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g ru p o d e e s tu d t
SCHOPENHAUeR NI6TZ5CH6
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issn 2238-527A ano 4 . n° 8 . dezembro de 2015
KIMSI \
ín d i c e
LAM
Artig o s 1 A METAFÍSICA DA VONTADE EM SCHOPENHAUER ISAAC D E S O U Z A N ASC IM EN T O
Revista Lampejo ISSN 2238-5274
1 6 A FILOSOFIA PRECISA DE UM LUGAR? - A DECADÊNCIA POLÍTICA DA CIDADE E 0 NASCIMENTD DE UMA FORMA RADICAL DE PENSAMENTD W E L L IN G T O N AMÂNCIO DA SILVA E JO S É L O N D E DA SILVA
2 9 OS SENTIDOS E CONSEQÜÊNCIAS DO DARWINISMO NAS OBRAS DE NIE17SCHE: SELEÇÃO NATURAL E PODER COMO FUNDAMENTOS À VIDA
EDITORES
J É F E R S O N L. A Z E R E D O
DAVID B ARR O SO (S EC R ET Á R IO ), GUSTAVO COSTA, RUY D E C A R V A LH O , THIAGO M O TA, GUSTAVO AUG USTO (C O O R D EN A D O R ), WILLIAM M EN D ES
5 1 ENTRE AS LACUNAS DO PASSADO E DO FUTURO; EM BUSCA DA RECONCILIAÇÃO
(C O O R D EN A D O R )
A N D E R S O N SILVA R O DR IG U ES E JO S É JO Ã O N E V E S B A R B O S A V IC EN T E
CONSELHO EDITORIAL P R O F . DR. D A N IE L SANTOS DA S ILV A , P R O F . DR.
6 0 A SABEDORIA DO DESESPERO OU COMO CONSTRUIR A FELICIDADE SEGUNDO COMTE-
ERNAN I C H A V ES, P R O F . DR IVAN MAIA D E M E L L O ,
SPONVILLE
P R O F . DR. JAIR B A R B O ZA , P R O F . DR. JO SÉ MARIA
A N D R É COSTA SAN T O S
AR R U D A , P R O F . DR. LU IZ F E L IP E S A H D , P R O F . DR. L U IZ O R U \ N D I, P R O F . DR. M IG U EL A. DE B A R R E N EC H EA , P O R F . DR. O LÍM PIO PIM EN TA ,
71
0 PERSPECTIVISMO NIET7SCHIAN0 NA INTERPRETAÇÃO DE LEO STRAUSS ELV IS DE O L IV E IR A M E N D E S
P R O F . DR. P E T E R P Á L P E L B A R T , P R O F . D R ., R O B ER T O M A C HAD O , P R O F . DRA. ROSA MARIA DIAS
8 2 0 SUJEITO ENQUANTO CONSCIÊNCIA REALIZADORA NA FILOSOFIA DE SARTRE DA M A R ES
COMISSÃO EDITORIAL ÁTIU\ M O N T EIR O , D A N IE L C A R V A LH O , DAVID B AR R O S O , FA B IEN LINS , GUSTAVO COSTA,
9 4 NIETZSCHE; 0 VALOR DA AUTONOMIA EDUCACIONAL EM SCHOPENHAUER EDUCADOR C ARLO S CÉSAR M AC ED O MAC IEL
GUSTAVO F ER R EIR A , H EN R IQ U E A Z E V E D O , LU AN A D IO G O , MARILIA B E Z E R R A , P A U LO M A R C ELO , R OG ÉR IO M O REIRA , RUY D E C A R V A LH O , WILLIAM
112
M EN D ES
CRISTO E SHOPENHAUER: DO "AMAR 0 PRÓXIMO COMO A TI MESMO” À COMPAIXÃO COMO FUNDAMENTD DA MORAL MODERNA JÉSSICA L U IZ A S. P O N T E S Z A R A N Z A E W E L L IN G T O N Z A R A N Z A A R R U D A
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO P ED R O MOURA
En saio s 117
PARA ALÉM DOS SIMULACROS, OUTROS SIMULACROS, A VERTIGEM E 0 ASSOMBRO COM AS ETERNAS FICCIONES DE UM EU EXPANDIDO NA URDIDURA DO TEMPO L E O N A R D O O L IV E IR A MO REIRA
12 5
DOIS CAPÍTULOS INÉDITOS AI R TO N U CH OA N E T O
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A CATÁSTROFE DA PÓS-MODERNIDADE M ANUEL BEZER R A NETO
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0 ENSINO DA FILOSOFIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA: ENTRE 0 SENSO CRÍTICO E A FORMAÇÃO CIDADÃ GU S T A V O A U G U S TO DA SILVA F E R R E IR A
18 4
NADA TÃO IMPLACÁVEL QUANTO A SOLIDÃO P ED R O HEN RIQ UE MAGALHÃES QU EIR O Z
19 4
MAS, "SE EU S O U B ES S E.. . EU N E M . . . ” RU Y DE C A R V A L H O
KIAMA
LAMPEfS
A METAFÍSICA DA VONTADE EM SCHOPENHAUER ISAAC DE S O U ZA NASCIM EN TOi
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a concepção de Arthur Schopenhauer acerca da Metafísica da Vontade, que nos expressa, de forma significativa, às ideiaschave de sua filosofia. Analisaremos aqui, como o sujeito cognoscente constitui a condição universal de todo objeto e o papel preponderante do corpo na descoberta do aspecto essencial do mundo, identificado por Schopenhauer como sendo a Vontade, a essência íntima de cada fenômeno, a manifestar-se nos diversos reinos da natureza e da vida, através dos seus sucessivos graus de objetivações. Palavras-chave: Sujeito cognoscente. Corpo. Vontade. The metaphysics o fw ill in Schopenhauer Abstract: This article has the objective o f analyze the conception o f Arthur Schopenhauer about the Metaphysics ofW ill, which expresses, in a signative way, the main ideas o fh is philosophy. We analyze here, how the cognoscente subject constitutes the universal condition o f all objects and the important role o f the body in the discovery o f the essential aspect o fth e world, identified by Schopenhauer as the Will, the intimate essence ofeach phenomenon, mamfesting us various kingdoms ofnature and the life, through by its successive degrees o f objectivations. Keywords: Cognoscente subject. Body. Will.
1 Pós-graduado em Filosofia da Educaçao, pela Faculdade Católica Rainha do Sertáo (FCRS). E-mail: isaacisn@hotmail. com
A
Introdução filosofia de Arthur Schopenhauer (1788-1860)2 reahzou uma mudança
radical com relação ã tradição filosófica antecedente, pois ela colocou em segundo plano ã primazia da razão como sendo a legisladora e o princípio ordenador do mundo. Desde os gregos antigos, a filosofia expressou grande confiança no poder da razão, depositando na racionalidade cósmica uma ordem inteligente que rege e conduz as leis naturais do universo. No entanto, contrariando este posicionamento, a filosofia schopenhaueriana se desenvolveu na reflexão acerca do irracional, isto é, ela parte da ideia de que o princípio de onde todas as coisas emanam, a Vontade, a coisa-em-si do mundo, não possui nenhum fundamento ou razão. Para Schopenhauer, a Vontade é uma força cega e dinâmica, de onde surgem todos os reinos da natureza, desde os rudes e simples minerais até a mais perfeita de suas objetivações, o homem. Noutras palavras, a Vontade é entendida como um princípio metafísico, sem finalidade ou objetivo, uma força volitiva e insaciável, que se firma nas diversas camadas da natureza e da existência em geral. Neste artigo, analisaremos a concepção de Schopenhauer acerca da Metafísica da Vontade, partindo de algumas ideias fundamentais de sua filosofia, referentes ã teoria do conhecimento e ã distinção entre o mundo como representação e como coisa-em-si, para que dessa forma, possamos compreender ã maneira pela qual Schopenhauer concebeu a natureza como uma guerra perpétua e incessante pela existência, isto é, como um reflexo da autodiscordãncia essencial da Vontade no mundo.
1. O mundo como representação: o sujeito cognoscente como condição universal de todo objeto Schopenhauer parte da distinção elaborada por Immanuel Kant (1724 1804), que na obra Crítica da razão pura, considerou o mundo sob dois aspectos: como fenômeno e como coisa-em-si^. Porém, Schopenhauer operou uma 2 Para detalhes sobre a vida e a obra de Arthur Schopenhauer, conferir a obra Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, de Rüdiger Safranski. Tradução: W illiam Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011. 3 N a filosofia kantiana, o fenôm eno é justam ente aquilo que se constitui como limite e condição do nosso conhecimento. Para Kant, não podem os conhecer o m undo como coisa-em-si, isto é, como realidade essencial de todo fenôm eno, pois ele é inacessível ao entendim ento humano. Tal realidade, por assim dizer, escapa aos nossos sentidos, é incognoscível ã razão, porque tudo aquilo que conhecemos do mundo é som ente os fenôm enos e nao aquilo que cada coisa é em si mesma. Urbano Zilles nos explica que o nosso
mudança considerável no diz respeito ao segundo aspecto, pois ele identificou a coisa-em-si como sendo a Vontade. Segundo filósofo, o mundo no seu primeiro aspecto (fenomênico) é justamente aquele que é representado como forma de apreensão do sujeito cognoscente, ou seja, é o mundo ordenado e submetido ao princípio de razão^. Já o segundo aspecto, como coisa-em-si, o mundo não é somente um objeto para o sujeito que o representa, mas ele também possui um em-si, uma essência que se encontra fora do âmbito representativo. Schopenhauer concebeu o mundo enquanto representação somente como objeto em relação ao sujeito cognoscente, já que todo objeto "que pertence e pode pertencer ao mundo está inevitavelmente investido desse estarcondicionado pelo sujeito, existindo apenas para este"^. Assim, o mundo no seu aspecto representativo, no qual estão situados todos os objetos de nossa intuição, firma sua existência apenas com relação ao sujeito. É exatamente nesta perspectiva, que o sujeito cognoscente é considerado por Schopenhauer como sendo o sustentáculo do mundo e a condição universal e sempre pressuposta de todo objeto existente. Contudo, não devemos com isso pensar que Schopenhauer tem como pretensão fazer do objeto um efeito do sujeito, porém, tal posicionamento procura demonstrar que o mundo como representação possui duas metades indissociáveis e necessárias uma da outra, o sujeito e o objeto, e que estas estão ligadas diretamente ã noção de representação. O sujeito e o objeto são conceitos correlatos e inseparáveis, uma vez que, a existência de um pressupõe necessariamente a existência do outro. O sujeito não deve ser pensado sem a presença do objeto, da mesma forma, que o objeto não deve ser concebido sem que haja um sujeito para conhecê-lo. Eis por que, Schopenhauer nos afirma que o mundo enquanto representação se constitui dessas duas metades inseparáveis:
conhecimento, para Kant: "[...] está vinculado à percepção. Só vale de fenôm enos da experiência possível. Só o audível, o visível e o sensível podem ser interpretados pelo entendim ento de maneira espaciotem poral [...]. As concepções hum anas não conseguem referir-se a algo além dos fenôm enos singulares, que constitua sua essência". (ZILLES, 2005, p. 88). 4 "O princípio de razão é um a função do entendimento, baseada nas form as a fr io ri do conhecimento: o espaço, o tempo e a causalidade. Por meio destas conhecem os os objetos do m undo apenas em sua condição de fenôm eno, não como eles são em si". (BARBOZA, 2003, p. 23). 5 SCH OPEN HAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tradução: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005, p. 44.
[...] mesmo para o pensamento: cada um existe com a outra e desaparece com ela. Eles se limitam imediatamente: onde começa o objeto, termina o sujeito. A continuidade desse limite mostra-se precisamente no fato de suas formas essenciais e universal de todo objeto - tempo, espaço e causalidade -
também poderem ser encontradas e complemente
conhecidas partindo do sujeito, sem conhecimento do objeto, isto é, na linguagem de Kant, residem a priori em nossa consciência*’.
Assimilada essa correlação indispensável entre o sujeito e o objeto no campo da representação, é preciso compreendermos como este mesmo sujeito cognoscente apreende o mundo a sua volta, ou seja, o processo pelo qual se constrói o conhecimento humano. De acordo com Schopenhauer, a representação do mundo material, empírico, é tudo aquilo que aparece ao sujeito cognoscente como figura (imagem) para o entendimento. Porém, a noção de representação não revela nela mesma a sua essência, aquilo que ela é em si. É exatamente por esse motivo, que Schopenhauer concebe a realidade representativa do mundo como uma aparência, uma ilusão, véu de Maia da realidade exterior^. Isso não significa dizer, no entanto, que Schopenhauer nega a existência do mundo empírico, do qual estamos em contato através dos nossos sentidos e do nosso entendimento, mas que os objetos da realidade exterior não revelam neles mesmos o seu verdadeiro ser, aquilo que cada um é em sua essência. Desse modo, para que possamos ter a posse acabada dessa figura em nosso entendimento, faz-se necessário um processo intelectual para elaborá-la^. Tal processo tem como auxílio às formas universais de todo objeto (tempo. 6 Ibidem, p. 46. 7 "O essencial dessa visão é antigo: Heráclito lam entava nela o fluxo eterno das coisas; Platão desvalorizava seu objeto como aquilo que sem pre vem-a-ser, sem nunca ser; Espinosa o nomeou meros acidentes da substância única, existente e permanente; Kant contrapôs o assim conhecido, como mero fenômeno, à coisa-em-si, por fim, a sabedoria m ilenar dos indianos diz: "Trata-se de MAIA, o véu da ilusão, que envolve os olhos dos mortais, deixando-lhes ver um mundo do qual nao se pode falar que é nem nao é, pois assem elha-se ao sonho, ou ao reflexo do sol sobre areia tomado a distância pelo andarilho como água, ou ao pedaço de corda no chão que ele toma com o serpente'". (Ibidem, p. 49). 8 "T o d a intuição é intelectual. Sem a inteligência, não haveria intuição alguma, nenhum a percepção de objetos. Tudo se lim itaria ã sim ples impressão, poderia, no máxim o ser dolorosa ou agradável, ter um a influência sobre a vontade [...]. Para que exista intuição, ou seja, para que tomem os conhecimento de um objeto, é necessário, em primeiro lugar, que nossa inteligência relacione cada im pressão que nosso corpo recebe a um a causa, que ela transporte essa causa para um lugar do espaço de onde parte o efeito experimentado e que, assim, ela reconheça a causa como efetiva, como real, como um representaçao do mesmo tipo que nosso próprio corpo". (Ibidem, p.l48).
espaço e causalidade), que são como uma "espécie de 'óculos intelectuais' para se conhecer as coisas, vê-las tais quais aparecem, ou seja, de um exato jeito e não de outro, situadas num dado espaço, num dado tempo, envolvidas pela causalidade"^. Assim, o entendimento por intermédio dos dados fornecidos pelos nossos sentidos:
[...] intuí os objetos, como que fabrica em sua função de artesão do mundo externo, ao considerar os dados sensórios como um efeito, daí localizar sua causa e situá-la no espaço como uma figura, um objeto empíricoio.
O entendimento por si mesmo não seria capaz de transmitir ao sujeito cognoscente a imagem acabada dos diversos objetos da realidade exterior do mundo, as representações intuitivas que abrangem todo o mundo visível. Consequentemente, o entendimento jamais seria usado se não houvesse algo mais de onde ele partisse. Esse algo a mais é, para Schopenhauer, as sensações provocadas pelos nossos sentidos, ou seja, a consciência imediata das mudanças do nosso corpo. É por intermédio do corpo que o processo cognitivo se complementa e, com isso, obtemos o conhecimento objetivo do mundo, uma vez que, o ato do entendimento se dá precisamente quando este recebe os estímulos provocados pelo corpo, apenas quando o corpo sofre alguma causa vinda de fora (exterior) é que o entendimento é acionado. Na visão de Schopenhauer, o corpo é:
[...] aquela representação que constitui para o sujeito o ponto de partida do conhecimento, na medida em que ela mesma, com suas mudanças conhecidas imediatamente, precede o uso da causalidade e assim fornece a este os primeiros dados^.
9 BARBOZA, Jair. Schopenhauer: a ckcifração do enigma do mundo. Sao Paulo: Moderna, 1997, p. 30. 10 Idem, 2003, p. 8. 11 SCH OPEN HAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tradução: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005, p. 62-63.
O mundo como representação se dá de forma clara aos sentidos do nosso corpo e ao nosso entendimento, e assim, o sujeito cognoscente "produz, como um reflexo seu, o mundo das representações, incluindo aí a representação de si mesmo, mas visto de dentro ele é uma realidade absoluta"!^. Entretanto, o mundo no seu aspecto representativo não esgota todo seu ser, como se este fosse a sua única realidade. Pelo contiário, este é somente o seu lado exterior, já que para Schopenhauer, existe outio aspecto completamente distinto deste, ou seja, o mundo como Vontade, essência íntima de todo fenômeno.
2. O duplo conhecimento do corpo e o procedimento analógico No que diz respeito ao âmbito das representações, o corpo é como os demais objetos do mundo, uma vez que Schopenhauer considera todo tipo de objeto existente, até mesmo o próprio corpo, apenas como representação. No entanto, é por intermédio do corpo que o homem se faz presente no mundo, percebe a si mesmo como um ser material. Por isso, o corpo tem uma importante função tanto no processo cognitivo do mundo enquanto representação, como na descoberta do seu aspecto essencial, isto é, do mundo como Vontade. Na filosofia schopenhaueriana, o corpo é dado de duas maneiras distintas uma da outra: de um lado, como sendo um objeto entie os outios objetos; e de outro, como aquilo que cada um conhece imediatamente como vontade. Ora, o corpo é para cada um de nós a coisa mais real que existe, pois além de percebermos a nós mesmos como objeto, um ser material, um fenômeno em meio ao outros, nós nos percebemos (atiavés da experiência interior) como um ser de desejos, de paixões, impulsionado por diversos motivos, que age, que se move. Em outios termos, temos conhecimento da nossa vontade, e tal conhecimento está inteiramente ligado ao conhecimento do nosso próprio corpo e, assim, "na medida em que conheço minha vontade propriamente dita como objeto, conheço-a como corpo"^^. É na experiência interior do corpo que o homem vivência o que o mundo é para além do âmbito representativo, mas não o corpo visto de fora, como um
12 SIM M EL, Georg. Schopenhauer e Nietzsche. Traduçao: César Benjamim. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011, p. 37. 13 SCH OPEN HAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Traduçao: Jair Barboza. Sao Paulo: UNESP, 2005, p. 159.
objeto situado no tempo e no espaço, mas enquanto objetividade da vontade^^. Portanto, é através da experiência interior que o homem tem acesso à realidade essencial do mundo, diferentemente do seu aspecto representativo, como nos esclarece Rüdiger Safranski:
E este ponto se encontra dentro de mim mesmo: quando vejo meu corpo, quando observo suas ações e as explico para mim mesmo, todo o percebido e todo o conhecido ainda são apenas representações; mas aqui, em meu próprio corpo, eu percebo ao mesmo tempo os impulsos, os desejos, a dor e o prazer, tudo aquilo que se apresenta de forma simultânea com as ações de meu corpo, minhas representações e as representações dos demais. Somente dentro de mim mesmo eu sou semelhante àquilo que se mostra a mim (e aos outros) por meio da representação e que, durante esse processo, se presta à reflexão. Somente dentro de mim mesmo existe simultaneamente este duplo mundo, com duas partes semelhantes, uma anterior e outro posterior. Somente em mim mesmo posso vivenciar o mundo tal qual ele é, exteriormente àquilo que me é dado como representação. O mundo "de fora" tem em mim um lado "de dentro" representado somente em meu próprio interior; e apenas quando estou dentro de mim mesmo é que eu mesmo sou este interior. Eu sou a parte interior do mundo. Eu sou o que o mundo é, salvo enquanto o mundo é apenas representação^^.
O homem não alcança o conhecimento da essência do mundo seguindo a via da causalidade e, consequentemente, pelo auxílio do princípio de razão. Mas é através do seu próprio corpo que ele descobre que não é apenas uma representação, mas ele também é vontade, pois, para Schopenhauer: "não se pode alcançá-lo a partir da representação, seguindo o fio condutor das leis que meramente ligam objetos, representações entre si, que são as figuras do princípio de razão"i*^. Tal conhecimento também não é obtido por meio de uma 14 "E sse conceito significa o corpo tomado com o matriz da vontade, a qual é sentida na consciência como o núcleo mais íntimo de cada um ". (BARBOZA, 1997, p. 46). Como Também: "ind ica o corpo humano como um cruzam ento privilegiado entre subjetividade e objetividade, a partir do qual se tem acesso ao interior das objetividades, ou seja, dos outros corpos". (Ibidem, p. 46). 15 SAFRAN SKI, Rüdiger. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia. Traduçao: W illiam Lagos. Sao Paulo: Geraçao Editorial, 2011, p. 366-367. 16 SCH OPEN HAUER, Arthur. O mundo como vontade e como reyresentação. Tradução: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005, p. 155.
intuição intelectual ou pela razão humana. Neste caso, o homem, enquanto sujeito cognoscente, não transpõe o conhecimento das meras representações, dos fenômenos exteriores do mundo, pois aquilo que se encontra diante dele como fenômeno, objeto, se mostra apenas pela "ordem relativa de seu aparecimento no espaço e no tempo, sem nos permitir conhecer mais concretamente aquilo que aparece"i^. Dessa maneira, é somente pela experiência interior percebida no próprio corpo que o homem alcança o conhecimento daquilo que o mundo é em-si. Com isso, se conclui "que DE FORA jamais se chega à essência das coisas. Por mais que se investigue, obtêm-se tão-somente imagens e nomes"i^. Assim, o corpo não é apenas a condição, a base do conhecimento intuitivo do mundo, mas também é o ponto privilegiado onde a realidade essencial do mundo como Vontade, torna-se acessível ao homem. O duplo conhecimento que o corpo proporciona nos fornece uma chave que nos leva ã essência íntima de todos os fenômenos da natureza, revelando ao homem que o mundo não se restringe apenas ao campo representativo, mas que para além de cada fenômeno, objeto do mundo, desde os mais simples minerais até as mais complexas e organizadas estruturas da natureza e da vida, há um Ser que se encontra fora do tempo e do espaço (assim como de toda causalidade), de onde todos os fenômenos existentes, inclusive o próprio homem, se originam. Este Ser é aquilo que Schopenhauer designou como sendo a Vontade. Segundo Schopenhauer, não é apenas no corpo humano que existe esta dupla dimensão (representação e Vontade), mas em cada fenômeno particular do mundo. Schopenhauer chega a esta conclusão pelo auxílio do procedimento analógico, do qual nos declara que além do nosso próprio corpo, os demais seres e objetos do mundo também possuem esta dupla dimensão. Logo, todos os objetos que não são dados de modo duplo, mas somente como representações, serão vistos em analogia com o nosso próprio corpo, já que para Schopenhauer:
Somente através da comparação como o que sucede dentro de mim quando executo uma ação e do modo como esta se produz a partir de um motivo, posso entender também, em função de uma analogia, como
17 Ibidem, p. 155. 18 Ibidem, p. 156.
também os corpos inanimados {todten Kòrper) se modificam a partir de causas inicias e qual seja sua essência interior [...]. Posso entender isso porque em mim mesmo, isto é, porque meu corpo animado, é a única coisa de que conheço a dimensão interior, esse "segundo lado" {zwiete Seite) a que denominei Vontade^^.
Mostra-se, na filosofia de Schopenhauer, que não é seguindo o fio condutor da causalidade (que se revela exclusivamente objetiva), que alcançamos o conhecimento essencial dos fenômenos do mundo, pois, se caso seguíssemos por este caminho, apenas defrontaríamos com outros fenômenos (representações), sem com isso transpormos as meras relações de causa e efeito, já determinadas pelo princípio de razão. Porém, é pela via corpórea-subjetiva^^ que o homem pode alcançar o nticleo dos fenômenos em geral, ou seja, a realidade em-si dos objetos empíricos do mundo:
Ora, se os outros corpos não diferem do nosso, já que também obedecem à causalidade, são aparências submetidas à mesma lei, podem, por analogia, ser "observados" de dentro; é como se todos os homens tivessem a capacidade de penetrar secretamente, por traição, uma fortaleza proibida. Ou seja, o homem pode observar, em seu corpo, o íntimo da causalidade, a vontade e, em seguida, por analogia, concluir que ela é o núcleo de qualquer outra causalidade, isto é, de qualquer outro corpo, aparência, fenômeno2i.
Para Schopenhauer, é pela intermediação do corpo que o homem tem consciência de que ele é vontade, um querer essencial, um em-si} e esta consciência percebida interiormente leva-o a reconhecer também (pelo procedimento analógico) que ele não é o único ser no mundo onde reside esta
19 SCH OPEN HAUER, Arthur, apud: SAN FRASKI, Rüdiger. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia. Tradução: W illiam Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011, p. 376. 20 "[...] a via corpóreo-subjetiva, pensa Schopenhauer, é que nos conduzirá ao núcleo dos outros corpos em geral, os quais, sem elhantes ao nosso, podem também ter por núcleo aquilo que aparece na autoconsciência de cada um com o vontade, que é sentida com o o mais íntimo do corpo e se m anifesta nas exteriorizações de nossas ações quando m exem os os braços, as pernas, os olhos, a cabeça etc." (BARBOZA, 1997, p. 46). 21 Ibídem, p. 48.
dupla dimensão, porém, todo e qualquer fenômeno deste mundo comporta em si esta dupla acepção. O mundo antes visto somente pelo prisma da representação passa agora a ser considerado também como Vontade. É justamente neste segundo aspecto do mundo, que Schopenhauer desenvolve sua concepção filosófica sobre a Metafísica da Vontade.
3. A Vontade como essência íntima de cada fenômeno do mundo É no segundo livro de O mundo como vontade e como representação, que Schopenhauer desenvolve a sua Metafísica da Vontade, onde nos apresenta suas ideias com relação ao mundo para além do aspecto representativo, não mais visto como uma mera aparência, um objeto para o sujeito cognoscente, mas o mundo entendido enquanto Vontade, no seu aspecto mais íntimo, de onde todos os fenômenos existentes emanam. Mas, o que constitui exatamente essa Vontade na filosofia de Schopenhauer? A Vontade concebida por Schopenhauer não deve ser compreendida como uma vontade, um desejo singular e consciente do indivíduo, mas sim como um princípio m etafísico universal, presente em cada ser particular do mundo, inclusive no próprio ser do homem. Noutras palavras, a Vontade é uma força imanente, um ímpeto cego, um esforço constante sem qualquer objetivo ou finalidade pela existência, como um anseio ávido de vida. De acordo com Schopenhauer, a Vontade se configura como a realidade essencial do mundo, é o princípio pelo qual "se tem todo objeto, fenômeno, visibilidade, OBJETIDADE. Ela é o mais íntimo, o núcleo de cada particular, bem como do todo" 2 2 Com efeito, é a partir dessa concepção que assimilaremos melhor o procedim ento analógico empregado por Schopenhauer, que não apenas identifica no corpo humano este princípio metafísico, mas em todo objeto do mundo, desde as coisas mais elementares e simples às mais complexas e organizadas estruturas da natureza. Assim:
Reconhecerá a mesma vontade como essência mais íntima não apenas dos fenômenos inteiramente semelhantes ao seu, ou seja, homens e animais, porém, a reflexão continuada o levará a reconhecer que também a força que vegeta e palpita na planta, sim, a força que forma o 22 SCH OPEN HAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Traduçao: Jair Barboza. Sao Paulo: UNESP, 2005, p. 168-169.
cristal, que gira a agulha magnética para o pólo norte, que irrompe do choque de dois metais heterogêneos, que aparece nas afinidades elétricas dos materiais com atração e repulsão, sim, a própria gravidade que atua poderosamente em toda matéria, atraindo a pedra para a terra e a terra para o sol, - tudo isso é diferente apenas no fenômeno, mas conforme sua essência em si é para se reconhecer como aquilo conhecido imediatamente de maneira tão íntima e melhor que qualquer outra coisa e que, onde aparece do modo mais nítido, chama-se VONTADE23.
A Vontade como princípio metafísico não deve ser entendida como mais um dos objetos da apreensão humana, já que tudo aquilo que pertence ao mundo, em sua totalidade, é apenas fenômeno da Vontade e não ela mesma. Isso significa dizer, que a própria Vontade é distinta dos fenômenos que compõem o mundo, que as leis que regem este mundo de representações e de coisas perecíveis diferem completamente do seu Ser, daquilo que ela é em sua essência. Logo, a Vontade está isenta das formas essenciais dos objetos, isto é, tempo, espaço e causalidade não possuem nenhum significado em referência ao seu Ser; ela encontra-se fora do tempo e do espaço, como também de toda causalidade. Apesar dos seus diversos fenômenos serem concebidos somente pelas determinações do tempo e do espaço, a Vontade, por sua vez, deve ser pensada independente dessas determinações das quais os fenômenos estão submetidos. Isso implica dizer que "a Vontade é una como aquilo que se encontra fora do tempo e do espaço, exterior ao principio individuationis, isto é, da possibilidade da pluralidade"24. A pluralidade das coisas, dos intimeros fenômenos empíricos existente no mundo, só é possível no tempo e no espaço, porque nossas representações só podem conter a multiplicidade dos seres dentro de um determinado espaço, numa sucessão do tempo. Schopenhauer nos ressalta, que a pluralidade, a individualidade e todos os tipos de variações que estamos em contato por meio da experiência, dizem respeito apenas aos fenômenos, às representações construídas por nosso intelecto (entendimento).
23 Ibidem, p. 168. 24 Ibidem, p. 172.
Por conseguinte, aquilo que está para além do aspecto representativo, o mundo na sua unidade absoluta, não pode conter ou possuir tais determinações, pois a Vontade é livre de todas as formas a priori do conhecimento. "Até a forma mais universal de toda representação, ser objeto para um sujeito, não lhe concerne, muito menos as formas subordinadas àquela e que têm sua expressão comum no princípio de razão Em suma, a Vontade é concebida por Schopenhauer como a essência íntima de cada fenômeno, ela está presente no todo, encontra-se una e indivisa em cada parte, seja numa pedra, numa planta ou num ser vivo. Não importa do que é composto um determinado fenômeno, seja um simples mineral ou a biodiversidade inteira de um país, onde há vida e matéria, a Vontade está presente, porque "esse absoluto real é o essencial de todas aquelas singularidades múltiplas, sua unidade, considerada do ponto de vista da realidade propriamente dita, abarca plenamente a totalidade do mundo"26. Ela se manifesta em cada ser particular do mundo, nos diferentes reinos da natureza, pelas sucessivas e crescentes etapas dos graus de suas objetivações.
5. A autodiscordância essencial da Vontade Esse conflito existente na natureza é apenas a manifestação da autodiscordância essencial da Vontade consigo mesma, já que cada grau de objetivação se caracteriza pela disputa que os fenômenos travam uns com os outros por matéria, espaço e tempo. Schopenhauer reconhece em toda parte da natureza um conflito, uma guerra perpétua pela existência, onde a visibilidade mais explícita dessa luta sucede exatamente entre os animais. Cada animal na natureza torna-se presa e alimento de outro (que também tem como alimento o reino dos vegetais), pois os animais em geral só podem alcançam e garantir a sua existência pela supressão de outro. É acerca dessa consideração que Schopenhauer reforça ainda mais a ideia de que tal conflito é a manifestação da discórdia essencial da Vontade de vida^^, que: 25 Ibidem, p. 171. 26 SIM M EL, Georg. Schopenhauer e Nietzsche. Tradução: César Benjamim. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011, p. 34. 27 "P or isso denominamos o m undo fenom ênico seu espelho, sua objetidade; e, como o que a Vontade sem pre quer é a vida, precisam ente porque esta nada é senao a exposição daquele querer para a representaçao, é indiferente e tao-somente um pleonasm o se, em vez de sim plesm ente dizermos "a V ontade", dizermos " a Vontade de vid a"'. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 357-358).
[...] crava continuamente os dentes na própria carne e em diferentes figuras é seu próprio alimento, até que, por fim, o gênero humano, que por dominar todas as demais espécies, vé a natureza como instrumento de uso28.
A Vontade, em todos os graus de suas manifestações, carece inteiramente de um fim último, de um propósito; ela é, como já destacamos, um ímpeto cego, um esforço constante, "porque o esforço é sua única essência, ao qual nenhum fim alcançado põe um término, pelo que ela não é capaz de nenhuma satisfação final, só obstáculos podendo detê-la, porém em si mesma indo ao infinito"^?. Conforme Schopenhauer, a Vontade como unidade absoluta, não pode aplacar sua sede contínua nos fenômenos do mundo, uma vez que ela nunca se depara com aquilo que não seja ela mesma e, assim, só pode consumir a si mesma. "Isso determina que as distintas manifestações, que a dividem, destruam as vontades recíprocas: uma tem de viver ã custa da outra"^^. Logo, aquilo que constatamos na natureza em geral, os seus infindáveis conflitos, nos revela apenas o eterno vir-a-ser, o fluxo sem fim das manifestações essenciais da Vontade, visto que, tudo que ela é e quer, é por completo o mundo, a vida, tal como esta existe. No entanto, estes conflitos não ocorrem somente na vida animal, mas estão presentes já nos graus mais inferiores e baixos das objetivações da Vontade, desde o reino inorgânico. É justamente do embate entre os graus mais inferiores que surgem os mais elevados, como nos enfatiza Schopenhauer:
Isso porque se trata de uma Vontade UNA a objetivar-se em todas as Idéias, e que, aqui, ao esforçar-se pela objetivação mais elevada possível, renuncia aos graus mais baixos de seu fenômeno, após um conflito entre
28 Ibidem, p. 211. 29 Ibidem, p. 398. 30 SIM M EL, Georg. Schopenhauer e Nietzsche. Tradução: César Benjamim. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011, p. 65.
eles, para assim aparecer num grau mais elevado e tanto mais poderoso^i.
É precisamente através dessa seqüência crescente de graus, objetivandose cada vez mais nitidamente, que a Vontade alcança a mais distinta e perfeita de suas objetivações, o homem. Os caminhos seguidos pela Vontade, nos quais transpõem da matéria bruta e inanimada até os seres vivos mais bem adaptados, se complementam, pois a Ideia de homem não se expõe de forma isolada desta seqüência pela qual a Vontade perpassa. Mesmo que no homem, como Ideia platônica, a Vontade tenha encontrado sua plena e perfeita objetivação, "esta sozinha não poderia expressar a sua essência"32. Todos estes estágios que a Vontade percorre entre os reinos existentes na natureza, formam uma espécie de pirâmide, cujo ápice é o homem, o tipo supremo da vida animal. É somente no ser humano que a Vontade pode alcançar a consciência de si, o conhecimento claro de sua própria essência, aquilo pelo qual ela espelha em todo mundo, pois é no intelecto humano onde estão presentes tanto a intuição como a inteligência, e somado a estas, a razão.
Considerações finais Através da Metafísica da Vontade, Schopenhauer nos demonstra que o mundo não é regido e ordenado por um princípio racionaF^, mas sim pela Vontade, um ímpeto cego e irracional, destituída de consciência, sem qualquer finalidade ou propósito. Na filosofia schopenhaueriana, a Vontade não possui em si nenhum fundamento ou sentido, ela se caracteriza como um esforço interminável, um fluxo sem fim pela existência, onde em nenhuma parte do mundo fenomênico encontra repouso e plena satisfação. Noutros termos, a Vontade é um constante estado de insatisfação e de inquietude, ou seja, um eterno vir-a-ser, no qual nunca cessa de querer.
31 SCH OPEN HAUER, Arthur. O mundo como vontade e como reyresentação. Traduçao: Jair Barboza. Sao Paulo: UNESP, 2005, p. 210. 32 Ibidem, p. 218. 33 "P ela prim eira vez questiona-se a convicção de que a racionalidade é o fundam ento do mundo e, com isso, do hom em com o aquela criatura na qual se espelha a razao do mundo: a essência do mundo nao é o lógos dos gregos, nem a idéia (Platão), nem a razão que form a a m atéria (Aristóteles), nem o espírito absoluto (Hegel), mas a vontade, um a vontade original cega, impulsiva, anim alesca e agressiva. E a vontade de viver, da autoconservação que im pulsiona tanto a natureza como a história". (ZILLES, 2005, p. 91).
O mundo no qual habitamos e vivemos é visibilidade, objetidade desta Vontade; tudo que faz parte deste mundo se dá como fenômeno da Vontade. Assim, a natureza em sua amplitude, se revela como um reflexo do próprio estado desse ímpeto cego e desse esforço dinâmico que constitui a Vontade. Em conseqüência disso, a natureza com os seus infindáveis conflitos e suas incessantes lutas, travadas entre as espécies do mundo animal, nada mais são do que a manifestação da autodiscordância essencial da Vontade consiga mesma, que não cansa de cravar continuamente os dentes na própria carne. Segundo Schopenhauer, são estes conflitos que sustentam a vida, o ciclo vital da existência das espécies, pois o que movimenta e impulsiona o mundo natural não é uma harmonia generalizada e pacífica entre os incontáveis seres, mas um combate, uma guerra perpétua de vida e morte. Schopenhauer, por meio da Metafísica da Vontade, não intendo na somente em nos demostrar que todos esses embates travados entre as espécies dizem respeito apenas ã discordância essencial da Vontade em si, mas que essa luta universal nos revela também o caráter sofredor e angustiante da Vontade de vida no mundo.
REFERENCIAS BARBOZA, Jair. Schopenhauer: a decifração do enigma do mundo. São Paulo: Moderna, 1997. (Coleção logos). BOSSERT, Adolphe. Introdução à Schopenhauer. Tradução: Regina Schõpke e Mauro Baladi. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. SAFRANSKI, Rüdiger. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia. Tradução: William Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tradução: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. ______ . Metafísica do Belo. Tradução: Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2003. SIMMEL, Georg. Schopenhauer e Nietzsche. Tradução: César Benjamim. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011. ZILLES, Urbano. Teoria do conhecimento e teoria da ciência. São Paulo: Paulus, 2005. (Coleção Filosofia)
REVISTA
LAMPEfò
A FILOSOFIA PRECISA DE UM LUGAR? - A DECADÊNCIA POLÍTICA DA CIDADE E 0 NASCIMENTO DE UMA FORMA RADICAL DE PENSAMENTO W ELLIN G TO N AM ÂNCIO DA SILVA^ JOSÉ L O N D E DA SILVA^
1 É Mestre em Ecologia Humana pela Universidade Estadual da Bahia - \JNEB/ Campus VIII; Pedagogo, Especialista em Ensino de Filosofia e membro do Grupo de Pesquisa Nietzsche para Indigentes. E vinculado ao Grupo de Pesquisa "Ecologia H um ana" - UNEB/CNPq. Núcleo de Estudos em Comunidades e Povos Tradicionais e Ações Socioambientais (NECTAS) UNEB/CNPq; membro do Grupo de Estudo Nietzsche para Indigentes. welliamancio@hotmail.corri 2 É Licenciado em História pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL; especialista em Ensino de Filosofia e membro do Grupo de Estudo Nietzsche para Indigentes. londe .ufal@gmail .com
Resumo: Este ensaio discute a relação exasperada entre Filosofia e política a partir das condições de existência na cidade. Apesar de reconhecermos que a Política é uma dimensão reflexiva da Filosofia, não queremos tratá-la aqui nesse aspecto, mas como práxis de vida em sociedade, isto é, da política como um regime de agregação no âmbito da cidade e próprio dela; assim como a cidade, em sua configuração histórica, não nos permitia outro regime, nos parece, fora impraticável permanecer como filósofo e ao mesmo tempo estar em paz na cidade. No entanto, foram as aporias e anomias próprias da cidade-Estado grega que estimularam algumas das grandes reflexões filosóficas. Como itinerário argumentativo, iniciamos a partir do marco hegeliano, Platão e Aristóteles como surgimento da Filosofia; apresentamos a partir de Arendt (2009) a face crepuscular da cidade política e ascensão da Filosofia; discutimos a afirmação "profética" e referencial do homem como animal político em Aristóteles. Palavras-chave: História da cidade, animal político, lógos, Filosofia
The philosophy on the needess polis - decline of city politicy and the birth of a radical thinkingform Abstract: This essay discusses the relationship between exasperated and Political Philosophy from existential conditions in the polis. While we recognize that the policy is a reflexive dimension o f philosophy, we do not treat it here in this regar d, but as way o f living in society, that is, politics as an aggregation scheme in the context o f the polis and her own; as well as the polis, in its historical setting, do not allow other regime, it seems, was impractical remain a philosopher at the same time be at peace in the polis. However, it was the "uncertainty" and own anomias the Greek city-State that stimulated some o f the great philosophical reflections. As argumentative itinerary started from the Hegelian landmarks, from Plato and Aristotle as emergence o f Philosophy; present from Arendt (2009) The Twilight face polis politics and the rise o f philosophy; we discussed the "prophetic" afflrmation o f man as a political animal in Aristotle. keywords: Histoy ofcity, politic animal, logos, Philosophy
Introdução^
"Procuro um homem". Diógenes^
"o auge do pensamento idealista moderno, Hegel afirmava que a filosofia só havia começado na Grécia com Platão e Aristóteles, no entanto, eles foram apenas sua culminância e apareceram com seus escritos quando a cidade e a gloria da história grega chegavam ao seu ocaso. De fato, Platão e Aristóteles são reconhecidos como representantes da tradição filosófica ocidental, ou seja, vieram a ser o início da tradição; o começo desta se deu quando a vida política na Grécia já se aproximava realmente do seu fim. Singular é que Platão e Aristóteles escreveram suas obras no século IV dentro de uma sociedade politicamente decadente, como apontaram alguns pensadores, como por exemplo, Nietzsche (1997, p. 125), Arendt, (2009, p. 45), Jaeger (1994, p. 322), entre outros. A problemática exposta por Arendt no que diz respeito ao pertencimento do homem ã cidade, ou seja, em ter que viver nela, e por outro lado, está alienado da vivência dentro desta, leva-nos a uma discussão sobre a condição de apoliticismo - quando se pergunta se há possibilidade de viver em circunstancias apolíticas - "viver 'sem pertencer a nenhuma comunidade' politicamente organizada" como afirmaria Arendt {Idem, p. 46). Tal condição, e aqui me refiro, sem dúvida, a uma vivência despolitizada, parece-me não probante. Uma outra questão de fundamental importância no texto A Promessa da Política (2009), nos remete aquilo que a autora chama de "abismo entre pensamento e ação" - certamente o que Habermas (2012) descreveria profundamente como racionalidade da ação e racionalidade social. O pensamento proposto a partir do texto deve estar desprovido de qualquer absolutismo - mecanicismo, para que em circunstancias dadas possa operar para atingir o objetivo almejado. Com efeito, o pensamento deve se ocupar do significado de mais amplitude, assim, ele não se reduzirá a uma observação meramente unilateral, parcial, singular, o que o levaria a um estado de obscurecimento, a uma obtusidade. Assim, ante o exposto, já que a autora defende um olhar reflexivo sobre o pensamento do ponto de vista filosófico, afastando-o de todo um tecnicismo e dando a ele um estado de "pós-pensamento", pressupondo desta forma, que deve estar ã frente de qualquer ação, relega-se, deste modo, a ação a sua condição de absoluto teleológico. Portanto, segundo Hannah Arendt, o deslocamento da ação ã esfera
N
3 Requiem ad Terrae Brasilis saeculum XXL 4 Disse ele com uma lanterna na mão em pleno dia.
desprovida de incertezas, mas entumecida de Verdade - e a que me refiro absoluta - é tão somente o repouso da tirania. Afinal de contas, não há lugar, não há sistema, não há espaço, onde vive o homem que esteja alheado da incerteza, a não ser nos movimentos de massas totalitários, porquanto, só há espaço para padrões absolutos.
O ato filosófico de Sócrates como auge da negação da cidade No que diz respeito ao tempo cronológico, que é uma verdadeira intersecção entre verdades instituídas, mitos, imaginários, tropos e distorções, que separam a filosofia e a política, tal clivagem histórica se deu segundo a autora, com o julgamento e condenação de Sócrates. Se reportando a nossa tradição política, fica bem claro para Arendt (2009) que esta deu início com a morte de Sócrates, o que descambou no desesperamento de Platão com relação ã cidade, mas também em um descrédito de algumas bases dos ensinamentos Socráticos, como o Cinismo (LONG, 2000, p 39). Platão acabou duvidando da validade da persuasão, tendo em vista que para ele a inocência e os métodos de Sócrates eram evidentes. Arendt, não se furta em expor de forma clara o sentido da persuasão - para ela tratava-se da forma especifica do discurso político o que corresponde ao estilo de vida do cidadão orientado pelo vó^oç discursivo, a normatividade enunciante e legitimado nas interações da ôó^a, de opinião (pública). Os atenienses, segundo a mesma, "conduziam seus assuntos políticos em forma de discurso sem coação", talvez porque ainda não soubesse acerca da violência diáfana do verbo. Assim, a retórica era por sua vez, a arte da persuasão, da mais enlevada das artes, a arte política por excelência, sendo que sua posse era um poder, saber-poder. Mas é preciso dizer que o discurso pode ser conveniente, para assim, atender a determinados interesses, ou, mutatis mutandis, esse mesmo discurso tornam seus interesses convenientes. Quanto a isto, nem mesmo Platão escapou, porquanto escreveu o Fédon, uma defesa revisada da apologia de Sócrates, pois ele acreditava ser mais persuasiva, já que era povoada de castigo e recompensas corporais calculadamente assustadoras. Portanto, mais do que persuadi, ela tinha a função de aterrorizar {violência psíquica do verbo). Com efeito, no que tange a morte de Sócrates, não resta duvidas do quanto ele representa ao engajamento do homem político, haja vista que entre fugir e morrer por razões políticas, ele decide pela segunda, num contrassenso entre morrer por obedecer e reconhecer a Lei e/ou morrer como negação plena em oposição a este mundo de leis. Com a cicuta, Sócrates dá uma demonstração de crueldade inerente ã cidade ao se permitir ao seu regime de morte, porque nele, se fecha um ciclo mortal imposto sob a condição gregária; Com o "suicídio", Sócrates adota a última normatividade da cidade, isto é, a um regime de morte do eu, de tríplice destinação, a saber, o banimento, a adequação social, o fim. Esse regime imposto se sustenta no logro e no
simulacro de valor, por exemplo, em Fédon, Sócrates se despede: "Ó Criton, nós devemos um galo a Asclépio" (Fédon. 118A). Segundo Nietzsche, "esta ultima palavra deveria ser ouvida assim: Ó Criton, a vida e uma doença" (2001, §340). Para nós, a interpretação clássica de tal sentença quer dizer mais que a dívida de "um galo a Asclépio" sintetiza a pequenez dos valores que regem direitos e deveres em face do que a cidade retira de cada um de nós, como também o fato de que ninguém que passe pela cidade não deixe de sair dela sem levar consigo dívidas inúteis, pautadas em superstições (aliás, é justamente a dívida uns dos aspectos mais fortes de permanência passiva à cidade). A partir de Nietzsche, podemos ainda pensar a afirmação de Sócrates, na seqüência de sua morte, como uma cura, cuja sentença ironiza com o jogo das necessidades e dos sensos de dependências constituídos como ideologias próprias da cidade - esse lugar que impõe regimes pesados de agregação. A condenação de Sócrates foi de um grande absurdo para a filosofia da cidade pelo direito de pensar, expressar suas opiniões agir de acordo com seus pensamentos e ir e vir da cidade, destarte a opinião própria é abismo entre a política e a filosofia justamente por ser uma opinião própria e não pública. Não conseguiu persuadir os responsáveis pela sua morte talvez porque a opinião própria não disponibilizaria representações convencionais, similitude com a norma e níveis de inteligibilidade óbvios - talvez o filósofo, num momento de iminência, fale outra língua que assim como para as coisas políticas e gregárias seja mais um monólogo, ou uma oratória, um exercício de vanguarda. Arendt (2009) mostra que a teoria da verdade absoluta de discussão na cidade demanda fechar os olhos para própria verdade ao tentar compreender a verdade daquele que está próximo - no entanto, a verdade do próximo pode estar mais distante do que nunca de qualquer esforço de convivência se não for opinião própriado-próximo na diferença com a minha-opinião.
Vivenciar as políticas da cidade é distancia-se do filosófico A política é a condição gregária do animal homem; é lá onde estão postas a prova a humanidade como conceito e práxis; essa condição é colocada através da linguagem - e aí temos uma agregação flexível, susceptível, histórica, maleável, projetada por meio das possibilidades intersubjetivas daqueles que têm posse do logos em sua capacidade de instituir regimes políticos; aqui, talvez não sejam os homens que criam a cidade para si^; é o logos que a cria para os
5 De uma perspectiva cristã, negativa em relação à cidade, que talvez sintetize o mito do banimento do homem da natureza, Kotkin cita o teólogo Jaques Ellul, lembrando-nos de que a cidade está ligada à queda humana do espaço da graça e representa a tentativa de criação de uma nova ordem. Fomos expulsos do Éden. E Caim construiu uma cidade para substituir o jardim divino [...]. Seu fundador foi o primeiro assassino [humano] de que se tem notícia (RISERIO, 2013, p. 173). Para os gregos a fundação da cidade se deu não para escapar dos
homens e o logos, no contexto estudado aqui, é articulado por um grupo exclusivo de homens. É o logos que produz continuamente a pólis, porque é o artesão dessa hom onom ia (Cassin, 2005, p.69) embora, quando o logos degradase, a cidade degenera, e assim, reciprocamente. Se "o homem começa a filosofar depois de ter provido às necessidades da vida" (Metafísica, 1, 2), ao criar condições de independência total ou satisfatória em relação a tais necessidades, onde se torna um bon vivant, um gentil homem, um lord, um burguês ou um aristocrata, a partir de circunscrever o outros (o estrangeiro, o escravo, o servo, o empregado, o proletário) às condições de sobrevivência (no sentido arendtiano), fazendo de cada homem um capital, ele pensa que filosofa, pensa. Arendt (2010, p. 103) corrobora com essa fala quando afirma que o homem tenta escapar das necessidades da vida impondo a outros homens essas necessidades e muitas dessas são expressões subjetivas do que conheceríamos depois por mal necessário, sacrifício, deveres: regimes de labor que propiciam o bem-estar do filósofo aristotélico, da (iíoç nohriKÓc,. Por vezes queremos imaginar que apenas os cínicos superaram essas necessidades sendo-lhes possível filosofar, superaram-nas sobretudo no âmbito psíquico - e porque não da necessidade de impor aos outros homens necessidades. Ter provido as necessidades é antes soltar-se dos grilhões da cidade, das necessidades que essa inventa para o homem. O bem-estar inventado, a burocracia inventada; o horário de trabalho inventado; o ócio momentâneo nos intervalos de trabalho inventado; a vida do filósofo não pode ser, pois, uma vida dedicada aos assuntos público-políticos*^, enquanto soçobra o escravo, o servo. Disso, a liberdade é um engodo, sobretudo quando pensamos nas clarificações de Nietzsche (2005, § 9, 22, 38, 40; 2001, § 354.); ou talvez a liberdade só exista no singular: espaço intermediário da política onde nem movidos por nós mesmo nem dependentes de dados da existência material. (ARENDT 2009, p. 147).
O Homo homini lúpus de Hobbes e o filósofo O homem, ao perder-se da filosofia, volta a ser apenas o animaF e, apesar de ainda dotado do logos, da palavra, esta é uma posse tendenciosamente, um recurso para si, portanto, inutilizada; nesse animal, a linguagem é convergida para si e aí se aniquila, tornando-se monólogo ou "balbucios monossilábicos"; deuses, mas, dentro da precariedade da condição humana, criar condições de coexistência entre seus iguais. *5A Cidade de Deus, Livro XIX, 2. 7 Segundo se diz, animal é de um ponto de vista biológico um organismo comum do reino A nim alia,por ser heterotróficos, por ser multicelulares e ter capacidade de locomoção; por outro lado, de uma perspectiva talvez do senso comum, esse animal se caracteriza pelo irracionalismo e pela lascívia; porém, o animal político não é de todo dado aos irracionalismos; coloca em movimento sua ratio para efetivar na coletividade seus interesses.
porém, em meio aos outros homens, esta linguagem, por imposição, torna-se consensual e por todos é articulada através de um aparente diálogo: ninguém entende a si e ao outro, apenas postula um A lter ego adoentado que é o resgate da configuração essencial, ontológica^ da cidade - a aglomeração de corpos mais ou menos complacentes - e é apenas nesta cidade que esse animal pode circular com os outros e, momentaneamente conviver e tolerar^ enquanto tudo lhe for bem - a cidade é o A lter ego para os seus agregados. O homem, ao perder-se da filosofia, ao fingir-se político e subsumir no tédio da multidão é forçado a descobrir a si mesmo no contraste com o outro, passa a divinizar seu próprio ego (egoísmo clássico), construindo uma cosmogonia de si-m esm o, uma projeção, no lugar; interessa-se por si de uma perspectiva de logro e de narcisismo, porque a cidade é a plataforma ideal, ad hoc, para seus projetos; assim, aqueles que são de fora não são nem como ele nem parecido com os deuses, são como disse Aristóteles rvxrjv firoí favÁ óq eoriv, i] xpeírrcov i] ãvOpoonoc,, "estranhos, decaído, inumanos" (1998, 10-11, p. 53). O logro é o leitm otiv de todo agregação política legada da cidade. Na língua romana, curiosamente o animal no homem é sua anima, sua alma: a palavra grega (wov {zoon, animal), nesse contexto lingüístico, foi transladada como anima^^, e aqui se nos apresenta a naturalidade da expressão quando, por assim dizer, ao reconhecemos no cotidiano romano, da impossibilidade de convivência uns com os outros. O (wov, pois, fora concebido com alma de homem, talvez como tentativa de justificação das impossibilidades do viver com. A Pax Rom ana fora um exemplo político dessa an im alid ad e? Arendt (2009, p. 156), aqui concorda com Hobbes (2003), ao afirmar que a política surge entre os homens,/ora do homem por ser este ser um apolítico. Distante do (wov de Aristóteles^i, o conceito moderno de animal parte * Se nos permitimos pensar a partir de uma ontologia - sem desconsiderar o fato de sua tradição persistir a qualquer tempo e estar implicada nos discursos ontológicos atuais e assim concebêla como o estudo do ser em geral, a essência do ser só pode ser oportuna como uma realidade para nós apenas como um discurso advindo do próprio ente, autor da sua própria ontologia. Se o discurso ôntico diz respeito ao ente, ao sujeito existente, a ontologia se torna cabível se esse ente falar de si para nós como seu autor, se esse ente constituir um conjunto de categorias próprias e representações próprios acerca de si mesmo como seu discurso (Àóyov) do seu ser, portanto, antes de tudo, a essência de um ente só é válida, isto é, apreensivel, digna de narrativas e enunciaçóes, se concebida por ele mesmo. Demoramos-nos demais com essa problemática: de nos afastar analiticamente do objeto ou da coisa para dizê-los genericamente; ou o ente diz para nós do que se trata sua essência, sua ontologia, ou que façamos isso, para todos os entes e com todos os entes, em coautoria. 9 Aqui a tolerância é a convicção de que o outro é diferente de tal forma que sua alteridade é inaceitável, incabivel. Sob a tolerância, estado inumano de convivência, a intolerância é o regime inerente e tácita. Talvez o afastamento pelo filósofo a tolerância tenha sido o melhor paliativo para a convivência na cidade. 10 A partir de Cícero (106 a. C.), nas Tusculanae referia-se à sopro vida, vida; em De Natura Reorum referia-se ao ar, ao sopro,à emanação; em De Republica, referia-se à alma e oposição ao corpo. 11 Animal biológico diferente de da expressão qualitativa fiíoç, vida, ser vivo que se reconhece como vivente e a isso se dedica: vive na pólis e cultiva para si um estilo de vida ideal, flíoç m k n iK Ó ç. Cóco, o mesmo que Çm: propositivo de vida animal, "se r" vivo no sentido biológico
de um ponto de vista biológico como um organismo comum ao reino Animalia, sendo heterotrófico, multicelular e dotado da capacidade de locomoção; por outro lado, de uma perspectiva talvez assaz comum, esse animal se caracteriza pelo irracionalismo e pela lascívia. Tipos possíveis de animal Animal gregário
àysXalov (wov
Apenas como animal de rebanho.
Animal gregário
àysXalov (wov
Agregado através da política em vista do bem comum.
Abelha
Organizado em rebanhos, mas nao racional, sem
/ le X lr r r ji;
logos. Animal
(wov
Animal político
TToXlTlKÒV
Animal gregário, como uma abelha, animal político. (ü )O V
"Ser vivo"i2 político, antes um "ser neutro" (?) agregado.
Animal
Animalia
Heterotrófico, multicelular e que se locomoção
Vida política
p io c ; T t o X m K Ó ç
Estilo de vida ideal do homem da cidade.
Homem lobo
Homo homini lúpus
Animal em si, egoísta, da cidade ou não.
Os romanos sabiam bem disso: que o homem não é um àyeXaiov (cóov, um "animal gregário" que se reuni instintivamente, contudo, por interesse e através de estratégias a maioria dos homens é subsumida a uma ideia de poucos homens possuidores da ratio política, tornando o próprio homem "um animal de rebanho [...] como a única espécie de homem permitida", como diz
(Liddell; Scott; Jones, 1996, p. 833); do verbo "viv er", em Chantraine (1968, p. 402) diferente da expressão o ser, õvroç, pela autocompreensão da sua existência. A palavra Çmov em si mesma não faz referência a nenhum ser vivo no sentido ontológico, a não se quando acompanhada de m k n iK Ò v (Çmov), animal político, animal comunitário, e a partir dessa condição incontornável de comunicação com o outro, torna-se ov, "ser", através da linguagem. A palavra Çq)ov também é muito diferente em si mesma de psique que significa em Chantraine "força vital, vida, alm a" (1968, p.1294) e "sop ro" em Bailly (2002, p. 2176); posteriormente alma, anima em latim), muito embora o k o à i t i k ò v Ç(pov, o "anim al político" desenvolva uma alma por meio da linguagem. 12 Eufemismo acadêmico adotado atualmente por muitos na tentativa de amenizar o termo C<pov entendido por muitos atualmente como animal, na perspectiva contingencial das práticas animais. Sobre f®ov, Aristóteles não tinha esse olhar ético tacitamente pseudo-cristão; certamente para os gregos do século cinco a.C., f®ov era genericamente o animal que se locomove, que se ajunta, que busca seu logro para sobreviver; a ética aí era a própria desenvoltura e sagacidade do animal quanto ã realização da sua sobrevivência. Portanto, a expressão f(ôov tomada como ser vivo está errada, visto que ser vivo, jiíoç (vivo) óv (ser e particípio do verbo sivai, ser), seria para o grego uma tautologia, visto que todo ser é existente. Apenas o f i í o ç k o X i t i k ó ç , mesmo que de modo tendencioso compreende sua própria existência òvm ç por meio da linguagem.
Nietzsche (2005, § 199, p. 86; 2009, § 4); fora deste, resta-nos o filósofo, esse animal hiperbóreo^^. De uma perspectiva, para Aristóteles não poderia haver no homem da cidade apenas o animal gregário (ou animal de rebanho); ou o animal sem palavras, sem razão e sem política, mesmo organizado a exemplo as abelhas (jueXÍTTrjç): a expressão que funda o Humano no Ocidente, ó àvOpoonoc, (pvoei nohriKÒv (cvov, define a inseparabilidade do homem como o ser que é ontologicamente animal político, e isso por sua constituição a partir da cidade seus habitat, por assim dizer, natural, seu topos existencial; o homem não pode ser apenas animal e conviver na cidade, assim como não pode apenas ser hom em , visto que há posturas e consciências bem definidas na cidade e são essas condições políticas que estruturam num todo coeso o animal no homem, animal-homem; assim, o anim al político, o anim al civilizado, cidadão, sempre dentro da orla da cidade, não é de todo dado aos irracionalismos do animal, porém os articula no discurso contra "seus" inimigos - aqueles que ameaçam as estruturas aparentemente provedoras de uma existência ideal; coloca em movimento sua ratio para efetivar na coletividade seus interesses por meio do discurso do bem comum entre iguais, por exemplo; como havia posto Adorno e Horkheimer (1985), no âmago da ratio circulará suas paixões^^, e a própria ratio é uma "[...] ferramenta ideal que se encaixa nas coisas pelo lado por onde se pode pegá-las", (p. 43). Assim, poderíamos "entrever" Hobbes (2003) lendo Aristóteles (1998) e assim, tirando certas conclusões da sentença [...] ó àvOpoonoc, (pvoei nohriKÒv (wov, isto é, o homem é naturalmente um animal político^^ no sentido mesmo de expressão fundadora de uma concepção de humanidade, desse "animal político" condicionado às condições da cidade, isto é, como hom o hom ini lúpus; Hobbes certamente foi tirar desse animal-homem, o desencantamento da "convivência pacífica" erigindo um animal político agigantado chamado Estado - o poder orientador das relações em sociedade em face dos ânimos dessa liberdade-animalidade inerente ao o homem (2013, p. 147). Mas é só no discurso do consenso, de similitude, de igualdade racial e identificação pátria e pela ameaça pelo "uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado"
13 Ver a fala de Buck Mulligan em Ulysses de Jam es Joyce (2000, p. 4) como uma síntese das "possibilidades" de convivência na pólis, isto é, no labirinto urbano de Dublin. As relações que se sucedem em um dia inteiro evidenciando pretensões e preocupações pequenas do homem gregário em meio ao acaso da existência que lhe causa aflição. A cidade é a tentativa de por ordem ao inesperado, mas mesmo a cidade é uma contingência. 14 A paixão individual subsumida num todo pelo discurso, a paixão coletiva, a isso chamamos heroísmo. Por sua adoção perde-se toda a identidade e, por conseguinte, a existência física; essa ditadura da cartilha procede de poucos espíritos agudamente adoecidos para muitos indivíduos insipientes, isto é, de um grupo apaixonado (no sentido de pathos) para uma multidão ingenuamente desprovida de paixão - visto que desde muito "acostum adas" ao Fanis et circus. 15 ARISTÓTELES, 1998, A 2.3/1. 2, p. 52
acalma as animalidades, que o animal pode ser momentaneamente convencido (DA SILVA e MIRA, 2015a, p.l08). Visto que ao Estado: [...] graças a esta autoridade que lhe é dada por cada individuo na república, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o
terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz no seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. (HOBBES, 2003, p.l47148).
Aqui, os inimigos estrangeiros são os reconhecidamente diferentes^*^, todos aqueles cuja alteridade é suscitada. As performances do anim al são visivelmente peculiares contra esses "inimigos estrangeiros", ou - atualizando a sentença para as demandas atuais -, o animal é sempre arisco e impiedoso contra o não fam iliar (no sentido mais plástico e oportuno de "linhagem"); a cidade é o referente, porque ela, segundo Aristóteles (1998, a 20, p. 54), é fvoei nóhc, i] oÍKÍa Kal SKaoToç fjjuwv èoriv (é por natureza anterior à família e a cada indivíduo); uma inimizade suscitada no estranhamento e na desconfiança em face da manutenção de territorialidades determinadas pelo paradigma da pólis (DA SILVA e DE MIRA, 2015a, p.lOS). Essa organização interessada de animais {((vov) que ao mesmo tempo pelo seu (wov Xóyov êxov^^, isto é, sua "faculdade da linguagem" (Aristóteles, 1998, a 9-10, p. 55), articula essa ordenação de poder contra o Outro-animal, contra o estranho-inimigo que ameace conquistar seu território e suas territorialidades subjetivas de interesses. Nesse sentido, a sentença [...] o homem é naturalmente um animal político (Aristóteles, 1998, p. 52), ã luz dos liltimos acontecimentos - e no contexto de como esta sentença se configurou no e configurou o pensamento ocidental -, podemos pensá-la a condição de vivenciar os ânimos ou barbarism o aním ico através da política.
Conclusões Há animais que apresentam hábitos solitários por questões de concorrência. Outros formam uma grei demonstrando disposições de grupo por questões de proteção e sobrevivência. O homem é um animal gregário, porém, diferente dos outros animais, somente ele diz por que agrega, articulando sua compreensão, isto é, constitui formas de agregação, articula e representa seus modos de agregamento. Lá onde o instinto não alcança o homem reflete e
1*5 E aqui estão incluídos todos aqueles que maior equidistância tenham do W ASP {White man anglo-saxon protestant). Ainda aferindo superficialmente a história do Ocidente, incluímos aqui, diferenças "funcionais" da fisiologia, da cor, da utilidade capitalista prática; do modelo ideal, estão excluídos, os idosos, as crianças, as mulheres, as pessoas com necessidades especiais, os que possuem melanina na pele, os homens e mulheres que vivenciam outras epistemologias. Àóyovôs fióvov ãvOpmmç sxsi rmv Çmcov, "dentre todos os seres vivos, apenas o homem possui palavra". ARISTÓTELES, 1998, a 9-10, p. 55.
aperfeiçoa essa condição - algumas vezes, a partir de um estado de solidão voluntário. Na verdade, entre ser gregário ou solitário, o homem é o que desejar ser, porque muito maior que essas duas condições são as dimensões erigidas pelo homem através do logos - e é o logos seu verdadeiro lugar de moradia, sua grei em cumplicidade. A filosofia de viver em uma cidade é controversa porque cada ser humano no seu absolutismo com sua singularidade postula uma existência para si; viver com o outro é uma tarefa política de esvaziamento de si pela adoção de um regime que não é seu e que certamente não é da coletividade como autoria deste regime - em todo tempo, a política para as coletividades possui poucos autores e, portanto, alguns poucos protagonistas tendenciosos. Não é que vivamos separados, mas que ao menos reconheçamos e valorizemos a solitude do outro como primado da sua singularidade e alteridade intocável. Uma atitude verdadeiramente filosófica estará sempre além dessa práxis política no sentido aristotélico de participação em uma coletividade; o filósofo vem para desbaratar qualquer tipo de longo e harmonioso ójuwvvjuwç (consenso), porque nesta condição de longo e harmonioso todo consenso é um artifício, um regime de mentira, de similitude e ao mesmo tempo simulacro, controle da opinião pública (Aristóteles, 1292a 27); quando se coloca, por exemplo, a partir de Aristóteles, que o homem é um animal político, a vida na cidade, a vida com o outro sempre irá se esbarrar nas alteridades que não se deixam fragmentar pela unidade pela homogeneidade plástica de um idealismo coercitivamente norteador do ser, naquilo que ele pretende ser e em que pretende estar. Aqui, contrário a fleuma da harmonia política - essa coisa intangível, esse discurso tão-somente - o filósofo é aquele ser que está de pé em meio ao conflito, entre seu próprio animal eternamente irresoluto e seu regime de ser-humano ávido de conhecimento de tudo - e pelo conhecimento apenas ele opera na linguagem sua condição e possibilidade, não de harmonizar seu animal como o político a partir da faculdade de inteligibilidade, a linguagem, mas de deixar o animal e o homem da linguagem e da política (da agregação) operarem livres em seus regimes próprios, dentro de si. Não existe filosofia para viver bem em uma cidade - e aqui, nous avons parlé de Brésil dès le début; Para o filósofo a cidade é sempre uma instância passageira, um composto volátil, o filósofo é um serflutuante, o filósofo é sempre ànohc,, sempre fora da cidade. Porquanto, o discurso do àyeXaíov (wov, do animal gregário, em sua vida interessadamente coletiva começa e termina, no estranhamento ontológico do mundo comum, irremediável; começa e termina no copo de cicuta de Sócrates e se extingue mais além, na solitude reflexiva de Platão e Aristóteles - onde o animal deixa de ser político para ser apenas linguagem -, no discurso para si (como diziam os estóicos) no discurso da pena, muito mais que o discurso do Areopagus de Atenas, topos dos paradigmas aristocráticos - condição de ser e estar na cidade.
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klAlSIA
LAM
OS SENTIDOS E CONSEQÜÊNCIAS DO DARWINISMO NAS ODRAS DE NIETZSCHE: SELEÇÃO NATURAL E PODER COMO FUNDAMENTOS À VIDA JEFERSON L. AZEREDO
Resumo: O presente trabalho admite que há uma mesma conclusão em Darwin e Nietzsche, as conseqüências do darwinismo estão, apesar das críticas, nos pensamentos nietzschianos, aspectos como, em que a vida é resultado de uma luta, que para o primeiro pode ser estabelecida como eixo central da seleção natural, que promove a evolução das espécies a partir das necessidades de sobrevivência e descendência da espécie, associadas em parte menor a elementos externos como o ambiente e a fatores culturais como formação de grupos. Para Nietzsche a luta ê em si mesma a condição de vida, negá-la e morrer. Não são fatores que se associam que dão sentido ã luta, ela ê o
elemento que proporciona a vida. Quer-se aqui apontar os sentidos que o Darwinismo tem nas obras de Nietzsche. Relaciona-se, Darwin e Nietzsche, sobre a luta pela existência e o desenvolvimento da cultura e da moral. Palavras-chave: Luta; Seleção; Homem.
E
spécie humana, o que seriamos nós?
Para Darwin é uma parte do que ele chama de "Árvore da Vida", ^ esboçado num dos seus cadernos como uma das representações mais marcantes da Teoria da Evolução. A espécie em questão é produto de processos históricos, cuja capacidade e funções se modificaram no curso do tempo, e que exibem ainda as marcas dos papéis que desempenharam em outros tempos. Estas capacidades transformaram a física, a biológica e a cultural, mas também foram e são transformadas por ela. O que se pretende aqui é estabelecer uma relação em que aproxima a visão de Darwin a do genealogista do século XIX, Friedrich Nietzsche, em que também procura, a partir de algumas de suas obras, a origem de tudo isso que constitui os seres humanos, mas não como uma "essência", ou uma natureza ou fundamento último das coisas, pois, não se acha "no seio do ser, no imperecível, na 'coisa em si'" (KSA 5.16, JCE/BM^) o que ele mesmo é, mas é um processo histórico - são processos evolutivos ('de' "desenvolvimento", como Nietzsche gosta de dizer, usando aqui um termo de Hegel - (LIMA, 2003) (Mas! Nietzsche anti-Hegel!). O modo como Nietzsche entende os processos históricos investigados pela genealogia pressupõe muito do pensamento de Darwin pressupõe a descoberta da evolução por seleção natural, mas há um afastamento, ou melhor, uma negação. De Nietzsche tem-se uma distancia do que Darwin faz, a ciência empírica ainda precisa da filosofia para mostrar-se válida, e esta como base para se fazer filosofia. Se Nietzsche afirmou em sua tentativa de autocrítica que a grande novidade de sua filosofia consistiu em “ver a ciência com a óptica do artista, mas a arte, com a da vida...", reconheceu ainda (na nota que encerra a primeira Dissertação de Para a Genealogia da Moral) que a tarefa propriamente filosófica não poderia ser conduzida a bom termo sem o auxílio das diversas ciências 1 Seguiu-se para referenciar Nietzsche a convenção utilizada pela revista "Cadernos N ietzsche" que adota a proposta pela edição Colli/ Montinari das Obras Completas de Nietzsche. Siglas em português acompanham, porém, as siglas em alemão. Ver quadro indicado no ANEXO 1.
particulares: "Todas as ciências devem doravante preparar o caminho para a tarefa futura do filósofo, sendo esta tarefa assim compreendida: o filósofo deve resolver o problema do valor, deve determinar a hierarquia dos valores". A tarefa que Nietzsche propõe para o filósofo não é das mais modestas (esta é uma polêmica à parte). Mas à parte isso, deve-se tentar esclarecer aqui também qual função caberia às ciências empíricas. Segundo Smith (p. 68-73), Nietzsche confunde as ideias de Darwin com as da NATURPHILOSOPHIE, em que esta última mantêm o modelo de evolução epigenético, o clamaria de lamarckista no que se refere à evolução biológica e darwinista no que se refere ao desenvolvimento da moral (FREZZATTI Jr. 2001, p. 17). Procuraremos aqui também esclarecer esta leitura. Segundo Daniel Dennett, Nietzsche (como Thomas Hobbes e Darwin), teria também sido um sociobiólogo, porque suas teorias sobre o nascimento da moral integram cultura e biologia, (p. 483-9). Darwin identifica-se com Nietzsche, que não deduz a função ou o significado atual de algo da função ou do significado do passado. Quando há uma nova situação o "mundo orgânico" pode ser reinterpretado, aqui Nietsche e Darwin se assemelham (GM 12^ e DARWIN-Origem 431-2.) Tratar de apontar os sentidos que o Darwinismo tem nas obras de Nietzsche, mostram-se centrais para iniciar a análise. Considera-se que boa parte das referências de Nietzsche encontra-se espalhada, mas, mais da metade, concentra-se no "terceiro período". Há aforismas que aparecem mais fortemente as ideias aqui discutidas, como em "Anti-Darwin" e "Contra o darwinismo". Basicamente as questões apontadas por Nietzsche são: a luta pela sobrevivência, a seleção natural e o desenvolvimento da moral. O que se tem como ponto de partida, é que Nietzsche recusa tais concepções sobre as transformações dos seres vivos, da vida e da própria moral. Compreender a partir da comparação destes conceitos com os apresentados por Darwin permitirá entender as críticas nietzschianas, as influências recebidas, as distâncias assumidas e as suas convergências. Num primeiro momento apresentaremos alguns sentidos em que o darwinismo pode ser entendido. Segue-se com uma relação entre Darwin e Nietzsche sobre a luta pela existência e o desenvolvimento da cultura e da moral. De Darwin utilizamos os livros "A origem das espécies" (primeira edição, pois das seis publicadas por Darwin a V mostra a seleção natural mais 2 Para ler as referências utilizadas de Nietzsche, ver anexo 1.
completa) e a "Descendência do Homem" (pois nela aparece a evolução física, a evolução moral e da mente - antecipa-se aqui que não há mais relação com Deus e a moral é apenas instintos humanos naturais). Estudos sobre o desenvolvimento e a evolução, são anteriores ao surgimento da Biologia enquanto disciplina, há precursores como Aristóteles procurando analisar o que fez surgir os animais e o próprio homem. Pode-se mapear aqui a biologia, não com o estudo que a medicina fazia ou a geologia, mas independente, quando, no século XIX seu termo foi criado por Burdach, ou ainda Lamarck nas análises vegetais e animais, não desconsiderando que filosofia e biologia mantinham uma reciprocidade maior ainda. Destaca-se aqui, que o criacionismo predominou em boa parte da história escrita, em que os seres vivos pertencem a grupos fixos desde suas criações. As questões ligadas ao evolucionismo não dizem respeito apenas a transformação dos seres vivos, mas às do planeta e do próprio universo. Ao contrário de Richard Owen, que considerava haver uma energia intrínseca em que organizaria a vida em apenas uma direção, ou seja dirigiria o desenvolvimento segundo um plano fixo e limitado, Darwin não acreditava na refreação da vida, das espécies. Para ele, metaforicamente, há um tronco em que dali a vida vai se ramificando. Para explicar parte desta ramificação, Darwin se apóia na ideia do isolamento geográfico. A adaptação da espécie ao meio (novo), esclarecendo parcialmente as mudanças. Aqui, novamente é possível perceber que se trata do ambiente e das espécies, nunca pensando-se isoladamente. A seleção natural de Darwin estabelece assim, na adaptação e na vida que não é mais limitada, uma necessidade essencial de sobreviver, fazendo com que as espécies que possuem as características mais resilientes sobrevivam, na "luta pela vida". No entanto, mesmo utilizando-se o nome de seleção natural, antes do século XX não é possível associar a ideia ao selecionismo, pois faltariam os estudos desenvolvidos da genética, na leitura das causas da evolução: mutação, recombinação e deslocamento genético. Na falta destes apontamentos desenvolvidos pela genética, faziam com que a teoria da seleção natural sofresse criticas, em que a idade da terra não fosse tão antiga a ponto das espécies não conseguirem exibir suas mudanças. Bem como a incompreensão da transmissão hereditária acreditando-se que a probabilidade é muito baixa para as variações.
A seleção sexual é o principio mais importante das transformações humanas para Darwin, afastando completamente a presença criacionista ou arquiteto de Deus (DESMOND & MOORE, 1995, p. 566). Este princípio representam as vantagens herdadas na luta pela existência. A seleção sexual depende do sucesso de certos indivíduos sobre outros do mesmo sexo em relação à propagação da espécie. [...] ocorre entre os indivíduos do mesmo sexo, geralmente machos, a fim de afugentar ou matar seus rivais, na qual as fêmeas permanecem passivas; a outra ocorre igualmente entre os sexos opostos -
os primeiros geralmente são fêmeas, que não
permanecem passivas, mas selecionam os parceiros que mais lhe agradam. (DARWIN, Descendência, p. 916)
Darwin é lido por alguns estudiosos da sociologia, como Hebert Spencer na Grã-Bretanha e, em maior extensão, por William Graham Summer nos Estados Unidos, utilizando suas ideias para leituras ideológicas. Pode-se até dizer que Darwin tinha medo que sua obra pudesse ser utilizada pelos materialistas do século XIX a favor de reformas religiosas e morais (ARTEAGA, 2008). Talvez o autor nem acreditava mais nas possibilidades metafísicas ou ontológicas de sua teoria, ficando restrito as mudanças do fenômenos empíricos e não os seus porquês, pois, novamente, são noções de leis naturais. O Sistema Natural para Darwin "não adiciona nada ao nosso conhecimento" (DARWIN-Origem. 398-9) se na época esta a "serviço" das ideias de criacionismo, essencialismo, finalismo e determinismo, representando assim um plano metafísico, uma criação especial com ideia teleológica, isso é repensado e mais ainda, demonstrado por Darwin, nos termos da lei natural. Eis uma aproximação com Nietzsche, mesmo ainda sendo em termos gerais. Outra aproximação com Nietzsche é o uso da história (levando-se em consideração que ela é utilizada por outros pensadores como Hegel e Marx) (CONSTÂNCIO, 2010; LIMA, 2003). Portanto, fica muito aberto a fihação de Nietzsche a Darwin, pois o próprio conceito "darwinismo" é amplo e recebe agregações históricas e interpretativas muito variadas (FREZZATTI Jr. 2001, p. 27-59). O que se pretende, portanto, é responder as questões que aproximam Nietzsche e Darwin, relendo que suas críticas produzem outro sentido e não se efetivam a afastarem-se da sua teoria geral. Este talvez seja o maior cuidado ao ler Nietzsche, pois uma leitura recortada não observa o que realmente o autor
pensava, não são contradições lógicas, mas reflexos de um importante pensamento do filósofo, qual seja, de que a efetividade mesma é composta por impulsos que se põem em posições contrárias e que lutam por potência, de "vontades de potência" que, ao lutar por potência, engendram o mundo da efetividade (MÜLLER-LAUTER, 2009). A filosofia dos antagonismos de Nietzsche reconheceria que, "na efetividade, não há nada de fixo, nada permanente, mas somente a torrente incessante do vir-a-ser e perecer" (Idem, p. 42). O evolucionismo, o uso da história, o combate ao criacionismo e à metafísica e ainda a visa de mundo são os conceitos repensados neste trabalho. Portanto apontaremos que há em Nietzsche um darwinismo especifico, não excluindo-o desta afirmação.
POTÊNCIA E INFLUÊNCIA Em Darwin a luta é o eixo central da seleção natural que promove a evolução das espécies. Esta ideia aparece especialmente no capitulo III do "A Origem das Espécies", antes mesmo da seleção natural. É uma luta que estabelece a permanência e a continuidade pela descendência, "incluindo dependência de um ser de outro, e incluindo (o que é mais importante) não somente a vida do indivíduo, mas o sucesso em deixar descendência" (DARWIN - Origem, p. 116) Em Nietzsche a luta aparece como três características, uma relação de potências criadoras e constituintes do ser, potência apolínica e dionisíaca; como prazer; e como permanência, esta última que aparece especialmente no terceiro período liga-se aos conceitos heraclitianos de movimento, pois este se constitui justo, pela eterna força dos contrários. Se para Darwin a luta pela existência é resultado de fenômenos ligados ao ambiente e a reprodução tornando-se uma lei da vida, uma lei que faz os indivíduos dependentes e dispostos a descendência isso, sempre constante, pois se assim não o fossem morreriam, para Nietzsche não se tiata dum "peso", sofrimento ou dor por viver, mas uma afirmação sempre constante da vida, ou seja, dar vazão a sua força gerada como conseqüência a conservação, pois "a característica mais geral da vida não é absolutamente a penúria, a miséria, é antes a riqueza, a opulência e o mesmo o absurdo desperdício - aqui onde há luta, é luta por potência" (GD/Cl Icursões de um "extemporâneo" &14). Não se tiata de uma necessidade finalista ou metafísica, mas mais potência, tendo consequentemente a luta como uma situação.
Enquanto que para Darwin a luta segue da competição física do ambiente (comida, espaço, água...) - percebe-se uma visão estritamente biológica -, para Nietzsche a luta é opção da vida, "luta por amor à luta" (Fragmento póstumo XI 26[276] do verão/outono de 1884), tanto dominar quanto obedecer dispensa força para tal, há um conceito de poder que transversa os seres, são aspectos vitais do ser, impulsos de vida. "O que se chama 'alimentação' é apenas um fenômeno secundário, uma aplicação prática dessa vontade primeira de se tornar mais forte" (Fragmento póstumo XIII 14 [174] da primavera de 1888) Se para Darwin a luta é realizada pelos indivíduos, em Nietzsche, esta se faz no mais intimo do ser, ou seja, no impulso de poder até as células competem, algumas partes do corpo definham-se (são dominadas) e outras se destacam e dominam, pois "seu desenvolvimento está ligado a um vencer, a um predomínio, de certas partes e ao definhar, 'torna-se órgão' de outras" (Fragmento póstumo XII 7 [25] de final de 1886/ 1887). Esta visão de Nietzsche se deve a sua leitura do biólogo Wilhelm Roux, 1881, (RAMACCIOTTI, p. 08, 2008; MARTON, p. 31), bem como o livro "Problemas biológicos" (1882, 2a edição 1884), de Rolph (JUNIOR, p. 403-419, 2010), uma visão transformista e bem aceita no século XIX, que acrescentava causas químicas a mudança/movimento das células - adaptação funcional, isto pela excitação (Lamarckismo) - que pode ser até mesmo por um tipo de alimento. Roux está excluindo a visão teleológica e até mesmo "forças" metafísicas que eram comuns na época, (COLEMAN, 1977; DELAGE, Y e GOLDSMITH, 1909) Ele se situa numa discussão ontogenética (MARIGUELA, p. 03). Diferente (mas não totalmente contrário) de Darwin, em Nietzsche há uma luta mais ínfima, portanto há primeiro, uma luta interna (pré-seleção) e só depois uma luta externa. Primeiro há a mudança dos órgãos e tecidos para depois, estes, irem a "luta no mundo". Esta influencia recebida, não contradiz Darwin, pois se Darwin via a luta acontecer entre os organismos, mesmo não admitindo (ou percebendo) que há uma luta que antecede (luta das células), não desvalida sua teoria, pois depois da luta interna há a luta externa. Os fatores ambientais e alimentares mudam as células obviamente, e portanto a luta muda, pois há novos organismos mudando e indo para a competição, mas para Darwin as mais relevantes são os fatores indiretos, ou seja, os produzidos pelos fatores ambientais, pois eles "aguçam" a uma maior luta. Reduzir os alimentos numa região enfatiza a competição. Se para Darwin essa ênfase se dá pelos fatores indiretos, não contradiz Nietzsche, pois é ai que haverá uma potência também maior, pois desafios são
espaços/situações que promovem ainda mais o desejo de dominar, aquilo que está ao redor (MARTON, p. 37-38) não se confunde entretanto com o sentido tradicional de vontade, a vontade de potência, do terceiro período de Nietzsche, não é teleológico, pois não há um "querer", pois não há uma escolha, é antes ele mesmo, ele lho-é. Resistências, "dificuldades", contrários, só estimulam por querer ser mais, "o ser vivo quer de preferência da livre curso a sua força" (Fragmento póstumo XI 26 [277] do verão/outono de 1884), portanto para Nietzsche a excitação não é mecânica (Roux) e sim uma auto-regulação pela dominação, "necessita de obstáculos que a estimulem, precisa de resistências para que se manifeste, requer oponentes para exercer-se" (MARTON, p. 42). Nietzsche na afirmação de que somos pluralidade, "não somos um sujeito único: há uma pluralidade de sujeitos cuja interação e luta formam nosso pensamento e consciência" (Fragmento póstumo X I 40 [42] de agosto/setembro de 1885), chega pela via filosófica, a algo parecido que a via biológica de Roux. Se para o biólogo cada parte do corpo tem autonomia e tenta se preservar, não pensando na totalidade do corpo, mas em si mesma, para o filósofo igualmente é pensado o sujeito por "sujeitos", ou seja, são as partes independentes e com forças independentes que compõem este ser chamado "indivíduo". Seria diferente para a consciência? Ela também é uma, independente e que luta por força, por vida (Fragmento póstumo X I 40 [21] de agosto/setembro de 1885). Se para Nietzsche a luta é intensa, permanente (Fragmento póstumo XI 27 [27] de verão/outono de 1884), e geral, para Darwin elas são somente momentos que garantem a existência, há intervalos (DARWIN - Origem, p. 119). O cessamento da luta significa morte para Nietzsche (Fragmento póstumo IX 11 [132] de primavera/outono de 1881), a própria condição do dominado jamais o permitiria paz, se há nele a vontade de dominação, mesmo na atual situação de não exercê-la, novos movimentos serão criados ã realização desta vontade, bem como o dominante querer exercer mais ainda seu domínio. É esta a via da permanência, já assinalado no começo do trabalho, e força destacada para esta compreensão.
HIERARQUIA É o resultado das forças. A luta pela existência em determinado ambiente transforma as diferenças que são casuais, em vantagens ou desvantagens para Darwin. Todos querem se adaptar. Forças têm diferentes intensidades, pois cada órgão ou indivíduo se estabelece no meio diferente. Alguns se nutrem
mais, e isso, não visando a conservação para Nietzsche, traz "mais", potencializa a dominação (Fragmento póstumo XII 2[76] do outono de 1885). Na hierarquia, há equilíbrio, pois como haveria luta se os contrários não existissem? Como há vida se ela for estabilizada? Para Nietzsche a dinâmica também obedece o equilíbrio, pois até a luta incessante não destruiria o dominado, pois é este que promove a continuidade da luta, por mais potência, por mais vida. Não se vê portanto, que a adaptação de Darwin (também) possa ser tida como freamento da evolução, ou conservação, pois mesmo na aparente final adaptação o organismo continua lutando, não cessa sua luta interna e nem sua luta externa, o mundo não se cristaliza. Não se pode ler Nietzsche, com o transformismo em que procura elevar sua potência, como contraria a adaptação, pois esta não cessa, "eu sou aquilo que tem sempre que se superar a si" (Za/ZA II Da superação de si). Porque se a preservação de Darwin for lida como conservação, pensa-se inevitavelmente que há um fim, e volta-se a incluir o autor no finalismo. Como se poderia pensar que a conservação fosse também de Darwin (pois a era da ciência da época)? Pois, isto faria da espécie um organismo com ponto de chegada, e talvez até se possa dizer, um organismo que tem uma consciência metafísica que sabe ate quando evoluir e que quando chega "lá" para, se fixa nas suas propriedades. Não seria a luta e seus alcances o maior impulso de vida, isso se vê quando Darwin aposta que as espécies competem, pelo que competem mostra-se apenas o caminho, mas é inegável que de tal competição se visualize a transformação, e esta é irrefreável. Portanto não se pode ver que Darwin fica apenas nos aspectos dos processos fisiológicos do corpo, mas que é por ali que fortemente se inicia a compreensão de potência, eis aqui o encontro de ideias, Nietzsche e Darwin. Vê-se que Nietzsche aponta uma constante ousadia da vida, em que adaptar seria no atual contexto da adaptação ter mais condições de dominar, pois Os meios que se empregam contra a dor são os que reduzem a vida à sua expressão menor possível: nada de vontade, nada de desejo, nada de paixão, nada de sangue; não comer sal, não amar, não odiar; não se perturbar, não se vingar; não se enriquecer, não trabalhar, mendigar; nada de mulheres, ou o menos possível; quanto ao intelecto - bestializar-se. Resultado em linguagem moral: aniquilamento do eu, santificação; e em termos
fisiológicos:
hipnotizado,
hibernação,
mínimo
assimilação compatível com a vida. (GM/ GM 111 &17)
de
A própria filosofia surge na angustia que faz parte da condição humana, pois pessoas satisfeitas não buscam mais, felizes não necessitam de mudança o sofrimento cria. No subproduto da Hierarquia, estão os doentes que não querem se superar e vêem a luta, a dor, o desafio como negações ã vida. Procuram remédios para isso (EH/EH Porque sou tão esperto & 10). Está aí a crítica de Nietzsche ã ciência que se constituiu. Mesmo Darwin, na ciência, rompendo igualmente com Nietzsche com uma natureza equilibrada (criacionismo), não se pode analisar que Darwin faz parte do grupo que vê a luta negativamente, como caminho e não como elemento do todo. Pois para ele, as mudanças qualitativas causadas pela luta, pelo crescimento e permanência da espécie, se confirmam no desaparecimento das que não o fazem, "todo ser orgânico luta para crescer em razão geométrica; todo ser orgânico, em algum período da vida, durante alguma estação do ano, durante todas as gerações ou em intervalos, tem que lutar pela vida e sofrer grande aniquilação" (DARWIN - Origem, p. 129). Portanto, para Darwin, o entendimento de conservação contrariaria a evolução, pois estagnar-se é esperar a morte chegar, o que não é opção ou impulso (Nietzsche). A aparente conservação é uma forma de variação que permitiria a evolução, mesmo a limitada pela "escolha" dos criadores, no caso da domesticação, "a domesticação dos animais promove uma variação maior do que a encontrada na natureza" (DARWIN - Descendência, p. 415). É igualmente o que se vê em Nietzsche, em que o caso de "preservar" é para continuar (FW/GC & 349). Portanto, só se pode dominar por meio da hierarquia, como ação de dominar como ação de superar através da "sustentação do contrapeso das forças mais fracas" (Fragmento póstumo XI 26[276] de verão/outono de 1884).
SUPERAÇAO DE SI MESMO O modo como se vive necessita de superação, Onde encontrei vida, ali ouvi falar a obediência. Todo vivente é um obediente. [...] manda-se naquele que não pode obedecer a si próprio. Tal é o modo do vivente. [...] mandar é mais difícil que obedecer. E não apenas porque aquele que manda carrega o fardo de todos que obedecem, e facilmente esse fardo o esmaga:
Apareceu-me uma tentativa e um risco em todo mandar: e, sempre que manda, o vivente arrisca a si próprio no mandar. Sim, mesmo quando manda em si próprio: também aqui tem ainda de pagar pela mando. Por sua própria lei ele tem de se tornar juiz e vingador e vítima. (Za/ ZA 1112).
Em toda teoria da seleção de Darwin, vê-se que as modificações favoráveis se mantêm, passando à descendência, mesmo não se prevendo qual variação será selecionada na luta, nem o local onde vivem. Não se classifica, por Darwin, qual é a capacidade superior que será selecionada, mas seu sucesso para a manutenção da espécie e de sua posterior reprodução. Essa seleção elimina de vez possíveis resquícios criacionistas, a seleção não se vincula a nenhuma finalidade. O que é favorável (útil) fica e o desfavorável (inútil) é rejeitado (Origem, p. 131). Considerando-se aqui que o processo é admitido por Darwin como multi-causado (DARWIN-Origem, p. 99-100). O tempo passa a ser importante para Darwin, pois as variações sobre essas circunstâncias necessitam de tempo, longo tempo. Mesmo as modificações feitas pelo homem, que acelerariam o processo, necessitam de tempo (diferentemente de hoje). Se levar-se em conta que as características que as espécies carregam são devidas ã seleção na competição pela existência, só há características positivas em todos, e as que "aparentemente" são ruins, é que ainda não foram "rejeitadas". Tal leitura é obviamente feita pelo biólogo que estabelece a divisão do que foi para o que vir-a-ser, mas ainda se trata de uma visão que pretende estabelecer-se no plano biológico apenas. É somente com Nietzsche que se pode fazer filosofia e estender a visão. A "crítica" que Nietzsche estabelece a Darwin, numa primeira leitura parece ã lacuna que há nesta analise, de conservação, quase que uma volta a teleologia, mas, como Darwin não estabelece o que é útil ou não na vida atual da espécie, não é possível entender que uma aparente "inutilidade" serve a espécie em seu equilíbrio de vida, como já falado aqui neste trabalho. O que é "inútil" é o estimulo ao que domina, e este órgão ou variação estaria portanto realizando sua nobre função ã vida e portanto ã seleção. O que é, afinal, 'útil'? Deve-se perguntar 'útil ao que? Por exemplo, o que é útil à conservação do indivíduo poderia ser desfavorável a sua força e esplendor; o que assegura a manutenção do indivíduo poderia, ao mesmo tempo, imobilizálo e congelá-lo em seu desenvolvimento. Além disso, um defeito, uma degenerescéncia pode ser de uma utilidade
extrema, porquanto ela funcione como estímulo de outros órgãos (Fragmento
póstumo
Xll
7
[25]
do
final
de
1 8 8 6 /primavera de 1887).
Portanto, não se poderia pensar que o "inútil" também promove sucesso? Se as formas se desenvolvem por mais impulso, até as formas menos favoráveis também não se desenvolveriam? Se há partes/formas menos favorecidas que não existem mais, não seria certo pensar que há seleção pela utilidade e portanto a luta é pela existência? Não são os dois pensadores responsáveis por descrever como a vida se procede, um na análise da constituição biológica e o outro nas determinantes gerais? A utilidade para Darwin não pode ser julgada enquanto a espécie vive, pois tudo o que há esta em uso equilibrado, em uso e utilidade ã vida. Se houvesse julgamento a citação de Nietzsche faria sentido, pois estaríamos moralizando o biológico. As partes que aparecem extintas, podem ser pensadas tanto pela utilidade quanto pela sua vontade. Pela utilidade se estabeleceria uma ligação física, uma ligação de luta pela existência apenas, e pela vontade pela sua desistência de existir, pela própria morte, como já assinalado. Não é somente um desenvolvimento do estado inferior para o superior, acontece diferente "um após o outro, em desordem, e um contra o outro" (Fragmento póstumo X III14 [133] da primavera de 1888). As acusações que Nietzsche faz ã Darwin, no aforisma "Anti-Darwin", contra o exagero no efeito das condições externas, só se efetivariam e mudariam toda a leitura aqui proposta se Darwin não tivesse admitido que as condições externas tem menos ação na produção de variações. Admitindo isso, Darwin aproxima-se do que Nietzsche considera: A influência das 'circunstâncias exteriores' é superestimada até o absurdo por Darwin; o essencial do processo vital é justamente essa monstruosa potência formadora que, a partir do interior, é criadora de forma, e que utiliza, explora as 'circunstâncias exteriores'..." (Fragmento póstumo XII 7[25] do final de 1886/primavera de 1887).
PROGRESSO - EVOLUÇÃO HUMANA Se as características herdadas são as "vitoriosas" para Darwin, então tudo que se tem nas espécies é evolução. Mas se o que mudou foi para promover preservação, a evolução não deve ser comparativa, hierárquica, mas lida apenas como um processo que destaca o que esta sendo usado. E se esta sendo usado não esta no jogo da luta? No jogo do querer mais poder e dominar? Apontar o que foi mais desenvolvido e chamar de evolução não desvaloriza o que foi "deixado", pois um dia já o foi para a vida. Portanto, mesmo na afirmação de uma "ideologia darwinista" (FREZZATTI Jr. 2001, p. 106), por Nietzsche, não é necessária que esta realmente se funde em Darwin, mas na ciência que procura causa e efeito aplicando-o no social, como se o progresso fosse a chegada do homem, e que o hoje é mais importante e melhor que o ontem. Isto se funda na afirmação de que os que ainda continuam de sua espécie mostraram-se mais "lutadores", que para Darwin pode ser chamado de "superiores", mas apenas do ponto de vista biológico "Os habitantes de cada período sucessivo na história do mundo superaram seus predecessores na corrida pela vida, e são neste sentido, superiores na escala da natureza" (DARWIN - Origem, p. 343; 448). Essa limitação do "apenas biológico" pode ser analisada na citação: Foi argumentado por vários autores que, como poderes intelectuais elevados são vantajosos a uma nação, os antigos gregos, que produziram os maiores intelectos do que qualquer raça já existente, deveriam, se o poder da seleção natural fosse real, ter se desenvolvido ainda mais, aumentando em numero e conquistado toda Europa. Aqui temos a pressuposição tácita, tão freqüente a respeito das estruturas corporais, de que há uma tendência inata para o desenvolvimento continuado da mente e do corpo. Mas o desenvolvimento de todos os tipos depende de muitas circunstâncias favoráveis concorrentes. A seleção
natural
age
apenas
cegamente.
(DARWIN
-
Descendência, p. 507)
Na via do processo que faz as espécies competirem, as competições se mostram mais importantes que fatores ambientais, do que fatores externos (DARWIN - Origem, p. 362). aqui a diversificação das espécies qualifica, isso é exatamente o que converge para Nietzsche, o impulso é maior do que o que se
pode considerar externo (lembra-se que para Nietzsche não há diferença de impulso interno e externo.) Essa posição contra Darwin e o progresso, pode ser reavaliada de Nietzsche, ser recolocada a uma ciência baseada em Spencer e seus seguidores (FREZZATTI Jr. 2001, p. 112). Há uma importante discussão ainda, no que se refere ao progresso moral. Esta discussão abre diversas interpretações na relação dos autores deste trabalho e resultam em análises variadas. O que se pode previamente apontar é que para Darwin há um progresso na moral, na formação do coletivo em que se destaca os instintos de compaixão, este ajuda na seleção natural. É evidente que a moral para Darwin está indissociado da evolução da sociedade e das faculdades racionais, há metas a serem atingidas, em que, "olhando para futuras gerações, não se deve temer que os instintos sociais se enfraquecerão e podemos esperar que hábitos virtuosos tornar-se-ão mais fortes, fixando-se talvez por herança" (DARWIN - Descendência, p. 494). Este valor dado a moral é diferente para Nietzsche, que a entende enquanto domesticação (Zãhmung) (Fragmento póstumo XIII 14 [133] da primavera de 1888). Substituem-se os valores altruístas pela auto-imposição. Na segunda fase de Nietzsche, quando é trabalhado o prazer como luta pela vida (MAI/HHI &104), - pode-se apontar que é por ele que constitui a moral, bem como lho é transmitido pela seleção^. O prazer funda o que é bom para o homem. Observa-se que na terceira fase o prazer e o sofrimento se entrelaçam e formam um complexo. É possível aqui, como propósito desta pesquisa analisar a relação de cultura em Nietzsche como um estímulo externo que forma características específicas, que forma características orgânicas (BITTENCOURT, 2011, p.67-86). Aqui se encontra em Nietzsche a influência da teoria da adaptação funcional de Wilhelm Roux, conforme já citado. Ou seja, uma luta contra visinhos pode ser um grande estimulo externo capaz de criar órgãos. A escolha ativa, quantitativa e qualitativa, dos meios de subsistência
das
células,
que
determina
todo
o
desenvolvimento, corresponde o fato que o homem escolhe também os acontecimentos e os estímulos, ou seja, procede
3 Usado de diferentes maneiras por Nietzsche, a principal e usada como sinônimo de acumulação das forças da humanidade, em que as novas gerações continuem usando o trabalho das passadas. (Fragmento póstumo X I II 15 [65]).
ativamente em tudo que lhe chega de modo contingente. (Fragmento póstumo X 7 [196] da prim avera/verão de 1883)
Entende-se assim, que para formar um novo homem, são necessários condições ávidas. Ainda no tocante ao progresso, a reprodução parece uma "cultura" para Darwin, pois os "aparentes mais fortes" tendem a se reproduzir. Aqui, a constatação do autor fica no campo da necessidade de preservar o que parece ser mais viável à sobrevivência (BOWLER, 1990; CARMO, MARTINS, 2006). A seleção sexual depende do sucesso de certos indivíduos sobre outros do mesmo sexo em relação à propagação da espécie; enquanto a seleção natural depende do sucesso de ambos os sexos, em todas as idades, em relação às condições gerais da vida. A luta sexual é de dois tipos: uma ocorre entre indivíduos do mesmo sexo, geralmente machos, a fim de afugentar ou matar seus rivais, na qual a fêmea permanece passiva; a outra ocorre igualmente entre os indivíduos do mesmo excitar ou atrair aqueles do sexo oposto
-
sexo para
os primeiros
geralmente são fêmeas, que não permanecem passivas, mas selecionam os parceiros que mais lhe agradam (DARWIN Descendência, p. 916).
Mas no caso da passividade da fêmea, esta não poderia se atrair por machos "diferentes", não poderia haver uma atração fora do campo da força ou da atenção? E se não, a atenção que Darwin fala se caracteriza pelo que? Ele não descreve todas as formas de "atrair" dos machos, só no primeiro caso a força é evidente,mas no segundo até mesmo uma fragilidade pode ser atraente. Não se podeseparar, no que se refere a espécie humana, que a cultura também determina o que é "mais forte", "melhor". Nietzsche amplia esta visão reduzida e utilitarista da reprodução, afirmando que não há a escolha apenas como predileção, mas a expansão é mais forte, ou seja, busca-senas espécies o exercício do instinto, de mais potência, e a potência não limita. Curiosa atividade do intelecto! Sob o impulso sexual, uma pessoa deseja outra enquanto meio de se livrar de seu sêmen ou de fecundar o óvulo da parceira casual. É precisamente isso que ignora o intelecto: ele se pergunta: porque essa cudipez? Ele avalia tudo o que torna uma pessoa desejável e declara: é necessário acreditar que essa pessoa possuía bastante de todas as
qualidades que a tomam desejável! (Fragmento póstumo IX 11 [127] da primavera/outono de 1881). Se na luta pela existência de grupo, com o argumento do surgimento da moral, e pela luta pela reprodução, com a escolha dos mais fortes, são diferentes entre Nietzsche e Darwin, o que se pode apontar como convergentes? Algumas bases sobre as quais estão assentados o processo seletivo podem conter diferenças, mas a base mais importante não pode ser negada, é aquela que permite a convergência dos autores e o significado da movimento, da vida, das mudanças nas espécies, é a potência por mais vida, por mais existir, por mais afirmação.
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ANEXO 1 Seguiu-se para referenciar Nietzsche a conveção utilizada pela revista "Cadernos Nietzsche" que adota a proposta pela edição Colli/ Montinari das Obras Completas de Nietzsche. Siglas em português acompanham, porém, as siglas em alemão, no intuito de facilitar o trabalho de leitores pouco familiarizados com os textos originais. I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche: 1.1. Textos editados pelo próprio Nietzsche: GT/NT - Die Geburt der Tragòdie (O nascimento da tragédia) DS/Co. Ext. 1 - Unzeitgemãsse Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss: Der Bekenner und der Schriftsteller {Considerações extemporâneas 1: David Strauss, o devoto e o escritor) HL/Co. Ext. 11 - Unzeitgemãsse Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben {Considerações extemporâneas 11: Da utilidade e
desvantagem da história para a vida) SE/Co. Ext. III - Unzeitgemãsse Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer ais Erzieher {Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como educador) WB/Co. Ext. IV - Unzeitgemãsse Betrachtungen. Viertes Stück: Richard 'Wagner in Bayreuth {Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner em Bayreuth) M AVHHI - Menschliches allzumenschliches (vol. 1) {Humano, demasiado humano (vol. 1)) MA II/HHII - Menschliches allzumenschliches (vol. 2) {Humano, demasiado humano (vol. 2)) VIVVOS - Menschliches allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen {Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sentenças) WS/AS - Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein Schatten {Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra) M/A - Morgenrôte {Aurora) IIVVIM - Idyllen aus Messina {Idüios de Messina) FW/GC - Diefrõhliche Wissenschaft (A gaia Ciência) Za/ZA - Also sprach Zarathustra {Assim falava Zaratustra) JGB/BM - Jenseits von Gut und Bõse {Para além de bem e mal) GIVVGM - Zur Genealogie der Moral {Genealogia da Moral) WA/CW - Der Fali Wagner (O caso Wagner) GD/CI - Gõtzen-Dãmmerung {Crepúsculo dos ídolos) NW/NW - Nietzsche contra Wagner I. 2. Textos preparados por Nietzsche para edição: ACyAC - Der Antichrist (O anticristo) EH/EH - Ecce homo DD/DD - Dionysos-Dithyramben {Ditirambos de Dioniso) II. Siglas dos escritos inéditos inacabados: GMD/DM - Das griechische Musikdrama (O drama musical grego) ST/ST - Sócrates und die Tragòdie {Sócrates e a Tragédia) DW/VD - Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo) GG/NP - Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trágico) BA/EE - Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten {Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino) CV/CP - FünfVorreden zu fü n f ungeshriebenen Büchern {Cinco prefácios a cinco livros não escritos) PHG/ET - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen {A filosofia na época trágica dos gregos)
W l/V M - Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn {Sobre verdade e mentira no sentido exti'amoral) III. Sigla dos fragmentos póstumos: NachIass/FP IV. Edições: KGB = Briefwechsel: Kritische Gesamtausgabe KGW = Kritische Gesamtausgabe KSA = Werke: Kritische Studienausgabe KSB = Samthche Briefe: Kritische Studienausgabe V. Formas de citação Para os textos pubhcados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará a seção; no caso de GIVVGM, o algarismo romano anterior ao arábico remeterá à parte do livro; no caso de Z^ZA, o algarismo romano remeterá à parte do livro e a ele se seguirá o titulo do discurso; no caso de GD/CI e de EI^EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao titulo do capítulo, indicará a seção. Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano, conforme o caso, indicará a parte do texto. Para os fragmentos póstumos, os algarismos arábicos, que se seguem ao ano, indicarão o fragmento póstumo.
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LAMPEfâ
ENTRE AS LACUNAS DO PASSADO E DO FUTURO; EM BUSCA DA RECONCILIAÇÃO ANDERSON SILVA RODRIGUES^ JOSÉ JOÃO NEVES BARBOSA VICENTE^
Resumo: O presente artigo tem por objetivo discutir as noções de história e pensamento a partir da obra Entre o passado e o futuro de Arendt e apontar uma possível solução sobre a problemática que perpassa o nosso século: o fenômeno do inesperado e a intromissão da violência na esfera pública. Palavras chave: História; Política; Pensamento; Reconciliação. Between the gaps o fp a st and future: in search o f reconciliation Abstract: This article aims to discuss the notions o f history and thought from the book "Between Past and Future” Arendt and point out a possible solution to the problems that permeates our century: the phenomenon and the unexpected intrusion o f violence inside the public sphere. Keyworãs: History; Politics; Thought; Reconciliation. 1 Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). E-mail: asr_455@hotmail.com 2 Graduado e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor de Filosofia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). E-mail: iosebvicente@bol.com.br
rendt trata de denunciar o corte entre o passado e o futuro realizado pela modernidade iniciada, sobretudo, por Hegel e Marx que, por anseio a práxis e a ação política perderam a crença e a fé na tradição antiga que via na razão a luz que deve guiar a humanidade em sua trajetória. Para Arendt, ambos os autores deram o passo inicial que, em certa medida, acabou levando os teóricos procedentes a avançarem pelo mesmo caminho, numa grande insistência a dar pernas à filosofia, num esforço por tirá-la do âmbito das ideias e colocá-la a disposição da política.
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Porém, ao deixarem de lado valores e conceitos que sempre moveram a humanidade, sem perceber, acabaram deixando escapar aquilo que Arendt chama de fenômeno do "inesperado", o que resultou na perda do poder público e na intromissão da violência nos negócios humanos. Tais fatos se deram por conta da perda dos ideais das revoluções, por não transmitirem a memória das gerações vindouras e pela falta de competência da tradição moderna por não possuir categorias e noções necessárias que pudessem guiar o homem, o que acarretou em crise que se perpassa até os dias atuais. Assim, através da interpretação da parábola de Kafka, que trata dos processos internos do pensamento, a autora reconcilia tempo-pensamento, pondo a filosofia em terra firme, a disposição da realidade temporal. Ao analisar os eventos que ocorreram na modernidade e contemporaneidade, sobretudo os elementos que constituíram o fenômeno do totalitarismo, como aparecem em sua obra Origens do totalitarismo (1989), Arendt percebera que essas ocorrências não tiveram precedentes na história, sendo fatos que fugiram da sua normalidade e, que, a modernidade, ao invés de proporcionar categorias necessárias que pudessem guiar o homem em sua ação, acabara ocultando a luz da tradição, fazendo com que se perdesse o rumo do futuro, tornando-o incerto rachando a lacuna entre o passado e o futuro. No prefácio do seu livro Entre o passado e o futuro (1972), Arendt explica que, por conta da onda de revoluções que ocorreram entre o final do período moderno e a necessidade de mecanismos de atuação política, os teóricos fizeram um corte com o pensamento clássico metafísico a fim de proporem noções e categorias que pudessem guiar o homem neste engajamento prático, desviando do foco filosófico a ideia de razão enquanto necessidade e guia da humanidade, para suplantá-la pela ideia de História, indicada como o novo guia prático, como pensava Hegel, ou a luta de classes, que propunha o fim da
história, que encaminharia para o fim do Estado e consequentemente alcançaria a tal sonhada liberdade, como pensara Marx. Esse novo debate trazia consigo a noção de práxis, tirando a filosofia do inalcançável âmbito das ideias para colocá-la em terra, surgindo assim, a corrente materialista. Aí o homem deixara de ser concebido como naturalmente racional para se tornar meio, o mecanismo que faz movimentar a História; para ser mais preciso, Hegel falara que a compreensão, o pensamento sobre a própria História é o que reinventa o homem no mundo. De acordo com Arendt (1972, p.45), Marx não inverteu tanto assim a dialética hegeliana, como pensam muitos, mas apenas mudou a ordem dos seus conceitos "entre pensamento e ação, contemplação e trabalho, e Filosofia e Política". Com Marx, a História deixou de ser uma compreensão do passado para ser uma projeção do futuro. Ou seja, ela passou a ser concebida como a ferramenta que guia o homem em sua ação política, onde tem por fim a realização de si mesmo, coincidindo com o fim do Estado e em última instância a abolição do trabalho, tornando-o livre para o ócio, para a atividade filosófica. Nessa medida, Marx tirara de campo a razão para conceber o homem como animal laborans, substituindo a clássica sentença aristotélica do homem enquanto animal do logos, um ser que se realiza pela política. No entanto, o utopismo exagerado de Marx acabara transcendendo o seu sistema, e, enquanto a Hegel, esquecera, sobretudo, de tratar das contingências que emergem no desenrolar da História. Ao perder a crença e fé na razão que sempre fora defendidas pela tradição, esses filósofos deram o passo inicial que, em certa medida, acabou levando os teóricos procedentes a prosseguirem pelo mesmo caminho, como o caso de Kierkegaard que salienta a condição sofredora do homem, descaracterizando-o enquanto ser racional, e Nietzsche, que martela a razão e traz a tona a sua concepção de vontade de poder. Depois desses, as demais correntes perderam de vez o freio, e a ação perante o presente passou a se tornar o foco central da reflexão filosófica, o que acarretou no ocultar dos acontecimentos e fenômenos futuros. A tradição já não era capaz de propor categorias necessárias que pudessem lidar, entender e evitar aquilo que no entender de Arendt, tratava-se do fenômeno do inesperado, ou seja: da tomada da violência para dentro da esfera política, o que acabou ocasionando nos regimes totalitários do século XX que, seguido pela ciência e pelo desenvolvimento das técnicas e dos aparatos de guerra, se tornara um episódio novo na história da humanidade, o que levou a autora a refletir sobre a compreensão de História e a lacuna entre o passado e o futuro. Portanto, a tradição tinha esfacelado e esquecido da memória os valares
que sempre guiaram e nortearam a humanidade e, assim, ao tentar dar pernas à filosofia, acabaram esquecendo aquilo que estava evidente em seu tempo, o fenômeno da violência, deixando escapar a contingência do por vir, o inesperado. Ainda em seu prefácio, Arendt (1972) irá nos mostrar na "história das revoluções - do verão de 1776, na Filadélfia, e do verão de 1789, em Paris, ao outono de 1956 em Budapeste -, que decifram politicamente a estória mais recôndita da idade moderna", a luta de homens que se viram obrigados a lutarem perante as condições políticas insatisfatórias de seu tempo, despertando-se e marchando rumo ao alcance daquilo que Kant (2005, p.63) chamará de saída do estado de "menoridade". Porém, alcançada a vitória nas revoluções, o que possibilitou a tomada do poder público, os atores da luta e conseguintemente também as gerações futuras não foram capazes de assegurar e perpetuar o poder conquistado. O tesouro das rebeliões, um estado livre e público não foi dado continuidade, deixando-se diluir pela falta de vigor. "Assim" diz Arendt (1972, p.31), " é que os primeiros a fracassarem no recordar como era o tesouro foram precisamente aqueles que o haviam possuído e o acharam tão estranho que nem sequer souberam como nomeá-lo". A memória dos ideais da revolução fora esquecida e não transmitida as gerações póstumas, o que acarretou na perda do poder, passada novamente para as mãos do governo, fato que se perpetua até os dias atuais. Contudo, antes de tudo isso acontecer, um grupo seleto de artistas tiveram a capacidade de enxergar o que estava a ocorrer, como explicitará Arendt, citando um aforismo do poeta francês René Char que afirmara: "Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento" (ARENDT, 1972, p. 28). O caráter da máxima do poeta revela a falta de capacidade do povo da sua época em administrar a esfera pública, da incapacidade de lidar com o poder. Desta forma, vale ressaltar que a noção de memória dentro do pensamento da filósofa é de suma valia, pois como fora mostrado acima, sem o ato de relembrar a importância da luta, deixando esvair-se os ideais e deixando-os cair no puro esquecimento e não perpassando para as gerações futuras, para que estas possam dar continuidade a ação política, a tendência de fato é perder aquilo que se conquistou com muito esforço, e aí, o esquecimento das massas se torna o maior inimigo. A perda da tradição clássica, a falta de categorias para lidar com a tomada do poder, bem como o esquecimento dos ideais, foram os ocasionadores da crise na modernidade. Tal problemática se tornou uma bolha que fora inflamando e acabou explodindo na contemporaneidade, resultando
no inesperado, sobretudo no fenômeno do totalitarismo, uma das maiores catástrofes que a humanidade já presenciou. Os gregos livres, os chamados cidadãos, se voltavam para o oficio do exercer a política, que era realizada na polis: "[...] conduziam seus negócios por intermédio do discurso, através da persuasão (péithein), e não por meio de violência e através de coerção muda" (ARENDT, 1972, p. 50), como se constata na modernidade e, sobretudo nos dias atuais. Ademais, a confiança na razão era o norte que os guiava e dava sentido ã vida, porém, toda essa noção foi negada pela tradição que os sucederam, e assim, a mesma fora desvalorizada, negada todo o seu brilho e valor que tivera outrora. Do mesmo modo, a república romana ainda em seus primórdios também fora modelo de política, sabendo dividir a esfera pública do privado, onde um conselho composto por senadores, que detinham a tarefa de representar o povo, ficava a cargo da ação política, movida, sobretudo, pelo debate e discussão, assim como os gregos livres da polis. Além do esquecimento da noção de política e ação, outras noções gregas como o conceito de autoridade e liberdade, por exemplo, se perdera ou fora transformada pela modernidade. Deste modo, a partir de uma parábola de Franz Kafka, que permitirá revelar aquilo que está oculto entre o passado e o futuro, numa acepção sobre os processos internos da mente que resultará na compreensão e noção de tempo-pensamento, Arendt irá descortinar a reconciliação entre o passado e o futuro, que se faz pela luz do pensamento e se constitui dentro da realidade temporal, o que permite assegurar ao homem categorias necessárias e meios capazes de lidar com os acontecimentos que se desenrolam^. Kafka, o autor que considerava o pensar a tarefa mais vigorosa do homem, fora um dos grandes teóricos a tentar desenterrar o interior do pensamento. Através da sua parábola ele investigou os processos internos que ocorrem sobre o homem quando se posta a sua tarefa de maior vigor. Assim sendo, na interpretação de Arendt sobre a parábola, a cena sugere um campo de batalha onde pode ser notado duas ou três lutas simultâneas. A primeira força caracterizada pelo passado, empurra "Ele" para diante, e a segunda. 3 "A parábola é a seguinte: Ele tem dois adversários: o primeiro acossa-o por trás, da origem. O segundo bloqueia-lhe o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro ajuda-o na luta contra o segundo, pois quer empurrá-lo para frente, e, do mesmo modo, o segundo o auxilia na luta contra o primeiro, uma vez que o empurra para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois não há ali apenas os dois adversários, mas também ele mesmo, e quem sabe realmente de suas intenções? Seu sonho, porém, é em alguma ocasião, num momento imprevisto - e isso exigiria uma noite mais escura do que jam ais o foi nenhuma noite -, saltar fora da linha de combate e ser alçado, por conta de sua experiência de luta, à posição de juiz sobre os adversários que lutam entre si" (ARENDT, 1972, p.33).
representada pelo futuro, bloqueia a sua frente, empurrando-o de volta para trás. Desta forma, "Ele" está entre as duas ondas, que se insere no meio de ambas, recebendo o choque do embate da batalha realizada pelas forças antagônicas do passado e do futuro, e, que, para permanecer em seu território, deve combatê-las. Assim, por mais que estejam se gladeando continuamente, esses dois domínios acabam se tornando aliados dele na medida em que se confrontam, isso, porque, enquanto a primeira o impele para frente, ao mesmo tempo está tentando fazer com que "Ele" ultrapasse a barreira posta pelo futuro, e, enquanto a segunda, ao apará-lo após ser arremessado pelas forças do passado, o segura e o arremessa de volta. Ademais, o que se vê no interno dessas ocorrências, prossegue a autora em sua análise, é que a luta se faz em direção e em torno do personagem central, denominado por Kafka, de "Ele". Este, segundo Arendt, identifica-se com o homem mesmo; no entanto, isto não consiste em seu sentido concreto, mas, antes, naquilo que o caracteriza, seu vigor, ou seja, o seu próprio ser. E ambas as potências do passado e do futuro se emergem na direção "Dele", já que este se encontra no meio do embate, e, sem ele, elas não poderiam amortecer o seu choque provocado pelo encontro, e assim, cindiriam ao colidirem entre si. Prosseguindo sobre o raciocínio da pensadora, o que também se constata no interno da parábola é que o passado caracteriza-se como uma força, e é esta tal força que faz mover o homem, ela é o motor engrenador que o conduz. Esta constatação é de suma importância, já que coloca em cheque a opinião tradicional de que o futuro é o gás que move o homem na história, rebaixando o passado a uma espécie de fardo que deve ser superado, como algo sem valia para o rumo da história da humanidade. Ainda recorrendo da interpretação da filósofa sobre a metáfora de Kafka, o "Ele", através do sonho, aqui entendido pela própria concepção de pensamento, escapa para fora da linha do combate temporal, pois, por tanto sofrer pelo choque, adquirira experiência de combate necessária capaz de fazêlo refletir. Portanto, o ato do pensar seria o meio que o desligaria do contínuo confronto que se realiza perpetuamente no tempo e o encaminharia, o libertaria para o atemporal, o metafísico, o suprassensível concebido pela filosofia de Parmênides a Hegel, que se dá pelo ato da reflexão. Desta forma, do ponto de vista do homem que consegue se livrar do embate promovido entre as respectivas potências antagônicas e transporta-se, em um ato de fuga, para outra região, o tempo deixa de ser uma cadeia sucessiva e ininterrupta, que se desenvolve num fluxo contínuo dos acontecimentos. Porém, como dirá Arendt
(1972, p.37-38), naturalmente, "o que falta à descrição kafkiana de um eventopensamento é uma dimensão espacial em que o pensar se possa exercer sem que seja forçado a saltar completamente para fora do tempo humano". Ou seja, faltou ao literato definir a região em que ocorre o sonho, o ato do pensamento, pois se ele trata de uma fuga do ser para fora do tempo, longe das forças do passado e do futuro, que se daria através do ato de pensar, entende-se que Ele prosseguiria para uma esfera atemporal, onde o homem estaria livre das infinitas forças temporais. Também, a autora crítica Kafka pelo fato de que a liberdade proporcionada pelo pensamento seja limitada. A fuga para fora da linha do confronto, para fora do tempo não seria para sempre, uma evasão definitiva, se não passageira, já que está fora do alcance humano permanecer pra sempre mergulhado na esfera do pensamento, logo, tal liberdade é temporária, e em certa medida, ilusória, pois o desvia da realidade, a qual deveria se dedicar e permanecer, defendendo seu território contra as forças do passado e do futuro. Portanto, Arendt, acrescentando a parábola de Kafka, dirá que a fuga do ser se dá no próprio pensamento, pois, refletir é acordar, é estar vivo, pensar é "reconciliar-se com mundo", pois, uma vez que o próprio homem se encontra no centro da batalha, ele se torna capaz de tomar parte desta luta, tornando-se o juiz do combate. Assim, adicionando a metáfora e refletindo no ponto onde faltou ao literato, Arendt coloca o homem dentro do tempo, que, por meio do seu vigor, ele seria o produto do passado e do futuro, mas na medida em que é senhor, imperando sobre estas forças, elucidando e coletando elementos que compõem o passado e os trazendo para o seu tempo presente, numa manobra de ida e volta, sabendo recuar quando necessário, para poder prosseguir com cautela e previsibilidade, pondo-se a caminho da história e do futuro, conduzindo a si mesmo para que não venha deixar acarretar possíveis crises advinda da falta de memória, da carência de noções e categorias que possam guiar o homem no seu caminhar, como ocorrera no caso da perda do tesouro conquisto pelas revoluções, que fora deixado escapar pelas mãos. Portanto, para se guiar no rumo da história é preciso saber-se conduzir pela luz advinda do pensamento, utilizando-o como ferramenta para voltar e revirar o passado para assim alcançar um futuro mais aceso, onde a humanidade se ergueria novamente, num possível levante vindo a sair da crise que lhe cerca. Esta manobra tende a reerguer a humanidade, vindo a florescê-la, tornando a vida mais digna e a enchendo de sentido.
O que Arendt pretendeu de fato ao interpretar a parábola de Kafka, foi retirar a razão do âmbito suprassensível para torná-la temporal, reconciliando filosofia e realidade, como pretendia Marx e a tradição póstuma. O pensamento, segundo a autora, está entre a lacuna do passado e do futuro, naquilo que costumam chamar de presente. O pensar se encontra no meio do tempo e não fora dele, e tanto o passado quanto o futuro se atualizam neste meio, determinando o rumo e os acontecimentos da história, e para evitar possíveis conseqüências que costumam surgir desta luta continua, basta ao homem tomar a posição de juiz e cessar este fluxo, defendendo seu território. Isto se faz dominando as duas potências e usando-as ao seu favor. E para a conquista de ambas, como fora dito antes, é necessário a utilização do pensar, que desta forma estaria a cargo da realidade, da história. Assim, o homem se tornaria o guia de si mesmo, saberia prosseguir com maior clareza, minimizando ou evitando as trevas advindas da ignorância, que resultam no fenômeno do inesperado. Deste modo, a razão reencontra o seu status de luz, como concebiam os gregos, a filósofa coloca-a a cargo da realidade, todo seu esforço seria para esclarecer e mostrar o caminho mais adequado a prosseguirmos na história, vasculhando e filtrando o que fora deixado para trás, para assim encontrarmos a lupa que nos facilitará a observar o futuro incerto. É pela exigência em garantir a paz, a dignidade, a segurança e a preservação do próprio homem que nos reconciliamos com o mundo. Se soubéssemos utilizar o pensamento para lidar com todas estas questões cessaríamos a vontade de dominação, a ignorância extrema e a banalização da violência, elemento característico do nosso século. Sobre isto, em Entre o passado e 0 futuro, Arendt tem exatamente o intuito de nos fornecer experiências que nos servem de lição para que possamos começar a pensar em como reconciliarmos, mas não se trata de deduções lógicas do pensamento, pelo contrário, trata-se, em suma, de experiências históricas, concretas e reais. Pensar sobre fatos e fenômenos correntes. E para finalizar essa reflexão, utilizo de uma frase da própria Arendt (1972, p.40), que nos revela a crise que está por de trás do nosso século: "o problema, contudo, é que, ao que parece, não parecemos estar nem equipados nem preparados para esta atividade de pensar, de instalar-se na lacuna entre o passado e o futuro".
Referencias bibliográficas:
ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. __________ . Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1972. KANT, I. Textos seletos. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 2005
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A SABEDORIA DO DESESPERO OU COMO CONSTRUIR A FELICIDADE SEGUNDO COMTE-SPONVILLE ANDRE COSTA SANTOS^
Resumo: Embasado em pesquisa bibliográfica, no presente artigo, busca-se compreender a definição de desespero presente, de maneira original e pungente, na filosofia de André Comte-Sponville, e relacioná-la com a construção da felicidade. Segundo Sponville, o desespero é condição necessária e indispensável para compreender a natureza e ou matéria como fundamento de si mesma. Todos os males da humanidade são debitados, segundo o pensador em estudo, da virtude teologal da esperança. Sponville se apressa em apresentar sua própria virtude pessoal: o desespero, remédio contra o veneno da esperança. A felicidade, por sua vez, é o resultado de todo desespero. Quem nada espera, realiza mais facilmente todos os seus desejos e se rejubila com a vida tal como ela é. Nesse sentido, a felicidade é verdadeira e possível. Se verá, portanto, que a sabedoria do desespero abri caminhos para a construção de uma felicidade desesperada. Palavras-chaves: Sponville, desespero, sabedoria, ética, felicidade.
1 Pós-Graduaçao em Filosofia e Ensino de Filosofia e Pós em Aconselhamento Filosófico. Atualmente sou Tutor Presencial dos Cursos de Filosofia, Geografia e Teologia do Claretiano Rede de Faculdades.
1. INTRODUÇÃO tema do desespero é fundamental para compreender como a desilusão é uma marca característica do tempo em que vivemos. O ser humano vive à procura de sentido para a sua existência, e muitas vezes encontra esse sentido em esperanças que não se concretizam, causando frustração e decepção. Como despertar o homem do sonho de esperanças enganadoras? Como iluminá-lo, a fim de perceber, que sua felicidade começa com a morte de toda a esperança? Pesquisar sobre o problema do desespero é importante para que possamos ter uma compreensão da atual condição do homem no mundo e por quais caminhos andar até que chegue ã felicidade.
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Comte-Sponville é um pensador que reflete sobre o desespero. Ele abre caminhos para que se faça uma análise crítica da atual condição da sociedade, muito mais do que apontar caminhos a ser seguido, o filósofo se preocupa com os princípios que justificam a ação do homem no mundo da vida. Ao pesquisar sobre o problema do desespero em Comte-Sponville pretende-se estabelecer uma relação entre o desespero, como forma de afirmar a vida, com os atuais problemas da sociedade contemporânea, entre eles, a busca pela felicidade ou sua negação, a frustração/desilusão. Mas estaria realmente a desilusão relacionada com a tradição judaico-cristã? Ou seria ela fruto do ateísmo pratico da sociedade ocidental? Qual será o critério da felicidade? Responder tais questões não é tarefa fácil, mas de suma importância para a compreensão do homem na sociedade atual, e para entender e buscar possíveis soluções para as mazelas que atingem a sociedade contemporânea.
2. CONCEITO DE DESESPERO SEGUNDO COMTE-SPONVILLE Antes de apresentar a definição de desespero, faz-se necessário clarear a compreensão que Sponville tem de esperança. Para ele, existem três características que definem o que seja esperança, a saber: esperar é desejar sem gozar, esperar é desejar sem saber e esperar é desejar sem poder (SPONVILLE, 2001, p 58). Isto é, o que pertence ao futuro nos escapa, não podemos experimentar o seu gozo efetivo e realizador, por isso esperamos sem gozar; mas também não depende de nós garantirmos que o nosso desejo foi ou será satisfeito, o que inevitavelmente nos obriga a esperar sem saber; uma vez que esperamos sem gozar e sem saber, concluímos que sempre esperamos o que não depende de nós ou o que não temos a devida capacidade de fazer, forçando-nos a esperar sem poder. Como se vê, o ponto de partida para toda a
compreensão da esperança, e consequentemente do desespero, é o desejo. Como Sponville diz: "[...]temos de partir do desejo. Não apenas porque o desejo é a própria essência do homem, mas também porque a felicidade é o desejável absoluto [...], e enfim porque ser feliz é ter o que desejamos" (SPONVILLE, 2001, p. 24-25). Comentando a compreensão de desejo para Sponville, Firmino e Kaitel declaram: O filósofo André Comte-Sponville propõe que, em uma discussão acerca do tema da felicidade, um primeiro ponto a se investigar é a questão do desejo, pois, "ser feliz é — pelo menos numa primeira aproximação — ter o que desejamos". Nesse ponto, o autor critica a noção platônica de desejo — entendido como falta — e afirma que, se levarmos em consideração aquilo que é proposto em Platão — "o que não temos, o que não somos, o que nos falta, eis os objetos do desejo e do amor" Porque o desejo é falta, e porque a falta é um sofrimento. Como você pode querer ser feliz se lhe falta, preciosamente, aquilo que você deseja? Se o desejo ê falta, só desejamos o que não temos. O que acontece ê que após a sua satisfação já não há falta, portanto não há desejo. A partir daí temos o que desejávamos, mas não o que desejamos. (FIRMINO; KAITEL, 2014, p. 477).
Como podemos perceber, desde Platão, o desejo é falta. E como a falta nos traz sofrimento, e só sofremos porque esperamos, deve-se abandonar toda a esperança: "A última esperança é não ter mais o que esperar" (SPONVILLE, 2006, p. 11). Talvez a sentença mais aguda contra a esperança, concretizada por nosso filósofo em estudo, tenha sido essa: "Cada nova esperança só existe para tornar suportável a nãorealização das esperanças precedentes, e essa fuga perpétua em direção ao futuro é a única coisa que nos consola do presente" (SPONVILLE, 2006 p. 7). Ou seja, toda forma de angustia, ansiedade, cansaço, mal-estar, desilusão, frustração, crise existencial e decepção, são conseqüências diretas para os que vivem de esperança em esperança. A esperança além de provocar esses males, os reproduzem indefinidamente. Se diz que "quem espera sempre alcança", ã moda sponvilleana, na verdade, é quem nada espera que alcança tudo. Citando Spinoza, ele afirma que "da esperança frustrada nasce uma tristeza extrema. E que esperança não é frustrada? Não háesperança que não seja impotência da alma e promessa de tristeza" (SONVILLE, 2006, p. 17). Como a esperança é um mal ou uma pedra no caminho da existência, ComteSponville propõe-nos o desespero como redenção. Mas ele mesmo reconhece que o desespero nunca é primeiro:
Porque o desespero, mesmo o mais neutro, nunca é um estado original; sempre supõe a forma previa de uma recusa. A esperança é primeira; logo, é necessário perdê-la. O des-espero indica essa perda, que não é a princípio um estado, mas uma ação. O desespero sempre vem depois. É a ave de Minerva da alma, e seu começo (SPONVILLE, 2006, p. 16).
Fazendo uso da imagem da ave de minerva, Sponville deixa clara a necessidade de se fazer morrer toda esperança, para, do pó dessa, ressurgir o desespero, como salvação e redenção, pois quem nada espera, tudo alcança. Já na introdução da sua já afamada obra Tratado do desespero e da Beatitude, Comte-Sponville (2006) torna pública a sua vontade de escrever um tratado do desespero como saúde da alma, e que estaria para a esperança assim como a serenidade está para o medo. E sentencia que "a minha virtude teologal é o desespero" (SPONVILLE, 2006, p. 16). Já é publica a opção de Sponville pelo ateísmo materialista. O materialismo é um pensamento trágico, para o qual, o que tem mais valor (a vida, o espírito) é justamente o que vai morrer [...] o que posso esperar? Nada além da morte, logo nada de absoluto: 'todo o contentamento dos mortais é mortal', e a vida só vale, se é que vale, em sua finitude (SPONVILLE; FERRY, 1999, p. 34).
A esperança prende o homem num futuro não realizado, justamente porque ela está fundamentada no absoluto. Sabedoria dos antigos. Sabedoria materialista. Na concepção sponvilleana, materialismo e desespero andam juntos porque a realização está nesse mundo, e não para além dele. E ainda testemunha "o que aprecio no materialismo é, antes de mais nada, esse desespero. Não crer em nada. Considerar a natureza sem acréscimo estranho: a natureza indiferente, sem esperanças nem temores" (SPONVILLE, 2006, p. 18). Mas a final, o que é mesmo o desespero sponvilleano? Ele mesmo reponde: [...] o desespero, no sentido em que o considero, é um estado neutro. É o grau zero da esperança. Nada mais, nada menos. É uma espécie de estado sem futuro [pois não há futuro que não seja de esperança], cuja possibilidade e cuja conseqüência trata-se, precisamente, de avaliar. O desespero é o próprio presente. Em outras palavras: a eternidade de viver [...] Sim, é um tratado do desespero que empreendo
aqui; mas não como doença mortal [...] Quaro escrever um tratado do desespero como saúde da alma (SPONVILLE, 2006, p. 15-16).
Desse modo, o desespero como força, empurra o homem para a vida, para o presente, arranca seus pés de um futuro incerto. Um desespero que não pode ser identificado com a tristeza ou o tormento de um suicida. Comte-Sponville continua: O desespero dá asas. Quem perdeu tudo, torna-se leve, leve... não vejo nisso um elogio da tristeza, antes o contrário. A tristeza é sempre um fardo pesado. O desespero não é a infelicidade [...] ele é muito mais próximo da própria felicidade. O homem feliz é aquele que, como se diz, não tem mais nada a esperar (SPONVILLE, 2006, p. 26).
Por tanto, o desesperado é feliz justamente por nada esperar; a sua vida é vivida no agora da história. Para o desespero a máxima de cada dia: Carpe Dien. Viver bem para bem viver.
3. DESESPERO E SABEDORIA OU A SABEDORIA DO DESESPERO Ainda o desespero. "A iínica salvação está em renunciar a salvação. A salvação será inesperada ou não será" (SPONVILLE, 2006, p. 29). Segundo ComteSponville existem três verdades ou níveis do desespero: Há, primeiro, o que poderíamos chamar de desespero descritivo, cuja fórmula ('primeira verdade santa') é o celebre sarvan dukkham, 'tudo é dor': 'o nascimento é dor, a velhice é dor, a doença é dor, a morte é dor, a união com os que detestamos é dor, a separação dos que amamos é dor, não obter o que desejamos é dor [...]. A segunda 'verdade santa' expõe o que poderíamos chamar de desespero etiológico, já que se refere ã causa do sofrimento. Ora, essa causa é a própria esperança que nos tortura, o que Buda chama de 'a sede' [...] a terceira 'verdade santa' expõe uma espécie de desespero programático: se a origem da dor é a sede, a supressão da dor supõe a não-sede - o que chamo de desespero (SPONVILLE, 2006, p. 32).
Sistematicamente podemos resumir as três verdades da seguinte maneira: a vida é desesperadora ("tudo é dor"); a causa é a esperança ("a sede"); o remédio é o desespero ("o fim da sede").
Comte-Sponville tem a preocupação de ligar o desespero à beatitude, daí o título de sua principal obra Tratado do desespero e da Beatitude (2006). Nessa obra, ele faz uma séria análise da situação do homem no mundo atual. A pós-modernidade, o niilismo, a vida sem sentido, o tempo da desilusão, a morte de Deus, o fim das ideologias; a crise das instituições; tudo isto é ao mesmo tempo ameaça e oportunidade para o ser humano. Certeza das incertezas, eis a marca do nosso tempo. Mergulhados nessas incertezas e no absurdo da existência, como também a confirmação da morte de Deus por parte de muitos hoje em dia, fica o questionamento: como transformar o poder e o fazer em melhor qualidade de vida? A essa pergunta Sponville expõe seus próprios questionamentos e angústias perante a limitação do homem e o fim de seu ideal de existir, a saber: a felicidade. Caindo no círculo vicioso do individualismo, fechado em si mesmo, o homem de hoje se sente totalmente abandonado, desiludido, angustiado, entediado, sem forças para romper as amarras egoístas, e o que é pior, descrente da mudança nos rumos da sociedade em que vive. O cansaço abateu-se sobre o homem pós-moderno e fez dele um ser profundamente decepcionado, como nos é testemunhado: Nosso tempo seria o tempo do desespero. A morte de Deus, o perecimento das igrejas, o fim das ideologias... mas, vejo nisso muito mais uma obra do cansaço. Por estarem decepcionados, creem-se desesperados... mas, se estivessem de fato desesperados, não estariam decepcionados. Nosso tempo não é o do desespero, mas o do desapontamento. Vivemos o tempo da decepção. (SPONVILLE. 2006, P ,7).
E o que provoca esse cansaço e essa decepção? Nosso filósofo diz que o causa de todo esse desapontamento, decepção e o cansaço se devem ã esperança. Ela é a grande vilã da história da humanidade. Abandonando-a, vive-se mais sabiamente. Só a sabedoria é capaz de dar ao homem as condições necessárias para atravessar os labirintos da existência. Com essa proposição, Sponville tem a ousadia e originalidade de dar ã filosofia a oportunidade de voltar às suas fontes primeiras, recuperando seu sentido de amor pela sabedoria. O sábio, diante da atual situação de desencantamento e decepção - com tudo que abarcam - terá a postura de nada mais esperar e tudo viver, de viver bem e bem viver, de ter na filosofia o seu mais alto grau de expressão: "pensar sua vida, portanto, e viver seu pensamento: prazer e grandeza da filosofia" (SPONVILLE apud OLIVEIRA, 2014, p. 123).
Cabe, então, à filosofia conduzir o homem a uma vida prudente e sabia, a um grau mais elevado de realização. Uma vez que, todas as promessas da modernidade: emancipação social e política, liberdade, autonomia, emancipação individual, progresso em todas as dimensões, esclarecimento etc., acabam por conduzir o homem a sucumbir em grande desilusão, faz-se necessária uma recuperação do sentido da filosofia. Para Sponville a "filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz" (SPONVILLE, 2006, p. 37). Ele mesmo informa que essa definição é toda de Epicuro, e não necessita de nenhum acréscimo. A felicidade do sábio consiste em nada mais esperar e em nada mais desejar, e por isso mesmo, não age na espera de uma futura recompensa, e agindo assim, o sábio é completamente desesperado, já que não tem mais nada a esperar. Sabedoria do desespero: "o máximo de sabedoria, no máximo de lucidez" (SPONVILLE, 2001, p.l2). Trata-se não mais esperar viver bem, mas viver bem; não mais de esperar amar, mas amar de verdade; não mais de esperar ser feliz, mas viver a felicidade no aqui e agora. "Não se trata de se impedir de esperar: trata-se de aprender a pensar, a querer e a amar! 'o sábio é sábio' [...] não por menos loucura, mas por mais sabedoria" (SPONVILLE, 2001, p. 87). Portanto, o sábio na concepção sponvilleana é aquele que age mais que espera, ama mais que espera amar, é feliz mais que espera ser feliz. A beatitude, que é tomada de Spinoza, é aqui apresentada como um despertar do sono da esperança. É tornar-se menos dependente dela. É acreditar ser possível uma felicidade do presente: "a beatitude é a consumação do desespero; o desespero, o lugar da beatitude" (SPONVILLE, 2006, p. 34).
4. A FELICIDADE EM ATO OU A FELICIDADE DESESPERADAMENTE A ideia cential do pensamento sponvilleano é a de que a matéria é o fundamento e a razão de ser de tudo que existe. Sua concepção materialista do mundo põe fim a toda e qualquer esperança. O desespero como prática e não como teoria possibilita a concretização da própria filosofia, que é "uma atividade cujo objetivo é assegurar uma vida feliz" (SPONVILLE, 2006, p.37), como bem definiu Epicuro. Como se vê, a filosofia não é somente mero jogo de palavras ou só discursiva, mas é, sobretudo, uma pratica de vida, uma ação que tem como finalidade a felicidade. Mas, afinal de contas, é possível ser feliz? Na concepção sponvilleana não só é possível, como também essa é a razão da nossa existência. Como dito anteriormente, é necessário partir do desejo. A primeira noção de felicidade apresentada por
Sponville é que ser feliz é ter o que desejamos (SPONVILLE, 2001, p. 25). Nesse ponto, é feitauma crítica à ideia platônica de desejo, compreendido como falta: "o que não temos,o que não somos, o que nos falta, eis os objetos do desejo e do amor" (SPONVILLE, 2001, p. 26). Assim apresentada, a felicidade se torna algo impossível de ser alcançado, justamente porque "o desejo é falta e porque a falta é um sofrimento. Como você pode querer ser feliz se lhe falta, precisamente, aquilo que você deseja?" (SPONVILLE, 2001, p. 26). É claro que o desejo pode e deve ser satisfeito. O problema é, aponta Sponville, quando o desejo é satisfeito já não temos o que desejamos, mas o que desejávamos. E a satisfação do desejo, recorda Sponville citando Schopenhauer, nos leva ao tédio (SPONVILLE, 2001). A conclusão é, para sermos felizes, precisamos deixar de ser platônicos. Todo pensamento baseado na ideia de falta, nesse sentido, nos leva a uma compreensão de felicidade amparada na esperança. E essa é um veneno, cujo antídoto é o desespero. A partir do momento em que esperamos a felicidade {'como eu seria feliz se...'), não podemos escapar da decepção: seja porque a esperança não é satisfeita (sofrimento, frustração), seja porque ela o é (tédio ou, mais uma vez, frustração: como só podemos desejar o que falta, desejamos imediatamente outra coisa e por isso não somos felizes...) (SPONVILLE, 2001, p. 36-37).
Mas, há também, desejo que não seja falta, que não se baseia em esperança, mas que se baseia no prazer e na alegria. E são justamente o prazer e a alegria que nos "cura" do círculo vicioso da esperança, "porque fazemos o que desejamos, porque desejamos o que fazemos" (SPONVILLE, 2001, p. 48). A felicidade em ato, ou a felicidade concretamente vivida e experimentada, só é possível ao des-espero, cuja sabedoria está em encontrar a realização na felicidade de cada dia. Comte-Sponville afirma que É o que chamo de felicidade em ato, que outra coisa não é senão o próprio ato como felicidade: desejar o que temos, o que fazemos, o que é — o que não falta. Em outras palavras, gozar e regozijar-se... Essa é uma "felicidade desesperada, pelo menos em certo sentido: é uma felicidade que não espera nada" (SPONVILLE, 2001, p. 49). O desespero, que possibilita a felicidade presente, não é concebido como sinônimo de infelicidade, mas tão somente o abando de toda e qualquer esperança. Mas esse caminho não é de tudo muito fácil. O próprio Sponville reconhece que é
extremamente doloroso e sofrido esse caminho, por isso, citando Spinoza, ele diz que é preciso fazer "um esforço para nos tornar menos dependentes da esperança" (SPONVILLE, 2001, p. 66-67). Na sua compreensão positiva do desespero - nada de tristeza, niilismo, renúncia ou resignação (SPONVILLE, 2001, p. 67) - o citado filosofo propõe-nos um gaio desespero, que é a prática sabia de nada esperar para tudo ter. Porque todo obstáculo para a felicidade encontra-se na esperança, sempre baseada no desconhecido, no futuro, e mais ainda em nossa limitação e impotência. Ao esperarmos o que não depende de nós, entregamos nossas satisfações ao que escapa ao nosso controle. Toda esperança - de um mundo melhor, de moradia melhor, de um emprego melhor, de condições sociais melhores, de pessoas melhores - frustra a si mesma, e nunca vivemos o que desejamos. A felicidade em ato ou o ato da felicidade consiste justamente na pratica sabia de acreditar que já temos o suficiente e necessário para gozar de uma vida boa e uma boa vida, não temos mais nada a esperar ou a temer: "o sábio, dizia eu, não tem mais nada a esperar/aguardar, nem a esperar/ter esperança. Por ser plenamente feliz, não lhe falta nada. E, porque não lhe falta nada, é plenamente feliz" (SPONVILLE, 2001, p. 67).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS No pensamento sponvilleano, o desespero ocupa lugar central na busca e na construção da felicidade. Nesse sentido, a própria filosofia atual ganha um sopro de originalidade, com a relação da sabedoria com a felicidade: o máximo de sabedoria, no máximo de lucidez. O homem sábio é justamente aquele que aprendeu a nada esperar, e por isso mesmo, tem tudo como dádiva a ser usufruída. O filósofo francês ao estabelecer que todos os males se originam numa vida esperançosa, liberta o homem da prisão e da ilusão, quando, ao invés de viver bem, espera viver bem, coloca a conquista da felicidade em esperanças que lhe angustia e frustra. Ele nos convida a abandonar toda esperança se quisermos viver a vida dada como tal. Destarte, por meio do presente artigo foi possível apresenta a definição desespero e sua relação com a felicidade no pensamento sponvilleano, que diante sentimento de decepção que pesa sobre o nosso tempo, se apresenta como cura alma. O desesperado é feliz justamente por nada esperar; a sua vida é vivida agora da história. Comte-Sponville nos oferece uma sabedoria prática e a prática sabedoria para viver uma vida feliz.
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REVISTA
LAMPEfâ
0 PERSPECTIVISMO NIETZSCHIANO NA INTERPRETAÇÃO DE LEO STRAUSS ELVIS DE OLIVEIRA M EN D ES '
Resumo: Este artigo pretende mostrar que, na interpretação do filósofo político teutoamericano Leo Strauss, o perspectivismo nietzschiano é uma concepção filosófica que atua em duas dimensões diferenciadas. Por um lado, aparece como a elaboração de uma visão relativista e iconoclasta da moralidade, a ideia de que todas as "verdades" morais e metafísicas são meras "interpretações", cujo significado é historicamente condicionado. Por outro lado, pretende ser a descoberta de uma verdade que transcende todas as "verdades" históricas, situada para além do bem e do mal. Para Strauss, tal verdade, tem a ver com a descoberta do caráter absurdo e irracional da existência, uma descoberta terrível e insuportável para os homens. Nesse sentido, o pensamento nietzschiano teria sido conduzido ã ideia de que as verdades morais são necessárias ao homem, já que elas são responsáveis pela manutenção de uma atmosfera protetora da existência, sem a qual a vida em sociedade seria insustentável. Palavras-chaves: Perspectivismo, Strauss, Nietzsche.
1 Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco
Abstract: This article aims to show that, in interpreting o f the Teutonic American political philosopher Leo Strauss, Nietzsche's perspectivism is a concept which operates in two different dimensions. At 'first, the Nietzschean perspectivism appears to us as the development o f a relativistic
and
iconoclastic
view
o f morais
and
metaphysicals
"truths"
are
mere
"interpretations", whose significance is thus historically conditioned. On the other hand, aims to be the discovery o f a truth that transcends all historical "truths", that is located beyond good and evil. In Straussian perspective, such truth in Nietzsche, has to do with the discovery o f the absurd and irrational character o f existence - a terrible and insupportable discovery to the men. In this sense, Nietzsche's thought would have been led to the idea that moral truths are necessary to man, in that they are responsible fo r maintaining a protective atmosphere o f existence, without which social life would not be possible. Keywords: Perspectivism, Strauss, Nietzsche.
o analisar a obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, percebe-se que um tema que parece intrigá-lo profundamente que é o problema da moral. Assim sendo, a reflexão acerca deste tema o instigou a dedicar uma significante e fecunda parte de sua produção filosófica ao questionamento radical da moralidade.^ Com efeito, Nietzsche se debruça diante de um grave problema presente em toda história da filosofia, que está fortemente ligado à questão do estatuto da moral e consequentemente da verdade. Neste contexto, o filosofo observou a fragilidade das verdades históricas verificando que na realidade "não há fatos, apenas interpretações"^.
A
Em outras palavras, Nietzsche observou o caráter fundamentalmente histórico das "verdades" morais e metafísicas e, tendo observado o caráter fundamentalmente histórico das verdades morais e metafísicas, constatou a dependência essencial de tais verdades em relação aos modos humanos de ver as coisas. Portanto, Nietzsche constata que a moral nada mais é do que o fruto das avaliações humanas, e desta forma, algo que varia de acordo com as necessidades de cada tempo e de cada sociedade. Isto é, as verdades sempre partem de algum ponto de vista. Em outras palavras, essas verdades partem de
2 Nietzsche, na verdade, considerava-se como o primeiro filósofo do Ocidente a encarar realmente a moral como um "problem a". Antes de sua obra, julgava ele, os filósofos se limitaram a tentar "justificar" a moral e, por aí, se empenharam sempre em buscar a sua melhor fundamentação. Ver o que ele diz em Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.75). 3 NIETZSCHE, F. FP 12: 7[60], Outono 1885 - outono 1887 Manuscrito publicado postumamente de 1880 estabelece repetidamente que "não há fatos, somente interpretações". (Fragmentos Póstumos)
alguma perspectiva, resultante da capacidade criativa do ser humano. De fato, para Nietzsche nós somos responsáveis por tais atribuições morais que tornam a vida possível, como podemos observar por meio da seguinte afirmação: Nós, nós somente, inventamos as causas, as sucessões, a relatividade, a necessidade, o número, a lei, a liberdade, o motivo, o fim; e se misturamos às coisas reais este mundo de signos como "em si", continuamos fazendo mitologia; como sempre fizemos. A vontade determinada é mitologia; na vida real existem apenas vontades débeis.^
Por esta via, Nietzsche "reduz" o sujeito ao horizonte das possibilidades morais, onde neste sentido, todos os valores podem ser questionados, negados e assim transformados (transvalorados), por serem temporais e evidentemente passageiros. A partir da máxima de que "não há fatos eternos, assim como não há verdades absolutas"^, percebe-se que o perspectivismo nietzschiano rejeita totalmente a possibilidade de uma verdade ligada à realidade independente da ação humana. Portanto, Nietzsche não considera que as verdades a que o pensamento humano visa sejam entidades objetivas e autossubsistentes, independentes desse pensamento. Sendo assim, ele exerce fortes críticas ã história da filosofia, pois, a seu ver, a partir de Sócrates, o amor e a crença na verdade, entendida como algo de racional, inteligível e benéfico ao ser humano, teriam levado o homem a uma racionalidade ingênua e incapaz de reconhecer o aspecto mais terrível da existência.*^ Para Nietzsche, daí efetivou-se uma filosofia do engano. Isso por sua vez, traria conseqüências terríveis para a humanidade. Esta razão alcançou seu apogeu com o advento da modernidade e com ela a crença no mito do progresso, legitimado com a revolução científica de Copérnico a Newton, do pensamento cartesiano ã ética racionalista Kantiana. Por sua vez, o projeto iluminista prometia livrar o homem da ignorância e dos misticismos. Diante disto, ao observar os acontecimentos históricos, Nietzsche suspeita do plano moderno e percebe que o que foi característico em todos momentos da existência humana, é a vontade de potência, a fluidez, e as
4 Nietzsche, Friedrich W ilhelm, Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro - Trad. Mário Ferreira dos Santos. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013 (Coleção Textos Filosóficos) p33 5 Nietzsche, Friedrich W ilhelm. Humano, Demasiado Humano, capítulo 1 das coisas primeiras e ultima, aforismo 2. Editora; Companhia das letras, tradução de Paulo César de Souza Com efeito, percebe-se em "O Nascimento da Tragédia" mais precisamente nos parágrafos 12,13 e 14, onde Nietzsche apresenta Sócrates como o homem antimistico e antitrágico por excelência, i. e., como o racionalista otimista que crê poder com a razão não somente chegar ao âmago do ser, mas também corrigir o ser.
transformações dos valores e das verdades. O que neste mesmo contexto, faz com que a moralidade seja sempre algo vulnerável as interpretações, portanto multável. No entanto, logo em seguida outros valores já são estabelecidos, já que de fato, as verdades morais são um freio às vicissitudes e permissividades da natureza humana. Ora, para Nietzsche tudo é relativo e todas as verdades são produtos da criatividade humana. Portanto, sempre que um valor não serve mais, logo em seguida outros valores são criados e esses mecanismos morais são imprescindíveis para a manutenção da vida social. De fato, o que faz da moralidade a mais apropriada de todas as regras para orientar a humanidade. Constatado o perspectivismo no pensamento filosófico nietzschiano acerca da moral, é importante explicar que o termo "perspectivismo" é utilizado de forma analógica em consonância com o relativismo moral preconizado por Nietzsche. Este termo se refere ã forma como se concebe o "valor" e está presente desde as primeiras obras do filosofo, mas só aparece de forma explicita a partir de 1882, em A Gaia Ciência. Entretanto, o perspectivismo é uma expressão tomada de empréstimo das artes visuais que, em seu sentido contemporâneo, expressa multiplicidade e pluralidade de olhares, um rompimento com os perspectivismos clássico, medieval e moderno. Desta maneira, esta analogia concerne ã forma de construção dos valores e das verdades (moralidade). Em outras palavras, seguindo ainda a mesma analogia, o que possuía uma forma linear e matematizada, a partir da era contemporânea foi superado pela multiplicidade de pontos de vista, como já fora citado anteriormente. Diante disto, o que Nietzsche assinala é o momento de desestabilização dos valores e das verdades e consequentemente da moral. Por outras palavras, o momento em que o homem descobre o caráter histórico de toda moralidade e, por aí, o fato de que todos os valores são humanos e de que não há nenhum Deus para garanti-los. Para Nietzsche, o que está em jogo aqui é o advento da morte de Deus, isto é, o fato de não existir nenhuma verdade, nenhum caminho e nenhum norte a ser seguido. Daqui o pensador desvela a face trágica e totalmente sem sentido da existência humana, a qual por assim dizer gera um niilismo radical sem precedentes, que atinge sua expressão mais radical no seio da contemporaneidade.^ Contudo, o perspectivismo neste contexto é também visto como uma suposta teoria do conhecimento de Nietzsche, embora não saibamos se Nietzsche realmente pretendia pensar nisto como teoria epistemológica. No 7 Isto pode ser percebido no parágrafo 343 de A Gaia Ciência, em que Nietzsche descreve de forma dramática o impacto da morte de Deus sobre a existência humana.
entanto, estas questões estão intrinsecamente ligadas, e o que aparece de forma clara e contundente em seus escritos, é que para ele tudo é perspectiva, já que as verdades são construções humanas, portanto antropomórficas. Por assim se apresentar o perspectivismo nietzschiano, em grande maioria das interpretações acerca deste conceito é atribuída a ideia de um perspectivismo absoluto ao pensamento moral de Nietzsche, é de fato essa visão de um Nietzsche relativista, iconoclasta e niilista que vigora. No entanto, no século XX vários interpretes do pensamento de Nietzsche se opõem a essa visão, entre eles o filosofo político teuto americano Leo Strauss, que se contrapõe completamente a essa interpretação absolutizante do perspectivismo nietzschiano. Neste sentido, Leo Strauss faz uma análise da obra "A/em do bem e do mal", onde, segundo ele, Nietzsche elabora um tratado político e moraF. Assim, desta maneira, para Strauss, em Além do Bem e do Mal, Nietzsche pretende não apenas compor um tratado político, mas desenvolver um projeto mais ambicioso, qual seja: lançar as bases para o que ele chama de "filosofia do futuro", autora de uma nova e inaudita moralidade, capaz de consumar e superar o niilismo e inspirada por uma religiosidade nãoteística. O tema fundamental de Além do bem e do mal seria, pois, segundo Strauss, essa nova filosofia. Esquematizando a leitura straussiana, poderíamos dizer que, para ela, Nietzsche, na obra em questão, visaria realizar o projeto mencionado mediante o desenvolvimento de três procedimentos fundamentais, a saber: a crítica radical e implacável dos preconceitos dos filósofos, a qual desmascara o caráter humano e perspectivo de todas as verdades morais e metafísicas sobre as quais se apoiou o pensamento humano até então; a crítica da moralidade de rebanho, i. e., da moralidade cristã e cripto-cristã da compaixão, do amor ao próximo e do bem-estar de todos, que, segundo Nietzsche, com a morte de Deus, teria chegado ao seu esgotamento; a proclamação de uma nova moralidade, a qual será anti-igualitária, fundada no reconhecimento do perspectivismo ou da verdade de que todos os valores são criações da vontade humana e numa nova religiosidade ateia que diviniza a crueldade, o devir e a imanéncia. Neste sentido, é percebido que "durante muito tempo, os comentadores de modo geral negligenciaram os aspectos políticos do pensamento nietzschiano,"^ como defende a comentadora brasileira Scarlett Marton; para ela, "dentre os vários fatores que contribuíram para tanto, há que se notar a necessidade que então se * Cf. Strauss, L. 'Note on the Plan ofN ietzsche's Beyond Good and Evil. In Idem, Studies in Platonic Political Philosophy. W ith an Introduction by Thomas Pangle. Chicago: The University of Chicago Press, 1983, p. 174-191 9 Marton, Scarlett, Nietzsche e a crítica da democracia. Dissertatio [33] 17 - 33 inverno de 2011 p 17
impunha de desqualificar os diferentes usos e apropriações políticas das ideias de Nietzsche". (Marton, p 17) O que de fato é observado por Strauss e o mesmo pretende resgatar o que para ele é um elemento constitutivo do pensamento filosófico de Nietzsche. Ainda por esta via Scarlet Marton afirma que enquanto certos autores não aceitam que o pensamento nietzschiano possa apresentar uma dimensão política stricto sensu, outros sustentam, ao contrário, que Nietzsche é um pensador político, como se pode observar nas Teses de Keith Ansell Pearson, em "Nietzsche como pensador político", de Dom Dombowsky, em "Nietzsche's Machiavellian Polüics" e de Simone Goyard-Fabre em “Nietzsche et la question politique". Leo Strauss, por sua vez, segue exatamente pela via dos pensadores que abraçam a interpretação deste Nietzsche preocupado com as coisas políticas, mesmo reconhecendo que o Filósofo não possui uma teoria política acabada. Strauss analisa que se levássemos o relativismo nietzschiano até suas ultimas conseqüências geraríamos uma contradição ou uma visão paradoxal acerca do autor. Inequivocamente, o que está em jogo para Strauss é mostrar que Nietzsche tem um propósito maior, em denunciar a vulnerabilidade de todas as verdades e consequentemente de todas as possibilidades morais. Segundo Strauss, trata-se de mostrar que o perspectivismo nietzschiano é ambíguo, pois se por um lado ele pretende evidenciar o fato que todas as verdades morais e relacionadas aos valores são perspectivas, por outro, é igualmente certo que, no âmbito desse perspectivismo, há a "uma verdade de todas as verdades", o que eqüivale a reconhecer o caráter "não relativo da verdade do relativismo"i°, ou seja, o caráter desumano ou não antropomórfico da verdade que apreende a natureza perspectiva de todo pensamento. Mais precisamente, o que Strauss mostra é que o perspectivismo de Nietzsche atua em dois planos: por um lado, ele desnuda o caráter relativo e interpretativo das verdades humanas; por outro, ele pretende ser um insight filosófico que apreende a "verdade de todas as verdades", i. e., um insight filosófico que atinge a compreensão de que não há um texto por trás das interpretações, de que não há uma coisa em si e de que, portanto, o real é absurdo e irracionalii. É o que observa a comentadora canadense Shadia Drury, em The Political Ideas o f Leo Strauss. Segundo Drury, na visão de Strauss, o perspectivismo nietzschiano não é absoluto, pois isso seria paradoxal e mesmo incoerente, uma 10 "Rather than the relativization of all truths, we might say, Strauss's Nietzsche elevates the unrelativizable Truth o f relativism". Interpreting Nietzsche - Reception and Influence Edited by Ashley Woodward - Chapter 9 Strauss's Nietzsche, M athew Sharpe and Daniel Townshend p l3 8 11 STRAUSS, L. 'Note on the Plan of N ietzsche's Beyond Good and Evil, p. 176-177
tese que, caso viesse a ser sustentada, destruiria a si mesma, no ato mesmo em que fosse afirmada. Na leitura straussiana, Nietzsche teria escapado dessa contradição ao distinguir os dois planos em que opera o perspectivismo, quais sejam: um plano antropomórfico, das verdades humanas, vinculadas ao mundo da ordem, da moral e da racionalidade, e um plano não antropomórfico, "para além do bem e do mal", que, transcendendo tudo que é criado pelo homem, tem a ver com a apreensão da verdade cruel relacionada ao caráter perspectivo do pensamento humano. Na ótica de Strauss, Nietzsche teria várias vezes deixado claro o caráter perigoso e mesmo letal dessa última verdade para a vida humana. De fato, Strauss considera que, conforme a concepção proposta por Nietzsche, se todos indivíduos tiverem acesso a uma visão totalmente esclarecida, analítica e teórica da vida, a existência se tornaria um fardo pesado demais, portanto insustentável. Assim, tanto Nietzsche como Leo Strauss, reivindicam a necessidade de uma atmosfera protetora da vida, concepção que remonta ao platonismo e ã sua ideia de uma "ilusão nobre". Como Drury aponta na reflexão do próprio Leo Strauss nesta passagem presente na obra Natural Right and History: According to Nietzsche, the theoretical analysis of human life that realizes the relativity of ali comprehensive views and thus depreciates them would make human life impossible, for it would destroy the protecting atmosphere within which life or culture or action is alone possible. . . . To avert the danger to life, Nietzsche could choose one of two ways: he could insist on the strictly esoteric character of the theoretical analysis of life - that is, restore the Platonic notion of the noble delusion - or else he could deny the possibility of theory proper and so conceive of thought as essentially subservient to, or dependent on, life or fate. If not Nietzsche himself,
at any rate his successors
adopted the second
alternative.i2
Em Além do bem e do mal Nietzsche declara claramente a busca da verdade em si, como um ato extremamente perigoso ã vida, como se pode observar nestes questionamentos propostos bem no inicio desta obra:
12 Strauss, Leo, Natural Right and History, The University of Chicago Press. All rights reserved. Published 1953. Fifth Impression 1965 - First, Phoenix Edition 1965. Printed in the United States of America p 26
Supondo que queremos a verdade, por que não melhor a mentira? Ou a incerteza ou a própria ignorância? Apresentouse ante nós o problema do valor da verdade, ou fomos nós em sua busca? Quem é de nós o Édipo? Quem é a Esfinge? Isto é um encontro de perguntas e pontos de interrogação. E contudo, quem o acreditaria! Parece-nos até que nunca foi proposto o problema, como se fossemos o primeiro a discerni-lo, a vê-lo, a afronta-lo. E há grande perigo em afronta-lo, e talvez seja o maior de todos o perigos.
Para Nietzsche, é inegável o fato de necessitarmos da proteção das verdades humanas, por que do contrário seria impossível se fixar modelos de vida, se estabelecer leis e logo estaria extinta qualquer possibilidade de vida em sociedade e da conservação da mesma. Portanto, por mais superficiais e falsos que sejam os valores morais, necessitamos deles para a manutenção da vida, tal como a conhecemos; sem isto, a vida não seria possível. Em suma, o que é apontado aqui pelo filosofo é a fragilidade do ser humano diante "da verdade de todas as verdades". Essa percepção, segundo Strauss, teria levado Nietzsche ã compreensão do caráter letal da verdade do perspectivismo, obrigando o filósofo, de certa forma, a reconsiderar a sabedoria antiga e a tradição platônica da "nobre mentira" como uma alternativa para a crise moderna dos valores ocidentais. Como Drury expõe: Strauss's
fundamental
insight
into
the
'crisis'
of
modernity is Nietzschean. Like Nietzsche, Strauss traces the ills of modernity to its unquenchable quest for truth - its immoderate, excessive and suicidai devotion to knowledge. Scientific knowledge, for example, threatens us with extinction; yet we are convinced that only more knowledge can save us. For Strauss, as for Nietzsche, what is true of scientific knowledge is equally true of philosophical knowledge. Like Nietzsche, Strauss forces us to think the unthinkable. He forces us to question the goodness of truth and knowledge for mankind. Nihilism, understood not as the indifference to all values, but as the insight into the groundlessness of law, justice and morality, is a 'deadly truth'.i4
13 Nietzsche, Friedrich W ilhelm, Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia dofiituro - Trad. Mário Ferreira dos Santos. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013 (Coleção Textos Filosóficos) p l2 14 DRURY, S. The Political Ideas ofL eo Strauss. Updated Edition. Lexington: Palgrave Macmillan, 2005 p l7 7 .
Assim, na visão de Strauss, mesmo que o perspectivismo nietzschiano, como foi já abordado aqui, mostre que não há verdades de caráter moral ou racional, além das interpretações humanas, é fato que essas verdades oriundas de tais interpretações precisam ser mantidas como garantia a vida. Portanto, a moralidade e os valores são modos de avaliar as coisas e atribuir sentido a elas; porém para além de todas a verdades humanas, há uma verdade inumana. Neste contexto, para Strauss, o perspectivismo de Nietzsche diz respeito essencialmente ao âmbito das valorações humanas, i. e., ao âmbito das formas históricas por meio das quais o homem constrói o mundo da moral e confere significado à realidade. No entanto, ainda sob a ótica straussiana, o pensamento de Nietzsche apontaria para uma verdade trágica e terrível que o homem comum por sua vez não suportaria. Ainda neste mesmo contexto esta verdade está situada para além do casulo da moralidade e que teria a ver com o aspecto cruel, totalmente absurdo e irracional. Daí o tamanho perigo desta verdade, e o fato de que na visão de Nietzsche só o filosofo ou o super-homem poderia lidar com tal verdade, como o próprio Strauss explicita nesta passagem: The truth is not attractive, lovable, life-giving, but deadly, as is shown by the true doctrines of the sovereignty of Becoming, of the fluidity of all concepts, types and species, and of the lack of any cardinal difference between man and beast (Werke, ed Schlechta, I 272); it is shown most simply by the true doctrine that God is dead. The world in itself, the "thing-initself," "nature" (aph. 9) is wholly chaotic and meaningless. Hence all meaning, all order originates in man, in man's C r e a t iv e
acts, in his will to
p o w e r .is
Na passagem a seguir, percebe-se de forma clara que Nietzsche tenta mostrar a necessidade de proteger o homem diante da realidade nefasta da existência. A Falsidade de um juízo não pode servir-nos de objeção contra o mesmo: talvez nossas palavras soem estranhamente. A questão é saber quanto ajuda tal juízo para favorecer e conservar a vida, a espécie e tudo quanto é necessário à sua evolução. Estamos fundamentalmente, inclinados a sustentar que os juízos
mais falsos (aos quais pertencem os juízos
sintéticos a priori) são para nós os mais indispensáveis e que não concedendo valor às ficções lógicas, não medindo a
15 Strauss, Leo. Studies in Platonic Political Philosophy, 1983, University of Chicago p 177
realidade com a regra puramente fictícia do mundo absoluto e imutável, não falseando constantemente o mundo mediante o número, não poderia viver o homem; finalmente, renunciar aos juízos falsos seria o mesmo que renunciará vida, renegar a vida.i*’
Por ser assim, Nietzsche tenta de várias formas mostrar a necessidade humana das leis: de fato, para ele, o homem é absolutamente carente de freios e amarras e é por sua vez a existência desses artifícios morais que tornam a vida possível. Neste contexto, o que Leo Strauss chama atenção é para a proximidade entre os pensamentos Nietzsche e Platão. Para Strauss chamar Nietzsche de anti-platônico seria no mínimo exagerado, isto é, conforme observa Drury, (p. 175) para Strauss, Nietzsche, na contramão daquilo que apregoa a modernidade, estaria buscando recuperar o esoterismo; o pensamento de Nietzsche seria, nesse caso, uma tentativa de superação da modernidade. Em suma, o que Strauss vê em Nietzsche é a descoberta da maior verdade, "da verdade de todas as verdades", de que o perspectivismo nietzschiano é inegável e flagrante. No entanto, o homem necessita de uma atmosfera protetora que só a moral resultante das verdades criadas pelo pensamento pode propiciar, salvaguardando a vida e realizando a "vontade de poder", o que para Nietzsche é o que há de demasiadamente humano.
Referências Bibliográficas: Drury, S. The Political Ideas of Leo Strauss. Updated Edition. Lexington: Palgrave Macmillan, 2005 (1987) Goyard-Fabre, S. Nietzsche et la question politique. Paris: Sirey, 1977. Lampert, Laurence, Leo Strauss and Nietzsche, Chicago, Chicago University Press, 1997 Marton, Scarlett. Extravagâncias - ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial e Editora UNIJUÍ, 2000. ___. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: EdUFMG, 2000.
1*5 Nietzsche, Friedrich W ilhelm, Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do fiituro - Trad. Mário Ferreira dos Santos. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013 (Coleção Textos Filosóficos) p 14
_.Nietzsche e a crítica da democracia. Dissertatio (33) inverno de 2011 pp 17 31 Nietzsche, Friedrich Wilhelm, A Gaia Ciência. Editora; tradução de Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das letras, 2001 ___. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia dofiituro - Trad. Mário Ferreira dos Santos. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013 (Coleção Textos Filosóficos) ___. Humano, Demasiado Humano. Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo, Editora; Companhia das letras 2008 ___.0 Nascimento da Tragédia - ou Helenismo e Pessimismo. Trad.: J. Guinsburg, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. Sharpe, Matthew and Townsend, Daniel, Introduction: the Strauss Controversy, Leo Strauss, and Nietzsche. Woodward, Ashley (org), Interpreting Nietzsche : reception and infiuence, New York, USA Continunn 2011 pp 131 -148 STRAUSS, L. Natural Right and History. Chicago: The University of Chicago Press, 1971 (1953). Tradução portuguesa de Miguel Morgado: Direito natural e história. Lisboa: Edições 70, 2009. ___. Persecution and The Art o f Writing. Chicago: The University of Chicago Press, 1988 (1952) ___. Studies in Platonic Political Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1983. ___. What is Political Philosophy? And Other Studies. Chicago: The University of Chicago Press, 1988 (1959).
kl Al SI A
LAM
0 SUJEITO ENQUANTO CONSCIÊNCIA REALIZADORA NA FILOSOFIA DE SARTRE DAMARES'-
Resumo:
Destaca
a
importância
de
preservar
a
autonomia
proposta
pelo
existencialismo para o sujeito. Ressalta que, o sujeito pensado pelo existencialismo guarda características diversas do sujeito reconhecido por Descartes e reafirmado por Kant. No existencialismo ele perde sua característica solipsista e assume-se como consciência que se constitui ao se relacionar com o outro e com o mundo. Utiliza como base, o texto O existencialismo é um humanismo e outros textos afins, para afirmar a capacidade realizadora do sujeito, potencializado pela liberdade e responsável por sua existência. Palavras-Chave: Sujeito, Existência, Realização.
1 Damares de Avelar França é graduanda em Filosofia - Bacharelado Instituição - UFES Universidade Federal do Espírito Santo.
Abstract: It highlights the importance o f preserving the autonomy proposed hy existentialism to the subject. He points out that the guy thought hy existentialism keeps several characteristics o f the subject recognized hy Descartes and reaffirmed hy Kant. Existentialism he loses his solipsistic character and positions itself as consciousness that is to relate with each other and with the world. Used as a hasis text Existentialism is a Humanism and related texts, to say the director capacity ofth e suhject, hoosted hy thefree and responsihle fo r their existence. Keywords: suhject, existence, realization.
s
eria extremamente inapropriado tentar retirar do sujeito sua liberdade em atuar no mundo, e em conseqüência disso, tentar isentá-lo de sua responsabilidade em decorrência do seu agir.
Buscando legitimar esse pensamento, esse trabalho procura ressaltar a importância da posição que o ser humano ocupa no mundo como sujeito que, através das suas escolhas, pode determinar seu caráter e os objetivos de sua vida. Para isso, visita o momento do nascimento do sujeito cartesiano, descobrindo ser possuidor da racionalidade e assumindo uma nova posição frente ao mundo. Sujeito esse que, a seguir, em Kant, adquiri posição central no mundo, e aloca em si toda capacidade de conhecer o que está a sua volta. Amparando-se principalmente na obra O Existencialismo é um Humanismo; resultado de uma conferência, na qual Sartre se dispõe a defender a filosofia existencialista de diversas críticas, e oportunamente esclarece algumas dúvidas oriundas da falta de entendimento da real proposta do existencialismo e também prioriza a importância de se partir da subjetividade humana para alcançar o verdadeiro sentido na elaboração de uma teoria que tem como principio a própria existência. Através do texto citado acima e também de alguns outros textos afins, procura mostrar que o sujeito idealizado por Descartes potencializado por Kant é detentor de autonomia. Porém no existencialismo, essa autonomia sofre um processo de amadurecimento, sai do isolamento e volta-se para o mundo. Pois, para o existencialismo, ser sujeito significa estar presente no mundo, com liberdade e responsabilidade, e não sobrevoar o mundo num distanciamento repleto de superioridade e pretensa sabedoria. Muito pelo contrário, trata-se de saber que o conhecimento de si, se dá na relação com o outro e com o mundo.
Procura mostrar também que, o homem e incondicionalmente livre, e que essa liberdade é concreta e absoluta. O texto, O existencialismo é um humanismo convoca o ser humano a viver plenamente sua humanidade, consumá-la, não acomodar-se, não permanecer inerte; resumido a um destino pré-estabelecido por uma essência comum a todos os seres humanos. Porém, o sujeito idealizado pelo existencialismo não se fez gratuitamente, foi necessário um longo caminho, permeado por muita reflexão e algumas contribuições, para perceber-se como tal. Segundo Damon (2006, p.193-196) a etiqueta "existencialismo" foi criação da mídia francesa, após a segunda guerra mundial, para rotular jovens filósofos e escritores. Sartre a assumiu por ocasião da conferência O existencialismo é um humanismo, que fez, visando esclarecer interpretações equivocadas, e para defender-se das críticas formuladas pela falta de entendimento da sua filosofia. Mas embora não tenha sido o criador da etiqueta, esta lhe serviu sob medida. Pois, o que sempre motivou o pensamento de Sartre foi seu desejo de compreender os ser humano. Ser humano que, só pode ser pensado como indivíduo atuante a partir da modernidade, quando Descartes lhe confere o status de sujeito. Descartes entende que, o que vem se desenhando na sua realidade é um prenúncio de mudanças. Para superar o provável, dá inicio a um processo investigativo que tem como objetivo; a certeza. Seu objeto de pesquisa é o próprio ser humano. Seu ponto de partida é a dtivída. Porém, o simples fato de duvidar, confirma que está pensando, e que tem consciência disso. Percebe que a razão consegue enxergar a si própria; e, isso a torna um instrumento íinico e isolado. "(...) Nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão." (DESCARTES, 1983, p.94). Descartes inaugura a idade moderna, período marcado pela supremacia da razão; e, ao elegê-la como ferramenta, promove uma nova condição do homem frente ao mundo. O período iluminado pela razão alcança seu apogeu em Kant, que promove uma revolução. Ao invés de procurar no mundo uma forma de conhecê-lo, ele passa a investigar a razão e seus limites. O sujeito kantiano só conhece o mundo porque tem faculdades que permite esse conhecimento, tudo passa pela inferioridade do sujeito. "Pois a razão é a faculdade que fornece os princípios do conhecimento a priori. Por isso a razão pura é aquela que contém
OS princípios
para conhecer algo absolutamente a priori." (KANT, 1987, p.34). O sujeito kantiano é responsável pela construção do seu próprio mundo. Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa mão tanto com os objetos, mais com nosso modo de conhecimento de objetos na medida em que este deve ser possível a priori. Um sistema de tais conceitos denominar-se-ia filosofia transcendental. (KANT, 1987, p.35).
O sujeito kantiano é o sujeito do conhecimento, que vê a coisa como ele quer, ele representa a coisa para ele mesmo, ele reflete a coisa. O sujeito kantiano é responsável pela construção do seu próprio mundo. Nessa postura de alocar o conhecimento dentro do próprio sujeito, Kant promove um conhecimento formal e parcial. O sujeito idealizado por Descartes e Kant se coloca no mundo pelo conhecimento, aprisionado em sua própria subjetividade. O existencialismo pretende tirá-lo do isolamento do cogito cartesiano e transcender a capacidade de conhecimento a priori do sujeito kantiano em favor da sua relação com o outro e com o meio. Para Sartre o "penso" ao contrário de fechar o sujeito em si mesmo, conscientiza-o de si e do outro em um só momento. Através do penso, contrariamente à filosofia de Descartes, contrariamente à filosofia de Kant, nós nos apreendemos a nós mesmos perante o outro, e o outro é tão verdadeiro para nós quanto nós
mesmos.
Assim,
o homem que se alcança
diretamente pelo cogito descobre também todos os outros, e descobre-os como sendo a própria condição de sua existência. (SARTRE, 1984, p.l5).
Manter como ponto de partida a subjetividade humana é determinante para Sartre. Pois, a força motriz que sempre alimentou seu pensamento foi o desejo de compreender o indivíduo na sua plenitude, em toda sua capacidade de realização, enquanto um projeto de vida. "(...) O homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente". (SARTRE, 1984, p.6). E se, o que se almeja é potencializar a existência humana, então é necessário que se parta da subjetividade, ou para usar a terminologia do próprio Sartre, da consciência. Ao afirmar essa necessidade, e justificar sua posição: "(...) Nosso ponto de partida é, de fato, a subjetividade do individuo." (SARTRE, 1984, p.l5). Porque só assim é possível uma doutrina "(...) Baseada na verdade e não num
conjunto de belas teorias cheias de esperança, mas sem fundamentos reais". (SARTRE, 1984, p.l5). Também deixa claro que o sujeito do existencialismo está voltado para o mundo, e ter esse entendimento, é tão importante quanto compreender que o ser humano é a força que alimenta o seu próprio pensamento. Por isso que, a subjetividade declarada por Sartre não aprisiona o sujeito em si mesmo, e tem características bem diferentes da subjetividade que a filosofia moderna concebeu até então, que tinha como figura central um sujeito solipsista, voltado para sua inferioridade e tentando desvendar o mundo de forma abstrata, assimilada somente através de conceitos. Não se dando conta que sua presença no mundo, desencadeia uma seqüência de atos que tem conseqüências em si e nos que o rodeiam. "(...) Não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens". (SARTRE, 1984, p.6). Por isso, realmente é indispensável partir do cogito, o sujeito percebe a si, mas também percebe o outro como necessário a sua existência. O sujeito existencialista reage ã realidade que o cerca no seu dia-a-dia, no desenvolver de suas tarefas cotidianas. Quando se tem essa percepção, também é possível compreender que, estar no mundo é fazer parte de uma engrenagem onde cada peça é necessária para a existência da outra, e também existência do todo. É importante entender que essa atuação no mundo, precisa ir além da interiorização de conceitos e elaboração de teorias que provocam um distanciamento do real e um isolamento do ser humano em relação ao meio. É de vital importância saber que existir é engajamento, e a vida é concreta e dinâmica, seu movimento é contínuo e real. Essa subjetividade que soltou as amarras que a mantinha pressa no interior do sujeito e passou a provar do mundo concreto, é o que Damon (2006, p.l96) denomina de subjetividade concreta, que é esse lançamento da consciência em direção ao mundo. Que é muito diferente do sujeito fechar-se em si mesmo e tentar entender o mundo sem se relacionar com ele, negando que, sua existência só se concretiza quando é capaz de ir além dos conceitos. Essencial é reconhecer que não é possível pretender estar mundo sem provar dele, sem tocar o mundo e ser tocado por ele. Efetivar essa relação significa dar um passo além do conhecimento adquirido por abstração. A subjetividade declarada por Sartre é concreta, se dá no corpo a corpo, na relação com o mundo concreto, no convívio com suas particularidades, para perceber uma singularidade que só a vivência pode proporcionar. Damon afirma (2006, p.l98), a subjetividade concreta é: "(...) corpo concreto é esse corpo-sujeito, esse corpo que eu sou, esse corpo efetivo, sujeito
de experiência, não aquele outro, abstrato, genérico, definido pela ciência e tornado como objeto". Viver segundo essa subjetividade resulta em: "(...) esse sujeito que desvela o mundo e não pode ser definido a partir de conceitos gerais e abstratos." (DAMON, 2006, pp.198,199). No enredo dessas afirmações elabora um exemplo que facilita o entendimento de como é possível conhecer uma cidade de duas maneiras. Uma seria através de informações teóricas como: extensão territorial, tipo de clima, localização, quantidade de habitantes e assim por diante. A outra maneira é visitar a cidade, observar a vegetação, a cor de sua água, o comportamento da população, perceber a sinuosidade das ruas. Ou seja, viver nem que seja temporariamente a realidade daquele lugar. Esse conhecimento sim, é real e contém a singularidade da experiência vivida. Da mesma maneira que existe a cidade conceituada e a cidade real, também existe um corpo, que é definido pela ciência, que é genérico e objetivo, e não é de forma alguma falso. Mas também existe o outro, o corpo de um sujeito específico atuando no mundo, experimentando-o, compartilhando experiências. Esse sujeito, ao desempenhar uma ação como andar, por exemplo, não precisa pensar como é constituída sua perna. Simplesmente ele, num impulso, move-se, sem que isso seja um movimento estudado. E é seguindo essa linha de raciocínio que Damon afirma: "(...) significa dizer que concretamente não me dou conta do meu corpo." (2006, p.l99). E elabora um segundo exemplo para facilitar a assimilação desse raciocínio. Se ao ler um romance, um leitor qualquer, permanecer com a atenção voltada para o tamanho das letras, na sua cor, na distância entre elas, não conseguirá embarcar na aventura narrada. É imprescindível que deixe passar despercebidas essas informações, para que seja possível experimentar as emoções da narrativa. Do mesmo modo, também é preciso deixar que o corpo enquanto estrutura física passe despercebido para que a consciência se lance para além dele, e nesse lançar-se, se relacione com o que está ao seu redor. "(...) o corpo é como a carne de minha consciência e minha consciência é como a projeção desse corpo para diante de si." (DAMON, 2006, p.200). É pertinente ressaltar que, quando se fala em uma consciência que, partindo do sujeito estabelece uma conexão com o outro e com o mundo, não se está falando numa consciência capturadora, que aprisiona os conteúdos dentro de si. Sartre mantém a idéia de consciência como intencionalidade herdada da fenomenologia.
No texto "Uma idéia fundamental da fenomenologia de Husserl"; Sartre adverte que: "(...) Husserl não cansa de afirmar sobre a impossibilidade de dissolver as coisas na consciência, já que a coisa não conseguiria acessar as consciências devido não ter a mesma natureza que elas." (2006, pp. 55,56). Souza (2010, p.l7). Por sua vez, afirma que além da diferença de natureza, a consciência não é nada, antes de relacionar-se com o mundo. Ela só é na medida em que se direciona às coisas, na medida em que existe; e reforça que, é justamente a separação propiciada pela diferença, que faz com que aconteça o movimento da consciência em direção ao mundo. (...) E o que permite esse movimento da consciência em direção ao mundo é a separação inicial que deve ser feita entre consciência e mundo. Embora uma necessite do outro - a consciência só ê nesse direcionar-se ao mundo. (SOUZA, 2010, p.l7).
O sujeito enquanto consciência se projeta em direção ao mundo, mas não o deglute, não se trata de um processo de nutrição e sim de relação. Ao conhecer-se concretamente no mundo, o sujeito conhece também o mundo, numa relação que se estabelece a partir da apreensão de si e do outro, isso só acontece pelo fato do individuo estar no mundo, só acontece porque ele existe. Antes disso, não há nada; e, isso caracteriza o Existencialismo. Sartre ressalta que, embora a filosofia moderna centralizada no sujeito, tenha tentado acabar com a noção de Deus, manteve a crença, de que há uma essência comum a todos os seres humanos, que é anterior ao existir. Segundo esse raciocínio: (...) O homem possui uma natureza humana; essa natureza humana, que ê o conceito humano, pode ser encontrada em todos os homens, o que significa que cada homem ê um exemplo particular de um conceito universal: o homem. (SARTRE, 1984, p.5).
Posicionar-se dessa maneira, é crer que a essência precede a existência, que o ser humano foi produzido seguindo um modelo, para atender a uma finalidade pré-estabelecida: "(...) Assim, mais uma vez, a essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na Natureza". (SARTRE, 1984, p.5). Mais coerente, segundo Sartre, é pensar que a "existência precede a essência". Isso significa para ele, a constante possibilidade de escolha do ser
humano. Enfatiza a ação, o fazer. O ser humano existe em primeiro lugar, surge no mundo, se descobre, e nesse descobrir-se se define. Sendo assim, o ser humano é o que faz, ele atua no mundo, se lança para o futuro, e é consciente de se projetar no futuro. Nada existe antes do homem estar no mundo, ele é um projeto que vive e vive subjetivamente. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instancia, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialismo o concebe, só não ê passível de
uma
definição
porque,
de
inicio,
não
ê
nada:
só
posteriormente será alguma coisa e será aquilo que fizer de si mesmo. (...) O homem ê tão somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais ê do que aquilo que ele faz de si mesmo: ê esse o primeiro princípio do existencialismo. (SARTRE, 1984, p.6).
Se o ser humano não tem uma essência que o define, se não está fadado a realizar uma existência determinada anteriormente, se suas escolhas não estão subordinadas a algum valor a priori, então ele está por sua própria conta, para fazer de si o que puder; e, se isso pode ser desalentador também é libertador. Adotar essa linha de pensamento, no entanto, não legitima nenhum comportamento imoral perante a vida, porque juntamente com a liberdade, vem a responsabilidade. "(...) Antes de alguém viver, a vida, em si mesma, não é nada; é quem vive que deve dar-lhe um sentido; e o valor nada mais é do que esse sentido escolhido." (SARTRE, 1984, p.21). Não se tiata também de uma filosofia que estimula a imobilidade, onde o sujeito se mantém inativo, desencorajado ou com ausência de auto-estima. É completamente equivocada a dedução de que, pelo fato de acreditar que não existe uma essência divina, que fornece força e otimismo ao ser humano, o existencialismo se constitui em uma doutrina pessimista, que se amedronta diante da dureza da realidade. É exatamente o contiário, a filosofia de Sartie acredita que o ser humano é forte, forte bastante para assumir no mundo uma postura de catalisador de mudanças, que diante das dificuldades sempre pode escolher enfrentá-las, pois acredita na ação, na capacidade ilimitada de agir, na determinação em fazer, em incrementar projetos; isso caracteriza uma conduta otimista diante da vida.
Vimos, portanto, que ele não pode ser considerado como uma filosofia do quietismo, já que define o homem pela ação; nem como uma descrição pessimista do homem: não existe doutrina mais otimista, visto que o destino do homem está em suas próprias mãos; nem como uma tentativa para desencorajar o homem de agir:
o existencialismo
diz-lhe que a única
esperança está em sua ação e que só o ato permite ao homem viver. Nesse plano, estamos, por conseguinte, perante uma moral da ação e do engajamento. (SARTRE, 1984, p.15).
Tão pouco incentiva o individualismo, o que a principio poderia supor por ser tiatar de uma doutrina que parte da subjetividade humana. Mas, mais uma vez é necessário reiterar, trata-se de uma teoria que visa à realização humana e, portanto, só poderia partir do momento em que o ser humano se percebe presente no mundo. "(...) Qualquer teoria que considere o homem fora desse momento em que ele se apreende a si mesmo é, de partida, uma teoria que suprime a verdade." (SARTRE, 1984, p.l5). Porém, a subjetividade á apenas o ponto de partida, que só se realiza completamente na intenção de se lançar em direção ao mundo. O ser humano escolhe a si, mas não somente a si, escolhe a si e toda a humanidade. "(...) Ao afirmamos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens." (SARTRE, 1984, p.6). Então, para o existencialismo, é coerente pensar que o homem está no mundo aberto a todas as possibilidades. Cabe a ele, atiavés de suas escolhas e ações determinar seus valores. A ausência de limites pré-estabelecidos não legitima nenhuma barbárie, significa apenas, que para o existencialista a liberdade não é uma opção, ser livre está vinculado ã própria existência humana, ela é inerente ao existir. Segundo Souza (2010) a liberdade declarada por Sartie não é compativel com a idéia de um sujeito determinado nem por uma essência divina anterior a sua existência, nem pela realidade em que está inserido, nem pela história. Ele é liberdade e ela é sempre absoluta, absoluta porque ela está presente mesmo em situação de opressão. Apesar de se encontiar oprimido num determinado momento, o ser humano pode decidir agir e mudar sua posição, e pode também acomodar-se. De qualquer maneira, acomodar ou reagir, é uma decisão que só ele pode tomar. E ter a percepção de sua situação, e saber-se capaz de alterá-la só é possível porque ele é constituído como liberdade. "(...) Apenas porque somos absolutamente livres é que podemos ser exercício de libertação.
busca concreta de uma relação mais autêntica e menos opressora entie as liberdades." (SOUZA, 2010, p.22). Souza (2010) também chama a atenção para a singularidade do conceito de liberdade em Sartre, que se dá justamente no movimento da consciência, ao se lançar para além se si alcançando o que a rodeia, realizando-se enquanto consciência nesse momento. Na filosofia de Sartre a noção de liberdade se refere ao movimento da consciência em direção ao mundo, e como a consciência só ê na medida em que se movimenta, em que se volta para o mundo, a liberdade acompanha a consciência o tempo todo, ê o ser da consciência, ê o nada de ser que somos. E ê por isso que a liberdade aqui ê absoluta: ela se encontra em toda possibilidade de ação, em toda possibilidade de fuga, em toda relação que o homem mantêm com o mundo. E como a negação da relação ê ainda um modo de se relacionar como o mundo. (SOUZA, 2010, p.l8).
Se a liberdade resulta do movimento da consciência em direção ãs coisas, e o ser humano é essa consciência que intencionalmente se lança para o mundo, então a humanidade é liberdade. É devido ao seu próprio conceito de liberdade que Sartie afirma a impossibilidade do existencialismo ser uma filosofia que estimula a acomodação e o pessimismo. É exatamente o contiário, a doutrina proposta por Sartie, acredita no ser humano, e na sua imensa capacidade de inovar e produzir mudanças mesmo quando o ambiente se mostia desfavorável. A liberdade nos obriga a fazer escolhas o tempo inteiro enquanto vivemos, e fazer escolhas se traduz em inquietação e ação. Em última estância, mesmo quando se pensa não estar escolhendo, estamos escolhendo não escolher. O que é possível perceber, é que, o que sempre motivou o pensamento de Sartre foi compreender o ser humano enquanto sujeito atuando no mundo. Esse entendimento se inicia na singularidade do sujeito, e estende-se para o universal, incluindo o meio em que está inserido e a situação histórica que está vivendo. Sartre, quando pensa uma doutiina para a vida, afirma que é necessário partir do momento em que o sujeito se percebe como ser pensante e consciente disso. A partir do "penso, logo existo"; ou seja, a partir do cogito cartesiano. Simplesmente porque esta é uma verdade que permeia qualquer filosofia que tem como objetivo lidar com a concretude da vida humana em
toda sua complexidade. Mas também, afirma a necessidade de transcender o isolamento do eu em relação a tudo que o rodeia, característica do pensamento de Descartes e Kant, que alocaram todo conhecimento na interioridade do sujeito moderno. Ressalta que além do conhecimento teórico, adquirido através de conceitos, é necessário viver num corpo a corpo com o mundo. Admitindo que, o ser humano só se percebe realmente, no instante em que percebe também o outro. Ou seja, ele percebe a si mesmo, mas também percebe toda a humanidade. Como herdeiro de Husserl, mantém a idéia de uma consciência como intencionalidade que se lança em direção ao mundo, mas não se mistura a ele. Pretende ir além de seu predecessor, no sentido de esvaziar a consciência de qualquer resíduo, trabalhando com a idéia de uma consciência que nada é antes de ir de encontro às coisas. E que, justamente esse movimento intencional da consciência para além dela, resulta em uma liberdade absoluta, na qual o homem está condenado a viver. Mesmo que, em algum momento ele se encontre em situação de constrangimento ou servidão, isso não o determinará. Pois ele é liberdade, e sendo liberdade ele poderá fazer de si o que quiser, porque não estará subordinado a nenhum projeto definido anteriormente para ele. Para Sartre não existe uma essência que precede a existência. Antes de viver o homem não é nada, ele só é na medida em que vive; ele está por sua própria conta. Ressalta que, esse pensamento não encoraja o pessimismo, nem a imoralidade, nem o individualismo, nem a acomodação. O que alimenta o existencialismo é a ação, o engajamento, partindo sempre do principio de que, o ser humano ao reconhecer sua importância está necessariamente reconhecendo a importância de toda humanidade. Estar largado no mundo, aparentemente desamparado, pode ser desalentador, mas pode ser também estimulante. Nesse sentido, Sartre lança o homem no mundo, sozinho e responsável por si mesmo. Ele será o resultado do que tiver projetado para si. O existencialismo deseja pôr o ser humano no domínio do que ele é, deixar a seu encargo a total responsabilidade da sua existência. E se, isso é desamparo é também liberdade. O ser humano é livre; e, está condenado a ser livre e fazer escolhas que possibilitam mudar seu projeto inicial a qualquer momento e seguir por um novo caminho. Condenada a ser livre, a humanidade vai definindo sua existência enquanto vive.
REFERÊNCIAS:
DAMON, Luiz S. M. Seis Filósofos na Sala de Aula. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2006. DESCARTES. René, 1596-1650 - Discurso do método; Meditações; Objeções e respostas; As paixões da alma; cartas / René Descartes ; introdução de Gilles Gaston Granger; prefácio e notas de Gerard Lebrun; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior., 3.ed. São Paulo : Abril Cultural, 1983. (Os pensadores). KANT. Immanuel. Critica da razão pura: Os pensadores., v. I. São Paulo: Nova Cultural, 1987. SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; traduções de Rita Correia Guedes, Luiz Roberto Salinas Fortes, Bento Prado Junior. - São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os pensadores). SARTRE, Jean-Paul. Uma idéia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade. In. Situações I. Trad. Cristina Prado. São Paulo: Cosac & Naif, 2006. SOUZA, Thana Mara. Liberdade e determinação na filosofia Sartriana. Disponível em: <http: //www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis /2_Thana MaradeSouza.pdf>. Acesso em: 29 Out. 2013.
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NIETZSCHE; 0 VALOR DA AUTONOMIA EDUCACIONAL EM
SCHOPENHÂUER EDUCADOR CARLOS CESAR MACÉDO MACIEL Professor do ICSEZ-UFAM carlosmacielufam@gmaiLcom
Resumo: O presente artigo tem por finalidade investigar o processo de construção da autonomia educacional em Nietzsche partindo da obra Schopenhauer Educador, examinando suas implicações para a educação, e com isso possibilitar a filósofos e educadores a reabertura de discussões sobre o modelo de educador que os estudantes tomam para si, a qual se faz pouco presente nos cursos de formação de professores, sobretudo no meio acadêmico. A obra, escrita em 1874, compreende a análise do pensamento desse filósofo que influenciou fortemente o pensamento filosófico do próprio Nietzsche. Também critica o ensino universitário da Alemanha do século XIX, e destaca o modelo de educador que os estudantes tomam como referência no seu desenvolvimento intelectual. Diante disso, incita o zelo pela educação de sujeitos por meio da ética e da moral. Ao final da análise são traçadas as considerações finais. Palavras - chave: Nietzsche. Autonomia Educacional. Schopenhauer Educador.
Introdução princípio da autonomia é inseparável do conceito de educação. A educação consente que o sujeito alcance o conhecimento sobre determinado assunto ou elemento, critique-o e o remodele a partir de sua própria consciência crítica. Ela também é considerada um dos principais fatores decisivos para o avanço ou retrocesso duma sociedade. A Pedagogia ciência que a estuda - apresenta seus valores sistemáticos de acordo com suas influências, e dentre estes valores encontra-se a autonomia. Paulo Freire, principal referência da educação brasileira e mundial, no seu livro Pedagogia da Autonomia, espelha este caráter nos princípios da ética crítica, competência científica e amorosidade autêntica entre educadores e educandos, unidos pelo espírito político e libertador. Segundo ele, "formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de suas destrezas" (1996, pl4), mas sim, torná-lo autônomo. Doravante ã esta afirmação.
O
A Filosofia de Nietzsche é um desafio para todo pesquisador que toma para si a indagação frente a temáticas que requerem um pensamento crítico acurado, leitura de mundo, e base argumentativa sólida. Sua Filosofia é um desafio porque recomenda atenção para apreender as flexibilidades teóricas que seu pensamento ostenta. Segundo Marton (2008) ela propõe ao leitor inúmeras provocações, como o bom combate ã metafísica; a desconstiução da linguagem; a tentativa de implodir as dicotomias, que desestabiliza nossa lógica, nosso estilo comum de raciocinar; a crítica contundente dos valores que entie nós ainda prevalece. Enfim, ela vem pôr em questão nossa maneira de pensar, agir e sentir. Diante disso, constatada a relevância e consistência concedida ã sua literatura, percebe-se que o senso crítico não será sistematizado, mas perpassará todo o seu escrito, tornando próximos e entielaçados seu pensamento e seu estilo. No campo educacional, a filosofia nietzschiana pouco é usufruída como base metodológica de muitos filósofos e educadores. Para tanto, eles fundamentam e promovem sua prática docente a partir dos saberes que adquirem em cursos de formação e atualização, bem como em pesquisas realizadas no âmbito escolar e acadêmico. Conseqüentemente despertam o raciocínio lógico, a capacidade para lidar com os conflitos referentes ao papel do educador contemporâneo, e principalmente a autonomia. O educador, enquanto sujeito em processo de formação, eleva seu patamar de conhecimento para um nível mais complexo, constiuindo-o a cada novo contato com outios profissionais ao seu redor. Essa constiução não seria possível sem a intercepção dos valores subjetivos, pois atuam diretamente nesse processo de formação.
A Educação em Nietzsche Para realçar a ótica nietzschiana e suas influências no meio educacional, em particular na formação crítica do educador contemporâneo, Ghedin ajuíza que "pensar não é seguir outios pensamentos; pensar é atirar-se na direção da pergunta tendo como única segurança a liberdade que não se segura senão na história de nossa existência" (2003, p.l86). Ainda de acordo com o pesquisador, "aquele que pretende enveredar-se pelos caminhos da Filosofia, há de se livrar das amarras massificantes, decifrar ideologias opressoras que se escondem por detiás das belas mentiras que parecem verdades, buscar a independência" (2003, p.l86). É esta independência que o caráter educacional de Nietzsche permeia, e consente que o sujeito conquiste sua autonomia, outiora, fundamentado na prática. Rovighi (1980), no seu livro História da Filosofia Contemporânea comenta que, desde o princípio, Nietzsche não se preocupou com demonstiações lógicas e muito menos com estiuturas sistemáticas. Para tanto, ele traz ã tona a obra Schopenhauer Educador, como tópico de reflexão, a discussão da idéia de um modelo de educador, no qual a educação se faz somente se o educando tiver como referência para sua educação um modelo de mestie que ele possa tomar para si. Nietzsche revela que: Certamente pode haver outros meios para fugir do torpor que habitualmente nos envolve com uma nuvem sombria e para reencontrar-se a si mesmo, mas não conheço melhores do que pensar naqueles que foram nossos educadores e nossos mestres. É por isso que hoje penso num só mestre, no único iniciador de quem posso me glorificar - em Arthur Schopenhauer. A v ez dos outros chegará mais tarde (2008, p.l9).i
Nesse sentido, Nietzsche toma como necessário um modelo para a produção de uma cultura superior em detrimento da cultura alemã da época, sendo que na obra mencionada, Schopenhauer seria o exemplo mesclado com a virtude docente. Essa é uma palavra que, segundo ele, não representa mais nada para os professores nem para os alunos, "uma palavra envelhecida que faz sorrir; e se nos abstivermos de sorrir por causa dela, pior ainda, pois, nesse caso, sorrimos por hipocrisia" (2008, p.24).
1 NIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer Educador. Sao Paulo: Editora Escala, 2008.
Frente à autonomia educacional, Olgária Ferez enfatiza que "o Estado, diz Nietzsche, está sempre interessado na formação de cidadãos obedientes e tem, portanto, tendência a impedir o desenvolvimento da cultura livre, tornando-a estática e estereotipada" (1991, p.l6). As noções de criticidade, de educador e de atuação teórica e prática são as maiores testemunhas do processo de autonomia e, no caso do Estado, da falta dela. Por assim dizer, merece destaque a noção de educação a partir da sua conceituação com base nos princípios nietzschianos. É essa conceituação que Durant (1996) vem destacar. Ele enfatiza que, a obra Schopenhauer Educador incitou Nietzsche a elaborar também dois ensaios sobre a questão educacional, são eles: O futuro de nossas instituições educacionais e Uso e abuso da história. Em ambos, o filósofo ridicularizou a submersão do intelecto alemão nas minúcias da erudição anacrônica, além de expressar duas de suas idéias principais: a de que a moralidade, bem como a teologia, deveria ser reconstruída em termos da evolução; e que a função da vida é provocar a criação do gênio, o desenvolvimento e a elevação de personalidades superiores. Essa forma de encarar a realidade educativa no cerne das Instituições de Ensino diz respeito às formas mais gerais da formação crítica do educador contemporâneo, as quais são aperfeiçoadas a partir das metodologias empregadas para além do ambiente escolar, observando a educação como um todo, a qual necessita que o seu profissional seja autônomo, sugestivo, criador de novos conhecimentos de caráter prático. Nos dias de hoje, portanto, a autonomia educacional, em particular a dos professores, se enriqueceu devido ã sensibilidade crítica pautada na síntese das relações sistemáticas de ensino, ou seja, o domínio prévio das relações teóricas e práticas. O debate sobre a autonomia educacional a partir do pensamento de Nietzsche e suas implicações para formação crítica do educador contemporâneo reabre uma discussão em torno do sujeito enquanto construtor do seu conhecimento, do seu papel no processo de ensino-aprendizagem, o que de fato o insere como sendo o principal personagem dessa construção. São propositais os argumentos ora mencionados neste referencial, a fim de situar, também, a prática docente, pois, entre o conhecimento e o sujeito é indispensável ã mediação do profissional da educação. Contudo, os limites da filosofia nietzschiana são inimagináveis, a favor das afirmações críticas pelas quais a formação do conhecimento abrange fatores internos e externos do educador. Para tanto, esta é uma ótima oportunidade de investigação para os filósofos e educadores, pelo fato de apresentar uma base filosófica sólida e simultaneamente flexível pela qual o profissional da educação dos dias de hoje
poderá defrontar-se com temas que até então prevalecem, consolidando, de fato, sua autonomia. O filósofo resumiu numa única afirmação a importância de Schopenhauer para a educação. Schopenhauer “é probo porque fala e escreve para si mesmo, dirigindo-se a si mesmo; (...) é alegre porque conquistou pelo pensamento a mais difícil das vitórias; é constante porque não pode sê-lo" (2008, p. 29 e 30). O educando elege para si um modelo de educador, não para pensar como ele, mas pensar com ele. O universo educacional da Alemanha do século XIX permitiu que Nietzsche freqüentasse círculos de intelectuais interessados em propor uma nova visão pedagógica para as suas instituições de ensino. O pensador estima que a educação se realize pelo caráter do filósofo, sendo Schopenhauer um educador exatamente por ser "um espírito livre, um gênio, um homem superior, juntamente, com Wagner2, Goethes e Napoleão^" (DANELON, 2001, p.411). Para tanto, aquele que assume o caráter do gênio torna-se o responsável pela orientação de outros gênios, ou seja, o homem de cultura superior capaz de enaltecer o conhecimento enraizado no sujeito, promovendo, assim, seu avanço intelectual. Sob o prisma schopenhauriano, o pensador ressalta que o homem de boa índole vence os valores ultrapassados e assume a coragem do homem de espírito livre das amarras ideológicas. Por assim dizer, Nietzsche compara o homem de Schopenhauer com o homem de Rousseau e Goethe. O homem de Rousseau é rebelde, subversivo, revolucionário, enquanto o homem de Goethe é desapegado e contemplativo, ao passo que o homem de Schopenhauer é a antítese dos dois precedentes, pois, é inteligente, lúcido, ativo, voluntarioso e idealista, superando barreiras, ilusões e convenções, sem se deixar abater, apesar dos altos e baixos que refletem o próprio pessimismo de seu idealizador, Schopenhauer (2008, p.09-10) ^
2 Richard W agner (1813-1883): compositor e regente alemão. Em sua mocidade, Nietzsche tornara-se seu amigo e adm irador pessoal. No entanto, rompeu com o mesmo devido o seu romantismo cristão e da sua aproximação com os nacionalistas antissemitas alemães. 3 Johann W olfgang Goethe (1794-1832): poeta filosófico alemão. Foi defensor dos movimentos literários do Sturm und Drang romântico e do classicismo alemão. ^Napoleão Bonaparte (1769-1821): gênio militar e extraordinário estadista francês. 5 NIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer Educador. São Paulo: Editora Escala, 2008.
Antes de conceber Schopenhauer Educador (1874), Nietzsche esboçou um texto intitulado O último filósofo, que comentava a respeito da urgência de um "médico" hábil para "curar" os males da sociedade moderna, o qual se revestiria da imagem do filósofo. Em outras palavras, por meio da medicina, o filósofo possui o dom de curar as enfermidades corrosivas da sociedade e, longe do imenso egoísmo dos seus concidadãos, abriria as portas do pensamento racional, cedendo espaço para a criação do gênio. Essa configuração das idéias de Nietzsche comprova seu valor como educador preocupado com o ensino da sua época. Não obstante, a publicação das suas demais obras consolidou tal afirmativa. Dentre elas destacam-se A genealogia da moral, O crepúsculo dos ídolos, Além do bem e do mal. Humano, Demasiado Humano e Assim falava Zaratustra. Todas estas obras se entrelaçam formando o sentido filosófico nietzschiano em conformidade com o estilo educacional vigente na contemporaneidade, pois o professor, enquanto debatedor do sistema educacional opressivo de sua época é um intelectual por excelência. Em A genealogia da moral (1887), segundo Simha, Nietzsche estabelece que "não existe avaliação moral possível sem um discurso que domine, ordene, hierarquize e interprete o conjunto dos tipos de comportamentos, em função de valores postos como transcendentes em relação às condições e aos processos de sua emergência" (2009, p.185). Em outras palavras, há uma linguagem influente por detrás de tudo o que o homem é capaz de fazer e sentir, mas que pode ser desconstruída a partir da moral. Em O crepúsculo dos ídolos, perante as disposições morais, o pensador nos mostra que estas "procedem de uma história longa, diversificada, acidentada, de onde emergem o sentido da responsabilidade, e as formas de obrigação jurídica e moral, oriundas do ressentimento e da má consciência" (ibidem, p. 185). Na obra Além do bem e do mal, Nietzsche exalta outra vez o papel do filósofo educador na sociedade, utilizando, inclusive, o aspecto religioso: O filósofo, tal qual o compreendemos, nós, espíritos livres, o homem da responsabilidade mais ampla, que tem a consciência do desenvolvimento mais completo do homem, este filósofo utilizar-se-á da religião como um meio de elevação e educação, como
é habitual
servir-se
das
contingências
políticas
e
econômicas de sua êpoca. A influência eletiva, educativa, quer dizer, tanto criativa e plasmadora quanto destrutiva, que pode ser exercida através das religiões e múltipla de acordo com os
homens que submerjam sob seu fascínio e que neste procurem proteção (2001, p.70-71).^
Em Humano, Demasiado Humano, uma genealogia do pensamento moderno, a incumbência da educação é capacitar o sujeito para o uma base cultural, política e autônoma consistente e acentuada que ele nunca mais se desvie do seu caminho. Para tanto, o educador deve causar-lhe feridas e, quando a ansiedade e a indigência aparecerem, algo original e sublime pode ser assentado nos pontos feridos. Por fim, na obra Assim Falava Zaratustra, o pensador exalta a solidão, discorrendo pela primeira vez sobre sua concepção de "vontade de potência"^. É por meio da figura de Zaratustra que Nietzsche mostra-se educador, pois encarna a o "homem superior", o responsável pela orientação intelectual do educando. Diante do exposto, a Educação em Nietzsche assume um amplo papel no desempenho autônomo do educador; coloca o conhecimento científico deste profissional acima dos problemas de reconhecimento por parte do sistema econômico-político-cultural. Nietzsche protagonizou a erudição desnecessária dos seus conterrâneos, a precariedade que o ato do pensar e agir acarretou e, submerso na solidão dos seus pensamentos, escreveu obras que iam de encontro aos paradoxos impregnados na mente de pedagogos e filósofos, considerados por ele como meros reprodutores do conhecimento, massificadores do novo ideal de Educação. Seus pensamentos são bastante atuais, remetidos ã liberdade humana que comporta ao mesmo tempo a permanente personificação do ato de educar pela práxis, ou seja, a açãoreflexão-ação. Vale ressaltar que caso Nietzsche estivesse vivo até hoje, talvez criticasse muitas modalidades de ensino destinadas a atender a grande demanda de educadores, como é o caso da Plataforma Freire (PAFOR), NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal ou Prelúdio de uma Filosofia do Futuro. Curitiba, PR: Hemus Editora S.A, 2001. 7 PECORARO, Rossano (org.). Os Filósofos: clássicos da filosofia. In: MARTON, Scalett. Petrópolis, RJ: Vozes, Rio de Janeiro: PUC - Rio, 2008. "Concebe a vontade de potência como vontade orgânica; ela é própria não unicamente do homem, mas de todo ser vivo, mais ainda: exerce-se nos órgãos, tecidos e células, nos numerosos seres vivos microscópicos que constituem o organismo. Atuando em cada elemento, encontra empecilhos nos que o rodeiam, mas tenta submeter os que a ela se opõem e colocá-los a seu serviço. E por encontrar resistências que ela se exerce; é por exercer-se que torna a luta inevitável. Efetivando-se, faz com que a célula esbarre em outras que a ela resistem; o obstáculo, porém, constitui um estímulo. Como o combate, uma célula passa a obedecer a outra mais forte, um tecido submete-se a outro que predomina, uma parte do organismo torna-se função de outra que vence - durante algum tempo. A luta desencadeia-se de tal forma que não há pausa ou fim possíveis; mais ainda, ela propicia que se estabeleçam hierarquias - jam ais definitivas" (p.184).
implantada pelo Governo Brasileiro visando reabilitar o educador para que ele atue diretamente na sua área de formação, pois se constatou que, por exemplo, professores formados em Matemática ministravam, por necessidade, aulas de Língua Portuguesa. Assim sendo, segundo Nietzsche, para que a Educação se efetive, o educando deve se espelhar num modelo de educador de sua preferência, desperto pelo prazer do conhecimento e pela presença do espírito investigador e científico. Ele próprio confiou sua visão intelectual a Arthur Schopenhauer, sem desprezar os demais.
A Educação em Schopenhauer O caráter educacional de Schopenhauer (1788-1860) - criador de O mundo como vontade e como representação - relaciona-se com a sua filosofia, a qual "concentra-se no pensar - ou decifrar enigmas, como prefere o autor - em quatro grandes temas: conhecimento, natureza, estética e ética" (BARBOZA, 2008, p .ll2). Esse caráter é marcado pela publicação da obra Crítica da razão pura, de Kant, em 1781, na qual o filósofo submete o objeto (representação) ao sujeito (vontade), sendo este último, até então, submisso ao primeiro.» Para Schopenhauer, o conhecimento engloba o mundo como representação, ou seja, a realidade coexistente só é percebida por meio do nosso cérebro, órgão dotado de sabedoria. Assim, o pensador vincula a concepção de Kant (coisa-em-si) e Platão (Idéia), considerados, na época, as duas principais referências do pensamento ocidental. Pelo "princípio de razão", a realidade que ele percebe externa e internamente apresenta um fundamento, ou seja, uma causa. Nada nesse mundo existe sem uma circunstância, pois toda representação é estabelecida a partir de elementos provindos do mundo externo, os quais são enviados até sua causa e situados ao redor do sujeito. Os conhecimentos do entendimento e da razão configuram-se como uma ferramenta indispensável de sobrevivência. A razão possui poderes evidentes: "a linguagem, as ações planejadas de um conjunto de pessoas, a formação e manutenção do Estado, o desenvolvimento da lógica da ciência e da tecnologia
» Para Kant é preciso levar em consideração o modo como o sujeito do conhecimento (por meio das categorias a priori do entendimento e da sensibilidade) apreende o objeto (a matéria do conhecimento) e, neste caso, todo o nosso conhecimento é uma representação do modo como o objeto é apreendido pelo sujeito: jam ais podemos conhecer a coisa-em-si, mas apenas como elas aparecem para nós (fenomenologicamente).
pela retenção da experiência passada, a comunicação desse conhecimento, etc" (BARBOZA, 2008, p .ll3). Sobre a natureza, Schopenhauer não cessa de elucidar o posicionamento da morte dispersa entre o passado, presente e futuro do homem, diferentemente dos animais que não ousam sofrer com as angústias passadas e futuras. Então, o homem respeita a morte no agora e, ao mesmo tempo, venera a imortalidade dos seus próprios ideais, ou seja, o conjunto de pensamentos e ações transmitidos gerações afins. No ato do ensino, a natureza também enfatiza o sentimento, colocando-o acima da razão, pois o sujeito pensador percebe que o mundo é "sua vontade", pois necessita conhecer a essência desse mundo que o cerca, sem dissecá-lo, mas, sim, ver os sentidos que o movem. Para o filósofo educador, estas percepções estão inseridas na consciência do sujeito, e o mundo é sua "representação". Sobre a estética, o educador a suscita como puro conhecimento do objeto, pelo o que ele é no seu imo, mediante seus benefícios e desvantagens, ou seja, uma genuína sensibilidade de mantê-lo relacionado com o sujeito, com o seu interesse em comum ã idéia. Por sua vez, a idéia é o molde dos acontecimentos, ou seja, permite que o sujeito saiba discernir a respeito daquilo que uma arte ou situação tenta revelar. Num víeis artístico e pedagógico, objeto e idéia se inter-relacionam, e, por conta disso, ocupam um dos pontos mais altos na habilidade do ensino individual e coletivo, como foi o caso das composições de Wagner. Segundo ele, a música expressa a essência do mundo por meio da linguagem universal. Por fim, sobre a ética, Schopenhauer ressalta a "compaixão" como o cerne do ato ético, numa expressão do colocar-se no lugar do outro que padece e, portanto, distanciando-se das conseqüências hostis do egoísmo presente entre os homens. Segundo o pensador: A ação humana se orienta por três causas: o egoísmo, a maldade e a caridade. Toda ação humana depende de uma destas três causas. Porém a causa essencial é o equívoco do pensamento quando elabora e mantém o conceito de um "eu individual" separado, o eu com vida própria. O pensamento gera a idéia do "ego", do "eu" separado dos outros, da vida e da natureza. No nosso mundo, atualmente, é latente este equívoco. Todas as dimensões de nossa realidade são perpassadas por este engano. O pior é que tal erro torna-se uma prática tão comum que é absolvido, sem filtro algum, como verdade, mas que é um
veneno que nos condena a todos à escravidão do desejo pessoal, egoísta (GHEDIN, 2003, p.321).9
Para tanto, "é preciso o ato de ajuda para a conclusão de que realmente alguém atuou movido pelo bem, num ato extensivo aos animais, pois estes são corpos vivos e, como os humanos, passíveis de sofrimento" (BARBOZA, 2008, p .ll9). Assim sendo, Schopenhauer permite a imersão do sujeito nos acontecimentos sociais e científicos em constante devir, questionando-os acerca de suas atuações nos eixos centrais da evolução humana, como o uso de animais para servirem de cobaia em experiências de laboratório. Todo ser vivo carrega dentro de si a marca do sofrimento e, às vezes, o sujeito a ignora, e retira sua essência para benefício próprio. Nos dias atuais, o ser humano ainda pode perceber as angústias individuais pelas quais decorrem seus semelhantes, sendo estas, nada mais do que ausência da aproximação do outro. Em algumas escolas há o distanciamento entre professor e estudante, a falta do diálogo, a carência de troca de experiências cotidianas, bem como a falta do respeito mútuo. Se não houvesse estas deficiências, a construção do conhecimento autônomo tornar-seia eficaz, concebido como o propulsor do potencial educativo. Diante desta realidade, Ghedin ajuíza que "a saída que nos resta ante ao consumismo individualista e mercadológica (...) é aquela prática das virtudes cardeais, ou seja, a única maneira de minar esta realidade mercadológica que fabrica produtos e consumidores será a práxis" (2003, p.323). Schopenhauer, assim como seu admirador Nietzsche, aderiu ã solidão; viajou por diversas cidades européias, freqüentou círculos de intelectuais e, infelizmente, conquistou notoriedade acadêmica muito tarde. Suas obras foram alvo de severas críticas, uma mais tenebrosa do que a outra, e, mesmo assim, insistiu nos fundamentos de sua filosofia. Por muitos anos, ele se perguntou sobre a propensão dos homens em aceitarem uma nova cultura pautada no pensamento pessoal, o qual, de grande relevância, refletiria nas suas ações. Suas respostas orbitavam, quase sempre, a seguinte: "todos eles são medrosos". Como foi mencionado anteriormente, o ensino da Alemanha naquela época situava-se na erudição; seus pedagogos, filósofos e poetas apenas reproduziam teorias consideradas imutáveis ao pensamento educativo. Ir de encontro a tal paradigma requeria audácia e um requinte de ironia, além de se deparar com salas de aula praticamente vazias. Arthur Schopenhauer possuiu estas qualidades como ninguém, próprias de um verdadeiro filósofo educador. ^GHEDIN, Evandro. A Filosofia e o Filosofar. Sao Paulo: Uniletras, 2003.
A Educação no Século XXI Durante os últimos tiinta anos do século passado, a educação se tiansformou na principal ferramenta utilizada por diversos países para seu avanço cultural, econômico, político e social. Educadores, diplomatas, políticos e demais intelectuais da ciência reafirmaram seu compromisso com esta ferramenta, estudando sua historicidade, sobretudo, suas implicações futurísticas em plena sociedade do conhecimento tecnológico. Conferências mundiais foram instauradas, e nelas, o assunto cardeal foi "Quais são os saberes necessários para a educação do futuro". Uma das principais estimativas foi a de que estes saberes não ficassem restiitos aos chamados países de primeiro mundo, mas incitassem os países de terceiro e segundo a reverem suas políticas públicas e, assim, constituíssem leis que assegurassem o novo contexto de ensino. Decerto, houve certa resistência quanto a isso, mas nada que no plano político fosse (re) discutido, avaliado, aprovado e dinamizado. Dados nacionais e internacionais comprovam a redução da inadimplência educativa e o aumento do número de pessoas que saíram da linha da "pobreza cognitiva" por meio da educação, como foi o caso do Brasil e da China. O Brasil revisou suas leis e finalidades educativas, antes padronizadas no tecnicismo, criando a Lei 9394/96, a chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Infelizmente, alguns pontos desta lei não são cumpridos. No caso da China, em dez anos, o país teve um crescimento educativo favorável, mudando rapidamente seu nível econômico. Estas tiansformações são o resultado dos maciços investimentos de capital na qualificação dos educadores, uma vez que a formação de outios sujeitos depende muito da sua. De acordo com Eliodete Bezerra (2008, p.Ol) as mudanças nos permitem enxergar as chances e encarar a crise, tais como: conhecer e utilizar a tecnologia da comunicação e da informação para melhorar a prática educativa e as condições de tiabalho dos profissionais da educação, estabelecendo uma política séria de formação continuada para esses profissionais, no sentido de reverter, finalmente, a crise do quadro educacional. Com o advento da revolução industiial iniciada na Inglaterra do século XIX, a educação foi centializada na organização de mãos de obra baratas no intuito de atender a produção acelerada de bens de consumo. Adultos, jovens e idosos, até mesmo crianças, se submeteram a um regime de tiabalho de doze horas por dia em tioca de um salário precário. Sob a ótica burguesa e assistencialista, eles deveriam saber apenas o necessário para seu sustento. Daí decorre a noção gramsciana do intelectual orgânico, o qual consiste na educação das massas, tendo como conseqüência sua liberdade de pensamento, auto-
percepção de si mesmo. Desde então, a principal conseqüência desse acontecimento foi o avanço dos equipamentos de produção e, sobretudo, a competitividade. No final dos anos 1990 e na primeira década do século XXI, a educação tornou-se diversificada, a qual Herbert McLuban^^ denomina de "Aldeia Global". Segundo ele "a parcialização, a especialização, o condicionamento são noções que vão ceder lugar às de integridade, de diversidade, e, sobretudo, vão abrir caminho para um engajamento real de toda a pessoa" (apud GADOTTI, 2008, p.294). Ainda de acordo com o estudioso, "o educador de amanhã será capaz de lançar-se ã apaixonante tarefa de criar um novo âmbito escolar" (ibidem, p.295). Esses princípios são realizados em função de uma educação autônoma, uma vez que o pensamento pedagógico transpõe o isolamento dos inúmeros ambientes de ensino, tais como a família, a igreja, a escola. Este último se aproximou cada vez mais da comunidade em nome do desenvolvimento afetivo e intelectual do estudante, pois direcionou sua visão social para o futuro, compreendendo o sujeito na sua totalidade. Diante desse pensamento, a educação no século XXI demandou a criação de novas metodologias sócio-políticas que professassem o melhor desempenho do cidadão frente ã era tecnológica, especialmente a escola. Todo educador ou educadora pôde chamá-la de libertadora. De acordo com Ivanilde Oliveira, essa pedagogia permeia o social, o coletivo, ressaltando "uma prática educativa fundamentada na autogestão, com autonomia e liberdade do grupo para gerir as ações administrativas e pedagógicas da escola" (2006, p .ll7). Para tanto, o processo educacional permanente viabiliza o sentido libertário por meio de ações visionárias e coletivas, ou seja, todos os envolvidos pensam e atuam em conjunto na invenção de novas atividades pedagógicas. Estas, por sua vez, "trazem uma conotação política, psicológica e moral, porque implica uma relação co-participativa, solidária e de co-responsabilidade, substituindo-se a noção do eu pelo nosso" (ibidem, p. 118). No Brasil, como foi mencionado anteriormente, houve a implantação da Lei 9394/96, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que em seu Artigo 1° e 2° preconiza, respectivamente: A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais; A educação, dever da família e do Estado, 10 Herbert Marshall M cLuhan (1911-1980): ex-professor de literatura inglesa no Canadá, professor em diversas universidades dos Estados Unidos e autoridade mundial em comunicação de massa. Suas idéias provocaram as maiores polêmicas dos últimos tempos.
inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. No entanto, é perceptível a não aplicação efetiva desta lei na maioria das escolas públicas do país. Uma das principais causas deste agravante é a falta de reconhecimento da classe dos professores, que não dispõe de um ambiente saudável e um salário digno para exercer sua profissão. Perante tal circunstância, na primeira década desse novo século, a escola assumiu responsabilidades que vem questionando o avanço intelectual do sujeito, no sentido de prepará-lo para fins profissionais, trabalhando sua personalidade, sua postura crítica em presença do diferente. Por não serem compromissadas com estas responsabilidades, as instituições de ensino, marcadas pela diversidade social e cultural, sofreram com as desigualdades mais acirradas, o que, de fato, prejudicou a socialização entre escola e a comunidade onde estava inserida. Enfim, a educação no século XXI ainda está passando por uma reforma nos seus objetivos e metas a serem alcançadas em longo prazo. No entanto, é uma lástima noticiar que os profissionais da educação são desvalorizados social e economicamente, especialmente no Brasil. Esse quadro complicado, que promoveu a criação da LDB, deveria abranger os diversos setores da sociedade com a finalidade de alcançarem um bem comum. Por assim dizer, grande parte dos educadores prega uma "educação libertadora", voltada para a sensibilidade crítica do cidadão enquanto tal, e, no entanto, a realidade educativa contradiz essa expectativa. O discurso é comovente, quase utópico, mas, na maioria dos casos, é dissociado da prática. Inserido no presente século, o pensamento de Nietzsche contribui para pensar a educação por meio da promoção de uma cultura acadêmica mais influente na sociedade, na qual o pensar fundamente a prática; treinamento das habilidades cognitivas dos estudantes e professores por meio do "ócio criativo"; negação da identidade pessimista docente; e o contato direto com a realidade educativa por parte dos seus agentes. No Brasil, uma das maneiras mais eficazes de se aplicar a crítica do educador alemão é colocá-la nos cursos de formação de professores, desde os da educação infantil até os do ensino superior. Portanto, é pelo compromisso e união dos educadores que, possivelmente, a educação no século XXI estará voltada para a criação de mentes providas de teor crítico, ou seja, a criação do "novo gênio", um dos eixos centrais de Schopenhauer Educador.
Conceito de Autonomia em Nietzsche Situado no espaço e no tempo dos acontecimentos pedagógicos, filosóficos e científicos, o homem se encontra subordinado aos emblemas paradoxais acerca da intelectualidade, justamente por suportar o peso do pensamento decadente. Por mais insignificante que essa passividade possa parecer, sua mensuração no real é uma oportunidade de encontrar soluções consistentes no tocante a edificação do conhecimento racional, renovando-o e transcrevendo-o a partir de suas nuanças. A qualidade desse tratamento parte de um comportamento de ordem física e psicológica, respaldado pela convicção científica conforme os ensinamentos transmitidos por meio de suas descobertas evidenciadas. Então, como foi mencionado em argumentos anteriores, o uso do termo autonomia implica a originalidade desses ensinamentos, interligados pela realidade e seus desafios enfrentados pelos comprometidos com a "luz da sabedoria". Assolado por diversos males, como constantes dores de cabeça, vômitos, diarréia, cansaços nos olhos, Nietzsche não se deixou abalar por eles. Pelo contrário, foi nesses momentos em que potencializou suas criações intelectuais, tal como Schopenhauer Educador. Antes disso, na sua vida enquanto jovem professor de Filologia na Universidade da Basiléia, Suíça, o filósofo educador cativava seus alunos por meio de um diálogo aberto sobre a cultura alemã presente. Ele contava piadas carregadas de ironias, aconselhava os mais inexperientes a persistirem nos seus ideais partindo das suas dificuldades. Grande parte da sua atenção docente era voltada para o autodidatismou, o qual, segundo ele, era uma ferramenta indispensável para superar as enfermidades culturais. Envolto das moléstias acima mencionadas, Nietzsche afastou-se do universo acadêmico da Basiléia, recebendo, por mês, uma considerável quantia em dinheiro por seus serviços prestados ã cultura suíça, tal qual o fez muito bem. Desde então, patrocinou viagens por quase todos os países europeu, sempre retornado para casa com malas e sacolas cheias de livros sobre as mais diferentes áreas do conhecimento humano, como física, biologia e filosofia. Conforme Tiago Calçado, "esse afastamento também fez com que ele se distanciasse dos círculos românticos e de Wagner, possibilitando uma maior autonomia e liberdade na constituição de sua filosofia (2009, p.10-11). Em consenso a este autor, Ramiro Marques menciona que Nietzsche considerava-se 11 Na concepção nietzschiana, o autodidatismo não exclui a função do professor, mas, sim, o coloca como principal incentivador dos conhecimentos inatos á conduta cognitiva dos estudantes.
"um 'filósofo do futuro' que, como todos os verdadeiros filósofos, mostrava capacidade de ficar sozinho, no cumprimento de uma vocação e de um destino de destruição e recriação" (sem ano, p.02). Ciente do seu posicionamento, subtraiu da solidão uma inegável autonomia, e, mesmo assim, fez questão de receber seus educandos em sua residência para embates acadêmicos. Sob esse aspecto, Nietzsche não recorreu ao pragmatismo exacerbado dos auspícios da cultura alemã, nem sequer transmitiu conhecimentos sem nexos com a realidade, mas convocou seus parceiros na função do magistério a renegarem a erudição, se deixando seduzir pelas práticas educativas correspondentes as futuras gerações. Seu pensamento autônomo influencia profundamente a visão sobre a educação atual, como as orientações pedagógicas oferecidas pelas instituições de ensino, o processo de ensino e aprendizagem dos estudantes e, sobretudo, a formação contínua do corpo docente. No entanto, uma questão dever ser ressaltada: o sujeito que possui a autonomia de pensamento e prática, age em função do seu raciocínio dedutivo sobre sua natureza intelectual, ou seja, parte em busca do seu próprio conhecimento, recriando-o. Essa autonomia, infelizmente, ainda é desvirtuada da sua real aplicabilidade, em especial, na educação brasileira. O conceito de autonomia nietzschiana é propulsor da probidade e da alteridade humana. Sobre a primeira, em Schopenhauer Educador, o filósofo ajuíza que "acreditar que a probidade tem um valor, que é realmente uma virtude, sem dúvida, num século de conformismo, essa é uma dessas opiniões particulares que são proibidas" (2008, p. 26), afinal, nas literaturas correntes, empregam-se conteúdos persuasivos, movidos pela semântica das palavras direcionadas às ações do leitor. Este último, por sua vez, deve estar atento a isso, sendo honesto consigo mesmo a fim de não ser manipulado. Sobre a segunda, pelo fato de muitos homens não reconhecerem a importância do outro, ele menciona que "o homem instruído se tornou por degenerescência o pior inimigo da cultura, pois, imagina mentiras para negar a doença geral e incomoda os médicos" (idem, 2008, p.48). Do ponto de vista pedagógico, ambas as virtudes promulgadas pela autonomia unem o discurso e a ação, tendo como suplemento orgânico a criatividade. De acordo com Hannah Arendt, "por meio do discurso e da ação, os homens podem distinguir a si próprios, ao invés de permanecerem apenas distintos" (2010, p.220). Ainda segundo a pensadora, "o fato de o homem ser capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável" (idem, p.222). Por se tratar de uma polaridade axiológica relativa e bem intencionada, uma torna-se precária sem a
presença da outra, pois as grandes descobertas da humanidade nasceram e ainda nascem de experimentações sendo expressas pela teoria. Portanto, pensar e agir com autonomia constitui a solidez da consciência do sujeito, o que, de fato, o torna único, diferente e ponderável, não apenas no sentido abstrato, mas sim, no existencial.
Considerações finais As tentativas para instituir um consenso entre as várias partes que compõe a realidade autônoma não é uma tarefa fácil, em particular, para os educadores no que tange a formação da sua identidade profissional. Essa realidade mostra que uma significativa parcela da classe de educadores principia uma mudança social com base nos avanços políticos, culturais e econômicos em longo prazo, enquanto outra permanece conformada no seu mundo. Somente aí se pode perceber uma falta de consistência na classe docente, e, isso gera graves conseqüências no processo formal de ensino, mais precisamente nas bases metodológicas. Assim, autonomia e identidade docente pressupõem experiências práticas e, antes de tudo, empenho. Diante de tudo isso, o conceito de autonomia na visão de Nietzsche é de igual significãncia quanto a sua pedagogia. Ser responsável por sua própria atividade intelectual não é ficar recluso de orientação, pelo contrário, é tomar consciência das próprias considerações sobre o conhecimento e, sobretudo, da própria criatividade. Essa liberdade de pensamento, contrária a toda e qualquer forma de massificação educacional, foi um dos pontos fundamentais de Schopenhauer Educador, na qual, guiado por seus ensinamentos bélicos, Nietzsche permitiu as futuras gerações de educadores uma possibilidade de autoconfiança, preparação e determinismo sobre suas ações e discursos.
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ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Contemporânea: do século XIX à neoescolástica. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2004. SIMHA, André. A consciência, do corpo ao sujeito: análise da noção: estudos de textos: Descartes, Locke, Nietzsche, Husserl. Petrópolis: Vozes, 2009.
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CRISTO E SCHOPENHAUER: DO “AMAR 0 PRÓXIMO COMO A TI MESMO” À COMPAIXAO COMO FUNDAMENTO DA MORAL MODERNA JESSICA LUIZA S. PONTES ZARANZA^ WELLINGTON ZARANZA ARRUDA^
1 M estranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará. Possui licenciatura em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará. 2 Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará. Bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) em Filosofia.
Resumo: Cada um é para si mesmo seu próprio mundo, e dá continuidade a esta guerra de todos contra todos que caracteriza a vida social. Para Schopenhauer, a única forma de elaborarmos o nosso egoísmo é a alteridade da compaixão, que é de fato o fundamento
da moral segundo este autor.
Quando
somos
compassivos, nos
enxergamos no outro e nos sensibilizamos com o sofrimento do outro. Ao cabo do processo de ver-se no outro, negamos que somos múltiplos e atingimos a ideia de que somos um só, negando a dinamicidade da pluralidade que é gerada pela vontade de vida. A aproximação deste pensamento com a ética cristã não é mera coincidência. A opção apresentada por Schopenhauer e que segundo ele fora seguida pelos santos e por Buda é a negação dessa vontade, concordando, assim, com a ética cristã. Em algumas passagens de sua obra, Schopenhauer faz referência ã correspondência que existiria entre a sua filosofia e o cristianismo. Ele afirma, por exemplo, que sua filosofia contém os resultados morais do cristianismo. O presente artigo tem como objetivo tornar nítida essa semelhança entre a moral do amor schopenhaueriana e a ética cristã. Palavras-chave: Moral. Fundamento. Compaixão. Cristo.
ética schopenhaueriana, não diferente das éticas anteriores, investiga a base de toda ação moralmente boa. O pensamento de Schopenhauer opõe-se a qualquer tipo de moral de fundo deontológico, teleológico ou normativo, firmando-se como uma análise descritiva da moral, ou seja, é uma tentativa de explicar o fenômeno moral não a partir de causas abstratas, especulativas, irreais ou conceitos que se encontram fora do mundo, mas a partir do que existe em concreto, como uma forma de enxergar o agir humano por meio de uma lente cujo caráter pragmático está incrustado no tempo presente e no existente real, como ele mesmo nos diz que somente o presente é aquilo que existe e se mantém firme e imóvel, pois é só com isso que podemos contar no processo de análise do agir moral. No entanto, tem por alvo a intelecção do conteúdo do fato ético^. Para Schopenhauer, o conteúdo do fato ético nada mais é do que o restabelecimento, e depois a negação, da unidade originária do querer. Quando aborda a questão da ética, este autor a define como uma opção: seja a afirmação ou a negação da vontade. Esta opção decorre de que o problema ético das condutas humanas resulta da incompreensão da vontade. Ora, como somos intrinsecamente vontade de vida, somos conduzidos
A
3 Há, de um modo geral, na ética clássica, a prescrição de boas ações, ao passo que na ética schopenhaueriana, a ética é meramente descritiva, isto é, investiga o solo da boa ação, sem a ensinar.
a uma batalha de todos contra todos. Os existentes brigam para manter sua existência em nome dessa realidade única que é a vontade. Logo, a representação nos lega o plural (isto é, a percepção de que somos vários), que é uma ilusão decorrente da efetivação da vontade. Cada um é para si mesmo seu próprio mundo, e dá continuidade a esta guerra de todos contra todos que caracteriza a vida social. Assim, a única forma para Schopenhauer de elaborarmos o nosso egoísmo é a alteridade da compaixão, que é de fato o fundamento da moral segundo este autor. Quando somos compassivos, nos enxergamos no outro e nos sensibilizamos com o sofrimento dooutro. Ao cabo do processo de ver-se no outro, negamos que somosmúltiplos e atingimos a ideia de que somos um só, negando a dinamicidade da pluralidade que é gerada pela vontade de vida. É milagroso o sentimento de compaixão em um mundo egoísta e semelhante a um inferno. A compaixão quer o bem alheio, e chega ã nobreza de caráter e ã bondade. Ao contrário das ações motivadas pelo egoísmo, na compaixão a Vontade não está pluralizada pelo princípio de razão. O sentimento compassivo é, portanto, a única fonte das ações não egoístas, de amor ao próximo: "Todo amor é compaixão" (MVR § 66, p.471). Poderíamos citar a frase "ama o teu próximo como a ti mesmo" (Mateus 22:39)atribuída a Jesus Cristo, e isto não é mera coincidência. Em algumas passagens de sua obra, Schopenhauer faz referência ã correspondência que existiria entre a sua filosofia e o cristianismo. Ele afirma, por exemplo, que sua filosofia contém os resultados morais do cristianismo e, para que estes resultados possam ser preservados, seria necessário recorrer ã sua filosofia. Segundo Schopenhauer: Os resultados morais do cristianismo, até a mais alta ascese, encontram-se
em mim racionalmente fundamentados e em
conexão com
as coisas, ao passo que no cristianismo estão
fundamentados por meras fábulas. A fé no
cristianismo
desaparece cada dia mais e, por isso, se tem de recorrer à minha filosofia. (SCHOPENHAUER, p.120 [Fragmentos sobre a História da Filosofia.])
Em razão do esclarecimento, a influência da religião começou a desaparecer, e junto com ela também a sua função ética. Para Schopenhauer, os fundamentos da ética apodreceram e agora necessitam de novos apoios. No capítulo IV da obra O mundo como vontade e representação, Schopenhauer retoma
as análises do mundo, agora pela perspectiva da Vontade, apontando a ética compassiva como o fundamento moral das ações humanas. Esse fundamento só pode ser encontiado por meio da experiência imediata com o mundo, ou seja, nas relações diretas com os seres e não em hipóstases da razão como defendeu Kant^. É através da experiência com o mundo, que o verdadeiro fundamento moral pode ser efetivado, tendo em vista que é no campo das relações com os indivíduos reais que se dão as inferências para uma proposta moral. Esses indivíduos sentem, desejam, decidem e efetivam suas ações cotidianamente, e é por isso mesmo que um fundamento moral deve ter como ponto de partida a realidade fenomênica como condição para a sua realização. A compaixão, como fundamento moral, parte de um duelo direto contia o egoísmo por ser esse o impulso mais evidente da natureza humana que se estiutura numa visão fragmentada da realidade. A experiência compassiva é capaz de destiuir a separação entie o 'eu' e o 'o outio', que é uma ilusão provocada por meio do principium individuationis, e fazer o homem estabelecer uma outra relação voltada para valores mais essenciais, tais como a compreensão da Idéia de humanidade, ou a compreensão da importância da vida dos demais seres vivos. Por meio do egoísmo, o indivíduo, mergulhado na ignorância de um entendimento no qual o mundo é tomado apenas como representação, se vê como centro do mundo. A Vontade se mostra por meio de motivos que apontam unicamente para a conservação de si. Há, segundo Schopenhauer, tiês modos de negação da vontade. São estes: o estético, por meio da arte, e os outios dois que são éticos, por meio da compaixão e da ascese^. O exercício da virtude pode levar o homem a uma negação momentânea da vontade quando esta ocorre por meio da compaixão. Porém, pela ascese essa negação pode alcançar níveis definitivos. No homem de disposição ascética, surge uma aversão pela essência do mundo, da qual ele é a expressão. O asceta anseia pelo nada, um estádio superior de supressão dos desejos e interesses. Entendamos o conceito de nada proposto por Schopenhauer como um nada completamente alheio ã carência, como uma negação positiva. É assim que termina a obra O mundo como vontade e representação, onde segundo sugere Schopenhauer, os planetas, as estielas e as galáxias poderiam ser perfeitamente interpretados como o nada, o nada da negação, como o ser. A Negação em Schopenhauer é a inversão de perspectivas do mundo em favor da ética. O nada da negação nada tem a ver com a ideologia do fracasso da existência, mas do 4 cf. KANT, 2001. 5 Cf. SHOPENHAUER, 2005, Livros III e IV.
apaziguamento do querer egoísta pelo conhecimento. E sentimento compassivo é, segundo Schopenhauer, o meio da ação não egoísta, do amor ao próximo. É nítida a sua aproximação com a ética cristã, embora seja importante ressaltar que, quando Schopenhauer estabelece uma analogia entre elementos de sua filosofia e o cerne da religião cristã, o seu propósito não é oferecer uma interpretação segundo a razão das doutrinas de fé cristãs, mas confirmar o papel histórico de sua ética. Em razão do esclarecimento, a influência da religião teria desaparecido, assim como sua função ética. Sua filosofia é definida como uma metafísica imanente, pois ela é constituída pela interpretação e explicação da experiência, e fala da coisa-em-si apenas no seu relacionamento com o fenômeno. Com isso, Schopenhauer reafirma a sua pretensão de formular uma ética através de uma fundamentação empírica, mas, apesar disto, sobre a pressuposição de uma metafísica. Essa ética fundamentada empiricamente (com a qual Schopenhauer se distancia tanto do Idealismo alemão quanto de todas as tentativas de uma fundamentação ética religiosa) pode ficar no lugar da moral cristã, na medida em que ela contém aquilo que tem relevância ética.
REFERENCIAS BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980. Edição Ecumênica. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 5. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. _______________ . Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Paulo Quintela. Lisboa-Portugal: Edições 70,1980. _______________ . Crítica da razão prática. Tradução com introdução e notas de Valério Rohden baseada na edição original de 1788. São Paulo: Martins Fontes, 2002 . SCHOPENHAUER, A. Fragmentos para a história da filosofia. Tradução, apresentação e notas de Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Iluminuras, 2003a. ______________ . O mundo como vontade e como representação. Tradução, apresentação e notas de Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. _______________ . Sobre o fundamento da moral. Tradução Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
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PARA ALÉM DOS SIMULACROS, OUTROS SIMULACROS, A VERTIGEM E 0 ASSOMBRO COM AS ETERNAS T O M £ 5 D E UM £C/EXPANDIDO NA URDIDURA DO TEMPO L E O N A R D O OLIVEIRA M O R E I R A '
Agradecimentos ao professor Márcio Suzuki, pela gentil leitura deste.
1 Doutorando em Filosofia (FFLCH-USP). (E-mail: leom.philosophie@gmail.com).
El estilo dei deseo es la eternidad. J. L. Borges
em dúvida, foi e é assombroso o anúncio da irrealidade do real aparente, do caráter fantasmagórico do contingencial que apenas participa de uma realidade extraterrena, ideal e imutável. Tal anúncio pode ser -como diria Borges- um dos inícios de certa literatura fantástica em Filosofia (a metafísica). Todavia, mais assombroso ainda parece ser o anúncio de que por trás de uma irrealidade há uma outra irrealidade e assim por diante: os fantasmas não são testemunhas de uma perfeição, de uma verdade, são fantasmas de fantasmas. A vertigem decorre, assim, de uma inaptidão do eu, da brusca e dolorosa impossibilidade de abarcar a verdade em um conhecimento total, como também de uma concepção labiríntica do tempo ("el abismai problema dei tiempo" que se bifurca infinitamente tal como em "El jardín de senderos que se bifurcan".
S
"Bajo el notorio influjo" de Hume (e de outros autores como Mauthner e Vaihinger), J. L. Borges, assombrado com a ausência de um eu indivisível ou singular parece entrever "otras facetas dei enigma" -que dizem respeito ao ontológico e ao tempo-, as quais "son de carácter cíclico" e "parecen repetir o combinar hechos de remotas regiones, de remotas edades" Eu mesmo, nesse momento, poderia sentir a ridícula e vertiginosa sensação de ser outro ou outros em outros tempos, talvez nomes célebres ou completamente anônimos, pois "al destino le agradan Ias repeticiones. Ias variantes. Ias simetrias" "el hombre (...) es reflejo y vanidad" Por eso el problema dei tiempo nos toca más que los otros problemas metafísicos. Porque los otros son abstractos. El dei tiempo es nuestro problema. ^Quien soy yo? ^Quién es cada uno de nosotros? ^Quiénes somos? ^
2 BORGES. "E l jardín de senderos que se bifurcan". In Obras Completas (1923-1949), t 1. Barcelona: Emecé Editores, 1989, p.479. 3 Segundo Borges, Hume "negó el espíritu" e não quis que "agregáram os a la sucesión de estados mentales la noción m etafísica de un yo". (BORGES. "N ueva refutación dei tiem po". In Obras Completas (1952-1972), t. 2. Barcelona: Emecé Editores, 1989, pp.145-146). 4 Idem. "Tem a dei traidor y dei héroe". In Obras Completas, 1 .1, p.496. 5 BORGES. "L a Tram a". In Obras Completas, t. 2, p.171. Idem. "L os Espejos", p.193. 7 Idem. "E l Tiem po". In Obras Completas (1975-1988), t. 4. Barcelona: Emecé Editores, 1996, p.205.
No mundo das Ficciones, dos espelhos, dos labirintos de espelhos e de labirintos de mármores onde os tempos se entrecruzam, certo é que os simulacros são, povoam o universo no qual os tempos confluem paralelamente e de maneira, digamos, vertiginosamente corriqueira, pois, para Borges, mesmo o acaso não é acaso, porque não existem propósitos no mundo. Nessa via de compreensão, não poderíamos estar de acordo com alguns comentários em "Borges y la tension dei simulacro", quando este nos leva a crer que Borges "nos lleva a imaginar por detrás de la superfície falaz que nos presenta, una realidad posterior, 'verdaderamente' real, sin velos, no mediada, originaria y genuína" e que "ambos polos están en permanente tensión en el simulacro" Verdadeiramente real? Difícil de crer! Quanto ã tensão do simulacro, não parece que Borges (ao passear pelas tardes com Heráclito) tivesse interesse qualquer em inferir uma tensão binária entre a verdade e o erro. A vertigem extravasa por todos os poros... Tal como (em "Los Espejos") "Cláudio, rey de una tarde, rey sonado, no sentió queera un sueno hasta aquel dia" também "El forastero" (de "Las ruinas circulares"), na empresa de "sofiar un hombre (...) con integridad minuciosa e imponerlo a la realidad" não se sabia ele mesmo um sonho, um simulacro, um fantasma. O forasteiro "caminó contra los jirones de fuego. Éstos no mordieron su carne, éstos lo acariciaron y lo inundaron sin calor y sin combustión. Con alivio, con humillación, con terror, comprendió que él también era una aparência, que otro estaba sonandolo" Por trás da aparência, uma outra: se há verdade, há enquanto simulacro de simulacro, ou seja, como um vaso quebrado, despedaçado e jogado, ã moda de Heráclito, ao Fogo. Parece-me que, em vez de ser (de encenar) Parmênides, Borges encenaria, em suas Ficciones, Heráclito. Em "El Tiempo", Borges escreve: Y parece que eso es necesario al tiempo. En nuestra experiencia, el tiempo corresponde siempre al rio de Heráclito (...) Somos siempre Heráclito viéndose reflejado en el rio, y pensando que el rio no es el rio porque há cambiado las aguas, y pensando que él no es Heráclito porque él ha sido otras personas entre la última vez que vio el rio y ésta.
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* URRESTI, Marcelo. "Borges y la tension dei sim ulacro". In KAMINSKY, Gregorio (comp.) Borges y la filosofia. Buenos Aires: UBA, 1994, p.80. 9 BORGES. "L os Espejos", In Obras Completas, t.2, p.l93. 10 Idem. "L as ruinas circulares". In Obras Completas, t.l, p.451. 11 Idem, ibidem, p.455. 12 BORGES. "E l Tiem po". In Obras Completas, t.4, p.205.
Não há vestígios de uma Ideia ou de uma verdade subjacente em Borges. Este pensa que suas jornadas e suas "noches se igualan en pobreza y en riqueza a Ias de Dios y a Ias de todos los hombres" Por momentos, Borges é também Deus e Deus é também Borges, a divindade e a humanidade, ambas Ficciones, pequenas verdades referenciais sem fundo de verdade. Borges, enquanto Deus, enquanto humanidade escreve: "Dios ha creado Ias noches que se arman / De sueflos y Ias formas dei espejo / Para que el hombre sienta que es reflejo y vanidad" Paraque se compreenda uma tensão entre o simulacro e um fundo deverdade, seria necessário encarcerar as séries desbaratadas de tempo inferidas ou re-inferidas por Borges. ^Por qué imaginar una sola serie de tiempo? Yo no sé si la imaginación de ustedes acepta esa idea (...) de que hay muchos tiempos y que esas series de tiempo (...) no son ni anteriores, ni posteriores, ni contemporâneas. Son series distintas, is
No desbaratamento de séries de tempo poderíamos entíever algo de mediato e originário que tencione com o simulacro em Borges, no entanto, se há, há enquanto reflexo, na medida em que tal verdade não se sobrepõe senão por uma ínfima memória que o infira em uma determinada série de tempo. O problema do tempo, junto ao problema ontológico, fraqueja de uma pequena memória ã outía. "Nuestra consciência está contínuamente pasando de un estado a otío, y ése es el tíempo: la sucesión" e "certo es que la succesión es una intorelable miséria" A ideia é, portanto, "que cada uno de nosotíos vive una serie de hechos" Essa ideia aterrorizante sobre o tempo revisa importantes teorias, como, por exemplo, as de Platão, de Plotíno e Agostinho (sempre as relacionando com autores contemporâneos, como Russel e Whitehead, por exemplo). Aqueles compõem, com efeito, parte do labirinto borgeano sobre o tempo. Segundo Borges, o tempo seria para Platão a "imagen móvil de la eternidad. É1 empieza por eternidad, por un ser eterno, y ese ser eterno quer proyectarse en otíos seres" enquanto para Plotíno existem três tempos, e os três são o presente ("Uno es el presente actual" ^o). Quanto a Agostínho, "en una sentencia mui
13 Idem. "M i vida entera", In Obras Completas, t.l, p.70. 14 Idem. "L os Espejos", In Obras Completas, t. 2, p.193. 15 Idem. "E l Tiem po", pp.203-204. 1*5 Idem, Ibidem, p.199. 17 Idem. "H istoria de la eternidad", In Obras Completas, t.l, p.364. 1* Idem. "E l Tiem po", p.204. 19 BORGES. "E l Tiem po". In Obras Completas, t.4, p.200. 20 Idem, Ibidem, p.200.
linda" crê que "el mundo empezó a ser com el tiempo" 21 . Se Borges tivesse eleito apenas a solução platônica, poderíamos dar razão ao artigo acima citado. Mas, do contiário, Borges conflui, pervertendo e invertendo, as tiês teorias (entre outias), abrindo, por sua vez, mais uma via problemática. Esta via, "es la que se refiere a una de Ias más hermosas invenciones dei hombre (...) Ustedes quizá pueden pensar de otio modo si son religiosos. Yo digo: esa hermosa invención de la eternidad" 22 . Segue-se Ahora (...) al tema de la eternidad, a la idea de lo eterno que quiere manifestarse de algún modo, que se manifesta en el espacio y en el tiempo. Lo eterno es el mundo de los arquétipos. En lo eterno, por ejemplo, no hay triângulo. Hay un solo triângulo, que no es ni equilátero, ni isósceles, ni escaleno. Ese triângulo es Ias tres cosas a la vez y ninguna de ellas (...) También se nos plantea el problema de si cada hombre tuviera su arquétipo platônico. Luego ese absoluto quiere manifestarse, y se manifesta en el tiempo. El tiempo es la imagen de la eternidad.
23
Para Borges, como "en aquel pasaje de Ias Enéadas que quiere interrogar y definir la naturaleza dei tiempo (...) es indispensable conocer previamente la eternidad" ^4. Ao revisitar Platão, Borges reconhece-o como um dos primeiros a pensar e postular a eternidade (como modelo e arquétipo do tempo), mas Platão já teria efetuado uma espécie de suma sobre o assunto tiatado por seus antecessores "Una prolija discusión dei sistema platônico [como dos sistemas de Plotino e Agostinho] es imposible aqui" podemos, entietanto, pontuar alguns caracteres de aproximação e de distanciamento entie as teorias. O mundo dos arquétipos platônicos ecoa no universo de Plotino: "El universo ideal a que nos convida Plotino es menos estudioso de variedad que de plenitud; es un repertorio selecto (...) Es el inmôvil y terrible museo de los arquétipos platônicos" ^7 onde todo es la copia que participa em tal ou tal medida de uma Realidade, de uma Ideia.
Idem, Ibidem, p.202. Idem, Ibidem, p.199. 23 Idem, Ibidem, p.204. 24 Idem. "H istoria de la eternidad", In Obras Completas, t.l, p.353. 25 "Todas Ias concepciones griegas convergen en sus libros, ya rechazadas, ya exornadas tragicam ente". (BORGES. "H istoria de la eternidad", p.354). 26 Idem, Ibidem, p.355. 27 BORGES. "H istoria de la eternidad", In Obras Completas, t.l, p.355. 21
22
Borges ressalta, em sua "Historia de la Eternidad", que existem alguns sofismas e ilustrações que "de buena voluntad pueden exhortarnos a tolerar la tesis platônica" Uma dessas razões lhe seria deixada por Schopenhauer ao estabelecer aos animais uma atualidade corpórea pura, como no exemplo da leonidade Borges não nega totalmente as teorias por ele revisitadas, em alguns casos as aceita parcialmente, como, por exemplo, com a teoria platônica, a ideia de Mesidade No entanto, o mesmo não ocorre com outras noções ou conceitos, dos quais Borges toma ciente distância. Borges enumera alguns argumentos que se opõem ao mundo platônico dos arquétipos: i) "la incompatible agregaciôn de voces genéricas y de voces abstractas que cohabitan sans gêne en la dotaciôn dei mundo arquétipo"; ii) "el procedimiento que usan Ias cosas para participar de Ias formas universales; iii) "la conjetura de que esos mismos arquétipos asépticos adolecen de mezcla y de variedad" O Ser Platônico não faz parte do mundo da geração e corrupção, está no mundo das Ideias, é o Mesmo, contém ou origina o tempo, mas não é o próprio tempo, nem mesmo a Eternidade. O ser para Borges é a própria confluência dos tempos, é a Eternidade, não enquanto Mesmo, mas enquanto algo mais próximo de uma Diferença originária que imbrica mundos de sonhos. O rio de Heráclito é sempre outro, nunca o mesmo... Se, em Platão, a matéria, o contingente, não é, tal concepção ecoa também em "Ias Enéadas" onde "leemos que la matéria es irreal", sendo apenas "una mera y hueca pasividad que recibe Ias formas universales como Ias ricibiría un espejo" 32. Para Borges, do contrário, "la última y firme realidad de Ias cosas es la matéria" não esse museu "quieto, monstruoso y clasificado" dos arquétipos. Certo é que a Eternidade borgeana antecede o tempo, mas "a diferencia de Ias eternidades platônicas, cuyo riesgo mayor es la insipidez" essa eternidade Es todos nuestros ayeres, todos los ayeres de todos los seres conscientes. Todo el pasado, ese pasado que no se sabe cuándo empezó. Y luego, todo el presente. Este momento que abarca 2* Idem, Ibidem, p.356. 29 Borges cita Schopenhauer: “Destino y vida de leones quiere la leonidad que, considerada en el tiempo, es un león inmortal que se mantiene mediante la infinita reposición de los individuos" (Idem, Ibidem, p.357). 30 "N o puedo negaria dei todo: sin una mesa ideal, no hubiéramos llegado a mesas concretas". (Idem, Ibidem, p.357). 31 Idem, Ibidem, pp.357-358. 32 Idem, Ibidem, p.356. 33 Idem, Ibidem, p.356. 34 BORGES. "H istoria de la eternidad", In Obras Completas, t.l, p.363.
todas Ias ciudades, todos los mundos, el espacio entre los planetas. Y luego, el porvenir (...) que no ha sido creado aún, pero que también existe.
A Eternidade, em Borges, subtrai-se da abstração monótona da Ideia, para ele a Eternidade "es una eternidade ya sin Dios, y aun sin outro poseedor y sin arquétipos" ^6 Longe de ser uma verdade verdadeiramente real e originária "la eternidade es una más copiosa invención" 3^, "cuya despedazada copia es el tiempo" ^8. Poder-se-ia questionar se essa matéria em que Borges acredita não seria ela mesma a verdadeira realidade ou substrato originário. Talvez Borges apreenda essa matéria como Berkeley, que "creyó en el mundo aparencial que urden los sentidos, pero entendió que el mundo material (...) es una duplicación ilusória" ^9. Simulacros de simulacros, um tempo pessoal que aglutina percepções em uma determinada memória ou consciência, e esse rio aparente que flui é, aqui, Borges: Negar la sucesión temporal, negar el yo, negar el universo astronômico,
son
desesperaciones
aparentes
y
consuelos
secretos. Nuestro destino (...) no es espantoso por irreal; es espantoso porque es irreversible y de hierro. El tiempo es un rio que me arrebata, pero yo soy el rio; es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre; es un fuego que me consume, pero yo soy el
fuego.
El
mundo,
desgraciadamente,
es
real;
yo,
desgraciadamente soy Borges,
Assim, conclui-se este ensaio, pontuando mais uma vez que as tensões se dão de simulacros para simulacros. E, se Borges não nega um "yo", ele, no mínimo, o expande a uma enorme coleção relacionai, concordando com Hume "em el terceiro y iíltimo de los Dialogues", quando diz: Somos una colección o conjunto de percepciones, que se suceden unas a otras con inconcedible rapidez... La mente es una especie de teatro, donde Ias percepciones aparecen, desaparecen, vuelven y se conbinan de infinitas maneras. (...) Las
35 Idem. 3*5 Idem. 37 Idem, 38 Idem, 39 Idem. 40 Idem,
percepciones
constituyen
la
mente
"E l Tiem po". In Obras Completas, t.4, pp.199-200. "H istoria de la eternidad", In Obras Completas, t.l, p.365. Ibidem, p.365. Ibidem, p.357. "N ueva refutación dei tiem po". In Obras Completas, t 2, p.144. Ibidem, p.149.
y
no
podemos
vislumbrar en qué sitio ocurren Ias escenas ni de qué materiales está echo el teatro. 4i A matéria borgeana parece ser o tempo que foge e escapa irreversivelmente marcando uma estranha coincidência em outras séries de tempo! Por fim, com Borges (em "There are more things"), "disse a mim mesmo repetidas vezes que não existe outro enigma senão o tempo, essa infinita urdidura do ontem, do hoje, do futuro, do sempre e do nunca"
Referências Bibliográficas: BORGES, Jorge Luiz. Obras Completas (1923-1949), t. 1. Barcelona: Emecé Editores, 1989; _________________ . Obras Completas Editores, 1989;
(1952-1972), t. 2. Barcelona: Emecé
_________________ . Obras Completas Editores, 1996;
(1975-1988), t. 4. Barcelona: Emecé
_________________ . O Livro de areia. Tr.br. D. Arrigucci. São Paulo: Folha, 2012; URRESTI, Marcelo. "Borges y la tension dei simulacro". In KAMINSKY, Gregorio (comp.). Borges y la filosofia. Buenos Aires: UBA, 1994.
41 BORGES. "N ueva refutación dei tiem po", In Obras Completas, t 2, p.l46. 42 Idem. "There are more things". In O Livro de areia. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2012, p.43.
klAlSIA
LAM
DOIS CAPÍTULOS INÉDITOS AIRTON UCHOANETQi
O grande realista é aquele que consegue mostrar que o conceito de verossimilhança de uma determinada época entrou em colapso. A dificuldade dos seus contemporâneos pode não se dever apenas à incompreensão, mas à dificuldade de aceitar 0 novo, pois a verossimilhança é a base moral primeira de uma civilização. Pretendi mostrar isso deform a teórica, mas preferi mostrar meu próprio trabalho e minha busca. Com meu livro de estreia. Crônica da província em chamas, busquei a alma daquilo que todo historiador digno de nome deve conhecer, e não se trata de fatos. Com o laborioso Taenia solium revisitada tive que buscar o cerne daquilo que chamam de arqueologia (e não se trata de passado e vestígio dos mortos). São dois desses capítulos inéditos que seguem. Como se tratam de primeiras versões em bruto, o leitor há de perdoar eventuais distrações na sintaxe e certos erros de digitação. São partes da verdade que serão limadas em breve.
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Capítulo trinta e cinco ou quatro. Arbeit machtfrei
E, interpelado por Deus, disse Caim: "O senhor não queria carne?" (Gênesis 4:9)
orcos são os conhecidos hospedeiros da tênia soHum. As outras espécies
P
de tênia são ainda mais raras. E encontrar o verme hospedado em bovinos,
quase
impossível,
dada
a higienização
indiscreta
que
impuseram a todas as coisas ("não é mais possível ser natural, e a própria vida pode ser que não pudesse sobreviver às regras que lhe impuseram, mas é em nome disso que as exceções forçadas na ilegalidade são tão toleradas", escreveria o fabuloso dr. Porras no seu célebre artigo sobre os Manifestos Cruéis impressos na Paraíba em folhetos de cordel em prosa). Mesmo no gado suíno a ocorrência não era tão grande quanto em eras antigas, de podridões seculares. O fato é que levado por todas as dificuldades Mautus acabou se tornando pecuarista quase profissional, piscicultor amador e especialista prático em vermes. Acontece também que um tipo estranho, tão raro que nem se sabia se acabava de aparecer, por mutação, ou se já estava perto de se extinguir, um tipo ainda bem pouco estudado de tênia foi descoberto nos intestinos de enguias dos pântanos da Flórida. Mautus mandou construir um tanque pra criação e enfrentou as dificuldades inerentes ao contrabando de animais da fauna estrangeira: a notícia aguçara sua curiosidade científica e sua intuição comercial. (As experiências de Mautus, nesse sentido, eram mais antigas, mas a descoberta de espécimes de outros locais fez com que sua mente se iluminasse. Como Mautus temia que a domesticação da tênia fizesse com que suas propriedades primárias se perdessem, ele ia buscar novos espécimes na origem a mais remota possível. Ele temia também que a endogamia constante, embora facilitasse o rastreamento genético e as características de cada indivíduo, acabasse degenerando a sua cultura.) Em compensação, encontrar entre as enguias uma que estivesse infectada não era garantido; na verdade, era bastante improvável. Pois nem mesmo os cientistas que começaram a discutir e publicar sobre o assunto entendiam como uma tênia, que em geral usa mamíferos como hospedeiros, conseguira se instalar nas entranhas de um peixe. Pior: o verme, cujos ovos na variante original tendiam a causar dupla personalidade ao se instalar no sistema nervoso e no cérebro, via corrente sanguínea, desenvolvera
uma mutação estranha que redundara numa variante brutal e corrosiva de cisticercose: o paciente humano infectado podia desenvolver de quatro a oito personalidades paralelas, sendo que duas ou três podiam tentar se manifestar de uma vez só, o que levava a estados extremos de confusão e corrosão mental. A teoria de Mautus era, a princípio, semelhante à de um grupo de biólogos e infectologistas:
as enguias teriam
devorado
o cadáver
de um
porco
contaminado que fora parar no pântano de alguma forma. A rapidez com que a tênia
teria
conseguido
se
adaptar,
em
compensação,
constrangia
os
especialistas. Alguns outros, a partir dessa evidência contraditória, defendiam que a mutação tinha sido natural e demorada, e talvez já fosse bastante antiga, mas permanecera isolada num foco, e permanecera consequentemente tão rara que só agora, pelo acidente de uma pobre família de desempregados hereditários precisar procurar a subsistência na lama, pudera ser descoberta. "Talvez a doença já tenha se manifestado em humanos", opinou o dr. Krobach Mair III. "Mas, numa época remota, pode ter sido confundida com vudu ou possessão demoníaca." Mautus, por sua vez, apostava no poder de mutação inusitadamente rápido do parasita, contava mesmo com isso. E, assim, naquela época nefasta, começaram as suas novas experiências. É arriscado dizer quantos espíritos temos ou em quantos diferentes um mesmo espírito pode se dividir a um só tempo. Talvez, como mais ou menos se acredita e se difunde nos Andes, haja um espírito responsável pelas peregrinações noturnas e a vida dos sonhos e um outro que se encarrega da inteligência, dos conhecimentos acumulados e da vida consciente. Mas essa ideia instintiva e arquetípica de divisão, ou mais apropriadamente de multiplicação, não precisaria parar. Os números, esses números, poderiam aumentar indefinidamente e sem se relacionar de forma direta com parâmetros reconhecidamente lógicos. Mautus, que tivera sua primeira grande ideia e iniciou o que ele mesmo (mas quase ninguém além dele) considerava sua carreira de filósofo, ao se curar de uma infecção semelhante, gostava de pensar que a dupla personalidade provocada por um verme, que, no popular, ironicamente se chama solitária, não se devia apenas ao ataque que os ovos da criatura empreendiam contra o cérebro para ali se instalar; ele acreditava que o enfraquecimento conseqüente do consciente fazia despertar personalidades ocultas que sempre estiveram dormentes, sob vigília. Quando soube que uma variante mais potente do verme poderia desencadear um número ainda maior de personalidades conflitantes, Mautus teve a intuição de que sua ideia inicial, já experimentada na sua própria carne, quando ele mesmo esteve doente, estava
mais do que correta e comprovada. Mautus continuou a agir, mas agora através de tentáculos fantasmas. Seus viciados mais crônicos, usuários da cisticercodeína, popularmente conhecida como cordinha, que o próprio Mautus sintetizava da tênia solium tradicional e traficava; esses viciados, que precisavam ser trocados mais ou menos a cada três meses, pois morriam bem rápido depois de chegar ao que chamam por aí de ponto sem retorno, começaram a distribuir, por ele, seus refugos nos cantos estratégicos de Fortaleza. Se sabe que o contato entre usuários e traficantes pode ser bastante rápido (e, para nós, pós-civilizados e pós-modernos, é incrível que já se tenha negociado maconha desse modo furtivo), quase sem palavras ou em silêncio mesmo, através de poucos gestos ágeis e discretos, mas de significado bastante preciso e comunicativo. Entre os usuários de Mautus e os canais imantados que Mautus espalhara na rua, usuários em nível ultrassuicida, dizem que a coisa era ainda mais estranha. As criaturas pareciam se comunicar de forma telepática, pois não trocavam absolutamente nenhuma palavra ou sinal e nem sequer se olhavam nos olhos; talvez nem se conhecessem ou não fossem mais capazes de se reconhecer a partir do passado remoto anterior à cordinha em que eventualmente tivessem se conhecido. Se comunicavam, como mariposas, através de feromônios que os outros animais não sentiam, não captavam e jamais seriam capazes de interpretar da maneira correta. Também se diz que o sinistro sr. Novilhos, o mais crepuscular, inusitado e espectral de todos os cafetões da sociedade alencarina, se utilizava da cordinha pra prender a si suas meninas decrépitas. Entre ele e elas não havia nenhuma relação afetiva e nenhum contato de caráter sexual; ele era apenas o canal mais fácil pra uma substância estranha que ele mesmo induzira as meninas a usar. As histórias que se contavam sobre ele eram pavorosas, o que, num tempo pavoroso como aquele, mas ainda mais brando do que aquele que estava por vir, chama a atenção de todos os públicos e delicia das formas mais variadas: "porca literatura que acompanha toda virtude emoldurada, suplício estético dos pobres". Para toda época cruel sempre chega o ponto terrível em que a própria crueldade começa a distrair. Quando os tempos piorassem ninguém mais seria capaz de contar histórias e ninguém ia querer ouvir mais nada, e até os horrores do passado recente seriam cinicamente esquecidos. Mas, por enquanto, as histórias sobre o sr. Novilhos eram ansiadas, divulgadas e acrescentadas de detalhes ausentes na versão original que ninguém sabe quem
contou. A polícia perseguia pistas incertas; a imprensa tinha que lidar com o pouco que conseguia sobre o caso pra abastecer a ração diária dos seus leitores. Mas a verdade é que ninguém sabia dizer ao certo com certeza quem eram e se realmente existiam, no duro, esse sr. Novilhos e seu curioso assistente, um menino de rua chamado Lhagalhá que só conseguia agir depois de anunciar, em terceira pessoa, o que ele mesmo faria ou poderia fazer na seqüência. (Lhagalhá, do aramaico, o infante que prefere o chão mesmo depois de chamado, aproveitava despudoradamente cada migalha, e até acho que era feliz, embora perigosamente.) Putas viciadas em estado crônico, que era como ele, o sr. Novilhos, precisava delas, por mais descartáveis que acabassem se tornando (mas ele, se era mesmo ele, não dava a mínima pra isso, se confiando no estoque sempre renovável), foram chamadas a depor enquanto eram tratadas em hospitais do SUS. Mas os investigadores e os homens da imprensa ficavam ainda mais confusos. Em estágios avançados do vício e sobretudo em crises agudas de abstinência, mesmo sendo sinceros, os espécimes não eram capazes de dar nenhuma informação confiável, pelo menos não sobre o tempo presente em que vivem, isso quando são ao menos inteligíveis no que dizem: são conhecidos, nesses casos, os sintomas de afasia e de comunicação através de variantes primárias e ancestrais da língua materna do paciente. — Você se veste ãe médico e me faz perguntas e depois diz que não acredita em mim ou que não entende o que eu digo, mas você trabalha com eles e sabe que tudo que eu digo é só a verdade. Você só me pergunta pra fingir que não sabe. A ditadura não declarada mandou destruir casas e guardar anotações. Eles fazem as pessoas sumirem e depois somem com todos os documentos, todas as evidências legais que dizem que a pessoa existiu, e todo mundo que vai atrás dizem que é gente que ficou louca e que persegue gente que nunca existiu. Que o único cadáver que se deve perseguir é o que não pode ser alcançado. Que isso é a sabedoria. Que os sábios não se ocupam nem dos vivos nem dos mortos. Você quer me enganar como se eu não soubesse que você já venceu. Não, eu não falo da antiga ditadura que passou. Falo de uma mais antiga, que já estava antes e que nunca foi embora. — Do que ela está falando, doutor? — De alguma coisa que ela leu sobre a antiga União Soviética. Horrores do passado histórico. Informações inúteis pra você, senhor jornalista, e completamente irrelevantes pro avanço da ciência. Um caso perdido e lamentável.
Mautus, por sua vez, sabia pouco ou talvez nada do sr. Novilhos. Seus tentáculos espalhados pelo mundo tornavam desnecessário o seu contato com novos usuários e com atravessadores, como seria o caso do sr. Novilhos. O trabalho de Mautus se resumia à criação e ao laboratório. A experiência seria demorada e dividida em vários estágios que precisariam ser documentados nos menores detalhes. Era preciso paciência, porque o fracasso de cada tentativa não podia ser descartado como possibilidade e o estágio em que se abrira a brecha para a falha teria que ser detectado com exatidão, pra que não se repetisse na vez seguinte. O risco maior, e que faria com que tudo redundasse em total perda de tempo, material, energia e esforço, era a sua teoria não estar correta. Mas era preciso experimentar, pelo bem da ciência. O sr. Novilhos, diziam, era admirador da ciência e homem culto: dizia se inspirar no próprio Mautus Fidélis como Álvaro de Campos em Alberto Caeiro (detalhe da lenda que, provavelmente, foi mais comentado, celebrado, rido com cinismo e talvez mesmo inventado nos meios mais pedantes da sociedade alencarina, os melhor protegidos por uma hipócrita aura intelectual). Em que consistiria ao certo o método científico ou a filosofia do sr. Novilhos, que ele teria revertido do tráfico para a cafetinagem, ninguém sabia ao certo. Lhe atribuíam muitas frases estapafúrdias e muitas frases disparatadas, mas quem poderia dizer que ouvira qualquer coisa de um homem que talvez nem sequer existisse, o que reduziria tudo a uma história insana, um anedotário da miséria que não parava de crescer? Por uma
estranha
coincidência,
quando
Mautus
começara
suas
atividades ilícitas, sendo acusado antes de tudo por atentado ã saúde pública, já que a produção, distribuição e venda de suas substâncias tóxicas até então inéditas e não catalogadas ainda não podiam ser criminalizadas e condenadas como tráfico, também se suspeitou que ele mesmo, o próprio Mautus Fidélis Cohen Jr., não existisse, que não passasse de uma lenda urbana elaborada por desocupados sem futuro (os amigos próximos de um jovem promissor de mesmo nome que ingressava no serviço público diziam se tratar de calúnia, embora o seu próprio irmão, na própria família reconhecidamente pródigo, nunca o tivesse defendido). Isso até começarem a aparecer os dependentes em estado terminal e de uma poderosa endemia de solitária ter se disseminado na periferia de Fortaleza, na região metropolitana e em focos no interior. A pocilga de Mautus Fidélis, na época, era ainda mais infecta do que a de qualquer periferia insalubre ou área de risco mais extrema. Uma podridão
secular e colonial tomava conta de todo o ambiente. A profunda escuridão da terra tinha vários matizes suspeitos e repugnantes. O importante era nunca higienizar nada e sempre que possível trazer mais dejetos e detritos do mundo exterior, mundo que, para o Mautus, apenas parecia saudável. "Meu quintal, minha pobre pocilga improvisada, é só a realidade do mundo concentrada", ele pensava, nas horas de sol mais abrasador, quando a catinga empestava tudo. As reclamações dos vizinhos ("Puta que o pariu, chega, mulher, cagaram o mundo!", declarava uma velha nonagenária e profética nos momentos de maior fedor, com a profunda e chocante sinceridade de quase um século de vida) eram constantes e aquela nem era sua primeira residência-laboratório-ateliê. Mais de uma vez sua criação obrigou Mautus a se mudar e a limpar tudo antes de ser autuado pela vigilância sanitária. Mas, daquela vez, seria uma pena: nunca antes ele tinha conseguido chegar a um estado de insalubridade tão próximo da perfeição, a qual, perfeição, como se sabe, sempre se encontra mais além. Ele até imaginava que a eletricidade dos dias poucos de tempestade e raios, na cada vez mais breve época das chuvas, poderia fazer com que a vida brotasse do caldo primordial da podridão de todas as coisas, que ele acumulava no quintal, o qual, nessa ocasião, poderia reproduzir o início científico da vida na terra. As pessoas reclamavam assim mesmo, porque não sabiam o trabalho necessário pra preparar a podridão essencial ao surgimento da vida. — Eu não acredito que você também seja um hipócrita e um mentiroso. Mentem pra você também e você escreve o que dizem e os homens publicam. Você pelo menos não é mais um desses caras que se vestem de branco. — Parece que ela quer falar comigo, doutor. — Senhor jornalista, por que quer perder tempo? — Olha pra mim. Eu sei o que o Homem Provisório, um eleito deputado, disse: ele pegou o telefone dele e fez a ligação dizendo: “nós não somos os ingênuos que precisam acreditar que o progresso é possível sem horror; nós inventamos o humanitarismo que justifica a barbárie; nós sabemos que as boas intenções paralisam se não geram lucro". Ele disse isso ao telefone pro dr. Fidélis, que era pro dr. Fidélis pegar mais leve na experiência porque chamava muita atenção. Que o futuro da cidade dependia da tranqüilidade do cidadão de bem que trabalha de carteira assinada. Não fui nem eu mesma que vi isso, pra você não dizer que eu estou louca. Foi uma sombra que me falou.
— Doutor, pode ser que o que ela fala faça sentido... — Senhor jornalista, está mesmo interessado no depoimento de uma pobre criatura transtornada ou fissurado imaginando o corpo nu da paciente por debaixo da bata? — Doutor, o senhor me faz uma acusação grave e bastante ofensiva... — Não me entenda mal, senhor jornalista. Não estou dizendo que o senhor seja um agressor de mulheres ativo. Apenas que a carne é fraca. É fraca, frágil e a no final é a única coisa que nós temos. Não leve a sério essa pobre criatura. O desejo confunde o senhor, senhor jornalista. — Não somos apenas carne fraca, doutor. Também temos uma mente. — Uma mente? Senhor jornalista, uma mente é apenas os dados confusamente guardados dentro de uma coisa chamada cérebro. E o cérebro mesmo é apenas uma porção de carne. Não necessariamente a mais saborosa. Enquanto preparava o porco, maturava sua contaminação semiartificial, Mautus alimentava as enguias-hienas com carne também suína. Aquelas enguias, ele percebeu, tinham fúria; atacavam sem pudor os pedaços generosos e plenos de sangue da carne morta, de aspecto tão humano quando servida daquele jeito, crua. Se enroscavam, as enguias, nos destroços do cadáver de forma promíscua, mostrando na superfície as escamas lustrosas do seu corpo esguio deslizando. Mautus se acocorava diante do tanque, sorria e salivava diante do espetáculo, enquanto suas botas emborrachadas brancas afundavam na podridão. A água do tanque era imunda também, escura, densa, quase compacta; não precisava ser protegida do ambiente ao redor, pois as enguias, aquelas enguias, eram afeitas ã sujeira e prosperavam nela. Aquilo prometia. E a ciência se mostrava bela aos olhos de quem sabia apreciar o seu lento desenvolvimento. O sr. Novilhos (obcecado por higiene, segundo a lenda, fanático por limpeza, ternos alinhados, sapatos bicolores lustrosos e cabelos pintados de um preto agressivo de rena), que seja na realidade seja na ficção que inventaram também se considerava um cientista, encarava o ofício de outra forma. O amor, pra ele, se realizava através do esforço e da abnegação, a qual começava pelo sacrifício dos sentimentos humanos. Se para o maravilhado Mautus Fidélis o orgulho, embora devesse vir depois do suor, podia invadir o processo do
trabalho antes da conclusão e do resultado, pro sr. Novilhos o suor se bastava como meta. "Se as pessoas sentissem a verdade verdadeiramente, o tempo todo, se não fosse preciso buscar a verdade, se os sentidos pudessem oferecer a verdade à mente de uma forma tal que impedisse qualquer tipo de racionalização e mascaramento, ninguém mais ia conseguir dormir, e todo mundo ia sentir dores os dias inteiros, e talvez ninguém conseguisse nem sequer sair do lugar", diziam que ele dizia. "A mentira é uma necessidade biológica pra preservação das espécies racionais, mas, em excesso, também pode levar ã degeneração da raça. O que eu faço é oferecer às meninas uma dose dolorosa e saudável da verdade e uma visão profética do que é o futuro de todos nós." Isso consta em escritos apócrifos, publicados em prosa, mas também impressos no formato de cordel, que celebravam a lenda do sr. Novilhos (o autor talvez fosse o próprio ser humano tangível por trás da lenda, talvez o inventor da ficção, talvez um aproveitador que não queria saber se aquilo tudo era real ou não). O horror gerava lucros, e, segundo os escritos, o sr. Novilhos, supostamente entrevistado, teria falado do seu método de trabalho: era necessário submeter suas meninas ã abstinência compulsória, trancadas em quartos despidos e sem luz, e a abortos provocados por ele mesmo, com as próprias mãos nuas, apesar do asco que esse contato com a intimidade da vida lhe causava. "Eu também tenho que me sacrificar de vez em quando, e entrar em contato direto com a verdade", ele teria dito. O sr. Novilhos, verdade seja dita, achava que a cidade lhe devia acidentes e crimes. Os crimes e os acidentes, pra ele, eram as rápidas aparições de Deus, pequenos milagres absurdos que a curiosidade e os trabalhos adultos escondiam dos seus olhos famintos, como se se tratassem de erros de configuração a ser corrigidos o mais rápido possível, e não as marcas dos dentes da engrenagem de tudo na sua própria carne de pedra. Ela sai do controle de novo. Não lhe basta mais apenas falar o que sabe pra que ninguém mais leve a sério. Ela tira a sua bata verde clara de paciente e mostra a verdade constrangedora da sua nudez de que o próprio médico já havia falado. A toda carne tenra com os mesmos riscos estriados que aparecem no rosto. Rastros fechados de lâminas de barbear e cacos de vidro. -
O que me importa que ele me veja e que ele me deseje? O que ainda vão poder
tirar de mim? Já arrancaram com a mão o que eu tinha dentro do útero e sufocaram enquanto ainda gritava e convulsionava. Depois colocaram no forno. O que vocês pensam que é a névoa das noites ? É a cinza de quem não tem mais corpo e nunca teve
nome. Anota aí. Eles vão destruir todos os documentos que falam sobre mim. Amanhã eu vou ser só mais uma sigla vergonhosa no seu jornal. E depois só vai sobre isso e ninguém vai lembrar. Mas e daí? Eu também sou daquelas que nunca teve nome... Agora eu estou aqui presa. Quem é que vai costurar pra criar os filhos de ninguém que todo mundo fez em mim? — Moça... como você se chama realmente? — Posso lhe dizer o nome dela depois... Os enfermeiros dominam o corpo nu, que na verdade não reage. Ela ri. — Não importa que não saibam nem importa que não queiram saber — ela diz. Vai acontecer de qualquer jeito. — Eu queria que ela mesma me dissesse, doutor. A anestesia é aplicada. Todas as perguntas são inúteis. — Ela nunca diz o nome verdadeiro, o nome comum e inventado de uma mulher do povo. Sabe como é. Mães de família impressionadas com nomes estrangeiros que elas mesmas não entendem. — Mas que nome que ela diz que tem? — Cassandra, senhor jornalista, é assim que a mulher nua diz se chamar... Enquanto isso, as anotações do professor Mautus Fidélis ganhavam um caráter cada vez mais apaixonado. Ele observava cada vez mais atentamente o trabalho obsceno das enguias e chegou ao ápice da crueldade científica. Chegou a jogar porcos, corpos vivos, pras hienas, quero dizer, para as enguias furiosas. Os porcos, aliás, sofreram nas mãos do sr. Mautus Fidélis, que pela época aderiu aos hábitos vegetarianos. Ele chegava a dissecar os animais vivos para analisar o progresso das infestações, e quantas vezes ficou feliz ao verificar o resultado. Tênias fêmeas lutando entre si dentro do intestino do porco em nome da primazia. Ele fazia de tudo pra que o porco da ocasião sobrevivesse, pra poder jogar o corpo vivo pras enguias. E, durante essa fase do processo, com a certeza de que era um gênio e de que nada de si podia se perder, ele anotava todas as noites os próprios sonhos e estudava a genealogia dos deuses da morte, tomando a última versão do seu próprio refugo pra conseguir dormir melhor.
— Ele dispõe de muitos Homens Provisórios, Grandes Homens Provisórios e Invisíveis que se chamam Senhores Vereadores e Deputados. Ele tem. Eles passam e ele permanece. E todo mundo vai fingir que não me ouve e os filhos de ninguém que nasceram de mim vão morrer de fome porque eu não estou lã fora pra corturar pra que eles vivam. A antiga caldeira da Light vai funcionar a madrugada toda. Ele vai dizer que é só uma padaria ilegal que ele construiu pra alimentar os pobres, mas o que ele faz é uma névoa de cinzas humanas. Uma névoa cinza de putas e bastardos que não vão ter quem costure pra eles. Todo mundo vai fingir que não me ouve e que eu sou louca. Porque todo mundo sabe que é verdade. Boatos cada vez mais estranhos começaram a rondar a figura do sr. Novilhos, já lendária por si mesma. Diz que ele tinha uma caldeira num subsolo inusitado numa casa no Centro Velho, outros dizem que é num galpão abandonado na Duque de Caxias, e que ele incinerava os fetos abortados e as meninas que não sobreviviam aos processos cirúrgicos operados por ele mesmo: pois o sr. Novilhos era conhecido, em boatos, não só por efetuar abortos com as próprias mãos, como também por implantar nas mesmas meninas (se diz que nem sempre com sucesso, ou seja, ao menos com a sobrevivência da paciente em questão) segundos e terceiros sexos: pois também se diz, sobre o assexuado sr. Novilhos, que ele teria criado uma genitália que ao mesmo tempo tinha tanto as qualidades masculinas e femininas das genitálias naturais
quanto
características
específicas
que
não
correspondiam
originalmente nem a um nem a outro gênero, e que diria com todo orgulho de descobridor que "sempre haverá quem pague pela loucura". Diz também que havia uma chaminé no topo do prédio, e que a chaminé espalhava na rua as cinzas das meninas. É difícil dizer o que é verdade ou não, quero dizer, qual a versão verdadeira do horror, já que ainda se encontravam, e na época com uma frequência assustadora, fetos sem luto e sem lembrança desovados em sacos plásticos junto com lixo. — "Sempre haverá um tarado disposto a pagar por um momento de prazer com todo tipo de aberração. Como vivemos em tempos higienizados e desvirilizados, eu mesmo que tenho que montar as minhas aberrações. Querem o progresso sem o horror? Querem permanecer inocentes e virgens? Querem voltar ao seu estado indígena e pagão? Malditos sejam. Uma geração decadente que deseja a eternidade física a mais vulgar, e teme a morte como se fosse algo imoral e imprevisto. Ninguém mais deseja a paz e a santidade." Segundo os historiadores místicos, o dia 18 de março de 2049, uma
no 8 - semestre 2 - 2015
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quinta-feira, entre a latitude de menos três graus, quarentra e três minutos e dois seguntos, e a longitude de menos trinta e oito graus, trinta e dois minutos e trinta e cinco segundos, do planeta terra, latitude e longitude que correspondem à cidade de Nossa Senhora da Assunção de Fortaleza, se os localizadores eletrônicos e as enciclopédias virtuais, há muito sem atualização, não estiverem erradas, teve uma noite de cem anos ou um sombrio século de sete horas. Uma horda imaterial causou pesadelos, acidentes domésticos, presságios, frios na espinha, vultos e ecos em vários pontos. O pequeno fantasma de asas nos olhos dos que foram abortados contra a vontade das mães, o fantasma salgado dos caiçaras em cores antigas de telas rotas e rasgadas, o fantasma da pintura de espinhas de peixes e monstros em telas também rotas e rasgadas, originais de antigas capas de catálogos telefônicos, destroços na calçada de museus falidos e abandonados, o fantasma vermelho dos índios sacrificados e expulsos e das índias seduzidas ou estupradas ou seduzidas e estupradas, o fantasma dos incestuosos e canibais e ladrões de circunstância e prostitutas famintas e nus e magros e imundos e selvagens se banhando nas lagoas de 1888 e jagunços sem mandante, o fantasma dos prisioneiros nos campos de concentração do Pirambu e das margens das vias férreas de 1930, a sombra do esqueleto negro da cidade máquina orgânica das profecias de outro pintor moderno cujas telas também foram todas abandonadas como roupas rasgadas com violência por agressores anônimos, almas adolescentes transportadas no bojo escuro e úmido de úteros voadores, a sombra do caçador de abutres atormentando com os ossos dos dedos as empregadas domésticas em seus quartos de solteira, o leite materno azedo da falecida Jane Vanessa escorrendo em rachaduras de paredes, estátuas secretando. Um cortejo perdido atravessou a cidade como se apenas pedisse licença pra passar, mas os estudiosos mais atentos perceberam que aquela noite não foi como as demais: ela ecoava no passado e no presente como a música alta de um carro em alta velocidade da qual a gente só consegue ouvir um pedaço: essa noite foi o pedaço da música terrível que vem na direção da gente e depois vai adiante, enquanto as tartarugas marinhas antropófagas vasculhavam a água imunda da praia das Goiabeiras, da Barra e do Nossa Senhora das Graças procurando os membros humanos que os necrotérios despejam no litoral, segundo a fala das ruas (a população local às vezes pesca desses monstros pré-históricos e faz cozidos deles e o ciclo continua; o caminho que leva da boca ao cu pode ser bem mais longo, pode começar em mandíbulas e presas as mais brutais e primitivas), e nos afluentes do rio Cocô peixes grandes que gostam de lama e sorriem com grandes dentaduras humanas buscam abocanhar e arrancar testículos desprevenidos, e lentamente parasitas
marinhos crustáceos devoram a língua até substituir a língua e falar no lugar dela, e se tornam mais fortes os movimentos peristálticos dos encanamentos, digestões obscenas sob a terra, como a libido de vermes, fora da terra e de intestinos, nus, indecentes e contorcionistas. — E se 0 menino precisar de dois reais antes de passar o bisturi? — Você precisa de dinheiro pra que, meu filho? Eu lhe dou de graça toda a felicidade que você precisa... — E se 0 menino precisar de mais e quiser negociar? — Você apenas pensa que precisa de mais. Se eu lhe der tudo que você me pede, meu filho vai ficar completamente imprestável. — E se 0 menino disser pro homem feio que o homem feio não é o pai dele e que não manda nele? — Acho que você não quer perder o seu amigo. E não quer perder o que o seu amigo tem pra lhe dar... — E se 0 menino, ainda assim, quiser mais ? — Todo mundo que pensa pouco quer sempre mais. Ninguém quer se controlar. Ninguém mais quer ser adulto. Ninguém mais quer ser responsável. — O menino nunca foi criança. Pelo menos não lembra de já ter sido criança. O menino cuida da vida dele. — Cuida tão bem de si que nem aprendeu a ler, menino. — O menino foi chamado Lhagalhã no abrigo, porque sabia soletrar e não saía disso. E, quando a professora disse ao menino que "lha" se escreve juntando o Lha-GaLha, 0 menino não conseguiu parar de rir. A professora quis botar o menino de castigo, mas 0 menino foi mais rápido e atravessou a mão megera da professora com um lápis afiado. E nunca mais apareceu na escola. — Você só o que aprendeu foi a mentir. E acho que foi mais na rua do que na escola. — Escola? O menino viu que é na escola que se mente mesmo...
—
Esquece isso, menino. Tenho uma paciente na mesa. Olha os olhos
dela. Parece que não tem nem olho dentro do olho. Não sabe? Aí você olha uma coisa dessas e fica com vontade de tomar também. Mas essa viagem não vai durar a vida toda. Me passe o bisturi e depois lhe arranjo dinheiro pra você comprar doces e estragar os dentes. Ou pra que você consiga alguma coisa mais perigosa do que açúcar. Foi de repente e depois ninguém disse foi nada: “quando a polícia perguntou, que foi qu'eu disse?, eu sou besta pra dar confiança agora: fican'é velha, né besta, não". Uma energia de fonte possivelmente sexual começou a fazer pressão sobre ele, sobre sua mente, sobre sua pele, ou sobre o ectoplasma do seu corpo imaginário, uma energia agressiva, mortal, sufocante, invasora. - Digo pra ti porque todo mundo já sabe. E até os cana'. Que se faz de besta pra pegar mais. Üa menin'estranha que a turma chamava Bisturi e comandava uma horda de piveta tudo decrépita que podia tomar a droga que fosse e nada, era. Diz que ela não mandava em ninguém de mesmo, mas as outras pivetas ouviam, faziam e davam importância. Os ditos da Bisturi, poucos. Ela não gostava nem de conversar, não. Calada chupando bala, e era só disso que se nutria: o resto do tempo era fazer programa, passar cordinha e calcular moeda, contando de vagar, de uma por uma, moeda que não acabava mais e que ela entocava de um jeito que ninguém achava. Mulher, o tanto de bicho homem grande que queria domar a pobre e tirar as moedas! Mas pobre, pobre sou eu. AqueVali de pequena só tem o tamanh'. Diz que não fazia nada. Só fazia com quem mexia com ela. Mas também diz que era m uifera da ruim. Quantos matou? Vou lã saber. Mas diz que foi ela que trucidou o dr. Novilhos, que comeu até o pâncreas do homem. Eu? Achei foi pouco, não vou mentirl Só tive pena foi da pobre que ele operava e que ele dizia que ia ser mais uma Oxumaré em carne e osso... ou pele e osso. Me perdoe o santo o pecado alheio e eu divulgar. E ela morreu na mesa de operação enquanto o puto segurava... um bisturi. Olh'a putaria! - A intenção secreta e sem palavras de desintegrar seu corpo velho e seco. Paralisar e quebrar suas mãos assassinas. O instinto vital de muitos indivíduos do sexo feminino que ele pisoteara sem perdão nem piadade. Se voltava contra ele. Se insinua. Se insinua. Eletricidade homicida. Anticorpos elétricos se voltavam contra o corpo intruso e inimigo. A vontade de destruir vinha da necessidade vingativa de viver. Na noite anterior Mautus Fidélis teria tido sonhos ruins, presságios científicos de que ele desconfiava: ele esperava que as coisas acontecessem antes e depois interpretava os acontecimentos a partir dos elementos cifrados dos sonhos, o que garantia que tudo que ele profetizava correspondia, como
acontece com os intérpretes de Nostradamus (que perceberam que ele tinha profetizado a Segunda Guerra Mundial só depois que a Segunda Guerra Mundial já tinha acontecido). Mautus, a essa altura do campeonato, não usava mais apenas os viciados crônicos das suas drogas pra viabilizar o trabalho de distribuição: também contava com as próprias sombras desgarradas deles. Mas as sombras de repente desapareceram. Se entocaram. Sombras são os melhores mensageiros. Por mais pesados e materiais que sejam mantém sua aura de incorporeidade e, despregados dos seus corpos, não se pode dizer que possam ser punidas. Mas, por isso mesmo, se tornam bem pouco confiáveis. Pois podem ser ainda mais irresponsáveis do que espíritos desprendidos de corpos. Os caras riscaram mais merdas nas paredes, nos muros escuros e nas portas fechadas, que um batalhão de pivetes sem vigilância. Pichadores fenícios. Seus alfabetos ancestrais escritos de cabeça pra baixo no topo dos prédios mais altos. Foi assim que encontraram a avenida do dia seguinte, ainda chamada Duque de Caxias, apesar dos acontecimentos.Tudo que restou do sr. Novilhos, ou mesmo de sua lenda, foi um globo ocular de pupila esbranquiçada pelo tempo, de um azul sujo que já fora castanho claro, ou verde, mas que ninguém sabia ao certo de quem seria, mesmo porque ninguém reclamou sua posse, e manchas de sangue, um rastro arrastado dolorosamente por uma criatura incapacitada de andar. A cena do crime foi cercada pela policia, que na verdade nem sabia o que fazer e talvez nem tivesse realmente o que fazer. Nos dias seguintes, nenhuma vítima daria queixa sobre o ocorrido e nenhum suspeito seria procurado. Ao longe, espreitando, os predadores da noite esperavam sua vez. Gatos acendiam seus olhos no escuro. Cães pelados de rua salivavam. Gabirus e cassacos erguiam seus focinhos dos esgotos. Exércitos laboriosos de formigas se deslocavam nas sarjetas. Uma nuvem de sangue que os olhos nas órbitas dos humanos vivos não conseguiam ver se espalhava por quilômetros como uma névoa. Os traficantes e usuários ao serviço do sr. Mautus Fidélis, seus tentáculos espalhados pelo mundo, se acocoraram nos lugares mais escondidos que acharam, começaram a arfar e a procurar com todos os sentidos a estranha ameaça que pairava, mas que eles não sabiam identificar. Se a sensação persistisse, começariam a guinchar e a arranhar com as unhas contra a primeira sombra que vissem se mexendo, como ratazanas acuadas. A roupa nodoada de sangue suíno e um carrinho de mão pra levar um carregamento barulhento de bacorinhos amarrados pelas patas. E a felicidade
no assobio de músicas fora de moda. A grande possibilidade de tomar posse da grande estrebaria do Henrique Jorge: lhe fizeram enfim a proposta comercial da sua vida. O feirante negociador de porcos, que conhecia bem o Mautus e não gostava dele, até estranhou o tapa-olho. - Tive um problema com minhas crias - ele disse. O negociador também não gostou do menino que andava com o Mautus, um tipo embrutecido e acanalhado, típico menino ladrão, sugestivo o tempo todo e sempre analisando possibilidades com olhos tranqüilos. Desde pequeno bandido e sem timidez. - Cada um com os seus problemas - disse o negociador de porcos da feira. E Mautus se foi com o menino, que levava o carrinho de mão. - E se 0 menino quisesse comer porco? - Você vai me ajudar a levar isso pra casa. Lhe pago em dinheiro, não em comida. - Dinheiro pouco e miúdo. - O que você quer? Enricar levando porco em carrinho de mão? Meu amigo, com o dinheiro que eu usei só pra comprar os bacorinhos eu comprava era três de você. E ainda ia ter prejuízo e desgosto. Acha que eu tenho pena? - Quem tem pena é galinha, tio. - Não me chame de tio. Meu nome é Fidélis. Doutor Fidélis, pra você. - Mas tio, acha direito eu do meu tamanho trabalhar? - A vida não é justa, mas não fui eu que fiz a vida. Você devia estar estudando, mas você acha qu'eu acredito que você quer estudar? - Ah, tio... Ô. Foi mal. Doutor Frigelis. - Fidélis, mobral. Fi-dé-lis. Mas deixa pra lá. Só doutor mesmo. - Pois é, doutor. Escola é m'o' mentira. - Então o jeito é trabalhar... - Ô gostão... Trabaar p'os o't'o. - Eu não vou mentir, não, meu sem vergonha. Eu já não tinha pena de
ti. Agora você é mesmo de uma geração filha da puta. Qu'eu quero mesmo é que se lasque e eu acho é pouco! - Perat. Doutor. Precisa desconsiderar o nêgo também não. - Uma geração decadente que deseja só o prazer físico o mais vulgar, e teme as carências todas como se fosse algo imoral e imprevisto. Ninguém mais deseja a paz e a santidade e o autocontrole. Ninguém é mais capaz de se sacrificar por nada. - Doutor, eu vou ser bem besta de me sacrificar? De dar minha força pro lucro alhei'? De trabaar em nome de nada, já que eu nunca vou ganhar porra nenhuma? -
Pois eu repito. Você faz parte de uma geração completamente
estragada. Já não digo nem perdida. Um bando de gente que nunca ouviu falar que o trabalho liberta. E quando souber vai achar é ruim!
Capítulo dois ou vinte e um. Embuá
Me recuso a acreditar que José Aírton Botão tenha vagado insano pelos últimos anos da sua vida, do mesmo modo que tenho medo de ver o cara como um herói: não quero ser injusto comigo mesmo nem com ele. É certo que o modo de vida que ele levava nos últimos tempos, misantropo e afásico, alguém que desistiu das coisas e de si, não parece condizer com o modo de vida das pessoas que chamamos de normais, mas investigando os poucos rastros da sua biografia percebo que em todos os momentos, inclusive enquanto ele foi considerado apenas demasiadamente ranzinza pra idade, José Aírton foi apenas reativo. Em compensação, creio que encontrei o ponto certo, o momento exato em que, cegamente, a comunidade humana abandonou mais um dos seus membros por não ser mais capaz de reconhecer o mesmo como um dos seus (e quantas vezes não se cometerá a crueldade na defesa de uma ideia frágil e abstrata). Na qualidade de biógrafo, do biógrafo que um dia ele imaginou que jamais teria, embora um biógrafo precário, mas interessado o bastante pra adiar ao máximo o ponto final (que o ponto final não seja posto enquanto todas as possibilidades da verdade, inclusive a mentira, não forem postas, e em último
caso, se for necessário, que jamais se ponha um ponto final); na qualidade improvisada de biógrafo, me ponho no direito de imaginar o que os recortes de jornal não disseram: o que ele pensou diante daquele mendigo cuja pele paralisada e insensível era feita de cascas de árvore. José Aírton, sem fonte de renda desde o encerramento das atividades do Instituto Pangloss no Brasil, carregava alguns livros velhos pra vender em algum sebo. Trabalho quase inútil: os próprios sebos estavam vendendo diariamente milhares de volumes a catadores de papel ou jogando fora pra que quem quiser pegasse; quase todos estavam encerrando suas atividades; restavam apenas os que vendiam raridades inquestionáveis, como os livros ilegais do Mauro Parente que traziam o selo de editoras que jamais tinham contratado os seus serviços de escriba. O resultado era que ou se compadeciam daquele velho, que parecia ter perdido o senso de realidade e que era quase incapaz de compreender que os livros físicos tinham perdido drasticamente o seu valor, e lhe davam alguns trocados pra que ele pudesse ao menos comprar um pastel com caldo de cana na praça da Estação ou ele mesmo, sem esperanças, tinha que negociar diretamente com os catadores de papel, que dificilmente davam a ele mais do que alguns centavos, suficientes apenas pra comprar um ou dois cigarros paraguaios em alguma banca. Pois nesse dia ele estava andando na Guilherme Rocha, rumo à praça do Ferreira, que ele ia atravessar pra chegar à Floriano Peixoto pra perturbar os últimos vendedores de livros escolares inúteis e ultrapassados que se escoravam na entrada dos estacionamentos pagos. Estava quase na esquina. Foi aí que viu o mendigo aproveitando a sombra da esquina. O mendigo tinha um pote plástico de goiabada gasto mal forrado de moedas velhas e algumas cédulas miúdas e gastas amassadas. Enquanto as pessoas passavam ele parecia dizer alguma coisa sem contexto. Ele parecia dizer uma coisa que podia ser "comece, comece, comece", "conhece, conhece, conhece" ou ainda "com s, com s, com s". Preso por uma curiosidade lingüística infantil, José Aírton desacelerou o passo e prestou atenção. Percebeu que, de uma forma quase inexplicável, o que o mendigo repetia como uma vaca que ruminasse era "por Deus, por Deus, por Deus", e só depois constatou sua situação enferma e bizarra. O mendigo, por sua vez, percebeu a curiosidade do estranho e parou de falar por um momento. Não estava ofendido pela possível curiosidade de um estranho por sua aparência, e José Aírton percebeu isso logo: o mendigo, desconfiado, recolheu o pote de goiabada pra proteger o seu dinheiro. Uma das expressões mais caras do José Aírton, que se dizia cético, era "É um sinal", e ele descobria sinais em quase tudo. Um sinal de que ele não devia
ter saído de casa, um sinal de que deveria ter optado por outro caminho, um sinal de que agora era tarde, um sinal de que o tempo está acabando. Alguns apontavam isso como uma contradição do seu ceticismo, mas julgo, por mim, que ele apenas queria costurar os fragmentos da realidade a partir de evidências sutis. Ele continuou o caminho; era o ponto sem retorno de todas as coisas. Mas um dos problemas daquela época, quando ele já era considerado precário e socialmente inviável, embora ainda não tenha sido chamado de louco até então, era que o José Aírton não só absolutamente não confiava nos meios oficiais de informação como já não se interessava por qualquer notícia transmitida pela imprensa. Se isolava. Também não ouvia o que diziam os vizinhos e os amigos ele não sabia onde estavam. Ele não sabia que uma seqüência de três prédios, incluindo o andar térreo de um cartório, havia incendiado dois dias antes e que, apesar de não estar sendo vigiada, a área estava interditada. Ele passou por sobre a barreira e prosseguiu o seu caminho. Quis ver de perto. Dali ia dobrar alguma esquina rumo ã major Facundo ou continuar até a duque de Caxias. Tanto fazia. Mas eu, que não vou dar agora uma de narrador onisciente, imagino que ele se identificava com os escombros, com o que está semidestruído. Tenho até a teoria de que esse seja o lado mais perverso da brasilidade, é com isso, mais do que com hinos nacionais e bandeiras, mais do que com a fama internacional de hospitaleiros e sexualmente felizes que me faz rir, que faz com que nos identifiquemos, sem escândalo, conosco mesmo, eu até diria numa relação cruel de amor desgastado, mas que permanece. Talvez o amor por alguém que não corresponda ou nem sequer perceba, e é apenas ao pensar nesse tipo de coisa que o verso "verás que um filho teu não foge ã luta" faz sentido pra mim. Até que ponto o meu pensamento sobre a questão verdadeiramente importa, ao ponto de eu interromper uma narrativa que tenho que reconstruir a partir de pouquíssimos indícios? Fui tomado por uma solidariedade com os mortos que me induziu a esse senso precário de justiça: talvez pra combater o boato cristalizado de que o José Aírton era louco eu acabe exagerando e dizendo que se tratava do cara mais lúcido possível e qualquer um com a cabeça no lugar ia agir da maneira como ele mesmo agiu, não que isso fosse ajudar sua pessoa, mas porque era inevitável. Um braço totalmente coberto por uma luva negra apareceu de repente e puxou o José Aírton pra dentro das cinzas de um prédio incendiado. Lhe pareceu um braço enluvado em negro porque não era um tom escuro possível de pele: era a cor negra dos pássaros negros, era a cor negra das sombras
adensadas. José Aírton e aquele corpo escuro e sem identidade própria estavam justamente nos escombros do cartório. O piso dos andares superiores e o teto tinham desabado e não se sabia onde nada começava nem onde nada terminava. O livro que o José Aírton ia tentar vender, uma edição portuguesa fac-similar do livro do Anselmo Caetano (foi o exemplar de que ele se desfez com mais dificuldade por causa de toda uma memória afetiva: uma amante dele tinha roubado o livro da biblioteca do CH da UECE pra dar a ele de presente, e ele se lembrava perfeitamente do momento em que começou a leitura, de tudo que estava no livro e ao redor do seu ato de leitura, do seu próprio corpo nu sentado na beira da cama enquanto, nua e satisfeita, a mulher já ressonava e, na vitiola abandonada, Fagner cantava entendo o fogo... porque sou daqui, e ele mesmo, iluminado pela circunstância e pela própria leitura, compreendeu que, realmente, essa era uma condição essencial para a compreensão do fogo), o livro caiu na calçada lá fora. O corpo sombrio encostava José Aírton contra a parece. — Quem é você? — ele perguntou, mas a pergunta era inútil. O corpo, que não tinha no rosto linhas que identificassem nariz e boca e olhos, era todo uma cor destacada pela luz do sol contra o absurdo familiar dos escombros, mas podia facilmente ser identificado, pelo perfil, pelos contornos, como o que a biologia considera o corpo nu de um ser humano do sexo masculino, e rapidamente José Aírton percebeu que o corpo queria lhe impor aquela masculinidade: insinuava as mãos sob as roupas dele e claramente estava surdo pra qualquer reclamação, entregue que estava a uma fúria sexual que de tão intensa e repentina raiava o sentimento amoroso. O corpo era mais forte do que o pobre José Aírton, que não parava de reagir, por desespero inútil. As roupas foram rasgadas e a pele coberta de beijos forçados que não diziam nada. O corpo tinha a resistência da carne, mas não tinha a consistência da carne. Era como ser agarrado por um manequim de borracha incapaz de tiansmitir calor humano. José Aírton ouvia algo como uma respiração, mas não identificava aquele movimento sutil e calmo do ar (a tranqüilidade do obstinado) como a respiração de nenhuma espécie viva, nem mesmo com a respiração das plantas, que ele ia aprendendo lentamente. Quando os policiais chegaram, José Aírton já estava subjugado e o ato já estava consumado. Os tiras conseguiram flagrar o corpo, mas o corpo conseguiu fugir a tempo. Só restava socorrer a vítima. — O senhor está bem? — perguntou um detetive da civil que se agachou diante do homem caído e agredido enquanto outros dois tentavam alcançar o corpo. José Aírton se assustou com a voz humana. Se deu conta, só então, que tarde demais alguém
tinha chegado pra ajudar. Ele tentou recompor a roupa em trapos e se sentou na areia carbonizada dos escombros. — Eu estou vivo — ele disse. — Mas alguma coisa que eu não sei o que é acabou de me estuprar. O senhor não tem um cigarro? — O detetive achou estranho, mas ele mesmo já estava cansado demais pra fazer qualquer pergunta desnecessária e lhe alcançou um cigarro e o isqueiro. — Desculpe lhe dizer — disse o detetive. — Mas preciso lhe perguntar. Quero ajudar o senhor, mas, na minha profissão, não posso perder tempo. O senhor foi mesmo sexualmente agredido? — Achei que tinham vindo aqui por isso, porque tinham visto um cidadão sendo estuprado por uma coisa. — Viemos aqui porque essa área é de acesso restrito. O senhor mesmo não devia estar aqui. — Eu apenas passei. — Tragou profundamente. Era um cigarro de baixos teores, muito pouco pra quem se acostumou a cigarros paraguaios fortes. — Há avisos lá fora. Muito claros pra quem sabe ler em português. Aliás, isso é seu? O detetive tiazia o livro de Anselmo Caetano, que tinha encontiado na calçada. — Sim. Quanto o senhor me dá por ele? O detetive respirou fundo. — Não me diga que você é mais um desses viciados. Periga você ter sido estuprado por sua própria sombra. José Aírton procurava se sentar mais confortavelmente e lutava com o cigarro pra conseguir alguma coisa. — Você fala dos refugos do Mautus Fidélis? Eu não ia tomar um negócio daqueles nem que me pagassem. — Tenha calma, cidadão. Não há nenhuma prova de que as drogas de que o senhor fala sejam produzidas e vendidas pelo sr. Mautus Fidélis. Se o senhor dissesse isso oficialmente, ia correr até o risco de ser processado. — Acho dificil que me permitam dizer qualquer coisa oficialmente. Sou apenas um homem com fome e sem emprego. Sou apenas alguém que precisa
viver. E, como tudo pode sempre piorar, acabei de ser estuprado por uma coisa que eu não sei o que é. — Então o senhor afirma. Que foi estuprado. Que não pediu pra que isso acontecesse. Que não se tratou de um ato consensual. — Afirmo. Mas em que isso vai me ajudar? — Preciso que o senhor venha comigo pra formahzar a queixa. José Aírton se levantou e acompanhou o detetive. As roupas dele estavam tão rasgadas que dava a impressão de que ele estava mais nu do que se estivesse sem as próprias roupas. Porque era uma nudez de miséria. Uma nudez que revelava a higiene precária, os ossos das costelas e feridas que não saravam. Na delegacia lhe arranjaram uma farda antiga e usada que ficou justa demais, mas que era melhor do que os trapos. José Aírton nem sequer conseguiu identificar aquela farda como uma farda da polícia local. A farda era da década de 1990. Ele achou isso estranho a princípio, mas, pensando bem, fazia algum sentido. Quando sentaram José Aírton pra dar o seu depoimento, ele achou estranho também que o escrivão estivesse diante de uma Olivetti verde e pesada, mas percebeu então que o retrato na parede ainda era do presidente anterior e que o barulho de máquinas de escrever mastigando e tornando racionais as várias versões confusas daquelas pequenas histórias de crueldade banalizada era a música randômica do ambiente e que a qualquer momento ele podia dormir, e ele se sentiu mais ou menos em casa, como nos escombros do prédio incendiado, e agora ele podia pensar que o que mais doía era justamente a impressão familiar de que tinha sido estuprado em casa, mas quem duvida do que pode acontecer numa casa precária? Não dava pra fugir. Era sempre o mesmo ambiente o que encontrava. Ventiladores lentos e um amarelo abafado que dava um sono febril.
Não adiantava nenhuma
providência, (tudo não parece tão renovado e esperançoso quando mudam os gestores?) por mais oficial que quisessem erguer as instituições públicas e as empresas privadas, por mais que desejem tornar cada prédio a encarnação em pedra da limpeza, da eficiência, da pontualidade, das metas cumpridas, do planejamento racional, da ordem, do padrão, da normalidade e do ideal, a precariedade sempre irá se infiltrar humidamente em tudo, e o lodo marcará de verde escuro a pele transpirante das paredes minadas de infiltração, o capim criará raízes na pedra, um canto escuro abrigará a engorda das muriçocas, os instrumentos improvisados serão encontrados ao alcance dos olhos dos que não
podiam vê-los, dos que deviam se nutrir das ilusões de que há mundos perfeitos atrás das portas que se abrem automaticamente, os funcionários serão flagrados trabalhando sem camisa ou dormindo no almoço, uma sombra na calçada, as balconistas e recepcionistas deixarão de atender pra conversar entre si ou comprar produtos de beleza, os letreiros terão erros de ortografia e letras faltando, as peças sobressalentes terão cores disparatadas e remendos ã vista, haverá lâmpadas queimadas e espaços escuros de vidro esfumaçado nos letreiros luminosos, e cantos originalmente planejados para uma outra função mais prática servirão apenas para guardar tudo que nunca foi usado ou nunca voltou a funcionar e os funcionários que se enamoraram farão cenas de ciúmes na frente de todo mundo. Mas a delegacia tinha pelo menos a vantagem de um ar-condicionado funcionando, mesmo antigo e barulhento, e sem isso a elegância asseada do detetive civil, que se tornava mais elegante e asseada por destoar de tudo, não seria praticável. Além disso ele, o J. A., estava lá pra dar um depoimento e não pra pensar sobre as instalações da segurança pública ou se aproveitar do ar-condicionado quando lá fora as coisas cozinhavam. Foi o que ele fez: José Aírton contou toda a sua história, começando pelo momento em que o Instituto Pangloss fechou as portas e ele ficou sem sustento, e tudo que aconteceu até ele ficar absolutamente sem dinheiro. — Tendo a acreditar no senhor — disse o detetive ao lado do escrivão. O escrivão fez uma pausa ao perceber que o tom de voz do detetive tinha mudado: não era o tom burocrático das perguntas exatas e frases incompletas, era quase um tom humano. — A dificuldade maior é que toda documentação do Instituto referente ao Brasil sumiu misteriosamente. — Os catadores de papel. Eles fizeram um trabalho rápido e eficiente. O detetive pensou um pouco. — Anote isso também. — O escrivão, que em nenhum momento olhou pra cara de José Aírton, voltou ao seu trabalho maquinai, às sentenças que começavam sempre da mesma forma e atestavam o que José Aírton depusera. Que foi funcionário contratado, mas não efetivado, do Instituto Pangloss. Que lá permaneceu fazendo trabalhos ocasionais e recebendo por eles até o momento em que a instituição fechou. Que não foi informado oficialmente do fechamento da instituição. Que soube do fechamento da instituição pelo testemunho reiterado dos prédios abandonados e pelo depoimento de outros funcionários, seus colegas, em especial um senhor chamado Cubano Al-
Guayacas Hussein de la Fonseca Segundo, imigrante cubano, que também não foi informado oficialmente do fechamento da instituição. Que todos os seus colegas de trabalho eram cínicos e que ele evitava ao máximo o contato com eles. Que o senhor Cubano Al-Guayacas Hussein de la Fonseca Segundo era ainda mais cínico do que os outros, mas que pelo menos tinha algo parecido com um coração e era possível gostar dele. (Nesse ponto o detetive olhou muito sério pro José Aírton Botão, mas, como viu que o mesmo não tinha a expressão de quem estivesse brincando, permitiu que a informação constasse e prosseguiu o testemunho.) Que quando o dinheiro acabou só lhe restou vender as coisas de valor. Que quando as coisas de valor acabaram começou a vender as coisas sem valor. Que quando as coisas sem valor acabaram começou a vender os livros. Que vender livros físicos era quase impossível. Que era preciso tentar todos os dias porque a fome apertava. Que viu um mendigo numa esquina nas imediações da praça do Ferreira e o mesmo tinha uma pele com aparência de casca de árvore devido ao que a testemunha e vítima acredita ser o sintoma extremo de uma deformidade genética tipicamente asiática. Que o mendigo teve medo de que ele roubasse suas moedas. Que ele mesmo não tinha a menor intenção de roubar aquelas moedas, embora não possuísse no momento e nem agora nem sequer uma moeda. Que prosseguiu o seu trajeto em direção ã Major Facundo em busca dos trechos em que se concentram, embora cada vez menos, os vendedores de livros usados. Que não tinha tido notícia até então dos sinistros ali ocorridos. Que continuou o seu caminho apesar das faixas que avisavam da interdição do local. Que não pretendia parar nem alterar a cena nem roubar nada que ali estivesse. Que pretendia usar a rua como um atalho. Que foi puxado violentamente para dentro dos escombros por uma coisa que ele diz que não sabe o que é. Que ele perguntou ã coisa de quem se tratava, não obtendo resposta. Que a suposta coisa supostamente desconhecida o agrediu com intenção diretamente sexual. Que a mesma coisa rasgou suas roupas e, ainda contra a sua vontade e sem dizer uma palavra, consumou o ato sexual. Que, para o detetive que flagrou o depoente e a coisa, a qual conseguiu fugir, teria dito que vendia livros. Que, para o mesmo detetive, disse que vendia livros por necessidades financeiras e não pelo vício em drogas. Que tentou vender ao detetive uma edição portuguesa fac-similar do ensaio de alquimia Ennoea ou a aplicação do entendimento sobre a pedra filosofal, de autoria do sr. Anselmo Caetano, publicado pela Calouste Gulbenkian. Que foi conduzido pelo mesmo detetive ã delegacia, onde sua roupa rasgada foi trocada pelo uniforme usado da polícia militar que datava de 1996. Que declarou em depoimento. Que foi funcionário contratado, mas não efetivado, do Instituto
Pangloss. Que lá permaneceu fazendo trabalhos ocasionais e recebendo por eles até o momento em que a instituição fechou. Que soube do fechamento da instituição pelo testemunho reiterado dos prédios abandonados e pelo depoimento de outros funcionários, seus colegas, em especial um senhor chamado Cubano Al-Guayacas Hussein de la Fonseca Segundo, imigrante cubano, que também não foi informado oficialmente do fechamento da instituição. Que todos os seus colegas de trabalho eram cínicos e que ele evitava ao máximo o contato com eles. — Vou excluir sua menção ao sr. Mautus Fidélis — disse o detetive. — O senhor não me parece uma pessoa perigosa, falando sério. Mas pode se complicar se uma informação como essa aparecer num depoimento. Aliás, você disse que achava que nunca seria ouvido oficialmente. Eis aí. Um pequeno milagre, é verdade. Mas o Estado ouviu o que você disse e gravou cada palavra. E eu, um representante do Estado, até fui condescendente e não deixei que algo inconveniente fizesse parte desse depoimento. Não precisa me agradecer por isso. "Um anjo teve uma ereção", pensou José Aírton. "E eu continuo brocha." José Aírton não tinha no rosto o menor sinal de que precisasse ou que pudesse ao menos fingir que estava agradecido. O delegado, um sujeito que vestia paletós elegantes como em filmes policiais americanos, mas que não suava porque estava frequentemente protegido por ambientes de ar-condicionado (era até tão elegante com o seu perfil que era difícil dizer se era o perfil de um síriolibanês ou de um imperador inca), nem percebeu a indiferença da vítima: estava feliz demais consigo mesmo, pleno de êxtase administrativo. — Mas ainda assim não posso liberar o senhor ainda. Em algumas horas pode ser que apreendamos alguns suspeitos e precisamos que o senhor tente reconhecer o agressor. Nesse momento, o provecto e engenhoso prof. dr. Maír surgiu como uma aparição. — Senhor detetive — ele disse. O detetive se virou de repente; parecia bastante assustado. José Aírton Botão, ergueu as sobrancelhas e o olhar na direção do homem. Se lembrava bem dele, mas achava que já tinha morrido, e era comum acharem que o dr. Maír não teria conseguido sobreviver ao fechamento das portas do Instituto Pangloss em território nacional. A voz dele
estava estranha e o homem parecia incrivelmente envelhecido, embora bem higienizado, como um cadáver tratado pro velório. Seu sorriso bem treinado enferrujou bastante, mas ainda era bastante profissional e sem traços verdadeiros de afeto. A voz era o mais estranho: parecia uma transmissão de rádio que tivesse se perdido no passado e só agora tivesse encontrado antenas receptoras, as últimas notícias do governo Vargas. "Se duvidar ele vai nos dar a grande novidade de que o presidente se matou", pensou José Aírton, mas não se moveu da sua cadeira coagida. Desde que, pra ele, nenhum lugar era bom, qualquer lugar era bom. — Prof. dr. Krobach Maír — disse o detetive se erguendo. Parecia simular o respeito, mas mais por um estranho medo do que por cinismo. — Se não é o meu bom paciente eterno. Sr. Detetive. Pelo que mostram os fatos parece que os meus piores pesadelos se concretizaram. Ser um monstro agora parece que é moda. Teratologia é medicina comum e não mais investigativa. A própria ciência vai ficar uma coisa entediante nos próximos tempos. — Prof. Krobach — o detetive tinha perdido toda sua autoconfiança administrativa —, o senhor pode me chamar pelo nome. — Eu sei que eu posso — ele disse —, mas eu não quero. Ética profissional que inventei de repente. A psicanálise está em crise. Hoje todo mundo quer se tratar através de tutoriais na internet ou sites de pornografia. Uma solução, admito, mas eu tenho que pensar na profissão. E em épocas de crise temos que ser radicais. Mas o que me interessa aqui é o meu outro paciente. O senhor, sr. Detetive, continue o seu tratamento. Penis normalis dosim repitatur. Devido a influências políticas e acadêmicas, a carreira do dr. Maír permaneceu quase intacta depois do fechamento do Instituto Pangloss: os demais médicos caíram sobre maldições acadêmicas e misérias intelectuais; tiveram que se contentar em abrir consultórios no centro pra dar atestados médicos, sem precisar olhar pro paciente, pra pessoas que precisavam sair ou entrar em empregos. O dr. Maír voltou ã vida acadêmica e, além disso, preparava aspirantes a delegado e detetive da polícia civil. — Trair os próprios sentimentos é a única forma de se manter íntegro — era a principal lição que dava. ("Trair os próprios sentimentos é a única forma de se manter íntegro": a
acertiva curiosamente também consta numa das últimas anotações lúcidas e legíveis do José Aírton, se as datas que ele eventualmente marca são confiáveis, 22 de abriu de 2049, no caso, mas a frase é atribuída por ele a uma travesti chamada Araga.) O fato natural e lógico de que muita gente achava que ele tinha morrido também ajudou a proteger a sua pessoa e a sua própria atividade. José Aírton, que também achava que ele tinha morrido, nada sabia desses trâmites: eram informações que circulavam numa esfera mais altas do que ele podia alcançar e mesmo bem além do seu interesse. Mas agora o próprio dr. Maír puxava uma cadeira ao seu lado e se sentava. — Não se preocupe, sr. Escriba. Não vai doer nada. — Sempre tenho medo quando me dizem isso. — Sempre adorei o seu senso de humor desesperado, sr. Escriba. Mas nunca se esqueça: o cínico, quando ainda tem coração, machuca a si mesmo na esperança de que nada exterior tenha o menor efeito sobre ele. Se consegue destruir o coração, missão cumprida. Se não consegue, é necessário que surja um profissional. — Ou a internet e os sites pornográficos. — Então, sr. Escriba, sua capacidade de perceber os fatos ao redor continua tão boa quanto antes. Embora suas roupas não sejam muito adequadas. — Pensei em entrar pra corporação, mas acho que cheguei um pouco atrasado. — Eu não vou fingir o tempo todo que tudo que o senhor diz é engraçado, sr. Escriba. O senhor me preocupa. A sua existência me preocupa. — Muito obrigado pela gentileza. O dr. Maír pegou o livro sobre a mesa, o livro de Anselmo Caetano, e começou a folhear. A primeira coisa que viu foi o carimbo da biblioteca. — Não precisa me agradecer. Mesmo porque o senhor não se sente grato, sr. Escriba. — Ergueu o livro como se quisesse que José Aírton reconhecesse o objeto. — Não sabia que o senhor roubava acervos.
— Foi um velho presente de alguém da minha estima. Eu não ia recusar só por causa da origem. O amor tem linguagens misteriosas. — Onde está a pessoa que lhe deu esse livro, sr. Escriba? — Há décadas não tenho noticias dela. O amor tem linguagens misteriosas, eu já disse. E misteriosamente essas linguagens se calam. — Às vezes o senhor tem lampejos sensatos de lucidez. Mas não sempre, infelizmente. Parece que precisa se voltar justamente contia as pessoas que mais querem o seu bem, mesmo que elas desejem isso impessoalmente. Mas o que você diria se eu dissesse que posso tirar o senhor daqui e fazer com que o senhor só volte quando for necessário? O senhor não ficaria feliz com isso, sr. Escriba? — Eu não consigo fícar muito feliz com as coisas que o senhor promete, mesmo porque o senhor sempre cumpre. Mas pra mim, agora, tanto faz um lugar quanto outio. — O sr. Detetive deve ter lhe dito que em algumas horas lhe trará suspeitos pra reconhecimento. Ele disse que pode levar algumas horas, mas eu sei como isso funciona e imagino que você desconfie. Pode levar dias e pode também nunca acontecer. Se acontecer alguma coisa parecida, você vai deparar com um monte de coitados torturados jurando que são culpados. E realmente devem ser culpados de alguma coisa. Mas pode ser que o verdadeiro culpado por desvirginar o seu ânus não esteja entie eles. — Obrigado pela linguagem direta, doutor. — Rapaz, você ainda não aprendeu que não adianta ser cínico quando não é você quem manda. — Bem, tudo indica que eu não tenho escolha. Vou deixar de esperar aqui durante dias e esperar, durante dias, onde o senhor disser. — Veja pelo lado bom. Serviremos refeições. O dr. Maír, sem pedir licença, foi falar com o detetive, que tinha se retirado (mas ainda não pra seguir a prescrição médica). O escrivão aproveitava o momento livre pra tomar um café sem açúcar. José Aírton percebeu, mesmo com o homem de costas, que a calvície do escrivão era total e absoluta, lustiosa.
mas o escrivão parece que tinha problemas sérios com o suor, mesmo com o arcondicionado, tiemendo, ligado no máximo. Se é que o detetive não era o único que conseguia se posicionar no ponto exato em que o aparelho era mais potente. De vez em quando ele tinha que enxugar o suor com o lenço. Isso deve ter lhe parecido uma humilhação no princípio, mas o tempo e a praticidade obrigaram a esquecer o ridículo. Ele tomava um café sem açúcar. Tinha uma cafeteira só dele bem ao lado da máquina. O escrivão acendeu um cigarro. José Aírton até pensou em pedir um, mas percebeu que também o escrivão fumava cigarros de baixos teores. Pouco pra ele. Aí ele percebeu que logo acima do escrivão, na parede em que sua escrivaninha mínima encostava tão rente que já devia ter ferido a pintura, havia uma placa de proibido fumar, e não pôde conter um sorriso. Mas podia sorrir. O escrivão não olhou pra ele em nenhum momento, nem ia olhar. Talvez, de tanto trabalhar de cara pra uma máquina de escrever e uma parede não soubesse o rosto de nenhum dos seus colegas. José Aírton até se identificou com a profissão, mas não teve tempo de pensar mais sobre o assunto, porque dois policiais militares tinham que conduzir pra uma viatura seu corpo agredido. Ele não chegou a ver o delegado nem o dr. Maír, mas não se preocupou com isso. Se deixou levar. O que achou estranho foi que os policiais que conduziram ele foram simpáticos demais, puxavam conversa o tempo todo, como se quisessem ser amigos. "Fodeu", ele pensou, mas nada de grave aconteceu com ele no caminho. Os policiais deixaram ele na porta de um prédio onde dois enfermeiros estavam esperando, e José Aírton foi conduzido, de elevador, até o consultório. — Como está o meu paciente? Está tubo bem com você? Era o dr. Enrico Pagnii, de quem ele se lembrava bem. Foi o médico responsável por seus exames de admissão no Instituto Pangloss: mais um cara que se salvou do escândalo devido a boas influências. O dr. Enrico Pagnii (não restava dúvida que era ele: o nome estava escrito na placa da porta do consultório, numa plaquinha portátil de mesa e no diploma emoldurado na parede) não tinha envelhecido absolutamente nada nas últimas décadas e mantinha o mais magnífico sorriso aterrorizante dos tempos do IP. Mas olhou pro José Aírton como quem vê pela primeira vez um animal raro e que se julgava extinto, mesmo tendo dito meu paciente. Pelo menos foi assim que se sentiu o José Aírton, segundo os rascunhos do seu diário caótico. Ele resolveu entrar no jogo e dizer sinceramente como se sentia. — Sou um derrotista, doutor. Tenho tendência ao alcoolismo e ao vício
em remédios pra dormir. Sou um fumante inveterado e isso significa que o câncer me espreita. Escrevo coisas pesadas e depressivas que ninguém em sã consciência publicaria. No final, como diria o dr. Porras, não passo de mais um conformista safado. Recuperei o que chamam de alegria de viver por um pouco mais de um mês, mas perdi durante o carnaval. Acho que isso não é pra gente como eu. Tirando isso e o fato de eu ter sido estuprado por uma coisa que eu nem sei o que é... tudo bem. — Observação biográfica: às vezes José Aírton pensava e escrevia no diário: "Se ainda tivesse um amor, talvez eu fosse feliz". Mas depois escrevia também: "Quando o cara começa a exigir tão pouco da vida o mais provável é que tudo já esteja perdido". E essas duas frases se repetem com uma obsessão de inseto, como se precisassem se negar mutuamente e, ao mesmo tempo, se enrolar sobre si mesmas pra se proteger de qualquer outra verdade posterior. Era numa espécie de escritório-consultório montado num prédio do Centro, tão bem feito que parecia que já estava lá fazia tempo; os contrarregras não brincam em serviço. As paredes estavam forradas de diplomas em polonês, fotografias de mendigos ilustres tratados no antigo Instituto Pangloss, quadros antigos e racistas de tipos humanos ancestrais da brasilidade desenhados por antropólogos colonizadores do século XVII ou XVIII e quadros de animais híbridos, com detalhes dos corpos estranhos enxertados e explicações em alemão que pareciam dizer — do que podiam estar dizendo — de métodos para ligação de veias, artérias, músculos, tendões, ossos e nervos (o mais detalhado era o desenho de cérbero atribuído ao lendário dr. Daui Mauaras, desaparecido em 1989). Na escrivaninha havia um tratado sobre imunodepressores assinado pelo próprio dr. Enrico Pagnii e naturalmente escrito em italiano. José Aírton teve a nítida impressão de que já tinha vivido aquilo antes: eram as típicas dependências brilhantemente improvisadas e rapidamente descartadas do Instituto Pangloss. — O senhor tem alguma restrição ao uso de sódio pentotal? — Sou contra qualquer coisa intravenal que não seja divertida. — O senhor não disse antes que não se drogava? — Apenas não utilizo as drogas produzidas pelo sr. Mautus Fidélis. — Não afirme coisas que não pode provar, sr. Escriba. — O mesmo procedimento ético, o mesmo padrão, o mesmo sorriso com a diferença da
idade e da eficiência. — O senhor pode se complicar bastante com esse tipo de afirmação. Mas, então, o senhor se recusa ao sódio pentotal. Apenas torna o meu trabalho mais difícil. Adoro isso. Sabe o que dizem sobre médicos especializados em saúde mental. São todos perturbados. Seu impulso primário era se tratar sozinhos e, não resolvendo os próprios problemas, passam a ganhar dinheiro com os dos outros, o que, bem pensado, não é nada mal. Pelo menos é o que dizem, e boa parte das crenças fatalistas do sr. José Aírton Botão, escriba semiprofissional e ex-funcionário contratado do Instituto Pangloss. — Qual o objetivo disso tudo? Nem sei por que pergunto se sei que não vai vir uma resposta. — O senhor sofreu um trauma. Seu orgulho e sua identidade sexual devem ter sido bastante abalados pela experiência pela qual o senhor foi obrigado a passar. Estamos aqui apenas pra ajudar o senhor a lidar com isso, sr. Escriba. — Apenas não demore. Tenho coisas afazer. — Lamento. Lamento inclusive não poder acreditar na sua mentirinha inofensiva. Processos de regressão, sobretudo regressão lúcida, são bem demorados. — Regressão? — Eu também achava muito interessante um método novo que eu mesmo desenvolvi. Muito bom em casos latentes de inconformismo como o seu. O clássico lobo em pele de cordeiro... — Sou um homem preocupado com a verdade e acredito pouco em regressão. Abusaram de mim faz muito pouco tempo. Acredite. Eu não esqueci. E se o cu fosse seu o senhor também não teria esquecido. — ...e o velho e bom dom Freud já dizia: "O indivíduo é inimigo da sociedade". Mas, voltando ao meu método, ele consiste em trazer moças constrangidas, chorosas e religiosas pra tirar a roupa diante do paciente do sexo masculino, que leva um choque caso se mova. Elas não sorriem nem dançam; se despem sem nenhum aparato cênico. Tudo muito prático. Despido... sem trocadilhos... de toda sensualidade acessória. O que me lembra de que preciso
adaptar o método pras pacientes do sexo feminino... No seu caso, vamos ver como sua libido reage. Quando mais rápido melhor. Mas, pensando bem, não vamos fazer isso hoje. Ele se afastou. Abriu uma porta que o paciente não tinha percebido, atravessou apenas meio corpo por ela — Meninas, podem ir, hoje não tem espetáculo — e logo voltou à sua poltrona por trás da escrivaninha. Enquanto ele se acomodava, o paciente pôde ouvir suspiros aliviados de moças que se levantavam e o barulho tímido de seus passos pequenos em sapatos sem salto. — Talvez não fosse uma ideia tão ruim essa das meninas. — Com você precisamos de algo mais drástico. — Escute, doutor, não me leve a mal, mas não gosto muito do que vejo no espelho todo dia. Gostaria de saber menos sobre mim porque isso tornaria bem mais suportável ter que beber tanto da minha própria essência o tempo todo. Se dependesse de mim, eu só saberia sobre mim mesmo o suficiente pra responder com educação aos guardas que me parassem. — Você é um grande mentiroso, sr. Escriba, mesmo quando diz a verdade. O que o senhor quer é se livrar, como se alguma coisa prendesse o seu pequeno corpo miserável e agredido. O meu objetivo é que todos, pacientes e a sociedade ao redor, gostem de olhar no espelho e se ver. Sejamos francos. O senhor sabe das acusações que pesavam sobre nós. — E mesmo assim estou aqui. — Porque precisa de comida e não por convicção. Porque se tornou um escriba mercenário fracassado. Porque não lhe deram escolha. — Não gosto de ser chamado de escriba, sr. Médico. Mas tenho senso de realidade. Acho que era isso que me tornava o menos ruim de todos os tipos de escriba. — Não deixa de ter razão. Mas deve imaginar que a mais criticada atitude do IP foi se dedicar ã publicação de livros de autoajuda. E o senhor pouco colaborou nisso. Foi um escriba bastante relapso. — O senhor precisa admitir que os livros são pavorosamente ruins.
— Dão muito trabalho, meu caro. Fazer esses livros como devem ser custa o suor de muita gente honesta. — Duvido não. — O senhor conhece o argumento do Grande Inquisidor, de Dostoiévski? O número de pessoas boas o bastante pra que Deus salve elas é menor até mesmo que o de sacerdotes. Mas a religião, ainda assim, é útil pra consolar os que não serão salvos. E se, mesmo que o nosso instinto científico seja antiteísta, divulgaríamos até a existência de Deus, caso se mostrasse necessário. — Certo. Já vi que não adianta argumentar. Comece logo com isso, doutor. O Instituto é coisa do passado. Essas portas já se fecharam. — Ainda há a memória, sr. Escriba, e o que fazemos com ela. O senhor quer mesmo começar o seu tratamento de imediato? Sábia decisão, mas parece tomada mais por conformismo do que por sabedoria. Sorte sua que tomamos sempre as melhores decisões possíveis pro seu bem estar e pro bem estar da sociedade. Garanto que não vai doer. — Já ouvi isso antes. Nunca é verdade. O sr. dr. Médico preparou um biombo e arranjou pro paciente roupas brancas de tamanho adequado. O paciente em questão ficou um pouco constrangido porque o sr. dr. Médico disse que precisava ver cada paciente trocando de roupa, que eram regras que demoraria muito a explicar. O paciente se convenceu e pensou que isso não era pior do que ser violentado, mas ainda assim se sentiu constrangido, porque os instintos e a razão em geral não falam a mesma coisa, e a razão nem sempre está certa. O paciente então foi conduzido a uma sala toda branca e bem iluminada com uma cadeira no centro. Havia lâmpadas frias não apenas no teto, mas também nas paredes acolchoadas e no chão acolchoado, lâmpadas protegidas por uma camada de acrílico. A iluminação foi caprichosamente planejada pra que absolutamente nenhuma pessoa e nenhum objeto gerasse sombra. Disseram ao paciente que ele se sentasse de costas pra cadeira e que não se virasse até ouvir uma outra voz humana e que, antes de tudo, falasse compulsivamente tudo que lhe viesse ã mente. Mas o paciente não achou isso racional e os instintos não ajudaram: um medo estranho fez com que se calasse como uma pedra e ele olhou pro branco da parece ã sua frente. Esperava dormir e que deixassem ele em paz. O chão era macio. A parede era macia. As roupas eram limpas e em algum momento,
mesmo cansados de desobediência, eles iam ter que trazer alguma comida. Mas o sono não veio e os pensamentos começaram a se pensar sozinhos e se repetiam e se repetiam e se repetiam, até que o paciente não suportou mais e disse tudo que lhe vinha à mente, e o mais estranho de tudo, depois, é que lhe pareceu que tinha apenas interpretado muito mal o texto mal rebuscado de uma peça de teatro do século XVII. — Tenho medo de ser preso. Tenho medo de que apenas eu seja o azarado descoberto pela pequena infração irresistível que todo mundo cometeria no meu lugar e condenado pra que se diga que existe a lei. Tenho medo de que as mulheres interpretem um gesto ou uma palavra como ousadia e me martirizo com as coisas que disse e fiz na véspera. Tenho medo de ser acusado injustamente de assédio sexual ou de fugir do controle e fomentar uma acusação justa. Tenho medo de ser acusado de qualquer coisa que não tenha feito e que batam na minha porta com ordens e mandados absurdos. Tenho medo de intrigas e da inveja dos outros e me confinei num realismo mesquinho que limita o meu desejo ao que estiver ao alcance das mãos sem que seja preciso nem esticar o braço. Tenho medo de que sujeitos armados achem que ri deles e que olhei nos seus olhos como não devia, de não saber com quem estou falando e de não estar no meu devido lugar. Tenho medo de ser abordado por malandros e ladrões ou valentões e não poder fugir. Tenho medo da justiça e da injustiça. Tenho medo da medida e do excesso e da carência. Tenho medo de um dia passar fome e medo de ter coisas que precise proteger dos ladrões. Tenho medo de estar fora de casa e ser agredido ou sofrer acidentes. Tenho medo de que a casa caia sobre mim. Tenho medo de encontrar a casa esvaziada dos móveis, com o piso coberto de garrafas quebradas, fezes e bias apagadas. Tenho medo de que invadam a casa comigo dentro e amarrem minhas mãos nas costas. Tenho medo de ser traído e abandonado? Tenho medo de ter a mulher ofendida e não ter a coragem absurda e louca de vingar a sua e a minha honra ã moda antiga. Tenho medo de criar filhos covardes e de criar filhos valentes. Tenho medo de fazer filhos por acidente. Tenho medo de todas as doenças e não estranho ter pensado nisso logo depois de pensar em como se fazem filhos. Tenho medo do que os parapeitos fazem sentir. Tenho medo de todas as intenções ao meu redor e sacrifico covardemente todo meu desejo mais ousado de antemão. Tenho medo de estar me preservando por nada. Amém? Sem perceber, levado pelas próprias palavras, ele tinha se levantado. — Sente-se. — Era a voz precisa e sem ousadia de um estagiário que
envelheceu estagiando. — Pode até sentar na cadeira, se quiser. A cadeira era branca e bem desenhada. — Tenho medo de estar só e acompanhado. — Sente-se. De pé pode cair. — Posso cair com a cadeira. Já disse que tenho medo de ser currado? — Deite no chão. — Sim, eu deito. Mas o teto pode cair sobre mim. — Vai não. — Prove que não. — Prove que as coisas caem. — Estou deitado, preso ao chão como um prego num ímã. — Porque escolheu assim. — O chão não é opcional. — Não? Veja. Vou flutuar. Sobe na cadeira. Pula. Cai. — Viu? — Flutuou não. — Não? — Não. — Isso é impossível. Cinqüenta anos de estudos fenomenológicos por nada! Puxa um revólver e dispara contra a própria nuca, o que exige um pouco de destreza, realmente. — Preciso proteger meus orifícios, preciso proteger meus orifícios,
preciso proteger meus orifícios... — diz o paciente. Era uma sala forrada de esponja branca. A porta era uma ranhura sutil que só podia ser aberta por alguém que estivesse do lado de fora. Entra um terceiro homem de branco que também envelheceu estagiando. Agora são dois vivos e um morto dentro do ovo acolchoado, mas o vivo não lhe interessa. — Resolveu aceitar o meu desafio como se eu tivesse lhe prometido alguma coisa, meu amor? Eu não sou o dono desse sangue que se espalha sobre o chão! O estudo exato das leis físicas pode determinar que toda a história, registrada ou não, da humanidade e todos os acontecimentos anteriores traçam o modo como esse sangue vai se espalhar nesse chão, mesmo dentro de uma sala fechada. — Já sonhou alguma vez que o chão desabava sob os seus pés? — disse o segundo estagiário para o outro homem vivo. A roupa dos estagiários era a mesma que a dos pacientes, mas cada estagiário tinha um crachá e em cada crachá havia a palavra ESTAGIÁRIO, e mais nada. O paciente se levanta apavorado. Se afasta do ponto em que se encontrava. — Pois debaixo desse chão há um outro chão que você deve encontrar — disse ainda o segundo estagiário. — A sala... não é mais branca, não! Não. Acabou. Então, se é assim, substitua a expressão ter medo pelo verbo desejar conjugado num presente contínuo que a todo instante se arremessa pra frente. — Ele abriu a porta, saiu e deixou a porta aberta. O paciente, apavorado, saiu. No corredor simulou toda a calma de um ocidental bem medicado e procurou um elevador. Desceu. Evitou todo tipo de olhar, mas ninguém olhava pra ele. Conseguiu chegar ao lado de fora. Como se caísse. E só então reconheceu o lugar. A rua paralela ã rua onde tudo começou. As caixas de concreto de arcondicionado, minadas de limo, pingavam. Um rádio distante tocava — Eu te amo, meu Brasil, eu te amo — e ele era seu corpo transformado em força e combustível e motor cego. Na rua, do lado de fora da tentativa ilegal de resgate da última instituição falida, vê o vento levar receitas e bulas e os cestos de lixo abarrotados de cartelas e caixas de remédio vazias. Ouvindo as risadas, os choros e os passos em tropel, ouviu que um povo marchava e percebeu que estavam todos loucos. Ninguém segura a juventude do Brasil. E aí seu coração
disparou porque uma mão nodosa agarrou o seu braço. "Estuprado duas vezes no mesmo dia", pensou o paciente. — Eu gostaria muito que o senhor me desculpasse — disse o estranho homem. José Aírton Botão evitava virar o olhar e ver o homem, e perceber que ele não tinha rosto, e a voz parecia dizer alguma coisa assim: a voz parecia coada por pequenas folhas de vegetação rasteira. — Nunca mais vamos colocar os próprios pacientes como estagiários. Não se preocupe. Não vamos chamar o senhor pra testemunhar sobre nada. Sabemos que o senhor já tem problemas o bastante, sr. Escriba. — Eu já fiz essa pergunta hoje a alguém e ninguém me respondeu — ele disse. — Mas pelo menos você fala. Quem é você? — Olhe pra mim e talvez até se lembre. José Aírton Botão (a mão áspera e firme ainda agarrada ao seu braço, mas uma mão de consistência diferente da que teria um manequim de plástico que agredisse as pessoas sexualmente) se virou e reconheceu aquele rosto de madeira. Um homem igual, mal cobrindo de trapos o que se pensou que fossem as chagas de uma doença genética ou venérea, estava pedindo esmolas na outra rua, segundo os cálculos de José Aírton, horas antes. Só bem depois lhe informariam que ele tinha passado dois dias inteiros diante de uma parede branca, pensando as mesmas coisas, até abrir a boca e dizer a primeira palavra. O homem, com a pele de madeira, se vestia como o dr. Pagnii e como o dr. Maír (não importa aonde fossem, eles sempre estavam vestidos de médico, e segundo relatos incertos de antigas amantes até na intimidade o fetiche de ambos era serem médicos), mas no seu crachá só constava a inscrição MÉDICO RESIDENTE. — Vi uma pessoa muito semelhante ao senhor — José Aírton disse. — Mas não se vestia tão bem nem parecia tão bem tratado. A pele daquele homem era lustrada com óleo de peroba. "O autêntico cara de pau", pensou José Aírton. Afastado de informações e notícias, egoísta e urgente, ele não soube que A Peste tinha desenvolvido uma curiosa variante vegetal. Então, além de seres humanos que repentinamente adquiriam a característica de animais específicos, teria que lidar também com pessoas que se tornavam vegetais. No seu diário, inclusive, há uma antiga observação sobre o tema, que, como muitas, começa com uma frase completamente disparatada
que talvez ele planejasse utilizar em outro contexto ou o começo do raciocínio se perdeu em alguma página, permaneceu ilegível, ou se perdeu na própria memória antes que se tentasse preservar pela escrita: "Porque eu precisava sofrer. Parece a justificativa de todos os meus atos. Segundo os artigos científicos do dr. Porras, as coisas estranhas que têm acontecido são apenas os sintomas iniciais de uma nova normalidade. E o que em breve chamarão de A Peste será, mais tarde, a saúde. Mas eu não gosto da ideia de caranguejos me sorrindo. Sua saliva não para de borbulhar na boca e, quando falam, parece que estão gargarejando. Foi um tipo desses que, acho que sorrindo, me disse que eu era uma lenda. Mas eu sei que, mesmo muito orgulhoso de me conhecer e me apresentar aos seus, ele não gostaria de estar na minha pele. Prefere sua carapaça". Pensei durante muito tempo a razão de ele não desenvolver a mesma desconfiança quanto aos vegetais, e quando analisei os fatos com mais calma encontrei uma resposta. O homem lhe explicou, antes de tudo, a sua aparição anterior: — Era uma pesquisa de campo, sr. Escriba — ele disse. — Sociologia e lingüística. — Muito interessante. Mas, por que não larga o meu braço? Ele enfim largou. — Desculpe. É que o senhor tem uma terrível fama de sempre querer fugir. — O impulso é até saudável. — Seus problemas vão acabar em breve. Quero dizer, os suspeitos foram pegos e agora basta que o senhor faça o reconhecimento. Depois vão voltar os seus problemas de sempre e o senhor vai ter que voltar a tentar vender livros inutilmente pra sobreviver. José Aírton se lembrou do Anselmo Caetano. "Pariu", ele pensou: achou que tinha perdido o livro definitivamente e lembrou do seu valor sentimental e do seu improvável valor material. Mas ele apenas tinha esquecido o livro na delegacia. Em breve iria reaver o exemplar. Uma viatura parou ali perto e o homem conduziu José Aírton por bem. José Aírton nunca tinha estado numa sala de reconhecimento. Achou que a sala com o vidro fosco era coisa apenas de filmes ou da realidade de países desenvolvidos, mas havia uma na delegacia. O detetive esperava, nervoso. Na
sala, ficaram o detetive, o médico de madeira e a vítima. — Espero que a sua memória seja boa, sr. Escriba — disse o detetive, que tinha assimilado a linguagem dos médicos. — Porque vamos ter muito tiabalho. — Eu não tenho como esquecer algo como... José Aírton viu os suspeitos através do vidro. Todos eram iguais entre si e todos eram iguais ao estuprador. Os suspeitos tiaziam placas numeradas inúteis e pareciam ainda mais escuros sob uma luz violenta. — Senhor detetive — ele disse. — Eu sei o que você vai dizer. — O que aconteceu com o mundo enquanto estive fora? O médico de madeira pediu pra conversar com a vítima. O detetive se retirou. A vítima, espantada, não deixava de olhar pros suspeitos, mas reparou em algumas diferenças sutis entie eles: estavam todos nus, ou pelo menos era o que dizia sua silhueta negra, e em dois dos seis ele percebeu características femininas que descartavam completamente esses suspeitos. Um também era um pouco baixo e gordo. Havia diferenças sutis entre os tiés restantes, mas não o bastante pra distinguir eles entie si nem pra distinguir cada um deles do verdadeiro culpado. — Muita coisa aconteceu, sr. Escriba — disse o médico de madeira. — E é por isso que precisamos urgentemente da sua ajuda. O senhor nunca pôde ser tão útil pra sociedade quanto pode ser agora. — Eu nunca prestei pra nada. Quer tirar de mim o único orgulho que me resta? — Você pode punir o seu agressor, de qualquer modo. Fazer justiça de acordo com a lei. — Mas, doutor, tem dois problemas. Eu não posso saber quem ele é. Sou todos muito iguais. Tem uns tiês que eu tenho certeza que não podem ser. Mas o resto eu não faço a menor ideia. E tem outia. Eu não vou ser politicamente correto agora, doutor. Eu quero que ele sofra e quero que ele morra. Mas eu
preciso antes poder dizer quem é. — Lamento, sr. Escriba. O seu senso colonial de justiça não vai poder ser executado. — Porque naturalmente nenhum de vocês vai fazer isso. — Não sei se faríamos, caso pudéssemos. Mas o fato é que absolutamente não podemos. É fisicamente impossível matar o que não está vivo. — O que não está vivo? Ele parecia bem vivo enquanto me estuprava. — O senhor não percebeu, sr. Escriba. O senhor foi estuprado por uma sombra. A vítima ficou em silêncio um pouco. Afundou na cadeira. Tirou os olhos inquisidores dos olhos científicos do doutor (ele tinha olhos verdes e serenos) e olhou pras próprias mãos, relaxadas e impotentes, postas sobre os joelhos. Seus próprios dedos lhe pareceram vermes mortos e retorcidos. Inúteis. Depois ele olhou pros suspeitos, que esperavam, de pé, com as placas numeradas inúteis sobre aquela nudez negativa. — E até onde eu saiba não é possível matar uma sombra — disse o doutor. — Nem distinguir perfeitamente uma sombra da outra. — De quem são essas sombras então? Como elas conseguiram agir sozinhas? Toda sombra pertence a alguém. — Partindo desse raciocínio, então, cada um de nós pertence a uma sombra. — Sem filosofias, doutor. Eu mesmo começo a acreditar que realmente temos um problema. Aliás, eu tenho vários. Fui estuprado, segundo o senhor, por uma sombra. Depois que sair daqui não vou ter o que comer e não sei como vou pagar o meu aluguel. O senhor vem me dizer agora que cada um de nós pertence a uma sombra? Me pergunte a quanto tempo eu não sei disso. — É mais fácil prender todas as sombras que se desgarraram dos seus donos do que comparar cada dono com sua sombra. Conseguimos capturar, por acaso, um dos donos. Um paciente em estado terminal por causa do consumo dessas porcarias ilegais que têm vendido por aí.
— Os refugos do Mautus Fidélis. — Não insista nisso. Vamos nos concentrar no que pode ser resolvido. Mas tudo indica, realmente, que as sombras se desgarram em conseqüência do uso abusivo dessas substâncias. O paciente em questão foi comparado a uma sombra que conseguimos capturar e que mantemos em cativeiro. A princípio, todas as características são iguais e o paciente em questão também não tinha uma sombra própria. Tínhamos um homem sem sombra e uma sombra desgarrada, e além das características físicas gerais ambos apresentavam um comportamento semelhante. O problema é que o paciente, que é um corpo humano com limitações físicas, morreu. A sombra, apesar disso, continuou. E, apesar dos comportamentos semelhantes, depois de desgarrada a sombra, ela não dá satisfações aos seus antigos donos, embora possam acabar dando satisfação a alguém. — Então o problema não pode ser resolvido. — Não de uma maneira racional. Estamos diante de um fato que não conseguimos entender. Temos que adotar uma solução a altura. Você pode não acreditar, mas acho que conseguimos, enfim, capturar todas as sombras possíveis. E isso devido a uma queixa que o senhor fez. O problema é que são quinhentas e vinte e sete sombras. — Querem que eu averígüe uma por uma até que se encontre um culpado? — Não. Quero que o senhor declare que absolutamente todas elas agrediram o senhor sexualmente. — O senhor quer que eu afirme que fui estuprado por quinhentas e vinte e sete sombras? — Colocamos a soma em setecentas e noventa e duas pro caso de ainda haver sombras por capturar. — Todas as sombras têm esse comportamento? — Eu já lhe disse. As sombras seguem o comportamento dos seus donos originais, mesmo que se libertem. A sombra que agrediu o senhor não teve nenhum prazer sexual, apenas agiu de acordo com os instintos do seu próprio dono, que já pode estar preso pelo estupro de outras pessoas faz tempo.
Sombras são apenas sombras, não são inocentes nem culpadas, mas devem ser detidas. Além disso, temos a forte suspeita de que o principal fornecedor das substâncias de que lhe falamos, e que se tornaram uma epidemia no centro, conseguiu usar centenas dessas sombras, talvez todas, como informantes e agentes. — Quer dizer que o que vocês querem pegar não é o meu agressor, mas os cúmplices do Mautus Fidélis. — Não podemos dizer que se tiate do sr. Mautus Fidélis. — Conheci o Mautus Fidélis na época em que ele estava criando a primeira versão da substância. — Mas não pode provar. A sua afirmação ia cair no vazio e você ainda pode ser processado. O detetive bateu na porta. Abriu. Ele parecia suado apesar do arcondicionado. Estava cansado e abatido. Provavelmente era ele que tinha se encarregado de deter cada uma daquelas sombras e era ele o encarregado de manter sob vigilância todas as quinhentas e vinte e sete apreendidas. — Sr. Escriba, sr. Doutor. Preciso dos senhores na sala de interrogatórios. — Os dois se levantaram e seguiram em silêncio. Sem que José Aírton Botão percebesse um homem se aproximou dele com o livro de Anselmo Caetano. José Aírton parou tentando entender, mas o livro, de centenas de páginas, estava com um marcador bem no centro. José Aírton, que sempre decorava as páginas em que abandonava as leituras, nunca usava marcadores. O homem mostrou o livro numa das mãos e, na outia, tinha uma nota de cinqüenta. As olheiras do escrivão pareciam uma parte morta no seu rosto, e José Aírton quase se perguntou a que se devia tanto cansaço, mas o cansaço dele era ainda bem maior, tão grande que o próprio corpo ainda nem tinha sentido. Pegou a nota e prosseguiu. O doutor de madeira e o detetive esperavam numa porta. Já nem tinham mais força pra exigir urgências, embora todos quisessem que aquilo acabasse o mais rápido possível. Eles entiaram. Diante da mesa, sob uma luz fortíssima, estava uma sombra sentada com os pulsos algemados. A sombra não virou a sua ausência de rosto pra nenhum dos presentes, mas falou com uma voz de sussurro, a sombra de uma voz. — Eu confesso — disse a sombra. Mas bem antes de ouvir a confissão o próprio José Aírton Botão, o sr. Escriba, a vítima, foi fulminado pela certeza: o culpado tinha sido encontiado.
— Sim, foi ele — disse José Aírton. A sombra ouviu e mirou pra ele, lentamente, o seu rosto. A sombra, dentro de si mesma, não revelava nenhuma expressão e nenhuma intenção que se pudesse identificar, nem culpa, nem indiferença, nem um injusto sentimento de vingança. Não era possível ver absolutamente nada. Era realmente uma sombra, uma sombra contra a qual não parecia ser possível fazer absolutamente nada, além de impedir que fosse a algum outro lugar. O doutor de madeira olhou pro detetive. — Obrigado, seu idiota — ele disse —, agora está tudo resolvido e temos um problema enorme, e ninguém pode nos ajudar. Se eu soubesse que o senhor fosse tão inteligente e que ia decidir pensar por si mesmo, eu nem sequer tinha me metido. As outras sombras vão ter que ser liberadas. Depois disso eu lavo as minhas mãos. O problema será todo seu. — Doutor, não venha me ensinar a fazer o meu trabalho, se não quiser virar um palito de fósforo queimado. — Ensinar? Nada disso. Parece que o senhor já sabe tudo. — Não posso passar por cima da obrigação. O culpado confessou. A vítima reconheceu o culpado. O caso está resolvido. Se o senhor não quer me ajudar, é uma pena. O problema volta a ser só meu. Vou ter que vigiar quinhentas e vinte e sete sombras. — Quer dizer — disse José Aírton de repente — que ele não é uma das quinhentas e vinte e sete sombras capturadas? Quer dizer que depois de tudo isso vocês mesmos não encontraram o culpado. O detetive respirou fundo. — É isso mesmo, sr. Escriba. O culpado veio se confessar por livre e espontânea vontade minutos atrás, enquanto o senhor conversava com o doutor, embora eu desconfie que o homem que perseguimos, a pessoa de carne e osso que queremos realmente pegar, tenha articulado tudo isso pra que todos os seus cúmplices sejam soltos. — O culpado confessou — disse o doutor de madeira —, mas o culpado é uma sombra. Podemos alegar que se trata de uma sombra perigosa e que por isso deve ser detida, como uma fera que fosse igualmente perigosa. Mas a sombra, apesar da forma humana, não tem um estatuto humano. Acho que não
preciso lhe lembrar disso, detetive. O caso vai abrir um precedente, leis especiais vão ser criadas pra dar conta da situação. Até lá pode ser que o senhor seja obrigado a liberar até mesmo aquele que se declarou culpado. Porque ainda não há leis que tratem sobre o assunto. — O que o senhor quer que eu faça, doutor — disse o detetive. — Eu não posso passar por cima da lei. O doutor de madeira se direcionou como uma flecha a José Aírton. José Aírton não parava de olhar pra sombra imóvel. Insistia. Procurava alguma coisa que não era possível encontiar. — Escriba — ele disse. — Só o seu testemunho pode resolver a situação. Se as sombras forem todas consideras um perigo eminente, vamos ter o poder de não deixar que voltem às ruas. E podemos conseguir até um modo de eliminar todas elas. A sombra levantou a cabeça e foi possível ouvir a sombra de uma respiração nervosa. — Não me parece justo — disse José Aírton. — Não são pessoas — disse o detetive. — São sombras. — Me deixa sozinho com a sombra — disse José Aírton. — Me dá um revólver e me tranca aqui. Pode me processar depois porque atirei dentro da delegacia. Mas por nada mais. Não é uma pessoa, você diz. Apenas uma sombra. O detetive olhou a vítima bem de perto e não pôde evitar sorrir. — Escriba, você não acha que a gente já tentou, inclusive desde que ele chegou aqui, pouco tempo atrás, e se declarou culpado? A materialidade deles é estianha. Eles podem ser detidos, no máximo. — O que o senhor quer dizer? O detetive sacou o revólver e disparou contia a sombra todo o tambor. A sombra, como todos os demais ali ã exceção do próprio atirador, se assustou com o primeiro estampido, mas apenas por causa do barulho. As balas travessaram a sombra sem que a sombra parecesse se doer. — Repare na parede ao fundo — disse o detetive, e José Aírton reparou no estrago que centenas de descargas de revólver tinham provocado. —
Estamos tentando matar sombras faz horas. Essa e as outras. — Espera — disse o doutor de madeira. — Esqueça o seu senso de justiça e de vingança. Você disse que tem problemas a resolver. Serão resolvidos, mediocremente, mas serão. Eu lhe ofereço uma refeição diária pro resto da sua vida e o pagamento dos seus aluguéis. Não posso lhe prometer mais nada. José Aírton olhava pra sombra envolta na fumaça dos tiros que se adensava, como a própria sombra, sob a luz forte. Ainda não conseguia ver nada. — O que vão fazer com as sombras, afinal? — ele perguntou. — Vão permanecer detidas em algum lugar onde nunca mais haja luz — disse o doutor de madeira. — Pois apesar de desgarradas elas não perderam sua característica principal. Elas somem no escuro completo e reaparecem com a menor quantidade de luz. Não se preocupe. Eu vou avisar quando acontecer. Você vai ser informado de que tudo acabou. José Aírton Botão fez a acusação formal de ter sido sexualmente agredido por centenas de sombras e teve que se submeter ao árduo trabalho de reconhecer, sem realmente distinguir, cada uma delas nas filas que se apresentavam na sala de reconhecimento. Foi liberado e foi pra casa a pé, ainda com fome, mas a partir do dia seguinte as promessas que lhe foram feitas foram cumpridas: seus alugueis atrasados foram pagos e um entregador de marmita, de bicicleta, veio entregar o almoço e disse que já estava pago, e isso se repetiu no dia seguinte. E antes que o aluguel seguinte vencesse já se encontrava magicamente pago. Mas ele não recebia nenhuma mensagem: não tinha mais telefone e não dispunha de internet. Esperava que algum mensageiro viesse bater na sua porta do mesmo jeito que o entregador de marmita na hora do almoço sempre com o mesmo prato e uma garrafa de água mineral sem gás. Mas os dias passaram e nada. O jeito foi voltar a ouvir rádio e assistir a televisão no horário dos noticiários, e exatamente um mês depois ele teve a notícia ao meio-dia: devido a um escândalo sexual denunciado por uma vítima que naturalmente preferia ficar em sigilo, quinhentas e vinte e sete sombras desgarradas seriam trancadas num quarto iluminado, enquanto mais duas centenas continuariam a ser perseguidas. O quarto seria vedado, todas as lâmpadas seriam apagadas e o quarto seria completamente preenchido de cimento. A execução da obra monumental e absurda estava marcada pra começar às cinco da tarde daquele mesmo dia. Mas era necessário que se utilizasse um espaço bem maior do que um quarto, como pensado
originalmente, e o lugar escolhido foram as dependências abandonadas da Câmara dos Crânios, no começo da Bezerra, dormitório dos funcionários efetivos do instinto Instituto Pangloss do Brasil. As portas e janelas já tinham sido tampadas com tijolos pra evitar que tarados brutais estuprassem crianças e adolescentes, como vinha acontecendo, e que os viciados miseráveis fossem se drogar ali. O trabalho
tinha que ser constantemente
refeito,
mas
o
acimentamento total do interior acabava resolvendo dois problemas de um golpe só. Às cinco horas da tarde, José Aírton Botão estava entre os curiosos que esperavam assistir aquela que parecia a mais desnecessária das obras urgentes, o extermínio de mais de cinco centenas de sombras desgarradas. Ele sabia quem também estaria ali e sabia o que perguntar. O doutor de madeira, a paisano, porque não era tão rígido no vestir quanto o dr. Maír e o dr. Pagnii, não se aproximou dele, mas não fugiu quando ele se aproximou. O doutor de madeira, cujo nome civil verdadeiro José Aírton nunca logrou saber, também esperava aquele encontro e sabia a pergunta que ia ouvir. — Olá, doutor — disse José Aírton. — O que foi que deu errado? — Nada deu errado, Escriba. Tudo está correndo muito bem. — Não exatamente tudo. Quinhentas e vinte e sete sombras foram apreendidas. E uma se apresentou por conta própria e se declarou culpada. E a imprensa falou em apenas quinhentas e vinte e sete sombras, apenas o número original. — Bem, Escriba. Tivemos um problema. E uma das sombras fugiu. Lamento informar. É realmente a sombra que você imagina. — A sombra que me estuprou. — Continuamos em busca. O problema é que acidentalmente alguém apagou e acendeu a luz. A sombra desapareceu e quando deram fé reapareceu já sem algemas e resolveu fugir. O que é muito estranho se você considerar que foi a própria sombra que se entregou. Mas se a natureza humana já é difícil de explicar avalie a das sombras. — A sombra pode fazer outras vítimas. — Se mais vítimas aparecerem, concretizamos as sombras como perigo
geral e irrestrito. E, bem, eu sei que é pouco. Mas graças a isso o senhor terá uma refeição por dia e nunca mais vai precisar se preocupar com moradia. — Eu não preciso lhe dizer que é bastante pouco. — Eu sinto muito. É realmente tudo que podemos fazer pelo senhor, mas somos realmente muito gratos. — Quer que eu acredite que o senhor sente muito e que se sente grato? — Não espero muita coisa de um paciente desobediente, sr. Escriba. O senhor é perspicaz demais, mas não percebeu que na sua posição isso adianta muito pouco. Da minha parte posso dizer que estou mais tranqüilo. O meu trabalho foi feito. Preciso ir agora, senhor. Imagino que nunca mais queira me ver. Embora eu não tenha nada contra o senhor, espero realmente que não seja necessário um encontro futuro. Mas os seus cabelos estão mais bonitos agora. José Aírton, sobretudo depois de envelhecido, tinha por si mesmo uma indiferença quase monacal. Já tinha se acostumado com a calvície torta e não se preocupava mais com os cabelos, mas depois do que o doutor de madeira lhe fez aquele elogio inusitado ele passou a mão pelo que um dia realmente tinha sido um couro cabeludo e sentiu estranhos pelos grossos que pareciam explodir na ponta em formas mais complexas e de calibre maior ainda. Arrancou um e se assustou com a dor imensa. Quando percebeu tinha arrancado da cabeça uma flor tímida e sem graça de plantas rasteiras. Fechou a flor no punho e continuou o seu caminho de volta: "eu também estou com a peste", pensou. Grandes caminhões traziam grandes quantidades de cimento que iriam ser depositados no prédio vazio. Era um programa besta, pra meninos que se impressionam com o mundo dos adultos. Continuou o seu caminho, rapidamente conformado com o fato de que iria se tornar um homem com características de vegetal, como o próprio doutor de madeira. "Melhor do que ser uma sombra sem homem ou um homem sem sombra", ele pensou. Mas ao atravessar uma rua e evitar a luz dolorosa de um sol gigante que se revelava de repente olhando pro outro lado ele não pôde deixar de tomar um grande susto: sua própria sombra alongada se projetava na pista numa esquina da Bezerra de Menezes com uma rua sem importância.
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A CATÁSTROFE DA PÓS-MODERNIDADE MANUEL BEZERRA NETO
ertamente, não poderia haver melhor argumentação para a ordem global do capitalismo senão, a partir de experiências abstratas e superficiais de sua dominação, criar novos conceitos e categorias que sejam capazes de escamotear de forma tautológica as conseqüências inevitáveis do desenvolvimento histórico fundado exclusivamente na produção de valores de troca. Quer dizer, a sociedade produtora de mercadorias, enfim, encontrou um excelente álibi para justificar seus fracassos e contradições estruturais, contrapondo ao conceito de modernidade - concepção, aliás, formulada por ela própria - no sentido de demonstrar a necessidade de deslocamento teórico provocado com a expansão do conhecimento científico de uma ordem natural divinizada para o domínio irrestrito das ações humanas conscientes guiadas, a partir de então, somente pela vontade racional do homem. Uma ideia que busca
C
desconstruir toda uma visão epistemológica sobre unidade e universalidade, pondo em seu lugar, por sua vez, termos tais como indeterminação, fragmentação, particularismo e individualismo exacerbado. Esta é a ideia precisa de pós-moderno, sem dúvida: um esforço tautológico de promover apenas um desvio teórico a respeito de tudo o que a própria sociedade capitalista prometera em termos de segurança, certeza epistemológica, unidade da realidade e bem-estar social para os indivíduos, mas que, ao perceber seu fracasso histórico, acabaria debitando a culpa tão somente a alguns princípios fundamentais, tão caros a ela própria, como liberdade, razão e universalidade, uma vez que, para consolidar sua hegemonia global, não poderia prescindir da necessidade de estender seus tentáculos a todos os domínios da existência, sob pena de admitir um inevitável fracasso. Sob a ótica de uma aparente concepção, contraposta de forma radical a tudo o que até ontem era considerado moderno e progressista, é que devemos avaliar, não do ponto de vista ético ou moral, mas filosófica e politicamente, a forma como a sociedade capitalista vem se organizando tendo em vista não perder seu controle sobre todos os processos que dão sustentação objetiva ã vida humana em sociedade. Para tanto, não basta admitir que o capitalismo modificou suas formas de organização da produção econômica. Temos, sobretudo, que considerar as conseqüências reais que essas modificações vêm provocando sobre as perspectivas - sombrias e incertas - da existência humana, perante um futuro cujas características inequívocas são as incertezas perceptíveis, a ausência de segurança - para os que vivem do trabalho - e a negação de uma lógica fundada na razão humana, que até ontem eram defendidas pelo próprio sistema. Sem dúvida, a nova lógica prevalecente é tão somente a do efêmero e do fragmentário, uma visão esquizofrênica em que só deve prevalecer a vontade individualista de um sujeito descentrado que não tem mais referenciais epistêmicos seguros e consistentes. Esse sujeito, agora, deve contentar-se apenas em estar apto a se submeter àquilo que é mais empírico e imediato; àquilo que tornou sua existência um puro espetáculo midiático.
Sociedade espetacular e pós-modernidade. Devemos a Guy Debord o conceito de "sociedade do espetáculo", não por acaso, porque fazia referência à forma particular como passou a se organizar o modo de produção capitalista após as graves crises econômicas desencadeadas pela sociedade produtora de valores de troca, desde início do século XX, e até o presente, ainda não superadas.
Se na época do liberalismo clássico de Smith e Stuart Mill o conceito de mercado parecia ser a receita virtuosa para os problemas econômicos gerados pelo capital, hoje, porém, mais do que nunca, tornou-se o cânone dogmático capaz, somente ele, "capaz de manter acesas as esperanças" daqueles que nunca, em sua existência concreta, encontraram nele a resposta palpável para seus problemas de sobrevivência. Por esta razão, conforme a opinião de Jameson, mercado" tornou-se a um só tempo uma ideologia e um conjunto de problemas práticos institucionais" , e aqui nos lembramos do Marx afirmou nos "Grundrisse", desfazendo as esperanças dos acólitos de Proudhon, que procuravam desvencilhar-se dos problemas gerados pelo dinheiro simplesmente o abolindo. De forma similar acontece com a ideologia do mercado, cuja retórica tem sido o aspecto central e fundamental na luta ideológica pela deslegitimação dos discursos que não reconhecem sua importância como fator de solução dos problemas engendrados pelo próprio sistema de relações de troca. O que se percebe, afinal, é que todos, de passagem, acabam concordando - através do senso comum - o fato de que "nenhuma sociedade poderia funcionar eficientemente sem a presença do mercado". Ou que, por outro lado, o sistema de relações de troca é um "inegável" fator de progresso para a sociedade, sem deixar de advertir, contudo, que essa é a proposição ideológica crucial de nossa época. Na linha argumentativa da ideologia do mercado, o conceito de pósmodernidade tornou-se o elemento primordial para lhe oferecer status de legitimidade e fundamentação teórica, dado que ela também é uma construção teórica necessária para preencher o espaço deixado pelo conceito de modernidade, mas que, na verdade, não é só uma dominante cultural da ordem presente comandada pelo capital; a ideia de pós-moderno é tão somente o reflexo de mais uma das tantas modificações sistêmicas do próprio desenvolvimento do capitalismo. Sua proposta se volta mais para o fato de que qualquer investigação sobre o estado atual da realidade social pode apenas servir como sintoma inequívoco da lógica dominante imposta pelo capital. Vêse em seu delírio de apelação para qualquer elemento - geralmente virtual - da época presente uma ânsia de querer provar que ela é um tempo singular radicalmente distinto de todas as experiências anteriores do gênero humano. Mas, realmente, o que percebemos é apenas um impulso patológico distintivo, como se nossa memória histórica estivesse exaurido, numa mera contemplação romântica e hipnótica perante um presente esfacelado e esquizofrênico, composto somente por ambigüidades, indeterminação e imprevisibilidade. Numa época como essa, falar-se de consciência ou de organização sistêmica denota apenas que esses conceitos tornaram-se anacrônicos e perderam sua
força epistemológica e, assim, seria mais aconselhável abordar o mundo apenas enquanto uma construção do discurso e não da práxis histórica da humanidade. Devemos reconhecer, por conseguinte, que a única avaliação coerente e mais consistente do pós-modernismo nada mais é que um substituto ideológico das práticas clássicas das políticas radicais que orientaram as lutas entre as classes sociais, o Estado e as práticas revolucionárias que não tiveram como não dar uma nova configuração às relações sociais e políticas entre povos e nações na época moderna, ainda que, para a cultura pós-moderna dominante fosse preciso impor a qualquer custo um novo tipo de ideologia, libertária e niilista, que terminaria estigmatizando todas as experiências humanas calcadas numa racionalidade secular, mas que agora, se esvaziaram e perderam sentido ontológico, restando só o aparente e o efêmero de uma vida espetacular que se inebria apenas com seus próprios feitos fugazes, acreditando que isto representa efetivamente uma vida essencial.
Brejo Santo, agosto de 2015.
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0 ENSINO DA FILOSOFIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA BRASILEIRA; ENTRE 0 SENSO CRÍTICO E A FORMAÇAO CIDAOA GUSTAVO AUGUSTO DA SILVA FERREIRA
ara além das questões basilares relativas ao problema do ensino da
P
filosofia na educação básica brasileira - problemas como: o que se deve ensinar: se é história da filosofia ou outia coisa, a preparação
adequada/inadequada
dos
livros
didáticos,
a
formação
do
discente
universitário para a sala de aula do ensino médio, a desconsideração do professor da educação básica frente ao docente universitário etc. -, talvez a problemática primeira resida na seguinte pergunta: "por que a filosofia no ensino médio?" Bem, como a volta do ensino de filosofia nas escolas e colégios se dá após o regime militar e como esta fora proibida de ser lecionada nas escolas, anteriormente, graças a tal regime, é natural que se responda a
pergunta do por que da filosofia no ensino médio com a resposta: para "formação do senso crítico do aluno". Mas tal resposta, apesar de parecer adequada, no contexto em que a filosofia retorna, justamente por ser "filosofia", remete-nos a alguns problemas relevantes. A começar pelos próprios filósofos, aqueles que tornam possível aquilo que chamamos de filosofia. Lembremos: filosofia é um nome genérico, no sentido estrito, não há filosofia, mas filosofias de filósofos, pensamentos, teorias e/ou teses de pensadores, não é por acaso que cada filósofo tem a sua definição do conceito de filosofia. Logo, nesse sentido, é cabível aqui questionar qual seria a postura dos filósofos frente ao ensino da filosofia no ensino médio, ou, se preferirmos, qual seria a posição histórica da filosofia frente ao ensino da filosofia no ensino médio, na educação básica? Na antiguidade da Grécia clássica, logo após a revolução política promovida por Péricles, a filosofia, mesmo não tendo sido nomeada ainda, quer dizer, mesmo não tendo recebido ainda o nome de filosofia e tendo em seu corpo estrutural o conjunto de quase todos os saberes relevantes da época, passa a fazer parte da formação do homem grego livre, o agora chamado cidadão ou membro da Polis. Agora, com o advento da democracia, a virtude (apsTií) não mais tem a ver com o sangue, com a família, com o viés aristocrático-monárquico. Com o conceito de cidadão, tudo aquilo que é feito ou praticado na Polis grega passa a girar em torno da formação do homem grego (Ilaiôsía), quer dizer, do cidadão livre, membro da Polis. E a filosofia, como saber fundamental da época, não está aquém disso. Os pré-socráticos formaram as primeiras escolas, e todos eles, ou quase todos, influenciaram fortemente os rumos políticos, pedagógicos e ideológicos de suas Polis; os sofistas, primeiros professores
de
filosofia
propriamente
ditos,
educavam
os
cidadãos
economicamente favorecidos para o ofício mais bem quisto daquilo que se chamava de "cidadão", ou seja, discursar na ágora (Ayopá) sobre problemas e questões relativas a Polis. Mas essa prática do ensino/acesso da filosofia como, através do viés da democracia grega, acessível a todos ou quase todos os cidadãos, começa a se transmutar com Platão - afinal, quando um filósofo fala, o que ele faz não é somente falar, não é mesmo?! -, aquele que segundo Heidegger é o pai da filosofia ocidental. Platão, em alguns momentos de seus diálogos, tais como A república e As leis, faz apontamentos desfavoráveis ã democracia e, através da divisão que o mesmo promove no interior de seu pensamento relativo ã
República perfeita, o Estado ideal, sugere-nos que a filosofia e a política não são ofício para todos, sendo a filosofia fundamentalmente para poucos. Aristóteles, apesar de seguir outro caminho, corrobora, de certo modo, tal exclusão ou diminuição da popularidade do ensino, pensamento e prática da "autêntica filosofia" quando o mesmo afirma que o filósofo é aquele que tem afinidade com todos os saberes e, não obstante isso, também ele, Aristóteles, não somente impunha critérios para os que pleiteavam ingressar em seu Liceu, sua escola filosófica, como também separava ou dividia suas turmas e escritos em esotéricos e exotéricos, divisão mais efetuada pelos estudiosos de seu pensamento do que por ele próprio, mas corroborada pelos historiadores clássicos. Ora, quantos podem dizer ter afinidade com todos os saberes como o estagirita, e quantos, dos inúmeros cidadãos gregos iriam ter em algum momento da vida a chance de ingressar em seu Liceu? A situação não é tão diferente no período medieval, onde somente aqueles de destaque sócio-político-econômico, digo, onde somente aqueles advindos das classes abastardam ou privilegiados por algum erro de percurso do impetuoso determinismo medieval poderiam entrar em algum mosteiro, ordem etc. e ter acesso ã complexa serviçal da teologia, ou seja, a filosofia. Erasmo de Roterdã, em seu Elogio da loucura, em plena renascença, ao falar da filosofia e a sabedoria de um modo geral, ironiza o povo afirmando que aquilo que é do pior gosto e da mais baixa inteligibilidade sempre agrada a grande maioria das pessoas. Bem, ele era filósofo e teólogo, e sabia muito bem que num período onde menos de 20% da população européia sabe ler (e isso principalmente a filosofia tendo, na época, como língua oficial o latim), será pouco provável que as massas se agradem da filosofia. Ademais: os gregos contra a doxa (ôó^a), os medievais contra a banalidade vulgar do mouro e os modernos contra a insensatez do homem comum frente ã perspicácia do intelectual, dão testemunho da postura exclusivista e antipopular relativa ã filosofia. Não é Descartes quem, no início da quarta parte do seu Discurso do método, sugere que aqueles que não compreendem a sua teoria sobre a alma, o cogito, são justamente aqueles incapazes de elevar o espírito através da filosofia, algo renegado ã maioria e acessível a poucos? Não é Kant quem, no capítulo III dos seus Manuais dos cursos de lógica, descreve "o filósofo", detentor da filosofia e legislador da razão, aquele capaz de compreender "a filosofia" como um ser de caracteres completamente distintos dos de uma pessoa comum, tal como bastante
erudição e excesso de liberdade? Não é Hegel quem escreve Como o senso comum compreende a filosofia, obra cujo conteúdo sugere que a mesma deveria se chamar Porque o senso comum não compreende a filosofia? Schopenhauer, que se considerava autêntico filósofo, talvez o único de sua época (segundo ele próprio), defendia, em seus Parerga und Paralipomena, mais especificamente nos seus Aforismos para a sabedoria de vida, a misantropia e a solidão, ou seja, ele, "o filósofo", detentor da filosofia, aquele que a compreende, resguardava-se do contato com aquilo que habitualmente chamamos de "o senso comum". Schopenhauer, inclusive, apresenta notável descontentamento com o insucesso de sua filosofia para com o público, ao escrever o prefácio à segunda edição de O mundo como vontade e representação. Nietzsche, em seu belo texto Schopenhauer educador, tal como Schopenhauer em seu texto Sobre a filosofia universitária, ironizam aqueles que têm a filosofia como "ganha pão" e vivem do ensino da mesma. Ora, se Heidegger estiver certo, e for de fato com Platão que se inicia a filosofia ocidental, o ensino acessível e popular da filosofia de fato se tornará algo
problemático,
pois
poucos,
ou
melhor,
raros
são
os
"filósofos
hollywoodeanos" - quer dizer, os mais lidos, estudados e famosos - que apoiariam tal odisséia; quer dizer, os filósofos de renome, os grandes pensadores, aqueles que são ensinados e discutidos nas salas de aula do ensino médio público e privado brasileiro, talvez, se vivos, fossem os primeiros a questionar ou até mesmo reprovar tal medida. Mas o contexto é outio! É bem verdade que a filosofia, desde os seus primórdios até o século XIX, quase sempre habitou nos domínios da aristocracia, para não falarmos das "castas filosóficas". Contudo, a partir da segunda metade do século XIX, quando K. Marx inclui o "mouro" na história da filosofia, inclui o operário na brincadeira do real, cria um pensamento a partir das classes baixas e seus conflitos com as classes elevadas, isso apoiado com a noção de "vanguarda", torna possível o acesso da filosofia ao senso comum. Isso muda tudo, a partir daí a conversa é outia, o século XX, atiavés de suas inúmeras revoluções e com Marx, subvertem a situação. G. E. Moore escreve uma obra chamada Em defesa do senso comum, Foucault e Sartie habitam os mais populares meios e tentam compreender o real a partir das próprias massas, como quando Sartie vai a Cuba ou quando Foucault participa dos ocorridos de maio de 68 e realiza inúmeras de suas principais pesquisas em locais comuns e habituais das camadas baixas e altas,
tais como presídios, manicômios etc. Mas deixemos de lado tal conflito advindo de tal indagação sobre os filósofos e o ensino da filosofia dedicado às massas, ao senso comum, isso foi somente uma reflexão por sobre o espelho da história do problema em cheque. Ademais, nenhuma mente lúcida irá renegar a importância da formação do senso crítico de nossas crianças, jovens e adultos frente ao amplo processo de emburrecimento promovido pelas mídias direcionadas às massas, ao modo de produção capitalista alienante da política do "pão e circo"e, fundamentalmente aqui no Brasil, após a ditadura militar. Mário Sérgio Cortella, autor que tem trabalhado bastante essa temática em seus escritos, numa entrevista concedida à Revista Filosofia Conhecimento Prático, entrevista essa cujo tema fora justamente o ensino da filosofia no ensino médio brasileiro, afirma, defendendo a obrigatoriedade de tal ensino graças à filosofia servir para a formação do senso crítico, que:"A filosofia é um dos jeitos de transbordar, de recusar o limite, de não aceitar o encerramento das idéias em uma única perspectiva, hoje em dia, pelo fato de ser extremamente dinâmica, a tecnologia nos conduz a uma certa cela de velocidades. Assim ao invés de ficarmos presos no tempo estamos libertos no tempo, o que é terrível, porque não permite a reflexão mais demorada, a maturação, a capacidade de gestão das percepções. Por tudo isso, a filosofia, às vezes, é meditação, é forma de consolação; em vários momentos é maneira de indagar" de formar o senso crítico do indivíduo. Que belas palavras, não?! Formação do senso crítico do indivíduo, essa é a resposta à pergunta inicial que fizemos, eis o porquê do ensino da filosofia no ensino médio, correto?Aparentemente não! Qualquer um que lecione a filosofia no ensino médio, por mais que queira fazê-lo rumo à formação
do
senso
crítico
do
aluno,
percebe que
as
diretrizes
são
completamente outras. Mas por quê? Façamos uma observação relativamente genealógica do problema inerente à questão: a lei de número 9.394/96, no artigo 36, que é onde se regulariza a obrigatoriedade do ensino da filosofia e da sociologia na educação básica, logo no seu primeiro parágrafo, ponto 3, diz: "Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao fim do ensino médio o educando demonstre: domínio dos conhecimentos de filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania (grifo meu)." Espera! Como assim? Filosofia para o exercício da cidadania?! O contexto epocal em que a filosofia serviu para formar cidadãos não foi justamente aquele pré-platônico o qual falamos no início? E onde fica a pretensa
formação do senso crítico como prioridade, aquilo do qual falamos há pouco? Por acaso o objetivo dessa lei, dessa resolução, dessa regulamentação seria formar cidadãos no sentido da Grécia democrática de Péricles, a filosofia para o exercício da cidadania (lembremos que foram os cidadãos que mataram Sócrates e perseguiram Aristóteles, foram os cidadãos quem gozaram com a morte de Giordano Bruno na fogueira, foram os cidadãos que condenaram Spinoza )? Evidente que não, nem mesmo conseguiríamos, mesmo que nos esforçássemos bastante, ter a noção do que é nascer na, pela e para a Polis tal como os gregos no intento da idealização do conceito de cidadão o fizeram. Aliás, esta noção, quando trazida para os tempos mais próximos a nós, se assemelha muito mais ao slogan daquilo que proibiu o ensino da filosofia no período do regime militar, recordemos: "Brasil, ame-o ou deixe-o"; e assemelhase também a ideologia do partido nacional socialista alemão, aquele que intentara o extermínio de qualquer condição de possibilidade de haver senso crítico no interior da nação alemã, a começar pela tentativa de silenciamento dos filósofos germânicos, expulsão dos filósofos estrangeiros e prisão e assassinato dos filósofos judeus. Mas então, o que significa aqui formação cidadã ou filosofia para o exercício da cidadania? Não sei por que, mas esta resolução/lei, tal como está descrita, me lembra bastante o que Nietzsche falava sobre os rebanhos e o que alguns membros da "Teoria Crítica" chamavam de "massas", ou, às vezes, citavam como "mass media". Se
observarmos
de
perto
esta
resolução,
parece
que
para
compreendermos a questão do ensino de filosofia no Brasil, primeiro devemos compreender o conceito brasileiro hodierno de cidadão. Mas com relação a isto, algo interessante aconteceu recentemente. Outrora, o conceito contrário a cidadão era o de "bandido". Mas agora é também o de "terrorista": em 28 de outubro de 2015, presenciamos as manifestações contra o governo, contra o Estado,
serem
taxadas
ou
possivelmente
interpretadas
(e,
portanto
criminalizadas) pelo próprio governo, pelo próprio Estado, como criminosas, como atos ou manifestações terroristas. Portanto, todos aqueles envolvidos são não-cidadãos, são terroristas. Mas não foi esse tipo de terrorismo, as manifestações públicas contra a ordem vigente que proporcionou não somente aquilo que nós consideramos como avanços políticos
em nosso país como
também a queda da ditadura? E muitos dos envolvidos nesses atos e manifestações, em inúmeros momentos, não demonstram ter muito mais senso crítico do que os que os censuram? E como fica o senso crítico, a filosofia e a formação cidadã? Que tipo de encontro impossível é este que esta lei quer
realizar? Isso fora o dado histórico da definição de terrorista, que atualmente tem a trajetória bastante parecida com a definição histórica de bárbaro, onde o ápice de tais definições (bárbaro no início da modernidade e terrorista atualmente) parece ser simplesmente: inimigo da ordem vigente, aquele que é contrário aos princípios, preceitos, hábitos e valores que vigoram. Nesse sentido, o participante de certas manifestações, de acordo com as "leis antiterrorismo locais", torna-se similar ao membro do Estado Islâmico, ao visigodo inimigo de Roma e ao escandinavo invasor das ilhas britânicas. Cidadão: o membro da cidade que segue a lei, os costumes e a norma vigente no Estado, na cidade. Os antípodas do cidadão: o terrorista e o bandido. O terrorista?! O bandido?! Seria o cidadão aquele que detém o senso crítico graças a sua formação e os outros meros bárbaros revoltosos e ignorantes, personificações do mal no interior do Estado? É curioso e quase cômico observar que uma única música de certos grupos de rap como Racionais mc's parece ter muito mais senso crítico que metade dos livros didáticos de filosofia adorados para o ensino da mesma na educação básica brasileira que conheço direcionados ã formação cidadã, o exercício da cidadania - e muitas das teses de mestrado e doutorado em filosofia que já li. Mas espera! Racionais mc'sV. Todos eles já estiveram presos, fizeram, inclusive, boa parte de suas músicas de sucesso na cadeia, alguns deles ainda respondem processos, são "marginais", são "bandidos", não são cidadãos, não tiveram a devida "formação para o exercício da cidadania". Mas creio não haver muito problema nisso, até porque aqueles que dizem quem é o cidadão, o que é para o cidadão, o que o cidadão faz, como deve ser a formação do cidadão, que leis o cidadão deve seguir, como este deve se portar, ia dizer, estes, os "homens da política", em sua maioria, responderam
ou respondem processos relativos
a atividades que são
consideradas ilícitas, ilegais, até criminosas. E então?... o cidadão, o bandido, o terrorista: quem detém o senso crítico? Ainda devemos falar em filosofia como formação do senso crítico? Talvez... Bem, não pretendo aqui resolver nenhum problema ou solucionar nenhuma questão, somente apresentei questões que eu enxerguei, mesmo que de maneira míope, mas acho que enxerguei; sem muito mérito, pois estas questões, quando vistas um pouco mais de perto, parecem ser bastante óbvias. Os educadores de filosofia parecem considerar o senso crítico; a lei que torna possível e regulamenta o ensino da filosofia prece ignorar o senso crítico e
supervalorizar a formação do que ela considera ser o cidadão. A esquizofrênica aporia do ensino da filosofia na educação básica parece se mostrar cada vez mais como geradora de problemas, cada vez mais problemática... Mas não são justamente os problemas a mola propulsora da filosofia?...
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NADA TÃO IMPLACÁVEL QUANTO A SOLIDÃO PEDRO HENRIQUE MAGALHÃES QUEIROZ^
-ada tão implacável quanto a solidão. Não aquela que escolhemos, a involuntária. Estar sozinho fora do tempo, fora do mundo. Algo morreu, e ninguém pode reavê-lo. As horas mortas se acumulam como catástrofes; corpos mortos à bala se enfileiram como se fosse uma peste, mas é a polícia.
N
Ninguém veio te ajudar, nem você mesmo quis participar do espetáculo. O corpo corre de um lado a outro tentando ajudar a consciência que não se contêm em si mesma - o inconsciente a persegue como se tivesse sido pago para matá-la. Vejo meus tiranos e não os mato, até que o tirano se espelha em mim, e como ainda tenho um lado bom, tento fugir. Em vão. Estamos no inferno, e isso dura bem mais do que uma temporada. As punições se renovam, a culpa e a dor permanecem, intactas. É preciso muito rigor ao delirar; é preciso muito sangue no olho para rir de si mesmo. Não se levar tão ã sério, ou melhor, se levar ã sério, sem se importar tanto com a seriedade do mundo.
1 Graduado em Filosofia/Licenciatura pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: pedrohenrique_ec@hotm ail.com .
Iluminar-se, profanamente, numa sexta-feira treze, homenageando todas as bruxas queimadas no dia do seu Juízo Final, com o sol brilhando toda a sua intensidade com gotas de chuva que caiam do céu; ao lado de outros que não pretendiam mais do que fazer a sua cabeça, o fogo queimou e fez a mente se perder, conscientemente, na psicogeografia da memória. Fomos ungidos como pagãos, nos filiamos à natureza e ao agora - um pouco mais perto do coração selvagem. Iluminar-se, profanamente, e ser tomado pela beleza de cada corpo feminino, ou masculino, ou qualquer corpo que encontre a sua verdade; querer devorar, lentamente, as dobras de um prazer assassino, que como Jack estripa as sensações e nunca será pego, porque, diferente do machista e moralista, veio esquartejar Baco na festa, na orgia universal dos sentidos. Usaria a língua, para sentir teu cheiro; e o nariz, para te devorar; cada dedo percorreria o infinito numa parte, e cada parte me daria o conjunto, um mundo em cada dobra áspera ou sutil. É realmente preciso muita "técnica" para falar e foder. Ainda não aprendi a fazê-lo, ainda não fui iluminado. E esta não é a primeira vez que estou aqui, e estas linhas se perderão. Iluminar-se, profanamente, como todo proletário que encontra no caminho de casa para o trabalho, dentro de um ônibus, o lugar da utopia, do sonho. O cansaço, a embriaguez e a multidão unem-se como os signos bíblicos e comungam do sentido. Subitamente compreendemos tudo, sem sabermos de nada.
A teoria crítica não passa de um diagnóstico da dominação social. Comporta-se como um doutor que pretende, com o diagnóstico, possibilitar um remédio que, no final das contas, não passa de outro produto da indústria capitalista.
A cura do mal social, do seu tecido estriado, de suas veias entupidas, com parada cardíaca, mania de depressão e euforia, só pode ser encontrada no próprio gastar desse sintoma, dizem alguns. Não sei, realmente não sei. Estourar o dique para que a inundação renove o mundo, atear fogo apenas para fazê-lo brilhar; não sei, realmente não sei. Se quem melhor faz máquina de guerra, se quem melhor faz terrorismo é o próprio Estado, e nós nem sequer conseguimos mudar os termos com que nos chamamos - nos chamamos com os termos que a ordem criou para si mesma, para o seu próprio mundo infértil e intoxicado -, então fica difícil ir muito longe. E, no entanto, a solução é tão simples, tão perto das mãos e ao mesmo tempo tão distante.
Palavras encontram no abismo do esquecimento a sua encruzilhada. Serão todas fuziladas, de costas e em fila, no inverno abrupto do terror. Talvez alguma sobreviva e escreva a sua lembrança da casa dos mortos. Talvez não.
Palavras amotinadas entram em rebelião, querendo sair.
Deixam de termer a morte, que é o silêncio, e ateiam fogo nos colchões do sono, e dançam, barbaramente, em volta da fogueira dos sonhos.
A quem a ressonância do estrondo talvez acorde, talvez reste uma vaga lembrança do desastre que as fizeram desafiar o gás, o fogo, a bala e o medo, que esteriliza os abraços e nos ajuda a matar.
Derrotadas, nuas e enfileiradas, nos deixam de herança a necessidade do caos, aquele que, como disse um outro, se alastra alegremente sem se filiar a catástrofe nenhuma.
Sim, ateamos fogo neste mundo velho. A raiva sabe bem espraiar a pólvora para depois incendiá-la. A destruição é a melhor deusa que há na natureza. Sabe como livrar-se das plantações transgênicas, das usinas nucleares, de todos os parasitas que a usurpam.
O racismo ambiental é cria nossa, não dela. É um modo que o poder sempre encontra de se salvaguardar. Mas tudo encontra a hora de sua consumação. Estarei lá, no dia do Juízo Final, vendo-os sucumbir. Quando as almas deixarem de esperar o Messias, que prometeu vir e não veio.
Escorre entre os dedos o esporro; os dentes rangem e a boca não quer uivar; o corpo entra em convulsões ao tentar acompanhar o desejo que não se realizou; tenta acompanhar os rastros do gozo insaciável. A natureza às vezes é perversa com seus filhos; mãe que te impele a mil incestos impossíveis; queria tudo que não me foi dado, mas talvez não queira ser o corpo que saciará a sede de alguém. Difícil encontrar a comunhão dos sentidos, difícil amar novamente. O amor perdeu-se no ralo dos dias e dos encontros que não tivemos; perdemos nossas melhores horas pensando em como poderia ter sido, e não foi.
Ainda está ressoando no vento o som daqueles tambores. A periferia se levanta, ainda que simbolicamente, contra os cães treinados em matar. Contra o Estado que pisa verticalmente na cabeça de quem ainda está fraco e deitado no chão; contra os empresários e as elites que segregam a faixa de Gaza, que é Fortaleza. Aqui se mata mais, aqui o genocídio permanece sendo a regra. Nossos inimigos ainda estão soltos, intactos. Doce ilusão querer tomar de volta o que é nosso. Tudo que há na Terra é dos filhos que ela gestou: da ameba ao homo sapiens. Quem primeiro cercou um terreno e chamou de seu fundou o inferno. O inferno não é o lugar para onde as almas caídas e pecadoras irão, o inferno é este solo segregado aqui. Antes, tínhamos um paraíso selvagem, não o bíblico. Um paraíso de mata densa, de animais selvagens, de cantos enigmáticos, de brilho e intensidade. Homo sapiens da pele vermelha, que não escondia as
vergonhas, não teve escolha: ou se catequiza, ou vira escravo, ou morre. Alguns resolveram resistir. Para entrar aqui no Siará foram três expedições. Resistiu-se até onde foi possível. Continuamos a resistir. À memória do índio dizimado e do negro escravizado, os sons dos tambores daquela noite foram oferecidos.
Não tenho uma arma neste subsolo, apenas algumas memórias que me torturam e me enchem de alegria. Mas tenho uma vontade de morrer que sempre volta, por mais que tente apagá-la da memória. Olhar-se no espelho e dizer: o que você quer do mundo? A flor da juventude quase morreu na prisão. Quase. Mas da jaula de ferro que nos prende à nossas próprias limitações, nunca saímos. É impossível fugir de si mesmo. Lá fora há carros, casas com muros altos, arame e alarme; vivemos numa cidade sitiada, a cada dia nosso medo aumenta, a cada dia perdemos um pouco mais do contato com os outros e com nós mesmos. A aventura é tão pequenoburguesa frente a esse asilo de concreto, asfalto e alvenaria. A resistência nunca para, há sempre um modo de manter-se acordado e de pé.
Onde você andava, que eu nunca mais tinha visto? Exercitando a paciência, o silêncio, andando nas sombras, para não perder o costume. Precisei do inabitado, do lugar onde pessoas circulam constantemente, mas quase nenhuma me conhece, só o suficiente para não enlouquecer sozinho.
Aproveitando cada instante do dia, cada visão do paraíso que a natureza aflora em suas dobras, na sua conjunção de cantos, luminosidade e silêncio. Agora entendo porque culto e cultivo tem a mesma origem.
A vida é intensidade: cinqüenta anos em cinco; cinco minutos na vida. O primeiro se antecipa; como o coelho da Alice, está sempre atrasado. O segundo não se conta. Cinco minutos são incomensuráveis; o instante não é regido pela lei da equivalência, espero que jamais o seja. Só a intensidade pode salvar; a doença tem de inquilina uma saúde invejável. Sim, os cães históricos são o pós-humanismo, um animalismo autenticamente histórico. Mas um cão apenas não basta, é preciso uma matilha; uma matilha não basta - a Hydra ganha nova cabeça sempre que cortada, não é como a Medusa. Na verdade - ah, hoje sei exaltar a infínitude concreta da verdade, sobretudo o seu lado construtivo-demolidor -, eu também tenho uma teoria:
Filosofía
Desmitifícação do pensamento, desmitopoetização do saber. O saber narrado com base na tradição, dos aedos aos sábios, entra em declínio com a experiência da retórica na ágora da pólis. É um longo caminho até chegar onde quero, então é preciso dar um salto de tigre para mais próximo. Hegel como pensador que estabelece uma síntese entre o devir heraclidiano e o ser parmenídico no "nous" de Anaxágoras, ou em seu espírito (Geist). Até concluir Hegel também é um longo caminho.
O divisor de águas disso tudo parece ser Feuerbach na relação eu-tu, que Marx traduz, ou se apropria, como relação social. Em Hegel isto aparece na anterioridade dialética da relação frente às partes, nisso consiste o espírito não como intersubjetividade, mas como unidade contraditória e dinâmica de ser e pensar, de lógica e ontologia. Onde fica a ciência nisso tudo? A filosofia como ciência rigorosa em Hegel e Husserl. Para um professor daqui, de Platão a Hegel a identidade entre ser e pensamento dá a tônica da tradição. Mas não existe nada que não tenha o seu semexpressão: Górgias, alguns helenistas, talvez Pascal. Em Feuerbach, o que está em questão é a quebra da identidade de ser, pensamento e linguagem, e mais do que isso a compreensão da relação eu-tu como afetiva - um pouco de Górgias, um pouco de Pascal. A crítica de Marx vai de encontro a essa compreensão afetiva, portanto, passiva do mundo, em prol de uma concepção ativa, a práxis. Para Marx, não se trata de reverter a inversão do inteligível como superior ao sensível no âmbito da consciência, mas de reverter o próprio mundo da vida social em que abstrações operam a realidade concreta, sensível, prática. A negação da negação aparece para ele como essa reversão, portanto, dá-se na negatividade. Tem mais não.
Sim, a beleza da verdade e a verdade da beleza é o corpo na intensificação de seu envoltório - ah, o sex appeal do inorgânico! Sei disto quando amo as costas daquela garota com o seu vestido preto; jamais sentiria o mesmo com seu corpo nú. Se Sade não fosse um perverso, estaria certo ao dizer que as delícias do prazer são o único modo de alcançarmos a felicidade; é preciso entregar-se aos desígnios da natureza, contra a moral. Nietzsche também estaria certo se não fosse tão Nietzsche: é preciso negar a negação da vida, é preciso afirmar nossas potências. A filosofia pode ser, sim, um modo superior de dar o cú. Ainda nos falta muito "progresso" para aprendermos a viver como um cão. Uivar na noite sombria, queimar-se ao amanhecer, sendo vampiro, e fazer da própria cinza.
adubo, para que possa nascer uma flor selvagem, bela e espinhenta, perfurmada e venenosa; essa rosa que é vegetal de sangue, esse sangue que escorreu com as lágrimas da lembrança dos que tombaram. É preciso viver como um cão, mas saber que é impossível esquecer, que é impossível escapar da história, como é impossível escapar do real. Não estamos mais entre o outono e o inverno do tempo histórico, ainda que a treva jamais tenha sido tão implacável, é chegado o momento da aurora tomar de assalto o céu - é hora de testar as palavras do profeta da chuva - é preciso deixar a terra arada para o dia do dilúvio, é preciso escoar toda a água do dilúvio para que a plantação não se perca, é preciso correr como uma criança corre em meio às calçadas em um dia de chuva. Estamos vivos, e não precisamos mais do que isso.
Guardei as palavras doces que não disse. O incêndio que me habitava o peito queimou impunemente. Mas foi preciso matar meus próprios fantasmas para me encontrar. E isso basta.
Durante as mil e uma noites em que esteve ã espera, ã espreita de uma chance remota de vingar-se, ninguém via ou ouvia o seu gemido. Ninguém nunca ouve o gemido de quem tem raiva e não pode vingar-se. Sentir-se frágil, um corpo apenas, mero amontoado de carne, ossos e uma desesperança crônica no futuro. Se não há futuro para os de baixo, que não haja paz para os de cima. Mas é sempre tão difícil fazer valer essa máxima.
Máximo respeito a quem não teve a oportunidade de deixar os seus rastros, o registro do seu protesto, da sua raiva. Máximo respeito a quem fez das próprias entranhas o coração de um novo mundo a pulsar. Máximo respeito aos povos originários, aos quilombos e quilombolas; máximo respeito aos animais silvestres; máximo respeito à barata que há de presenciar o dia após o fim; máximo respeito aos operários selvagens, aos camponeses intoxicados, aos pretos encarcerados; máximo respeito aos mídia livristas, aos anarquistas e suas okupas, aos literatos que fizeram da palavra, pólvora. Como ouvi uma vez, não estamos tristes, estamos de greve. Perdido neste maldito planeta, nesta maldita galáxia, dançamos nesta noite a dança que havemos de dançar sobre as ruínas do progresso. Somos o resto que redime, a sobra que falta. Já fui vietnamita, já fui do quilombo de Palmares; comi na mesma mesa que Conselheiro; quase traí Cristo, por não querer pegar em armas; fui viciado em cocaína e andei armado na Colômbia de Escobar; trafiquei rins, fumo e fé; nunca deixei que me tirassem do front. No entanto, há gerações estamos perdendo. Eu estava lá quando a barragem cedeu; também estava quando o sertão virou mar, morto. Meu corpo se avolumou, cresceram tumores e me faltaram dedos, quando a usina arrebentou; fui a ovelha Dolly, e uma criança do Panamá. Tenho cicatrizes que não me deixam esquecer.
A paixão pelo extremo, pela concretude transbordante, pela transitoriedade, pelo agora, pelo encontro, pela assembleia selvagem. Uma chama que há de consumir o coração que ainda pulsa.
REVISTA
LAMPEfô
MAS, “SE EU SOUBESSE....EU NEM....” ’ RUY DE CARVALHO
Ora, porra, se eu soubesse sobre o que era eu nem tinha escrito
xatamente: "se eu soubesse.... eu nem"! Assim se expressa Mauro Parente
E
acerca de seu livro. Não se trata de um saber, menos ainda de um
interpretar. Menos teoria e hermenêutica que ascese e experiência; mais
próximo de uma atividade e de uma vivência que de uma doutrina ou da apreensão de um sentido. Diria antes tratar-se de um à frequentação, de uma certa disposição ou de uma vagabundagem, de um vagabundear. Como fazer a crônica das relações de pessoas que habitam uma zona de indiscernibilidade com os animais, as coisas e com os vegetais? Fortaleza, claro!
1 Este texto é, talvez, um esboço do que seria um quadro im pressionista em torno do livro Crônica de uma província em chamas, de Airton Uchoa.
Mas...."já percebeu como é estranho se dizer, a sério, que se está em Fortaleza?" O que haveria de estranho nisso? Nada, se Fortaleza fosse apenas uma cidade, capital do Estado do Ceará, localizada no Nordeste do Brasil. Mas ela é também uma espécie de bruma de indistinção, em que seres quase-não-humanos têm gravidez de 37 anos, viajam loucamente no espaço-tempo, em que casamentos acontecem por sorteio e "à revelia", junto à Loteria da Caixa, permanecendo anos no anonimato, etc. Estranho mesmo é Fortaleza emergir como um labirinto em linha reta. Como uma reta pode tornar-se labirinto? Quando pessoas devêm salamandra e cobra, por exemplo. Elas não se tornam salamandra e/ou cobra, elas apenas fazem da "ruína....um trabalho constante", pois tornar-se absurdo tem suas vantagens e, às vezes, a única coisa racional a se pensar diante das coisas da vida é: "Puta que o pariu". Das inúmeras portas que o Crônica abre, gostaria apenas de entrar por uma: o humor! Airton Uchoa, com o Crônica, não quer dizer nada, não vela nem dobra coisa alguma. Nenhum sentido oculto, a ser desvelado ou revelado por críticos literários de plantão e de boa vontade, com ou sem Deus no coração. Nenhum trabalho de interpretação a ser construído. E, no entanto, ela. Fortaleza, gira, como dissera Galilieu, plagiando Airton. O Crônica é um livro de acupuntura, cheio de agulhas, eletricidade, bisturis loucas, solitárias incomensuráveis. Acupuntura porque ele desbloqueia, faz emergir passagens, drena energias, torna potentes mercenários, biscateiros e vagabundos, alquimistas de todos os naipes que nos apresentam uma Fortaleza que dá as costas e que diz é morra para os ressentidos e complexados, regionalistas, patrocinadores da miséria e cultuadores da auto-piedade. Uma Fortaleza em que o humor não é segundo, derivado, negativo ou uma espécie de adolescência necessária do espírito. Aqui, o humor é o texto mesmo, que já não quer dizer nada além ou aquém do que diz. Não se conta piada, nada de chiste, ironia ou sarcasmo no Crônica. Este, seria um livro sem Lei? Fortaleza deviria uma Província em chamas, se o seu humor se revoltasse contra a Lei? Humor contra a Lei?
Crônica: um livro político? Será? Seria mesmo possível que Mademoiselle Bistouri seja o Leviatã alencarino? "Se eu soubesse....eu nem...." Pistas, motes e ocasiões para se permanecer na conversa, que se fia, mas que nunca chega, mesmo, a ser fiada. Humor, aqui: nem segundo, nem refém do sentido, nem bajulador disfarçado da Lei. Não é segundo porque não existe em função de uma seriedade primeira, que seria aquela da caatinga, com seu cortejo famélico em direção ã capital; não é refém do sentido porque convida a uma estranha experimentação, a uma frequentação, mais que a uma interpretação ou a uma, por assim dizer, leitura; não bajula a Lei porque não quer fundar nada e, no limite, faz dos verbos experimentar, desejar e freqüentar verbos intransitivos, como chover....como rir! Este Humor é algo, como talvez dissesse Deleuze, menor, que faria do Crônica uma literatura menor e, do Aírton, um gago. Nenhum gago no Crônica, a não ser o Aírton, gago da língua, que faz o português gaguejar, quando potencializa a fala de seus biscateiros do Centro. Mas, ""S e eu soubesse....eu nem...." Os títulos dos....capítulos(?)....bem, o Crônica tem uma transa randômica, browneana com o tempo, com o conteúdo que se desenrolaria no tempo. Nele, nem há cronologia, nem hierarquia, nem salvacionismo, mas um rodopio meio louco e, de maneira singular, ordenado, que perpassa as estações ou pontos de condensação, como um samba de breque literário, ou um naturalismo em que não se buscasse realizar um inquérito ontológico ou fazer um boletim de ocorrência do real; naturalismo sem natureza porque as naturezas nele pivotam, enlouquecidas, criando mundos que se interpenetram e, extremamente voláteis e instáveis, dançam uma estranhamente conhecida dança. Tá bom, minha teoria: o Crônica não existe! Estou convicto de que quando o fechamos as palavras fervem, batem umas nas outras criando mundos, evaporam como a água, por isso ele tá sempre quente. Mas quando o abrimos ele adquire uma forma, por assim dizer, estável, quaselegível e, assim, a gente: ri. Mas, ""Se eu soubesse....eu nem...."
Mas eu falava dos títulos dos quase-não-capítulos! Mermão, que porra de títulos são aqueles, Cumpade? Tem até em alemão, tu acha! Diabo é isso, Mah! E há, no negócio intitulado de "índice e atribuições textuais", subtítulos que parecem até que deveríamos levá-los a sério. Mais uma vez, o Humor! Os títulos não omitem nem mostram, não velam nem exibem, são como textos numa lápide ou em um telegrama: um exercício de concisão que se julgou, por algum motivo obscuro, necessário. Humor, aqui, tem algo de marcial, uma espécie de ascese, um tipo de exercício que visa, no fundo, estilizar o desperdício da vida, da vida que transborda, claro, não da que falta, ou da que se vive na falta. Essa é a minha posição: o Crônica, como um grande livro, faz do desperdício uma arte, da vagabundagem um ofício, da literatura um destino e, assim, provoca-nos e desafianos a nos colocarmos ã altura das exigências do desperdício vital e da vagabundagem estilizada. Mas, ""Se eu soubesse....eu nem...."