lampejo - vol.5 n.1

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ÍNDICE Artigos

Revista Lampejo ISSN 2238-5274

001 A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DE SCHILLER: DA FRAGMENTAÇÃO À INTEGRALIDADE ANTROPOLÓGICA JADERSON GONÇALVES NOBRE

012 O CRISTIANISMO COMO ANTINATUREZA E A DIALÉTICA DO RESSENTIMENTO EM SÓCRATES ANTONIO ROGÉRIO DA SILVA MOREIRA

Ano 4 . nº 9 . Junho de 2016

EDITORES DAVID BARROSO (SECRETÁRIO), GUSTAVO COSTA, RUY DE CARVALHO, THIAGO MOTA, GUSTAVO AUGUSTO (COORDENADOR), WILLIAM MENDES (COORDENADOR)

CONSELHO EDITORIAL PROF. DR. DANIEL SANTOS DA SILVA, PROF. DR. ERNANI CHAVES, PROF. DR IVAN MAIA DE MELLO, PROF. DR. JAIR BARBOZA, PROF. DR. JOSÉ MARIA ARRUDA, PROF. DR. LUIZ FELIPE SAHD, PROF. DR. LUIZ ORLANDI, PROF. DR. MIGUEL A. DE BARRENECHEA, PORF. DR. OLÍMPIO PIMENTA, PROF. DR. PETER PÁL PELBART, PROF. DR., ROBERTO MACHADO, PROF. DRA. ROSA MARIA DIAS

COMISSÃO EDITORIAL ÁTILA MONTEIRO, DANIEL CARVALHO, DAVID BARROSO, FABIEN LINS, GUSTAVO COSTA, GUSTAVO FERREIRA, HENRIQUE AZEVEDO, LUANA DIOGO, MARILIA BEZERRA, PAULO MARCELO, ROGÉRIO MOREIRA, RUY DE CARVALHO, WILLIAM MENDES

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO PEDRO MOURA

023 CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS À LUZ DE ECCE HOMO: BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA AUTOINTERPRETAÇÃO DE NIETZSCHE ÁTILA B. MONTEIRO

037 ÉTHOS PARRHESIÁSTICO COMO VIDA FILOSÓFICA EM MICHEL FOUCAULT ROGÉRIO LUIS DA ROCHA SEIXAS

055 DA FILOSOFIA À LITERATURA EM BUSCA DE UM ESPAÇO OUTRO: UMA LIGAÇÃO ENTRE FOUCAULT E BLANCHOT CAMILLA DINIZ

078 ASCETISMO E RELIGIÃO: PENSAR O HOMEM DO FUTURO COM NIETZSCHE E FEUERBACH LUÍS GUILHERME STENDER MACHADO

093 CONTRA A PLURALIDADE | AGAINST PLURALITY JOSÉ JOÃO NEVES BARBOSA VICENTE

104 A JUVENTUDE SAIU DO FACEBOOK E FOI ÀS RUAS – LEVANDO O FACEBOOK COM ELA! ADRIANO COSTA CARDOSO

123 JEAN-PAUL SARTRE E A “EXPLICAÇÃO DE O ESTRANGEIRO” DE ALBERT CAMUS LEANDSON VASCONCELOS SAMPAIO

135 SCHOPENHAUER, WAGNER E NIETZSCHE: A MÚSICA EM DIFERENTES GRAUS FILOSÓFICOS SIDNEI DE OLIVEIRA

151 PARA ALÉM DO BINARISMO RACIONAL: UMA APROXIMAÇÃO ATIMOLÓGICA DA METAFÍSICA DA VONTADE DIOGO BOGÉA

Ensaios 166 CONVERSA SOBRE A CONCILIAÇÃO ENTRE NATUREZA E ESPÍRITO EM HEGEL (OU: O QUE CONVERSAR EM UMA KNEIPE DE BERLIM) FRANCISCO LUCIANO TEXEIRA FILHO

172 AS ALTERIDADES CIRCUNSCRITIVAS DAS ECOLOGIAS LINGUÍSTICAS (UM ENSAIO FOTOGRÁFICO-FILOSÓFICO) WELLINGTON AMÂNCIO DA SILVA

Resenhas 182 ON DELEUZES ASSEMBLAGE ONTOLOGY: DE LANDA´S DELEUZE: HISTORY AND SCIENCE THIAGO MOTA


A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DE SCHILLER: DA FRAGMENTAÇÃO À INTEGRALIDADE ANTROPOLÓGICA JADERSON GONÇALVES NOBRE1

Resumo: Será tratado, nesta pesquisa, o texto das Cartas de uma Educação Estética da Humanidade de Schiller, filósofo, poeta, historiador, dramaturgo alemão, escrito no Século XVIII, entre Kant e Hegel, tanto quanto ao tempo quanto ao pensamento. Serão destacados alguns conceitos mais fundamentais no que diz respeito ao tema proposto nesta pesquisa, a saber, a integralidade entre sensibilidade e racionalidade, a integralidade antropológica. O conceito de fragmentação e modernidade, assim como educação estética, beleza e sua relação com a liberdade e, por fim, refletir sobre a importância política da arte, no sentido de uma educadora social, por meio de uma sensibilização dos sentidos de uma forma harmônica com a razão. Palavras-chave: Estética; Fragmentação; Integralidade;

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Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UECE); nobre_jederson@hotmail.com

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A beleza deve, pois, ser vista como cidadã de dois mundos, pertencendo ao primeiro por nascimento e ao segundo por adoção; ela recebe sua existência na natureza sensível e obtém seu direito de cidadania no mundo da razão. Sobre a Graça e a dignidade, Friedrich Schiller.

1. Modernidade e fragmentação nas Cartas

A

modernidade se caracterizou como um período da história da humanidade em que houve uma supervalorização do uso da razão. Com a libertação da necessidade de seguir os padrões religiosos indicados nas Escrituras Sagradas cristãs e com o desenvolvimento das ciências exatas o homem moderno desenvolveu sua racionalidade de forma bastante definida. Era preciso reconstruir as bases da Filosofia. Esse foi o projeto da modernidade, dar à Filosofia novos fundamentos, redescobrir em suas origens sua verdadeira essência. Empenhado em sua tarefa, ou seja, a de desenvolver de forma plena sua racionalidade, o homem moderno vai cada vez mais se libertando das amarras de sua sensibilidade. Era preciso que a racionalidade se libertasse dos impulsos sensíveis a fim de que pudesse, de forma livre, pura, raciocinar com perfeição. Já em Descartes é possível identificar o projeto moderno, que por fim desencadearia no Idealismo alemão. Deveria esse novo homem, que surgia extrair de si tudo o que lhe fosse necessário. Com isso, quanto mais o homem se aprofundava em sua razão, mais ele se afastava de sua sensibilidade. Ao fazer uma reflexão sobre o seu tempo, Schiller se depara com a fragmentação. “Nas classes baixas (...) aparece instintos grosseiros e sem leis, que pela dissolução do vínculo da ordem cívica se libertam e procuram, com furor indomável, sua satisfação animal”, e como posturas opostas, porém ainda mais “repugnante” é a postura das classes civilizadas, que ao atingir “a lustração do entendimento, (...) mostra em geral uma influência tão pouco enobrecedora sobre o caráter que, até pelo contrário, solidifica a ruína com princípios” 2. Essa fragmentação, para Schiller, impossibilitaria a moralidade. Era preciso que essas duas disposições, sensibilidade e racionalidade, entrassem em harmonia, pois somente assim a possibilidade moral estaria presente. Seria isso possível? Não seria esta a situação dos homens em qualquer período de sua história?

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SCHILLER, Friedrich. Cartas sobre a Educação Estética da Humanidade, [1795], Trad. br. Roberto Schwarz. São Paulo: Editora EPU, 1991, p.48.

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O homem grego desenvolveu suas faculdades racionais assim como sua sensibilidade. “Naqueles dias do belo acordar das forças espirituais, os sentidos e o espírito não tinham, com rigor, domínios separados; a discórdia não havia incitado ainda a divisão belicosa e a determinação das fronteiras”3. Eram os homens gregos “ricos, (...) de forma e plenitude, filosofando e formando, delicados e enérgicos, unindo a juventude da fantasia à virilidade da razão em maravilhosa humanidade” 4. Em tais homens, porém, esse desenvolvimento se deu, ainda, de uma forma bastante precária, ingênua. Na Grécia estava a razão em momento de formação e a Filosofia realizando os seus primeiros passos. Ali a razão não tinha ainda as condições de discernir, de forma mais elaborada, as suas faculdades. Neles a sensibilidade se deu de forma esplendorosa, mas ali ainda de forma apenas em si, sem consciência de sua estrutura. A natureza grega desposou todos os encantos da arte e toda a dignidade da sabedoria sem tornar-se, como a nossa, vítima dos mesmos. (...) Vemo-los ricos, a um tempo. De forma e de plenitude, filosofando e formando, delicados e enérgicos, unindo a juventude da fantasia à virilidade da razão em maravilhosa humanidade. (...) Naqueles dias do belo acordas das forças espirituais, os sentidos e o espírito não tinham, com rigor, domínios separados; a discórdia não havia incitado ainda a divisão belicosa e a determinação das fronteiras 5. O homem moderno, em sua busca pelo pleno desenvolvimento de sua razão, afastou-se do corpo, mas somente assim foi capaz de compreendê-lo. Tendo a razão desenvolvida de forma consciente, era agora possível ao homem moderno, compreender sua sensibilidade e tornar-se consciente de si. Era possível a esse homem não mais o apenas em si, dos antigos, mas o em si e para si. É com base nesse argumento que se diz que a Estética como ciência da sensibilidade é uma atividade genuinamente moderna6, pois só aqui tem o homem plena consciência de suas faculdades, podendo agora racionalizar acerca de sua sensibilidade. A crítica feita por Schiller à fragmentação do homem, de suas disposições e da sociedade, é também o seu ponto forte, pois mesmo com essa fragmentação, só por meio desta, ele poderá elevar o seu estado de consciência. Só por meio da penosa fragmentação que agora é possível que o homem desenvolva de forma plena o que realmente ele é. Nesse sentido Schiller sustenta:

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Idem, p.50. Ibidem. 5 Idem, p.50. 6 FRANZINI, Elio. A Estética do Século XVIII [1995]. Trad. port. Isabel Teresa Santos. Lisboa: Editorial Estampa 1999, p.35. 4

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Embora não haja felicidade para estes indivíduos fragmentados, inexiste outra maneira de a espécie progredir. A aparição da humanidade grega foi indiscutivelmente um máximo que não poderia durar nem superar-se em seu nível. Não podia durar porque o entendimento, pelo acúmulo que até então realizara, era inevitavelmente forçado a separar-se da sensação e da intuição para aspirar à nitidez do conhecimento; não podia também subir mais porque apenas um certo grau de clareza pode coexistir com uma determinada plenitude e temperatura. (...) este antagonismo das forças é o grande instrumento da cultura, mas apenas o instrumento, pois enquanto dura, está-se apenas a caminho7. Era preciso agora unir, integrar suas disposições, pois mesmo tendo a clareza da razão, não estava o corpo preparado para seguir tais prescrições propostas por seu espírito. Sua liberdade prescreveu leis que sua natureza necessária não estava educada a seguir. “A possibilidade moral está ausente, o momento generoso não encontra uma estripe que lhe seja sensível” 8. Diante dessa situação Schiller, encontra na filosofia kantiana os argumentos adequados para desenvolver sua teoria acerca da modernidade e da necessidade de uma educação estética. Sendo a faculdade de julgar, o juízo estético, o elo entre racionalidade e sensibilidade, entre liberdade e necessidade, seria ele o único capaz de devolver essa integralidade à humanidade. O mesmo argumento formulado acerca da fragmentação do homem moderno foi também realizado por Schiller na abordagem sobre a sociedade e o indivíduo. Como poderia entrar em harmonia o homem livre em sua vontade com o estado que lhe impõem leis? Exatamente aqui se encontra a verdadeira filosofia schilleriana. Seria esse mesmo caráter estético que levaria o homem à sua integralidade, que levaria também a sociedade à harmonia. Podemos perceber a forte intenção política de Schiller ao fundamentar sua arte. Com propostas políticas, Schiller teria sido levado a escrever todas as suas obras estéticas e filosóficas. Segundo ele: “no homem ético deverá estar primeiramente acalmado o conflito dos elementos, dos impulsos cegos, e a contraposição grosseira deve ter cessado antes que se possa ousar favorecimento da multiplicidade”9. Desde muito cedo, Schiller sofreu vários infortúnios impostos pelo Estado. O que o conduziu a dedicar-se a movimentos revolucionários, a uma busca pela liberdade que o Estado queria lhe roubar. Baseado nesse contexto percebe-se ainda, de forma mais clara, o seu profundo interesse pela questão da liberdade. O estudo aprofundado dessa disposição humana levou Schiller a consequências fascinantes. A partir de Kant se conduziu a questão do estético ao âmbito da harmonia entre natureza e razão, entre a tão discutida, por toda 7

SCHILLER, Friedrich. Cartas Sobre uma Educação Estética da Humanidade, p.56. Idem, p.47. 9 Idem, p.59. 8

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tradição filosófica, relação entre forma e matéria, ou ainda, para ser mais exato, entre unidade e multiplicidade. Tais questões podem ser encontradas desde os princípios da Filosofia, como, por exemplo, nos pré-socráticos Heráclito e Parmênides. Na moral moderna, moral kantiana, moral fundada na liberdade, é a liberdade, portanto, que deve nos servir de guia para que possamos fundamentar nossas ações. Schiller identifica, porém, que, mesmo tendo o homem moderno levantado todo seu edifício e fundamentado em bases seguras sua moralidade, agora livre, era preciso tornar sua efetividade possível. Isso só ocorreria por meio de uma nova educação, de uma nova formação do homem. Era preciso, com urgência, uma nova educação que tivesse seus fundamentos no caráter estético. Aprofundaremos melhor tal argumento mais adiante, ou seja: a relação entre estética e moral. 2. Sobre a urgência de uma educação estética O projeto moderno de desenvolvimento de sua racionalidade teve grande êxito. Atingiu, com um grau bastante elevado, clareza das ideias. A ilustração buscada pela modernidade teve êxito. Poderia agora o homem moderno fundar toda a sua moral em sua racionalidade, ou seja, em sua liberdade. Sabia o homem moderno o que seria o bom a se fazer. Por que isso não acontecia? Por que conhecendo as boas leis, não se encontrava na modernidade boas ações? Essa foi a pergunta feito, por Schiller ante a filosofia kantiana. A razão atingiu um grau de desenvolvimento adequado, mas não levou consigo a sensibilidade a esse patamar de desenvolvimento. “a razão terá feito o que pode fazer ao encontrar e postular a lei; a realização depende da vontade corajosa e do vivo sentimento” 10. Sempre é levada em conta a necessidade de satisfazer a ambas as legislações do homem, pois sendo um conjunto de sensibilidade e racionalidade, é preciso encontrar uma forma de mantê-las harmônicas entre si: forma e matéria não podem conflitar entre si. Como levar harmonia a duas coisas tão distintas, se a razão é livre e, portanto, impõe leis arbitrárias ao homem, enquanto a matéria segue leis da natureza, leis invioláveis? O homem apenas possui liberdade, escolha, no campo da razão, pois no campo da natureza ele apenas segue as leis de causa e efeito. É por meio da razão que deverá ocorrer a mudança, a busca pela harmonia. É preciso educar nossa razão a querer o que a natureza nos impõe. Em referência à sensibilidade, o que a natureza nos impõe são impulsos: “Impulsos são as únicas forças motoras no mundo sensível” 11. 10 11

Idem, p.60. Idem, p.61.

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É preciso educar os sentidos, os impulsos, para que, na ação prática não haja violência da razão sobre a sensibilidade: o que impede a boa ação. Torna-se necessário educar os sentimentos, “pois o caminho para a cabeça precisa ser aberto pelo coração. A educação do sentimento, portanto, é a necessidade mais urgente de nosso tempo” 12. Schiller faz uma distinção entre a ação moral e a ação bela. Na ação moral, segundo Kant e posteriormente para todo o mundo ocidental, é na ação onde se faz o bom, pelo puro dever de se fazer o certo, apenas baseado em sua liberdade, sem imposições exteriores. Deve-se fazer o bem, portanto, mesmo quando essa ação se contraponha à sensibilidade, o dever pelo dever. O homem é natureza e razão, logo suas ações devem corresponder a essas duas disposições do seu modo de ser. Schiller sempre põe em questão essa integralidade necessária à humanidade. Como agir então sem ferir a si mesmo? Por meio da ação bela. A ação bela, a ação estética, seria aquela em que a sensibilidade e a liberdade estão em plena harmonia, onde os sentidos, os impulsos sensíveis estão educados com as ideias da razão. Surge um novo questionamento: como podemos educar nossos sentidos, se nossa cultura esta toda fragmentada e corrompida pelos abusos do Estado? Era preciso que já fôssemos sábios para que soubéssemos o que deveríamos fazer corretamente. É aqui que se encontra a tarefa do gênio e das belas-artes. Schiller propõe que essa educação deve se realizar por meio da arte que, elevada a um patamar na qual está livre das imposições de seu tempo, ela nos possibilita encontrar a verdade. “Embora seja filho de seu tempo, está mal o artista quando é também seu pupilo, ou pior ainda, seu protegido” 13. Levantando Schiller em sua Carta IX acerca desses argumentos a seguinte indagação: Não estaremos andando em círculo? Toda melhoria política deve partir do enobrecimento do caráter – mas como pode enobrecer-se o caráter sob a influência de uma constituição estatal bárbara? Para esse fim seria preciso encontrar um instrumento que o Estado não dá e abrir fontes que se conservam limpas e puras apesar de toda podridão política. (...) Este instrumento está nas belas-artes, estas fontes abrem-se em seus modelos imortais. Arte e ciência são desobrigadas de tudo que é positivo e que foi introduzido pela convenção do homem, ambas gozam de uma absoluta imunidade em face do arbítrio humano14. Transformando assim artista em educador, não no sentido de um pedagogo, mas como um formador da sociedade, o modelo livre da arte, imortal, deve servir de força para que possamos educar os sentimentos, os impulsos, dando forma à matéria disforme. A arte possui, para Schiller, um 12

Idem, p.62. Idem, p.64. 14 Idem, pp.62 - 63. 13

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forte papel social, harmonizador, integrador, não se isolando de seu tempo, mas como um transformador dele, sem que com isso, seja o gênio, o artista por ele corrompido. Como nos diz essa bela passagem da Carta IX: Vive com teu século, mas não sejas sua criatura; serve teus contemporâneos, mas serve-os no que precisam e não no que louvam. Sem partilhar sua culpa, partilha com nobre resignação seu castigo e aceita livremente o jugo das que são incapazes de suportar tanto o peso quanto a falta. (...) tua própria nobreza irá acordar (...) a deles ao passo que sua indignidade não aniquilará tua finalidade. (...) onde quer que encontrares, cerca-os de grandes, nobre e espirituosas formas, envolve-os de símbolos da excelência até que a aparência supere a realidade e a arte a natureza15. O homem pode negar sua integralidade de duas formas distintas: pela “brutalidade” dos sentidos se impondo por sobre a razão, ou pela “perversão” da razão sobre a sensibilidade. Caberá à beleza o papel de unificar e evitar que ambas as transgressões das disposições não se efetuem. 3. Beleza e Liberdade nas Cartas Para se compreender a teoria estética de Schiller é preciso abordar temas fundamentais como a beleza e a liberdade. Como já foi postulado anteriormente, o tema liberdade, que acompanha Schiller desde o começo de sua vida, é central em sua filosofia. Como “escreveu Goethe a Eckermann: (...) a idéia de liberdade percorre todas as obras de Schiller” 16. Trata-se de uma liberdade ontológica, mas também de uma liberdade com sua efetiva realização no plano histórico, social e político, contra toda opressão do Estado tirano autoritário; portanto, uma liberdade filosófica, mas também uma liberdade política. Novamente podemos perceber uma forte relação entre a filosofia estética de Schiller e uma filosofia moral, política, histórica. A relação com a beleza, outra categoria central no pensamento filosófico de Schiller, é fundamental. Conforme Schiller: “existe pois uma tal visão da natureza ou dos fenômenos na qual exigimos deles nada alem do que liberdade, na qual apenas vemos se eles são o que são por si mesmos”17. Por conseguinte, liberdade é deixar que o fenômeno se apresente sem a interferência de conceitos, de pré-determinações. “A liberdade no fenômeno é a autodeterminação em uma coisa, na medida em que se revela na intuição” 18.

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Idem, pp.66 - 67. CORDON, Navarro Manuel Juan “Repensar a Schiller”: p.XIII. “Escrebio Goethe a Eckermann; que la idéia de libertad recorre todas las obras de Schiller”. 17SCHILLER, Friedrich. Kallias ou sobre a Beleza, p.68. 18 Idem, p.68. 16

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O belo recebeu durante o desenvolvimento dos estudos de estética na modernidade, quatro formas de defini-lo, de acordo com Schiller, no qual a quarta via seria a sua proposta: Explica-se o belo objetiva ou subjetivamente; e, a rigor, ou de modo subjetivo sensível (como Burke e outros), ou subjetivo racional (como Kant), ou objetivo racional (como Baumgarten, Mendelsshon e todo o bando dos homens da perfeição), ou, por fim, de modo objetivo sensível. (...) cada uma dessas três anteriores detém (...) uma parte da verdade; e o erro parece ser meramente que se tenha tomado essa parte da beleza, que concorda com ela, pela beleza mesma19. Isso levará alguns filósofos como Hegel, Nietzsche e Lukács a considerar Schiller como o primeiro filósofo a trilhar o caminho que leva do idealismosubjetivo ao idealismo-objetivo20. Sendo a beleza a concordância entre a natureza e a forma, ser o que se é, ou seja, a perfeição, só se pode sentir o belo, portanto, por meio da liberdade, da experiência livre de conceitos, deixando que a coisa se revele, se auto determine. Não é por meio da razão pura que se intui o belo, mas por meio de intuições livres. “A beleza (...) habita apenas no campo dos fenômenos, e não há, pois nenhuma esperança de, mediante a mera Razão teórica e pela via do pensamento, topar com uma liberdade no mundo sensível” 21. Daí a ligação feita por Schiller entre estética e educação: educação no sentido de uma formação, como atividade política, pois sendo a arte bela, ela pode “explicar-se a si mesma, (...) explicar-se sem o auxilio de um conceito” 22. Sendo a arte livre, bela, não estará determinada pelo Estado, o que lhe possibilita o papel de educadora, mesmo em uma cultura em que os costumes degradem a paz social. Mesmo em uma sociedade com muitas degenerescências, a arte tem a capacidade de assumir o papel de educadora, de formadora de uma sociedade integral levando sensibilidade aos “embrutecidos” pelos conceitos e unidade aos “instintos grosseiros e sem leis” causados pelo abandono da razão. 4. O sentido do estético na recuperação da integralidade antropológica nas Cartas Tendo Kant, por meio das três Críticas, exposto acerca da importância da ação moral, livre, e percebendo Schiller que essa ação moral não era possível naquele período, pois as degenerescências causadas pelo movimento de desenvolvimento da razão, ocorrido na modernidade, impossibilitou uma 19

Idem, p.42. CORDON, Navarro Manuel Juan: “Repensar a Schiller”, p.XI. 21 SCHILLER, Friedrich. Kallias ou sobre a beleza [1847]. Trad. br. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p.69. 22 Idem, p.70. 20

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harmonia entre o que se quer com o que se deve ser, propõe ele uma educação estética do homem. Trata-se de uma educação em que sejam consideradas sensibilidade e racionalidade, onde a razão (que é livre), por meio de um conformar-se com a sensibilidade (que é necessária), entraria em uma perfeita harmonia. Desse modo, o homem integral, que seria transformado pelo caráter estético, teria a possibilidade de exercer sua ação moral. Agora, nesse homem estético, sua moralidade entra em sintonia com sua sensibilidade. Sendo o mundo da natureza, um mundo em que existe uma relação entre causa e efeito, necessário, enquanto a vontade do homem é livre, para que o homem exerça sua liberdade de forma plena, objetivamente, é preciso que o racional, que é livre, entre em acordo com o imutável, ou seja, com a natureza. É preciso uma educação dos impulsos sensíveis e morais, pois essas duas forças são as únicas capazes de levar o homem à ação. De acordo com Schiller: A razão terá feito o que pode ao encontrar e postular a lei; a realização depende da vontade corajosa e do vivo sentimento. Para que a verdade vença em sua luta com essas forças é preciso que ela mesma se torne, primeiramente, em força, e apresente como seu campeão no reino das aparências um impulso; pois impulsos são as únicas forças motoras no mundo sensível. (...) Nosso tempo é ilustrado (...), onde a causa de, ainda assim, continuarmos bárbaros? (...) Por não esta nas coisas, este algo que impede a compreensão da verdade, (...) deve estar no espírito dos homens23. A máxima ampliação do ser, portanto, é realizada quando o impulso formal domina e faz agir em nós o sujeito puro; as limitações desaparecem e o homem se transforma de unidade quantitativa, a que se vira restrito pelos sentidos carentes, em unidade ideal, que compreende todo o reino das aparências. Não mais estamos no tempo durante esta operação, mas é o tempo que está em nós com toda a sua sequência infinita. Não somos indivíduos, mas espécie; o juízo de todos os espíritos é pronunciado através do nosso, a escolha de todos os corações está representada em nossa ação24. Por conseguinte, o homem moderno tem que, por meio do caráter estético, onde razão e sensibilidade estão em uma harmonia, livre de conceitos, se elevar ao estatuto de homem integral. A liberdade ganha com Schiller objetividade. Pode-se perceber que a sua filosofia tem muitas características objetivas: não se limita a compreender, mas sim em transformar. Diferente de Kant, seu objetivo não era apenas a compreensão das estruturas, formas, métodos, mas sim, com base dessa compreensão, o que fazer para transformar a sociedade. Poeta e filósofo, teórico e prático, Schiller como teórico busca pensar e responder ao problema do belo e 23 24

Idem, pp.60 - 61. Idem, p.79.

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da liberdade, ambos relacionados ao caráter estético do homem; como prático tem a proposta de resolver o problema da fragmentação individual e social, por meio do estético, possibilitando, pela educação formadora, uniformidade entre racionalidade e sensibilidade, entre individualidade e o Estado. Nesse sentido, podemos identificar, na proposta da estética de Schiller, essa função social e política, pois, por meio de conceitos teóricos, encontra soluções práticas contra a degenerescência social. Como foi exposto anteriormente, da integralidade antropológica surge a solução para a fragmentação social. Mesmo tendo o homem descoberto quais são as máximas morais, de liberdade, universalidade e dever por dever, ainda assim falta ao homem moderno a capacidade de realizá-lo, pois lhe falta um apoio sensível, ou seja, de onde ele possa extrair a força necessária para executar o que foi anteriormente pensado. Por meio de uma educação estética, os impulsos sensíveis tornar-se-ão conformes com as máximas modernas de moralidade. Desse modo, surgirá a boa ação, proposta por Kant, por meio da ação bela que é a uniformidade na ação entre natureza e razão. Por meio da liberdade, de deixar a coisa mostrar-se por si mesma, perceberá o homem o belo, que o sensibilizará, de forma a integrar razão e impulsos sensíveis. Com base no que foi explicitado, pode-se agora compreender, de forma mais consistente, a proposta estética-política de Schiller, fundada na educação estética. Só o homem integral pode ser capaz de construir uma sociedade integral, pois apenas por meio de boas constituições não é possível que se tenha a paz social desejada. Enquanto o homem não estiver apto a seguir regras, impostas pelo Estado, seguir de forma livre por desejo próprio, racional e sensivelmente, a sociedade estará comprometida em conflitos sociais, imperando assim a tirania, e abusos da parte do Estado, assim como desrespeito a leis e insatisfações da parte individual. Conforme o exposto, Schiller argumenta na carta XXIII: A passagem do estado passivo da sensibilidade para o ativo do pensamento e do querer dá-se, portanto, somente pelo estado intermediário de liberdade estética, e embora este estado, por si mesmo, nada decida quanto a nossos conhecimentos e atitudes morais, deixando inteiramente problemático nosso valor intelectual e moral, ele é, ainda assim, a condição necessária sem a qual não chegaremos a conhecimentos e compromissos morais. (...) não existe maneira de fazer racional o homem sensível sem torná-lo antes, estético 25. É preciso transformar o homem, para que o homem modificado, pelo estético, possa assim substituir o Estado Natural pelo Estado Moral. Schiller transpõe a questão política, quase sempre voltada a reflexões acerca da constituição, sempre voltadas ao estado, para o homem. É preciso assim, como 25

Idem, p.119.

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o fez Copérnico com a natureza e Kant com a subjetividade, uma mudança de orientação, um novo olhar para as questões políticas. Esse novo olhar agora se reporta ao homem. Só o homem bem formado, sensivelmente e racionalmente, ou seja, só o homem estético, integral, pode transpor do âmbito teórico para o âmbito da prática as questões políticas e morais. As Cartas, portanto, inauguram esse novo olhar ao estético e sua função política. Poeta, filósofo, político, historiador, Schiller, com forte influência do pensamento kantiano no âmbito filosófico e de Goethe, seu amigo, que muito o influenciou no que diz respeito à sua arte, foi um dos casos raros de um teórico prático. Isso está em completo acordo com sua teoria da integralidade antropológica que pode ser alcançada pela cultura estética que, em seu caso particular, se deu mediante a sua própria iniciativa de dar fundamento à sua arte e, em segundo momento, de dar arte à sua filosofia.

REFERÊNCIAS CORDON, Navarro Manuel Juan. “Repensar a Schiller” in: SCHILLER, Johann Christoph Friedrich. Escritos sobre estética. Trad. esp. Manuel García Morente et al. Madri: Tecnos 1991. FRANZINI, Elio. A Estética do Século XVIII [1995]. Trad. port. Lisboa: Editora Estampa, 1999. SCHILLER, F. Cartas Sobre a Educação Estética da Humanidade [1795]. Trad. port. Roberto Schwarz. São Paulo: EPU, 1991. _________. Kallias ou Sobre a Beleza [1847]. Trad. br. Ricardo Barbosa. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

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O CRISTIANISMO COMO ANTINATUREZA E A DIALÉTICA DO RESSENTIMENTO EM SÓCRATES ANTONIO ROGÉRIO DA SILVA MOREIRA1

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Antonio Rogério da Silva Moreira é mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor efetivo da Secretaria de Educação do Estado do Ceará (SEDUC).

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O cristianismo como antinatureza e a dialética do ressentimento em Sócrates, pp. 12 - 22

Resumo: Pretende-se com esse artigo analisar e explicitar a crítica sobre a moral no pensamento de Nietzsche; sobretudo, à moral judaico-cristã diagnosticada como a moral do ressentimento. Para tanto, resolvemos lançar mão de sua interpretação sobre a moral a partir dos seus últimos escritos como a Genealogia da moral, Crepúsculo dos ídolos e O anticristo. Primeiramente apresentaremos o ressentimento como um tema de extrema relevância para a crítica nietzschiana sobre a moral cristã como conseqüência do judaísmo e a sua desnaturalização dos valores naturais. Em seguida discorreremos sobre a dialética socrática e sua relação direta com a moral do ressentimento que encerra uma direção única para as suas conclusões, e onde se elege o além, o eterno e o imutável como o único caminho para a felicidade do homem. Palavras-chave: Crítica. Moral. Nietzsche. Ressentimento.

Abstract: The aim of this article is to analyze and explain the criticism of morality in Nietzsche's thought, especially, the Judeo-Christian moral diagnosed as the moral resentment. As a result, we decided to make use of his interpretation of the moral taking into consideration his last writings, for example, On the Genealogy of Morals, Twilight of the Idols and The Antichrist. Firstly, we will present the resentment as a very relevant theme for the Nietzschean critique about the Christian morality as a consequence of Judaism and its denaturalization of natural values. Secondly, we will discuss the socratic dialectic and its direct relation to the moral resentment which ends in one direction to its conclusions. That elects the hereafter, the eternal, and the immutable as the only way to man’s happiness. Key-words: Criticism. Moral. Nietzsche. Resentment.

I – O ressentimento como antinatureza

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elemento central da filosofia de Nietzsche desde os primeiros escritos como O nascimento da tragédia até seus últimos escritos como o Crepúsculo dos ídolos e O Anticristo, sempre foi a crítica dos valores que perpassam a sociedade moderna a partir de Sócrates e Platão, tidos pelo o autor como os destruidores do espírito trágico da Grécia pré-socrática, até sua associação com os valores morais do cristianismo. Porém, é na Genealogia da Moral, obra publicada em 1877, que o tema do ressentimento associado à sua teoria da vontade de poder mostrar-se-á de fundamental importância não somente para o estudo sobre a origem (Ursprung) dos valores morais, mas de sua procedência (Herkunft); e, sobretudo, o valor dos valores morais.

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Quando se refere à Genealogia da moral no Ecce Homo, Nietzsche afirma que “a verdade da primeira dissertação é a psicologia do cristianismo: o nascimento do cristianismo do espírito do ressentimento, não, como se crê, do ‘espírito’ – um antimovimento em sua essência, a grande revolta contra a dominação dos valores nobres”. (NIETZSCHE, 1888, p, 97) Na obra, Nietzsche discorre sobre a participação ativa que o sacerdote judeu desempenha na constituição do universo escravo. Contudo, o que já se observa na Genealogia da Moral é a verdadeira “caricatura” do sacerdote cristão, aquele onde se apresenta a extensão natural do sacerdote judeu. Segundo o autor, a uma apreciação sobre a origem da moral escrava corresponde uma análise sobre a constituição da moral cristã, uma vez que os valores estabelecidos pela moral escrava correspondem aos mesmos valores do cristianismo. Sabe-se quem colheu a herança dessa tresvaloração judaica... A propósito da tremenda, desmesuradamente fatídica iniciativa que ofereceram os judeus, com essa mais radical das declarações de guerra, recordo a conclusão a que cheguei num outro momento (Além do Bem e do Mal, § 195) – de que com os judeus principia a revolta dos escravos na moral: aquela rebelião que tem atrás de si dois mil anos de história, e que hoje perdemos de vista, porque – foi vitoriosa....2 Segundo Nietzsche, é com o espírito do ressentimento judeu que principia a insurreição escrava na moral que depois de dois mil anos se tornou vitoriosa. Uma vitória difícil de ver, pois o longo é difícil de ver. E foi do tronco daquela árvore da vingança e do ódio que brotou um novo amor, o amor cristão. E é exatamente ele que declara guerra mortal ao homem superior, ao tipo forte, que nega todos os seus instintos naturais e depois de reprová-lo toma partido do fraco, do miserável, do decadente. Essa questão vai se tornar ainda mais clara em O Anticristo. Não se deve embelezar e ataviar o cristianismo: ele travou uma guerra de morte contra esse tipo mais elevado de homem, ele proscreveu todos os instintos mais fundamentais desse tipo, ele destilou desses instintos o mal, o homem mau – o ser forte como o tipicamente reprovável, o ‘réprobo’. O cristianismo tomou partido de tudo que é fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal aquilo que contraria os instintos de vida forte; corrompeu a própria razão das

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NIETZSCHE. Genealogia da moral, p. 26.

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naturezas mais fortes do espírito, ensinando-lhes a perceber como pecaminosos, como enganosos, como tentações os valores supremos do espírito.3 Para Nietzsche, o problema da origem do cristianismo só pode ser verdadeiramente compreendido se estabelecida a forma como ele se desenvolveu, a saber: a partir do instinto do ressentimento. Pois, embora possa nutrir sentimentos antijudaicos, o cristianismo é na sua realidade a mais grave conseqüência do judaísmo, “ele não é um movimento contra o instinto judeu, é sua própria consequência, uma inferência a mais em sua lógica apavorante”. (NIETZSCHE, 1888, p, 29) Nietzsche considera os judeus o povo mais extraordinário da história da humanidade, pois diante do problema do ser e do não-ser, o povo hebreu preferiu dizer sim ao ser. De forma bastante sinistra, diz ele, os judeus preferiram o ser “a qualquer preço”. E esse preço, nada mais era do que a falsificação de toda a realidade, de toda naturalidade, de toda força criativa, tanto do mundo interior como exterior. Para Nietzsche, a história de Israel é a mais rica em termos de desnaturalização dos valores naturais. Em sua origem, principalmente no tempo da realeza, Israel encontrava-se diante das coisas numa relação justa, quer dizer, numa relação natural com todas as coisas. O seu Javé era a consciência da manifestação de poder, alegria e esperança que esse povo tinha de si mesmo. Através dele esperava-se a vitória e a salvação. Com ele acreditava-se na natureza, que ela concederia tudo aquilo que é necessário para o povo: principalmente a chuva para a grande colheita. E como o Deus de Israel, Javé também era o Deus da Justiça, pois é assim que funciona a lógica de todo povo que tem o poder e a consciência desse poder. No entanto, essa época também teria o seu fim. Um triste fim ocasionado por determinados fatores históricos: a anarquia no interior; os assírios no exterior e aquele que seria o pior de todos os acontecimentos, a elevação da classe sacerdotal. Desde então, Javé teve sua concepção modificada, desnaturalizaram seu conceito. E foi a esse preço que ele se preservou. Javé, o Deus da Justiça, sinônimo de união com Israel, expressão de orgulho e autoconfiança de um povo tornara-se um deus constrangido, submetido a condições, um Deus submisso, sujeito a preceitos e normas morais.

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NIETZSCHE. O anticristo, p. 12.

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Seu conceito torna-se um instrumento nas mãos de agitadores sacerdotais, que passam a interpretar toda a felicidade como recompensa, toda infelicidade como castigo por desobediência a deus, como ‘pecado’: a mendacissíma maneira de interpretar uma suposta ‘ordem moral do mundo’, com a qual o conceito natural de ‘causa’ e ‘efeito’ é definitivamente virado de cabeça para baixo. Tendo eliminado do mundo, com a recompensa e a punição, a causalidade natural, necessita-se de uma causalidade antinatural: toda a restante inaturalidade segue-se então. Um deus que exige – no lugar de deus que ajuda, que encontra saídas, que é, no fundo, sinônimo de toda feliz inspiração de coragem e autoconfiança... a moral, na mais expressão das condições de vida e crescimento de um povo, não mais o seu mais básico instinto de vida, e sim tornada, antítese da vida – moral como assistemático aviltamento da fantasia, como ‘mau-olhado’ para todas as coisas. Que é moral judaica, que é moral cristã? O acaso despojado de sua inocência: a infelicidade manchada com o conceito de ‘pecado’; o sentir-se bem como perigo, como ‘tentação’, a indisposição fisiológica com o verme-consciência...4 O que os judeus fizeram foi dizer não à natureza. Demarcaram para si mesmos um limite contra todas as condições que até então um povo possuía para viver, e a partir daí criaram uma nova condição totalmente oposta às suas condições naturais. Eles puseram-se à parte, contrariamente a todas as condições nas quais era possível, era permitido um povo viver até então, eles criaram a partir de si mesmos um conceito oposto às condições naturais – eles inverteram, sucessivamente e de modo incurável, a religião, o culto, a moral, a história, a psicologia, tornando-os a contradição de seus valores naturais.5 Segundo Nietzsche, esse fenômeno pode ser encontrado e elevado a dimensões incalculáveis ainda que como uma cópia na Igreja cristã que, comparada ao “povo santo” carece de toda e qualquer originalidade. E é justamente por isso que o povo judeu é o mais funesto da história universal, já que em sua prolongada conseqüência eles contaminaram de tal modo a humanidade que, ainda hoje, o cristão pode apresentar sentimento antijudeu sem perceber que ele é na realidade a “derradeira consequência do judaísmo”. (NIETZSCHE, 1888, p. 29) Assim como o judeu, embora caricatural e sem originalidade, o que o cristianismo promove de maneira radical e de proporções incalculáveis é a desnaturalização dos valores naturais. “Somente depois de inventado o conceito de ‘natureza’, em oposição a ‘Deus’, ‘natural’ teve de ser 4 5

NIETZSCHE. O anticristo, p. 31. Idem, 29.

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igual a ‘reprovável’ – todo esse mundo fictício tem raízes no ódio ao natural (– a realidade!–), é a expressão de um profundo mal-estar com o real...”. (NIETZSCHE, 1888, p. 20) Para Nietzsche, o mundo moral e religioso cristão não passa de um mundo imaginário. E todo o universo de valores que o cerca é uma mera ficção. O que significa dizer, que é sempre por uma ficção que o homem do ressentimento promove a depreciação dos instintos expansivos e o arrefecimento do movimento ascendente da vida. Nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm algum ponto de contato com a realidade. Nada, senão causas imaginárias (‘Deus’, ‘alma’, ‘Eu’, ‘espírito’, ‘livre-arbítrio’ – ou também ‘cativo’); nada senão efeitos imaginários (‘pecado’, ‘salvação’, ‘graça’, ‘castigo’, ‘perdão dos pecados’). Um comércio entre seres imaginários (‘Deus’, ‘espírito’, ‘almas’), uma ciência natural imaginária (antropocêntrica; total ausência de causas naturais), uma psicologia imaginária (apenas mal-entendidos sobre si, interpretações de sentimentos gerais agradáveis – dos estados do nervus sympathicus, por exemplo – com ajuda da linguagem de sinais da idiossincrasia da moral-religiosa – ‘arrependimento’, ‘remorso’, ‘tentação do Demônio’, ‘presença de Deus’); uma teleologia imaginária (‘o reino de Deus’, ‘o Juízo Final”, “a vida eterna’). – Esse mundo de pura ficção diferencia-se do mundo sonhado, com enorme desvantagem sua, pelo fato de esse último refletir a realidade, enquanto ele falseia, desvaloriza e nega a realidade.6 Assim, como forma de dizer não a todo o movimento de aceleração e elevação da vida, ao seu mais puro desenvolvimento, ao poder, à beleza, à afirmação de si, o homem do ressentimento transfigurado em gênio criou para si um mundo transcendente, um mundo verdade, através do qual toda a afirmação e ascensão da vida fossem vistas como o mal em si, como tudo o que devia ser condenado.7 E é justamente nessa ficção, através dessa ficção que o instinto do ressentimento opera sua genialidade. “Para poder dizer Não a tudo o que constitui o movimento ascendente da vida, a tudo o que na Terra vingou, o poder, a beleza, a auto-afirmação, o instinto do ressentiment, aqui tornado gênio, teve de inventar um outro mundo, a partir do qual a afirmação da vida apareceu como o mau, como o condenável em si”. (NIETZSCHE, 1888, P. 29/30)

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NIETZSCHE. O anticristo, p. 20.

7 À ficção de um mundo transcendente em oposição à realidade, juntamente com um Deus em

contraposição à vida, Nietzsche interpõe o mundo ativo dos sonhos, pois enquanto este reflete pelo menos a realidade, aquele, para desvantagem sua, falseia, desvaloriza e nega tudo aquilo que realmente existe.

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O Homem do ressentimento é sagaz, diz Nietzsche. E a sagacidade do homem do ressentimento vai tão longe, que para sua autoconservação ele incorpora todos os instintos de decadência. Não que por eles se deixe dominar, mas simplesmente pela intenção de um poder que lhe permita se impor contra este mundo. O que o homem do ressentimento faz, é transformar em força a sua própria fraqueza, que por sua vez é tida como virtude. Determinado a ser fraco atribui valores positivos à renúncia, ao altruísmo, ao desinteresse e à compaixão. Incapacitado de agir em um mundo onde impera o conflito de forças, ele prefere forjar um outro mundo, um mundo de paz, supra-sensível, onde será privilegiado e terá um lugar de destaque. Dessa forma o homem do ressentimento transfigura conceitualmente a fraqueza em bondade, a submissão em humildade, a covardia em resignação, o tornar-se miserável em bemaventurado, o desejo de vingança em justiça divina, e assim por diante.

II - Sócrates e a dialética do ressentimento Segundo Nietzsche, a moral escrava para se fixar opera com um instrumento muito poderoso: a dialética. Nela, os juízos morais são separados e sob o efeito da sublimação logo são desnaturados, extirpados do mundo natural. Os grandes conceitos bem e mal afastados das qualidades que lhes pertencem tornam-se livres sob a forma de “ideias”, os elementos da dialética. Assim, procura-se para além deles uma verdade, que é tomada como um ser ou o símbolo desse ser, para depois se imaginar um mundo, um lugar no qual ele poderia ter se originado. É justamente nesse universo que reside a dialética. E é no seu subterrâneo que se forma o seu objeto, o ideal. E assim, o brilho do mundo grego é substituído pela escuridão do Além. E como opera o ideal na dialética? Opondo à interpretação aristocrática sua própria deturpação: ao contrário da imanência, a transcendência; no lugar do mundo sensível, o suprasensível; ao invés da inocência, a culpa. Ou seja, a dialética é a arma do ressentimento. Toda a produção do nobre grego é falsificada pelo escravo a partir de um esquema interpretativo oposto ao seu. Essa é a marca subterrânea do ideal. Negar e inverter a interpretação aristocrática. Tudo movido pelo ressentimento, pelo espírito de vingança a partir de imagens, de ficções. A única produção possível de ser realizada pelo escravo.

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Segundo Nietzsche, somente a partir da interpretação nobre é que o ideal tem sua operação realizada, pois ao reproduzir no transcendente suas próprias qualidades o nobre se reconhece nessa sua projeção. O Deus do nobre nunca é visto por este como um ser estranho a ele. Nem tampouco é associado a um esquema interpretativo que avalia e modifica aquilo que lhe é exterior. Bem diferente, portanto, do ressentido que representado pelos sacerdotes afasta Deus da natureza, rompendo com a imanência dos poderes defendida pelo aristocrata. Essa é a estratégia dos sacerdotes, negar a imanência para afirmar a transcendência. E o que é pior, os sacerdotes não só afastam o imanente do transcendente, como tratam de negá-lo, pois quando se trata da nossa vida: “esta (juntamente com aquilo a que pertence, ‘natureza’, ‘mundo’, toda a esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles colocada em relação com uma existência totalmente outra, a qual exclui, a qual se opõe, a menos que se volte contra si mesma, que negue a si mesma”.8 E como a união final de uma sequência produtiva, próprio de uma disposição bem definida de operações, o ideal se posta como efeito, como resultado da repressão. Como ficção o ideal é a única expressão possível da força reativa do ressentimento. E tal operação só pode ter como sentido a vingança, pois se vingando o escravo faz do ideal sua arma. No entanto, a ficção não é uma mera conseqüência, muito mais que isso, ela provoca uma guerra contra a aristocracia. Ao contrapor à interpretação nobre um novo caminho, o ideal revela a possibilidade de uma outra forma de vida, mas para isso é necessária uma grande aptidão para o convencimento. Daí sua relação com a interpretação aristocrática, pois para sua promoção o ideal necessita de ajuda para crescer. Essa ajuda vem da simulação, já que um ideal que pretende triunfar tende a se apoiar geralmente sobre uma suposição, sobre uma semelhança com os ideais já existentes e o seu poder dogmático, sobre a difamação dos ideais adversos. E além do mais, sobre uma falsa teoria de benefícios e vantagens que ela traz como: a felicidade, a paz, o conforto do espírito ou a ajuda de um Deus poderoso. Mas, é sobretudo a partir da concepção de transcendência, de um Deus ausente, que a vingança do ideal pode operar num terreno mais fértil. É acusando que o ressentimento pode enfraquecer os fortes, pois em todo o lugar onde se buscou culpados foi o espírito de vingança que os procurou. Esse espírito de vingança tomou posse de tal forma da história da humanidade que 8

NIETZSCHE. Genealogia da Moral, p. 106.

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todas as coisas e, acima de tudo a moral trazem até hoje a sua marca. O espírito de vingança nessa busca por culpados revela todo o rancor do homem do ressentimento. E foi Sócrates, diz Nietzsche, que pôs ao chão todo o universo inocente dos gregos: “Com Sócrates, o gosto grego se altera em favor da dialética: que acontece ai propriamente? Sobretudo, um gosto nobre é vencido; com a dialética a plebe se põe em cima”.9 Desde O Nascimento da Tragédia, Nietzsche já apontava Sócrates como o responsável pela alteração da interpretação aristocrática de sua época. “Eu percebi Sócrates e Platão como sintomas de declínio, como instrumentos da dissolução grega, com pseudogregos, antigregos”.10 Sócrates funda a transcendência em detrimento da imanência; no lugar da inocência ele introduz a culpa.11 E a dialética é a sua arma, com ela Sócrates substitui o caráter agonístico da vida por uma disputa onde sua vitória já é garantida. Sua ironia tem como oposição a inocência das paixões, e a sua força está exatamente na capacidade de transferir o agon do plano lúdico dos sentidos para o plano etéreo da razão. É a ironia de Sócrates uma expressão de revolta? De ressentimento plebeu? Goza ele, como oprimido, de sua própria ferocidade nas estocadas do silogismo? Vinga-se ele dos homens nobres a quem fascina? – Como dialético, tem-se um instrumento implacável nas mãos: pode-se fazer papel de tirano com ele; expõe-se o outro ao vencê-lo. O dialético deixa ao adversário a tarefa de provar que não é um idiota: ele torna furioso, torna ao mesmo tempo desamparado. O dialético tira a potência do intelecto do adversário. – Como? A dialética é apenas uma forma de vingança de Sócrates?12 Sócrates se vinga do nobre negando e invertendo suas qualidades. Com isso ele separa as características de suas bases, e afastadas de suas origens as qualidades tornam-se independentes. Livres, são modificadas e adaptadas aos padrões do homem comum, para em seguida voltarem-se contra aqueles a quem pertenciam. Mas é no cristianismo, diz Nietzsche, que a operação socrático-platônica atinge seu ápice. Nele, a culpa se estende por todos os lados, é por isso que “o 9

NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, p. 19. Idem, p. 18. 11 Segundo Deleuze, “Sócrates é o primeiro gênio da decadência: ele opõe a idéia à vida, julga a vida pela idéia, coloca a vida como devendo ser julgada, justificada, redimida pela idéia”. Deleuze. Nietzsche e a Filosofia, p. 9. 12 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, p. 20. 10

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cristianismo é platonismo para o povo”.13 Estruturas de uma mesma representação, coniventes com o declínio aristocrático, ambos identificam-se na forma como agem. Pois, se o cristianismo é a inversão da interpretação aristocrática, Sócrates é o seu precursor. Para Nietzsche, os verdadeiros gregos são somente os pré-socráticos, pois com Sócrates a história da aristocracia grega seria alterada. “Ele enxergou por trás de seus nobres atenienses; entendeu que seu próprio caso, sua idiossincrasia de caso já não era exceção. A mesma espécie de degenerescência já se preparava silenciosamente em toda parte: a velha Atenas caminhava para o fim”.14 Sócrates fascinou, e “ele fascinou ainda mais intensamente, está claro, como resposta, como solução, como aparência de cura para este caso”.15 E para Sócrates a cura estaria na razão. A racionalidade foi então tomada como salvação. Nem Sócrates nem seus enfermos tiveram outra saída senão ser racionais. O fanatismo com que toda a filosofia grega se apega à racionalidade revela, portanto, uma situação de necessidade. Estavam todos em perigo, e restava somente uma única alternativa: aceitar a derrota ou ser absurdamente racional. E assim como a dialética, todo o moralismo dos filósofos gregos a partir de Platão estaria patologicamente condicionado. A equação: “razão = virtude = felicidade”,16 significa unicamente que se deve fazer como Sócrates, ou seja, submeter os instintos obscuros à lucidez da razão. Por isso, “quando há necessidade de fazer da razão um tirano, como fez Sócrates, não deve ser pequeno o perigo de que uma outra coisa se faça tirano”.17 Todo o poder do ressentimento socrático, assim como o do cristianismo, está centrado na mesma forma de produção, a saber: não só no de opor um ideal à interpretação de mundo exclusiva dos nobres, mas de através dessa oposição imputar ao ideal um papel repressivo.

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NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal, p. 8 (prólogo). “Platão vai fundo, afinal: acho-o tão desviado dos instintos fundamentais dos helenos, tão impregnado de moral, tão cristão anteriormente ao cristianismo... Na grande fatalidade que foi o cristianismo, Platão é aquela ambigüidade e fascinação chamada de ‘ideal’, que possibilitou as naturezas mais nobres da antiguidade entenderem mal a si próprias e tomarem a ponte que levou à ‘cruz’... e quanto de Platão ainda se acha no conceito ‘Igreja’, na construção, no sistema, na prática da Igreja!...Platão é um covarde perante a realidade – portanto, refugia-se no ideal”. NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, p. 102/102. 14 Idem, p. 21. 15 Idem. 16 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, p. 22. 17 Idem, p. 21.

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Em resumo, diz Nietzsche, “Sócrates foi um mal-entendido: toda a moral do aperfeiçoamento, também a cristã, foi um mal-entendido...”.18 E, se no ideal Sócrates manifesta todo o seu ressentimento; no cristianismo o ressentimento se revela na idéia de Deus.

REFERÊNCIAS NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. Trad. Paulo César de Sousa. 9ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 179 p. NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. Trad. Paulo César de Sousa. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 169 p. NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo César de Sousa. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 271 p. NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Sousa. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 154 p. NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Trad. Paulo César de Sousa. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 153 p. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Trad. Edmundo F. Dias e Ruth J. Dias. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. 90 p.

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Idem, p, 22

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CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS À LUZ DE ECCE HOMO: BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA AUTOINTERPRETAÇÃO DE NIETZSCHE ÁTILA B. MONTEIRO1

Mestre e Doutorando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará – UFC. E-mail: atilabmonteiro@gmail.com

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Resumo: O presente artigo tem por objetivo fornecer algumas considerações acerca da autointerpretação de Nietzsche presente em Ecce Homo (1888) acerca de uma de suas últimas obras, a saber, o Crepúsculo dos Ídolos, redigida no mesmo ano. Procurarei me deter na análise do pequeno capítulo que trata deste escrito, na tentativa de entender o significado que o filósofo atribui a ele, como ele o entendia no contexto do conjunto de sua obra, as suas motivações ao escrevê-lo, bem como avaliar aquilo que é considerado exagero por parte do filósofo em sua autointerpretação. Pretendo evidenciar que para além de fruto de uma suposta megalomania e loucura do autor, Ecce Homo representa muito mais um exercício da performance nietzschiana na direção da “transvaloração de todos os valores”. Palavras-chave: Nietzsche; Crepúsculo dos ídolos; Ecce Homo; Autointerpretação

Abstract: This paper aims to provide some considerations about the Nietzsche’s selfinterpretation in Ecce Homo (1888) about one of his last works, namely, the Twilight of the Idols, written in the same year. I perform an analysis of the small chapter which speaks about this writing, in an attempt to understand the meaning that the philosopher attributes to it, as he understood the set of his work context, their motivations to write it, and evaluate it which is considered exaggerated by the philosopher in his self-interpretation. I intend to show that in addition to the result of an alleged megalomania and madness of the author, Ecce Homo is more an exercise of Nietzsche's performance toward the "revaluation of all values." Keywords: Nietzsche; Twilight of the Idols; Ecce Homo; Self-interpretation

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omo se sabe, o último ano lúcido de Nietzsche foi bastante fecundo do ponto de vista de sua produção filosófica. Em apenas um ano vieram à luz quatro escritos substanciais: O Caso Wagner, Crepúsculo dos ídolos, Anticristo e Ecce Homo. Este último uma espécie de autobiografia intelectual e um exercício de autointerpretação. No entanto, por mais substanciais que sejam, tais escritos não desenvolvem novas ideias, antes, esclarecem, reformulam, aguçam, reapresentam e exploram ideias já conhecidas. Todavia, não deixa de ser bastante interessante a reapresentação desses temas e principalmente a tentativa do próprio Nietzsche de torná-los mais claros e acessíveis. Em uma carta a Naumann, editor de suas obras deste período, por exemplo, Nietzsche afirma acerca do manuscrito de Crepúsculo dos Ídolos que acabara de enviar: “Este texto, cuja extensão não é considerável, talvez tenha igualmente o efeito

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de abrir os ouvidos para mim”2. E justamente em um período onde seu nome começa a ganhar certa notoriedade: na Suíça aparece o primeiro ensaio sobre o conjunto de sua obra; em Copenhague, Georg Brandes faz conferência sobre ele e Assim Falava Zaratustra é traduzido para o francês. Curiosamente um dos últimos escritos de Nietzsche é sua própria biografia intelectual. Se “toda grande filosofia” é “a confissão pessoal de seu autor” (BM, I, §6), como nos diz o filósofo, não seria diferente para ele. Porém, é ele próprio quem se põe a interpretar a si mesmo. Não queria ser confundido. Não queria que o confundissem com suas obras. Mas, mais do que isso, Ecce Homo parece ser para Nietzsche o fruto de sua vitória sobre si mesmo, de sua maior autosuperação até aquele momento, da aceitação e afirmação de tudo o que foi. A despeito dos elogios que faz a si mesmo e do constante gabar-se em ser “sábio” e “esperto”, é inegável (e talvez por isso mesmo) que tal obra é fruto de um verdadeiro sentimento de poder, para usar sua linguagem. A sagacidade de seus instintos o levou, como ele próprio afirma3, a escolher sempre as melhores condições (lugar, clima, alimentação) que possibilitaram configurações de impulsos e afetos em uma hierarquia ordenada, orgânica e coesa; bem como um “afeto de comando” capaz de tirar, em determinados momentos, as máximas consequências do acúmulo de poder. Cada uma das obras deste período é, assim, um reflexo de seu(s) estado(s) de espírito, de um direcionamento de seus afetos, de uma organização instintiva capaz de ser canalizada e sublimada em palavras e ideias. Como se sabe, desde Zaratustra Nietzsche entende que o corpo, ou seja, “a grande razão” é a instância onde ocorrem todos os processos fundamentais que normalmente são atribuídos à consciência, ou ao intelecto (a “pequena razão”)4. É o corpo “quem” sente, “quem” quer, “quem” escolhe; mediante a constante e interminável disputa dos instintos e afetos por mais poder. Do resultado parcial da batalha sai o vencedor, ainda que temporário, que determina o “afeto de comando” capaz de abarcar a multiplicidade em disputa, impor a ela uma forma e dar a ela um direcionamento. A consciência (pequena razão) apenas se identifica com o “afeto de comando” simpaticamente por desfrutar do prazer em ordenar (inclinação ao sentimento de domínio), acreditando ser a “causa” de tal ação ou escolha. Assim, Nietzsche concebe o Carta de Nietzsche a C. G. Naumann, em Sils-Maria, a 07 de setembro de 1888. (Cf. Apêndice à tradução brasileira da obra Crepúsculo dos Ídolos que utilizamos neste trabalho). 3 Cf. EH, Por que sou tão sábio, §2 4 Cf. ZA, I, Dos desprezadores do corpo. 2

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sujeito como o resultado sempre variável de uma multiplicidade afetiva que se configura de formas determinadas, nunca como algo estável e estático5. Nesse sentido, todas as escolhas que fazemos já são sempre “pré-escolhidas”, prédeterminadas pelo nosso corpo, nossos instintos e afetos, que enquanto tais sempre aspiram ao aumento do sentimento de poder. É justamente em Ecce Homo que o filósofo irá tirar as últimas consequências desta ideia. Fazendo jus a sua hipótese interpretativa, Nietzsche irá compreender a si mesmo conforme uma multiplicidade de sujeitos que aqui e ali se condensam em ideias e livros. É nesse sentido que se interpreta como “sábio”, pois percebe que a despeito do constante estado fisicamente doentio que experimentava, “instintivamente” ele sempre escolhera “os remédios certos contra os estados ruins” (EH, ‘Por que sou tão sábio’, §2), ou seja, sua “grande razão” sempre escolheu as melhores condições para si, as condições em que pudesse expandir o seu poder e se autosuperar – o que prova, a seu ver, que é um indivíduo saudável, ao contrário do decadente que sempre escolhe o pior para si – e isso se reflete em seus escritos. Desta forma, o filósofo passa a explorar dimensões que outrora não tinham tanta importância (ou mesmo nenhuma) para as teorias filosóficas, tais como a escolha de alimentação, clima, lugar e distração6. Tais dimensões são obviamente condições inevitáveis para o desenvolvimento e subsistência do corpo, mas são também meios que proporcionam o aumento do sentimento de poder. As escolhas feitas neste campo são determinantes para o corpo e consequentemente para a consciência, para as ideias, para as interpretações. Um organismo saudável é aquele que escolhe para si as melhores condições para sobreviver e também se expandir e dominar. Quando é o contrário que ocorre, ou seja, quando um organismo escolhe para si apenas o que é prejudicial, é o que Nietzsche chama de decadência (decadénce), isto é, tais escolhas são sintomas de uma desordem e anarquia dos instintos, de uma falta de força organizadora destes, em que não conseguem formar um todo coeso e orgânico, onde os impulso e afetos desregrados se tornam uma ameaça ao todo. Para não sucumbir são escolhidos os meios mais prejudiciais ao organismo com a finalidade de reduzir a energia e a intensidade dos impulsos, enfraquecendo-os ou mesmo extirpando determinados afetos como medida desesperada para continuar persistindo, como medida de autopreservação. Cf. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche: sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia. Segundo o autor, Nietzsche entendia o “indivíduo” como: “incessante transformação-de-si. A transformação realiza-se ‘fundamentalmente’: não resta no fundo nada de permanente, a partir do qual ela acontece. Por essa concepção, o ‘indivíduo’ dissolve-se num sem-número de ‘indivíduos’ que infinitas vezes se sucedem em ínfimos instantes.” (p. 50) 6 Cf. EH, Por que sou tão inteligente, §10. 5

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Tendo em vista a multiplicidade que é, Nietzsche passa, então, a reler ou reinterpretar todas as suas obras e assim procura dar uma nova significação ao seu percurso filosófico. Parece querer acertar contas com o seu passado, aceitar tudo o que foi e dizer para si mesmo “assim eu quis”7. Não entrarei em detalhes acerca da interpretação de todas as obras, mas apenas de Crepúsculo dos Ídolos. Procurarei analisar o pequeno capítulo que trata deste escrito, na tentativa de entender o significado que o filósofo atribui a ele, como ele o entendia no contexto do conjunto de sua obra, as suas motivações ao escrevê-lo, bem como avaliar aquilo que é considerado exagero por parte do filósofo em sua autointerpretação.

II A obra Crepúsculo dos Ídolos ou como se filosofa com o martelo, inicialmente com o estranho e até bondoso título de “ociosidade de um psicólogo” foi escrita entre agosto e setembro de 1888, em Sils-Maria (nos Alpes Suiços), logo depois de O Caso Wagner; sendo este, de acordo com o próprio Nietzsche, “quanto à apresentação, um perfeito irmão gêmeo”8 daquele. É perceptível que não apenas estas duas obras, mas também as outras duas posteriores compartilham de uma certa “atmosfera”, a despeito de suas especificidades. Alguns temas se repetem ou são abordados de formas distintas, além do problema da decadénce que perpassa todos os escritos de 88. Além disso, neste período o filósofo planejava publicar uma obra intitulada de “Transvaloração de todos os valores”, ou seja, havia uma preocupação maior que perpassava todas as obras do período. Vejamos, então, como Nietzsche descreve a obra: Esse escrito que não chega a cento e cinquenta páginas, fatal e alegre no tom, um demônio que ri – obra de tão poucos dias que hesito em dizer seu número, é a exceção entre os livros: nada existe de mais substancial, mais independente, mais demolidor – de mais malvado. Querendo-se rapidamente fazer uma ideia de como antes de mim tudo estava de cabeça para baixo, comece-se por este livro. O que no título se chama ídolo é

Cf. EH, Por que sou tão inteligente, §10, onde afirma: “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o necessário – mas amá-lo...” 8 Carta de Nietzsche a C. G. Naumann, em Sils-Maria, a 07 de setembro de 1888. (Cf. Apêndice à tradução brasileira da obra Crepúsculo dos Ídolos que utilizamos neste trabalho). 7

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simplesmente o que até agora se denominou verdade. Crepúsculo dos Ídolos – leia-se: adeus à velha verdade... (EH, ‘Crepúsculo dos ídolos’, §1)

O primeiro ponto que quero comentar é a intrigante afirmação de que esta obra é a “exceção entre os livros”, a mais “substancial”, “independente”. É evidente que obras como Além do Bem e do Mal, Genealogia da Moral ou Assim Falava Zaratustra, possuem uma densidade e substancialidade considerável no conjunto da obra do filósofo, tanto que é impossível mensurar a importância de alguma com relação às outras. É certo que no Crepúsculo dos Ídolos, alguns temas são repensados, reformulados, mas nada que faça esta obra parecer mais “completa” que as outras. Por outro lado, se entendermos que é o Nietzsche de Ecce Homo quem faz essa afirmação, ou seja, no contexto de sua autobiografia, talvez a intensidade da afirmação seja amenizada, pois podemos entendê-la como fruto de uma radical autoafirmação de seus “eus” anteriores (ou seja, suas obras) em que sua vontade é a de dourar e divinizar cada um deles, e em virtude disso, acaba por exagerar ao descrevê-los. Ou ainda, pode-se entender que Nietzsche pensava ter conseguido abarcar com esta obra os sentidos e as perspectivas das outras e ter lhes dado um novo desenvolvimento, focando em alguns aspectos que se tornaram essenciais e que não foram explorados o suficiente. Eu prefiro esta última via, pois podemos argumentar que vários temas abordados desde Além do Bem e do Mal são retomados em Crepúsculo e reformulados, sintetizados e/ou aprimorados. Por exemplo, no capítulo “A ‘razão’ na filosofia”, onde Nietzsche retoma a discussão sobre a metafísica, bem como as críticas as noções de “incondicionado”, “substância”, “consciência” ou mesmo “verdade” e esclarece como as entende a partir de análises psicológicas e do que ele chama de “metafísica da linguagem”. Desta forma, afirma que a idiossincrasia dos filósofos: a “falta de sentido histórico, seu ódio à noção mesma do vir-a-ser” (CI, ‘A razão na filosofia’, §1), que procura tudo eternizar e des-historicizar, é fruto de um erro condicionado pela linguagem. Conforme o trecho que se segue: A linguagem pertence, por sua origem, à época da mais rudimentar forma de psicologia: penetramos um âmbito de cru fetichismo, ao trazermos à consciência os pressupostos básicos da metafísica da linguagem, isto é, da razão. É isso que em toda parte vê agentes e atos: acredita na vontade como causa; acredita no “Eu”, no Eu como ser, no Eu como substância, e projeta a crença no Eu-substância em todas as coisas – apenas então cria o conceito de “coisa”... Em toda parte o ser é 28 no

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acrescentado pelo pensamento como causa, introduzido furtivamente; apenas da concepção “Eu” se segue, como derivado, o conceito de “ser”... (CI, A ‘razão’ na filosofia, §5)

Ou seja, a ideia de que tanto o “eu-substância” (sujeito, indivíduo) quanto o conceito de coisa, de onde provém a ideia de substância, são ilusões do intelecto, falsificações do efetivo, que por sua vez são frutos de uma “sedução da linguagem”. Assim, em função da gramática, cujas regras impõem a composição de nossa linguagem sempre em termos de “sujeitos” e “predicados”, somos impelidos a ver/entender todo acontecimento de forma causal, isto é, pressupondo um agente por trás de toda ação. Da mesma forma, a partir do desenvolvimento da linguagem, e também da consciência, somos levados a crer em uma “unidade interior” em nós, em um eu fixo, ou num substrato neutro (agente) que é causa de todas as nossas escolhas, ações, vontades, etc. Posteriormente, projetamos essa mesma crença nas coisas, acreditando haver uma substância imutável por detrás daquilo que muda, em um ser que é sua causa. Esses são os pressupostos, no entender de Nietzsche, de toda metafísica. É a partir disso que se pode entender a ideia de Deus, por exemplo, pois ao tirar as últimas consequências da crença na fixidez, ou seja, na substância, o homem é impelido a hipostasiar uma entidade eterna e imutável, totalmente para além do mundo, que garante o sentido e a ordenação deste. Desta forma, o filósofo conclui que: “não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática...” (CI, A “razão” na filosofia, §5). Tais análises já estavam presentes em alguns aforismos de Além do Bem e do ou mesmo de modo esparso na Genealogia da Moral10, ou ainda de forma mais poética em Zaratustra11, ou até mesmo de forma “embrionária”, digamos, em Humano, Demasiado Humano12. No entanto, em Crepúsculo elas parecem mais articuladas e apresentadas de forma mais clara. Tanto que ele chega a enunciar quatro teses para resumir sua visão13. Mal9,

Outro exemplo seriam os capítulo “Os ‘melhoradores’ da humanidade” e “moral como antinatureza”, em que Nietzsche retoma de forma sucinta a discussão sobre a moral, tal como fora elaborada em sua Genealogia da Moral, porém com uma outra sensibilidade que o permite formular criativamente e de novas formas as mesmas ideias. Por exemplo, ao expor em poucas palavras no que consiste seu método:

Cf. BM, I, §12, §16, §17, §19, §20 Cf. GM, I, §13 11 Cf. Za, I, Dos desprezadores do corpo. 12 Cf. HH I, §11 13 Cf. CI, A “razão” na filosofia, §6 9

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Moral é apenas uma interpretação de determinados fenômenos, mais precisamente, uma má interpretação. [...] Portanto, o julgamento moral nunca deve ser tomado ao pé da letra: assim ele constitui apenas contra-senso. Mas como semiótica é inestimável: revela, ao menos para os que sabem, as mais valiosas realidades das culturas e interioridades que não sabiam o bastante para “compreenderem” a si próprias. Moral é apenas linguagem de signos, sintomatologia: é preciso saber antes de que se trata, para dela tirar proveito. (CI, melhoradores da humanidade, 1) Embora esse procedimento já figurasse na Genealogia da Moral, ele não fora, a meu ver, explicitado com a clareza que aparece em Crepúsculo. Pelo contrário, fora tomado como pressuposto das análises presentes naquela obra. Assim, só podemos entendê-lo (o procedimento), no contexto da Genealogia, a partir de sua aplicação; enquanto que em Crepúsculo o procedimento está formulado de modo a dar clareza ao processo de análise por meio do qual aquela obra fora elaborada. É claro que na Genealogia Nietzsche não se furta a explicitar o seu objetivo, e assim o enuncia: “necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão – para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram [...]” (GM, prólogo, §6). Aqui Nietzsche colocava o problema em termos de um questionamento do “valor dos valores” e dava pistas sobre o que queria falar, mas, no meu entender, não desenvolvia muito do ponto de vista de uma formulação mais ou menos precisa de seu procedimento. No caso de Crepúsculo, me parece que o filósofo já está mais cônscio de seus objetivos e de seus métodos e nos fornece uma formulação mais adequada destes. As críticas aos alemães presentes de modo esparso em quase todos os escritos também estão nesta obra elaboradas em um capítulo. Enfim, praticamente todos os temas que assediavam a consciência de Nietzsche até aquele momento ganharam uma nova leitura nesta obra. Esses são apenas alguns exemplos, há vários outros. A meu ver, o que aparece em Crepúsculo com relação a este ponto é, aplicando o próprio autor a ele mesmo, talvez um Nietzsche que foi capaz de compreender melhor a si mesmo (aos outros “eus”, ou obras) e mais uma vez ordenar a multiplicidade, e num ato de autossuperação foi capaz de impor uma forma ao todo, ou seja, condensar aqueles velhos pensamentos de forma coesa e em novas cores. Talvez por isso, pode-se dizer que esse escrito seja tão substancial e independente.

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O segundo ponto que quero comentar, é a parte em que Nietzsche diz que a obra é “demolidora” e “malvada”. De fato, se o filósofo já declarara guerra à moral, à metafísica, ao cristianismo e à filosofia da tradição; nesta obra não seria diferente. O próprio titulo já revela de cara o caráter belicoso da obra. Longas vivências com estes problemas o tornaram muito mais capaz de enfrentá-los, já que é o próprio quem afirma que aquilo que não mata, fortalece14, é nítido que dessas vivências saiu fortalecido. Por isso, talvez, tenha sido capaz de perceber que antes dele “tudo estava de cabeça para baixo”15. Nesse ponto os capítulos que citei anteriormente exemplificam perfeitamente essa característica. Mas é importante ressaltar que a “guerra” por ele proposta não tem como finalidade a simples destruição e aniquilação. Se leva ao niilismo é para dele sair. Não se propõe meramente a fazer críticas em nome de um irracionalismo. E se o faz é em nome da própria razão, mas de uma racionalidade sadia e não decadente, uma racionalidade que não extirpe ou enfraqueça os instintos, com o intuito de lembrar que apesar de racional o homem é também animal, e que tudo o que negue esse lado animal, instintivo, nega assim a própria vida. Se declara guerra contra a moral é porque a identifica como algo danoso à própria vida. Assim, podemos ler em Crepúsculo dos ídolos: Darei formulação a um princípio. Todo naturalismo na moral, ou seja, toda moral sadia, é dominado por um instinto da vida – algum mandamento da vida é preenchido por determinado cânon de “deves” e “não deves”, algum impedimento e hostilidade no caminho da vida é assim afastado. A moral antinatural, ou seja, quase toda moral até hoje ensinada, venerada e pregada, volta-se, pelo contrário, justamente contra os instintos da vida – é uma condenação, ora secreta, ora ruidosa e insolente, desses instintos. (CI, “moral como antinatureza”, 4) E assim, os ídolos aprendem a “ter pés de barro” e recebem os mais fatais golpes das marteladas nietzschianas. As velhas verdades se desfazem. E agora? Pode-se questionar. Restará apenas o vazio? A falta de sentido, o niilismo? Para um decadente essa pode ser a resposta mais provável, não para Nietzsche. A seu ver, um maravilhoso horizonte se abre, inexplorado, aberto a todas as experimentações e aventuras do espírito. A esse propósito, convém trazer uma importante observação de Oswaldo Giacoia, acerca da obra: Crepúsculo dos Ídolos não é apenas um compêndio da filosofia de Nietzsche, inserido no projeto filosófico concebido com vistas à 14 15

Cf. CI, Máximas e flechas, §8 Cf. EH, ‘Crepúsculo dos ídolos’, §1

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publicação de A Vontade de Poder; não se trata apenas de ‘artilharia pesada’, salvas de canhão prenunciando o advento que inaugura uma nova era do mundo – um livro escrito com o fim especial de ajudar na apresentação ao público de seu autor, até então praticamente desconhecido, cuja obra, no entanto, daria início a uma nova contagem do tempo. Crepúsculo dos Ídolos é, antes de tudo, um livro performático, um efetivo exercício de Umwertung der Werte.16

Ou seja, para além da “artilharia pesada”, esta obra pode ser considerada tanto uma apresentação de sua filosofia, quanto uma oportunidade de ver o filósofo “em ação”, isto é, um exemplo da “performance” de Nietzsche no exercício do que ele próprio chama de “transvaloração de todos os valores”, que é a outra face da crítica nietzschiana, como dissemos acima. A transvaloração nietzschiana seria responsável pela inauguração de uma nova era do mundo, de uma superação da moral decadente. Pelo menos o filósofo parecia acreditar nisso, e pelas palavras, parece que Giacoia também. Se é o caso ou não, não tenho como afirmar, e, contudo, seria necessária outra reflexão que se detivesse apenas nisso para tentar chegar a alguma conclusão. Entretanto, nada disso nos impede de falar a respeito do exercício filosófico de Nietzsche na tentativa de transvalorar todos os valores. A este propósito, podemos cotejar essa afirmação de Giacoia, com uma passagem do capítulo “Os quatro grandes erros”, de Crepúsculo dos ídolos, a título de exemplificação da “performance” de Nietzsche: A fórmula geral que se encontra na base de toda moral e religião é: “Faça isso e aquilo, não faça isso e aquilo – assim será feliz! Caso contrário...”. Toda moral, toda religião é esse imperativo – eu o denomino o grande pecado original da razão, a desrazão imortal. Em minha boca essa fórmula se converte no seu oposto – primeiro exemplo de minha “tresvaloração de todos os valores” (CI, Os quatro grandes erros, §2)

Ou seja, trata-se de subverter as formas tradicionais de pensamento/avaliação que tem por base preconceitos morais e religiosos, ultrapassando velhas dicotomias e valores que expressam uma espécie de ódio à vida e aos instintos. Não se limitando a inverter os polos de uma “oposição fundamental”, a pretensão de Nietzsche se torna superar essa forma de pensar GIACOIA, Oswaldo. Teses sobre a Ordenação Ética do Mundo e sua Transvaloração. Revista etic@, Florianópolis, v. 11, nº 2, p. 129-144, julho de 2012.

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“binária”, navegando para além de bem e mal em busca de uma forma de vida guiada por valores que sejam frutos de uma afirmação incondicional da existência, dos instintos e da efetividade em todas as suas contradições. Trata-se de uma busca do que Nietzsche denomina de “grande saúde”, onde o corpo, a grande razão, não seja vampirizado por valores hostis à vida, mas sim que seja guiado por valores que possam lhe proporcionar meios para sua expansão e vitalidade. Entendo que é uma descrição/explicação bastante resumida, mas uma apreciação pormenorizada do que Nietzsche entende por “transvaloração dos valores” está fora dos propósitos e dos limites deste trabalho. Assim, continuarei a desenvolver o propósito inicial. Prosseguindo em sua descrição de Crepúsculo dos Ídolos, o filósofo declara: Não existe realidade, “idealidade”, que não seja tocada nesse escrito [...]. Não só os ídolos eternos, também os mais jovens, portanto mais senis. As “ideias modernas”, por exemplo. Um vento forte sopra entre as árvores, e em toda parte caem frutos – verdades. Há o desperdício de um outono demasiado rico: tropeça-se em verdades, esmaga-se algumas com o pé – são tantas... Mas o que se recebe nas mãos nada mais tem de questionável, são decisões. Eu sou o primeiro a ter em mãos o metro para “verdade”, o primeiro a poder decidir. Como se em mim houvesse brotado uma segunda consciência, como se em mim “a vontade” houvesse acendido uma luz sobre o declive pelo qual até então seguia... O declive – chamavam-no o “caminho à verdade”... Acabou-se todo “impulso obscuro”, o homem bom precisamente era o que menos consciência tinha do caminho reto. E, em toda a seriedade, ninguém antes de mim conhecia o caminho reto, o caminho para cima: apenas a partir de mim há novamente esperanças, tarefas, caminhos a traçar para a cultura – eu sou o seu alegre mensageiro... Exatamente por isso sou também um destino. – (EH, Crepúsculo dos ídolos, §2)

Além de Oswaldo Giacoia, Werner Stegmaier, outro conhecido estudioso da obra de Nietzsche, parece concordar em parte com essa visão. Em um artigo intitulado “A Nova Determinação de Nietzsche da Verdade”17, Stegmaier apresenta a posição de Nietzsche, a partir de suas críticas à metafísica e as STEGMAIER, Werner. A nova determinação de Nietzsche da verdade. In: Linhas Fundamentais do Pensamento de Nietzsche.

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noções a ela correlatas, como um divisor de águas para o debate contemporâneo sobre a verdade e o conhecimento, muito embora ele próprio não tenha elaborado uma nova teoria da verdade, pois isso parecia não interessá-lo. Ainda assim, as críticas e reflexões de Nietzsche modificaram a “margem de manobra” para toda reflexão futura. Em outras palavras, no entender de Stegmaier, Nietzsche “limpou o terreno” da filosofia se livrando das ervas-daninha da metafísica e ao mesmo tempo dificultou as possibilidades de um ressurgimento das mesmas; preparando, assim, este território para novas aventuras do pensamento. Mas parece óbvio que Nietzsche não deixou de jogar suas sementes. Nesse sentido, podemos entender, então, quando o filósofo nos fala que o que recebe de suas descobertas são decisões. Não se tem nada pronto, uma teoria, uma verdade absoluta, nada é dado. É preciso tomar uma decisão, abandonar os velhos ídolos, declarar guerra a eles e ao mesmo tempo se utilizar deles para se superar. Não tendo outra escolha senão a de se impor, derrubando ídolos que, sucumbindo, levam consigo toda a velha medida para a verdade, Nietzsche se vê diante de um novo horizonte, infinito e inexplorado. Assim, talvez não seja exagero falar em ser o “primeiro a ter em mãos o metro para a verdade”, pois com sua nova determinação ele mudou radicalmente os fundamentos da filosofia. Ora, é nítido que para contemporaneidade Nietzsche foi um divisor de águas, tendo exercido influência sobre os mais diversos filósofos e áreas. No entanto, seu alcance e efeito sobre as correntes “dominantes” do século XX (hermenêutica, filosofia da linguagem, fenomenologia, filosofia da ciência, etc) foi bastante limitado ou não reconhecido. Em parte por falta de uma ordenação clara de suas ideias, em parte por apropriações ideológicas que dificultaram o interesse de muitos. Pode-se dizer que em sua interpretação de si mesmo há exageros? A meu ver, Ecce Homo, assim como todos os livros de 1888, é também uma “performance transvalorativa”, ou seja, um exercício de sua “transvaloração dos valores” modernos, e neste caso em que se questiona os possíveis exageros, eu aponto para um valor em especial: a humildade. Típico valor cristão, considerado um valor moral superior, a humildade é um valor pregado por todas e para todas as pessoas “de bem”. Deve-se sempre apresentar-se com humildade, pois ninguém deve querer ser superior a ninguém, diz-se. No entanto, o que Nietzsche nos mostrou diversas vezes é que entre valores ditos contrários há mais proximidade do que se imagina e que não há oposição necessária18. E em suas análises psicológicas nos faz ver que muitas vezes 18

Cf., por exemplo: BM, I, §2

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aquele que prega um valor é movido pela intenção de um valor contrário. A partir disso, podemos dizer que pode-se ser arrogante pregando a humildade, ou pode-se ser humilde a partir de um sentimento de soberba. As relações entre os valores se desestabilizam. Com isso, Nietzsche subverte a moral tradicional ao se expor explicitamente sem humildade, imodesto, reconhecendo ele próprio suas qualidades e se regozijando por tê-las. É um efetivo exercício de “transvaloração”, pois essa forma de se apresentar vai de encontro com formas tradicionais de pensamento enraizadas em preconceitos morais e religiosos, tanto que até mesmo nos dias de hoje causa alguma reação negativa ou de reprovação por parte de muitos, fazendo aflorar os moralismos. Inclino-me a pensar que este seria um dos objetivos do filósofo ao escrever Ecce Homo exatamente neste tom: expor a “moralina” que subjaz as entranhas de todos os seus críticos. Além disso, devemos observar em que contexto Nietzsche escreve tais coisas que são consideradas exageradas ou megalomaníacas. Se partirmos da visão que temos hoje do filósofo, com todo o reconhecimento que há em torno de seu nome, com toda sua “fama” de filósofo “pop”, possivelmente concordaríamos com tais opiniões e vê-lo-íamos como um arrogante e presunçoso. No entanto, é preciso enxergar um pouco mais e entender que Nietzsche gozava de pouquíssimo reconhecimento entre os intelectuais19 e se angustiava bastante por isso. Também ele queria que sua filosofia fosse ouvida, lida, discutida; também ele queria dominar por meio dela. Porém, sempre fracassara ao tentar ser ouvido pelos seus contemporâneos, apesar de ser plenamente cônscio da substancialidade, qualidade, importância e inovação de sua filosofia, o que agravava ainda mais a situação e o deixava completamente desolado. Podemos entender então que o filósofo fizera a si próprio os elogios que sempre esperou e nunca ouviu de ninguém, além de uma autoafirmação incondicional da importância de tudo o que tinha sido e escrito, mesmo que não tivesse sido (ainda) ouvido ou entendido. Longe de ser uma idolatria, o objetivo deste trabalho nunca foi tornar Nietzsche um ídolo; se ele mesmo era quem os destruía, com certeza nunca quisera ser um. Assim, não é porque não considero exageradas as colocações do filósofo sobre si mesmo que concordo com elas, ou que as considero verdades absolutas, ou que afirmo sub-repticiamente todas elas. Entendo apenas que é preciso vê-las como parte do argumento e da retórica próprios ao filósofo, antes de simplesmente as reprovar como fruto de loucura ou de arrogância, Os maiores acontecimentos neste campo foram o que citamos no início deste trabalho, que não chegaram a fazer de Nietzsche um filósofo reconhecido em seu tempo.

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enclausurando o pensamento por tomá-las como verdades. Assim como as vejo, elas parecem ser bem mais produtivas e potentes, dando o que pensar; algo que vai, pelo menos me parece, ao encontro dos interesses mais íntimos de Nietzsche. E então, reponho a pergunta: podemos dizer que há exageros em sua interpretação de si mesmo? Ninguém melhor que Nietzsche para descrever sua própria filosofia, sua obra, sua tarefa. Sua filosofia teve força, potência e atrevimento para questionar uma tradição de mais de 2000 anos. Se foi ouvido ou não, será que podemos culpá-lo? Aliás, terá sido compreendido?

REFERÊNCIAS GIACOIA, Oswaldo. Teses sobre a Ordenação Ética do Mundo e sua Transvaloração. Revista Etic@, Florianópolis, v. 11, nº 2, p. 129-144, julho de 2012. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche: sua Filosofia dos Antagonismos e os Antagonismos de sua Filosofia (Trad. de Clademir Araldi). São Paulo: Ed. Unifesp, 2009. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro (Trad. Paulo César de Sousa). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. _____________. Assim Falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém (Trad. Paulo César de Sousa). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. _____________. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo (Trad. Paulo César de Sousa). São Paulo: Companhia das Letras, 2006. _____________. Genealogia da Moral: uma polêmica (Trad. Paulo César de Sousa). São Paulo: Companhia das Letras, 2009. _____________. Humano, Demasiado Humano (Trad. Paulo César de Sousa). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. STEGMAIER, Werner. Linhas Fundamentais do Pensamento de Nietzsche. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2013.

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ÉTHOS PARRHESIÁSTICO COMO VIDA FILOSÓFICA EM MICHEL FOUCAULT ROGÉRIO LUIS DA ROCHA SEIXAS1

Resumo : No presente texto, nossa discussão concentra-se na seguinte questão: qual o objetivo de Michel Foucault ao abordar o tema da parrhesia? Nossa hipótese se refere ao interesse do autor em problematizar os modos pelos quais a verdade, no contexto da cultura antiga, se exerce enquanto não apenas uma atividade, mas como um estilo de vida específico – delineado pelo dever do sujeito em dizê-la enquanto um éthos que ganha diferentes contornos nos campos da política, da ética e da estética da existência. Adota-se, assim, a parrhesia como um estilo de vida filosófica que possui a preocupação com o entrelaçamento das relações entre subjetividade e verdade, governo de si e coragem da verdade. A atitude ligada à parrhesia trata da constituição do exercício de um éthos parresiástico no interior das relações do saber e do poder – discurso da irredutibilidade da verdade, poder e ética. Palavras-chave : Éthos parrhesiástico, Parrhesia, Vida filosófica,

Doutor em Filosofia pela UFRJ. Docente em Ética e Filosofia Política da UBM /RJ. E-mail : rl.seixas@yahoo.com.br

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Éthos Parrhesiástico como vida filosófica em Michel Foucault, pp. 37 - 54

Abstract: In this present text, our discussion is centralized into the following question: which was the Michel Foucault’s objective when analysed the parrhesia´s thematic? Our hypothesis is referent to the interest of the author in to call in question the ways that the truth, in the old culture context, is carried out in action while not likes a some activity, but as an specifically style of life – designed by the subject duty to say the truth, while an éthos expression that acquire differents contours in the political, ethical and existential aesthetic themes. Accept, in this manner, the parrhesia likes a philosophical life style that haves the worry with an interlacement of the relations between the subjectivity and the truth, self-government and courage of tell the truth. The attitude connected to the parrhesia, discusses the constitution of the parrhesiastic ethos exercises into the relations between the knowledge and the power – discourse of the truth, power and ethics irreducibilities. Key-Words: Parrhesiastic ethos, Parrhesia, Philosophic life

Introdução

N

a aula de 2 de março de 1983, Foucault desenvolve sua análise a respeito da parrhesia filosófica, referindo-se ao que vai destacar como o problema da atitude filosófica. Como expõe de modo mais claro: “A parrhesia como forma de vida, a parrhesia como modo de comportamento, a parrhesia até na idumentária do filósofo, são elementos desse monopólio filosófico que a parrhesia reclama para si.”(FOUCAULT, 2009, p. 296). Se caracteriza a parrhesia filosófica como um modo de ser, uma ação de escolha em como conduzir a própria existência – exercendo o ato de filosofar na condição mesma de se constituir para si mesmo um estilo de vida, modificando seu modo de pensar e agir – sendo necessário que no ato de dizer-a-verdade, haja a manifestação de um vínculo fundamental entre a verdade dita e o pensamento de quem disse. Este engajamento do éthos do dizer-verdadeiro, denota uma característica crucial da parrhesia: a adesão do falante ao seu enunciado. Como observa Gros ( GROS, 2004. p. 157): “Na parrhesia, trata-se de dizer uma verdade que constitua uma convicção pessoal, ao passo que o retórico quer simplesmente fazer acreditar, passando da convicção para a persuasão.” Esta característica da parrhesia aqui apresentada, indubitavelmente, demonstra o exercício de um éthos, marcado por seu modo de agir engajado e de dizer verdadeiro – que necessita ser compreendido como uma atitude crítica que requer que o sujeito assuma-se a si mesmo como condutor de sua vida. Fazer uso da liberdade da palavra verdadeira para atingir o outro e, ao mesmo, tempo a si mesmo. Uma crítica, dirigida ao outro para o qual o parrhesiastes fala, não

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necessariamente se resume a apenas uma pessoa, pois a prática crítica da parrhesia é destinada à coletividade e ao bem público. Constata-se também que a parrhesia é uma atividade crítica cuja principal condição de possibilidade se refere a uma atitude presente no instante em que o parrhesiástes, que ao expor suas opiniões, coloca em risco toda sua integridade social, política e moral, além de obviamente, física. Esta presença física do corpo é interessante, pois o parrhesiastes é percebido e identificado. Exerce sua atividade de modo público. Deve-se ter a consciência deste risco no instante em que fala a verdade. Esta propriedade da parrhesia aparentemente é a que mais atrai Foucault: exercer o éthos parrhesiástico implica em uma atitude ética que o coloca em acordo com si mesmo, mas não o tornando um indivíduo fechado em si, e sim alguém ligado a outros que podem constituir com ele uma esfera pública. Para Frédéric Gros, “seria a suposição parrhesiasta de uma fala engajada.”(GROS, 2004, p.157) – mas, igualmente, como destacamos antes, uma fala e postura perigosas; uma verdade que não se diz senão sentindo o fio da espada roçar na garganta. Temos uma atitude de fundo ético e político, marcada pelo risco de exercer a parrhesia.

1. Parrhesia e Estilo de Vida Verdadeira Levando-se em conta que a definição de parrhesia está contida no campo ético da relação do sujeito com si mesmo – suscitando a problemática de como governar a si mesmo – trata-se, deste modo, em se colocar a questão de como pensar o regime da palavra arrojada aos diferentes estilos de éthos que Foucault trabalha. Como no caso de Sócrates, que, associando o falar arrojado ao método da maiêutica, expressa um dizer-verdadeiro que deve transformar aquele a quem dirige o enunciado, o inquietando a se questionar e examinar as verdades de fora que o constituem no modo de agir e pensar. Ao colocar estas verdades sobre desconfiança e questionamento, quem escuta o discurso parrhesiástico indagará não apenas a si mesmo, mas também aos que se proclamam serem os detentores da verdade a respeito das coisas que devem ser ditas e pensadas. Segundo o Foucault: (...) Ao pretexto de interrogá-los sobre os mestres que podem autenticar a competência e a opinião deles, vai lhes impor um jogo totalmente diferente, que não é nem o da política, claro, nem o da técnica, mas que será o jogo da parrhesia e da ética,

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que será o jogo da parrhesia orientada para o éthos. (FOUCAULT, 2009, p. 121).

Manter essa incerteza aberta, abalar as bases das verdades prontas (que objetivam exatamente encerrar qualquer incerteza ou inquietude) enquanto um éthos parrhesiástico, demarca um estilo de vida filosófico. Retomando a figura de Sócrates, na aula de 2 de Março de 1983, Foucault faz uma observação e, simultaneamente, uma diferenciação muito interessante entre logos e érgon. O que chama sua atenção? Antes, recordemos que, em seu significado ético, o parrhesiástes, enquanto convicto da verdade que enuncia, o faz ao custo de desagradar aos outros. Temos o que Foucault define como: “a livre coragem mediante a qual alguém se relaciona consigo mesmo no ato de dizer a verdade; ou seja, a ética de dizer a verdade num ato livre e perigoso.” (FOUCAULT, 2009, p. 116-117). Então, a parrhesia é um tipo de atividade verbal na qual aquele que fala tem uma relação específica com a verdade através da franqueza, uma relação consigo mesmo e com outras pessoas através da crítica. Ao exercer o seu éthos parresiástico, aquele que fala expressa sua relação pessoal com a verdade, e arrisca sua própria vida, pois ele reconhece o dizer-a-verdade como um dever para transformar outros e a si mesmo. Ao exercer este éthos enquanto um dever e um estilo de vida (escolhendo a franqueza ao invés da persuasão, a verdade ao invés da falsidade ou silêncio, o risco da morte ao invés da vida e da segurança, crítica ao invés da bajulação, um exercício de subjetivação ética ao invés de se acomodar na apatia moral) há a aceitação do risco de morte ao defender o dizer-verdadeiro – fato (evidenciado e criticado por Platão, e analisado por Foucault) quando a atividade da parrhesia perde espaço na democracia ateniense e o seu exercício se torna um risco. No caso do que podemos denominar como parrhesia socrática, Foucault a descreve enquanto uma atividade política como sendo como “negativa e pessoal.” (FOUCAULT, 2008, p. 294). Agora, outra questão: como se relaciona a parrhesia nesta situação? Foucault deslocou a questão da parrhesia de um âmbito mais ético, o que ocorre de modo muito evidente na Hermenêutica do Sujeito e também a partir do curso O governo de si e dos Outros, para outro de conotação mais política, embora não se possa separá-la totalmente da esfera ética manifestada no cuidado de si.

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2. Parrhesia Socrática e Cuidar de Si Destaque-se o modo como Sócrates seria, segundo Foucault, um mousikós aner, ou seja, uma pessoa que é fiel tanto às palavras quanto aos seus atos, e, portanto, exerce a parrhesia na qual o logos e o bios constituem uma estética da existência regrada pela existência simultânea desses princípios. Em Sócrates, a parrhesia adota a forma de um construto, em que logos x verdade x bios se macunem, a partir da relação existente entre um sujeito que enuncia a verdade e o que a escuta. É seu bíos que Sócrates elege para se subjetivar e não a lei da polis. Aqui, o peso da parrhesia ético-filosófica, intenta compreender a atitude filosófica, mais do que a filosofia, como um modo de pensar que transforma o sujeito – implicando, exatamente, na subjetivação de como se conduzir eticamente. Realmente, afastando-se da política como participação direta na assembleia, a parrhesia socrática é útil à cidade. O parrhesiástes não necessita evadir-se do mundo – é preciso apenas que ele cuide da cidade com a mesma persistência que se ocupa de si. Evidencia-se, então, uma forte conotação política na prática da parrhesia no sentido que o exercício do éthos parrhesiástico manifesta a verdade de quem a enuncia com franqueza; intencionalmente dirigidas a manter uma relação direta entre o discurso racional do individuo, seu logos, e o modo como este elege seu modo de existência que não deixa de se colocar como uma forma de interpelar as práticas de poder que envolvem o governamento2 de si por outros. Se há o conceito de uma atitude ética da verdade como arte de viver mais esteticamente livre, esta não se afasta das relações de poder – ao contrário, questionando seu funcionamento e aludindo à prática de si (refletida, no caso, como o cuidado de si) visa-se evitar que as relações de poder se traduzam em situações de dominação, levando-se à condução da vida dos indivíduos por outros. O Sócrates de Foucault não participa da vida política do dêmos como alguém que busca ser um político – mas não deixa de exercer uma atitude política da arte de existência estética, a partir do momento em que, ao exercer o éthos parrhesiástico, assume o ato da palavra verdadeira e corajosa, constituindo um estilo de vida como uma prática mais livre de ser sujeito de si; opondo-se às normas e convenções que não levam ao autoexame dos indivíduos, mas que estabelecem verdades aceitas de modo inquestionável para as suas condutas. Um constituir-se a si mesmo enquanto uma vida mais filosoficamente bela, mas que não se aproxima de um mero esteticismo. Faz parte política desta Termo utilizado e sugerido por Alfredo de Veiga-Neto que se inspira na palavra derivada do francês (gouvernement) para diferenciar o ato-poder enquanto condução de condutas da noção comum de governo, enquanto instituição administrativa, social e política. Aplicaremos esta expressão em várias passagens de nosso tarbalho.

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construção de éthos o opor-se aos discursos retóricos vazios e bajuladores que não se importam com a verdade em si, mas com o mero convencimento. Neste quadro, o dizer verdadeiro não só perde espaço na pólis democrática, quando esta entra em crise, como se torna um verdadeiro risco exercê-lo. A parrhesia é uma atividade essencial para a constituição do éthos, enquanto maneira de viver e de se conduzir, partindo de uma estética da existência – consequência da escolha do próprio sujeito – tratando-se, assim, de um modo de subjetivação que se coloca como coerente com o estilo de vida que se põe a si mesmo e que muito além de fixar regras de conduta, consiste em modificar o próprio modo de ser, fazendo da vida (bíos) uma arte de autogovernar-se. Por isso, esta conduta ética apresenta um componente político importante: o do indivíduo se inquietar com si mesmo, com sua forma de existir – buscar eleger a si mesmo como produtor de seu estilo de vida; como assinala Roger Pol-Droit, “se evidencia assim a tática inserida no estilo de éthos parrhesiástico socrático em desestabilizar, inquietar.”(POL-DROIT, 2012, p. 133). É uma prática que põe em ação, a partir do exercício crítico do éthos parrhesiástico, um modo de desestabilização do indivíduo para que se torne mais livre e possa exercer o governar a si e o governo dos outros. Detecta-se aqui o olhar de Foucault para as táticas de dessubjetivação das formas de governamento na atualidade, inseridas em sua problematização da governamentalidade. No Sócrates interpretado por Foucault, o dizer-a-verdade apresenta-se como possível porque o filósofo grego coaduna seu discurso a suas ações, ou, dito de outro modo, o logos se ajusta de tal forma à bíos que o éthos parrhesiástico pode ser exercido com autenticidade e credibilidade (embora sempre sob o risco que se corre ao enunciar a verdade para o outro que não a aceite e queira, de algum modo, calar sua voz). O Sócrates de Foucault, enquanto exerce sua parrhesia, se encontra armado pela imiscuidade entre palavra e ato. No exercício de cuidar de si, vinculado a um cuidado com a verdade, constituindo-se como um estilo de existência alternativo e, porque não dizer, contraposto às práticas políticas institucionais. A prática do parrhesiástes, neste sentido, se apresenta como suficientemente prudente para abrir condições à liberdade do sujeito no momento oportuno. Inegavelmente, é uma ação ética ao tratar de convencer ao interlocutor de que deve ocupar-se de si e dos outros, e que, por consequência, precisa transformar sua bíos. Como observa Abraham:

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(...) Foucault propõe que entre a vida e os discursos, as ações e os discursos, a verdade é a ligação. Verdade que não se apresenta como adequação, mas sim conformação. A vida terminará sendo a obra onde os discursos e as ações compõem-se. (ABRAHAM, 2003, p. 66).

Fazer, da própria vida, uma estética da existência, partindo de uma leitura foucaultiana, adquire um significado político importante na medida em que há uma ação de inventar-se, e assim levar a cabo um trabalho sobre si mesmo – entendendo-se como uma prática da liberdade que não é outra coisa senão a criação de um estilo mais livre de existência. Um governar-se mais a si mesmo. Sendo assim, as práticas parrhesiásticas – como, no caso citado, a socrática, mas outras como as estoicas e epicuristas – claramente apresentam um componente político; ou, mais referidamente a uma política como arte de viver, manifestando a coragem da franqueza em dizer a verdade; em se exercer o éthos parrhesiástico – mesmo sob o risco da “espada na garganta” – como um estilo de vida que possui como dever, dizer a verdade para a autoconstituição do sujeito como soberano sobre si mesmo, como sujeito livre.

3. O éthos parrhesiástico cínico e a verdade como escândalo O modo radical do cuidado de si cínico, segundo Foucault, é exatamente o “exercício positivo de uma soberania de si sobre si mesmo.”(FOUCAULT, 2009, p. 282.) A parrhesia cínica possui uma propriedade essencial: a alethós bíos,que expressa a ligação entre ética, política e verdade. Ainda segundo Gros, “é na senda socrática que se desenha para Foucault, o interesse pelos cínicos gregos.” ( GROS, 2004, p. 162).Qual o motivo deste interesse? Na aula de 29 de fevereiro de 1984, Foucault justifica este interesse ao apontar na prática cínica: (...) A exigência de uma forma de vida extremamente marcante – com regras, condições ou modos muito caracterizados,

muito

bem

definidos

é

fortemente

articulada no princípio do dizer-a-verdade ilimitada e corajosa; do dizer-a-verdade que leva sua coragem e ousadia até se transformar em intolerável insolência (FOUCAULT, 2009, p. 153).

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Essa articulação, essencial no cinismo, apresenta um forte vínculo “Entre viver de certa maneira e se dedicar a dizer a verdade, são mais notáveis por se fazerem de certo modo imediatamente, sem mediação doutrinal, ou, em todo o caso, dentro de um marco teórico assaz rudimentar” (FOUCAULT, 2009, pp. 153-154). Gros ressalta que a filosofia cínica comporta dois núcleos, reconhecidos como duros, que representam a sua prática: “uma franqueza rude, áspera e provocadora e um modo de vida de errância rústica e pobre, um manto imundo, um alforge e barba hirsuta.” (GROS, 2004, p. 162). Um ponto a ser ressaltado como essencial na parrhesía Cínica se expressa exatamente na simetria radical entre o logos e o bios, enfatizando-se uma vida ética que se condiciona a se livrar das convenções da vida social, encaradas com escárnio e indiferença, enquanto criticadas como práticas de engodo e obstrução para o exercício da vida verdadeira. Tem-se a demonstração de uma estética de existência que coloca o modo de uma “verdadeira vida” sem se adequar a nada, a não ser a naturalidade da vida. Não há proposta de fixidez de atitudes, aceitando, como própria da vida nua e exposta, a sua contingência. É um estilo de existência filosófica que faz explodir a verdade da vida como escândalo. Não se trata simplesmente de regular a própria vida segundo um discurso e de ter, um comportamento justo defendendo a própria ideia de justiça, mas de tornar diretamente legível no corpo, a presença explosiva e selvagem de uma verdade nua, de fazer da própria existência o teatro provocador do escândalo da verdade (GROS, 2004, p. 163). Postura que difere da parrhesía Socrática. Inexiste, na parrhesía Cínica, a doutrina de que uma virtude pode ser ensinada para os que foram criados como os melhores para ouvir o dizer verdadeiro e exercitarem o cuidado de si, tornando-se governantes justos. Também não há o objetivo de estabelecer uma harmonia regrada entre as palavras (logos) e atos (érgon), entre verdade (alétheia) e a vida (bíos). Nos cínicos, a relação entre dizer verdadeiro e a vida é mais exigente e polêmica. O tema da vida-verdadeira – alethés bíos – pode ser retratado por um episódio da vida de Diógenes, o cínico, narrado por Diógenes Laércio: aquele teria recebido a missão divina para “falsificar o valor da moeda” (frase em grego, parakharattein to nomisma). Gros comentará que a ideia de uma vida trabalhada (na espessura da sua materialidade) pela vivência da verdade, opondo-se a uma existência apenas convencional e dissimulada, é perseguida por Foucault no âmbito da famosa divisa cínica da parakharáxon to nómisma (Falsificação da moeda)3 (GROS, 2009, p. 324). Vale ressaltar que “falsificar a moeda” representa uma missão para Diógenes, que, assim como Sócrates, foi 3

Comentários In. A Coragem da Verdade. Situação do Curso, 2009

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incumbida pelo oráculo de Delfos. Qual o significado de cunho político, aqui contido? Etimologicamente nómisma (moeda) e nómos (lei, norma) estão muito próximos. Não se trataria então de uma falsificação de valor monetário, mas, para Foucault, a tarefa, conferida como missão pelo oráculo de contestar a ordem – filosófica e política – para uma reversão dos valores da verdade. Temos a leitura de um tipo de transvaloração da verdade (e, por consequência, de costumes e normas) que, no cínico, é representada em viver ao pé da letra os princípios da verdade. Se, por um lado, existe uma aproximação entre moeda e costume, por outro, significa que é possível trocar a efígie da moeda por outra, permitindo que ela circule como ultrapassamento dos valores estabelecidos, a partir do modo cáustico e provocativo próprio da parrhesia cínica, contra as instituições e contra os soberanos que se arrogam de possuirem o direito de governar os outros, exatamente a partir de convenções e bens materiais. Foucault percebe nessa “missão”, uma espécie de passagem ao limite. O exercício de extrapolação de uma “vida outra”. Uma vida-verdadeira. A noção de “alterar o valor da moeda” está ligada à qualificação de cão (que Diógenes dava a si mesmo), e que passou a identificar o cinismo, como vida sem pudor, sem respeito humano, que faz em público e aos olhos dos outros, o que somente os cães e outros animais ousam fazer, e que mesmo os homens mais ordinários procuram esconder. Por este motivo, o bíos do cão é a indiferença; mais propriamente com respeito à parrhesia cínica, seria a provocação e intervenção, de modo crítico, para mudança de conduta dos outros. Percebe-se uma tarefa de cuidar dos outros enquanto uma prática exercida no contexto das relações sociais por meio da ironia e da provocação. Com qual objetivo? Criticar o modo de vida dos seus concidadãos que, presos às convenções, vivem uma vida que não é a verdadeira. Deve-se provocar os homens a buscarem viver um outro estilo de vida – uma vida reta segundo os preceitos da natureza e contrária às convenções. O desvio da conduta dos homens, ocorre exatamente pela sua obediência às verdades convencionais, institucionais e morais que guiam suas condutas. O escândalo da verdade da parrhesia cínica se coloca como oposta às normas que conduzem as ações dos indivíduos, devendo ser denunciadas em seus erros e inverdades, além de serem, inclusive, recusadas. A vida verdadeira é a do (cão) , que leva uma existência não-oculta, desapegada; que, ao latir, demonstra retidão ao discernir entre a verdadeira vida e a falsa, e, como cão de guarda, exerce a vigília sobre si mesmo e sobre os outros. Destaque-se um atitude, no modo de vida filosófico cínico, enquanto atuante no seu éthos parrhesiástico: levar a vida de cão cínico é também um dever – mas não para servir de mestre parrhesiástico no sentido socrático, ou conselheiro do governante, como objetiva Platão (afinal, o cínico se afasta desta figura modelar

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ou institucional). Semelhante a um cão, realiza sua parrhesia de modo ativo, polêmico, mordendo e atacando – através da escandalização da verdade. Há uma postura política, na atividade da parrhesia cínica, que sinaliza um modo de vida alternativo às normas e leis que regulam e assujeitam a vida dos indivíduos. Nesta situação, o cínico coloca-se de modo resistente contra aos costumes e valores postos como autoridade de verdade para governar as condutas, conduzindo-se a partir do seu estilo de vida não dissimulado, expondo, seu modo de ser, de maneira absolutamente visível e pública em todas as suas formas, sem nada ocultar – e muito ao contrário, como não dissimula; tudo em sua atitude de vida, pode e deve ser demonstrado inteiramente. Inclusive a presença do corpo que desestabiliza as convenções que por sinal, são motivo de deboche. Este desprendimento que não pode ser confundido com afastamento das convenções, se configura como exercício para o cínico torna-se soberano de sua vida, dependendo apenas de si mesmo para decidir como agir segundo suas escolhas quanto ao seu estilo de existência como prática manifesta da verdade manifestada e da verdade a se manifestar. Esta é encarada como postura ética e uma ação política, levando-se em conta que não simplesmente se coloca como mera teoria ou discurso, mas se configura como um estilo prático de existência, marcada pelo sentido de soberania enquanto: modalidade de vida feliz numa relação de si consigo sob a forma de aceitação do destino e como prática manifesta da verdade manifestada, da verdade a manifestar.” (FOUCAULT, 2009, p. 282). Vida feliz, no sentido cínico, se funda em duas condições fundamentais: a liberdade (eleutheria) e a autossuficiência (autarkeia). Outro episódio que reflete o exemplo máximo do princípio da parrhesía viva e ativa dos Cínicos está exemplificado no encontro entre Alexandre, o Grande e Diógenes, o Cínico. Alexandre fez questão de procurar o Cínico. Pela manhã poderoso soberano encontra o filósofo recostado em seu abrigo. Dirigindo-se a ele Alexandre lhe pergunta: "Pede-me o que quiseres". Diógenes responde: "Não me faças sombra. Devolve meu sol". Para Foucault este é um claro exemplo de um dos tipos de parrhesía empregada pelos Cínicos, o diálogo provocativo. Ainda segundo o relato sobre este encontro, em vários momentos Alexandre exibia uma grande irritação e vontade de matar Diógenes, que prossegue apontando três modos faltosos de um rei se comportar, que corresponde à devoção à riqueza, devoção ao prazer físico e, por último, devoção à glória e ao poder político. Desta forma, ao ser interpelado por Alexandre – alguém que representava poder e autoridade, podendo tirar a sua vida, além de desprezar a ostentação da autoridade de um rei, Diógenes não

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sente medo em se colocar como soberano de sua vida, senhor de si mesmo, estabelecendo um estilo de vida, ligando bíos e logos até o limite, colocando-se de modo mais soberano que o rei dos reis – porque a vida cínica é totalmente desapegada e só depende de si mesma. Ao exercer esta postura de escandalizar o poder, Diógenes expressa a ênfase na vida ética, trazendo a questão da bios philosophos (vida filosófica), a partir de sua parrhesía provocativa e grosseira. A sua técnica de « diálogo provocativo » apresenta uma característica marcante: abalar o orgulho do interlocutor em se arrogar de saber como está se conduzindo, não se assemelhando ao jogo ignorância-conhecimento, comum nos diálogos platônicos, que se utilizam da maiêutica socrática. Como observa Ernani Chaves, nao se diz a verdade de qualquer modo, mas na forma de escândalo insultuoso (CHAVES, 2013, p. 36). Interessante como Chaves também ressalta como esta prática escandalosa de dizer-verdadeiro, coloca em questão a própria concepção de vida filosófica, que se delineara com o socratismoplatonismo, através da maieutica. O éthos parrhesiástico cínico se caracteriza como uma pedagogia do escândalo ( FOUCAULT, 2009,p.216). A ilustração do possível confronto com Alexandre, segundo uma percepção foucaultiana, pode ilustrar a agonística entre o poder político e o poder da verdade. A verdade como vida prática, como modo de existência, garante a soberania a Diógenes que pode, assim, anedoticamente, se proclamar o verdadeiro rei sobre a terra ou em outros termos, exercer maior governo sobre si mesmo. O modo radical do cuidado de si cínico, segundo Foucault, é exatamente o “exercício positivo de uma soberania de si sobre si.” (FOUCAULT, 2009, p.282). A alethós bíos, expressa a ligação entre ética, política e verdade. Há um forte sentido de crítica às instituições políticas subjacente no exercício do éthos parrhesiástico cínico. Retomando o encontro entre Alexandre e Diógenes, este chama aquele de bastardo; o trata com indiferença e desprezo, afirmando que “alguém com a pretensão de ser rei é como uma criança que, após vencer um jogo, põe uma coroa na cabeça e declara que é rei”. (FOUCAULT, 2001b, p.126). O rei por natureza é Diógenes – que vive segundo sua soberania como um estilo de existência filosófico de despojamento das coisas consideradas inúteis para exercer o dizer verdadeiro e o cuidado de si. Observa-se a característica deste embate agonístico da parrhesia como um enfrentamento entre o ato-poder do dizer a verdade livre do parrhesiástes com a figura do poder político que representa o exercício de governamento abusivo. Há a prática de uma “insolência política” como forma de “coragem da verdade”, interpelando diretamente ao Príncipe. O sentido político do éthos parrhesiástico, apresenta a propriedade de se colocar contra a corrente; contra as verdades e normas estabelecidas como inquestionáveis e até dogmáticas, que

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influenciam nas relações de poder, levando a um governamento abusivo dos indivíduos. Deste modo, a parrhesia cínica se configura como uma forma de agonística despudorada, tratando-se de uma prática de vida política que, ao exercitar a ligação entre logos e bíos, coloca-se de forma crítica em relação aos que se identificam como detentores do poder e da verdade. Neste embate agressivo, pode-se observar uma batalha entre duas formas de poder: poder político e o poder da verdade (WELLAUSEN, 2011, p. 101). Há um forte sentido de crítica às instituições políticas subjacente no exercício do éthos parrhesiástico cínico. Por este motivo, Abraham ressalta uma característica singular deste éthos em detrimento de uma verdade que não implique em crítica por se colocar de acordo com uma verdade consensuada: se expressa, de fato, como uma prática de resistência: “A questão é que o dizer verdadeiro do parrhesiástes é sempre um dizer-a-verdade em condição assimétrica. Porém, está em um lugar de resistência que implica a subversão da ordem dada, não outra coisa são os sermões cínicos, resistência e resistência pensada para todos” (ABRAHAM, 2003, p. 63). A parrhesia cínica se configura como uma atitude de crítica extrema a toda e qualquer forma de dominação – que busca, segundo seu estilo de vida, uma soberania para consigo mesmo; ou, dito de outro modo, procura governar-se a si mesmo, recusando ser governado por outros. Os cínicos exercem a sua parrhesia como uma atividade provocativa de liberdade em seu estilo de vida filosófico: exercendo uma ruptura radical com as estruturas de poder convencionais; resistindo às convenções sociais, além de criticá-las; não reconhecendo a legitimidade de qualquer espécie de governamento dos outros; constituindo-se como sujeitos aptos a se autogovernarem, além de afrontar as filosofias dominantes marcadas principalmente pelo Platonismo. Indubitavelmente, a questão da vida soberana é primordial para a bios phiolosophica cínica, apresentando sua estilística da autogovernabilidade e da autossuficiência, através da sua atividade parrhesiástica escandalizadora – pelas ações, gestos, discursos, a indiferença às convenções, principalmente, e a adoção da sua existência despojada. A vida filosófica cínica só depende de si mesma – uma vida verdadeira, que leva até os limites do insuportável os sentidos estabelecidos de seu éthos parrhesiástico. Os cínicos praticavam o cuidado de si com o objetivo de constituírem uma vida de soberania, como uma estratégia para que pudessem enfrentar os acontecimentos e as adversidades. A soberania dos cínicos é uma existência de desapego e mendicância ativa, reivindicada: não se trata, então de simplesmente, um desapego dos bens materiais, mas precisa-se recusá-los de modo até agressivo. Esta “apatia” situase na condição de bastar-se a si mesmo, como condição essencial de liberdade.

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Um indício claro pela busca de um estilo de vida filosófico embasado na conquista da autarkeia. Várias são as características que realçam o modo de vida filosófico cínico: aprender a se tornar senhor de si; a atividade de cuidar de si e dos outros, para que também se tornem soberanos de si mesmos; a exaltação da mendicância e da pobreza no uso de roupas simples e os pés descalços. O que, na realidade, temos aqui: o desenvolvimento de práticas de liberdade que se expressam como formas de resistência e de combate que serviriam de “armadura” para enfrentar a vida. Com o logos, buscam transmitir esta lição aos outros. Com a askêsis, exercitam constantemente o cuidar de si do despojamento e da resistência. O cínico, com seus sermões escandalosos e provocativos, aliados às suas ações praticadas de acordo com a natureza (kataphysin), desafiam e provocam os outros a modificarem seus estilos de vida e a relação de si a si. Por este motivo, se escandalizava as pessoas com o objetivo de fazêlas questionar, a partir da confrontação entre a futilidade e corrupção da materialidade e a prática da verdadeira e soberana vida – revelando uma animalidade humana que precisa ultrapassar as limitações das dissimulações das normas e regras institucionais. Observe-se que se coloca em prática uma atitude de convocação, para que “todos” mudem seus estilos de vida. Há uma convocação e uma crítica como atitudes que envolvam todo o gênero humano. O éthos parrhesiástico cínico é dirigido a todos. Por esta razão, os cínicos se postam no espaço público, interagindo com a multidão. Esta prática popular – que se dirige a todos os homens – tem como corolário que o cínico é um homem do mundo, ligando-se a toda a humanidade. Reflete-se uma espécie de universalidade ética que torna possível o exercício da “liberdade”. A responsabilidade pela humanidade é a mais alta tarefa ética – vigilância para que os homens não negligenciem do cuidado de si. Essa epimeleia assume forma dupla nos cínicos: “cuidado de si” e “cuidado dos outros”. Esta vigilância se afirma e exerce a partir de uma liberdade que reside no esforço constante de uma askêsis que marca, no corpo, o éthos da coragem da verdade concreta: um estilo de vida enquanto o assumir a coragem da verdade como escândalo, exercendo a visibilidade da verdade de forma irredutível. Por este motivo, provoca e escandaliza através de seus gestos mínimos, mas profundos e radicalmente críticos. Gros ressalta que:

(...) Foucault percebeu, na parrhesia cínica, o que denominou como “um militantismo extremista”, sendo este real empreendimento de uma atitude filosófica ou, em outros termos, o filósofo é aquele que exibe sua vida como

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testemunho escandaloso da verdade, não por gosto de mera provocação, mas para inquietar a consciência dos que pensam experimentar uma vida boa e correta. (GROS, 2007, p. 122).

Atente-se para o fato de que se estabeleça uma conotação ética referente a uma atitude política, afirmando-se a importância do éthos parresiástico como uma prática de liberdade que denota o valor político da atitude ética da vida filosófica. Como ressalta Foucault, “a chave da atitude política pessoal de um filósofo não deve ser pedida às suas ideias, como se ela pudesse ser deduzida das ideias; é a sua filosofia, enquanto vida, é a sua vida filosófica, é a do seu éthos.” (FOUCAULT, 2001, pp. 1404-1405). Assim, a relação entre política e ética torna-se mais estreita. Ao mesmo tempo, como afirma Paolo Adorno, “Foucault se defende das críticas de que abandona o campo da política, apenas se preocupando com a questão moral.”4 (ADORNO, 2004, p. 56-57). Ao mesmo tempo, também rebate as críticas que o acusam de ser o representante de agudo niilismo pós-moderno. A parrhesia cínica permite pensar uma relação do sujeito com a verdade como uma atitude de provocação, de insolência, de escárnio: a verdade provoca o sujeito justamente no limite de seu ser; o sujeito provoca a verdade na prática visível de sua própria vida. E todos são porvocados a assumirem a atitude de constituírem-se como sujeitos soberanos de si. Aqui pode-se destacar um ponto forte importante presente na parrhesía cínica que, com certeza, interessou a Foucault: o confronto da verdade sobre a própria vida, abrindo a possibilidade de nos constituirmos em um estilo de vida a partir de um desprendimentode de tudo o quanto possa de algum modo nos assujeitar. O dizer verdadeiro – ou o estilo de viver verdadeiro – do filósofo parrhesiástes, pode ser percebido na agonística entre o mundo do sujeito individual e o mundo externo, num embate que leva o indivíduo a criticar e a contrapor as estruturas de dominação externas, mesmo correndo riscos. O éthos parrhesiástico se apresenta como esta coragem de dizer verdadeiro – um dever, uma obrigação que visa tanto a transformação da subjetividade daquele que pronuncia o ato de verdade, quanto a transformação dos outros, que também devem ter a coragem para ouvir e participar francamente do confronto. Como destaca Márcio Fonseca, “o campo próprio do governo de si, a outro e com o poder.” (FONSECA, 2012, p. 272). Ver este texto de ADORNO, P. F. A Tarefa intelectual : o modelo socrático. In. FOUCAULT. A coragem da verdade, 2004.

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Esta concepção de ética abre a possibilidade de se descrever uma “política da arte de viver” no sentido de uma subjetivação política, a partir de uma ética de assumir o governo de si, criando seu estilo de vida – constituindo sua subjetividade como uma estética de existência que se caracteriza pela verdade sempre pondo a vida, à prova. Há um desafio radical em se verificar até que ponto as verdades suportam ser vividas no ato. Na condição de se apresentar no face a face, enquanto corpo que é percebido como expressão de coragem da verdade, através da interpelação ética e política, desafiando a autoridade de verdades que se colocam como inquestionáveis e não confrontáveis, pois são aceitas coo em si mesmas. Gros observa que talvez aqui possam ser identificados dois modos profundamente diferentes de verdade, Foucault tenha se mantido aferrado: “a verdade como regularidade e estrutura harmônicas; a verdade como ruptura e escândalo intempestivo.” (GROS, 2004, pp. 165-166). Temos o fazer da estética da existência uma manifestação intolerável da verdade. Em quais condições? Ou partir da coragem de se transformar lentamente, de fazer manter um estilo de vida filosófico em uma existência movente, de durar e de persistir ou a coragem mais intensa, da provocação, a de fazer aflorar pela ação verdades que todo mundo conhece, mas que ninguém diz, ou que todos reproduzem, mas que não se dá o trabalho de fazer viver, sendo esta a coragem da ruptura, da recusa, da denuncia.

Considerações finais Philiphe Chevallier afirma de modo muito interessante, que temos a articulação de duas formas de dizer a verdade: “a verdade segundo o poder e a verdade ligada às lutas de resistência. O trabalho sobre nossos limites seria para o poder a parte do labor paciente, enquanto o trabalho no centro das práticas de resistência seria a parte ligada à impaciência da liberdade.” (CHEVALLIER, 2004, p.78). O trabalho crítico-filosófico tem de levar em conta o fato de que não existe governo sem referência à verdade – seja como dogma, seja como conhecimento individualizante, seja como fundamento para o desenvolvimento de um conjunto de técnicas de conduta. As relações de poder, na modernidade, ao envolverem e instaurarem regimes de verdade, possibilitam brechas para as disputas que são travadas no terreno em que as verdades são constituídas. Então, partindo da parrhesia, como noção política, sem desligá-la do sentido ético, sendo dada a sua ação a propriedade de força moral que não se torna limitada pelo poder político, estabelecendo sua prática como um cuidado de si e harmonizando fala com ato, Foucault pode articular os modos de veridicção, com o estudo das técnicas de governamentalidade e a das práticas de si. Desta

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forma, o parrhesiástes não se encontra apartado do convívio com outros. Estabelece-se, assim, também uma situação política, caracterizada pela condição de conflito eminente onde se insurja a voz de alguém com menos poder do que o “outro” para fazer transparecer uma atitude implicada na “coragem da verdade”. Foucault utiliza dois exemplos interessantes: um professor pode ensinar aos seus alunos determinada verdade, entretanto, ele não é um parrhesiástes, pois não existe nenhum risco assumido nessa relação. Por outro lado, o filósofo que não teme apontar todas as fragilidades e problemas de um governo ditatorial e tirânico é um mestre da parrhesia, justamente pelo fato de que ele, ao proferir determinada crítica, coloca em risco a própria vida. (FOUCAULT, 2009, pp. 12-13). Como afirma Gros: “Uma ética cínica da parrhesia é a verdade pondo a vida à prova: trata-se de constatar até que ponto as verdades suportam ser vividas e de fazer da existência o ponto intolerável da verdade.” (GROS, 2004, p. 165). Independentemente do éthos parrhesiástico, ser personificado em Sócrates, nos estoicos ou cínicos, o essencial é a expressão comum do seu éthos filosófico intelectual – que pode ser interpretada como uma filosofia marginal, reorientando todo o sentido de um pensar e agir outro (colocando-se na contramão da filosofia que se consolidou na modernidade como afirmação da verdade da verdade, um conhecimento ou saber que se afirma a si mesmo). Temos aqui, sem dúvida, a própria inserção de Foucault enquanto exercendo sua vida filosófica como atividade de diagnosticar o presente, como um trabalho do pensamento sobre o pensamento, o exercício de uma arte de existência como um trabalho sobre si mesmo. A atitude da verdade parrhesiástica, nesta versão, se consolida como uma forma de ruptura com a mesmidade do que se pensa e como se age, escandalizando as práticas de assujeitamento. O fio condutor de toda esta reflexão é, no fundo, como afirma Roger Pol-droit: “A ideia de que a verdade é sempre, apenas, o produto de um jogo de forças, o resultado de um agenciamento – complexo, singular, móvel – de poderes em luta, e não alguma realidade incorruptível e eterna.” (POLDROIT, 2006, p.38). Por este motivo, para Foucault, a filosofia precisa tratar, de modo original e inédito, sua relação com a política. O filósofo deve falar com franqueza e se enganjar nas lutas políticas movido apenas pelo seu modo de ser no interior das práticas de poder. Nesta perspectiva, deve-se sempre provocar as resistências, permitindo que as vozes dos governados possam se exprimir. Deve-se diagnosticar as novas possibilidades de ação e práticas de liberdade que buscam exatamente limitar o abuso das governamentalidades dominantes.

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Partilhar o ideal de liberdade significa pensar sobre a relação entre vida e política como uma política da arte de viver e não como uma governamentalidade sobre a vida. O importante é que, para Foucault, a filosofia abre um espaço de liberdade; e que uma crítica política passa exatamente pela análise de nossos limites, se refletindo, assim, como análises sobre a própria prática da liberdade. Como Gros enuncia: “A estrutura parrhesiástica da filosofia.” (Gros, 2004, p.348) a imputa de uma atividade como prática da palavra da verdade e uma posição agonística ético-política de conduta.

REFERÊNCIAS ABRAHAM, T. El último Foucault. 1. ed. Buenos Aires: Sudamericana, 2003. BRAGA JR, M. Michel Foucault – a legitimidade e os corpos politicos. São Paulo: Ed. Manole, 20 CHEVALLIER, P. Michel Foucault: Le pouvoir et la bataille. 1.ed.Nantes: Éditions Pleins Feux, 2004. CHAVES, E. Michel Foucault e a verdade cínica. Campinas/São Paulo: Ed. Phi, 2013. DEKENS, O. MICHEL FOUCAULT. La vérité de mes livres est dans l´avenir. Paris: Armand Colin, 2008. FOUCAULT, M. Discours and Truth : The Problematization of Parrhesia. (Six lectures given by Michel Foucault at Berkeley, Oct- Nov. 1983) In.www.Foucault.info _____________. Dits et écrits II, 1976-1988. 2. ed. Paris; Gallimard, 2001a. _____________.Fearless Sppeech, Los Angeles, Semiotext, 2001b. ____________. Le Gouvernement de Soi et des Autres. Cours au Collége de France (1982-1983), Paris: Gallimard/Seuil, 2008. _____________. Le Courage de La Vérité . Le Gouvernament de soi et des autres II. Cours au Collège de France. 1984. Paris : Gallimard, 2009 GROS, F. (Org.) FOUCAULT: A Coragem da Verdade. Tradução de Marcos Marciolino. São Paulo: Editora Parábola, 2004..

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POL-DROIT, R. MICHEL FOUCAULT / Entrevistas. Trad. Vera Portocarrero & Gilda Gomes Carneiro. São Paulo : Edições Graal, 2006. WELLAUSEN, S. A parrhésia em Michel Foucault: um enunciado político e ético. São Paulo: editora LiberArs, 2011.

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DA FILOSOFIA À LITERATURA EM BUSCA DE UM ESPAÇO OUTRO: UMA LIGAÇÃO ENTRE FOUCAULT E BLANCHOT CAMILLA MUNIZ

Resumo: Ao percorrermos o pensamento de Foucault sobre a literatura se faz notável a influência que Maurice Blanchot, autor no sentido forte, tem sobre o seu pensamento. Blanchot ao forjar o conceito de Fora sugere uma literatura que constitui uma realidade própria desconstruindo a ideia de que a literatura é uma forma de chegar à realidade do mundo propondo, então, o contrário, que a palavra literária seja instauração de novos mundos. Nesse movimento a literatura funda sua própria realidade. Foucault apropria-se do conceito de Fora blanchotiano para desenvolver o que seria o pensamento do exterior, o Vazio. Ao se apoiar na exterioridade, na dispersão, na impessoalidade da linguagem da literatura moderna é que ele firma-se na contracorrente do humanismo, da dialética, do estruturalismo. Foucault percebe a força demolidora da Literatura moderna, em especial a de Blanchot, sua operação no campo da alteridade absoluta, no plano assubjetivo e fazendo uso dos atributos dessa propõe a dispersão do sujeito na ordem dos discursos. Ao tratar da morte do homem, do seu

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desaparecimento, ele irá desembocar no desaparecimento da função autor apoiada na identidade, na individualidade, na biografia, na origem, no eu, daquele que fez a obra. É vendo a obra de Blanchot, que aponta para esse Fora da linguagem literária, mostra o afastamento do autor para a sobrevivência da literatura, o falar da literatura estando fora dela, é que Foucault percebe a possibilidade de poder pensar uma Filosofia estando fora dela, dessa forma consegue o deslizar do pensado para o impensado. Nesse percurso trataremos de esclarecer a noção de Fora e Vazio que possibilitou a Foucault pensar em uma matéria móvel, onde nada ainda aconteceu. Palavras-chave: Vazio; Ficção; Literatura

Abstrat: To the we travel the thought of Foucault on the literature is done notable the influence that Maurice Blanchot, author in the strong sense, has on his thought. Blanchot when forging the concept of out suggests a literature that constitutes a reality own deconstructing the idea that the literature is a way to reach the reality of the world proposing, then, the opposite, that the literary word be introduction of new worlds. In that movement the literature founds his own reality. Foucault appropriates the concept of out blanchotiano to develop what would be the thought of the exterior, the Emptiness. When leaning on in the exteriority, in the dispersion, in the impersonality of the language of the modern literature it is that he is firm in the counter-current of the humanism, of the dialectics, of the structuralism. Foucault notices the devastating force of the modern Literature, especially the one of Blanchot, her operation in the field of absolute otherness, in the plan without subjectivity and making use of the attributes of that proposes the subject's dispersion in the order of the speeches. When treating of the man's death, of her disappearance, he will end in the function author's disappearance supported in the identity, in the individuality, in the biography, in the origin, in the me, of that that made the work. It is sells the work of Blanchot, that appears for that Out of the literary language, it shows the author's removal for the survival of the literature, speaking of the literature being out of her, it is that Foucault notices the possibility to think a Philosophy being out of her, in that way it gets sliding of the thought for the thoughtless. In this course we will try to clarify the concept of out and empty that enabled Foucault think of a mobile field, where nothing has happened yet . Word-keys: Empitiness; Fiction; Literature

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1. O exterior e o vazio

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.artigo buscará fazer uma analise sobre a questão da lei e .normatividade no pensamento de Michel Foucault, ou seja, a .passagem de uma lei que é moral e normativa para uma moral que é

ética. O ponto fundante do pensamento é a noção de vazio inserida nas observações que Foucault faz sobre a lei e a normativa na construção de seus enunciados. Construção essa que desemboca no poder da atração do exterior, a atração por esse vazio do exterior, na negligência da própria lei. O que está em questão é o próprio jogo da lei, do zelo e da negligência, do antagonismo necessário para o mantimento da própria lei e de sua jurisprudência. Para o filosofo francês, o ser atraído é uma maneira de dissimular a lei, já que ele conjuga a lei e o desejo, fazendo, assim, uma leitura transversal de Blanchot. Tal conjugação é feita em torno de um sentido de invisibilidade. Para isso, Foucault serve-se de um personagem blanchotiano: Henri Sorge, cujo nome nos remete a ideia cuidado, ele seria uma espécie de “Orestes ansioso por escapar da lei para melhor se submeter a ela” Cf. FOUCAULT (1990, p.49). Mas quem é Henri Sorge? Qual o motivo pelo qual Foucault se utiliza desse personagem? Henri Sorge é funcionário público, está empregado na prefeitura, nos gabinetes do funcionalismo público. Henri não passa de um elo, ínfimo sem dúvida, nesse organismo estranho que faz das existências individuais uma instituição, ele é a forma primeira da lei, pois transforma todo nascimento em arquivo. Mas, eis que ele abandona sua tarefa, eis que ele tem uma licença que ele prolonga sem autorização, mas com a cumplicidade da administração que lhe facilita implicitamente essa essencial ociosidade. Basta esse quase afastamento para que todas as existências se desorganizem e a morte inaugure um reino que não é mais aquele classificador do estado civil, mas aquele, desordenado, contagioso, anônimo da epidemia. Esse ponto trata de uma lei sempre recuada, que está imóvel na sua relação com o vazio, com o fora, o exterior. Na obra O que é a Filosofia? (1996) Gilles Deleuze e Félix Guattari, o

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filósofo mergulha no caos, ordenando-o para criar conceitos, traçar um plano de imanência e inventar personagens conceituais. Estes personagens efetivam-se como condições de possibilidade de produção de pensamento, cuja proveniência é a literatura. Cabe, então, esclarecer – embora eu saiba que em um simples texto não dará para desenvolver todos esses conceitos – o que seria a lei, a norma, o exterior e sua relação com o conceito do Fora1, a atração, a negligência conceitos, esses, desenvolvidos no pensamento de Foucault e trazendo, para melhor explicitar esses conceitos, as obras de Blanchot2. Ou seja, mostrar como a imbricação entre esses autores se toca e se converge para uma filosofia que trata não somente da formalidade, da formação do enunciado, mas que busca demonstrar os motivos que se dissimulam por detrás de tais formulações enunciativas. É preciso deixar claro que não se trata de uma busca formal do enunciado, ou de uma busca pela verdade de um enunciado, ou até mesmo de um enunciado tido como verdadeiro, mas uma busca que ultrapassa o próprio enunciado, o que ainda está por vir, por se formular, o próprio desejo e atração. Toda a obra de Foucault procura saber quais são as proveniências, as condições de possibilidade para a constituição do sujeito, dos enunciados, das regras, procurar conhecer as condições nas quais uma determinada forma de conhecimento emergiu recebendo o estatuto de verdade. Assim, para Foucault:

O conceito de Fora foi forjado por Blanchot. Tal conceito refere-se ao próprio espaço literário, ou seja, a literatura não se dá num espaço exterior ao mundo, ela é o fora, esse lugar sem intimidade, sem interior oculto, onde o artista é aquele que perdeu o mundo e que também se perdeu, uma vez que não pode mais dizer “Eu”. 2 Maurice Blanchot foi escrito, ensaísta, jornalista, romancista e crítico de literatura. Estudou filosofia na Universidade de Estrasburgo, em meados dos anos 20 onde conheceu Emmanuel Lèvinas, o qual se tornou seu grande amigo. Além da filosofia Blanchot estudou alemão na mesma universidade. Teve forte participação politica na França escrevendo para jornais de direita mostrando seu ponto de vista sobre o nacionalismo e sobre a esquerda francesa. Porém criticava toda forma de Estado autoritário, de antissemitismo. Sua escrita é uma forma de combate a todo e qualquer ódio e, também, como combate ao fascismo. Era uma literatura que podemos chamar de engajada. Blanchot em sua literatura é capaz de destruir, mudar, o seu próprio rosto, ou seja, através de suas obras percebemos a mudança que há no pensamento de Blanchot mostrando-se totalmente diferente de quando ele havia chegado a Universidade de Estrasburgo. Blanchot apaga seu próprio rosto. 1

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A questão é determinar o que deve ser o sujeito, a que condição ele está submetido, que situação deve ter, que posição deve ocupar no real ou no imaginário, para torna-se sujeito legítimo, deste ou daquele tipo de conhecimento; em suma trata-se de determinar seu modo de 'subjetivação' (...).HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. p.389, 2001.

2. A relação de Blanchot no pensamento de Foucault Foucault ao tentar compreender os diversos modos de subjetivação e de constituição do sujeito a partir das diversas forças e dos diversos poderes presentes na historia, − isso é percebido principalmente quando vemos sua arqueologia, sua análise sobre os extratos históricos −, é inegável que suas análises implicam em dois temas que estão correlacionados a essa busca pelas condições de possibilidade da formação subjetiva: a ética e a política. Nessa busca, pôde mostrar que “verdades” e “fatos” constroem-se a partir de certas condições, de certos regimes e discursos de verdade, que de acordo com certos regimes, tornam-se legítimos e inquestionáveis pelas suas próprias regras e condições. Dessa forma, o que importa para ele não é descobrir as coisas verdadeiras, mas antes, as regras, os jogos de verdade que estabelecem e legitimam discursos e práticas pelas quais o sujeito é legitimado a pensar, a agir e dizer sobre um determinado conhecimento. Foucault não vai se debruçar sobre quaisquer regras de verdade, mas somente sobre aquelas em que o próprio sujeito é colocado como objeto de um saber possível. Assim, a figura do louco, do delinquente, as práticas da psiquiatria, a sexualidade são temas riquíssimos para ele, pois retratam “a formação dos procedimentos pelos quais o sujeito é levado a observar-se, analisar-se, decifrar-se, a reconhecer-se como possível”. (HUSISMAN. 2001, pp.389). Em As palavras e as coisas, Foucault ao falar da literatura acredita que o espaço literário tinha a capacidade de criar novas formas de pensamento que se distanciava das concepções narcisistas e indentitárias da formação do sujeito. Com isso a filosofia do sujeito diante da literatura torna-se fragilizada. Abaladas pelas características próprias do espaço literário, onde este suposto

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sujeito é colocado em questão. Ele tinha a literatura como um espaço anárquico, porém com uma aproximação maior com a literatura Foucault irá perceber que a literatura perdeu seu carácter de ruptura e transgressão a partir do momento em que se alinhou às forças de mercados e ao sistema consumo. Foi Maurice Blanchot, escritor que teve grande influência no pensamento de Foucault, que pôde mostrar-lhe o caminho para abandonar a literatura devido à perda de seu carácter contestador e de exterioridade com as formas de sujeição. Segundo Foucault, aquele que estava mais tomado pela literatura (Blanchot), foi quem nos obrigou a sair dela. Se o papel da literatura era revelar-nos os processos de dominação efetuados pelo poder, agora, ela mesma estaria fazendo parte desse poder. Em seu texto A linguagem ao infinito Foucault começa-o com uma frase de Blanchot “escrever para não morrer”. A narrativa tem o poder de suspender o tempo. Assim Foucault diz: “o discurso como se sabe tem o poder de deter a flecha já lançada em um recuo do tempo que é seu espaço próprio”. De maneira semelhante, a morte que é o fato mais soberano, abre no próprio ser e no presente do homem um vazio “a partir do qual e em direção ao qual se fala”. Assim, a própria linguagem seria uma maneira dos homens se afastarem, pelo menos momentaneamente, do encontro final e derradeiro com a morte. As mais mortais decisões, inevitavelmente, ficam suspensas no tempo de uma narrativa (...). Os deuses enviam os infortúnios aos mortais para que eles os narrem; mas os mortais os narram para que esses infortúnios jamais cheguem ao seu fim, e que seu término fique longínquo das palavras, lá onde elas enfim cessarão, elas que não querem se calar. Cf. FOUCAULT. Ditos e escritos III, p.48.

A linguagem está ligada à morte por uma relação ambígua, ao mesmo tempo em que ela necessita da aproximação com o vazio da morte (a partir do qual se fala) para poder seguir seu caminho ao infinito, por outro lado, busca da própria morte um afastamento também infinito. Esta relação não seria outra coisa que a manutenção infinita da própria linguagem estendendo a vida

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para além dos limites da morte. “É bem possível que a aproximação da morte, seu gesto soberano, sua proeminência na memória dos homens cavem no ser e no presente o vazio a partir do qual e em direção ao qual se fala” (Idem). Se pensarmos nessa continuidade infinita da própria linguagem (a linguagem indo além dos limites da morte), percebemos o quanto a linguagem pode estar livre das determinações individualizantes do Eu. O sujeito, o Eu e a consciência de si só podem ser pensados a partir de um limite, de uma identidade, mas a linguagem, ultrapassando toda determinação, pode ser pensada ao infinito. Em homenagem à influência que Blanchot teve sobre o seu pensamento, Foucault escreveu um belíssimo texto intitulado O pensamento do exterior, onde Foucault ver e aponta nas obras de Blanchot uma experiência de dessubjetivação. A literatura de Blanchot oferece um espaço neutro onde o eu, o sujeito, a sua unidade subjetiva não está presente. Por isso, Foucault vai buscar na literatura, em especial nas obras desse autor, a possibilidade de se pensar em um espaço neutro, espaço em que há uma elisão do sujeito, em que o Eu apresenta-se destituído de toda a sua hegemonia imposta pela tradição. Para explicitar a diferença entre o pensamento do interior e o pensamento do exterior Foucault utiliza-se de duas formas: “Eu penso” e o “Eu falo” Cf FOUCAULT.M, Ditos e escritos III, p.220-221. No primeiro caso há uma presença de um sujeito que se apresenta como figura soberana, inquestionável pela própria natureza de pensar. No “Eu falo”, diz Foucault “há um vazio que circunda o próprio discurso afirmando seu caráter transitivo, de passagem”. Ou seja, no “eu falo”, tudo o que existe é a própria linguagem enquanto linguagem, o vazio a circunda tanto no instante anterior quanto no instante posterior ao seu discurso. Esse estado fugaz, de falta de conteúdo e fragilidade é menos uma fraqueza da linguagem do que a possibilidade de abertura para um espaço infinito que, ao invés de fundamentar a presença indispensável de um sujeito, dispensa-o, pois neste espaço de “pura linguagem” não há lugar para o estabelecimento de algo que não seja ela mesma, a própria linguagem.

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3. Um breve passeio pelas formas da escrita e pela filosofia Ao apresentar os conceitos de atração, negligência, zelo, ficção e vazio, na obra Ditos e Escritos (1994), em especial o texto A experiência do Exterior de Michel Foucault trás esses conceitos para elucidar o pensamento do autor em relação à experiência que temos com a exterioridade3, com o pensamento do exterior. Experiência, essa, que não se localiza na linguagem que podemos chamar de uma linguagem de representação, mas em outra, uma linguagem que tenta fugir desta. Uma linguagem que nos remete ao inconsciente, à negligência do zelo para com a lei, à atração irremediável pelo vazio. Com esse percurso podemos compreender o que Foucault fala sobre a literatura de Blanchot, o que nos possibilita entender a relação que há entre a lei e o vazio. Segundo Blanchot o que convém a nós chamarmos de “literatura” e com a qual temos uma experiência que de certa forma é mística, é que essa “literatura” veio com uma seriedade renovada depois que Mallarmé tendeu a tornar estéreis – distinções que consideram que há livros de crítica ou reflexão, enquanto outros recebem o rótulo de romance e outros, ainda, se dizem poemas. Segundo o autor (Blanchot) é provável que tais rotulações e distinções perdurem durante muito tempo, assim como haverá livros muito tempo depois de que o conceito de livro estiver esgotado – essas distinções. É que através delas e mais importante do que elas foi, então, possível vim à luz a experiência de alguma coisa que continuamos a denominar por “literatura”. Uma literatura renovada e entre aspas. Blanchot assinala que ensaios, romances, poemas davam a impressão de estarem ali, de terem sido escritos simplesmente para permitir que o trabalho da literatura se realizasse e, por intermédio desse trabalho, fosse formulada a questão: O que está em jogo no fato de poder existir alguma coisa como a arte ou a literatura? Questão essa que é extremamente premente, Há uma diferença conceitual entre o conceito de Fora de Blanchot, o qual Foucault faz utilização, para o conceito de Exterioridade, de experiência do exterior. Foucault irá fazer uso do conceito de Fora mas dando a esse conceito uma outra assinatura e será daí que deriva o seu conceito de exterioridade, de uma experiência do exterior , para que com isso pudesse fazer uma filosofia estando fora dela.

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angustiante e segundo ele é uma questão que escamoteava e ainda escamoteia uma tradição secular de esteticismo. No entanto ele não é imprudente ao ponto de afirmar que esse momento estivera ultrapassado, caso viesse a afirmar isso tal afirmação seria desprovida de sentido, como ele mesmo fala. A literatura se apropria do que quer que façamos do que quer que escrevamos – isso a experiência surrealista nos demonstrou – e dessa forma nós ainda permanecemos dentro da civilização do livro. Ele, contudo, atribui ao trabalho e as pesquisas literárias uma contribuição para abalar os princípios e as verdades abrigadas pela literatura. Tal trabalho, em correlação com determinadas possibilidades do saber, do discurso e da luta política, fez emergir, segundo ele não pela primeira vez – visto que tal origem, justamente, é a repetição, a persistência eterna – afirma nas obras, de maneira mais insistente, a questão da linguagem e por intermédio da questão da linguagem é levantada outra questão, a questão do escrever, esse jogo insensato do escrever. O escrever é uma experiência para ele que consiste em uma força aleatória, algo único, singular. Diferentemente da escrita, e aí consiste a crítica dele, que se pôs a serviço da palavra ou do pensamento dito idealista, ou seja, moralizante. A exigência para se escrever requer uma escrita onde ela seja essa força aleatória de ausência sendo, assim, uma escrita onde ela parece consagrarse apenas a si mesma, permanecendo sem identidade e, pouco a pouco libera possibilidades totalmente diferentes, um jeito anônimo, distraído, diferido e disperso de estar em relação, “um sujeito por intermédio do qual tudo é questionado, e, para começar, a ideia de Deus, do Eu, do Sujeito, depois da Verdade e do Uno, depois a ideia do Livro e da Obra” (BLANCHO,M. 2010, pp. 8). Com isso ele quer que essa escrita entendida em seu rigor enigmático longe de ter por meta o Livro, assinalaria, antes, seu fim: escrita essa que se poderia dizer fora do discurso, fora da linguagem. Para tornar claro – ou obscurecer a mente do leitor – o que Blanchot quer dizer ao se referir ao “fim do livro”, ou como ele mesmo diz “à ausência

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do livro”, não está pensando em aludir aos meios audiovisuais de comunicação com que tantos especialistas se preocupam. Que se possa interromper a publicação de livros em beneficio de uma comunicação pela voz, pela imagem, ou pela máquina, para ele isso em nada modificaria a realidade daquilo que denominamos de “livro” ao contrário, a linguagem, como palavra, nele afirmaria ainda mais sua predominância, sua certeza de ser uma verdade possível. De forma mais explícita o que ele fala é que o Livro indica sempre uma ordem submetida à unidade, um sistema de noções em que se afirma o primado da palavra sobre a escrita, do pensamento sobre a linguagem, e a promessa de uma comunicação que algum dia será imediata ou transparente. No pensamento de Blanchot sobre essa experiência da escrita ele suscita que é possível que o ato de escrever, no sentido blanchotiano, exija um abandono de todos esses princípios, ou seja, o fim e também a conclusão de tudo o que garante nossa cultura, não para voltar de forma idílica atrás, mas antes para ir além, até o limite, com o objetivo de tentar romper o círculo, o círculo, segundo ele, de todos os círculos: “a totalidade dos conceitos que funda a história, nela se desenvolve e da qual ela é o desenvolvimento”. (BLANCHOT, M. 2010, pp. 9). Escrever, ele supõe ser uma mudança radical de época é a própria morte, a interrupção, o ‘fim da história’, “e, nisso, passa pelo advento do comunismo, reconhecido como a afirmação última, visto que o comunismo continua sempre a estar além do comunismo” (BLANCHOT, 2010, pp.9) dessa forma, escrever passa a ser uma responsabilidade terrível. A escrita é convocada a desfazer o discurso no qual por mais infeliz que nos acreditemos, mantemo-nos, nós que dele dispomos, confortavelmente instalados. Essa convocação é invisível. Partido desse ponto de vista escrever passa a ser a maior violência que existe, pois transgride a Lei, toda a lei e sua própria lei. Ela não abandona a lei, ela vai além da lei e de sua própria lei, ela morre para ressurgir. Segundo fala Blanchot cada distinção, cada gênero tem sua forma a poesia tem sua forma, o romance tem sua forma, ou como ele prefere definir em

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sua nota de rodapé4 a poesia e o romance eles próprios são formas, palavras que então, longe de esclarecer algo, carregam a totalidade da interrogação. A procura da forma onde coloca em jogo o movimento mesmo de toda procura parece ignorar que ela mesma não a tem ou, como explicita o autor, recusa ponderar aquela que toma emprestada da tradição. “Pensar” aqui equivaleria a falar sem saber em que língua se fala nem que retórica se utiliza. Não há o cuidado de se pressentir a significação que a forma dessa linguagem e dessa retórica põe no lugar daquela cujo “pensamento” pretendia-se estabelecer. Com isso ele nos abre os olhos para essa procura da forma onde acontece de utilizarmos palavras eruditas, conceitos forjados em decorrência de um saber especial, isso é legítimo, mas o modo pelo o qual se manifesta o que está em questão na procura continua sendo o de uma exposição seguindo o modelo de dissertação escolar e universitária. O saber e o modo de escrita dessa forma estão presos à institucionalização do próprio saber e de reprodução escrita do pensamento. Contudo, são apontadas pelo autor algumas grandes exceções onde são citados certos textos do pensamento hindu, a primeira linguagem grega, inclusive a dos diálogos. A filosofia – filosofia ocidental – temos a exemplo a Summa de São Tomás de Aquino que possui uma forma rigorosa, uma lógica determinada e de um modo de questionar que se compõe já como uma forma de resposta ela realiza a filosofia como instituição e como ensino. Indo de encontro a isso, temos como exemplo, os Ensaios de Montaigne eles fogem a essa experiência de pensamento que pretende ter uma sede na universidade. Já no Discurso do Método de Descartes não vemos mais a forma de uma exposição como na filosofia escolástica, mas a forma dessa obra descreve o próprio movimento de uma procura, procura que liga pensamento e existência em uma experiência fundamental, sendo essa procura a de uma andança, a de um método e sendo esse método a conduta de pensamento, tal conduta é o modo de comporta-se e de avançar de uma pessoa que se interroga. Dessa análise ele No texto que compõe o livro A conversa Infinita: a palavra plural, ele lança uma nota de rodapé para explicar o que seria a forma e dizer que essa palavra não esclarece muita coisa.

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faz a seguinte observação: “a forma pela qual o pensamento vai ao encontro do que busca está ligada, muitas vezes, ao ensino. Já era assim para os mais antigos.” (BLANCHOT, M. 2010, pp 30). Temos como exemplo disso a diferença entre Heráclito para Sócrates, Platão, Aristóteles. Enquanto que para Heráclito não se tratava somente ensinar, mas é possível que o sentido do logos proposto quando ele fala esteja contido na palavra “lição”, a coisa dita a muitos visando a todos, “a conversa inteligente”, que segundo a interpretação de Clémence Rammoux em Héraclite ou l’homme entre les choses et les mots, conversa que, não obstante, se deve recolocar no quadro institucional sagrado. Sócrates, Platão e Aristóteles para eles o ensino é a filosofia. O que depois acontece é justamente a institucionalização da filosofia depois disso ela recebe a sua forma de instituição previamente estabelecida nos moldes da qual ela se institui: Igreja, Estado. Ainda na analise da escrita dos filósofos e da filosofia ele irá fazer referência aos que ele denomina de dissidentes desse modelo de filosofia-ensino. Como exemplos dessa dissidência ele fala de Pascal, Descartes e Spinoza, posto que eles não tinham a função oficial de aprender ensinando. Pascal escreve uma apologia, um discurso concatenado e coerente destinado a ensinar as verdades cristãs e disto persuadir aos libertinos, porém seu discurso através da dupla dissidência do pensamento e da morte5, para Blanchot manifesta-se como dis-cursus, curso desunido e interrompido que, pela primeira vez, impõe a ideia de fragmento como coerência.6 Na França do séc. XVIII o portador da filosofia será o escritor. Escrever é filosofar, dessa forma o ensino passa a ser o movimento vivo das cartas enviadas, dos libelos disseminados, dos opúsculos distribuídos. Os tempos áureos da filosofia crítica e idealista vão confirmar os laços que ela mantém com a Universidade. O filosofo é, sobretudo, professor. Isso ocorre a partir de Kant. Assim como Kant, Hegel consegue levar o papel do professor ao seu máximo, ele, um homem cuja ocupação é falar do alto de uma cátedra, redigir cursos e pensar submetendo-se as exigências dessa forma 5 6

A morte deve ser tida como o mais essencial dos acidentes para a linguagem. Cf. BLANCHOT, M. 2010, p. 30.

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magistral, isso não é dito por mim e nem por Blanchot com intenção depreciativa é apenas um relato do que realmente ele fez. Nesse encontro da sabedoria com a universidade existe um sentido, um grande sentido. É obvio a necessidade de ser filósofo a título de professor, isso significa dar à pesquisa filosófica a forma de uma exposição contínua e desenvolvida, e isso não pode permanecer sem consequências. Quando chegamos a Nietzsche, por exemplo, que também foi professor, mas teve que desistir de sê-lo por diversas razões e entre elas uma razão que é reveladora: de que maneira seu pensamento que tem um caráter itinerante, que se realiza por fragmentos, por afirmações separadas e que nelas mesmas exigem a separação, de que maneira Assim falava Zaratustra teria podido situar-se no ensino e coadunar-se às necessidades da palavra universitária? A maneira que a universidade pretendia/pretende manter de se fazer pensar e ser junto com a divisão mestre e discípulo é por Nietzsche rechaçada. “É com ele que algo insólito vem à luz7, como algo de insólito viera à luz quando o filósofo tomara emprestada a mascara de Sade, que já não representa o homem ex cathedra, mas o homem enterrado das prisões” 8. O filósofo não pode mais evitar ser professor de filosofia. Ao analisarmos as relações longínquas entre filosofia e ensino sob a ótica de Blanchot essa relação à primeira vista pode ser respondida da seguinte maneira: “lecionar é falar, e a palavra do ensino corresponde a uma estrutura original, a da relação mestre/discípulo” (BLANCHOT. 2010, pp.32). Está relação de mestre-discípulo por um lado é baseada numa relação oral que a ela seja específica e por outro lado essa relação possui certa anomalia que afeta, evitando todo o sentido realista, o que poderíamos chamar de o espaço interrelacional. Temos que entender que o filósofo não é apenas aquele que ensina o que sabe, e precisamos entender também que não devemos considerar Isto se exprime na ultima carta a Burckhardt “Prezado senhor professor, gostaria antes de ser professor da Basiléia do que Deus...”. 8 Cf. BLANCHOT, M. 2010, pp. 31. 7

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suficiente a atribuição ao mestre de um papel de exemplo e definir seu vínculo com o aluno como um vínculo existencial. O mestre, segundo o autor, representa uma região que é absolutamente outra do tempo e do espaço. O que isso quer dizer então? Podemos inferir sobre esse pensamento que o que existe em decorrência da presença do mestre é uma dissimetria nas relações de comunicação. Sendo mais precisa, isso quer dizer que no local onde ele se encontra o campo de relações deixa de ser uniforme para apresentar uma distorção que exclui toda relação direta e até mesmo a reversibilidade das relações. A existência da figura do mestre revela uma estrutura singular do espaço inter-relacional, e é em decorrência desse espaço que ocorre o distanciamento do mestre para com o aluno e esse distanciamento não é o mesmo do aluno para com o mestre, ou seja: entre o ponto A ocupado pelo mestre e o ponto B que é ocupado pelo discípulo, existe uma separação e uma espécie de abismo, separação que ali em diante rá tornar-se a medida de todas as outras distancias e de todos os outros tempos. Digamos, mais exatamente, que a presença de A para B, mas consequentemente também para A, uma relação de infinidade entre todas as coisas, e, antes de mais nada, na palavra que assume essa relação. O mestre, assim, não está destinado a aplainar o campo das relações, mas transformá-los; não a facilitar os caminhos do saber, mas, antes de mais nada, a tornálos não apenas mais difíceis, mas propriamente intransponíveis; o que a tradição oriental da atividade do mestre mostra bem. O mestre não dá coisa alguma a conhecer que não permaneça determinada pelo “desconhecido” indeterminável que ele representa, desconhecido esse que não se afirma pelo mistério, o prestígio, a erudição daquele que ensina, mas pela distancia infinita entre A e B. (BLANCHOT, M. A conversa infinita, pp.33).

É notável que essa relação baseia-se na palavra, ou melhor, a relação mestre-discípulo é a própria relação da palavra. O discípulo é posto a conhecer mediante ao que lhe é dado de antemão pelo o intransponível do “desconhecido”, o mestre induz o conhecimento para o discípulo através da medida do “desconhecido”. É uma espécie de avanço para a familiaridade das coisas, mas mantendo sua estranheza, é um referir-se a tudo por intermédio da própria experiência da interrupção das relações, essa relação refere-se a nada

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mais do que o ouvir falar e aprender a falar. Nesse âmbito que se faz possível aludir à relação mestre-discípulo a relação da palavra, quando nela o incomensurável se faz medida e a irrelação a relação. O “desconhecido” nessa relação se confunde com a pessoa do mestre dessa forma o “desconhecido” passa a ser o seu valor próprio, o seu valor de exemplo, seus méritos de guru e de zaddik. O “desconhecido” não é mais a forma do espaço inter-relacional em que o mestre é um dos termos, onde é ele o princípio de sabedoria. Dessa forma o ensino deixa de corresponder à exigência da procura já que o mestre contém em si a sabedoria plena que o discípulo busca e que a ele é negado através dessa relação mestre-discípulo apoiada no que se pode ser conhecido mas que ao discípulo é negado a oportunidade de conhecer.

4. Da relação mestre-discípulo à relação pensamento-linguagem O desconhecido que está em jogo na procura não é objeto nem sujeito. O desconhecido ao se articular com as palavras nos levará à infinidade, a partir disso podemos observar que a forma sob a qual essa relação irá realizarse deve ter um índice de curvatura tal que as relações de A (mestre) e B (discípulo) jamais serão diretas, nem simétricas, nem reversíveis, que essas relações de A para B e de B para A jamais formarão um conjunto e não terão lugar num mesmo tempo e, portanto não serão contemporâneas e nem comensuráveis. Existem duas alternativas que não convém para a resolução desse problema de relação; a primeira refere-se a uma linguagem de afirmação e de resposta, ou então uma linguagem linear de desenvolvimento simples, ou seja, uma linguagem em que a própria linguagem não fosse posta em jogo. Na tentativa e na ânsia de resolvermos esse distanciamento, essa relação com o desconhecido, acabamos por procurar as soluções para esse problema em direções opostas. Uma comporta a exigência de uma continuidade absoluta e de uma linguagem, segundo ele, que poderíamos chamar de esférica

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– forma essa que foi proposta pela primeira vez por Parmênides. A outra vai em direção à descontinuidade, ela comporta a exigência de uma descontinuidade mais ou menos radical, a de uma literatura de fragmentos. Essas direções se impõem alternadamente, para deixarmos mais claro essa alternância e imposição, retomaremos a relação mestre/discípulo, relação essa que se refere, simboliza a relação em jogo na procura – como já foi exposto aqui. A relação entre eles (mestre e discípulo) inclui a ausência de uma medida comum, a ausência de um denominador comum e com isso, de certa forma, a ausência de relação entre os termos. Partindo disso Blanchot evidencia uma preocupação inerente que essa relação possui: assinalar seja a interrupção e a ruptura, seja a densidade e a plenitude do campo resultante da diferença e da tensão. Dessa forma a continuidade traz em seu âmago o risco de ser apenas um desenvolvimento simples, suprimindo a irregularidade da “curvatura”. A descontinuidade, essa também, traz o seu risco de ser a simples justaposição de termos indiferentes. A continuidade e a descontinuidade são faces de uma mesma moeda já que uma abriga a outra em suas sombras. A continuidade jamais é suficientemente continua e nem a descontinuidade jamais é suficientemente descontínua. A continuidade torna-se linguagem oficial da filosofia com Aristóteles. Essa continuidade é a de uma coerência lógica reduzida aos três princípios – o da identidade, o da não-contradição e o do terceiro excluído – essa coerência presente em Aristóteles decorre, como diz Blanchot e Foucault, de uma determinação simples. Por outro lado ela não chega a ser realmente contínua e nem simplesmente coerente já que o Corpus do saber de Aristóteles institui por fragmentos, uma soma disparatada de preleções reunidas, posto que não nos dispomos dos textos de Aristóteles, mas das notas de seus cursos, de “cadernos” de alunos. Encontramos a pretensão de uma continuidade sistemática quando Hegel lança a sua dialética onde a continuidade engendrase a si própria, indo do centro à periferia, do abstrato ao concreto, não sendo mais somente a de um conjunto sincrônico, mas apropriando-se da duração e da historia é constituída como uma totalidade em movimento, finita e ilimitada

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de acordo com a exigência circular que reponde simultaneamente ao princípio do entendimento e a vontade de ultrapassamento da razão pela negação. Notamos que a forma da procura e a própria procura coincidem ou deveriam coincidir estreitamente. A palavra da dialética não exclui, mas tenta incluir o momento da descontinuidade, a dialética ela: Vai de um termo a seu oposto, por exemplo do Ser ao Nada; mas o que há entre os dois opostos? O nada mais essencial que o próprio Nada, p vazio do entre-dois, um intervalo que sempre se cava e cavando-se se preenche, nada como obra em movimento. Certamente, o terceiro termo, o da síntese, irá suprir esse vazio e ocupar o intervalo, mas em princípio, não o faz desaparecer (porque tudo pararia imediatamente) ao contrário, o mantém realizando-o, realiza-o na sua própria falta, e por isso faz desta falta um poder, ainda uma possibilidade. (BLANCHOT, M. A conversa infinita, pp.35).

A contradição posta pela dialética não representa uma separação decisiva, posto que dois opostos pondo-os apenas como opostos, ainda assim, são demasiadamente próximos. Dessa forma na forma da dialética, o momento da síntese, da reconciliação acabe sempre por predominar, já que um está de alguma forma engajado no íntimo do outro. A tentativa da exclusão da descontinuidade pode-se ser traduzida pela monotonia do desenvolvimento em três tempos, enquanto que institucionalmente ela culmina na identificação da razão e do Estado e na consciência da sabedoria e da Universidade. Notemos que esse discurso-escrita sempre está ligado a uma instituição, aparelhado por regras e leis que podem ou não torná-los e toma-los com o teor de “verdade” coerente. A Universidade é a soma de saberes determinados, que tem tão somente com o tempo a relação de um programa de estudos. O fato de que o sábio aceite desaparecer nesta instituição chamada Universidade isso é algo bem significativo. A palavra ensinada pela Universidade é contenta com a tranquilidade da continuidade discursiva. Essa palavra da universidade nada

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tem a ver com a estrutura da palavra mestre-discípulo que nos revelou uma ruptura, uma assimetria, um descompasso, uma descontinuidade. Das questões que é colocada à linguagem da pesquisa uma trata-se da exigência de uma descontinuidade. Dessa forma, então, como falar de modo que a palavra seja essencialmente plural? Essa pergunta é lançada por Blanchot e ele vai ainda mais fundo ao lançar o questionamento sobre a fala a palavra plural. Como pode afirmar-se a busca de uma palavra plural, fundada não mais na igualdade e na desigualdade, nem na predominância e na subordinação, tampouco na mutualidade recíproca, mas na dissimetria e na irreversibilidade, de tal modo que, entre duas palavras, uma relação de infinidade esteja sempre implicada como o movimento da própria significação? Ou ainda, como escrever de tal maneira que a continuidade do movimento da escrita possa deixar intervir fundamentalmente a interrupção como sentido e a ruptura como forma? (BLANCHOT, M. A conversa infinita, pp.36-37).

Notemos que toda linguagem que tem a função de interrogar, de propor perguntas e questões e não tem como função primordial ou principal de responder, tal linguagem da interrogação já é uma linguagem interrompida, uma linguagem na qual tudo começa pela decisão (ou distração)

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referente a

um vazio inicial. No entanto quando a escrita se contentasse somente com uma continuidade agradável ela mesma, a escrita, não passará disso, será apenas uma trama agradável, uma trama que se tornou aprazível assim como a caligrafia treinada. Quando escrevemos um texto as frases se articulam mais ou menos corretamente, as divisões em parágrafos, como diz Blanchot, são apenas divisões de comodidade; podemos observar que nos textos há uma preocupação com o movimento da escrita, nele há uma continuidade para que assim possa facilitar a sequência de leitura, mas tal movimento contínuo não pode abarcar uma continuidade absoluta. Esse excesso de continuidade – isso pode ser observado nas obras modernas, essa preocupação com uma palavra 9

Cf. Ibidem, p.37.

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que fosse profundamente contínua – chega a incomodar o leitor e, segundo Blanchot, prejudica nele (no leitor) os hábitos de compreensão normal.

5. O limite, a experiência exterior e a linguagem segundo Michel Foucault A linguagem a qual Foucault se refere não é uma linguagem da ficção e nem reflexão, tal linguagem não pertence a nada, nem do que já foi dito, nem do que, todavia, não foi dito, senão como um lugar, que entre ambos, é um lugar com um invariável ar de liberdade, a discrição das coisas no seu estado latente. A potência que cria no seu não efetivar-se como algo imutável. Quando nos referimos a um discurso que seja puramente reflexivo – isso cabe a qualquer discurso dessa natureza – correrá o risco de devolver a experiência do exterior a uma interioridade, a uma dimensão da interioridade. Isso nos aponta o risco de uma reconciliação com a consciência e dessa forma haverá uma tendência de desenvolvê-la numa descrição do vivido onde o “exterior” se esboça como experiência do corpo, do espaço, dos limites da vontade, da presença indelével do outro. Mas como a literatura nos aponta essa experiência da linguagem e do exterior? Para que possamos compreender melhor como a literatura nos aponta para essa experiência do exterior temos que evidenciar quando essa literatura – literatura que se remete e se refere a essa experiência e a essa forma de pensar a própria escrita, letra e linguagem – tivera suas condições de possibilidades para que se fizesse. Segundo Foucault a literatura, a “literatura” em seu rigor teve seu limiar de existência precisamente no fim do século XVIII, onde é nessa literatura erigida que podemos observar uma linguagem que consome a si mesma em outra linguagem, onde é essa linguagem-outra que faz nascer uma figura obscura mas dominadora na qual atuam a morte, o espelho e o duplo, o ondeado ao infinito das palavras. Habituamo-nos a acreditar que a literatura moderna se caracteriza por um redobramento que lhe permitiria designar-se a si mesma e quando ela faz essa autorreferência ela encontra um meio de ao mesmo tempo de se

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interiorizar ao máximo e de se manifestar em signos sua longínqua existência. É a esse acontecimento, segundo Foucault, que faz nascer o sentido estrito de “literatura”, essa literatura pertence à ordem da interiorização em uma abordagem superficial, tratando-se muito mais de uma passagem para o fora, ou seja, a linguagem escapa das suas próprias regras, do modo de ser do discurso, da lei que permeia a linguagem e que se duplica no espelho10, escapando, assim, da dinastia da representação. Dessa forma o discurso literário desenvolve-se sobre si mesmo construindo uma rede em que cada ponto está situado em relação aos outros em um mesmo espaço que ao mesmo tempo os abriga e os separa. A literatura faz com que a linguagem coloque a ela mesma o mais longe dela, ela (a literatura) não faz referência à linguagem se aproximando de si até o ponto de sua manifestação, de sua origem, de sua manifestação. A literatura busca uma linguagem que a coloque “fora de si” mesma desvelando o seu ser próprio. Esse movimento aponta-nos uma dispersão dos signos nos demonstrando muito mais um afastamento do que uma retração. O espaço da linguagem não é definido mais pela retórica mas pela biblioteca, isso implica em uma linguagem que seja devotada a si mesma, devotada a ser infinita. Essa linguagem da biblioteca substitui à dupla cadeia da retórica a linha simples, ela é uma linguagem fragmentada sustentada pelo infinito das linguagens fragmentadas. Ela encontra em si a possibilidade de se desdobrar, de se repetir de fazer o sistema vertical dos espelhos, imagens de si mesma, das analogias. Ela não repete nenhuma palavra, nenhuma promessa, mas se recua infinitamente até a morte dessa forma abrindo incessantemente um espaço em que ela é sempre o análogo de si mesma. Dessa forma demonstrando o seu movimento de autorreflexão, o seu olhar no espelho, o seu duplo, o seu caminhar ao infinito. Quando Foucault faz alusão ao espelho refere-se ao texto A linguagem ao infinito onde ele mostra a aproximação da linguagem com a morte e que são separadas por uma linha tênue e fina, uma fina espessura. É o jogo dos espelhos que dá à linguagem a possibilidade de se se multiplicar e de se afastar da morte, mas sempre estando permeada pela mesma. É esse afastamento e ao mesmo tempo essa aproximação da morte que faz com que a linguagem seja infinita, que sempre esteja em um movimento infinito sem começo, sem centro, sem fim.

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Ela para fazer esse movimento de autorreflexão, de jogar o jogo dos espelhos, de ter o seu duplo através dele é preciso que ela transgrida o limite a ela dado pela retórica, pela linguagem formal, como diz Blanchot, pela linguagem bruta e para isso é necessário à linguagem ficcional que é criadora de objetos e não apenas os representa. A transgressão transpõe e não se cansa de começar a transpor uma linha e a ao mesmo tempo desse movimento de transgressão fecha-se de novo num movimento de tênue memória, recuando-se novamente para o horizonte do intransponível, ao limite, ao proibido. Dessa forma o limite e a transgressão devem um ao outro a sua possibilidade de ser – um é em função do outro. Não necessita de oposição, não precisa de síntese, de um absoluto, mas apenas do movimento do possível. o limite abre violentamente para o ilimitado, se vê subitamente arrebatado pelo conteúdo que rejeita, e preenchido por essa estranha plenitude que o invade até o âmago. A transgressão leva o limite até o limite do seu ser; ela o conduz a atentar para sua desaparição iminente, a se reencontrar naquilo que ela exclui (mais precisamente talvez a se reconhecer aí pela primeira vez), a sentir sua verdade positiva no movimento de sua perda. E, no entanto, nesse movimento de pura violência, em que a direção a transgressão se desencadeia senão para o que a encadeia, em direção ao limite e àquilo que nele se acha encerrado? (FOUCAULT, M. Ditos e escritos III, p.32-33).

A partir disso inferimos que a transgressão não está para o limite assim como o exterior para o interior ou como o negro está para o branco. Ela (a transgressão) não opõe nada a nada, não procura abalar a solidez dos fundamentos porque ela não é a violência em um mundo partilhado, em um mundo ético, e nem triunfa sobre limites que ela apaga. Nada na transgressão é negativo, ela é o próprio movimento, é o seu transpor os limites que faz o ser dela, ela é, no seu amago, o movimento. Ela afirma o limitado, afirma o ilimitado ao qual ela se lança, dessa forma abrindo pela primeira vez à existência. Porém essa transgressão nessa afirmação não tem nada de positivo, pois por definição nenhum limite pode retê-la.

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Dessa forma a filosofia contemporânea, acredita Foucault, tenha encontrado e inaugurado uma possível afirmação não positiva, ainda segundo o pensador, é essa filosofia da afirmação não positiva, que Blanchot, acredita ele, definiu pelo princípio de contestação. Isso significa que aí não se trata de uma negação generalizada, mas sim de uma afirmação que nada afirma, é uma plena ruptura de transitividade. A contestação não é o esforço feito pelo pensamento para negar existências ou valores, mas sobre tudo, é o gesto que reconduz cada um deles aos seus limites, dessa forma nos conduzindo até o núcleo vazio no qual o ser atinge o seu limite e no qual esse limite define o ser, vazio.

BIBLIOGRAFIA FOUCAULT, M. Ditos & escritos: Estética: Literatura e Pintura, Musica e Cinema. VOL.III. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forence Universitária, 2001. ──────. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 22ª.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012. ──────. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martin Fontes, 1992. ──────. Resposta ao círculo de epistemologia. In: Estruturalismo e teoria da linguagem. Trad. de L.F. Baeta Neves. Petrópolis, Vozes, 1971. p. 12-52. ──────. O homem e o discurso: a arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1971. (Comunicação, 3).Cf. "Entrevista com Michel Foucault" por S.P. Rouanet e J.G. Merquior, p. 17-42; Rouanet, S.P., "A gramática do homicídio", p. 91-139. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a palavra plural, palavra de escrita.VOL.I. Trad. Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2010.

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──────. L'espace littéraire. France: Gallimard, 1978. DELEUZE, G. Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. 1ª.ed. São Paulo: Editora brasiliense, 2008. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Trad. Bento Prado Jr.; Alberto Alonso Muñoz. 3ª ed. São Paulo: Editora 34, 2010. LEVY, Tatiana Salem. A Experiência do Fora. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. BRUNO, Mário. Foucault e Blanchot (da analítica da finitude a experiência do Fora). In: Barthes/Blanchot: Um encontro possível? Rio de Janiro: 7 Letras, 2007. PELBART, Peter Pál. Excurso sobre o desastre. In: Barthes/Blanchot: Um encontro possível? Rio de Janiro: 7 Letras, 2007. MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro: Graal Editora, 1999. ───────. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. Trad. Claudia Berliner, Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes. 2001

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ASCETISMO E RELIGIÃO: PENSAR O HOMEM DO FUTURO COM NIETZSCHE E FEUERBACH LUÍS GUILHERME STENDER MACHADO1

Resumo: O que é religião? Qual o seu funcionamento e o que está por trás da vontade humana pelo transcendental religioso? Em que perspectiva a religião influencia a moral e o entendimento que o homem tem de si mesmo? Vemos uma grande atenção dedicada a esses questionamentos nos escritos dos filósofos alemães Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Ludwig Feuerbach (18041872). O que se nota, é que ambos os autores tinham uma preocupação em desmistificar a religião com o intuito de esclarecê-la ao homem, tornando-o mais consciente de si mesmo. Por um lado, temos Nietzsche, que através de sua genealogia, mostrará como a moral está condicionada ao ideal ascético religioso e como esse ideal resultará na negação da própria humanidade. Por outro, Feuerbach nos mostra uma identidade homem-deus e como a religião deturpa e inverte essa noção, tornando deus um criador ao invés de uma criação do Graduado em filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e mestrando pelo Programa de PósGraduação em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Orientação: Prof. Dr. Eduardo Ferreira Chagas (CAPES-UFC). E-mail: lg.01@hotmail.com

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intelecto humano. Os dois filósofos concordam em dizer o quanto a religião é nociva, a partir do momento em que rebaixa e nega o que há de mais humano e natural em nós. Vemos ainda, que ambos traçam alguns pensamentos acerca de uma filosofia do futuro, com uma proposta no sentido de esta ser mais voltada à questão humana, despojando-se de pensamentos metafísicos. Nosso trabalho se dá, portanto, no cruzamento dos pensamentos de Nietzsche e Feuerbach, procurando traçar uma defesa da humanidade a partir da crítica a religião; ao mesmo tempo em que entendemos o novo projeto de filosofia, destinada ao homem do futuro. Palavras-chave: Homem, Religião, Filodofia. Abstract: What is religion?What its operation and what is behind the human will by the religious transcendental?In which perspective religion influences the moral and the understanding that men has of themselves?We can see a great deal of attention devoted to these questions in the writings of German philosophers Friedrich Nietzsche (1844-1900) and Ludwig Feuerbach (18041872).What is noticed is that both authors had a concern in demystifying religion in order to clarify it to man, making him more aware of yourself. On the one hand, we have Nietzsche, who through his genealogy, show how the moral ideal is subject to religious and ascetic ideal as this will result in the denial of humanity itself. On the other, Feuerbach shows us a Man-God identity and how religion misrepresents and reverses this notion, making God a creator rather than a creation of the human intellect. The two philosophers agree in saying how much religion is harmful, from the moment that demeans and denies what is most human and natural on us. We see also that both draw some thoughts about a philosophy of the future, with a proposal to this be more focused on human issue, stripping is metaphysical thoughts. Our work takes place, however, at the intersection of the thoughts of Nietzsche and Feuerbach, seeking to draw a defense of the humanity from the criticism of religion; while we understand the new design philosophy, for the man of the future. Key-Words: Men; Religion; Philosophy of the future

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1. Introdução

O

homem, dito como o único ser de racionalidade, o único que sempre .busca o dominar todos os seres e o mundo, que sempre está insatisfeito .com o próprio futuro e, por isso, está sempre intencionado a tomar as rédeas da vida; que consegue abstrair-se e perceber-se como parte de um todo, de um gênero; que se organiza em sociedades complexas, constrói regras, leis e valores morais. Apesar disso tudo, o homem é um ser mais inconstante, insatisfeito e inseguro que qualquer outro; continuamos sendo finitos, não suportamos nossa limitação, nossa falta de sentido no mundo e não aceitamos nossa dependência à natureza. O homem é considerado o único ser que conseguiu se tornar consciente de si mesmo, o único que saiu de si e se reconheceu como parte de um grupo de semelhantes, a humanidade. Porém, ao tomar alguma consciência de sua própria existência, deparou-se o homem com a amarga realidade da sua finitude e essa constatação torna-se, posteriormente, a pergunta pelo sentido da vida. Acerca disso, encontramos pensamentos importantes nas filosofias de Nietzsche e Feuerbach. Mesmo com a ciência da dificuldade de uma aproximação e levando em conta todas as diferenças e perspectivas adotadas por ambos, ainda é valido perguntar até que ponto podemos traçar um paralelo entre a filosofia dos dois autores. Segundo o filosofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), esse sentimento de finitude, ou o sentimento de ausência de sentido na vida, eventualmente, se transformarão em uma “doença do espirito”

[...]o homem, o animal homem, não teve até agora sentido algum. Sua existência sobre a terra não possuía finalidade; “para que o homem? ” – era uma pergunta sem resposta; faltava a vontade de homem e de terra; por trás de cada grande destino humano soava, como um refrão, um ainda maior “Em vão! ” [...] algo faltava, [...] uma monstruosa lacuna circundava o homem – ele não sabia justificar, explicar, afirmar a si mesmo, ele sofria o problema do seu sentido. Ele sofria também de outras coisas, era sobretudo um animal doente [...]. (NIETZSCHE, F., 2015, p.139).

Para Nietzsche, pensar e viver uma vida sem sentido seria uma tarefa quase impossível para o homem, que “preferirá ainda querer o nada a nada

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querer” (NIETZSCHE, 2015, p. 80); as “lacunas” devem ser preenchidas e algum ser superior deverá existir para dar sentido à vida. Para Ludwig Feuerbach (1804-1872), quando o homem começa a tomar consciência de si e da sua própria finitude, começa também a pensar em possíveis formas de existência superiores, infinitas e ilimitadas. Segundo o filosofo, essas formas de vida são,æ na realidade, a própria noção de gênero humano2 que o homem projeta para fora de si e, inconscientemente, chama de Deus. Deus é, portanto, a consciência indireta de si no homem e é justamente esse sentimento de dependência ou – em termos nietzschianos – essa “doença”, a condição sine qua non, o principal fator para a criação da religião.

Sentimento de dependência e de finitude são então o mesmo sentimento. Mas o sentimento de finitude mais delicado, mais doloroso para o homem, é o sentimento ou a consciência de que ele um dia certamente acaba, de que ele morre. Se o homem não morresse, se vivesse eternamente, não existiria religião (FEUERBACH, L., 2009¹, p. 46)

Segundo ofilosofo, a gênese do fenômenoreligioso está na dependência da natureza, “é a natureza o primeiro objeto da religião” (FEUERBACH, 2009¹, p.38); o homem se vê limitado, mortal e totalmente dependente de forças exteriores para sua sobrevivência, a partir disso projeta na natureza (de forma inconsciente) toda sua lógica, forma de pensar e agir. O movimento de projeção faz com que o homem veja a natureza como vê a si próprio – como um ser de vontades – que agirá a partir de uma lógica puramente humana, porém de forma mais poderosa, potente e mais intensa; ou seja, como um deus. Diante dessa impotência, podemos considerar que a deificação da natureza se dá a partir do

[...]sentimento de dependência, o sentimento ou consciência que o homem tem de não existir nem poder existir sem um ente distinto de si e, portanto, de não dever a si mesmo sua própria existência. (FEUERBACH, L. 2009¹, p.24)

Para Feuerbach, o gênero humano é formado por uma “trindade” fundamental: a razão, a vontade e a sensibilidade; “Razão, amor e vontade são perfeições, são os mais altos poderes, são a essência absoluta do homem enquanto homem e a finalidade de sua existência” (2009¹, p. 36). Por um desconhecimento completo de si, o homem acaba por projetar suas próprias características e a adorá-las em outro ser.

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A religião é, portanto, a primeira forma de manifestação da consciência humana, onde o homem adora sua própria imagem refletida na natureza. Os dois filósofos acreditam que a religião vai tornando-se mais “sagrada” com o passar do tempo. Em Aurora (1887), Nietzsche afirma que existem algumas manifestações humanas (e podemos, sem dúvida, considerar a religião inserida nesse contexto) que ganham uma “racionalidade a posteriori” na medida em que “todas as coisas que vivem muito tempo embebem-se gradativamente de razão a tal ponto que sua origem na desrazão torna-se improvável” (NIETZSCHE, 2008, p. 15). Nesse sentido, Feuerbach também afirma que sua visão acerca da religião é crítica, pois devemos perceber que o fenômeno religioso parte de um mesmo princípio e o conserva, tornando as religiões críticas em relação às outras, mas mantendo sempre a mesma essência. Feuerbach afirma: A nossa relação com a religião não é, portanto, somente negativa, e sim crítica [...]. A religião é a primeira consciência de si mesmo do homem. As religiões são sagradas exatamente porque são as tradições da primeira consciência. (FEUERBACH, L., 2009¹, p. 267) O sentimento religioso (ou a criação de um deus) será uma forma que, à primeira vista, se mostrará mais “eficaz” para se entender algumas questões fundamentais postas pelo homem. Na religião, o homem se colocará fora de si, ultrapassará os limites naturais e criará um deus que será capaz de estar acima da natureza, suprindo as necessidades e desejos humanos. A partir daí Feuerbach afirmará uma de suas mais conhecidas máximas: “teologia é antropologia” (FEUERBACH, 2009¹, p. 29). Nesse sentido, os filósofos concordam: há uma falta de sentido, uma brecha a ser preenchida; há realmente uma “doença no espirito” e a partir do ideal religioso, que na visão de Feuerbach é auto causada por conta de um engano: se o homem entendesse seus limites e os da natureza, não necessitaria de religião que, por sua vez, aparece e é alimentada como a cura de uma doença advinda de uma falta de consciência, ou de uma consciência ainda pouco desenvolvida, daí Feuerbach afirmar que a religião é a primeira consciência ou a essência infantil da humanidade (FEUERBACH, 2009¹, p. 45). Para Nietzsche a tal doença é recorrente à maioria dos homens. Em A Genealogia da Moral (1887), Nietzsche nos explica que mesmo sendo o sentimento de finitude comum a todos, alguns foram privilegiados a ponto de serem considerados “bons”. Essa ideia de bom e mau está ligada a uma condição histórica que enalteceu os mais abastados como sendo os fortes, os bons enquanto que, em oposição, cabe tudo o que é doente – mau, fraco – à plebe, aos

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menos favorecidos. Juntamente aos bons estão os sacerdotes que, para Nietzsche são “os mais terríveis inimigos – por quê? Porque são os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. ” (NIETZSCHE, 2015, p.23). Os fortes são aqueles que escapam à regra da enfermidade, sendo assim, são mais virtuosos, suas conquistas são mais vastas e grandiosas, por isso são mais poderosos.A partir da condição que é empurrada ao “fraco” como a de um ser concupiscente, mau, etc., torna-se ele obrigado a ser subjugado ao mais poderoso, que o usará como meio de chegar aos seus objetivos. A partir dessa dominação, o mais fraco, naturalmente, passa a se sentir vítima do mais forte e nutrirá uma intensa vontade de vingança, um ressentimento. Nietzsche afirma:

Aqueles já de início desgraçados, vencidos, destroçados – são eles, são os mais fracos, os que mais corroem a vida entre os homens, os que mais perigosamente envenenam e questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós. (NIETZSCHE, F., 2015, p.103).

O ressentimento é o ponto de partida fundamental para a mudança de valores. Nietzsche aponta que ocorre um processo de “inversão moral” há mais de dois mil anos, desencadeada pelos judeus e enraizada em toda a cultura humana. “Um tal monstruoso modo de valorar não se acha inscrito como exceção e curiosidade na história do homem: é um dos fatos mais difundidos e duradouros que existem” (NIETZSCHE, 2015, p. 98). Essa tresvaloração foi um contra-ataque ao papel que os mais nobres imputavam aos menos favorecidos. Para Nietzsche,

Os judeus, aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas através de uma radical tresvaloração dos valores deles [...]. Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a equação de valores aristocrática (bom=nobre=poderoso=belo=feliz=caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão, a saber, “os miseráveis somente são bons, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança – mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados!...”

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Sabe-se quem colheu a herança dessa tresvaloração judaica... (NIETZSCHE, F. 2015, p.23)

2. O ideal ascético-teológico A inversão da moral tratada por Nietzsche é então uma inversão de cunho religioso3. Na perspectiva do judaísmo, toda a miséria se transformará em virtude, será sinônimo de bondade, justiça, humildade, ao passo que quem originalmente era virtuoso passa a ser visto como o “mal”, o explorador do “bom”, o ditador, etc. Sempre a figura do humilde, do frágil, estará relacionada ao bem; sempre o humilde sofre, e o único e exclusivo responsável por isso é o “mal”, o que detém algum tipo de poder.

Eles agora monopolizam inteiramente a virtude, esse fracos e doentes sem cura, quanto a isso não há duvida: “nós somente somos os bons, os justos”, dizem eles, “nós somente somos os homines bonae voluntatis [homens de boa vontade]. Eles rondam entre nós como censuras vivas, como advertências dirigidas a nós – como se saúde, boa constituição, força, orgulho, sentimento de força fossem em si coisas viciosas, as quais um dia se deve pagar, e pagar amargamente: oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar, como anseiam ser carrascos! ”. (NIETZSCHE, F., 2015, p.104).

Nietzsche observa que o próprio Jesus Cristo aparece como a personificação do ideal judeu, mas de forma renovada. A história cristã é uma história de sofrimento, penitencia, injustiça e violência por parte dos mais poderosos contra os mais “simples”, “mais humildes”, os “melhores espíritos”. Para o autor, a figura de Cristo carrega em si bem mais que a compaixão, o amor, etc.; pelo contrário, ela carrega uma história de vingança, uma lenta – mas profunda – inserção do ideal de inversão, ou nas palavras do próprio autor, uma “isca”: E porventura seria possível, usando-se todo o refinamento do espirito, conceber uma isca mais perigosa? Algo que em força atrativa, inebriante, estonteante, corruptora, igualasse aquele 3É

certo que Nietzsche afirma em outros textos que, durante anos, os próprios filósofos defenderam pontos de vista que desencadearam na “inversão da moral nietzschiana”, mas para fins do nosso estudo, essa questão não possui grande relevância.

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símbolo da “cruz sagrada”, aquele aterrador paradoxo de um “Deus na cruz”, aquele mistério de um inimaginável, ultima, extrema crueldade e autocrucificação de Deus para salvação do homem?...(NIETZSCHE, F., 2015, p. 24-25)

A morte de um deus que se torna humano em compaixão aos homens e é morto pelos mais poderosos reflete a consagração de uma nova ideia de moral que, por certo, consegue tirar de s a força opressora dos “senhores”, mas busca seus novos princípios não no homem, mas no que está fora dele. Dessa forma, a moral do homem comum, do rebanho, elege como seu ideal uma figura que não se reporta para o homem, para o eu, mas para o outro, para o não-eu...

Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigirse para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior [...] (NIETZSCHE, F., 2015, p. 26)

Feuerbach precede Nietzsche com um pensamento semelhante. O filosofo percebe que ainda que haja um sentimento que se torna criador da religião, existe um momento em que esse sentimento torna-se reflexão; o pensamento individual4 é abstraído e torna-se um pensamento generalizado, aqui o que era apenas um “sentimento religioso” transforma-se em “pensamento reflexivo”, ou seja, a religião mais simples torna-se teologia. Nosso objeto de estudo passa a ser a teologia cristã, pois a partir daqui teremos uma profunda inversão na relação Homem-Deus: se antes o homem fazia um reflexo de si no ato da criação divina – criando um novo ser completo, mas sem nenhuma corporeidade – agora é Deus que faz o homem à sua imagem e semelhança. “Primeiramente o homem cria Deus, sem saber e querer, conforme sua imagem e só depois este Deus cria o homem, sabendo e querendo, conforme a sua imagem”. (FEUERBACH, 2009, p.134); porém, toda imperfeição humana torna-se aqui evidente em detrimento da perfeição divina. O homem passa a ser mau, em detrimento ao seu bom Deus, passa a ser injusto em detrimento ao seu deus justo, etc.

Na visão de Feuerbach a religião possui uma via dupla: por um lado, existe um sentimento religioso que é individual e especifico (presente na maior parte das religiões mais antigas e esse é o porquê da existência de vários deuses); por outro lado, há uma reflexão acerca desse pensamento, que abstrai as diferenças da espécie e prevê um pensamento Uno, que se pauta no gênero humano (daí a teologia cristã adotar apenas um deus universal).

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Deus é o ser infinito; o homem o finito; deus é perfeito; o homem imperfeito; deus é eterno; o homem transitório; deus é plenipotente; o homem impotente; deus é santo; o homem pecador; deus e homem são extremos: deus é o unicamente positivo, cerne de todas as realidades; o homem é o unicamente negativo, o cerne de todas as nulidades. (FEUERBACH, 2009, p.63)

Levando em conta todas as diferenças fundamentais entre os dois autores, podemos pensar que a maioria das religiões anteriores ao judaísmo emanavam da nobreza que, por sua vez, possuía grande apoio sacerdotal (e inclusive também a dominava). É possível ter em vista diversos exemplos gregos e egípcios, onde os deuses se reportavam e protegiam os nobres (como na Ilíada de Homero, onde vemos o embate entre o príncipe Heitor e o semideus Aquiles); ou os próprios nobres eram os representantes dos deuses na Terra (como no caso dos faraós). Numa perspectiva feuerbachiana, ainda temos nessas religiões um ideal (não consciente) de homem mais próximo de – ou até sendo – Deus. Com a tresvaloração e a nova “moral de rebanho” abordada por Nietzsche, o homem deixa de ser igual a seu deus e passa a ser seu contrário, à medida em que seus próprios valores também se alteram. A partir do momento em que o que é considerado “bom” não é mais o mesmo que é considerado “nobre”, o homem passa a adotar um ideal contrário: o de humildade, infelicidade e fraqueza e entra em contraste com seu Deus, que possui toda a perfeição. Em outras palavras: quando os ideais nobres são abominados, o homem se empobrece; e quanto mais pobre o homem, mais rico seu deus. “Para enriquecer Deus deve o homem se tornar pobre para que Deus seja tudo e o homem nada. “ (FEURBACH, 2009, p.55). O que poderíamos entender em Feuerbach como “teologia”, personifica-se em Nietzsche com a figura do sacerdote asceta, uma figura que reflete todo o ideal em questão: o ideal ascético. Para o ideal teológico (na visão de Feuerbach) e ascético (na visão de Nietzsche), toda a valorização da vida não se encontra na vida mesma (isto é, na relação com o outro, na natureza, na transitoriedade), mas ao contrário, em uma outra existência, a qual exclui a realidade sensível, que se torna apenas uma ponte para uma vida eterna e livre dos limites impostos pela natureza. O “ideal ascético-teológico” é por isso uma negação à existência material e se figura como um “remédio”, com a falsa intensão de cura, porém,

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[...] não é preciso dizer que afinal demonstrou ser mil vezes mais perigoso, em seus efeitos ulteriores, do que a doença que deveria curar? A própria humanidade sofre ainda os efeitos dessas veleidades de cura sacerdotais! Lembremos, por exemplo, certas formas de dieta, o jejum, a continência sexual, [...] a isso junte-se a metafisica antissensualista dos sacerdotes, apta a fabricar indolentes e refinados [...] (NIETZSCHE, F., 2015, p.22)

Temos, portanto, que o ideal ascético surge a partir de uma necessidade de lidar e se desvencilhar do sentimento de finitude; “[...] o ideal ascético é um artificio para a preservação da vida. ” (NIETZSCHE, 2015, p. 101) e encontra na figura do sacerdote a sua realização máxima. “O sacerdote ascético é a encarnação do desejo de ser outro, de ser-estar em outro lugar [...]” (NIETZSCHE, 2015, p. 102) e, por isso, torna-se um pastor, um verdadeiro mentor de um rebanho de doentes de espirito (apesar dele mesmo ser um doente); ou seja, um líder,

A ele devemos considerar o salvador, pastor e defensor predestinado do rebanho doente: somente então entenderemos a sua tremenda missão histórica. A dominação sobre os que sofrem é o seu reino, para ela dirige seu instinto, nela encontra ele sua arte mais própria, sua maestria, sua espécie de felicidade. (NIETZSCHE F., 2012, p.106)

Em termos feuerbachianos, a religião vem no intuito de um novo entendimento sobre a vida, mas é com a teologia cristã que esse entendimento torna-se uma negação da vida, é aqui que o lugar em que veremos uma defesa a uma vida celestial em oposição a uma vida terrena; uma vida assexuada infinita e perfeita em oposição a uma vida de pecados. A partir da inversão de valores trazidas pelo ideal ascético, é papel do sacerdote propagar o ressentimento e, ao mesmo tempo em que mantém os doentes no mesmo estado de negação da vida, propaga um tipo de pensamento que atinge os sãos na medida em que torna vergonhosa a sua própria sorte e felicidade. Assim o sacerdote consegue juntar o maior numero de “cordeiros em seu rebanho”, e cura-los, pois, seu papel é tido como de alguém que cura as chagas do espirito: “Ele traz unguento e balsamo, sem duvida; mas necessita

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primeiro ferir, para ser medico; e quando acalma a dor que a ferida produz, envenena no mesmo ato a ferida [...]” (NIETZSCHE, 2015, p.107). Segundo Nietzsche, o verdadeiro papel do sacerdote não é o de curar (pois como visto ele não cura), o motivo da existência desse pastor é transformar a raiva do ressentimento em culpa, pecado, mansidão, transformando, por fim, os enfermos em seus dependentes e, dessa forma, transformando ódio em subserviência. O sacerdote asceta é o responsável pelo que Nietzsche chama de “mudança na direção do ressentimento”. Como foi dito, todos sofremos por algo que não conseguimos explicar, Feuerbach afirmaráque o sentimento de dependência(a partir do qual teremos medo, gratidão ou revolta com algo exterior a nós) é fundamental para a criação da religião, é uma exteriorização da própria humanidade que se volta para si. O homem inconscientemente projeta a si e adora a si mesmo em outro; dessa maneira, o sentimento religioso é algo praticamente instintivo. A problemática vista por Feuerbach (assim como vemos semelhantemente em Nietzsche) é, como foi dito, quando esse sentimento se transforma em teologia. A inversão teológica negará a vida e a própria corporeidade; tudo o que é humano e não foi projetado em deus será um motivo para que se negue a própria essência – a própria humanidade – em vistas a esse ideal – que não é mais do que um impulso da imaginação humana – Deus. Consequentemente, será uma pretensão ideal do religioso, tornar-se esse deus, mas para que isso se realize é necessário que se negue a materialidade, a corporeidade, o próprio mundo, a própria natureza. É interessante que notemos Nietzsche, que afirmará que o verdadeiro papel do sacerdote é o de internalizar a culpa no próprio doente, ou seja, o doente passa culpado por sua própria doença;de acordo com o ideal, esse problema da finitude não existe naturalmente, ele existe através da própria imperfeição, da própria maldade e injustiça humana (como no caso do pecado original, por exemplo). A culpa cristã será tratada por Nietzsche como uma das piores heranças deixadas pelo ideal religioso. Passa-se, pois, no pensamento cristão, a abominar tudo que há de carnal, material e natural; há aqui um ideal de negação da natureza com a de primazia de um novo plano existencial: um paraíso que se afasta da vida limitada e sem sentido, um lugar perfeito que entra em estreita contradição com a imperfeição do nosso mundo,

A salvação da alma é a ideia fundamental, a questão principal do cristianismo, mas esta salvação só está em deus, só na concentração nele [...]. Masdeus éa subjetividade absoluta, a subjetividade divorciada do mundo [...], libertada da matéria

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[...]. A separação do mundo, da matéria, é portanto a meta essencial do cristão. E esta meta se concretizou de modo sensorial na vida monástica. (FEUERBACH, L. 2009¹ p. 172)

Nesse sentido, Nietzsche e Feuerbach vão pela mesma via ao afirmar que o ideal religioso pregará uma negação humana ao próprio corpo. Em uma palavra: “do céu está excluído o princípio do amor sexual como um princípio térreo, mundano. Mas a vida celestial é a vida verdadeira, perfeita e eterna do cristão” (FEUERBACH, 2009, p. 175).Feuerbach afirmará que:

A vida monástica e ascética em geral é a vida celestial da maneira em que ela pode se manter e se conservar aqui. Se a minha alma pertence ao céu, sim, por que devo, como posso eu pertencer à terra com o corpo? (FEUERBACH, L. 2009, p.173)

Já em Nietzsche, é papel do sacerdote, difundir o “ideal ascético”, uma espécie de santificação que tem como consequência a ideia de pecado e a introdução da ideia de “culpa”.O ideal ascético transforma aquele ressentimento – que fora interiorizado pelo mais fraco em relação ao nobre – em culpa, tem-se a ideia de que a culpa da miséria é um reflexo das próprias ações dos miseráveis e não mais causada por um fator exterior. Existe uma culpa subjetiva; a injustiça, a maldade, a inveja, a gula, a cobiça, o sexo, o desejo carnal; tudo isso contribui para alargar a ferida. A partir daí não se precisa mais da figura de um “vigia”, de um “guarda, “do outro”: o próprio homem deve adotar uma ética que o faça ser responsável por se regular e privar-se de si mesmo afim de atingir a redenção divina e diminuir a dor. A ideia de se equiparar à figura Cristo, por exemplo, é um reflexo do ideal ascético. Jesus era um homem, porém, nunca cometeu “o pecado da carne”, não promoveu a ira, mas a bondade (pelo menos a bondade no sentido cristão), a humildade, a mesura, etc. Como modelo ideal, qualquer um pode – e deve – agir como esse homem e se não conseguir deve pagar o preço de seu fracasso.Com isso, o sacerdote consegue transformar o ressentido raivoso em um ressentido entorpecido, pois o próprio doente se regulará, buscará um certo tipo de “satisfação”, negará a si próprio. 2. Uma filosofia para o futuro Nietzsche e Feuerbach se colocarão em radical oposição ao ideal ascéticoteológico, a filosofia dos autores propõe acima de tudo, uma valorização da vida,

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do outro e da natureza. Feuerbach aponta que somente através da negação da religião o homem poderá se conectar de forma mais satisfatória com o outro, estabelecendo assim uma nova comunidade que preze pela valorização da própria comunidade, em harmonia com a natureza.

A nova filosofia faz do homem, com a inclusão da natureza, enquanto base do homem, o objeto único, universal e supremo da filosofia – faz, pois, da antropologia, com inclusão da fisiologia, a ciência universal. (FEUERBACH, L., s.d, p.97)

Para ele, a filosofia deve tomar um novo papel que a faça descer do plano celestial e se paute na própria materialidade, na própria sensibilidade. A nova filosofia deve ter o papel de

[...] reconduzir a filosofia do reino das “almas penadas” para o reino das almas encarnadas, das almas vivas; de a fazer descer da beatitude de um pensamento divino e sem necessidades para a miséria humana. Para esse fim de nada mais precisa do que de um entendimento humano e de uma linguagem humana. (FEUERBACH, L., s.d, p.38)

Nietzsche admite que, de certa forma, o ideal ascético conseguiu preencher a lacuna da falta de sentido humano. O cristianismo, sobretudo, foi uma das religiões que mais conseguiu lidar com o desespero humano da falta e da dependência.

Nele o sofrimento era interpretado; a monstruosa lacuna parecia preenchida; a porta se fechava para todo o niilismo suicida. A interpretação – não há duvida – trouxe consigo novo sofrimento [...]. Mas apesar de tudo – o homem estava salvo, ele possuía um sentido, a partir de então não era mais uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo, do sem-sentido, ele podia querer algo (NIETZSCHE, F., 2015, p. 139)

Porém, deve-se agora negar esse ideal e a filosofia do futuro deve trazer uma nova visão que seja condizente ao homem do futuro. Acerca disso, Nietzsche não defende uma proposta sistemática ou um novo projeto filosófico,

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seu papel é o de descontruir os edifícios filosóficos que aprisionaram ao mesmo tempo em que promove uma busca pelo espirito livre, para a nova filosofia:

[...] para onde apontaremos nós as nossas esperanças? – Para novos filósofos, não há escolha; para os espíritos fortes e originais o bastante para estimular valorizações opostas e tresvalorar e transtornar “valores eternos”, para precursores e arautos, para homens do futuro que atem no presente o nó, a coação que impõe caminhos novos à vontade de milênios (NIETZSCHE, F., 1999, p. 103)

É interessante notar que, dessa forma, Nietzsche e Feuerbach negam a ideia “natureza pecaminosa e concupiscente do homem”, afirmam que esse ideal é uma construção, “[...] “a natureza pecaminosa” do homem não é um fato, mas apenas uma interpretação de um fato [...] vista sob uma perspectiva moral- religiosa que para nós nada mais tem de imperativo” (NIETZSCHE, 2015, p.110). Portanto, podemos notar que Feuerbach, por uma via psicológica, critica toda a base da religião e chega à uma crítica a toda negação da natureza e do homem promovida pelo cristianismo. Já Nietzsche, trata do aspecto moral, uma consequência de tais negações afirmadas pelo pensamento cristão e religioso em geral. Podemos afirmar que ambos os autores tinham em mente um “resgate” ao homem da nebulosidade religiosa. Feuerbach de um lado, promove uma filosofia que procura “tornar os homens [...] de candidatos do além, estudantes do aquém” (2009, p.36). Pelo mesmo caminho, a tarefa de Nietzsche é a de

Preparar para a humanidade um instante de suprema tomada de consciência, um grande meio-dia em que ela olhe para trás e para adiante, em que ela escape ao domínio do acaso e do sacerdote [...], essa tarefa resulta necessariamente da compreensão de que a humanidade não segue por si o caminho reto, que não é regida divinamente, que na verdade sob suas mais sagradas noções de valor, foi o instinto de negação de denegação [...] que governou sedutoramente [...]. A perda do centro de gravidade, aresistência aos instintos naturais, em uma palavra, a “ausência de si” – a isto se chamou moral até agora... (NIETZSCHE, F. 2013, p.76)

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BIBLIOGRAFIA FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Tradução de José da Silva Brandão; Rio de Janeiro: vozes, 2009. ____________________. Preleções sobre a essência da religião. Tradução de José da Silva Brandão; Rio de Janeiro: vozes, 2009¹. ____________________. Princípios da filosofia do futuro. Tradução de Artur Mourão; Lisboa: edições 70, s.d. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro (Trad. Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ___________________. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. (trad. Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2013 ___________________. Genealogia da moral: uma polêmica. (trad. Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2015

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CONTRA A PLURALIDADE AGAINST PLURALITY JOSÉ JOÃO NEVES BARBOSA VICENTE1

Resumo: Para Arendt, o fenômeno totalitário destruiu a pluralidade humana, isto é, a condição de toda a política autêntica, mas devemos sublinhar, também, que antes do aparecimento dos regimes totalitários, Platão já tinha se posicionado abertamente contra essa pluralidade, ou em outros termos, ele já tinha negado essa condição como sendo a base para toda a política. Devido ao prestigio filosófico de Platão e sua importância dentro da tradição de pensamento ocidental, suas ideias e posicionamentos referentes a essa questão merecem ser analisadas, e para fazermos essa análise, apoiaremos nas considerações de Arendt sobre a recusa de Platão à essa condição humana fundamental que é a ideia da pluralidade. Palavras – chave: Diálogo; Doxa; Pólis, Política.

Abstract: For Arendt, the totalitarian phenomenon destroyed human plurality, that is, the condition of all authentic policy, but we should emphasize, too, that before the emergence of totalitarian regimes, Plato had already positioned himself openly against this plurality, or in other words, he had already denied this condition as the basis for all policy. Due to the prestige of Plato's philosophy and its importance within the tradition of Western thought, their ideas and positions regarding this question deserve to be analyzed, and to do this analysis, we will support the considerations of Arendt on the refusal of Plato to the fundamental human condition which is the idea of plurality. Keywords: Dialogue; Doxa; Pólis; Politcs. 1

Professor de filosofia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

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m dos conceitos fundamentais presente em todo o pensamento político de Arendt e indispensável para se pensar a política autêntica é, sem dúvida, o conceito de “pluralidade”. Sua crítica sistemática

dirigida aos regimes totalitários do século XX, como aparece, por exemplo, em sua obra Origens do totalitarismo (1989), encontra-se fundamentada na convicção de que tais regimes destruíram a pluralidade humana em suas desesperadas tentativas de “fabricar um novo homem” em seus “laboratórios” ou “fabricas da morte”, famosamente conhecidas pelo nome de “campos de concentração”. Mas, antes de ser destruída totalmente pelos regimes totalitários, a pluralidade humana, nos lembra Arendt, foi radicalmente negada e recusada por Platão no início da nossa tradição de pensamento político; essa constatação de Arendt é o primeiro registro que temos de um filósofo da tradição do pensamento ocidental contrário à pluralidade humana. Em termos arendtianos, Platão, ao contrário de Sócrates cuja ideia da pluralidade estava presente na totalidade do seu pensamento, nunca se preocupou em pensar a política longe da ideia de uma relação “comando e obediência”. Tal ideia é perigosa, pois tende necessariamente a enxergar o espaço político ou público não como o lugar de debate entre iguais, mas sim como algo que pode ser reduzido às instituições estatais ou simplesmente ao jogo privado e interesseiro dos partidos políticos. Platão, portanto, em suas reflexões sobre a política, não deixou brechas para uma possibilidade de se pensar um “espaço”, como disse Roviello (1997, p.23), “onde se institui, e, por conseguinte, se revela a comunidade do mundo”. Platão, portanto, nas palavras de Arendt (2002, p.21), nunca se preocupou em pensar a política como uma atividade cuja base essencial é a “pluralidade dos homens”, ou seja, uma atividade humana que trata fundamentalmente da “convivência entre diferentes”. Para Arendt, portanto, co mo observou Vallée (2003, p.25), não há política sem a pluralidade humana e sem o espaço público para diálogos “onde cada um pode participar junto dos seus pares, ter a alegria de aparecer em

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público e de poder realizar com outros o que seguramente não poderia fazer sozinho”. A pluralidade humana para Arendt (2009a, p.16), não é simplesmente uma ideia que deve ser dita pela linguagem, mas é a base para se pensar e praticar a política autêntica, ela também garante a nossa condição humana, a saber, que “ninguém” é “exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir”; por isso, para ela, é preciso rejeitar, por exemplo, a ideia de Platão cuja proposta é negar aos homens essa pluralidade. Platão, na verdade, em termos arendtianos, nunca teve qualquer preocupação em tornar o pensamento algo relevante para a instauração e manutenção do mundo comum, para ele, a pluralidade nunca foi a “lei da terra” e engajar-se no sentido de agir e falar na companhia de muitos nunca foi o princípio básico do seu pensamento e nem uma recomendação para os homens, para ele, o importante, se quisermos fazer aqui o uso das palavras de Arendt (1993, p.94) é se preocupar “com as coisas eternas, não - humanas e não - políticas”. Para Arendt, portanto, Platão não é aquele pensador cuja preocupação é unir o pensamento e a política, pois para ele, política jamais deve ser entendida como algo capaz de ser feita, por exemplo, na ágora, ele também não está interessado em preservar e desenvolver as opiniões dos indivíduos e nem pretende incentivá-los assumir e a fundamentar tais opiniões na presença dos outros, para ele, na verdade, as opiniões devem ser totalmente renunciadas. Isso mostra, pelo menos em parte, que Platão não admite a ideia de pluralidade como algo que fundamenta toda a política autêntica e nem sonha em tornar a filosofia algo relevante para a política. Para Platão, portanto, a política não se faz através dos debates de opiniões infindáveis e indeterminadas cujo fim só pode ser ilusão, desordem, confusão e violência, para ele, não há necessidade de valorizar opiniões ou debates a partir delas, pois através de opiniões jamais se chegará à verdade, as opiniões permanecem no mundo da ilusão ou da aparência; nada é capaz de ser iluminado ou esclarecido por meios de debates de opiniões, pois estes apenas tornam as questões mais obscuras.

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Platão não é, portanto, o pensador da “praça pública” interessado em debater opiniões, ele não o pensador que alimenta a política por meio de debates, uma prática que, para Arendt, constitui a vida política. Platão não acredita que o debate de opiniões possa conduzir o homem a uma ideia verdadeira de justiça ou de coragem, por isso, para ele, nunca se deve motivar o indivíduo no sentido de elucidar ou desenvolver suas opiniões, nada pode ser concebida apenas como aparece para cada indivíduo, as coisas são como são e devem ser entendidas ou alcançadas tais, não se pode fazer política, por exemplo, tomando como referencia o ponto de vista de cada pessoa, ou a compreensão do mundo como aparece para cada um, é preciso fazer política tendo em vista a sua ideia em si, e isto não se alcança através de opiniões. É preciso que se busque chegar sempre a algo absoluto válido para todos e nunca a algo ilusório ou aparente, por isso é preciso deixar de lado o modo como o mundo se abre para cada indivíduo em particular e de acordo com a situação ou posição que se encontra; opiniões, em termos platônicos, para usarmos aqui as palavras de Arendt (2009, p.56), não servem para que o indivíduo seja capaz de “mostrar-se, ser visto e ouvido pelos demais”. Não há espaço, portanto, no pensamento de Platão para que todos tenham opiniões válidas e discutíveis em públicos e que as mesmas possam ter algum valor para o bom funcionamento da política. Definitivamente, a política como pensada por Platão, não é o campo onde se considere as múltiplas perspectivas da comunidade, como também não é o espaço propício para se tolerar as ilusões, as aparências e as contradições provenientes dos debates de opiniões divergentes. É preciso que o político seja capaz de encontrar a verdade e fazer com que todos possam vê-la, evitando assim aquilo que Arendt (2009, p.60) descreveu como sendo “a maior quantidade e variedade possível de realidade”, sua preocupação nunca deve ser voltada para a maneira como o mundo aparece para cada um, mas no sentido de evitar a contaminação da política através da proliferação das opiniões, pois estas não atingem a verdade, ou como disse Amiel (1997, p.86), as opiniões como entendidas por Platão, “não se conclui numa verdade geral”. A política deve buscar o absoluto e comum a no 9 - semestre 1 - 2016

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todos, ela não deve se perder nas infindáveis opiniões debatidas sem qualquer objetivo concreto ou finalidade que se possa definir como verdade; a valorização dos debates de opiniões serve apenas para criar um ambiente onde governar torna-se uma atividade desnecessária. Em termos aredntianos, Platão não valoriza a pluralidade humana, na verdade, ele recusa a aceitá-la como sendo a base de fundação e de sustentação de toda a atividade política autêntica, pois para ele não se pode afirmar que o mundo real é algo que aparece quando é discutido com os outros, pois se assim fosse, teríamos que admitir uma infinidade de mundo e de realidade que em nada contribuiria para uma política que se pretende ser sólida; nenhuma realidade, para Platão, é construída através de debates infindáveis de opiniões diferentes e sem qualquer consistência e, portanto, a pluralidade não serve como critério para se pensar uma política autentica e duradoura, Platão, portanto, definitivamente não se interessa em unir a filosofia e a política e nem pretende demonstrar o papel da filosofia para a política, como também não se preocupa em fazer com que cada cidadão se torne um participante efetivo da vida pública. Platão, portanto, apesar de ter sido discípulo de Sócrates, ele não age como o seu mestre, um filósofo cujo pensamento uniu a filosofia e a política, e um dos motivos para tomar um caminho diferente do mestre, de acordo com o próprio Platão (1999, p.59), está no ligado ao processo que acusou Sócrates de ser um pensador que recusou “aceitar os deuses que são reconhecidos pelo Estado” e de ter introduzido “novos cultos”, bem como “de corromper a juventude”. Uma acusação da qual Sócrates não foi capaz de comover no tribunal uma quantidade suficiente entre os quinhentos cidadãos que constituíam o júri. Para Platão, não há motivo para acreditar na vida política como estava desenhada e funcionando em Atenas, assim como é preciso também duvidar dos debates infindáveis de opiniões divergentes; é necessário fazer oposição à opinião através da verdade, mas isso deve acontecer de forma radical, não há como justificar o valor da opinião para o funcionamento da política, esta deve

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se pautar sobre questões absolutas e não sobre ilusões e aparências. É preciso colocar a verdade absoluta no lugar da opinião, assim como é preciso, também, fazer política baseada unicamente na razão e jamais na opinião, esta, na verdade, deve ser desvalorizada de forma total e absoluta toda a verdade, seja ela política ou de qualquer outra espécie, deve ser sempre para Platão, como disse Arendt (2009, p.48) “entendida como diametralmente oposta à opinião”, e concebida como algo universal e absoluta, desse modo, portanto, qualquer opinião deve ser entendida como uma forma de ilusão. Não há espaço para a pluralidade no pensamento de Platão, se entendermos que, como disse Arendt, na esfera dos assuntos humanos, a verdade é sempre relativa e aberta ao debate. Para Platão apenas devemos falar de verdade como algo viável apenas para um ser solitário, abstrato e totalmente separado de qualquer relação com os outros. Platão, portanto, pensa de modo radicalmente contrário à opinião e à persuasão retórica, em seu pensamento as questões referentes às opiniões particulares, como disse Vallée (2003, p.57), “se transforma em coerção pela verdade”. A política, para ele, não é pensada como participação na ação comum, mas como uma comunidade que, como disse Arendt (2009a, p.234), “consiste em governantes e governados”, Platão acredita que o critério básico e fundamental de um homem para governar os outros, não consiste no debate de opiniões, mas sim ser capaz de governar-se a si mesmo, por isso só o “rei filósofo” reúne as condições e a competência capazes de governar os outros em uma comunidade politicamente organizada.

Para Arendt (2009a, p.236-239),

Platão faz uma aplicação das suas ideias políticas nos mesmos moldes que um “artesão aplica suas normas e padrões; ‘faz’ sua cidade como o escultor faz uma estátua”. Em outros termos, significa dizer que Platão compreende o sentido autentico da política de acordo com o modelo de fabricação. Platão não quis se arriscar no mundo da fragilidade dos negócios humanos, ele preferiu a solidez da tranquilidade e da ordem, isso em termos arendtianos, pode ser entendido como um abandono da responsabilidade ou como uma tentativa de se fazer a política negando-a radicalmente; de todo

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modo, Platão estava ciente que a sua teoria pretendia evitar que a política se transformasse em um cenário onde a balburdia de vozes discordantes acabaria dominando as questões essenciais, levando os homens a uma ilusão generalizada, para ele, a política não se faz na gritaria, ou seja, a política não se resume ao grito individual e egoísta de cada indivíduo em particular, sem nenhuma compreensão adequada da essência e da necessidade do todo; a política não poder entendida em termos de uma ação que pensada individualmente por cada um, sem dizer o que ela é exatamente. Para Platão, portanto, não só devemos dizer o que a política é, de fato, como também é necessário entendermos que nenhum homem é capaz de viver em harmonia com o seu semelhante de maneira legítima e política, sem que um desfrute do direito de comandar o outro e fazê-lo obedecer. Política, portanto, não se faz com belas palavras ou com eloquência; política não é o campo onde devemos encantar as pessoas com palavras dóceis e amáveis, ou seja, com belos discursos que não dizem nada sobre o seu objeto e que apenas enganam e iludem aqueles que dão ouvidos a eles. No campo da política é preciso trabalhar com a verdade, com aquilo que é. A política, portanto, em termos platônicos, não tende para o lado da participação ativa dos cidadãos nos assuntos públicos por meio de debate de opiniões, ela precisa ser encarada com espaço de decisão e de execução, para isso apenas aqueles que são preparados e competentes para essa função deverá abraçar e executar essa tarefa. Em termos gerais, se pensarmos com Arendt, ao negar a pluralidade humana como fundamento para toda e qualquer política autentica, Platão substitui de forma radical o “agir” pelo “fazer”. Para ele, a “ação” como entendida por arendt, é interpretada nos moldes do “fazer”, e quando ele adota esse tipo de postura para o seu pensamento político, ele acaba por introduzir, pelo menos de acordo com a compreensão arendtiana, certa violência na ação. Por isso que, para essa autora, o filósofo grego recusou de modo radical a ideia da pluralidade humana.

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A filosofia política de Platão, como interpretada por Arendt, pode ser entendida como uma teoria cujo objetivo é destruir o sentido autêntico da política, pois em sua essência, ela nega de forma radical aquilo que fundamenta e sustenta a política, a saber, a pluralidade humana. Sem a pluralidade humana a política concebe os homens como “Um” e sem qualquer espaço entre eles para um a ação e o discurso, ou seja, a política sem o reconhecimento da pluralidade humana tende, necessariamente, a uma negação da pessoa como tal, isso inclui, fundamentalmente, sua diferença em relação a todos os outros. Nenhuma política, nos lembra Arendt (1989, p.518), pode pretender transformar os homens em um ser de “dimensões gigantescas”, pois desse modo, a própria vida política é destruída, bem como a vida privada de cada indivíduo em particular. Quando recusa a pluralidade humana de forma radical, qualquer política se transforma em algo impossível de conviver, pois os indivíduos sem a possibilidade de debater e de discutir suas opiniões divergentes no espaço público, simplesmente se isolam e deixam de existir como matéria política. Não há terror maior do que uma política que negue o debate público de opiniões divergentes sobre assuntos que interessam a todos, ser submetido a essa condição é não pertencer ao mundo de forma alguma. Quando se pensa a política longe da ideia de pluralidade humana, buscase destruir a própria pessoa humana através de um ato que mata a sua dignidade e ofusca a sua diferença perante os outros; sua estima, sua identidade e o seu caráter único são mutilados, nessas condições

a capacidade do

indivíduo de pensar e de agir fica frágil e ele se transforma em um ser incapaz de começar de agir e de começar qualquer coisa por si próprio; sua imprevisibilidade que pode representar a sua criatividade e sua capacidade de trazer ao mundo alguma coisa nova é radical sufocada. Uma política que recusa a pluralidade humana, só pode pretender um poder total e um mundo de reflexo condicionado, pois, certamente, não é uma atividade que se realiza por meio na ação e no discurso como disse Arendt, mas sim de uma forma única e para sempre, não é uma política, portanto, construída e garantida a partir de artifícios convencionais, como a legalidade, a cidadania, o respeito e a posse no 9 - semestre 1 - 2016

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garantida de um lugar próprio e de uma ocupação social, condições artificiais sem as quais não subsiste a dignidade da existência humana. Conceber a política longe da ideia da pluralidade humana, não significa inventar a crueldade ou o massacre, mas certamente representa um passo fundamental para o surgimento desses males. Afinal, para que uma política desse tipo possa subsistir em um mundo humana, ela precisa necessariamente de recriar os homens, ou em outros termos, ela precisa pensar a possibilidade de obter cidadãos de reflexos condicionados capazes de lealdade total, irrestrita e inalterável, cidadãos prontos para não obedecerem a “nenhum outro princípio organizador” como disse Ricoeur (1995, p.151), “a não ser o Estado, encarnado na pessoa do chefe”. Na verdade, como disse Arendt (1989, p.506), são necessários “horríveis marionetes com rostos de homem, todos com o mesmo comportamento do cão de Pavlov, todos reagindo com perfeita previsibilidade mesmo quando marcham para a morte”. A recusa da pluralidade na política, portanto, marca assim uma tradição hostil à política a partir de uma “a noção vulgar” da comunidade política definida em termos de governantes e governados, reforçada pela noção de que, para

viver juntos, de maneira

política, alguns homens devem ter o direito de comandar e os demais forçados a obedecer. Uma atitude que despreza totalmente a ação comum e reduz os pontos de vista de cada um a uma única verdade. Sem qualquer respeito pela pluralidade humana e pelas opiniões divergentes dos indivíduos particulares, e sem qualquer pretensão em contribuir para o desenvolvimento do debate político em um espaço publico comum ma todos, Platão busca ultrapassar a própria política substituindo-a pela verdade. Platão, portanto, nunca viveu a união entre filosofia e política que se traduz em sua linguagem mais adequada e mais efetiva mo respeito à ideia da pluralidade humana, o fundamento de toda e qualquer política autêntica. Com Platão temos uma clara ruptura entre filosofia e política, mas temos uma oposição clara e entre aquele que sabe e merece governar e aquele que deve obedecer. Em suma, ele desvaloriza a política a favor da filosofia.

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A JUVENTUDE SAIU DO FACEBOOK E FOI ÀS RUAS – LEVANDO O FACEBOOK COM ELA! ADRIANO COSTA CARDOSO1

Resumo: Em 2013, ouviu-se que “a juventude saiu do facebook e foi às ruas”; o que o mote talvez tenha deixado de perceber é que entre uma coisa e outra não existe necessariamente oposição. O que buscamos investigar no presente artigo é o elo profundo entre a participação ativa dos jovens na política do país nos últimos anos e a natureza própria do funcionamento do ambiente virtual, notadamente as redes sociais, como o facebook. Enfatizamos a questão da sensibilidade e da natureza dos processos revolucionários ou de luta em geral, tendo como pano de fundo o aporte de pensadores como Hakim Bey e Walter Benjamin. A perspectiva adotada é a da teoria crítica da sociedade, tal como ela aparece desde Karl Marx e passando por autores como György Lukács, Max 1

Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE.

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Horkheimer e Guy Debord, além dos citados. A cultura da geração conectada virtualmente se apresenta como um local privilegiado da vida política, na medida em que se dá nela a formação política da maior parte dos jovens, mas também por ocasião do próprio uso do ambiente virtual como espaço ou instrumento de lutas políticas. Partimos, ademais, justamente do pressuposto de que os fins da luta política são indissociáveis dos meios de sua efetivação – isto é, o porquê da luta é fortemente ligado ao seu como –, sendo assim indispensável a reflexão sobre a utilização do ambiente virtual na vida cotidiana como em lutas específicas. Palavras-chave: Redes sociais; teoria crítica; política; cultura. Abstract: By 2013, we could hear that “the youth left facebook and went to the streets”; something missing in this speech was that between one thing and the other there is no necessary opposition. We intend to investigate in this paper the deep link between the active participation of young people in Brazil’s politics of the last years and the nature of the virtual ambient, specially social networks, like facebook. We emphasize the question of sensibility and the nature of the revolutionary processes or several struggles in general, bringing as a background the ideas of thinkers like Hakim Bey and Walter Benjamin. The perspective adopted here is the critical theory of society, as it is developed since Karl Marx to authors like György Lukács, Max Horkheimer and Guy Debord, besides the two aforementioned. The culture of the virtually connected generation appears as a privileged place of political life, once the political formation of most of the young people occurs in it, but also because the virtual ambient itself is used as an arena or an instrument of political struggles. Our point of departure is, furthermore, the premise that the aims of political struggle are inseparable of the means to its effectuation – the why we fight is strongly fitted to its how –, being thus indispensible the reflection about the utilization of the virtual ambient in daily life as in specific struggles. Keywords: Social networks; critical theory; politics; culture.

S

ão quase dez horas da noite, e eu me encontro dentro de um ônibus, cujo trajeto permite, por essas horas, um elevado limite de velocidade. No fone-de-ouvido, eu escuto Wynton Marsalis, quando percebo algo mais

impressionante que o double-time e as síncopes da bateria: eu me movo a uma 105

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velocidade inimaginável em relação à capacidade do mais ágil corpo humano, enquanto uma banda de jazz toca dentro do meu ouvido. Essas duas constatações carregam consigo algumas mais, como a da probabilidade nada animadora – e reapresentada a praticamente cada segundo – de eu sofrer um acidente fatal e a de que eu posso controlar caprichosamente o setlist da banda de jazz ou até substituí-la em frações de segundo por um grupo qualquer de rock progressivo2. Imaginar que as modificações nas tecnologias de comunicação, informação e transporte, entre outras, não acarretariam mudanças na constituição de indivíduos e grupos humanos é uma atitude não apenas pouco justificável como, eu defendo, bastante irresponsável e perigosa. Nesse sentido, é preciso enfrentar dois preconceitos: primeiro, o de que a formação dos indivíduos é assunto da pedagogia, compreendida nos limites estreitos das questões escolares; segundo, o de que as questões relativas à sensibilidade e à formação de indivíduos e grupos são secundárias ou irrelevantes no interior de um pensamento pautado na crítica teórico-prática da sociedade. Visando pensar seriamente essas questões, parto aqui de uma análise acima de tudo pessoal de algumas das atuais manifestações e produtos tecnológicos, mas levando em conta – nos conceitos ou na inspiração – o esforço de autores como Hakim Bey, Walter Benjamin e Gianbattista Vico3. Como um alerta adicional, eu convido o leitor a não se prender demasiadamente às minhas posições favoráveis ou desfavoráveis diante deste ou daquele fenômeno, uma vez que sequer tenho quaisquer respostas conclusivas sobre tudo isso4. Inicio a exposição, portanto, por seu aspecto, por assim dizer, metodológico, isto é, pelo lugar de fala a partir do qual me detenho sobre o

Essa reflexão sobre a música segue a linha da que eu lera muitos anos antes na obra O ouvido pensante [1986], do canadense R. Murray Schafer. 3 Vico serve de inspiração com o seu De ratione, que infelizmente não pude ter em mãos por ocasião da escrita do presente texto. 4 Note-se que, por exemplo, Benjamin, ao tratar da fotografia e do cinema, tanto em Pequena história da fotografia como em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, relata que muitos dos advogados das duas técnicas interpretaram mal a natureza e as consequências do surgimento de ambas, ao passo que estas puderam ser captadas e apresentadas de modo mais adequado por aqueles que combatiam as novas formas artísticas. 2

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objeto em questão, o que defino como teoria crítica da sociedade. Em seguida, apresento o próprio objeto, isto é, a internet (com especial ênfase no facebook) e algumas outras manifestações culturais do presente. Por fim, ligo os pontos, ensaiando uma reflexão que tome a teoria crítica e os fenômenos gerados pelas novas tecnologias em um tenso acordo.

1. A teoria crítica da sociedade. Afirmo, logo de início, a necessidade de se pensar e de se discutir todas essas questões, seja na universidade, seja nas escolas, seja em espaços autônomos, onde quer que haja, enfim, voz e vontade de dizer não. Por que lutar (uma vez que nos situamos no interior de uma perspectiva crítica social do presente) é uma questão inseparável de como lutar. Por que utilizar-se das diversas tecnologias, nesse contexto de luta, é inseparável de como utilizá-las. Na medida em que uma questão se separa da outra, para sua exposição, dá-se um procedimento cíclico, onde a primeira é premissa da segunda, que, por sua vez, é premissa da primeira. Luta-se pela efetivação de certo ideal5 de humanidade, de vida. O como deve guiar-se por isso. Mas toda efetivação traz em si o percurso pelo qual vem a ser, e assim o por quê se luta depende do como se luta. Igualmente uma luta que se proponha realizar uma sociedade humana fundada, não sobre a violência e a opressão, mas sobre o diálogo e as livres associações deve efetivar-se como uma prática dialogal e autônoma – o que não exclui os momentos violentos e até alienados que caracterizam a imperfeição de toda luta real6.

Não entrarei aqui no mérito do que seja um “ideal” e da crítica materialista a essa noção. Limito-me a esclarecer que entendo por ideal de humanidade, no presente contexto, a liberdade, uma humanidade emancipada, expressa geralmente como aquela que vive a autogestão da produção e reprodução da vida. 6 O tempo não me permite me estender sobre esse ponto, mas reenvio o ouvinte a textos como Para uma crítica da violência, de Walter Benjamin, onde se diferencia uma violência mítica, que instaura e mantém a violência, de uma violência divina, que aniquila a violência, e Buscando a autogestão, de Michael Albert (presente no livro coletivo Autogestão Hoje), onde os impasses e possíveis soluções de uma organização autogerida são abordados pra além de um formalismo de imperativos categóricos. No sentido dessa imperfeição e ausência de clareza radical nas lutas reais, Benjamin afirma naquele texto: “apenas a 5

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A teoria crítica que ora proponho quer, antes de tudo, libertar a crítica do viscoso muco do ranço. Mais do que de críticas, as novas gerações vivem de ranços. Um exemplo: ser crítico ferrenho da religião sem compreender como e por quê, na história da humanidade, todos os povos sempre recorreram à magia-superstição-mito-religião – bem como apreender a especificidade desses diversos fenômenos –, condena o tal “crítico” a ser, na melhor das hipóteses, um religioso sem Deus. Não existe crítica sem objeto. A crítica nasce do próprio objeto. Todo objeto é um novo objeto, sobre o qual nada sabemos de saída – ainda que ele seja mera cópia, isso só será demonstrado após seu conhecimento. Quem sabe fala, quem não sabe ouve. É preciso saber ouvir. Não apenas as pessoas, mas talvez em primeiro lugar, os objetos. É preciso, aliás, abrir-se aos objetos. Deixar que cada objeto nos penetre e goze. Após nove meses de gestação, talvez possamos gerar uma ideia, fruto em comum de si e do objeto. A inversão de posições não será tampouco proibida7. Em segundo lugar, problematizo a ideia do amor fati. Em uma linha mais horkheimeriana que nietzschiana, afirmo a Philosophia magister vitae, a Filosofia como mestra da vida, mas entendendo que a aluna tem posição privilegiada diante da mestra, ou seja, é a vida quem oferece questões e exigências à Filosofia. Mas o que a vida tem realmente a questionar ou exigir da Filosofia? Não pode o amor fati por vezes, obedecendo à sua semântica e histórico de submissão ao destino, constituir um espontaneísmo pouco frutífero? Não pode ele tornar-nos Brinquedos, seguindo inconscientemente o fluxo posto? Dá-se de Benjamin, nesse caso, uma interpretação sóbria, que não o compreende nem

violência mítica, não a divina, será reconhecida como tal com certeza, a não ser por efeitos incomparáveis, pois a força expiatória da violência não é clara aos olhos dos homens” (BENJAMIN, Para uma crítica da violência, p. 155-156). 7 Com relação às "ontologias", no entanto, a teoria deve se comportar como sábia viúva negra: realiza o coito e, em seguida, assassina o marido. Quaisquer teorias que defendam a inexistência da verdade ou uma aleatoriedade no passeio pelas infinitas verdades do mundo me soam como um medo exagerado de defender posições, como se houvesse escapatória. É o extremo oposto de se agarrar em certezas fáceis, e ambos os comportamentos me parecem igualmente prejudiciais. Prefiro a perspectiva de que a verdade é uma corda bamba, difícil de ser acompanhada, mas que exige firmeza no passo. Nesse sentido, eu diria às novas teorias que combatem o epistemicídio que é precisamente nesse epistemicídio total que consiste a Filosofia, mais ou menos no sentido que põe Benjamin em seu texto “O caráter destrutivo”.

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como um “reacionário”, nem tampouco como alguém que exalta acriticamente as alterações na técnica e suas conseqüências, mas como alguém que parte daquilo que se encontra a mão. “É o que tem pra hoje”, como na expressão popular8. Como delimitar essa conjuntura da qual se deve partir? Costuma-se considerar reacionário quem deseja retornar a alguma forma prévia do que quer que seja na História; como, por exemplo, Adorno e a defesa da arte e a crítica do cinema e do jazz. Mas há quem diga que a sociedade do futuro não deixará de trazer elementos do passado perdidos, como a própria comuna. O dinheiro deverá ser abolido, etc. Igualmente, não haveria outros aspectos que deveriam “regredir”? Penso, principalmente, na formação do indivíduo: como imaginar uma sociedade regida pelo princípio da autonomia individual, surgida a partir de um coletivo de indivíduos que dificilmente podem receber esta qualificação? O movimento de massas, enquanto movimento de massas, sem alterar, no processo, sua natureza, pode dar origem a um mundo de indivíduos autônomos? Graças à Divina Providência? Nesse sentido, como se explica a tendência, pouco autocriticada, dos movimentos menos dirigistas de “identificar-se” com a cultura da ralé? Aqui eu adiciono uma questão que representa menos uma exegese do que, na verdade, uma exigência: Qual o verdadeiro sentido das noções de revolução, conservação e reação para um teórico crítico? Tais noções não dizem respeito ao presente, não é com o presente enquanto presente que elas se relacionam, mas com o capitalismo em particular, e por motivos precisos que podem ser encontrados em Marx e em bons sucessores, como Rosa Luxemburgo e György Lukács. Situam-se os três termos muito mais no âmbito de uma certa compreensão de futuro. O retorno a algo do passado não é necessariamente reação, nem a manutenção de um presente estável é conservação, nem ainda a mudança para algo novo é revolução. O sentido das três noções tem a ver com a ação “messiânica”, com a sociedade emancipada, o reino da liberdade, e diz respeito ao capitalismo e suas classes na medida em que estes “facultam o acesso” àquele reino da 8

Devo à colega de Mestrado Palloma Soares o uso dessa expressão como a verdade de Benjamin.

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emancipação. Por isso, o campo é reacionário, pois só com burguesia e proletariado surge a possibilidade da abolição das classes e o controle da produção da vida por parte da humanidade. Tais termos não têm nada a ver com a cronologia ou com algo inserido em uma cronologia. Igualmente não podem ser usados para definir a posição diante de fenômenos presentes ou passados, quaisquer que sejam, a não ser com relação àquele ponto fundamental. O lado positivo de partir da situação cultural presente é muito mais, senão unicamente, a perspectiva des-iludida de ver “o que tem pra hoje” do que aquela que encara o mais novo como o mais avançado, revolucionário ou ao menos não reacionário. Utilizando a própria imagem de Benjamin, considero lindo o dia em que sacrificamos o patrimônio da humanidade, para receber em troca a insignificante moeda do "atual". Foda foi guardar a moeda no bolso furado... Deixando-a cair e, em seguida, procurando-a no chão, encontramos uma ficha sempre retornável de "novidade", uma confusão ou "lucro" pelo qual não podemos ser perdoados9. Em terceiro lugar, defendo uma perspectiva similar àquela famosa alegoria: a do indivíduo que sai da caverna e depois retorna, iniciando um processo de constante translado (translate, tradução). Uma teoria crítica que não sai da caverna, isto é, que não foge às armadilhas da imediatez, da ortodoxia10, da confusão entre visão particular do atual estado de forças em conflito e a visão global da luta (entre outras confusões), bem como uma teoria crítica que não retorna à caverna, isto é, que é incapaz de traduzir a linguagem da luz naquela das sombras, de encontrar a luz na sombra, sempre merecerá a derrota. Que Platão apareça no século XXI como decisivo ao sucesso da teoria crítica é um sinal tanto da grandeza imagética do pensador como da miséria a que foram condenadas as novas gerações. Mas quem sabe se esse movimento não

A noção de “atualidade” aparece em “Experiência e pobreza”, ao passo que o “novo”, a “novidade” é discutida principalmente nos textos sobre Baudelaire e a Paris do séc. XIX. 10 Em certo sentido oposta à do “marxismo ortodoxo”, como vem concebido por Lukács em História e consciência de classe, isto é, como adesão ao método dialético e revolucionário de Marx, oposto à imediatez “imparcial” dos revisionistas de Marx. 9

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pode ser acolhido mais facilmente por nós ao se apresentar sob uma nova forma: a da capoeira? O gingado é o que permite a movimentação entre as três instâncias, da dança, da brincadeira e do jogo-luta. Quando o pensamento ginga, ele dança, mas também brinca e luta, o que pode talvez lhe permitir, nos momentos cruciais, ser mosca ou Jeet Kune Do, a resposta rápida e decisiva.

2. Internet: redes sociais e lutas políticas. Tendo estabelecido esse norte, mas tendo claro que o presente discurso não pode ir muito além de um reconhecimento de território, de uma língua de cobra que tenta orientar o nosso serpentear no deserto da sociedade de massas, posso tratar do tema proposto, a internet. Partindo de Hakim Bey, compreendemos a internet , por um lado, como uma rede que nos captura11 e, igualmente, como uma teia de aranha estabelecida clandestinamente e, a partir da qual, se pode estabelecer uma contra-rede de enfrentamento. O mais correto seria talvez substituir o termo “rede” por teia e a “teia” antes referida por contrateia, pois a internet, enquanto meio e instrumento da sociedade do controle, nos mantém presos até sugar toda nossa energia vital (força de trabalho, criatividade produtiva, instintos regredidos, etc.), mas possui brechas, falhas12. Tal como a aranha tece, entre as teias aprisionadoras, algumas linhas pelas quais deve caminhar se não quiser cair na própria armadilha, o panóptico, a sociedade do controle nos oferece secretamente caminhos a trilhar seguramente, embora nos seja vedado o acesso ao seu mapa. Necessitamos, portanto, de uma contra-teia, que adivinha as linhas seguras da teia, “esteriliza” algumas linhas aprisionadoras, corta outras delas ou estabelece novas linhas seguras. É preciso ter claro, contudo, que, se se deseja capturar algo da teia prévia, cria-se novas

No caso desse pensador, vivia-se uma época em que talvez os sistemas de monitoramento e controle ainda não fossem unificados e onipresentes, e talvez por isso nem a ideia de “rede” parece ligar-se à sua visão nociva dos “encontros” não-físicos. 12 Essas falhas não se identificam com a diferença entre o 1:1 e o mapeamento “oficial” de Hakim Bey, pois neste caso trata-se da imprevisibilidade humana, enquanto nós nos referimos a brechas “objetivas”. 11

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linhas das quais devemos igualmente escapar. Não se caminha proveitosamente pela internet sem criar riscos novos para si próprio. O que se disse vale não apenas para o espaço virtual, embora aqui as técnicas anônimas e espiãs se vejam em seu habitat. Em todo ato político de viés revolucionário, na forma como ele se apresenta no Brasil dos últimos anos, apresenta-se em alguma medida a necessidade do Ninguém. Ulisses é Ninguém diante do ciclope, mas é alguém diante dos companheiros – aliás, é mais propriamente o único alguém entre os tripulantes do seu barco. Como realizar essa façanha longe das místicas plagas da Odisséia? Isso deve ser pensado. A Grécia, ontem e hoje13, ensina a totalidade, o koiné, a cidadania, que permite a ágora e impede a idiotia. É legítimo um retorno à Grécia? Ou não seria um retorno, e, sim, uma reconciliação? E como? Como lançar mão das lições do Candomblé? Sabe-se que a magia demoníaca dos negros aqui escravizados vinha sempre escondida na imagem do santo, em um processo que se converteu, real e idealmente, no insosso sincretismo de que tanto ouvimos falar. Em suma: como afirmar o indivíduo, trespassado pelo social, em uma arena de guerra que parece eliminar tanto sua individualidade como seus vínculos à comunidade? Como esclarecimento da questão, vale salientar que os movimentos mais radicais da esquerda brasileira, embora sejam mais do que favoráveis a práticas de luta atomísticas – tal como os black blocs se apresentam em nosso contexto específico –, assumem como modelos de combatentes eficazes aqueles que lançaram mão precisamente do comunitário, como os espanhóis da primeira metade do séc. XX e os zapatistas do México. Ergue-se, então, não apenas a questão estratégica da elaboração de uma contra-teia eficaz na sabotagem da teia que nos aprisiona, mas igualmente a questão – que é, no entanto, também estratégica, pela necessária ligação do como

Nos conflitos políticos resultantes da recente crise grega, os movimentos de cunho anarquista tiveram grande peso, com uma prática fortemente baseada nos liames comunitários.

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com o por quê – da afirmação do indivíduo14 no contexto das tecnologias da informação, notadamente na rede social talvez mais representativa do nosso país, o facebook. Representativo, não por ter um brasileiro entre seus criadores, mas pela ubiquidade do seu alcance em nossa sociedade e por questões de afinidade eletiva. Ainda são escritos diários no Brasil? Dificilmente. O facebook é nosso diário. Um diário público. O indivíduo atinge seu valor de exposição sem ter passado pelo valor de culto – digo isto na ordem dos conceitos, mais do que na ordem cronológica. A exposição no mundo virtual apresenta a necessidade de se afirmar o sucesso de cada usuário, mas é demasiado ingênuo deixar de perceber o quanto o facebook dá lugar a uma expressão estetizada do sofrimento e da derrota, na figura de várias páginas como “Ajudar o povo de humanas a fazer miçangas”, “Minha vida em WordArt” e “Bonecas Trouxas”. Como no poema de Fernando Pessoa, confessam pecados, mas não infâmias; confessam violências, mas não covardias; podem ser mal amados ou traídos, mas nunca ridículos. Na verdade, a zuêra, que nunca tem fim, suplantou Pessoa, pois até o mais ridículo é passível de ser estetizado – como o gif do garoto derrubado duas vezes seguidas por um cachorro que corre feliz, e que recebe milhões de comentários que dizem apenas: “eu na vida”. Creio, contudo, que a alegre identificação com a derrota não é o perigo essencial do uso acrítico do facebook15 e até suspeito que haja aí, tal como na besteira do cearense, um potencial crítico de uma revolução pessimista – desde que não esgotemos nossa atitude em rir da própria desgraça a fim de dormirmos felizes e acordarmos inofensivos. O problema da Geração Facebook tem mais a ver com o fato de o facebook – como as diversas redes sociais – ter se tornado nosso bairro, nossa igreja, nossa escola e até nossa universidade. Os efeitos das redes sociais sobre nossa sensibilidade e comportamento são mais Pensada aqui, negativamente, como a possibilidade do indivíduo de furtar-se a determinações heterônomas e agir autonomamente. A questão é abordada, embora com um tom e propostas distintas das aqui apresentadas, no texto Autogestão e tecnologias alternativas, de Murray Bookchin (também presente no livro coletivo Autogestão Hoje). 15 Aqui, acho que convém repetir minha ideia de criticidade: tal como a capoeira, ela é dança, brincadeira e luta. Se não pudermos dançar nem brincar, de que serve a revolução? 14

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óbvios do que se pode supor – digo, o modo como essa alteração se opera, a origem e o meio onde esse processo se dá são bastante claros. Talvez o cerne da questão se encontre na forma como se constituem amizades: enquanto, no passado, fazia-se amizade com aquelas pessoas que residiam em nossa proximidade, amizades que podiam ser substituídas à medida que nos confrontávamos com pessoas diferentes em ambientes diversos (trabalho, universidade, etc.), as quais nos causavam boa impressão, hoje em dia, tal processo foi “encurtado”, pois já de início conhecemos pessoas com “interesses em comum”, as quais podem morar do lado oposto do planeta. Isto é um fato óbvio. O que talvez não seja tão óbvio é que, em primeiro lugar, isso não é um simples “encurtamento” ou “otimização” de um processo e que, em segundo lugar, os ditos “interesses em comum” não aparecem da forma como apareciam nas amizades do passado. Quanto ao primeiro ponto, na medida em que nossas primeiras amizades podem já ser fundadas sobre “interesses comuns”, desaprendemos a conviver com a diferença, caímos no conforto da comunidade de ideais, ilusória, pois não passa do encerramento em um nicho, em uma bolha16. Quanto ao segundo aspecto, é válido questionar o que sejam esses “interesses comuns” e se eles se identificam aos interesses comuns entre amigos que se conheceram em meio a um processo não-virtual, relacionado a ambientes como o de trabalho, o de estudos ou o de uma luta qualquer, por exemplo. Qual a profundidade, qual o teor de negatividade e polêmica crítica presentes nos interesses que elenco quase como uma wishlist nos diversos campos de um perfil de rede social? Em redes sociais, pessoas pertencentes a algum “movimento” vão às comunidades ou grupos a respeito de seu movimento pedir ajuda para debater com algum “opositor” algum assunto relacionado à sua

“luta”.

A

pessoa

não

consegue,

por

conta

própria,

debater

Essa bolha é reforçada ainda, no campo virtual, como algumas pessoas já salientam, pela lógica própria da propaganda na internet, que apresenta produtos, páginas e demais sugestões, todas baseadas naquilo que o usuário acessou previamente. O mecanismo é similar ao da Netflix quando confere notas aos filmes a serem assistidos: não são notas de todos os usuários, mas filtradas de acordo com o que cada expectador já assistira. Assim, há um encaminhamento no sentido de cada indivíduo permanecer no rumo em que já se iniciara.

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satisfatoriamente, o que indica, às vezes apenas em certa medida, mas às vezes bem claramente, que a convicção da pessoa com relação a tal movimento não é mediada por uma forte compreensão da questão. Adicionar uma pessoa com base em uma compatibilidade determinada por um computador passa longe de ser idêntico à comunidade de interesses surgida em meio a uma experiência concreta, onde, por vezes, nossa própria vida encontra-se implicada, onde podemos experimentar o diferente – isto é, perdermo-nos antes de nos encontrarmos – e onde a compatibilidade pode dizer mais respeito a questões do que a respostas. Traduzindo (e distorcendo) uma passagem de Nietzsche, poderíamos dizer: O espírito cativo [oposto do 'espírito livre'] não assume uma posição por esta ou aquela razão, mas por hábito; ele é esquerdista, por exemplo, não por ter conhecido as diversas posições políticas e ter escolhido entre elas; ele é filósofo, não por haver se decidido pela Filosofia, mas deparou com a esquerda e o modo de ser filósofo e os adotou sem razões, como alguém que, nascendo numa região vinícola, torna-se bebedor de vinho. Mais tarde, já esquerdista e filósofo, talvez tenha encontrado algumas razões em prol do seu hábito; podemos desbancar essas razões, não o desbancaremos na sua posição. [...] Habituar-se a princípios intelectuais sem razões é algo que chamamos de fé17.

Esse efeito se expressa no comportamento de movimentos de massas de “minorias” oprimidas, que muitas vezes se assemelha ao dos espíritos do terror asiático: o caráter miticamente destrutivo no eterno retorno do ressentimento. Alia-se à ausência de diálogo e reflexão, característicos do fascismo, bem como ao “fazer a egípcia”18, os mecanismos possibilitados pelo facebook: bloquear, excluir, ocultar, apagar, etc. Os efeitos não se restringem à massa apolítica ou NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Pp. 144-145, com alterações. Figura de linguagem aparentemente surgida no universo LGBT. Baseada na bidimensionalidade da pintura egípcia, representa a pessoa que vira o rosto a algum fato, fingindo que não o vê.

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aos movimentos de direcionamento fascista, mas a muitos movimentos libertários: a total inimizade à teoria e à organização, a dificuldade enorme de gerar

consensos

ou

atividades

constantes,

principalmente

onde

haja

divergências. Esse fenômeno foi resumido muito bem em um meme de uma página trans-feminista, que dizia: “Como evitar ataques de misandria: basta desligar o PC”. Assim como as próprias questões relativas a esses movimentos são bem pouco pensadas e discutidas – até porque isso exigiria o contato com o diferente –, suas práticas, sejam de divulgação, denúncia ou combate mais direto, sofrem de uma contradição fundamental de autoanulação. Quando se especifica um evento como sendo de africanidades ou de gênero ou do que seja, não se levanta uma bandeira em meio a um ambiente de opressão, com vias a um enfrentamento, ainda que cultural, festivo, etc., a essa opressão. O que se faz é fechar uma bolha, onde tais grupos podem se sentir momentaneamente “emancipados”, sem ferir a sociedade em redor e consequentemente sem ser feridos de volta. A lógica da tecnologia na estratégia e paradigma da sua luta: o fechamento em comunidades afins e isoladas das demais. A lógica do gueto. Não é incomum ver pessoas fazendo limpeza na sua lista de amigos no facebook, excluindo pessoas com opiniões e atitudes absolutamente execráveis e simultaneamente

compartilhando

mensagens,

notícias,

vídeos,

poemas,

imagens, etc., em favor dos ideais com os quais todos os amigos restantes concordam. Cabe perguntar: se se exclui quem deveria ouvir a mensagem, por que divulga-la? Essa dimensão do virtual, enquanto substituto ótimo das experiências difíceis, sujas, do real19, é uma dimensão de toda a técnica humana: ela permite à nossa espécie ir sempre além do seu estágio atual, fazer sempre mais, conhecer sempre mais, criar sempre mais, ter sempre mais; ela cria, no entanto, facilidades, que se apresentam como uma segunda, terceira, quarta natureza, que, a cada momento histórico, se apresentam como condições inalienáveis da Não desconheço que o real inclui, hoje, o virtual. Mantenho, apesar disso, o binômio, pela modéstia da proposta no presente texto.

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nossa existência, como o ar e o chão. Um uso acrítico da tecnologia tende a gerar indivíduos preguiçosos. Não pretendo exaltar o valor do trabalho árduo e penoso, mas há situações – e elas são decisivas – que exigem um sujeito forte, e não podemos esquecer que ter preguiça de exercer a preguiça é realmente um pecado de morte! Não querendo me estender no emburrecimento e enfraquecimento dos indivíduos, quero indicar mais um efeito igualmente danoso dessas facilidades do virtual: a insensibilização. Aqui as drogas se apresentam como parentas próximas das tecnologias. Os novos e cada vez mais rápidos meios de transporte nos ensinam que o alvo é o alvo, o que é uma verdade bastante sonora e, portanto, uma mentira bastante surda. O caminho, que era a brincadeira – e como esquecer as brincadeiras que eram apenas caminhos, sem qualquer perspectiva de chegada? –, sequer aparece nessa consideração. As drogas, por sua vez, apresentam “novas experiências” cada vez mais individuais e acessíveis. Dizer que a felicidade é logo ali não é o maior dos problemas, mas o uso de drogas na busca do diferente é identifica-las às drogas lícitas em sua função lícita e bárbara: a de um paliativo absolutamente heterônomo. O indivíduo, com seu carro, seu “pico”20 e seu facebook, assoma Todo-Poderoso diante do mundo, tal como o bebê choramingando sobre fraldas sujas. Seus pés se encontram tão distantes da cova que nunca alcançarão o chão, e ele poderá morrer sem nunca ter vivido. A droga permite ver que à insensibilidade da Geração Facebook soma-se um peso enorme sobre a necessidade de novas sensações, sempre mais fortes, o que não implica serem mais ricas – como é o caso da Loudness War, na música pop21. Esses arroubos de sensibilidade são mobilizados especialmente pela

Gíria comumente utilizada para se referir à morfina. Os arquivos de música possuem volume cada vez mais alto, conseguido por meio da compactação da sua dinâmica. Arquivos de música com qualidade mais baixa costumam ocupar menos espaço na memória dos aparelhos celulares ou mp3, enquanto apresentam maior volume, sendo então duplamente preferíveis. Com isso, eles perdem, no entanto, sua dinâmica e riqueza de timbres.

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vingança22. A mãe chora ao policial: “Você matou minha criança”; o policial responde: “Sua criança já matou vários pais de família”. Já no cinema expressionista alemão, em particular nos filmes de Fritz Lang, Metropolis e M, podia-se ver o motivo comocional das crianças ameaçadas. A inocência, o cuidado, a fragilidade, qualquer traço sensível que escape à virilidade é mobilizado apenas por ocasião e no sentido de uma tomada de atitude viril: a punição do “vampiro”. Talvez o sucesso dos animes23 expresse essa hegemonia da sensação, com seus personagens de olhos enormes, ritmo veloz, idioma onomatopaico e máquinas de destruição. Em One Piece, anime com quantidade gigantesca de episódios, aparece, talvez mais que em nenhum outro, sempre o motivo emocionante do novo amigo profundamente ofendido. Mas é também do Oriente que surge um contraponto: A Trilogia da Vingança, de Chan-wook Park, aparece como contraponto dos filmes de vingança, mostrando precisamente o contrassenso da vingança. Vale assistir seu Mr. Vengeance na sequência do filme ao qual ele supostamente inspirou, Hostel, de Eli Roth, e ver que Hollywood tem dificuldade – ou mais provavelmente falta de interesse – em entender propostas singulares. Outro vento de esperança que sopra do Oriente aparece talvez já em O chamado, de Hideo Nakata, que apresenta o terror como eterno retorno do humano vilipendiado e preso na cadeia do ressentimento, expressa na vingança irracional. Mas a solução de O chamado é entrar nas regras do jogo: há um ceticismo quanto à mudança do quadro aterrorizante. Isso parece mudar em filmes de outras nações orientais, como em The Eye (Seeing Ghosts), dos irmãos Pang, de Hong-Kong e Cingapura, e o terror coreano (k-horror) iniciado por Whispering Corridors, de Park Ki-hyung. Esses filmes focam, embora talvez com menos maestria que em O chamado, na possibilidade-necessidade de se enfrentar o próprio quadro no qual o terror é gestado. Aqui não é leviano perguntar se Benjamin não foi perversamente seguido, quando disse, nas suas teses de 1940 Sobre o conceito de história, que a lembrança dos ancestrais mortos podia motivar os sentimentos de vingança e sacrifício, mais que a ideia de trabalhar pelas gerações futuras. 23 No Brasil e, curiosamente, com grande peso do Ceará, que abriga o SANA – Super Amostra Nacional de Animes, um dos maiores eventos do gênero no país, além de eventos menores realizados no interior. 22

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3. À guisa de conclusão. Nossa saideira: A razão de existir da vela se mostra, em sua forma perfeita e acabada, naquilo que ela apresenta de mais evanescente e fugaz, a chama. E, sendo ela um instrumento, sua razão de existir confunde-se com sua essência. Passa-se algo muito parecido com a sociedade de massas. Sua razão de existir, sua essência, deixa-se ver nas redes sociais, a chama que aquece e dá movimento ao morto-vivo que nos atormenta. O que quer que atue sobre esta sociedade deve tomar as redes sociais como pressuposto, como ambiente, cenário, sistema operacional. O que, obviamente, não obriga à conformação pura e simples. Tal como não se pode passar por cima da realidade do virtual, e em particular da virtualidade específica das redes sociais, sendo o facebook talvez o modelo mais adequado ao presente modo de existir, não se pode, tampouco, querer jogar sob essas regras. O dado não é uma arma, mas o próprio alvo. Ou uma arma cuja programação à autodestruição é a tarefa a nós conferida. É preciso acessar e pichar o código-fonte, até sua total reconstrução, ou melhor, sua destruição. Sem mais códigos-fonte. Como chegar a isso? É mais ou menos claro, ao menos, como não se chegará jamais. Perfis e grupos atomizados de facebook são uma doença, e não a cura, embora o “princípio ativo” de uma doença possa ser neutralizado e convertido em vacina ou antídoto. A neutralização é necessária! E a aplicação do princípio contra-ativo deve ser realizada com a imersão no terreno da rede que não foi preparado para nós. As aranhas tecem fios para suas presas e fios para si própria. É preciso caminhar por outros fios. É este o único ou, ao menos, o melhor sentido da deriva. Perder-se não tanto de si, mas do “si” que nos foi preparado antes do berço. Para nós foram preparados os muros, as grades, os condomínios, mas também os bairros universitários, o Catálogo de Diferenças, os expurgos, a roda punk, etc. A obsolescência programática não atua apenas sobre as mercadorias, mas também, e de modo mais fundamental e perigoso, sobre as recusas; e, nesse 119

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caso, os programadores fazem questão de que os “produtos” sejam vistos como úteis muito após seu prazo de validade objetivo. Nossa expulsadeira: Lenin e Kautsky acreditaram24 que a condição de proletário fabril gestava a disciplina revolucionária exigida pela luta socialista. A tese é, obviamente, equivocada, mas os dois autores pecam, não tanto pela associação feita, como, ao contrário, pelo otimismo da conclusão. Existe, de fato, uma relação forte entre as condições de produção e reprodução da vida e a atitude política de cada indivíduo, e isso é mediado pela sensibilidade. Benjamin também o notou, mas seu acento é ainda demasiado otimista. A rotina dos proletarizados não produz revolução, mas essencialmente reação. Querer nega-lo não passa de dogma. Aqui, o leitor pode nos identificar com o socialdemocrata reformista Eduard Bernstein, em sua defesa de um socialismo “científico”. Não sou bom advogado, mas quero propor uma terceira maneira de proceder, que não a de Bernstein nem a de sua grande opositora, Rosa Luxemburgo (sem contar as demais divisões da Segunda Internacional e depois), já anunciada ao longo do presente texto: a possibilidade de ser revolucionário e pessimista. Contemplo essa multidão de rostos sem nome, todos numerados, e vejo um deserto. Com meus companheiros, procuro um oásis. Mas eles me acusam de ter desistido da procura, apenas porque não invisto meu tempo na miragem que os entretém – e que provavelmente atrapalha sua busca. A revolução não é uma crença, mas uma exigência. Toda crença que atenda ao que é exigido deve ser fomentada; do contrário, deve ser eliminada sem rodeios. Acreditar, por exemplo, que todo instante guarda uma faísca revolucionária, a partir da qual se pode explodir o Moloch mercantil, é uma crença interessante no sentido de evitar o otimismo socialdemocrata – assim como qualquer ideia de acúmulo positivo –, mas nenhum anticapitalista seria capaz de negar a necessidade, em qualquer batalha, dos momentos de

FETSCHER, Irving. Bernstein e o desafio à ortodoxia. In: HOBSBAWN, História do marxismo II, p. 284. Bookchin também menciona, no texto antes citado, algo bastante similar, a respeito de Marx, Engels e os sindicalistas.

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recuo. Se a ideia de uma chance messiânica fosse, de fato, compreendida de modo unilateral e levada às últimas consequências, não haveria tais momentos de recuo ou sequer de estagnação. A realidade deve ser revolucionada, na medida em que sua continuidade não é senão o acúmulo das tragédias humanas cada vez mais desumanizadas, mas não há qualquer garantia na realidade de que isso vá ou sequer de que isso possa acontecer. A tarefa que se impõe é, portanto, de um grau exagerado de complexidade, exigindo um imenso grau de ceticismo, pessimismo e sacrifício. Revolucionários precisam de estômago. Devem ser capazes de tolerar o gore, sem adquirir gosto pela sua técnica. Devem aprender, com o terror oriental, que só o terror nos faculta o drama representado pela história.

REFERÊNCIAS ALBERT, Michael; CHOMSKY, Noam; ORTELLADO, Pablo; BOOKCHIN, Murray; GUILLÉN, Abraham. Autogestão Hoje: Teorias e Práticas Contemporâneas. Trad. Felipe Corrêa e Raphael Amaral. São Paulo: Faísca Publicações Libertárias, 2004. BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). Organização, apresentação e notas de Jeanne Marie Gagnebin; trad. Susana Kampff e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2011. (Col. Espírito Crítico) ______________. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1994. ______________. Passagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. Organização: Willi Bolle. Colaboração: Olgária Chain Féres Matos. Tradução do alemão: Irene Aron. Tradução do francês: Cleonice Paes Barreto Mourão. BEY, Hakim. Zonas Autônomas. Trad. e org. Coletivo Protopia. Porto Alegre: Deriva, 2010. HOBSBAWN, Eric; et al. História do marxismo II: o marxismo na época da segunda Internacional. Trad. Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. (Pensamento Crítico, 46) 121

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HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Textos escolhidos. 5. ed. Trad. br. Zeljko Loparic ... [et al.]. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores, 16) LÖWY, Michael. Walter Benjamin : Aviso de Incêndio : uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Trad. [das teses] Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Müller. São Paulo : Boitempo, 2005. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. Trad. Rodnei Nascimento; Revisão Karina Jannini – 2° Edição, São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012. LUXEMBURGO, Rosa. Reforma Social ou Revolução?. São Paulo, Global, 1986. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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JEAN-PAUL SARTRE E A “EXPLICAÇÃO DE O ESTRANGEIRO” DE ALBERT CAMUS LEANDSON VASCONCELOS SAMPAIO1

Resumo: Em 1943 o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) escreveu o texto intitulado “Explicação de ‘O Estrangeiro’”, no qual faz uma análise do romance O Estrangeiro (1942) do filósofo franco-argelino, que mais tarde seria Prêmio Nobel de Literatura, Albert Camus (1913-1960), fazendo um paralelo entre a Filosofia e a Literatura camusiana, demonstrando a relação entre o romance do então jovem escritor e o ensaio “O Mito de Sísifo – ensaio sobre o absurdo” (1943). Sartre trata em seu texto, sobretudo, das categorias acaso e contingência, relacionando-as com a ideia de absurdo desenvolvida por Camus em seu ensaio e nas entrelinhas de seu romance, situando a Filosofia e a Literatura camusiana em certa tradição de escritores clássicos, como Blaise Pascal (1623-1662) e os filósofos moralistas franceses do século XVII e também com a Literatura americana, como, por exemplo, Ernest Hemingway (1889 1

Mestre em Filosofia Universidade Federal do Ceará (UFC). leandson@hotmail.com

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1961), demonstrando assim que Camus desde jovem buscava o equilíbrio entre a razão e a sensibilidade, relacionando Filosofia e Literatura como método de filosofar, rompendo com a tradição racionalista tanto no conteúdo de sua Filosofia, quanto na forma. Desse modo, buscamos à luz de Sartre uma leitura das obras de juventude de Camus que demonstra também uma aproximação teórica entre os dois filósofos, que mais tarde seria rompida, mas que as suas inquietações iniciais ainda continuam presentes e atuais. Como o objetivo do texto é mostrar apenas a análise de Sartre em Explicação de ‘O Estrangeiro’, nossa abordagem aqui se limita ao conteúdo do texto sartreano, enfatizando ênfase às suas interpretações dos conteúdos dos textos dos autores citados. Palavras-chave: Filosofia Literatura; Absurdo.

S

artre inicia “A Explicação de O Estrangeiro” situando o romancistafilósofo franco-argelino em seu contexto geográfico,ou seja, fora do eixo europeu, fazendo a relação com o próprio título do romance, colocando o contexto do livro como um estrangeiro ele próprio, vindo do Norte da África, mas escrito em francês, situado na época em que a Argélia ainda era colônia francesa. Diz Sartre:

Mal saiu da tipografia, O Estrangeiro (L’Étranger), de Albert Camus, teve o maior sucesso. Dizia-se e repetia-se que era “o melhor livro desde o armistício”. Entre a produção literária da época, esse romance era ele próprio um estrangeiro. Chegavanos do outro lado da linha, do outro lado do mar; falava-nos do sol, nessa desabrida Primavera sem carvão, não como duma maravilha exótica, mas com a familiaridade cansada de quem o gozou bastante; (SARTRE, 1968, p. 87).

Ou seja, desde o título, dentro do contexto em que estava situado, para Sartre, o romance de Camus era em princípio “estranho”, sendo este caráter de estranheza demonstrado em sua personagem principal, Meursault, como uma ambiguidade. A personagem demonstra certa ironia na medida em que ao mesmo tempo em que é um assassino, mostra também ao leitor sua inocência. E é sobre o sentido desta ironia de Meursault que Sartre analisa inicialmente o romance, levando em consideração o ensaio O Mito de Sísifo – ensaio sobre o absurdo, escrito no mesmo período, no qual Camus faz uma análise particular de uma categoria que perpassa pela filosofia do romance O Estrangeiro, no caso, o

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absurdo. Neste horizonte, para Sartre, a personagem compreendida primeiramente a partir do absurdo. Diz ele:

Meursault

é

Albert Camus, em O Mito de Sísifo (Le Mythe de Sisyphe), aparecido alguns meses depois, deu-nos o comentário exato de sua obra: a personagem não é boa nem má, nem moral nem imoral. Estas categorias não lhe convêm: faz parte duma espécie muito particular a que o autor reserva o nome de absurdo. (SARTRE, 1968, p. 88).

O absurdo camusiano, na análise de Sartre, possui dois significados: “é simultaneamente um estado de fato e a consciência lúcida que algumas pessoas tomam desse estado. É ‘absurdo’ o homem que, dum absurdo fundamental, retira sem desfalecimento as conclusões que se impõe.”. (SARTRE, 1968, p. 88). Neste sentido,o absurdo, a partir de O Mito de Sísifo, possui dois polos: um estado de fato e a lucidezconsciente desse fato. E é desta relação entre o estado de fato no mundo e a consciência que o absurdo manifesta-se, o que demonstra que em um primeiro momento o absurdo é visto como um divórcio com o mundo, ou seja, entre a consciência lúcida e a natureza, entre a finitude humana e a infinitude do mundo. Com efeito, partindo da análise do romance em complemento com o ensaio, Sartre faz a reflexão sobre o absurdo no sentido dado nas obras de Camus:

O absurdo primeiro manifesta antes de tudo um divórcio: o divórcio entre as aspirações do homem para a unidade e o dualismo insuperável do espírito e da natureza, entre o impulso do homem para o eterno e o caráter finito da sua existência, entre a “preocupação” que é a sua própria essência e a inutilidade dos seus esforços. A morte, o pluralismo irredutível das verdades e dos seres, a ininteligibilidade do real, o acaso, eis os polos do absurdo! (SARTRE, 1943: 88).

Assim, Sartre observa nos escritos de Camus a categoria do acaso, presente tanto na escrita romanesca camusiana quanto em seu ensaio, colocando Camus dentro de certa tradição de pensadores franceses na linha do “pessimismo clássico” do século 172. Neste sentido é que para Sartre o então 2

Diz Sartre: “Na verdade, estes temas não são muito novos, e Camus não os apresentam como tal. Foram enumerados, desde o século XVII, por uma espécie de razão seca, curta e contemplativa, que é tipicamente francesa: constituíram lugares-comuns no pessimismo clássico. Não é Pascal que insiste na ‘infelicidade natural da nossa

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jovem Camus está na linha dos moralistas franceses. “Pelo estilo gelado do Mito de Sísifo, pelo assunto dos seus ensaios, Camus coloca-se na grande tradição desses moralistas franceses a que Andler chama com razão os precursores de Nietzsche” (SARTRE, 1968, p. 88-89). Para Sartre, o estilo camusiano e a sua originalidade não se encontram, então, nos temas por ele abordados,

[...] a sua originalidade consiste em ir até o fim das ideias: com efeito, não se trata para ele de fazer coleção de máximas pessimistas. É certo que o absurdo não está nem no homem nem no mundo, se o tomarmos separadamente; mas como a característica essencial do homem é “estar-no-mundo”, o absurdo acaba por identificar-se completamente com a condição humana. Assim, não é primeiramenteo objeto duma simples noção: é-nos revelado por uma iluminação desolada. (SARTRE, 1968, p. 89-90).

Com efeito, para Sartre, o absurdo, no sentido camusiano, desvela uma face da nossa condição enquanto seres finitos diante da infinitude do mundo.Estar no mundo é também aceitar esta condição. Entretanto, diante desta “lucidez sem esperança” (SARTRE, 1968, p. 90), frente a estas evidências, o homem absurdo é levado também a uma recusa, que é a recusa da “ajuda enganosa das religiões ou das filosofias existenciais” (SARTRE, 1968, p. 90), recusando também o suicídio: “Mas não é apenas isso: é uma paixão do absurdo. O homem absurdo não se suicidará: quer viver, sem renunciar a nenhuma das suas certezas, sem porvir, sem esperança, sem ilusão e também sem resignação. O homem absurdo afirma-se na revolta” (SARTRE, 1968, p. 91). Ou seja, na análise de Sartre, as certezas que o homem absurdo encontra, que poderiam conduzi-lo à renúncia, à morte, ao contrário, levam-no a afirmar a vida, a revoltar-se e a recusar o suicídio. O absurdo é, então, uma paixão que possui uma aceitação e uma recusa, afirmando a vida. Em alusão indireta à Dostoievsky, seguindo o raciocínio de Camus, Sartre também avalia a filosofia camusiana a partir de uma “ética da quantidade”, extraída, de certo modo, da noção de absurdo, na medida em que o absurdo também revela uma libertação, ao fazer a equivalência dos valores frente à certeza da morte como evidência constatada pelo homem absurdo. “Tudo é permitido, visto que Deus não existe e se vai morrer. Todas as experiências são equivalentes, mas convém adquirir a maior quantidade condição débil mortal e tão miserável que nada nos pode consolar quando pensamos nela de perto’? Não é ele que põe a razão no seu lugar?’. (SARTRE, 1968, p. 88).

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possível delas.”. (SARTRE, 1968, p. 91). Ou seja, diante da certeza do presente e da certeza do perecer, para o homem absurdo, viver equivale a acumular a maior quantidade de experiências possíveis, mas inocentemente. “Todos os valores se desfazem perante esta ‘ética da quantidade’; o homem absurdo lançado neste mundo, rebelde, irresponsável, ‘nada tem que justificar’. É inocente.”. (SARTRE, 1968, p. 91). E é neste sentido que Sartre compreende a inocência de Meursault em O Estrangeiro, à luz de O Mito de Sísifo. Diz Sartre:

Um inocente em todos os sentidos da palavra, um “idiota” também, se assim quiserdes. E desta vez compreendemos plenamente o título do romance de Camus. O estrangeiro que quer descrever é justamente um desses terríveis inocentes que constituem o escândalo de uma sociedade porque não aceitam as regras do seu jogo. Vive entre os estrangeiros, mas para eles é também um estranho. Por isso alguns o amarão, como Marie, sua amante, que lhe tem afeto “porque é bizarro”: e por isso, também, outros o detestarão, como essa multidão de sedentários cujo ódio ele sente imediatamente. E nós mesmos, que, ao abrir o livro, ainda não estamos familiarizados com o sentimento do absurdo, em vão tentaríamos julgá-lo segundo as normas habituais; achamos também que é um estranho. Por isso alguns o amarão, como Marie, sua amante, que lhe tem afeto “porque é bizarro”: e por isso, também, outros o detestarão, como essa multidão de sedentários cujo ódio ele sente imediatamente. E nós mesmos, que, ao abrir o livro, ainda não estamos familiarizados com o sentimento do absurdo, em vão tentaríamos julgá-lo segundo as normas habituais; achamos também que é um estranho. (SARTRE, 1968, p. 91-92).

Nesta perspectiva sartreana, Meursault é uma personagem que não joga o jogo da sociedade como se faz habitualmente e por isso é considerado alguém estranho, deslocado do mundo comum que o cerca, ao mesmo tempo em que é também um homem comum entre os outros homens. Porém, para Sartre, “O Estrangeiro não é um livro que explica: o homem absurdo não explica, descreve. Também não é um livro demonstrativo. Camus limita-se a propor e não lhe importa justificar o que é, por princípio, injustificável.”. (SARTRE, 1968, p. 92). Desse modo, para Sartre, O Estrangeiro “não é um romance de tese; não emana dum pensamento ‘satisfeito’ que seja interessado em fornecer os seus documentos justificativos; mas é, pelo contrário, o produto dum pensamento ‘limitado, mortal e rebelde’”. (SARTRE, 1968, p. 92). O Estrangeiro é um romance que trata da contingência, na medida em que Camus, como “criador absurdo no 9 - semestre 1 - 2016

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perdeu inclusivamente a ilusão de que sua obra é necessária.”. (SARTRE, 1968, p. 93). Assim, comenta Sartre:

Teria podido não existir: como essa pedra, esse fio de água, ou aquele rosto; é um presente que se dá, simplesmente, como todos os presentes do mundo. Nem sequer tem aquela necessidade subjetiva que os artistas gostam de reclamar para as suas obras dizendo: “Não podia deixar de fazê-la, pois tinha de libertar-me dela”. Reencontramos aqui, filtrado pelo crivo do sol clássico, um tema do terrorismo surrealista: a obra de arte é apenas uma folha arrancada a uma vida. Exprime-a, com certeza: poderia não a exprimir. E de resto tudo é equivalente: escrever Os Possessos ou tomar um café com leite. Camus não exige do leitor, portanto, essa solicitude atenta que exigem os escritores que “sacrificam a vida à sua arte”. O Estrangeiro é uma folha da sua vida. E como a vida mais absurda deve ser a vida mais estéril, o seu romance pretende ser duma esterilidade magnífica. A arte é uma generosidade inútil. (SARTRE, 1968, p. 93).

Neste sentido, para Sartre, há tanto em O Estrangeiro quanto em O Mito de Sísifo certo desvelo da contingência a partir da sucessão de acasos que se apresentam no mundo, apresentados nas duas obras. A razão busca inutilmente unir os acasos para dar um sentido, uma teleologia, que tende sempre ao fracasso. Mas por mais que a racionalidade busque a sua necessidade, os limites da razão nos permite ter apenas acesso aos fatos contingentes, ao acaso. Mesmo o amor ou outro sentimento qualquer é demonstrado nas obras não como algo contínuo e necessário. A necessidade, de certa forma, é forjada pela razão em busca de uma unidade e uma continuidade que seja apaziguadora para o espírito, o que levaria a uma necessidade que no futuro poderia ser provada. Entretanto, como podemos perceber em Meursault, para Camus o que interessa é a afirmação do presente. Neste horizonte, escreve Sartre sobre Meursault:

Não pertence ele totalmente ao presente, aos estados de ânimo presentes? O que se chama um sentimento não é senão a unidade abstrata e a significação de impressões descontínuas. Não penso sempre naqueles que amo, mas afirmo que o amo mesmo quando não penso nele – e seria capaz de comprometer a minha tranquilidade por um sentimento abstrato, na ausência de qualquer emoção real e instantânea. Meursault pensa e atua

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de maneira diferente: não quer conhecer esses grandes sentimentos contínuos e semelhantes; para ele, não existe o amor, nem tão pouco os amores. Só conta o presente, o concreto. (SARTRE, 1968, p. 95).

Nesta perspectiva, Meursault é uma personagem que não tem ressentimentos com o passado e nem uma preocupação com o futuro. O presente é a medida da sua vida, demonstrando certa indiferença para com perspectivas que vão além da sua vida presente, inclusive com relação à demonstração dos seus sentimentos. Meursault vive uma felicidade cotidiana indiferente às grandes questões e não pensa na sua própria morte durante quase todo o romance. Para Sartre, Meursault possui uma opacidade:

Sem dúvida, o caráter, uma vez esboçado, concluiu-se por si mesmo; a personagem tinha indubitavelmente um peso próprio. O certo é que o seu absurdo não nos parece conquistado, mas dado: é assim, eis tudo! Terá a sua iluminação na última página, mas viveu sempre segundo as normas de Camus. Se houvesse uma graça do absurdo, teria de se dizer que ele possui essa graça. Não parece que pense nalgum dos problemas que se agiram em O Mito de Sísifo; tão pouco se vê que se tenha revoltado antes de ser condenado à morte. Era feliz, deixava-se levar, e a sua felicidade não parece ter conhecido sequer essa mordedura secreta que Camus assinala em várias ocasiões do seu ensaio e que provém da presença ofuscante da morte. Mesmo a sua indiferença assemelha-se muitas vezes à indolência, como nesse domingo em que fica em casa simplesmente por preguiça e em que confessa que “se aborreceu um pouco”. Assim, mesmo para um olhar absurdo, a personagem conserva uma opacidade própria. (SARTRE, 1968, p. 96).

A falta de ordem racional única para o mundo, que é regido pelo acaso, demonstra um desequilíbrio entre a razão lúcida do homem absurdo e a falta de ordem natural do mundo, no qual Camus demonstra a partir da sua obra romanesca e ensaística, ressaltando a noção e o sentimento do absurdo. “Poderia dizer que O Mito de Sísifo pretende dar-nos essa noção e que O Estrangeiro quer inspirar-nos o sentimento.”. (SARTRE, 1968, p. 97). Desse modo, a noção e o sentimento do absurdo na análise sartreana se mostram nas duas obras como um divórcio entre o homem e a natureza: “Ora, o absurdo é o divórcio, o

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desajustamento. O Estrangeiro será, pois, um romance do desajustamento, do divórcio, da inaptidão”. Ou seja, segundo Sartre, estas obras demonstram a falta de um laço que une o homem e a natureza, ou melhor, um laço que una a consciência humana e o mundo concreto em uma ordem de significado que seja completamente clara e racional que possa ser apreendida pela razão. Neste horizonte, segue a análise de Sartre sobre Meursault:

Pretende-se que o leitor, tendo sido primeiro posto em presença da realidade pura, a torne a encontrar, sem a reconhecer, na sua transposição racional. Daí nascerá o sentimento do absurdo, isto é, da impotência em que estamos de pensar com os nossos conceitos, com as nossas palavras, os acontecimentos do mundo. Meursault enterra a mãe, arranja uma amante, comete um crime. Estes fatos diferentes serão relatados no julgamento pelas testemunhas, e serão agrupados e explicados pelo advogado de acusação: Meursault terá a impressão de que se fala doutra pessoa. Tudo está construído para produzir de repente a explosão de Marie, que, tendo feito na barra das testemunhas um relato composto segundo as regras humanas, rebentou em soluços e diz “que não era isso, que havia outra coisa, que a obrigavam a dizer o contrário do que pensava”. Estes jogos de espelho são utilizados corretamente desde Os Moedeiros Falsos. Não está nisso a originalidade de Camus. (SARTRE, 1968, p. 97).

Com efeito, podemos dizer que para Sartre, Camus em O Estrangeiro desvela a impotência da racionalidade a partir da sensibilidade. Nesta perspectiva, há uma relação intrínseca entre o sentimento do absurdo e a impotência da racionalidade. É através da sensibilidade que em um primeiro momento o absurdo é sentido e em um segundo momento é que a racionalidade apreende a absurdidade. A falta de um sentido claro na natureza que possa ser plenamente compreensível para nós demonstra um cenário avesso e sem transcendência que Camus em O Estrangeiro de certa forma ilustra a partir da vida de Meursault. Para isto, utiliza-se de uma técnica que Sartre busca desvelar na continuação de sua análise entre o romance e o ensaio:

Que técnica é essa? Tinham-me dito: “É Kafka escrito por Hemingway”. Confesso não ter encontrado Kafka. As considerações de Camus são todas terrestres. Kafka é o romancista da transcendência impossível: o universo está para

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ele carregado de sinais que não compreendemos; há um avesso do cenário. Para Camus, o drama humano é, pelo contrário, a ausência total de transcendência. (SARTRE, 1968: 98-99).

Sartre também analisa O Estrangeiro a partir da técnica do neorrealismo americano, comentando a escrita do romance de Camus à luz da escrita de Hemingway, fazendo um paralelo entre os estilos da escrita:

A comparação com Hemingway parece mais proveitosa. O parentesco dos dois estilos é evidente. Em ambos os textos aparecem as mesmas frases curtas: cada uma delas se recusa a aproveitar o impulso adquirido pelas precedentes, cada uma é um recomeço. Cada uma é um apontamento dum gesto, dum objeto. A cada novo gesto, a cada novo objeto, corresponde uma frase nova. Todavia, não fico satisfeito: a existência duma técnica de narração “americana” foi, sem dúvida alguma, útil a Camus. Mas duvido que o tenha influenciado, no verdadeiro sentido da palavra. (SARTRE, 1968, p. 99-100).

Entretanto, para Sartre, “Camus tem um estilo diferente, um estilo de cerimônia”. (SARTRE, 1968, p. 100). Neste sentido, diz Sartre:

Se O Estrangeiro tem aspectos tão visíveis da técnica americana, é porque se trata duma utilização voluntária. Camus escolheu, entre os instrumentos que se lhe ofereciam, o que lhe parecia mais conveniente para o seu intento. Duvido que o utilize nas suas próximas obras. (SARTRE, 1968, p. 100).

Na análise de Sartre, a técnica americana é utilizada por Camus em O Estrangeiro para fomentar a sua noção de presente que está inserida no romance em seu procedimento analítico:

Ora, é este procedimento analítico que explica a utilização da técnica americana em O Estrangeiro. A presença da morte no fim do nosso caminho dissipou em fumo o nosso porvir; a nossa vida “não tem amanhã”, é uma sucessão de presentes. Que quer isto dizer, senão que o homem absurdo aplica ao tempo o seu espírito de análise? Onde Bérgson via uma organização

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indecomponível, o homem absurdo vê apenas uma série de instantes. É a pluralidade dos instantes incomunicáveis que finalmente detectará a pluralidade dos seres. O que o nosso autor aproveita de Hemingway é, portanto, a descontinuidade das suas frases cortadas que se ajusta à descontinuidade do tempo. (SARTRE, 1968, p. 103).

Com efeito, o estilo de escrita do jovem romancista franco-argelino, para Sartre, certamente não é em vão, mas, pelo contrário, a partir da técnica de escrita americana Camus deixa em suas entrelinhas do romance a sua noção do tempo presente. A sua técnica fomenta sua ideia de afirmação do presente que também está em O Mito de Sísifo. O tempo presente, neste sentido, está em cada frase de O Estrangeiro na medida em que a técnica do neorrealismo americano empregada, segundo a análise de Sartre, dá também a noção de tempo que está na filosofia camusiana. Afirma Sartre:

Agora compreendemos melhor o estilo da sua narração: cada frase é um presente. Mas não é um presente indeciso que mancha e se alastra um pouco no presente seguinte. A frase é nítida, sem rebarbas, fechada em si mesma; está separada da frase seguinte por um vazio, como o instante de Descartes está separado do instante seguinte. Entre cada frase e a seguinte, o mundo aniquila-se e renasce: a palavra, desde o momento em que se eleva, é uma criação exnihilo; uma frase de O Estrangeiro é uma ilha. E nós caímos de cascata de frase em frase, de nada em nada. (SARTRE, 1968, p. 103).

Neste sentido, em O Estrangeiro, na medida em que “cada frase é uma ilha”, as frases se equivalem assim como todas as experiências do homem absurdo também se equivalem: “Todas as frases do seu livro são equivalentes, como são equivalentes todas as experiências do homem absurdo; cada uma apresenta-se por si mesma e deixa as outras no nada.”. (SARTRE, 1968, p. 105). Ou seja, para Sartre, como no neorrealismo americano, em O Estrangeiro as frases vistas isoladamente do todo parecem possuir a sua realidade própria, sobretudo as frases dos diálogos.

Os próprios diálogos estão interligados no relato: com efeito, o diálogo é o momento da explicação, da significação; dar-lhe um lugar privilegiado seria admitir que as significações existem.

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Camus aplaina-o, resume-o, reprodu-lo com frequência no estilo indireto, nega-lhe qualquer privilégio tipográfico, de modo que as frases pronunciadas aparecem como acontecimentos semelhantes aos outros, brilham durante um momento e desaparecem, como um relâmpago de calor, como um som, como um aroma. (SARTRE, 1968: 106).

Assim, na análise sartreana, aparentemente O Estrangeiro possui uma desordem, como se as frases pudessem desligar-se umas das outras. “Mas, pouco a pouco, a obra organiza-se por si só diante dos olhos do leitor e revela a sólida infraestrutura que a suporta. Nenhum pormenor é inútil, todos são retomados mais adiante e lançadas na contenda”. (SARTRE, 1968, p. 106). O Estrangeiro é um romance em que todos os detalhes que parecem em vão mostram na verdade um sentido em sua totalidade, os pormenores possuem o seu peso diante do todo: “O Estrangeiro é uma obra clássica, uma obra de ordem, composta a propósito do absurdo e contra o absurdo. É inteiramente o que desejava o autor? Não sei; dou apenas uma opinião de leitor.” (SARTRE, 1968: 106). Em O Estrangeiro, o que parece desligado, na conjuntura do todo, ganha unidade através da arte literária, mostrando a criação do romance absurdo como uma negação do absurdo. Para Sartre, O Estrangeiro não poderia ser considerado uma narrativa, pois “a narrativa explica e coordena ao mesmo tempo que expõe, substitui o encadeamento cronológico pela ordem casual. Camus chama-lhe ‘romance’”. (SARTRE, 1968, p. 106). Entretanto, o romance desencadeia-se em uma continuidade temporal, que para Sartre é demonstrado na sequência do romance como a “presença manifesta da irreversibilidade do tempo. Eu hesitaria em dar-lhe esse nome a essa sucessão de presentes inertes que deixa entrever a economia mecânica de uma peça montada” (SARTRE, 1968, p. 107). Isto é o que “dá o tom” do tempo presente no romance, que Sartre termina por comparar a um “romance moralista, discretamente satírico e com retratos irônicos, que, apesar da influência dos existencialistas alemães e dos romancistas americanos, permanece muito próximo, no fundo, dum conto de Voltaire”. (SARTRE, 1968, p. 107). Ou seja, Sartre coloca o então jovem francoargelino não só em comparação com os grandes “moralistes” franceses do século 17, mas também entre os existencialistas alemães, os grandes romancistas americanos e Voltaire, o que, de certa forma, insere Camus em uma tradição de grandes escritores desde a sua juventude, já prevendo o seu futuro promissor como escritor.

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Em suma, podemos observar a partir da análise de Sartre de O Estrangeiro que a filosofia camusiana desde a sua juventude busca por certo equilíbrio entre a razão e a sensibilidade. O romance ressalta os aspectos sensíveis que o ensaio não poderia dar conta. Camus, desta forma, assim como Sartre, insere-se em uma tradição de escritores que fazem filosofia a partir de múltiplas perspectivas de escrita, como, por exemplo, a escrita jornalística e dramatúrgica, que não foi tematizada neste texto, mas que também se inclui no processo de criação filosófica. Podemos enfatizar também que O Estrangeiro possui a peculiaridade de ter sido escrito no Mediterrâneo, fora do eixo europeu, abordando de forma muito particular temas que perpassam a história da filosofia, mas que estão demonstrados com Camus a partir de uma filosofia vista de outras perspectivas, como demonstrou Sartre. Neste sentido, o título do romance já desvela uma diferença que Sartre percebe em Camus já desde a sua juventude e que terá uma continuidade em suas obras de maturidade. Mesmo fazendo uma comparação entre Camus e autores europeus tanto da Literatura quanto da Filosofia, Sartre coloca Camus em uma dimensão diferente dos demais a partir de sua mediterraneidade africana. Em outras palavras, notamos que, ainda que influenciado pelo pensamento europeu, para Sartre, Camus se mantém estrangeiro com relação ao seu pensamento tanto na técnica quanto em seu conteúdo.

REFERÊNCIAS SARTRE,Jean-Paul.Situações I. Lisboa: Publicações Europa-América, 1968. SARTRE, Jean-Paul. Situações I. São Paulo: Conac Naify, 2005.ISBN 85-7503418-9 ARONSON, Ronald. CAMUS E SARTRE: O polêmico fim de uma amizade no pós-guerra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2004. ISBN 978-85-209-2035-0

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SCHOPENHAUER, WAGNER E NIETZSCHE: A MÚSICA EM DIFERENTES GRAUS FILOSÓFICOS SIDNEI DE OLIVEIRA1

Resumo: O presente artigo discorrerá sobre a importância da música em Schopenhauer, Wagner e Nietzsche. A música ocupa uma posição admirável para ambos os nomes citados, Schopenhauer a classifica como sendo a superior entre as artes, para Wagner a música em suas obras é a base sonora sustentável de seu drama e Nietzsche, partindo de uma análise da tragédia grega, desenvolve em sua filosofia estética, a música e a palavra juntas, sendo que a música está em um patamar acima da poesia. Mesmo concordando em certo grau sobre a música, Schopenhauer, Wagner e Nietzsche, apresentam fins diferentes quanto ao destino “final” da música, seja na redenção estética ou no caso de Wagner, a política. Compositor e instrumentista, doutorando pela Universidade de Campinas –UNICAMP – sob orientação do prof. Dr. Oswaldo Giacoia. Bolsista FAPESP e BEPE com estágio de pesquisa no exterior pela Universidade de Leipzig – Alemanha.

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Schopenhauer, Wagner e Nietzsche: a música em diferentes graus filosóficos, pp. 129 - 144

Palavras-chave: Schopenhauer, Wagner, Nietzsche, Música.

Abstract: This article discusses the importance of music in Schopenhauer, Wagner and Nietzsche. Music occupies an admirable position for both cited names, Schopenhauer classifies it as the top of the arts, for Wagner music in his works is the sustainable sound basis for your drama and Nietzsche, from an analysis of Greek tragedy, develops in his aesthetic philosophy, music and the word together, and the music is on a porch above the poetry. Even agreeing to some degree on music, Schopenhauer, Wagner and Nietzsche, have different purposes as the destination “end” of music, is the aesthetic redemption or in the case of Wagner the politics. Keywords: Schopenhauer, Wagner, Nietzsche, Music.

A música em Schopenhauer

S

chopenhauer desenvolveu sua teoria estética no terceiro livro de O mundo como vontade e como representação, neste livro o filósofo concebeu o que ele chamou de hierarquia das artes. A música sendo a cópia da vontade mesma é o que a diferencia das demais artes, ou seja, a música possui um efeito penetrante muito mais eficiente, pois enquanto as artes em geral são apenas representações de uma essência, a música é a pura essência, para Schopenhauer (2005, p. 338) é “a cópia de um modelo que ele mesmo nunca pode ser trazido à representação”. Compreendemos a partir deste conceito schopenhaueriano que todas as artes são cópias de Ideias, mas a música é a cópia da própria vontade, sendo assim, a música é capaz de gerar Ideias para as outras artes, já o processo inverso seria impossível. No parágrafo 52 de O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer mostrou cada intenção que a música proporciona no seu desenvolvimento e o porquê isto é plausível. Em uma linguagem filosófica e musical, foi possível observar o surgimento de uma filosofia da música. Para compreendermos as afirmações de Schopenhauer, devemos levar em consideração a forma com que o sujeito é conduzido à contemplação e submetido ao princípio de razão e à vontade. Esta arte suprema edifica não somente a si própria, mas também o compositor capaz de gerar uma bela melodia, visto que ela pode intensificar e dar sentido do início ao fim, sendo uma linguagem universal tão viva como a própria intuição, isto é, o mais alto grau de objetivação. Para Schopenhauer, o compositor, no momento de inspiração e criação da melodia, está completamente em transe, como se

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estivesse hipnotizado e, por este motivo, é que o gênio não é capaz de explicar o processo do nascimento de sua obra, assim como a música não depende da explicação formal de seus movimentos. É o procedimento mais íntimo da essência do mundo, uma linguagem profunda que sua razão não compreende. Segundo Schopenhauer, o gênio através da arte é capaz de representar suas Ideias, pois é o único meio do qual o artista se aproxima da arte, pois não está vinculada ao princípio de razão, e sim, no processo genial da criação. Essa proximidade do gênio artista e sua arte se dá de maneira puramente intuitiva, um momento que o sujeito se desliga do seu querer e afins, ou seja, da vontade. A arte deve ser criada em um momento, onde não há tempo nem espaço, não há lógica nem raciocínio, pois desta forma, haveria a intermediação do intelecto, a tentativa de abarcar, de entender o processo de criação, com isso é possível facilitar a exposição das Ideias através de uma satisfação artística, mas tal satisfação e exposição de Ideias, somente o gênio artista está apto a realizar, pois ele teve acesso somente a Ideia, libertando-se de todas as imagens e conhecimentos que o seu intelecto pode englobar do mundo visto por seus olhos. Este procedimento de constituição da arte, não está ligado ao belo ou ao sublime, pois é um átimo de inspiração em que não há um conflito de conhecimento das Ideias. Tanto o belo quanto o sublime, só podem ser vivenciados em uma arte finalizada, pois necessitam de um indivíduo que, no decorrer de sua contemplação pela obra de arte, acontece o desprendimento do puro conhecimento para o sublime, ou a preponderância do puro conhecimento para o belo. Devemos estar cientes de que a música schopenhaueriana é a música absoluta, isto é, a música instrumental. A crítica de Schopenhauer quanto à junção de outras artes com a música é justamente pelo motivo de que a música não necessita de nada além dela mesma, qualquer arte colocada junto à música estará se beneficiando do alto grau elevado da música para atingir seu objetivo. Com isso, o filósofo separa a tragédia da música, mesmo que haja o coro trágico, para Schopenhauer a mensagem apresentada na tragédia é a importância maior nesta arte, não haveria necessidade da música, a palavra chega ao seu fim sem a presença da música. Portanto, aqui vemos a poesia como o grau mais alto, pois ela encontra-se no topo do sistema metafísico do belo, dividida em três categorias, a lírica, a épica e a tragédia, esta última como a expressão maior desse gênero. Para Schopenhauer (2005, p. 333), a tragédia tem um único objetivo, “a exposição do lado terrível da vida, a saber, o inominado sofrimento, a miséria humana, o triunfo da maldade, o império cínico do acaso, a queda do inevitável e do inocente”. Sendo a tragédia um meio para conduzir o espectador a um momento de conflito com a sua vontade, ou seja, perceber qual o “objetivo” da existência humana, esse processo representa no enredo trágico, a ética, a moral e a justiça

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do homem enquanto herói e não herói. Tornar o sofrimento da humanidade visível, mostrar um sentido para vida e direcioná-la para um determinado fim, é ocasionar para cada espectador um conflito com sua essência, fazendo com que a vontade “apareça” para alguns com mais ou menos força, isto é, conscientemente. Segundo Schopenhauer (2005, p. 333) “Ele vê através da forma do fenômeno, do principium individuationis, com o que também expira o egoísmo nele baseado”, com isso, ele vê o mundo não mais através do véu de Maia. Em Schopenhauer (2005, pp. 334-335), a tragédia pode ser separada em três gêneros, a maldade extraordinária é atribuída ao primeiro gênero, pois atinge “os limites da verossimilhança, do caráter responsável pela infelicidade”, o segundo é determinado por um erro ou por um acaso, citado por Schopenhauer, o exemplo de Édipo devido sua cegueira.

Por fim, a infelicidade pode ser produzida pela mera disposição mútua das pessoas e combinação de suas relações recíprocas, de tal modo que não se faz preciso um erro monstruoso, nem um acaso inaudito, nem um caráter malvado acima de toda medida e que atinge os limites da perversidade humana, mas, aqui, os caracteres são dispostos como o são normalmente em termos morais; meras circunstâncias são colocadas, tais quais aparecem com frequência, contudo, as pessoas são de uma tal maneira opostas, que precisamente a sua situação as compele conscienciosamente a tramar a maior desgraça umas contra as outras, sem que com isso a injustiça seja atribuída exclusivamente de um lado. Este último tipo de tragédia me parece superar em muito as anteriores, pois nos mostram a grande infelicidade não como exceção, não como algo produzido por circunstâncias raras ou caracteres monstruosos, mas como algo que provém fácil e espontaneamente das ações e dos caracteres humanos, como // uma coisa quase essencial, trazida terrivelmente para perto de nós. (Schopenhauer, 2005, p. 335).

Schopenhauer apresenta esse último tipo de tragédia como superior aos outros dois, simplesmente porque não há uma maldade perversa ou um destino monstruoso, e acima de tudo, o viés que o enredo trágico é direcionado, fica aberto à reflexão ou a indução do espectador, ou seja, a compreensão e o conflito de si com a possibilidade de sofrimento da própria vida. De acordo com Schopenhauer, se nós somos capazes de realizar a mesma ação trágica, então não temos o direito de denunciar a própria injustiça. Veremos mais a diante que Wagner irá se apropriar de algumas ideias da teoria de Schopenhauer,

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principalmente em seu drama wagneriano Tristão e Isolda, para concluir sua ideia de Gesamtkunstwerk na prática composicional. O compositor Wagner, no entanto, deixou de lado algumas observações que o filósofo havia feito sobre a música e principalmente sobre a ópera, incorporando apenas o que era necessário para a afirmação de sua ideia de drama wagneriano. Vejamos o que o filósofo Schopenhauer discorre sobre a ópera.

A grande ópera não é realmente um produto do sentido da arte pura, em vez do termo um tanto bárbaro do aumento do gozo estético por meios de acumulação de recurso, em simultâneo, a impressão toda diversificada do efeito e através do reforço eficaz da quantidade e da força [...] A duração mais longa de uma ópera deve ser duas horas; de um drama, por outro lado, três horas, pois ela requer uma atenção e tensão mental por mais tempo; ela nos ataca menos do que a música incessante. (Schopenhauer, Parerga und Paralipomena, pp. 509-514).

Logo, a citação acima mostra realmente o quanto e o que Wagner associou em sua obra musical a filosofia de Schopenhauer, neste caso, exatamente o contrário do que o filósofo pensava sobre a ópera. Para Wagner, a importância da filosofia schopenhaueriana era pontualmente a questão da música como soberania, isto é, o “poder” que esta possuía com a sensação e o vínculo direto como a possibilidade do sublime. Porém, toda esta filosofia musical viria com um objetivo central, intensificar o libreto de seus dramas e a ação representada no palco. A música em Wagner Wagner inicia sua trajetória musical sendo reconhecido por executar e reger obras do compositor Beethoven. Suas primeiras composições não foram tão “famosas” e nem muito bem recebidas pelo público, mesmo suas duas primeiras óperas, Die Feen (1833-34) e Das Liebesverbot (1835-36) não tiveram grande repercussão. Quando Wagner resolve trabalhar a ópera como um contexto político e trágico, inicia então, a mudança estética em seu caminho como compositor, agora, ele denomina sua arte de composição como drama e não mais como ópera. A música para Wagner possui uma relação com a palavra que durante seus dramas tomam diferentes caminhos, ora com maior importância (Leitmotiv), ora como sustentação para a ação dramática. Wagner compreende o drama como uma ação dramática, que só é possível com a união das artes, pois

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cada arte possui uma determinada maneira de “tocar” o espectador; esta proporção relação arte/homem, será absorvida em sua magnitude somente com a junção da música, da poesia, da dança e do teatro. Para Wagner, drama é Handlung, ou seja, uma ação onde a música é o suporte sonoro que sustenta o ato dramático. Mesmo que a música absoluta, compreendida por Wagner no sentido schopenhaueriano, seja capaz de gerar um efeito no espectador, a palavra e o enredo são mais importantes do que a própria música, pois a mensagem será mais bem absorvida tendo como pilar uma base sonora musical. Wagner em seu ensaio Beethoven abordou não apenas o seu lado musical, mas avançou sobre a análise do homem Beethoven e suas composições a partir do conceito artístico do gênio, enfatizando a dimensão estética rompida na história da música em relação ao compositor, principalmente o drama apresentado na Nona Sinfonia. Podemos observar em um texto de Wagner (1922, p. 45) o quanto ele desejava conhecer seu “mestre” e como seria o diálogo sobre a composição de uma ópera, “se eu quisesse fazer uma ópera, segundo o que eu penso, as pessoas fugiriam dela; pois não haveria nada de Árias, Duetos, Trios e tudo que poderia testemunhar aquilo com que hoje tenta-se remendar a ópera”. Wagner descreveu acima como idealizava um encontro com Beethoven no qual conversaria sobre qual a “forma” de uma ópera composta pelo próprio Beethoven. Wagner define, a partir desse “encontro”, como desenvolveria seu drama musical: uma “ópera” sem formas, pois fugiria de um modelo que vinha sendo seguido desde suas origens. Podemos perceber que Wagner pretende “remendar” a ópera, já que, no formato que vinha sendo elaborada, perdera toda função dramática que era para ele a principal ação deste gênero musical. No mesmo texto, ele também comenta a inclusão da palavra na Nona Sinfonia, pois, mesmo sendo uma poesia nobre e edificante, estaria longe de expressar o que a música é capaz de realizar através da melodia; isso será mais bem explicado no ensaio Beethoven, não apenas como o início do drama musical, mas como o drama mais perfeito. Tristão e Isolda marca a principal mudança da obra de Wagner, pois trabalhou a música, a filosofia e a harmonia em uma forma nunca vista anteriormente e muito menos por seus contemporâneos. Como se sabe, foi em Tristão e Isolda que Wagner iniciou a leitura da filosofia de Schopenhauer, mais especificadamente O mundo como vontade e como representação. É possível observar em uma carta o interesse do compositor pela filosofia schopenhaueriana.

Em 26 de Setembro terminei a frágil cópia de Ouro do Reno e, na serena paz de minha casa, logo conheci um livro, cujo estudo foi de grande significado para mim. Era O mundo como vontade e como representação de Arthur Schopenhauer [...]

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Desde o primeiro momento a obra me atraiu poderosamente e me dediquei imediatamente ao seu estudo [...] A partir daquele dia e por muitos anos, jamais abandonei aquele livro, e no verão do ano seguinte eu o havia lido já pela quarta vez. A ação que o livro exerceu paulatinamente sobre mim foi extraordinária e certamente decisiva durante toda a minha vida. (Lisardo apud Wagner, 2009, pp. 114-115).

É possível ver com clareza que Schopenhauer é um argumento de grande importância para a obra de arte total wagneriana; assim como a Nona Sinfonia de Beethoven causou um impacto sonoro na vida de Wagner, o pessimismo de Schopenhauer englobou sua música. A “música pura” ou “absoluta” que Schopenhauer disserta e apresenta em O mundo como vontade e como representação como arte superior é a “sustentação musical” do drama para Wagner, pois as aberturas longas que apresentam pequenas partes de cada leitmotiv serão trabalhadas e desenvolvidas do decorrer de sua composição. Richard Wagner em matéria de intensidade musical foi, no século XIX, o ápice da música apresentada aos seus “ouvintes e espectadores”, elevando sua obra a um status desconhecido até então, ou seja, uma dissolução da estrutura tonal clássica. Para tal afirmação, isto é, o “novo caminho” da harmonia, visto por alguns teóricos e musicólogos, na obra wagneriana aconteceu com o famoso Acorde de Tristão.

Para os pesquisadores que se preocupam em localizar os Leitmotive, nesses quatro primeiros compassos, além do famoso Acorde de Tristão, é possível identificar o Seufzermotiv e também o Sehnsuchtsmotiv, como vemos na figura2 abaixo:

No final do século XIX, essa tensão harmônica era totalmente desconhecida; uma sonoridade que o ouvido não identificava a resolução, pois todos já estavam acostumados com as cadências utilizadas pelos compositores contemporâneos de Wagner. A ópera Tristão e Isolda seria reconhecida como

Nesta figura o crítico musical Maschka reescreveu a partitura, alterando os locais dos instrumentos para facilitar a visualização do Acorde de Tristão. Segundo Maschka, a linha do Violoncelo no primeiro pentagrama com as notas Lá, Fá, Mi e Ré#, é a melodia do Seufzermotiv, enquanto a linha do primeiro Oboé no terceiro pentagrama com as notas Sol#, Lá, Lá# e Si, pertence ao Sehnsuchtsmotiv. No primeiro tempo do terceiro compasso está o Acorde de Tristão.

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uma obra para além de seu tempo, apenas por esse motivo, mas Wagner seguiu seu ímpeto musical e sua curiosidade filosófica. Em relação à música de Tristão e Isolda, Wagner trabalhou várias tensões harmônicas que iniciaram no começo do prelúdio, se desenvolveram no decorrer dos atos, e apenas no final da ópera pode resolver algumas dessas tensões, como por exemplo, o mesmo Acorde de Tristão que inicia o prelúdio, aparece novamente no final, mas será apenas no desfecho da ópera, que ele receberá uma resolução. Com certeza o fato de Schopenhauer classificar a música como superior entre as demais artes, foi um ponto deveras importante para Wagner, pois ele tinha consciência que a música era em suas óperas, uma base sonora de grande valor, mas o libreto era o objetivo e a direção que o drama deveria seguir. Este foi o “erro” em relação à filosofia schopenhaueriana, algo que Wagner continuou a fazer antes e depois de conhecer O Mundo como vontade e como representação. Talvez para minimizar e equiponderar tal “culpa” ou falta, as aberturas longas de Wagner tenham sido uma espécie de compensação musical a teoria apresentada por Schopenhauer. Mas, Wagner tinha uma teoria que não distanciava de Schopenhauer, mesmo antes de conhecer O Mundo, por exemplo, a questão do gênio em Schopenhauer pode ser feita uma analogia quanto à maneira de como Wagner pensava o artista. Na citação abaixo, Wagner critica diretamente o crítico de arte e com isso, podemos observar o que Wagner pensa sobre a arte de ser artista.

O grande mal para a crítica reside no saber próprio. O crítico não sente a necessidade urgente que impulsiona e incita o próprio artista no entusiasmo, que no final grita: É assim e não de outra maneira! O crítico quer aqui, imitar o artista, mas pode apenas executar o erro da repulsa presunção, isto é, o confiante pronunciamento dado com uma visão qualquer da coisa, do qual ele não sente o instinto artístico, mas sobre o qual, ele expressa com meras opiniões estéticas arbitrárias, cujo suas afirmações estão em um ponto de vista da ciência abstrata. O crítico conhece apenas sua posição certa para o mundo fenomênico artístico, então ele sente essa timidez e mantém a cautela, onde reuniu apenas aparências e compilou contra uma nova pesquisa, mas nunca ousa pronunciar as palavras decisivas com entusiasmo e determinação. Assim a crítica vive um processo “gradual”, isto é, o eterno entretenimento do erro. (Wagner, 2005, pp. 226-227).

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No fragmento póstumo 12[1], datado da primavera de 1871, Nietzsche discorreu sobre a palavra e a música no modelo originário daquela união entre música e lírica. A palavra para Nietzsche é uma forma de linguagem e mímica corporal, nada mais nos gera do que representações. Portanto, não permite a ascensão à essência porque é um símbolo e, por isso, é necessária a melodia, a música absoluta, que por si só é essência enquanto arte e criação. A origem da música como canção para Nietzsche, ou seja, a união da palavra com a melodia surgiria em forma de música, mesmo que racionalizada, pois a palavra em si não é melódica. Porém o texto poético possui melodia e, sendo assim, o ato de criar a canção já seria musical em sua estrutura. Essa afirmação é evidente quando lembramo-nos de Schiller, e também de expressões utilizadas por Nietzsche em seu fragmento como simbólica gestual do falante, alegoria, substrato do corpo humano, sonoridade do falante, tudo relacionado à origem da palavra como algo físico do homem, ou seja, independentemente da língua falada, sua origem será sempre a mesma, um som produzido pelo homem com um único propósito: a comunicação e a compreensão entre eles. Nietzsche via a canção popular da mesma forma que imaginava ser a tragédia grega, ela não só pertencia ao povo como era feita para o povo, ou seja, uma arte predominantemente popular, uma fonte geradora de cultura, uma arte subjetiva, a ligação entre a música e a poesia em seus primórdios. No momento em que descobre em Arquíloco a música e a poesia, sendo a música a fonte geradora da poesia, Nietzsche tem como exemplo mais recente o ato de poetar em Schiller. O trecho que auxilia Nietzsche encontra-se em uma carta de Schiller destinada a Goethe, escrita em Jena, datada de 18 de Março de 1796. Nietzsche:

Schiller ofereceu-nos alguma luz através de uma observação psicológica, que se afigurava a ele próprio inexplicável, mas não problemática; ele confessou efetivamente ter tido ante si e em si, como condição preparatória do ato de poetar, não uma séria de imagens, com ordenada causalidade dos pensamentos, mas antes um estado de ânimo musical (“O sentimento se me apresenta no começo sem um objeto claro e determinado; este só se forma mais tarde. Uma certa disposição musical de espírito vem primeiro e somente depois é que se segue em mim a ideia poética. (Nietzsche, 2001, pp. 43-44).

Analisando que Nietzsche inicia seu pensamento estético e musical partindo de Arquíloco na antiga Grécia e, literalmente, dando um salto na história e retomando este tema em seu primeiro livro séculos depois, é como se ele percebesse que os pensadores anteriores a ele, que discursavam sobre o

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mesmo assunto, não tinham a intuição de gerar este conceito trágico e de buscar a “verdade” tida por Nietzsche no cerne da tragédia popular grega. Nietzsche escreve O Nascimento da Tragédia em um período que estava em constante contato com Wagner, o filósofo discutia questões musicais e filosóficas com o compositor. Ambos tinham nesse período uma aproximação com a filosofia de Schopenhauer, algo que está muito bem exposto tanto em O Nascimento da Tragédia de Nietzsche quanto em o Beethoven de Wagner, escrito dois antes (1870). Nietzsche lê os textos de Wagner concluindo que o compositor tem um objetivo estético-político com a sua música, principalmente por retomar os conceitos trágicos em seus dramas adaptando-os aos mitos germânicos, ou seja, partindo de uma unificação da arte com a política, direcionando-a para uma afirmação nacionalista e tendo o seu drama wagneriano como um retorno ao cenário natural da vivência musical. Para Nietzsche, é possível concretizar este objetivo wagneriano, pois a arte nasce da vida. Porém, a vida não é necessariamente uma expressão da divindade, ela não pode nascer da autocompreensão, só pode nascer a partir do fenômeno natural instintivo. Dessa forma, dar-se-á a expressão artística. Sendo assim, a vida, a política e a moral são realizações estéticas. Nietzsche relaciona o drama ao período trágico grego, isto é, durante as festividades que celebram a chegada da primavera. Nelas a vida se faz presente nas competições entre tragédias, que eram grandes eventos culturais. O drama presente nas tragédias, segundo Nietzsche, nada mais é do que o coro, sendo o povo representado em cânticos através do coro; logo, ação, enredo e o mito, são movimentos vivenciados e gerados pela música, portanto, a música dá vida ao mito. A diferença entre o sentido de drama em Wagner e Nietzsche pode ser resumida nesses termos: Wagner não reconhece grande importância ao coro, e o espectador necessita da ação dramática para absorver a mensagem cantada pelo herói trágico. Nietzsche vê o povo no coro, por essa razão, a vida é cantada mesmo com a morte do herói, a vida renasce com o coro, assim como cada primavera um novo ciclo. O filósofo Nietzsche via a canção popular da mesma forma que imaginava ser a tragédia grega, ela não só pertencia ao povo como era feita para o povo, ou seja, uma arte predominantemente popular, uma fonte geradora de cultura, uma arte subjetiva, a ligação entre a música e a poesia em seus primórdios. Analisando que Nietzsche inicia seu pensamento estético e musical partindo de Arquíloco na antiga Grécia e, literalmente, dando um salto na história e retomando este tema em seu primeiro livro séculos depois, é como se ele percebesse que os pensadores anteriores a ele, que discursavam sobre o mesmo assunto, não tinham a intuição de gerar este conceito trágico e de buscar a “verdade” tida por Nietzsche no cerne da tragédia popular grega. Vejamos

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como o filósofo discorre sobre a melodia e sua possibilidade de múltiplas objetivações.

A melodia é, portanto o que há de primeiro e mais universal, podendo por isso suportar múltiplas objetivações, em múltiplos textos. Ela é também de longe o que há de mais importante e necessário na apreciação ingênua do povo. De si mesma, a melodia dá à luz a poesia e volta a fazê-lo sempre de novo; é isso e nada mais que a forma estrófica da canção popular nos quer dizer: fenômeno que sempre considerei um assombro, até que finalmente achei esta explicação. (Nietzsche, 2001, p.48).

Sendo assim, tendo como base musical a tragédia grega, Nietzsche via a vida, a política e a moral em realizações estéticas. Segundo Macedo,

Na Grécia dos tempos trágicos, o Estado não teria existido, segundo Nietzsche, senão sobre a base de uma ética trágica e tendo a arte como objetivo. Note-se que, para Nietzsche, o Estado exerce um papel na vida grega e não é em nenhum momento considerado como um fim em si mesmo, como uma realização superior da civilização, como um objetivo. A vida política da Grécia se justifica esteticamente. (Macedo, 2006, p. 138).

Essa ação estética é tida como maneira de educar e formar o homem, mas é uma função subjetiva. A liberdade e a emancipação do sujeito partem de cada um, a arte apenas propicia a fonte para que isso aconteça já que é a partir da essência da arte que Nietzsche, de acordo com Rosa Dias (2001, p. 56), “valoriza os impulsos estéticos como condição de criação de novas condições de existência [...] a palavra “arte” tem um sentido abrangente para ele. Vale como nome para toda forma de transfiguração e de potência criadora”. Para Nietzsche, a arte tem um valor existencial, a criação da arte só é possível pelo homem, é uma atividade que produz vida e o tempo é a experiência para o criador. Para o artista, o tempo está presente em sua obra. O presente é submetido à criação que necessariamente não faz parte do presente; tal criação pode ser ligada a um passado que refletirá em melhorias no próprio presente ou no futuro. Para que isso venha se concretizar, o criador deve desvincular-se do seu tempo, esquecer e recordar, como podemos ver novamente em Rosa Dias,

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O criador sabe esquecer, não leva muito a sério seus contratempos e malfeitos; mas a reflexão de Nietzsche não para por aí. O criador não sabe apenas esquecer: sabe também recordar a tempo. É necessário ter duas visões das coisas: a histórica e a não histórica. Todo ato, para ser criado, exige o esquecimento: é impossível criar-viver sem esquecer. Do mesmo modo, todo ato criador exige a recordação: é impossível criar-viver sem relembrar. O criador não renega a tradição; pelo contrário, retoma-a para redimensioná-la. A faculdade ativa do esquecimento é capaz de assimilar o passado, transformá-lo e transfigurá-lo. Para definir o grau e fixar o limite em que é absolutamente necessário esquecer o passado, seria necessário conhecer a medida exata da força plástica de um homem, de uma nação, de uma civilização, quer dizer, a faculdade de crescer por si mesmo, de assimilar o passado, o heterogêneo, de cicatrizar as suas feridas, de reparar as suas perdas, de reconstruir as formas destruídas. (Rosa Dias (2001, p. 80-81).

Saber esquecer e relembrar para criar é como fazer e não fazer parte de seu tempo e viver para além de si mesmo. A arte propicia essa vida e por este motivo a existência só pode ser justificada através de um fenômeno estético: buscar na arte o que os gregos buscavam na tragédia, uma cerimônia religiosa que reconstrói e reforça o vínculo da unidade, da comunhão de uma determinada sociedade porque ela (a tragédia) é a ruptura de todas as barreiras. Entendemos agora porque a tragédia só pode ser cantada, pois a música é a dissolução de todas as figuras, portanto, é o coro o grande personagem e não o herói. O ato trágico desperta no homem o experimento ético e estético que beneficia com nobreza a sua consagração. Este deve ser o pathos para trabalhar a arte como vida, independentemente do período, a arte deve sobressair-se, assim como o criador precisa ver a história de duas formas, uma histórica e a outra não histórica. Podemos ver na carta abaixo de Nietzsche a Wagner, com data em 10 de novembro de 1870, como foi a recepção do texto Beethoven em Nietzsche. É importante ressaltar que Nietzsche lê o Beethoven de Wagner como sendo um texto de filosofia da música não apenas wagneriana, mas uma filosofia estética musical que deveria ser aceita por seus contemporâneos estetas. Nietzsche aponta na carta que os críticos de sua época terão dificuldades em compreender a linguagem musical de Wagner, mesmo aqueles que utilizarem da filosofia schopenhaueriana para auferir o texto como realmente Wagner gostaria que fosse compreendido.

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Muito venerado mestre! Na primeira investida do semestre de abertura, particularmente estrênuo este ano devido à minha longa ausência, nada mais estimulante me podia ter acontecido do que a recepção da cópia do seu Beethoven. Quanto significou para eu tornar-me familiar com a sua filosofia da música — que é como dizer, com a filosofia da música — poderia provar-lho num artigo que escrevi no verão passado sobre A Mundividência Dionisíaca. Na verdade, foi com a ajuda deste estudo que eu me habituei a apreender inteiramente os seus argumentos e a apreciá-los profundamente, mesmo quando muito afastado esteja o seu campo de pensamento, por muito surpreendente e espantoso que seja tudo o que tem para dizer, especialmente a explicação da verdadeira obra de Beethoven. E, contudo, receio que os estetas dos nossos dias olhem para si como um sonâmbulo que não seria apenas inconveniente, mas mesmo perigoso seguir se tal fosse possível. Mesmo a maioria dos cognoscenti da filosofia schopenhaueriana encontrará dificuldades em traduzir para conceitos concretos a harmonia profunda entre as suas ideias e as do seu grande mestre. Por essa razão, vejo o seu ensaio como «publicado e ainda não publicado», como disse Aristóteles dos seus escritos esotéricos. Gosto de me debruçar sobre a ideia de que são principalmente aqueles a quem a mensagem de Tristão tem sido revelada, que serão capazes de seguir Wagner, o filósofo, e eu por conseguinte considero a capacidade para uma apreciação verdadeira do seu trabalho como uma distinção incalculável conferida apenas aos poucos eleitos. (Nietzsche 1870 apud Foerster, 1990, pp. 88-89).

Considerações finais A hierarquia das artes está muito bem explicitada nos textos de Wagner quando fala sobre a surdez de Beethoven e de Nietzsche quando fala sobre o quadro Santa Cecília de Rafael. Wagner (2010, p. 52) refere-se ao músico da seguinte forma: “Um músico que ensurdece! É possível imaginar um pintor que ficasse cego?”. Já Nietzsche (2007, p. 174), sobre o quadro, afirma que “O prazer na aparência não pode, a partir de si, excitar o prazer na não aparência: o deleite do contemplar só é deleite porque nada nos recorda de uma esfera em que a individualização foi despedaçada e suprimida”. O que podemos entender nesta colocação de Nietzsche é que a imagem do quadro possui música e harmonia, sendo possível pintar um quadro através da música, já que ela nos permite

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diversas imagens enquanto a escutamos, mas que não é possível criar música a partir de um quadro independente da imagem que esteja nele. Da mesma forma que Wagner via a redenção na música instrumental de Beethoven, Nietzsche percebia um possível “retorno” estético da tragédia através do drama wagneriano, isto é, a redenção pela fusão da palavra com a música. Para Nietzsche, Wagner reacenderia a chama original do verdadeiro drama popular grego. A palavra, que tinha função não mais importante que a música para os gregos, juntamente com a representação ateniense, era vista agora por Nietzsche como uma possibilidade do renascimento da tragédia, uma tentativa de regressar à forma grega por excelência com cenas trágicas tiradas de mitos germânicos escolhidos por Wagner em suas obras através da junção da dança, do teatro, da música e da poesia, a Gesamtkunstwerk wagneriana. Contudo, Wagner tinha outro objetivo e este era diferente do que Nietzsche esperava acontecer com o caminho que o drama wagneriano tomaria. Wagner teve como apoio e realização a filosofia de Schopenhauer e o diálogo com Nietzsche, principalmente nas cartas. Mas, nunca se esqueceu de quem ele era, um compositor de dramas, um músico que deveria superar o seu “mestre” Beethoven, este era Richard Wagner. O primeiro momento como compositor que viria mudar o rumo da história da música, se dá em Tristão e Isolda, justamente onde a filosofia de Schopenhauer encontra-se de maneira mais aparente. O Acorde de Tristão possui música e filosofia. Vejamos a análise de Magee sobre este acorde.

O primeiro acorde de Tristão, conhecido simplesmente como ‘o acorde de Tristão’, continua a ser o mais famoso e único acorde na história da música. Ele contém dentro de si não uma, mas duas dissonâncias, criando na audição um duplo desejo agonizante em sua intensidade para a resolução. O acorde que se desloca para resolução de uma dissonância, mas não de outra, deste modo, provendo uma resolução-ainda-nãoresolução. E assim a música prossegue: em cada mudança de acorde algo está resolvido, mas não tudo; cada discórdia é resolvida em busca de uma maneira em que outra discórdia seja preservada ou criada uma nova, assim o fez cada momento no ouvido musical, está parcialmente satisfeito e ao mesmo tempo frustrado. E isso acarreta ao longo de toda noite. Apenas em um ponto tudo é discórdia resolvida, e está no acorde final da obra; e claro, é o fim de tudo - os caracteres e o nosso envolvimento, o trabalho e nossa experiência com eles, tudo. O resto é silêncio. (Magee, 2000, pp. 208-209).

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[...] Newton, o primeiro entre os cientistas de sua época, é citado como tendo dito: ‘Se vi mais longe foi por estar sobre os ombros de gigantes’ – e estava pensando, ao que parece de Galileu em particular, mas também de Kepler e Copérnico. Wagner, em sua realização final, estava neste tipo de relação com Schopenhauer. Sem Schopenhauer a criação de Tristão e Isolda e Parsifal é impensável, fora de questão, pois o essencial para sua substância são as ideias metafísicas, que Wagner tinha realmente absorvido e autenticado para si, mas teria sido inteiramente incapaz de chegar por si mesmo. O jovem Wagner, sem nunca ter ouvido falar de Schopenhauer, teve de combinar os desenvolvimentos sinfônicos de Beethoven, com os desenvolvimentos dramáticos dos gregos e Shakespeare para a produção de sua obra de arte, mas quando ele chegou ao ápice: reuniu, no ponto de seu maior desenvolvimento, a tradição dominante da música ocidental, a tradição dominante do teatro ocidental, e a tradição dominante da filosofia ocidental, e fundiu juntos não apenas em uma forma de arte teórica, mas em trabalhos reais de arte, que tem sido considerado por um grande número de pessoas, como insuperável. O programa declarado em seus escritos teóricos anteriores, já havia começado a ser ridicularizado como megalomaníaco, e muitas vezes era para ser assim novamente no futuro. (Magee, 2000, pp. 192-193).

Com isso, podemos concluir que a filosofia das artes que Schopenhauer apresentou em O mundo como vontade e com representação foi para Wagner o “apoio sonoro” que o compositor necessitava para firmar sua Gesamtkunstwerk. A música de Wagner em seus últimos dramas foi reconhecida como o fim do romantismo operístico e início do atonalismo. Portanto, Wagner é um marco, um divisor de águas enquanto música tonal e um olhar para o atonalismo. Para Nietzsche, mesmo que sua filosofia já estivesse pré-determinada, por ser um professor de filologia, não poderia “abraçar sozinho” a teoria estética que desenvolve em sua primeira obra publicada, O Nascimento da Tragédia, com isso, a filosofia de Schopenhauer e a obra musical de Wagner pode ser recebida como um esteio para o jovem filósofo.

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PARA ALÉM DO BINARISMO RACIONAL: UMA APROXIMAÇÃO ETIMOLÓGICA DA METAFÍSICA DA VONTADE DIOGO BOGÉA1

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Professor Assistente de Filosofia Política da Educação na Faculdade de Educação da UERJ. Doutor e Mestre em Filosofia pela PUC-Rio.

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Resumo: Nosso objetivo neste artigo é desenvolver uma aproximação etimológica da metafísica da vontade, desdobrando etimologicamente termos com o “vontade”, “esforço”, “querer” e “desejo”. Passa muito longe das nossas intenções estabelecer a “origem” ou a “história” consolidada de tais termos de maneira definitiva. Nos interessa muito mais que as redes de significações que constituem essas palavras nos conduzam a uma experiência de estranhamento diante dessa dimensão alçada ao primeiro plano com a filosofia de Schopenhauer, esta dimensão que não se deixa capturar pelos binarismos da racionalidade tradicional: a dimensão da vontade. Palavras-chave: Schopenhauer; vontade; etimologia Abstract: Our aim in this paper is to develop an etymological approach to metaphysics of will, etymologically unfolding terms like “will”, “effort” and “desire”. Rests very far from our intentions to establish the “origin” or the consolidated “history” of such terms once and for all. We are much more interested in letting ourselves be affected by the significance networks that constitutes these words, by letting them conduce ourselves onto an experience of strangeness in face of the dimension of will, that which Schopenhauer brings to the foreground in his phylosophy. We'll see that this dimension – the dimension of will – can't be captured by the traditional reasoning binarisms. Keywords: Schopenhauer; will; etymology

É bastante conhecido o princípio básico da metafísica da vontade, isto é, a postulação da vontade como essência do mundo: “A vontade é a substância íntima, o núcleo tanto de toda a coisa particular, como do conjunto; é ela que se manifesta na força natural cega; ela encontra-se na conduta racional do homem”2. Por meio de um conhecimento não-representativo, através de uma experiência corporal imediata, bruta, acessamos esta força essencial atuante em cada fenômeno individual, força essencial que atravessa e constitui a totalidade do mundo: A universalidade dos fenômenos, tão diversos para a representação, têm uma única e mesma essência, a mesma que lhe é conhecida íntima, imediatamente, e melhor do que qualquer outra, aquela enfim que na sua manifestação mais aparente, tem o nome de vontade. Vê-la-á na força que faz crescer e vegetar a planta e cristalizar o mineral; que dirige a agulha magnética para o norte; na comoção que experimenta 2 MVR, § 22

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com o contato de dois metais heterogêneos; encontra-la-á nas afinidades eletivas dos corpos, que se manifestam sob a forma de atração ou de repulsão, de combinação ou de decomposição; e até na gravidade, que age com tanto poder em toda a matéria, que atrai a pedra para a terra, como a terra para o sol3.

Não submetida às regras do princípio de razão – temporalidade, espacialidade e causalidade – a vontade não se dá como causa dos fenômenos, nem pode ter qualquer finalidade, isto é, não é racionalmente apreensível, é grundlos, sem fundamento. Ao tratar da essência do mundo, a tradução portuguesa de O Mundo como Vontade e Representação intercambia os termos “vontade”, “esforço”, “querer” e “desejo”. Com o desenvolvimento da metafísica da vontade, Schopenhauer traz à tona e eleva ao primeiro plano esta dimensão que se inscreve com um certo estranhamento no seio do pensamento ocidental. Uma dimensão que lhe soa estranha e problemática, talvez justamente por resistir ao enquadramento nos limites da razão, tendo desde sempre já os extrapolado. O movimento desejante resiste à estabilização. Não se o apreende jamais enquanto “algo” definido e determinado a partir de limites claramente estabelecidos. Quando nos damos conta dele – se nos damos conta dele – ele já está em marcha e nos arrasta, desconsiderando frequentemente as ordens do cálculo racional. Que é a vontade? Que é o querer? Que é o desejo? O problema todo talvez seja justamente que eles não são, ele vão, eles estão em movimento, eles se dão como um “ir em direção”. Eles resistem à explicação fundamentada, eles explicam sem explicar: “foi a vontade dos deuses”, “fiz porque quis”. Tanto na mais pura resignação impotente ao irremediável, quanto na mais extrema autoafirmação de autoria, diz-se aqui o mesmo: não podemos, de maneira alguma, explicar o que se passou. A única maneira de aproximar a vontade de “algo” apresentável e representável enquanto tal é subordiná-la ao sujeito. A vontade compreendida como faculdade intelectual do sujeito, partindo do sujeito, este já essencialmente determinado enquanto racional e consciente, e seguindo em direção a um objeto racionalmente determinado, tal qual uma linha traçada entre dois pontos num plano cartesiano, esta sim se presta a uma determinação estável. O que a metafísica de Schopenhauer faz é denunciar a ilusão dessa concepção que reduz a vontade ao sujeito, enquanto partindo do sujeito em direção ao objeto. Esta concepção “só existe no entendimento, in abstracto. É apenas pela reflexão que existe uma diferença entre querer e fazer: com efeito é a mesma coisa”4. Nas belas palavras de José Thomaz Brum “O corpo humano é, 3 4

MVR, § 21 MVR, § 18

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em Schopenhauer, o lugar em que o homem faz a experiência de uma força que lhe é estranha, de uma força que o domina e à qual ele obedece maquinalmente”. 5 Schopenhauer parte da própria vontade, a vontade que excede, ultrapassa, funda em seu movimento desejante, sujeito e objeto enquanto termos essencialmente relacionais, interconectados e interconstitutivos. Tentaremos a partir daqui uma aproximação etimológica dos termos “vontade”, “esforço”, “querer” e “desejo”. Passa muito longe das nossas intenções estabelecer a “origem” ou a “história” consolidada de tais termos de maneira definitiva. Nos interessa muito mais que as redes de significações que constituem essas palavras nos conduzam a uma experiência de abalo e estranhamento diante dessa dimensão alçada ao primeiro plano com a filosofia de Schopenhauer, esta dimensão que não se deixa capturar pelos binarismos da racionalidade tradicional: a dimensão da vontade. Etimologicamente, vontade remete ao latim voluntas (desejo, ânimo), que remonta a volere (querer). Em alemão, “wille” remete ao indo-europeu “wel” que também significa “querer”. A raiz latina de “querer”, “quaerere” diz “tratar de obter ou saber, buscar, procurar”. Enquanto “esforço” é união do prefixo latino “ex” (ir para fora, externar, expor, mostrar) com o radical “fortia” (força), qualidade do “fortis” (forte, capaz). Quanto a “desejo”, demoremo-nos um pouco mais. A palavra “desejo” remonta ao latim tardio com o verbo desiderare. Encontramos na raiz do verbo desiderare, a “palavra sidus, sideris, que quer dizer 'astro', 'estrela'”. Mas, “o que tem a ver desejo com as estrelas? Por que desiderare, que tem a palavra astro, significou 'desejar'?”6. É nas estrelas que os áugures da Roma antiga interpretam os sinais dos deuses e desvendam os mistérios do destino. O destino estava “escrito nas estrelas” como ainda hoje dizemos em português. E a língua inglesa ainda diz “stars” (estrelas) como sinônimo de destino. Os áugures “tinham um modo de observar os astros”, “tinham todo um discurso sobre a relação dos estados dos astros com a vida humana”. E essa posição de mediadores entre o mundo e o além, entre os homens e os deuses, como versados na enigmática linguagem dos astros lhes conferia grande poder e distinção. Eles eram consultados acerca dos grandes eventos da cidade, podiam determinar o início ou o cancelamento de uma batalha, uma condenação ou a concessão de um perdão, bem como intervir na vida dos grandes homens que a eles recorriam a fim de obter orientações quanto ao futuro. Para que os enigmas do além fossem decifrados e as respostas obtidas, os áugures contemplavam os astros. “Esse ato de contemplar os astros chama-se considerare”. “Levar em consideração é no fundo observar os astros, 5 6

BRUM, J. T., O pessimismo e suas vontades, p. 23 DI GIORGI, F., Os caminhos do desejo, p. 133

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considerare, ver o conjunto dos astros e a partir daí tirar uma conclusão sobre os eventos futuros”. Desiderare, no entanto, com o prefixo de, diz “desistir dos astros”, “desistir de olhar os astros”, “desistir de especular sobre o futuro”7. O que funda o desejo é a ausência. O fundo do desejo é o silêncio das estrelas que já não fazem mais sentido, o silêncio dos deuses que já não respondem mais. “Desejar é ter a certeza da ausência”. Na plenitude da presença não há desejo. O desejo envolve uma certa relação à ausência. A ausência de uma presença plena, a ausência da presença dos deuses, do além, do texto estelar pleno de sentido. A ausência é tão marcante que se faz sentir como perda. Perda da comunicação com os deuses que um dia preencheram os céus com pontos luminosos significantes. Nostalgia da presença dos deuses que não respondem mais, esperança fundada na desesperança, insistência fundada na desistência. Tudo isso nos diz o desiderare romano, origem do nosso desejar, bem como do inglês desire e do francês desirér. Essa, no entanto, é uma forma tardia da palavra desejo. O termo corrente para dizer “desejo” entre os romanos era cupio, do verbo cupere (“desejar”), e que está na raiz dos nossos vocábulos “cobiça” e “concupiscência” (cupiditas), os quais só utilizamos com o significado negativo que lhes atribuiu a tradição cristã. Em sua raiz, cupio provavelmente remete a cupeo “que significa gulodice nos dois sentidos, abstrato e concreto”8, isto é, a comida em si que é desejada e devorada, bem como o glutão que a deseja e devora. No latim arcaico, “desejo” se diz pela palavra venus, que “significa antes de tudo desejo sexual”, bem como o ato sexual propriamente dito. Tornou-se também o nome da “deusa dos jardins” com a qual os romanos acabaram por identificar Afrodite, a deusa grega da sexualidade. Mas, no princípio, verifica-se que venus significava “desejo no sentido amplo”. No alemão, é a partir de uma raiz indo-europeia comum que desejo se diz wunsch.9 Os gregos, por seu turno, dispunham de uma gama diversificada de termos para tratar do “desejo”. Hormé, por exemplo diz “apetite, tendência”. Orexis, muito utilizada, refere-se também à fome, apetite. É a raiz da palavra “anorexia”, quando precedida do prefixo de negação “a”, diz: ausência de fome, falta de apetite. Para os gregos “anorexia” falava de uma falta de apetite em sentido mais geral. Posteriormente, cristalizou-se o sentido estritamente ligado à alimentação. No entanto, também deriva de uma raiz comum de orego (desejo), a palavra orgué, que “pode ser cólera” ou “desejo sexual intenso”, bem como “uma animação excepcional para qualquer coisa, a arte, por exemplo” e que se traduz pelo termo “pulsão”10. De orgué vem o orgasmós, ligado ao máximo prazer sexual, êxtase. Tem em comum com a “cólera”, o significado de algo que 7 8 9 10

Ibidem, p. 133 Ibidem, p. 131 Ibidem, p. 132 Ibidem, p. 134

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se espalha por todo o corpo, algo de origem tão física quanto espiritual que se espalha pelo corpo, toma o corpo por inteiro, possui o corpo e o arrebata. Descrição que se aplica tão bem a um “ataque de cólera” quanto a um “orgasmo”. Há, no entanto, uma outra forma grega de dizer “desejo” que se mostra um tanto mais complexa e que nos aproxima de uma das definições etimológicas da palavra vontade: ânimo. A palavra grega à qual nos referimos é epithymia. O prefixo grego “epi” pode ter muitos significados, os principais sendo “acima de”, como em “epígrafe” – texto grafado acima do texto principal – e “depois”, como em “epílogo” – conclusão já presente ou acrescentada a um texto principal. No caso de epithymia, “epi” diz “movimento para”, como em “epístola”, que vem do verbo epistellein, composto pelo epi nesse sentido, mais stellein (enviar), querendo dizer mensagem que se envia para alguém. No radical de epithymia temos a palavra thymós, a qual possui vários significados, mas é justamente uma das duas maneiras – sendo a outra psyché – de dizer “alma”, isto é “ânimo”. Ânimo remete à alma que anima o corpo vivo. Tanto thymós quanto psyché querem dizer “sopro”, “vento”, “fumaça”. É comum aos povos antigos a identificação entre “sopro”, “vento” e princípio vital. Talvez pela presença da respiração como evidência de vida, enquanto sua ausência evidencia a morte. Seja como for, ghost, geist, espírito, spiritus, bem como o hebraico nefech, todas remetem ao “vento”, ao “sopro”, como se houvesse uma corrente de ar que anima o corpo e o enche de vida. É recorrente nas mitologias a imagem do “sopro divino” que concede o dom da vida ao corpo inerte. O “sopro” traz também consigo a fragilidade característica da vida. Como uma brisa, vem e passa. O “sopro” voa e se esvai, tem lugar a morte. Mas, traz também a indestrutibilidade da vida do espírito: o sopro voa e se esvai, o corpo morre, mas a alma permanece, de alguma outra maneira, viva. A diferença entre psyché e thymós, embora ambas sejam utilizadas correntemente para dizer “alma”, se refere justamente ao seu papel na vida e na morte. Enquanto thymós é a força vital que anima o homem em vida e o põe em movimento, cessando e se extinguindo no momento da morte, psyché é justamente aquela parcela da alma que “sobrevive” à morte11. É o “bater de asas” do sopro vital que abandona o corpo após a morte. Na morte do corpo, “ela é expirada pela boca ou, ocasionalmente, sai por uma ferida, vagando por um tempo e depois indo para o Hades, onde permanece como sombra, fantasma”12. Enquanto espectro, sombra, fantasma que vaga pelo Hades, a psyché não guarda nenhum traço da “singularidade” daquele que habitava em vida, não se dá como “um ser que indique o que entendemos por pensamentos e sentimentos”13. “Já sumidas nas sombrias entranhas da terra, as almas vagam 11 SILVA, B., Thymós e Psyché nas obras homéricas, p. 62 12 CÚRI, S., Noûs em Homero, p. 97 13 Ibidem, p. 97

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inconscientes, ou no máximo, em um estado de aturdimento semiconsciente, dotadas de uma média voz que é como o canto do grilo, débeis e indiferentes a tudo”14. Como um espectro sem – ou quase sem – consciência, não reconhece ninguém, não responde a nenhum chamado, não age nem fala como quando em vida, apenas vaga pelo Hades e emite uma espécie de murmúrio incompreensível. Toda essa digressão em torno do termo psyché é importante para marcar sua diferença em relação ao thymós, radical de epithymia (desejo). Podemos perceber que a psyché guarda um caráter quase exclusivamente espiritual, caracterizando-se justamente por ser a parcela da alma que sobrevive à morte do corpo. Thymós, por seu turno, é “alma” enquanto força que anima o corpo em vida, é alma como princípio de vida, “é alma ou coração como princípio de vontade, inteligência, sentimentos e paixões”15. É justamente o que se perde, o que se esvai no momento da morte. Mas, Thymós diz muito mais que “alma”, expressando uma enorme variedade de significados. Thymós diz:

"coração", "peito", alma, mente, como sede de vida, inteligência (faculdade de percepção, conhecimento, pensamento, deliberação, julgamento, memória), (...) sono e interioridade;(...) e também “coragem, raiva, ira, maldade, apetite, impulso sexual, vontade, sentimentos, emoções, humores, caráter; como sede da faculdade de pensar, deliberar, julgar, memória; como sede de khér (coração) e dos sentidos físicos; interioridade como região em que as coisas se dão sem manifestação exterior.16

Há aqui todo um entrelaçamento entre físico e espiritual. O primeiro significado citado é “coração”. “O significado de thymós como coração nos remete a um ponto interessante da cultura grega: acreditava-se que os órgãos eram os responsáveis pelas funções psíquicas e sentimentais” 17 . Não há uma clara demarcação diferencial entre “corpo” e “espírito” para os gregos antigos, de modo que é bem conhecida, por exemplo, a relação estabelecida por Hipócrates entre melancolia e “bile negra”, ligada ao baço. Assim, coração é tanto órgão físico quanto lugar das emoções e sentimentos. Ainda hoje sentimos “dor no coração”, “guardamos no coração” aqueles que amamos, temos o “peito” ou o “coração” cheios de amor, ódio, tristeza ou alegria. Além de “alma” e “coração”, compreendendo-os a partir dessa complexa articulação de sentidos, outro significado mais comum de thymós é “coragem”, referindo-se, por exemplo, frequentemente, à bravura do herói homérico. 14 15 16 17

RHODE, E. ap. SILVA, B., Thymós e Psyché nas obras homéricas, p. 63 CÚRI, S., Noûs em Homero, p. 100 Ibidem, p. 100 SILVA, B., Thymós e Psyché nas obras homéricas, p. 60

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A origem da palavra thymós é incerta, mas sua “origem mais provável” é thýu, que diz: “(lançar-se com furor), daí, princípio de força, vontade, ímpeto, ardor” 18 . Assim podemos compreender com mais propriedade epithymia enquanto o lançar-se com furor, da alma e do coração, do corpo e dos sentimentos, corajosamente, em direção a este ou aquele objeto de desejo. Aqui pode-se estabelecer também uma ligação entre a raiz de thymós, neste “lançar-se com furor” que é “princípio de força”, com a outra palavra que Schopenhauer utiliza para caracterizar a essência do mundo, isto é, esforço, enquanto externar e mostrar força. Em seu Por que filosofar?, de 1964, coleção de conferências proferidas uma década antes dos famosos trabalhos que lhe renderiam a alcunha de pensador pós-moderno, Lyotard se deixa conduzir de maneira sublime pelo pensamento do desejo, para além ou aquém de “uma visão dualista das coisas (de um lado, temos o sujeito, do outro, o objeto, cada qual provido de suas respectivas propriedades)”: O desejo não põe em relação uma causa e um efeito, quaisquer que sejam eles; ele é o movimento de algo que vai no rumo daquilo que falta a si mesmo. Isso quer dizer que o outro se faz presente àquilo que deseja, ele se faz presente aí sob a forma da ausência. Aquele que deseja tem aquilo que lhe falta, sem o que ele não o desejaria e não o tem, não o conhece, senão ele também não o desejaria.19

Bela caracterização do desejo: um ter – não tendo – aquilo que se lhe faz presente enquanto ausência. O que se tem assegurado enquanto posse definitiva não é preciso – nem possível – que seja ainda desejado, por outro lado, o que não se tem, em absoluto, nem mesmo enquanto ausência, não pode, igualmente ser desejado.

O movimento do desejo faz, então, surgir o pretenso sujeito como algo de indefinido, de inacabado, que tem necessidade do outro para se determinar, para se completar, que é determinado pelo outro, pela ausência. Logo, de parte a parte, temos a mesma estrutura contraditória, mas simétrica: do lado do “sujeito”, a ausência do desejado, sua falta, no centro de sua própria presença, do não-ser no ser que deseja; do lado do “objeto”, uma presença, a presença ao desejante contra o pano de fundo de ausência, porque o objeto está ali como desejado,

18 CÚRI, S., Noûs em Homero, p. 101 19 LYOTARD, J., Por que filosofar?, pp. 25-26

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não como possuído.20

Na dinâmica do desejo, o mais próprio se define pela relação ao outro, pela presença da ausência do outro.

O essencial do desejo reside nessa estrutura, que combina a presença e a ausência. Essa combinação não é acidental: é exatamente porque o presente está ausente de si mesmo, ou o ausente presente, que existe desejo. O desejo é verdadeiramente suscitado, instituído pela ausência da presença, ou o inverso; algo que está aí não está e quer estar, quer coincidir consigo mesmo, se realizar, e o desejo é apenas essa força que reúne, sem confundi-las, a presença e a ausência.21

Lyotard procede à leitura do Banquete, à procura da caracterização de Eros. Isso porque, sua questão central “Por que filosofar”, exige uma investigação e um desdobramento do próprio termo “Filosofia”, o qual, dizem os manuais, composto por “philia” (Amar, ser amoroso, amizade) e “sophia” (sabedoria), diz: amor à sabedoria. Eros, o Amor, para os gregos antigos, no entanto, nada tem do amor cristão, o qual se afina com a “caridade”, carregando em si o sentido de abnegação e benevolência para com o próximo, sendo tão mais verdadeiro quanto mais puramente espiritual. O Amor grego está muito mais próximo do nosso termo “erótico”, do qual é a raiz etimológica. Eros é desejo, tão carnal quanto espiritual. Schopenhauer traz à tona essa dimensão constitutiva da Filosofia – a philia, seu intrínseco pertencimento a Eros – dimensão negligenciada no decorrer do pensamento ocidental, obliterada pelo privilégio da sophia, do sophón. Heidegger, em Que é isto – a Filosofia? recorre a Heráclito para investigar o significado de sophón:

tá sophón significa Hén Pánta, Um (é) Tudo. Tudo quer dizer aqui Pánta tà ónta, a totalidade, o todo do ente. Hèn, o Um, designa: o que é um, o único, o que tudo une. Unido é, entretanto, todo o ente no ser. O sophón significa: todo ente é no ser. Dito mais precisamente: o Ser é o ente.22

Lyotard também recorre a Heráclito para buscar a definição de sophón e o resultado da busca é análogo ao de Heidegger. Sophón lhe aparece como o 20 Ibidem, p. 26 21 Ibidem, p. 26 22 HEIDEGGER, M., Que é isto – a Filosofia?, p. 215

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“permanecer junto” da “força originária da unidade”, “o uno”, “o que une”.23 Partindo sempre da estabilidade da presença de um fundamento último, como “uno” que preside a multiplicidade dos entes (sophón), a metafísica tradicional negligencia o movimento instável que tem seu lugar – será ainda um lugar? – entre presença e ausência. Phileo é o amor do amigo, a amizade. No entanto, sabemos o quanto de erotismo há na amizade entre os gregos. A própria etimologia da palavra phileo nos deixa ver esse elemento erótico que lhe é intrínseco. “Por trás de Phileo a palavra que existe é beijar”. E não apenas beijar, mas também “tornar seu próprio”, “apropriar-se”, “tornar uma coisa sua”. “Ele está ligado a um sentido muito forte de identificação e possessividade”24. De phileo também deriva a palavra filtro, nada mais que uma “poção que alguns entendidos faziam, afrodisíaca”, para “aumentar o desejo sexual”25. Acreditava-se, então, que se o amante apaixonado conseguisse dar de beber o filtro a seu amado, ele se apaixonaria prontamente, resguardando aqui aquele sentido de “tornar seu próprio”, “apropriar-se”, enquanto desejo do amante de apropriar-se do seu amado. No Banquete encontramos uma das mais belas exposições acerca de Eros. A verdade sobre Eros é revelada a Sócrates, o mestre do logos, por Diotima, mulher, estrangeira – de Mantinéia –, sacerdotisa – mediadora entre os deuses e os homens, entre os imortais e os mortais. Sócrates se propõe a repetir para os presentes o discurso de Diotima. Ele estava, então, convencido de que era o Amor “um grande deus” e que era “belo”, ao que ela responde “que nem era belo”, “nem bom”. Sócrates, surpreso, interpela: “Que dizes, ó Diotima? É feio então o Amor, e mau?”. E a resposta é enfática: “Não vais te calar? Acaso pensas que o que não for belo, é forçoso ser feio? (…) E que se não for sábio é ignorante? Ou não percebeste que existe algo entre sabedoria e ignorância?”26. Estas primeiras palavras, ao contrário do que possam parecer, não se dão a título de simples introdução. O que está em jogo com elas é extremamente grave. Diotima principia quebrando a lógica binária de Sócrates, a lógica binária excludente (ou, ou) que é marca do pensamento racional ocidental, como se dissesse, para começo de conversa, que para tratar de Eros, é preciso se desvencilhar desta maneira tradicional de raciocínio, que é preciso compreender que se está na iminência de tratar da sutileza e da complexidade de um “entre”, o qual não se deixa facilmente capturar por uma definição binária, pois não opera no registro do princípio de identidade (A=A, logo A dif. B). “Não fiques, portanto, forçando o que não é belo a ser feio, nem o que não é bom a ser mau. Assim também o Amor, porque tu mesmo admites que não é 23 24 25 26

LYOTARD, J., Por que filosofar?, pp. 50-51 DI GIORGI, F., Os caminhos do desejo, p. 139 Ibidem, p. 139 PLATÃO, O Banquete, p. 32

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bom nem belo”. “Nem por isso vás imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que está, dizia ela, entre esses dois extremos”.27 “Amor”, prossegue Diotima, “por carência do que é bom e do que é belo, deseja isso mesmo de que é carente”28. Eros está lançado em direção àquilo que lhe falta. Isso quer dizer: Eros está fundado sobre uma ausência. Se se deve admitir que os deuses são bons e belos, se são caracterizados pela presença do bom e do belo, Eros, portanto, não é um deus. Sócrates, o mestre da racionalidade tradicional, como se não conseguisse se libertar do modo de operação binário excludente, mesmo após todas as advertências da estrangeira, tenta uma vez mais resolver a questão pela apresentação do contrário: “Que seria então o Amor? – perguntei-lhe – Um mortal?”. E a resposta de Diotima, mais uma vez aponta para uma dimensão que a metafísica tradicional encontra enorme dificuldade em pensar: “algo entre mortal e imortal”. Eros é um “gênio”, um daimon, com o poder de

interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no meio de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si mesmo. (…) Um deus com um homem não se mistura, mas é através desse ser que se faz todo o convívio e diálogo dos deuses com os homens, tanto quando despertos como quando dormindo.29

Eros leva aos deuses, à alteridade radical do além, da transcendência que “não se mistura” com os homens, suas súplicas e sacrifícios. E traz aos homens as ordens e as recompensas. Intermediário entre deuses e homens, Eros é descrito, portanto, como um lançar-se à transcendência que, neste lançar-se, determina, organiza, configura, distribui as recompensas e estabelece as ordens, ordena o mundo dos homens. Diotima prossegue com a gênese de Eros. Vale a pena acompanharmos a longa citação: Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar – pois vinho ainda não havia – penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza, então, tramando em sua 27 Ibidem, p. 33 28 Ibidem, p. 34 29 Ibidem, p. 34

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falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador, terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro e sofista: e nem imortal é a sua natureza, nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor, nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância.30

Gerado no dia do nascimento de Afrodite, Eros permanece sendo seu “companheiro”. Enquanto companheiro, acompanha Afrodite, demora-se junto dela, permanece ao seu lado. Mas, não apenas isso, Eros é também “servo” de Afrodite, e, enquanto tal, permanece submetido a ela, pronto para servi-la, em estado de permanente servidão para com ela. Amor é acompanhante e servo da beleza, mas, se “beleza” aqui é representada pela deusa Afrodite, não podemos imaginá-la apenas enquanto determinados padrões de proporção que, prestando-se à contemplação, agradam e despertam o prazer contemplativo. A beleza de Afrodite é também, e principalmente, a beleza que seduz, que excita e desperta o desejo sexual. Por sua gênese, isto é, concebido num rompante de oportunismo em que a Pobreza mendicante vem se unir a Recurso, já embriagado, Eros traz inscrita em sua essência uma impossibilidade. Filho de Recurso (Poros) e Pobreza (Penia), Eros herda dos pais, aqueles que tornam possível a sua vida, as características próprias que tornam sua vida impossível: Filho de Penia, é sempre “pobre”, “duro”, “seco”, “descalço”, “sem lar”, “deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos”. Eros, segundo a natureza da mãe, jamais dispõe daquilo que precisa, é marcado pela ausência de posses, de bens, de recursos. Vive na miséria e no desamparo, descalço e sem lar. Sem lar, em eterno desabrigo, vaga como um estrangeiro em toda parte, deitando-se às portas e nos caminhos, isto é, o que lhe é próprio é estar à beira da propriedade, 30 Ibidem, pp. 34-35

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quase dentro do lar, mas sempre somente à porta. O que lhe é próprio é o estar “nos caminhos”, entre partidas e chegadas, a caminho, nunca ainda aqui, nem já ainda lá. Marcado pela ausência e pela falta, convive com a “precisão”. No entanto, segundo a herança paterna, é “insidioso” com o que é belo e bom, isto é, ardiloso, paciente, não poupa recursos, mesmo os mais traiçoeiros, na busca do que lhe parece belo e bom. É também “corajoso”, “decidido”, “enérgico”, “caçador”, “terrível”, isto é, pleno de thymós, caçador implacável e terrível, com a bravura digna de um herói. Cheio de recursos, dotado de um alta engenhosidade, Amor está sempre a “tecer maquinações” e “ávido por sabedoria”, segue a “filosofar por toda a vida”. Sua avidez pela sabedoria, seu philein, seu amor de amigo carregado de erotismo, pelo sophon, pela sabedoria, pela apreensão da unidade que rege a multiplicidade, não tem fim e perduram por toda a vida. É também um “terrível mago”, “feiticeiro” e “sofista”, isto é, tem algo de mágico, dispõe dos poderes ocultos da feitiçaria, mostra-se capaz de seduzir, convencer e enfeitiçar, como um feiticeiro ou um sofista. Nem mortal, nem imortal, a existência de Eros se inscreve “entre” a vida e a morte. No mesmo dia ele “germina e vive”, mas também “morre e de novo ressuscita”. Por fim, a marca da impossibilidade essencialmente inscrita em Eros: “o que consegue sempre lhe escapa”, de modo que “nem empobrece”, “nem enriquece”. Eis o impossível ao qual Eros, segundo a herança dos pais, está condenado. Dispondo de toda a engenhosidade, paciência e coragem do pai, tem à sua disposição todos os meios para conseguir o que deseja, mas o que consegue, já não lhe parece desejável ou ao menos não lhe parece ainda suficiente, escapando-lhe a satisfação a cada vez por entre os dedos, lançando-o novamente, nesse escapar, à sua condição essencial de pobreza e desamparo. Assim Eros segue, entre a vida e a morte. Sua vida é sempre espreitada pela sombra da morte, sua morte não é repouso definitivo nas profundezas do Hades, mas uma quase morte, logo obliterada por sua pronta ressurreição. Vontade, querer, esforço, desejo. Estranha dimensão elevada ao primeiro plano na filosofia schopenhaueriana. Dimensão tão corporal quanto espiritual, tão emocional quanto mental. É fome e apetite, mas também desejo sexual – onde fica a fronteira entre necessidade e fetiche ou fetichismo? Onde fica a fronteira entre natura e cultura? É coração, peito, coragem, mas também maquinação tão filosófica quanto sofística. Entre presença e ausência, entre esperança e desespero, entre recurso e pobreza, entre morte e vida, não se deixa capturar pela racionalidade tradicional. Com essa longa digressão etimológica queremos apenas chamar atenção ao seguinte: não sabemos o que dizemos quando dizemos vontade, desejo, querer, esforço. E, no entanto, não deixamos de fazer a experiência disso que há, mas não podemos definir racional ou conceitualmente o que é – e não por alguma limitação circunscrita à constituição transcendental do “sujeito”, mas porque isso que há como vontade, desejo, querer, esforço, não se presta a essa captura no 9 - semestre 1 - 2016

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pela moldura do pensamento racional. Com isso, reconhecemos na vontade algo como o traço da estrutura do indecidível derridiano. Como o próprio Derrida nos fala, indecidíveis seriam:

unidades de simulacro, falsas propriedades verbais, nominais ou semânticas, que não mais se deixam compreender na oposição filosófica (binária) e que, no entanto, habitam-na, resistem-lhe, desorganizam-na, mas sem jamais constituir um terceiro termo, sem jamais engendrar uma solução na forma da dialética especulativa (…) nem/nem é ao mesmo tempo ou isso ou aquilo.31

Vontade, desejo, querer, esforço: nomeações possíveis para uma dimensão impossível de nomear, indecidível, que “não se deixa compreender na oposição filosófica (binária), mas que, no entanto, “habita” nela, lhe “resiste” e a “desorganiza”, sem se prestar, contudo, a uma subsunção sintética. A vontade não é mais corporal que espiritual, não é mais natural que cultural, não é mais presente que ausente. Nem uma coisa, nem outra, é ao mesmo tempo todas elas. Não se reduzindo a nenhuma delas, sempre já as extrapolou e engendrou.

REFERÊNCIAS: BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 CÚRI, Sílvia. Noûs em Homero. Hypnos, Ano 2, N. 3, 1997, pp. 93-106 DERRIDA, Jacques. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001 DI GIORGI, Flavio. Os caminhos do desejo. In NOVAES, Adauto. O desejo. São Paulo: Cia das Letras, 1990 HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a Filosofia? In Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril, 1973, pp. 215-222 LYOTARD, Jean-François. Por que filosofar?. São Paulo: Parábola, 2013 PLATÃO. O Banquete (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Abril, 1979 SCHOPENHAUER, Artur. O Mundo como vontade e representação. (MVR) Porto: 31 DERRIDA, J., Posições, p. 49

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Rés Editora, s/d SILVA, Bruna. Thymós e psykhé nas obras homéricas. Anais do I Congresso Internacional de Religião, Mito e Magia no Mundo Antigo & IX Fórum de Debates em História Antiga, 2010, pp. 57-67

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arde quente! Nada de muito urgente para fazer. Encontro-me com mais dois amigos em um bar copo-sujo das proximidades do Centro de Humanidades da UECE. Éramos, então, três filósofos ao redor de uma garrafa de cerveja gelada, em uma tarde quente. A consequência disso não é difícil de antever: começamos a falar de filosofia antes mesmo de esvaziar a primeira tulipa de cristal (copo americano, para ser sincero). Não sei muito bem como, mas o assunto chegou a Hegel. – Talvez porque todos os caminhos levem a Hegel. – Mais obscuro, todavia, foi o aspecto do sistema (sintoma neurótico) de Hegel ao qual chegamos. Teria, então, o sucessor de Fichte na cátedra da Universidade de Humboldt, em Berlim, feito aquilo que seu antecessor, assim como Kant, não fez? Hegel foi capaz de conciliar natureza e espírito? Foi-se, nessa feita, já a segunda garrafa. – Vou pegar mais uma. Cada um paga uma. O dinheiro não está fácil! – Com a chegada da terceira garrafa, pudemos continuar. Recordei um dos escritos mais obscuros de Hegel, a tal Ciência da Lógica, onde seu autor distingue “crítica interna” da “crítica externa”. Aquela dá conta das aporias de uma filosofia, levando em consideração todo seu vocabulário e sua linha de argumentação. Com a crítica externa, por outro lado, o interlocutor se ocupa da desconstrução da doutrina, levando em conta considerações ou premissas que não estão contidas na reflexão do criticado. Com relação aos dois modelos de crítica apresentados, Hegel é bastante enfático ao afirmar que “a verdadeira refutação deve se apoderar do inimigo e colocar-se no âmbito de sua força” (HEGEL, 1999, p.250). Ou seja, uma crítica filosófica é aquela que enfrenta a dificuldade da coerência interna de uma filosofia, reconhecendo suas alegações internas e, por isso, alargando a ciência filosófica. Desde Schelling, já em suas preleções de 1827, a tarefa de criticar Hegel vem sendo encampada por diversos filósofos. Feuerbach, Marx, Kierkegaard, isso para ficar só nos críticos de primeira ordem, dos primeiros anos após a morte de Hegel. Contudo, boa parte dessas críticas são realizadas de forma externa, não enfrentando a dificuldade que é solapar o sistema hegeliano desde dentro de sua própria estrutura de coerência. A questão de se Hegel concilia ou não espírito e natureza, do ponto de vista da sua coerência interna, pareceu-me, naquele instante, não proceder. Pois bem! Já pela quarta garrafa, nos sentíamos em uma Kneipe berlinense, caminhando pelos ríspidos vales da filosofia hegeliana. Meus interlocutores afirmaram, primeiro, a impossibilidade de conciliação entre espírito e natureza, uma vez que o espírito, livre, domina a natureza, sendo-lhe superior. Tal alegação se sofisticou, aos goles de uma gelada, chegando à

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afirmação de que a conciliação entre natureza e espírito, em Hegel, seria, tão-só, formal, não alcançando o conteúdo expresso. Mas Schelling já dizia isso! Já vendo mais do que cinco dedos, ao olhar para a minha própria mão estendida diante dos olhos, percebi que a minha mão, mesmo sendo minha, é natureza. Ela se mexe, pois sou dotado, antes de tudo, de um corpo e de uma alma. Minha alma individual, como manifestação individualizadora da alma do mundo, é um fenômeno imaterial da natureza. Mas eu sou espírito subjetivo! – Isso é paranoia de um bêbado? – Não! É Hegel, na Primeira Seção, Ponto A, do terceiro volume da Enciclopédia das Ciências Filosóficas (HEGEL, 1997b, p.42ss). Parece muito estranho que a natureza, explicitamente apresentada como o outro da Ideia, venha a ser mostrada como modo imediato do espírito. De fato, o é. – Desse mais uma. Bem gelada! – Hegel expressa, com absoluta transparência, que o espírito, como liberdade e razão se fazendo no mundo, é superior à natureza. Porém, mesmo assim, não me parecia correto dizer que ele não concilia natureza e espírito, se considerarmos a coerência interna do que ele quis fazer. Para provar meu ponto, seria preciso recordar o que diz Hegel: “O espírito tem para nós, a natureza por sua pressuposição, da qual é a verdade...” (HEGEL, 1997b, p.15). O termo técnico é pressuposição (Voraussetzung). O jogo de linguagem é a relação entre setzen e voraussetzen, por e pressupor. O que é posto, em Hegel, é aquilo que é manifesto, que se tornou um para-si, ou seja, que foi mediatizado por suas diversas determinações, que não são postas, mas pressupostas. – O que eu quero dizer só se entende com mais uma cerveja... mas, mais gelada do que a anterior, por favor. – Aquilo que é posto na filosofia do espírito é, naturalmente, o espírito. Nesse sentido, manifestamente, ele é liberdade, razão, consciência, enfim, capaz, por tudo isso, de fazer filosofia e refletir sobre a natureza, conceituando-a. O espírito, portanto, é a verdade da natureza, pois é no espírito que a natureza pode vir a ser conceito. Mas, ainda mais importante, a natureza se liberta no espírito. Por isso,

o fim[alvo] da natureza é matar-se a si mesma e quebrar sua casca do imediato, sensível, queimar-se como fênix para emergir desta exterioridade rejuvenecida como espírito. A natureza tornou-se para si algo outro, para de novo se reconciliar como ideia e reconciliar-se consigo. (HEGEL, 1997a, p. 556).

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– Quero comer! Traz uma carne do sol bem frita, disse o Augusto. – Ora, foi o espírito, que domina a natureza, que fez da vaca esse aperitivo, não é certo? – Perdão, amigos Veganos, mas é Hegel! – Sim, mas isso não quer dizer que não há conciliação. Quando se fala no pressuposto necessário da natureza, não significa que estamos falando que a natureza se tornou fase superada. O que é pressuposto, em Hegel, atua permanentemente como mediação. Pressuposição e posição são operadores do sistema, que, empregados em conceitos específicos, permitem, por um lado, na forma lógica, a apresentação filosófica, sem ter que recolocar todos os elementos demonstrados a cada passo que se dá; por outro lado, na sua forma ontológica, demonstra a relação e a dependência dos diversos seres. Logo, ao falar do espírito, só no modo da exposição se pode negar a natureza. Com isso, já bem mais bêbados do que o combinado, cheguei à conclusão de que as duas hipóteses iniciais não são cabíveis. Primeiro, a conciliação não é só formal, é, também, de conteúdo. Na verdade, o impulso de se manifestar, herdado, pelo espírito, da natureza, só é possível pela “suprassunção de seu ser-outro, a idéia lógica, ou o espírito essente em si, torna-se para si, isto é, manifesta a si mesma” (HEGEL, 1997b, p.24s). Dessa forma, Hegel afirma que “o espírito assim proveio da natureza” (HEGEL, 1997a, p. 556). Vindo da natureza, o espírito, como Ideia da lógica, se torna para si exatamente porque foi mediatizada pelo seu ser outro, ou seja, a natureza. O espírito, dito de outra forma, no outro da Ideia, ou melhor, na natureza, “não se perde [...], mas antes nele se conserva e se efetiva; ali estampa seu interior, faz do outro um ser-aí que lhe corresponda” (HEGEL, 1997b, p.24s), ou seja, cria uma segunda natureza. Dito isso, a dominação da natureza não significa a guerra ininteligível com o espírito. Trata-se, tão-somente, do modo próprio do espírito mediar-se com a natureza. É assim que o espírito pode se manifestar. A dominação, apresentada como entrave para a conciliação, na verdade, é o modo em que, primeiro, a natureza se liberta de sua interioridade imediata; segundo, a forma em que o espírito subjetivo se torna objetividade. Por isso,

o espírito que se apreendeu quer também reconhecer-se na natureza, suprassumir de novo a perda de si. Essa reconciliação do espírito com a natureza e a realidade é, só ela, a verdadeira libertação dele, onde ele deixa seu modo particular de pensar e de intuição. Esta libertação da natureza e de sua necessidade é o conceito de filosofia da natureza. (HEGEL, 1997a, p. 556).

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– Vamos pedir a conta? Divide por três, ne? – Pelo que pude mostrar, não há descontinuidade e, muito menos, incoerência interna na filosofia de Hegel, nesse ponto. É visível isso em trechos como: “a história universal é, portanto, em geral a explicitação do espírito no tempo, do mesmo modo que a Ideia se desdobra no espaço como natureza” (HEGEL, 1995, p. 131). O espírito objetivo, sendo o impulso originário do espírito, é a prova inconteste da conciliação entre espírito e natureza. Só fundando a segunda natureza, com base na primeira, é que o espírito pode se satisfazer e se realizar, uma vez que o espírito finito, como natureza, está marcado pelo mal absoluto da morte. Por outro lado, somente no espírito objetivo é que a natureza se liberta da sua imediatez. A natureza, portanto, permanece como condição do espírito e como animadora do mundo, sem o qual não pode existir espírito, liberdade ou razão capaz de pensar. Assim, a natureza é condição do próprio sistema de Hegel – e de suas compulsões. Por outro lado, também o espírito realiza a natureza, uma vez que seu impulso de se manifestar eleva-se ao nível da consciência, com o espírito: “o indivíduo orgânico produz-se assim a si próprio; [...] por isso, também o espírito é apenas aquilo em que ele se transforma [...]. Mas no espírito é diferente [da natureza]. A passagem da sua determinação à sua realização é mediada pela consciência e pela vontade.” (HEGEL, 1995, p. 129). Daí Hegel completa:

também estas [consciência e vontade] se encontram, de início, mergulhadas na sua vida natural imediata; o seu objeto e o seu fim são, no começo, a determinação natural enquanto tal que, em virtude de ser o espírito quem a anima, tem infinitas pretensões, infinitas forças e riqueza. (Idem).

– Uma saideira. Eu pago! A narcose vai aumentando e as analogias se tornam mais estranhas. Depois da saideira, chegamos à conclusão de que o espírito, como noivo da natureza, reconhece naquela, como afirma Hegel (1997a, p. 25s), a carne da sua carne. Ou seja, no íntimo da natureza, a universalidade (má), é imediatamente reconhecida pelo espírito como sua vocação. Mas a natureza, tal como aquela cerveja gelada, não nos deixa, nem na mais alta reflexão do espírito absoluto. Post Scriptum: Essa é uma peça de ficção, escrita por um abstêmio adorniano, para quem a filosofia de Hegel é a prova de que não houve um só passo no sentido da conciliação entre natureza e espírito.

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REFERÊNCIAS HEGEL, G.W.F. A razão na história: Introdução à Filosofia da História Universal. Lisboa: Ed.70, 1995. HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas: Filosofia da Natureza. São Paulo: Loyola, 1997a. HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas: Filosofia do Espírito. São Paulo: Loyola, 1997b. HEGEL, G.W.F. Wissenschaft der Logik II. Frankfurt am Main: Suhrkamp,1999.

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AS ALTERIDADES CIRCUNSCRITIVAS DAS ECOLOGIAS LINGUÍSTICAS [UM ENSAIO FOTOGRÁFICOFILOSÓFICO] WELLINGTON AMÂNCIO DA SILVA1

Mestre em Ecologia Humana (UNEB-PPGEcoH); Especialista em Ensino de Filosofia (UCAM); Pedagogo (UNEB-Campus VIII).

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osso afirmar com certa precisão o que é uma árvore tal, e a partir daí, enquadrá-la numa espécie (categoria taxonômica mui subjetiva), todavia trazemos sempre uma definição enquanto meu conceito acerca

da árvore, ou mesmo da metáfora árvore como outro, sem, apesar disso, quem sabe, iniciar qualquer possibilidade de um diálogo autoral com a árvore sobre o que ela é de fato, pois, apenas eu, ser humano, articulo o conhecimento do mundo e dos seres vivos na condição mediadora de um instrumental que é apenas meu, circunscrito para mim, enquanto minha configuração humana, o logos.

Chegando-se à verdade da árvore através da metáfora, assim como os galhos desta nos oferece um caminho ao seu interior, em aberto sempre, e ao mesmo tempo, tangência para o vazio além-da-árvore; interioridade porosa, sem simetria estrutural - apenas alguns caminhos sugestivos para o tato da sua forma detalhadamente singular.

Disto, afirmo o meu nível de comunicação sobre um objeto ao mesmo tempo em que o possuo no limite dos meus modos de apropriação e satisfação da retenção parcelar do seu conteúdo essencial. No entanto, se não quisermos

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muito, ou soberbamente tudo, poderíamos achegar-nos à verdade das árvores através da metáfora, se não quisermos atravessá-la – por entre seus galhos intangíveis – linguisticamente. No âmbito “do objeto para mim”, em que medida a árvore contribuiria para a minha definição, além da sua aparência e além do seu posicionamento, que se nos oferece como fenômenos observáveis? Eu não saberia responder. Partindo do plano “absurdo” de uma ontologia estritamente biótica, tudo o que ela é é o que sei dela? Construímos para nós um ser oco, quase totalmente solto no espaço branco da anomia da existência?2

Em cada oco de árvore um umbral e ao mesmo tempo microcosmo de seres vários. Esta árvore reconstruída na linguagem é, desde sempre, um “ser” quase totalmente solto no espaço branco da anomia da existência.

Deparamos-nos assim com o eterno problema do noumenon, ou a ding an sich, kantiana cada vez mais afastada do nosso âmago, pelo “exercício até aqui escolástico” da análise de tudo que é vida hic et nunc. Não nos ocorre haver, até o presente momento, uma ontologia que não seja articulada por nós a Outra forma de interação não linguística seria aquilo proposto pelo professor Juracy Marques, a saber, a Escuta Sensível dos seres, uma espécie de leitura metassemiótica, para além das propostas de leituras biossemióticas estudadas atualmente (ver Jakob von Uexküll).

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partir do esteio da nossa própria ontologia – dito assim, não podemos negar que nossa dimensão-linguagem institui uma ontologia circunscritiva em que infelizmente para nós o mundo factual é o que dele fazemos, e assim, subsumindo os seres do mundo numa condição representativa, tomando-os para nós, agora percebemos como eles se esvaziam de si quanto o tocamos com os olhos. Salvo as questões filosóficas postas aqui, essa aparente brincadeira com a árvore que perdeu a sua “identidade” em nós, muito fácil de ser respondida por muitos biólogos (visto que cuidar é sobretudo o que precisamos); isto me serve apenas para tentar demonstrar o tamanho do problema conceitual da alteridade que inicio aqui apenas como uma questão provocativa e sobretudo visual (de como queremos tanger o mundo com os olhos e de como este mundo se táctil não se deixa facilmente ver os seus limites mais supremos). De todo modo, talvez a mais concreta das relações entre homens e árvores seja o que fazemos delas hoje:

Macrofotografia de um pregador de varal. Sua transformação nos ajuda a compreender os modos pelos quais racionalizamos a Natureza construindo coisas ao nosso favor; no entanto, é possível observar na textura da madeira transformada, nos sulcos e arranhaduras, a permanência de uma “linguagem” própria a qual a Natureza é impávida em mantê-la para si.

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A amizade filosófica de objetos interpretáveis (2009), por sua configuração lógica, oferece-nos um padrão de análise monológico, onde desde sempre este “objeto” de análise é posto sob as condições de profunda passividade – no momento em que é descrito e no momento em que é posteriormente representado (o “objeto” em si avança sob o movimento do tempo, espaço e contexto existencial); dizer-bem o que é um objeto seria tentar contornar ou atravessar sua “ontologia passiva” em busca de alguma comunicação. Para ilustrar essa ideia de alteridade, com a devida “licença poética”, utilizando o exemplo extremo da “comunicação com pedras”, no âmbito do objeto para objeto, de Teles (1973 p. 19), quando disse que o conceito de comunicação ocorre no sentido de interação físico-química, ao afirmar que “uma rocha se comunica, à medida que suas partículas nucleares se atraem ou se repelem na intimidade de sua estrutura atômica. Como se vê, comunicação implica movimento3. Sua extensão foi restrita ao campo biológico, plantas e animais, em função da imanência”4. Dito isso, pode-se perguntar como, aliás, auscultar a ipsissima vox do objeto pedra a não ser por meio de instrumentos tectônicos? Como auscultar o “discurso” das nuvens a não se quando colidem umas com as outras, apresentando-nos trovões e relâmpagos – indícios posteriores, evidências periféricas do factual “nuvem”? E aqui já não temos resposta a dar-lhes, porque a chuva sempre impossibilita um diálogo, com sua torrencial “palavra final”... Qualquer tentativa de comunicação para nós visa o prático. (Isso não ocorre com o outro - quer não seja petrificado, no âmbito da objetivação extrema de uma análise unilateral pretensiosa -, sem poder ou querer5 dizer para nós o que pensa acerca de si mesmo).

O autor justifica que “por convenção, chamou-se vida ao automovimento imanente” (1973 p. 19). Como se daria isto no campo da Filosofia da Ciência, ou mesmo simplesmente no campo da Ciência (ἐπιστήµη) da Filosofia? 5 A questão do poder ou querer aponta para a sentença antiga, natura non contristatur. 3 4

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Nesta interação, às vezes sem palavras, mesmo diante de nossos apelos estéticos, historicamente constituídos, a Natureza parece não se comover conosco (natura non contristatur) – somos apenas um meio dela se realizar, perpetuando-se, engajada em si mesma, em seu projeto indescritível?

Nesta perspectiva de alteridade, é possível ter uma ideia geral dos sentidos da comunicação nos debates até o tempo presente, ao se referir ao movimento de encontro - desde encontro entre placas tectônicas até o encontro dialógico entre sujeitos nos limites da profundidade da linguagem teórica e conceitual, nos limites do que pensamos sobre alteridade, nos limites do seu repertório mental acerca destas coisas, da sua visão de mundo colonizado pelo espírito - no sentido dado por Bruno Snell. Deste movimento de encontro, o seu contrário - a separação enquanto movimento de afastamento - pode demonstrar de fato alguma alteridade6. Nessa perspectiva, o outro é sempre o que não sou – Separa-se no mínimo por dois motivos: a) separação entre entes iguais – e certamente por causa disso -, b) separação de entes distintos. Perguntamos-nos se o igual pode ser dividido, ou no plural, se os entes iguais são formalmente divisíveis? Como se daria (em fileiras) essa distribuição entre iguais, se os entremeios separatórios de ente para ente enfileirados configuram uma paisagem em si de alteridade? O que os torna, dentro da mesma farda, diferentes? É o entremeio da separação que suscita a alteridade negativa como aparência e não como essência. É essa separação que os tornam diferentes atuando no arcabouço da sua essência. Mas, o grande problema dela é tanto visar conceber uma unidade aparente entre os entes da fileira, tendo nisso a possibilidade de excluir o diferente - como seu objetivo teleológico -,

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isto, necessito respeitar; tal Encontro diz mais a respeito da Concepção de Presença (2015), um fator antes contemplativo de saber, e depois de toque-fruição. No âmbito do outro objetivado, o problema da alteridade7 - temática de “conflito” - começa justamente pela buscar do conhecer o outro, dentro e sempre a partir de um grupo, num generalismo; pelo resultado contradito dessa definição, feito por mim, a partir de mim, a buscar ou saber acerca do diferente entre indivíduos “iguais”, sob as condições abstratas de “igualdade” pode suscitar muitos equívocos; mas não entre as árvores, ou entre elas e nós.

A distribuição de galhos e caules de uma árvore, sempre apontando para o alto céu, como uma autoridade eclesiástica de uma arcaica religiosidade, nos mostra objetivamente por sua configuração, os limites que não devemos atravessar – caso contrário, degradamos a árvore e corrompemos o nosso espírito pelo vício predatório. As árvores nos exortam pacientemente acerca do nosso ímpeto territorial deliberado no linguístico. Como se sabe, esta questão não é apenas um problema da linguagem, mas linguístico espacial.

da sua universalidade contraditória. A igualdade quando aponta para a alteridade é um conceito basilar de algum fascismo velado na própria linguagem. Contradição: separação substantivo passivo; afastamento, substantivo ativo. 7 Para tentar não entrar no complexo universo sagrado do Outro, em Lévinas; sim, do outro como humano e não como árvore, para ariscar-se nesta taxonomia subjetiva sem fim da espécie humana, ao menos na Modernidade. Assim, tratar do Outro humano talvez demandasse maiores energias do que o exemplo botânico.

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O grande Outro, nosso problema incontornável, é antes a própria vida (alienada sempre em qualquer análise) da qual nos distanciamos a cada dia; não é a figura de outro ser humano à minha frente, mas a vida mesma não à minha frente, mas, rente a mim. E é nesta interpretação, e afirmação do outro como ser humano igual a mim, que o estudo da alteridade perde fôlego, ou na pior das hipóteses, é aniquilado. “Que outro, se todos somos seres humanos?” – disse alguém certa vez. Todavia, de um ponto de vista genético, nos parecemos demasiadamente com árvores. Talvez o problema ideológico da alteridade seja o da representação do distinto, do inverso em outro. Ou o outro é como eu – e assim resolvo o problema da igualdade/desigualdade -, ou o outro é diferente de mim – e assim, dele estou sempre me afastando cada vez que pronuncio “outro”; porém, cada vez que o penso a partir de um “outro”, mais alieno-me de mim mesmo nesta relação; cada vez que o represento como “outro”, mais o conhece-te a ti mesmo é interditado de fora para dentro. Contudo, o outro dito por ele mesmo já não seria lá um estudo de alteridade clássica, mas aqui a possibilidade de clarificar a alteridade na prática – desta hipótese, torna-se impraticável entender as árvores – a não ser que a sensibilidade adquirida através da tentativa de entender o outro e a mim mesmo seja pré-requisito para auscultar árvores e exercer a mais bela das amizades de objetos interpretáveis (TAMEN, 2009). Se a busca do entendimento do outro só pode ocorre através da linguagem lógica e formal ao que pretende a filosofia, há já aqui uma mediação que é, quanto maior for sua complexidade conceitual maior a distancia entre o eu e o outro; o outro é sempre um conceito que desencadeia afastamento - e temos na própria análise como instrumental de apreensão, um duplo afastamento da presença viva do outro: primeiro porque o outro é diferente; segundo, quando a linguagem – por sua constituição formal - faz dele um ser “a nossa frente” (prae-esse).

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As diferenças essenciais entre o outro e eu poderia ser encontrada no vão que separa os corpos – este espaço infinito habitado pela linguagem. Tais diferenciações não podem ganhar em consistência através do que nos “diz” - sem logos - a pele (fachada ontológica do ser), se engelhada, ferida, estigmatizada, se negra, se parda, vermelha, verde, alva ou leprosa; assim como o tronco de uma árvore (que ao mesmo tempo denuncia o tempo e os fatos nos quais esteve implicada) tem muito a dizer sobre a vida, que a vida diga de mim e do outro o que somos ou poderemos ser. Se a vida fala, de quem é a linguagem? Sejamos mais voltados a ouvir.

O dito natura non contristatur (2001) é o fundamento da postura da vida em relação a nós. A vida não quer ver o outro, nem me quer ver, mas, na condição de “nós”, somos quem postulamos as condições de alteridade e trazemo-las para cá numa relação que tenta reorientar a vida de indiferença com respeito à bem considerar a diferença – a tríade eu, o outro e Natureza seriam três dimensões epistemológicas inseparáveis de entendimento que atualmente suspeitamos desconhecer em grande parte. Talvez Dioniso entre as videiras ou mesmo alguma idosa mediterrânea, iletrada, que debulhava grãos para a sua comunidade - sobre a eira antiguíssima dos seus pais - tenham compreendido melhor do que nós o que realmente é uma árvore.

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Referências DA

SILVA,

Wellington

Amâncio.

Aspectos

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ON DELEUZE’S ASSEMBLAGE ONTOLOGY: DE LANDA’S DELEUZE: HISTORY AND SCIENCE THIAGO MOTA1

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eleuze: History and Science is a collection of seven essays written by the Mexican-American philosopher, media artist and software designer Manuel De Landa (*1952). The book was published in 2010 by Atropos Press, which is supported by the European Graduate School (Switzerland), where De Landa holds the Gilles Deleuze Chair of Contemporary Philosophy and Science. He is also Professor at the University of Pennsylvania (USA). The book is a comprehensive synthesis of the results of the research work that the author has been conducting over more than two decades. Above all, 1

Mestre e Doutorando em Filosofia pela UFC. Contato: thmota@ufc.br

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Deleuze: History and Science provides a balance of a mature theoretical reflection. Scrutinizing Deleuze’s philosophy, but also knowingly crossing different sciences, from mathematics to linguistics, from chemistry to astrophysics, from to biology to sociology, to psychology, politics, history, economics, urbanism, and so on, De Landa proposes a new account of metaphysics, a materialist one, whose fundamental notion is assemblage (Deleuze & Guattari’s agencement in French). However, the argumentation style is closer from the analytic tradition than from the mainstream post-structuralist literature. This certainly makes it possible to reconstruct Deleuze’s ideas in a surprisingly clear and consistent way. But, that is also the question: isn’t it all too clear for Deleuze? The first essay “Assemblage Theory and Human History” summarizes the theoretical framework of De Landa’s conception of metaphysics as well as relates it to social theory. The author assumes that any entity populating the world is an assemblage. In contrast to substances or essences, assemblages are never simple, but always complex and composed. Assemblages are wholes whose parts are heterogeneous and independent from each other. These parts establish relations of exteriority with each other, affecting and being affected, but they also remaining capable to establish other relations and to enter in other wholes. When the parts of a whole get together, they express properties qualitatively distinguished from the properties that its component parts have when isolated. Those are emergent properties that permit to recognize the identity of a whole (or an entity). The event of this encounter (interaction) of the parts, that is, the event of assembly that constitutes the transitory identity of assemblage is the only kind of entities that populate the world. Besides, every assemblage is, at the same time, part (“molecule”) of a larger whole and a whole (“mole”) for its own parts. Whence, the ontological proposition that the totality of reality is an assemblage of assemblages. For example, society is an assemblage of subjects who, on their turn, are, at least cognitively, assemblages of perceptions and conceptions. At the same time, every society is part of the human species that is a larger assemblage including societies. Translated in the terms of molar and molecular, the distinction between macro and micro is relativized, blocking any kind of reductionism. Neither a one-sided micropolitic approach nor a one-sided macropolitic approach may provide an adequate view of society and politics. Going back and forth through the scales, De Landa not only relinks macro and micro, but also considers the “meso-levels”, that is, the “spaces” between macro and micro – in relation to States (macro-level) and inhabitants (micro-level), cities are the “meso-level”. Assemblages present three main features: first, all of them are singular entities with contingent identities; second, any of them is a population of interacting entities that composes wholes; third, assemblages are conditions of

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possibility for its component parts, in the sense that they, at the same time, constrain and enable them. Furthermore, two parameters quantify assemblages. On the one hand: the degree of territorialization and deterritorialization, that is, the degree of integration or dispersion of the component parts in an assemblage. On the other: the degree of coding and decoding, that is, the degree of fixation of the communication code within an assemblage, which is decisive for definition of its identity. Giving the credits to the French historian Fernand Braudel, De Landa concludes that, if the only acceptable entities are assemblages as presented above, entities as “the Market” or “the State” or “the Capitalism” should be excluded from the analysis, because they are no more than reified generalities, they are ghosts. Indeed such transcendental entities cannot belong to a materialist analysis that claims immanence as one of its advantages. This is what De Landa is calling a “materialist metaphysics”, that is, a materialist theory of the whole. Nevertheless, the use of transcendental entities is very common even among theorists that are allegedly thinking in terms of immanence. This is the “conservative turn” of contemporary philosophy: a coming back from materialism to idealism, as De Landa qualifies it in the essay “Materialism and Politics”. One of his examples here is a widespread reading of Foucault that reduces non-discursive practices to discursive practices and concludes that there is nothing else than discourse. To this line of interpretation, practices as torture, confinement, drilling, monitoring are ultimately discursive practices. Based on this understanding is the (in general unconscious) idealistic assumption that the world is product of our minds. Ironically, the author denounces that this position disguises its political conservatism, its lack of clue about what is reality, with a “radical-chic” progressive mask. To be sure, addressing deconstructionism, De Landa is also returning the debate between realism and anti-realism that animated the analytical tradition in the last decade to the old dispute between materialism and idealism; and he is taking position for a reconstruction of the former. Therefore, for De Landa, philosophers as Foucault or Deleuze are materialist or realist allies, in the sense that they conceived an external non-subjective reality and provided an analysis that respects its movements. The following essay, “Assemblage Theory and Linguistic Evolution”, is an application of the notion of assemblage and its conceptual apparatus to linguistics. Introducing Deleuzian notions such as order-word and collective assemblage of enunciation in the pragmatic theory of speech acts originally formulated by John Austin, De Landa analyzes language through territorialization/deterritorialization and coding/decoding parameters. Thus, language becomes an assemblage of speech acts of power or a collective assemblage of enunciation where order-words circulate. These assemblages may be more territorialized and their enunciations may be more codified, no 9 - semestre 1 - 2016

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constituting major languages, as classical Latin. However, they may also be more deterritorialized and characterized by decodified enunciations that constitute minor languages, as Neo-Latin dialects. Definitely, the analysis is efficient in unearthing a dimension of language that remains obscure for the most of the pragmatic linguistic analysis: political one. In the essay “Metallic Assemblages”, the concept of assemblage is used to model war. For example, the whole composed of a man, a horse and a weapon is an assemblage of heterogeneous (anthropological, animal and technological) elements that, once assembled, acquires an independent identity. That particular assemblage may compose larger assemblages, mobile cavalries, which on their turn compose the nomad armies, known since Antiquity. A nomad army distinguishes itself for its high degree of deterrirorialization. In contrast, sedentary armies are highly territorialized for they are composed by inflexible blocks of infantry, military assemblages known as phalanxes, whose soldiers carry sword and shield but are pedestrians. In addition, the author warns that these distinctions should not be taken as the models for all possible armies. Rather, they correspond to different degrees of territorialization or deterritoriazation that vary throughout history introducing important changes in the way that war is battled. It is clear that Deleuzian notions as State apparatus and war machine should not be considered as entities, but as states or phases that the assemblages present at a specific intensity of territorialization or deterritorialization. Therefore war machine is the state that an assemblage gets when it becomes more and more deterritorialized. On its turn State apparatus is the phase of an assemblage while it is being increasingly territorialized. Beyond that, Deleuze & Guattari also use the terms war machine and State apparatus to refer to other assemblages, including formations of knowledge that constitutes nomad sciences, when they obey to a regime of minority, and Royal sciences, when they are rule by a regime of majority. Hard sciences, such as mathematics or physics, obviously exemplify the latter. Examples to the former are harder to find, but metallurgy is doubtlessly one of those. And it is a special science to a materialist metaphysics because it shows that inorganic matter, metal in the case, is somehow alive. After discarding idealism (or anti-realism) as the idea that the entities that populate the world have no extra-linguistic existence, the essay “Materialist Metaphysics” compares the Aristotelian transcendental realism with the Deleuzian immanent realism (or materialism). The author indicates two major distinctions. First, while to Aristotle the identity of an entity is generated by its essence (substance or nature) which is its purely formal cause (transcendent), to Deleuze the identity of an entity emerges from the historical process of assembly of elements which are always material (immanent). Second, the Aristotelian world is populated by three categories of entities: genus, species – both essentially subsisting – and individual – that subsists only accidentally. On no 9 - semestre 1 - 2016

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the other hand, the Deleuzian ontology considers real only two categories of entities: individual singularities – equivalent to Aristotle’s lowest level – and universal singularities – that play the role of the two highest levels in Aristotle’s metaphysics. However, in the Deleuzian ontology, there is neither place to transcendent generalities nor to formal causes entirely disconnected from matter. Everything is accidental, singular, immanent and real (or material). But the whole of reality is not restricted to what is actually present. To explain it the author introduces another pair of Deleuzian concepts that replace the Aristotelian notions of actuality and potentiality: the actual and the virtual. Thus besides the actual, there is the virtual, that is, what is real and not actual but possible. In other words, every entity has an actual part that constitutes its individual singularity. But every entity is also related to a universal singularity, that is, its associated space of possibilities, its virtualities, its diagram (which by the way can be mathematically calculated). After that, De Landa tests the capacities of both ontologies in modeling the objects of different sciences, starting with chemistry, than astrophysics, passing by mathematics, and finishing with biology, and concludes for the advantages of a Deleuzian inspired materialist metaphysics based on the key notion of assemblage. The subsequent essay, “Intensive and Extensive Cartography”, is dedicated to another nomad science, namely, the science of maps, cartography, which De Landa intends to adapt to the metaphysics of assemblages. The starting point here is the distinction between extensive and intensive spaces. As basic thermodynamics shows, extensive spaces may be mapped by the means of simply divisible parameters as length, surface, and volume. In contrast, intensive spaces may not be so simply divided because their properties are intensities as speed, temperature, and pressure. Thus, extensive and intensive maps are decisively different. That cartographical distinction attains its metaphysical relevance when it is linked to two Deleuzian conceptual pairs: actual/virtual, on the one hand, and molar/molecular, on the other. While actuality may be sketched with an extensive map, that is, a map of actualized possibilities, virtuality requires a map of intensity, that is, a map of the space of possibilities or the diagram of what may be alternatively actualized by determined entity. As far as it is immanent, virtuality leads to conceive possibility without assuming transcendent entities or essences, as modal logics and its theory of possible worlds must do: all possibilities, even the most virtual one is considered matter related. Beyond that, extensive maps are constructed with two kinds of lines that Deleuze & Guattari designate as molar and molecular. The term “molar” refers to the rigid segments of an assemblage or its macro dimension. On its turn, the term “molecular” corresponds to the supple segments as well as to the micro dimension of an assemblage. We may note that molar and molecular are not absolute categories but bound to parts-whole relations. Thus, what is a no 9 - semestre 1 - 2016

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molecule or a part – for example, a city in its relation to a State-nation –in an assemblage may be the mole or the whole in another one – for example, a city in relation to its neighborhoods. On the other hand, both molar and molecular lines describe the actual (or extensive) phase of an assemblage. However, there is also another kind of lines that are not segmented and therefore are harder to conceptualize: the lines of flight. This last kind of line is crucial because it connects the actual lines to the virtual space of possibilities of an assemblage. Moreover, lines of flight may only be mapped in terms of intensity: absolute lines of flight, that depart from segmentarity to ultimately get lost in chaos, and relative lines of flight, that turn back after reaching certain threshold to set up new molecular or even molar segments. In short the complete metaphysical map of an assemblage constitutes its plan of immanence (or consistency), which includes its conditions (segmented lines) along with its degree of freedom (lines of flight), that is, its capacity to differently actualize its possibilities. Nevertheless, the most audacious essay in this book is probably the last one, “Deleuze in Phase Space”, in which De Landa finds an unusual convergence between Deleuze and the work of the empiricist analytical philosopher Bas Van Fraassen. Both are disillusioned with the linguistic (or anti-realist or even idealist) approach in philosophy of science. For the linguistic approach, scientific theories may be modeled in terms of a set of self-evident axioms from which all the theorems are deductively derived. It is a top-down approach that only needs to touch material entities in the end of the day. This approach neglects the results that hard scientist are actually attaining using mathematical tools like the differential calculus, that does not follow from axioms but from the multiplicity itself, in a bottom-up movement. Such nonlinguistic instruments allow the construction of inductive mathematical models of the spaces of possibilities of entities. It is mathematically possible to draw a map of set of the ways that an entity may change, this map representing the state or phase space of that particular entity. Those models are nonlinear, may describe random movements and traces points of singularity. Although the effects of mathematical tools as the differential calculus are still far away to be systematized, a shift in philosophy of science from the analysis of the linguistic structure of the concepts to the analysis of its mathematical structure is already identifiable. Van Fraassen is the most important advocate of this shift in analytical philosophy. Deleuze, as we have already mentioned, was also very sensitive to the transformations in mathematical thought. And, of course, De Landa wants to see here a materialist turning point in philosophy of science. Nevertheless, the author is well aware for the discrepancies between Deleuze and Van Fraassen, the most important of which may be formulated as follows. As empiricist, Van Fraassen must espouse a modal skepticism that denies the existence of possibilities (or at least an agnosticism that suspends the judgment about it), because possible events are obviously not directly no 9 - semestre 1 - 2016

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observable. Indeed this denial derives from the attachment of Van Fraassen to the old dichotomy that reduces all modalities to the opposites necessity and possibility. In order to go beyond that, Deleuze introduces another modality, the virtuality, that is, the ontological status of something that is real but not actual. For example, in contrast to the properties of assemblages that are always actual or actually exist, the capacities of assemblages are virtual or virtually exist. One would not say that the capacity of a knife to cut is not real even if this knife has never cut anything, because the capacity to cut does not need to be actualized in order to exist. On the contrary, it may exist only virtually but really existing. That is just one example of how Deleuze’s ideas may signify a renewed breath to analytic philosophy. Audacity does not lack in De Landa’s project. To translate Deleuzian concepts into analytic philosophy’s terminology and then try to solve analytic philosophy’s problems with Deleuzian concepts is not an easy task at all. The enterprise risks to become dumb for both implied traditions. Nevertheless, with open mind, we must recognize the excellence of the author in doing it. Much more complicated is his rescue of metaphysics. Why metaphysics? What is the point in bringing metaphysics back to life on the same ground where it was buried? What meaning does it remain for the prefix “meta” in a philosophy of immanence, that is, in a radically detranscendentalized philosophy? It would be more appropriate to talk about an ontology, a theory of totality, but in Deleuze’s case this totality “is” not, it “becomes”. The role played by the notion of becoming in Deleuze’s thought is decisive, since it is the structure of the difference. Thus, we deal much more with a kind of “becominglogy”, a theory of the totality as difference, than with an ontology or a metaphysics. Nevertheless, the revival of metaphysics by the means of an eccentric marriage of Deleuze’s thought and analytic philosophy has already its label: it is the “speculative turn”, a movement where De Landa may find heavyweight comrades as Zyzek, Badiou and Meillassoux. Oddly, De Landa seems to be more inclined to emphasize the problem of identity than notions like becoming or difference. The claim for a priority of the independent identity of the entities is questionable, at least. The author seems to forget that the relations are prior to their terms, that is, the relation or assemblage constitutes, at the same time, the identity and the difference of the entities. Another critical point is the reduction of what has been known in the analytic tradition as anti-realism to idealism. Anti-realism does not imply the belief that the world is a creation of our minds or language. It only implies that our concepts do not exist as entities, independently of language. In contrast, realism in general as the belief that concepts exist on its own, independently of language, as entities that populate a “conceptual” or metaphysical world. no 9 - semestre 1 - 2016

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Therefore, one does not need to be materialist to be realist. On the contrary, Plato, just to take an example, could perfectly be idealist and realist at the same time – a metaphysical realist. This is precisely the position that anti-realism in analytic philosophy criticizes. The skepticism of anti-realism concerns the reality of our concepts, that is, our concepts do not exist independently of language. Philosophically, that is the result of a process of generalization of the doubt about the human cognitive capacity. To the question “is there a world outside language”, an anti-realist would answer with a suspension of the judgment, he would say “we cannot know it for sure”. Thus, as epistemological position, anti-realism is closer from agnosticism than from atheism (or nihilism). Translated into regular American philosophical vocabulary, whose expansion can be fairly credited to analytic philosophy, the French poststructuralist theory of discourse became a subspecies of anti-realism. Although valid, these translations require caution. If we take, for example, Foucault, we can see that his “anti-realism” is an entirely strategic. Foucault adopts a basic nominalism that excludes from the analysis any kind of historic universal or transcendental. Thus, madness, delinquency, and ultimately the subjectivity as such do not exist as entities in the world. They are categorical grids that objectify part of an amorphous reality, specifically the human reality, according to given regime of power, in order to exercise power over it. In fact, this means that Foucault is an anti-realist in what concerns transcendentals. For him, subjectivity is no more than the result of historical processes of “subjectivation”. Nevertheless, he can only refuse metaphysical realism because his analysis of history is based on empiricities or positivities: the “becoming-mad” or the “becoming-delinquent” or, in general, the “becoming-subject”. Now, it is hard to see how such an “anti-realist” move could be hold as “conservative”. Anyway, it is not the first time that Foucault is mislabeled as reactionary. Above all, it seems that De Landa’s analytical Deleuze has been made all too clear, too uncomplicated, too unfolded – that is the general atmosphere. It lacks some trace of blur in De Landa’s reading and it seems that, for Deleuze, blur constitutively integrates reality. Thus, his philosophy may be perhaps well grasped as response to Nietzsche’s enigma of understandability: “One not only wants to be understood when one writes, but also quite as certainly not to be understood.”

Bibliography ARISTOTLE. Metaphysics. London: Penguin Books, 2004. no 9 - semestre 1 - 2016

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