mnêmicos (...) ‘a consciência nasce onde acaba o traço mnêmico’”.^® Com base nessas questões. Belchior mantêm uma relação de presença e distanciamento (do mundo moderno), pois é perpassado pelas excitações, velocidade brusca das imagens sobrepostas, o choque da vida contemporânea sem ser, aparentemente, afetado profundamente. Os estímulos do “mundo” correm por onde ele caminha, mas não há um processo de conscientização dos choques, com isso os traços mnêmicos são conservados nas coisas “vividas” pelo Cantor-poeta. Pela dor ele as mantém na memória, que quando musicada revela os mais sutis traços de refinamento nos detalhes.

ROUANET, Sérgio. Édipoeo Anjo-Mmerárxos Freudianos em Walter Benjamin, p. 17-19. '^Idem, p. 47. Idem, p. 44.


Mas 0 fato de Antônio Carlos se deslocar do Norte/Nordeste para o sul é

0 início do ponto de sintonia que começa a ser traçado ou aproximado entre a canção “Fotografia 3x4” e os textos “Experiência e Pobreza” e “O Narrador”. Primeiro pelo fato desse deslocamento representar um processo importante num aspecto histórico, ou melhor, na construção e manifestação da memória coletiva, notando que quando Belchior desce para o Sul ele não vai sozinho. Há uma série de elementos ocasionados pela dor e pela miséria que faz o sertanejo, o nordestino, sobretudo as famílias de regiões interioranas largarem suas terras para procurar trabalho e felicidade no Sudeste do Brasil, carregando em suas malas a esperança utópica da salvação. Quando desce. Belchior leva consigo uma tradição construída de que 0 Sudeste do país é onde se encontra a felicidade, onde todos os sonhos são realizados, e esse processo foi repassado e reivindicado pelo meu pai, pelo avô de alguém, assim como pelo nosso cantor, que se afasta de sua terra sem deixar de demonstrar que o faz com o maior pesar. A ideia de encontrar um guarda em cada esquina pode ser associada ao conceito de choque, que Walter Benjamin vai desenvolver em “Alguns temas sobre Baudelaire”. Na concepção do mundo moderno^^ todas as coisas são delimitadas pelo seu preço, esvaziando assim as coisas mesmas de seus sentidos, em um tempo em que tudo que é novo é imediatamente superado e substituído por algo milésimos de segundos (hipérbole) mais novo; não há tempo de assimilação, a velocidade lhe obriga a não pensar e ã cada esquina sofreu-se mais um assalto, as luzes das dezenas de fachadas que lhe chamam atenção, as garotas e garotos que lhe entregam os pequenos panfletos dos dentistas populares. É impossível não ser chocado com o ritmo frenético que a vida toma hoje. E isso causa o imenso vazio em cada membro da humanidade que se individualiza cada vez mais, pois é, com o tempo, tornado incapaz de verbalizar, de falar de si com os seus pares, há um processo que vai esfacelando as experiências coletivas e tornando muito mais presentes as vivências individuais de cada sujeito. A humanidade a cada passo se esvazia completamente de sentido e passa a se assegurar em cada corda que vê, em cada

É preciso entender aqui, moderno enquanto expressão do novo.


revólver que toca contra o rosto. Tornamo-nos meros passantes da vida, vamos de um lado pra outro sem muitas vezes nos perguntar se há um sentido em cada atividade que desenvolvemos. Nos encontramos aos montes, somos multidão. Mas há quem consiga fugir dessa lógica, e é

0 que aparentemente faz Belchior, que na busca de sua felicidade no Rio de Janeiro era exposto às coisas do mundo moderno, mas sem prender-se a elas em demasia. Na sua busca, nosso Poeta-cantor, parecia olhar a tudo que uma grande capital lhe oferecia: os grandes monumentos, as extravagâncias arquitetônicas, o marketing apelativo presente em cada espaço da rua, o amontoado de pessoas que passavam frenéticas de um lado para outro, e tudo aparentemente sem nada fazer o menor sentido em seus deslocamentos, nem se perguntando qual a importância de tudo aquilo. Belchior passava por entre essa gente, sentindo esse frenesi. E com esse estilo de vida “Benjamin constata novas maneiras de viver, sentir e perceber a experiência do choque como regra para o citadino”.^*^

Em cada esquina em que eu passava um guarda me parava, pedia os meus documentos e depois sorria examinando a 3x4 da fotografia e estranhando o nome do lugar de onde eu vinha.

Para além de todo esse prolegômenos acerca da conceituação da experiência,

0 esvaziamento de sentido da humanidade ocasionada pelo desenvolvimento da técnica, a velocidade frenética da vida que é absorvida nas informações todas, ou de outra forma, os excessos de informações (excitações externas) e velocidade com que chegam, afetam

0 organismo humano numa perspectiva de sobrecarrega-lo, pois as informações que chegam, não tem tempo hábil para ser processada. Para além de todas essas questões, é importante ressaltar que isso afeta diretamente as configurações literárias.

TRAVASSOS, Milena. “Modernidade - Mundo de sonho. Experiência do choque". In: Cadernos Walter Benjamin,Yo\ame 3, Fortaleza, Eduece, 2009, p. 7. BELCHIOR, Carlos. Fotografia 3X4.


Em 0 Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, assim como falamos um pouco anteriormente nesse texto, as narrativas estão em vias de extinção, pois 0 mundo contemporâneo não é um tempo de continuidade e tradição, mas sim um tempo descontinuo, desenraizado de um contexto cultural. Não há mais algo que nos ligue a uma cultura. O que permite, às mulheres e homens, a capacidade de narrar algo, é a experiência (Erfahrung), que torna-se manifesta dentro de um dado contexto cultural, sobretudo, marcada pelos rituais. E quando se perdem os rituais, não há mais experiência que nos ligue a nada, e com isso, não há mais espaço para a narrativas, pois não há nada que valha a pena narrar. Nesse desenraizamento cultural, se esvazia de sentido a vida, marcada pelas vivências que não representam nenhuma ligação com uma tradição, torna-se patente a marca do homem em nosso tempo: um individuo desenraizado e tem a vida esvaziada de sentido. Esse esvaziamento é também de palavras, pois nem mesmo se pode hoje verbalizar a dor sentida pelo indivíduo para se solicitar conselhos, não se pode porque não se tem mais essa capacidade de comunicar experiências.^® Os narradores estão em vias de extinção, mas não desapareceram ainda, segundo atesta Walter Benjamin, há uma capacidade nata dos narradores, que é a articulação de um ensinamento prático a partir de uma narrativa. Segundo a minha concepção, nesse trecho, que cito a seguir. Belchior desenvolve ou apresenta essa capacidade de um ensinamento prático, pois vem nos mostrar um engenhoso pensamento de articular as dores, os pesares presentes nesse sofrimento de não estar feliz em seu lugar, por almejar encontrar essa felicidade em outras terras, e ser marcado pela frustração e poder exemplificar a terceira lei de Isaac Newton como quem diz com a maior naturalidade e segurança da ciência a normalidade ou seqüências dos fatos de uma vida.

Pois 0 que pesa no Norte pela lei da gravidade, isso Newton já sabia, caí no Sul grande cidade. São Paulo Violento. Segue o Rio que me engana.^^

BENJAMIN, Walter. 0 Afarra<ior - Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, p. 200. BELCHIOR, Carlos. Fotografia 3X4.


Essa passagem traz consigo uma singular e dúbia aproximação de Belchior com os conceitos dos textos já citados de Walter Benjamin. Ora, o individuo que na modernidade não faz nada além de sofrer ou sobreviver ao inferno que é a modernidade,

0 faz como o autômato que lhe foi induzido a ser, onde apenas reflete os choques que lhe afetam. É vazio, ou melhor, o indivíduo foi esvaziado de sentido, sem ligação nenhuma com a cultura que lhe cerca, vaga pelas ruas e igual a ele, muitos outros passantes, são uma multidão agora. Apesar de todo esse recorte, o pessimismo presente na modernidade, e que a certa medida pode-se também ser observado em Belchior, onde esse contrasta toda a dor e falta de sentindo da vida de quem sobrevive ã noite, que além de escura é fria, da presença do sofrimento algo pode nascer, experiências podem brotar, no caso de Belchior isso possibilitou a verbalização de suas dores. Apesar da vida, pôde ter a certeza de que tem coisas novas para dizer.

A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia, pela dor eu descobri o poder da alegria e a certeza de que tenho coisas novas, coisas novas pra dizer.^^

Éprecisoterclareza queomar,nãotãoclaro,dasformulaçõesbenjaminianas são águas espessas e que não são facilmente transponiveis, nem mesmo para os mais experientes marujos. Fazer aproximações de Walter Benjamin com quaisquer outros aspectos que ele não tenha trabalhado se torna uma tarefa que pode nos conduzir a completos absurdos ou a profundos devaneios. Assim sendo, quando tento aproximar nosso esteta (com suas formulações e concepções, ancoradas centralmente no que concerne ã modernidade) do cantor cearense, pode-se correr o risco de entrar numa espécie de labirinto conceituai de associação dos pensamentos do cantor e do filósofo. Tecemos crítica ao moderno, concebendo ele, do ponto de vista benjaminiano, esvaziado de sentido pleno, atrofiador de experiências que causa no devir histórico desconstrução.

- Idem.


OU melhor, perda de aspectos históricos que enriqueceram os homens e as tradições: como a perda da narração, a morte do narrador. Poderíamos dizer, quem sabe afirmar, que Antônio Carlos Belchior seria um autêntico narrador que se perdeu no tempo e veio parar num mundo moderno, contemporâneo.

A minha história é talvez, talvez igual a sua. Jovem que desceu do norte e no sul viveu na rua. E que ficou desnorteado, como é comum em seu tempo. E que ficou desapontado, como é comum no seu tempo. E que ficou apaixonado e violento assim como você. Eu sou como você, eu sou como você, eu sou como você que me ouve agora.^^

Mas principalmente por conta de todas essas análises que Benjamin vem fazer sobre nosso tempo, é impossível atestar ou aproximar nosso trovador cearense da figura de um genuíno narrador, pois a história da vida dele se aproxima, se encontra e se confronta com a vida e a história de tantos outros sujeitos, que sobretudo se encontram completamente desnorteados e desapontados, algo que é comum em nosso tempo, tendo a violência que perpassa sua sobrevida. Belchior é, não sendo, como cada passante, cada componente da multidão. Está na multidão, mas se afasta dessa, vendo-a de longe, estando dentro, a se perder no jogar-se no abismo do vazio. Torna-se, nosso Poeta-cantor, um

legítimo representante de uma

experiência individual (que pode ser tomada como ritualística), pois também perpassar muitos retirantes do Norte/Nordeste brasileiro que vão ao Sul, e esse processo pode ser visto, diante das formulações benjaminianas, como uma experiência (Erfahrung) coletiva, conseguiu-se comunicar experiência. Assim sendo. Belchior dialoga, a certo modo, com uma tradição, pois na parte superior do território brasileiro, foi-se mantida durante algum tempo relações narrativas, principalmente nos interiores, onde, sobretudo a tecnologia não se fazia presente de forma latente.

Idem.


Belchior pode não ser um narrador em nosso tempo, mas é preciso compreender que esse não manifesta os traços de nossa época como quem é conduzido pela marcha da história, sem poder intervir em seu curso. Esse jovem cearense que desceu do norte para tentar a felicidade em terras distantes vem configurar o cenário literário-musical no Brasil. Há em Belchior uma reconfiguração da narrativa, num processo de disputa social.

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: 0 Anjo da História. Tradução e organização de João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2013. ______. Comentários: Experiência e Pobreza. In: 0 Anjo da História. Tradução e organização de João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2013. ______. O Narrador - Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica.

arte epolítica. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. BOLLIE, W. Caderno M: Ócio e Ociosidade. In: BENJAMIN, W. Livro das Passagens. Belo Horizonte: UEMG, 2007. ROUANET, Sérgio. Édipo e o Anjo - Itinerários Freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008. BELCHIOR, Carlos. Fotografia 3X4. Alucinação. São Paulo: Polygram, 1976. ______. Divina comédia Humana. Todos os Sentidos. São Paulo: W E A Discos Ltda, 1978. TRAVASSOS, Milena. “Modernidade - Mundo de sonho, Experiência do choque”. In:

Cadernos Walter Benjamin, Volume, 3, Fortaleza, Eduece, 2009.


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HISTÓRIA E TRADIÇÃO DOS VENCIDOS: BENJAMIN E O JULGAMENTO DE LUCULUS DE BERTOLT BRECHT FRANCISCA PALLOMA SOARES PAULINO - Mestranda em Filosofia na Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Resum o: A construção proposta por este texto compreende como seu ponto de partida a relação de convergência teórica entre a teoria da história de Walter Benjamin e, especificamente, uma peça de Bertolt Brecht O Julgamento de Luculus (Das Verhõr des Lukullus) escrita entre os anos de 1938 e 1939. Pretendese construir com os dois autores um paralelo de observação entre a intenção da peça dentro da proposta de teatro épico brechtiano e o modo com que Walter Benjamin pensa a história em suas Teses Sobre o Conceito de história, de 1940. O desenvolvimento propõe apresentar algumas imagens apresentadas na peça e, a partir delas, tornar viável sua compreensão por meio da mediação com o último escrito de Benjamin, localizando como ponto encadeador o conceito de tradição dos vencidos. Trata-se de estabelecer contato breve e conciso entre os dois textos e explorar as confluências nas relações entre seus autores e suas leituras históricas.

Palavras-chave: Benjamin, Brecht, História.


Quem ainda está vivo não diga: nunca O que é seguro não é seguro. As coisas não continuarão a ser como são Depois de falarem os dominantes Falarão os dominados Bertolt Brecht, 0 Elogio da

Dialética.

O

Julgamento deLuculus (Das Verhõr des Lukullus) é uma peça escrita entre os

anos de 1938 e 1939 com o intuito de pensar sobre a relação entre o poder e a construção da história, apresentando-se sob o modelo da peça radiofônica.

O rádio é considerado um importante veículo para Brecht, que aposta nas inovações

técnicas de seu tempo como uma nova via de ação crítica e de interlocução. O processo de produção

0 Julgamento deLuculus, no entanto, estendeu-se dada a necessidade

de converter o texto em uma ópera, impulsionada pelo Ministério da Cultura Popular da Alemanha. A partir dessa nova mudança estrutural, a peça mudou também seu título para Die Verurteilung des Lukullus, ou seja, A Condenação de Luculus. Segundo os registros, depois de 1940, Brecht mantém a atenção nesse texto, considerando-o inacabado até 1951^ Essa peça foi contemporânea da escrita de peças como Mãe Coragem e Seus Filhos (Mutter Courage und ihre Kinder), Galileo Galilei (Leben des

Galilei) e Quanto Custa o Ferro? (Was kostet das Eisen ?). Brecht evoca como cena principal do texto o cortejo de morte do General Luculus. Os escravos levam o seu catafalco e nele encontram-se gravadas as conquistas e glórias do império romano conquistadas sob o domínio de Luculus. No cortejo de despedida em direção ao túmulo, observa-se que os comentários dos populares são os mais distintos. Entre vangloriações das vitórias conquistadas por Roma e reclamações

' É importante registrar que a edição de O Julgamento de Luculus sob a qual esse artigo encontra-se debruçado consta no sétimo volume da coleção Teatro Completo de Bertolt Brecht, publicado pela editora Paz e Terra. No referido volume, as mudanças ocorridas na peça radiofônica para a ópera estão anexadas como adendo e atentas aos interesses do autor ao longo de suas intervenções no texto. A tradução é de Gilda Oswaldo Cruz e Geir Campos.


da situação de fome e miséria ocasionadas pelas guerras empreendidas pelo general,

0 corpo de Luculus desfila levado por escravos para o lugar onde está reservado seu julgamento. O friso triunfal trazido pelos servos chega ao mausoléu do sepultamento onde a condenação de Luculus será discutida. É interessante ressaltar que Brecht insiste na imagem de ironia dos acompanhantes de Luculus. Junto com o general seguem no cortejo como guardas da honra um filósofo e um advogado, impedidos de entrar no Reino das Sombras, assim como os escravos. Luculus vê-se, então, sozinho e despreparado para defender-se das acusações que terá de responder antes de ser condenado ao Hades ou ao Retiro dos Bem-aventurados. Após aguardar impacientemente por sua vez, o general é chamado por sua infeliz alcunha - Lôuculus -e apresentado pelo Porta-Voz do Júri dos Mortos à sua banca de julgamento. Diz-nos o autor:

PORTA-VOZ DO JÚRI DOS MORTOS Perante o supremo tribunal do Reino das Som bras A presenta-se Lôuculus, o general Que d iz cham ar-se Luculus. Sob a presidência do Juiz dos Mortos, Cinco jurados procedem ao julgam ento: Um deles foi lavrador, 0 segundo fo i escravo depois de ser professor, 0 terceiro fo i peixeira 0 quarto fo i padeiro, 0 quinto fo i cortesã. Estão sentados em cadeiras altas. Sem mãos para segurar, nem bocas para comer, E olhos de há m uito apagados Epouco afeitos às pom pas do mundo. Incorruptíveis se m ostram Os jurados de Além-Túm ulo. 0 Ju iz dos M ortos dá início ao julgam ento^

^ BRECHT, Bertolt. 0 Julgamento de Luculus, in Teatro Completo, vol. Vll, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 26e27.


O recorte aqui realizado permite observar sob qual ponto de vista interessa para Brecht validar as conquistas ocorridas na vida do general. É imperativo à narração do teatro épico tomar como ponto de partida a desconstrução histórica dos vencedores e pôr imediatamente em sua contestação aqueles que são “engolidos” pela narração da história oficial, os vencidos. Dar voz e poder ao oprimido não é apenas uma figuração poético-literária preciosa, mas uma evidência de ação política construída com base na crítica das relações sociais que o modelo político capitalista violento e sistematicamente naturaliza, impossibilitando quaisquer contestações. Dar às “classes mais baixas” a responsabilidade de julgar um general de guerra é evidenciar a necessidade de cultivar como exercício político a elevação de uma tradição dos vencidos, termo que dá forma ao ponto de convergência onde Brecht encontra a filosofia da história de Walter Benjamin. É importante ressaltar nessa análise que a leitura da obra dos dois autores mantém, fora de compreensão estrutural, uma relação biográfica bastante forte. A discussão sobre história encontra-se intrínseca ã produção de Benjamin e de Brecht e se manteve em diálogo entre eles. O materialismo histórico característico de suas posturas, inevitavelmente, encontra-se apto a estabelecer os encontros mais precisos e não ocasionais entre suas obras, numa correspondência interna coesa. Todavia, é preciso ressaltar que a considerações de filosofia da história estão presentes em Benjamin desde seus primeiros escritos, ou escritos dejuventude, como são conhecidos. O que nos permite pensar num encontro teórico e não numa relação de referenciação ou de influência.

Sobre a tradição dos vencidos e a tarefa das Teses Sobre o Conceito de história

Benjamin reconhece que o conhecimento histórico é transmitido e explorado através de sua narração. O que se conhece sobre determinados períodos históricos está essencialmente ligado ao ponto de vista que se dispõe materialmente a contar sobre este recorte. A disposição material que embasa esta descrição é possível de se tornar efetiva, consequentemente, quando se trata daquele lado cuja transmissão foi


viabilizada por seu “sucesso histórico”, ou, para usar termos benjaminianos, por sua “vitória”. Nesse sentido, pode-se dizer que o discurso tradicional da história constrói em seu desenvolvimento uma “tradição dos vencedores”. Longe de se portar como algo espontâneo ou desinteressado, o que cerceia esse processo são a violência e o poder que garantem o estabelecimento perpétuo dos detentores da “ação histórica” efetiva. O que faz com que uma guerra represente sempre o mesmo jogo onde os personagens,

0 cenário e o objetivo permanecem sempre os mesmos. De modo contrário a essa “naturalização” dos acontecimentos, Walter Benjamin aponta para o que se denomina “tradição dos vencidos”, ou seja, a mobilização das forças que foram silenciadas, que sucumbiram ao domínio da violência do vencedor. Ahistória tradicional, segundo Benjamin, é um cortejo de triunfo dos vencedores que avança austeramente e se ergue sob os destroços daqueles que foram vencidos. O passado é o lugar no qual o sofrimento e a luta dos vencidos mantêm-se sepultados, esquecidos sob a opulência da classe dominante. O presente da “anti-história” é mantenedor desta barbárie, visto que é a ele que cabe a tarefa de condensar e dar seguimento ao cortejo, obedecendo a uma transmissão de cultura sangrenta. Ou seja, as conquistas alcançadas através da força e da opressão do inimigo estão resguardadas sob a tutela da classe dominante que possui a responsabilidade de sua transmissão, logo, de sua perpetuação. A tarefa histórica da visão materialista é a de salvar a marcha dos vencidos de seu esquecimento e proporcionar a quebra da transmissão realizada pelos vencedores de turno. Na famosa Tese VII, comenta o autor:

Todo aquele que, até hoje, obteve a vitória, marcha junto no cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje [a marcharem] por cima dos que, hoje, jazem por terra. A presa, como sempre de costume, é conduzida no cortejo triunfante. Chamam-na bens culturais. Eles terão de contar, no materialismo histórico, com um observador distanciado, pois 0 que ele, com seu olhar, abarca como bens culturais atesta, sem exceção, uma proveniência que ele não pode considerar sem horror Sua existência não se deve somente ao esforço dos grandes gênios, seus criadores, mas, também, ã corvéia sem nome de seus contemporâneos. Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, também não o está oprocesso de sua transmissão, transmissão na qual


ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o m aterialista histórico, na m edida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo

O “olhar distanciado” exigido pelo historiador materialista tratado por Benjamin é aquele que se dispõe a encontrar na história tradicional os vestígios de desconfiança que possibilitam centrar a tradição dos vencidos como um grito, um alarme, uma consideração apagada com uma força inesgotável. Os documentos de cultura, os bens culturais, são heranças agressivas, condições de manutenção da ordem vigente. A linha de continuidade da barbárie anunciada por cada “troca de turno” do vencedor não torna quaisquer contestações visíveis, práticas. Somente a partir da recusa do cortejo, é possível construir uma relação histórica com o presente. Escovar a história a contrapelo é um exercício político. E sobre isso, destaca Low^:

Escovar a história a contrapelo - expressão de um form idável alcance historiográflco e político - significa, então, em primeiro lugar, a recusa em se juntar, de um a m aneira ou de outra, ao cortejo triunfal que continua, ainda hoje, sobre aqueles que ja zem por terra. Pensase nessas alegorias barrocas do triunfo, que representam os príncipes no alto de um a m agnífica carruagem imperial, às vezes seguidos por prisioneiros e arcas transbordando de ouro e jóias; ou nesta outra imagem, que aparece em M arx para descrever o capital: o Juggernaut, a divindade hindu instalada em um a imensa carruagem, sob as rodas da qual são lançadas crianças destinadas ao sacrifício. M as o antigo modelo, presente no espírito de todos os judeus, é o Arco de Tito em Rom a, que representa o cortejo triunfal dos vencedores romanos contra a sublevação dos hebreus, portando os tesouros pilhados no Templo de Jerusalém

As imagens que se encontram dispostas no julgamento do general não são

3 BENJAMIN, Walter. Teses Sobre o Conceito de história in Walter Benjamin: aviso de incêndio, LOWY, Michael. Tese VII, p. 70. 4 LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio, São Paulo, Boitempo, p. 73.


ocasionais. O arco de Tito, por onde o corpo do personagem célebre desfila em meio aos populares, figura que foi escolhida para o pôster da peça, ilumina a consideração negativa de Brecht e também de Benjamin acerca dos monumentos históricos elevados em nome de falseamentos e usurpações das lutas reais no campo da história tradicional. Sua crítica compromete-se com a contestação desses espaços de conquistas. Interromper o “cortejo de triunfo” da classe dominante é a tarefa das classes subjugadas. De acordo com o pensamento benjaminiano, é no presente que se encontra a possibilidade de quebra da linearidade histórica. A interrupção histórica é uma experiência edificadora do novo, portanto, uma ação política livre da aparência repetitiva da história oficial. A ação política da interrupção histórica reconhece no presente o tempo messiânico, ou seja, o tempo de mudança, de redenção dos vencidos. É ao presente que se destina a tarefa de redimir o passado. O futuro é para Benjamin - e neste ponto não é equívoco estabelecer uma relação com a tradição judaica - é um tempo de esperança, mas, em mesma medida, apresenta-se como um tempo desconhecido, a respeito do qual nada pode ser dito. O momento de luta, portanto, é o tempo presente. A interrupção histórica é uma ação política própria da consciência revolucionária. A eclosão da marcha contínua da história é um ato consciente de si no mesmo instante de sua efetivação. De acordo com Benjamin: “A consciência de fazer explodir o contínuo da história é própria das classes revolucionárias no instante de sua ação”J E para ilustrar dá-nos o exemplo do novo calendário que a Grande Revolução introduziu para marcar a exclusividade da experiência histórica ali configurada. Ou seja, com esse exemplo torna-se claro que os calendários não representam uma marcação apenas cronológica de tempo, mas são determinações históricas erigidas sob efeito das ações e concessões estabelecidas. Calendários são monumentos históricos. Quando uma classe revolucionária instaura um novo calendário ou mesmo recusa a imposição de uma marcação cronológica, neste momento essa classe desvenda a marcha da história tradicional e explode sua continuidade. No julgamento de Luculus, seusjuízes são as pessoas que viveram e sofreram sob seu regime de poder. Elas são as únicas que podem declarar seu verdadeiro desacordo, investigar as contradições que viviam. As conquistas estampadas no friso de triunfo do

' BENJAMIN, Walter. TeseXV, p. 123.


general são chamadas para falar, como sombras. Os bens culturais reclamam - ou não - a posição que o vencedor não cansa de ostentar. Deslocar do espaço de poder o que se mantém como verdadeiro e absoluto é permitir a entrada do verdadeiramente novo. A tentativa de uma nova narração histórica é a forma possível de estabelecer uma ação também histórica. Prossegue Brecht na figuração do julgamento onde explica por meio do Juiz dos Mortos:

Juiz dos mortos Que sejam cham adas as testem unhas! Quem escreve a história dos vencidos É sempre o vencedor, E 0 algoz m ostra sempre diferente A figura da vítima. 0 m ais fraco É varrido do mundo e em lugar dele Fica a m entira. Nós, aqui embaixo, N ão precisam os dessa pedra: A qui se encontram M uitos dos que cruzaram teu caminho. General. E m lugar desses retratos. Preferimos cham ar os retratados: Em vez da pedra, nós vamos ouvir A s próprias som bras ^

A contestação dos personagens de Brecht figura a recusa da historiografia tradicional, o reconhecimento de sua força histórica nessa recusa e concentra em si

0 potencial revolucionário desta ação. As figuras utilizadas por Brecht neste escrito trazem às vistas inequivocamente a postura pensada por Benjamin em sua filosofia da história. Ambos os autores trataram como questão fundamental a desnaturalização da visão histórica, viabilizada pela quebra da empatia com os vencedores. Seja no âmbito da prática teatral ou da ação política, Benjamin e Brecht se confrontam com a identificação afetiva e atentam para a necessidade de tratar observar o mundo com o

’ BRECHT, O Julgamento de Luculus, p.


olhar distanciado capaz de considerar as relações sociais como relações mutáveis. O ponto de vista no qual se apóia a obra brechtiana é exatamente o oposto daquele que alimenta a postura de que “O que permanece inalterado há muito tempo, parece ser inalterável” ^ O distanciamento funciona na representação do teatro épico de modo diferente da concepção do teatro antigo, medieval e asiático, - onde máscaras e cartazes encarregavam-se de “caricaturar” o texto - ou seja, não se comporta unicamente enquanto uma intervenção estética, mas ganha caráter político, tendo como seu principal objetivo “desfazer” as amarras da alienação ideológica. O estranhamento permite que as condições sociais possam ser vislumbradas de acordo com o seu caráter histórico, transitório. O teatro de Brecht preocupa-se em, num esforço heraclitico, apresentar a realidade social como o campo incessante das transformações, onde a relação dos homens com as coisas é constantemente modificada com a modificação da relação dos homens entre si. Na continuação da peça, Brecht ressalta a consciência de que as construções e monumentos históricos escondem seus verdadeiros artífices e que aquilo que é consentido como conhecimento histórico foi desenhado a partir de intenções bastante específicas da classe dominante. Conduz-nos:

Luculus Que espécie de romanos são vocês: Rendendo homenagem ao inimigo? E u não fu i lá por iniciativa m inha, Fui lá cum prindo ordens: Quem m e m andou lá fo i Rom a! ProfessorRom a! R om a! Rom a! Quem éR o m a ? Quem te m andou foram os pedreiros

' BRECHT, ^QVtoXt. PequenoÓrgwonparao teatro, 2005, §43.


Que a construíram ? Quem te m andou foram os padeiros E os peixeiros e os lavradores E os granjeiros e os boiadeiros Que a ela dão alim ento? Foram os alfaiates e os peleiros E os tecelões e os tosquiadores Que a ela dão vestim enta? Quem te m andou foram os escultores E os pintores Que a ela dão ornam ento? Ou foram os cobradores de impostos E os usuários e os traficantes de escravos E os banqueiros que sugam dela

0 próprio susten to?^

Benjamin e Brecht fazem de suas produções verdadeiros instrumentos contra o caráter repetitivo da história. O materialismo histórico foi absorvido de modo bastante peculiar e até mesmo reinventado pelos dois autores e aplicado em distintas vias, mas ambos visam ao mesmo objetivo o que, nas palavras de Benjamin, representa impedir que 0 inimigo continue vencendo. O Julgamento em que Luculus foi condenado ao Hades é um exercício, um panorama, da recusa da permanência à submissão ao poder dominante e o vislumbre de uma ação negativa no espaço da luta presente, a fim de confirmar a tradição dos vencidos como uma esperança.

'' Idem, p. 53.


Bibliografia

BENJAMIN, Walter. Teses Sobre o Conceito de história in Walter Benjamin: aviso de incêndio. Tradução: BRECHT, Bertolt. Estudos Sobre Teatro. Tradução: Fiama Pais Brandão. Rio de Janei­ ro: Nova Fronteira, 1978. BRECHT, Bertolt. 0 Julgamento de Luculus inTeatro Completo, vol. VII. Rio de Janei­ ro: Paz e Terra, 1992. LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio.TraduçãoiW.N.Brant. São Paulo, Boitempo, 2005.


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INSURGÊNCIA E EMERGÊNCIA NO NOVO TEMPO DO MONDO PEDRO HENRIQUE MAGALHÃES QUEIROZ - Graduando em Filosofia/Licenciatura pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). pedrohenrique_ec@hotmail.com

Resum o: Paulo Arantes em seu recente livro intitulado 0 novo tempo do mundo (2014), afirma que oZeitgeist da nossa época é a reversão do horizonte de ilimitadas expectativas próprio à geocultura do Progresso em uma era de expectativas decrescentes. Nesse sentido, as contradições e os limites socioambientais e econômico-financeiros instaurados pela ordem capitalista, agora em escala planetária, instituem uma política de emergência por parte do Estado, sob a forma da austeridade econômica, ambiental e do controle policial. Tais medidas passam também a serem incorporadas pela esquerda institucional, as quais se apresentam sob a forma da escolha do mal menor. É nesse contexto que entram as atuais insurgências como um mecanismo de interrupção do curso catastrófico do mundo. No entanto, as mesmas vêm paulatinamente sendo reintegradas pela reação do Estado, se tornando outro ponto de apoio para a manutenção do status quo.

Palavras-chave: insurgência; em ergência; novo tem po do m undo


I. Capitalismo globalizado

É no último quartel do século X X que se consolida a hegemonia global do

sistema-mmdo^ da economia capitalista, sob a alcunha apenas de globalização. Tal hegemonia planetária foi a linha do horizonte desde as grandes navegações e - na ótica dos vencedores, que costuma servir de lente para a miopia dos vencidos - a descoberta do novo mundo. Nesse percurso parece ter havido uma reviravolta: se o estabelecimento da separação entre espaço de experiência e horizonte de expectativa^, oriunda do rompimento com a tradição, é a marca fundante do moderno tempo do mundo^ e de sua política progressista orientada para o futuro em aberto; parece ser a partir do decrescimento das expectativas no capitalismo globalizado da virada do séc. X X para

0 séc. X X I que se estabelece a reconciliação entre experiência e expectativa “depois de seu longo divórcio progressista”"^, configurando, assim, o novo tempo e sua gestão emergencial do presente. Atendo-nos a um panorama da globalização capitalista - a mudança de época que aqui interessa apontar -, a sua origem dá-se em torno dos anos de 1970 do breve, ou longo, séc. X X . Os anos de chumbo nos países do Cone Sul e da Europa Ocidental, por exemplo o auge do regime militar no Brasil e do regime democrático de exceção na Itália, foram o marco inicial da reestruturação produtiva a nível global; da derrota e conseqüente integração dos movimentos revolucionários após 1968; e do limite da relação ambiental predatória estabelecida até aqui. No que toca a reestruturação produtiva, as três principais características econômicas do mundo globalizado são: (a) a financeirização da economia, ou

' WALLERSTEIN, \mmar\Me\. 0 SistemaMundialModerno, Vb/./:AAgricultura Capitalista e as Origens da Economia-Mundo Européia no Século XVI. Porto: Edições Afrontamento, 1990. ^ KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2006. ^ BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo - Séculos XV-XVIII: Tempo do Mundo, Vol. 111. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ARANTES, Paulo. 0 novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo,2014, p. 97.


predomínio do capital financeiro; (b) a terciarização, ou aumento do setor de serviços; e (c) a terceirização, ou privatização neoliberal com respectiva precarização das relações de trabalho. Essas características estão situadas no interior da contradição entre o desenvolvimento técnico e as relações sociais de produção:

De fato, as bases técnicas para a superação da pré-história da humanidade estão finalmente dadas, e, no entanto, esse limiar emancipatório brilha sob a luz negra de um atoleiro sem fim, o vasto aterro sanitário de homens e mulheres a um tempo descartados e ‘recapturados’ por motivo de irrelevância econômica. Esse buraco de agulha para elefantes é a contradição terminal do nosso tempo:

0 reino da liberdade está enfim à vista e todavia iremos todos morrer na praia da mais crassa necessidade material, como se ainda engafinhássemos nos tempos da pedra lascada. A contradição deste último capítulo que não acaba de acabar - a liberação possível do fardo da exploração como condição do progresso tornou-se a rigor uma verdadeira expulsão, por assim dizer, na boca do guiché -, foi no entanto identificada por Marx desde a origem: a compulsão do capital a eliminar do processo de valorização econômica a fonte mesma de todo o valor, o trabalho vivo.^

II. O moderno e o novo tempo do mundo

O conceito de tempo do mundo, por um lado, demarca para a história universal uma descontinuidade entre as épocas e, por outro, uma descontinuidade no interior de cada época. Falar de um dado momento do desenvolvimento das forças produtivas ou da experiência política não significa anular as diferenças de época em uma leitura materialista linear da história. Trata-se, sim, de definir “em que ‘hora do mundo’ nos encontramos” no interior do “tempo do mundo que nos interessa [...] o da economiamundo europeia em expansão na forma de ciclos sistêmicos de acumulação”®.

'Idem , p. 315. ®Idem, p. 30


No que toca a primeira descontinuidade, a questão é dimensionar “a mudança social substantiva na origem do mundo moderno”^. Já em relação à segunda,

[...] esse Tempo do Mundo não pode ser a totalidade da história dos homens. Estamos às voltas com [...] um ‘tempo excepcional’ que governa, segundo os lugares e as épocas, certos espaços e certas realidades. Neles é que se vive verdadeiramente na ‘hora do mundo’[...] É assim que podemos encontrar por toda parte zonas em que 0 ‘tempo do mundo’ não repercute... mesmo nas Ilhas Britânicas da Revolução Industrial.*

O moderno tempo do mundo instaurado pela economia capitalista é constituído de modo paradoxal: “uma economia-mundo capitalista, em expansão permanente desde o nascedouro, só se legitima perante uma combinação paradoxal entre o sempre igual da acumulação como fim em si mesmo e um horizonte igualmente ilimitado de expectativas”®. Trata-se da interpenetração do tempo cíclico pagão e do tempo linear judaico-cristão sob a forma da acumulação de capital como eterno retorno, nas palavras de Walter Benjamin, ou, nas palavras de Guy Debord“ , como presente perpétuo, e sua respectiva “geocultura de legitimação”^, o Progresso. O novo tempo do mundo é a reversão desse horizonte de ilimitadas expectativas em uma era das expectativas decrescentes^^ sob forma de um “estado de perpétua emergência”^^ no qual o presente, como único futuro possível, ou permitido, é agenciado pelo princípio do “mal menor”^"^.

’ Idem, p. 28. * Idem, p. 30. ®Idem, p. 48. A tese do eterno retorno se encontra em BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. A tese do presente perpétuo se encontra em DEBORD, Guy.Asociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. " ARANTES, op. d í., p. 53-54 LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em Declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983. '^ARAN TES,op.dí.,p. 77. '"t Idem, p. 357.


III. Movimentos anti-sistêmicos, espetacular integrado, questão ambiental

É nessa esteira que, após a derrubada do muro de Berlim e a queda da URSS, quando se fala no fim da história e das utopias, se insurge no México o “marco zero de todo 0 novo período, o levante zapatista de 1° de janeiro de 1994”^^ contra a entrada em vigor do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA). Nessa mesma conjuntura também se insurge outro movimento anticapitalista anti-sistêmico, mais conhecido por “movimento antiglobalização” ou “movimento de movimentos”, enquanto resistência, simultaneamente espontânea e articulada pela Ação Global dos Povos (AGP), ao modo como o capitalismo, a partir dos encontros de órgãos como OMC, FMI e BID^®, reconfigurava sua atuação em plano mundial. Tem-se como exemplos dessa resistência Seattle, no encontro da OM C (1999); Praga, no encontro do FMI e do BID (2000); e Gênova (2001), no encontro do G8. Esses dois movimentos apresentam certas particularidades. Para o movimento zapatista, “A história não se transforma a partir de praças cheias ou multidões indignadas, e sim [...] a partir da consciência organizada de grupos e coletivos que se conhecem e reconhecem mutuamente, abaixo e ã esquerda, e constituem outra política”^^ AAGP, por sua vez, nasce em 1998 no Encontro Pela Humanidade e Contra

0 Neoliberalismo, convocado pelos zapatistas, com “uma postura de confronto através da ação direta e, ao mesmo tempo, a construção de alternativas globais para o poder do povo”^^ Ambos trazem consigo, a seu modo, formas libertárias de enfrentamento: a autogestão (não se visa o controle do Estado); a autonomia local e dos grupos de afinidade; a horizontalidade da coordenação em rede; o anonimato. Ainda no ano de 1994, se suicidava Guy Debord. Dentre os seus textos, os

Idem, p. 377. Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário Internacional e Banco Interamericano de Desenvolvimento, respectivamente. MARCOS, Subcomandante Insurgente. Nem o centro e nem a periferia - sobre cores, calendários e geografias. Porto Alegre: Deriva, 2008, p. 56-57. ANDREOTTl, Bruno. Movimentos antiglobalização & práticas anarquistas. Disponível em: <http:// www.nu-sol.org/agora/pdf/brunoandreotti.pdf>. Acesso em 8 de novembro de 2014.


Comentários sobre a sociedade do espetáculo^"’ (1988) são particularmente importantes, pois apontam, vinte anos após o maio de 1968 francês, a integração entre espetacular difuso/liberal e concentrado/burocrático, denominado por ele de espetacular integrado, para o qual confluem fatores históricos como “papel importante de partido e sindicato stalinistas na vida política e intelectual, fraca tradição democrática, longa monopolização do poder por um único partido governamental, necessidade de acabar com a contestação revolucionária surgida de repente”^®. O principal laboratório do espetacular integrado foi a Itália em seus anos de chumbo:

A Itália resume as contradições sociais de todo o mundo e tenta [...] amalgamar num só país a Santa Aliança repressiva do poder de classe, burguês e burocrático-totalitário... Sendo no momento o país mais avançado no movimento em direção à revolução proletária, a Itália é também o laboratório mais moderno da contra-revolução internacional.^!

Esse novo tempo do mundo, o tempo do espetacular integrado, é também marcado pela emergência da crise ambiental, “Apoluição dos oceanos e a destruição das florestas equatoriais ameaçam a renovação do oxigênio na Terra; a camada de ozônio não suporta o progresso industrial; as radiações de origem nuclear se acumulam de modo irreversível”^^. Emergência ao mesmo tempo global e quotidiana enquanto riscos e conseqüências reais, e dispositivo de controle: “Rastreio, transparência, certificação, eco-taxas, excelência ambiental, polícia da água auguram o estado de exceção ecológico que se anuncia”, em outros termos, “É em nome da ecologia que será necessário apertar os cintos daqui para frente, tal como o foi em nome da economia até aqui”^l

Texto incluso em DEBORD, op. cit. ^“ Idem, p. 172-173. Idem, p. 159-160. Ao contrário das demais, essa citação foi retirada do Prefácio à 4° edição italiana (1979) do \\Mm A sociedade do espetáculo. Idem, p. 193. 23 COMITÊ \NV\SlVEL. A insurreição que vem. Brasil: Edições Baratas, 2013, p. 82-83.


Em decorrência disso, observa-se o surgimento de inúmeras medidas que visam 0 melhor controle da produção tendo em vista não apresentar grandes danos ambientais. Assim, desde os anos de 1970 se circunscrevem aos novos imperativos da acumulação o apelo à sustentabilidade, tanto como discurso das Nações Unidas, quanto como práticas alternativas integráveis, por exemplo, a permacultura.

IV O Brasil na rota de colisão do novo tempo e o caráter das insurgências

Em terras nada tupiniquins atualmente confluem alguns dos elementos até aqui indicados, por exemplo, a herança da Ditadura civil-militar na ordem supostamente democrática^"^ e os doze anos do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) com respectivo atrelamento sindical ao Estado e construção de uma “Cidadania Regulada”^^ Em uma relativa contramão da ordem global, o gigante acordou^® (economia emergente e ascensão conservadora) e tem a maior fatia de recursos naturais do planeta; mas possui atravessada na garganta a terceira maior população carcerária do mundo e a insurgência iniciada em junho de 2013 contra o aumento das passagens e os gastos com a Copa do Mundo. Economia emergente e ascensão conservadora, ou desenvolvimento econômico e segurança pública, são o antigo binômio da ditadura militar, agora sob a forma de uma gestão armada da vida social, particularmente nas periferias^^ e de um

“Assim sendo, poderemos ser mais específicos na pergunta de fundo: o que resta da ditadura na inovadora Constituição dita Cidadã de 1988? Na opinião de um especialista em instituições coercitivas, Jorge Zaverucha, pelo menos no que se refere às clausulas relacionadas com as Forças Armadas, Polícias Militares e Segurança Pública - convenhamos que não é pouca coisa -, a Carta outorgada pela Ditadura em 1967, bem como sua emenda de 1969, simplesmente continua em vigor. Simples assim [...] Do Banco Central ao Código Tributário, passando pela reforma administrativa de 1967, a Constituição de 1988 incorporou todo o aparelho estatal estruturado pela Ditadura” (ARANTES,op. cit, p. 289 e p. 298). Idem, p. 386-387. “ Em uma “aula pública” intitulada “Tarifa zero e mobilização popular”, a 27 de junho de 2013, Paulo Arantes levanta uma questão que pode ter uma diálogo fecundo com o “Passagens” de Walter Benjamin: “se ‘o gigante acordou’, cabe nos perguntar com o que sonhava ele nos vinte anos em que esteve mergulhado em um sono profundo?”. Disponível em: <http://blogdaboitempo.com.br/2013/07/03/ tarifa-zero-e-mobilizacao-popular/>. Acesso em 14 de novembro de 2014. O maior exemplo disso são as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro, cuja experiência piloto foi a ocupação militar brasileira no Haiti. Paulo Arantes faz esse cruzamento na


crescente aumento da criminalização dos movimentos sociais^^ mais recentemente dos manifestantes “vândalos” e adeptos da tática black bloc. Ressaltando apenas a diferença, nem tão conhecida, de que para os primeiros a bala não é de borracha; desde a insurgência das Jornadas de junho em 2013 a resistência a esse binômio ganhou proporções até então inexistentes: a ação generalizada de tomar a rua como espaço de luta, de modo direto, horizontal e permanente. O dispositivo de controle estatal, sobretudo no interior do atual refluxo das manifestações, é para ambos o mesmo: “Pensando em termos de história militar, contrainsurgência hoje, afirma Bacevich, é uma moeda falsa, uma fraude destinada a perpetuar o estado de guerra no mundo, pois a ‘segurança da população’, por definição, é uma porta que nunca se fecha”^®. Mesmo que no Brasil e na Turquia (Ocupação da Praça Taksim) em 2013 o contexto seja distinto dos Indignados na Espanha, do Occupy Wall Street no coração financeiro do mundo (EUA) e da Primavera Árabe em 2011, ou do levante na Grécia em 2008 e nos subúrbios parisienses em 2005; e mesmo que existam diferenças entre cada contexto em específico, houveram características comuns que podem ser apontadas:

As assembleias gerais eram descentralizadas e funcionavam como uma continuação das reuniões e demandas dos grupos de afinidades menores... O caráter de ocupar uma parte da cidade e torná-la aberta a quem quer que seja para se juntar e construir em conjunto novas relações com as pessoas e o espaço foi fundamental para dissociar a ação política e o ‘protagonismo’ de uma identidade engessada, como ‘trabalhadores’ ou ‘estudantes’ - categorias identitárias simplesmente inacessíveis para crescente parcela da população no novo capitalismo - e abrir espaço para a ação e a livre associação rebelde independentes do seu papel na máquina imperial.^”

“aproximação UPP-Minutash” (ARANTES, op. c it, p. 370). No entanto, é a ocupação dos territórios da Palestina a “mãe de todas as ocupações que hoje povoam o mundo” (Idem, p. 358). “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra” (Sobre o conceito da história em BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 245). ARANTES,op. cit, p. 367. 30 FlCÇÂO FICTÍCIA. Balaklava: um chamado à guerra nômade. São Paulo: 2014. Disponível em: <http://balaklava.noblogs.org/o-texto/>. Acesso em 8 de novembro de 2014.


Mas não se trata apenas de multitude. Ao menos no Brasil a influência das Jornadas foi nítida na greve dos garis no Rio de Janeiro, no carnaval de 2014^\ e dos rodoviários de São Paulo, nas vésperas da Copa do Mundo. Ambas foram abertamente apresentadas pela mídia ao público de espectadores como greves selvagens ao não seguirem a ordem legal e seus respectivos sindicatos. De algum modo, a aparente equivalência entre legitimidade e legalidade foi rompida: “Pode-se simplesmente predizer uma coisa: vai ser muito difícil que os atos de contestação, que não deixarão de aumentar nos próximos anos, respeitem os parâmetros da ‘legalidade’ concebidos precisamente no objetivo de condená-los ã ineficácia”^^. Em um presente prolongado no qual as expectativas de mudança radical nas estruturas da sociedade existente se reduzem a uma administração do mal menor, o aumento de vinte centavos ou a austeridade do desmantelo do Estado social, 0 autoritarismo de um regime democrático e sua reforma urbana predatória e excludente ou o assassinato de um jovem negro da periferia, são faíscas que ateiam fogo em um descontentamento bem mais generalizado. Nessas situações o presente não é experimentado enquanto transição, mas enquanto interrupção^^ e aquilo que se apresentava como empobrecimento da experiência e redução das expectativas se desdobra em um nada a perder positivo análogo ao que Walter Benjamin fala em 0

caráter destrutivo e Experiência e pobreza^"'. Sua principal característica é a profanação como crítica prática da alienação-separação^^

Sobre isso há o artigo “Aprender com os garis” disponível no site do coletivo Passa Palavra: <http:// passapalavra.info/2014/03/93110>. Acesso em 8 de novembro de 2014. JAPPE, Anselm. Violência, masparaquê?. São Paulo: Hedra, 2013, p. 75. ” “Se Walter Benjamin pudesse incluir postumamente um parágrafo na entrada ‘Alarme de incêndio’ de sua Rua de mão única - entrada na qual redefinia a luta de classes, não como correlação de forças sopesadas numa gangorra sem fim, mas como urgência de apagar o incêndio geral que de qualquer modo os dominantes já atearam -, é bem provável que reconhecesse nesse aparente eterno retorno de uma conjuntura em que campo de experiência e horizonte de expectativa voltaram a se sobrepor, depois de seu longo divórcio progressista, a fisionomia mesma da Revolução, o Acidente original, em suma” (ARANTES, op. cit, p. 97). O texto “Experiência e pobreza” se encontra em BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte epolítica: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012.0 texto “O caráter destrutivo” se encontra em BENJAMIN, Walter. Imagens de pensamento/Sobre o haxixe e outras drogas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. “[...] a crítica materialista da alienação-separação [...] principiou historicamente pela crítica da religião como instituição do sagrado enquanto dispositivo ou poder que subtrai e confisca coisas, lugares, animais e pessoas da livre circulação entre os homens. Portanto, desse ângulo, toda crítica ê um ato profanatório - o que Debord chamava de prática negativa. Ora, a conclusão de Agamben ê que


V. Sobre os recentes legados

Desde que se deu a ambígua insurgência sob o território do Estado brasileiro, muito se ouviu acerca da antiga polarização espontaneismo/trabalho de base. Diante dessa falsa dicotomia a questão talvez seja não recair em unilateralidade. Se a via insurrecional for a única, ela constituirá apenas outra forma de ideologia, uma forma de pensamento, organização e ação coagulada, incapaz de lidar com as particularidades de cada contexto. Coloca-se na mesma ordem o fato de que não podemos atribuir aos mais diferentes “trabalhos de base”, mesmo o do Movimento Passe Livre (MPL), a centralidade diante do conjunto multifacetado dos protestos de rua. Nenhuma greve de trabalhadores ter sido convocada diante da revolta que se alastrou em 2013 demonstra o atraso dos seus setores organizados. No entanto, o saldo da desobediência nas ruas teve continuidade em greves e ocupações^®. A ineficácia da tática black bloc no primeiro ato contra a Copa do Mundo convocado pelo MPL em São Paulo é um exemplo do limite da via insurrecionaP^ Mas de modo algum anula a importância de tal tática para a continuidade do anonimato, da ação direta e da horizontalidade existentes até aqui. Não anula, sobretudo, que essa autodefesa em conjunto com as assembleias de rua foram cruciais para os poucos, mas rápidos ganhos desse periodo^l

0 capitalismo contemporâneo enquanto religião total, quer dizer, um ritualismo integral, impulsionado por imperativos meramente cultuais, tornou-se um sistema inteiramente voltado para a ‘criação de algo absolutamente Improfanável’ - e assim sendo, a profanação do improfanável tornou-se a tarefa política da geração que vem [...] é essa a tarefa da insurgência que vem” (ARANTES,op. cit.,’ç>. 399). Dentre as ocupações, a do Parque do Cocó no Ceará, a do Cais José Estelita em Pernambuco, a da Câmara Municipal de Belho Horizonte e de Porto Alegre, são alguns dos exemplos. Sobre isso há o artigo “Agora só faltam três reais... e um imenso desafio” no site do coletivo Passa Palavra: <http://passapalavra.info/2014/06/97065>. Acesso em 8 de novembro de 2014. “Foi preciso muito bloqueio, muito ônibus depredado, muita lixeira queimada, muito enfrentamento com a polícia, mas também muita assembleia de rua [...] foi preciso, enfim, adicionar à desobediência civil uma forte dose de todas aquelas práticas que a paz armada de nossa interminável transição colocou na ilegalidade [...] Para que os vinte centavos caíssem foi preciso então profanar, nos termos do visionário Silvio Mieli - algo muito mais intolerável que as vidraças quebradas de agências bancárias e assemelhados de marca de luxo -, os santuários do único monopólio que realmente importa, e pior, por gente comum, autoconvocada” (ARANTES, op. cit, p. 434).


A questão é saber lidar com os refluxos das grandes manifestações e ampliar os laços construídos. Afinal, vale lembrar que sobre o atual estado de controle “Ninguém deixa [...] tão claro como o oficial italiano, que, após as manifestações em Gênova, em julho de 2001, declarou que o governo não queria que a policia mantivesse a ordem, mas que gerisse a desordem”^®. A gestão da desordem, da insegurança é a principal oferta do Estado. Esse percurso nos deixa, por fim, além do legado libertário, a unificação das polícias militar, civil e federal e uma nova legislação sobre o crime organizado. Como diz 0 título do último artigo no livro de Paulo Arantes, “Depois de junho a paz será total”. Paz esta sustentada por uma braço armado e fascismo cotidiano cada vez mais ostensivo"^®. Mas isto “Já o sabem as bichas, sapas e trans; pobres, negrxs e moradorxs de favelas; pessoas em situação de rua, as comunidades indígenas e os animais silvestres”'^^ Quanto maior o ruído das crises e das insurgências, tanto maior a marcha da emergência.

Passagem de Giorgio Agamben citada no texto “Rumo ao estado de controle global?”, de Jerome Roos. Disponível em: <http://outraspalavras.net/posts/gerindo-a-desordem-rumo-ao-estado-de-controleglobal/>. Acesso em 8 de novembro de 2014. “[...] os ‘coxinhas’ também se insurgiram” (ARANTES, op. c it, p. 399). « FACÇÃO FICTÍCIA, op. cit, p. 13.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDREOTTI,

Bruno.

Movimentos antiglobalização & práticas anarquistas.

Disponível em: <http://www.nu-sol.org/agora/pdf/brunoandreotti.pdf>. Acesso em 8 de novembro de 2014. ARANTES, Paulo. 0 novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte epolítica: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução brasileira de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012 -(Obras Escolhidas v. 1). D EB O RD , Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução brasileira de Esteia dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. FACÇÃO FICTÍCIA. Balaklava: um chamado ã guerra nômade. Disponível em: <http:// balaklava.noblogs.org/o-texto/>. Acesso em 8 de novembro de 2014. COMITÊ \NW\^\WEL. A insurreição que vem. Tradução brasileira de Edições Baratas. Brasil: Edições Baratas, 2013. JAPPE, Anselm. Violência, mas para quê?. Tradução brasileira de Robson J. F. de Oliveira. São Paulo: Hedra, 2013. MARCOS, Subcomandante Insurgente. Nem o centro e nem a periferia - sobre cores, calendários e geografias. Tradução brasileira de Coletivo Protopia e Danilo Ornelas Ribeiro. Porto Alegre: Deriva, 2008. PASSA PALAVRA. Aprender com os garis. Disponível em:

<http://passapalavra.

info/2014/06/97065>. Acesso em 8 de novembro de 2014. ______. Agora só 'faltam 3 reais... e um imenso desafio. Disponível em: passapalavra.info/2014/06/97065>. Acesso em 8 de novembro de 2014.

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JUÍZO FINAL OU SPRUNG? DIÁLOGOS E INTERROGAÇÕES NAS TRAMAS DA HISTÓRIA FLÁVIA MARIA DE MENEZES - PROPED/UERJ. flaviamaria37@yahoo.com.br PRISCILA DE O. DORNELLES MACHADO - PROPED/UERJ. pridornelles@hotmail.com

Resum o: A proposta deste artigo é contribuir com nossas interpretações, indagações e reflexões acerca da perspectiva histórica de Walter Benjamin em diálogo com a obra Juízo Final, do pintor alemão Fritz Lohmann. Fritz foi um artista que nos seus 85 anos de vida nunca desejou publicar suas telas, preferindo 0 anonimato, mas acreditamos, ao analisar a obra referida, que ele encontrouse com Benjamin em pensamento e reflexão, sem nunca tê-lo conhecido. Na tela Juízo Final, é possível perceber impressões que nos possibilitarão interpretar algumas ideias que Walter Benjamin desenvolveu nas teses que escreveu sobre o conceito de história, como as ideias de melancolia e redenção, que nos permitirão colocar a obra de Fritz em diálogo com este pensador.

Palavras-chave: história, in tertexto , reflexões

N° 6 - 02/2014


O céu de ícaro tem mais poesia que o de Galileu E lendo teus bilhetes, eu lembro do que fiz

Querendo ver o mais distante e sem saber voar Desprezando as asas que você me deu... (Os Paralamas do Sucesso)

Introdução

N

ão somente a extraordinária filosofia de Walter Benjamin como também a de muitos brasileiros anônimos ou não, nos instigaram a encaminhar uma proposta de artigo e discussão para participar da II Jornada Benjaminiana.

Ouvindo pelo rádio a canção Tendo a Lua, da banda Os Paralamas do Sucesso, pensamos que trazer parte desta canção na epígrafe do texto seria um bom começo para nossa discussão. O céu de ícaro é um céu mítico e trágico; um jovem sonhador, que ignorou os conselhos de seu pai colocando a frente de qualquer coisa sua ânsia juvenil por conhecer e desvendar as maravilhas da liberdade, voando ao encontro do sol e da morte. Galileu com seu telescópio mostrou que, muito mais do que mistérios, lendas, mitos, o universo é explicado pelas leis da ciência; entretanto, mesmo a ciência de Galileu não se distanciou da poesia. “M as que céu pode satisfazer teu sonho de céu?”, nos pergunta Manoel Bandeira. O céu de ícaro ou o de Galileu (acrescentamos)? Acreditamos que tem sido “o sonho de céu”, como nos convida a refletir o poeta, a nutrição para muitos pensadores, com os quais nos encontramos no percurso da pesquisa no curso de mestrado, produzirem suas filosofias, suas ideias, interrogações e reflexões. No mesmo sentido pensam os poetas que escrevem as poesias e as canções, que nos instigam a olhar nossa trajetória como pesquisadora por outras lentes, às vezes pouco nítidas, porém sempre reveladoras. Nosso encontro com Walter Benjamin começou em uma disciplina do curso de mestrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), coordenada pelas professoras Rita Ribes e Maria Luiza Oswald, duas desbravadoras do pensamento benjaminiano. Pensamos que um encontro com este pensador não tem hora marcada


para terminar. A filosofia benjaminiana nos levou a compreender que para um pesquisador da área das Ciências Humanas como somos, o céu de Galileu pode ser revelador, mas não basta, é preciso nutrir a pesquisa com o céu de ícaro q ue, para nós, tem sido possível através de Benjamin. Portanto, nossa proposta é contribuir nesta Jornada com nossas interpretações, indagações e reflexões acerca da perspectiva histórica de Benjamin em diálogo com a obra Juízo Final, do pintor alemão Fritz Lohmann^ Fritz foi um artista que nos seus 85 anos de vida nunca desejou publicar seu trabalho, preferindo o anonimato, mas acreditamos, ao analisar a obra referida, que ele encontrou-se com Walter Benjamin em pensamento e reflexão, sem nunca tê-lo conhecido, ou melhor, sem ter tido o prazer da leitura de suas obras, e que trazê-lo para dialogar com as perspectivas históricas Benjamin seria, para nós, uma experiência fascinante no exercício reflexivo sobre a obra deste pensador. Fritz Lohmann nasceu na cidade de Berlim, na Alemanha, no ano de 1916. Aos onze anos, veio para o Brasil com sua família e aqui permaneceu até a sua morte, em 2001. As telas foram, ao longo de sua vida no Brasil, o modo pelo qual Fritz expressava sua filosofia. Na tela Juízo Final é possível perceber impressões deste artista que nos possibilitaram interpretar algumas ideias que Benjamin desenvolveu nas teses que escreveu sobre o conceito de história, como as ideias de melancolia e redenção, que nos permitiram colocar a obra de Fritz em diálogo com este pensador. Nossas interpretações estão ancoradas nas obras de Walter Benjamin (1986, 1987), Michael Lõwy (2005), Boaventura Sousa Santos (2002), e outros interlocutores que nos têm atravessado nas leituras benjaminianas.

O quê de Benjamin atravessa o Juízo Final?

O salto benjaminiano é, para nós, uma ideia fascinante para falar de história.

' Fritz Lohmann é avô de uma das autoras do artigo. Optamos em não detalhar aspectos de sua vida pessoal respeitando, assim, seu desejo de permanecer no anonimato.


Fomos educados a pensar a história a partir da força da correnteza, ou melhor, levados a “ver” os fatos históricos e acreditar naquilo que nos foi contado, como faz a força da correnteza que nos leva para onde o curso das águas caminha, o tempo todo nesta direção; até porque nadar contra a correnteza exige fôlego e coragem; é sempre uma situação de enfrentamento do que parece ser inevitável, sem medo; é como se desconfiássemos daquilo que nos é colocado como verdade, com provas legítimas, como narrou Benjamin em sua Tese XI: “nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente”^. O salto benjaminiano nos encantou pelo fato deste pensador não trazer, na sua filosofia, 0 desmascaramento das verdades históricas, mas sim e sempre, outra forma de conhecê-las, ou seja, um reconhecimento de uma história contada sob outros pontos de vista. Outros pontos de vista possíveis, pois o que Benjamin nos tem possibilitado é pensar quais seriam os enredos e os desdobramentos se os fatos acontecessem de outra forma; se fossem protagonizados por outros “heróis”; se os heróis da história tivessem no lugar dos vencidos e os vencidos no lugar dos heróis; se o poder se rendesse às forças da resistência. Exatamente, no ano em que a família de Fritz larga sua história alemã para construir uma outra história no Brasil, em 1927, a República de Weimar, como assim passou a ser chamado o sonho de democracia alemã, instituía o seguro desemprego para tentar minimizar a miséria de boa parte das famílias alemãs em decorrência da Primeira Guerra Mundial, inclusive a da sua família. Fritz dizia que seu pai era um conservador que desejava a Alemanha de outrora. Culpava seu pai por não ter se criado na sua terra de origem; queria ter podido dar uma chance às promessas da social democracia pela qual sempre demonstrou simpatia, mas se lamentava pelo fato desse mesmo sonho de democracia, aliado ao medo da realidade e a uma certa nostalgia de um passado imperial terem fortalecido Adolf Hitler e o terror do nazismo que, ao mesmo tempo,

0 fazia agradecer ao seu pai por ter escolhido deixar as esperanças para trás. Assim, pensando na trajetória de Fritz, como seria pintado o Juízo Final se sua família tivesse resistido à tentação de abandonar a pátria para fugir da recessão? Será que a dor social que moveu a criação de Fritz existiria em seu peito?

^ BENJAMIN, 1987, p. 227.


Lohmann, Fritz. Juízo Final, 1989

Para nós, a tela Juízo Final, pintada por Fritz no ano de 1989, é uma das obras em que este pintor dialoga com mais intensidade com a filosofia histórica de Walter Benjamin. Deus, o velho vestido de branco, representa toda a dor social que Benjamin colocou na sua filosofia, dor essa presente em cada reflexão, em cada alegoria, em cada palavra que escreveu em suas teses para tratar o conceito de história. A melancolia foi mais que um sentimento, podemos arriscar dizer que foi um conteúdo que Benjamin utilizou para escrever suas obras. Vejam a tela Juízo Final: a melancolia está em Deus, que carrega o fardo de sua criação e sofre pela ausência da necessária “inveja de cada presente com relação ao seu futuro”% que Walter Benjamin já denunciava em suas teses. A melancolia está, também, presente na paisagem de fundo, nas cores da terra e do céu; na expressão de alguns estadistas, como Napoleão, por exemplo, cuja causa revolucionária o fez imperador, mas também o entorpeceu pelo poder, transformando-o em um dos maiores ditadores da história. Muitas interpretações podem surgir desta obra, entretanto, para nós, chama a atenção os grandes estadistas da história da humanidade que Fritz reuniu para representar o que estamos entendendo como o fardo mais pesado da criação de Deus: “heróis do bem” e “heróis do mal” compartilham, pelos seus ideais, a responsabilidade de muitas perdas, da miséria social, da competição desleal, da ânsia pelo poder, do holocausto, das guerras, da desigualdade, da exclusão, da segregação racial e cultural.

■Mdem,1987, p. 222


da colonização econômica e muitas outras situações que escureciam as possibilidades de um novo século, mais solidário e mais livre para toda a humanidade. As expectativas para a chegada do século X X I (já que a tela em referência data do ano de 1989) eram de pouca esperança e o artista tentava expressar sua melancolia já que os grandes heróis não tinham percebido, ou simplesmente ignoraram o “aviso de incêndio” anunciado nas tramas da história, aquelas que não foram rememoradas porque esses heróis não escutaram os ecos das vozes que eles mesmos emudeceram. Com as mãos na cabeça. Deus parece sentir-se derrotado e entrega ao Diabo (o monstro que surge por entre as nuvens) sua criação para o juízo final, porque sem redenção não há salvação! Benjamin nos convida a pensar as narrativas históricas sem distinção de grandes e pequenos acontecimentos; sem distinguir grandes e pequenos homens e mulheres:

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriarse totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um de seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à

Vordredu jo u r - e esse dia éjustamente o do juízo final.'*

Lõw^ comenta na obra que escreveu sobre as Teses de Benjamin, que para o pensador seria preciso que a humanidade se rendesse ao passado para narrar uma história que coubesse o seu passado em toda a sua “inteireza”, sem deixar para trás nenhum acontecimento, nenhuma perda, nenhum sofrimento^ Assim, explicamos a melancolia de Fritz ao olhar para o seu passado e reconhecer que a sua Alemanha se esqueceu de narrar o sofrimento das muitas famílias que abandonaram seus sonhos e se aventuraram em um futuro sem passado, em terras desconhecidas. O que na verdade

BENJAMIN, 1987, p. 223. 'LOW Y,M ichaeI,2005,p. 54.


essas pessoas deixaram para trás? Aquilo que foi deixado e, com o tempo, esquecido (se é que isso é possível) ficou aprisionado na memória, na história não contada, e por isso, uma vez aprisionado, não permitiu que novos sonhos libertassem essas pessoas da culpa, do medo, do rancor, da saudade. Entretanto, nas telas, ao contrário de seus atos, Fritz mostrou uma consciência de que, como nos coloca Lówy, “a relação entre o hoje e 0 ontem não é unilateral: em um processo eminentemente dialético, o presente ilumina o passado, e o passado iluminado torna-se uma força no presente”®. Assim, atravessado pela dor, pela saudade, pela culpa, pelo medo e por muitos sentimentos Fritz mostrou nas suas telas (assim acreditamos) que sabia o que era “escovar a história a contrapelo”, como sugere Benjamin na escrita da Tese VIF, e que, mais ainda, trazia essa forma benjaminiana de pensar o passado ã luz do presente”, ou melhor dizendo, “ a verdadeira imagem do passado perpassa veloz, o passado só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”^

A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que no momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participaram do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses desposjos são o que chamamos de bens culturais.®

Nesse sentido, podemos entender que Deus não carregava para o Juízo Final os despojos da sua criação: os vencidos, os dominados, pois esses nasceram e morreram assujeitados pela força da submissão aos dominadores. Se por eles lutaram, se neles acreditaram e depositaram suas esperanças, foi porque o fascínio pelas promessas

®Idem, p. 61 ’ BENJAMIN, 1987, p. 225 « Idem, p. 224. ®Idem, p. 225.


de um futuro de vitórias e conquistas provocou nesses sujeitos o apagamento do compromisso com as suas próprias perspectivas.

Assim, é de estranhar logo na primeira página a afirmação de que “o século em que se luta, por que idéias e com que armas são coisas secundárias”. E o mais espantoso é que, com essa afirmação, Ernst Jünger se apropria de um dos principios do pacifismo, um dos mais contestáveis e abstratos. Mas o que há por trás dele e de seus amigos não é tanto um padrão doutrinário, mas sim um arraigado misticismo perverso, segundo todos os critérios de um pensamento viril. O seu misticismo da guerra e o ideal estereotipado do pacifismo se eqüivalem. No momento, mesmo o pacifismo mais tisico está um passo á frente de seu irmão acometido por ataques epilépticos: ele tem certos pontos de referência na realidade, inclusive, uma concepção da próxima guerra. (...) Com prazer e com ênfase, os autores falam da “Primeira” Guerra Mundial. Mas a obtusidade com que falam em guerras futuras, sem noção do que estão falando, prova a falta de assimilação, pela sua experiência, de uma realidade a qual chamam de “real de alcance mundial”, com estranhissima exaltação. Esses pioneiros da Wehrmacht quase levam a crer que o uniforme é para eles um objetivo supremo, desejado com todas as fibras de seu coração, objetivo que quase faz esquecer as circunstâncias nas quais

0 uniforme é utilizado.[...]

Na obra que utilizamos como uma das interlocuções benjaminianas neste texto,

Documentos de Cultura. Documentos de Barbárie (Escritos Escolhidos), Benjamin faz uma resenha crítica (Teoria do Fascismo Alemão) da coletânea organizada por Ernest Jünger, Krieg undKrieger (Guerra e guerreiros)“ . Na sua crítica, entre muitas questões que Benjamin nos coloca para reflexão, uma delas é que provavelmente os autores da coletânea não conseguiram avaliar o que é, para os vencidos, ganhar ou perder uma guerra. Benjamin faz sua crítica, mas não culpa e nem acusa os autores da coletânea

''■Walter Benjamin, “Theorien des deutschen Faschisrnus” (Teoria do Fascismo Alemão), in Documentos de Cultura. Documentos de Barbárie. Resenha da coletânea Krieg und Krieger (Guerra e guerreiros), org. por Ernst Jünger, Ed. Junker e Dunnhaup, 1930.


pelas suas palavras. Reconhece que esses autores, além de narradores da guerra foram soldados nos confrontos e viveram na alma a experiência da guerra; porém, revela em suas críticas certa ingenuidade nas ideias desses autores, e de muitos líderes: o que significa ganhar ou perder a guerra para aqueles que não lutaram, mas que perderam muito mais que batalhas, pois perderam a “substância material e espiritual de um povo”?“ Na sua arte, na sua filosofia e nas muitas escolhas que fez ao longo da vida, Fritz deixou escapar sentimentos como culpa, arrependimento, revolta e também nostalgia em relação à Alemanha, sua terra natal. Fazia correspondência com entidades alemãs que lhe enviavam jornais e revistas do país, e ele os lia, assim como suas revistas e livros de arte, que também eram alemãs (alguns franceses ou ingleses, línguas que aprendeu de forma autodidata), de maneira que se sentia alemão morando no Brasil, e por isso nunca se naturalizou brasileiro. Seu sotaque era bem carregado. Isso parecia estranho; uma negação. Não ao Brasil que lhe acolheu, mas ã própria Alemanha que dizia lhe ter expulsado. Talvez essa forma de se colocar estrangeiro permitiu que desenvolvesse uma bela filosofia sobre ser brasileiro, que demonstrou de forma surpreendente em sua arte. No mesmo sentido, Fritz mostra como seria a Alemanha e os alemães se as escrituras históricas tivessem outras narrativas, por outros narradores. Como interpretou Lõw^ (2005), “o passado espera de nós sua redenção”. A redenção (Erlôsm g), para Benjamin, tem seu sentido na rememoração da história. Rememorar a história trazendo para as narrativas as experiências coletivas de todos os sujeitos. Narrar o passado como um desvio para pensarmos o presente: “nada de salvação sem transformações revolucionárias da vida material”^^. E foi assim que Fritz expressou em o Juízo Final: era certo, para o Diabo, que Deus colocaria a parte mais valiosa de sua criação aos seus “cuidados”. Do seu lugar o “mal” apenas contemplava e esperava, sem interceder, pelo o juízo final. Na crítica literária que Benjamin escreveu sobre o surrealismo, há uma passagem em que se refere a uma obra de Dostoievski que muito nos disse sobre a tela Juízo Final:

" BENJAMIN, 1986, p. 132. LÕWY. Michael, 2005, p. 58.


Para sermos mais rigorosos, podemos selecionar da obra completa de Dostoievski exatamente o texto que de fato somente foi publicado em 1915: “A confissão de Stavrogin, dos Demônios. Esse capitulo, que tem estreitas analogias com o terceiro canto dos Chants de

Maldoror, contém uma justificação do Mal que exprime certos motivos do surrealismo com mais força com que jamais conseguiram os seus propugnadores atuais. Pois Stavrogin é um surrealista avant

la lettre. Ninguém como ele compreendeu como é falsa a opinião do pequeno burguês de que, embora o Bem seja inspirado por Deus, em todas as virtudes que ele pratica, o Mal provém inteiramente da nossa espontaneidade e nisso somos autônomos e responsáveis por nosso próprio ser. [...] O Deus de Dostoievski não criou apenas o céu e a terra e o homem e o animal, mas também a vingança, a mesquinharia e a crueldade. E também aqui o Diabo não interferiu com o trabalho.

No Juízo Final, Deus condenou os “justos” e os pecadores. Condenou os “grandes heróis” de Fritz Lohmann, da mesma forma como condenou seus vilões. Foi um julgamento sem perdão, porque não houve redenção em nenhum dos dois lados. Os ideais pareciam antagônicos, porém forças opostas lutaram com as mesmas armas e, dessa forma, os ideais progressistas não transformaram o curso da história como prometeram às classes oprimidas, e os entregaram como instrumentos para fortalecer ainda mais as classes dominantes, prevalecendo a diferença entre classes,

0 individualismo, a segregação social, o “poder do Estado estrangeiro autônomo se opondo aos membros da sociedade”, temas essenciais da obra de Marx que Benjamin criticou com veemência. Segundo Gagnebin, Benjamin sofreu grande impacto com o acordo firmado entre Stalin e Hitler, em agosto de 1939, que o inspirou na escrita de suas teses sobre história, que para muitos críticos são um dos maiores legados que ele deixou para seus contemporâneos.^^ No final da década de 1970 e início dos anos de 1980, o Brasil,

BENJAMIN, 1987, p. 31. '"t LOWY, Michael, 2005, p. 59. Jeane Marie Gagnebin prefaciou a obra Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas í , traduzida por Sergio Paulo Rouanet, publicada em V edição no Brasil em 1985, pela Editora Brasiliense. A edição que estamos utilizando como referência neste texto é datada de 1987.


pátria emprestada de Fritz, fervia com o final do regime militar: anistia, fim da ditadura, eleições diretas, liberdade de expressão, enfim, nessa efervescência a juventude encontrou espaço para criar formas irreverentes de resistência cultural, cantando, escrevendo, pintando e poetizando seus protestos, suas denúncias e opiniões. A Bancfa

Titãs surge em 1982 com a promessa de “dar um soco no estômago da hipocrisia”^®e colocar a juventude brasileira para pensar e incomodar a “burguesia”. Em uma de suas canções. Homem Primata, encontramos um trecho que poderia representar, de forma contundente, a figura do Diabo na tela Juízo Final, ou melhor, o seu veredito:

Eu aprendi Avidaéum jogo Cada um por si E Deus contra todos Você vai morrer E não vai pro céu É bom aprender A vida é cruel Homem primata Capitalismo selvagem Titãs

Portanto, se essa é a regra, só sairemos fortalecidos dessa batalha se encontramos no “estado de exceção” a verdadeira regra para viver e fazer história, como nos aconselhou Benjamin na escrita de sua Tese VIII.^^Walter Benjamin mostrou-nos, com a sua concepção de história que não há como materializar o futuro; logo, esperar por ele é perder o presente. Perder, sim, a possibilidade de potencializar as nossas chances de narrar e fazer o presente a partir do avesso dos fatos, das conquistas e das vitórias, enfim, do “estado de exceção”. Nem Fritz e nem Benjamin viram as Torres Gêmeas caírem, e também não viram

www.titas.net/historia. consulta em 16/11/2014. " BENJAMIN, 1987, p. 226.


um operário e um negro assumirem a presidência de uma nação; não viram a crise econômica da Grécia, berço da civilização ocidental, como também não conheceram

0 universo virtual da internet e do mundo digital. Não falaram ao celular e nem se conectaram em redes de relacionamento; entretanto, talvez suas pinturas e narrativas críticas não fossem tão diferentes se elaboradas no tempo de agora. Boaventura de Sousa Santos reconheceu a pobreza da experiência contemporânea nos estudos que desenvolveu para investigar as formas como os movimentos sociais e as ONGs vêm reagindo aos processos de exclusão e discriminação social e econômica mundiais:

Fundada na razão metonímiai^ a transformação do mundo não pode ser acompanhada por uma adequada compreensão do mundo. Essa inadequação significou violência, destruição, silenciamento para todos quantos fora do Ocidente foram sujeitos ã razão metonímia; e significou alienação, malaise e uneasiness no Ocidente. Esse desconforto foi bem sentido por Walter Benjamin ao mostrar o paradoxo que então passou a dominar- e domina hoje, mais ainda - a vida no Ocidente: o facto de a riqueza dos acontecimentos se traduzir em pobreza da nossa experiência e não em riqueza. Este paradoxo veio coexistir com um outro: o facto de a vertigem das mudanças se transmutar frequentemente numa sensação de estagnação^®.

Assim, 0 presente vai mostrando que “começar tudo de novo” com a certeza de que o sol nasce todos os dias para todos, não significa voltar ao princípio e nem tampouco pouco esperar pelo “nada como um dia após o outro”. Como nos coloca Lôw^ (2005), “a relação entre hoje e ontem não é unilateral: em um processo eminentemente dialético, 0 presente ilumina o passado, e o passado iluminado torna-se uma força no presente”^®. Nesse sentido, é preciso olhar o espelho retrovisor primeiro. Vamos tomar aqui 0 espelho retrovisor como uma metáfora. Ao olharmos através dele, as coisas parecem menores em relação ao reflexo de um espelho comum, mas em função da sua

Conceito desenvolvido por Boaventura Sousa Santos, que compreende a “ideia da totalidade sob a forma de ordem” (2002, p. 241) SANTOS, 2002, p. 244 LOWY, Michael, 2005, p. 61


forma curva, o espelho retrovisor aumenta o nosso campo de visão. Nesse sentido, o passado refletido no espelho retrovisor pode ampliar nosso campo de visão do presente e aumentar as chances de enfrentamento e de ruptura, criando, assim, novas formas de emancipação social, cada qual na dimensão de sua real necessidade como sugere Boaventura: “formas de emancipação sociais concretas de grupos sociais concretos” (2002, p. 274). Se não é desta forma, esperamos o Juízo Final de Fritz que, hoje, certamente, acrescentaria muitos outros personagens.

Considerações Finais

Desde o início do século X X , Walter Benjamin vem causando impacto com a sua filosofia e trazendo importantes questões não só para os pensadores da modernidade, como para os estudiosos da contemporaneidade, o que nos leva a considerar suas ideias sempre correlatas com o tempo ( diríamos até para além do tempo de agora). Aversão benjaminiana do conceito de história nos revela uma história que não evolui em linha reta, mas que se dá no “salto” (Sprm g) em direção ao novo, ao inusitado, ao acontecimento, uma possibilidade de articular a tradição e o passado com o presente, e é exatamente essa impressão que nos causa a tela Juízo Final, de Fritz Lohmann. A dor social que foi um conteúdo para as criações de Benjamin, também nutriu a produção artística de Fritz Lohmann. Essa dor social não pode ser sentida em sofrimento ou angústia, mas como inspiração, como possibilidade de reinvenção das experiências, ou como sugere Boaventura, como “possibilidade de um futuro melhor” que “não está, assim, num futuro distante, mas na reinvenção do presente”^^ Talvez, Fritz tenha tido esta intenção, mas pelas circunstâncias da vida, ao contrário da obra de Benjamin, sua obra ficou no anonimato, como uma recordação de sua vida, uma presença nas casas de seus filhos e netos. Entendemos que esta dor social ou melancolia que atravessou a obra de ambos os artistas aqui referendados, deveria atravessar de forma criativa o trabalho do

SANTOS, 2002, p. 274


pesquisador. Para Benjamin, tornar-se melancólico é fundamental para a produção de subjetividades, portanto a possibilidade de expandir a condição criadora e encorajar o pesquisador a resistir às constatações, às verdades e ao pessimismo, buscando o avesso da realidade, a outra face das coisas.

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, W. Documentos de Cultura. Documentos de Barbárie: escritos escolhidos/ seleção e apresentação Willi Bolle; tradução Celeste H. M. Ribeiro de Sousa et al. São Paulo: Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo, 1986 __________________ . Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história

da cultura. Obras Escolhidas Vol. 1. Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. LÒWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o

conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia

das emergências. Coimbra: Sociais, out. 2002, p. 237-280.

Site

http:7www.titas.net/historia http://vyyyw.vagalume.com.br


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0 PESSIMISMO COMO CRITICA DO PROGRESSO NO ENSAIO SODRE 0 SORRELISMO OE WALTER RENJAMIN FELIPE YURI GINO DE ABREU - Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (CMAF/UECE). felipe.yuri.abreu@gmail.com

Resum o: Em seu ensaio O surrealismo: o últim o instantâneo da inteligência europeia (1929), Walter Benjamin afirma que a aproximação entre surrealismo e comunismo está relacionada à proposta surrealista de pessimismo total. Benjamin aponta como resultado desse pessimismo uma desconfiança quanto ao destino da liberdade, quanto ao rumo da história, quanto ao entendimento entre as classes, ou seja, uma suspeita quanto a qualquer esperança ou ideia de progresso. Resulta desta percepção o objetivo principal deste trabalho que é o de discutir a relação entre esse pessimismo surrealista e a crítica de Benjamin ao progresso. Com a finalidade de alcançar a tal objetivo, buscaremos desenvolver uma explanação sobre o modo como tais conceitos são abordados por Benjamin tanto no texto sobre o surrealismo de 1929 quanto nas teses Sobre o conceito de história de 1940.

Palavras-chave: Surrealismo; Vanguarda; Crítica do Progresso.

N° 6 - ESPECIAL - 02/2014


Introdução azer uma descrição sobre a experiência surrealista com todos os seus

F

pormenores não é a finalidade maior de nosso trabalho, assim como, não era a meta final de Walter Benjamin em seu ensaio sobre o surrealismo. Ao contrário,

concentraremosnossadiscussãonumrecortebemprecisoacercada crítica benjaminiana

a este movimento de vanguarda que não deve e nem poderia ser considerado apenas como um movimento artístico ou poético.^ A atitude surrealista, que o leva a ser um movimento com a pretensão de ir além da arte, nos parece ser fruto de seu tempo. Visto que 0 movimento se desenvolve no período entre as duas grandes guerras do século XX, e seus grandes nomes são testemunhas do horror da guerra, da crise econômica e da possibilidade de revolução. Diante deste horizonte histórico a lírica surrealista se põe em oposição ao eu cartesiano. Enquanto este mergulha em si mesmo a fim de que pelo processo de reflexão a razão possa livrar-se do erro indubitavelmente, o surrealismo, como testemunha das contradições de seu tempo, não é capaz de confiar cegamente nas certezas da razão e propõe uma visita às possibilidades advindas do erro. Como salienta Jeanne Marie Gagnebin:

Com efeito, não se trata mais de não ser enganado — esse medo constante de Descartes — , mas sim de aproveitar o(s) erro(s), a(s) errância(s), o errar sob todas as suas formas para poder fugir da prisão da identidade, da razão, do cotidiano e do aborrecimento.^

Contudo, essa fuga do cárcere da razão não significa uma adesão a um irracionalismo, é antes, um experimento, o de levar a linguagem e a própria razão a seus limites.^ É, por desconfiar das certezas da razão, operar no limiar entre esta e a loucura, entre o sonho e a vigília. A desconfiança quanto ã razão, iluminadora e guia do mundo moderno, é, no nosso entender, análoga a desconfiança quanto ao progresso histórico.

' Cf. BENJAMIN, Walter. 0 surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. In: Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos, p. 106. ^ GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete A ulas sobre Linguagem, M emória e História, p. 156. ^Cf.Idem, p. 157.


tema central de nossa discussão. Portanto, fixamos os limites de nossa exposição em tratar da posição pessimista assumida por Benjamin acerca do desenvolvimento histórico. Pessimismo este, evocado pelo crítico alemão em seu ensaio sobre o surrealismo, e que, como salienta Michael Lõwy:

O pessimismo está aqui a serviço da emancipação das classes oprimidas. Sua preocupação não é com o “declínio” das elites ou da nação, mas sim com as ameaças que o progresso técnico e econômico promovido pelo capitalismo faz pesar sobre a humanidade.'*

No texto sobre o surrealismo é evidente que o pessimismo, ou melhor, o pessimismo total deve ser compreendido como uma característica inconteste do movimento. Na obra supracitada, além de afirmar esta propriedade do surrealismo, Benjamin a põe em confronto com o otimismo em relação ao progresso, presente no programa dos partidos burgueses e socialdemocratas. Em nosso trabalho, discutiremos o modo como Walter Benjamin aborda esse caráter pessimista do surrealismo, sendo tal discussão guiada pela seguinte tese: a questão do pessimismo presente no texto de 1929 pode ser entendida como um dos momentos germinais da crítica benjaminiana ao progresso e a socialdemocracia que aparece nas teses Sobre o conceito de história de 1940, o que torna possível uma articulação entre os conceitos presentes nesses dois textos.

LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de

história”, p. 23


Pessimismo e surrealismo A obra A revolução e os intelectuais (1928) do escritor surrealista Pierre Naville contém em sua proposição de “organizar o pessimismo” como ordem do dia o ponto de encontro entre o surrealismo e o comunismo.^ O pessimismo aparece então em sentido antagônico frente à postura otimista da socialdemocracia que com sua fé incessante na marcha da história acredita num futuro onde o fim das contradições sociais surgiria como resultado final do curso natural do progresso.® Benjamin ilustra sua posição a respeito desse devaneio socialdemocrata da seguinte forma:

O socialista vê aquele “futuro melhor para nossos filhos e netos” num mundo em que todos agem “como se fossem anjos”, em que todos têm posses “como se fossem ricos”, e todos vivem “como se fossem livres”. De anjos, riqueza e liberdade -nem sombra. Apenas imagens.^

Mas, 0 que faz com que o pessimismo aproxime surrealismo e comunismo? Para elucidar tal questão recorremos ã nona tese de Sobre o conceito de história, pois nesta, ao descrever o quadro Angelus novus de Paul Klee, Benjamin acaba desenhando com suas palavras um novo quadro, no qual o Anjo da história vê com espanto a mesma catástrofe se repetindo continuamente: “Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés”.^ Então, poderia, aquele (o materialista histórico) que percebe no contínuo da história a repetição cíclica de uma mesma catástrofe, ter a vã esperança de que a sociedade sem classes seja inevitavelmente alcançada como uma meta final do progresso? Entendemos que tanto a resposta surrealista para essa questão quanto a do

^ Cf. BENJAMIN, Walter. Op. cit. p. 114. ^ Sobre essa questão afirma Michael Lowy: “(...) para a ideologia conformista, o Progresso é um fenômeno ‘natural’, regido pelas leis da natureza e, como tal, inevitável, irresistível.” LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história’’, p. 93.

’ BENJAMIN, Walter. Op. cit. p. 114. * BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Tese IX. In. LOWY, Michael. W alter Benjam in: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”, p. 87.


materialismo histórico seria negativa, pois como afirma Benjamin:

O surrealismo tem se aproximado cada vez mais de uma resposta comunista. E isso significa: pessimismo total. Desconfiança quanto ao desfino da literatura, desconfiança quanto ao desfino da liberdade, desconfiança quanto aos rumos da história europeia, e sobretudo uma desconfiança total em todo tipo de entendimento: entre as classes, entre os povos, entre os individuos. E uma confiança ilimitada apenas na indústria bélica e no aperfeiçoamento da força aérea para fins pacificos.®

A urgência desta desconfiança quanto ao futuro aproxima o surrealismo do comunismo, ao mesmo tempo, fortalece a crença no presente que é o lugar por excelência da ação política. Contudo, entendemos ser aí que se encontra um dos limites do movimento surrealista, pois apesar do reconhecimento quanto ao pessimismo de Pierre Naville, não podemos deixar de lembrar o incômodo que Benjamin demonstra em relação ao Nadja de André Breton. Quando a curiosidade quanto ao futuro leva Paul Éluard a bater na vidraça da vidente a fim de saber a respeito do seu porvir,“ uma questão logo vem ã tona: como tornar compatível uma visão pessimista em relação ao futuro com uma curiosidade esperançosa a respeito deste? Compreendemos que a resolução de Benjamin para esta questão seja a seguinte: o sujeito histórico não tem a necessidade de saber seu futuro, pois o instante da redenção é o presente, o materialista histórico deve saber que é caminhando que se abrem os caminhos (parafraseando Belchior).“ Walter Benjamin aponta para esta solução em 0 caráter destrutivo, texto de 1931, ao afirmar que: “O caráter destrutivo não se fixa numa imagem ideal. Tem poucas necessidades, e a menos importante delas seria: saber o que ocupará o lugar da coisa destruída.”^^

® BENJAMIN, Walter. 0 surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. In: Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos, p. 114. BENJAMIN, Walter. Op. cit. p. 108. " Cf. FERNANDES. Antônio Carlos Gomes Belchior Eontenelle. Brincando com a vida. In. Belchior. Todos os sentidos. Rio de Janeiro: Warner, 1978. Faixa 3. Mp3. BENJAMIN, Walter. O Caráter destrutivo. In: Documentos de cultura, documentos de


Eis aí 0 problema da socialdemocracia, abandonar a prática revolucionaria em prol de uma confiança otimista na marcha do progresso. Um otimismo que fixa sua visão numa imagem ideal de futuro. E isto é justamente o que defendiam os defensores do neokantismo,^^ sustentáculo filosófico da socialdemocracia, que concebe a busca pela sociedade sem classes como um ideal, que não é outra coisa senão, uma tarefa infinita. Contudo, 0 materialista histórico deve ter a clareza de que, como nos adverte Benjamin:

“A sociedade sem classes não é a meta final do progresso na historia, mas, sim, sua interrupção, tantas vezes malograda, finalmente efetuada”. A desconfiança em relação ã razão e o pessimismo quanto ao futuro aparecem como duas faces de uma mesma moeda. Ambas brotam da percepção de que, seja por se esperar um futuro onde não existam mais contradições entre classes, ou ainda, por crer que o desenvolvimento técnico e científico, resultantes do protagonismo da razão, resolveria os problemas da humanidade, não é prudente confiar a experiência cotidiana aos desígnios de um ideal. Assim, concluímos que o entusiasmo demonstrado por Walter Benjamin em relação ao surrealismo se deve ã postura negativa adotada pelo movimento frente às questões aqui discutidas. Deste modo, o surrealismo desenvolveu sua prática estética e política tendo em vista a expor a crise do protagonismo da razão e acaba apontando para novas possibilidades de percepção, compreensão e intervenção social.

barbárie: escritos escolhidos, p. 187. Na tese XVII a de Sobre o conceito de História, Benjamin, se referindo ao neokantismo afirma que: “E essa doutrina era a filosofia elementar do partido socialdemocrata - de Schmidt e Stadier a Natorp e Vorlander.”. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Tese XVII a. In. LOWY, Michael. W alter Benjam in: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”, p. 134 Idem. p. 134


Referências bibliográficas

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conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant, [tradução das teses] Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Muller. -São Paulo: Boitempo, 2005.


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os CACTOS: ORDENS EM QUESTIONAMENTO CARLOS AUGUSTO DE OLIVEIRA AZEVEDO FILHO - Graduado em Artes Cênicas pelo Centro Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Ceará (CEFET CE); Graduando em Licenciatura em Teatro pelo Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Ceará (IFCE).

Resum o: O presente trabalho tem como meta desenvolver um estudo sobre a apresentação da peça Os Cactos, encenada pelo Grupo Expressões Humanas de teatro na cidade de Fortaleza, em abril de 2014. Tal estudo tem como orientação m inha experiência enquanto público da apresentação mencionada, além da trajetória de manifestações artísticas vinculadas às intervenções sociais, assim como a relação entre teatro e política. Pesquisas de Ernst Ficsher (1987), Gerd Bornhein (1992) e Walter Benjamin (1994) exercem forte influência sobre o trabalho em questão. A avaliação levada a cabo ao longo desse estudo tem como ponto de partida a observação exercida na apresentação supramencionada, entretanto outras fontes foram adotadas para o engrandecimento desta pesquisa, como a visualização da encenação de trechos da peça, assim como gravação em vídeo de uma apresentação do espetáculo de modo integral. Acredito que este trabalho seja relevante para pesquisadores, profissionais das artes cênicas e para a sociedade em geral devido ao seu caráter investigativo e sua disposição crítica.

Palavras-chave: teatro épico, subversão e liberdade.


I. Apresentação a noite de 25 de abril de 2014, o Grupo Expressões Humanas de teatro apresentou a peça Os Cactos, de autoria de Emmanuel Nogueira, sob direção de Herê Aquino. Tal apresentação fazia parte de um evento promovido pela organização Desaparecidos Políticos, em memória de quem se doou na luta pela liberdade e em repúdio à ditadura civil e militar instaurada no Brasil em 01 de abril de 1964, permanecendo oficialmente até o ano de 1985.

Os Cactos traz em sua estrutura narrativa a dor e o desespero ocasionados pelo processo de privações de direitos decorrentes de uma ditadura, expondo o desalento de uma família que desconhece o paradeiro de um de seus membros, o jovem Pedro, que participava do movimento de resistência contra o governo ditatorial. Pedro passa por sessões de interrogatório nas quais é brutalmente torturado por um agente do Estado, que assume para si a responsabilidade de extrair as informações necessárias a fim de que as instâncias de repressão obtivessem avanço, ou seja, eliminassem qualquer grupo ou pessoa que se opusesse às ideias e práticas do governo ditatorial. A apresentação de Os Cactos em foco esbanjou ousadia. Com espaço cênico montado no meio da Rua Instituto do Ceará, no Benfica, bairro universitário da região central da cidade de Fortaleza, entre os muros de algumas residências, da sede da Anistia 64/68 e do grupo

Desaparecidos Políticos e da FEAAC^, com uma lona preta e um grande manto da mesma cor, além de projeções de imagens relacionadas às pessoas que desapareceram durante a ditadura civil e militar^ citada, compunham o espaço da apresentação. Vestidos com

1 Faculdade de Economia, Administração, Atuárias e Contabilidade da Universidade Federal do Ceará. ^ Insisto no termo ditadura civil militar, pois identifico neste uma maior proximidade com o que de fato aconteceu por aqui. A ditadura instaurada por meio de um golpe militar em 01 de abril de 1964 teve certo apoio popular, o que a caracteriza como uma ação militar com aprovação de parte da população, sobretudo as de situação mais abonada e de posição reacionária às conquistas dos trabalhadores; mas o que motivou esse golpe e consequentemente o apoio a ele? Para se ter a precisa noção de alguns estímulos que permitiram esse processo de privação de direitos e cerceamento da liberdade é necessário entender a conjuntura sócio política do Brasil e do mundo nesta época. O fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945 não representou apenas a derrocada do Nazismo alemão, do Fascismo italiano e das demais forças que compunham o Eixo. A vitória dos Países Aliados possibilitou um fenômeno relacionado a uma nova forma de imperialismo, em que os Estados Unidos da América do Norte pelo lado do ocidente e a União Soviética do lado oriental, saíram fortalecidas, sobretudo no sentido bélico. A partir daí a geopolítica mundial passou a ser interpretada pela divisão do globo em dois blocos econômicos: capitalista, liderado pelos os EUA e socialista liderado pela URSS. Tais blocos se esforçaram na garantia de acúmulo de poder e passaram a ser determinantes na situação econômica política dos países que infiuenciavam. Em janeiro de 1959 era defiagrada a Revolução Socialista de Cuba, devido sua relevância não só para


blusas e calças de cores mornas, o elenco após breve concentração em formato espiral em uma das esquinas da rua, sob o batuque de um bumbo introduz o público na peça cantando em coro a música Pesadelo^ A intenção de envolver o público com a encenação foi meritória, tanto é que em determinado trecho do espetáculo, como nas cenas de tortura, o público era convidado a ajudar o elenco a erguer o manto que representava as paredes do cárcere. A maneira hábil de trabalhar os ambientes distintos sem perda de ritmo é um dos pontos máximos da peça, pois apesar da situação de tortura física, moral e psicológica, assim como da aflição causada pela falta de informação sobre o paradeiro do ente familiar desaparecido ter a violência como foco, as energias empreendidas nos distintos ambientes se colocam como fundamentais para a compreensão e participação do público, que mesmo frente a uma obra teatral com denso conteúdo teve toda a liberdade para transitar e ver a peça de diversos ângulos ou até mesmo ignorá-la. “E o que é o Teatro, se não a organização das ações do homem no espaço e no tempo?” (BOAL, 2009, p. 116).

esse país, mas pra toda a América Latina este acontecimento, apoiado pela URSS, fez com que os EUA ampliassem sua política de intervenção militar nos países ocidentais, pois a possibilidade de modificação estrutural dos países latinos fomentava a pretensão e a perspectiva dos trabalhadores, ao mesmo passo que se apresentava como uma grande ameaça aos grupos/famílias de certa concentração econômica. Desde então os EUA ampliaram sua política de intervenção, intensificando e revitalizando o que era conhecido como propaganda anticomunista. O Brasil nos anos que antecederam o golpe militar, de sete de setembro de 1961 a primeiro de abril de 1964, foi presidido por João Goulart, (1919 - 1976), um político que no máximo poderia ser chamado de progressista, que dentre algumas características de seu governo, apontava um plano de reformas sociais que tinham como meta o crescimento sócio-econômico brasileiro. Somada a esse plano de reformas, Jango, comoera mais conhecido, interveio no funcionamento de algumas empresas norte americanas que atuavam na área portuária de alguns estados brasileiros, por inadimplência e descumprimento de acordos feitos com o governo de seu país. O posicionamento hostil de Jango em relação à falta de compromisso e honestidade destas empresas norte americanas e sua abertura a determinadas camadas dos movimentos sociais fizeram os EUA dimensionar que ele não seria um político interessante para a manutenção imperialista que chefiava e logo passou a investir de todas as formas para a derrubada desse presidente brasileiro. Vale à pena ressaltar a existência do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais - IPES - 1961, como recurso comunicativo de propaganda anticomunista e anti-Jango, e que através dos meios de comunicação, diariamente este instituto apresentava fortes acusações ao Governo Federal, relacionando-o como representação de organizações comunistas. Outro fator determinante para o acontecimento do golpe de 64 e a ausência de um contra golpe popular foi à posição confusa de personalidades da academia, da cultura e da política brasileira, que apoiaram o golpe com justificativas que perpassavam a necessidade de moralização do país. A postura da Igreja Católica, em promover a “Marcha com Deus pela Família” também pode ser analisada como decisiva para a defiagração do golpe. ^ De autoria de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, gravada originalmente pelo grupo vocal MPB4, no álbum Cicatrizes de 1972.


O bairro do Benfica sofre com o inchaço relativo ao de toda a região metropolitana da cidade de Fortaleza nos diais atuais, onde os espaços são cada vez mais reduzidos e consequentemente mais disputados. Faço tais considerações a respeito da situação do bairro em questão devido ã escolha do espaço a ser apresentada a peça, ao lado de um centro universitário, em uma rua que não costuma ser palco deste tipo de manifestação cultural, em que durante toda a apresentação ocorria a intromissão involuntária de transeuntes, à procura de entendimento do que aquilo ali se tratava; muitos até tentando ou de fato cruzando o espaço cênico, o que elevava o nível de concentração e domínio por parte dos atores. Um dado curioso é que nesta mesma sexta-feira, através da imprensa, tomavase conhecimento do assassinato do Coronel reformado do exército brasileiro, Paulo Malhães, que foi encontrado em sua residência supostamente vítima de crime de latrocínio, porém com a forte suspeita que este militar aposentado tenha sido eliminado por conta do grau de envolvimento que tinha com crimes de terrorismo de Estado durante a última ditadura"^. O conteúdo expresso na narrativa de Os Cactos remete a uma experiência de imposições políticas e de perseguição a quem enfrentasse as determinações referentes aos investimentos repressivos estabelecidos pelo governo ditatorial do Brasil de 1964 a 1985. É salutar a compreensão de que um processo de ditadura civil e militar, como o que ocorreu no Brasil entre os anos supramencionados implica em várias restrições às quais toda a população é submetida. A obra de Emmanuel Nogueira em estudo conta as dores de uma família separada em virtude das perseguições políticas instauradas no período em foco, transitando no universo das personagens que não se encontram fisicamente no decorrer das cenas, mas que estão ligadas por laços afetivos, atordoadas pela conjuntura política que assombrava qualquer lampejo de liberdade e sensatez. Toda a carga de signos, símbolos e sentidos lançada pelo espetáculo me remetia, além da evidente proposta de uma obra cênica vinculada a um teatro ritualístico, às

Paulo Malhães em um de seus depoimentos à Comissão da Verdade, instância jurídica responsável por apurar crimes do período da última ditadura, tinha abertamente assumida a existência de prisões arbitrárias, torturas e morte de militantes políticos participantes do movimento de resistência à ditadura instaurada em 1964, relatando inclusive participação direta na prisão e assassinato do Deputado Rubens Paiva.


experiências do que passou a ser conhecido como “teatro popular”, “teatro proletário” e que chamaremos ao longo deste trabalho de teatro político, não somente a título de organização ou preferência semântica e sim porque faz parte desta iniciativa averiguar

0 conceito de teatro político, entendendo que a apresentação da peça Os Cactos na ocasião referida é uma considerável iniciativa em que podemos nos debruçar sobre a perspectiva de compreensão da relação entre política e arte. É imprescindível destacar que a peça Os Cactos já vem em processo de montagem desde o ano de 2007 e que também por isso a realização desta obra seja tão dotada de maturidade e amplitude. Porém, 0 que de fato faz com que a peça pudesse ser admitida como uma manifestação de teatro político? Como se fundamenta a conceituação de teatro político? A prática teatral não seria em si uma prática política?

II. Posições e oposições

Por muito tempo prevaleceu em plano ocidental, sob clara influência de Aristóteles (384 a.C- 322 a.C), a teoria de que a atividade artística era fundamentalmente distinta e por isso, distante das atividades políticas. Analisando com atenção, podemos perceber que esta hipótese não se sustenta, não só pelas características que concebem o teatro como uma prática essencialmente política, mas pelos laços estreitos entre arte e política que apontam que toda atividade humana não isolada tem seu potencial político, e não será a arte exemplo de exceção deste quadro, assim como pela preocupação de Aristóteles^ em estabelecer distinções gerais entre política e arte. Entretanto, a partir de iniciativas teatrais na Europa, em especial na Alemanha, no começo do século X X foi concebido o conceito de teatro político que seria as manifestações cênicas vinculadas às organizações de trabalhadores em oposição ao Capitalismo, em que o teatro deixaria de ser uma linguagem meramente contemplativa e de entretenimento, passando a ser um recurso de conscientização e de propaganda política, contrapondo-se às tradições do drama burguês, atrelado a objetivos que o próprio Aristóteles atribuía à tragédia. “Se,

^ Sempre considerando que pouco nos chegou das obras de pensadores antigos como é o caso de Aristóteles.


portanto, a tragédia é superior por todos esses méritos, e ainda por melhor atingir o objetivo próprio da arte - pois produz não qualquer prazer, mas o indicado -, é evidente que, alcançando melhor sua finalidade, é superior a epopéia.” (ARISTÓTELES, 2000, p. 75). O estabelecimento da tragédia como obra superior é, no mínimo, objeto gerador de suspeitas e que nos instiga a seguir adiante com nossas buscas. A figura de Piscator (1893 - 1966) foi de suma importância para o desenvolvimento do dito teatro político europeu. Para ele.

O teatro não devia mais agir apenas sentimentalmente ao espectador, não devia mais especular apenas sobre a sua disposição emocional; pelo contrário, em plena consciência, voltava-se para a razão do espectador. Não devia tão-somente comunicar elevação, entusiasmo, arrebatamento, mas também esclarecimento, saber, reconhecimento. (PISCATOR, 1963, pág. 53).

Muitas vezes interpretado como teatrólogo que subjugava a arte em prol de um teatro funcional, Piscator, além de influenciar diretamente muitos trabalhos, instiga até hoje discussões a respeito da relação entre arte e política, pois dedicou-se a inovar espaços, adereços teatrais e demais recursos e elementos cênicos na tentativa de modificar a linguagem teatral, provando, inclusive para si, que em arte nenhum tipo de avanço ou propósito põe sua existência em segundo plano. O próprio Piscator foi responsável por esta impressão que expôs ao mundo parte de suas limitações de entendimento, com afirmações tais como: “A arte não passa de um meio para alcançar um fim. Um meio político. Propagandístico. Pedagógico.” (PISCATOR, 1963, p. 39). A crítica a uma arte que se voltava contra as necessidades da vida em sociedade, sendo indiferente às relações humanas, está explícita no legado de Piscator, que não foi

0 único a notar esta perversão ou inversão da realização artística. O pensador Ernst Ficsher (1899 - 1972), em seu livro a Necessidade da Arte


(1987), apropriando-se de contribuições teóricas de Karl Marx, elabora uma análise da relação da arte com a sociedade capitalista e apresenta uma série de questionamentos que considero indispensáveis para o andamento deste trabalho de pesquisa, consideramos que a partir do entendimento da relação entre arte e capitalismo é possível obter clareza nos impasses que envolvem esta discussão:

O produtor de mercadorias, a tudo estendendo a crescente divisão do trabalho, a dilaceração do trabalho, o anonimato de certas forças econômicas, destruiu as relações humanas diretas e levou o homem a uma crescente alienação da realidade social e de si mesmo. Em tal mundo, a arte também se tornou uma mercadoria e o artista um produtor de mercadorias. (FICSHER,1987,pág.59).

A afirmação acima ajuda a entender parte das mudanças implementadas pela ascensão do sistema capitalista e como estas afetaram a arte. O artista, para garantia de sua sobrevivência, passou a ter a obrigação de adaptar o seu processo de criação a uma forma de produção de mercadorias e pela nova lógica socioeconômica elaborada pela sociedade capitalista, toda a ação que não seguisse esse raciocínio estaria fadada ao insucesso e, consequentemente, ã exclusão dos acessos aos bens gerados pela produção.

A mera orgia da novidade das dinâmicas visuais imediatas sem uma compreensão de suas origens e de sua direção de crescimento apenas nos impede de encontrar a saída de nossos caminhos cegos. Algumas tentativas de entender-se como o nosso mundo explosivo empacaram nessa saída fácil de excitação; o interesse central de muitos artistas foi absorvido pelo aspecto superficial mímico de nosso meio circundante. (KEPES, 1975, pág. 60).


Z. Barbu tenta situar as criações artísticas posteriores a arte medieval em relação ao aspecto funcional:

Tanto a arte primitiva quanto a medieval estão intimamente integradas com a totalidade da vida social, ou para colocar diferentemente e talvez mais acuradamente, elas são em grande medida (socialmente) funcionais do que é normalmente a arte moderna europeia. (1975, pág. 22 e 23).

No que se trata das expressões cênicas, sobretudo do teatro e dos seus elementos, chama-nos a atenção Denis Guénoun:

O teatro é portanto, uma atividade intrinsecamente politica. Não em razão do que aí é mostrado ou debatido - embora tudo esteja ligado - mas, de maneira mais originária, antes de qualquer conteúdo, pelo fato, pela natureza da reunião que 0 estabelece. O que é político, no princípio do teatro, não é 0 representado, mas a representação: sua existência, sua constituição “física”, por assim dizer, como assembleia, reunião pública, ajuntamento. (2003, pág. 15).

Não à toa, membros do Grupo Expressões Humanas, incluindo a diretora Herê Aquino, participam ativamente do movimento Todo Teatro éPolítico.^ Entre todas as leituras em que encontro estreiteza no trabalho que vem sendo elaborado, o ensaio intitulado Que é o Teatro Épico (1931), desenvolvido pelo historiador e filósofo alemão Walter Benjamin (1892 - 1940), se destaca pela

®Todo Teatro é Político, movimento da classe teatral do Estado do Ceará que se organiza em prol da valorização das artes cênicas, fiscalizando e sugerindo alternativas às instituições governamentais responsáveis pela cultura, fomentando discussões e lutando pela valorização das artes cênicas de um modo geral.


fluidez da análise e pela clareza nas definições que se colocam como essenciais para a compreensão da experiência do teatro político europeu do início do século passado. A partir da apresentação da peça 0 Homem é um Homem de Bertold Brecht (1898 1956), Benjamin realiza um valioso estudo a respeito do fenômeno do teatro épico e coloca que:

A dialética visada pelo teatro épico não se limita a uma seqüência cênica no tempo; ela já se manifesta nos elementos gestuais, que estão na base de todas as seqüências temporais e que só podem ser chamados de elementos no sentido figurado, porque são mais simples que essa seqüência. (1994, pág. 88).

Benjamin enxerga no teatro épico de Brecht uma realização equilibrada, e por isso avançada, de um teatro essencialmente político em todos os seus aspectos. Diferente de outras tentativas de efetivação de um teatro político, o teatro épico de Brecht surgia para provar que uma pretensão dotada de ousadia deve ser abrangente e profunda, arrojada e prenhe de consciência ética e estética.

III. Aproximação com a obra: contato inicial com Os Cactos

A obra teatral exige contato direto para qualquer tipo de análise, pois diferente de outras linguagens artísticas, os registros de uma apresentação de teatro não se eqüivalem a sua execução em si; é preciso participação no rito teatral, mesmo enquanto público. Tomei conhecimento de Os Cactos por meio de amigos ligados e entregues às práticas teatrais, a direção deste espetáculo é de responsabilidade de Herê Aquino, nome destacado dado meio artístico brasileira e que tive o privilégio de ser dirigido na peça Rainha Lear (2006), adaptação da tragédia de W illian Shakespeare (1564 1616) Rei Lear, em montagem de conclusão do Curso Superior em Artes Cênicas do


CEFETCE^ Porém meu contato direto com Os Cactos deu-se por meio da observação de fragmentos desta peça em um ato de repúdio à última ditadura civil militar brasileira, realizado na Praça do Ferreira, centro da cidade de Fortaleza, na tarde de 31 de março de 2014. A ocasião que permitiu meu primeiro contato com a peça merece relevo, pois enquanto várias pessoas, grupos e organizações políticas, expressavam indignação com todo 0 atraso e violência promovidos pelo golpe de 1964 e consequentemente pela ditadura que o seguiu em um dos lados daquele lugar, do outro lado desta mesma praça, outra aglomeração de pessoas, sob proteção do batalhão de choque da polícia militar e munida de um trio elétrico, comemorava o golpe e o pior: estas pessoas apontavam a conveniência de uma nova ditadura civil militar devido a insatisfações com o atual regime. O clima neste dia não era dos melhores, na medida em que alguns desfolhavam a dor que o processo de castração dos direitos gerou, em outra parte, o riso cínico ilustrava a promessa de moralização via força. Os fragmentos de Os Cactos que tive oportunidade de presenciar nesta tarde me trouxeram a certeza de que aquele trabalho cênico muito tinha a contribuir para com a abertura de novos horizontes; estava frente a uma obra teatral crítica e arrojada. Quando tive a oportunidade de assistir ã peça de modo integral, na apresentação destacada neste trabalho, muitas das inquietações surgidas em mim a partir da visualização do trecho que presenciei na Praça do Ferreira geraram conclusões, das quais considero de extrema relevância, como a constatação de uma proposta cênica com a clara intenção de acender reflexões a respeito da vida em sociedade, da liberdade de expressão, da precariedade estabelecida pela privação de direitos etc. A apresentação em foco, sob a minha perspectiva é um importante exemplo de uma realização artística disposta a provocar discussões, sem se perder na indução de uma arte meramente panfletária. Todo teatro é político, mas será possível um acontecimento cênico que leve em conta a intensificação das reflexões sociais sem cair na “cacimba” das tentativas de convencimento? Pode haver equilíbrio entre objetividade e subjetividade na arte? Ouso dizer que sim e Os Cactos prova isso.

’ Antigo Centro Federal de Educação, CiênciaseTecnologia do Ceará, atual Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Ceará - IFCE.


Analisando as origens do teatro épico alemão, Gerd Bornhein (1992) frisa a expressão

ação direta^ mencionada por Piscator e identifica nesta expressão o norte da construção do teatro a qual este perseguia, totalmente distinto das montagens vinculadas ã pretensão de entretenimento que dominava a Alemanha, assim como a Europa, desde

0 fim do século IX ao início do século XX, embora, como possamos comprovar com a passagem a seguir o próprio Piscator não mais tenha reproduzido este termo:

N u m ensaio escrito a propósito de um espetáculo de revista, “político proletário” e revolucionária, cujo título era Revue Rotes Rum m el (Revista barulho vermelho), aparece a expressão “ação direta” ; como ela aparece entre aspas, é possível que tenha sido extraída de algum documento oficial ou oficioso de algo como o Parfido Com unista, ao qual, evidentemente, Piscator era filiado; mas parece que a expressão não voltou a ser empregada. (B O R N H E IM , Gerd. Brecht, A estética do teatro. 1992 Pág. 122,).

Anegação da relação entre teatro e política sempre se mostrou pretensiosa, o que no entendimento de muitos já é por si só uma ação política. O exemplo da Grécia Antiga continua sendo um indispensável recurso para entender algumas questões deste campo. É sabido que, ao passo que o Estado interveio nas manifestações dionisíacas, o teatro passou a ter espaço oficial de realização e os cidadãos passaram a ter como obrigação comparecer às apresentações teatrais que constituíam os grandes festivais. Sem querer estabelecer nenhum tipo de determinismo, mas muitos dos textos que chegaram aos dias de hoje expressam considerável teor político em sua estrutura, como é o caso da comédia Lisístrata (411 a.C.), de autoria de Aristófanes (447 a.C. a 386 a. C.), que

* O termo ação direta passou a ganhar espaço no final do século X X , sobretudo nas manifestações ocorridas em países das Américas e da Europa, que se contrapunham à mundialização da economia. Tendo como meta a intervenção no cotidiano das sociedades capitalistas, defiagrando críticas às relações do mercado e de Estado, as ações diretas passaram a ser concebidas como modo de atuação social apartado das formas desgastadas que os movimentos sociais institucionalizados teimavam em reproduzir. Foge ao escopo deste trabalho promover qualquer tipo de debate comparativo entre o termo ação direta, empregado por Piscator e o que passou as ser intitulado de ação direta dá década de 1990 até os dias de hoje, apenas acredito que seja útil salientar o termo em discussão para que não haja qualquer tipo de má interpretação.


narra as conseqüências de uma assembléia feminina em que as mulheres das cidades de Atenas e Esparta decidem iniciar conjuntamente uma greve de sexo até que seus respectivos esposos acabem com a guerra entre as duas cidades. Aristófanes expõe uma crítica à Guerra do Poleponeso, em que as duas cidades citadas, dando continuidade aos conflitos, ficariam cada vez mais débeis, tornando ambas vulneráveis a uma inevitável invasão persa. Independente da condição que ocupava em Atenas, temos que relevar

0 apelo crítico a qual essa sua comédia envereda, sugerindo a privação dos prazeres em prol da harmonia entre as partes em conflito. Aristófanes permite-nos a revelação de uma problemática que não se restringe ã relação entre arte e política; levando em consideração os ideários sociais e filosóficos de Aristófanes, claramente reacionários, temos um exemplo que contraria a impressão de que o ato político é em si algo salutar ã humanidade em sua essência. Até hoje os objetivos que podemos relacionar com a elaboração de Lisístrata fazem menção ã carência do fim da guerra, mas não queria Aristófanes moralizar o sexo? O estabelecimento de níveis de importância entre os gêneros de representação poética (M UNIZ, 2013, pág. 14) marca o empreendimento da negação da relação entre política e arte ao passo que assume a incoerência de uma nítida contradição. Durante o período da última ditadura, os meios de comunicação e expressão passaram a ser sumariamente controlados, a censura estabelecida pelo governo golpista tinha o claro objetivo de restringir qualquer tipo de reflexão a respeito do regime que controlava o país; além disso, a ditadura cooperava inclusive financeira e logisticamente com ações de grupos que se dispusessem a contribuir para com o extermínio de organizações populares que resistiam as investidas dos golpistas como podiam. O caso da invasão do Teatro Ruth Escobar em São Paulo por parte dos membros do CCC® paulista foi um dos casos mais emblemáticos de ataque ao meio teatral, às artes e a liberdade em geral, em que os cinco membros do elenco da peça Roda Viva (1968), sob direção de José Celso Matninez Corrêa, foram covarde e brutalmente agredidos por cerca de 100 participantes do CCC, que também destruiu a cenografia da montagem.

®Comando Caça Comunista. Grupo paramilitar de extrema direita da cidade de São Paulo, como a própria sigla expressa, seguia orientação anticomunista.


assim como figurinos e adereços. Pouco tempo depois, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul a peça sofreu novo atentado durante apresentação.

Roda Viva tornou-se um marco da resistência ao regime totalitário implantado pela ditadura, mas um fato curioso chama a atenção: chegou ao conhecimento do autor da peça, o poeta e compositor Chico Buarque de Hollanda que a invasão e as agressões ao elenco de Roda Viva até certo ponto se tratavam de um engano, pois as investidas do CCC eram inicialmente direcionadas ao elenco de outra peça intitulada Primeira

Feira Paulista de Opinião (1968), sob coordenação de Augusto Boal. Porém, devido a um possível erro de horário, a peça que sofreu o atentado foi justamente a Roda Viva. Esta versão ganha sustentação quando o próprio Chico Buarque de Hollanda, em sessão de interrogatório prestada a um oficial de alta patente, representando o Estado Brasileiro é acusado de pretensão subversiva na figura de autor de texto com objetivos difamatórios ao regime vigente. Entretanto a cena utilizada por esse oficial como exemplo de incitação ao desrespeito pelo governo ditatorial não era da peça Roda Viva e sim da Primeira Feira Paulista de Opinião. O que já era ruim passou a ser pior a partir da instituição do AI-5“ no final de 1968, mas o teatro brasileiro seguiu adiante, mesmo com toda a atmosfera inóspita inerente a um processo de ditadura civil e militar. Não foram poucos os trabalhos comprometidos com a continuidade das práticas teatrais no Brasil; é certo que muitas pessoas ligadas ao teatro, (entre atores, diretores, dramaturgos, etc.) foram exilados, assim como artistas de outras linguagens e opositores do regime militar em geral. As perseguições se acirravam e fazer arte no Brasil nesse período era cada vez mais difícil, porém a luta do meio teatral não se restringia a resistência ã ditadura que assolava a sociedade brasileira, a luta em defesa do teatro sempre ocorreu a contragosto do Estado, que quando não jogava contra a existência das artes cênicas, negligenciando necessidades, sendo indiferente ã precarização da cultura e da educação, incentivava

0 empobrecimento do teatro por meio de criação de instâncias de controle, nomeando pessoas para dirigi-las com o propósito de manter tudo sob as rédeas do governo

Ato Institucional número 05, expedito pelo então ditador Arthur Costa e Silva. Representou uma implacável perseguição a liberdade de expressão e comunicação no Brasil, enorme enrijecimento da censura e aumento das perseguições políticas; entre outros desmandos, oficializou a tortura como recurso de repressão às oposições.


golpista. Além das limitações impostas pela ditadura, o teatro brasileiro vivia em constante afirmação - como é até hoje - na perspectiva de ser compreendido e a partir daí valorizado. É neste incessante clima de afirmação sócio-artistica que surge na cidade de Fortaleza o GRITA^^ (1973 -1986). Sendo um grupo de teatro amador o GRITA se projeta como uma tentativa de construção de teatro popular. Logo tal projeto ganha dimensões admiráveis, na certeza de que o teatro, sob a situação que passava o país precisava ser atuante em espaços outros, como assembléias de trabalhadores, reuniões de comunidades da periferia da cidade e até na luta em comunidades ainda em processo de ocupação, como foi o caso da Favela da Zé Bastos.

Desde o inicio de sua atuação, o Grupo demonstrava um a constante preocupação com a questão do hom em diante do m undo, o hom em e seu papel social, daí a conseqüente avidez pela função social do indivíduo e a sua inserção da sociedade brasileira. Essa questão foi abordada de forma existencialista em Calígula e aprofundada em estudos subseqüentes, na ocasião em que se deteve nos ensinamentos do criador do teatro épico e do teatro didático, Bertold Brecth, onde o hom em era o centro das suas teorias artísticas. (SILVA, 1992, pág. 73).

Vale salientar que assim como outros grupos que destacavam a necessidade de um teatro em diálogo direto com os conflitos sociais, o GRITA realizou aprofundamento, passando a pesquisar estéticas ligadas ao teatro popular, estudando obras e técnicas como as de Bertold Brecht, rompendo com a alegação de que toda arte com empenho social, que prima pela reflexão da vida em sociedade, se esgotava no determinismo esquerdista, na agitação popular seca e alienada de princípios estéticos. Mesmo sendo muito criticado, inclusive por afirmações que davam a entender que os propósitos políticos suplantam a arte, o próprio Piscator foi responsável por uma série de implementações e inovações que modificaram o teatro. Talvez não o tenha sido clara a

" Grupo Independente de Teatro Amador. Teve como membros José Carlos Matos e Oswald Barroso, além de Eurotildes Honório dentre outros nomes.


necessidade de assumir que em arte todo objetivo requer a elaboração de técnicas que os permita alcançar suas metas. Brecht demonstrando nitidamente esse entendimento elaborou o conceito e as técnicas do que ficou conhecido como teatro épico - expressão usada por Piscator anteriormente a Brecht. Sobre tal teatro ele afirma:

O teatro épico interessa-se pelo com portamento dos homens uns para com os outros, sobre tudo quando é u m com portamento (típico) de significação histórico-social. D á relevo a todas as cenas em que os homens se com portam de tal form a que as leis sociais a que estão sujeitos surjam em toda a sua evidência. E o fazê-lo, cabe-lhe descobrir definições praxísficas dos acontecimentos em processo, isto ê, definições que, ao serem utilizadas, possibilitem um a intervenção nesses mesmos acontecimentos (BRECHT, 2005, pág. 228).

Assim como o GRITA, muitos grupos Brasil adentro efetivaram a transmissão de ideias e posições por meio das artes cênicas, apresentando para o povo uma possibilidade de uma arte popular, sem os paradigmas do populismo, sendo acima de tudo uma ação educacional. No entanto é preciso honestidade e admitir que as discussões em torno da relação entre política e arte rendem muitos debates, devido a impasses como, por exemplo os que se referem ã questão das vanguardas. Sobre estas Ferreira Gullart nos alerta:

Aidenfificação equivocada entre vanguarda e a criação artísfica conduz m uitas vezes a se perder de vista o fato de que, por exemplo, os quadros cubistas de Braque e Picasso são, m uitas vezes, obras de alto valor não por serem cubistas mas por sua qualidade estêfica intrínseca. (2006, p á g .11)

No ano de 1985, a ditadura civil militar implantada no Brasil em abril de 1964 oficialmente tem seus dias finais anunciados, muito por conta da imensa insatisfação popular observada em manifestações em prol das eleições diretas e ã implementação


dos direitos civis. Mas para alguns, também por conta de demandas do próprio sistema capitalista, que assim como em toda a sua trajetória histórica acabara de passar por uma intensa crise no final dos anos 1970 e a manutenção de uma ditadura atrapalharia os anseios emergenciais do mercado. E então, a necessidade da construção de um teatro crítico, de cunho popular estaria esgotada por conta da democracia que se firmava? Acredito que não e dois fatores são responsáveis por esta conclusão. O primeiro corresponde ã discussão em torno das necessidades de uma arte popular, comprometida com debates de suma relevância para a vida em sociedade. Teatro de entretenimento ou meramente contemplativo não são vazios ou supérfluos em si, predestinados ao nada. Toda criação artística tem sua parcela de contribuição para a humanidade e até mesmo na continuidade da arte. Entretanto, até os dias de hoje, e este não é um desprivilegio somente do teatro, a arte contemplativa ou de entretenimento, de certo modo, acaba reforçando, juntamente com os meios de comunicação de massa a alienação do ser humano sobre o meio que faz parte e sobre a sua própria existência. Segundo porque o que se pode constatar no Brasil após o fim do governo golpista foi um modo de sobrevivência dos trabalhadores em geral extremamente comprometido pelos altos índices de inflação, desemprego, entre outras limitações. Muito se fala de conquistas e estas jamais devem ser renegadas, até por uma questão de justiça histórica, porém é percebível como o Brasil se mostra como um país frágil, cheio de carências estruturais e vícios administrativos, que tornam a sobrevivência nestas paragens um tanto quanto desalentador para boa parte de seus habitantes. Isso se comprova a partir de lacunas, como, por exemplo, nas áreas da saúde e educação, assim como na questão da segurança. Um dos piores legados deixados pela última ditadura civil militar está justamente na violência que aterroriza a população, se croniflca por razão da falta de resoluções e torna o futuro (sobretudo de crianças e adolescentes) incerto, pois a qualquer momento alguém pode ser vítima de atentados contra a vida que se deve pelo desenfreado consumismo ou mesmo pelo terrorismo efetuado pelo Estado através de suas instituições repressivas. Para além dos insucessos da política institucional brasileira, ainda submissa aos ditames do capital, o planeta demonstra cansaço e essa exaustão aliada ao desgaste das relações humanas que propiciam as


coisas como elas estão pode criar dimensões irreversíveis. A experiência na observação de Os Cactos aponta para um empolgante e consciente horizonte no qual a praxe teatral se coloca como caminho revolucionário, como escreve a atriz e pesquisadora:

Percebemos no Grupo Expressões H um anas um a ativa participação política dentro do contexto do teatro cearense. Tem algo para discutir, reclamar, refletir, o Expressões H um anas ta lá, percebendo e analisando o contexto social, político e estético do qual estamos inseridos. (S A L D A N H A , Kelly Enne Merdra, 2014, pág. 04)

Talvez o que o universo das artes, não só no que concerne Brasil, nestes momentos de indecisões e afetações distorcidas, precise seja justamente de energias empreendidas aliadas a elaborações estéticas contundentes como a que Grupo Expressões Humanas efetiva em Os Cactos, dispondo uma experiência cênica crítica, indo além da esfera discursiva, profundamente compromissada com a vida e inteiramente humana. Rememorar tempos tão difíceis como os vividos entre 1964 e 1985 no Brasil requer coragem e sensibilidade. O respeito ao período em que a narrativa é desenvolvida, reconhecendo que o que foi perseguido pela ditadura não fora apenas às ideologias que se contrapunham a sua permanência enquanto regime sócio político e sim todo esboço de luta por liberdade, é exposto ao público por meio de ações dotadas de imenso rigor estético e ético. Os Cactos não retrata apenas a dor, retrata o desespero de uma geração, que mesmo com diversos fatores desfavoráveis ousou se organizar e enfrentar o que se colocava como imbatível e intocável e não podemos perder de vista a relevância desse período para a compreensão do nosso presente. A abordagem exercida pela montagem do Grupo Expressões Humanas em Os Cactos de modo tão consciente lembra que é preciso coragem para celebrar a vida.


Referenciais bibliográficos

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ROVII^IA

LAMP

REFORMA OU REVOLUÇÃO: PARA UMA CRÍTICA DA VIOLÊNCIA COMO CRÍTICA DA SOCIALDEMOCRACIA ADRIANO COSTA CARDOSO -M estrando em Filosofia pelo Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Resum o: Em 1919, fracassa a Revolução Alemã, e com isso. Rosa Luxemburgo (1871-1919) e vários de seus companheiros são assassinados. Walter Benjamin (1892-1940), nesse momento, escreve uma série de textos sobre violência, dos quais chegou até nós apenas o forte escrito intitulado “Para uma crítica da violência” (1921). Nesse texto, Benjamin busca compreender a violência, analisando-a a partir de sua condição de “meio”, mas sem referi-la a um “fim ”. Assim, percebe-a, na história humana, em particular na Europa daquele momento, como intrinsecamente ligada ao Direito, seja como sua instauradora ou como sua mantenedora. Investiga, então, a possibilidade de haver uma “violência pura”, isto é, uma violência que encerre o ciclo mítico da própria violência, permitindo o exercício dos “meios puros” (aqueles que se opõem ã violência). A essa violência pura ele chama violência divina, contraposta ã violência mítica do direito. Ahipótese do presente trabalho é a de que o confronto entre violência mítica e violência divina representa o confronto entre reforma e revolução, presente no título de uma famosa obra de Rosa Luxemburgo, em que ela enfrenta os teóricos da socialdemocracia, a mesma cujos representantes viriam a encomendar seu assassinato anos depois. P alavras-chave: R eform a; Revolução; V iolência; M ito.


O

D

final de 1918 ao início de 1919, a Alemanha viveu um processo

revolucionário do qual um dos principais atores foi a Liga Espartaquista, que contava, entre outros, com Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. O levante

dos espartaquistas foi sufocado pelo governo social-democrata recém-estabelecido, que encomendou a morte dos dois revolucionários. Nesse contexto, Benjamin escreve

três textos sobre temática política, dos quais apenas o denso Para uma crítica da

violência (1921)^ chegou até nós. A tese que aqui defendemos é a de que as formulações de Benjamin no referido texto constituem uma crítica ao reformismo próprio da socialdemocracia^ usando como mote o título de uma publicação de Rosa Luxemburgo contra o revisionismo da socialdemocracia. Reforma ou Revolução^ Aviolência é investigada aqui como dada necessariamente no interior de relações éticas, às quais Benjamin delimita às relações com o Direito, não tocando, nessa obra, nas suas relações com a Justiça. O objetivo do autor é refletir sobre o estatuto próprio da violência, que se encontra necessariamente na esfera dos meios, não dos fins. Dentre as teorias do Direito, uma, o Direito Natural, não é interessante aos objetivos do texto, uma vez que pensa a violência com relação aos fins. Benjamin parte, então, do Direito Positivo, que pensa a violência a partir de si mesma enquanto meio, embora partilhe com 0 Direito Natural do mesmo dogma, a saber, que fins justos se relacionam com o uso adequado da violência. Esse dogma aparece invertido em cada uma das orientações, na medida em que, conforme o Direito Natural, fins justos justificam a violência e, segundo o Direito Positivo, a violência justa garante fins justos, mas o autor deseja

' O texto foi escrito em torno da passagem de 1920 para 1921 e deveria ser publicado na revista Die Weifien Blatter, mas foi considerado muito longo e difícil pelo editor, Emil Lederer, que aproveitou-o no Arquivo de Ciências Sociais, de que era diretor. Os outros textos, que se perderam, se chamavam “Vida e Violência” e “Política”, este divido em duas partes, cuja primeira. Der wahre Politiker [O verdadeiro político], segundo SCHOLEM (1989), era um longo ensaio sobre o romance utópico Lesabéndio, de Paul Scheerbart, a quem, ele afirma, Benjamin teria se convertido em meados de 1917 (a segunda parte de “Política” seria “A verdadeira política”). ^Aescrita do presente artigo se dá em meio a minha pesquisa sobre a crítica de Benjamin ao neokantismo da Escola de Marburg como Filosofia do Partido Social-Democrata. Se, nas teses de Sobre o conceito de história (1940) e principalmente nas anotações a essas teses, vemos a crítica aos dois em conjunto (à social-democracia e ao neokantismo), nas décadas de 1910 e 1920, encontramos essa crítica dividida: 0 neokantismo é criticado em obras como Sobre o programa de uma filosofia por vir (1917) ou no Prefácio ao livro sobre o Drama barroco (1928), enquanto que o texto Para uma crítica da violência é lugar privilegiado pra acompanhar já uma primeira invectiva de Benjamin no campo político, contra as concepções dos social-democratas. ^ LUXEM BUGO (1986).


fugir a esse ciclo, mudando, portanto, de perspectiva. Ele parte, então, da noção do Direito Positivo, mas indo além dessa sua compreensão, visando “estabelecer critérios mutuamente independentes tanto para fins justos como para meios justificados”^ De acordo com o Direito Positivo,a violência não é um dado natural, mas fruto do devir histórico, e sua justificação independe da justiça de seus fins, reportando-se antes ao seu reconhecimento histórico, como violência sancionada ou não-sancionada. Tal será o critério adotado por Benjamin para a diferenciação entre fins naturais, que prescindem desse reconhecimento, e fins de direito. Nesse ponto, o autor voltase ã análise das relações de Direito na Europa do seu tempo. Ali ele identifica um procedimento, pelo qual todos os fins naturais que dependam da violência para serem atingidos são substituídos por fins de direito, “que apenas o poder jurídico pode desse modo realizar”^. Aqui tem início a exposição da esfera onde fica claro o sentido da diferenciação proposta pelo Direito Positivo, que, segundo Benjamin, “apenas a reflexão histórico-filosófica sobre o direito”'^pode tornar claro. O primeiro elemento a ter em mente é esse monopólio da violência por parte do Direito, o qual teme que ela seja utilizada pelos indivíduos. O autor vai além e afirma que esse temor não tem em vista o risco de que se busque fins contrários ao Direito, mas simplesmente a ideia da impossibilidade de aceitar uma violência externa a si. Ele escreve:

...talvez se devesse levar em conta a possibilidade surpreendente de que 0 interesse do direito em m onopolizar a violência com relação aos indivíduos não se explicaria pela intenção de garantir os fins de direito, mas, isso sim, pela intenção de garantir o próprio direito; de que a violência, quando não se encontra nas mãos do direito estabelecido, qualquer que seja este, o ameaça perigosamente, não em razão dos fins que ela quer alcançar, mas por sua mera existência fora do direito^

''BENJAMIN (2011),p. 124. ' Ibidem, p. 126. «Ibidem, p. 125. ’ Ibidem, p. 127.


Apenas a um sujeito externo ao ordenamento jurídico se concede o direito à violência: este é o proletariado organizado, e esta violência se apresenta no direito de greve. Benjamin dá dois indícios do porquê de se conceder um tal direito: em primeiro lugar, “na perspectiva do Estado, ou do direito, no direito à greve não é concedido aos trabalhadores o direito à violência, mas tão só o direito de se subtrair a uma violência exercida de maneira indireta pelo patrão” *; em segundo lugar, como ele escreve mais à frente, a greve foi uma concessão que visava uma diminuição da revolta proletária, uma vez que antes a classe trabalhadora recorria mesmo à sabotagem da produção^ Esse direito ã greve pode, então, ser exercido como um mero “virar as costas” pacífico, mas Benjamin alerta que a violência se exerce necessariamente no momento da chantagem do trabalhador com relação ao patrão“ . O que chama mais a atenção, entretanto, é que, a depender das proporções tomadas pelo movimento grevista, se ele leva a uma greve geral revolucionária, esse direito concedido de exercer a violência pode chegar mesmo a destituir a ordem de Direito estabelecida. Isto é, o Direito concede o direito à violência, ademais do Estado, apenas àquele sujeito que justamente tem interesse e poder de dar um fim a esse mesmo Direito. Segundo o autor, isto não deve ser uma total surpresa, na medida em que o fenômeno originário“ da violência seria a guerra, e nesta já se percebe um movimento

« Ibidem, p. 128. ®Cf.Ibidem,p. 140. Essa noção da chantagem como violência fica clara tendo em vista o desenvolvimento posterior da natureza da violência e de sua relação com o Direito, mas neste momento da discussão, e tomada como premissa, ela aparece como problemática. BARBOSA (2013) discute basicamente apenas o sentido da reine Gewalt (violência pura), não chegando a problematizar a chantagem entendida como violência. " O fenômeno originário (Urphãnomen) ê uma categoria extremamente utilizada por Benjamin nos escritos dessa época até o seu livro sobre o Trauerspiel e se relaciona também com categorias de textos posteriores, como as imagens oníricas e dialéticas. Ele o toma emprestado a Goethe, a partir da oposição que faz entre este autor e os autores do Primeiro Romantismo alemão, no último capítulo de sua tese de doutoramento, “O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão”. O Urphãnomen seria o equivalente da ideia platônica, compreendida como um arquétipo que se encontra nos próprios fenômenos de forma refratada e que, embora seja apenas inteligível, pode ser captado diretamente naquilo que é sensível. Além dessa referência a Platão, o Urphãnomen pode ser assimilado às mônadas de Leibniz, como pode ser visto no Prefácio à Origem do Drama Barroco Alemão, na medida em que elas “não tem janelas”. Com efeito, há uma dupla descontinuidade, em se tratando de fenômenos originários ou ideias: por um lado, eles não se apresentam tal qual realmente são nos fenômenos, mas de maneira refratada; por outro, eles são descontínuos entre si, não possibilitando a formação de nenhum sistema fechado e homogêneo. Essa concepção expressa uma oposição forte á Filosofia do neokantismo, tanto pela crítica ao sistema (muito defendido pelo fundador da Escola de Marburg, Hermann Cohen) como pela diferenciação, apresentada no Prefácio, entre ideia e conceito, sendo aquela guiada pelos extremos e nada tendo a ver com médias estatísticas (Cohen e Natorp, dois neokantistas de Marburg, interpretaram a ideia platônica como uma


análogo. Na guerra, tal como na greve, torna-se explícito, em primeiro lugar, que, para os sujeitos de direito, aqueles que sancionam ou não a violência, os fins que sua violência persegue permanecem sendo fins naturais e podem, portanto, entrar em conflito com seus próprios fins de direito ou naturais. Por outro lado, e mais importante, a violência se mostra, na guerra como na greve, como instauradora do Direito, o que se evidencia nas cerimônias de paz que se sucedem às guerras. De fato, a “paz” é aí estabelecida independente de haver ou não quaisquer condições de uma retomada do conflito pela parte vencida, pois o que ela simboliza é muito mais o reconhecimento das novas relações como um novo Direito. Pode-se interpretar essa paz como a ausência de guerra, no sentido de que não mais há dois sujeitos com direito à violência em conflito. Isto demonstra que, na guerra, é conferido, tal como vimos no caso da greve, a um outro sujeito 0 direito à violência, que então se apresenta como violência instauradora de Direito, na medida mesma em que solapa o Direito anterior. Benjamin escreve:

Se é perm itido deduzir que a violência da guerra, enquanto forma originária e arquetípica, é modelo para toda violência que persegue fins naturais, então ê inerente a toda violência desse tipo u m caráter de instauração do direito. [...] [Esse conhecimento] explica a tendência do direito moderno, acim a mencionada, de retirar, pelo menos do indivíduo enquanto sujeito de direito, qualquer violência, mesmo aquela que se dirige a fins naturais^^.

A violência possui, contudo, uma outra função, que se apresenta no militarismo juntamente com a função instauradora do Direito: seu caráter mantenedor desse mesmo Direito. Assim, se a violência serve, em sua função instauradora, ã aplicação de fins naturais, ela serve também, em sua função mantenedora, ã aplicação de fins de direito. Aqui, a ordem do Direito se apresenta como uma esfera em que a violência se encontra em toda parte, na forma da ameaça. Benjamin identifica tal ordem com a

hipótese, nos moldes da ciência moderna). A esse respeito, pode-se ver alguns elementos no artigo de RESENDE (2007), mas pretendo apresentar a discussão mais detalhadamente em minha dissertação. '^BENJAMIN (2011),p. 131.


ordem do destino^. A indeterminação própria à ameaça do Direito se apresenta com fulgor no domínio das penas, notadamente na pena de morte, pois esta, em condições primitivas de Direito, é aplicada contra crimes com relação aos quais ela se mostra bastante desproporcional. O autor afirma que isso se dá em virtude de a pena não ter

0 sentido de uma punição simplesmente, mas o de uma afirmação do próprio Direito, sua instauração^^ Dá-se, portanto, na pena de morte, a mistura entre as funções instauradora e mantenedora do Direito da violência, o que ocorre igualmente na figura da polícia - não discutiremos, no entanto, as questões relativas a esta^^. Desse modo, a violência é pensada por Benjamin como necessariamente atrelada ã esfera do Direito, seja como sua instauradora ou como sua mantenedora. O autor indaga, então, se não haveria meios não-violentos de resolução de conflitos entre os indivíduos. Esses chamados “meios puros” não podem ser encontrados nem na forma do contrato, que pressupõe a violência como medida seguinte ao descumprimento do mesmo por uma das partes, nem na forma do parlamentarismo, o qual possui uma origem violenta, mas se esqueceu da mesma, tornando-se mesmo vazio de sentido^. Aqui, Benjamin faz a crítica do parlamentarismo ao mesmo tempo que desenvolve o aspecto do Direito como instância marcada pelo ciclo sem fim da violência:

SCHOLEM (1989) apresenta um momento no passado, cerca de julho de 1916 em que Benjamin já dava indícios dessa associação. Pode-se ler: “Durante uma discussão sobre se Hegel teria querido deduzir o mundo, passamos a falar de matemática, filosofia e mito. Benjamin aceitava o mito apenas como ‘o mundo’. Disse que ele próprio ainda não sabia qual era o propósito da filosofia, já que não era preciso descobrir o ‘sentido do mundo’: ele já era dado no mito. O mito era tudo; todo o resto, inclusive a matemática e a filosofia, era apenas um escurecimento, uma aparência que nasceu dentro dele mesmo. [...] Neste contexto, já naquele tempo Benjamin falou da diferença entre lei e justiça, qualificando a lei como uma ordem que só podia ser fundamentada no mundo do mito. Quatro anos mais tarde, discorreu com maiores detalhes sobre este pensamento, em seu ensaio Zur Kritik der Gewalt [‘Critica da Violência’]”, (pp. 40-41) Um exemplo disso se pode ver na peça Measure forMeasure (Medida por Medida), de Shakespeare, onde a questão que move a trama é justamente a desproporcionalidade entre a infração da Lei e sua respectiva punição, em meio a uma situação onde aquela precisa se afirmar. Sobre a polícia, ler as pp. 135-136 (BENJAMIN, 2011). Marx e Lenin já haviam criticado fortemente o parlamentarismo. Pode-se ler no terceiro tópico do terceiro capítulo de 0 Estado e a Revolução: “Reparem em qualquer país de parlamentarismo, desde a América á Suíça, desde a França á Noruega, etc.: a verdadeira tarefa ‘governamental’ é feita por detrás dos bastidores, e são os ministérios, as secretárias, os estados-maiores que a fazem. Nos parlamentos, só se faz tagarelar, com o único intuito de enganar a ‘plebe’”. As refiexões de Benjamin, entretanto, baseiam-se mais no pensamento de Erich Unger.


Por desejável e satisfatório que possa ser, comparativamente, um parlamento de alto nivel, a discussão dos meios, por principio não-violentos, de entendimento politico não poderá incluir o parlamentarismo. Pois o que este consegue alcançar em questões vitais só podem ser aquelas ordenações do direito que têm a marca da violência tanto na origem como no desfecho^^.

Os meios puros elencados por Benjamin são aqueles em que a violência não se apresenta nem explícita nem implicitamente. “Cortesia do coração, inclinação, amor ã paz, confiança^*, e o que mais poderia ser citado aqui, são seu pressuposto subjetivo”i^ Os meios puros se dão sempre de forma mediata, dizendo respeito a conflitos que envolvem coisas, e seu melhor exemplo é o diálogo, sobre o qual o Direito agiu apenas muito tardiamente: não havia originalmente em nenhuma legislação qualquer punição contra a mentira, e a punição contra o logro surgiu principalmente em virtude de possíveis reações violentas a esse que é um meio não-violento. A violência, afinal, tende a ser evitada na medida em que os indivíduos naturalmente temem desvantagens contra ambas as partes, independente do resultado do conflito^». Isto é mais dificilmente perceptível a nível de classes ou nações, o que torna o recurso ã violência mais recorrente, mas, ainda assim, no segundo caso, temos o exemplo da diplomacia^^

"B E N JA M IN (2011),p. 138. A guisa de sugestão ou curiosidade, ver a adaptação ao cinema de “O caso dos dez negrinhos”, de Agatha Christie, realizada por René Clair, sob o nome de “And Then There Were None” (1945), onde a confiança é o elemento não computado por aquele que exerce a violência, e que permite a saída do ciclo ameaçador em que as personagens se vêem enredadas. Ibidem, p. 139. Aqui, Benjamin parece desconsiderar que a violência pode ser uma motivação em si. O que leva a pensar isso ê também o fato de ele aqui se remeter bastante a Sorel, pertencente ao grupo dos anarco-sindicalistas, os quais forneceriam ao emergente fascismo fortes elementos teóricos e culturais, notadamente na atitude belicosa. (Isto pode ser acompanhado em uma sêrie de matérias publicadas no site Passa Palavra, a começar pela seguinte: http://passapalavra.info/2014/03/92734. Tais matérias surgiram a partir de uma discussão sobre a tradução da introdução de um livro de Zeev Sternhell publicada no mesmo site, em quatro partes, a partir do link: http://passapalavra.info/2014/03/92786.) Vale notar, igualmente, que anos depois, Benjamin publicaria seu Teorias dofascismo alemão, sobre a obra de Ernst Jünger, onde critica justamente essa atitude belicosa e a teoria (anti-teórica) que vem em sua defesa. Discutida brevemente na p. 145 (BENJAMIN, 2011). Embora Benjamin nada afirme nesse sentido, talvez possa-se considerar a diplomacia como análoga à atividade parlamentar, na medida em que ambas - aquela no âmbito das nações, esta, no das classes - servem-se de meios puros na resolução de confiitos em cuja base encontra-se sempre a marca da violência. Em entrevista recente, Viveiros de Castro cita o pensador alemão Günther Anders em uma imagem interessante que ajuda a visualizar o que Benjamin fala nesse ponto, a ideia do “supraliminar”, algo que ê tão grande que não conseguimos ver - embora


Benjamin fala, então, de um tipo de violência que seria igualmente um meio puro. Esta junção aparentemente contraditória se daria no interior de determinado tipo de greve, e aqui o autor lança mão da obra de Georges Sorel, sindicalista revolucionário francês do começo do século^^. Sorel divide a greve geral em dois tipos: greve geral política e greve geral proletária. A primeira seria aquela em que a atual ordem do Direito não é questionada, sendo, muito pelo contrário, fortalecida, ao passo que, na segunda, visa-se o aniquilamento do Direito. Aqui, embora não faça a distinção explicitamente, Benjamin já não mais compara a greve geral ã guerra como fenômeno originário da violência. Isto, porque, na medida em que a revolução aniquila o Direito, ela não é instauradora de nenhuma outra ordem e, portanto, aniquila com ele a própria violência^^ A muito custo se pode aqui compreender que a eliminação do direito realizada pela greve geral proletária faria surgir uma era onde os indivíduos usariam apenas meios não-violentos na resolução dos conflitos. O sentido da diferenciação entre o que Benjamin chama de “violência mítica” e “violência divina” é o da supressão do ciclo interminável da reposição da violência no atual ordenamento jurídico^^. O autor esclarece esse ponto na medida em que relaciona a violência do Direito ã violência mítica. A violência mítica, a exemplo da cólera, não é um meio para nenhum fim, é pura manifestação. A violência dos deuses, que Benjamin exemplifica com aquela exercida pela deus Leto sobre Níobe, não consiste em castigo contra determinada infração a um Direito pré-existente, mas muito mais na afirmação, na instauração de um Direito. Ela possui, portanto, similitude com a violência do Direito, sob o qual permanece sempre a

na entrevista se trate de uma outra discussão. A entrevista se encontra aqui: http://brasil.elpais.com/ brasil/2014/09/29/opinion/1412000283 365191.html. ^Wernota 20, supra. “ Essa distinção ganha forte significado pelo que se disse na nota 20, tendo em vista, portanto, a ideologia fascista que crescia por aqueles anos. Não posso dizer até que ponto Benjamin estava ciente a essa altura da emergência do ideário fascista, mas a diferenciação entre a guerra entre nações e a guerra de classes, com a clara valorização da segunda em detrimento da primeira, fornece elementos à crítica daquele ideário. Note-se que, embora as ideias expressas nesse texto de Benjamin sejam mais revolucionárias do que muitas das ideias de vários teóricos ditos marxistas de seu tempo, a perspectiva adotada por ele não parece jamais levarem conta os pressupostos da Crítica da Economia Política, falando sempre em termos de Direito, mesmo quando se refere às classes e á sua atuação política: elas são sujeitos de Direito, a quem é permitido excepcionalmente o exercício da violência. Isso irá mudar em meados dos anos 1920, quando o autor se rende ao materialismo histórico, embora á sua maneira, e preservando a riqueza do seu pensamento desenvolvido nessas primeiras décadas do seu trabalho.


ordem do destino, que ameaça cada indivíduo. Escreve Benjamin:

...esta conexão [entre a violência mítica e a violência do direito, estreitamente aparentadas, ou mesmo idênticas] promete lançar uma luz mais ampla sobre o destino, que subjaz em todos os casos à violência do direito, e levar, em traços largos, sua crítica a termo. Pois a violência na instauração do direito tem uma função dupla, no sentido de que a instauração do direito almeja como seu fim, usando a violência como meio, aquilo que ê instaurado como direito, mas no momento da instauração não abdica da violência; mais do que isso, a instauração constitui a violência em violência instauradora do direito - num sentido rigoroso, isto ê, de maneira imediata - porque estabelece não um fim livre e independente da violência [Gewalt\, mas um fim necessário e intimamente vinculado a ela, e o instaura enquanto direito sob o nome de poder [Macht\. A instauração do direito ê instauração de poder e, enquanto tal, um ato de manifestação imediata da violência. A justiça ê o princípio de toda instauração divina de fins, o poder [Macht\ ê o princípio de toda instauração mítica do direito^^

A violência mítica não foge jamais ao ciclo mítico de reposição da violência, isto é, à instauração e manutenção sempre novas de um Direito que é Poder^®. O quanto ela pode ser identificada não apenas ã ordem do Direito “sem contradições”, por assim dizer, mas igualmente ã greve geral política, como definida por Sorel, fica claro em uma citação que Benjamin reproduz do revolucionário francês:

^'BENJAMIN (2011),p. 148. “ Aqui, temos mais um elemento de permanência dos primeiros textos de Benjamin aos últimos. O ciclo mítico da violência se dá claramente na lógica moderna do progresso, que decorre sobre um tempo homogêneo, onde o novo é sempre a reposição do arcaico. Nesse sentido, pode-se estabelecer pelo menos desde esse texto de 1921 um fio que une a análise do Mito - e da Modernidade que o repõe, conforme exposto nos textos dos anos 30 - à crítica à noção de História que está na base tanto do Historicismo como da Socialdemocracia (Scholem diria também do socialismo real, em SCHOLEM, G. WBenjamin und sein Engel. In: Zur Aktualitát Walter Benjamins. Frankfurt: S. Unseld, 1972, p. 129, citado em LOWY, 2005), que podemos ler nas teses de 1940.


A base de suas concepções [dos partidários da greve geral política] é 0 fortalecimento do poder do Estado [Staatsgewalt\\ em suas organizações atuais, os politicos (a saber, os socialistas moderados) preparam desde já a instituição de um poder forte, centralizado e disciplinado, que não se deixará perturbar pela critica da oposição, saberá impor o silêncio e baixar seus decretos mentirosos^^.

Portanto, tanto o Direito como aqueles que se põem docilmente sob sua lógica, isto é, os reformistas da socialdemocracia, para os quais há “uma segurança muito maior, para um sucesso duradouro, no processo de avanço firme do que nas possibilidades oferecidas por um choque desastroso ou catastrófico” e cujo “mais importante problema tático” do partido seria “o de delinear os melhores métodos de ampliação dos direitos políticos e econômicos das classes trabalhadoras”^*, encontramse sob 0 âmbito da violência mítica, que deve ser rechaçada. A associação entre Direito e Mito, por meio da violência instauradora presente em ambos, confere “certeza quanto ao caráter pernicioso de sua função histórica, tornando tarefa a sua abolição”^^ Vale dizer ainda que a crítica de Benjamin é ainda mais severa, “mais anarquista”, do que, por exemplo, a crítica de Lênin ao kautskysmo e ao oportunismo, entre outras formas “moderadas” de socialismo, em seu Estado e Revolução, na medida em que o autor chama atenção ao seguinte:

Na esteira de algumas observações de Marx, Sorel recusa para o movimento revolucionário qualquer tipo de programas, utopias, numa palavra, de instaurações de quaisquer formas de direito: “Com

Sorel, apud BENJAMIN (2011), pp. 141-142. O texto apresenta leves modificações por parte de Benjamin. Ambas as citações são de BERNSTEIN (1997), pp. 26 e 27, respectivamente. Embora suas teses revisionistas só tenham sido aceitas pela socialdemocracia bem tardiamente, elas representavam melhor a atuação do Partido Socialdemocrata Alemão do que quaisquer outros escritos que os mesmos produzissem ou louvassem. A esse respeito, ver o seguinte trecho de Para uma crítica da violência: “Enquanto a primeira forma de suspensão do trabalho é violenta, uma vez que provoca só uma modificação exterior das condições de trabalho, a segunda, enquanto meio puro, é não-violenta” (BENJAMIN, 2011, p. 143). Ibidem, p. 150.


a greve geral, desaparecem todas essas belas coisas; a revolução aparece como uma revolta clara e simples, e não há lugares reservados nem para os sociólogos, nem para os elegantes amadores de reformas sociais, e nem para os intelectuais que escolheram a profissão de pensar pelo proletariado”^®.

Se, nos anos seguintes, Benjamin recuou dessa posição e teve ilusões com o governo soviético não cabe discutir aqui. O que se apresenta nesse texto é uma visão que já dá fortes indícios do que o autor irá expor em suas teses de 1940, quanto à teoria da revolução.

É na ruptura desse circulo atado magicamente nas formas miticas do direito, na destituição do direito e de todas as violências das quais ele depende, e que dependem dele, em última instância, então, na destituição da violência do Estado, que se funda uma nova era histórica^^

Ibidem, pp. 143-144. ^'Ibidem, p. 155.


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TRAPEZA TES PISTEOS: A ATUALIDADE DO MISTÉRIO DA FÉ, EM BENJAMIN E AGAMBEN. REGINALDO OLIVEIRA SILVA - Universidade Estadual da Paraíba rgnaldo@uol.com.br

Resum o: No ensaio O capitalismo como religião, Walter Benjamin levanta a hipótese do capitalismo como fenômeno religioso, puramente cultuai, sem redenção ou objeto, o qual faz da culpa o seu principal fim. Com Trapeza tes pisteos, em grego “banco de crédito”, inscrito na fachada de um banco em Atenas, Giorgio Agamben investe numa interpretação do ensaio de Benjamin, sob a hipótese de que se o capitalismo é uma reli-gião, trata-se de uma religião da fé, na qual o crédito substitui Deus, enquanto o banco ocupa o lugar da Igreja. Neste sentido, a presente reflexão visa examinar o fio condutor que tece a compreensão do capitalismo como religião da culpabilização universal, mas também como religião do crédito e da dívida. Nessa perspectiva, a atualidade dos misté-rios da fé residiria no entendimento de que a relação entre fé e crédito melhor esclarece a ausência da redenção na religião capitalista.

Palavras-chave: C apitalism o; R eligião; Fé; D ívida; Redenção.


U

ma das frases mais enigmáticas do século X IX surgiu da escrita de Ludwig Feuerbach (2002, p. 18): “a pretensa era moderna é a Idade Média protestante”. Com esta, o filósofo, por um lado, denunciava a continuidade

do Cristianismo nas metafísicas modernas; por outro, lançava a tarefa política associada à tarefa da transformação da filosofia, por conseguinte, da filosofia do futuro, para a qual diz ser necessária a dissolução do cristianismo. A crença de que a idade média teria sido superada pela elevação da razão ã condição de rainha já aí encontra um primeiro desapontamento, o qual não cessará de motivar a escrita filosófica desse século barulhento. Assim, Feuerbach parece ecoar nos cursos proferidos por Augusto Comte (1983), quando este cientista, ao acolher a problemática da filosofia em ruína, estabelece, talvez inspirado na Filosofia da História de Hegel, um fio condutor entre a

teologia, a metafísica e, no seu dizer, o espirito positivo, quando afirma ser a metafísica a conversão de seres sobrenaturais em seres abstratos. Também não escapa a Nietzsche (2005), na II Consideração intempestiva: sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida, ao comparar o que ele chama de cultura histórica, o valor exagerado devotado ao passado histórico, com a herança da ideia do juízo final, veiculada na Idade Média. Não seria novidade, portanto, a suspeita de que no fundo de toda a empreitada moderna escondam-se resquícios, velados ou não, daquilo que acredita o moderno se contrapor e pretender destruir. Ou seja, entre o Cristianismo e a idade moderna, ao invés de ruptura, tem-se uma cumplicidade que os filósofos oitocentistas compreenderam como tarefa expor, ainda sob a perspectiva da maneira de pensar surgida com o Iluminismo, no século XVIII, abrindo o caminho para empreitadas outras, as quais, de diferentes modos, serão por eles elaboradas. Era necessário atravessar o árido caminho da crítica do até então vigente, que, embora caduco e em queda vertiginosa, insistia em refugiar-se no pensamento ávido de secularização. Essa foi a compreensão do jovem Marx (1993, p. 78), na Introdução ã Contribuição da filosofia do direito de Hegel, ao afirmar ser a tarefa da filosofia, em face da então consumada crítica da religião, “desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas não sagradas”, em que a crítica do céu teria dado lugar ã crítica da terra. No entanto, apesar dos esforços e coragem desses filósofos, mas também da crença de Marx de que estaria aberto o caminho para, enfim, a filosofia voltar o olhar


para o aquém e exercer o seu labor crítico, não mais voltado para o céu ou para o cérebro do filósofo, e sim para os enredamentos de homens de corpo e sangue nas veias; com os fragmentos póstumos de Walter Benjamin, intitulados “O capitalismo como religião”, não apenas a tarefa de Marx para a filosofia ganha nova atualidade, bem como a frase de Feuerbach teria de ser repensada. Isto é, os fragmentos de Benjamin convidam à continuidade da crítica da terra, bem como à compreensão de que, talvez, a Idade Média ainda não tenha sido de todo suprimida, de modo que a tarefa que fora lançada no século X IX , em termos de transformação da filosofia ou em termos de tarefa política, ainda teria a sua atualidade. Segundo essa linha de raciocínio, os fragmentos de Benjamin não apenas surpreendem porque oferecem ao presente uma significativa chave de interpretação e crítica, sobretudo, porque atualizam a problemática de desconstrução do presente nas suas raízes arqueológicas, o que oportuna ao filósofo italiano Giorgio Agamben aprofundar os achados, segundo ele, do seu brilhante Homo sacer. Se com Benjamin a necessidade da crítica do céu transferido para a terra surge como denúncia inóspita; com Agamben, ao desdobrar as conseqüências do que em poucas páginas se anuncia, transforma a tarefa crítica, nele arqueológica, não apenas em compreensão do presente, um presente ainda teológico, como também permite apreender em que consiste a tarefa política para este mesmo tempo. Nesse sentido, a presente reflexão objetiva examinar a hipótese da religião capitalista, lançada por Benjamin, quanto ao uso que dela faz Agamben, sob o fio condutor dos elementos teológicos persistentes nos manejos do capitalismo mais recente. Trapeza tes pisteos é o que de início espanta o italiano, porque sugere a apropriação da fé pelos expedientes bancários, o que modifica a compreensão de que a mitologia e os rituais cristãos estabelecem a cadência do mundo da vida nos dias que correm. Porque Agamben não para por aí, ã maneira de Feuerbach no século X IX, ao afirmar que a política entrou para o lugar da Igreja e da religião, diz ele que o banco substituiu a Igreja e os seus sacerdotes - a reflexão aqui proposta perscruta, com o conceito de “profanação”, outro aspecto da hipótese de Benjamin, desta vez, com ênfase no ritual de separação e atitudes profanatórias capturadas pela religião capitalista, como 0 que indica a tarefa política deste século ainda nos seus inícios.


Trapeza tes pisteos e profanação constituem, pois, os dois âmbitos com os quais se pretende, aqui, examinar o alcance da religião capitalista denunciada por Benjamin quando dela se apropria Agamben. Ao tomar esse caminho, vem à luz o sentido da atualidade da fé, e, com esta, algumas hipóteses. Em primeiro lugar, indicar, na apropriação da fé pelo banco, o que denuncia o capitalismo como uma religião, a qual, porque fundada no endividamento, ou seja, na fé convertida em crédito bancário, a redenção será esvaziada do seu conteúdo anterior. Em segundo, que ao retirar dos rituais de separação a possibilidade da profanação, os indivíduos, por meio do crédito, não apenas creditam ao banco a fé, como também são privados da recuperação daquilo que foi em algum momento devotado aos deuses. Ou seja, a religião capitalista não somente se apropria da fé, mas, também, toma para si o intercurso entre homens e deuses, entre profano e divino. De 1921, com tradução publicada, em 2013, pela Boitempo, junto a outros textos similares, “O Capitalismo como religião” levanta a hipótese expressa no título, porque

0 capitalismo está a serviço das mesmas preocupações, aflições e inquietações da religião. Aparentemente sombrio - pois, com o anúncio da morte de Deus, proferido por Nietzsche, em A gaia ciência, acreditou-se que doravante se instituiria uma sociedade de ateus ou de consumada secularização -, afirmar ser o capitalismo uma religião lança nova luz ã compreensão do presente. A hipótese se baseia em três traços característicos da nova religiosidade: o capitalismo é uma “religião puramente cultuai” (Benjamin, 2013, p. 21), a forma mais extrema da religião, mas sem dogmática ou teologia; nele, dá-se uma “duração permanente do culto” (Benjamin, 2013, p. 21), e investe na espera enquanto tal, sem que qualquer objeto se apresente como substância da esperança, sendo, por isto, esvaziado de sonho e de futuro; por fim, que “esse culto é culpabilizador” (Benjamin, 2013, p. 22), não visa ã expiação, antes, prefere alimentar uma “monstruosa consciência de culpa”, a fim de torna-la universal e, assim, martelar a culpa nos indivíduos, o que implica no envolvimento do próprio Deus na culpa. A expiação não poderia ser esperada nem por meio de uma reforma nem pela recusa, de modo a se opor ao que sugere a religião capitalista; antes, promove-se a intensificação do desespero, até a exaustão, a fim de neste encontrar a esperança. Desta maneira, trata-se de uma religião para a qual a “transcendência de Deus ruiu” (Benjamin, 2013, p. 22), o qual em vez de morto foi incluído no destino humano do


perecimento. E, neste sentido, aos três traços incialmente indicados, surge um quarto aspecto: na religião capitalista “Deus precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite da sua culpabilização” (Benjamin, 2013, p. 22). Talvez seja este o sentido da afirmação de Agamben sobre Deus não estar morto, ao contrário, ele se converteu em dinheiro. Diz Benjamin, ainda, que Freud, Marx e Nietzsche teriam parte no império sacerdotal do culto capitalista. Em Freud, o reprimido seria o “capital que rende juros para o inferno do inconsciente”; o super-humano, com o qual Nietzsche ergue o seu projeto filosófico de transvaloração da ética cristã da compaixão, será visto como o salto apocalíptico para a intensificação do arrependimento, da expiação e da penitência - 0 homem que despreza Deus e se autodetermina e engendra. No dizer de Benjamin, “o super-humano é o ser humano histórico que chegou lá sem conversão, que cresceu através do céu” (Benjamin, 2013, p. 23). Quanto a Marx, pesa o fato de ser o capitalismo impenitente um socialismo com juros ejuros sobre juros como função da culpa. A ambigüidade da palavra alemã Schuld, que designa tanto culpa quanto dívida, esclarece essa incidência do juros sobrejuros como mecanismo culpabilizador, conforme a genealogia de Nietzsche sobre a moral da compaixão, na segunda dissertação da Genealogia da moral, ao traçar o fio condutor que rege o caminho da dívida para com os ancestrais fundadores do estado de paz e da sociedade ã culpa em relação ao Deus no céu. O juros sobre juros, acumulado desde um longínquo, resvala na intensificação da culpa, ritualizada e intensificada na religião capitalista. Causa de espanto para Agamben, os fragmentos póstumos de Benjamin servem de mote para todo um empreendimento arqueológico, no propósito de desdobrar a hipótese esclarecedora sobre a conversão, em virtude da Reforma, do capitalismo em religião ou do cristianismo em capitalismo (Benjamin, 2013, p. 24). Embora o alcance da pesquisa de Agamben, o seu labor arqueológico iniciado com o engenhoso Homo sacer, sobre o qual diz o italiano ter oportunado a descoberta de um rico campo de investigação, origem de livros como O reino e a glória. Opus dei e Altíssima pobreza, com os quais buscou desvendar as raízes teológicas do mundo moderno; quando se trata de examinar a recepção do texto de Benjamin no pensamento de Agamben, interessam, no momento, os ensaios e entrevistas concedidas por ele, nos quais são abordados


OS

fragmentos. Alguns publicados pelo blog da Boitempo e o provocador “Elogio da

profanação”, ensaio publicado e traduzido junto a outros sob o título Profanações. Nestes, a hipótese de Benjamin será desenvolvida nos aspectos da fé e do ritual da separação. Assim, Trapeza tes pisteos e sacralização das coisas são expressões chaves para a leitura que faz Agamben dos fragmentos de Benjamin. De saída, a decisão, em 1971, do governo americano de suspender a conversão do dólar em ouro abre o artigo “Benjamin e o capitalismo”. O significado bíblico de “sinal dos tempos” será empregado por Agamben a fim de classificar esse evento que, embora desapercebido, marca o início de uma nova época. Como todo sinal dos tempos, não foi captado no sentido de uma nova realidade, como algo que anuncia uma nova etapa do capitalismo. Doravante, o dinheiro perde de vez toda a referência a uma coisa, a sua substância, e, por conseguinte, torna-se autorreferenciado, ao dar-se a desmaterialização da moeda. O dinheiro apresenta-se como o “crédito que se funda unicamente em si mesmo e que corresponde a si mesmo” (Agamben, 2013a). O efeito dessa mudança na caracterização do dinheiro, o que aí se designa como sinal dos tempos, Agamben busca pensar recorrendo aos fragmentos de Benjamin, dos traços com os quais o filósofo alemão visa sustentar a sua hipótese. O capitalismo como religião cultuai, que investe na duração permanente de um culto culpabilizador. Trapeza tes pisteos, em grego, “banco de crédito”, inscrição num banco de Atenas, informação colhida de um cientista da religião, parece ao italiano esclarecedor, não apenas ã compreensão da nova feição adquirida pelo dinheiro, bem como da possibilidade de ratificar o que Benjamin tão brilhantemente intui sobre o capitalismo. O exercício etimológico indica o caminho para explicitar o que se revela quando a pistis aparece na fachada de um banco, quanto ao estatuto da fé na religião capitalista. Pistis, fé, é

0 crédito na palavra de Deus e de que essa palavra goza junto aos fiéis quando nela se crê - por meio da fé, dá-se “crédito e realidade àquilo que ainda não existe” (Agamben, 2013a). Creditum, de credere, é aquilo em que se coloca a fé, quando se empresta a alguém dinheiro. A desmaterialização da moeda e o novo emprego da pistis dão ao capitalismo como religião a sua razoabilidade: “o capitalismo é uma religião inteiramente fundada sobre a fé, cujos adeptos vivem sola fide (unicamente da fé)”, diz Agamben (2013a),


“uma religião na qual o culto se emancipou de todo objeto e a culpa se emancipa de todo pecado, em conseqüência, de toda possível redenção”. O capitalismo, do ponto de vista da fé, “crê no puro fato de crer, no puro crédito, ou seja, no dinheiro”. Neste sentido, o banco torna-se guardião da fé e substitui a Igreja, bem como, contrariando as expectativas dos apologetas do ateísmo, do séc. X IX ao atual. Deus não morreu, ele converteu-se em dinheiro, não mais é evocado nos templos da tradição cristã, sobretudo, é buscado sob a mediação dos novos sacerdotes, os gerentes de agências bancárias. A suspensão da convertibilidade do dólar em ouro marca a “passagem decisiva para a purificação e cristalização da própria fé” (Agamben, 2013a), então esvaziada da referência a um objeto. Não mais podendo-se associar ao crédito uma coisa, a fé tornase ela mesma a coisa ã qual se dá crédito. A substância da fé, a coisa esperada, “foi aniquilada e deve sê-lo, pois o dinheiro é a essência última da coisa, a sua ousia, a substância do futuro” (Agamben, 2013a). Em virtude desse movimento, a sociedade está fadada a viver de crédito, o que sugere duas conseqüências. Por um lado, a intensificação da culpa - daí tratar-se, na religião capitalista, segundo o entendeu Benjamin, da recusa da redenção, cujo perigo supõe que viver de crédito, de dívida, requer o mergulho mais e mais no universo da culpa, no mesmo sentido descrito por Nietsche na sua polêmica Genealogia do moral. No dizer de Agamben (2013a), “a religião capitalista, em coerência com a tese de Benjamin, vive de um contínuo endividamento que não pode nem deve ser extinto”. Por outro lado, o banco, como depositário da pistis, também se apropria e seqüestra o futuro. Sendo a fé a guardiã das coisas esperadas e, por isto, antecipação da realidade do que se espera, com 0 banco a expectativa do futuro reduz-se ao mero endividamento, apresentandose aos endividados, sejam estes pessoas ou países, como aquele que regula e tutela a esperança no vindouro (Agamben, 2013c). Com 0 ensaio “Elogio da Profanação”, Agamben explora “O capitalismo como religião” dando ênfase ao ritual da separação e da sacralização das coisas, e resgata

0 sentido da profanação, conforme os juristas romanos a compreendiam e contavam entre as formas de restituição ao uso dos homens o que fora consagrado aos deuses. Profano é aquilo que “de sagrado ou religioso, é devolvido ao uso e ã propriedade dos homens”, diz Agamben, citando o jurista Trebácio. A religião subtrai as coisas da sua pertença ao mundo humano, dispondo-as numa esfera separada; por meio do sacrifício


(Agamben, 2007, p. 65), retira-as do uso humano para consagra-la aos deuses. O ritual de separação na religião melhor se esclarece com a etimologia de religio, a qual, ao contrário do que geralmente se crê, não é o que une, mas o que separa e mantém a distinção entre as duas esferas, a humana e a divina. Não deriva de religare - o que liga humano e divino -, antes, de religere, a atitude de escrúpulo e atenção às formas e fórmulas que presidem a separação entre homens e deuses, entre sagrado e profano. À religião se opõe a negligência “diante das coisas e do uso, diante das formas de separação e o seu significado” (Agamben, 2007, p. 66). Por conseguinte, como negligência, profanar sugere “abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, dela faz um uso particular” (Agamben, 2007, p. 66). Por isto, a profanação se distingue da secularização - diferença que diz muito sobre as críticas novecentistas da secularização de conceitos religiosos em abstrações metafísicas. Na secularização de conceitos teológicos, quando se transmuta a monarquia celeste para a monarquia terrestre, ocorre apenas o deslocamento de um lugar para outro. Seria este o sentido da crítica da terra, conforme Marx pensou a tarefa crítica da filosofia. A profanação, por sua vez, neutraliza o que profana, promove a queda da aura de sagrado, restituindo ao uso o que foi ofertado aos deuses. Embora tarefas políticas, secularizar tem a ver com o poder, e o mantem mesmo que se trate de fazer descer o além para o aquém; em contrapartida, profanar desativa o dispositivo do poder e devolve “ao uso comum o espaço que [o poder] havia confiscado” (Agamben, 2007, p. 68). Em face dos ritos de separação, Agamben pontua duas práticas da profanação, cujo efeito reside em desfazer o encanto sagrado, passagem do sagrado ao humano, no sentido da restituição da negligência, parte dos rituais, ou presentes como perspectiva da encenação religiosa ou como algo a ser vigiado seja como algo a ser evitado. São elas 0 contato e o jogo. No contato, trata-se de um “tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado” (Agamben, 2007, p. 66) - nos rituais de consagração uma parte da vítima sacrificial é oferecida aos deuses, enquanto

0 restante, pelo toque, se destina ao consumo humano. No jogo, dá-se uma profanação por meio de um uso ou reuso “totalmente incongruente do sagrado” (Agamben, 2007, p. 66). Embora semelhante às práticas divinatórias, “o jogo exerce a mesma função de separação, sem no entanto destituir o sagrado ou devolver o objeto sagrado ao uso


humano, antes, destinando-o a um uso diferente de ambas esferas” (Agamben, 2007, p. 67). Se no ritual religioso ou ato sagrado o mito que narra a história do sacrifício conjuga-se com o rito que reproduz o sacrifício, no jogo, ou o mito é conservado sem o rito ou 0 rito sem o mito. Dá-se, com isto, uma quebra na continuidade entre mito e a sua atualidade no rito. Assim, “o jogo libera e destina a humanidade da esfera sagrada, mas sem a abolir simplesmente” (Agamben, 2007, p. 67). No entender do filósofo italiano, com 0 jogo tem-se uma nova dimensão do uso, que as crianças, quando concebem as coisas como brinquedos, deslocam-nas para uma dimensão limiar, nem profana nem sagrada (ou seja, quando separam as coisas da sua utilidade pragmatista, sem devotar aos deuses), e, também, quando os filósofos, ao desvincular a palavra do seu uso pragmático, dela fazem um uso especial. Tanto 0 contato quanto o jogo, como a brincadeira das crianças, só são possíveis devido à ambigüidade do significado da profanação, observável no sentido filológico de profanare, o qual sugere, ao mesmo tempo, o tornar profano e sacrificar. Essa ambigüidade constitutiva da profanação guarda semelhança com o sacer, e deste faz-se mais compreensível quando se recorre ao homo sacer. Aqui, Agamben retoma o que ele desenvolve sobre o sacer, em Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, nas figuras do soberano e do devoto, a fim de elucidar o alcance político da profanação. A transição do profano ao sagrado e do sagrado ao profano - ou seja, a possibilidade de separação e, em seguida, da restituição ao mundo humano - dá-se por conta da prevalência em todo objeto tornado sagrado de algo de profanidade, do mesmo modo que em todo objeto profanado persiste vestígios de sacralidade. Daí ser possível não só às coisas serem separadas do uso, tornando-se sagradas, como, uma vez sagradas, poderem retornar ã comunidade dos humanos por meio da profanação (Agamben, 2007, p. 68). Assim ocorre com o homo sacer, quando o substantivo sacer, o que pela sacratio ou devotio foi entregue aos deuses, converte-se em adjetivo de homo. Aqui, Agamben retoma a definição do homo sacer como o indivíduo que, porque excluído da comunidade, pode ser morto impunemente, ao passo que não mais pode ser sacrificado aos deuses. O homo sacer habita uma zona limiar, entre a comunidade humana e a esfera divina, e sendo ao mesmo tempo humano e não humano oscila entre os dois mundos, entre


profano e sagrado, sem pertencer nem a um nem a outro. Ele é “um homem sagrado, ou seja, pertencente aos deuses, [mas] sobreviveu ao rito que o separou dos homens e continuara levando uma existência aparentemente profana entre eles” (Agamben, 2007, p. 69). Nele, há um resíduo do profano e do sagrado e, por isto, na esfera humana, pode ser morto impunemente, pois está fora do alcance da lei; na esfera divina, não mais pode ser sacrificado e fica fora do culto, porque já fora sacralizado. Essa estrutura da separação religiosa e da profanação vê-se modificada quando se trata da religião capitalista, e, neste ponto, tem lugar a leitura de Aganbem dos fragmentos de Benjamin, agora, pensada não mais nos termos da pistis, sobretudo no intercurso entre separação e profanação, que envolve, ainda, a relação do mito com o rito religiosos. Diz Agamben: “a religião capitalista realiza a pura forma da separação, sem mais nada a separar” (Agamben, 2007, p. 71). Na religião capitalista, tudo acaba sendo dividido e deslocado para uma “esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna diretamente impossível”, como é o caso do consumo (Agamben, 2007, p. 71). Como religião, o capitalismo esvazia a sentido da profanação, banindo a restituição ao uso, inerente ao ritual da separação; instaura, portanto, a impossibilidade de profanar. Se de início o banco substitui a Igreja, quando não mais o dinheiro se refere a uma substância material; face aos rituais da separação e da profanação, outras instituições serão indicadas como substitutos do templo e do cumprimento da separação, a fim de fazer possível a experiência da impossibilidade de usar. Nestes termos, compreende-se as funções do Museu e o turismo, ambos como maneiras de tornar patente o não uso das coisas e do mundo, tutelados pelo ritual de separação ou consagração do capitalismo. O museu e o turismo são templos nos quais se leva a cabo a separação das coisas da esfera do uso humano, sem, no entanto, permitir o retorno ao uso; são eles forma e visibilidade da consagração das coisas na nova religiosidade. O capitalismo como religião, além de tomar para si a fé, a realidade das coisas esperadas, também toma para si a profanação, ao privar o homem de realiza-la. São duas, portanto, as incidências, segundo a leitura que Agamben faz de “O capitalismo como religião”: a fé se atualiza como autorreferência, quando o dinheiro se converte em crédito, por conseguinte, encarna a figura de Deus, e a separação como


ritual de consagração, para a qual não há um contrarritual de reconversão. Ao retirar as coisas do uso sem deixar margem para que seja ao uso restituidas, priva as pessoas, ao mesmo tempo, do futuro e do presente. Fecha-se, de um só golpe, a fronteira entre o divino e o profano, aparentando não mais existir um resíduo profanável. Dessa maneira, o banco, o museu e o turismo surgem como os novos templos do sagrado, sob a tutela do capitalismo. O banco porque captura a fé, elevando-a a objeto de si mesma, e tem no dinheiro a expressão de um Deus em quem se credita a fé. O museu, diz Agamben (2007, p.73), porque configura-se como a “dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo”; porque é a “exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiências”. Daí, em muitos museus, embora o filósofo não esteja, conforme se apressa em prevenir, referindo-se ã instituição, e muito mais a um modo de relação com as coisas, a recomendação de não tocar, talvez devido ao mesmo zelo que os sacerdotes nutriam quanto aos ritos de separação, recomendação presente também em algumas lojas dos grandes centros comerciais, como prevenção do contato cujo risco seria restituir ao uso humano. Assim, ã impossibilidade de profanar corresponde a de usar, como também a de habitar, conforme o filósofo italiano percebe no turismo. Como os fiéis nos templos, comportam-se os turistas, os quais passeiam num mundo estranhado, porque transformado em museu. Os turistas, no dizer de Agamben (2007, p. 73), “celebram, sobre a sua própria pessoa, um ato sacrificial que consiste na angustiante experiência da destruição de todo possível uso”. Doravante, sem a ambigüidade do sacer, são eles, sob esta perspectiva, sem uso e sem pátria, tão somente espectadores, despossuídos e expropriados do mundo, das coisas separadas da esfera humana e tornadas sagradas. A experiência dos turistas, os passeios pelas cidades, ã maneira do fianeur, pelas galerias e vitrines, estende-se da experiência com as coisas para a experiência do mundo, por eles vivenciado não mais como habitar do homem, sobretudo como estranho, porque separado do uso. Sem a experiência do uso e sem a do habitar, o capitalismo como religião consuma

0 que Theodor Adorno (1985, p. 40) denuncia na Dialética do esclarecimento: “no mundo conhecido, a mitologia invadiu a esfera profana. A existência expurgada dos


demônios e de seus descendentes conceituais assume sem sua forma naturalizada o caráter numinoso que o mundo outrora atribuía aos demônios”. E noutro lugar, diz Adorno ser a tentativa de aproximar o divino do profano a transformação do imediato em numinoso, conforme o projeto de desencantamento do mundo. Nas coisas e nas cidades, o ritual da religião capitalista impossibilita o uso das coisas e das cidades, sem, no entanto, permitir a restituição, e todos assimilam na experiência do museu e do turismo 0 mundo estranhado como o que se consagra aos deuses, cuja única forma de esperança reside no crédito, na fé que se credita ao dinheiro. Apesar de instituída a impossibilidade de profanar, já que se trata de pensar a atualidade dos dispositivos da religião, ante a tese do capitalismo como religião, defende Agamben que a profanação é mais astuta, pois nela não se trata apenas de devolver ao uso. Nela também se encontra, para além ou aquém, nas palavras do filósofo, a possibilidade de um uso não contaminado, o propósito de conduzir-se para a esfera dos meios puros, onde predomina um uso que não seja nem sagrado nem profano, a exemplo do jogo e da natureza como manifestações de profanação. São exemplos dessa maneira de profanar, não mais como restituição ao uso humano, antes da separação, as brincadeiras do gato com o novelo de lã e a defecação. No entanto, acusa o filósofo, se a religião capitalista anula a profanação, e conserva o ritual da separação, também ela, tão astuta quanto a profanação, exerce um domínio sobre o meio puro, possibilidade da profanação, para a qual, mais uma vez, perscruta por todos os lados as ocasiões de destinação das coisas para um novo uso. Em conformidade com a vigilância do sacerdote, o zelo obsessivo com que este busca evitar a negligência e o contato, em face das formas e fórmulas dos rituais religiosos, a religião capitalista mantem constante vigilância na esfera dos meios puros, a fim de evita-los ou deles se apropriar. Neste ponto, interessa pensar a tarefa política que o autor sugere para o presente, para tempos de religião capitalista. Já que profanar, assim como a secularização, possui uma dimensão política, a profanação não teria apenas a finalidade de restituir ao uso humano o que fora consagrado aos deuses, ela se propõe, também, a criar um novo uso. Precaução necessária porque a religião capitalista como domínio e controle de todas as formas de separação, o faz no propósito de sacralizar todas as coisas e conceitos. Ao


brincar com o novelo de lã, o gato simula a caça do rato e exerce a atividade predatória, mas os comportamentos são destinados para um novo uso, uma vez que a captura do rato é deslocada para o novelo. Trata-se aí de “libertar um comportamento da sua inscrição genética” (Agamben, 2007, p. 74), mantendo-o sem a finalidade natural prescrita, fazendo surgir um novo uso, o qual se designa como meio puro, ou seja, o meio libertado da finalidade. O deslocamento da atividade predatória no jogo do gato com o novelo de lã sugere como horizonte a inoperosidade, a anulação dos usos já consolidados, que Agamben entende, numa entrevista publicada com o título “O pensamento é a coragem do desespero”, não como inércia, mas como exercício de atividades que alteram as finalidades previstas, conforme pensadas por Aristóteles na Ética a Nicômaco. À diferença dos objetos cuja excelência reside no uso daquilo para o qual foram fabricados, ao homem não foi dada de antemão qualquer finalidade, a ele não se inscreve um talento específico, o que também designa a liberdade de o homem para si inventar um talento, concepção que se arrasta até os dias atuais numa longa tradição, de Pico Delia Mirandolla a Foucault. Segundo o modelo da brincadeira do gato, a astúcia do profanar repousa na anulação das atividades, tornando-as inoperosas, não apenas destinandoas a um novo uso, mas desfazendo as suas finalidades. Daí, a defecação também constituir, para o italiano, uma forma de profanação que ocorre na natureza, uma vez que se trata da separação na esfera do corpo, que dispõe, como repressão e opressão, um “campo de tensão polar entre a natureza e a cultura, privado e público” (Agamben, 2007, p. 75). É neste sentido que “profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas” (Agamben, 2007, p. 75) - ou seja, brincar com as fezes, fazendo da defecação um novo uso (como na prática do selfie, muito recorrente nas redes sociais, enquanto se defeca), diferente da opressão que se exerce, em nome da cultura e da higiene, especialmente, quando se observa as primeiras experiências das crianças com as fezes, como objeto que se separa do corpo e, de imediato, tem de ser reprimido. Não se trata somente de restituir as coisas ao uso anterior ã separação, e sim de instituir um novo uso, um meio puro, já que, na religião capitalista, a separação eleva-


se a ritual sem o contraponto da profanação. No dizer de Agamben (2007, p. 75) “a criação de um novo uso só é possível ao homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante”. Entretanto, e eis que se delineia a tarefa política que se impõe face ao ritual de separação e recusa da profanação na religião capitalista, como religião do Improfanável, e levando em conta a fragilidade dos meios puros, também estes serão capturados pelas novas formas de rituais. O jogo acaba, o novelo de lã e o brinquedo da criança voltam ao seu lugar na ordem pragmática - o novelo de lã deixa de ser o rato com 0 qual brinca o gato; o objeto tomado pela criança como brinquedo deixa de ser brinquedo, perde a sua magia. Suscetíveis, novamente, nas palavras do autor, ao “mago malvado”, o sacerdote da religião capitalista, o novelo e o brinquedo são novamente disponibilizados ã ordem pragmatista, consequentemente, são por ele capturados. Essa fragilidade permite ã religião capitalista se apropriar, e criar, não apenas dispositivos de separação, sobretudo exercer o seu domínio sobre os meios puros, segundo Agamben, conforme ocorre com a linguagem, dispositivo profanatório por excelência, quando empregada pelos meios de comunicação, mas também com a pornografia, a se observa a evolução da exposição do corpo das atrizes pornôs, as pornstars, em revistas ou filmes. Neste sentido, como religião, o capitalismo se converte num “gigantesco dispositivo de captura dos meios puros, ou seja, dos comportamentos profanatórios” (Agamben, 2007, p. 76). Na propaganda, a linguagem é instrumento de “captura e centralização do meio puro por excelência, isto é, a linguagem que se emancipa dos seus fins comunicativos e assim se separa para um novo uso” (Agamben, 2007, p. 76). Isto é, nos meios de comunicação, a palavra foi expropriada do seu poder profanatório, porque bloqueia a possibilidade de um uso diferente da comunicação cotidiana e de uma nova experiência da palavra. Isto, no mesmo sentido do que ocorreu com a pistis, a fé, a qual foi reelaborada por Paulo, a ela atribuindo um uso diferente da realidade e atualidade do ainda não existente, o futuro. Primeiro, a Igreja dela se apropriou como meio puro, em seguida, como se viu anteriormente, o banco dela fez moeda de troca. Assim, “no sistema da religião espetacular”, diz Agamben (2007, p. 76), “o meio puro suspenso e exibido na esfera midiática, expõe o próprio vazio, diz apenas o próprio nada, como se nenhum uso novo fosse possível, como se nenhuma outra experiência da palavra fosse possível”.


Considerada por Agamben a realização mais bem sucedida do capitalismo, a pornografia também serve à produção do Improfanável, quando destina ao uso mercantil

0 potencial profanatório do olhar indiferente da pornstar. O modo como se exibe para a câmera não é o mesmo da inicial expressão romântica e sonhadora, passando pela consciência de estar diante da câmera, até a indiferença estudada do olhar para lugar nenhum. Depois que a pornstar toma consciência de estar exposta ã objetiva, surge um contato “despudorado e direto com o espectador”, a exemplo do cinema, quando

0 olhar se dirige ã câmera. Esse olhar resoluto da atriz pornô, se a princípio designava um suposto desprezo ao parceiro e maior interesse pelo espectador (Agamben, 2007, p. 77), a este momento sucede outro, no qual o olhar se torna indiferente tanto ao parceiro quanto ao espectador. Com isto, ela enaltece um valor de exibição do corpo, de caráter puro, 0 que melhor descortina o engenho do capitalismo, ao que parece, quando simula instituir a experiência com as coisas para além do valor de uso e do valor de troca, anulando-os. Esse olhar indiferente da atriz pornô é o que acena para o potencial profanatório da pornografia, porque revela um novo uso, quando está em jogo a capacidade humana de reinventar a sexualidade. Na evolução da exposição da pornstar, indiferente ao espectador e ao parceiro, manifesta-se “um dar a ver nada mais do que um dar a ver”, em que 0 rosto humano é “exibido como puro meio para além de toda necessidade concreta, [e] ele se torna disponível para um novo uso, para uma nova forma de comunicação erótica” (Agamben, 2007, p. 78), já que “em vez de simular prazer [a pornstar] simula e exibe a mais absoluta indiferença” (Agamben, 2007, p. 78). No entanto, se essa indiferença do rosto da pornstar, comparável ao das manequins nas lojas, suspende, ou melhor, profana a utilidade inicial da pornografia: exibir o prazer proporcionado pelo parceiro, a indústria pornográfica, no mesmo sentido dos meios de comunicação em relação ã palavra, anula esse potencial profanatório. Daí, para Agamben, não ser reprovável o comportamento da pornstar, podendose dizer, inclusive, que ela serviria a uma “finalidade” revolucionária, como forma de contestação da ordem capitalista e os seus rituais de separação. Se a pornografia estimula o prazer para com este obter lucros, o olhar indiferente da atriz permite pensar a pornografia num horizonte diverso do pragmático. Porque é um desvio do uso comum da pornografia, promove a criação de um meio puro, quanto ã indiferença seja ao prazer


do parceiro seja ao deleite do espectador. O que deve ser denunciado, por conseguinte, é 0 dispositivo da pornografia como captura do meio puro, uma vez que a indústria da pornografia faz uso do rosto indiferente das atrizes para incentivar a pornografia, impedindo-a de exercer o seu potencial profanatório. Assim, a religião capitalista captura tudo o que pode acenar para a profanação, inclusive quando se trata da finalidade de em vez de restituir o antigo uso promover a criação do meio puro, suspensão das finalidades inscritas seja no comportamento genético seja na pragmática cotidiana do uso das coisas. A instituição do Improfanável, cara ã religião capitalista, se daria, portanto, não somente por meio do museu, que instaura a incapacidade de usar ou por meio do turismo que faz da experiência do outro, experiência da incapacidade de habitar. Também ela se apropria do aspecto da profanação voltado para o meio puro, a exemplo da propaganda em relação ã palavra e da pornografia em relação ã exposição do corpo. O valor de exposição, assim pensado, não sem levar em conta o que Benjamin dele fala sobre a obra de arte na época das técnicas de reprodução, conduziria a uma expectativa para além do valor de uso e do valor de troca, seria ele a instituição de um meio puro, o qual não se vê nem no uso nem na troca mercantil. Porque tanto nos dispositivos midiáticos quanto no dispositivo pornográfico (pode-se também dizer nos dispositivos bancários do endividamento, como meio de seqüestrar a fé e a esperança) está em questão a captura dos meios puros, consequentemente, da capacidade humana de profanar; porque o Improfanável da pornografia, bem como qualquer outro Improfanável, baseia-se no “aprisionamento e na distração de uma intenção anteriormente profanatória” (Agamben, 2007, p. 79); na religião capitalista a profanação não pode constituir-se como restituição do uso comum, tampouco a criação do meio puro, pois num e noutro caso restaria malograda a contrapartida ao capitalismo, uma vez que ambos fazem parte da astúcia da nova religião e religiosidade. Trata-se, portanto, diz Agamben, de profanar o Improfanável, ou seja, profanar a captura do meio puro e do inoperoso, como tarefa política para a atualidade. Nada mais atual a sentença de Feuerbach quanto a ser a era moderna a Idade Média protestante, face a qual a filosofia do futuro deveria ser opor, bem como uma


interpretação que abriga uma tarefa política; nada mais atual que a tarefa que Marx vislumbra para a filosofia: fazer a crítica da terra. O texto de Benjamin não apenas designa a atualidade da suspeita de Feuerbach como ainda previne quanto à crença de Marx de que a crítica da religião já teria sido feita. No entanto, o que se encontra em Benjamin é a não dissociação da crítica do céu da crítica da terra, uma vez que, afirmar ser 0 capitalismo uma religião, que a Reforma foi a conversão do cristianismo em capitalismo, sugere afirmar, diretamente, que os deuses desceram ã terra. Essa descida implicou no tornar divino o profano e profano o divino, algo que se cristaliza nos novos templos religiosos: o banco, o museu e o turismo, nos quais os rituais caros ã religião são desprovidos de qualquer conteúdo ou substância. A crítica da religião capitalista, como crítica do céu na terra, nesses termos, torna-se mais urgente, uma vez que não se apresenta, nas suas práticas e rituais, na relação dos fieis da nova religião com a fé, com a separação e com a contrapartida da profanação, não se apresenta como religião. Ao contrário, mantém o caráter de profanidade e secularização, instaura, pois, uma religiosidade aparentemente não religiosa. Talvez seja este o sentido da purificação da fé, da intensificação da culpa e da ausência da redenção. Esta que nem sequer viria com a engenhosa profanação, maneira de relação dos homens com os deuses, na qual restava, ainda, uma perspectiva de retomada daquilo que do mundo humano aos deuses foi consagrado. Se Deus se tornou dinheiro, conforme afirma Agamben, e se a hipótese da religião capitalista se sustenta, não somente ao dinheiro se credita a fé no futuro; sobretudo é ao dinheiro que a separação serve, é ao dinheiro que as coisas são separadas do uso humano; e porque

0 Deus da religião capitalista está ocultado - este teria sido o efeito da morte de Deus -, também a profanação perde o seu sentido e lugar no rito religioso, e isto se faz com a captura das formas de profanação. Daí, para Agamben, ser a tarefa política do tempo presente, profanar o Improfanável.


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WALTER BENJAMIN: LINGUAGEM E EXPERIÊNCIA HISTÓRICA ROBSON BRENO DOURADO DE ARAÚJO - Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) robson.araujo@aluno.uece.br

Resum o: Esse trabalho quer pensar como a crítica benjaminiana à linguagem burguesa (bürgerlichen Ansicht der Sprache) aparece entrecortada pela mística judaica (mystische Sprachtheorie) e em que medida, nessa articulação, é possível afirmar a linguagem como afirmação histórica e negação prática das relações sociais reificadas. Portanto, tal análise colocase como pressuposto interpretativo de nossa investigação na proporção em que ela aponta para o problema da linguagem na experiência moderna.

Palavras-chave: Linguagem , H istória, N egação, E xperiência.


Algumas palavras à guisa de introdução

0 âmbito da filosofia da linguagem o problema que constitui o elemento crucial de toda a reflexão sobre as potências do dizer e aquilo que é subjacente a sua composição enquanto especificidade humana, na medida em que posicionada no cerne da comunicação, é a relação entre pensamento e linguagem, sobretudo quando dispostas nos domínios da teoria social onde nesses dois conceitos (pensamento e linguagem), no que diz respeito ã mediação, a fala se apresenta como veículo pressuposto e fator mediato do primeiro. Qualquer tentativa de exteriorização quer seja de conteúdos meramente conceituais quer seja de experiências dadas na esfera do sensível, encontrarão seus entraves quando a linguagem for limitada e na limitação desta, por sua vez, todo pensamento é fragmentário na sua tentativa de exposição. Nesse sentido, a linguagem é somente a corporificação do pensamento que se condensa no dito enquanto coisa sensível-suprassensível\ Porém, a questão que se faz mais difícil e urgente, no que se refere ao teor expressivo que a linguagem assume em sua afinidade com o pensamento, é especificamente o de pensar esse mediato da comunicabilidade enquanto objeto unívoco da representação pelo sujeito (signo), uma vez que, nos passos dessa tradição, ambos os conceitos (pensamento e linguagem) são apontados como realidades fundamentalmente opostas justamente ali onde são designados como instâncias do “dentro” e do “fora”. Ora, seguindo as determinações desta hipótese, a forma discursiva do pensamento assume o caráter da singularidade do falante que é somente a extensão de uma dada experiência interior. Os limites da

' MARX, 1996, p. 147. [O diálogo aqui com a crítica da economia política de Marx é visitado objetivando expor a crítica às relações sociais burguesas, crítica essa que, embora em outro domínio, é central para Benjamin. Não se trata, portanto, de dar relevo a uma mera identidade teórica, ou de supor uma leitura que incorpore uma mescla conceituai, mas apontar que ali onde a linguagem é extensão de uma egoidade, essa extensão, por sua vez, tem a sua determinação muito precisa na história. Portanto, nossa leitura afasta-se de uma interpretação genealógica e cartográfica que introduz um “corte epistemológico” entre um Benjamin de juventude prolixamente metafísico e teológico e um Benjamin materialista histórico pós anos 20 leitor de História e Consciência de Classe. Ao contrário, apontamos a centralidade critica da história e da crítica histórica nos escritos dejuventude; como bem aporta em 1914 emA vida dos Estudantes: “vamos considerar a história à luz de uma situação determinada que a resuma em um ponto focal.” BENJAMIN, W, 1971, p. 37. ]


expressividade do sujeito, portanto, se dão na tentativa de fazer do discurso a condução desta mesma subjetividade que se afirma na fala, ou seja, a exteriorização do sujeito falante é precisamente uma falsa exteriorização, na proporção em que esse falante regressa a si mesmo^ no escopo de dizer esse Si que retorna sempre nessa repetição mítica onde a expressão é uma mera mesmidade lingüística. Nessa ordem, propomo-nos a expor a crítica de Walter Benjamin acerca da linguagem enquanto expressão abstrata do signo. Para tanto, buscamos indicar, como chave interpretativa, o uso por Benjamin da mística judaica no que concerne ã teoria da linguagem, enquanto crítica da alienação desta, para suspender uma categoria lingüística própria do homem - o nomear - e submetê-la ao desvio que se efetiva como negação da “tagarelice” na esfera da mera comunicação. Nessa ordem, tomamos como ponto de orientação de nossa discussão um duplo esforço: 1- traçar a dinâmica geral de como a concepção de linguagem benjaminiana aparece concatenada ã teoria lingüística do judaísmo e 2- mostrar como o recurso a esta teoria aparece ressignificado pela via da crítica ã concepção burguesa da linguagem (bürgerlichen Ansicht der Sprache).

Linguagem: hic hodus hic salta da história

É como apropriação da teoria lingüística da cabala no judaísmo que Benjamin traz ã tona um conceito - o nomear -quQ no terreno de sua crítica ã teoria burguesa da linguagem, assume a forma da negatividade e contradição em si mesmo. “Linguagem, a mãe da razão e da revelação seu alfa e seu ômega”.^ Essa citação de J.G. Hamann por Benjamin no ensaio Sobre a linguagem em geral e a linguagem do homem de 1916 demarca o contexto teológico que se apresenta como background no pensamento do autor e que aqui tomaremos como ponto de partida para a exposição de nossa hipótese.

^ A expressão de Santo Agostinho “o homem recai sobre si mesmo, como em centro próprio” expõe estilisticamente aquilo que nos propomos a discorrer acerca da linguagem reificada. 7 r á .X II,ll,1 6 . ^ Ibidem. p. 59.


No contexto da teoria judaica da linguagem a categoria do Nome aparece, enquanto “substância mesma do venerável” \ como a verdade de Deus que se faz sensível. Essa verdade enquanto Revelação divina é fundamentalmente situada num processo acústico dado imediatamente no ato da criação com a sua essência - a linguagem, já que a “palavra é a verdade desde o princípio”.^ A Revelação enquanto linguagem e a linguagem enquanto Revelação é o alicerce ontológico que resulta na essência lingüística humana como desdobramento do Nome de Deus. Convém notar que, em concordância com ojudaísmo, Benjamin assinala uma concepção da linguagem vista como unidade inerente a tudo, uma vez que as noções de Criação, conforme essa tradição, e Revelação pela linguagem vinculam-se na imanência das coisas dadas nesse processo. Nesta ordem, o ponto focal a ser destacado, no que propriamente se refere a essa relação espiritual entre o elemento sensível da criação e a experiência humana da linguagem, é o pressuposto “essencial” da Criação que permite ã essência humana e das coisas serem lingüísticas. Ora, tendo sido criadas todas as coisas pela palavra de Deus, é, portanto, da constituição das criaturas, ou melhor, é da ordem de suas essências a Palavra criadora; a matéria, portanto, se conserva no produto. Sem dúvida, a ideia segundo a qual o Nome guarda estreita identidade com a essência, marca o núcleo da imbricação do pensamento benjaminiano pelo judaísmo. No livro da Cabala mística Sefer letzirá, ou “o livro da Criação”, as letras da Árvore Sefirótica, ou Árvore da Vida, delimitam a configuração da atuação de Deus como processo lingüístico. As 22 letras encerradas nas dez Seflrot, enquadram a exteriorização da energia divina nos domínios da emanação, dito com rigor mais justo: de sua manifestação. Para os cabalistas, esse processo de vir-a-ser é representado pelo símbolo da luz, sua propagação e refração, o que significa dizer que a atividade divina é puramente movimento lingüístico, ou simplesmente, nos termos demasiado místicos da Cabala, assinatura^’ de Deus. No texto 0 nome de Deus e a teoria da linguagem

cabalística, Scholem expõe uma interpretação do Sefer letzirá que nos permite divisar

^SCHOLEM,1988, p. 73. ^ “Dein Wort ist nichts ais Wahrheit, alie Ordnungen deiner Gerechtigkeit wáhren ewiglich.” Psalm 119:160. DieBibel nach Martin Luthers Übersetzung, 1985, p. 614. [A Bíblia de Lutero, tradução nossa.] ®“A palavra hebraica ot não significa apenas letra, mas também, num sentido mais restrito, [...] assinatura.” Ibidem, p. 71.


0 caráter lingüístico da manifestação divina e, portanto, enxergar aquela definição da categoria do Nome como a totalidade da essência das coisas.

O início de todas as manifestações da Divindade oculta, do Ein-sof, ou do Infinito, pode ser descrito, de acordo com sua tese [de Isaac, o Cego], em estágios, pelos quais o pensamento (de Deus) vai passando em seu avanço progressivo em direção à “Fonte do Discurso” e a partir daí em direção às palavras ou logoi de Deus. [Esses logoi são a] Sofia [que] de acordo com a terminologia de Isaac, [consiste no] “início do discurso” e o ponto de origem da linguagem de Deus.^

As letras enquanto predomínios formais do ato divino remetem exatamente ao movimento lingüístico no contínuo da Criação e a introdução, nesse percurso, da palavra de Deus nas coisas criadas, e também na linguagem humana. Nessa perspectiva, há uma reflexão da linguagem divina, ela é em si mesma a coexistência paradoxal do finito com 0 infinito, e é precisamente em sua forma terrena (criaturas) que a linguagem de Deus adquire corpo e alma. Vale ressaltar que a criação das coisas pela palavra já é em si mesmo fenômeno estético, na medida em que constitui um dado acústico, portanto sensível, da realidade divina, e, que nos possibilita afirmar que sua corporificação não se constitui em uma substancialização no real, mas especificamente um desdobramento de uma realidade já existente. O Nome de Deus revelado a Moisés na sarça ardente*, o Tetragrama IHW H, consiste, aos olhos da tradição judaica, na raiz de todos os outros nomes, arquinome e gene do processo cosmogônico. A forte influência do pensamento neoplatônico na mística judaica - dos séculos II e III para a qual o Livro da Criação tem magistral importância^ -aponta para o processo de manifestação divina e, portanto, para as categorias hipostasiadas de uma substância originária, mais especificamente no que

’ Ibidem. p. 31 * “Quando o Senhor, porém, o viu chegando para olhar, chamou-o Deus do meio da sarça e falou: “Moisés, Moisés! ” Ele respondeu: “Aqui estou”. [Ais aber der Herr sah, dass er hinging, um zu sehen, rief Gott ihn aus dem Busch und sprach: Mose, Mose! Er antwortete: Hier bin ich.” 2Mose 3:4. DieBibel nach Martin Luthers Übersetzung, 1985, p. 62. (A Bíblia de Lutero, tradução nossa.)] ®SCHOLEM,2001,p.20.


se refere ao reencontro do Nome de Deus na linguagem do homem. Por conseguinte, a linguagem humana, na sua constituição elementar, conserva em si o caráter sagrado de sua originalidade na medida em que na sua estrutura mantém o eco do pneuma divino. É através do pneuma, ou sopro divino, que Deus incorpora sua linguagem ao homem. A constatação fundamental da reflexão benjaminiana sobre a linguagem parte precisamente dessa concepção judaica da totalidade lingüística das coisas, o que eqüivale dizer que tudo possui linguagem. No ensaio de 1916 supracitado, Benjamin introduz o elemento central de sua análise sobre a essência lingüística do homem e de seu carácter nomeador. A expressão que em alemão designa o que na tradução para

0 português optou-se por “comunicação” é Mitteilung^\ ou seja, Benjamin foge ã significação que a palavra Kommunikation alude, não sendo, deste modo, arbitrário o uso da expressão Mitteilung. Esta que é formada pela preposição m it (com) e o verbo

teilen (partir, dividir), ou seja, partilhar com, participar, expõe justamente a noção sobre a qual a linguagem se desdobra. A não utilização do termo Kommunikation aponta exatamente o equívoco que Benjamin pretende evitar ao dizer que a linguagem é 0 princípio que se volta para a comunicação“ , ou seja, a comunicação não se resume ã esfera da mera exteriorização do dizer, antes ela é uma potência participativa do todo. Nesse sentido, conforme o ensaio, todas as coisas participam da linguagem, e, nessa perspectiva, é da qualidade de suas essências a comunicação, pois “é essencial a tudo comunicar seu conteúdo espiritual”.!^ No que diz respeito, portanto, ã linguagem humana, toda tentativa de sua manifestação se encontra recaída sobre si. É exatamente porque a linguagem não pode ser suspendida ou escandida de si mesma para uma autoanálise que, qualquer pergunta que se volte para a linguagem é um gesto que se dá dentro de sua própria extensão. Toda manifestação da vida espiritual humana é concebida como um modo no todo da linguagem. No entanto, vale ressaltar que a necessidade de comunicação inerente às coisas, ou comunicação de seus conteúdos espirituais (gestiger Inhalt), foge a qualquer noção pragmática e utilitarista frente á linguagem, pois na linguagem não há conteúdo separado de sua forma; a linguagem não se restringe a uma mediação comunicativa. Esta noção mediativa que perpassa a

BENJAMIN, 1991, p. 140 " Ibidem. p. 49-50. Ibidem. p. 51.


teoria da linguagem é o que Benjamin aponta como concepção burguesa da linguagem. Noquesereferepropriamenteàslinhasgeraisdalinguagem,atesedeterminante que delimita a composição teórica de Benjamin se funda na concepção de que toda a linguagem comunica a si mesma.“ Nessa perspectiva faz-se necessário aclarar dois conceitos que estão às voltas e são recorrentes nas suas indagações sobre a linguagem, a saber: essência espiritual (geistiges W esen)t essência lingüística (sprachliches Wesen). Podemos apanhar esses dois conceitos como unidade paradoxal da linguagem, o que significa dizer que o dito e o dizer estão respectivamente identificados em ambas as formas. Ora, sendo a essência lingüística a instância modal da linguagem, ou seja, a própria língua, e, por outro lado, a essência espiritual o fator que se expressa no dizer enquanto objetividade mesma da linguagem, conclui-se, pois, que no dito está o modo de dizer, ou seja, na fala do homem; concentra-se uma ambigüidade intrínseca à sua forma, uma vez que nela ele mesmo está insinuado e nela também seu “querer dizer” é apresentado. É nesse terreno que se concentra o esforço crítico benjaminiano de apontar negativamente a expressão como imediatidade, já que toda possibilidade de mediação incide na esfera da significação e, portanto, na linguagem burguesa. Benjamin, ao indicar o paradoxo da linguagem, reporta-se ã palavra grega logos^\ que no pensamento antigo remonta exatamente ã totalidade do real enquanto dimensão participativa

(méthexis) do ser no conceito, e que, no nosso autor, remete justamente ã fala paradoxal que imbrica em si mesma a materialidade e a idealidade que encontra seu lugar no homem, isto é, ao falar o homem participa (mitteilen). Nesta ordem, a essência lingüística do homem, enquanto instância modal da linguagem é sua própria língua, e por outro lado, sua essência espiritual constitui aquilo mesmo que decorre, na tradição judaica, do elemento primordial da criação: o nome. Benjamin ao fazer uso da narrativa do livro bíblico do Gênese esboça precisamente a

'^BENJAMIN, 2011, p. 53. “É interessante notar que Heródoto, quando se refere às várias partes da sua obra, não usa a palavra história, mas sim a palavra logos (discurso) para identificá-las; não fala da “história” dos Seitas, do Egito ou de Darius, mas sim do logos Seita, do logos egípcio ou do logos a respeito de Darius etc”. GAGNEBIN, 1999, p. 36. [Essa colocação de J.M. Gagnebin demarca exatamente a concepção de nossa hipótese: a de que, no pensamento benjaminiano, na sua analise sobre a linguagem, o ato do dizer comporta em si uma esfera historicamente determinada.]


razão pela qual o nomear aparece como imagem da linguagem de Deus. Segundo a narração, Deus criou todas as coisas no Verbo, ou seja, pela palavra criadora o ritmo da criação foi realizado; como bem salienta Santo Agostinho nas suas Confissões: “para Vós não há diferença nenhuma entre o dizer e o criar”. Contudo, a concepção do homem não foi dada nessa mesma seqüência criadora: “Haja, Ele criou, Ele chamou” “ como é também do corte interpretativo da tradição judaica cabalistica, a vida do homem foilhe conferida pelo sopro, “Deus insuflou no homem o s o p r o e nesse ato o pneuma divino 0 incorporou, o que em outras palavras significa dizer que a linguagem, que é

0 pneuma divino, foi-lhe dada diretamente por Deus e, por conseguinte, nesta ordem, que a palavra criadora, enquanto Verbo divino, é doada ao homem constituindo-lhe vida e, portanto, história, “pois é a partir da história [...] que pode ser determinado, em última instância, o domínio da vida”.i* Vale expor que o recurso ao livro do Gênese não tem em si a tentativa de apontar uma reconstrução histórica do homem, mas como aponta J.M. Gagnebin:

antes visa lembrar outra compreensão da linguagem humana, compreensão quase esquecida até mesmo repelida pela hipótese da arbitrariedade do signo e da comunicação como função primordial da linguagem. A importância do texto do Gênese vem do fato de que ele nos faz recordar a uma função da linguagem humana, função essencial, a de nomear, que não se pode explicar nem em termos de comunicação nem em termos de arbitrariedade.^®

O encadeamento dos termos lembrar, esquecer e recordar, na citação acima definem com exatidão o caráter de “reencontro” que o nome na linguagem humana assume nos domínios do pensamento de Benjamin e no judaísmo. O conceito de

Eingedenken (rememoração) não pretende apontar, no que diz respeito ã linguagem do

Conf. XI, 7,9. '«BENMIN,2011,p.61. "BEN JA M IN , 2011, p. 60. Ibidem, p. 117. GAGNEBIN, 1999, p. 194.


homem pós queda do paraíso, uma restitutio imediata com o passado na sua inteireza, mas; redimi-lo enquanto abertura histórica no presente. No nomear “não há nem meio, nem objeto, nem destinatário da comunicação. [...] 0 nome é aquilo através do qual nada mais se comunica”.2“Tal afirmação incorpora a apreensão de uma negatividade imanente ao ato da nomeação direcionada ã mera reprodução do sentido. A apropriação do conceito do nomear assume precisamente

0 centro da crítica benjaminiana ã linguagem burguesa da mera reprodução do signo enquanto fantasmagoria do espírito. O paradoxo encontra no homem seu lugar como negação da mera comunicação, ou melhor, o nomear como comunicação que não comunica. O carácter não mediativo e não significante do Nome Benjamin aponta na sua resolução do paradoxo de Russell. O paradoxo que gira em torno das “propriedades da impredicabilidade” sustenta que: um juízo impredicável não pode derivar de si mesmo. O impredicável é predicável ou impredicável. Se tomarmos a primeira alternativa, a de que 0 impredicável é predicável, segundo o paradoxo, para ser verdadeira a proposição,

0 predicado deveria derivar de si mesma, mas ao tornar predicável o impredicável logo teríamos um impredicável que é impredicável, segundo a lógica. Se tomarmos a segunda forma, a de que o impredicável é impredicável, a proposição automaticamente já se anula. Benjamin soluciona o paradoxo ao determinar o impredicável como um Nome e não uma propriedade atribuível, isto é, não se tratam de termos que permeiem a veracidade ou a falsidade do juízo, ao contrário, o Nome nada significa, ele está aí como “apropriação” e como autodesignação: “A essencial logicidade de um juízo não surge sob a forma ‘é verdadeiro que...’, mas, ao contrário, vem á tona no juízo de nomeação ‘S é P denomina que S é P’4 ”.^^ É nesse sentido que o conhecimento do bem e do mal para o qual a serpente do Jardim do Éden seduziu, a que Benjamin faz referência no texto de 1916, como diz: não tem nome. Nesse conhecimento, o nome sai de si mesmo: o pecado original é

Ibidem, p. 56. B E N JA M IN ,W .1991,p.ll.


a hora de nascimento da palavra humana, aquela em que o nome não vivia mais intacto, aquela palavra que abandonou a lingua que nomeia, a lingua que conhece, pode-se dizer: abandonou sua própria magia imanente para reivindicar expressamente seu caráter mágico, de certo modo a partir do exterior. [Ela é, portanto] paródia da palavra imediata, da palavra criadora de Deus, [uma vez que] o conhecimento do bem e do mal é uma “tagarelice”.^^

Com efeito, o que Benjamin está a nos mostrar é que o momento da queda é, sobretudo, queda da linguagem e que está manifestamente ligada ao nascimento mítico do Direito2^ uma vez que, a palavra vã é palavra que julga; a ordem judicante é, pois, a banalidade, sobre a qual a linguagem incidiu, ela é em última análise, a instância da instauração do poder. Se entendermos que na reflexão benjaminiana o terreno em que se edificam as estruturas do Direito remetem absolutamente à designação ambígua do termo Gewalt (violência-poder), entendemos que no que diz respeito ao Direito; a

Gewalt assume a forma potestas, ao poder como violência, essa mesma que, afinal, se efetiva na forma Estado, uma vez que a “instauração do direito é instauração de poder e, enquanto tal, um ato de manifestação imediata da violência”^^, determinação esta que aprisiona a vida em sua totalidade. A estrutura da linguagem da sociedade burguesa, derivada do pecado original enquanto suspensão do signo e que de fora se autonomiza na mediação do sentido, é situada fundamentalmente na ordem do Direito. O nome que sai de si é, portanto, a instrumentalização mediativa do sentido que imediatiza a abstração, e por sua vez, é palco da instrumentalização representativa da soberania na lei positiva, que noutras palavras significa apontar uma babelização da linguagem e sua susceptibilização às artimanhas ideológicas do poder. A forma abstrata da comunicação é subsunção da imediatidade concreta da linguagem (expressão da verdade no Nome). A negatividade imanente ao nomear é intrínseca ao caráter apropriativo da designação que se apresenta como apropriação histórica da vida enquanto recusa da esfera da mera circulação do

Ibidem. p. 67. “ Ibidem. p. 69. Ibidem, p. 149.


sentido; ela é, portanto, negação que se faz da ordem reificada, que manifestamente é espelho da experiência cotidiana moderna e, nessa perspectiva mantém uma relação negativa com o presente, em outras palavras, o Nome, é a remissão da verdade na linguagem.

Considerações finais

A objetividade histórica e, portanto, ressignificativa, que se inscreve no Nome como renúncia à lógica do uso da linguagem submetido à produção e distribuição do sentido, ou seja, ã troca, tem como medula a libertação da linguagem da servidão da paródia da palavra e expõe a nu sua verdade como esfera negadora da gestação do poder pela e na palavra. É neste horizonte que, no prefácio ao Trauerspiel, Benjamin assinala que “o drama barroco é ideia”^^ exatamente para apontar que os períodos de decadência, na qual se assenta o Barroco alemão, possuem o seu espelhamento na linguagem, a fragmentação histórico-cultural sobre a qual se ancora é determinante para o uso histórico da linguagem enquanto denúncia das contradições reais. A imediatidade do abstrato que configura a linguagem profana expressa, pois, uma inversão da ordem real das coisas, e, portanto, da linguagem reprimida no estatuto mítico da circulação, como aponta Mallarmé^^ como mera moeda de troca. O nomear é notadamente negação das determinações fantasmagóricas da forma reificada da linguagem, isto é, resgata em sua inteireza a insubmissão das palavras da tradição ínsurrecionaF que levou na bagagem de sua crítica a experiência da liberdade aliada às forças revolucionárias do proletariado na tentativa de aniquilar o poder do Estado^*. Ali onde a linguagem seja experiência humana como mediação abstrata da abstração, e, portanto, onde se veicula a palavra judicante, ela se reduzirá à prosa vulgar da mera informação e estabelecerá seu lugar na produção do mero sentido.

BENJAMIN, 1984, p. 60. “ MALLARMÉ,2013,p.5. BENJAMIN, 1996, p. 31. ^«BENJAMIN, 2011, p. 142.


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