Índice ARTIGOS de terceiro tipo e a impossibilidade do 01 A“eu”relação no pensamento de Maurice Blanchot Camilla Muniz
noção de rosto em Emmanuel Lévinas 14 ARubens Machado
Fábio César da Silva
ENSAIOS
Matêus Ramos
como resposta ao instinto de 27 Arte cristão contra a vida em F. Nietzsche
interpretação da Obra O Fetichismo na 137 Uma música e a regressão da audição de T. W. Adorno
vingança
Paulo Cesar Jakimiu Sabino
teses práticas de Spinoza segundo Deleuze: 46 As considerações e semelhanças em Nietzsche Claudio de Souza Rocha
Anticristo Nietzschiano: uma paródia messiânica 165 Osegundo Giorgio Agamben Glauber Holanda Cavalcante
em estética para um breviário da arte 173 Reflexões conceitual Ana Monique Moura
falou Estamira: arte como hospitalidade 54 Assim em tempos de exceção Beatriz Costa Barreto Marília Romero Campos
als Pragmatiker? Zum Verhältnis von 64 Foucault pragmatischer Sprachanalyse und diskursiver Macht Thiago Mota
ao problema do método: ensinando 83 Introdução Filosofia no Ensino Médio Yure Cézar de Moura Almeida
Verdade e Poder em Heidegger e 92 Linguagem, Foucault: confrontações com a história do pensamento metafísico Filipe Caldas Oliveira Passos
tema da “morte 115 ONietzsche e Camus
de Deus” na filosofia de
David Lima Barroso
acerca do olhar de Walter Benjamin a 128 Reflexões partir da “Experiência e Pobreza” e “O Narrador” Ana Cláudia Serra Lôbo Gustavo Adolfo d'Almeida Lôbo
Revista Lampejo ISSN 2238-5274 Editores Daniel Carvalho, David Barroso (Secretário), Gustavo Costa, Gustavo Ferreira (Coordenador), Luana Diogo, Ruy de Carvalho, Thiago Mota (Coordenador), William Mendes (Coordenador) Conselho Editorial Prof. Dr. Daniel Santos da Silva, Prof. Dr. Ernani Chaves, Prof. Dr Ivan Maia de Mello, Prof. Dr. Jair Barboza, Prof. Dr. José Maria Arruda, Prof. Dr. Luiz Felipe Sahd, Prof. Dr. Luiz Orlandi, Prof. Dr. Miguel A. de Barrenechea, Porf. Dr. Olímpio Pimenta, Prof. Dr. Peter Pál Pelbart, Prof. Dr., Roberto Machado, Prof. Dra. Rosa Maria Dias Comissão Editorial Átila Monteiro, Daniel Carvalho, David Barroso, Fabien Lins, Gustavo Costa, Gustavo Ferreira, Henrique Azevedo, Luana Diogo, Marilia Bezerra, Paulo Marcelo, Rogério Moreira, Ruy de Carvalho, William Mendes Projeto Gráfico e Diagramação Pedro Moura
A relação de terceiro tipo e a impossibilidade do ‚eu‛ no pensamento de Maurice Blanchot, pp. 01 - 13
A RELAÇÃO DE TERCEIRO TIPO E A IMPOSSIBILIDADE DO “EU” NO PENSAMENTO DE MAURICE BLANCHOT Camilla Muniz Mestranda em Filosofia pela UECE camilla_muniz08@hotmail.com
Resumo: Blanchot em A conversa infinita: a palavra plural se debruça na questão do Fora – conceito esse que irá permear toda a sua obra, tanto os ensaios quanto as críticas. Na busca de esclarecer esse conceito, Blanchot depara-se com a questão da alteridade que é a dissipação do eu. Essa experiência é fundamental para o desenvolvimento da teoria blanchotiana que remete-se ao neutro, a escrita como ferramenta de transposição e até mesmo de criação de novas realidades, a realidade da ficção. O centro de minha abordagem para esclarecer essa questão será um passeio pelo o que o autor denominou de relação de terceiro tipo onde essa relação não está ligada ao uno, não remete-se a unidade e nem a unificação. Tal unidade refere-se ao primeiro tipo de relação onde a unidade passa pelo todo, assim como a verdade é o movimento do conjunto, afirmação do conjunto como a única verdade, onde o eu quer transformar o outro em idêntico. O segundo tipo de relação a qual ele fará menção e esclarecerá trata-se de uma relação onde não somente essa unidade é sempre exigida, mas acima de tudo ela é imediatamente obtida, há nesse tipo de relação, diferentemente da relação dialética, uma imbricação a tal ponto onde o eu e o outro unem-se imediatamente, o Eu e o Outro perdem-se um no outro, no entanto nessa relação o Eu deixa de ser soberano e o Outro seria um substituto do Uno. O terceiro tipo trata-se da relação neutra onde ela é um modo de contato em que o Outro está radicalmente fora de meu alcance, na medida em que o Eu se dissolve nessa experiência e o Ele que nessa relação tem lugar não trata-se Volume 5 no 2
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de uma terceira pessoa, trata-se do estranho, do desconhecido absoluto. Logo a relação neutra nunca remete-se a uma relação de sujeito a sujeito. Palavras-chave: Fora. Relação. Experiência. Unidade. Outro. The relation of third type and the impossibility of the "I" in the thought of Maurice Blanchot. Abstract: Blanchot in The Infinite Conversation: A plural word focuses on the issue of Fora - a concept that permeates all of his work, both essays and criticisms. In order to clarify this concept, Blanchot, he is faced with a question of alterity that is a dissipation of the self. This experience is fundamental for the development of the Blanchotian theory that refers to the neutral, a writing as a tool for transposition and even for the creation of new realities, a reality of fiction. The focus of my approach to clarifying this problem is a journey through which the author of a third-type relationship in which the relationship is not linked to one does not refer to a unity or a unification. Such unity refers to the first type of relationship where a unit passes through the whole, just as truth is the movement of the whole, affirmation of the whole as a single truth, where what turns the other into the identical. The second type of relation which will be mentioned and clarified is a relation in which not only unity is always demanded but above all it is obtained, in relation to this type of relation, unlike the dialectical relation, an imbrication To such The point and the other unite him, the self and the other lose themselves in each other, nevertheless in the relation of the I cease to be serious and of the other seriously a substitute of the One. The third type is the neutral relationship where it is a mode of contact in which the Other is radically out of my reach, as the I am dissolving in this experience and the non-time relation is not a Third Person, it is the stranger, it is not absolute. Thus the neutral relation never refers to a relation of subject to subject. Keywords: Out. Relationship. Experience. Unit. Other.
1. Um esclarecimento sobre o Fora em sua relação com a possibilidade e a impossibilidade Para Maurice Blanchot o Forapossui uma ligação íntima com a questão da possibilidade
e impossibilidade.Esses conceitos – possibilidade e impossibilidade – são trabalhados pelo autor através do ato de escrever, a questão do que seria o ato de escrever transgressor e criador que se desenha por uma linguagem essencial, posto que é o essencial a experiência que liberta o pensamento dos modos de poder e da compreensão apropriadora. Mas o que seria a possibilidade e a impossibilidade no pensamento de Blanchot? Como, segundo ele, podemos através da impossibilidade a possibilidade de nos libertarmos daquilo que nos é cotidiano, convencional, dado do poder implicado na linguagem/escrita imediata? Para poder responder essas questões é necessário esclarecer os conceitos que aqui foram citados. A noção de impossibilidade é o que possibilita e determina a operação de construção do fora. Isso implica dizer que a possibilidade não é a única condição e dimensão de nossa existência. Os acontecimentos que se dão em nossa vida cotidiana, segundo pensa Blanchot, demonstram-nos – embora muitas vezes não percebamos e não nos atentamos Volume 5 no 2
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a isso – que vivemos numa dupla relação: uma vez como aquilo que compreendemos, suportamos e dominamos relacionando-o a um sentido existente qualquer; e outra vez com aquilo que subtrai a todo uso e a todo fim, mais ainda, como aquilo que escapa a nosso próprio poder de prová-lo, mas a prova do qual não poderia escapar. Na existência diária, ler e ouvir supõe que a linguagem, longe de nos dar a plenitude das coisas nas quais vivemos, seja cortada delas, pois se trata de uma linguagem de sinais, cuja natureza não é ser preenchida com aquilo a que ela visa, mas ser esvaziada, nem nos dar o que ela quer que alcancemos, mas torna-lo inútil substituindo-o, e assim afastar de nós as coisas tomando seu lugar e tomar o lugar das coisas não preenchendo-se com elas, mas abstendo-se delas. O valor, a dignidade das palavras do dia a dia é estar o mais perto possível do nada. (BLANCHOT, M. A parte do fogo. 2011.p. 83-84.) A possibilidade se dá na dimensão onde um acontecimento não se choca a nenhum impedimento categórico, ou seja, não tem um obstáculo. Mas isso não quer dizer que o acontecimento que se dá na dimensão da possibilidade seja efetivamente necessário. Logo, tal acontecimento pode ou não acontecer não sendo necessário, então, a sua efetivação, o seu ‚existir‛. Ou seja, no possível não há o impedimento da lógica, nem da ciência, nem o costume lhe faz objeção. Desse modo o possível para Blanchot seria, então: ‚... uma moldura vazia, é o que não está em desacordo com o real, ou o que ainda não é real, nem de resto necessário‛ (Cf. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 85.) No entanto, a possibilidade possui também outro sentido, outro sentido onde ela não é somente o que é possível e deve ser olhada como menos que o real, contudo, esse novo sentido de possibilidade é mais do que a realidade: é ser mais o poder de ser. Isso quer dizer que a possibilidade é a própria condição de fundamentação da realidade, ela estabelece a realidade fundando-a. Deste modo vemos que o homem não tem somente possibilidades, mas ele é sua própria possibilidade. ‚Não somos nunca pura e simplesmente, nós somos apenas a partir e em função das possibilidades que somos. É uma de nossas dimensões essenciais‛. (Cf. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 85.) Esse novo sentido de possibilidade, de possível, não é menos que o real, não é aquilo que ainda não se realizou e que poderia vir a acontecer a qualquer momento, ela agora sugere o poder pelo qual a realidade se estabelece. Notamos então que a palavra possível se esclarece em relação com a palavra de poder, e depois com a palavra potência. Como nos esclarece Blanchot ao se questionar sob que medida a potência é uma alteração, uma definição da possibilidade, ele infere que é pela possibilidade que começa a potência, determina-se a apropriação que se realiza na posse. Nessa perspectiva até a morte é poder já que ela não é um simples fato que vai acontecer, acontecimento objetivo e contestável. Com a morte cessa o meu poder de ser, não poderei mais estar, mas segundo Blanchot desta não possibilidade de permanecer de Volume 5 no 2
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estar após a morte ou diante da morte, na media que ele é algo singular e pertencente somente ao indivíduo particular, ou seja, ela me pertence e somente a mim, visto que ninguém pode morrer a minha morte por mim e em meu lugar. A morte, esse futuro iminente, está em relação ao indivíduo sempre aberta até o seu fim, realiza ainda um poder. De acordo com ele – Blanchot – ‚morrendo, posso ainda morrer, eis o nosso signo de homem. Eu me aproprio da morte como de um poder, tendo ainda uma relação com ela, eis o ponto extremo de minha determinação solitária‛ (Cf. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 85.) Nesse sentido, nossas relações no mundo e com o mundo são sempre relações de potência, onde a potência está em germe na possibilidade. Isso é observável de forma mais clara pelos traços mais aparentes de nossa linguagem, já que uma vez que falo tenho sempre uma relação de potência. Pertencemos, que saibamos ou não, à uma rede de poderes da qual nos servimos e nessa rede de poderes lutamos contra a potência que se afirma contra nós. ‚Toda palavra é violência‛ (Cf. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 86.) Essa violência se exerce já sobre aquilo que a palavra pode nomear onde nesse ato, nessa ação de nomear retira dela a presença, através dessa linha de raciocínio Blanchot se permite e nos permite ver e pensar que esse ato é sinal que a morte fala – a morte que é poder – quando falamos. A linguagem é a ação pela qual a violência aceita não estar aberta, posto que sabemos que quando se discute não se luta, a violência está escondida na linguagem. A linguagem renuncia o seu esgotamento numa ação que segundo o pensador é brutal para que dessa forma ela possa reservar-se visando um domínio mais potente onde a morte não se afirma, mas ela mesma é o cerne de toda afirmação. ‚Assim começa este espantoso futuro do discurso onde a violência secreta, desarando a violência aberta, acaba por torna-se a esperança e a garantia de um mundo liberado da violência (embora constituído por ela). Por isto (eu digo, en passant, e essas coisas só podem ser ditas en passant) somos tão profundamente ultrajados por este uso da potência que se chama tortura.‛ (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 86) A tortura é uma técnica da violência que tem como finalidade o fazer falar. Essa violência que se camufla na técnica quer fazer falar, ela deseja uma palavra, mas qual? Blanchot assinala que essa técnica não anseia por esta palavra de violência que através da lógica ela pode esperar obter, mas justamente, ela anseia por uma palavra livre de violência. Tal contradição posta aqui, segundo ele, nos ofende, mas também nos inquieta. Ela estabelece uma igualdade e reestabelece uma relação entre violência e palavra, ela reanima e também é provocadora desta terrível violência que é a intimidade silenciosa de toda palavra falante, recolocando a verdade como fundamento para a nossa linguagem compreendida como diálogo, e desse diálogo compreendido como espaço de potência que ela se exerce sem violência mas lutando contra a potência. Nessa imposição a fala como fundamento primeiro e ultimo dela a verdade faz com que, novamente, Volume 5 no 2
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submetamos a palavra, o diálogo, aos ditames da razão, que se encontra na boca de todo mestre de violência. Esse mestre da violência, aquele que submete a razão o diálogo nos permite observar a cumplicidade que a tortura tem por ideal de afirmar entre a razão e ela própria.
1.2. A impossibilidade como forma de escapar da compreensão A compreensão para Blanchot constitui-se como modo essencial da possibilidade. A subjunção da compreensão na possibilidade permite que o diverso esteja no uno, além de nos assentir identificar o diferente e relacionar o outro com o mesmo, que, segundo ele, o movimento dialético, após um longo caminho, faz coincidir com a superação. É preciso concordar, é preciso que, aquilo que tem que ser conhecido, o desconhecido, deve render-se ao conhecido. Surge então essa questão aparentemente inocente: não existem relações, quer dizer, uma linguagem que escape a este movimento da potência pela qual o mundo não para de se realizar? Neste caso estas relações e essa linguagem escapariam também à possibilidade.‛ (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 87.) A questão que aparentemente é inocente nos põe, através dela mesma, a questionar as margens da possibilidade e ela se questiona, justamente, à margem da possibilidade, e ao questionar isso ela se mantém como questão não se dissolvendo no êxtase de uma resposta, posto que ela não trabalha com a possibilidade do que é conhecido, com a dimensão apropriadora, assim, a impossibilidade libera o pensamento da modalidade de compreensão apropriadora, abrindo-o, dessa forma, à afirmação de uma força divergente, onde o impossível é aquilo que não se apresenta sob o modo da possibilidade, do poder, da apropriação e da subjugação. A compreensão é incapaz de apreender essa dimensão da impossibilidade – como vimos, essa incapacidade se dar precisamente na forma de operar da compreensão já que ela define-se como poder e captura. A impossibilidade não permeia o âmbito de uma questão fácil – se é que há uma questão que possamos realmente dizer que pertence ao âmbito do fácil – ela não é um movimento fácil porque se fosse nos veríamos com esse movimento retirados deste espaço onde exercemos um poder – esse poder que se dá pelo próprio fato de viver e morrer. A impossibilidade não é medida e nem pode ser referida sob a luz da possiblidade na forma de: isso é possível, isso não é possível. O impossível deve ser pensado sob a forma de uma relação onde a presença se transforme em ausência, onde através da experiência essencial – experiência esse onde o momento em que as coisas se realizam e desaparecem coincidem – a presentificação da ausência é o imediato e a impossibilidade é a forma de relação com que se passa imediatamente, precisamente com aquilo que ocorre no tempo da ausência. Nessa perspectiva podemos dizer que o Volume 5 no 2
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imediato é a presença na qual só podemos estar presentes quando já desaparecemos. O imediato não permite nenhuma mediação, por isso ele só pode se dar sob a forma da impossibilidade. O pensamento do impossível não está para capitular o pensamento, mas para deixa-lo anunciar-se segundo uma medida outra que se diferencia daquela do poder. Essa mediada seria, nos remetendo a Blanchot, precisamente a media do ‚outro, do outro enquanto outro, e não mais ordenado segundo a clareza daquilo que adequa ao mesmo‛ (Cf. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 87.) A impossibilidade que é inerente a experiência essência nos remete a uma suspensão do tempo cotidiano, chronos. Esse movimento da impossibilidade nos trás um tempo que é a dispersão do presente, onde não há uma referencia nem ao passado e nem ao futuro, esse presente é, e somente poder ser, tido como passagem – en passant – já que não se fixa a nenhuma presença definitiva. Dessa forma o tempo é desobrado pelo impossível, exteriorizado em sua versão outra. Nesse processo onde o impossível apesar de suspender o tempo ele não nos remete para fora do tempo, mas o presentifica em uma duração de um raio. Presente sem fim e no entanto impossível como presente. O que aconteceu? O sofrimento simplesmente perdeu o tempo e nos fez perde-lo. Nesse estado estaríamos livres de toda perspectiva temporal e libertos, salvos, do tempo que passa? De forma alguma: entregues a um outro tempo – o tempo como outro, como ausência e neutralidade – , que precisamente não pode mais nos libertar, não constitui um recurso, tempo sem acontecimento, sem projeto, sem possibilidade, perpetuidade instável, e não este puro instante imóvel, centelha dos místicos, mas nesse tempo parado, incapaz de permanência, não ficando e não permitindo a simplicidade de uma estância. (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 88-89.) Na impossibilidade o que há é uma subversão do tempo. O tempo muda de sentido, ele não se dar em função do futuro como aquilo que ultrapassa e junta-se ao próprio presente, contudo, esse tempo outro trata-se da dispersão do presente que não passa se fixando num presente nem se referindo a um passado e não vai em direção a um futuro: o incessante. Um outro ponto que deve ser levado em conta é que na impossibilidade o imediato é a presença na qual não se pode estar presente, mas também é aquela a qual não se pode afastar-se, ele é aquilo que escapa. Outro ponto relevante sobre a impossibilidade é que ela não é regida pelo recolhimento do imóvel do único, mas a inversão infinita da dispersão, movimento não dialético, onde a contrariedade é estranha à oposição, à conciliação e onde o outro nunca é igual ao mesmo. esse movimento para Blanchot pode, segundo o mesmo, ser chamado de o Segredo do devir, segredo esse que se separa de todo segredo e se dá como desvio da diferença. Se mantivermos juntos esses dois ponto: o presente que não passa, o demasiado presente cujo acesso é recusado porque é sempre mais próximo do que qualquer aproximação, dessa forma transformando-se em ausência, ficando, dessa forma, o Volume 5 no 2
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demasiado presente que não se apresente e que nesse presente-ausencia não deixa que nada dele se ausente, portanto é percebido que na experiência da impossibilidade não é apenas o caráter negativo da experiência que a tornaria perigosa, mas o que a torna perigosa é o ‚excesso de sua afirmação‛, isso nos conduziria novamente ao poder – o poder de afirmar – retirando dessa maneira o caráter de não-poder da experiência da impossibilidade. Percebemos que o que emerge da impossibilidade é o radicalmente diferente, contudo, ela não se deixa mais eliminar nem propicia retraimento ou recuo. Nesse movimento que é o da experiência da impossibilidade o seu lado obscura é justamente o que fica descoberto, aquilo que é sempre descoberto sem precisar ser descoberto e que reduziu sempre à manifestação de todo movimento de esconder ou de se esconder. Nesse movimento onde precisamente todas a coisas presentes e o eu que aí está presente são suspensas, mas todas estão presente unicamente porque encontram-se exteriores a si mesmo, presente que é exterioridade mesma da presença. Nessa perspectiva é percebido o ponto no qual tempo e espaço se religariam na disjunção original, segundo Blanchot, a presença é tanto a intimidade da instancia, quanto a dispersão do Exterior, mais estritamente, é a intimidade do Exterior, o exterior tornado a intrusão que asfixia e a inversão de um e de outro, aquilo que chamamos, ‘a vertigem do espaçamento’. (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 91.) Mas todos esses ponto apresentados tendem, em seu ilimitado, a delimitar isso: a impossibilidade é a característica daquilo que chamamos facilmente de experiência, somente há experiência em seu sentido estrito – sentido esse que foi mostrado e esclarecido aqui – é nessa experiência que algo de radicalmente outro está em jogo. O imediato quando se põe evoca, trás consigo, o imediatamente outro. A impossibilidade não refere-se a uma experiência de transcendência, ela não refere-se, de forma alguma a um ser transcendente, ela constitui-se como presença imediata ou como presença do Exterior. E a impossibilidade sendo aquilo que escapada de todo negativo e que não cessa de exceder e ultrapassar todo o positivo, onde essa impossibilidade é aquilo em que se está desde sempre engajado por uma experiência mais primordial do que toda iniciativa, onde ela previne todo começo e exclui todo movimento de ação para dele se libertar. Ou seja, o que há ai é uma relação na qual não há controle. De inicio essa relação será confusamente denominada de paixão por ele, posto que a impossibilidade é a ‚relação com o Exterior e, visto que esta relação sem relação é a paixão que não se deixa dominar, transformando-se em paciência, a impossibilidade é a própria paixão do Exterior.‛ (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 92.) Nesse sentido a impossibilidade não seria mais o não poder, somente o possível que é apenas o poder do não. Agora o que sobra a se questionar se seria, então, a impossibilidade o próprio ser, Blanchot responderá que certamente essa impossibilidade seria o próprio ser na medida que reconhecemos na possibilidade o poder soberano de negar o ser, uma vez que segundo ele: ‚o homem cada vez que ele é, a partir da possibilidade, é o ser sem ser. O combate pela possibilidade é o combate contra o ser.‛ (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 92.) Volume 5 no 2
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Contudo, ele observa que a impossibilidade, que não trata-se de uma negação nem de uma afirmação, indica aquilo que sempre procedeu o ser e não se entrega a nenhuma ontologia. Isso equivale a pressentir que é ainda o ser que vela na possibilidade e que nela encontra sua negação para melhor preservar-se dessa outra experiência que sempre o procede e que é sempre mais primordial do que a afirmação que nomeia o ser. Isso nos revela o neutro, o eu dispersado de sua subjetividade. Segundo o autor, acabamos por ser o joguete dessa atração da relação impossível. O desejo é impossível e agora compreendemos que o desejo é propriamente essa relação com a impossibilidade, que ele é impossibilidade que se faz relação. Percebemos, então, que o essencial é a experiência que é inteiramente fora de nós, ou seja, ela é do âmbito da absoluta alteridade. No pensamento blanchotiano a passagem do eu ao ele implica nesse contato direto com o desconhecido, a isso denomina-se de uma relação neutra. O neutro é o próprio desconhecido, mas um desconhecido que nunca será revelado, apenas indicado. Essa relação neutra tende a quebrar com o pensamento dominante do que seria uma relação com o outro, para isso recusando as formas de conhecimento que aqui já foram mencionada e esclarecidas, ou seja, há uma recusa da identidade, da unidade, do mesmo e da presença definitiva. A relação com o neutro nos convoca a viver uma relação com o desconhecido diante de si, o que significaria dizer que convivemos com o desconhecido, diante do desconhecido e diante de si como desconhecido. Essa relação neutra consiste em uma relação que está absolutamente fora de mim. O neutro seria como o outro, sendo que esse outro é visto e entendido como o desconhecido, o exilado, o errante, ou seja, aquele que está deslocado de todo pertencimento e de toda interioridade. O outro é aquele que me ultrapassa absolutamente. A relação com o outro é uma relação de dissimetria dupla, uma relação sem relação, já que esse outro é ‚aquele que não tem comigo uma pátria em comum e não pode, de maneira nenhuma, colocar-se num mesmo conceito, num mesmo conjunto, constituir um todo ou juntar-se ao individuo que sou‛ (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 123.) Quando eu me dirijo ao Outro, respondo àquilo que não me fala de nenhum lugar, separado dele por uma cisão de tal ondem que ele não forma comigo nem uma dualidade nem uma unidade. (...) entre o homem e o homem, há um intervalo que não seria nem do ser e nem do não-ser e que carrega a Diferença da palavra, diferença que precede todo diferente e todo único. (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 123) A relação neutra não tende para a unidade nem para a unificação. Trata-se de um modo de contato em que o outro está radicalmente fora do meu alcance. Na medida em que o eu se dissolve nessa experiência e o ele (outro) que aí tem lugar não é uma terceira pessoa, estando diante do estranho, do desconhecido absoluto. Dessa maneira a relação caracterizada como neutra nunca nos remete à uma relação sujeito a sujeito, pois o ele Volume 5 no 2
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que nela se expressa marca a intrusão do outro. E quando o outro fala, ninguém fala, pois o ele narrativo em Blanchot destitui-se de toda objetividade, mas também de toda concepção de subjetividade como interioridade e centro. Entrar em contato com o neutro é abrir-se a uma experiência onde tem voz a subjetividade sem centro, anônima, impessoal e coletiva.
2. Um breve esclarecimento sobre a questão da possibilidade e da impossibilidade Tenho plena consciência que essa questão sobre a possibilidade e a impossibilidade não seja algo de fácil trato e de compreensão simples, por esse motivo tenho, para com os interessados em Blanchot, a necessidade de tornar essa relação um pouco menos obscura ao entendimento – o meu temor nesse pequeno esclarecimento é de tornar essa relação algo nomeável, coisa que vai de encontro a todo o pensamento de Blanchot, dessa forma vejo a complexidade de esclarecer esse pensamento sem rotulá-lo ou nomeá-lo, fazendo assim, não um transvestimento do pensamento do autor para a luz da razão tomando cuidado para não desvirtuar o seu pensamento, mas sim de apropriar-me desse pensamento. Tenhamos em mente que as relações entre esses dois termos não encontram-se em uma simples oposição, ou seja, isso equivale a dizer a possibilidade não é uma subtração da impossibilidade, como, por exemplo, temos o dia sobre a noite. Não existe entre elas uma relação mutua, não há uma dependência. Não sendo a impossibilidade contrária a possibilidade e nem a possibilidade contrária a impossibilidade, como é o caso da relação do dia sobre a noite onde a luminosidade do dia encerra a obscuridade da noite fazendo com que aquilo que estava escondido por sua ausência possa revelar-se em sua forma clara. Esse salientar da relação dia-noite, assim como Blanchot faz, nos serve para mostrarmos como essas noções de ‘antagonismo necessário’ que traduzem as tranquilas certezas do bom senso, que por vez esse bom senso coloca o esclarecimento e o obscurecimento em forma de oposição seguramente como a luz e a ausência de luz. Em uma nota do texto A grande recusa de sua autoria, ele levanta a hipótese se um dia tudo pudesse ser compreendido e a liberdade chagasse a se impor e manifestar-se como a realização de nosso poder, sem que com isso essa relação impossibilidade-possibilidade se perca de seu segredo, segundo ele, estaríamos prontos para responder à demanda de sua essência escondida. É nessa medida, nessa relação, que escapa aos homens que querem lutar apenas pelo possível que se transvertem de homens que querem sempre manter-se desdenhosamente à parte. Nessa perspectiva seria necessário que tudo aparecesse para que o sentido da relação com o obscuro se fizesse essencial? Seria necessário a racionalidade, a luz da razão reinar de forma totalizante realizando-se como um todo para que a obscuridade seja acolhida na afirmação que a retém fora do todo? Segundo ele a resposta é um talvez. Talvez. Contudo, isso não Volume 5 no 2
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implica dizer que há uma relação de dependência mútua nessa ligação entre possibilidade e impossibilidade que permite sustentar ao mesmo tempo essas duas dimensões. Não há nessa relação possibilidade-impossibilidade uma fronteira, nem fixa e nem movediça, no entanto ela é sempre determinável segundo a ‘essência’ de uma e de outra. A palavra, seja ela literária, poética, a palavra que se metamorfoseia sob selo da verdade não tem como função trazer à luz a firmeza da palavra nessa relação sem relação entre possibilidade e impossibilidade. A poesia não está aí para dizer à impossibilidade: ela lhe responde somente, respondendo ela diz. Assim, em nós, é a partilha secreta de toda palavra essencial: nomeando o possível, respondendo ao impossível. Partilha que, entretanto, não deve propiciar uma espécie de distribuição: como se pudéssemos escolher, uma palavra para nomear e uma palavra para responder, como se, enfim entre a possibilidade e a impossibilidade... (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2010, p. 93.) No entanto, esse responder não consiste em uma resposta no intuito de apaziguar que, segundo o autor, vem obscuramente dessa região, e tal resposta não consiste, também, em transmitir, como algo divino semelhante ao oráculo, alguns conteúdos de verdade que o mundo da luz ainda desconhece, como se fosse revelarmos ao que a luz da razão não nos revelou.
3. A experiência-limite: o homem que deseja não desejar Blanchot se utilizará de Georges Bataille para que ele possa nos situar no que seria/é a experiência-limite. Anteriormente Bataille denominará tal experiência como sendo ‘a experiência interior’ e a afirmação atrai sua busca em seu ponto de maior gravidade. Essa experiência é uma resposta em ralação ao homem, ela encontra o homem quando ele decidiu se por radicalmente em questão. Essa decisão de se por em questão compromete todo o ser exprime a impossibilidade de jamais deter-se em uma consolação ou em qualquer verdade. Essa experiência é o constante movimento de contestação que atravessa toda a história, mas que ora se fecha em sistemas. O homem se categoriza, se rotula, se sistematiza, o homem que acredita tanto em sua existência que põe sua existência em xeque para comprovar sua existência, o homem em seu egoísmo. O homem que ora penetra o mundo e vai ter fim no além do mundo em que o homem se confia a um termo absoluto – Deus, Ser, Bem, Unidade, Eternidade, Universal – onde ele renuncia a si próprio. Blanchot nessa experiência nos alerta que essa paixão pelo negativo não assemelha-se e deve ser confundida com o ceticismo e nem mesmo com os movimentos da dúvida metódica, posto que, ‚ela não humilha aquele que a tem, não o submete a impotência, não o julga incapaz de realização.‛ (BLANCHOT, Maurice. A conversa Volume 5 no 2
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infinita. 2007, p. 185). Mas ao contrario, nos propõe pensar o homem plenamente realizado na exigência de ser tudo. No fundo, nesse sentido, o homem já é tudo. Ele é o seu projeto, ‚ele é toda a verdade a vir nesse universo o qual só se mantém por ele, ele é sob a forma do sábio cujo discurso compreende todas as possibilidades do discurso consumado, ele o é na perspectiva de uma sociedade liberta de suas servidões‛ (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2007, p. 185). Se o homem é tudo e tudo é o homem não seria, agora, o fim da história? A história não se encerraria de certo modo? Esse fim da historia não significa que não acontecerá mais nada e nem que o homem não tenha mais que suportar as suas angustias, agonias e sofrimento perante um futuro, contudo o homem como universal já é senhor de todas as categorias do saber, o home enquanto senhor e detentor de todo o poder, ele pode tudo, ele tem resposta pra tudo. Essa colocação nos parece um tanto quanto precipitada, rápida de mais o que nos permite levantarmos duvidas sobre esse fim da história ao qual estamos prometidos. Sugere-nos, Blanchot, uma reflexão mais demorada e minuciosa sobre essa questão ao nos colocar à questionar quem em nós duvida? Como resposta ele nos dá o pequeno eu, fraco, insuficiente, infeliz, não sabendo quase nada e encerrado na obstinação de seu ego: pera esse pequeno eu, nada há evidentemente senão seu próprio fim, um fim que ele lamenta tanto mais que, em seu egoísmo, esse fim não tem por horizonte o fim de todos os outros. Cf. (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2007, p. 186.) Essa pequena razão do eu o faz com que ele renuncie, conforme o autor, a uma saída razoável e se lance nos tormentos complacentes da existência absurda, onde esse absurdo é na visão de Blanchot um modo fácil de se entregar ao sentido, de ‚fazer sentido‛.1 Outra alternativa para esse pequeno eu que teme o seu fim e unicamente o seu fim, a sua razão faz com ele se prepare para a esperança de uma outra vida que ele reconhecerá em Deus. Com isso ele nos mostra que de uma forma ou de outra a história chegará ao seu fim: para o homem da grande razão porque ele se pensa como todo e trabalha sem descanso para tornar o mundo razoável; para o homem da pequena razão, porque, numa historia furiosa e privada de fim, o fim a cada momento é como já se fora dado; já para o homem da crença, porque diante a esperança no além esse além termina a história, gloriosa e eternamente. Nos atentemos que nesse sentido vivemos todos mais ou menos na perspectiva da história terminada, uma história onde sempre temos como horizonte a morte, onde já nos encontramos ‚sentados à beira do rio, morrendo e renascendo, contentes de um contentamento que é o do universo, logo de Deus pela beatitude e pelo saber‛ (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2007, p. 186). A paixão pelo pensamento negativo admite e trabalha para a saída que promete ao homem o acabamento de si próprio. Essa ação tão empenhada para esse futuro não é se não nada mais do que a ‘negatividade’ pela qual, negando a natureza e negando-se enquanto ser natural, ‚o homem em nós se trona livre escravizando-se ao trabalho e se 1 Seria necessário fazer outro texto para esclarecer o que Blanchot nos diz sobre essa problemática do absurdo, onde muitas vezes ele utiliza-se de Camus, em especial De O mito de Sísifo.
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produz produzindo o mundo‛ (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2007, p. 186). Mas seria essa negatividade do homem esgotada em sua ação nesse seu autoproduzir que produz o mundo? Conforme Blanchot o homem não esgota a sua negatividade na ação, o homem não transforma em poder todo o nada que ele é; no entanto, ele nos sugere, que o homem talvez possa alcançar o absoluto igualando-se ao todo e fazendo-se a consciência do todo, contudo mais derradeiro do que o absoluto é a paixão pela negatividade, a paixão do pensamento negativo ‚pois ela ainda é capaz, diante dessa resposta, de introduzir a questão que a suspende, diante da realização do todo, de manter a outra exigência que, sob forma de contestação, dá novo impulso ao infinito‛ (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2007, p. 187). O que dá ao homem o direito de si colocar sempre em questão gira em torno de sua pertença à uma falta essencial – entendemos que pertença aqui não significa a apropriação, mas sim um pertencer sem pertença, uma relação que subtrai a se própria, como já foi, de certo modo, esclarecido na questão possibilidade-impossibilidade. Logo, o homem é esse que não esgota sua negatividade na ação, de modo que, não restando mais nada para ser feito pelo homem – onde é nesse fazer que o homem também se faz – se consuma surge a necessidade de existir um estado de ‘negatividade sem emprego’22. O que nos permite afirmar essa negação radical a qual não tem mais nada a negar é a experiência do interior. Dir-se-ia que o homem dispõe de uma capacidade de morrer que ultrapassa em muito e de certo modo infinitamente o que lhe é necessário para entrar na morte e, desse excesso de morrer, ele soube admiravelmente fazer para si um poder; por meio desse poder, negando a natureza, ele construiu o mundo, pôs-se a trabalhar, tornou-se produtor, autoprodutor. No entanto, coisa estranha, isso não basta: sobra-lhe a todo momento como que uma parte de morrer que não pode investir na atividade; mais frequentemente, ele não sabe, não em tempo; mas se chega a pressentir esse excesso de nada, esse vazio inutilizável, se descobre-se ligado ao movimento que, a cada vez que um homem morre, o faz sofrer infinitamente, se deixa-se tomar pelo infinito do fim, então tem que responder a uma outra exigência, não mais de produzir, mas de despender, não mais de triunfar, mas de fracassar, não mais de realizar obras e falat utilmente, mas de falar em vão e de tronar-se ocioso, exigência cujo limite está dado na ‘experiência interior’ (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. 2007, p. 188). A experiência interior exige, precisamente, esse acontecimento que não pertence à possibilidade, o acontecimento da paixão pelo pensamento da negatividade onde o absoluto sob a forma da totalidade não é superado, mas essa experiência interior exige essa superação da unidade, da totalidade. Ele – o absoluto – seria uma forma de acabamento não acabado posto que essa experiência interior abre no ser acabado um ínfimo interstício onde tudo o que é deixa-se repentinamente transbordar e depor por um 2
Essa expressão pertence a Georges Bataille
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acréscimo que escapa e excede ao absoluto. Excedente que lhe é totalmente estranho. Essa inquietação nos remete a dizer que a possibilidade não é única dimensão de nossa existência e que talvez nos é dado ‚viver‛ cada acontecimento de nós mesmo numa dupla relação: possibilidade-impossibilidade. É nessa relação que se começa a discernir o que ele – Blanchot – chama de experiência-limite.
4. BIBLIOGRAFIA BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a palavra plural, palavra de escrita. VOL.I. Trad. Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2010. ──────. A conversa infinita: A experiência limite. VOL.II. Trad. João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2007. ──────. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. ──────. L'espace littéraire. France: Gallimard, 1978. LEVY, Tatiana Salem. A Experiência do Fora. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. PELBART, Peter Pál. Excurso sobre o desastre. In: Barthes/Blanchot: Um encontro possível? Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.
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Resumo: Lévinas argumenta que existem realidades que escapam ao poder totalizante da razão e seu poder constituinte. É o caso, por exemplo, do rosto do outro homem. O rosto do outro homem adquire, assim, um lugar central no nosso autor, pois, é o lugar mesmo da verdade; verdade esta não mais teórica, mas verdade ética, ou metafísica já que o rosto não se presta a objetivação, seja do desvelamento seja da adequação. Esta verdade ética se torna possível se tomarmos em consideração que o rosto é a expressão da singularidade, do indivíduo, único a existir; singularidade esta que se torna possível se a considerarmos como separada da totalidade. Palavras-Chave: Lévinas. Razão. Rosto. Verdade.Singularidade. Totalidade. The concept of face in of Emmanuel Lévinas Abstract: Lévinas argues that there are realities that escape the totalizing power of reason and its constituent power. This is the case, for example, the face of the other man. The other man's face thus acquires a central place in our author, therefore, it is the very place of truth; this fact no longer theoretical but ethical truth, metaphysical or as the face does not lend itself to objectification, is the unveiling is appropriateness. This ethic is possible true if we take into account that the face is the expression of the uniqueness of the individual, only to exist; this uniqueness that it is possible to consider like separate of totality. Key-Words: Lévinas. Reason. Face. Singularity. Totality. Uniqueness.
1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria-RS.Professor de Filosofia e Sociologia na Escola Estadual de Ensino Médio Visconde de Mauá, Butiá-RS. E-mail: rubensfilo@hotmail.com 2 Especialista em Ética e Ciências da Religião. Pós-Graduando em Antropologia e Sociologia. E-mail teus33@yahoo.com.br
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Introdução
E
mmanuel Lévinas nasceu em Kovno, Lituânia em 1906. Em 1923 vai para a França estudar Filosofia em Estrasburgo e conhece Maurice Blanchot, que será seu amigo. Nos anos de 1928 e 1929 vai para Friburgo estudar com Husserl. Assiste ao seminário de Heidegger e participa do famoso encontro de Davos entre Heidegger e Cassirer sobre Kant. Em 1930, com apenas 24 anos, publica sua tese de doutorado: Théorie de l’intuition dans la phénoménologiede Husserl. Com este trabalho Lévinas adere à Fenomenologia e introduz esta na França. Afilosofia, desde sua origem ‒ supostamente na Grécia ‒ recebe de Lévinas uma interpretação aguda. Por vezes feroz. A ideia de universalidade em que o formalismo é a sua maior expressão é combatida por nosso autor porque essa universalidade apagou da cena a concretude do ente humano na sua singularidade ‒ a insistência na singularidade rendeu à filosofia de Lévinas o título de empirismo; porém, ele também descreve uma universalidade: é o rosto do outro homem, que não é da ordem empírica ‒; singularidade esta que pode ser verificada no amor e também no ódio, no nome e no apelido. Afinal, a quem amamos?Um universal? ‒ ‚l’amore dà accesso all’unicità. L’individuo único è amato‛ (LÉVINAS; RICŒUR, 1998, p. 78) ‒ A quem odiamos? Um universal? A quem estendemos a mão... Quem nos estende a mão quando estendemos ou quando nos é estendida? Numa palavra: um conceito ‒ universal abstrato? A quem perdoamos quando perdoamos? A quem culpamos quando culpamos? É este quem (qui) mais do que o quê (quoi) ou o como (comme) ‒ Lévinas não faz uma filosofia do método, apenas se utiliza de um método para fazer filosofia; método este que é a fenomenologia ‒ que interessa a Lévinas, ainda que a sua filosofia tenha encontrado na fenomenologia objeto e método; objeto que se viu depois não se tratar de um objeto, porém, o sujeito ou subjetividade. E por isso a sua filosofia é chamada de ética; afinal, acaso um conceito morre ou mata? Nos comportamos com conceitos quando operamos no dito, contudo nos comportamos com pessoas quando operamos no dizer. Se a diferença entre ser e ente é a diferença ontológica, a diferença entre dizer e dito é a diferença ética, ou a não. A filosofia de Lévinas se caracteriza por um diálogo constante com a tradição. Porém, este diálogo é marcado por uma tensão, por uma tentativa de superação de uma filosofia que, nas suas palavras, é dominada por um clima ontológico. Este clima é expresso na noção de saber, conhecimento, tematização. Talvez Lévinas não tenha defendido senão uma única tese: a necessidade de sair do ser, da ontologia que também é chamada por ele de guerra. Lévinas anuncia a sua filosofia comprometida com ahospitalidade, com o acolhimento do Outro. Contudo, não se trata de boa vontade. O Outro enquanto Outro, expressão consagrada por Lévinas – em oposição ao ser enquanto ser ‒, resiste aos poderes de uma filosofia totalizante; não se trata de opção ideológica ou de preferência pessoal. O que ocorre é que Outrem não é afeito a uma abordagem teórica; Outrem não é objeto; a presença do Outro ‚é sua exigência ética‛ (SOUZA, 2004, p. 175). Volume 5 no 2
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A vida interior, cuja expressão é o rosto ou a palavra do Outro só pode ser acolhida, recebida; não compete ao Eu descrever esta vida interior cujo modo de ser consiste precisamente em não se deixar desvelar: a sua verdade é o seu ocultamento, seu velamento ao ser descobridor. Este é o ponto de ruptura com a filosofia do Todo e o ponto problemático da filosofia de Lévinas que quer ser filosofia da pluralidade. O conceito de plural se levado às últimas consequências nos conduz à ideia de Infinito; ou melhor, é a ideia de Infinito em nós que nos conduz à filosofia plural porque o Outro, na epifania do seu rosto, escapa a todo instante aos poderes objetivantes do Mesmo, ao conceito, à definição que seria seu fim como Outro. Nesta pesquisa, propomos-nos, tendo como fio condutor da pesquisa a noção de rosto, apresentar o conceito de separação (séparation), pois, ‚sem separação, nos diz Lévinas, não teria havido verdade,apenas teria havido ser‛ (LÉVINAS, 1980, p. 48).
Rosto e Enigma A noção de rosto na filosofia de Lévinas aparece após um período de maturação; não se trata, portanto, de uma teleologia, que o conduziria a formulação da ética como filosofia primeira ou escatologia ou consciência moral. Dizemos isso porque algumas características que identificamos nessa noção já se apresentam nos seus primeiros textos e até mesmo na sua obra Théorie de l’intuition dans la phénoménologie de Husserl, de 19303. Como Lévinas mesmo nos adverte, não é nessa obra o lugar para uma crítica mais sistemática a algumas posições da filosofia de seu mestre. Porém, encontramos indicações de quando e onde Lévinas se afasta de seu mestre e por quê. Nesse sentido, o que mais incomoda Lévinas na obra de Husserl é o que ele chama intelectualismo: Em sua filosofia (e aqui é onde nos separamos de sua proposta), o conhecimento e a representação não são modos de vida no mesmo grau que os outros; tampouco são um modo secundário. A teoria e a representação jogam um papel preponderante na vida; servem de base a toda a vida consciente, são a forma de intencionalidade que assegura o fundamento de todas as demais (LÉVINAS, 2004, p. 81). Aqui Lévinas apresenta não só os pontos discordantes do seu pensamento com o do seu mestre Husserl como também aponta o rumo que pretende dar ao seu. Os modos de vida que Lévinas vai dar ênfase dizem respeito à volição, ao sentimento, à ética, modos de vida que não são conhecimento, ou outro modo de conhecimento. O que nosso autor não aceita em Husserl é que esses modos de vida têm seu fundamento na intencionalidade teórica e na representação. No entanto nosso autor encontra, ainda em Husserl, o que ele chama ‚intencionalidade axiológica‛, irredutível ao conhecimento e 3 Para esta dissertação utilizaremos: LEVINAS, Emmanuel. La teoría fenomenológica de la intuición. Tradução Tania Checchi, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2004.
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que pode ser buscada na relação com o Outro e que se constitui como que o norte da sua obra, pois o mundo e sua constituição não é o domínio das meditações de Lévinas e sim o homem e seu destino e é neste sentido que podemos dizer que a sua filosofia se constitui como ‚metafísica da alteridade‛ (SOUZA, 2007, resumo). A obra Totalidade e Infinito é considerada a primeira grande obra de Lévinas e é exatamente nesta obra onde o tema do rosto tem um destaque central. Se a verdade mantém algum nexo com o discurso, então o rosto é o lugar mesmo da verdade, pois, para Lévinas, o rosto fala, é significação. É mais: é significação sem contexto ‚O rosto é significação, e significação sem contexto. Ele é o que não se pode transformar num conteúdo, que o nosso pensamento abarcaria; é o incontível, leva-nos além‛ (LÉVINAS, 1982, p. 78); o rosto significa a partir de si mesmo ‚a sua significação precede Sinngebung‛ (LÉVINAS, 1980, p. 240, grifo do autor); significação sem signo e, nesse sentido, é a condição mesma da verdade. A noção de rosto em nosso autor não é tal que não careça de maiores esclarecimentos. Pelo contrário. Encontramo-nos em apuros aqui. Do que Lévinas quer nos falar através dessa noção? Uma primeira interpretação indicaria a intenção de constituir sua ética; por outro lado, Lévinas mesmo diz, ele busca o sentido: ‚A minha tarefa não consiste em construir a ética; procuro apenas encontrar-lhe o sentido‛ (LÉVINAS, 1982, p. 82). Portanto, a noção de rosto entendida como abertura para o Infinito seria o lugar mesmo dessa intenção ética. Porém, convém antecipar, não temos a pretensão de resolver essa questão, mas tão somente procurar elucidar ou quem sabe apontar alguma possibilidade de leitura. O estudioso levinasiano David Sebbah considera essa noção como aquela que designa ‚o aspecto mais genuíno e a intensidade do pensamento levinasiano, o ponto em que se comprime, de forma tensionada, toda a extensão do que é pensado por ele‛ (SEBBAH, 2009, p. 43). Isso porque, o rosto de Outrem trás sempre uma novidade, algo não pensado (ainda). Convém lembrar que o desconhecido vem de fora, é exterior, estrangeiro e me trás algo que eu não possuía. Pode ser um ensinamento; precisamente ensinamento de seu rosto. Contudo, devemos atentar para esse encontro entre Eu (Mesmo), em minha casa, no meu trabalho e esse Outro (rosto) que toca àminha campainha. Como poderíamos descrever esse encontro? Lévinas o chama frente afrente (face-à-face) , ou ainda ‚relação ética‛ (LÉVINAS, 2012, p.71) que ‚dirige-se ao ser na sua exterioridade absoluta e cumpre a própria intenção que anima a caminhada para a verdade (...) este ‚dizer a Outrem‛ ‒ esta relação com Outrem como interlocutor, esta relação com um ente ‒ precede toda a ontologia, é a relação última no ser. A ontologia supõe a metafísica‛ (LÉVINAS, 1980, p. 34-35, grifos do autor): Para Levinas face a face é a linguagem, é o primordial, é a experiência originária do inter-humano, quer dizer, do humano: a posteriori na função a priori. Experiência originária. Esta experiência que Levinas repete, demasiadamente seria a proximidade
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ética com o Outro, de nudez sem máscara. Neste sentido, <La moralen’est pas une branche de la philosophie, mas la philosophie première>‛.4 Convém, aqui, ressaltar o seguinte: a relação frente a frente se dá entre singulares, entre entes, pois, Lévinas não faz uma filosofia teórica onde o sujeito permanece em si; na relação frente a frente, ou justiça, há questão e resposta e por isso é chamada relação ética. É verdade que o Mesmo carrega todo o peso da ontologia: ‚O homem inteiro é ontologia‛ (LÉVINAS, 2009, p. 22), porém ‚a relação com outrem não é ontologia‛ (LÉVINAS, 2009, p. 29). A relação com outrem enquanto experiência moral concreta – o que me permito exigir de mim próprio não se compara ao que tenho direito de exigir de Outrem ‛ (LÉVINAS, 1980, p. 41) ‒ é uma relação com o rosto, este rosto (singular, que posso querer matar): ‚A relação com o rosto, acontecimento da coletividade – a palavra- é relação com o próprio ente, enquanto puro ente. (...) O ente como tal (e não como encarnação do ser universal) é o homem (...) enquanto rosto.‛ (LÉVINAS, 2009, p. 32). A experiência do rosto é a única experiência que permite ao sujeito sair de si mesmo e da totalidade, pois o rosto é inquietude. É a possibilidade para o homem poder ser ensinado, de receber um ensinamento do exterior. O rosto remete para uma verdade mais antiga do que a ontologia, a um passado que nunca foi presente: ‚O rosto está presente na sua recusa de ser conteúdo. Neste sentido, não poderá ser compreendido, isto é, englobado. Nem visto, nem tocado- porque na sensação visual ou táctil, a identidade do eu implica a alteridade do objeto que precisamente se torna conteúdo‛ (LÉVINAS, 1980, p. 173). O rosto, portanto, é outro de uma alteridade absoluta não pertencendo à comunidade do gênero ou das espécies; ele não se presta ao conhecimento – ‚o rosto não é do mundo‛ ele ‚rasga o sensível‛ (LÉVINAS, 1980, p. 177). O saber enquanto sincronização de toda alteridade num presente (no ser, no é), na presença (passado e futuro são reunidos num presente eterno e total e, portanto, finito) esquece a alteridade do rosto enquanto ensino e questionamento. Outrem é o mestre que fala e a quem escutamos. Nesse sentido, nos diz Lévinas: ‚O ensino é uma maneira para a verdade se produzir de forma que não seja obra minha, que eu não a possa manter a partir da minha interioridade‛ (LÉVINAS, 1980, p. 275). A verdade, nesse sentido, me vem de fora, de Outrem, em dois sentidos: de Outrem, enquanto o Mestre e que me trás ensinamento e como tal é condição da verdade e de Outrem enquanto verdade mesma, como o que excede, ultrapassa e escapa a toda determinação, a toda ordenação à ordem do ser, daquilo que é. A verdade do rosto é da ordem da resistência, resistência ética aos poderes do Mesmo. Tais reflexões, nos diz Souza acabam por conduzir à possibilidade de uma concepção diferente de verdade. Não a verdade como adequação do intelecto e da coisa, 4 GRZIBOWSKI, Silvestre. Transcendência e ética. Um estudo a partir de Emmanuel Levinas. São Leolpoldo: Oikos, 2010, p. 56, grifo do autor. Consoante às palavras de Grzibowski encontramos em Kovac (KOVAC, 1993, p. 185) uma interpretação importante da relação ao rosto de Outrem. Segundo Kovac Levinas encontra no rosto de Outrem o próprio começo (commecement/ archê) da filosofia como ética. A possibilidade de pensar esta exterioridade do pensamento pelo encontro do roso de Outrem. A relação frente a frente como evento inaugural da filosofia também é destacado por Petitdemange (1993, p. 338) quando a considera ‚l’inteligible premier.
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também não no sentido de A-létheia: a verdade em sentido ético é a irredutível inadaequatio rei (a Alteridade doOutro) et intellectus (a dinâmica da Totalidade). A verdade é o desafio ético doOlhar do Outro, em originariedade irredutível, e a tentativa de corresponder a esse desafio de maneira justa (SOUZA, 1999, p. 142, grifo do autor). Esta nova verdade – nova porque não se trata de pensar a noção de verdade a partir da perspectiva teórica ‒, se deve ao que Lévinas chama assimetria entre o Mesmo e o Outrem e à impossibilidade de categorização do Outro pelo Mesmo haja vista que ele propõe a relação a partir da ideia de Infinito, inadequação por excelência. E não há o que desvelar porque Outrem está nu na expressão do seu rosto restando, então, a justiça, que é ‚acolhimento de frente no discurso‛. É preciso considerar, também, que a verdade se diz a alguém, o interlocutor – neste sentido, é um dizer a..., pois ‚não há senão discursos de homens entre si‛ ou como nos diz Lévinas: ‚Para procurar a verdade, já mantive uma relação com um rosto que pode garantir-se a si próprio, cuja epifania também é, de algum modo, uma palavra de honra. Toda a linguagem, como troca de signos verbais, se refere já à palavra de honra original‛ (LÉVINAS, 1980, p. 181). A palavra de honra é um juramento (juro dizer a verdade), um compromisso, é uma responsabilidade para com o Outro e esta responsabilidade não é da ordem teórica. O dizer ou o enunciar não implica, necessariamente, um que fala (e escuta) e outro que escuta (e fala)? E será que todo enunciado é redutível ao modo predicativo? Um isto enquanto aquilo, ou isto como aquilo? Estas são questões que nos parecem importantes e que se relacionam diretamente com a questão ‚a verdade supõe a justiça‛. O que podemos verificar, fazendo a leitura da obra Totalidade e Infinito, é que Lévinas trata de uma relação. A relação de que trata Lévinas não pode ser classificada como do tipo sujeito/objeto, que caracteriza, por exemplo, a relação de conhecimento. O que Lévinas caracteriza como princípio, como o ponto a partir do qual se inaugura a filosofia é a postura de deixar o outro ‘ser o outro.’Assim, não há uma objetivação daquele que se manifesta. A ética, então, é o começo; a preservação do particular por e para outrem.
Rosto e Vestígio Lévinas utiliza algumas imagens quando quer falar do rosto. Uma das imagens utilizadas por ele é a da caça. O caçador procura sua presa pelas marcas (vestígios) deixadas pela caça. A caça não está ali, esteve ali. Já não está mais. Aquela marca já é um passado, marca de um passado que não foi presente para mim. O rosto nunca se dá numa presença. Nesse sentido, ele não é fenômeno. Lévinas reserva a palavra enigma para descrevê-lo. E essa é a sua verdade: ‚Essa porta simultaneamente aberta e fechada é a extraordinária duplicidade do Enigma‛ (LÉVINAS, s/d, p. 259); porta aberta que pode significar ensino, o Mestre; porta fechada que designa o inabarcável, não-englobável e Volume 5 no 2
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nesse sentido resistência ética e do único (...); o rosto como ser-aí concreto do único‛. O único que não pode ser capturado porque já está ausente. Nesse sentido, o rosto jamais entra no registro do ser, sempre fugidio, não se deixa apreender em um presente. O rosto é uma presença ausente ou uma ausência presente, um outro modo que ser: O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a ideia do Outro em mim, chamamo-lo, de fato, rosto. Esta maneira não consiste em figurar como tema sob o meu olhar, em expor-se como um conjunto de qualidades que formam uma imagem. O rosto de Outrem destrói em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que ele me deixa, a ideia à minha medida e à medida do seu ideatum- a ideia adequada. Não se manifesta por essas qualidades, mas καθ ҆ἀυτ ό. Exprime-se. O rosto, contra a ontologia contemporânea, traz uma noção de verdade que não é o desvelamento de um Neutro impessoal, mas uma expressão: o ente atravessa todos os invólucros e generalidades do ser, para expor na sua ‘forma a totalidade do seu conteúdo’, para eliminar, no fim de contas, a distinção de forma e conteúdo (...). A condição da verdade e do erro teorético é a palavra do Outro ‒ a sua expressão ‒ que qualquer mensagem já supõe‛ (LÉVINAS, 1980, p. 37-38, grifos do autor). Assim, é o rosto de Outrem que me conduz além (e é nesse sentido que ele é metafísico- grifo nosso), não é tematizável. Não se trata de uma fenomenologia do rostohumano; o rosto no sentido levinasiano não é descritível (encontramos aqui o limite da fenomenologia husserliana, particularmente do conceito de intencionalidade que era tão cara para Lévinas?). É o rosto que me revela e que provoca em mim o começo da filosofia, a ética. Não é que o rosto paralisa meus poderes [constituintes], mas ‚paralisa o próprio poder de poder (...). Na contextura do mundo, ele não é quase nada. Mas pode opor-me uma luta, isto é, opor a força que o ataca, não uma força de resistência, mas própria imprevisibilidade da sua reação‛ (LÉVINAS, 1980, p. 177). Quando Lévinas nos diz que a primeira palavra do rosto é ‚não matarás‛, ele abre aqui uma multiplicidade de interpretações (sentido). A primeira nos é oferecida por Lévinas mesmo, de modo enfático, e significa: tu farás tudo para que ele (Outrem) viva e com essas palavras se abre a dimensão da bondade e a bondade, ou a ideia do Bem, nos remete à ideia do Infinito, pois, o Bem é infinito e é infinito porque é Desejo (Desir): ‚O Desejo não pertence à atividade, mas constitui a intencionalidade do afectivo‛ (LÉVINAS, s/d, p. 249, nota 175); a relação com o rosto não se descreve em termos de intencionalidade (teoria), mas como movimento em direção ao Outro, ao Outro modo, Desejo do Outro e por isso mesmo Desejo metafísico ‒ ‚a metafísica surge e mantém-se neste álibi‛ ‒: ‚o Desejável do Desejo é infinito.‛ (LÉVINAS, s/d, p. 262) ‒ ‚O Desejo do Outro é a negação da violência inerente à Razão, ao discurso racional, ao movimento do Mesmo e da Ontologia‛ (FABRI, 2001, p. 252); violência que consiste em reduzir o Outro à identidade do Mesmo, ao Mesmo. O rosto do Outro, como verdade ética, é um não-saber e resiste a toda tentação de saber:
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Por trás da postura que ele toma ‒ ou suporta ‒ em seu aparecer, ele me chama e me ordena do fundo de sua nudez sem defesa, de sua miséria, de sua mortalidade. É na relação pessoal, do eu ao outro que o ‚acontecimento ético, caridade e misericórdia, generosidade e obediência, conduz além ou eleva acima do ser‛ (LÉVINAS, 2009, p. 269).
A relação com o rosto não é da ordem da intencionalidade, mas da proximidade; ela se distingue pelo seu caráter não sincrônico e, portanto assimétrico. Os termos em relação, Eu e o Outro, não pertencem ao mesmo tempo, à simultaneidade da representação. A relação de proximidade é a ruptura com a sincronia e não faz parte de um sistema de puras relações ‚porque o Outro vem ao Mesmo. A aproximação do Outro não se traduz na tematização, ela permanece dia-cronia pelo fato mesmo que o Outro tem um rosto. É o que Lévinas chama a não-fenomenalidade do rosto, ou o vestígio (la trace)‛ (VASEY, 1980, p. 232, grifo do autor). O pensamento constitui o que ele pensa, o pensado ‒ relação de dominação; a experiência ética, o frente a frente, nos coloca diante de uma realidade que o pensamento jamais poderá constituir: quando a consciência intencional encontra Outrem, ela se desmonta; fracasso da consciência constituinte; o rosto de Outrem, que não se apresenta à consciência, ‚extériorité totale et irréductible.‛ (HERNÁNDEZ, 2009, p. 24) Com efeito, não é pelo conhecimento, mas a relação “dês-inter-essée” com outrem que permite pela tomada de consciência de minha responsabilidade para com ele ‒ ‚interromper o murmúrio anônimo e insensato do ser.‛ (LÉVINAS, 1997, p. 25)A relação de dominação frente a outrem dá lugar a uma relação ética ‒ substituição do ser pelo Outro ‒, onde o sujeito vai se colocar a serviço do outro ‒ substituição da ontologia pela ética. Outrem não é, na relação ao Eu, um alter ego: o encontro com outrem revela o que ele tem de único e de inapreensível e abre, pois, a uma radical exterioridade ‒ alteridade ‒ que irá despertar o sujeito do seu egoismo. O despertar ético é um acontecimento provocado pela expressão do rosto de Outrem, na expressão da sua vulnerabilidade, sofrimento e miséria dos meninos e meninas de rua, dos idosos abandonados e este despertar requer ir ao mundo (às coisas mesmas) para escutá-lo ‒ ‚o rosto fala‛ ‒, para ter a noção do que é real e importante. Para Lévinas o rosto não é da ordem empírica porque já é linguagem e como tal é da ordem do discurso, do significado e por isso podemos dizer que o rosto é a expressão da metafísica de Lévinas porque nos remete ao transcendente, ao além que eu não posso poder: ‚o rosto não é do mundo‛. Para Lévinas a humanidade inteira está ali naquele rosto que me envia um apelo, porém ‚Não na humanidade anônima, mas na humanidade visada naquele (ou naquela) que – quando o seu rosto resplandece ‒ é precisamente aquele ou aquela que esperávamos‛. (LÉVINAS, s/d, p. 258).
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A filosofia de Lévinas tem como propósito central pensar o Outro e a relação ética pela simples razão de que não há ética quando se considera só um indivíduo e porque o acesso a Outrem só se dá pela ética já que esta respeita a sua alteridade ‒ a deixa ser ‒, escuta seu apelo e não lhe toma seus lábios emprestados; e é neste sentido que Lévinas tanto critica a filosofia ocidental como ontologia, pois esta não respeita a alteridade; a ética pressupõe a ideia de relação, pois, ‚a ética é uma relação primordial‛. É necessário, então, considerar esse Outro da relação ética.
Rosto e Infinito a) Rosto, diacronia e verdade É a partir da ideia de Infinito que acedemos à noção levinasiana de transcendência(transcendence), noção que Lévinas toma, segundo suas palavras, de Jean Wahl (LÉVINAS, 1980, p. 23), e que também atingimos a sua filosofia como metafísica ou ética, pois a transcendência é um movimento em direção ao outro, ao infinito; ela designa ‚ uma altura e uma nobreza, uma transcendência‛ (LÉVINAS, 1980, p. 29). Neste sentido, é muito sugestivo seu livro Dieu, la mort et le temps, pois trata-se de abordar realidades que não se prendem à imanência da totalidade, que estão além da totalidade, pois o que me vem à ideia não parte de mim, me vem de fora, é transcendente: O infinito me vem à ideia na significância do rosto. O rosto significa o Infinito. Este não aparece como tema, mas nessa significação ética mesma: isto é, no fato de que mais eu sou justo, mais eu sou responsável. Há um infinito na exigência ética por ela ser insaciável. Ela é exigência de santidade. Ninguém pode dizer em momento algum: cumpri todo o meu dever. Exceto o hipócrita‛ (LÉVINAS, 1982, p. 97, grifo do autor). Poderíamos, quem sabe, afirmar que a noção de rosto, por seu caráter central na obra Totalidade e infinito, reúne em si as ideias de Deus, tempo e morte. Isto porque Lévinasdescreve o rosto como vestígio de Deus, como temporalidade diacrônica e que, como tal, descreve uma nova verdade ‒ ‚verdade dia-crônica ‒ dia-cronia da verdade sem síntese possível (...) ‘desordem’ que não é outra ordem, lá onde os elementos não podem fazer-se contemporâneos, por exemplo, na maneira (mas será isso um exemplo ou a exceção?) pela qual Deus escapa à presença da re-presentação‛ (LÉVINAS, 2008, p. 103, nota 17) ‒ trata-se, pois, de acontecimento do qual não sou o mestre. Se tomarmos a sério as análises apresentadas acima (Rosto e fenômeno e Rosto e enigma) podemos dizer que há toda uma teoria do tempo nas análises que Lévinas realiza acerca da noção de rosto. Isto porque o rosto se dá como uma passividade, termo ambíguo no nosso autor, embora possamos identificar um eidos como já ido, passado, como passagem ou vestígio; não é um objeto intencional, pois ele é expressão da transcendência que quebra atotalidade e instaura uma nova ordem, a ética ou metafísica. Volume 5 no 2
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Sua alteridade é precisamente o que escapa à intencionalidade da consciência e lhe impõe um limite; a alteridade não faz parte da ordem dos objetos, eu não posso fazê-la minha. O outro é e permanece um mistério, como o que me escapa sempre, eu não posso tomá-lo tal como um objeto. Nesse sentido o rosto é ausência que nunca está presente já que a presença é o registro do ser. O estatuto do rosto nãoé ontológico, trata-se de outramente que ser, ou ética; para Lévinas a teoria é incapaz de respeitar o outro em sua alteridade, pois: ‚teoria significa também inteligência – logos do ser‒ ou seja, uma maneira tal de abordar o ser conhecido que a sua alteridade em relação ao ser cognoscente se desvanece‛ (LÉVINAS, 1980, p. 29-30, grifo do autor). É a partir da noção de alteridade que Lévinas procura mostrar que certas realidades resistem à categorização, ao conceito. A alteridade como temporalidade passiva, como exposição ‒ exposição, ênfase da posição ‒, que me passa e me afeta como envelhecimento e que tem no rosto do outro homem o seu lugar é também a infinitude do infinito. Todas as considerações de Lévinas à ideia do infinito, nos diversos contextos em que esta noção aparece, dizem respeito ao inabarcável e em especial na obra Totalidade e infinito diz respeito ao rosto; a alteridade do rosto escapa à toda tematização e é o que a ideia do infinito em nós vem contestar. Alteridade como temporalidade já diferente do tempo da consciência que é consciência do tempo. Alteridade: temporalidade passiva mais passiva do que toda passividade; mais passiva do que a receptividade. Alteridade como temporalidade da diferença, ao contrário da identidade que é temporalidade do idêntico, do Mesmo, do Eu. Uma tal noção de alteridade só é possível em uma relação onde o Outro é Outro a partir de si mesmo (καθ`ἀυτ ό) para um termo cuja essência é permanecer o Mesmo. Esse termo cuja essência é permanecer o Mesmo Lévinas chama Eu (Moi). Para que a relação se constitua enquanto tal é preciso que os termos estejam separados, isto é, não formem totalidade.
Rosto e Ética Emmanuel Lévinas, seguindo a máxima fenomenológica segundo a qual é preciso voltar às coisas mesmas descreve uma situação irredutível; irredutível significa que não podeser posta entre parênteses e que não remete a uma situação que seria seu fundamento. Trata-se de uma relação original e originária, pois fundante da filosofia, do pensamento, da linguagem e do sentido; Lévinas a chama ética. A ética, enquanto relação entre existentes ‒ metafísica ‒ e não do existente com a sua existência ontológica ‒ e é mais antiga do que a ontologia; é condição mesma da ontologia. A ontologia enquanto compreensão do verbo ser é um acontecimento que pressupõe a relação social entendida como ensino e justiça. A apropriação da linguagem é um processo social; por relação social Lévinas entende a relação Eu-Outro; sem outrem não tem ética, pois, a ética se dá na relação e sem outrem não tem nem mesmo o ser. A relação ética não tem objeto e por Volume 5 no 2
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isso é metafísica; o Outro não vem funcionar como objeto intencional que preenche uma intenção. A correlação noese-noema, que é a estrutura básica da intencionalidade teorética, é uma régua comum entre o pensamento e o pensado. Porém, o Outro com o qual mantenho relações ultrapassa toda medida, toda escala comum entre eu e ele. Por outro lado, o mesmo e o outro estão separados, pois, são absolutos, isto é, podem se desligar da relação. Se o mesmo e o outro não estivessem separados eles seriam o mesmo e não haveria alteridade: Uma dessemelhança está operando e ela é constitutiva. Não há sujeito sem o outro, e um e o outro nascem uma comum defecção (...). Haveria assim, primeiro, uma socialidade, fundadora, originante. Esta socialidade não é justaposição. Ela é, ao contrário, tensão, disjunção, orientação‛ (PETITDEMANGE, 1993, p. 337). Esta dessemelhança, esta diferença é o que Lévinas chama assimetria e que faz com que seja impossível uma sincronização do Outro no Mesmo; esta assimetria indica a impossibilidade radical de ‚falar no mesmo sentido de si e dos outros; por consequência, também a impossibilidade da totalização.‛ (LÉVINAS, 1980, p. 41); assimetria que torna possível a separação, condição da relação.
Conclusão O rosto ou o Outro acorda a razão teórica, a consciência constituinte exigindo uma outra atitude: não mais de posse e sim de acolhimento; não mais de desvelamento e sim justiça; não mais doação de sentido e sim recepção de sentido, sentido ético vindo do Outro homem e que depõe a consciência constituinte dos seus poderes posicionais (téticos) frente ao infinito do Outro. Portanto, como diz Lévinas, ‚não sou eu que me recuso ao sistema (...), é o Outro‛ (LÉVINAS, 1980, p. 28), isto é, não é por uma deficiência do Eu que o Outro escapa aos poderes objetivantes do Mesmo e sim pelo infinito do Outro. A relação entre o Mesmo e o Outro ‒ onde intervém, mais uma vez a ideia do Infinito ‒, dada a distância infinita que os separa, só pode ser pensada como relação ética, pois, Outrem jamais se deixa abarcar no sistema do Mesmo, ou, na mesmidade do Mesmo, na sincronização. Assim, é a verdade do Outro enquanto passagem-passado, vestígio expresso no seu rosto e que exige acolhimento e não se deixa abarcar que se constitui na verdade ética, verdade do rosto e que nos esforçamos para mostrar aqui nesta dissertação. Verdade ética que permite paz com o Outro; verdade ética que tem por escopo interromper a absorção da alteridade na identidade do Mesmo, interromper a guerra, a totalidade, a totalização. Nesse sentido, pensamos que a relação que Bernard faz entre pravda e a noção de verdade em nosso autor, isto é, a verdade como acolhimento de Outrem expressa o que nos pareceu indicar Souza quando cita Horkheimeir e Adorno: só há uma expressão para a verdade: o pensamento que nega a injustiça; vale dizer, um pensamento Volume 5 no 2
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que não nega a fome, a miséria, a vulnerabilidade como verdade do Outro; verdade esta que a analítica da existência enquanto desvelamento não permite reconhecer, pois, nivela o Outro e o Mesmo onde o Outro e o Mesmo são o Mesmo, formam totalidade, formam unidade, sistema e a unicidade do único se desvanece. Assim, o ponto de partida é a sobrevivência do homem e o fim do genocídio devido ao reinado da violência ‒ redução do Outro ao Mesmo ‒ onde o cada um se converte em um, inteligência do único; saber do único que, incapaz de conviver com a multiplicidade, faz-lhe violência ao não reconhecer sua unicidade. A filosofia ocidental que converte a realidade em saber desta realidade perde de vista a unicidade do único, perde de vista a diversidade de rostos, perde de vista o ensinamento que cada um tráz na sua expressão. Além de egológica a filosofia ocidental se converte em monológica, pois, o Outro é absorvido no discurso do Mesmo ‒ o Outro não fala, empresta seus lábios ao Mesmo. É o que Lévinas chama de violência, guerra, alergia ao Outro. Porém, o Outro me chama e o seu chamado é já injunção ‒ impossibilidade de desviar ‒, apelo por acolhimento; traumatismo que arranca o Eu do seu ser si, do seu gozo do mundo convertendo-o em responsável pelo Outro Para Lévinas, o rosto intervém no real de um modo absolutamente diferente: trata-se de um modo que não se descreve pela ontologia, pois o rosto não é fenômeno. Ao contrário, trata-se de um outramente que ser, ou bondade, acolhimento ‒ a substituição do ser pelo Outro.
REFERÊNCIAS HERNÁNDEZ, Francisco Xavier Sánches. Vérité et justice dans la philosophie deEmmanuel Lévinas. Paris:L’Harmattan,2009. LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito: ensaio sobre a exterioridade. Tradução: José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980. ______. Entre nós. Ensaios sobre a alteridade. Tradução de Pergentino Pivatto et al. (Coord.). 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. ______. De Deus que vem à ideia. Pergentino Stefano Pivatto (Coord. e revisor). Tradução: Marcelo Fabri, Marcelo Luiz Pelizzoli, Evaldo Antônio Kuiava. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. ______. Entrevista com Emmanuel Levinas. Cadernos de Subjetividade. São Paulo, v. 5, n. 1, p. 9-38, 1997. Responsáveis pela edição: Ines Loureiro e Martha Gambini; Supervisão: Prof. Luís Cláudio Figueiredo. Tradução: Célia Gambini. Revisão da tradução: Martha Gambini.
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______. La teoria fenomenológica de la intuición. Tradução: Tania Checchi. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2004. ______. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Tradução: Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, s/d. _______. Ética e infinito. Tradução: João Gama. Lisboa: Edições 70, 1982. ______; RICŒUR, Paul. Giustizia, amore e responsabilità: Um dialogo tra Emmanuel Levinas e Paul Ricœur. In: Emmanuel Levinas philosophe et pédagoge. Édition Du Nadir de l’Alliance Israèlite Universell, Paris, 1998, p.13-28. FABRI, M. Linguagem e desmistificação em Levinas. Síntese, Belo Horizonte, v. 28, n 91, p. 245-266, 2001. PETITDEMANGE, Guy. Emmanuel Lévinas et la politique. Actes du colloque de Cerisy-la-Salle; 23 août- 2 septembre 1986. Paris, Les Éditions du Cerf, 1993, p.327-354. SOUZA, R. T. de. Razões plurais. Itinerários da racionalidade ética no século XX: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: Edipucrs, 2004. ______. Sujeito, ética e história. Levinas, o traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. VASEY, Craig R. Le problem de l’intentionnalité dans la philosophie de Emmanuel Levinas.Revue de Métaphysique et de Morale, n. 85, p.224-239, avr./juin 1980.
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ARTE COMO RESPOSTA AO INSTINTO DE VINGANÇA CRISTÃO CONTRA A VIDA EM F. NIETZSCHE Paulo Cesar Jakimiu Sabino1 Resumo: O seguinte trabalho investiga de que modo o cristianismo é um instinto de vingança contra a vida. Combater tal instinto é possível pela arte, mas não pela obra de arte apenas, e sim pelo seu processo artístico: a criação. Dessa maneira abordamos alguns conceitos fundamentais da filosofia de Nietzsche como vontade de potência e vingança. Ao final, queremos demonstrar que o filósofo entende a arte como um estimulante para a expansão das potências e, consequentemente, da vida. Palavras-Chaves: afirmação da vida; superação de si; cristianismo. Abstract: The following work investigates how the Christianity is a revenge instinct against the life. Fight such instinct is possible through art, but not by work of art, it is through her artistic process: the creation. Thus we approach a few fundamental concepts of Nietzsche’s philosophy, for example, Will
Mestrando em Estética e Filosofia da arte na Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP. Email: pcjsabino1@yahoo.com.br 1
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to Power and vengeance. In the end, we want demonstrate that the philosopher understands art as a stimulant for the expansion of the power and life. Key-words: Affirmation of life; self-overcoming; Christianity.
Introdução É bem conhecida na filosofia de Nietzsche sua crítica ao cristianismo. No entanto, algumas
particularidades precisam ser analisadas para melhor compreender o pensamento do filósofo. Existem certas diferenças entre a crítica tradicional e a de Nietzsche, como por exemplo, o autor de Assim falou Zaratustra não expressa quaisquer preocupações acerca de problemas lógicos ou epistemológicos sobre a existência de Deus – que ainda é uma questão muito recorrente quando se debate o cristianismo. Em Nietzsche, o cristianismo aparece como um fenômeno possuidor de determinados valores que – falando propriamente do ocidente – regem a cultura. Contra isso o filósofo se coloca, porém, ao invés de se concentrar em desvelar o que poderia comprovar a falácia da existência de um ser que originou toda a vida e o universo, prefere denunciar os pressupostos metafísicos que engendram a religião cristã e como eles interferem em nossa existência das pessoas levando alguém a um estado de miséria. O cristianismo é uma maneira de se portar perante a existência. O que sustentamos aqui é que essa atitude é vingativa e resulta num declínio da mesma. Vingança no sentido mais comum é: responder a algo, dar de volta, mas apenas após ser prejudicado/lesado. Levamos em conta também que os mesmos pressupostos do cristianismo também se fazem presentes em outras áreas, o que afeta toda nossa existência. E em sua filosofia, Nietzsche atribui à vida papel central – no que identificamos como o último período de sua obra, que vai de 1882-1889, ela se torna, por exemplo, critério de avaliação. Logo, para pensar a proposta desse texto, de que a arte surge como uma resposta ao cristianismo, é preciso compreender que nem toda arte vai realizar essa tarefa, mas apenas àquela ligada à vida. Esse ponto merece atenção. Para Nietzsche a arte – sendo uma produção humana, bem como a filosofia, a ciência entre outras áreas – pode ser proveniente de um estado fraco ou forte, e quando é resultado do primeiro, ela é uma arte metafísica. A obra Humano, demasiado humano, lançada em dois volumes, ilustra bem essa questão – no momento, foquemos no primeiro volume. Nesse livro, é exposto alguns problemas quanto à arte e aos artistas. No aforismo §220 – intitulado de ‚O além na arte‛ – Nietzsche admite com pesar Volume 5 no 2
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que os artistas ‚glorificaram os erros religiosos e filosóficos da humanidade, e não poderiam fazê-lo sem acreditar na verdade absoluta desses erros2‛. Esses erros foram consequências da pressuposição de um significado cósmico e também metafísico nos objetos da arte. E seguindo essa linha de raciocínio, o tipo artístico mais abordado acerca desses equívocos é o romantismo3 . Nietzsche enxerga no movimento inúmeros conceitos e pressupostos que estão comprometidos com o além, com ideais ao invés da terra. A título de exemplo, tomemos a concepção de gênio. Dentro do romantismo, o gênio é um ser divino e miraculoso, dotado de um talento que ninguém poderia alcançar. Mas segundo a explicação encontrada no livro:
A crença em espíritos grandes, superiores e fecundos, ainda está – não necessariamente, mas com muita frequência – ligada à superstição, total ou parcialmente religiosa, de que esses espíritos são de origem sobre-humana e têm certas faculdades maravilhosas, mediante as quais chegariam a seus conhecimentos, de maneira completamente distinta da dos outros homens4.
Na contramão da perspectiva romântica, Nietzsche quer demonstrar que as artes não são frutos de um além ou de um ser suprassensível, mas de seres humanos, que por sua vez, podem ou não, como já mencionado, carecer de saúde. Uma obra, então, é resultado de árduo trabalho de cálculo, organização e reorganização das coisas. Dito de outro modo, através de um processo de naturalização da arte – que ele o faz por meio do rigor que as ciências lhe oferecem no livro – ele demonstra que a condição psíquica e fisiológica do
NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano: Um livro para Espíritos Livres. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2004, p.148. 2
Humano, demasiado humano marca um momento de ruptura no pensamento de Nietzsche. No período inicial de sua carreira o filósofo ainda estava comprometido com certos pressupostos metafísicos – seu livro de estreia, O nascimento da tragédia, por exemplo, é marcado por ter construído o que se denomina por ‚metafísica de artista‛. Desse modo, Humano era um meio de Nietzsche realizar uma autocrítica a iniciar um pensamento diferente daquele que marcou seus primeiros anos, enquanto ainda era professor na Universidade de Basileia. O romantismo foi um problema central no livro e por isso pode elucidar bem o que entendemos aqui como uma arte metafísica, pois a partir da crítica ao movimento romântico, ele instaura uma nova perspectiva acerca da arte – Nietzsche não entende o romantismo apenas no âmbito das artes, já que esse também foi um movimento político e filosófico, apenas restringimo-nos aqui ao tema por ser mais conveniente para a economia de nosso argumento. O próprio autor, no segundo volume, reconhece que Humano foi sua ‚cura espiritual‛, seu ‚tratamento anti-romântico‛ Cf. NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano II. Tradução, notas e posfácio de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.09. 3
4NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano: Um livro para Espíritos Livres. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2004, p.126.
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indivíduo criador reflete nas suas produções. E por isso identifica o romantismo como um tipo proveniente da fraqueza e da doença. A estética que encontramos em Humano é diferente da tradicional, pois não realiza uma análise da arte buscando a definição do belo, do feio ou de qualquer outro conceito nesse sentido, mas sim de pensar o processo de criação, de refletir a partir de uma perspectiva de criador e não de espectador. Por esse viés, ele percebe que nem toda a arte vai estar, necessariamente, comprometida com a metafísica. E nesse caso, ela pode produzir e expandir a vida. No aforismo §370 de A gaia ciência, Nietzsche compreende o sofrimento perante o sensível a partir de duas perspectivas. Ainda tratando da questão sobre ‚o que é romantismo‛, ele responde o seguinte:
Toda arte, toda filosofia pode ser vista como remédio e socorro, a serviço da vida que cresce de luta: elas pressupõem sempre sofrimento e sofredores. Mas existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de abundância de vida, que querem uma arte dionisíaco e também uma visão e compreensão trágica da vida – e depois os que sofrem de empobrecimento de vida, que buscam o silêncio, quietude, mar liso, redenção de si mediante a arte e o conhecimento, ou a embriaguez, o entorpecimento, a convulsão, a loucura [...]. O mais rico em plenitude de vida, o deus e o homem dionisíaco, pode permitir-se não só a visão do terrível e discutível, mas mesmo o ato terrível e todo luxo de destruição, decomposição, negação; nele o mau, sem sentido e feio parece como que permitido, em virtude de um excedente de forças geradoras, fertilizadoras, capaz de transformar todo deserto em exuberante pomar. Inversamente, o que mais sofre, o mais pobre de vida necessitaria ao máximo de brandura, paz e bondade, tanto no pensar como no agir, e, se possível, de um deus que é propriamente um deus para doentes, um ‚salvador‛; e igualmente da lógica, da compreensibilidade conceitual da existência – pois a lógica tranquiliza, dá confiança –, em suma, de uma certa estreiteza cálida que afasta o medo, um encerrar-se em horizontes otimistas5.
5NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.272-3. Grifo do autor.
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Podemos perceber pelas exposições realizadas em Humano, demasiado humano e em A gaia ciência que o romantismo não é apenas um movimento histórico-cultural. Nietzsche o entende também como uma espécie de condição psico-fisiológica do indivíduo criador. E assim, a arte pode surgir da abundância de vida e excedente de forças, como do empobrecimento e da falta. Aquele que possui em si essa exuberância torna-se capaz de lidar com a existência sem tentar corrigi-la, sem a necessidade de metafísica. Esse tipo de arte permite, inclusive, nos alegrarmos. Eis aqui o tipo que queremos pensar para enfrentar o sentimento negativo diante da existência que foi injetado em nossa cultura pelo cristianismo; a arte fruto da força, que consegue transformar o sofrimento em um meio de aproveitar nossas vivências ao máximo. Compreendido esse ponto, a intenção é explorar dois fatores: (i) a crítica ao cristianismo como uma doutrina que impossibilita o crescimento e a exaltação da vida, e isso por ser uma interpretação que a nega; (ii) como a arte, sendo um estimulante, pode permitir o enaltecimento e a grandeza do indivíduo. Sobre a religião cristã, várias de suas obras discutem o tema, mas é n’O anticristo que temos a crítica mais incisiva. O livro, como é de conhecimento no círculo nietzschiano, faz parte de um projeto inacabado, de uma ‚transvaloração de todos os valores‛ – que viria a ser o título do livro. O ataque se lança contra os ideais ascéticos, os valores reativos à vida, a perspectiva que a toma como indigesta. Na tentativa de alcançar valores mais saudáveis e afirmativos, Nietzsche usa as noções de corpo e de existência – que aqui temos e não outra – como critérios para a criação. A obra de arte afirmativa é um excelente estimulante para a vida, pois se assume como inventada, e, como tal, explora a existência e a realidade, ao invés de falseá-la como o cristianismo. Na obra supracitada, o aforismo §15 expõe alguns pontos negativos e fracos da religião cristã:
Nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm algum ponto de contato com a realidade. Nada senão causas imaginárias (‚Deus‛, ‚alma‛, ‚Eu‛, ‚espírito‛, ‚livre-arbítrio‛ – ou também ‚cativo‛); nada senão efeitos imaginários (‚pecado‛, ‚salvação‛, ‚graça‛, ‚castigo‛, ‚perdão dos pecados‛). [....] todo esse mundo fictício tem raízes no ódio ao natural (– a realidade! –), é a expressão de um profundo mal-estar com o real... Mas isso explica tudo. Quem tem motivos para furtar-se mendazmente à realidade? Quem com ela sofre. Mas sofrer com a realidade significa ser uma realidade fracassada... A preponderância dos sentimentos de desprazer sobre os sentimentos de prazer é a causa dessa moral e
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dessa religião fictícias: uma tal preponderância transmite a fórmula da décadence...6
Há dois esclarecimentos que esse aforismo nos oferece. O primeiro deles e explicitamente citado é o de que o cristianismo é uma religião da décadence. O outro, que pode passar despercebido se não levado em consideração o conjunto inteiro do pensamento de Nietzsche, é que sua crítica está comprometida com todo seu projeto de filosofia: destruir ideais. Por isso podemos dizer que criticou o cristianismo nos mesmos termos que critica o platonismo. Digno de nota é o prólogo de Além do bem e do mal, onde essa religião é denominada como ‚platonismo para o povo‛7. Criar ideais é uma forma de lidar com o descontentamento para com a existência8. Por outro lado, a arte não idealiza ou cria um conceito que em nada toque a realidade, pois suas criações não apenas têm contado, mas também inserem nela mais significados. Perante a exuberância de possibilidades oferecidas, ela explora esse campo tão fértil. Enquanto isso, buscando evitar o sensível devido a incapacidade de suportá-lo, o cristianismo nega esse mundo natural e, não sendo o bastante, o define como falso para tornar o suprassensível verdadeiro – nada mais que o resultado de um sofrimento com o plano terreno que atormenta o indivíduo idealista, como o cristão. Para compreender melhor como o cristianismo atua, temos de explicitar dois conceitos fundamentais: o de vingança, claro, e aquilo que Nietzsche chama de vontade de potência 9 . Este último assume importância para o texto, pois como já mencionamos, Nietzsche concede à vida um valor especial, e a vida é definida a partir desse conceito. Além disso, o declínio do mesmo é sintoma de décadence, presente no cristianismo e nos pilares que o sustentam, seus ideais, como o de deus.
Dois conceitos fundamentais: vingança e vontade de potência
6NIETZSCHE, F.O anticristo: maldição ao cristianismo. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2007, p.20-1, grifo do autor. 7Cf. NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. 2ª ed. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2000, p.08. 8Como podemos ver, nem toda criação é expansão, pois pode se comprometer com o idealismo. Isso será discutido adiante. 9Algumas vezes Wille zur Macht é traduzido como vontade de poder e pode aparecer dessa maneira nas citações, pois varia de acordo com os tradutores.
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Vontade de potência não é um termo adotado a partir de uma perspectiva unilateral entre os comentadores de Nietzsche. Alguns preferem identificá-lo como tese psicológica, outros adotam a perspectiva de uma tese cosmológica ou até mesmo princípio metafísico 10. Logo, uma definição única fica difícil de fornecer, mas alguns esclarecimentos podem ser pontuais para satisfazer as intenções do trabalho. Em vista disso, vale trazer à tona o aforismo §36 de Além do bem e do mal:
‚Vontade‛, é claro, só pode atuar sobre ‚vontade‛ – e não sobre ‚matéria‛ (sobre ‚nervos‛, por exemplo –): em suma, é preciso arriscar a hipótese de que em toda parte onde se reconhecem ‚efeitos‛, vontade atua sobre vontade – e de que todo acontecer mecânico, na medida em que nele age uma força, é justamente força de vontade, efeito da vontade. – Supondo, finalmente, que conseguisse explicar toda a nossa vida instintiva como a elaboração e ramificação de uma forma básica de vontade – a vontade de poder, como é minha tese –; supondo que se pudesse reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade de poder, e nela se encontrasse também a solução para o problema da geração e nutrição – é um só problema –, então se obteria o direito de definir toda força atuante, inequivocamente, como vontade de poder.11
Nietzsche busca, com a vontade de potência, uma nova interpretação da realidade, uma que estabeleça a ruptura com a tradição moderna. Sempre se pensava na vontade como um meio de imputar culpa ao agente que seria causador da ação. Mas para nosso filósofo a vontade atua apenas sobre a vontade 12 . Isso estabelece um jogo complexo de relações agonísticas, isto é, certas quantidades de vontades entram em conflito constante com outras, que nunca se eliminam – o conflito é ininterrupto. Além desse agon, outras questões são relevantes. No seu livro Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos, Scarlett Marton 10A esse respeito Cf. ITAPARICA, A. L. M. Relativismo e circularidade: a vontade de potência como interpretação. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n.27, p.239-255, 2010. Ao autor nos oferece alguns nomes e teses acerca do relativismo e circularidade desse conceito na interpretação de alguns comentadores como Muller-Lauter, Ruediger Grimm, entre outros. 11NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. 2ª ed. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2000, p.43. 12Quando pensamos na vontade atuando no agente, ele se torna totalmente responsável por sua ação, já que seria totalmente consciente dela. Nietzsche pensa que a vontade atua sobre vontade, nesse jogo, uma série de impulsos agem e reagem, e, nem tudo desse domínio chega até a consciência.
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acentua algumas características fundamentais: Nietzsche chega a dizer que vida é vontade de potência, mas em seus textos, por vezes ela aparece não como sendo idêntica, mas sim um caso particular desse jogo13. Outro elemento esclarecido é que, ao contrário do que se possa imaginar ao falar em potência, não podemos ser remetidos ao pensamento aristotélico, isto é, na vontade de potência não há qualquer caráter teleológico. Ela não atua e nem busca mais potência por esse ser seu telos, mas apenas por ser uma característica intrínseca a ela – por isso a constante luta; diferentemente das teorias evolutivas de sua época, como a de Darwin, essa luta não acontece como meio para sobreviver, como autoconservação, mas sempre por um anseio por mais, não é a pobreza que caracteriza a vida, mas a abundância, conforme esclarece em A gaia ciência: Querer preservar a si mesmo é expressão de um estado indigente, de uma limitação do verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão do poder e, assim querendo, muitas vezes questiona e sacrifica a autoconservação [...]. A luta pela existência é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de vida; a luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de crescimento e expansão, de poder, conforme a vontade de poder, que é justamente vontade de vida 14
Contra a ideia de conservação, Nietzsche toma partido dos opositores de Darwin no século XIX; como Roux de quem o filósofo reteve as ideias de que no próprio organismo – seus órgãos, tecidos e células – há a concorrência vital, e de Rolph, que compreende o benefício dessa concorrência devido ao aumento da quantidade de forças. Isso, claro, não quer dizer que ele exclui totalmente o darwinismo, apenas entende que a luta pela vida – struggle for life – é apenas uma exceção no jogo da vontade de potência. Além do fato de que as ideias evolucionistas partiam do pressuposto de que ao se adaptar ao ambiente, vencem apenas os fortes rumo a um aperfeiçoamento dos seres; ideia negada por Nietzsche, já que para ele, na luta pela existência, há também a chance dos fracos proliferarem15. Nesse jogo, inúmeras forças predeterminado, sem a necessidade de processo da vida como vir-a-ser. Por engendrar certas perspectivas que vão
agem sobre outras, sem um telos ou algo aniquilamento das forças derrotadas. Esse seria o isso um determinado conjunto de forças podem se opor às outras, que surgem a partir de forças
13Para o trabalho, inclusive, iremos nos focar na relação de vontade de potência e vida, na sua atuação sobre o orgânico. 14NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.243-4 15Cf. MARTON, S. Da biologia à física: vontade de potência e eterno retorno do mesmo. Nietzsche e as ciências da natureza In: BARRENECHEA, M. A. [et. al.] (Org.). Nietzsche e as ciências. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011, p.114-128.
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distintas. Isso atua sobre tudo o que é orgânico, e, por esse motivo, a vontade de potência é vontade de vida, de mais vida, sempre rumo ao crescimento. Logo, se a vida tende à expansão, se seu caráter é buscar mais e mais potência, é justo afirmar que tudo aquilo que impede seu crescimento é uma calúnia, um ato de insuficiência, um sinal de fraqueza e doença – a mais perversa atitude. Nesse sentido: ‚Concebida como vontade de potência, a vida constitui o único critério de avaliação que se impõe por si mesmo. É nessa perspectiva que se coloca a pergunta pelo valor dos valores; é nesses parâmetros que se pode avaliar a proveniência deles‛16. Resumindo: vontade de potência – pensando quando se identifica com a vida – é um jogo complexo de vontades em eterno conflito por mais potência. Não porque dessa maneira estabelece o vir-a-ser teleológico de Aristóteles, mas sim porque não pode agir de outro modo. Dentro desse jogo nos encontramos, nos relacionamos com ele, fazemos parte dele – desnecessário dizer que a superação de si torna-se uma exigência. Ir contra seu caráter de expansão é ir contra a vida mesma. Agora cabe a seguinte indagação: como o conceito de vingança se relaciona com a doutrina cristã? E como, a partir da vingança, o cristianismo se contrapõe à vida? Embora o conceito apareça em muitas obras do autor, como em Humano demasiado humano ou em O anticristo, vai ser na Genealogia da moral que temos uma investigação mais profunda. Nessa obra, a vingança aparece relacionada com as noções de ressentimento e justiça. O ressentimento aparece, em Nietzsche, como sintoma psicológico que designa a incapacidade de assimilar um sentimento causado por determinado acontecimento ou ação no indivíduo. Aquele que for impotente e incapaz de esquecer o sentimento passa a sentir de novo17, e, consequentemente, isso vai lhe causar dor e sofrimento, fazendo ele reagir em busca de uma compensação. Esse ponto é complicado. Uma das características do ressentimento é justamente tornar um organismo incapaz de reagir, como argumenta Antônio Edmilson Paschoal em Nietzsche e o ressentimento18. Mas se o conceito de vontade de potência admitia mais de uma interpretação, Paschoal também lembra que o termo ressentimento é polissêmico e seus 16MARTON, S. Nietzsche, das forças cósmicas aos valores humanos. 3ª ed. Belo Horizonte: UFMG. 2010, p.103. 17Vale dizer que se trata de sentir de novo, mas sem o desejo de sentir de novo. Consequentemente, haverá mais dor, e na busca pelo apaziguamento da dor o homem cria uma maneira de compensar. 18Cf. PASCHOAL, A. E. Nietzsche e o ressentimento. São Paulo: Humanitas, 2014, p.33.
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aspectos semânticos, mesmo dentro da filosofia de Nietzsche, impedem de fornecer ao conceito um único significado, já que o filósofo o adota de diferentes maneiras dependendo da estratégia que usa na sua argumentação. Vale lembrar, assim, uma passagem da Genealogia da moral, em que Nietzsche apresenta o termo de maneira que compactua com essa espécie de reação: ‚A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação 19‛. Aqui é interessante notar a ideia de ‚vingança imaginária‛. Incapaz de agir ou de reagir de maneira efetiva na realidade, o ressentido apenas reage no âmbito imaginário, ou seja, criando ideais. É por isso que:
[...] nem toda resposta (reação, vingança) corresponde necessariamente a uma forma de ressentimento. Para se caracterizar o ressentimento, torna-se imprescindível que a reação corresponda de forma específica àquele modus operandi do fraco e que a vingança mesma não se traduza em atos, mas ocorre apenas de forma imaginária e especialmente que ela não seja imediata, mas adiada, merecendo, assim, uma longa atenção e fazendo com que o impulso detrativo se dirija para o interior do homem20
O termo reação só pode ser compreendido como um ato que opera no âmbito imaginário – a vingança cristã é a vingança dos ressentidos. Dada a incapacidade de lidar com os infortúnios da vida terrena, o indivíduo do ressentimento vai vingar-se criando um mundo ideal e perfeito, sem dor. Isso, no entanto, não o impede de sofrer com a existência, e os sentimentos nele aqui despertos são interiorizados. Dessa maneira, é correto afirmar – antecipando um pouco o tema do cristianismo – que o paraíso cristão, essa pós-vida, nada mais faz do que impedir que o indivíduo faça a digestão dos sentimentos amargos inseridos nele através de uma situação adversa, pois ele apenas suporta essa vida na promessa de outra melhor. Com base na dor e no sofrimento, o cristianismo vinga-se desvalorizando essa vida e criando uma outra, pois assim tenta compensar o dano e fazer justiça. Isso acarreta consequências sérias, pois como a reação é imaginária, não há de fato uma compensação, o sofrimento é apenas interiorizado. 19NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Tradução notas e posfácio de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia de bolso, 2010, p.26. 20PASCHOAL, A. E. Nietzsche e o ressentimento. PASCHOAL, A. E. Nietzsche e o ressentimento. São Paulo: Humanitas, 2014, p.60.
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Além disso, existe aí um perigo: o da associação vingança-justiça. Por ser uma reação/retribuição, somos tentados a fazer isso. Na segunda dissertação, seção 11, da Genealogia, Nietzsche critica o filósofo e economista alemão Eugen Dühring justamente por esse motivo. Ele condena a tentativa de buscar a origem da justiça num terreno diverso – o do ressentimento –, pois com isso sempre ocorreu também de tentar sacralizar a vingança sob o nome de justiça 21. Sobre essa questão, Antonio Edmilson Paschoal 22 faz algumas elucidações significativas que podemos enumerar: 1º) Embora não tenha buscado um fundamento metafísico para a justiça e a moral, falta a Dühring, ainda, o espírito histórico, pois não compreendeu as transformações conceituais acerca não apenas do justo e injusto, mas também do bom e do mau, por exemplo. Ora, o justo e o injusto aparecem apenas após a instituição da lei, diz Nietzsche – e não devido um ato ofensivo, como pensou Dühring – soma-se também que não se pode dizer que algo é justo ou injusto em si, ou mesmo uma ação boa ou má nos mesmos pressupostos – algo bom já pode ter sido considerado mau, e o mesmo para o justo e injusto, ou seja, faltou-lhe perspectivismo; 2º) Diferentemente do que pensava Nietzsche – e também pautado no que já esclarecemos sobre vida e vontade de potência – Dühring pensava na justiça como uma inibidora das forças agressivas, e isso é o oposto da vida, já que a mesma atua ofendendo, agredindo – por esse motivo Nietzsche acentua que: ‚O homem ativo, violento, excessivo, está sempre bem mais próximo da justiça que o homem reativo‛23.3º) É errado pensar a justiça como retribuição para o nivelamento dos homens, isto é, pela igualdade, tentar tornar igual o que é desigual. Quanto a este último podemos dizer que na Genealogia da moral o tema foi recuperado. Dizemos recuperado já que o mesmo é abordado no aforismo §92 de Humano demasiado humano. Ali se lê: ‚A justiça (equidade) tem origem entre homens de aproximadamente o mesmo poder‛24. Precisamos notar que quando diz o mesmo poder não se pauta na igualdade como um valor tal como pensamos atualmente. Igualdade aqui se refere aos que possuem o mesmo nível de poder, e não entre os desiguais, isto é, no sentido de equiparar o forte e o fraco, ou suprimir as diferenças entre cada um a partir de uma lei ou valor moral. Logo a justiça não busca promover uma equivalência entre seres superiores e inferiores. Reforçando: justiça é fruto de indivíduos ativos e fortes, enquanto a vingança dos fracos reativos. Inclusive, uma das denúncias que Nietzsche faz acerca de Dühring, é pensar apenas na 21Cf. NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia de bolso, 2010, p.57. 22Para uma melhor compreensão da exposição teórica acerca desse conceito Cf. PASCHOAL, A. E. Nietzsche e Dühring: ressentimento, vingança e justiça. Dissertatio, Pelotas, n.33, p.147-172, 2011. 23NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia de bolso, 2010, p.58. 24NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: 2004, p.70.
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justiça como a retribuição de um dano causando outro dano, pois desse modo, sua teoria descarta a retribuição do bem com o bem, por exemplo – pois pensa que é esse sentimento reativo o fundamento da justiça25. Como a vingança não é justiça e através do ressentimento se atua apenas no imaginário, o conforto buscado pelo indivíduo não vai ser efetivo. Com esses conceitos devidamente esclarecidos, podemos agora passar a analisar o cristianismo e a arte a partir da relação entre vontade de potência e vingança.
Cristianismo: uma interpretação vingativa Nietzsche finaliza O Anticristo condenando o cristianismo como a grande maldição, a grande corrupção interior, e como o grande instinto de vingança 26. Fruto de fraqueza e da décadence, essa religião foi a responsável por grande parte do ódio à vida estabelecida na história da humanidade. Seus valores não estão de acordo com o corpo, com a vida – esta não é um critério aos cristãos. Há, no entanto, aqueles que poderiam querer arguir contra esse ponto de vista do cristianismo apontando um possível paradoxo nesse pensamento – que não existe, como mostraremos. Ora, o cristianismo não é uma interpretação da vida? E, sendo assim, não seria o que Nietzsche chama de vontade de potência? Não há como negar: o cristianismo é uma interpretação, uma perspectiva. E pode-se dizer sem problemas que estaria relacionada com a vontade de potência – mas vale lembrar, ali existem vontades fortes e fracas – dependendo do resultado do confronto, é possível que determinada perspectiva atue justamente contra a expansão da vida. O cristianismo provém da fraqueza. O grande veneno cristão está por ser caracterizado como uma religião contra o aumento das potencialidades – é normal, dentro da vontade de potência, que perspectivas entrem em conflito, a resistência torna-se uma consequência, porém, o cristianismo não quer o conflito, sua proposta é que as forças se anulem e assim privilegia o fraco, não é uma doutrina que preza pelo processo natural dos organismos que é a luta por mais potência, por mais vida. De modo que não existem potências boas ou ruins, isso é questão de perspectiva, mas somos autorizados a falar de bom e ruim apenas no seguinte sentido: bom é o que
25Cf. PASCHOAL, A. E. Nietzsche e Dühring: ressentimento, vingança e justiça. Dissertatio, Pelotas, n.33, 2011, p.158 26Cf. NIETZSCHE, F. O anticristo: maldição ao cristianismo. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2007, p.79-80.
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permite a expansão das potências, e ruim o que é fraco e não permite expansão27. Com efeito, o cristianismo é sintoma de vida que declina. É verdade que não há problemas em dizer que essa religião é fruto de vontade, mas da fraca, daquela que quer eliminar a vida e do asceticismo que, insatisfeito com uma existência mesmo que extremamente rica e proveitosa, busca outra ideal e falseia esta que é a única. O cristianismo equivale a uma vida ascética, e
‚uma vida ascética [esta sim] é uma contradição: aqui domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja assenhorar-se não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais‛28.
Quando consegue assenhorar-se da vida? Na vitória do instinto do instinto de vingança que é o cristianismo:
Estes são todos homens do ressentimento, fisiologicamente desgraçados e carcomidos, todo um mundo fremente de subterrânea vingança, inesgotável, insaciável em irrupções contra os felizes, e também em mascaramentos de vingança, em pretextos para a vingança: quando alcançariam realmente o seu último, mais sutil, mais sublime triunfo da vingança? Indubitavelmente, quando lograssem introduzir na consciência dos felizes sua própria miséria, toda a miséria, de modo que estes um dia começassem a se envergonhar de sua felicidade, e dissessem talvez uns aos outros: ‚é uma vergonha ser feliz! Existe muita miséria!...‛29.
Eis o processo: o cristianismo surge como interpretação, mas dos fracos, dos decadentes e fisiologicamente desgraçados. Sentem-se, diante dos felizes, lesados pela vida – e para fazer ‚justiça‛, atuam se vingando – querem devolver algo, e em decorrência disso, surgem os valores reativos, negativos que introduzem o sentimento de miséria nos feliz. A religião cristã faz isso – como citamos no início do texto – falseando, sendo uma 27Cf. NIETZSCHE, F. O anticristo: maldição ao cristianismo. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2007, p.11. 28NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia de bolso, 2010, p.99. 29NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia de bolso, 2010, p.105
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interpretação que não se pauta na realidade, com seus conceitos de alma, pecado, paraíso, etc. Os fracos promovem a vingança como justiça – assim atua o cristão, o asceta. Eles retribuem um dano – que supostamente sofreram. São incapazes de pensar na possibilidade de aceitar o sofrimento com alegria. De que o sofrer faz parte da vida, que é boa, não apenas por proporcionar os momentos de prazeres e felicidades que gostamos, mas por proporcionar todo o tipo de potências a serem exercidas através de um processo de criação afirmativo.
Arte, pois “seja como for, é boa a vida30” Diante do quadro geral que atualmente se apresenta a nós, no que diz respeito à relação entre indivíduo e obra de arte – sua experiência estética, digamos assim – os pensamentos de Nietzsche podem ser fontes de ricas interpretações. Hoje são muitos os que visitam galerias, frequentam o teatro ou cinema, ou apenas ouvem uma canção, motivados não pelo entusiasmo e exuberância. Principalmente na época onde o trabalho e o dinheiro reinam como valores absolutos, a obra de arte serve como refúgio. E do que isso é reflexo? Do cansaço. Através dessa experiência, a arte faz o mesmo que a religião, promove a fuga da existência. Nietzsche não concorda com esse tipo de visão sobre a arte. No aforismo §222 de Humano, demasiado humano ele nos diz: ‚Antes de tudo, durante milênios ela [a arte] nos ensinou a olhar a vida, em todas as formas, com interesse e prazer, e a levar nosso sentimento ao ponto de enfim exclamarmos: ‘Seja como for, é boa a vida’‛31. O que essa afirmação significa? Bom, pode-se dizer que a pretensão de Nietzsche é expor que a obra de arte pode nos estimular a viver, mas não a vida ascética, a vida que se adapta às doutrinas religiosas ou às ideologias políticas. Trata-se, isso sim, de estimular a expansão da vida e ter prazer na existência – é a arte elucidada na introdução. A música, o teatro, os grandes romances, todos esses tipos de arte não servem como meros objetos de contemplação. Tais obras nos aprofundam na existência. Todavia, deve-se esclarecer aqui: diante da visão comum que pensa essas obras como pílulas energizantes – essa é a perspectiva dos casados –, 30A frase é citada por Nietzsche em Humano, demasiado humano e pertence ao poema Der Bräutigam de Goethe. 31NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: 2004.p.152. A expressão ‚Seja como for, é boa a vida‛, é uma citação de um poema de Goethe.
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Nietzsche não pensa somente na obra final, na sua conclusão; ele realiza um movimento que lhe permite pensar as condições e o processo de criação. O estímulo vem do processo criativo que o filósofo quer trazer para a vida. Isso é justamente o que nos expõe de maneira absolutamente bela Rosa Dias no livro Nietzsche, vida como obra de arte. Um dos aforismos centrais para a autora trabalhar suas teses vem do segundo volume de Humano, demasiado humano. Vale a pena citar esse aforismo na íntegra – intitula-se ‚contra a arte das obras de arte‛:
A arte deve, sobretudo e principalmente, embelezar a vida, ou seja, tornar a nós mesmos suportáveis e, se possível, agradáveis para os outros: com essa tarefa diante de si, ela nos modera e nos contém, cria formas de trato, vincula os não-educados a leis de decoro, limpeza, cortesia, do falar e calar no momento certo. Depois a arte deve ocultar ou reinterpretar tudo que é feio, o que é doloroso, horroroso, nojento, que, apesar de todos os esforços, sempre torna a irromper, em conformidade com a origem da natureza humana: deve assim proceder, em particular, no tocante às paixões e angústias e dores psíquicas, e no que é inevitavelmente ou insuperavelmente feio deve fazer com que transpareça o significativo. Após essa grande, imensa tarefa da arte, o que se chama propriamente arte, a das obras de arte, não é mais que um apêndice: um homem que sente em si um excedente de tais forças embelezadoras, ocultadoras e reinterpretantes procurará, enfim, desafogar esse excedente em obras de arte; assim também fará, em circunstâncias especiais, todo um povo – Mas agora iniciamos a arte geralmente pelo final, agarramo-nos à sua cauda e pensamos que a arte das obras de arte é o verdadeiros, que a partir dela a vida deve ser melhorada e transformada – tolos que somos! Se damos início à refeição pela sobremesa e saboreamos doce após doce, não surpreende que arruinemos o estômago e até mesmo o apetite para o bom, substancial, nutritivo alimento que nos oferece a arte!32
Temos que tomar nota: Nietzsche deixa a criação de obras de arte para aquele que tem um excedente de força e, fora isso, não a coloca como o centro da questão, a substitui 32NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: 2004, p.82.
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pelo próprio processo artístico, isto é, o criar. Conforme explicita Rosa Dias: o criar para Nietzsche, no entanto, não pode ser tomado nos moldes dos filósofos metafísicos, isto é, com um sentido teológico, cristão, que se origina a partir de algo único, do nada, que possibilitaria a busca por sua origem. Precisamos levar em conta a etimologia da palavra, que vem do latim creare e filologicamente ligada a crescere, sugerindo crescimento e desenvolvimento – e adiante Rosa Dias continua explicando que a raiz mais longínqua de criação se dá em procreare, procriação, que justifica sua aplicação a uma conduta instauradora e geradora de obras33. Podemos pensar aqui que quem buscasse o criar, mas não tivesse em si mesmo um excedente de forças e vida, acabaria criando suas obras já comprometidas com certos ideais que não permitem a expansão. No aforismo 370 de A gaia ciência ele distingui dois casos que podem engendrar a criação, a saber, a forma ou a abundância. Ele quer saber se a causa da criação é o desejo de fixar ou o de mudança. Mas esses dois desejos também assumem duas interpretações ambíguas:
O anseio por destruição, mudança, devir, pode ser expressão da energia abundante, prenhe futuro (o termo que uso para isso é, como se sabe, ‚dionisíaco‛), mas também pode ser o ódio do malogrado, desprovido, mal favorecido, que destrói, tem que destruir porque o existente, mesmo toda a existência, todo o ser, o revolta e o irrita – para compreender esse afeto, olhe-se de perto os nossos anarquistas. A vontade de eternizar requer igualmente uma interpretação dupla. Ela pode vir da gratidão e do amor: – uma arte com esta origem sempre será uma arte de apoteose, talvez ditirâmbica, como em Rubens, venturosa-irônica, como em Hafiz, límpida e amável, como em Goethe, vertendo uma homérica luz e glórias sobre todas as coisas. Mas também pode ser a tirânica vontade de um grave sofredor, de um lutador, um torturado, que gostaria de dar ao que tem de mais pessoal, singular e estreito, à autêntica idiossincrasia do seu sofrer, o cunho de obrigatória lei e coação, e como que se vinga de todas as coisas, ao lhes imprimir, gravar, ferretear, a sua imagem, a imagem de sua tortura34.
33DIAS, R. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.62-3. 34NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: 2004, p.273-4. Grifo do autor.
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Esse aforismo incide diretamente sobre a concepção de criar. Tanto o desejo de mudança como o de fixação é resultado de uma determinada condição do indivíduo criador. Destruir algo apenas porque sofre com aquilo é fruto de décadence, mas quando proveniente de um grande número de forças capaz de abrir novos caminhos, mostrar novos horizontes, o destruir se mostra necessário para a criação. Essa relação entre criar e destruir promove a mudança necessária que expande a vida. Por isso, quando uma arte se compromete com pressupostos imaginários, teológicos, e assim por diante, ela poderia acabar apenas reforçando determinados ideais já existentes. Ideais que fazem o indivíduo sofrer com a vida – nesse aspecto, a arte não é uma resposta ao instinto de vingança cristão, mas sim uma mera consequência dele. Todavia, a fixação quando proveniente do sofrimento, nos envolve de igual maneira em miséria, impedindo não apenas a abertura de novos caminhos, como também impede a alegria do ser humano, já que faz perpetuar a dor. A perspectiva do cristianismo não quer a mudança em prol do aumento de potência e nem mesmo a fixação que provém do amor e da gratidão; essa religião, por sua vez, além do ódio à mudança, também quer fixar apenas aquilo que compreendeu como ‚melhor‛ que a existência mesmo. Seus dogmas e conceitos são uteis para a domesticação dos homens, para mantê-los submissos aos sacerdotes – qualquer mudança, alteração ou ainda a destruição de seus pressupostos, de seus valores, é perigosa para a doutrina cristã. Por consequência disso, insistimos: a maneira artística deve ser compreendida dentro do que elucidamos na introdução, pois uma perspectiva contrária pode até mesmo compactuar com o cristianismo. Assim, compreende-se que o sabor excitante da arte não vem da obra ‚terminada‛, mas do seu processo. Da atividade de criar. Aí Nietzsche vincula arte e vida35. Ele faz isso dentro de um contexto já enunciado antes, que é sua crítica ao romantismo em Humano, demasiado humano. Isso porque livre de todo pressuposto teológico ou suprassensível, a arte é compreendida como uma atividade constante que é humana e apenas humana. Então, a própria vida pode ser transformada em arte. O criar é estimulante, mesmo que pareça algo exaustivo; e apenas com isso podemos jogar o jogo da vontade de potência... o estímulo vem daí, das inúmeras perspectivas que a vida nos oferece para nos expandirmos. Imaginemos sob quais condições os grandes artistas de todas as épocas criaram suas obras. Seja qual for o estilo, o tipo, o gênero, eles nos oferecem pensamentos e significados diversos sobre a vida. O grande artista, isto é, aquele que possui em si um excedente de forças, descarregaram criando obras dignas de serem 35Cf. DIAS, R. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.111, onde a própria autora nos diz que é no segundo volume de Humano que há o deslocamento do centro de gravidade na filosofia de Nietzsche sobre a arte. Agora não reflete sobre as obras de arte apenas, mas sim sobre algo bem particular: a vida considerada obra de arte.
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lembradas por séculos. E esses grandes fizeram, muitas vezes, sob condições terríveis – basta pensar na biografia de Dostoiévski, que perde entes queridos, herda dividas, quase é fuzilado, etc. – enquanto que os fracos apenas se queixamos, sofrem – e sem fazer disso, do sofrimento, um fertilizante. Não significa querer sofrer, mas sim fazer que disso surjam novas criações capazes de alegrar. Diante do cansaço, queremos consumir a obra de arte para nos refugiar, para parecer eruditos, para qualquer coisa menos nos fortalecer e expandir. Isso porque somos gulosos e sentamos a mesa comendo sem o menor controle.
Conclusão Através dos conceitos esclarecidos, e do modus operandi da religião cristã, podemos aderir a ideia de que a arte serve como resposta ao instinto de vingança cristão. Mas como esclarecido, Nietzsche confere novos configurações à maneira de pensar a arte – principalmente inicial quando formulou uma ‚metafísica de artista‛ –, sua reflexão é acerca da contribuição para o aumento de potências, o aumento de vida36 – razão pela qual ele não considera a arte romântica uma arte afirmativa. Isso só ocorre quando a arte é proveniente de uma condição psico-fisiológica forte e repleta de energia. A perspectiva adotada é a de pensar não apenas a ‚arte das obras de arte‛, mas todo o conjunto do âmbito artístico, ou seja, ajuizar também sobre o processo de criação37, pois é através dele que podemos nos estimular. A atividade artística não deve se prender na metafísica que busca moralizar o mundo a partir de dicotomias como bem e mal – nem a ciência, nem a filosofia, nem qualquer outro domínio de saber ou de aprendizagem –, pois a apreciação da arte não está nesses termos e nem em outros como belo e feio, certo e errado, e assim por diante 38. Ela permite a nós mergulhar na existência e experimentá-la de diferentes formas, através de diferentes olhares. Assim, ela nos dizer: ‚eis aqui a vida‛ e através do criar somos estimulados para expressar o desejo de ‚eu a quero!‛. Diferentemente das filosofias
36 Segundo Richard Schacht, a avaliação que se pode fazer da mudança entre o período inicial e o período intermediário-tardio é uma mudança na ênfase. Antes a arte era tinha a função de sustentar a vida, enquanto depois ela passa a contribuir para sua expansão. Cf. SCHACHT, R. Nietzsche. New York: Routledge, 2002, p.523. 37O processo criativo pode ser encontrado em outras áreas do saber, mas desde que se compreenda que ambas aprenderam esse ensinamento com a arte. Por esse motivo, todo exercício de pensamento, científico ou filosófico, por exemplo, são devedoras do exercício artístico. Não há separação ou barreiras entre elas como uma primeira leitura da obra de Nietzsche pode nos fazer crer. É verdade que critica as ciências nas obras finais de seu período intelectual, mas não o faz por desprezo, ele ataca os pontos moralizantes e que simpatizam com pressupostos metafísicos e teológicos. De todo modo, é sempre uma luta contra a metafísica que está em jogo. Sobre esse ponto, cf. PIMENTA, O. Arte e conhecimento em Nietzsche, Cadernos Nietzsche, n.11, p.87-97, 2001. 38Além da apreciação da obra, o próprio ajuizamento acerca da criação e do que fora criado se dá a partir da verificação de quais valores engendraram a obra, se o critério era a vida, por fim, se é sintoma de aumento ou de declínio de potência.
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idealistas e da religião cristã, não nos ausentamos da vida e nem tentamos corrigir a mesma, mas apenas expandi-la. Na medida em que o cristianismo quer nos fazer olhar para esse mundo com ódio, devido todo o sofrimento que aqui existe, a arte vai no caminho contrário, mostrando como ela é boa. É correto dizer que a religião cristã não está em sintonia com a vontade de potência, ignora as regras do jogo. Ela não entra em contradição com outras perspectivas da vida, ela se opõe à vida mesma. A miséria do mundo faz com que se crie outra ideal, sem dor, unilateral, fixa e ‚melhor‛. A criação vem não dá alegria, da exuberância, do excesso, mas do ressentimento, da incapacidade de lidar com as experiências dessa vida. O cristão se vinga, o artista elogia e agradece. A arte, quando livre de qualquer terreno idealista ou moralista, pode nos oferecer um antídoto que nada mais é do que a criação que tende ao crescimento e superação. Ela nos ensina que a vida é prazerosa – é possível, nos termos nietzschianos, dizer Sim à ela. Através desse ensinamento, do uso da arte para estimular e explorar a existência, podemos nos livrar dos sentimentos reativos do cristianismo. Abandonar os ideais e focar na terra: amar a vida! Ela é nossa obra. Eis o que nos é oferecido pelo nosso filósofo contra o mal-estar cristão, contra seu instinto de vingança – que para o cristianismo é uma busca por ‚justiça‛. Nós podemos nos tornar artistas, não no sentido comum, mas no sentido de aderir ao ensinamento da arte, isto é, nos tornar criativos. Por isso Rosa Dias explica que vida é obra de arte. Ao nos tornar artistas, podemos fazer de nossa vida uma obra que criamos constantemente, sempre nos superando – assim não nos tornaremos obras de outros.
Referências DIAS, R. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. (Coleção Contemporânea). ITAPARICA, A. L. M. Relativismo e circularidade: a vontade de potência como interpretação. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n.27, p.239-255, 2010. MARTON, S. Nietzsche, das forças cósmicas aos valores humanos. 3ª ed. Belo Horizonte: UFMG. 2010, 288p.
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_____. Da biologia à física: vontade de potência e eterno retorno do mesmo. Nietzsche e as ciências da natureza In: BARRENECHA, M. A. [et. al.] (Org.). Nietzsche e as ciências. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011, p.114-128. NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. _____. Além do bem e do mal. 2ª ed. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2000. _____. Genealogia da moral. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia de bolso, 2010. _____. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: 2004. _____. O anticristo: maldição ao cristianismo. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2007. PASCHOAL, A. E. Nietzsche e Dühring: ressentimento, vingança e justiça. Dissertatio, Pelotas, n.33, p.147-172, 2011. ____. Nietzsche e o ressentimento. São Paulo: Humanitas, 2014 (Nietzsche em perspectiva). PIMENTA, O. Arte e conhecimento em Nietzsche, Cadernos Nietzsche, n.11, p.87-97, 2001. SCHACHT, R. Nietzsche. New York: Routledge, 2002. (The Argument of Philosophers).
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AS TESES PRÁTICAS DE SPINOZA SEGUNDO DELEUZE: CONSIDERAÇÕES E SEMELHANÇAS EM NIETZSCHE Claudio de Souza Rocha1
Resumo: A chave de leitura para composição de nosso texto é a perspectiva de Deleuze sobre Spinoza em seu livro, Espinosa Filosofia prática. Obra dividida em seis capítulos, sendo destacado o terceiro capítulo, onde Deleuze tece comentário sobre as correspondências de Spinoza destinada a Blyenbergh, referente à problemática do mal. Entretanto, é no segundo capitulo intitulado “Sobre a diferença da Ética em relação a uma Moral” que tomaremos como chave de leitura e interpretação, para analise do que Deleuze denominou de teses práticas de Spinoza. Teses estas, que suscitaram tantas refutações e perseguições, fazendo com que a filosofia de Spinoza fosse considerada um motivo de escândalo não só para religiosos judeus, católicos ou protestantes, mas também críticos liberais. Palavras-chave: Spinoza; Deleuze; Nietzsche.
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Doutorando do DMMDC (UFBA), Prof. Assistente da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) E-mail: claudiodrocha@gmail.com
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In media vita. –Não!! A vida não me decepcionou! Acho-a, contrariamente, de ano para ano mais rica, mais desejável e mais misteriosa desse quando veio a mim a grande liberadora, a ideia de que a vida podia ser experiência àqueles que procuram saber e não dever, fatalidade, falácia! E o próprio conhecimento: que para outros seja outra coisa, por exemplo, um leito, ou o caminho que leva ao leito de repouso ou ainda um divertimento ou ociosidade – para mim é um mundo de perigos e vitórias, onde os sentimentos heroicos tem seu lugar de danças e de jogos. “A vida é um meio para o conhecimento”com este principio no coração pode-se não somente viver com bravura, mas ainda com alegria, rir de alegria! Como se entende de bem viver e rir, se não se entendede guerra e vitória? A gaia ciência, Nietzsche.
1. Denúncia da consciência
A
s chamadas teses práticas implicam na desvalorização, por parte de Spinoza, da consciência, dos valores e de todas as paixões tristes. Como também evidenciam as três grandes semelhanças entre Spinoza e Nietzsche.2 É o próprio Deleuze em entrevista concedida a Magazine littéraire (1995) que afirma que “tudo tendia para grande identidade entre Nietzsche e Spinoza.”3 A primeira destas teses afirma que em Spinoza há uma desvalorização da consciência em proveito do pensamento, ou seja, Spinoza ao indagar o que pode o corpo, propõe instituir aos filósofos, o corpo como um novo modelo. 4 Para Deleuze, esta provocação de Spinoza sugere uma ignorância a respeito da tradição com relação ao corpo. Algo similar é dito por Nietzsche, “espantamo-nos diante da consciência, mas o que surpreende é acima de tudo o corpo.” 5 De fato, em Spinoza não encontramos 2
“...em cinco pontos capitais de sua doutrina eu me reencontro, este pensador, o mais fora da norma e o mais solitário, me é o mais próximo justamente nestas coisas: ele nega o livre-arbítrio - ; Os fins-; a ordem moral do mundo-; o não-egoísmo-; o mal-; se certamente também as diferenças são enormes, isso se deve à diversidade de época, de cultura, de ciência. In suma: minha solidão, que, como sobre montes muito altos, com frequência provocou-me falta de ar e fez-me o sangue refluir, é ao menos agora dualidão. (Nietzsche, Carta Sobre Espinosa (trad. Homero Santiago), Cadernos Espinosanos, 2007, nº 16. 3 Cadernos Espinosanos, 2007, nº 16. 4 “O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém determinou, até agora, o que o corpo...pode ou não pode fazer. E3P2S 5 Deleuze, 2002, p. 24.
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nenhuma superioridade da alma sobre o corpo. Este, em meados do sec. XVII destitui a mente (alma) de sua condição de superioridade sobre o corpo. Na Ética spinozista o homem é devolvido a sua condição natural, este é concebido na natureza não mais “como império num império” 6, mas parte dela. A crítica do filosofo se estende a todos os que escreveram sobre os afetos sem compreender a natureza e a força deles, ao contrário na maioria das vezes trataram como se não fossem coisas naturais, preferindo ridicularizálos. Para Deleuze tomar o corpo como modelo significa mostrar que o corpo ultrapassa o conhecimento que dele temos, já o pensamento não ultrapassa menos a consciência que dele temos. 7 Isto não significa, ainda segundo Deleuze, uma desvalorização do pensamento em relação à extensão, mas uma desvalorização da consciência em relação ao pensamento, ou seja, em Spinoza já há uma descoberta de um inconsciente do pensamento, não menos profundo que o desconhecido do corpo. Isto se dá segundo a leitura de Deleuze, porque a consciência é o lugar de uma ilusão, esta, só recolhe efeitos, ignorando as causas. Ora, para Spinoza o individuo é um modo singular de existência, produto dos encontros, nas palavras de Deleuze ele é concebido “pelos afetos de que é capaz”. Diz ele: Cada leitor de Espinosa sabe que os corpos e as almas não são para ele substâncias e nem sujeitos, mas modos (...) é um poder de afetar e ser afetado, do corpo e do pensamento. Concretamente, se definimos os corpos e os pensamentos como poderes de afetar e de ser afetado, muitas coisas mudam. Definiremos um animal ou um homem não pela sua forma, seus órgãos e suas funções, e tampouco como um sujeito: nós o definiremos pelos afectos de que é capaz.8 O indivíduo é uma unidade de composição. De forma que cada indivíduo é um conjunto de composições singulares; podemos chamá-los de diferenciações singulares para marcar a separação e distinção de um indivíduo em relação a outro. Neste processo de composições e decomposições, são os encontros que decidem quando há conveniência ou inconveniência entre os corpos. Assim, a ordem das causas é uma ordem de composição e decomposição, que afeta toda a natureza, e como nós recolhemos apenas os efeitos dessas composições e decomposições, sentimos alegria quando nos encontramos com um corpo ou ideia que se compõe com o nosso corpo ou mente, quando o inverso acontece sentimos tristeza. Nas palavras de Deleuze, a situação é tal que só recolhemos o que acontece ao nosso corpo ou com nossa alma, ou seja, o efeito de nossos encontros com os corpos e com as ideias. Mas o que é mesmo nossos corpos e alma nesta relação com outros corpos e almas/ideias. Ai está o limite do modo finito que somos, pois na ordem de nosso conhecimento de nossa 6
E3, Pref. Deleuze, 2002, p. 24. 8 Deleuze, 2002, p. 166. 7
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consciência, não podemos saber, devido às condições em que conhecemos as coisas ao tomarmos consciência de nós mesmos. Deleuze, ao comentar as proposições 28 e 29 da segunda parte da Ética, afirma que nestas condições estamos condenados a termos apenas ideias inadequadas, confusas e mutiladas, efeitos distintos de sua própria causa. Para o mesmo, ninguém melhor que Spinoza se insurgiu contra a tradição teológica de um adão perfeito e feliz. Ora, o primeiro homem se assemelha as crianças: ignorantes das causas e da natureza, são reduzidas à consciência do acontecimento, portanto condenadas a sofrer os efeitos cuja causa lhe escapa, escravas de qualquer coisa, angustiadas e infelizes. Spinoza no apêndice da primeira parte da Ética nos apresenta a forma como a consciência acalma esta angustia, através da tripla ilusão, a saber: ilusão das causas finais (finalidade), ilusão dos decretos livres (liberdade) e ilusão teológica. Ao que Deleuze afirma, que “a consciência é apenas um sonho de olhos abertos”, pois considerando que ela recolhe apenas os efeitos, ela vai suprir sua ignorância invertendo a ordem das coisas. Isto nos faz lembrar a passagem da Ética: É assim que uma criancinha julga apetecer livremente o leite; um rapaz irritado, a vingança; e o medroso, a fuga. Um homem embriagado julga também que é por uma livre decisão da alma que conta aquilo que, mais tarde, em estado de sobriedade, preferia ter calado.9 Não tendemos para uma coisa porque a julgamos boa, mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela. 10 De forma que o objeto que convém à minha natureza determina-me a formar uma totalidade superior que inclui ele a mim.11 O que não me convém compromete minha coesão, podendo até mesmo me levar a morte. Assim, segundo Deleuze, a consciência é transitiva, ela é como um sentimento de passagem de totalidades menos poderosas às mais, ou inversamente, portanto, ela não é propriedade do “Todo”, e nem de qualquer todo em particular, mas apenas um valor informativo, e mais ainda, de uma informação confusa e mutilada. Deleuze finaliza a apresentação dessa primeira tese prática de Spinoza com uma afirmação de Nietzsche estritamente spinozista: A grande atividade principal é inconsciente; a consciência só aparece habitualmente quando o todo se quer subordinar a um todo superior; ela é antes de tudo a consciência desse todo superior, da realidade exterior ao eu; a consciência nasce em relação ao ser do qual poderíamos ser função, é o meio de nos incorporarmos nele.12
2. Desvalorização de todos os valores 9
E3P2S Idem, 3P9S 11 Deleuze, 2002, p. 27. 12 Nietzsche, apud Deleuze, 2002, p.27. 10
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A segunda desvalorização percebida por Deleuze em Spinoza é de todos os valores e, sobretudo do bem e do mal, em proveito do bom e mau. Spinoza no TTP nos lembra de que todos os fenômenos que agrupamos sob a categoria de mal, doenças, morte, são na verdade mau encontro, indigestão, envenenamento, intoxicação, decomposição de relação. 13 Também no apêndice da primeira parte da Ética encontramos:
Chamaram Bem a tudo o que importa ao bem-estar a culto de Deus, e Mal o que é contrário a isto. É que quem não conhece a natureza das coisas nada pode afirmar a respeito delas e somente as imagina e toma a imaginação pelo entendimento, e por isso acredita firmemente que existe ordem nas coisas, ignorante como é da natureza dos seres e de si mesmo.14
Para Spinoza, só podemos entender as imperfeições se compararmos com outras mais perfeitas, ou que tenha mais essência. Assim, não existe o bem ou mal, mas o bom e mau. O bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso corpo ou parte dele, aumentando nossa potência.15 Assim, segundo Deleuze, o bom e mau tem dois sentidos; um objetivo, parcial, o que convém a nossa natureza e o que não convém; e um segundo sentido, subjetivo, modal, que qualifica dois modos de existência do homem; neste sentido Deleuze conclui que: Será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, por compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua potência... diz-seá mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as consequências, pronto a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria impotência.16 Sendo assim, a Ética de Spinoza, segundo Deleuze, pode ser considerada uma verdadeira tipologia dos modos de existência imanentes em substituição a uma moral relacionada com a existência de valores transcendentes. Desta forma, a oposição bem/mal é substituída pela diferença qualitativa dos modos de existência, o bom/mau. A ilusão dos valores aqui se confunde com a ilusão da consciência. Ora, aquele que ignora a ordem das coisas, das leis, das relações e suas composições se contenta com os efeitos, e, por não compreender, moraliza, numa obediência cega na lei. De forma que a lei moral comprometeu de tal modo a lei da natureza. Conforme Spinoza: “É por analogia que a 13
Spinoza, Deuleze, 2002, p. 28. E1, Apend. 15 Deleuze, 2002, p. 28. 16 Deleuze, 2002, p. 29. 14
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palavra lei se encontra aplicada a coisas naturais e, de maneira geral, por lei, entendemos um mandamento...”17. Deleuze também enfatiza que Nietzsche, ao comentar sobre a química diz ser preciso resguardar-se da palavra lei, pois esta tem um ranço moral.18
3. Desvalorização de todas as paixões tristes A última das teses práticas de Spinoza, aqui apresentada pelo viés da compreensão de Deleuze, é a da desvalorização de todas as paixões tristes em proveito da alegria. Aqui a denúncia de Spinoza é, segundo Deleuze, a três espécies de personagens, a saber; o homem das paixões tristes; o homem que explora essas paixões tristes, que precisa delas para estabelecer o seu poder e o homem que se entristece com a condição humana. Ou seja, a trindade moralista, o escravo, o tirano e o padre. 19 São os envergonhados da vida, homens da autodestruição, do culto à morte. O que os une é o ódio à vida, o ressentimento contra a vida. 20 Nas palavras de Spinoza, “o ódio e o remorso, eis os dois inimigos fundadores do gênero humano” 21 . Ou seja, todas as maneiras de humilhar a vida, tem suas origens no ressentimento e na má consciência, no ódio e na culpabilidade. Portanto, antes mesmo de Nietzsche, Spinoza denuncia todas as falsificações da vida, todos os valores em nome dos quais depreciamos a vida. Tanto na maneira de viver como na de pensar, o que Spinoza oferece é uma filosofia afirmativa. Para ele a vida não é uma ideia ou “uma questão de teoria”, mas uma maneira de ser. Mesmo em um mundo em que o culto à morte predomina, ele tem bastante confiança na potência de vida. Sua “filosofia da vida” consiste em denunciar tudo o que nos separa da vida, ou seja, todos os valores transcendentes, que vinculados às ilusões da consciência, se orientam contra a vida. Para Deleuze, A Ética de Spinoza traça o retrato do homem do ressentimento, para quem qualquer tipo de felicidade é uma ofensa, e faz da miséria ou da impotência sua única paixão.22
Considerações finais As três teses práticas de Spinoza aqui apresentada nos leva, segundo Deleuze, ao tríplice problema prático da Ética23: “Como alcançar um máximo de paixões alegres”, se 17
Spinoza apud Deleuze, 2002, p. 12. Deleuze, 2002, p. 12. 19 Idem, 2002, p. 31 20 Idem, 2002, p. 31 21 Spinoza apud Deleuze, 2002, p. 19. 22 Deleuze, 2002, p. 32. 23 Idem, p.34. 18
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o nosso lugar na Natureza parece condenar-nos aos maus encontros e às tristezas? “Como conseguir formar ideias adequadas”, quando a nossa condição natural precisamente parece condenar-nos a ter de nós e das coisas ideias inadequadas? E “como chegar a ser consciente de si mesmo, de Deus e das coisas”, quando a nossa consciência parece ser inseparável de ilusões? Entretanto, como Nietzsche, Spinoza não fica só a denunciar tudo que nos separa da vida, apesar das dificuldades e impedimentos para se afirmar a vida, é preciso agir, buscar o sumo bem24 se aproximar da beatitude da ação; viver cada dia sem temor e esperança. Nas palavras de Nietzsche “Amor fati”25 amor ao destino, que é seu próprio corpo, sua própria vida. A “política da grande saúde”, diz o filosofo da martelada, é o novo caminho para afirmar a vida, o que segundo Souza (2009) implica em novas perspectivas e interpretações de mundo, além de boas relações com o corpo, um dizer sim à vida, como ela é, uma verdadeira “transvaloração de todos os valores”. Para além das diferenças, estes dois afirmadores da vida nos provocam para que vivamos cada instante, cada dia, com toda intensidade que possamos fazê-lo. Para Spinoza é nas relações que a vida se compõe, num fluxo de desenvolvimento constante, onde a forma que cada “individualidade de vida” constitui uma relação complexa, nas palavras de Deleuze, “uma composição de velocidades e de lentidões num plano de imanência.” Complementa este grande leitor de Spinoza, Não é apenas uma questão de música, mas de maneira de viver: é pela velocidade e lentidão que a gente desliza entre as coisas, que a gente se conjuga com outra coisa: a gente nunca começa, nunca se recomeça tudo novamente, a gente desliza por entre, se introduz no meio, abraça-se ou se impõe ritmos (Deleuze. 2002, p.25).
Referências bibliográficas DELEUZE, Gilles. Espinosa – Filosofia prática. Tradução: Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002. NIETZSCHE, A gaia ciência. Livro IV. & 276. Trad. Paulo César de Souza. 2001, p. 187188. NIETZSCHE, Carta Sobre Espinosa (trad. Homero Santiago), Cadernos Espinosanos, 2007, nº 16. 24
Para Spinoza o Sumo Bem “...é chegar ao ponto de gozar com outros indivíduos, se possível dessa natureza...a saber, o conhecimento da união que a mente tem com toda a Natureza. (Spinoza, Tratado da Correção do Intelecto, 1991, p. 45) 25 Para o Ano Novo, - Eu ainda vivo, eu ainda penso: ainda tenho de viver, pois ainda tenho de pensar...Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas; -assim me tornarei um daqueles que fazer belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém diz sim! (Nietzsche apud Souza, 2009, p.28)
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SOUZA, Mauro Araujo de. Nietzsche: viver intensamente, tornar o que se é. São Paulo: Paulus, 2009. SPINOZA, B. Ética. Edição bilíngue Latim-Português. Tradução e notas de Tomaz Tadeu. 3 Ed. - Belo Horizonte. Autentica Editora, 2010. _________. Tratado Teológico-Político. Tradução e Introdução e Notas de Diogo Pires Aurélio. – São Paulo: Martins Fontes, 2003. _________. Pensamentos metafísicos; Tratado da correção do intelecto; Ética. Seleção de textos Marilena de Souza Chauí; tradução Marilena de Souza Chauí...[et al.] São Paulo: Nova Cultural, 1991.
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ASSIM FALOU ESTAMIRA: ARTE E HOSPITALIDADE EM TEMPOS DE EXCEÇÃO Beatriz Costa Barreto1 Marília Romero Campos2
Resumo: Considerando a importância e atualidade do pensamento em torno da questão do estrangeiro e sobre as formas de inospitalidade que explodem no mundo contemporâneo, o presente estudo tem como objetivo refletir, através da análise do documentário Estamira, dirigido por Marcos Prado e produzido por José Padilha, sobre essa temática e sobre a arte como um espaço de hospitalidade e de aparição, que confere visibilidade ao outro e coloca em questão como esse outro aparece e como respondemos à sua aparição. Adota-se uma postura de engajamento crítico e afetivo, partindo do pressuposto de que não se pode tiranizar o objeto e nem esgotar suas possibilidades de interpretação, enquadrando-lhe em perspectivas teóricas previamente estabelecidas. Não se trata, portanto, de tomar o documentário a partir de uma perspectiva meramente instrumental e nem de proceder a uma análise psicologizante das
1
Pós-graduanda pelo Programa de Pós-Graduação em Semiótica aplicada à literatura e áreas afins pela Universidade Estadual do Ceará - UECE. Email: biaacostabarreto@gmail.com 2
Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Email: mariliacampos@unifor.br
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motivações do diretor e da narrativa da protagonista, resguardaremos o caráter inapreensível, inacabado, aberto e inaudito dessas motivações e da narrativa. Palavras-chave: Estamira; Arte; Hospitalidade; Cidade Abstract: Considering the importance and timeliness of the thought about the issue of the foreigner and about the forms of inhospitality that explode in the contemporary world, the present study aims to reflect, through the analysis of the documentary Estamira directed by Marcos Prado and produced by José Padilha, on This theme and about art as a space of hospitality and apparition, which gives visibility to the other and calls into question how this other appears and how we respond to his apparition. A posture of critical and affective engagement is adopted, assuming that the object can not be tyrannized and its possibilities of interpretation can not be exhausted, according to previously established theoretical perspectives. It is not, therefore, a question of taking the documentary from a purely instrumental perspective and of proceeding to a psychological analysis of the director's motivations and the protagonist's narrative, we will guard the unapprehensible, unfinished, open and unprecedented character of these motivations and narrative . Keywords: Estamira; Art: Hospitality; City
Introdução
O
desejo de cidade parte de uma necessidade de pertença que se produz a partir da condição de desamparo do homem. Em termos freudianos, o desamparo, proveniente da prematuridade e do inacabamento biológico do homem ao nascer, torna-se uma marca definitiva da sua condição. Essa condição faz com que o homem busque abrigo através das cidades que se organizam em favor de um ecossistema próprio: a cultura (FREUD, 1930). A cidade, como habitat especifico da cultura, tem por função hospedar o homem, atuar como um abrigo. O homem vivencia a cidade como uma construção espacial e social, e principalmente, como uma experiência de habitar o mundo. A cidade se apresenta como um texto, e compreendê-la, segundo Benjamin (2006), é se colocar diante de um caleidoscópio, de onde não se veem só belas imagens. A percepção da cidade implica, não somente, a interpretação dos signos explícitos, mas, sobretudo, a atenção “aos dejetos, ao efêmero, ao desprezado.”3 Benjamin (2006) aponta o surgimento da cidade no século XIX, uma época de grandes transformações marcada por um processo de intensa industrialização e mercantilização, como um produto da modernidade capitalista. Segundo Foucault (2005), o capitalismo se caracteriza pela instituição de técnicas de poder definidas como “disciplinares” e “biopolíticas”. O autor exemplifica esses mecanismos “disciplinares” e 3
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2006,pp.56
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“reguladores” na “cidade operária” do século XIX. Os mecanismos disciplinares funcionam como uma “espécie de controle policial espontâneo exercido através da própria disposição espacial da cidade” e da “distribuição arquitetônica das famílias – cada uma em uma casa – e dos sujeitos – cada um em um quarto –”. Na sociedade atual, o sujeito não é “adestrado”, somente em espaços fechados como escolas, asilos, hospitais psiquiátricos, fábricas e prisões, mas em um espaço aberto através de mecanismos biopolíticos e reguladores, que se dirigem à população enquanto coletivo e permitem ou induzem determinados comportamentos. Segundo Fonseca (2011), esses mecanismos de regulação da vida, entendidos como “uma segunda forma de acomodação dos mecanismos de poder à realidade histórica do presente”, consistirão nos ajustes entre diferentes distribuições de normalidade, relativas a cada um dos aspectos que compõem a vida dos grupos humanos, de tal modo a fazer valer as distribuições “mais favoráveis” em relação àquelas que seriam “mais desfavoráveis”. Para Lazzarato (1999), o dinheiro é um dos principais mecanismos de controle e regulação da sociedade capitalista. Como bem afirma Deleuze (1992) “o homem moderno não é mais o homem enfermé, mas o homem endividado4”. Em uma sociedade na qual o sujeito é reconhecido como consumidor, é o capital que assume o poder de permitir e integrar ou proibir e excluir. Não cumprir o dever de consumir ativamente e, assim, não seguir as regras do capital, é condenar-se à invisibilidade, a uma condição de estrangeiridade, é fazer parte do aglomerado de pessoas sem valor de mercado, o lixo humano, o refugo, as sobras da globalização. Na cidade pós-moderna, espaço ordenado e governado pela norma, não há lei para o excluído, que só se inclui na lei por meio de sua própria retirada. A exclusão mantém certos grupos sociais fora do domínio governado pela norma. Esses grupos sociais ocupam os espaços inóspitos da cidade pós-moderna, áreas pobres que se tornam verdadeiros territórios de exceção, destituídos dos direitos mais fundamentais, como o acesso à moradia, à saúde e à segurança (BAUMAN, 2008). A tradição dos oprimidos nos ensina que o Estado de Exceção que vivemos é, na verdade, a regra geral. No Estado de Exceção vigora uma força de lei sem lei, abrindo espaço para que as medidas excepcionais tornem-se regra. Para Lazzarato (1999), esse poder de normalização moderno pode exercitar o antigo direito soberano de decidir sobre a vida e a morte. Ainda que não se trate de um homicídio direto, o Estado de Exceção expõe a morte ou multiplica o risco de morte, produzindo à exclusão política, a expulsão, a rejeição. (FOUCAULT, 1999)
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“Sua subjetividade se configura sobre a base da dívida. É um homem que sobrevive se endividando, e vive sob o peso da responsabilidade em relação à dívida” (NEGRI E HARD, 2012, p.22)
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Estamira O projeto “Estamira” teve início em 1994, quando o seu idealizador – o diretor, escritor, fotógrafo e cineasta Marcos Prado -, conheceu o Aterro Sanitário do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. O aterro, nas palavras de Marcos Prado:
[...] Além do mar de lixo, do cheiro fétido e putrefato do ar [...] o que mais me chocou foram as dezenas de homens, mulheres e crianças que ali se encontravam, misturados ao caos daquele cenário de abandono e desolação [...] (PRADO, 2004.p.4).
Fonte: http://www.zazen.com.br/estamira2/
A primeira visita de Marcos Prado ao aterro resultou em um estudo fotográfico. Após seis anos, em uma nova visita, o diretor conheceu Estamira:
[...] Esbarrei-me com uma senhora sentada em seu acampamento, contemplando a imagem de Gramacho. Aproximei-me e pedi-lhe para tirar o seu retrato. Ela me olhou nos olhos consentindo e disse para me sentar a seu lado [...] Estamira era seu nome. Contou que morava num castelo todo
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enfeitado com objetos encontrados no lixo e que tinha uma missão na vida: revelar e cobrar a verdade [...] (PRADO, 2004, p.4).
Fonte: http://www.zazen.com.br/estamira2/
Estamira torna-se personagem do livro de Marcos Prado sobre o Jardim Gramacho, e, posteriormente, inspira a produção do documentário que leva o seu nome e do qual é protagonista.
Fonte: http://www.zazen.com.br/estamira2/#
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O documentário Estamira, lançado em 2006, com direção de Marcos Prado e a produção de José Padilha, dá voz a uma mulher, negra, pobre, psicótica e coletora do lixão de Gramacho que narra a sua história de vida marcada pela dura realidade de uma exclusão que, apesar de afetá-la de modo particular, diz respeito a todos aqueles “sem terra, sem teto e sem destino”5 que transitam “[...] lá, cá, em tudo quanto é lugar [...]” (PRADO, 2006).
[....] Eu sou Estamira. Eu tô lá, eu tô cá, eu tô em tudo quanto é lugar [...] Eu sou Estamira, aqui, ali, lá, no inferno, no céu, no caralho, em tudo quanto é lugar [...] Eu sou Estamira, visível e invisível, eu tenho muitos sobrenomes [...] (PRADO, 2006)
Estamira, através de seu discurso, ganha visibilidade e nos torna sensíveis à existência inóspita dos chamados “párias da modernidade”, os inadaptados, os expulsos, os marginalizados, submetidos a uma condição de invisibilidade e de estrangeiridade. (BAUMAN, 2008). Estamiraé o “fora” do discurso dominante – capitalista, patriarcal, racional, científico e normativo - e a sua existência aponta para tudo aquilo que esse discurso pretende rechaçar: a miséria, a fome, a loucura e o lixo. Estamira faz parte do conglomerado de pessoas sem valor de mercado, excluído do direito à existência política e social, o conglomerado que habita o inóspito, o transbordo da cidade pós-moderna.
[...] O além do além é um transbordo. Você sabe o que é um transbordo? Bom...é toda coisa que enche, transborda [...] Assim como as reservas, tem as reservas nas beiradas, ninguém pode ir lá, e aqueles astros horrorosos, irrecuperável, vai tudo pra lá, não sai de lá mais nunca. Para esse lugar que eu to falando, o além do além, lá prás beiradas, muito longe, muito longe, muito longe [...] (PRADO, 2006)
A fala de Estamira é a fala rodeada pelo horror do vazio, a fala da fronteira, da beira, da borda, dos confins: “[...] eu fui à beira do mundo, todos precisam de mim [...]”, anuncia ela, que assume para si a missão de “[...] revelar a verdade, somente a verdade. [...] Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? [...]”6. Estamira não se 5
DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2015,pp.123
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PRADO, M; PADILHA, J. Estamira. [Filme-Vídeo]. Produção de José Padilha, direção de Marcos Prado. Rio de Janeiro, 2006. Europa Filmes.1 DVD, 116min.col.con.
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apoia em nada porque não há no que se apoiar e, sob um céu vazio de Deus, recusa o que Nietzsche (1995) chama de a “mentira do ideal” (NIETZSCHE, 1995, p. 18).
[...] Quando anda com Deus dia e noite, noite e dia na boca, e ainda mais com deboche, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Ah! Não dá [...] (PRADO, 2006)
Estamira recusa todas as “doutrinas do cansaço e da renúncia” (NIETZSCHE, 2011,p.45) e estabelece críticas contundentes ao poder que, através de mecanismos anônimos e rizomáticos, toma de assalto a vida e coloniza todos os aspectos da existência buscando torná-la dócil e produtiva. Com a figura do “trocadilo”, - “[...]o assaltante do poder, a esperteza ao contrário daquele que joga a pedra e esconde a mão[...]” 7 -, Estamira sintetiza tudo que nela desperta revolta - Deus, o capital, a psiquiatria – e denuncia as dobras, as sobras, as sombras e o estado de exceção contemporâneo.
[...] Sabe o que ele fez? Mentir pros homens, seduzir os homens, cegar os homens, incentivar os homens e depois jogar no abismo [...] Foi isto que ele fez. Por isso que eu to na carne, sabe por que? Pra desmascarar ele, com a quadrilha dele todinha [...] Trocadilo, safado, canalha, assaltante de poder, manjado, desmascarado [...] (PRADO, 2006)
O biopoder, na contemporaneidade, alimenta-se da impotência e das paixões tristes, produzindo sobreviventes, sujeitos na fronteira entre a humanidade e a desumanidade, entre a vida e a morte. Mas, como afirma Pelbart (2008), “ao biopoder responde a biopotência, ao poder sobre a vida responde a potência da vida” 8. Estamira apresenta essa potência da vida através de seu discurso e “fala do corpo e quer ainda o corpo, mesmo quando sonha e esvoeja com as asas partidas.”9
7
PRADO, Marcos; PADILHA, José. Estamira. [Filme-Vídeo]. Produção de José Padilha, direção de Marcos Prado. Rio de Janeiro, 2006. Europa Filmes.1 DVD, 116min.col.con. 8
PELBART, Peter. Vida e morte em contexto de dominação biopolítica. Disponível <http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/pelbartdominacaobiopolitica.pdf>. Acesso em: 12.Nov.2016 9
em:
NIETZSCHE, Frederich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das letras, 2011, pp. 33
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[...] Vocês é comum, mas eu não sou comum não. Só o formato é comum. Vou explicar tudinho pra vocês agora: Cegaram o cérebro, o gravador sanguíneo, e o meu eles não conseguiram, porque eu sou o formato gente, carne, sangue, formato homem, par, eles não conseguiram [...] Estamira carne, Estamira invisível, vê e sente as coisas todinhas. Por isso que eu sou Estamira tem vez que eu fico pensando: mas eu não sou um robô sanguíneo, eu não sou um robô [...] Bem, eu sou perturbada, mas lúcida, e sei distinguir a perturbação [...] Mas também pudera, eu sou Estamira [...] (PRADO, 2006)
A loucura de Estamira aparece como um alargamento da experiência do corpo, dos modos de sentir e de pensar. “Essa experiência-limite, representa como que uma nova origem para o pensamento” (BLANCHOT, 2007, p.34). Como afirma Nietzsche (2011), “é preciso ter (ainda) caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante”. Como estrangeira, habitante do inóspito, dos confins, do “transbordo”, Estamira nos propõe uma questão importante acerca da fraternidade e do laço social que, segundo Blanchot (2007), “não se deve pôr porta afora”: “não há terceiro termo: ou somos hóspedes benévolos ou degoladores” 10
[...] O homem não pode ser incivilizado. Todos os homens têm que ser iguais. Tem que ser comunista. Comunismo é igualdade. [...] Eu podia ser da cor que fosse. Eu, formato Homem, par, mas eu sou Estamira, mas eu não admito, eu não gosto que ninguém ofende cores, nem formosura. O que importa, bonito, é o que fez e o que faz. Feio é o que fez e o que faz [...] A incivilização é que é feio. [...] Me trata como eu trato, que eu te trato. Me trata com o teu trato, que eu te devolvo o teu trato. E faço questão de devolver em triplo [...] (PRADO, 2006)
A fraternidade, nos dias atuais, apresenta-se como uma exigência ética, um antidoto face aos imperativos da sociedade de consumo e às limitações impostas pelo Estado de Exceção. Uma ética – ou um “direito relacional”, como propõe Foucault – que pressupõe que o sujeito seja capaz de reconhecer a sua própria precariedade e seja capaz de estabelecer com o outro relações de abertura, confiança, solidariedade e 10
BLANCHOT, Maurice. A conversa-infinita 2: a experiência limite. São Paulo: Escuta, 2007.
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reciprocidade: “[...] Me trata como eu trato, que eu te trato. Me trata com o teu trato, que eu te devolvo o teu trato. E faço questão de devolver em triplo [...]”11 A arte tem atuado como um espaço de hospitalidade e de aparição, conferindo visibilidade ao outro e colocando em questão como esse outro aparece e como respondemos à sua aparição - questão que é de ordem estética, ética e política e que nos remete a uma reflexão acerca de como viver juntos em um espaço heterogêneo. Nesse sentido, o seu grande desafio tem sido o de acolher o outro, tornando a sua presença indiscutivelmente existente, com o cuidado de não fazê-lo desaparecer em sua diferença e de não tomá-lo como um objeto de compreensão, mas como um enigma, como alguém que nunca poderá ser totalmente conhecido e nem reduzido a um igual. Para tanto, algumas produções artísticas têm rompido com as imagens triunfalistas e têm colocado em cena imagens críticas, que desconstroem as fantasias narcisistas levantando a questão: Por que a história do outro/estrangeiro - marcada pela invisibilidade, a violência e a exclusão – é a história de todos nós? (DEUTSCH, 2009).
REFERÊNCIAS: BAUMAN, Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. BLANCHOT, Maurice. A conversa-infinita 2: a experiência limite. São Paulo: Escuta, 2007. DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992 DUNKER, C I L. Mal- estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2015. DEUTSCH, Rosalyn. A arte de ser testemunha na esfera pública dos tempos de guerra. Revista Concinnitas, Rio de Janeiro, v.2, n.15, p.175-183,dez.2009 FREUD, S. O Mal- estar na civilização. São Paulo: Peguin Classics Companhia das Letras, 2011. FONSECA, M.A. A época da norma. Disponível <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/a-epoca-da-norma/>. Acesso 10.Nov.2016.
em: em:
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PRADO, M; PADILHA, J. Estamira. [Filme-Vídeo]. Produção de José Padilha, direção de Marcos Prado. Rio de Janeiro, 2006. Europa Filmes.1 DVD, 116min.col.con.
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FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. LAZZARATO, M. Para uma definição do conceito de “bio-política”. Disponível em: <http://uninomade.net/wpcontent/files_mf/111712120656Para%20uma%20defini%C 3%A7%C3%A3o%20do%20conceito%20de%20biopol%C3%ADtica%20%E2%80%93% 20Maurizio%20Lazzarato.pdf>. Acesso em: 12.Nov.2016 NEGRI, A; HARDT, M. Declaração: isto não é um manifesto. Rio de Janeiro: N-1 Edições, 2012. NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das letras, 2011. NIETZSCHE, F. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das letras, 1995. PRADO, M; PADILHA, J. Estamira. [Filme-Vídeo]. Produção de José Padilha, direção de Marcos Prado. Rio de Janeiro, 2006. Europa Filmes.1 DVD, 116min.col.con. PELBART, P. Vida e morte em contexto de dominação biopolítica. Disponível em: <http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/pelbartdominacaobiopolitica.pdf> . Acesso em: 12.Nov.2016
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Foucault als Pragmatiker? Zum Verhältnis von pragmatischer Sprachanalyse und diskursiver Macht, pp. 01 - 27
FOUCAULT ALS PRAGMATIKER? ZUM VERHÄLTNIS VON PRAGMATISCHER SPRACHANALYSE UND DISKURSIVER MACHT Thiago Mota Abstract: Analyzing very precisely the way in which the theory of statement formations formulated by Foucault is located with respect to the pragmatist conceptions of language developed in the tradition of analytic philosophy, the article shows that The Archaeology of Knowledge can be characterized as a descriptive and anti-normativist approach to the relation between language and power. In other words, as analytical perspective, the archeology means the decision not to grasp the facts of language from the point of view of their formal properties, logical structure or, generally, transcendent foundation. From the Foucauldian perspective, statements are material events inscribed in a historic practice of struggle, i.e. in the power relations. Keywords: Archaeology. Event. Power. Pragmatics. Statement. Dozent für Philosophie und Doktorand in der Bundesuniversität von Ceará – UFC (Brasilien). Doktorand in der Europäische Graduierte Schule – EGS (Schweiz).
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Foucault als Pragmatiker? Zum Verhältnis von pragmatischer Sprachanalyse und diskursiver Macht, pp. 64 - 82
Resumo: Analisando pormenorizadamente a maneira como a teoria das formações enunciativas elaborada por Foucault situa-se em relação às concepções pragmáticas de linguagem desenvolvidas na tradição analítica, o artigo mostra que A arqueologia do saber pode ser caracterizada como uma abordagem descritiva e anti-normativista da relação entre discurso e poder. Em outras palavras, enquanto perspectiva de análise, a arqueologia significa a decisão de não tomar os fatos linguísticos do ponto de vista de suas propriedades formais, nem de sua estrutura lógica, nem de modo geral de sua fundação transcendental. Da perspectiva foucaultiana, enunciados são eventos materiais inscritos numa prática histórica de lutas, isto é, nas relações de poder. Palavras-chave: Arqueologia. Enunciado. Evento. Poder. Pragmática.
Einführung
I
m Vorwort der deutschen Ausgabe von Die Ordnung der Dinge schreibt Foucault: „Mir scheint, daß die historische Analyse des wissenschaftlichen Diskurses letzten Endes Gegenstand nicht einer Theorie des wissenden Subjekts, sondern vielmehr einer Theorie diskursiver Praxis ist“1. Nun kann eine Theorie der diskursiven Praxis eine Pragmatik genannt werden. In der sprachanalytische Überlieferung, mindestens seit Peirce und besonders wegen des Einflusses des späten Wittgensteins, wird die Theorie der sprachlichen Praxis, bzw. des Gebrauchs der Sprache als sprachlicher Pragmatismus oder einfach als Pragmatik bezeichnet. Die allgemeine Idee ist: der Gebrauch der Sprache ist das, was die Bedeutung bestimmt2, d.h. der pragmatische Aspekt, die Tätigkeit, das Handeln (vielmehr als der logische syntaktische-semantische Aspekt) ist Kriterium, um die Frage nach der Bedeutung der Sprache zu denken. Genügt dann so ein Zitat wie das obere, um Foucault als Pragmatiker zu betrachten? Oder wäre eher diese Bezeichnung noch ein Missverständnis wie die schon berühmte unglückliche Klassifikation Foucaults als Vertreter eines Strukturalismus? Im Folgenden möchte ich die Hypothese der Betrachtung Foucaults als Pragmatiker bewerten und nicht allein weil diese nützliche in der Systematisierung des zeitgenössischen Denkens wäre, sondern weil die Entgegensetzung von foucaultschem Denken und dem pragmatischen nützlich ist, meiner Meinung nach um zu verstehen, worum es im Denken Foucaults geht. Unzweifelhaft ist ein günstiger Platz um die Leitfrage ist Foucault ein Pragmatiker? abzuleiten das dritte Kapitel der Archäologie des Wissens (1969), „Die Aussage und das Archiv“. Das allgemeine Ziel des Buches ist die Erläuterung der
1 2
M. Foucault: Die Ordnung der Dinge, Frankfurt a. M. 1971, S. 15. Vgl. L. Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, Frankfurt a. M. 1960, § 43, S. 262.
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Foucault als Pragmatiker? Zum Verhältnis von pragmatischer Sprachanalyse und diskursiver Macht, pp. 64 - 82
archäologischen Methode3, die Erklärung der Theorie der diskursiven Formationen, bzw. die Darstellung der bisherigen implizierten Voraussetzungen der geschichtlichen Untersuchungen, wie die von Wahnsinn und Gesellschaft (1961), von Die Geburt der Klinik (1963) und vor allem von Die Ordnung der Dinge (1966). Und diese Aufgabe besteht aus der Äußerung einer reflexiven Frage: wovon spricht und was will eigentlich der Autor Michel Foucault?4 Im Text „Die Aussage und das Archiv“ wird diese reflexive Frage im Bezug auf das Problem der Definition von Aussage (énoncé) und von Diskurs betrachtet. Hier ist der erste Zweck Foucaults die Schwierigkeiten und Möglichkeiten dieser Definitionen zu skizzieren, und in seiner Ausführung wird eine mehr oder weniger stille Auseinandersetzung mit einigen pragmatischen sprachanalytischen Philosophen festgestellt.
1. Das Problem der Definition der Aussage: Proposition, Satz oder Sprechakt? Woraus besteht eigentlich die Aussage? Auf dem ersten Blick erscheint die Aussage als ein letztes, unzerlegbares, individualisierbares „Atom“ des Diskurses, die elementare konstitutive Einheit der Sprache. Als solche wird die Aussage als Gegenstand von vor allem drei Disziplinen betrachtet: der Logik, die die Aussage als Proposition erfasst; der Grammatik, die sie als Satz begreift; und der pragmatischen Sprachanalyse, die sie als Sprechakt versteht. Für Foucault sind alle diese Definitionen aber ungenügend. Zunächst zeigt er, dass die Aussage nicht unbedingt eine logisch-formale propositionelle Struktur hat, die einmal für alle bestimmt werden könnte. Einerseits können zwei oder mehrere Aussagen eine gleiche propositionale Struktur enthalten, z.B. „niemand hat gehört“ und „es stimmt, dass niemand gehört hat“ sind vom logischen Standpunkt eine und dieselbe Proposition, da sie durch dieselben Konstruktionsregeln verfasst sind. Aber sie sind zugleich zwei verschiedene Aussagen, deren Formulierungen nicht äquivalent sind. Andererseits kann die gleiche Aussage zwei oder mehreren Propositionen entsprechen. Das Beispiel dazu ist sehr bekannt unter den Logikern: die Aussage „Der gegenwärtige König von Frankreich ist kahl“ ist eine vermeintliche Einheit, hinter der verschiedenen Propositionen versteckt sind5. Dass die Aussagen den Propositionen nicht absolut entsprechen können, ist ein Aspekt der Kritik Foucaults an 3
Übrigens man könnte dieses Buch den foucaltische Discours de la méthode nennen. Vgl. P. Sarasin: Michel Foucault zur Einführung, Hamburg 2005, S. 103. 4
Vgl. M. Foucault: Archäologie des Wissens, Frankfurt a. M. 1973, S. 115 u. auch „Einleitung“, S. 7 f..
5
Nach der Lehre von B. Russell versteckt die Aussage (A) „Der gegenwärtige König von Frankreich ist kahl“ die analysierte Form (A1) „Eine und nur eine Entität ist der gegenwärtige König von Frankreich und diese ist kahl“ und die noch tiefere Form (A2) „Es gibt ein x, so dass x gegenwärtig ein König von Frankreich ist und dass für alle y, für die gilt, dass y gegenwärtig ein König von Frankreich ist, gilt, dass y identisch mit x, und x ist kahl“. Vgl. A. Newen, Analytische Philosophie zur Einführung, Hamburg 2005, S. 68.
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dem, was man Propositionalismus nennen könnte, d.h. der Standpunkt, demgemäß die logische strukturierte Proposition die Grundform der Sprache, bzw. aller möglichen Aussagen wäre. So eine Kritik kann man in Wörter wie die folgende finden: „die Kriterien, die die Definition der Identität einer Proposition […] gestatten, gelten nicht für die Beschreibung der besonderen Einheit einer Aussage“6. Wäre dann jede Aussage ein Satz, wie die grammatische Analyse behauptet? Es ist richtig, dass wo es einen Satz gibt, es auch eine Aussage gibt. Das Umgekehrte ist aber falsch, da es Aussagen gibt, die keine „grammatische akzeptierbaren Sätze“ sind, die der Form Subjekt-Kopula-Prädikat nicht folgen: Einwortsätze wie „Hallo!“, „Genau.“ oder „Sie!“ sind Beispiele dafür. Aber man kann Beispiele auch außerhalb der alltäglichen Redewendungen finden: botanische klassifikatorische Tabellen, genealogische Bäume, Handelsbilanzen von Rechnungsbüchern usw. sind zweifellos keine Sätze, aber sie sind Aussagen (oder was wären sie denn?). Übrigens werden gewisse angeordnete Reihen von Wörter, die keinen Satz verfassen, in Grammatikbüchern gefunden: z.B. die Konjugation des Verbs amare (amo, amas, amat usf.) in einer lateinischen Grammatik. Die Beispiele der nicht-Entsprechung von Aussagen und Sätzen führen zum Schluss, dass umgekehrt des Satzbegriffs, der der Aussage nicht einfach bestimmt werden kann und folglich ist es nicht möglich, die Aussage durch ihre grammatische Merkmale zu definieren. Wahrscheinlich die beste Alternative wäre, die Aussage als das zu betrachten, was die pragmatisch-analytischen Philosophen Sprechakt nennen („speech act“, nach den Angloamerikaner). Hier ist eine Weitererklärung nötig: ohne Namen zu erwähnen, bezieht sich Foucault auf John Austin und seine Theorie der Sprechakte7. Austin begreift die Äußerung einer Aussage als einen Akt, bzw. als „Sprechakte“ oder einfach als „Performanz“. Die allgemeine Idee lautet, dass man wenn man etwas sagt, gleichzeitig etwas tut: „Mit bestimmten Wörtern wird auch eine Handlung vollzogen, z.B. durch das Wort ‚Ja‘ bei der Eheschließung“8. Darüberhinaus führt Austin die folgenden Unterscheidungen ein: erstens unterscheidet er zwischen Behauptungen, die aus der deskriptiven oder konstativen Funktion der Sprache bestehen, und performativen Äußerungen, die die performative Funktion enthalten, d.h. die eine Handlung zur gleichen Zeit der Formulierung vollziehen. Zweitens unterscheidet er den lokutionären Akt, bzw. das einfache Aussprechen; der illokutionäre, mit dem Tätigkeiten (Versprechung, Warnung, Drohung usw.) verbunden werden; und der perlokutionäre, 6
M. Foucault, Archäologie des Wissens, S. 118.
7
Im Schriften berichtet Foucault über die Lektüre von „Wittgenstein und d[en] ‚englische Analytikern‘, die ihm ‚große Freude machen‘, denn sie ‚zeigen, dass es möglich ist, Aussagen nichtlinguistisch zu analysieren. Aussage in ihrer Funktionsweise zu behandeln‘. (M. Foucault: Schriften, Bd. 1, S. 45, apud P. Sarasin: Michel Foucault zur Eingührung, S. 100). 8
J. Austin: Zur Theorie der Sprechakte (How to do things with words), Stuttgart 1979.
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der sich auf den Erfolg oder die Wirkung eines Sprechens bezieht. Daher wird die Sprache nicht lediglich in ihrem logisch-formalen Aspekt, sondern vor allem als ein Ensemble von Handlung und Praktiken betrachtet: sie wird als sprachliche Praxis pragmatisch definiert. Insofern die Analyse der Sprechakt eine Deszentrierung der Proposition bedeutet, ist sie zugleich eine Kritik des Propositionalismus (die Proposition ist nicht die Grundform der Sprache) und des Repräsentationalismus (die konstative ist weder die einzige noch die wesentliche Funktion der Sprache). Darin besteht zu einem großen Teil der Grund des Interesses Foucaults für den begrifflichen Apparat der Sprechakttheorie9. Jedoch ist das Problem diese Theorie die Feststellung einer exakten Reziprozität zwischen der Aussage und dem Formulierungsakt. Foucault zufolge kann man keine entscheidende Prüfung dazu finden. Oft sind mehrere Aussagen notwendig, um einen Sprechakt zu bewirken: z.B. Bitten, Vertrage, Versprechen, Demonstrationen verlangen unterschiedlichen Formulierungen oder getrennten Sätze, d.h. vielfältige Aussagen. Folglich ist es nicht möglich zu sagen, dass es eine bi-univoke Beziehung zwischen der Gesamtheit der Aussagen und der der illokutionären Akte gibt. Die Modelle der Logik, der Grammatik und der Sprachanalyse zeigen sich also als nutzlos, um die Aussage zu definieren: „Man findet Aussagen ohne legitime propositionelle Struktur; man findet Aussagen dort, wo man keinen Satz erkennen kann; man findet mehr Aussagen, als man Sprechakte isolieren kann“10. Außerdem scheint es, dass die Aussage keinen eigenen Charakter hat, die eine geeignete Definition ermöglichen werden könne. Eigentlich kann man einfach sagen, dass es Aussagen gibt, weil es Zeichen gibt. Damit bezieht Foucault sich auf der risikoreichen Frage einer möglichen Ontologie des Aussageereignisses: „Die Schwelle der Aussage wäre die Schwelle der Existenz der Zeichen“11. Aber eine solche Behauptung ist noch nicht befriedigen, denn „was will man sagen, wenn man sagt, daß es Zeichen gibt und daß es genügt, daß es Zeichen gibt, damit es eine Aussage gibt? Welchen besonderen Status will man diesem ‚es gibt‘ einräumen?“12. Die Definition der Aussage setzt also die Frage nach ihrer besondere Seinsweise voraus. Tatsächlich enthält die Aussage weder dieselbe Existenzweise einer Einheit wie eine Proposition, eines Satzes oder eines Sprechaktes, noch hat sie die Grenzen und die 9
Foucault ist mit der pragmatischen Kritik am Repräsentationalismus in Aussagetheorie einverstanden, aber zugleich versteht dass, die Pragmatik bleibt noch mit einem sprachlichen Subjektbegriff verbunden: „Die Aussage ist nicht die direkte Projektion einer determinierten Situation oder eine Menge von Repräsentationen auf die Ebene der Sprache. Sie ist nicht einfach die Anwendung einer bestimmten Zahl von Elementen und sprachlichen Regeln durch ein sprechendes Subjekt“. (M. Foucault, Archäologie des Wissens, S. 144). 10
Ebd., S. 122.
11
Ebd., S. 123.
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Ebd..
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Unabhängigkeit eines materiellen Gegenstands. Sie ist nicht eine Struktur. Allerdings hat sie keine Einheit an sich, weil sie vielmehr eine räumlich-zeitlich bestimmte Funktion ist, oder sogar:
„sie ist eine Existenzfunktion, die die Zeichen eigen und von der ausgehend man durch die Analyse oder die Anschauung entscheiden kann, ob sie einen ‚Sinn ergeben‘ oder nicht, gemäß welcher Regel sie aufeinanderfolgen und nebeneinanderstehen, wovon sie ein Zeichen sind und welche Art von Akt sich durch ihre (mündliche oder schriftliche) Formulierung bewirkt finden. […] eine Funktion, die ein Gebiet von Strukturen und möglichen Einheiten durchkreuzt und sie mit konkreten Inhalten in der Zeit und im Raum erscheinen läßt“13.
Demzufolge geht es darum, die Aussagefunktion in ihre besondere Existenzweise zu beschreiben.
2. Die Spezifizität der Aussagefunktion: Bedingungen der Möglichkeit, Kontext und Materialität Die eigentümlichen Züge der Aussagefunktion sind vier: (a) jede Aussage hat eine spezifische Beziehung mit einem „Korrelat“, das als ein Gebiet von Bedingungen der Möglichkeit definiert wird; (b) die Aussage unterhält eine bestimmte Beziehung mit einem Subjekt, das als ein determinierter und leerer Platz erfasst wird; (c) ohne Existenz eines verknüpften Gebiets oder Kontexts kann die Aussagefunktion nicht ausgeübt werden; und (d) die Aussage wird von ihrer materiellen Existenz charakterisiert. (a) Jede Aussage hat ein spezifisches Verhältnis zu „etwas anderem“, zu einer „Nicht-Aussage“, die durch vielfältige Ansätze bereits erforscht wurde. Nach Foucault jedoch sind die geläufigen Unterscheidungen zwischen dem Signifikat und dem Signifikant, der Proposition und dem Referenten, dem Satz und dem Sinn usw. nicht befriedigend, um das besondere Verhältnis der Aussage zu dem, was geäußert wird, zu verstehen. Die Schwierigkeit beruht auf dem unwiederholbaren Charakter des Aussageereignisses: was eine Aussage sagt, sagt sie nur einmal, eine Aussage kann nicht wiedererscheinen. Foucault schreibt: „wenn unter diesen Bedingungen eine identische 13
Ebd., S. 126.
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Formulierung wiederauftaucht, sind es immer dieselben Wörter, die benutzt werden, sind es substantiell dieselben Namen, ist es insgesamt derselbe Satz, aber es ist nicht zwangsläufig dieselbe Aussage“14. Jedenfalls wird also ein einzigartiges Verhältnis vollzogen. Tatsächlich ist die Aussage in ihrer besonderen Existenzweise kein Signifikant, Proposition oder Satz, und ihr Korrelat ist folglich kein Signifikat, Referent oder Sinn. Für Foucault ist das Korrelat der Aussage weder das Subjekt noch das Objekt, weder ein Zustand noch eine Relation, sondern „eine Menge von Gebieten, wo solche Objekte erscheinen können und wo solche Relationen bestimmt werden können […] Eine Aussage hat vor sich (und auf gewisse Weise als tête-à-tête) kein Korrelat – oder das Fehlen eines Korrelats“15. Für Foucault ist das, worauf die Aussage sich bezieht, eigentlich ein Ensemble von „Möglichkeitsgesetzen, von Existenzregeln für die Gegenstände, die darin genannt, bezeichnet oder beschreiben werden, für Relationen, die darin bekräftigt oder verneint werden“16. Diese „Möglichkeitsgesetze“, sozusagen die „Bedingungen der Möglichkeit der Erscheinung von Gegenständen“, bilden Gebiete, die die spezifische Aussageebene der Formulierung von der grammatischen und von der logischen Ebene trennt. Da ist das Arbeitsfeld der foucaultsche Aussageanalyse. (b) Also diese Aussagefunktion, die durch die Analyse des Gebiets der Möglichkeitsgesetze entdeckt wird, soll nicht als eine Funktion der Einheit der Subjektivität gedacht werden. So zieht Foucault in Betracht sowohl der klassische Transzendentalismus, als auch seine pragmatische Version, die auf der sprachlichen Wende (linguistic turn) stammt und z.B. bei Jürgen Habermas und Karl-Otto Apel auffindbare ist. Die Aussagefunktion verwechselt sich weder mit dem logischgrammatischen Subjekt, dem transzendentalen „Ich“, noch mit dem praktischsprechenden Subjekt, dem Autor der Aussage. Sie ist vielmehr „ein determinierter und leerer Platz, der wirklich von verschiedenen Individuen ausgefüllt werden kann“. Und dieser Platz „ist variabel genug, um entweder mit sich selbst identisch über mehrere Sätze hin fortbestehen oder sich mit jedem Satz ändern zu können. Er ist eine Dimension, die jede Formulierung als Aussage charakterisiert“17. Die archäologische Kritik der
14
Ebd., S. 130.
15
Ebd., S. 132-133. Die Idee des Fehlens des Korrelats nähert sich der sogenannten These der ontologischen Relativität oder der Unbestimmtheitsthesen von Quine, die den unbestimmten Charakter der Referenz, der Übersetzung und folglich der wissenschaftlichen Theorien betonnen: es ist sinnlos „zu sagen, was die Gegenstände einer Theorie sind, es sei denn, wir beschränken uns darauf zu sagen, wie diese Theorie in einer anderen zu interpretieren oder zu reinterpretieren ist“. (W. O. Quine: Ontologische Relativität und andere Schriften, Stuttgart 1975, S. 73. Vgl. A. Newen: Analytische Philosophie zur Einführung, S. 126-129). 16
M. Foucault: Archäologie des Wissens, S. 133.
17
Ebd., S. 139.
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transzendentalen Subjektivität verbindet sich also mit der Kritik des Autors, die Foucault anderswo entwickelt18. (c) Die Aussage soll nicht als ein absonderbares sprachliches „Atom“ betrachtet werden, denn existiert jeder Aussage in einem Verknüpfungsfeld, in einem Raster von Aussagen. Jede Aussage wird von einer „Peripherie“ anderer Aussagen umgegeben. Nur innerhalb von diesem Koexistenzfeld kann man sagen, dass es eine Aussage gibt. Eigentlich so verteidigt Foucault gewissermaßen eine radikale Art von Kontextualismus: „Eine Aussage hat stets Ränder, die von andern Aussagen bevölkert sind. Dieser Ränder unterscheiden sich von dem, was man gewöhnlich unter – wirklichem oder verbalem – ‚Kontext‘ versteht“19. Die Ränder von Aussagen, innerhalb derer jede Aussage existiert, ist sozusagen ihr „Kontext“, aber man darf diesen weder mit logischen oder grammatischen Bedingungen, noch mit psychologischen Zuständen, die im Moment der Formulierung im Geist des äußernden Subjekts erscheinen, identifizieren. Der Kontext einer Aussage ist ein determiniertes Feld, ein komplexer Raster, ein Gebiet der Koexistenz, das in der bestimmten Ebene der Aussagen als solche beobachtet werden soll. Dieser archäologische Kontextualismus Foucaults kann mit einer Position verglichen werden, die in der sprachanalytische Überlieferung als Holismus bekannt ist. Vertreter des Holismus ist z.B. W. O. Quine, demgemäß unsere Sätzen eine Art Netz bilden, am Rand dessen die Erfahrungssätze sich befinden und in der Mitte die Sätze der Mathematik und der Logik sich befinden. Kein Satz dieses Netz kann isoliert von anderen Sätzen verifiziert werden. Die These des Holismus ist genau die Behauptung, dass ein Satz nur als Teil eines Satznetz einen Bezug zur Wirklichkeit hat und folglich die Bedeutung eines Satzes hängt von allen anderen Sätzen ab20. Selbstverständlich wäre Foucault nicht damit einverstanden, die Aussagen durch die Kriterien Quines zu hierarchisieren: es gibt nicht genug Beweise, um die „Erfahrungsaussagen“ am Rande und die mathematische und logische Aussagen im Zentrum zu verorten. Aber die allgemeine These eines sprachlichen Holismus ist keine fremde Idee für das Denken Foucaults:
„es gibt keine Aussage im allgemein, keine freie, neutrale und unabhängige Aussage; sondern stets eine Aussage, die zu einer Folge oder einer Menge gehört, eine Rolle inmitten der anderen spielt, sich auf sie stütz und sich von 18 19
Cf. FOUCAULT M, « Qu’est-ce qu’un auteur ? » (1969), in Dits et Écrits, t. 1, Gallimard, Paris, 1994, pp. 817-849. Ebd., S. 142.
20
Vgl. NEWEN A, Analytische Philosophie zur Einführung, Hamburg, Junius, 2005, S. 129, und auch QUINE W O, Pursuit of truth, Havard University Press, Cambridge, London, 1990, S. 13-16.
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ihnen unterschiedet […] Es gibt keine Aussage, die keine anderen voraussetzt; es gibt nicht eine einzige, die um sich herum kein Feld von Koexistenzen, von Serien- und Folgewirkungen, keine Distribution von Funktionen und Rollen hätte“21.
Impliziert in der Verteidigung des Holismus, sowohl bei Foucault als auch bei Quine, ist eine Kritik an dem sprachlichen Fundationalismus: wenn es keine Aussage, die keine andere Aussage voraussetzt, gibt, dann gibt es keine letzte grundsätzliche Aussage, folglich als die Suche nach einer letzen fundamentalen Aussage kann das Programm der Begründung keinesfalls gelingen. (d) Endlich betont Foucault, dass die Aussagefunktion nicht von einem logischformalen Aspekt, sondern von ihrer besonderen Materialität charakterisiert wird. Erst wenn eine Zeichenfolge eine materielle Unterstützung, ein Medium hat, z.B. eine Oberfläche, eine Stimme oder eine Erinnerung, kann sie sich als eine Aussage konstituieren: „Die Koordinaten und der materielle Status der Aussage gehören zu ihren immanenten Merkmalen“22. Tatsächlich sind die logischen und grammatischen Aspekte der Aussage mit ihrer Materialität gekreuzt. Diese ist „konstitutiv für die Aussage selbst: eine Aussage bedarf einer Substanz, eines Trägers, eines Orts und eines Datums. Und wenn diese Erfordernisse sich modifizieren, wechselt sie selbst die Identität“23. Hier wird die Frage nach der Möglichkeit der Wiederholung der Aussagen festgestellt: verfasst die Übersetzung oder die bloß Transkription einer Aussage die gleiche Aussage oder ist es eine ganz andere Aussage? In anderen Worten: ist die Aussage eine mit sich selbst identische, ewige ideale Form oder ist sie ein einzigartiges unwiederholbares Ereignis? Foucault beantwortet diese Frage ohne Extremismus: es handelt sich weder darum, einen sprachlogischen Transzendentalismus noch darum, eine Ontologie des Aussageereignis zu verteidigen, sondern darum, die Bedingungen der Möglichkeit der Wiederholung von Aussagen als ein institutionalisiertes Feld der Stabilisierung zu beschreiben:
„Das System der Materialität, dem die Aussagen notwendig gehorchen, gehört also mehr der Institution zu als der räumlich-zeitlichen Lokalisierung; es definiert Möglichkeiten der Re-Inskription und der Transkription (aber 21
M. Foucault, Archäologie des Wissens, S. 144-145.
22
Ebd., S. 146.
23
Ebd., S. 147.
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auch Schwelle und Grenzen) mehr als begrenzte und vergängliche Individualitäten. […] Die Anwendungsschemata, die Gebrauchsregeln, die Konstellationen, worin sie eine Rolle spielen können, ihre strategischen Virtualitäten bilden für die Aussagen ein Feld der Stabilisierung, das trotz aller Äußerungsunterschiede sie in ihrer Identität zu wiederholen gestattet“24.
Meiner Meinung nach bedeutet der Begriff vom Feld der Stabilisierung der Aussagen den Ausgangspunkt einer Frage, die lediglich in der sogenannten genealogischen Phase des Denkens Foucaults vollständig entwickelt wird: die Frage nach dem Verhältnis zu Macht und Diskurs. Nur innerhalb eines machtdiskursiven analytischen Verfahrens kann die Institutionalisierung der Bedingungen der Möglichkeit in einem stabilisierten Aussagefeld, bzw. die Aussage als eine wiederholbare Materialität beschrieben werden. Die Aussage ist sozusagen aus demselben sterblichen und wiederholbaren Material konstituiert, aus dem sich die Machtbeziehungen bilden: „[s]o zirkuliert, dient, entzieht sich die Aussage, gestattet oder verhindert sie die Erfüllung eines Wunsches, ist sie gelehrig oder rebellisch gegenüber Interessen, tritt sie in die Ordnung der Infragestellungen und der Kämpfe ein, wird sie zum Thema der Aneignung oder der Rivalität“25. Und tatsächlich bedeutet die Einführung der Machtfrage in die Analyse der Aussage zugleich die Originalität und den entscheidenden Trennungspunkt Foucaults in Bezug auf den pragmatisch-analytischen Philosophen.
3. Die Beschreibung der Aussagen: die Überkreuzung der archäologischen Analyse mit der pragmatischen Sprachanalyse Ausgehend von den Zügen der Aussagefunktion geht es im Folgenden um die großen Linien der spezifischen Aufgabe der Beschreibung der Aussagen bei Foucault. Die Vollziehung dieser Aufgabe besteht aus: erstens der Feststellung eines Vokabulars, damit eine archäologische Theorie der Aussage ausgemacht werden kann; und zweitens aus der Anpassung der Aussagetheorie an seine Analyse der diskursiven Formationen. Nun in der Bestimmung seines eigenen Vokabulars bedient sich Foucault Termini, die in der sprachanalytischen Philosophie geläufig sind, aber er gibt ihnen neue Bedeutungen. Die Aussage wird als sprachliche Performanz, als performativer Sprechakt anerkannt, aber gleichzeitig wird dieser als ein räumlich-zeitlich bestimmtes Ereignis
24
Ebd., S. 150-151.
25
Ebd. S. 153.
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betrachtet, das sich stets auf einen Autor, das sprechende Subjekt, und auf eine materielle Unterstützung, das Medium, bezieht. Einerseits wird die Aussage gemäß dem bei der Analyse an ihrem logischen Aspekt oder an ihrem grammatischen Aspekt verliehenen Vorrang entweder als Proposition oder als Satz bezeichnet. Die logische und die grammatische Analyse werden durch die Frage der logischen oder grammatischen Akzeptabilität einer Aussage charakterisiert. Anderseits wird die Aussage in ihrer besonderen Existenzweise als eine wiederholbare Art Materialität beobachtet, deren Untersuchung ist genau die Aufgabe der archäologischen Aussageanalyse. Die Regeln, die dieser Materialität bedingen und ermöglichen, bzw. dieses Feld der Möglichkeitsgesetze, wird an den Begriff von diskursiver Formation assimiliert, daher kann Foucault eine ausdrückliche Diskursdefinition in diesem Kontext formulieren: „auf die allgemeinste und unentschiedenste Weise bezeichnete er eine Menge von sprachlichen Performanzen“, aber genauer gesagt ist der Diskurs „eine Menge von Aussagen, die einem gleichen Formationssystem zugehören. Und so [sagt Foucault] werde ich von dem klinischen Diskurs, vom dem ökonomischen Diskurs, vom dem Diskurs der Naturgeschichte, vom psychiatrischen Diskurs sprechen können“26. Wir sind also gegenüber einer Überkreuzung der foucaultschen Terminologie mit der der pragmatischen Sprachanalyse, die zugleich selbstverständlich eine Überkreuzung dieser beiden Gattungen des Denkens bedeutet. Foucault ist sich dieser Überkreuzung bewusst, die eine strategische Rolle in der Ausarbeitung der archäologischen Diskursanalyse spielt. Tatsächlich diese trennt sich von anderen Aussagebeschreibungen, insofern sie sich nicht eine totale Deskription der Sprache zielt.
„Insbesondere nimmt sie nicht den Platz einer logischen Analyse der Propositionen,
einer
grammatischen
Analyse
der
Sätze,
einer
psychologischen oder kontextuellen Analyse der Formulierungen ein: sie stellt eine andere Weise dar, die sprachlichen Performanzen in Angriff zu nehmen […]. Indem man die Aussage gegenüber dem Satz oder der Proposition ins Spiel bringt, sucht man nicht eine verlorene Totalität wiederzufinden […]. Die Analyse der Aussage entspricht einer spezifischen Ebene der Beschreibung“27.
26
Ebd., S. 156. Wäre diese die Diskursdefinition darauf beziehet sich Foucault in einem Brief an Daniel Defert vom 16. November 1966 mit den folgenden Wörtern: „Ich habe gestern, heute Morgen, in diesem Augenblick die Definition des Diskurses gefunden, die ich seit Jahre brauche“? (M. Foucault: Schriften, Bd. 1, S. 42, apud P. Sarasin: Michel Foucault zur Eingührung, S. 92). 27
M. Foucault: Archäologie des Wissens, S. 157.
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Auf dem ersten Blick kann die Trennungslinie sehr eng erscheinen: Foucaults Modell von Diskurs ist keineswegs normativ oder präskriptiv, sondern deskriptiv28, insofern hat es nichts mit der Frage der Begründung der Diskurse zu tun, trotzdem genauso sind viele der laufenden linguistischen und sprachanalytischen Modelle. Der theoretische Apparat dieser Modelle wird von Foucault in der Tat im Bezug auf eigene Ziele verwendet. Der Trennungspunkt besteht vielmehr aus dem Verlassen jedes Versuches die Totalität der Sprache wiedereinzusetzen. So, wie die Analyse der Epistemen die Diachronie in die Geschichte des Wissens eingeführt hat29, fügt die Diskusanalyse die Diskontinuität in das Feld der Aussagen und der Sprache ein. Dieser Unterschied gestattet, dass der allgemeine Zweck der linguistischen und philosophischen Sprachanalyse kritisiert werden kann, ohne dass ihre Begriffe verlassen werden müssen. Anstatt eine ganz definierte Trennungslinie zwischen seinem eigenen Denken und dem der pragmatischen Sprachanalyse zu zeichnen, trennt Foucault sich von dieser Denkensweise mittels einer ganz unterschiedlichen Haltung: „Die Aussageanalyse schreibt den linguistischen oder logischen Analysen keine Grenzen vor, vor der aus sie verzichten und ihre Unfähigkeit anerkennen müßten. Sie markiert nicht die Linie, die beider Gebiete abschließt. Sie entfaltet sich in einer anderen Richtung, die beide kreuzt“30. Foucault ist also gar kein Pragmatiker, aber das bedeutet nicht, dass er die theoretischen Instrumente der pragmatischen Sprachphilosophie in dem Programm der archäologischen Diskursanalyse nicht benutzt. Die Absicht Foucaults ist es, frei zu bleiben, um die pragmatischen Begriffe zu verwenden ohne in die Schlüsse der Pragmatiker verwickelt zu sein. Wie Wittgenstein hat Foucault „keine Theorie im strengen und starken Sinne des Wortes“31, d.h. kein vollkommenes theoretisches deduktiv-axiomatisches Gebäude, kein geschlossenes erklärendes Modell entwickelt, sondern einfach ein „kohärentes Beschreibungsgebiet“ definiert. Seine Absicht war
„zu zeigen, wie ohne Fehler, ohne Widerspruch, ohne innere Arbitrarität sich ein Gebiet organisieren kann, in dem die Aussagen, ihr Gruppierungsprinzip, die großen historischen Einheiten, die sie bilden können, und die Methoden, die ihre Beschreibung gestatten, sich in Frage gestellt sehen. Ich gehe nicht 28
Vgl. P. Sarasin: Michel Foucault zur Eingührung, S. 105.
29
Cf. FOUCAULT M, Die Ordnung der Dinge.
30
M. Foucault: Archäologie des Wissens, S. 165.
31
Ebd., S. 166
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[sagt Foucault] mittels einer linearen Deduktion vor, sondern in konzentrischen Kreisen […] Ausgehend von dem Problem der Diskontinuität im Diskurs und in der Singularität der Aussage (zentrales Thema) habe ich versucht, bestimmte rätselhafte Gruppierungsformen an der Peripherie zu analysieren“32.
Das generelle Plan Foucaults ist nämlich eine doppelte Diskontinuität, sogar zwei Reihen von Diskontinuitäten erscheinen lassen: diese von der Welt, der Tatsachen, der Gegenstände und diese von der Sprache, der Diskurse, der Aussagen. In der Ausführung dieses Programm kann er, ganz anders als Wittgenstein aber, gewissere Kernpropositionen formulieren: i. „Die Analyse der Aussage und die der Formationen werden korrelativ erstellt“33. Und hier braucht man keine deduktive Hierarchie zu errichten, weil es sich um das Problem der Begründung weder der Theorien im Allgemeinen noch der foucaultschen „Theorie“ nicht handelt. ii. „Eine Aussage gehört zu einer diskursive Formation“ und deshalb „wird die Regelmäßigkeit der Aussagen durch die diskursive Formation selbst definiert. Ihre Zugehörigkeit und ihr Gesetz bilden ein und dieselbe Sache“34. Und hier gibt es kein Paradox, weil die diskursive Formation keine transzendentale Bedingung der Möglichkeit der Aussagen, sondern des tatsächliche Gesetz ihrer Koexistenz ist. iii. „Diskurs wird man eine Menge von Aussagen nennen, insoweit sie zur selben diskursiven Formation gehören […]. Er wird durch eine begrenzte Zahl von Aussagen konstituiert, für die man eine Menge von Existenzbedingungen definieren kann […] er ist durch und durch historisch: Fragment der Geschichte, Einheit und Diskontinuität in der Geschichte selbst, und stellt das Problem seiner eigenen Grenzen, seiner Einschnitte, seiner Transformationen, der spezifischen Weisen seiner Zeitlichkeit“35. Die Frage des Diskurses wird also von dem Diskurs selbst geschichtlich gefragt, deshalb ist die Reflexivität nicht die eines Subjekts, sondern des Diskurses selbst, d.h. die Feststellung der reflexiven Frage ermöglicht keine Meta- oder Unterebene. Alles ist Oberfläche, Geschichte, Diskurs geworden: was gefragt wird, die Frage und ihre Antwort. Als solche gehören alle zu derselben Ebene, der der Aussagen.
32
Ebd..
33
Ebd., S. 168.
34
Ebd., S. 170.
35
Ebd. S. 170.
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iv. Die diskursive Praxis ist „eine Gesamtheit von anonymen, historischen, stets im Raum und in der Zeit determinierten Regeln, die in einer gegebenen Epoche und für eine gegebene soziale, ökonomische, geographische oder sprachliche Umgebung die Wirkungsbedingungen der Aussagefunktion definiert haben“36. Was die diskursive Praxis charakterisiert ist die Tatsache, dass sie vielfältige Tätigkeiten ist, die gemäß historischen Regeln ausgeübt werden. Nun ist es nicht anders bei Wittgenstein, demgemäß: „ein [Sprach]Spiel wird nach einer bestimmten Regel gespielt“37. Trotzdem möchte ich hier die Annäherung zwischen den Konzepte von der diskursiven Praxis bei Foucault und vom Sprachspiel bei Wittgenstein nicht vertiefen, sondern nur vorschlagen. Sofern ihre Unterschiede nicht gelöscht würden, wäre eine Beziehung zwischen diesen zwei Denker, glaube ich, nicht einfach möglich, aber auch sehr fruchtbar.
4. Die Positivitäten, das historische Apriori und das Archiv Wegen ihres deskriptiven Charakters arbeitet Diskursanalyse an gewissen Positivitäten. Foucault schreibt:
die
archäologische
„Eine diskursive Formation zu analysieren, heißt also, eine Menge von sprachlichen Performanzen auf der Ebene der Aussagen und der Form der Positivität, von der sie charakterisiert werden, zu behandeln; oder kurzer: es heißt den Typ von Positivität eines Diskurses zu definieren. Wenn man an die Stelle der Suche nach den Totalitäten die Analyse der Seltenheit, an die Stelle des Themas der transzendentalen Begründung die Beschreibung der Verhältnisse der Äußerlichkeit, an die Stelle der Suche nach dem Ursprung die Analyse der Häufung stellt, ist man ein Positivist, nun gut, ich bin ein glücklicher Positivist, ich bin sofort damit einverstanden“38.
Bei Foucault bedeutet „Positivismus“ die Annahme einer Position gegen die fundationalistische oder evolutionistische Betrachtung der Sprache. Hier sagt Positivismus Deskriptivismus oder Anti-Normativismus, vielmehr als der Glaube an die Wissenschaft als die rechtfertigende selbstbegründete Beschreibung der Welt. Die archäologische Diskursanalyse hat also nichts mit der Frage der Begründung des 36
Ebd., S. 171.
37
L. Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, § 54, S. 270.
38
M. Foucault: Archäologie des Wissens, S. 182.
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Diskurses zu tun. Der positivistische Aspekt der Analyse der Aussagen von Foucault beruht auf seiner Absicht sie gewissermaßen „empirisch“, d.h. als Dinge, als Tatsachen, als räumlich-zeitliche Ereignisse zu beschreiben. Die Positivität der Aussagen erscheint durch die Merkmale, die Foucault ihnen zuschreibt: die Seltenheit, die Äußerlichkeit und die Häufung. Erstens vollziehen die Aussagen keine Totalität, da es immer etwas nicht-gesagt bleibt. Die Seltenheit der Aussagen beruht also auf dem Prinzip, „daß nie alles gesagt worden ist“ oder dem „Prinzip der Leere im Feld der Sprache“39. Die Sprache verfasst sich auch von Lücken, Absencen, Fehlen, Schnitten und deshalb sind die Aussagen nicht häufig, sondern selten. In ihrer Seltenheit ist der Diskurs wie ein „Gut, das […] mit seiner Existenz (und nicht nur in seinen ‚praktischen Anwendung‘) die Frage nach der Macht stellt. Ein Gut, das von Natur aus der Gegenstand eines Kampfes und eines politischen Kampfes ist“40. Noch einmal wird die Frage nach der Macht in der Ebene der Aussageanalyse festgestellt, und dort ist es möglich, eine entscheidende Schlussfolgerung zu ziehen: als Ereignis wird die Aussage nie von der Macht dissoziiert, es kommt in der Mitte von Machtbeziehungen, von einem Kampf vor. Folglich ist die archäologische Frage der Aussage gleichzeitig eine politische Frage. Zweitens haben die Aussagen kein Verhältnis zu einer Innerlichkeit: sie sind etwas äußeres, sie werden durch ihre Äußerlichkeit charakterisiert. Daher ist „das Aussagegebiet völlig an seiner eigenen Oberfläche befindlich“41. Durch die Einführung des historisch-transzendentalen Themas wurde die Innerlichkeit radikal historizisiert, aber als solche war sie noch eine Transzendentalität, d.h. eine begründende Subjektivität geblieben. Dagegen versucht die Aussageanalyse sich von dem historischtranszendentale Thema zu befreien. In ihrer Äußerlichkeit ist die Aussage ein kontingentes, diskontinuierliches Ereignis, ein „Zufall“, und als solcher hat sie eine gewisse „Neutralität“, d.h. sie hat keine Begründungsfunktion. Die Analyse bezieht sich folglich nicht auf eine Subjektivität, sondern auf ein „anonymes Feld“: „Die Analyse der Aussagen vollzieht sich also ohne Bezug auf ein Cogito. […] Sie stellt sich tatsächlich auf die Ebene des ‚man sagt‘ […] ‚Egal wer spricht‘“42. Drittens wendet sich die Analyse nicht an einen wesentlichen und universallen Ursprung aller Aussagen, sondern an spezifische Häufungsformen: die Häufung ist das dritte Merkmal der Aussagen, das Foucault angebt. Infolgedessen betrachtet die Analyse die Bewegung, die Additivität, die Rekurrenz und die Streuung der Aussagen. 39
Ebd., S. 173.
40
Ebd., S. 175.
41
Ebd., S. 174.
42
Ebd., S. 178.
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Darüberhinaus kann Foucault die Bedeutung eines scheinbaren paradoxen Begriffs erklären: das historische Apriori. Die Positivität eines Diskurses spielt die Rolle seiner Bedingung der Möglichkeit, insofern sie diesen Diskurs als solcher bedingt und ermöglicht, die Positivität eines Diskurses charakterisiert seine Einheit durch die Zeit hindurch. Deswegen schreibt Foucault: „ich will […] ein Apriori bezeichnen, das nicht Gültigkeitsbedingung für Urteile, sondern Realitätsbedingung für Aussagen ist“43. Demzufolge kann man fragen: warum ist das historische Apriori a priori? Weil es die Bedingungen möglicher Aussagen enthält. Und warum ist es historisch? Weil diese Bedingungen weder transzendent (keineswegs metaphysisch) noch transzendental (keineswegs logisch formal) sind, sondern spezifisch historisch, faktisch, empirisch, räumlich-zeitlich bestimmt: sie sind genau Realitätsbedingungen. Es handelt sich also um
„Ein Apriori nicht von Wahrheiten, die niemals gesagt werden oder wirklich der Erfahrung gegeben könnten; sondern einer Geschichte, die gegeben ist, denn es ist die wirklich gesagten Dinge. […] es muß die Tatsache erklären, daß der Diskurs nicht nur einen Sinn oder einen Wahrheit besitzt, sondern auch eine Geschichte, und zwar eine spezifische Geschichte“44.
Gegenüber den transzendentalen Apriori „ist es eine reine empirische Figur“, aber als solche es enthält die Gesetze, die dem Diskurs seiner spezifischen Regelmäßigkeit geben, denn die Diskurse sind nicht absolute Zufalle. „Das formale Apriori und das historische Apriori stehen nicht auf demselben Niveau, noch sind sie von gleicher Natur: wenn sie sich kreuzen, dann weil sie zwei verschiedenen Dimensionen angehören“45. Die Natur des historischen Apriori ist genauso wie die der Aussagen, die es bedingt und ermöglicht: eine diskursive Natur. Der Diskurs ist das, was nach dem Diskurs fragt. Und die Antwort dieser Frage ist auch der Diskurs. Es gibt also kein Unterschied zwischen diskursive Ebenen: es gibt nur die Ebene des Diskurses46. Das historische Apriori ermöglicht und bedingt also die diskursiven Formationen, d.h. gewisse diskursive Praktiken oder sogar Systeme von Aussagen. Das
43
Ebd., S. 184.
44
Ebd., S. 184-185.
45
Ebd., S. 186.
46
Gemäß Sarasin: „Man könnte sagen, um eine von Foucault nicht verwendete Metapher zu bemühen, dass die Diskusanalyse nach dem Algorithmus sucht, mit dem bestimmte Aussage generiert und andere ausgeschlossen werden können“. P. Sarasin: Michel Foucault zur Einführung, S. 110.
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Ensemble all dieser Aussagensysteme ist das, was Foucault Archiv nennt. Unter diesem Begriff versteht er
daß man, wenn es gesagte Dinge gibt – und nur diese –, nicht die Dinge, die sich darin gesagt finden, oder die Menschen, die sie gesagt haben, sondern das System der Diskursivität und die Aussagenmöglichkeiten und – unmöglichkeiten, die es ermöglicht, nach dem unmittelbaren Grund dafür befragen muß. Das Archiv ist zunächst das Gesetz dessen, was gesagt werden kann, das System, das das Erscheinen der Aussagen als einzelner Ereignis beherrscht“47.
Dazu würde ich nicht sagen, dass die Anwendung von „beherrschen“ lediglich metaphorisch ist, sondern eine faktische Beschreibung davon, was in der Aussageebene wirklich passiert, d.h. das mächtig-diskursive Phänomen der Sprache. Das Archiv ist die allgemeine Ordnung, die Disziplinierung, die Bändigung48, die Institutionalisierung der Aussagen und durch die Diskurse hindurch. Das Archiv als theoretischer Operator entspricht der und ermöglicht die Ausarbeitung eines diskursanalytischen Machtbegriffs49. Dadurch betrachtet man die diskursiven Gesetze nicht als bloße formale logische Gesetze, sondern auch als „ökonomische“, „politische“, „mächtige“ Gesetze. Im Rahmen der Diskursanalyse aber können diese Gesetze ihren diskursiven Charakter nicht verlieren. Sie sind Äußerungen einer diskursiven Macht, oder einer Macht des Diskurses. Diese ist jedoch nicht einfach negativ, repressiv, destruktiv, sondern auch positiv, produktiv, konstruktiv: das Archiv ist das System der Aussagbarkeit, das System des Funktionierens der Aussagen, oder sogar „[e]s ist das allgemeine System der Formation und der Transformation der Aussagen“50. Als Macht ist das Archiv die allgemeine Bedingung der Möglichkeit des Diskurses, insofern es bedingt und ermöglicht die Diskurse in ihrer Spezifizität und Differenz. Es ist das, was die Praxis der Aussagen und ihre Regeln, d.h. den Diskurs aufbaut, erzeugt, formiert, konstruiert. Dahin geht der positive Aspekt der diskursiven Macht bei Foucault. 47
M. Foucault: Archäologie des Wissens, S. 187.
48
Meiner Meinung nach soll der Archivbegriff im Bezug auf die allgemeine Hypothese von Die Ordnung des Diskurses betrachtet werden. Dort schreibt Foucault: „Ich setze voraus, daß in jeder Gesellschaft die Produktion des Diskurses zugleich kontrolliert, selektiert, organisiert und kanalisiert wird – und zwar durch gewisse Prozeduren, deren Aufgabe es ist, die Kräfte und die Gefahren des Diskurses zu bändigen, sein unberechenbar Ereignishaftes zu bannen, seine schwere und bedrohliche Materialität zu umgehen“. M. Foucault: Die Ordnung des Diskurses, Frankfurt a.M. 1991, S. 11. Kurz, insofern das Archiv tatsächlich die Ordnungsprozeduren des Diskurses enthält, repräsentiert es die Macht, die den Diskurs vielfältig strukturiert und dadurch hindurch ausgeübt wird. 49
Vgl. P. Sarasin: Michel Foucault zur Einführung, S. 117.
50
M. Foucault: Archäologie des Wissens, S. 188.
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Das so verstandene Archiv ist die Hauptvoraussetzung, der „allgemeine Hintergrund“ der Beschreibung der diskursiven Formationen, der Analyse der Positivitäten, des Ermittelns des Aussagefeldes, kurz der Archäologie des Wissens. Die Archäologie ist also die Bezeichnung des allgemeinen Themas einer Beschreibung „über die Aussagefunktion, die sich in ihm vollzieht, über die diskursive Formation, zu er er gehört, über das allgemeine Archivsystem, dem er untersteht. Die Archäologie beschreibt die Diskurse als spezifizierte Praktiken im Element des Archivs“51. Und aus dem Element des Archivs besteht der Verbindungspunkt zwischen Archäologie und Machtanalyse.
Agonistische Pragmatik? Ausschließlich würde ich gern meine Leitfrage wieder aufnehmen: woraus besteht der Unterschied zwischen der pragmatischen Sprachanalyse und der foucaultschen Diskursanalyse überhaupt? In Die Wahrheit und die juristischen Formen findet man einen ziemlich erklärenden Punkt dazu. Foucault versteht, dass sogenannte linguistic turn – die Entdeckung des linguistischen Charakters der sprachlichen Tatsachen – zu seiner Zeit wichtig war, aber heute handelt es sich um eine schon datierbare Entdeckung52. Man soll in dieser Richtung jenseits des Zielpunkts des linguistic turn gehen: vielmehr als die logische Ebene der Sprache zu untersuchen, geht es heute weiter darum, die spezifische Ebene des Diskurses zu analysieren. Der Diskurs ist nicht das bloße Ensemble der sprachlichen Tatsachen, die durch ein Wechselspiel syntaktischer Konstruktionsregeln miteinander verbunden sind, sondern er wird durch einen inhärenten mächtigen Aspekt charakterisiert:
„Heute ist es aber an der Zeit, diese Diskursphänomene nicht mehr nur unter sprachlichen Aspekt zu betrachten, sondern – ich lasse mich hier von angloamerikanischen Forschungen anregen – als Spiele, als games, als strategische Spiele aus Handlungen und Reaktionen, Fragen und Antworten, Beherrschungsversuchen und Ausweichmanövern, das heißt als Kampf. Der Diskurs ist jenes regelmäßige Ensemble, das auf einer Ebene aus sprachlichen Phänomenen und der auf einer anderen aus Polemik und Strategien besteht“53.
51
Ebd., 190.
52
Nach Sarasin hat die Diskursanalyse „mit dem, was R. Rorty 1967 den linguistic turn nannte, nur in sehr vager Weise zu tun“. P. Sarasin: Michel Foucault zur Einführung, S. 99. Hier glaube ich, dass einige Aspekte dieser „vager Weiser“ deutlicher geworden sind. 53
M. Foucault: „Die Wahrheit und die juristischen Formen“, in Schriften, Bd. 2, S. 671.
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Foucault als Pragmatiker? Zum Verhältnis von pragmatischer Sprachanalyse und diskursiver Macht, pp. 64 - 82
Demzufolge ist die Idee Foucaults nicht ein gewaltiger Bruch mit dem Pragmatismus, sondern die Einführung des Elements des Kampfs in die pragmatische Sprachanalyse. Die foucaultische Diskursanalyse begreift die Sprache als Praxis, als Tatsache, als Sprachspiel, aber dieses wird als strategisches und polemisches Spiel, als Machtspiel betrachtet.
Literatur J. AUSTIN: Zur Theorie der Sprechakte (How to do things with words), Stuttgart 1979. M. FOUCAULT: Archäologie des Wissens, Frankfurt a. M. 1973. ___: Die Ordnung der Dinge, Frankfurt a. M. 1971. ___: Die Ordnung des Diskurses, Frankfurt a.M. 1991. ___: „Die Wahrheit und die juristischen Formen“, in Schriften, Bd. 2 (1970-1975), Frankfurt a. M. 2002. A. NEWEN: Analytische Philosophie zur Einführung, Hamburg 2005. W. O. QUINE: Ontologische Relativität und andere Schriften, Stuttgart 1975. P. SARASIN: Michel Foucault zur Einführung, Hamburg 2005. L. WITTGENSTEIN: Philosophische Untersuchungen, Frankfurt a. M. 1960.
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Introdução ao problema do método: ensinando Filosofia no Ensino Médio, pp. 83 - 91
INTRODUÇÃO AO PROBLEMA DO MÉTODO: ENSINANDO FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO Yure Cézar de Moura Almeida yure22@bol.com.br
Resumo: A filosofia vem e volta do currículo escolar obrigatório, prejudicando o estabelecimento de um método sólido que oriente os professores de ensino básico na ministração de uma disciplina tão singular. Ao longo da história de ensino de filosofia para crianças e adolescentes, três métodos foram tentados: o estruturalismo, o tematismo e o tematismo novo, ou oficina de conceitos. O estruturalismo, com foco na compreensão do texto filosófico, torna a aula uma lição de exegese textual, o que pode ser produtivo em diversos aspectos, mas é tedioso e forçado. O tematismo, com foco no tratamento filosófico de um tema do cotidiano, é mais interessante, mas muitas vezes não dispomos de material para tratar assuntos pertinentes ao aluno. O tematismo novo tenta sintetizar os dois momentos, estabelecendo que devemos partir de uma intersecção entre assuntos pertinentes ao aluno e assuntos tratados suficientemente pela tradição, dividindo a aula em momentos previsíveis de sensibilização, problematização, leitura e reflexão. Palavras-chave: Filosofia. Estruturalismo. Tematismo. Gallo. Ensino. Abstract: Philosophy comes and goes from the mandatory school curriculum, harming the Volume 5 no 2
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establishment of a solid method to guide the basic teachers in the ministry of such a singular discipline. Throughout the history of the philosophy teaching to children and adolescents, three methods were tried: structuralism, thematic and new thematic, or concept workshop. The structuralism, with focus on the philosophical text, turns the class into a textual exegesis lesson, which can be productive in several aspects, but is boring and forceful. The thematic, with focus on the philosophical treatment of an everyday theme, is more interesting, but we don't have the material sometimes to philosophically treat subjects that are pertinent to the student. The new thematic tries to synthesize the two moments, establishing that we should start from a intersection between pertinent subjects to the student and subjects that were sufficiently treated by tradition, dividing the class in predicable moments of sensitization, problem elucidation, reading and reflection. Keywords: Philosophy. Structuralism. Thematic. Gallo. Teaching.
1. Introdução
A
prender é um desejo intrínseco ao ser humano. E a filosofia, não como atitude, mas como corpo de conhecimentos produzidos até agora, é talvez o tipo de conhecimento mais útil ao crescimento pessoal e ao desenvolvimento de uma personalidade crítica. Com a proposta do ensino médio de formar um cidadão “completo”, a filosofia tornou-se necessária como um conteúdo obrigatório nessa fase do aprendizado. Este trabalho visa uma explicação dos três métodos atualmente usados para ensinar filosofia no Brasil, a fim de compará-los e verificar qual deles se sai melhor na sala de aula do ensino médio público. Os métodos são o estruturalismo, o tematismo e o tematismo novo, ou oficina de conceitos. O estruturalismo é a analise de um texto filosófico, para uma compreensão dele e sua apropriação correta. Ele implica a absorção de uma bagagem cultural que deve ser adquirida antes do contato com o texto. É um esforço de entender exatamente o que o autor quer dizer, decompor sua obra e juntá-la novamente, entendo sua estrutura interna e sua posição na estrutura de pensamento do autor, comparando-a com outras obras. O tematismo é uma aula mais dialogada, na qual o professor tenta tratar filosoficamente um assunto do cotidiano. Partindo de um tema vivido pelos alunos, procuramos entender como a tradição filosófica se posiciona diante do problema. Ele não abre mão totalmente do texto filosófico. Os detalhes da aula ficam a cargo do professor, na medida em que ele não se desvie desse ideal de tratar um tema pertinente aos alunos de maneira filosófica. O tematismo novo parte da intersecção entre assunto tratado pela tradição e Volume 5 no 2
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assunto vivido pelo aluno. Para adereçar o problema de uma aula muito solta, o tematismo novo a divide em quatro momentos, organizando a já existente prática do tematismo.
2. Estruturalismo O estruturalismo é o método de estudo que segue obras filosóficas. Ele é pautado principalmente no texto e em sua interpretação. Numa aula estruturalista, o professor discute um texto com os alunos, procurando entendê-lo com eles, para então sondar o nível de absorção do texto filosófico por parte dos alunos. Este método nem sempre é bem empregadom, como se verá.
2.1. Vantagens Verificar a evolução do pensamento filosófico a partir de determinado período e região permite que o pensamento do aluno se adapte às ideias filosóficas mais simples, para progredir às mais complexas conforme segue o curso, o que torna a assimilação mais fácil. O estruturalismo permite um aprofundamento maior em determinado assunto. Através do seccionamento da história da filosofia em filósofos, de filósofos em temas, de temas em obras, cada parte tem seu lugar e é estudada em separado antes de ser reunida com as outras para formar um todo orgânico. Pelo diálogo do aluno com a história da filosofia, ele pode construir seu próprio pensamento, pela crítica e pelo acordo com determinado texto. Sendo também um método que é focado no texto e nos aspectos que o gravitam, ele pode ser introduzido ao contexto histórico e cultural no qual a obra está inserida. Sem rodeios, o método coloca o aluno em contato com a história da filosofia e seus problemas. Ele é direto o bastante para permitir avaliações objetivas, o que facilita o trabalho do professor.
2.2. Desvantagens Dentre os problemas do estruturalismo, podemos citar que ele descaracteriza o curso de filosofia. Como o foco é o entendimento do texto e às vezes é preciso entender o autor anterior antes de estudar determinada obra, o estruturalismo recorre frequentemente à Volume 5 no 2
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ordem cronológica de assuntos. Na sala de aula do ensino médio, em que somos impelidos a lecionar vários conteúdos, uma abordagem estruturalista acaba começando nas origens e nos pré-socráticos (primeiro ano), terminando em Hurssel e Wittgenstein (terceiro ano). Lecionar assim torna o curso de filosofia algo parecido com o curso de história, o que poderia incentivar a simples memorização e o tédio, que pode prejudicar a atenção dos alunos, tirando inclusive o aspecto crítico da filosofia. Outro problema é que ensinar filosofia cronologicamente descontextualiza a filosofia da vivência do aluno. Reduzir a filosofia a sua história é desnecessário e não atende às expectativas. Tales de Mileto, por exemplo, não tem correspondência na vida da maioria dos adolescentes, então uma aula sobre ele seria monótona, tomada por obrigação curricular. Se os alunos não estudarem temas que lhes têm relevância, eles sentirão tédio, talvez até odeiem estudar filosofia, não pela matéria, mas pelo método utilizado. Eles criam aversão à filosofia. Por último, não menos importante, o aluno pode pensar que o filósofo seguinte é melhor que o anterior, o que não necessariamente é verdade. Essa atitude é natural, se encaramos a filosofia como uma produção histórica que progride positivamente.
2.3. Ajustes Considerando que o foco do estruturalismo é o entendimento do texto, sendo que o texto só pode ser entendido caso o aluno tenha uma determinada bagagem cultural que permite esse entendimento, aulas estruturalistas acabam seguindo a história da filosofia como referencial. Um curso assim é muito puxado para o ensino médio, além de que não há tempo para tal coisa. O estruturalismo teria que partir de temas para funcionar. Se, em vez de examinarmos toda uma obra, nos focarmos no posicionamento da obra em apenas um tema, a bagagem cultural necessária será menor. Além disso, se o tema for interessante, os alunos prestarão mais atenção. Feitos esses ajustes, o estruturalismo passa para o estágio de tematismo.
3. Tematismo O tematismo propõe outra coisa: partir de temas filosóficos em vez de usar a história da filosofia como referencial. Esse método é indicado pela Escola Aprendente. Utilizando temas que partem dos alunos, a aula fica mais interessante e o conteúdo é melhor Volume 5 no 2
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assimilado. Além disso, esse método dá mais liberdade ao professor, porque ele não precisa seguir uma ordem específica de temas e nem explorar toda uma obra filosófica, podendo usar apenas os parágrafos relevantes ao tema, fazendo uma colagem comparativa de parágrafos de diferentes obras sobre o mesmo tema.
3.1. Vantagens A aula é mais dialogada, pois o professor precisará conhecer os alunos a fim de escolher os temas que lhos interessem. Ela também será mais interessante, pois parte de temas que os alunos enfrentam. Isso porque só somos encorajados a pensar quando verificamos que há um problema e o sentimos. Então, se o problema é do aluno, ele quererá ver o que a filosofia tem a dizer sobre seu problema. Em adição, por causa do interesse aumentado, os alunos participarão mais, perguntarão e responderão mais. Por último, eles tomam postura reflexiva, pois entrarão em contato com o que a filosofia pensa sobre esses temas que lhes despertam interesse.
3.2. Desvantagens A desvantagem mais óbvia é a de que o professor precisa saber o que interessa aos alunos, além de estar disposto a ignorar algumas diretrizes curriculares, o que nem sempre pode ser feito. Uma das menos óbvias é o fato de que a filosofia tem uma grande carga crítica. Quando um filósofo contradiz um aluno em um tema que ele tem como pertinente, o efeito naturalmente desestabilizador pode criar um mal-estar entre professor e aluno. De fato, é preciso tolerar as opiniões diferentes, mas a refutação filosófica sobre, por exemplo, a existência ou não de Deus pode causar um estrago, fazendo a aula descender ao nível de contenda entre aluno e professor ou ainda entre os próprios alunos. O controle da aula poderia ficar difícil se o professor não expor diferentes argumentos sobre um mesmo tema. Os filósofos que dizem “sim” devem ser comparados com os que dizem “não”, para que o aluno faça seu julgamento. Se apenas uma opinião é exposta, o professor está prejudicando a aula. Por essa razão, existem temas que não convém ensinar. Se há “temas proibidos”, então a proposta de ensinar filosofia a partir de qualquer tema que interesse ao aluno não é possível. Isso porque não há material filosófico o bastante para temas muito íntimos de nosso tempo, ao menos não ao fácil alcance da mão. Os livros atuais de filosofia sobre Volume 5 no 2
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Internet, sexualidade, coisas que os alunos querem tratar, são raros e caros. O professor teria então que usar o livro didático, o que não é o ideal.
3.3. Ajustes Seria necessário que o professor fizesse o currículo filosófico, o que é permitido em algumas escolas. Para sanar o problema da parcialidade, o professor precisa expor tantos filósofos quanto o tempo da aula permitir, para que o aluno não seja exposto a uma só opinião sobre determinado tema, o que poderia causar um desastre. Porém, para tanto, é necessário ter o material. Então, devemos abdicar da proposta de tratar filosoficamente qualquer tema em sala de aula, passando a tratar somente os temas para os quais temos material o bastante. É necessário que o aluno tenha contato com traduções das obras originais, mesmo que em forma de cópia, para praticar a leitura de texto filosófico. Porém, para evitar o problema do estruturalismo, o texto não deve ser integral, mas somente quatro ou sete parágrafos cruciais ao tema, a partir dos quais a reflexão pode começar.
4. Tematismo Novo Nascido do tematismo tradicional, temos o tematismo novo, ou “oficina de conceitos”, principalmente representado no Brasil por Silvio Gallo. A diferença principal em relação ao tematismo é a abdicação da pretensão de tratar qualquer tema: os temas têm que estar na intersecção entre aquilo que é tratado satisfatoriamente pela história da filosofia e aquilo que interessa aos alunos. Tudo o que houver nessa zona de intersecção é válido. Outra grande diferença é a pretensão de transformar a aula em “experiência filosófica”. Para isso, os alunos passam pelo itinerário que um filósofo normalmente passa na composição de seus escritos: contato com o tema, elaboração da pergunta filosófica que orientará a prática, pesquisa por material já produzido sobre o tema e posicionamento sobre o tema. Assim, os alunos são sensibilizados, problematizam, pesquisam e conceituam.
4.1. Vantagens Mantendo o ponto forte do tematismo, que é o aumento do interesse do aluno, o pressuposto mais modesto de que, pelo menos em sala, não é qualquer tema que será tratado, mas somente os temas que foram tratados satisfatoriamente pela história da Volume 5 no 2
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filosofia (desde que interesse ao aluno), o tematismo novo organiza a aula temática em momentos previsíveis, que orientam o professor. Além disso, o tematismo tradicional tenta ser todo sensibilizante, como se a aula tivesse que manter o interesse a todo momento, mas o tematismo novo tem um espaço inicial para a sensibilização do aluno, de forma que ele possa se manter interessado depois desse momento sem a necessidade do professor sensibilizá-lo à medida que trata o conteúdo. Assim, a grande diferença entre o tematismo novo e o tradicional é a organização da aula em etapas análogas ao processo filosófico e a aproximação modesta dos temas.
4.2. Desvantagens Este é um método que requer, como o tematismo tradicional, que o professor conheça o aluno. De um ponto de vista prático, é uma desvantagem, pois requer uma coisa a mais do professor. Além disso, por ser um método orientado por itinerário, ele requer controle do tempo. Quanto tempo usar na sensibilização? Ou quanto tempo devo requerer para a conceituação? Porque conceitos filosóficos são ideias que demoram muito para amadurecer, os conceitos dos alunos não necessariamente serão ótimos logo no começo, o que é esperado. Então, dependendo do tempo destinado à conceituação, os conceitos podem sair pior do que o esperado. A habilidade do professor de controlar quanto tempo despender na sensibilização, na problematização, na investigação e na conceituação, mas sobretudo na primeira e na última etapas, é crucial.
4.3. Ajustes O pior problema do tematismo novo é o tempo despendido em cada etapa, o que é natural em métodos orientados por itinerários. Numa situação ideal, de aula geminada, despender vinte e cinco minutos em cada etapa parece perfeito. Porém, a etapa mais longa, a investigação filosófica, não pode ser feita em tão pouco tempo. Como Gallo admite que seu método deve ser adaptado, não precisando permanecer como está, a relativização dos passos pode ser uma saída. Por exemplo, os alunos precisam tomar o problema como se fosse deles, o que é obtido na sensibilização. Ora, mas se é para os alunos assumirem o problema, por que não permitir a votação do tema? Assim, os alunos já viriam para a aula sabendo que tratariam de Volume 5 no 2
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um problema que os interessa. Isso também tornaria a problematização mais curta. Assim, ao término da aula anterior, votaríamos o tema da aula seguinte, o que deve tomar cinco minutos. Na aula seguinte, revelamos o resultado e elaboramos a pergunta, o que deve levar mais cinco minutos ou até dez minutos. Numa aula geminada, teríamos cerca de oitenta e cinco minutos para investigar e conceituar, o que é adequado numa aula para o ensino médio. Outro problema com a sensibilização tradicional é a de que ela pode requerer certos recursos midiáticos (filmes, músicas...), o que, por sua vez, requer que o professor esteja a par das tendências culturais, o que já era recomendado.
5. Conclusão O tematismo novo é o melhor que temos, por proporcionar o contato com o texto filosófico (embora não em estado integral), partir de temas (embora com pressupostos mais modestos) e por permitir que os alunos produzam seus próprios conceitos. Isso supera os problemas tanto do estruturalismo quanto do tematismo, embora isso não torne o tematismo novo um método universal que seria válido no ensino superior e no fundamental. Se a filosofia se tornar obrigatória no ensino fundamental, o tematismo tradicional talvez obtivesse uma resposta melhor dos alunos, por ser menos puxado. Já o estruturalismo ainda encontra adeptos no ensino superior. Porém, porque o tematismo novo é assumidamente provisório, o professor pode tomar a liberdade de adaptá-lo e modificá-lo conforme a necessidade. Ele é certamente o melhor dos três no ensino médio.
Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002. ÁSPIS, R. L. ; GALLO, S. Ensinar Filosofia:um livro para professores. São Paulo: Atta Mídia e Educação, 2009. LIMA, M. C. W. ; AMORIM, R. F. Escola Aprendente: ciências humanas e suas tecnologias. Disponível em: <http://www.spaece.caedufjf.net/wpcontent/uploads/2013/05/livro_escola_aprendente_ciencias_humanas_e_suas_tecnologia Volume 5 no 2
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s.pdf>. Acesso em: LOUREIRO, C. ; SOARES, L. Estratégias Metodológicas para o Ensino de Filosofia. Disponível em: <http://www.sistemas.ufrn.br/shared/verArquivo?idArquivo=1139610&key=56337e820f 09adb90d6b6600dfa0e9aa>. Acesso em: . MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parâmetros Curriculares Nacionais:Ensino Médio, parte IV. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/cienciah.pdf>. Acesso em: .
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Linguagem, Verdade e Poder em Heidegger e Foucault: confrontações com a história do pensamento metafísico, pp. 92 - 114
LINGUAGEM, VERDADE E PODER EM HEIDEGGER E FOUCAULT: CONFRONTAÇÕES COM A HISTÓRIA DO PENSAMENTO METAFÍSICO Filipe Caldas Oliveira Passos1 Resumo: No presente artigo, abordamos as questões da linguagem, da verdade e do poder, bem como suas imbricações, a partir dos pensamentos filosóficos de Martin Heidegger e Michel Foucault. Nessa abordagem, mostramos como os pensamentos dos referidos autores, ao tratar das questões supracitadas, rompem com os parâmetros estabelecidos pelo pensamento metafísico tradicional, que, ao longo de sua história, tratou das questões da linguagem, da verdade e do poder a partir de conceitos tais como fundamento, teleologia, subjetividade. Abordamos também o impacto dos pensamentos heideggeriano e foucaultiano, enfatizando suas divergências e afinidades. 1
Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Professor na mesma instituição. E-mail: filipecopassos@gmail.com; filipe.caldas@uece.br.
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Linguagem, Verdade e Poder em Heidegger e Foucault: confrontações com a história do pensamento metafísico, pp. 92 - 114
Palavras-chave: Linguagem; Verdade; Poder; Ser;Metafísica. Abstract: In this article, we address the issues of language, truth and power, and their imbrications, from the philosophical thinking of Martin Heidegger and Michel Foucault. In this approach, we show how the thoughts of these authors, addressing the above issues, break with the parameters established by the traditional metaphysical thinking, which, throughout its history, dealt with the issues of language, truth and power from concepts such as foundation , teleology , subjectivity. We also analyze the impact of Heidegger's and Foucault's thoughts, emphasizing their differences and affinities. Keywords: Language; Truth; Power; Being; Metaphysics.
Introdução
O
presente artigo trata dos conceitos de linguagem, verdade e poder, bem como de suas implicações como pensamento metafísico, a partir de um diálogo entre os pensamentos filosóficos de Martin Heidegger (1889-1976) e Michel Foucault (1926-1984). Primeiramente, tratamos dessas questõesno pensamento heideggeriano, mais especificamente,no que se convencionou chamar de segundo Heidegger, no caso, no pensamento heideggeriano após a kehre(viravolta) em relação à fase anterior de sua filosofia, marcada pela investigação desenvolvida na obra Ser e tempo (1927). No pensamento heideggeriano posterior à referida viravolta, a questão acerca do sentido do ser, também formulada nos termos de uma questão sobre a verdade do ser, é abordada em sua relação com a história da metafísica e, nessa abordagem, o conceito de linguagem, bem como suas implicações com os conceitos de verdade e poder, adquire um papel fundamental. Em seguida, tratamos das questões da linguagem, da verdade e do poderno pensamento foucaultiano, enfatizando o primeiro e o segundo eixos de sua ontologia, isto é, os eixos do saber e do poder, implicados entre si e remetendo às pesquisas foucaultianas tanto de cunho arqueológico quanto genealógico. Precisamente nesse âmbito é que buscamos alcançar certa compreensão dos conceitos de linguagem, verdade e poder segundo Foucault, apresentando sua articulação a partirda relação entre o visível e o enunciável, formulada pelo próprio autor, e mostrando suas implicações no sentidode uma crítica ao fundacionismo e à teleologia característicos do pensamento metafísico. Ao tratarmos dos conceitos de linguagem, verdade e poder segundo Heidegger, utilizamos como referências bibliográficas as seguintes obras:A essência da verdade (1930), A teoria platônica da verdade (1931/1932, 1940),Introdução à metafísica (1935), A origem da obra de arte (1936), Meditação (1938/1939), Carta sobre o humanismo Volume 5 no 2
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(1946), Serenidade (1955), A essência da linguagem (1957/1958) e os Seminários de Zollikon(1987). Também utilizamos as obras O fim da modernidade (1985), de Gianni Vattimo, Leituras I (1991), de Paul Ricoeur, e o Dicionário Heidegger(1999), de Michael Inwood, paracomentardeterminados aspectos do pensamento de Heidegger. Com base nesses escritos, apresentamos os conceitos de linguagem, verdade e poder no pensamento heideggeriano, sua relação e, por fim, suas implicações no que diz respeito à história da metafísica ocidental, compreendida pelo referido autor, como a história do esquecimento do ser. Quanto aos conceitos de linguagem, verdade e poder segundo Foucault, empregamos como referências bibliográficas os escritos a seguir: História da loucura (1961),A linguagem ao infinito (1963),As palavras e as coisas (1966), A arqueologia do saber (1969),A ordem do discurso(1971),Nietzsche, a genealogia e a história (1971), Verdade e poder (1977), O retorno da moral (1984) e O que são as luzes? (1984). Também utilizamos o livrointituladoFoucault (1986), escrito por Gilles Deleuze, grande amigo de Michel Foucault, cujo pensamento possui certas afinidades com o seu e com quem chegou a estabelecer um diálogo bastante produtivo, o que torna relevante utilizálo como comentador. Utilizamos igualmente as obrasFoucault, a ciência e o saber (1982) eFoucault, a filosofia e a literatura(2000), de Roberto Machado. Por meio desses textos, abordamos os conceitos de linguagem, verdade e poder no pensamento foucaultiano, que o próprio autor formula nos termos de uma ontologia histórico-crítica que possui a arqueologia como método e a genealogia como sua finalidade 2 e que, por essa via, confronta o modo de pensar metafísico.
Linguagem, verdade e poderem Heidegger Martin Heidegger (1889-1976) foium filósofo alemão que se notabilizou pelo impacto de seu pensamento no século XX, tanto no sentido de ter reformulado a questão do ser e de sua verdade fora dos parâmetros estabelecidos pela tradição metafísica quanto no que diz respeito à sua influência nas obras de uma gama de filósofos, notadamente, aqueles vinculados de certa forma às tradições hermenêutica e fenomenológica, como 2
Nas palavras do próprio Foucault: ‚[...] A crítica vai se exercer não mais na pesquisa das estruturas formais que têm valor universal, mas como pesquisa histórica através dos acontecimentos que nos levaram a nos constituir e nos reconhecer como sujeitos do que fazemos, pensamos e dizemos. Nesse sentido, essa crítica não é transcendental e não tem por finalidade tornar possível uma metafísica: ela é genealógica em sua finalidade e arqueológica em seu método. Arqueológica – e não transcendental – no sentido de que ela não procurará depreender as estruturas universais de qualquer conhecimento ou de qualquer ação moral possível; mas tratar tanto os discursos que articulam o que pensamos, dizemos e fazemos como os acontecimentos históricos. E essa crítica será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer; mas ela deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos.‛ (FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos II: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. p. 364)
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Hans Georg Gadamer (1900-2002), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Emmanuel Lévinas (1906-1995), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Paul Ricoeur (1913-2005), Gianni Vattimo (1936), dentre outros. Foucault, inclusive, reconhece a influência de Heidegger em seu pensamento3. Abordamos, na primeira parte deste artigo, o impacto do pensamento de Martin Heidegger no século XX, não no sentido de sua influência sobre as filosofias de outros autores, mas no que concerne ao seu questionamento acerca das noções de ser e verdade em um sentido que escapa àquele por meio do qual essas noções foram concebidas no interior da tradição do pensamento metafísico desde os tempos de Platão. Nesse questionamento, o conceito de linguagem aparece ocupando um papel fundamental, pois a história da metafísica, entendida por Heidegger, como a história do esquecimento do ser, ou seja, a história de um pensamento que julgava pensar o ser, mas que em verdade não o pensava propriamente, constituiu-se a partir de certa linguagem, cujos termos e categorias impediram o questionamento apropriado do ser e de sua verdade e suscitaram, portanto, o seu esquecimento. O pensamento praticado por Heidegger visa à liberação da questão do ser e de sua verdade das teias, das malhas da linguagem e da gramática da metafísica, nas quais o pensamento ocidental se enredou desde a germinação e maturação do pensamento platônico. Primeiramente, Heidegger busca levantar a questão acerca do sentido do ser dirigindo seu questionamento àquele ente capaz de levantar e sustentar a referida questão. Trata-se aqui do homem, que Heidegger compreende no sentido do Da-sein, isto é, como ser-aí ou o aí do ser4. Esse caminho, trilhado pelo filósofo alemão, é registrado na obra Ser e tempo. No entanto, a obra resta inacabada. Diante desse fato, uma questão desperta: por que essa obra permaneceu inacabada?O que suscitou a não conclusão de Ser e tempo, esse percurso de Heidegger em busca do sentido do ser, isto é, do ser e de sua verdade? Parafraseando Carlos Drummond de Andrade: que pedra surgiu nesse caminho?
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Sobre essa influência de Heidegger em seu pensamento, Foucault diz o seguinte:"[...] Heidegger sempre foi para o mim o filósofo essencial. [...] Todo o meu futuro filosófico foi determinado por minha leitura de Heidegger. Entretanto, reconheço que Nietzsche predominou. [...] Meu conhecimento de Nietzsche é bem melhor do que o de Heidegger; mas não resta dúvida de que estas são as duas experiências fundamentais que fiz. É provável que, se não tivesse lido Heidegger, não teria lido Nietzsche. Tentei ler Nietzsche nos anos 1950, mas Nietzsche sozinho não me dizia nada. Já Nietzsche com Heidegger foi um abalo filosófico! [...]" (FOUCAULT, Michel. O retorno da moral. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos V: Ética, sexualidade, política. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 253) 4
Heidegger define o conceito de Da-sein de forma bastante elucidativa logo na primeira página dos Seminários de Zollikon: ‚[...] A constituição fundamental do existir humano a ser considerada daqui em diante se chamará Da-seinou ser-no-mundo. Entretanto, o Da deste Dasein não significa, como acontece comumente, um lugar no espaço próximo do observador. O que o existir enquanto Da-seinsignifica é um manter aberto de um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece e que se lhe fala a partir de sua clareira. O Da-seinhumano como âmbito de poderapreender nunca é um objeto simplesmente presente. Ao contrário, ele não é de forma alguma e, em nenhuma circunstância, algo passível de objetivação.‛ (HEIDEGGER,Martin. Seminários de Zollikon.2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2009. p. 33)
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Heidegger buscou levantar a questão acerca do sentido do ser pelo caminho da analítica existencial desenvolvida em Ser e tempo, mas se deparou com as limitações dessa via, pois somente os desenvolvimentos de sua pesquisa em torno dos conceitos de linguagem – no sentido de um modo fundamental de o ser se dar, a qual demandaria certa liberação em relação à gramática da metafísica para que a questão do ser fosse levantada e pensada adequadamente – e de história – a história da metafísica, da gramática ou linguagem da metafísica5a suscitar o esquecimento do ser, uma vez que o pensamento baseado nessa linguagem, nos seus termos, conceitos e categorias estruturantes, acarretou a confusão entre ser e ente e, ao invés de, com essa linguagem, levantar-se a questão do ser, formulou-se tão-somente a questão da entidade do ente – possibilitou pensar a questão do sentido do ser em sua proveniência histórica, constitutiva do Da-seinpropriamente dito, já que é na história do esquecimento do ser, na qual o ser mesmo se dá à linguagem e esta, tornando-se metafísica, suscita o seu esquecimento, que se funda a relação fundamental entre o homem e o ser, até mesmo sob a forma do desprezo ou da indiferença daquele para com a questão acerca do sentido ou da verdadedeste e, principalmente, porque nessa história, nessa linguagem, nesse pensamento, é o ser – não o homem, alçado arrogantemente à condição de sujeito – o que comanda, mesmo sob a forma do esquecimento. Por isso, em Ser e tempo, não se busca a formulação de uma antropologia ou de uma ética existencial, mas levantar adequadamente a questão acerca da verdade ou sentido do ser pela via da analítica existencial, mais tarde substituída por uma confrontação com a história e a linguagem da metafísica. A respeito disso, Heidegger diz o seguinte na obra intitulada Meditação:
[...] O projeto mais amplo e mais inicial com vistas ao ser-aí é muito mais o projeto do homem com vistas ao assinalamento à verdade do seer e a partir dele; o seer, porém, é o que há de mais questionável; (‚Pode‛-se ler e utilizar Ser e tempo – desconsiderando tudo aquilo que há aí de decisivo – como ‘antropologia’ e como uma espécie de ‘ética existencial’ e coisas do gênero; tudo isso, contudo, não possui nada em comum com a única vontade pensante
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A linguagem da metafísica, para Heidegger, constitui-se primeiramente na língua grega, já com a interpretação platônica do ser a partir da idéa(a ideia) e do tòagathón(o bem) e, posteriormente, prossegue através da língua latina. Heidegger chama isso de romanização do pensamento metafísico, que teve um papel fundamental para a sua difusão. Ele se refere a essa experiência de romanização em textos diversos: por exemplo, em Meditação, ao mostrar como a noção aristotélica de enérgeia, traduzida para o latim como actus e, por essa influência latina, para o alemão como Wirklichkeit, assume o sentido de “realidade efetiva”; também na Carta sobre o humanismo, ao abordar a tradução de paidéia para o latim como humanitas e suas implicações com o humanismo moderno, etc.
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deste ensaio: com o desenvolvimento questionador da questão do ser como a questão acerca da verdade do ser. [...]6
Assim, Heidegger deixa claro que o que lhe interessa não é fazer antropologia nem propor uma ética existencial, visto que ambas remetem a certo antropocentrismo7, que é consequência da história do esquecimento do ser. O que importa para o pensador alemão é a questão acerca do sentido ou verdade do ser. Essa é a questão fundamental, visto que até mesmo o homem só compreende a si mesmo a partir de como o ser se dá a pensar, mesmo sob a forma de seu esquecimento, mesmo nos termos da entidade do ente segundo o pensamento metafísico. Mas o que Heidegger quer dizer com verdade? Já que não se trata mais de pensar o ser no sentido da entidade do ente, conforme a tradição metafísica, a noção mesma de verdade não mais deve ser pensada segundo os parâmetros, os limites impostos – daí seu poder, sua violência – poressa mesma tradição de pensamento. Portanto, a verdade não corresponde, como se pensou até então, àquilo que assegura ao pensamento conhecer a entidade do ente. Essa correspondência, essa adequação e, por conseguinte, o que nisso certamente se assegura não condiz, segundo Heidegger, à verdade mesma, isto é, à essência da verdade. Ocorre aqui certa mudança de luz no pensamento, a luz da verdade indicando sua proveniência e, por conseguinte, seu quinhão de obscuridade, como que em um jogo de chiaroscuro. Heidegger interpreta o conceito de verdade não apenas no sentido de um desvelamento, desocultamento ou desencobrimento do ser do ente, melhor dizendo, da entidade do ente, que permitiria ao homem conhecer o ente em sua quididade, isto é, aquilo que ele em si mesmo é, e no interior de uma suposta totalidade do ser. Para o filósofo alemão, a verdade, que, em sua essência mais própria é a verdade do ser, também comporta uma dimensão de velamento. O ser se vela na medida em que se desvela. O autor remonta à palavra gregaalétheia, que designa verdade: a tendo um sentido de negação e létheiaremetendo a lethé, que significa velamento, ocultamento, encobrimento.Ele, em diversos escritos, grafa essa palavra do seguinte modo: a-létheia. Com essa grafia, procura chamar a atenção para o fato de que não se trata aí tão-somente de um desvelamento, mas, simultaneamente, de um velamento. Assim, a verdade do ser consiste em um desvelamento-velamento do ser, no qual o ser, ao se desvelar, ilumina os entes de determinada forma, mas essa forma corresponde apenas a um dos aspectos do ser, indicando que a luz do ser aclara, portanto, 6
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 132.
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No sentido do humanismo moderno, em que o homem é posto na condição de sujeito e os demais entes são visados como objetos. Mostramos, mais adiante, que Foucault também faz uma crítica ao humanismo, que, para ele, se constitui a partir da metafísica do sujeito.
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torna visíveis, de certo maneira, os entes ao pensamento, não se deixando abarcar nesta determinada configuração, daí o seu retraimento, o seu velamento. A diversidade do ser, a multiplicidade dos modos de ser não se deixa comportar em certo modo de se ver os entes em conjunto, por outras palavras, não se deixa esgotar em determinada conjuntura dos entesvisível, cognoscível, ao pensamento em determinada época. Assim, nenhum sistema de pensamento metafísico consegue abarcar a totalidade do ser, posto que consiste verdadeiramente em ser aquilo que se apresenta como a totalidade dos entes em um momento da história, como que sob certa luz do ser. Segundo Heidegger, essa incompreensão da alétheia,tomada tão-somente no sentido do desvelamento e, por conseguinte, implicando um esquecimento do velamento simultâneo ao ser que se desvela, remonta à teoria platônica das ideias. Quanto a isso, Heidegger afirma:
[...] A alétheiapõe-se sob o jugo da idéa. Na medida em que afirma que a ideá é a senhora que permite desvelamento, Platão está fazendo remissão a algo não dito, a saber, que daí em diante a essência da verdade não se desenvolve propriamente como essência do desvelamento a partir da plenitude essencial própria, mas se desloca para a essência da idéa. A essência da verdade abandona o traço fundamental do desvelamento.8
Em Platão, a ideia corresponde à entidade do ente, à sua quididade, à verdadeira forma ou verdadeiro aspecto do ente9, que permite ao homem conhecer o ente tal como este é em si mesmo, para além do âmbitodas sensações e das opiniões, que são variáveis, mutáveis e, dessa maneira, podem conduzir ao erro. Acima de todas as ideias estaria o tòagathón, que se costuma traduzir como a ideia do Bem e que, de acordo com Heidegger, consistiria na idealidade da ideia10,sendo esta – a ideia –, conforme exposto logo acima, a forma ou aspecto do ente. O tòagathón, portanto, corresponderia ao sumamente ente, suposta fonte do ser e do conhecer, à qual remonta a totalidade do ente de acordo com a metafísica platônica.
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HEIDEGGER, Martin. A teoria platônica da verdade. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.p. 242. 9
HEIDEGGER, Martin. A teoria platônica da verdade. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.p. 226. 10
HEIDEGGER, Martin. A teoria platônica da verdade. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.p. 240-241.
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Daí em diante, ao longo de mais de dois mil anos, a questão da verdade do ser, de seu desvelamento-velamento, caiu no esquecimento, sendo confundida com a questão referente à entidade do ente em sua totalidade. Eis, então, a história da metafísica como história do esquecimento da verdade do ser, história em que o ser se dá ao pensamento, à linguagem e, nesse dar-se, destinou-se sob a linguagem da metafísica. Eis, portanto, o destino do ser. Esclarecemos essa destinação, esse dar-se à linguagem e seu sentido metafísico logo a seguir.Essa história, esse destino do ser se consuma com o poder, a violência da técnica no mundo contemporâneo11. Afirmamos alguns parágrafos acima que, para Heidegger, a história do esquecimento do ser consiste, mais precisamente, na história do esquecimento do ser a partir do próprio ser. O ser ao se desvelar também se vela. Esse desvelamento-velamento do ser, que corresponde à essência da verdade propriamente dita, ocorre sob a forma de um envio, de uma destinação do ser, que se capta por meio da palavra, da linguagem. Assim, por exemplo, nos tempos pré-socráticos, o dar-se do ser na língua grega manifestou-se sob o nome de physis, mais tarde traduzida para o latim como natura, ou natureza, e que, nos tempos modernos, passou-sea compreender no sentido de fonte de recursos naturais disponíveis ao homem. Physis originariamente tem o sentido de uma emergência a partir de uma profundidade repousante12. Dessa forma, ela consiste já em um primeiro nomear do ser, como aquilo que emerge e, ao mesmo tempo, sempre já se recolhe em sua profundidade.Essa dimensão do recolhimento, ou seja, do velamento, que sempre já acompanha o seu desvelar, como que destina o ser ao seu próprio esquecimento. Há algo de trágico nisso, sustenta Heidegger. Para ele, o trágico pertence à essência do ser. Nesse início há já o fundamento do declínio13. Esse declínio com relação ao início remete ao esquecimento do ser a partir de si mesmo, no seu próprio dar-se à palavra, à linguagem, ao pensamento, que ele sempre já ultrapassa, visto que a essência de sua verdade é no sentido do desvelamento que se vela. Sobre esse caráter de velamento da verdade, que, de certo modo, está implicado no esquecimento do ser, Heidegger afirma:
[...] Verdade significa o velar iluminador enquanto traço essencial do seer. [...] O Velar iluminador é, quer dizer, faz com que se essencialize a concordância entre conhecimento e ente. A proposição não é dialética. Não é de maneira 11
Sobre o poder do pensamento calculador da técnica moderna, diz Heidegger: ‚Poder – a capacidade de produzir efeito, asseguramento, cálculo, cômputo dos êxitos [...].‛ (HEIDEGGER, Martin. Meditação. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 162) 12
HEIDEGGER, Martin. Meditação. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 83.
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HEIDEGGER, Martin. Meditação.Petrópolis: Vozes, 2010. p. 185.
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alguma uma proposição no sentido de um enunciado. A resposta à questão acerca da essência da verdade é a dicção de uma reviravolta no interior da história do seer. Porque ao seer pertence o velar iluminador, ele aparece inicialmente à luz da retração que o encobre. O nome desta clareira é alétheia.‛14
A linguagem, a palavra se diz originariamente lógos, que remete a légein, ambas as palavras gregas, cujo sentido original é como que de um dizer ou falar que faz ver, que deixa ver aquilo que se manifesta a partir de si15. Percebe-se aqui uma interpretação que se afina com o pensamento fenomenológico praticado, à sua maneira, por Heidegger. De certo modo, há nessa interpretação como que um eco do princípio fenomenológico de ir às coisas mesmas, ou seja, de estar atento ao fenômeno, àquilo que se manifesta por si. No caso em questão, o que se manifesta a partir de si é o ser mesmo, manifestação que sempre ocorre sob a forma do desvelamento-velamento e que se entrega primordialmente à linguagem, à palavra. Com isso, já se deixa vislumbrar a relação íntima que há entre a verdade do ser, seu desvelamento-velamento, e a linguagem, em que essa verdade se dá – o que também pode ser compreendido da seguinte maneira: a palavra dá o ser16. No que a palavra dá o ser, ela instaura um mundo17, no interior do qual o homem compreende a si mesmo e os entes à sua volta de determinada maneira, sob certa luz do ser, mas sem jamais conseguir abarcá-lo em um sistema de pensamento, pois neste,o ser em sua verdade, em seu desvelamento-velamento, só se entrega a partir de um aspecto que a linguagem, a palavra lhe captou. Essa precariedade da palavra, da linguagem, do pensamento apenas indica a riqueza, a diversidade do ser, que, em sua profundidade abissal, sempre lhe escapa. Assim, a sistematicidade e a calculabilidade inerentes ao pensamento lógico e que constituiu o modo predominante de o pensamento ocidental abordar a questão do ser, buscando conhecê-lo em sua totalidade – e nisso consiste, para Heidegger, seu poder, sua violência –, se limitou a pensar a entidade do ente como se se tratasse do ser.A linguagem 14
HEIDEGGER, Martin. A essência da verdade. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.p. 213. 15
INWOOD, Michel. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p. 65.
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Nas palavras de Heidegger: ‚[...] Àquilo que se dá pertence também a palavra, talvez não apenas também, mas antes de mais nada e isso de tal maneira que na palavra, na sua essência, abriga-se o que se dá. Pensando de maneira mais precisa, nunca se deve dizer da palavra que ela é. Deve-se dizer que ela se dá – não no sentido de que as palavras ‘estão’ dadas, mas de que a palavra ela mesma dá e concede. A palavra: a doadora. Mas o que dá a palavra? Segundo a experiência poética e de acordo com a tradição mais antiga do pensamento, a palavra dá: o ser. Assim pesando esse ‘se’ do dá-se, temos de buscar a palavra como a doadora e nunca como um dado.‛ (HEIDEGGER, Martin. A essência da linguagem. In: HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. 6. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012. p. 151) 17
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. São Paulo: Edições 70, 2010. p. 111.
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e o pensamento da lógica operaram nesse sentido, ou seja, sob a forma do esquecimento do ser. O pensamento originário, que Heidegger buscacultivar, remonta a outra experiência da linguagem, na qual o ser se destina primordialmente, na qualo mistério do ser, sua profundidade abissal, sempre se faz presente em sua ausência. A linguagem e o pensamento poéticos acolhem essa dimensão de mistério inerente ao ser, dimensão relegada ao esquecimento com o predomínio da metafísica, da lógica e, por fim, da técnica moderna, herdeira da metafísica, que, em sua essência, é já um pensamento calculador com vistas ao conhecimento do ente em sua totalidade. Com o advento da técnica moderna, em seu poder e sua violência, a entidade do ente é apreendida no sentido da objetividade do objeto, e o homem, reduzido à condição de sujeito do objeto, passa a se relacionar com o mundo de forma predominantemente tecnicista, segundo os parâmetros de um pensamento calculador, voltado exclusivamente para o fazer e o operar. Ele se torna como que dependente da técnica 18, de suas exigências e de suas garantias. A linguagem e o pensamento poéticos, no entanto, se abrem para um vir ao encontro do ser a partir de si mesmo, respeitando toda a sua riqueza, todo o seu mistério. Portanto, a linguagem originária do ser, a linguagem na qual o ser se dá originariamente é a poesia.Há aqui um dizer que faz ver o ser a partir de sua verdade, de seu dar-se sob a forma do desvelamento-velamento. A palavra poética, sua linguagem e seu pensamento, se constituem como que em resposta à voz, ao apelo do ser. O próprio pensamento filosófico está, em sua essência, mais próximo da poesia que da lógica, segundo Heidegger19. O filósofo alemão compreende que a filosofia é essencialmente pensamento originário, isto é, um pensamento que, anterior e, portanto, fora das amarras da linguagem e da gramática da metafísica, se caracteriza não por buscar a visibilidade, a cognoscibilidade do ente em sua totalidade, mas pela escuta da voz, do chamamento da verdade do ser, com toda a sua riqueza, todo o seu mistério. Essa disposição poética, originária, do pensamento filosófico enquanto pensamento da verdade do ser e não da entidade do ente é característica fundamental da linguagem. A própria linguagem é essencialmente poesia, que, na escuta do ser, instaura o mundo, 18
Sobre essa dependência do homem com relação à técnica, diz Heidegger: ‚[...] Estamos dependentes dos objetos técnicos que até nos desafiam a um sempre crescente aperfeiçoamento. Contudo, sem nos darmos conta, estamos de tal modo apegados aos objetos técnicos que nos tornamos seus escravos.‛ (HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. p. 23) 19
Quanto a isso, Heidegger afirma: ‚[...] Na mesma dimensão da filosofia e de seu modo de pensar situa-se apenas a poesia. Entretanto, pensar e poetar não são por sua vez coisas iguais. [...] O poeta fala sempre, como se o ente se exprimisse e fosse interpelado pela primeira vez. No poetar do poeta, como no pensar do filósofo de tal sorte se instaura um mundo, que qualquer coisa, seja uma árvore, uma montanha, uma casa, o chilrear de um pássaro, perde toda monotonia e vulgaridade.‛ (HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica.4. ed. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1999. p. 54-55)
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produz a história. É por isso que Heidegger afirma que a linguagem é a casa do ser, que seus guardiães são os pensadores e os poetas e que nela, na linguagem, sempre habita o homem. Linguagem e verdade estão imbricadas, segundo Heidegger, devido ao fato de que a linguagem, compreendida no sentido poético fundamental, é a linguagem da verdade do ser, do desvelamento-velamento com que o ser sempre se dá. Daí a primazia do conceito de linguagem no pensamento do segundo Heidegger, bem como sua relação íntima com o conceito de verdade. Daí sua crítica ao poder, à violência do pensamento metafísico e de sua consumação, a técnica moderna.
Linguagem, verdade e poderem Foucault Michel Foucault (1926-1984) foi um filósofo francês cujas pesquisas influenciaram consideravelmente os rumos da filosofia na segunda metade do século XX, haja vista que seu pensamento e seus conceitos repercutiram fortemente nos pensamentos de outros filósofos, como Gilles Deleuze (1925-1995), Félix Guattari (1930-1992), Giorgio Agamben (1942), dentre outros.O pensamento desenvolvido por Foucault, dos anos 60 à década de 80, se divide como que em três eixos que se imbricam: o arqueológico, referente à análise da constituição dos saberes, tendo como critério sua positividade20, não somente suacientificidade, como postulava a epistemologia francesa de então; o genealógico, acerca das relações de poder, investigando seu caráter produtivo, sua disposição em rede no corpo social e suas implicações no âmbito do saber; por fim, a ética, na qual se investigou a produção da subjetividade a partir das relações de poder-saber. É, sobretudo, no primeiro e no segundo eixos de seu pensamento, isto é, nos eixos arqueológico e genealógico, bem como em sua imbricação, que encontramos contribuições significativas de Foucault sobre a relação entre linguagem, verdade e poderem um sentido que, de certa forma, se afina com a crítica heideggeriana ao pensamento metafísico.Retomamos essa discussão acerca dos conceitos de linguagem, verdade e poder nos próximos parágrafos, confrontando as posições de Foucault com as de Heidegger. Iniciamos a confrontação supracitada argumentando que, separa Heidegger, a linguagem possui um caráter fundamental, já que é na palavra e, portanto, na linguagem, 20
A respeito disso, afirma Roberto Machado: ‚[...] A partir do momento em que o saber aparece, com As palavras e as coisas, como aquilo que especifica o nível da análise, esse nível se define pela positividade do que foi efetivamente dito e é, inclusive, condição de possibilidade da constituição das ciências. Independentemente dos critérios de validação estabelecidos pelas ciências, todo saber tem uma positividade, e é ela que deve ser examinada [...].‛ (MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber.3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 160)
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que o ser se dá, instaurando o mundo, ou seja, horizontes culturais no interior dos quais os entes adquirem determinado sentido, inclusive, o próprio existir humano;para Foucault, pelo contrário, a linguagem, considerada sob o ponto de vista dos discursos, divide ontologicamente seu caráter fundamental com as evidências ou formas de visibilidade21. Estas, por conseguinte, não se baseiamno âmbito discursivo, no domínio da linguagem. A remissão do ver ao dizer ocorre no pensamento de Heidegger porque este,diferentemente de Foucault, compreende que o âmbito do visível se funda sobre o âmbito da linguagem, afirmando, inclusive, que as formas de visibilidade fornecidas, por exemplo, pela arquitetura e pela escultura, já operam a partir de um domínio aberto na linguagem22, casa do ser, no qual o próprio ser sempre se dá em sua verdade, em seu jogo de desvelamento-velamento, conferindo certa significação aos entes no interior das épocas e das culturas, mesmo sob a forma de seu esquecimento. A separação entre o âmbito dosdiscursos, concernente à linguagem, compreendido nos termos do que se pode considerar como discurso verdadeiro em determinada época, e o âmbito da visibilidade, daquilo que em certa época é tomado como evidência ou modo de ver que permite a apreensão de algum fato, já se faz presente em História da loucura (1961), uma das primeiras obras do filósofo francês. Foucault aborda, nesse livro, essa separação de âmbitos, que não descarta possíveis imbricações entre ambos no interior de um período histórico, mostrando, por exemplo,que a experiência da loucurano contexto do Renascimento, ou seja, o modo como aquele período compreendeu a loucura, se apresenta sob duas formas distintas: uma, nos textos, a outra, na pintura. Isso mostra que o modo como a loucura é retratada pela pintura não se baseia no modo como é descrita nos textos da época. Assim, o que é tomado, naqueles tempos, como verdade acerca da loucura não se funda apenas no âmbito discursivo, não se deve apenas àquilo que a linguagem abre discursivamente, textualmente, mas também no que a pintura, divergindo dos textos, retrata. Segundo Foucault, os textos da época concebem a loucura em um sentido crítico. A pintura, por outro lado, retrata a loucura em um sentido trágico. No âmbito textual, discursivo, concernente aos escritos da época, a loucura é descrita como tendo uma 21
Sobre essa divisão radical, sustentada por Foucault, entre os âmbitos discursivo e visível, Deleuze afirma o seguinte: ‚[...] Uma ‘época’ não preexiste aos enunciados que a exprimem, nem às visibilidades que a preenchem. São os dois aspectos essenciais: por um lado, cada estrato, cada formação histórica implica uma repartição do visível e do enunciável que se faz sobre si mesma; por outro lado, de um estrato a outro varia a repartição, porque a própria visibilidade varia em modo e os próprios enunciados mudam de regime [...]. (DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 58) 22
Sobre essa primazia da linguagem, Heidegger afirma: ‚[...] A arquitetura e a escultura acontecem sempre já e sempre somente no aberto do narrar inaugurante e do nomear. Elas são regidas e conduzidas pelo aberto. Por isso, ficam sendo caminhos e modos próprios de como a verdade se encaminha para a obra. Elas são sempre um dos modos do poietizardentro da clareira do sendo, que já desapercebidamente aconteceu na linguagem.‛ (HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. São Paulo: Edições 70, 2010. p. 189-191)
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relação íntima com os vícios e, nessa medida, torna-se objeto de uma crítica. Trata-se, portanto, de uma críticadirigida aos vícios, que eram associados ao caráter excessivo da loucura e cuja origem estaria no próprio homem. Já no âmbito pictórico, a loucura é retratada como uma força cósmica inescapável, que age sobre o mundo, exercendo uma influência nefasta, poisdestrói a ordem e instaura o pandemônio,trazendo consigoa aniquilaçãode todas as coisas.A respeito dessa divergência entre o visível e o enunciável,entre o pictórico e o textual,Foucault diz o seguinte:
[...] Entre o verbo e a imagem, entre aquilo que é figurado pela linguagem e aquilo que é dito pela plástica, a bela unidade começa a se desfazer: uma única e mesma significação não lhes é imediatamente comum. E se é verdade que a Imagem ainda tem a vocação de dizer, de transmitir algo de consubstancial à linguagem, é necessário reconhecer que ela já não diz mais a mesma coisa; e que, através de seus valores plásticos próprios, a pintura mergulha numa experiência que se afastará cada vez mais da linguagem, qualquer que possa ser a identidade superficial do tema [...].23
Portanto, há na pintura da época um modo escatológico, trágico, de se compreender a loucura, que diverge profundamente do sentido moral, crítico,que lhe é atribuído pelos textos do mesmo período. Ao que tudo indica, o fazer ver não se baseia aqui em um dizer fundanteque se dá como linguagem, segundo Heidegger. O visível e o enunciável são duas formações distintas, que podem se relacionar de diferentes formas e cuja relação específica produz determinada experiência histórica, e o que interessa a Foucault é mostrar como, no interior das experiências históricas, tomadas em sua positividade, os jogos de verdade se instauram. Outra forma bastante significativa dessa articulação entre o visível e o enunciável são as imbricações entre a organização de espaços como o asilo e a prisão e os discursos médico e jurídico a respeito da loucura e do crime. Deleuze resume essas descobertas de Foucault com as seguintes palavras: [...] Na ‚idade clássica‛, o asilo surge como uma nova maneira de ver e de fazer ver os loucos, bem diferente da maneira da Idade Média, ou do Renascimento; a medicina, por sua vez, assim como o direito, a regulamentação, a literatura, etc. inventam um regime de enunciados que se refere à desrazão como novo conceito. Se os enunciados do século XVII 23
FOUCAULT, Michel. História da loucura. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.p. 17-18.
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inscrevem a loucura como grau extremo de desrazão (conceito-chave), o asilo ou internamento insere-a num conjunto que une os loucos aos vagabundos, aos pobres, aos ociosos, a todas as espécies de depravados: há aí uma ‚evidência‛, percepção histórica ou sensibilidade, tanto quanto um regime discursivo. E, mais tarde, em outras condições, será a prisão como nova forma de ver e de fazer ver o crime, e a delinquência como nova maneira de dizer [...].24
Nesse contexto de pesquisa, o filósofo francês formula, na obra intitulada As palavras e as coisas (1966), o conceito de episteme, que diz respeito ao modo como determinada época legitima e organiza os seus saberes. Cada epistemeimplica certo regime de verdade, estabelecendo determinadas possibilidades de verificação e de veridicção, a partir das evidências estabelecidas e dos discursos instituídos, respectivamente. O eixo arqueológicodas pesquisas empreendidas por Michel Foucault investiga, em suma, aconstituição das diferentes formações de saber no sentido dasepistemes ‚epocais‛, desnudadasenquanto tais em sua positividade, ou seja, revelando as formas de legitimação e de organização dos saberes particulares que lhes constituem.Essa legitimação e essa organização se instauram por meio da articulação móvel entre as visibilidades e as discursividades, as evidências e os enunciados, conforme determinadas regras, que não são universais e necessárias, mas sempre contingentes. Depreende-se disso que Foucault, ao tratar do saber, não lhe busca uma verdade inconteste, como se se tratasse de seu fundamento metafísico. Pelo contrário: sua abordagem busca analisar a positividade dos saberes, em relação aos quais aquilo que se tomacomo sua verdade nada mais é que o efeito de sua positividade. Portanto, a verdade não está na origem, exercendo a função de fundamento para o saber, mas se mostra a Foucault como um efeito de verdade que se instaura a partir das positividadesconstitutivas das epistemes, isto é, das formações de saber. Quanto à análise da positividade dos saberes, Foucault afirma o seguinte:
[...] Analisar positividades é mostrar segundo que regras uma prática discursiva pode formar grupos de objetos, conjuntos de enunciações, jogos de conceitos, séries de escolhas teóricas. [...] São a base a partir da qual se constroem proposições coerentes (ou não), se desenvolvem descrições mais ou menos exatas, se efetuam verificações, se desdobram teorias. Formam o antecedente do que se revelará e funcionará como um conhecimento ou uma 24
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.p. 58.
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ilusão, uma verdade admitida ou um erro denunciado, uma aquisição definitiva ou um obstáculo superado [...].25
No início da década de 70, aos desenvolvimentos da pesquisa arqueológica de Foucault, que, como apresentado nos parágrafos anteriores, consistiu na análise rigorosa da constituição dos saberes, em suas positividades e no sentido das epistemes, sucedeu-se outro tipo de pesquisa, que tomou como objeto de análise a questão do poder. Os desdobramentos dessa pesquisa, registrados em obras como Vigiar e punir (1975), nos três volumes publicados de História da sexualidade, dentre outros escritos, mostraram que, contrariamente ao que se costuma pensar, o poder não possui um caráter essencialmente negativo, isto é, repressivo, mas se exerce de forma positiva, quer dizer, produtiva, implicando, em seu exercício, a produção de saberes e até mesmo da própria subjetividade. Isso, de acordo com Foucault, explica inclusive o fato de o poder se manter, de ele ser aceito, algo que não se daria caso o poder fosse exclusivamente repressivo. Nas palavras do autor: ‚[...] O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que ele permeia coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso [...].‛26 Na medida em que o poder produz discurso e que os discursos, em sua positividade, produzem certos efeitos de verdade, como apresentado alguns parágrafos acima, constata-se, por essa via, que verdade e poder estão imbricados. As investigações foucaultianas a respeito da questão do poder, melhor dizendo, das relações de poder, chegam a essa constatação. Essas análises, concernentes à natureza do poder, Foucault as designa pelo nome de genealogia27.Na medida em que o poder, ao produzir discurso, produz verdade, portanto, saber, a partir de relações que se poderia chamar de relações de poder-saber, a pesquisa de cunho arqueológico e a de cunho genealógico mostram sua imbricação. Os desenvolvimentos da primeira se complementam com os da segunda. Outra característica do poder, constatada por Foucault, é que seu exercício não se dá, no interior do corpo social, a partir de centros de poder, se propagando para regiões periféricas dele destituídas. Segundo o filósofo francês, não há, no interior do corpo social, regiões completamente destituídas de poder. Em suas análises, Foucault constatou que o poder permeia a sociedade como se se tratasse de uma rede móvel, sem lugares onde ele não se encontraria. Segundo o autor, no que concerne ao poder: ‚[...] 25
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p. 219. 26
FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 27. ed. São Paulo: Graal, 2013. p. 45. 27
Sobre a genealogia do poder, bem como suas imbricações com a arqueologia do saber, Foucault afirma o seguinte:
‚[...] O fundamental da análise é que saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, e, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder [...].‛ (FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: Microfísica do poder. 27. ed. São Paulo: Graal, 2013. p. 28)
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Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir [...].‛ 28Desse modo, constata-se que o poder permeia o corpo social em sua totalidade e que sua dinâmica possui um caráter produtivo e não meramente repressivo. Assim como Foucault, Heidegger também aborda, à sua maneira, essa relação entre linguagem e poder. No entanto, o filósofo alemão entende o poder no sentido do pensamento calculador, que possibilita a apreensão da entidade do ente em sua totalidade e que, nos dias atuais, assume a forma da tecnociência, mas cuja origem remonta ao surgimento da metafísica. Para Heidegger, o poder não concerne ao que há de mais próprio ao ser. O dar-se do ser em sua verdade não se dá sob a forma do poder, mas como domínio29. Este, por sua vez, não possui o sentido de dominação, mas o de clareira ou abertura do ser que se dá. Esse domínio remete, portanto, a uma escuta, uma acolhida do ser que se doa à palavra, à linguagem, ao pensamento. Esse domínio, no qual reluz a majestade do ser, deve, por conseguinte, ser cultivado e protegido. Seus guardiães são os pensadores e os poetas. Desse modo, se Foucault encontra, em suas pesquisas, o poder a produzir discurso, a produzir verdade; Heidegger, por outro lado, em seu caminho de pensamento, encontra a verdade acima do poder, no domínio do ser que se dá à palavra, à linguagem. Há em ambos uma tentativa de pensar as questões da linguagem, da verdade edo poder fora dos preconceitos estabelecidos pela gramática da metafísica, mas o rumo de seus pensamentos, sobretudo no que concerne a essas questões, tornam-se divergentes. Além das considerações foucaultianas concernentes às relações de poder no âmbito discursivo, portanto, no âmbito da linguagem, também se mostram relevantes as considerações que o filósofo francês teceusobre a constituição da literatura na modernidade. A literatura, que se produz na época moderna, instaura uma nova relação com a linguagem, que diverge do modo como esta era concebida no período histórico anterior, isto é, a época clássica, e que se relaciona, em certa medida, com o surgimento da metafísica do sujeito e das ciências do homem.Essa questão é abordada em escritos como A linguagem ao infinito e As palavras e as coisas, que utilizamos como referência. Em A linguagem ao infinito, Foucault argumenta que a linguagem assume, no interior do discurso literário moderno, uma configuração diferente da que havia 28
FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: Microfísica do poder.27. ed. São Paulo: Graal, 2013.p. 45.
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A respeito disso, Heidegger afirma o seguinte: ‚Em seu fundamento essencial, o seer nunca é poder e, por isto, também não impotência. Se nós o denominamos o sem-poder, então isto não pode significar que o ser prescinde do poder. O nome deve indicar muito mais que o ser permanece segundo sua essência desligado do poder. O sem-poder, contudo, é domínio. O domínio no sentido inicial, porém, não carece de poder; ele impera a partir da dignidade, daquela superioridade simples própria à pobreza essencial, que não precisa de um sob-si e contra-sipara ser e já deixou para trás toda a avaliação com vistas a ‘grande’ e ‘pequeno’. Por vezes, utilizamos a palavra ‘poder’ no sentido transfigurado da maiestas; assim, ele nomeia a mesma coisa que o domínio tem em vista, por mais que essa palavra se perca uma vez mais no indeterminado e se equipare ao consonante com o poder no sentido do violento [...].‛ (HEIDEGGER, Martin. Meditação. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 165-166)
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adquirido na época clássica. Nesta, a linguagem era concebida segundo um modelo retórico, no qual se estabelecia uma relação entre dois tipos de palavra: a primeira, do Infinito, muda, indecifrável, absoluta; a segunda, à qual caberia expressar a primeira em formas que estavam fadadas a medir-se com aquela. Isso consiste em uma das manifestações da relação, característica da época clássica, entre finito e infinito. Quanto a isso, afirma Deleuze: ‚Reconhece-se o pensamento clássico por sua maneira de pensar o infinito. É que toda realidade, numa força, ‘iguala’ a perfeição, sendo então elevável ao infinito (o infinitamente perfeito); o resto é mera limitação [...].‛ 30 Essa elevação ao infinito atinge todas as modalidades discursivas, todas as formas de saber da época clássica: ‚Nas ordens derivadas, trata-se de encontrar o elemento que, não sendo infinito por si, pode contudo ser desenvolvido até o infinito e por isso entra num quadro, numa série ilimitada, num continuumprolongável. É o signo das cientificidades clássicas, ainda no século XVIII [...].‛31 Foucault, na obra As palavras e as coisas,tratadessa relação entre finito e infinito na epistemeda era clássica analisando os âmbitos discursivos da história natural, da análise das riquezas e da gramática geral. O modelo retórico da linguagem, característico da era clássica, que Foucault aborda no texto A linguagem ao infinito, segue o mesmo padrão. Foucault diz o seguinte a respeito da retórica clássica:
[...] Esta não anunciava as leis ou formas de uma linguagem; ela estabelecia relações entre duas palavras. Uma muda, indecifrável, inteiramente presente em si mesma e absoluta; a outra, tagarela, não tinha mais do que falar a primeira palavra de acordo com formas, jogos, cruzamentos cujo espaço media o afastamento do texto primeiro e inaudível; a Retórica repetia sem cessar, para criaturas finitas e homens que iriam morrer, a palavra do Infinito que não passaria jamais. Toda figura de retórica, em seu espaço próprio, traía uma distância mas, aproximando-se da Palavra primeira, comunicava à segunda a densidade provisória da revelação: ela mostrava [...].32
Com a passagem para a modernidade, a literatura e seu modo próprio de lidar com a linguagem se constituem. Seu surgimento ocorre paralelamente à instauração da formação de saber da época moderna, preservando o senso de infinito que esta descarta, 30
DELEUZE, Gilles. Foucault.São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 132-133. DELEUZE, Gilles. Foucault.São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 132-133. 32 FOUCAULT, Michel. A linguagem ao infinito. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos III: Estética: literatura e pintura, música e cinema. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.p. 59. 31
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relação com o infinito que não implica umaremissãoà palavra primeira, inaudível, infinita, como ocorriana retórica clássica, mas a palavraescrita e reescrita infinitamente,já que aquela remissão tornou-se impossível. Na era moderna, a relação finito-infinito da era clássica é abandonada; a partir de então, o saberé medido com relação à finitude. A história natural dá lugar à biologia; a gramática geral, à filologia; a análise das riquezas, à economia política. Seus objetos de saber – a vida, a linguagem e o trabalho, respectivamente – não se estabelecem conforme a noção de infinito nem são infinitamente prolongáveis. À representação, cujo poder ordenava os signos ao infinito, sucede a empiricidade delimitadora dos objetos.O estudo, a pesquisa desses objetos de saber só adquire sua legitimação por intermédio da delimitação a mais precisa possível. Assim demanda a epistemeda era moderna. Paralelamente à constituição e delimitação dos objetos das ciências empíricas, o homem se estabelece como sujeito do conhecimento, sujeito que encontra em sua própria finitude as condições de possibilidade, bem como os limites, do que pode ser conhecido. Essa metafísica do sujeito se instaura a partir da crítica transcendental kantiana.Nessas condições, em suma,nascemas chamadas ciências do homem, como a antropologia, a psicologia, a sociologia, dentre outras, que obedecem ao mesmo recorte, ao mesmo critério, ao mesmo princípio de delimitação, no caso, a finitude, sem recorrência ao infinito, ou, nas palavras de Nietzsche, a morte de Deus. Portanto, é a partir daepisteme da era moderna que a literatura propriamente dita se constitui, lidando com a linguagem fora das regras de delimitação estruturantes das formas discursivas de linguagem, melhor dizendo, rompendo com essa linguagem a partir de seu fora. Foucault afirma que a literatura, como palavra da transgressão,marcando o fim da retórica, da relação vertical entre a palavra primeira e a palavra derivada, nasce sob a forma de uma biblioteca infinita, como relação horizontal com o já dito, dizendo-se na medida em que o desdiz. Nas palavras de Foucault:
[...] A literatura começa quando [...] o livro não é mais o espaço onde a palavra adquire figura (figuras de estilo, de retórica e de linguagem), mas o lugar onde os livros são todos retomados e consumidos: lugar sem lugar, pois abriga todos os livros passados neste impossível ‘volume’, que vem colocar seu murmúrio entre tantos outros – após todos os outros, antes de todos os outros.33
33
FOUCAULT, Michel. A linguagem ao infinito. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos III: Estética: literatura e pintura, música e cinema. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.p. 60.
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Para Foucault, a transgressão característica da linguagem literária se afina com o que há de transgressor nas experiências-limite da loucura, do erotismo, da morte, âmbitos em relação aos quais a cultura ocidental se definiu, desde as origens do pensamento metafísico e, posteriormente, com o advento do cristianismo, por meioda proibição, do silêncio, da recusa.A linguagem literária forma resistência, um contradiscurso frente aos discursos instituídos. Há aqui uma ontologia do ser da linguagem quecompreende esta, sob a forma literária, como resistênciaao poder exercido tanto pela metafísica do sujeito, quanto pelas ciências positivas com o advento da modernidade. A respeito do que se afirmou logo acima, ou seja, do ser da linguagem que resiste sob a forma da literatura, diz Foucault, citando as experiências literárias de Artaud e Roussel:
[...] Era imprescindível que esse novo ser da literatura fosse desvelado em obras como as de Artaud e de Roussel – e por homens como eles; em Artaud, a linguagem, recusada como discurso é retomada na violência plástica do choque, e remetida ao grito, ao corpo torturado, à materialidade do pensamento, à carne; em Roussel, a linguagem, pulverizada por um acaso sistematicamente manejado, conta indefinidamente a repetição da morte e o enigma das origens desdobradas. E, como se essa prova das formas da finitude na linguagem não pudesse ser suportada, ou como se ela fosse insuficiente (talvez sua insuficiência mesma fosse insuportável), foi no interior da loucura que ela se manifestou – oferecendo-se assim a figura da finitude na linguagem (como o que nela se desvela), mas também antes dela, aquém dela, como região informe, muda, não-significante, onde a linguagem pode libertar-se [...].34
No entanto, com o desenvolvimento do eixo genealógico de suas pesquisas, eixo que não nega, mas que se acrescenta ao arqueológico, o posicionamento de Foucault a respeito da literatura muda radicalmente. Isso se deve ao fato de que sua concepção de poder se altera. A partir de então, Foucault interpreta o poder não mais no sentido negativo, repressor, mas no sentido positivo, produtor.
34
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas.8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 531-532.
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Com essa nova interpretação, noções como as de autor e de obra35, fundamentais à literatura, se mostram como formas de o poder se exercer no âmbito da linguagem, que Foucault concebe agora no sentido do discurso, para demarcar a divergência de suas pesquisas em relação às pesquisas formais da linguagem desenvolvidas pelo estruturalismo, discurso que não se compreende como o regime dos signos sob a forma da representação, característico da era clássica, mas como o conjunto de enunciados em sua dispersão, cujos modos de ocorrência podem ser arqueologicamente desvelados e que, genealogicamente, já implicam relações de poder.Logo, a literatura não mais lhe aparece como contradiscurso, como forma de resistência pura e simplesmente, mas como discurso e, como tal, permeado por relações de poder. Nos últimos anos de vida de Foucault, suas pesquisas de cunho genealógico desdobram-se nas questões sobre o governo de si e o governo dos outros. No âmbito dessas pesquisas, a questão da linguagem reaparece, mas, desta vez, sob a forma de uma ‚escrita de si‛, em que a escrita se articula com a questão do cuidado. A escrita aparece, então, como técnica cujo exercício, orientado pelo cuidado de si, permite a constituição do eu, técnica adotada por filósofos e escritores da antiguidade tardia36.
Considerações finais Em suma, tanto o pensamento de Heidegger quanto o de Foucault implicam uma crítica à tradição do pensamento metafísico. A crítica de ambos se dirige ao poder que, segundo eles, é constitutivo dessa forma de pensamento, desde a teoria das ideias de Platão até a metafísica do sujeito na modernidade. Para Heidegger, esse poder do pensamento metafísico consiste no esquecimento da questão fundamental, que é a questão sobre o sentido do ser, pois até mesmo a questão sobre quem é o homem dela depende, questão do sentido do ser que foisilenciada pela tradição metafísica na medida em que esta, ao invés de levantar a questão do ser em sua verdade, em seu desvelamentovelamento, levantou a questão acerca da entidade do ente em sua totalidade. Urge, para Heidegger, cultivar uma forma de pensamento, no caso, meditativo, que se pergunta pelo sentido de nossa época confrontando a história da metafísica como história do esquecimento do ser, por outras palavras,confrontando a linguagem da metafísica, o pensamento calculador, cuja consumação é a técnica moderna. 35
Foucault diz o seguinte a respeito das noções de autor e obra: ‚[...] O indivíduo que se põe a escrever um texto no horizonte do qual paira uma obra possível retoma por sua conta a função do autor: aquilo que ele escreve, aquilo que desenha, mesmo a título de rascunho provisório, como esboço da obra, e o que deixa, vai cair como conversas cotidianas. Todo este jogo de diferenças é prescrito pela função autor, tal como a recebe de sua época ou tal como ele, por sua vez, a modifica. Pois embora possa modificar a imagem tradicional que se faz de um autor, será a partir de uma nova posição do autor que recortará, em tudo o que poderia ter dito, em tudo o que diz todos os dias, a todo momento, o perfil ainda trêmulo de uma obra.‛ (FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 13. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006. p. 29) 36
MACHADO, Roberto. Foucault,a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. p.133-134.
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Foucault, por outro lado, desenvolveu um pensamento bastante mutável, nos termos de uma arqueologia do saber e de uma genealogia do poder, que se complementam e que divergem fortemente do pensamento hermenêuticofenomenológico de Heidegger. O pensamento arqueo-genealógico de Foucault, igualmente anti-metafísico, também aborda as questões da linguagem, da verdade e do poder, mas, diferentemente do pensamento hermenêutico-fenomenológico, trata da linguagem pela via do discurso, separando formações discursivas de não-discursivas, isto é, o enunciável do visível, e não distancia, no fim das contas, verdade e poder, sustentando, inclusive, que o poder produz saber, produz verdade. Nesse ponto, sua discordância com Heidegger é notória, pois o filósofo alemão sustenta que a verdade não é essencialmente poder, mas o domínio do ser que se dá à palavra aquém do poder do pensamento calculador, do pensamento metafísico. No entanto, apesar de suas diferenças, é possível pensar certa afinidade entre os pensamentos heideggeriano e foucaultiano. Essa aproximação pode se dar, inclusive, na crítica de ambos ao modo de pensar metafísico: crítica às noções metafísicas de fundamento (ou origem) e finalidade, Heidegger sustentando que esse fundamento é sem fundamento, pois se funda no abismo do ser37, logo, o que também se estabelece como finalidade reflete apenas o que assim se manifestaem determinada épocada história do ser, e Foucault argumentando que o pensamento genealógico, enquanto forma de pesquisa histórica, é anti-metafísico por não se preocupar em conceber a história se desenvolvendo a partir de uma origem, cuja lei determinaria todo o seu percurso, mas, em um sentido bastante nietzschiano, investigando a emergência dos fatos, que não possui um sentido único, masse estabelece a partir de relações de força, relações de poder38. Além disso, no que diz respeito à crítica de ambos ao pensamento metafísico, vale ressaltar sua crítica à metafísica do sujeito, Heidegger afirmando que esta é um momento mais recente da história do esquecimento do ser, momento em que o homem se posiciona no centro dos entes, assumindo o papel de sujeito, e os demais entes são interpretados sob a forma do objeto, instaurando-se a primazia da relação sujeito-objeto, fundamental para a consolidação da técnica moderna, em que a calculabilidade metafísica assim desenvolvida faz com que a questão fundamental do ser deixe de ser levantada, e Foucault 37
Sobre isso, Vattimo afirma: ‚[...] Heidegger [...] fala da necessidade de ‘abandonar o ser como fundamento’, para ‘saltar’ em seu abismo [...].‛ (VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade:Niilismo e hermenêutica na cultura pósmoderna. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 15) 38
Foucault assume aqui o conceito nietzschiano de Entestehung(emergência, ponto de surgimento): ‚[...] Isso é o fato próprio de Entestehung: não é o surgimento necessário daquilo que durante muito tempo tinha sido preparado antecipadamente; é acena em que as forças se arriscam e se afrontam, em que podem triunfar ou ser confiscadas. [...] É preciso [...] tornar-se mestre da história para dela fazer um uso genealógico, isto é, um uso rigorosamente antiplatônico. É então que o sentido histórico libertar-se-á da história supra-histórica.‛ (FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 27. ed. São Paulo: Graal, 2013. p. 79-80)
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mostrando que o primado do sujeito é, na verdade, fruto de uma gama de relações de poder-saber características da época moderna, implicando, sob a máscara de seus projetos de autonomia, de emancipação, de liberdade, formas de sujeição exercidas sobre o corpo, a sexualidade, aquilo que se define como loucura, etc. Outra aproximação poderia se dar entre o que se estabeleceu, a partir de Heidegger,no interior da tradição da hermenêutica filosófica, como o reconhecimento da finitude da compreensão e a necessidade, daí decorrente, da relação dialógica e aquilo que Foucault denomina como práticas de liberdade. Para a hermenêutica após Heidegger, por outras palavras, nos pensamentos de Gadamer, Ricoeur e Vattimo, estabelece-se a necessidade de um diálogo sempre retomado tanto com o passado, no interior de determinada tradição cultural, quanto entre as diversas culturas, como resposta ao poder nivelador da técnica39. Para Foucault, as práticas de liberdade podem se constituir em resposta àquilo que o filósofo francês chamou de estados de dominação, nos quais as relações de poder, que são dinâmicas, implicando a possibilidade de os participantes se modificarem por intermédio de influência mútua, se enrijecem e se exercem de forma predominantemente, mas não exclusivamente, unilateral40. Não poderia o cultivo dessa relação dialógica contribuir de maneira significativa para as práticas de liberdade a serem produzidas face os desafios e os perigos de nossa época?
Referências bibliográficas DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
39
Sobre essa resposta ao poder nivelador da técnica, Ricoeur, por exemplo, afirma o seguinte: ‚[...] Penso que as formas de espiritualidade que não podem dar conta da dimensão histórica do homem sucumbirão sob a pressão da civilização técnica. Mas penso também que só uma retomada do passado e uma reinterpretação viva das tradições permitirão às sociedades modernas resistir ao nivelamento ao qual as submete a sociedade de consumo. Alcançamos aqui o trabalho da cultura, mais precisamente, o trabalho da linguagem, pelo qual nossa crítica da ideia de civilização confina com o problema hermenêutico.‛ (RICOEUR, PAUL. Tarefas do educador político. In: RICOEUR, Paul. Leituras I: Em torno ao político. São Paulo: Edições Loyola, 1995. p. 160) 40
A respeito das práticas de liberdade e suas implicações com as relações de poder e os estados de dominação, Foucault diz: ‚[...] Quando um indivíduo ou um grupo social chega a bloquear um campo de relações de poder, a torná-las imóveis e fixas e a impedir qualquer reversibilidade do movimento – por instrumentos que podem ser econômicos quanto políticos ou militares –, estamos diante do que se pode chamar de um estado de dominação. É lógico que, em tal estado, as práticas de liberdade não existem, existem apenas unilateralmente e são extremamente restritas e limitadas [...]. A liberação é às vezes a condição política ou histórica para uma prática de liberdade. [...] A liberação abre um campo para novas relações de poder, que devem ser controladas por práticas de liberdade.‛ (FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos V: Ética, sexualidade, política. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 260)
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____________. A linguagem ao infinito. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos III: Estética: literatura e pintura, música e cinema. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. ____________. A ordem do discurso. 13. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006. ____________. As palavras e as coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ____________. História da loucura. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. ____________. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 27. ed. São Paulo: Graal, 2013. ____________. O que são as luzes? In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos II: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. ____________. O retorno da moral. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos V: Ética, sexualidade, política. 3. ed.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. ____________. Verdade e poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 27. ed. São Paulo: Graal, 2013. HEIDEGGER, Martin. A essência da linguagem. In: HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. 6. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012. ____________. A essência da verdade. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. ____________. A origem da obra de arte. São Paulo: Edições 70, 2010. ____________. A teoria platônica da verdade. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. ____________. Carta sobre o humanismo. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. ____________. Introdução à metafísica. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1999. ____________. Meditação. Petrópolis: Vozes, 2010. ____________. Seminários de Zollikon. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2009.
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____________. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. ____________. Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. RICOEUR, Paul. Tarefas do educador político. In: RICOEUR, Paul. Leituras I: Em torno ao político. São Paulo: Edições Loyola, 1995. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: Niilismo e hermenêutica na cultura pósmoderna. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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O tema da “morte de Deus” na filosofia de Nietzsche e Camus, pp. 115 - 127
O TEMA DA “MORTE DE DE DEUS” NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE E CAMUS David Lima Ribeiro Mestrando em Filosofia – UECE
Resumo: Em A Gaia Ciência, Nietzsche (1844-1900), diagnostica que a crença no Deus cristão perdeu crédito. O efeito desse acontecimento, a seu ver, começara a lançar sombras sobre a Europa. Ao considerar esse importante evento na filosofia de Nietzsche, analisaremos quais são essas “sombras”, buscando conhecer as consequências dessa forte consideração em que constata a morte de Deus. É importante salientar que nossa preocupação será principalmente com a questão moral. Esta que acreditamos estar vinculada com a divindade cristã e a noção de verdade. Se assim é, e se considerarmos o fato da morte de Deus, podemos pensar que a moral morreu juntamente com o que existe de mais sagrado à sociedade? Ou seria possível restituir ou buscar por novos valores? Conjuntamente a essas considerações, refletiremos essas questões a partir de Nietzsche e Camus (1913-1960) e, é essencial dizer, que em ambos os autores o tema da morte de Deus é algo em comum. Além disso, pontuaremos o motivo em que Camus visa esclarecer certa diferença de sua filosofia a uma leitura, tida como violenta, da filosofia de Nietzsche. Pois, no seu entender, a má leitura de Nietzsche, num certo sentido (contexto totalitário), pode desenfrear atos de grande violência contra a vida humana. Palavras-Chave: Deus; Moral; Verdade; Niilismo. The theme of "death of God" in the philosophy of Nietzsche and Camus
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Abstract: In the Gaia Science, Nietzsche (1844-1900) diagnoses that belief in God has lost credit.The effect of this event, in his view, had begun to cast shadows on Europe.In considering this important event in Nietzsche's philosophy, we will analyze what are these "shadows", seeking to know the consequences of this strong consideration in which he observes the death of God. It is important to note that our concern is primarily with a moral issue. This is a question that we believe is linked to a Christian deity and a notion of truth. If so, and if we consider the fact of God's death, Can we think that the morality died along with what is most sacred in society? Or would it be possible to restore or seek new values? Together with these considerations, we will reflect these questions from Nietzsche and Camus (1913-1960) and, it's essential to say, that in both authors the theme of God's death is something in common. Besides that, we will say the reason Camus aims to clarify a certain difference of his philosophy to a reading, Taken as violent, in a certain sense (totalitarian context), can unleash acts of great violence against human life. Keywords: God; Moral; Truth; Nihilism.
1. Introdução
N
ietzsche, no prólogo de sua Genealogia da Moral (1887), comenta que quando garoto dedicou a Deus uma justa homenagem em que fazia deste o “Pai do Mal”. O próprio disse que tal título consistia em sua “primeira brincadeira literária” e também seu “primeiro exercício filosófico” (NIETZSCHE, F., 2012, p.9). Ainda neste mesmo parágrafo, é apresentada uma preocupação que foi objeto de grande curiosidade e ruminação em diversas obras de Nietzsche, sendo esta: “a questão de onde se originam nosso bem e nosso mal” 1 . Em certa medida, o mesmo problema que preocupou o filósofo, refletirá em nosso trabalho. No entanto, longe de querer expor uma análise desse escrito de juventude, à qual ele se refere, nosso interesse é evidenciar o problema do valor bem e mal sob a perspectiva da morte de Deus. Para tanto, é preciso, antes de tudo, situar como fora realizada essa questão. Acreditamos que em A Gaia Ciência (1882,1887) essa questão é bem formulada. Nela, um personagem, o homem louco, procura e grita incessantemente por Deus. Indaga onde este pode estar. Em certo momento ele questiona e diz em meio aos homens: “Para onde foi Deus?, gritou ele, “já lhe direi” Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos os seus assassinos. Como o matamos?”(NIETZSCHE, F., 2012 p.137). Enfim, pode-se desse acontecimento indagar, é possível matar Deus? Ou em que sentido esse acontecimento torna-se evidente para a filosofia de Nietzsche e, mais tarde, em Albert Camus? Ao constatar esse acontecimento, o filósofo alemão, aponta que esse evento é demasiado grande. Sendo bastante difícil adivinhar todos os seus efeitos. Contudo, podemos nos perguntar: o que significa este evento? Ou, que Deus é este? Uma possível 1
Cf. Nietzsche. Genealogia da Moral, §3 – Prólogo.
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resposta é que, para Nietzsche, o Deus cristão é o fundamento mais valoroso da moral europeia. Estando este ser profundamente enraizado nos valores de toda uma cultura. Situá-lo revela qual Deus o autor de Zaratustra reflete, e, no caso, ele se refere à moral cristã. Precisar isso é importante, pois torna claro à que Deus Nietzsche se direciona, à que moral suas indagações são formuladas. E na direção de buscar encarar e pensando os primeiros efeitos desse evento é dito o seguinte pelo filósofo alemão:
Talvez soframos demais as primeiras consequências desse evento – e estas, as suas consequências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora... De fato, nós filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia que “o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”. (NIETZSCHE. F., 2012, p.208).
Assim, se a crença no deus cristão, a luz de Nietzsche, perdeu o crédito, o “mar aberto” da qual é descrito pode não nutrir mais esperanças ante a notícia de que o “velho de morreu”2. De modo contrário, esse acontecimento permitiria restituir nossos laços com nossa própria ousadia em criar valores e não mais conceber a divindade cristã como promotora deles. Podemos dizer que os nossos valores, neste sentido, poderiam passar a serem pensados e criados por nós mesmos. Que, a saber, seria, em certo sentido, o oposto a tradição cristã. Tendo em vista que esta última possui a crença em que os bons, reais e verdadeiros valores são identificados com o próprio Deus, ou seja, os atributos são atributos à própria divindade. Assim, independentes do olhar humano e da participação humana em concebê-los, os valores da moral cristã seriam compreendidos como verdadeiros por excelência. Cabendo ao homem vivenciar e dedicar-se a seguir uma vida conforme os reais valores instituídos por Deus. Diante dessa moral, Nietzsche questionara dessa maneira e utilizando tais palavras e: “[...] – se o próprio Deus se revela como a nossa mais longa mentira?” (NIETZSCHE. F., 2012, p.210). Em vista disso, poderíamos dizer que seria sensato e honesto colocar essa questão? Seria verdade que Deus é apenas a nossa mais longa mentira? No fundo uma 2
Cf. Nietzsche. Gaia Ciência, §342
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mera ficção promovida pelos homens através da história? Procurar responder essas questões pode ser uma tarefa e um exercício válido. Mas, neste momento, não queremos dizer em nossa reflexão que Nietzsche está certo, ou errado, ou se ele se propõe a esta tarefa. No entanto, o que pretendemos explicitar é a importância de apontar o que há de fecundo nessas questões e nos ater a algumas delas. Pois, acreditamos que a possibilidade de questionar o que não é efetivamente questionado, ou pelo menos não tanto posto sob o crivo da dúvida é, em nosso entender, uma tarefa necessária. Visto que, permite-se, assim, que nos deparemos com o problema moral do ocidente. E aqui, o valor dos valores de toda uma cultura é posto em questão. Indaga-se, questiona-se, procura-se avaliar como essa moral cristã tornou-se alvo de reflexão, sobretudo, no quesito da moralidade. Disso, temos em mente que detectar as condições para que exista essa doutrina moral é algo caro ao filosofar de Nietzsche e Camus, pois propicia diretamente a discussão e reflexão sobre o fenômeno da moral. Partindo desse exame, é certo que um confronto é estabelecido. Certa moral cristã passa a ser alvo de questões. Muito mais que estar sob o crivo da dúvida, o filósofo alemão, diagnostica que o tido mais alto dos valores da civilização ocidental entrou em declínio: “Deus morreu”. Que sentido possui essa afirmativa? Retomemos a expressão do homem louco: “somos todos os seus assassino”. Qual seria a medida, o alcance desse olhar? Certamente uma questão que provocou diversos impasses. E talvez não seja possível indicar ou dimensionar todas as dificuldades desta. No mais, o que nos preocupa, de fato, é apenas realizar a tarefa de averiguar e selecionar alguns desses problemas. Para isso, é essencial, mesmo que brevemente, pontuar o contexto histórico vivido por Nietzsche e por quais caminhos direcionou o seu esforço filosófico. Disso, atentando-se ao percurso intelectual do autor de A Gaia Ciência, podemos conferir que em suas obras salta aos olhos temas pertinentes à sua época. Dentre eles estão assuntos ainda vitais para nossa civilização: ciência, ética, religiosidade e política. A estes assuntos, foi-se dedicado a suspeita sobre os valores contidos em cada um desses temas. Desconfiou-se sobre os fundamentos desses conteúdos. Essa desconfiança, em nosso entender, permitiu que fossem elaboradas refinadas avaliações que assinalava características funestas que eram cultivadas pelos homens de seu tempo. Mesmo sendo inúmeros os problemas, destes nos dedicaremos a um: o niilismo.
2. Considerações sobre o Niilismo Detectar o nada da vida: seria isso o niilismo? Adiantamos que não percorreremos profundamente sobre esse vasto conteúdo3. Isto é, não procuraremos distinguir as suas 3
Franco Volpi publicara a obra intitulada O Niilismo. O mesmo busca reconstituir historicamente como o termo apareceu na tradição. Avaliando quais significações terminológicas foram atribuídos ao termo niilismo.
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diferentes maneiras concebidas por diversos pensadores e pesquisadores. Mas, importa dizer que este é um termo utilizado, reivindicado e pensado antes mesmo de Nietzsche e, sem sombra de dúvidas, de Camus. No entanto, tanto um como o outro emitiram considerações acerca desse fenômeno. Para ser breve, definiremos aqui neste primeiro momento e, a partir desses dois autores, o niilismo como ausência de sentido à vida. Assinalado isto, Albert Camus (1913-1960) apresenta em seu texto intitulado Nietzsche e Niilismo que o filósofo alemão foi o primeiro a tornar esse evento consciente. Sendo, efetivamente, aquele que teve a “consciência mais aguda do niilismo” (CAMUS, Albert., 2008, p.99). Neste momento, não nos interessa saber se ele foi ou não foi o primeiro a fazer isso. Ou se há exagero nessa afirmativa. Entretanto, o que é relevante, para o nosso trabalho, é examinar quais são as justificativas que levaram o filósofo argelino a reconhecer isso em Nietzsche. Vejamos, portanto, como Camus descreve o filósofo e autor de Zaratustra acerca deste evento: A primeira providência de Nietzsche é aceitar aquilo que conhece. Para ele, o ateísmo é evidente, ele é “construtivo e radical”. A vocação superior de Nietzsche, se acreditamos nele, é provocar uma espécie de crise e de parada decisiva no problema do ateísmo. O mundo marcha ao acaso, ele não tem finalidade. Logo, Deus é inútil, já que ele nada quer. Se quisesse alguma coisa, e aqui se reconhece a formulação tradicional do problema do mal, ser-lhe-ia necessário assumir “uma soma de dor e de ilogismo que diminuiria o valor total do devir”. Sabe-se que Nietzsche invejava publicamente Stendhal pela fórmula: “a única desculpa de Deus é que ele não existe”. Privado da vontade divina, o mundo fica igualmente privado de unidade e finalidade. É por isso que o mundo não pode ser julgado. Todo juízo de valor leva finalmente à calúnia da vida. Julga-se apenas aquilo que é, em relação ao que deveria ser – reino do céu, ideias eternas ou imperativo moral. (CAMUS, Albert., 2008 p.88-89.). Dois pontos, em nosso entender, chamam-nos atenção nessa descrição expressa por Camus. Primeiramente, o fato de o ateísmo promover uma espécie de “crise” e “parada” diante da questão do ateísmo. E, posteriormente, que diante dessa “crise”, caso ela seja sentida e apreendida, ou vivida plenamente, nós nos depararíamos com o sentimento e a compreensão de que Deus “perdeu” seu lugar. Posto que, durante muito tempo, fora ocupado por Ele. Assim, essa comoção gerada pela experiência de crise comporia a noção de que Deus teria perdido o amplo prestígio na vida entre os homens. Ante esse pensamento e experimento acerca do problema ateísta, ou mesmo, perante as dificuldades emergentes acerca da “morte de Deus”, Camus, mais uma vez, comenta outra questão presente em Nietzsche da seguinte forma: “Pode-se viver sem acreditar em nada?” (CAMUS, Albert., 2008, p.86). A resposta para essa indagação é positiva. No entanto, cabe mencionar que o niilista, conforme uma interpretação do autor de O Homem Revoltado, “não é aquele que não crê em nada, mas o que não crê no que existe” (CAMUS, Albert., 2008 p.90-91).
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E em que sentido é compreendido esse impasse? Como não crê no que existe? Distinguir essas noções acerca do niilismo faz-se necessário. Inicialmente, definimos o niilismo como ausência de sentido à vida e seguidamente apontamos algumas consequências sob o olhar da filosofia Nietzschiana e Camusiana sobre esse evento. Muita embora não explicitamos tanto esta questão. E nem é nosso objetivo, no momento, reconstituir a história do niilismo. Porém, importa relembrar que tal noção fora compreendida e apropriada de distintas maneiras. Muitas vezes, até mesmo possuindo distintas significações num mesmo pensador. Aqui, no caso, Camus adverte que Nietzsche tipifica e aponta que a causa do niilismo surge dentro dos valores que foram tradicionalmente “considerados como freio do niilismo” (CAMUS, Albert, 2008 p.88). E, esses mesmos valores, a saber, são os valores cristãos. Para constituir esta tese, diz-se que a conduta moral posta por Sócrates e o cristianismo é em si mesma o sinal da decadência, uma vez que buscam “substituir o homem de carne e osso por um reflexo de homem” (CAMUS, Albert., 2008, p.88). Vê-se que essa postura moral julga o homem a partir do que não existe, neste sentido, não creem naquilo que está posto, isto é, no aparente. Para ser mais claro, Camus expõe, segundo ele, a partir de Nietzsche, que a postura moral do cristianismo e mesmo atitude “socrática” analisam e julgam as paixões humanas com base na noção de um mundo harmonioso que, por sua vez, seria imaginário. Tendo isto em vista, o filósofo franco-argelino exprime:
Se o niilismo é a incapacidade de acreditar, seu sintoma mais grave não se encontra no ateísmo, mas na incapacidade de acreditar no que existe, de ver o que se faz, de viver o que é oferecido. Está deformação está na base de todo idealismo. A moral não tem fé no mundo. Para Nietzsche, a verdadeira moral não se separa da lucidez. Ele é severo com os “caluniadores do mundo”, porque consegue distinguir, nessa calúnia, o gosto vergonhoso pela evasão. Para ele, a moral tradicional nada mais é do que um caso especial de imoralidade. Diz ele: “É o bem que tem necessidade de ser justificado”. E mais: “Será por motivos morais que um dia se deixará de fazer o bem.” (CAMUS, Albert. 2008., p.88)
Cabe-nos ressaltar que no texto Nietzsche e o Niilismo, Albert Camus, busca expor que a filosofia do autor de Zaratustra gira em torno do problema da revolta. Sendo mais preciso, ela, a ser ver, é constituída sobre a revolta. Mencionamos isso apenas para registrar que outros problemas são colocados a partir desse escrito. Sendo oportuno observar que a “morte de Deus” é, conforme Camus, onde Nietzsche parte de sua revolta. Este é o fato que nos interessa: a morte do criador. Em relação à ideia da revolta, não será esforço para sistematizá-la e nem desenvolvê-la. Sendo tarefa nossa, como dito, pontuar e avaliar a questão da moral vinculada ao niilismo, ou a morte de Deus. Volume 5 no 2
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Dito isto, acreditamos que a questão do niilismo pode estar intimamente ligada com o diagnóstico da morte de Deus. Esse desfalecimento do Deus cristão desemboca para outra inquietação. No caso, o próprio niilismo. Se se compreendermos como dito acima que o niilismo é ausência de sentido, então, poder-se-ia dizer, não estaríamos desvencilhando-nos de toda moral? Não seria uma extrema decadência para vida humana, para usar as palavras de Camus, “se se fizer da ausência de fé um método”? (CAMUS, Albert. 2008, p.86-87). Conforme o autor de o Estrangeiro, o niilismo levado às últimas consequências imprimiria nos atos humanos o livramento de qualquer juízo de valor. E Nietzsche em relação ao niilismo parece não ser diferente. Compreendemos que ambos notaram a face nauseante e catastrófica desse feito. Acerca disso, o filósofo franco-argelino expõe em o Homem Revoltado (1951) a seguinte coisa sobre de Nietzsche e o Niilismo: Nietzsche só pensou em função de um apocalipse vindouro, não para exaltá-lo, pois ele adivinhava a face sórdida e calculista que esse apocalipse acabaria assumindo, mas para evita-lo e transformá-lo em renascimento. Ele reconheceu o niilismo e reconheceu como fato clínico. Dizia-se o primeiro niilista realizado da Europa. Não por gosto, mas pela condição, e porque era grande demais para recusar o legado de sua época. Identificou em si mesmo, e nos outros, a impotência de acreditar e o desaparecimento do fundamento primitivo de toda fé, ou seja, a crença na vida. (CAMUS, Albert., 2008, p. 86). Ou seja, consciente do desaparecimento do fundamento primitivo que apoia toda uma fé, Nietzsche e Camus parecem interpretar que existe uma forma de niilismo em que consiste em dizer que “nada vale a pena”. Sendo assim, tudo seria destituído de valor. E nisso consistiria, num certo sentido, perigo à vida. À vista disso, ambos procuram fazer frente ao niilismo que assim é compreendido 4 . Uma atitude vislumbrada, a nosso entender, é a exigência de um “critério” que possa transformar o niilismo passivo em niilismo ativo. Em Além do bem e do mal (1886),um aforismo de Nietzsche situa bem e nos ajuda compreender em que direção pensar-se-ia o niilismo ativo. Sendo, por sua vez, percebido sob o prisma da promoção ou conservação da vida, vejamos: A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele; é talvez nesse ponto que a nossa nova linguagem soa mais estranha. A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie; e a nossa inclinação básica é afirmar que os juízos mais falsos (entre os quais os juízes sintéticos a priori) nos são os mais indispensáveis, que, sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a realidade com o mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem não poderia viver – que renunciar os juízos falsos equivale 4
Cf. DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Segundo a autora, o sentido da morte de Deus é ambivalente. Pois embora novos caminhos possam surgir desse acontecimento, os imensos riscos e perigos são iminentes. Para Rosa, um deles é o niilismo passivo. Postura que compreende e pensa que “tudo é vão e nada vale a pena”. Longe de agir assim, Nietzsche busca agir como médico da civilização. Tentando confrontar esse tipo de niilismo. (p.12-13).
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a renunciar à vida, negar a vida. Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal. (NIETZSCHE, F., 2011, p 11). Primeiramente, é evidente que o termo niilismo ativo não é precisado nesta colocação nietzschiana. Porém, esse aforismo nos é pertinente na medida em que conseguimos visualizar nele a ideia de que a falsidade não chega a ser encarada, necessariamente, como algo a que temos que nos contrapor. Consciente do niilismo passivo e a fim de evitar a radicalidade de suas consequências, Nietzsche considera que a questão dos juízos que promovem ou não a vida deve ser frisada. Problema que tanto Nietzsche como Camus parecem compartilhar. Por outro lado, segue-se conjuntamente a esta noção de que, no fundo, a vida e o mundo não possuem uma verdadeira finalidade. Não tendo, portanto, um verdadeiro sentido. Assim sendo, a vida seria percebida na dimensão do “erro”. Ainda, acompanhando os passos de pensar tipos de juízos que promovam a vida, Nietzsche, por exemplo, é percebido sob a ótica de “médico da civilização”. Rosa Dias5 assinala esta noção em seu livro Nietzsche, vida como obra de arte. Segue-se disso, a ideia de que o filósofo possui “responsabilidade mais ampla” (NIETZSCHE, F., 2012, p.58). Pois, consciente de um niilismo passivo e radical, o filósofo alemão, entendia e indicava, conforme Rosa, a necessidade de haver uma educação para o ser humano que contribuísse para sua “evolução”. Dessa forma, seria possível confrontar o “absurdo” da existência, ou seja, o niilismo. Nosso intuito em mencionar isto, é apontar que essa ideia pode estar próxima ao engajamento filosófico de Albert Camus6. Visto que o mesmo acolhe a seu modo, e de forma semelhante ao autor de Zaratustra, a vida como critério e grande valor. Destacando, cada um a seu modo, no horizonte de suas filosofias, o problema aqui já dito: quais os juízos que promovem ou conservam a vida? Posto isto, atentamos em dizer que acreditamos que mesmo distanciados pelo tempo e contextos históricos distintos, ambos os pensadores aqui analisados emitiram considerações ou mesmo se posicionaram de forma similar acerca de temas que são comuns aos dois. Importa precisar também que mesmo que não sejam a todo o momento posturas convergentes, pensamos que, é possível sim, avaliar esse vínculo entre esses dois grandes autores. Diante dessas ponderações, pontuamos que tanto Camus como Nietzsche não permanecem, ou pelo menos não tentam fixar-se neste tipo de niilismo passivo, 5
Doutora em filosofia Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rosa é autora de livros como Nietzsche educador, Nietzsche e a música e Amizade estelar: Schopenhauer, Wagner e Nietzsche. 6
Não queremos forçar uma interpretação que compreende Albert Camus como “médico da civilização”. No entanto, essa noção desenvolvida em “Além do Bem e do Mal”, obra de Nietzsche, serve-nos na medida em que lança luzes acerca do tema do niilismo. E nossa pesquisa, compreende que Camus visa enfrentar esse tipo de niilismo passivo. Assim como Nietzsche enfrentou a seu modo em outrora.
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percebido como algo destrutivo à vida. E como acentuamos neste artigo em outro instante, fora assinalado que o niilismo emergiu dentro dos valores que tradicionalmente foram considerados como sua trava. Sendo esta a própria doutrina cristã. Contudo, compete-nos frisar que o ataque ao cristianismo visa apenas à sua moral. O autor de O Homem Revoltado destaca que Nietzsche resguarda a figura de Cristo e outros aspectos cínicos da igreja. A respeito disso, comentando ainda a posição de Zaratustra diante do cristianismo, Camus diz: Qual é a corrupção profunda que o cristianismo acrescenta à mensagem do senhor? A ideia de julgamento, estranha aos ensinamentos de Cristo, e as noções correlativas de castigo e de recompensa. A partir desse instante, a natureza torna-se história, e história significativa: nasce a ideia de totalidade humana. Da boa-nova ao juízo final, a humanidade não tem outra tarefa senão conformar-se com os fins expressamente morais de um relato escrito por antecipação. A única diferença é que os personagens, no epílogo, dividem-se a si próprios em bons e maus. (CAMUS, Albert., 2008, p.90) Enquanto isso, o único julgamento de Cristo quanto a esta questão consistiria “em dizer que os pecados da natureza não têm importância” e, contrariamente, “o cristianismo histórico fará de toda a natureza fonte de pecado” (CAMUS, Albert., 2008, p.90). Esta última, especialmente, acredita lutar contra o niilismo. Visto que, pensa-se que o sentido à vida é dado pelo próprio Deus. Além de que, a vida e o cosmos contém uma teleologia. Por outro lado, a hipótese diversa apresentada por Nietzsche, segundo Camus, diverge. Nela preza-se a ideia de que inexiste uma real finalidade à vida. Sustentar essa noção entra, sem rodeios, em confronto com certa moral cristã. Esse raciocínio sobre este tema, num certo sentido, nos parece ser um ponto discutível em Nietzsche e em Camus. Porém, sabe-se que tanto um como o outro não ficam restringidos a contemplar essa evidência. O primeiro, autor de Humano Demasiado Humano (1886), vê que a moral requer ilusão, vive de ilusão. Postura que, no mínimo, seria uma grande heresia à moral cristã em certas épocas, ou mesmo nos dias de hoje. Pois conceber a verdade, a moral, ou a justiça, isto é, valores caros à nossa civilização como ilusão é, certamente, afrontar e questionar o que tanto é apresentado para nós como fidedigno e verossímil. Em outras palavras, discute-se com a crença nesse Deus e com essa ideia de finalidade. Sendo esta última, algo que é identificada ao poderosíssimo patriarca dos valores do ocidente cristão. Ainda problematizando essa questão, sobre nossa relação como o valor dos valores, Nietzsche diz:
“Não é possível revirar todos os valores? E o Bem e o Mal? E Deus apenas uma invenção e finura do Demônio? Seria tudo falso, afinal? E se todos somos enganados, por isso mesmo não somos também enganadores? não temos de ser também enganadores?” – tais pensamentos o conduzem e seduzem, sempre mais à parte. (NIETZSCHE, F., 2011, p.10)
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Enunciada essas questões, podemos nos colocar certas exigências. Para que, assim, possamos tentar cumprir a nossa tarefa em apontar o elo entre a morte de Deus e o niilismo. Desse modo, cremos ser necessário interpretar e situar duas noções fundamentais em Nietzsche: o método filosofar-histórico e o procedimento genealógico. Colocar essas duas questões têm sua devida importância, uma vez que nos ajudam a compreender e apresentar como foram realizadas tantas questões, em especial, esta que problematiza a questão da morte de Deus. Como se sabe, Nietzsche evidenciou, em sua obra Humano Demasiado Humano (1878,1886), um novo método, a saber, o método do filosofar histórico. E em que consistiria esse “mais novo modelo dos métodos filosóficos?” (NIETZSCHE, F.,2011, p.15). À luz do próprio livro, o autor nos apresenta que aos filósofos faltara comprometimento, tanto o método ligado à “virtude da modéstia” como a história, disso o mesmo escreve que: Mas tudo o que o filósofo declara sobre o homem, no fundo, não passa de testemunho sobre o homem de um espaço de tempo bem limitado. Falta de sentido histórico é o defeito hereditário de todos os filósofos; [...] Não querem aprender que homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a ser; enquanto alguns deles querem inclusive que o mundo inteiro seja tecido e derivado dessa faculdade de cognição. O filósofo, porém, vê “instintos” no homem atual e supõe que estejam entre os fatos inalteráveis do homem, e que possam então fornecer uma chave da compreensão do mundo em geral: toda a teleologia se baseia no fato de se tratar o homem dos quatro últimos milênios como um ser eterno, para o qual se dirigem todas as coisas do mundo, desde o seu início. Mas tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas. – Portanto, o filosofar histórico é doravante necessário, e com ele a virtude da modéstia. (NIETZSCHE, F., 2011, p.16). Pode-se dizer, que os filósofos à qual Nietzsche se refere, veem o mundo como fato inalterável. Portanto, pensam à maneira exata. Concisos de toda verdade. Em vista disso, ele pontua a necessidade do filosofar histórico conjuntamente a modéstia. Pois, a ser ver, sua postura sobre qualquer tema pode ser acrescida de novas formas, novos valores.E ampliando ainda mais certos cuidados, Nietzsche, após a publicação de Humano Demasiado Humano, assinala no prólogo de sua Genealogia da Moral (1887) que ainda vincula-se a esse modelo metodológico, porém esclarece que adota o método do filosofar histórico juntamente com filologia e psicologia. A junção disso, ao que parece, contribuiu para que fosse possível formular o seguinte problema:
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[...] sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau” e que valor têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indícios de miséria, empobrecimento, degeneração de vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro? (NIETZSCHE, F., 2012, p.9).
Levantadas essas questões, muito provavelmente, diga-se de passagem, faremos uso impróprio delas. Mas é-nos essencial para refletir um problema em Nietzsche e nas observações realizadas por Camus no texto Nietzsche e o Niilismo. E este ponto é, por sua vez, a percepção em que a noção da moralidade não é compreendida como sendo proveniente de Deus. Ou se era, é, senão, aquele Deus moral. No fundo, o que queremos explicitar é que seu procedimento busca saber qual fora as condições que o homem criou para si os juízos do valor “bom” e “mau” e, ainda mais, quer-se conhecer que valor os valores possuem. Compete-nos lembrar neste presente trabalho que os temas do “bom” e “mau” são examinados a respeito do problema da morte de Deus. Assunto que, sem dúvida, provoca respostas diversas, no fundo, hipóteses. E realizamos o emprego desses problemas e questões na tentativa de registrar que mesmo com a perda da credibilidade na fé do cristianismo, os valores, dentro do niilismo, são postos impasses discutíveis. Com relação a isto, temos, por certo, que não se deixa de pensar a moral só porque o considerado mais alto valor dos valores decaiu. Afinal, como apresentamos a partir dos dois autores, que esse evento nos traz mais riscos, novas respostas e investigações, etc., e acompanhado a essa “experimentações do pensamento”, Nietzsche declara uma fina consciência pluralista, uma vez que compartilha de uma forma de fazer filosofia mais intuitiva muito mais que sistemática. Sem deixar, por sua vez, o esforço de ter coerência.
2.1. Camus: leitor de Nietzsche O que ecoa no texto Nietzsche e o Niilismo presente na obra o Homem Revoltado (1951) é, diga-se de passagem, um testemunho e uma confidência à defesa de Nietzsche. Não sem críticas. Entretanto, para Camus, assim como no caso de Karl Marx, o autor de Zaratustra foi um dos filósofos mais negligenciados na história da inteligência. Disso, faz-se presente a preocupação em defendê-lo. Sendo esta questão fundada, principalmente, diante do fato em que o nacional-socialismo (Regime Nazista) apropriou-se do pensamento de Nietzsche. E sendo-o acolhido por este, o mesmo, serviria para justificar que a doutrina do “além do homem” seria uma distinção clara e útil para apresentar quem são os “verdadeiros alemães”. Consequentemente, aos olhos do autor argelino, produzir-se-ia a partir desses raciocínios uma fábrica “metódica de
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sub-homens” (CAMUS, Albert., 2008, p. 97). Desembocando, assim, se levamos isso às suas últimas consequências às guerras e aos campos de concentrações nazistas. Tal fato é mencionado, uma vez que o pensamento nietzschiano fora apropriado ideologicamente pela política nazista e banalizado a fim de justificar o fascismo deste regime político. Neste sentido, a má leitura de Nietzsche sob um contexto totalitário e banal, pode, como pensa Camus, provocar reais implicações à vida. Mas, reafirmamos que a interpretação sobre o pensamento de Nietzsche nos parece ser compreendida somente num contexto específico. Sendo este: o totalitarismo. Em outra oportunidade, talvez, dedicaremos melhor o esforço empenhado por Camus em fazer justiça à Nietzsche. Neste instante, cabe salientar que é preciso, antes de tudo, elaborar uma defesa que distinga seu pensamento da maquinaria nazista. Atentando-se para esse ponto, seguimos à nossa reflexão e, mais uma vez, ela retorna ao niilismo. Relembrando que o filósofo franco-argelino considera que esse problema tornou-se verdadeiramente consciente com o filósofo alemão. Acrescentado que, a ser ver, a condição histórica vivida no século XIX permitiu que fosse possível constatar o declínio dos valores mais caros à nossa civilização ocidental. Assim, com a “morte de Deus”, podíamos nos perguntar como ficaria a vida em comunidade, como ficaria a vida moral? Se o “Pai dos valores” morreu na alma dos homens do século XIX em que Nietzsche viveu, os valores, por assim dizer, não seriam validados de qualquer maneira? Não seria verdadeiro dizer que longe de uma moralidade divina, tudo seria permitido? Legitimado? Sobre o filósofo autor de Zaratustra, Camus diz o seguinte: Por ser um espírito livre, Nietzsche sabia que a liberdade do espírito não é um conforto, mas uma grandeza que se quer e obtém, uma vez ou outra, com uma luta extenuante. Ele sabia que, quando se quer ficar acima da lei, se corre o grande risco de se achar abaixo dessa lei. Compreendeu por isso que o espírito só encontrava a sua verdadeira emancipação na aceitação de novos deveres. O essencial de sua descoberta consiste em dizer que, se a lei eterna não é a liberdade, a ausência de lei o é ainda menos. (CAMUS, Albert., 2008, p.92). O primeiro ponto a ser comentado disso é que, no entender de Camus, Nietzsche não se furta desta descoberta. Além de que, detectamos que salta aos olhos dos dois filósofos que se o homem destitui Deus de seu trono, novos deveres, podem ou devem surgir. E caso dermos razão à Nietzsche, segundo Camus, certamente nós seríamos levados metodicamente ao seu niilismo. No entanto, não fixar-se no que há de pior no niilismo é uma postura comum aos dois autores. A fim de enfrentar o problema, Camus manifesta acerca da morte de Deus a seguinte imagem:
“Quando não se encontra a grandeza em Deus”, diz Nietzsche, “ela não é encontrada em lugar algum; é preciso negá-la ou cria-la.” Negá-la era tarefa
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do mundo que o cercava e que via correr para o suicídio. Criá-la foi a tarefa sobre-humana pela qual ele se dispôs a morrer (CAMUS, Albert., 2008, p.93).
Sob esta perspectiva, consideramos que a reflexão acerca do niilismo, evento percebido como oriundo da “morte Deus”, pode suscitar a nós uma nova maneira de se relacionar com o mundo caso dermos abertura para esse experimento. Que consiste, nada mais e nada menos, no vertiginoso esforço de transvalorar o valor dos valores.
Referências Bibliográficas CAMUS, Albert. O Homem Revoltado (Valerie Rumjanek).7ª ed. São Paulo. Record, 2008. VOLPI, Franco. O Niilismo (Trad. Aldo Vannuchi). 2ª ed. São Paulo: Edições Loyala, 2012. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro (Trad. Paulo César de Sousa). 12ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ____________________.A Gaia Ciência (Trad. Paulo César de Sousa). 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ____________________. Genealogia da Moral: uma polêmica (Trad. Paulo César de Sousa). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ____________________. Humano, Demasiado Humano (Trad. Paulo César de Sousa). 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
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Reflexões acerca do olhar de Walter Benjamin a partir da “Experiência e Pobreza” e “O Narrador”, pp. 128 - 136
REFLEXÕES ACERCA DO OLHAR DE WALTER BENJAMIN A PARTIR DA “EXPERIÊNCIA E POBREZA” E “O NARRADOR” Ana Cláudia Serra Lôbo1 Gustavo Adolfo d’Almeida Lôbo2
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Mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará, graduada em filosofia licenciatura e bacharelado pela UECE e Advogada. Professora Concursada da Secretaria da Educação do Estado do Ceará e Professora Convidada pela Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA. 2
Historiador, Professor da Universidade Estadual do Ceará-UECE, Mestre em História pela UFPE e Advogado.
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Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar reflexões acerca dos ensaios “Experiência e Pobreza” e “O Narrador”, que se encontram em “Obras Escolhidas, v.1Magia e Técnica, Arte e Política” traduzida em 1985, do escritor e filósofo Walter Benjamin, um dos principais comentadores dos movimentos culturais que marcam a passagem do século XIX para o XX. Benjamin escreveu, em 1933, o ensaio “Experiência e pobreza”, e em março de 1936, produziu “O narrador”, outro importante ensaio. Suicidou-se aos 48 anos (1892-1940), vítima da perseguição aos judeus promovido pelo Estado Nazista alemão. Estes ensaios têm como objetivo refletir sobre o homem moderno, seu distanciamento da tradição, a desvalorização das narrativas e o empobrecimento das suas experiências, estes são pontos das diversas críticas trazidas pelo autor. Isto acontece, como forma de provocar no homem moderno uma inquietação e uma insatisfação. Fazer com que ele perceba o que de fato está acontecendo e se sinta incomodado e ao mesmo tempo capaz de fazer escolhas prospectivas, de mudança, com reflexos reais na sua vida e em toda sociedade. Uma vez que a história é construída pelo homem, ela pode e deve ser reconstruída por ele, pois o homem não deve contentar-se em ser apenas um observador e contemplador da história. Ela, aliás, é vista por Benjamin como a história da barbárie e da exploração. Membro que era da Escola de Frankfurt, Benjamin percebe, em sua teoria crítica, que os bens culturais são despojos da dominação e que o sujeito do conhecimento história deve ser a própria classe oprimida que, combatente, supere o passado de dominação, redimindo as gerações passadas. O homem consciente de sua história é a peça fundamental de tudo, é um ser reflexivo e sujeito de ação. E na medida em que ele interfere nas questões que fazem parte da sociedade, como as questões sociais, políticas, econômicas e filosóficas, ele as altera e é também alterado por elas. Palavras–Chave: Reflexão. Homem. Sociedade. Experiência. Pobreza. Abstract: This article aims to present reflections on the essay"Experience and Poverty" and "The Storyteller" writer and philosopher Walter Benjamin. Reflecting on the modern man, his detachment from tradition, the devaluation of the narratives and the impoverishment of their experiences are some of the various criticisms brought by the author. This happens as a way to cause the modern man a restlessness and dissatisfaction. Make him realize what is actually happening and feel uncomfortable and at the same time able to make forward-looking choices, change with real impact on their lives and throughout society. Since, as the story is constructed by man, and it can be reconstructed for it. For man should not be content to be an observer and beholder of history. It is the cornerstone of all, is a reflective and subject be action. And in mediated he interferes in matters that are part of society, such as social, political, economic and philosophical, it changes them and is also changed by them. Keywords: Reflection. Man. Society. Experience. Poverty.
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o ensaio “Experiência e Pobreza”, de 1933, Walter Benjamin apresenta diversas reflexões acerca do homem e do mundo em que ele vive. O autor acende o sinal vermelho para a descaracterização de vários aspectos fundamentais humanos, perdidos ou esquecidos pelo homem moderno. Este homem que se reveste das condições atuais, do seu tempo, se contenta com o imediato e o fugaz, desvaloriza a caminhada percorrida pelos seus antepassados e a tradição composta disto. Logo no primeiro parágrafo do escrito, o autor utiliza uma parábola, em que um velho moribundo revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos, em posse dessa informação, cavam a terra e nada encontram, porém, quando chega o outono, as vinhas produzem mais do que qualquer outra na região. Desta forma, os filhos percebem que a “felicidade não está no ouro e sim no trabalho” (BENJAMIN, 1985a, p. 114), diz o autor. Nesta passagem, o que se apreende é o fato de que não se pode desprezar o conhecimento fruto da experiência dos mais velhos, aqueles que são ricos em experiências oriundas da caminhada percorrida, com muito a repassar, através das histórias contadas oralmente aos mais novos. Cabe a estes, com menos experiência, até pela própria idade, estar atentos aos ensinamentos desses verdadeiros sábios. Benjamin utiliza narrativas alegóricas, como as parábolas, e também provérbios, para expressar suas ideias, seguindo a tradição cultural judaica, assim como Jesus na Bíblia. Ele faz isso para facilitar a aproximação entre as suas ideias e a compreensão do leitor. A sua preocupação é o alcance que o entendimento pode ter. Por isso ele recorre às palavras que estão na boca das pessoas, e as utiliza como ferramenta de reflexão e desconstrução do conhecimento posto e assimilado de forma mecânica e passiva, por ser prática, e por não dar trabalho para ser aceita e desfrutada. O homem tem que perceber que tudo na vida tem um propósito, e as coisas não estão aí em vão. E o homem que se deixa ser manipulado por outro, consciente ou inconscientemente, paga um preço muito alto, e seus reflexos são sentidos por todos. Isso é claramente realçado no texto “Experiência e Pobreza”, onde Walter Benjamin relata sobre os combatentes da Primeira Grande Guerra Mundial que, ao retornarem para suas casas, do campo de batalha, vieram emudecidos e mais pobres de experiências. O silêncio, o medo, o trauma, ocuparam o coração e a cabeça daqueles homens. Eles foram privados de viver as verdadeiras experiências. Aquelas que são vitais para o ser humano, as que fazem parte do cotidiano das pessoas, os relacionamentos, as conquistas e até mesmos as derrotas, as decepções. Quando essas experiências são retiradas das pessoas, o que sobra é muito pouco e difícil de ser compartilhado. Diz Benjamin que “na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado
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silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiência comunicáveis, e não mais ricos”. (BENJAMIN, 1985a, p.115) Segundo Benjamin, uma geração inteira foi afetada por uma nova realidade que se apresentou para ela. Assim, uma geração que ia a escola em um bonde puxado a cavalos se viu diante de uma realidade totalmente desconhecida e cruel, onde das nuvens do céu caiam explosivos destruindo tudo, inclusive o corpo minúsculo e frágil do homem. Esta geração teve suas experiências cruelmente afetadas e até mesmo reduzidas. O momento da guerra foi de angústia e sofrimento para aquelas pessoas, pois, vidas e sonhos foram interrompidos, caminhos foram desfeitos e as sequelas da guerra se arrastaram por anos, afetando as gerações posteriores. Enfim, a experiência da guerra não trouxe, concretamente, nada de felicidade para o homem e os seus reflexos puderam ser sentidos, pelo menos, nos dez anos seguintes, tendo atingido não só a vida das pessoas, mas a sociedade em geral, inclusive o mercado literário. Os livros que tratavam sobre a guerra eram vazios de experiências populares, sem o recheio concreto da história. As histórias que são transmitidas de boca em boca, ricas de conhecimentos, experiências e com cheiros, cores e luzes, foram aos poucos desaparecendo daquele contexto social. Desta forma, deve ser ressaltado, que as pessoas que são submetidas à guerra, à fome, às péssimas condições de vida, à falta de moral e de compromisso dos seus governantes, dentre outras situações, são pessoas que vivem à margem da sociedade, à margem da felicidade. Estas pessoas têm seus direitos violados, sua dignidade desrespeitada e suas experiências comprometidas ou afetadas. Então, para Benjamin, a experiência está ligada ao acúmulo de conhecimentos que uma geração transmite à outra. Isso pode acontecer por meio de histórias, parábolas, provérbios, fábulas. Isso acontecia de forma natural por haver uma ligação direta entre as duas gerações. Ocorre que, com o passar do tempo, com o avanço da tecnologia, com a massificação da cultura, e devido outros aspectos que foram fazendo parte da vida do homem moderno, este se afastou de vez da sua própria experiência, ficando preso ao mundo de fantasias e ideologias, produzidas para manipular, para direcionar as massas. A conexão do homem com a tradição e com o atual foi afastada ou até mesmo interrompida, comprometendo e mudando drasticamente a sua maneira de pensar e agir. Segundo Benjamin, é exatamente aqui que nasce no homem uma nova miséria, aquela ligada ao desenvolvimento da técnica. Diz Benjamin que “Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem”. (BENJAMIN, 1985a, p.115) Mas como pôde o homem perder sua capacidade de se ver, de se perceber e de reconhecer a si como alguém que está no mundo para refletir, para contribuir, para criar, para construir e para seguir o rumo da sua história de forma livre? Isso não aconteceu de Volume 5 no 2
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uma hora para outra, esse trabalho já vem de longe e o que é atual é apenas o reforço disso. Não surge, então, uma técnica totalmente inovadora e que levará o homem para sua plenitude e felicidade. O que surge é meramente uma “renovação” da astrologia, da ioga, da quiromancia, do vegetarismo, do espiritualismo, enfim, como diz Benjamin “...não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização” (BENJAMIN, 1985a, p.115). É apresentado ao homem fórmulas e meios para que ele fique satisfeito, pelo menos, superficialmente. São ilusões estas técnicas que chegam para o homem não de forma pura, como uma renovação autêntica, mas sim galvanizadas, com falso brilho e com um revestimento frágil, com uma camada fina, sem durabilidade, que não suporta o tempo. É necessário que o homem perceba que o que de fato é crucial para ele, é ele mesmo. As técnicas supracitadas não o mudam, não trazem a verdadeira transformação, elas trazem para o homem algo superficial, como uma crosta, um conforto aparente, apenas. Isto faz com que o homem fique mais pobre de experiências, o que retira dele a capacidade de fazer narrativas dos fatos e de transmitir as histórias, tornando-o pouco mais que um autômato, fácil de ser controlado e conduzido a fazer o que querem os ideólogos deste mundo mercadológico que atribui ao homem tão somente duas funções: ser parte da estrutura que produz e consumidor do que é produzido. Para tais funções nada é melhor que um homem que não sabe de si a não ser o que lhes dizem as leis do Capital e a lógica do mercado. Tal situação desvincula o homem à sua herança, ao seu patrimônio cultural, pois o leva a “trocar tudo pela moeda miúda do atual” (BENJAMIN, 1985a, p.119). Para Benjamin, a tecnologia e o ser humano se confundem dentro de uma relação de dependência. Ele cita, no ensaio “Experiência e Pobreza”, o camundongo Mickey, como fruto da tecnologia e da imaginação do homem. O personagem de animação representa um universo onde tudo é possível, onde há uma saída fantástica para todos os problemas. A imagem do Mickey está ligada a milagres, e isso é um dos sonhos do homem contemporâneo, que muitas vezes se vê e se reconhece nos episódios vividos pelo Mickey, ou melhor, o homem contemporâneo esquece, ou desconsidera que o Mickey é um desenho animado, que não tem vida e vontade própria e que, depende do próprio homem e da tecnologia para existir, sendo resultado da imaginação humana. A verdade é que as sociedades modernas não dão o devido valor às experiências do homem e a perpetuação disso, uma vez que estão enclausuradas em um consumismo desenfreado, utilizado como forma de salvação ou aquietação da alma pelo projeto tecnológico da modernidade. E isso é totalmente diferente do que acontecia nas sociedades tradicionais, onde as pessoas, através dos épicos e das narrativas, preservavam a sua tradição, sua experiência e sentiam-se parte delas. Os jovens paravam para ler ou ouvir as histórias, os conselhos e as experiências das pessoas mais velhas, por reconhecer nelas uma grande oportunidade de conhecimento e de ampliação de suas experiências. A ausência da mediação, da tradição
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aos nossos dias, deixa claramente a sociedade contemporânea mais empobrecida de experiências e ocasiona um declínio e um distanciamento entre o sujeito e a sua cultura. Então, a falta de compartilhamento das referências culturais e simbólicas, compromete a sociedade contemporânea e afeta a preservação dos valores e sentimentos que a vincula à sua tradição. A pobreza de experiência, que não é somente material, mas também moral, é algo que se estende e afeta não só a uma pessoa ou um grupo, ela alcança toda humanidade. Para Benjamin, é questão de honradez revelar que a pobreza de experiência, não é mais privada, e sim de toda humanidade. E o resultado disso é o nascimento de uma nova barbárie. Para Walter Benjamin, a nova barbárie é a pobreza de experiência, ou a incapacidade de transmitir experiências, que não é mais privada, de uma pessoa somente, ou de um grupo, mas sim de todos nós, da humanidade inteira. Quando diz que “trocamos tudo pela moeda miúda do atual”, ele alude à cegueira da modernidade para o que é realmente imprescindível à felicidade do homem e alerta sobre a negligência com a memória dos valores da tradição. A cultura sucumbe a uma inversão de valores. Diante dessa cultura transformada em barbárie, Benjamin lança mão de uma estratégia: perceber a barbárie como um ponto zero a partir do qual se pode recomeçar com pouco. Assim o homem pode reconstruir o mundo, sem olhar para um lado ou para outro, seguindo para frente, construindo uma nova história. A experiência que Benjamin aduz é a real, a concreta, é aquela vivenciada por cada um e repassada de uma pessoa a outra cotidianamente. E uma maneira de isso ser feito é através da narração. No ensaio “O Narrador”, de 1936, o autor alerta sobre o fato de não existir mais, nos dias atuais, os verdadeiros narradores. Diz Benjamin que “Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo distante, e que se distancia ainda mais”. (BENJAMIN, 1985b, p.197) O narrador encontra-se distante ou até mesmo extinto do mundo moderno capitalista, pela escassez da experiência, uma vez que, a ausência de narrador é o reflexo da pobreza de experiência. Ora, de fato a experiência e a narrativa estão obviamente ligadas, e se uma está desmoronando, a outra também estará. Benjamin detecta o processo de despersonalização da cultura e a crise dos valores éticos e morais de sua época, o que resulta na decadência do gênero literário da narração. Outro fator de grande relevância, para o declínio das narrativas, é o surgimento do romance burguês, como bem aponta Benjamin: O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao
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livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa — contos de fada, lendas e mesmo novelas — é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. (BENJAMIN, 1985b, p. 201) O romance surge, na modernidade e ganha forma e força com a imprensa. E é esta mesma imprensa que irá dar espaço para a publicação dos livros impressos e para a divulgação das informações. As informações irão ser repassadas para as pessoas de forma automática, sem reflexão nenhuma e de acordo com o olhar de quem as faz. Surge, então, a informação imediata, totalmente interessada, voltada para atender ao grupo ou à classe que a produz. Todos os dias as pessoas recebem informações de várias partes do mundo, notícias fresquinhas de hoje que amanhã não servirão para mais nada, sendo substituídas por outras. O prazo de validade da informação é diário e as pessoas a consomem mecanicamente, se distanciando não só das narrativas, mas, do próprio pensamento crítico, reflexivo, criativo e individual. Aduz Benjamin:
[...] é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio. Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. (BENJAMIN, 1985b, p. 203)
A narrativa, nem de longe pode ser comparada ou alcançada pela informação, pois, ela possui luz própria, e é iluminada pelos espíritos de quem narra e de quem escuta. Na narrativa se encontram as marcas e cores do narrador, uma vez que vem carregada de subjetividade, cultura e sabedoria. Segundo Benjamin: A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão — no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em
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seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1985b, p. 205) Então, conclui-se que é necessário que o homem faça reflexões acerca da importância das narrativas e suas diferenças em relação a mera informação, também é necessário que tenha um novo olhar sobre as coisas e sobre as pessoas, e, a partir daí, que ele perceba ser capaz de se conectar com o seu tempo, sem desprezar a caminhada dos seus antepassados e começar de novo. Fazendo uso da inteligência e das suas habilidades, o homem pode criar um mundo melhor, no qual as pessoas consigam viver bem, e se reconheçam como integrantes da sociedade. O homem é sujeito da sua história, tem papel antropológico, social e filosófico. Sendo assim só ele é capaz de compreender e modificar as questões humanas que fazem parte da vida privada e social. O homem também não pode se contentar com a pobreza da repetição, sem autenticidade, sem registros, como o que acontece na cultura do vidro. Walter Benjamin apresenta no texto “Experiência e Pobreza” casas de vidro. E o que são os vidros? São peças móveis que se ajustam em qualquer lugar. Também é um material duro, liso, frio, sem aura e que não esconde nada. Então, a cultura do vidro representa essa pobreza de experiência que o mundo capitalista apresenta. Construções sem criatividade, sem as marcas do homem. A cultura do vidro, assim como a imprensa, leva a reduplicação. O homem se distancia das experiências, por comodidade ou por alienação. A cultura do vidro é pobre, sem curiosidades, sem desafios, faz com que o homem não deixe rastros sobre a terra. É como se a história humana não tivesse marcas e pesos. E isso é terrível, pois a cultura do vidro faz com que o homem não construa arte, não registre suas pegadas, sua história. Isso o deixa mais pobre de experiências e compromete o legado que será deixado para as futuras gerações. Como bem expõe Benjamin, “Não é por acaso que o vidro é um material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa. É também um material frio e sóbrio. As coisas de vidro não têm aura. O vidro é em geral o inimigo do mistério. É também o inimigo da propriedade.” (BENJAMIN, 1985a, p.117). Se for feita uma comparação entre o homem moderno e o vidro, ficará demonstrado que, assim como o vidro, o homem está perdendo a capacidade de fixar sua história, de reconhecer sua identidade cultural, de se comprometer com o outro. Do mesmo modo que no vidro nada se fixa, assim também são os homens com seu individualismo acirrado: não se preocupam mais com o outro, fazendo com que seus relacionamentos sejam frágeis, fugazes e sem compromissos. A modernidade parece querer extinguir a experiência de vez quando o vidro se impõe como material de construção. Conquista tecnológica da humanidade, o vidro não permite a privacidade - é inimigo do mistério, e, concordando com Scheebart, criará um novo homem. Essa humanidade criada a partir da casa de vidro não valorizará os
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vestígios, nem qualquer outra forma de herança que uma geração possa deixar à outra, uma vez que o vidro não permite fissuras entre o exterior público e o interior privado – antigo reduto burguês; um mundo de bibelôs, franjas e cortinas que notabilizava o espaço da burguesia. O vidro transparente a tudo expõe, mas é frágil, quebradiço, transitório, uma alegoria para a condição passageira de tudo que há. A cultura tradicional e a experiência das gerações passadas perdem-se diante da condição efêmera desta nova sociedade e do homem que ela quer produzir, e produz; um ser controlado por desejos e valores que não são seus, mas de uma entidade – o mercado, cujos fundamentos são o pragmatismo das ações, o imediatismo dos resultados e a superficialidade dos sentimentos. Por fim, é necessário que o homem se perceba humano, ser que pensa, que age, que tem alma, sensibilidade e coração. E que apenas ele pode mudar o rumo da história, uma vez que, nunca pode perder de vista que o conformismo e a passividade conduzem a humanidade para um mundo injusto, desigual. É uma balança torta que sempre pende somente para um dos lados. Quando o homem se contenta com o que sempre é apresentado para ele, sem reflexão, sem consciência e o assimila de forma mecânica, ele paga um preço alto e os malefícios recaem sobre as cabeças de todos. O resultado disso é nefasto, vem de forma concreta e pode ser visto a olho nu por qualquer um, pois é a fome, é a exclusão, o sofrimento, a perseguição, enfim, tudo que retira do homem sua dignidade, sua paz, sua satisfação, sua plenitude, sua humanidade.
REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Obras Escolhidas 1. Magia e Técnica. Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985a. ________. O narrador. In: Obras Escolhidas v.1. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985b. CALLADO, Tereza de Castro. COUTINHO, Hilda. “Condição humana e Efemeridade: Análise da perda da experiência em Walter Benjamin à luz do conceito freudiano de repetição” in: Cadernos Walter Benjamin N. 14 Jan-Jun 2015, acessível no site: http://www.gewebe.com.br/pdf/cad14/caderno_10.pdf. Acesso em: 28 mai. 2016. SALES DA PONTE, Carlos Roger. ANTUNES, Deborah C. Nós, os Bárbaros! Reflexões a partir de “Experiência e Pobreza”. in: Cadernos Walter Benjamin N. 15 Jul-Dez 2015, acessível em: http://gewebe.com.br/pdf/cad15/caderno_07.pdf. Acesso em: 05 jun. 2016.
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Uma interpretação da obra O fetichismo na música e a regressão da audição de T. W. Adorno, pp. 137 - 164
UMA INTERPRETAÇÃO DA OBRA O FETICHISMO
NA MÚSICA E A REGRESSÃO DA AUDIÇÃO DE T. W. ADORNO
Fábio César da Silva1
Resumo: O objetivo deste artigo é fazer uma interpretação da obra O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição de T. W. Adorno (1903-1969), publicada em 1938, descrevendo as duas partes distintas que se estruturam essa obra em forma de temas principais, como [1] ‚o fetichismo na música‛, que remete à produção de bens culturais; e [2] ‚a regressão da audição‛, que remete ao consumo desses bens. Além disso, descreveremos temas secundários regularmente apontados por Adorno nessa obra, como seus comentários sobre [i] a Arte autêntica e [i.i] a música, cuja divisão se estabelece em música séria e música ligeira. Na verdade, o objetivo deste artigo está ligado à questão interpretativa de esclarecer de que modo Adorno fez uso do conceito de fetichismo marxiano originalmente usado no âmbito da economia política para o âmbito estético. De fato, isso evidencia a elaboração do conceito original de fetichismo da mercadoria de Karl Marx para fetichismo da mercadoria cultural feita por Adorno, caracterizando seus aspectos ‚objetivos‛, na produção, e seus aspectos ‚subjetivos‛, no consumo de mercadorias. Palavras-chaves: Fetichismo na Música; Regressão da Audição; Fetichismo da Mercadoria Cultural; Música; T. W. Adorno.
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Mestre em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Professor de Filosofia da UEMG/Unidade Ibirité. E-mail: fcs128@hotmail.com
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Uma interpretação da obra O fetichismo na música e a regressão da audição de T. W. Adorno, pp. 137 - 164
Abstract: This paper aims to interpret the work On the Fetish-Character in Music and the Regression of Listening by T. W. Adorno (1903-1969), published in 1938, describing two distinct parts that structure the work in the form of main themes, such as [1] ‚the fetish-character in music‛, that refers to the production of the cultural products; and [2] ‚the regression of listening‛, that refers to the consumption of these products. In addition, we will describe secondary themes regularity pointed out by Adorno in his work, as his comments on [i] the authentic Art and [ii] the music, which division is established in serious music and light music. In fact, the aim of this article is related to interpretive issue of how Adorno made use of the concept of Marxian fetishism, originally used in the political economy scope, in the aesthetic scope. Indeed, this evidences how the original concept of fetishism of commodity proposed by Karl Marx was elaborated by Adorno and became the fetishism of the culture commodity, characterizing its "objective" aspects, in the production, and its "subjective" aspects, in the consumption of commodities. Keywords: Fetish-Character in Music; Regression of Listening; Fetishism of Culture Commodity; Music; T. W. Adorno.
1. Introdução
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a interpretação do pensamento de Theodor W. Adorno, uma importante questão é esclarecer de que modo ele fez uso do conceito de fetichismo marxiano originariamente usado no âmbito da economia política para o âmbito estético. Esse uso é caracterizado pela elaboração conceitual do fetichismo da mercadoria de Marx para fetichismo da mercadoria cultural. Isso é evidenciado na leitura de uma das primeiras obras de Adorno, O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição, publicada em 1938, em que há uma elaboração do fetichismo em seus aspectos ‚objetivos‛, na produção, e ‚subjetivos‛, no consumo de mercadorias. Nesse texto, essa elaboração é caracterizada pela divisão em duas partes em forma de temas: a primeira, sobre o fetichismo na música, enfatizando mais o aspecto ‚objetivo‛ ou a produção das mercadorias culturais; a segunda, sobre a regressão da audição, enfatizando mais o aspecto ‚subjetivo‛ ou a recepção dessas mercadorias2. Muito embora essa divisão entre aspectos ‚subjetivos‛ e ‚objetivos‛ seja textualmente notada, para Adorno, ela não acontece de maneira tão distinta na realidade. A produção e o consumo da mercadoria cultural constituem lados opostos de uma mesma racionalidade reificante que Adorno denominou de racionalidade instrumental3. Essa racionalidade se configura num tipo de ideologia totalizante na sociedade capitalista direcionada para um tipo de teleologia meramente baseada em causas eficientes, ignorando qualquer tipo de causas finais. Na 2
Como bem notou Rodrigo Duarte: ‚Já o título do texto 'O fetichismo na música e a regressão da audição' indica que são tratados dois fenômenos diferentes, porém essencialmente correlatos; por assim dizer, os lados objetivo e subjetivo do mesmo processo‛ (DUARTE, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 30). 3 ‚A racionalidade dos meios é frequentemente chamada de 'razão instrumental'. Em geral, a razão instrumental é a que está a serviço de algum outro tipo de razão que se considera principal; de acordo como isso, a razão instrumental é auxiliar e subordinada a uma razão 'substantiva' ou substancial'. […]. Em princípio, parece que a razão instrumental é um 'saber como' ao contrário de um 'saber o que' […]‛. (RAZÃO (TIPOS DE). In: MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 1623-4).
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Uma interpretação da obra O fetichismo na música e a regressão da audição de T. W. Adorno, pp. 137 - 164
verdade, sua teleologia seria camuflada por essas causas eficientes por meio de uma finalidade mormente mercadológica, configurando-se numa ideologia no sentido negativo4. Todavia, isso não significa que haveria estritamente uma manipulação direta da indústria de produção de mercadorias culturais sobre os consumidores, como se eles se comportassem como marionetes dos donos de grandes empresas. Ao que parece, haveria uma prevalência ideológica de um tipo de racionalidade eficiente que não deixa em evidência suas finalidades. Seria sob essa rubrica que Adorno direcionou suas contundentes críticas contra o ensaio A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit) (1936) de seu amigo Walter Benjamin (1892-1940), pois Benjamin teria subestimado a capacidade da racionalidade instrumental de totalizar sua teleologia mercadológica mediante a reprodutibilidade técnica na Arte5. Ao que parece, a resposta de Adorno ao ensaio de Benjamin fundamentaria principalmente na elaboração do conceito marxiano de fetichismo da mercadoria em fetichismo da mercadoria cultural, pelo qual se caracterizariam os produtos culturais sob a reprodutibilidade técnica. Na perspectiva de Adorno, haveria na sociedade industrializada uma dicotomia entre Arte autêntica e fetichismo da mercadoria cultural. Assim, esclarecer o que Adorno entendeu por Arte autêntica, sobretudo a música, e como ele elaborou o fetichismo marxiano em seus aspectos ‚objetivos‛ e ‚subjetivos‛ seriam estratégias interpretativas eficientes para entendermos como ele fez uso de um conceito originariamente do âmbito da economia política para o âmbito estético como elaboração conceitual. É o que faremos a seguir.
2. Discussão Interpretativa Na obra O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição, Adorno segue à risca seu estilo pautado pela prevalência de parataxes, infinidades de eruditas citações num estilo ensaístico e dialético. Assim, à primeira vista, parece não haver uma estrutura rígida que sustentaria essa obra, embora haja uma certa regularidade no tratamento de assuntos que poderia ser considerada como uma estruturação um tanto quanto flexível. Isso é patente, como já foi mencionado, pelo fato de haver uma estrutura textual pela divisão em forma de dois temas principais, configurando-se em polos explicativos distintos da 4
Quando menciono ‚ideologia no sentido negativo‛ tenho em mente o mesmo significado que Raymond Geuss chama de ideologia no sentido pejorativo: ‚O uso básico do termo 'ideologia' neste programa [da ideologia no sentido pejorativo] é um uso negativo, pejorativo, ou crítico. 'Ideologia' é 'ilusão (ideológica)' ou 'consciência (ideologicamente) falsa'‛ (GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a Escola de Frankfurt. Tradução de Bento Itamar Borges. Campinas, SP: Papirus, 1988, p. 24). 5 A veracidade de que essas críticas de Adorno são em resposta ao ensaio de Benjamin por acreditar que nele havia um teor apologético à reprodutibilidade técnica está explícita nas correspondências entre Adorno e Benjamin, datada de 18/03/1936.
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seguinte maneira: [1] ‚o fetichismo na música‛, remetendo à produção de bens culturais; e [2] ‚a regressão da audição‛, remetendo ao consumo desses bens. Essa estruturação não é muito rígida, porque nesses polos, apesar de distintos, existem elementos de um confluindo no outro. Além disso, há outros temas secundários apontados com alguma regularidade por Adorno como as explicações da [i] Arte autêntica e da [i.i] música, cuja divisão se estabelece em música séria e música ligeira. Sobre essa estruturação, de modo semelhante, Safatle fez o seguinte comentário: ‚Lembremos, primeiro, que não se trata exatamente de um diagnóstico, mas de um triplo diagnóstico que diz respeito aos modos de audição, à estrutura formal das obras e à função social da música no capitalismo‛ 6. Desse modo, seguindo a estrutura textual de Adorno, num primeiro momento, explicaremos os seguintes temas secundários: [i] a Arte em geral; e [i.i] a música, bem como suas distinções entre música séria e música ligeira. Num segundo momento, explicaremos os temas [1] ‚o fetichismo na música‛ e [2] ‚a regressão da audição‛7.
2.1. Arte Autêntica e a Divisão entre Música Séria e Música Ligeira Em O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição, Adorno aduziu o que ele entendeu por [i] Arte autêntica da seguinte maneira: ‚A arte responsável orienta-se por critérios que se aproximam muito dos do conhecimento: o lógico e o ilógico, o verdadeiro e o falso‛ 8. Isso poderia significar que os problemas de resolução formal que se encontram inseridos nas obras de Arte são bem similares aos problemas de formulações conceituais da Filosofia, pois ambas estão diante de uma mesma confrontação com a racionalidade: ‚arte é racionalidade, que critica esta sem lhe subtrair; […]‛ 9. Para Adorno, a resolução artística pode sugerir caminhos a uma possível solução para as questões filosóficas mais abrangentes. Para isso, deve-se fazer uma contraposição entre Arte e Filosofia, servindo como complementação mútua, um tipo de simbiose, pois a Arte, ligada ao sensível, ao objeto particular, careceria de uma explicação conceitual ordenando seus fins. Por sua vez, a Filosofia, ligada ao inteligível, ao conceito, careceria de uma aproximação maior com o objeto a ser representado. Talvez se possa pensar na hipótese de que haja no pensamento de Adorno a ideia de uma dependência maior da Filosofia em relação à Arte, pois certas resoluções formais de obras exemplares direcionariam a Filosofia para uma possibilidade de resolução filosófica que em geral 6
SAFATLE, Vladimir, Fetichismo e Mimesis na Filosofia da Música Adorniana. Discurso: Revista do Departamento de Filosofia da USP, São Paulo, n. 37, 2007, p. 376. 7 Além desses procedimentos, recorrerei, por vezes, à obra tardia de Adorno, Teoria Estética, de 1969, a fim de esclarecer certos aspectos não muito claros neste texto de começo de carreira, O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição, de 1938. Com efeito, um desses aspectos se refere à Arte, cujas explicações são menos elucidativas no texto de 1938 do que no texto de 1969. Usarei desse procedimento cônscio de não ser rigorosamente eficiente quando se estuda tais obras separadamente, porque são de épocas distintas e possuem temas incomuns. No entanto, meu propósito é captar minimamente as intenções mais gerais de Adorno, não sendo necessário, assim, ater-me aos detalhes mais específicos dessas obras isoladamente. 8 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 65-66. 9 ADORNO, T. W. Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Rio de Janeiro: Edições 70, 2006, p. 69.
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estaria ligada à linguagem, pois ‚a arte retifica o conhecimento conceitual‛ 10. É como se o conhecimento tivesse um lugar-tenente como uma possível resolução: ‚Analogamente à construção de um dado na teoria do conhecimento, [...], é também objetivo de tal maneira que a obra de Arte aí se esgota e em si a incorpora; […]‛ 11. Para Adorno, há na Arte esse tipo de correção conceitual, trazendo ao conceito o que lhe é exterior no processo de formalização da obra artística, porque a ‚verdade das obras de Arte depende de se elas conseguem absorver na sua necessidade imanente o não-idêntico ao conceito‛ 12. Visto que a Filosofia de Adorno se baseia numa verdade em busca de, por meio do processo de conceitualização, apreender além do conceito o que seria também da ordem do não conceituado ou aquilo que não seria meramente hipostasiado em ideia, ou seja, o que Adorno denominou de não-idêntico. Com efeito, a formalização estética pode servir como um tipo de cifra ilustrativa, exemplar de um modo de conceitualização filosófica, pois na Arte haveria um processo em que ‚o que é qualitativamente contrário ao conceito [was qualitativ dem Begriff konträr ist] só com dificuldade se reduz ao seu conceito; mas a forma, na qual algo pode ser pensado, não é indiferente ao pensado‛ 13. Sob esse aspecto, um ponto que se pode diferenciar a estética de Adorno das estéticas do século XX seria sua capacidade de analisar as obras de Arte pelo critério de verdade e falsidade, critérios eminentemente filosóficos: ‚O conteúdo de verdade das obras não é o que elas significam, mas o que decide da verdade ou falsidade da obra em si, e só esta verdade da obra em si é comensurável à interpretação filosófica e coincide, pelo menos segundo a ideia, com a verdade filosófica‛ 14. A estética adorniana é sui generis no sentido de possuir uma dialética entre autonomia formal da Arte e uma heteronomia social, ou seja, quanto mais formalmente autônoma a obra de Arte, mais ela aproximaria de uma heteronomia por uma refração social da sociedade na qual ela estaria inserida, pois ‚A arte é a antítese social da sociedade, e não deve imediatamente deduzir-se desta‛ 15. Isso ocorre pelo fato de a obra de Arte ser considerada por Adorno análoga às figuras metafísicas e um tanto quanto místicas, a saber, as mônadas leibnizianas16. Não menos místico seria seu significado: são seres particulares hermeticamente fechados que refletem dentro de si o universo. Diante disso, surgiria uma pergunta: como Adorno usaria a espantosa analogia entre mônadas e obra de Arte? Da seguinte maneira: é como se houvesse na Arte autêntica uma ‚dialética da solidão‛, em que o caráter social servisse como ‚tema‛ na obra de Arte 10
ADORNO, T. W. Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Rio de Janeiro: Edições 70, 2006, p. 133. ADORNO, T. W. Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Rio de Janeiro: Edições 70, 2006, p. 189-190. 12 ADORNO, T. W. Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Rio de Janeiro: Edições 70, 2006, p. 120. 13 ADORNO, T. W. Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Rio de Janeiro: Edições 70, 2006, p. 131. 14 ADORNO, T. W. Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Rio de Janeiro: Edições 70, 2006, p. 152. 15 ADORNO, T. W. Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Rio de Janeiro: Edições 70, 2006, p. 19. 16 Uma das definições de mônada é: ‚Conceito desenvolvido por Leibniz, em cuja Filosofia as mônadas são as verdadeiras unidades e por isso as únicas substâncias verdadeiras. As mônadas não têm extensão, sendo entidades mentais suscetíveis de percepção e estados apetitivos, embora cada uma delas seja auto-suficiente e se desenvolva sem qualquer relação com outras mônadas. Sua auto-suficiência é frequentemente enfatizada na afirmação de que as mônadas 'não têm janelas'. Os fundamentos da doutrina encontram-se na tese segundo a qual as relações têm de ser explicadas em última instância pela natureza categorial, não-relacional, das coisas‛ (MÔNADAS. In: BLACKBURN, Simon. Dicionário de Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997). 11
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independente da vontade do artista. Sob essa perspectiva, paradoxalmente, um ‚discurso solitário‛ artístico expressa mais a sociedade vigente do que um discurso comunicativo17. Por isso, a ideia da dialética hegeliana de que haveria uma relação recíproca entre o universal e o particular para Adorno se estabelece em algumas obras artísticas exemplares, tanto em sua constituição intrínseca como extrínseca, isto é, tanto da sua conformidade material em obra como desse material ao social. Com isso, a estética de Adorno cumpre o papel de afirmar tanto o valor da própria coisa como Arte, em sua autonomia, como sua qualidade de promessa de felicidade (promesse de bonheur), em sua heteronomia, como aponta Safatle: ‚Seu esforço consiste em relativizar a tendência de autonomia das esferas de valores na Modernidade, ao afirmar que a atividade artística nos fornece coordenadas para pensarmos tanto a ação moral quanto as expectativas cognitivas‛ 18. Com tais postulações da estética adorniana, não poderíamos pensar que a Arte saísse ilesa sob os auspícios da reprodutibilidade técnica a qual sempre se isentou da relação entre conteúdo e forma. Isso quer dizer que, ao que parece, com a reprodutibilidade técnica não se consegue divulgar em grandes escalas produtos artísticos, cujas qualidades são sempre exemplares e únicas, por meio de várias cópias. Sendo assim, essa seria uma das razões pelas quais esse texto de Adorno se transformou numa impetuosa contraposição às teses do ensaio A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica de Walter Benjamin. Contextualmente, a confecção da obra O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição seria uma resposta de Adorno a esse ensaio de Benjamin19. Nesse ensaio, Benjamim pensou que o cinema poderia vir a ser um novo tipo de Arte que emanciparia a massa, pois o cinema não tem o requisito que o filósofo cunhou de aura da obra de Arte. Aura seria uma qualidade metafísica encontrada nas obras artísticas, originada na época de sua estreita vinculação com a religião, em que havia uma relação dessas obras com o indivíduo por meio do culto. Qualidade essa que configuraria a Arte no seu aqui e agora, bem como em sua singularidade como objeto único. Na modernidade, depois da separação entre a Arte e a Religião, o culto foi substituído pela exposição da obra, embora mantendo a sua qualidade de aura. Com o advento do capitalismo, no qual a forma mercadoria se transformou em equivalência geral de produção, a Arte começou a ser divulgada por intermédio da forma mercadológica pelo procedimento técnico que Benjamin denominou de reprodutibilidade técnica. Sabe-se que o capitalismo, que se baseia na lucratividade, necessita de maior número de produtos no mercado, por isso há um desenvolvimento contínuo e progressivo 17
Schönberg seria modelo exemplar disso. SAFATLE, Vladimir, Fetichismo e Mimesis na Filosofia da Música Adorniana. Discurso: Revista do Departamento de Filosofia da USP, São Paulo, n. 37, 2007, p. 371-372. 19 Embora o ensaio sobre a ‚Reprodutibilidade Técnica‛ de Benjamin sirva como um contraponto importante em relação às teses do ensaio sobre O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição de Adorno, não se pode pensar que essas teses restringiram a esse contraponto, pois o fetichismo na música em Adorno se desdobra em questões eminentemente de fundamentação de sua Filosofia. Como salienta Safatle: ‚Sem desconsiderar a importância desse diálogo [entre Benjamin e Adorno pela contraposição de seus respectivos ensaios] na consolidação do motivo adorniano do caráter fetichista, devemos lembrar que ele não explica totalmente a centralidade do problema do fetichismo no interior da Filosofia adorniana da música‛ (SAFATLE, Vladimir. Fetichismo e Mimesis na Filosofia da Música Adorniana. Discurso: Revista do Departamento de Filosofia da USP, São Paulo, n. 37, p. 376). 18
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nas forças de produção. A reprodutibilidade técnica é um aperfeiçoamento dessas forças de produção, pois agora um produto pode ser copiado do ‚original‛ com finalidade de alcançar maiores consumidores20. Todavia, com o advento da reprodutibilidade técnica, no mínimo duas consequências poderiam afetar a Arte: primeira, uma quebra na tradição da transmissão da obra de Arte por lhe tirar sua qualidade aurática; segunda, perder-se-ia a aura, mas se ganharia em termos de maior acessibilidade diante de um público. No ensaio da ‚Reprodutibilidade Técnica‛, Benjamin posicionou-se com otimismo diante dessas duas consequências, por pensar que a acessibilidade ao produto cultural poderia ser sinônima de democratização das obras artísticas, rompendo com uma longa tradição de acessibilidade restrita da Arte por parte de uma classe social elitista que perdurou desde a origem do produto artístico21. Em O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição, por sua vez, Adorno afirmou como um bem artístico específico, a música, foi sendo transmitido nos Estados Unidos de tal maneira que ocorreu uma ‚degradação‛ de suas estruturas constituintes. Isso estava intimamente ligado às produções e às transmissões musicais que configuraram, consequentemente, num consumo generalizado dessa ordem: ‚As obras que sucumbem ao fetichismo e se transformam em bens de cultura sofrem, mediante este processo, alterações constitutivas‛ 22. Adorno identificou essa degradação como um fenômeno similar ao fetichismo da mercadoria marxiano, denominou-o de fetichismo na música23. Para descrever esse fetichismo como um fenômeno de ‚degradação‛, Adorno usou da divisão entre a música séria, correspondendo ao que se entende por música ‚erudita‛, e a música ligeira, correspondendo ao que se entende por música popular. Apesar de ter usado essa divisão, Adorno reconheceu que ela seria um tanto quanto problemática, pois não haveria uma delimitação muito nítida entre tais tipos de músicas. Isso seria comprovado, em termo de história da música ocidental, com a composição da 20
Segundo Benjamin, o que ocorreu, de fato, na reprodutibilidade técnica foi uma emancipação do produto copiado em relação ao produto predominantemente original da reprodução manual. Isso se deu devido ao fato das perdas de aura e de autenticidade na reprodutibilidade técnica que na reprodução manual, por sua vez, existia como condição essencial: ‚Em primeiro lugar, relativamente ao original, a reprodução técnica tem mais autonomia que a reprodução manual. [...] Em segundo lugar, a reprodução técnica pode colocar a cópia do original em situações impossíveis para o próprio original‛ (BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica. In: Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Obras Escolhidas. v. 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996, p. 168). 21 Os fundamentos pelos quais sustentam aquelas contundentes críticas de Adorno contra o ensaio de Benjamin podem ser sintetizados conforme a seguinte citação: ‚Segundo Adorno, passou despercebido a Benjamin que a técnica se define em dois níveis: primeiro ‘enquanto qualquer coisa determinada intra-esteticamente’ e, segundo, ‘enquanto desenvolvimento exterior às obras de arte’. O conceito de técnica não deve ser pensado de maneira absoluta: ele possui uma origem histórica e pode desaparecer. Ao visarem à produção em série e à homogeneização, as técnicas de reprodução sacrificam a distinção entre o caráter da própria obra de arte e do sistema social. Por conseguinte, se a técnica passa a exercer imenso poder sobre a sociedade, tal ocorre, segundo Adorno, graças, em grande parte, ao fato de que as circunstâncias que favorecem tal poder são arquitetadas pelo poder dos economicamente mais fortes sobre a própria sociedade. Em decorrência, a racionalidade da técnica identifica-se com a racionalidade do próprio domínio. Essas considerações evidenciariam que não só o cinema, como também o rádio, não deve ser tomado como arte. ‘O fato de não serem mais que negócios’ – escreve Adorno – ‘basta-lhes como ideologia’. Enquanto negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais. Tal exploração Adorno chama de ‘indústria cultural’‛(Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 7). 22 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 81. 23 Isso já pressuporia um fetichismo da mercadoria cultural, cuja espécie seria o fetichismo da música.
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peça Flauta Mágica por Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), em que houve uma mistura de música séria e ligeira. Desde esse fato, parece que a divisão entre esses tipos de música se tornou sem sentido, como declara Adorno: ‚Após a 'Flauta Mágica', porém, nunca mais se conseguiu reunir música séria e música ligeira‛ 24. Desse modo, embora a música séria (e a de vanguarda mais ainda!) pela sua patente complexidade fosse menos propícia a se tornar fetiche do que a música ligeira, tanto uma como a outra são passíveis de serem fetichizadas. De fato, o diagnóstico de Adorno foi que houve uma prevalência da difusão e da produção da música ligeira em detrimento da música séria, pois aquela teria uma vinculação maior ao entretenimento e, consequentemente, seria mais propícia para se fetichizar. No entanto, ambos os tipos de música teriam suas capacidades para fruição musical impossibilitadas, pois estariam predominantemente configuradas, nos Estados Unidos, pelo fetichismo da mercadoria cultural. Ao que tudo indica, existe um pressuposto na obra O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição de que o fetichismo seria a expressão de uma ideologia que se constituiu no capitalismo em sua fase denominada de capitalismo tardio, que já teria se estabilizado nos Estados Unidos na época em que essa obra foi escrita. Essa ideologia é configurada numa totalidade, tendo como telos a mercantilização, a transformação de tudo que seja possível em forma mercadoria. Essa totalidade sugere um estado tal de alienação e fetichismo, no qual não há vencedores nem perdedores, mas apenas um perdedor, a saber, o ser genérico: ‚Marx descreve o caráter fetichista da mercadoria como a veneração do que é autofabricado, o qual, por sua vez, na qualidade de valor de troca se aliena tanto do produtor como do consumidor, ou seja, do 'homem'‛ 25. De modo semelhante, os mesmos requisitos, acima expostos, considerados por Adorno como constituintes da Arte autêntica em geral servem para [i.i] a música. Embora possa considerar a música o tipo excelso artístico que consagre os requisitos fundamentais da Arte autêntica, pois nela o não-idêntico pode se expressar melhor, vislumbrado pelo modo formal de expor o que excede a determinação do conceito. Na verdade, o tipo de música a que Adorno se referiu denominado de música séria seria aquela que o Romantismo Alemão intitulou de música absoluta, ou seja, uma música essencialmente instrumental, na qual prevaleçam os caracteres de ausência total de figuração, de funções e de programas de textos. É muito provável que Adorno recepcionou a ideia do Romantismo Alemão26 de que a música absoluta poderia ser o tipo de Arte que expressa de maneira mais próxima a metafísica do sublime ao molde kantiano, pois é isenta de determinação tanto visual como conceitual. Apesar de o sublime em Kant estar ligado a um sentimento de incompreensão ou mesmo de perigo 24
ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 69. 25 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 77. 26 Refiro-me às figuras proeminentes como Herder, Tieck, Schelling, E.T. A. Hoffman e os irmãos Schlegel.
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diante da natureza, a ideia da metafísica do sublime é de que há uma indeterminação conceitual para expressar esse sentimento. Adorno refere-se a esse caráter da música de maneira literal: ‚A música, com todos os atributos do etéreo e do sublime que lhes são outorgados como liberalidade, [...]‛ 27. Em contrapartida, a música ligeira apontada por Adorno seria outro tipo de música não eminentemente instrumental, não desligada de textos, de programas e de funções rituais. Provavelmente, esse tipo de música poderia ser considerado, como já mencionamos, pelo que se entende de música popular. Apesar disso, um ponto que se deve ressaltar seria o fato de que embora Adorno tenha feito uma divisão entre a música séria e a música ligeira, isso não quer dizer que exista uma desclassificação de uma em detrimento de outra, mas tão somente uma divisão que tipificou características identificadas como distintas. Assim, o que essa divisão pode sugerir é uma classificação pautada pelo critério do modo de racionalização musical28. Não obstante, Adorno admitiu que houvesse um intercâmbio saudável entre a música séria e a música ligeira durante a história. Desse modo, o problema a que o filósofo se reportou nesse texto não recaía, como se pode esperar, à categorização de músicas sofisticadas em detrimento das mais simples, porém na interrupção de um intercâmbio salutar entre os dois tipos de música devido ao fetichismo musical. Em suma, esse fetichismo e sua consequente regressão auditiva transfigurariam tanto a música ligeira, pelo tolhimento de um caráter original de entretenimento; como a música séria, pela transfiguração em estereótipo de música ‚clássica‛. Muito embora para Adorno só as vanguardas musicais, sobretudo Schönberg, não fariam parte desse processo de regressão da música, apesar de se encontrar em total incomunicabilidade com o público. Com efeito, é pela explicação de música que Adorno inicia O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição, declarando que ela seria uma ‚experiência ambivalente que o gênero humano fez no limiar da época histórica, a saber: a música constitui, ao mesmo tempo, a manifestação imediata do instinto humano e a instância própria para o seu apaziguamento‛ 29. Digno de nota é que nessa citação já se encontram alguns elementos nos quais Adorno pensou sobre a música. O primeiro elemento é sobre o material da música; e o segundo é sobre a qualidade da música de estar essencialmente ligada à capacidade humana de transferir os conflitos entre seus impulsos primitivos e a realidade ao processo de resolução do material, denominada na psicanálise de Freud de sublimação.
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ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 77. 28 Só poderia considerar uma categorização hierárquica se pensarmos que uma racionalização musical por si só faria isso. Ao que parece, Adorno pensou que a música séria poderia ter uma racionalização musical mais próxima de seus desígnios filosóficos pelo fato de suas características serem mais ligadas a uma linguagem autorreferencial, passíveis de serem analisadas e aperfeiçoadas com o decorrer do tempo, isto é, bem similar à racionalidade que o filósofo estava preocupado. 29 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 65.
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No final do século XIX e começo do século XX, na Europa, os teóricos da música estavam preocupados com a questão do que eles denominaram de material musical. De modo geral, havia alguns que pensavam o material como possuidor de qualidades ahistóricas e outros com qualidades históricas. Evidentemente, Adorno optou por esse último. Desse modo, a concepção histórica do material musical trataria os problemas formais da música inseridos num contexto histórico-social que foi originado numa fase funcional da música, desenvolvendo de maneira progressiva no tempo para uma música autônoma culminada na música absoluta. Essa música está ligada menos a uma funcionalidade externa a ela e mais a uma autonomia diante dessa funcionalidade. A partir daí, a música tornou-se uma linguagem autorreferencial, altamente racionalizada e esclarecida, tanto no que concerne às formas de sua composição como ao modo de sua recepção pelo expectador. É pela linguagem de autorreferenciação que o material se desenvolve, pois permite ao compositor fazer referências da linguagem musical de autores do passado, tentando superá-las. Todavia, como foi dito, a estética adorniana possui uma dialética entre autonomia e heteronomia artísticas. No caso da música não é diferente, pois a música dada como linguagem autorreferencial reporta ao aspecto da autonomia artística que, por sua vez, relaciona dialeticamente com aspectos extraestéticos. A música autêntica, para Adorno, é aquela em que há a possibilidade de uma síntese musical, isto é, há a inter-relação da música com o social, bem como uma inter-relação dos elementos de sua estruturação interna, as partes da música intercambiando com seu todo: o material musical. Esse material, por sua vez, inter-relaciona-se com o material musical histórico-social produzido e acumulado pelo homem. Aqui fica patente a ideia de um material históricosocial que se desenvolve a cada etapa da história da música. Com efeito, a concepção musical de Adorno de que o material musical é entendido pela sua historicidade justifica sua hipótese da existência de uma ‚degeneração‛ musical contemporânea formulada pela recepção da música nos Estados Unidos dos anos trinta do século XX. Embora essa ‚degeneração‛ não signifique que houvesse uma decadência do gosto musical propriamente dito, pois decadência pressuporia a existência de uma formação (Bildung) musical anteriormente estabelecida que paulatinamente regredisse. Na verdade, o que aconteceu nos Estados Unidos foi a junção de dois fatos: uma total omissão de uma transmissão democrática de cultura musical aos moldes europeus; e a sobreposição de uma indústria de mercadorias musicais na cultura americana sem formação musical generalizada. Desse modo, a indústria cultural chegou aos Estados Unidos sem ter tido tempo de se processar uma formação cultural como ocorreu na Europa, ou seja, a cultura baseada em paradigmas mercantis de transmissão caiu como uma luva para a grande maioria da população estadunidense sem formação cultural aos moldes europeus. Com efeito, se a Arte percorreu desde a modernidade com sua concepção de
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autonomia material artística contraposta à heteronomia advinda da kalokagathia grega antiga, mantendo essa contraposição na contemporaneidade, o que Adorno conferiu foi a presença de uma heteronomia configurada numa finalidade de valor de troca dada pela mercadoria. Além disso, aquelas tensões típicas da música entre as pulsões humanas e a realidade configurada no material pela sublimação foi falsamente resolvida, nos Estados Unidos, sob os auspícios do capitalismo tardio por um processo de dessublimação: ‚A nova etapa da consciência musical das massas se define pela negação e rejeição do prazer no próprio prazer‛ 30. Essas tensões são falsamente resolvidas por uma total apatia ou embotamento do espírito do público e pela total indiferença dos produtores diante das categorias estéticas formadas até então. Desse modo, a existência do indivíduo, bem como as escolhas artísticas que ele poderia fazer, torna-se impossível, pois ‚a existência do próprio indivíduo, que poderia fundamentar tal gosto, tornou-se tão problemática quanto, no polo oposto, o direito à liberdade de uma escolha, que o indivíduo simplesmente não consegue mais viver empiricamente‛ 31. Diante disso, a capacidade de valoração pelo conceito de gosto amparado por categorias ‚tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas‛32, bem como as ‚categorias da Arte autônoma, procurada e cultivada em virtude do seu próprio valor intrínseco, já não têm valor para apreciação musical de hoje‛ 33, evidenciado pelo uso do estereótipo de ‚música clássica‛ que a indústria fez para denominar a música séria. Sob as observações da possível ‚degradação‛ musical nos Estados Unidos conferida por Adorno, alguns argumentaram que a justificativa do baixo material das músicas ligeiras seria devido à falta de necessidade das pessoas que consomem essa música de terem os aparatos de valoração artística, pois a música ligeira seria uma música pautada pela funcionalidade da diversão. Esse argumento foi combatido veementemente por Adorno pela seguinte afirmação: ‚Ao invés de entreter, parece que tal música contribui ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação‛ 34. Sobre o método de observação usado por Adorno, digno de nota é sua afirmação de que o conceito de fetichismo musical não se faz por meio de uma dedução dos aspectos psicológicos do indivíduo, mas pelo fato de que as mercadorias são consumidas ou pelo menos atraídas afetivamente pela indiferença com as categorias musicais. No entanto, a própria forma mercadoria impediria a manifestação dessas categorias pelo atrativo de valor de troca. Seria sob esse aspecto que se pode dizer que há uma totalidade perfazendo
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ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 71. 31 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 66. 32 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 66. 33 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 66. 34 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 67.
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um telos mercadológico: ‚Com efeito, a música atual, na sua totalidade, é dominada pela característica de mercadoria: os últimos resíduos pré-capitalistas foram eliminados‛ 35. A existência dessa totalidade embasaria todo o argumento desse texto de Adorno, pois por meio dele que configuraria a manifestação do fetichismo na música e seu consumo como sustentação do modus operandi da forma mercadoria. Essa perspectiva nos remete à concepção de Marx do processo pelo qual se estabelece a mercadoria. Para ele, a mercadoria passaria por um processo com etapas cada vez maiores de abstração até chegar à forma mercadoria equivalente geral dinheiro. O fetichismo da mercadoria pode ser considerado uma etapa posterior a do dinheiro, cujo funcionamento ainda teria uma certa materialidade por se referir às mercadorias propriamente ditas36. Com efeito, o fetichismo é de certa maneira o suprassumo da abstração capitalista. É sob esse ponto de vista que se deve ver esse texto de Adorno, pois ele traz para a discussão o poder de abstração do fetichismo agora na superestrutura, fazendo aquele mesmo mecanismo de falsa aparência que já se tornou uma essência ocorrida na infraestrutura econômica do capitalismo: ‚Também no âmbito da superestrutura, a aparência não é apenas o ocultamento da essência, mas resulta imperiosamente da própria essência‛ 37. Embora a efetivação do fetichismo de Marx por intermédio do fetichismo da mercadoria cultural na música fosse um tanto quanto desoladora para os adeptos da teoria marxiana, pois revelaria a capacidade de abstração das autênticas finalidades humanas num âmbito que tradicionalmente se constitui de uma total liberdade. Em termos psicanalíticos, a totalidade que se configuraria pela mercadoria musical é uma falsa resolução daquela tensão entre aspectos apolíneos e dionisíacos da música, pois se toda vez que a decadência do gosto estivesse relacionada às ‚excitações bacânticas‛, como ocorreu no caso da época da Grécia clássica, cuja música funcionava como uma disciplina militar, agora haveria obediência passiva à moda musical pautada pela ‚superficialidade‛. Essa ‚superficialidade‛ diante do objeto artístico seria dada pela ‚rejeição do prazer no próprio prazer‛, que, em contrapartida, poderia muito bem se caracterizar como uma consciência musical, visto que o gosto puro estético seria separado do aprazível. No entanto, essa rejeição sugere nesse caso uma apatia. Curiosamente, as fruições pseudoestéticas das canções de sucesso feitas pela massa, cuja consciência musical se estabelece pela negação do prazer no próprio prazer, são similares às fruições estéticas das músicas de vanguardas musicais, como as de Schönberg, pelo fato de elas serem ascéticas no sentido de não poderem ser degustadas, 35
ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 77. 36 Aqui se isenta o fato de o capitalismo hoje em dia funcionar por uma abstração maior e mais sofisticada que é o dinheiro especulativo, como se fosse uma mercadoria da mercadoria, sem referências a uma mercadoria, digamos, com valor de uso ou com uma materialidade, mesmo que ocultado pelo valor de troca. Em sua época, Marx não observou esse fato que nós cotidianamente presenciamos. 37 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 80.
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desfrutadas. À primeira vista, poder-se pensar que os indivíduos que consumem a música fetichizada estariam de certo modo ‚cônscios esteticamente‛ das obras de Schönberg, visto que suas relações com a mercadoria cultural são semelhantes às obras desse compositor. Todavia, isso de fato não parecia ter acontecido. Logo, a condição de totalidade caracterizada pela finalidade mercadológica de transmissão da música pelas mercadorias culturais conduz a seguinte aporia: não existiriam possibilidades de sua transmissão sem desclassificação do material musical, pois a música é um produto social e histórico, portanto, contextualizada num ambiente de finalidade mercadológica, que tem poucas chances de se manifestar como tal. Diante disso, ocasionaria as seguintes consequências: a música ligeira e a musica séria se transformam em músicas estereotipadas; os ouvintes consumem materiais estereotipados; e a música de vanguarda fica em estado de total incompreensão do público, sendo produzida e consumida em lugares restritos, tal como em guetos. Assim, sob essa perspectiva, a tese de Benjamin da democratização da Arte pela reprodutibilidade técnica seria falaciosa.
2.2. O Fetichismo na Música No que concerne ao aspecto ‚objetivo‛ do fetichismo ou na produção da mercadoria cultural, referida nesse texto pelo [1] fetichismo na música, o que ocorreria é uma alteração constitutiva da música pela forma mercadoria. Como aponta Adorno: ‚As obras que sucumbem ao fetichismo e se transformam em bens de cultura sofrem, mediante este processo, alterações constitutivas‛ 38. A música ligeira, que teria como característica a finalidade de entretenimento, é afetada por uma mudança tal que negue essa sua finalidade principal:
Se se objeta que a música ligeira e toda a música destinada ao consumo nunca foram experimentadas e apreciadas segundo as mencionadas categorias [as categorias da arte autônoma], não há como negar a verdade desta objeção. Contudo, esta espécie de música é afetada pela mudança, e isto precisamente em virtude da seguinte razão: proporciona, sim, entretenimento, atrativo e prazer, porém, apenas para ao mesmo tempo recusar os valores que concede39.
Para Adorno, de modo geral, o mesmo que se manifesta na música ligeira 38
ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 81. 39 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 66-67.
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manifesta-se na música séria, embora essa última seja menos suscetível às alterações constitutivas. Isentando-se, obviamente, algumas músicas de vanguardas, pois nelas há uma independência estrutural em relação ao um consumo mais imediato da forma mercadoria: A produção musical avançada se independentizou do consumo. O resto da música séria é submetido à lei do consumo, pelo preço do seu conteúdo. Ouve-se tal música séria como se consome uma mercadoria adquirida no mercado. Carecem totalmente de significado real as distinções entre a audição da música ‚clássica‛ oficial e da música ligeira. Os dois tipos de música são manipulados exclusivamente à base as chances de vendas; […] 40.
Essas mudanças constitutivas fizeram com que estabelecesse uma padronização das mercadorias musicais, em que tudo seria semelhante e idêntico por intermédio de um todo pré-fabricado, fazendo com que o gosto, uma categoria estética validada tradicionalmente, transformasse numa predileção estereotipada. Isso pode ser notado nas constantes ênfases que se dão tanto aos detalhes biográficos dos autores-mercadorias como à situação concreta que a música é ouvida em ampliação e repetições contínuas. Ademais, sob a imbricação entre Arte e sociedade estabelecida por Adorno, a mudança na constituição interna da música séria evidencia um momento dialético de pura indiferença de relações de mediação num aspecto amplo que poderia ser também em relação ao indivíduo e à sociedade. Como Adorno declara: ‚A modificação da função da música atinge os próprios fundamentos da relação entre arte e sociedade‛ 41. De fato, a música séria, diferentemente da música ligeira, seria constituída por uma relação dialética entre o universal e o particular, configurando-se numa totalidade, cujas partes são consideradas como momentos dessa totalidade. Essa relação dialética formalmente resolvida na música poderia servir como diretrizes de uma relação dos indivíduos com a sociedade, nas quais as regras societárias não fossem baseadas exclusivamente pela autoconservação, negando, assim, o status quo vigente do capitalismo. Todavia, no fetichismo da produção da música, ocorreria uma ênfase nas partes do produto em detrimento de uma dialética entre universal e particular que numa música autêntica haveria:
Com efeito, as formas dos sucessos musicais são tão rigidamente 40
ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 74. 41 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 79.
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normalizadas e padronizadas, até quanto ao número de compassos e à sua duração, que em uma determinada peça isolada nem sequer aparece uma forma específica. A emancipação das partes em relação ao todo e em relação a todos os momentos que ultrapassam a sua presença imediata inaugura o deslocamento do interesse musical para o atrativo particular, sensual42.
A ênfase nas partes se manifestaria por uma pré-formatação de um todo, de uma racionalidade na produção pelo processo de fetichização evidente no fetichismo do material: a ênfase em detalhes supostamente ‚expressivos‛, o uso de arranjos colorísticos por meio da desordem na relação entre cor e desenho musicais, caracterizando a música como aquilo que seria ‚culinariamente gostoso‛. Nesse sentido, há uma aproximação entre a música autêntica sob os auspícios do fetichismo com a música ligeira, visto que essa música não teria aquela relação dialética:
Na variedade dos encantos e da expressão comprova-se sua grandeza como força que conduz à síntese. A síntese musical não somente conserva a unidade da aparência e a protege do perigo de derivar para a tentação do ‚bonvivantismo‛. Em tal unidade, também, na relação dos momentos particulares com um todo em produção, fixa-se a imagem de uma situação social na qual – e só nela – esses elementos particulares de felicidade seriam mais do que mera aparência43.
No que concerne algumas especificidades do fetichismo no material da música, Adorno elencou nesse texto vários aspectos dele. Assim, limitar-me-ei a apontar alguns, com a finalidade de esclarecer um pouco mais esse tipo de fetichismo. Um desses aspectos seria o fato de os programas musicais terem sempre em seus repertórios a escolha de melodias limitadas entre alturas de médio-agudo com uma simetria de oito compassos. Nesse caso, essas melodias são alcunhadas de ‚achados‛ dos compositores, tal como mercadorias que pudessem ser levadas para casa para serem degustadas pelo consumidor. Esses ‚achados‛, que são o seu material temático, nunca seriam admitidos pela música séria como tal alcunha, pois eles desvinculariam de um todo orgânico que caracterizaria a música autêntica como tal. Na verdade, os ‚achados‛ têm como 42
ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 93. 43 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno.
Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 69.
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similitude o valor de recordação das partes dissociadas das formas técnicas de composição do Romantismo tardio, principalmente advindas das obras de Wagner. Dessa maneira, essa dissociação seria um tipo de coisificação da música, sugerindo que tais ‚achados‛ pudessem ser consumidos por ouvidos regredidos à época do Romantismo. Isso quer dizer que quanto mais a música soar como romântica, mais fácil de se tornar ‚propriedade‛, logo, passível de venda. De modo contrário, o que não aconteceria se o material temático entrasse num jogo dialético no todo musical:
Uma sinfonia de Beethoven, executada e ouvida, enquanto totalidade, espontaneamente, jamais poderia torna-se propriedade de alguém. A pessoa que no metrô assobia triunfalmente o tema do último movimento da Primeira Sinfonia de Brahms, na realidade relaciona-se apenas com suas ruínas44.
Além disso, o fetichismo no material musical pode se expressar veementemente pela consideração das vozes do cantor, fato que ligaria ao seu possível sucesso. Essas vozes seriam apreciadas por um tipo de audição vulgarmente materialista, valorizandoas desmedidamente como condição essencial, embora elas sejam consideradas apenas mais um elemento material na música autêntica. Outro aspecto é o uso de ‚arranjos‛ fetichizados que Adorno considerou como constituídos de duas qualidades contrárias que são: a depravação; e a redução à magia. Essas qualidades se apoderam do tempo da música pelo deslocamento dos ‚achados‛, ou ideias criadoras coisificadas, de sua totalidade na música, configurando-se em forma de pot-pourri. Na verdade, seriam montagens artificiais de frases que, deslocadas de seu contexto musical, perderam sua unidade constituidora por meio do maquinismo. Por semelhança, a variação, o chorus, manifestaria de maneira exagerada por timbres de instrumentos incomuns, sugerindo um tipo de ‚estilo‛ pelo colorido que obnubila o material:
Evidentemente, esta predileção pelo colorido ou timbre como tal manifesta um endeusamento do instrumento e o desejo de imitar e participar; possivelmente entre também em jogo algo do poderoso encantamento das crianças pelo multicor, que retorna sob a pressão da
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experiência musical contemporânea45.
Semelhante a esse tipo de coisificação do ‚estilo‛ que se coloca um interessante comentário de Adorno sobre o comportamento fetichista do maestro com seu domínio técnico e seu virtuosismo o qual lembraria muito as atitudes de governantes totalitários. Criando as normas de execução musical e a personificando com seu ‚estilo‛ próprio, o virtuosismo dele corresponderia a um nível de perfeição tal que conduziria a uma condição substitutiva absoluta de sua própria execução. Isso quer dizer que as obraspadrão poderiam ser executadas com total perfeição sem o comando do maestro e, mesmo assim, as pessoas poderiam nem perceber sua ausência, tamanha a padronização interpretativa que segue as execuções das orquestras pautadas pela normatização de um maestro ‚personificado‛. Digno de nota é também a manifestação do fetichismo na música séria em relação à interpretação das obras. Historicamente, esse gênero de música sempre posicionou como negação ao que Eduard Steuermann denominou de ‚barbárie da perfeição‛. Interessante notar que esse tipo de fetiche seria diferente, porque não recai sobre os nomes das obras famosas, nem destrói os momentos da invenção criativa do artista, muito menos apara os traços de contrastes de uma obra a fim de encantá-la. O que ocorreria é uma disciplina exacerbada na execução da música, tornando-a uma peça musical importante como qualidades de perfeição e exatidão as quais impossibilitam uma relação com o todo musical, embora possa parecer que seja um ‚novo estilo‛. Essa perfeição na execução é exatamente como suas gravações com dinâmicas pré-fabricadas a qual incapacita qualquer tipo de tensão. Aquela liberdade que o material teria sobre o todo musical, denominado de resistência do material sonoro, seria excluída de tal maneira que quaisquer sínteses se tornariam impossíveis de se realizarem de forma espontânea devido à fixação daquele ‚novo estilo‛. Outro elemento encontrado no fetichismo é o procedimento do uso de citações. As citações se dariam por citações de canções populares e infantis por meio de referências vagas, causas incompletas e semelhanças ou até de plágios. De fato, as frases das melodias citadas dão um certo tom de autoridade e, ao mesmo tempo, de paródia, tal como uma imitação malfeita, como Adorno menciona: ‚É assim que uma criança imita o professor‛ 46. Na verdade, esse procedimento seria outra estratégia de fetichismo musical de criação de um tipo de ‚linguagem musical infantil‛ que pode condicionar os ouvintes, o que diferenciaria da linguagem autêntica musical formada de uma linguagem residual e deformada. Como declarou Adorno: 45
ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 94. 46 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 97.
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Nas transcrições para piano dos sucessos musicais deparamo-nos com diagramas singulares. Referem-se a guitarra, ukelele e banjo, instrumentos infantis, tanto quanto a harmônica dos tangos, comparados ao piano – e se destinam a tocadores incapazes de ler as notas musicais. Os diagramas representam graficamente a posição das mãos nas cordas que devem ser tangidas nos respectivos instrumentos. O texto musical das notas, ao invés de ser apresentado em termos racionais, é substituído por comandos ópticos, espécie de sinais musicais de trânsito47.
2.3. A Regressão da Audição No que concerne à [2] regressão da audição ou como se efetiva o consumo do bem cultural em sua recepção, ela se fundamentaria por uma transferência afetiva (Verschiebung der Affekte) dos valores musicais para valores de troca: ‚A transferência dos afetos para o valor de troca traz como consequência que, em música, já não se faz nenhuma exigência‛ 48. A recepção musical seguiria aquela mesma totalidade que perpassa em toda sociedade sob os auspícios do capitalismo: a transformação de tudo o que for possível em mercadoria. Assim como o princípio mercantil na música destitui o gosto como categoria estética na produção, de modo semelhante, isso ocorre também na recepção dos bens culturais pelos ouvintes. A transferência de afetos para os valores de troca ocasionaria uma mudança no critério de julgamento por parte das pessoas, fazendo com que as categorias estéticas não entrassem em questão quando se consumisse o bem cultural. Sabe-se que no processo de fruição estética a identificação sempre é problematizada, pois uma obra de Arte autêntica sempre nos dá uma significação mais ampla do que uma experiência atomizada poderia nos dar. O objeto artístico autêntico seria sempre mais do que o sujeito que está diante dele, portanto o tipo de identificação que ocorre na fruição estética é sempre uma identificação dada por uma dialética entre o sujeito e a obra que se constitui por uma relação de alteridade, de reconhecimento do outro. No entanto, no fetichismo, o conceito de gostar seria entendido como um reconhecimento, uma identificação de um objeto hipostasiado a uma virtualidade tal que serve como espelho do próprio indivíduo fetichizado, de suas frustrações imanentes projetadas nesse objeto. Os indivíduos identificariam de tal maneira com as mercadorias culturais das quais não conseguiriam se subtrair. Desse modo, a possibilidade de um 47
ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 96. 48 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 95.
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comportamento valorativo que necessita de um certo ‚perder-se‛ no objeto artístico se tornaria uma mera ficção. A totalidade que uma mercadoria cultural sugere pela sua identificação se caracterizaria de tal modo que o critério de julgamento estético inautêntico é feito de modo insignificante como mera ostentação, isto é, o critério de que a canção de sucesso devesse ser conhecida de todos. Interessante salientar é que quando Adorno se referiu a uma regressão auditiva por parte do indivíduo, ele não quis dizer que houvesse uma regressão empiricamente constatada. O que ele quis dizer é que houve uma regressão dos critérios para uma audição autêntica da música como parâmetro de escolha. As pessoas não teriam escolha de usar tais critérios, porque isso não estaria em jogo no ajuizamento dos bens culturais:
O que regrediu e permaneceu num estado infantil foi a audição moderna. Os ouvintes perdem com a liberdade de escolha e com a responsabilidade não somente a capacidade para um conhecimento consciente da música – que sempre constitui prerrogativa de pequenos grupos – mas negam como pertinácia a própria possibilidade de se chegar a um tal conhecimento. Flutuam entre o amplo esquecimento e o repentino reconhecimento, que logo desaparece de novo no esquecimento49.
A regressão da audição, que considero ser a parte ‚subjetiva‛ do fetichismo, seria condição exata de evidenciar uma reversão no ajuizamento do gosto, pois sua análise traz outros conceitos de origem psicanalítica no bojo os quais estão imbricados ao fetichismo, tal como identidade, neurótico, sadomasoquista - conceitos esses relacionados ao indivíduo em particular. Ora, segundo as críticas de Adorno, Freud teria subjetivado ou psicologizado suas críticas estéticas em suas análises de obras de Arte 50. Os critérios artísticos são sempre feitos por categorias que fazem parte de uma relação dialética entre a autonomia e a heteronomia da Arte, entre valores artísticos autorreferenciais e valores não artísticos. A recepção de Adorno ao fetichismo freudiano demonstra um jogo dialético de remeter à Arte o conceito da psicanálise sem critérios estritamente psicanalíticos, mas sim critérios propriamente artísticos, embora ela se reporte ao sujeito por critérios de uma heteronomia da Arte. Sob essa rubrica que se direcionam as críticas de Adorno aos critérios artísticos na mercadoria cultural, pois o gosto elevado à categoria estética 49
ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 89. 50 Uma citação que comprova isso, mencionando o caso específico da música, pode ser estendida à Arte: ‚A tese psicanalítica de que, por exemplo, a música seria o meio de defesa de uma paranoia ameaçadora, é talvez muito válida no plano clínico, mas nada diz sobre a categoria e o conteúdo de uma única composição estruturada‛ (ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 19).
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pressupõe um indivíduo para se efetivar; porém o indivíduo que faz uso desse tipo de gosto não seria um indivíduo autêntico, mas sim um pseudoindivíduo. Como o autor declara:
O conceito de fetichismo musical não se pode deduzir por meios puramente psicológicos. O fato de que ‚valores‛ sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência da sua característica de mercadoria51.
Na verdade, para explicar a regressão da audição, Adorno fez uma tipologia do ouvido regredido mediante vários elementos psicanalíticos. Assim, um requisito básico para a audição atomística, cujo processo se estabelece pela audição das partes dissociadas ao todo musical, seria a distração (Zerstreuung) no ouvir, e não o recolhimento (Sammlung), característico da audição da música autêntica. A audição atomizada seria entendida por Adorno como uma regressão a um estado similar à infância. Todavia, isso não significa que a regressão auditiva fizesse uma volta às etapas anteriores de uma audição, mas que se caracterizaria num certo ‚primitivismo‛ de quem foi privado de uma formação musical:
Não são infantis no sentido de uma concepção segundo a qual o novo tipo de audição surge porque certas pessoas, que até agora estavam alheias à música, foram introduzidas na vida musical. E todavia são infantis; o seu primitivismo não é o que caracteriza os não desenvolvidos, e sim o dos que foram privados violentamente da sua liberdade52.
Para Adorno, essa privação poderia fazer com que desenvolvesse em certas pessoas uma psique repressora de um ódio pelo novo, adiando esse novo para ter alguma tranquilidade psíquica. Dessa maneira, suspenderia um conflito que poderia abrir possibilidades de um caminho à novidade. De fato, a ideia do novo está sempre ligada a uma maneira de pensar questionadora do presente. Por isso, a vanguarda artística, cujo 51
ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 77. 52 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 89.
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ideário é pautado pela iconoclastia e pela possibilidade do novo, estaria numa situação de incompreensão diante da maioria das pessoas, pois essa vanguarda tenta articular elementos formais como constituição artística em busca de uma nova forma. É bem verdade que esse comportamento de audição atomizada é muito similar ao comportamento do neurótico53, pois o neurótico é aquele sujeito que tentaria vivenciar uma situação do passado que não condiz mais com o presente. Sob essa perspectiva que Adorno se refere a uma necessidade retroativa da audição atomística que sugere ao ouvinte uma audição apartada de sua constituição histórica:
Regressivo é, contudo, também o papel que desempenha a atual música de massas na psicologia das suas vítimas. Esses ouvintes não somente são desviados do que é mais importante, mas confirmados na sua necessidade neurótica, independentemente de como as suas capacidades musicais se comportam em relação à cultura especificamente musical de etapas sociais anteriores54.
Outro termo psicanalítico usado por Adorno ao fetichismo ‚subjetivo‛ é o sadomasoquismo. Adorno relacionou o adorador fetichista dos bens de consumo e o cliente da arte de massas ao fenômeno do ‚caráter sadomasoquista‛. A cultura de massa necessitaria de um tipo de cultura sadomasoquista para ser onipotente como produtora de bens de consumo, numa renúncia de prazer e de individualidade:
A ocupação efetiva do valor de troca não constitui nenhuma transubstanciação mística. Corresponde ao comportamento do prisioneiro que ama a sua cela porque não lhe é permitido amar outra coisa. A renúncia à individualidade que se amolda à regularidade rotineira daquilo que tem sucesso, bem como o fazer o que todos fazem, segue-se do fato básico de que a produção padronizada dos bens de consumo oferece praticamente os mesmos produtos a todo cidadão55.
53
Embora a neurose seja um termo muito amplo e não rígido, pode-se entendê-la da seguinte maneira: ‚afecção psicogênica em que os sintomas são a expressão simbólica de um conflito psíquico que tem raízes na história infantil do sujeito e constitui compromissos entre o desejo e a defesa‛ (NEUROSE. In: LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. Tradução: Pedro Tamen. São Paulo: Martins fontes, 2001, p. 296). 54 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 90. 55 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 80.
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A condição de sadomasoquismo totalizante como requisito dos ouvintes regredidos diante de uma busca de uma felicidade infantil que não pode se efetivar seria estabelecida como uma falta de alegria. Não obstante, o sadomasoquismo não se limitaria apenas em uma autoanulação do indivíduo como sujeito, nem num prazer de substituir seus anseios pela identificação ao poder, ao status quo. Adorno declara que esse sadomasoquismo tem como fundamento um tipo de experiência de que a segurança da busca de proteção nas condições vigentes da sociedade seria provisória, paliativa, que em breve terminaria. A renúncia da liberdade proporcionada por isso de forma alguma sanaria os conflitos da psique, pois o indivíduo sentiria, concomitante a um conforto pelo prazer obtido pela segurança ilusória, uma traição na possibilidade de vislumbrar uma possível melhora, uma traição das condições vigentes da sociedade. Portanto, esse conflito não resolvido poderia muito bem se transformar num furor, furor contra tudo o que não caberia aos esquemas da necessidade neurótica. Esse tipo de sadomasoquismo encontrado na audição regressiva é sempre dado por uma ambivalência do ouvinte diante do bem de consumo. Quando alguns indivíduos não estariam ainda totalmente coisificados pelos bens musicais, eles tentariam um tipo de reação, uma atitude contra a passividade na qual se encontraram diante do fetichismo musical. No entanto, tal revolta sempre ocasionaria em seu revés por meio de uma ‚pseudoatividade‛ que acaba intensificando a regressão. Para Adorno isso é bem patente no comportamento de entusiastas do jazz que enviam cartas estimulantes aos programas de jam-sessions, cujos entusiasmos servem tão somente como propaganda para as mercadorias que eles consomem. Eles se autointitulam de jitterbugs. Curiosamente, essa autointitulação já denota a falsa escolha e a ilusória posição ativa dos ouvintes, pois dá uma enganosa impressão de que eles estariam por trás dos bastidores das programações. Para Adorno, eles são movidos por um tipo de êxtase diante da mercadoria muito similar ao comportamento que selvagens têm em práticas de rituais extáticos por meio do momento mímico56. Outra tipologia interessante do fetichista musical apontado por Adorno são os radioamadores, sendo, de certo modo, opostos aos jitterbugs, pois não seriam movidos pelo entusiasmo diante do bem de consumo, mas sim pela diligência, ocupando-se da música de modo solitário e recluso. Para Adorno, talvez os radioamadores fossem os tipos mais perfeitos de ouvintes fetichistas, pois o que eles ouvem, e como ouvem, seria absolutamente pautado pelo modo da indiferença. O que importa a eles seria tão somente saber quem está ouvindo, a fim de conectar com o público por intermédio de seu rádio57. De modo um tanto quanto pitoresco, Adorno descreveu esse tipo de caráter fetichista da seguinte maneira: 56
Segundo Adorno: ‚O fenômeno apresenta traços convulsivos, que lembram a doença denominada dança-de-São Guido ou os reflexos de animais mutilados‛ (ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 98). 57 Adorno apontou outro tipo similar ao radioamador que são os denominados por ele de ‚moderninhos‛, sendo mais agressivos e também mais especialistas nas mercadorias culturais que consomem.
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É tímido e inibido, talvez não tenha sucesso com o sexo oposto, em todo caso quer conservar-se na sua esfera singular. Tenta isto como radioamador. Com vinte anos, conserva-se na idade dos adolescentes que constroem casinhas ou, para agradar aos pais, executam trabalhos de serra mecânica. Este tipo de jovem alcançou grande prestígio no âmbito técnico do rádio. Constrói pacientemente aparelhos cujos componentes principais devem adquirir prontos, e pesquisa o ar atrás dos segredos das ondas curtas, segredos que naturalmente são inexistentes. Como leitor de histórias de índios e livros de viagens, descobriu terras desconhecidas e abriu a sua senda através da floresta virgem58.
Outro ponto que se deve salientar é o caráter de ostentação dos consumidores fetichizados, produzindo o sucesso como critério objetivo dado pela música, não pelo fato de que a música lhes agrada, mas por eles terem comprado o ingresso como objeto de ostentação: ‚Este é o verdadeiro segredo do sucesso. É o mero reflexo daquilo que se paga no mercado pelo produto: a rigor, o consumidor idolatra o dinheiro que ele mesmo gastou pela entrada num concerto de Toscanini‛ 59. Tão grave quanto a ostentação pelo sucesso seria o fato de o fetichismo criar um tipo de religião em que ‚os consumidores se transformam em escravos dóceis‛ 60, alienando-se de suas vontades e de suas autonomias. Isso ocorreria porque o próprio ato advindo do valor de troca se fetichiza de tal maneira que suscita um tipo de coerção própria similar à religião. A própria expressão having a good time serviria como frase de ordem com o intuito de uma participação pelo divertimento dos outros, como se as mercadorias trouxessem uma identificação por parte dos consumidores como uma comunidade religiosa: ‚A religião do automóvel faz com que, no momento sacramental, todos os homens se sintam irmãos ao som das palavras 'este é um Rolls Royce'‛ 61. Nesse texto, fica patente um dos pontos mais controversos entre Adorno e Benjamin: a maneira como se efetiva uma fruição estética autêntica. Esse ponto controverso se estabelece pelo uso dos mesmos termos já mencionados os quais Adorno remete ao ouvido regredido. Adorno pensava numa prevalência do recolhimento diante da obra de Arte como condição necessária de experiência estética satisfatória. Benjamin, 58
ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 99. 59 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 78. 60 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 80. 61 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 79.
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por sua vez, pensava que a distração poderia causar uma experiência estética. Tanto é assim que o cinema foi escolhido como a Arte revolucionária para Benjamin, porque o cinema é eminentemente dado pela distração. A distração seria condição de fruição estética de Arte tal como se efetiva na arquitetura, em cuja experiência estética o indivíduo não necessita de um recolhimento ou atenção pormenorizada em seus aspectos materiais. Basta a pessoa passar perto de uma obra arquitetônica que pela sinestesia conseguiria uma experiência estética. De modo contrário, Adorno pensou que seria justamente por ter a distração como condição de consumo das mercadorias musicais que elas seriam incapazes de produzir qualquer tipo de fruição estética:
O modo de comportamento perceptivo, através do qual se prepara o esquecer e o rápido recordar da música de massas, é a desconcentração. Se os produtos normalizados e irremediavelmente semelhantes entre si, exceto certas particularidades surpreendentes, não permitem uma audição concentrada sem se tornarem insuportáveis para os ouvintes, estes, por sua vez, já não são absolutamente capazes de uma audição concentrada62.
Digno de nota é a relação entre a produção de mercadorias musicais e o consumo pela regressão auditiva dada pelo advento da publicidade: ‚A audição regressiva relaciona-se manifestamente com a produção, através do mecanismo de difusão, o que acontece precisamente mediante a propaganda‛ 63. Desse modo, a produção e o consumo se configurariam numa relação intercausal do processo de fetichismo, revelando já na produção aspectos sofisticados de manipulação e de retroatividade: ‚Na audição regressiva o anúncio publicitário assume caráter de coação‛64. Para ilustrar isso, Adorno mencionou uma propaganda de uma fábrica de cerveja inglesa feita no suporte de cartaz, no qual se figurava um muro, perfeitamente realista, típico de bairros pobres de Londres e das cidades industriais do norte da Inglaterra. No cartaz, que dificilmente se distinguiria de um muro real, estava escrito em caligrafia desajeitada a seguinte frase: ‚What we want is Watney's‛ (‚O que queremos é cerveja Watney‛). A marca da cerveja era estampada como um slogan político, mascarando a mercadoria no próprio slogan, além, é claro, de sugerir um comportamento para a massa com o intuito de fazer do produto recomendado um objeto de sua ação num tom imperativo. De modo semelhante, isso ocorreria nos dois tipos de músicas, na música séria e na música ligeira, pois elas seriam manipuladas com a finalidade exclusivamente 62
ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 92. 63 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 91. 64 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 91.
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mercantil mediante uma seleção arbitrária das qualidades musicais reais por escolha das produções-padrão direcionadas pela ‚eficácia‛ do sucesso. Isso quer dizer que quanto mais conhecidas as músicas se tornavam, mais famosas seriam. Consequentemente, elas teriam mais possibilidades de transformar em sucesso, formando, desse modo, um círculo vicioso. Para Adorno, isso ocorre tanto no consumo da música ligeira, por ser sugerido às pessoas seu consumo ad nauseam, em incessantes repetições; como na música séria pela gravação e pela reprodução exaustivas e repetitivas de seus ‚temas‛65, dissociando-se de seu contexto musical. Para criar esse círculo vicioso de sucesso, necessitar-se-ia de um tipo de princípio do ‚estrelato‛ que se totaliza como paradigma por uma manipulação não só dada pela categorização de pessoas como ‚estrelas‛, mas pelas próprias produções musicais que já se categorizam como tais pelo surgimento de uma certa profissionalização comercial de produção:
As reações dos ouvintes parecem desvincular-se da relação com o consumo da música e dirigir-se diretamente ao sucesso acumulado, o qual, por sua vez, não pode ser suficientemente explicado pela espontaneidade da audição mas, antes, parece comandado pelos editores, magnatas do cinema e senhores do rádio66.
Fica evidente aqui que Adorno está fazendo referência à necessidade retroativa da mercadoria, embora sem a denominar explicitamente, já que só faria isso na obra Dialética do Esclarecimento, publicada em 1947 com a coautoria de Max Horkheimer. A necessidade retroativa seria uma sofisticação do fetichismo pelo fato de criar tipos de necessidades para as mercadorias como meros valores de troca e não valores de uso. A publicidade seria a sua fonte de produção, diagnosticada já nesse texto por Adorno: ‚Por outra parte, a necessidade, imposta pelas leis do mercado, de ocultar tal equação conduz à manipulação do gosto e à aparência individual da cultura oficial, a qual forçosamente aumenta na proporção em que se agiganta o processo de liquidação do indivíduo‛ 67. Enfim, em O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição, pode-se notar o tom de pessimismo de Adorno diante da mercadoria cultural como condição satisfatória em transmitir uma Arte autêntica, reafirmado pela sua declaração de que todas as formas de conciliação foram infrutíferas, tanto pelos artistas, que acreditam no mercado, como por parte dos pedagogos da Arte, que acreditam no coletivo. Essas formas seriam infrutíferas, porque apenas criam artes industriais ou tipos de produção que se devem incorporar a um tipo de ‚bula de uso‛ para saber como elas funcionam. 65
Essa característica remete às frases melódicas obsessivamente repetitivas tal como a ‚melodia obsedante‛ de Theodor Reik (SAFATLE, Vladimir. Fetichismo e Mimesis na Filosofia da Música Adorniana. Discurso: Revista do Departamento de Filosofia da USP, São Paulo, n. 37, 2007, p. 379). 66 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.74. 67 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.80.
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Embora esse tom de pessimismo apareça com uma certa constância nessa obra de Adorno, em término, não poderia deixar de citar duas passagens que vão contra a leitura de que Adorno foi um pessimista absoluto em relação à cultura ocidental. Com isso, menciono duas citações do próprio texto analisado, em que há possíveis saídas para o fetichismo, tanto em sua produção, pela Arte autêntica, como em seu consumo, quando os sujeitos poderiam rebelar contra os poderes os quais destroem suas verdadeiras subjetividades. Desse modo, na produção da mercadoria cultural, a saída poderia ser: ‚Embora a audição regressiva não constitua sintoma de progresso na consciência da liberdade, é possível que inesperadamente a situação se modificasse, se um dia a arte, de mãos dadas com a sociedade, abandonasse a rotina do sempre igual‛68. Em relação ao consumo: ‚As forças coletivas liquidam também na música a individualidade que já não tem chance de salvação. Todavia, somente os indivíduos são capazes de representar e defender, com conhecimento claro, o genuíno desejo da coletividade em face de tais poderes‛ 69.
3. Considerações Finais A análise interpretativa da obra O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição foi direcionada neste artigo com o propósito de estabelecer minimamente uma inteligibilidade da elaboração do conceito de fetichismo em seus aspectos ‚objetivos‛, na produção, e ‚subjetivos‛, no consumo de mercadorias. Sob essa perspectiva, diante de todas as características apontadas por Adorno, pôde-se verificar a sua elaboração do conceito de fetichismo da mercadoria de Marx em fetichismo da mercadoria cultural já nesse texto de 1938, mantendo-o posteriormente em sua obra. Nesse texto, já teriam os aspectos do fetichismo ‚objetivo‛ e ‚subjetivo‛ que comprovam essa elaboração, sobretudo no que se refere ao condicionamento retroativo da psique humana70. Ademais, seria por meio da postulação desse condicionamento da psique que Adorno, sem eliminar os pressupostos marxianos, ultrapassaria uma pertinente crítica remetida ao pensamento de Marx, a saber, que a teoria marxiana seria um tipo de conhecimento préfreudiano, segundo Ruy Fausto:
68
ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.107. 69 ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.108. 70 Quando digo ‚condicionamento retroativo da psique‛ quero dizer um condicionamento advindo do exterior ao indivíduo, ou seja, das condições sócio-históricas dadas, ou o que se aproxima do que entendemos como cultura. Além disso, um condicionamento advindo do interior, do próprio indivíduo, como autocondicionamento. Na verdade, há uma confluência entre fetichismo ‚objetivo‛ e ‚subjetivo‛ em Adorno mesmo de maneira deduzida e não averiguada empiricamente. Além disso, o uso do termo condicionamento e não determinação advém de uma ideia de João Quartim de Moraes sobre o pensamento de Marx, que considero muito razoável de se aplicar ao pensamento de Adorno: ‚Marx renovou radicalmente o modo de compreender a história ao enraizá-la no movimento profundo da sociedade. Ele não propõe um código de interpretação que faça corresponder univocamente um fenômeno econômico a um fenômeno político ou cultural. Condicionar é a tradução do termo alemão bedingen, com o qual ele expressa a relação complexa de determinação entre a base econômica e as demais instâncias e esferas da sociedade‛ (CULT – REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA. São Paulo: Editora 17, n. 61, set. 2002. Mensal. ISSN 1414701-6, p. 31).
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Foi Castoriadis quem apontou o caráter pré-freudiano do projeto marxista. O essencial é que havia ali a ideia de uma possibilidade de transformação mais ou menos ilimitada do sujeito que me parece extremamente improvável e problemática. Acho que a gente deveria pensar mais modestamente, supondo que o sujeito não tem uma plasticidade infinita. Um dos fatores que levou a críticas excessivas tanto ao marxismo como à ética humanista (duas coisas que não se confundem, mas que num certo plano acabam convergindo) é essa visão idílica do homem. [...] Há um caminho intermediário (e esse é um argumento dialético) que admite uma plasticidade finita, que produz certo número de exigências para limitar as tendências violentas inscritas no sujeito71.
Dessa maneira, fica evidente a contribuição de Adorno na elaboração do conceito de fetichismo, pois esse filósofo, considerado como um adepto da chamada Teoria Crítica, compartilhou com seus correligionários a ideia de que os pensamentos de Marx e de Freud foram responsáveis por uma grande mudança epistemológica do conhecimento. Mudança essa considerada como a formulação de um novo tipo de teoria radicalmente diferente das outras teorias até então postuladas pelas ciências humanas 72.
Referências ADORNO, Theodor Wiesengrund. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores – Theodor W. Adorno. Textos Escolhidos. Tradução de Luiz João Baraúna, revista por João Marcos Coelho. São Paulo: Nova Cultural, 1996. ______. Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Rio de Janeiro: Edições 70, 2006. BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica. In: Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Obras Escolhidas. v. 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. CULT – REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA. São Paulo: Editora 17, n. 61, set. 2002. Mensal. ISSN 1414701-6. DUARTE, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte: Editora 71
CULT – REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA. São Paulo: Editora 17, n. 61, set. 2002. Mensal. ISSN 1414701-6, p. 29. 72 Sobre essa afirmação vide Introdução da obra: GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a Escola de Frankfurt, Campinas, SP: Papirus, 1988.
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UFMG, 2007. GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a Escola de Frankfurt. Tradução de Bento Itamar Borges. Campinas, SP: Papirus, 1988. MÔNADAS. In: BLACKBURN, Simon. Dicionário de Oxford de Filosofia. Tradução de Desidério Murcho et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. NEUROSE. In: LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. Tradução: Pedro Tamen. São Paulo: Martins fontes, 2001, p. 296. RAZÃO (TIPOS DE). In: MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 1623-4. SAFATLE, Vladimir. Fetichismo e Mimesis na Filosofia da Música Adorniana. Discurso: Revista do Departamento de Filosofia da USP, São Paulo, n. 37, p. 366-405, 2007.
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rimeiramente, Fora Temer. De fato,pode parecer desonesto e/ou inútil de minha parte encarar a relação do “anticristo” de Nietzsche com uma passagem específica do anúncio messiânico. Porém, raramente há menção ao que teria levado o filósofo bailarino a intitular sua declaração de guerra ao cristianismo e a Paulo de Tarso com a “hashtag” Der Antichrist (O Anticristo). Me encontro no semiárido, me lanço nesse campo minado no qual meu fim certamente será a fogueira. Talvez sofra processos judiciais em pontos remotos, ou 1
Mestrando em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
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vomitaços dentre outras tolices de hoje. O fato é que o anticristo é uma categoria que representa para a tradição cristãuma imagem do fim dos tempos, ou ainda, a vitória do messias sobre o poder político vigente, o Império Romano. Sob alegação de um objetivo geral, almejo aqui, literalmente, “dar a César oque é de César, e a Deus o que é de Deus”. Em outras palavras, restituir aos discursos de Paulo de Tarso o troféu de texto mais influente do messianismo ocidental. A nosso ver, as Cartas possuem esse caráter messiânico praticado de forma bimilenar. Será à toa queo tempo messiânico coincide com a história das Igrejas cristãs? Certamente, não. Por mais que o messianismo e o próprio termo “messias” tenha sido literalmente varrido do mapa, esta pesquisa não pretende levar o leitor a crer que Nietzsche ignorasse ou desconhecesse o fato de que o “homem da anomia”, com o qual o pensador alemão associa a figura do anticristo se trata de uma invenção de Paulo de Tarso. Contudo, a relevância se encontra no gesto com o qual Nietzsche assina sua declaração de guerra ao cristianismo e ao apóstolo do universalismo: recorre a uma categoria originalmente pertencente à tradição, ou ainda que possui finalidade clara. É nesse ponto que Agamben inicia sua constatação estética sobre uma obra lapidar desse grande filósofo póstumo. Seria realmente O Anticristo uma paródia messiânica? Acaso, veste Nietzsche o uniforme do antimessias, porém atuaria como manda o roteiro traçado por Paulo de Tarso? Com esses questionamentos em mente, temos uma base sólida para fundar o marco zero desta pesquisa. O fio condutor nos levará à análise de fragmentos dos dois autores, sob a perspectiva de um filósofo vivo, Giorgio Agamben.
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Embora a paródia tenha origem musical, na literatura ela finda por caracterizarse com significado mais específico. Para definir nosso conceito de paródia, recorremos à Shiplay e seus três tipos fundamentais da paródia: verbal, formal e temática. O tipo verbal possui como característica marcante a troca de uma palavra ou mais no texto ao qual se parodia. Esse primeiro se encaixa exemplarmente no método nietzschiano de transvalorar os valores que ele aplica por vezes no texto paulino.
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O tipo formal, segundo Shiplay, tem como marca o uso do estilo e dos efeitos técnicos do autor original com fins de zombaria e descaracterização. Já no tipo temático, por sua vez, a paródia pode fazer a caricatura da forma e do espírito de um escritor2. Em Aristóteles, o autor observa um teor ético como marca, ao ponto dos gêneros literários se encontrarem estratificados igualmente às classes sociais. A tragédia e a epopeia possuíam ares mais nobres, restando à comédia o gênero de maior representação popular 3 . Por que então Nietzsche caminharia por essa estrada do vulgo quando fundamenta sua filosofia em categorias como nobreza, aristocracia, outros? Agamben chama atenção a este ponto como crucial para compreendermos este por quê. O livro Der Antchrist se apresentacom um subtítulo que traz consigoo conceito da “maldição”.Ao mesmo tempo em que Nietzsche conclui o texto com uma emanação de uma lei com pretensões messiânicas, que é ela mesma apenas uma maldição da história sagrada4. Haveria aqui uma equiparação entre lei e maldição de forma genuína em Paulo de Tarso? Vejamos como se dá isso no texto paulino, em Gl, 3, 13: O messias nos resgatou da maldição da lei tornado por nós em maldição, porque está escrito: maldito todo aquele que está pendurado na madeira, para que aos gentios a benção de Abraão advenha de Jesus messias, para que a promessa do espírito recebêssemos através da fé. (p.198-199). Diante dessa passagem podemos perceber que, se por um lado o messias resgatou a humanidade da maldição da lei (ektéskatárastounomou), por outro, o homem da anomia não pode agir de outra forma que não seja promulgando essa tal lei-maldição. Diante do exposto, Agambeninterpreta não haver outra forma de leitura lúdica e irônica sobre a categoria do katéchón, tal qual aparece em 2Ts 2,6-7. Embora não haja menção de Paulo de Tarso em relação ao antíchristos, pelo menos não como acontece nas cartas de João. É possível que o katéchón e o ánomos não sejam duas figuras distintas, mas venham a designar o mesmo poder? Que mistério é esse? O MISTÉRIO DA ANOMÍA E DO KATÉCHON A passagem lapidar que melhor ilustra o enigma do katéchon é 2Ts 2,3-9:
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SANTANA DE, A. R. 2003, p. 13. Ver SANTANA DE, A. R. 2003, p. 14. 4 AGAMBEN, 2016.p. 129. 3
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Ninguém vos engana de nenhum modo: se antes não vier a apostatasia e for revelado o homem da anomia, o filho da destruição, aquele que está contra e se eleva sobre tudo aquilo que se diz Deus ou objeto de culto, até se sentar ele mesmo no templo de Deus, mostrando-se ele próprio como Deus. Não vos lembrais de que, quando eu estava ainda entre vós, dizia-vos estas coisas? E agora conheceis aquilo que o detém (tókatéchon), a fim de que seja revelado no seu tempo. De fato o mistério da anomia já está em ato, somente aquele que detém (hókatéchón), a fim de que agora seja tirado do meio. E então será revelado o ánomos, que o Senhor abolirá com o sopro de sua boca e tornará inoperante com a aparição de sua presença (parousía). A presença (parousía) daquele é segundo o ser em ato de Satanás em toda potência5.
Nesta passagem, Paulo de Tarso escreve sobre a parousía messiânica, na qual os Tessalonicenses são alertados de uma certa agitação que pode causar o anúncio de sua iminência. Contudo, se há a possibilidade do “homem da anomia” se identificar com o antimessias (anticristo) das cartas de João, tudo bem. Dentro da tradição esta é uma ideia aceitável, embora distante de um desfecho tranquilo. Agora, nos deparamos com o problema levantado anteriormente acerca de quem é ou o que pode ser o katéchon, quer seja em dois sentidos. Por um lado, no caso impessoal do versículo 6 (kainuntòkatechonoídate, eis tòapokalypsthenaiauton em toiautoukaipoi – E agora o que retém sabeis, para o ser revelado ele em o dele momento); ou por outro, no caso pessoalno versículo 7 (O com efeito mistério já é em ato da ausência da lei; somente aquele que retém agora para que de meio seja [afastado]), quer seja em sentido impessoal, como acontece em algumas passagens, quer seja em sentido pessoal, como se dá em outros.
DOUTRINA CRISTÃ DO PODER ESTATAL Esta pesquisa não visa tratar de modo leviano ou pueril uma questão tão pertinente para os tempos que vivemos, e o mal estar social que passamos. Há sim
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AGAMBEN, 2016.p. 126.
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fundamento dentro de uma história do poder estatal e a influência da teologia política do anúncio messiânico, que certamente Nietzsche tinha conhecimento. Já em Tertuliano, o mais próximo cronologicamente do aforisma messiânico de Paulo de Tarso, havia menção ao pro statusaeculi (permanência do mundo) e pro mora finis (pelo retardo do fim). É possível constatarmos, então, uma concepção sobre o Estado (Império Romano) que essa forma de forma de poder tem por finalidade esse retardo. Este, por sua vez, ao ver do pensador italiano age como imagem para ilustrar de forma precisa a função histórica positiva presente neste autor romano. Porque não trazer à tona também o caso Hobbes. Neste caso, a teoria do Estado leviatânico que vê nele o poder de impedir pequenos males e de retardar a catástrofe final. Nesses dois pensadores da Filosofia Política, é possível perceber de forma clara uma espécie de secularização do anúncio messiânico, interpretado a partir da passagem 2Ts 2, da Carta aos Tessalienses escrita por Paulo de Tarso. Acaso, serviria essa passagem como fundamento base para uma possível teoria da doutrina cristã do poder estatal? Há no mundo um poder maior que o da soberania do Estado? Por hora, vejamos a culminância da secularização desta tradição messiânica. Alemanha, séc XX, Carl Schmitt, escreve acerca do que ele denomina Império Cristão, no qual possui como característica fundamental um reinado que não durará para sempre, digamos interino, visto que “tem sempre presente o próprio fim e o fim do presente éon. Para Schmitt, é nesse ponto que se sustenta o exercício do poder histórico, a partir de um conceito base kathechon, ou seja, a força de freagem. Onde se lê “império” se vê o poder histórico com habilidade para reduzir a possibilidade de chegada do anticristo, e concomitantemente o fim do éon atual: Não creio que a fé cristã original possa ter em geral uma imagem da história daquela do kat-échon. A fé numa força de freagem capaz de reter o fim do mundo estende as únicas pontas que da paralisia escatológica de todo acontecimento humano conduzem a uma grandiosa potência histórica, tal como aquela do Império cristão dos reis germânicos6. Diante do exposto, chegamos a clara visão da relevância do que está em jogo aqui nesta pesquisa. Não há muitas alterações entre os intérpretes modernos que enxergam no katechon o próprio Deus, dado que o atraso da parousia a imagem do plano de salvação da divina providência.
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SCHMITT, 1974, p. 43-44.
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Nesse ponto, podemos trazer à tona o fato de Paulo de Tarso não ter feito menção à uma análise positiva acerca do katéchon. Ao contrário, na ótica do apóstolo do universalismo essa categoria remete à dimensão do que deve ser retirado do caminho, para que só a partir disso, o mistério da anomia possa vir a ser revelado. Portanto, a passagem que marca de forma decisiva a Carta aos Tessalienses encontra-se na abordagem de 7 a 9, É nessa passagem que Paulo de Tarso trata que a anomia não pode ser outra coisa que não seja “ausência de lei”, logo, ánomos é o sujeito que sem encontra “fora da lei”, não em sentido pejorativo, visto que o próprio apóstolo se apresenta como hósánomos aos não-hebreus. Desta forma, a Agamben prova que a tradução de anomia, do grego para o latim, feita por Jerônimo, se mostra genérica e equivocada verter o termo abordado, para iniquidade ou ainda pecado. Isto posto, fica claro que, a partir da interpretação de Agamben acerca do anúncio messiânico, podemos concluir que Paulo se refere à condição da lei ao tempo messiânico, visto que o nomos ao se tornar inoperante, assume o estado de katárgésis. Não à toa nos deparamos com enérgeia e dynamis, no texto messiânico, visto que tratamos do ser em ato da mesma forma que do ser inoperante. Podemos concluir também que, para Paulo de Tarso, o katéchón é o Imperio Romano (força, poder e autoridade) que age como antípoda, ou ainda como estado de anomia tendencial. E nesse sentido sim, como um retardo do desvelar do mistério da anomía. Em outras palavras, para Agamben, esse desvelamento significa o vir à luz da inoperosidade da lei e da ilegitimidade substancial de todo poder no tempo messiânico. Desta forma, podemos concluir que o kathechon e o ánomos podem ser dois conceitos que designem um mesmo e único poder, que seja antes ou depois do desvelamento do mistério final da anomia. Por fim, a passagem de 2Tes 2 não se encaixa no papel de fundamento para uma suposta teoria cristã do poder, visto que o poder profano é que aparentemente eclipsa a anomia substancial do tempo messiânico. Ao ver de Agamben, a dissolução do mistério retira a aparência do caminho e o poder se torna a figura do ánomos, ou seja, o fora da lei absoluto. O messiânico se cumpre, assim, no choque de duas parousiai: aquela do ánomos, assinalada pelo ser em ato de Satanás em toda potência, e aquela do messias, que tornará inoperosa a sua energeia(com referência claraa 1 Cor 15,24: “então, o fim, quando
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entregar o reino a Deus e ao Pai, quando tornar inoperante todo principado, toda potestade e toda potência7. Nossa pesquisa encerra-se, aqui, com a questão inicial que deu base científica e filosófica: o que teria levado o filósofo bailarino a intitular sua declaração de guerra ao cristianismo e a Paulo de Tarso com a marca O Anticristo? Aos olhos de Agamben, a guerra declarada nietzschiana se trata de uma paródia messiânica, haja visto que Nietzsche veste os trajes de antimessias para recitar até a última linha o roteiro traçado por Paulo de Tarso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Obras de Nietzsche NIETZCHE, F. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro.; tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. - São Paulo: Companhia das Letras, 2002. _____. O Anticristo: Maldição ao cristianismo.; tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. _____. Assim Falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém.; tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Obras de Agamben AGAMBEN, G. Estado de exceção. Trad. Br. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. AGAMBEN, G. Il tempo che resta: um comento allaLettera ai Romani. Torino: BollatiBoringhieri, 2000. (O tempo que resta: um comentário à Carta aos Romanos. Trad. Br. Davi Pessoa e Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016). AGAMBEN, G. Profanações. Trad. Br. Selvino José Assman. São Paulo: Boitempo, 2007. Obras secundárias:
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AGAMBEN, 2016.p. 128.
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BARTH, K. Der Römerbrief. 9. Ausgabe. Zollikon-Zürich: EvangelischerVerlag, 1954. (Carta aos Romanos. São Paulo: Fonte Editorial, 2009). KAFKA, F. Hochzeitsvorbereitungen auf dem Lamb und andereProsaausdemNachlass. In: GesammelteWerke. Herausgegebenvon Max Brod. Frankfurt a. M.: Fischer, 1983. SANTANA DE, A. R. Paródia. Paráfrase & Cia. São Paulo: Editora Ática, 2003. SCHMITT, C. PolitischeTheologie. VierCapitelzurLehre von des Souveränität.München: Dunker&Humblot, 1974. (Tradução brasileira: Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006) TAUBES, J. Die politischeTheologie des Paulus. Von Almeida (Herausgeber, Bearbeitung), Jan Assman (Herausgeber). München: Fink, 1993. (Tradução italiana: La teologia política disan Paolo. Lezionetenute dal 23 al 27 febbraio 1987 allaForschungsstättedellaEvangelischeStudiengemeinschaft di Heidelberg. Milano: Adelphi, 1977).
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Reflexões em estética para um breviário da arte conceitual, pp. 173 - 181
REFLEXÕES EM ESTÉTICA PARA UM BREVIÁRIO DA ARTE CONCEITUAL Ana Monique Moura
É
impossível se referir à arte conceitual como nos referimos, por exemplo, à beleza natural das tulipas em um jardim e suas projeções numa arte impressionista. Não nos referimos, portanto, à qualquer ideia de beleza clássica. Deve-se deixar isto claro, porque à arte tende-se costumeiramente a atrelar o sentido de belo. Não estamos falando sobre beleza, e, portanto, nesta esteira, tampouco sobre a arte encarada em seu sentido didaticamente tradicional. Porém, pode agora surgir a pergunta: por que ainda aqui falamos em arte? E, não estaria a estética ligada às reflexões sobre o belo na arte? Por que, portanto, não é a arte conceitual uma bela arte? Falamos ainda sobre arte, porque tenta-se pensar a não-arte como arte. Também falamos em estética, porque a estética lida com o belo, mas na medida em que realiza, na reflexão que faz desta categoria, resultados que inevitavelmente tendem a transpor a própria ideia de beleza em algumas considerações críticas. Não saímos, portanto, do terreno tradicional de abordar a arte, a saber, o de lidar com ideias estéticas. Mas saímos, claramente, dos caminhos que desembocaram não em estéticas, mas em doutrinas, seja do belo, seja da arte, seja na confluência, ao nosso ver, nociva, de ambas.
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I
A arte conceitual é tomada como uma arte que suprime o objeto para dar lugar a ideia. Até certo ponto, podemos dizê-lo. Até outro ponto, não. O dizemos, se tomamos a arte conceitual na sua relação com a atividade intelectiva que se exige diante do objeto, e que, não encontra exatamente nele, enquanto lançado e enquanto meramente o que aparece o seu sentido, mas naquilo que surge do próprio aparecimento. Estamos de acordo com Leenhardt (1994, 345), que alguns elementos da estética de Kant colaboram, antecipadamente, na compreensão da arte contemporânea, qual seja, a conceitual. Kant na sua Kritik der Urteilskraft (Crítica da Faculdade do Juízo), em 1790, atestará no §9 a diferença entre o objeto percebido esteticamente (Objekt) e o objeto conhecido epistemologicamente (Gegenstandes). Encontramos aí um equivalente ao que se pode aplicar à arte conceitual, muito embora o sentindo de “conceito” em arte, para Kant, atingisse outro significado. O objeto enquanto Objekt, e não enquanto Gegenstandes, sem as ressalvas da teoria kantiana do belo, é o que interessa à arte conceitual. Podemos assumir, no nosso português, uma tradução livre para “objeto pensado esteticamente”.
É neste sentido que a arte conceitual se coloca enquanto elaborada pelo sentido de ideia que ultrapassa o objeto conhecido como tal. Por outro lado, no caso de evitar não dizermos que isto pode ser tomado isoladamente, é preciso destacar que a arte conceitual é a arte por excelência material. Tão “material” é sua natureza que inaugura a derrocada do caráter invisível, o caráter aurático da arte. A arte conceitual se apropria do caráter pósprodutivo, ou seja, a matéria perde a necessidade de uma origem unívoca do artista autor, do artista gênio e pode ser meramente adaptada, como fez Duchamp ao expor um Mictório e assiná-lo com seu nome em meados dos anos dez, dando origem aí à problemática arte conceitual. Porém, o que torna-a a arte da ideia e não do objeto? Isto pode ser respondido apenas pela via de que a ideia deve ultrapassar o objeto dado. Ele, por si próprio não ter valor algum até que o artista lhe forneça algo. Citamos John Dewey, em sua obra Art as experience (2005, 35): “In art, elements of meaning and life do not exist until the artist has mastered those technical processes by which he may or may not have genius to call them into being”
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(“Na arte, elementos de sentido e vida não existem até que o artista tenha dominado os processos técnicos pelos quais ele pode ou não ter gênio para chamá-los para a existência”).
II
Outro aspecto que se precisa destacar é o significado, aí, de conceito. A palavra foi cunhada pela primeira por Henry Flynt, em 1961, em referência ao grupo conceitual Fluxus. Mas a palavra conceito, no sentido filosófico que damos, não ter nada em comum com o conceito na arte. A arte conceitual surge como uma forma de negar o próprio conceito corrente de arte, isto até aqui fica claro. É conceitual por guardar em si não o conceito tácito, mas o convite à sua possibilidade. Podemos dizer que a arte conceitual se baseia no sintoma de ausência. Seja da arte, seja daquilo que se tendeu a pensar como regimento da arte, o belo. Sua conceitualidade está, portanto, fora do conceito fechado e entra no sentido de conceito aberto, ou melhor, de conceito por vir. É neste sentido que, então, talvez fique mais explícito, como a arte conceitual é uma arte que de alguma maneira suprime o objeto, entende-se, sua preponderância.
Acreditamos que a arte conceitual se revela, ela própria, como estética plena. Na história, é-nos o primeiro dado de uma arte que se coloca não mais como uma proposta de apreciação, mas como proposta de incômodo. Sem textos longos e exaustivas especulações filosóficas, a arte conceitual experimenta até a última instância como por meio de sua presença se é lançada todas as questões que a estética tentou colocar durante séculos, desde o Renascimento.
Se dizemos que a arte conceitual não lida com aquilo que é mais caro à arte clássica, ou seja, com o belo, não o fazemos por destacar que a arte conceitual sobreleva o feio sobre o belo. O belo deixa de ser o ideal daquilo que da estética se faz doutrina. Em termos de arte conceitual, não se trata, pois, de convidar o receptor da arte ao prazer estético, mas ao incômodo estético. Este incômodo não é, com certeza, o mesmo que temos diante de algo Volume 5 no 2
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feio. Portanto, isto não vem significar que a arte conceitual se converte em defesa do feio para negar o belo clássico. Devemos dizer: o belo clássico depende da ideia do feio, tanto como a força e a pureza de um Deus cristão depende da contraposição com o Diabo. Ambos compõem a abóbada de uma mesma estética, de um mesmo universo dicotômico. Toda a estética clássica se baseia, direta ou indiretamente, de um lado, no idealismo platônico e, por outro, na lógica aristotélica do terceiro excluído. Portanto, tem-se a ideia de que o belo é o melhor ideal e que, sendo o melhor, não pode ser o mesmo que o pior, que é o feio. A tarefa da arte conceitual é de sobrepor aos dois elementos.
A arte conceitual está para fora disto. Ela abandona tal binômio. A reflexão que ela exige transpõe naturalmente a mera apreciação. E a não apreciação clássica é configurada por uma apreciação de ordem intelectual, algo que já fora rechaçado na estética, por exemplo, de Kant, que tentava separar o intelectual do artístico.
III
Por se configurar como estética plena, a arte conceitual abandona, inclusive, junto com o ideal de belo, o sentido do poético. Há, no entanto, uma poética para a arte conceitual, mas enquanto atestado de uma poética ausente. Diríamos, pois, que arte conceitual possui poética própria, porém ela é refratária à poética convencional. Como bem afirma Christina Freire, em sua competente obra Arte conceitual, “há uma certa intenção de permanência de algo que definitivamente escapa” (FREIRE, s|d, s|p). É poética antipoética, assim como é arte anti arte, ou, para utilizar um termo mais intenso dado pelo artista conceitual Gustav Metzger, é “arte autodestrutiva”. Por excelência, a arte conceitual se configura como práxis dialética de uma pós-arte. Ela é a -histórica, na medida em que não se encontra sequer numa história passível de coloca-la em um molde episódico, como se fala em Classicismo, por exemplo. Mas ao mesmo tempo é histórica, porque também é um movimento, no sentido literal e metafórico, mas está num meio tênue entre o que Arthur Danto chama de póshistória da arte, assim com está, propomos dizer, na pré-história do que virá para ela própria.
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Na medida em que a arte conceitual provoca a derrocada de valores clássicos da arte, ela se mostra já aí de viés político. Elementos derrocados culminam em teores de grande extensão social e política. Podemos citar a crítica à hegemonia do gosto, à censura, à ideologia dominante, à instituição, e a tomada prática de sentidos para pluralidade, autonomia, coletivo, rede e ativismo. Portanto, a crítica ao estatuto da arte é também a retirada de seu lugar-comum fornecido por uma clássica elite, que historicamente buscou proteger a arte de transgressões, mantendo-as em “regras das belas-artes”. A fonte de Duchamp inicia emblematicamente um processo radical de crítica. Mas vale lembrar que muitos artistas colocaram a América Latina como locus político da arte conceitual, a frente da estética anglo-saxônica, mais presa à abstrações autorreferentes, entenda-se, metaconceituais.
Porém, o que na contramão das intenções políticas de rebelião estética, também encontramos um processo muito mais arguto de elitização da arte no próprio seio da arte conceitual, de modo que podemos dizer que uma obra Da Vinci hoje é mais democrática do que algo de Duchamp.
Em direção à elite, ou em direção a um suposto povo, há prerrogativas políticas. Mas o fato é que a arte conceitual não tem necessidade de humanismos. Se faz política, o faz sem recurso a ideais humanistas. Não é a toa que o próprio ideal do belo na estética surgiu no seio do renascimento (Cf. NUNES, 1999, 06). E, se, a arte conceitual vai contra a ideia de beleza, também irá, nesta esteira, contra o humanismo que aí subjaz. Ortega Y Gasset dirá (2008, 25):
Se a nova arte não é inteligível para todo mundo, isso quer dizer que os seus recursos não são genericamente humanos. Não é uma arte para os homens em geral, e sim para uma classe muito particular de homens, que poderão não valer mais que os outros, mas que, evidentemente, são distintos.
A estética da arte conceitual, negativa como se apresenta, ou seja, radicalmente crítica, por não positivar aquilo que se refere e, sim, negar a sua presença, seja em referência à arte ou à poética, revela também o sentido de política negativa, na medida em que ela se realiza na dubiedade da política presente e positiva, seja de esquerda ou de direita e as nega simultaneamente. Ela não foi, nem é, mas está por vir. Citamos Danto (1997, 37): “How
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wonderful it would be to believe that the pluralistic art world of the historical present is a harbinger of political things to come!”(“Quão maravilhoso seria acreditar que o mundo da arte pluralista do presente histórico é um prenúncio das coisas políticas por vir!”).
IV
A arte conceitual é perseguidora da estética. Que fique entendido: quando falamos em estética aqui, nos referimos à sua característica precípua, a saber, colocar questões e não decisões sobre a arte. Não se trata de uma mera característica pós-moderna, a de não abraçar certezas, mas ao contrário, trata-se de resguardar o caráter incentivador da ideia estética enquanto elaboração constante da arte e não como elemento fechado e encerrado numa doutrina. É neste aspecto, que a arte conceitual se coloca como distante da arte que, como atesta Hegel, finda com o romantismo. E é neste sentido também que Arthur Danto falará em fim da história da arte. Mas, vale dizer, o fim da história da arte traz também o sentido de uma história porvir. Falamos, então, muito mais, depois da arte conceitual, em uma póshistória. E, aqui, há uma espécie de pós-história, que é ao mesmo tempo pré-história, já que guarda este manancial da possibilidade vindoura, de algo que está por se fazer da arte.
Longe de querermos trazer uma resposta de caráter universal para o sentido das projeções políticas da arte conceitual, poderíamos afirmar o problematismo, com Benedito Nunes: “o problematismo da arte contemporânea é, portanto, radical. Em cada obra de arte que se produz está em jogo o destino da arte; em cada uma delas o artista arrisca-se a mata-la ou a fazê-la existir” (NUNES, 1999, 54). É nesta perspectiva que a arte conceitual sugere o porvir e não a presença da arte, entenda-se, portanto, o sentido dado por Benedito Nunes de “destino da arte”, que é, como se vê, incerto, mas definitivo. O que podemos dizer ainda sobre as projeções da arte conceitual? Como falar em projeções políticas se dela se retira o sentido de desumanização da arte? Não estaria o político ligado precipuamente ao humano, principalmente se lembramos da teoria do zoon politikon de Aristóteles?
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Resta-nos para a pergunta do alcance político da arte conceitual uma postura também conceitual o seguinte: o silêncio. O próprio dizer e o ruído supostamente certeiros disto soariam como retórica sem importância. Mas resta-nos o direito de perguntar: A dimensão estética da arte conceitual, neste “não dizer”, faria-nos então voltar àquele “algo impossível de ser dito” do real, ao que Platão já atestara? Aquela partícula da verdade que a arte, segundo ele, jamais seria capaz de fazer dizer? Estaria convertida então a arte conceitual em nova metafísica do inaudito, do invisível? Aquela metafísica que Nietzsche reivindicara em substituição à metafísica filosófica - mais trágica do que bela? Se sim, ao menos esta arte sabe mostrar sem lamento que nada pode comunicar a não ser a sugestão do porvir incerto de suas projeções. Como disse Paul Valéry em Le Solitarie: “La réalité est absolument incommunicable” (VALÉRY apud ZIMA, 2002, 116). E, como afirma Nelson Goldman em Languages of art (1976, 263), a própria verdade para a arte não é suficiente. Daí sua dependência de símbolos e estes, respectivamente, de ideias para além dos processos objetuais. Ademais, se a arte conceitual é, como afirma Ortega Y Gasset, a expressão da desumanização da arte, estaria ela enfim apta a prever e a ser, ela mesma, pré-história daquilo que agora se anuncia como a era do pós-humano? A frase de Dewey faz-nos reforçar a pergunta: “Art also renders men aware of their union with one another in origin and destiny” (“A arte também torna os homens conscientes da sua união uns com os outros em origem e destino.”) Seria tal destino, de fato, desumano? Se, sim, isto não deve soar de nenhuma maneira ingenuamente apocalíptico para nós. Lembremos com Adorno: “ainda onde a arte, em sua constituição, chega ao extremo em termos de desacordo e de elementos dissonantes, seus momentos são, ao mesmo tempo, de unidade; sem esta, eles nem sequer seriam dissonantes”. (ADORNO apud BÜRGER, 1998, 118). Portanto, não se perde de vista de onde parte tal arte e, parece, ao fim, ficar debulhada a relação ente o seu incerto e o seu definitivo. Tal relação exibe, no nosso ver, efetividades também metafísicas para a estética, muito além de projeções políticas, posto que só com a metafísica parece possível lançar o que para a política positivada na arte soa ad absurdum, a saber: sem invocação da humanidade (no sentido humanista clássico), trazer finalmente, no possível, o impossível “nada”. Isso graças ao desnudamento da arte, enquanto indagação que emerge de sua própria auto-afirmação.
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REFERÊNCIAS
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DANTO, Arthur. After the end of art: Contemporary art and the pale of history. Washington, Princeton Universiy Press, 1995.
DEWEY, John. Art as experience. New York. Peguin Group, 2005.
FREIRE, Cristina. Arte Conceitual. São Paulo: Expresso Zahrar. Kindle Edition, s|d.
GOODMAN, Nelson. Languages of art: an approach to a theory of symbols. Indianopolis|Cambridge: Hackett Publishing Company, 1976.
KANT, Immanuel. Kritik der Urteilskraft. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 2003.
LEENHADT, Jacques. Duchamp:Crítica da razão visual. In: NOVAES, Adauto. Arte e pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p339 -350.
NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Editora Ática. 2ª edição. 1999.
ORTEGA Y GASSET, José. A desumanização da arte. Tradução: Ricardo Araújo. São Paulo: Cortez Editora, 2008.
ZIMA, Pierre. La negation esthétique. Paris: L’Harmathan, 2002.
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Sumário D O S S I Ê
CETI CI S M O
01
Introdução: O que o ceticismo nos levou a pensar? Fabien Pascal Lins
08
Hume e o ceticismo: acerca do que é mais forte que a razão Ronney César Ferreira Praciano
21
Wittgenstein e a Certeza: um cético? Leonel Olimpio
32
O efeito aporético na discussão sobre a justificação epistêmica Helly Lucas Barros Crispim
40
Ceticismo em relação ao não-espelho: civilização x transoutridade Henrique Azevedo
52
O cinismo e os protótipos de risco Bruno Pereira Cavalcanti
66
Sobre o Ceticismo Ruy de Carvalho
O que o ceticismo nos levou pensar? pp. 01 – 07
O QUE O CETICISMO NOS LEVOU A PENSAR? Anais do I Encontro sobre ceticismo da Universidade Estadual do Ceará.
O
s textos aqui publicados são frutos do I Encontro sobre ceticismo da Universidade Estadual do Ceará, realizado entre os dias 22 e 25 de fevereiro de 2016, no Centro de Humanidades (CH - Campus Fátima), na cidade de Fortaleza - CE. Foi a partir de uma constatação que se resolveu promover tal Encontro. Entre debates nas salas de aulas, conversas no pátio do CH e outros esbarrões no Cantinho da Filosofia, percebeu-se que, ao apresentarem seus temas de predileção, alguns dos estudantes e professores enxergavam em perspectiva, relativizavam universais, destronavam critérios, acolhiam impressões, capturavam fenômenos, observavam equipolências e, de modo circunstancial, arriscavam-se em suspender seus juízos. Como se bom grado, mau grado, suas falas reverberassem inquietações céticas, sejam elas de ordem epistemológicas, éticas ou ainda políticas. Isso se deve, mais do que provavelmente, à influência do professor Ruy de Carvalho que há alguns anos vem nos apresentando, ora de modo histórico, ora de modo ensaístico, as diversas potencialidades que o ato de duvidar trouxe, e ainda pode trazer, à Filosofia. Entusiasmados pelo hábito do quadro de professores do nosso departamento em promover encontros acerca de filósofos consagrados, tais como, entre outros, Santo Agostinho, Benedictus de Spinoza, Giambattista Vico, Georg W. F. Hegel, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, ou, ainda, Michel Foucault; nos pareceu pertinente tentar compor com tais iniciativas, expressando publicamente as vias céticas emprestadas por alguns dos pesquisadores dessa mesma comunidade científica. Eis porque, resolvemos convidar estudantes e professores a expor, de modo amplamente livre, suas impressões e demais usos do ceticismo. Sem restringir nosso
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Encontro a um tema, período, autor(a) ou método específico, tratava-se, em suma, de perguntar aos conferencistas o que o ceticismo os levava a pensar: que problemáticas e embates ainda podiam extrair dessa postura filosófica, nascida na Grécia, por volta do IV século antes da era cristã? Ao repassar os textos para a presente publicação, verificou-se que Ronney Praciano, Leonel Olimpio e Helly Lucas inclinavam-se em adotar uma abordagem histórica da Filosofia. De modo preciso irão ora cotejar textos específicos, ora cuidar de suas fortunas ou recepções críticas. De Hume a Gettier, passando por Wittgenstein, giraremos essencialmente em torno de questões epistemológicas, intimamente entrelaçadas, no meio das quais cada autor irá de algum modo se situar, se posicionar adotando estratégias céticas. Apoiando-se na Investigação Acerca do Entendimento Humano (1748), Ronney Praciano nos apresentará a problemática enfrentada por David Hume quanto à natureza do nosso conhecimento da experiência. Embora, observa Hume, não possamos ter uma certeza demonstrativa a respeito dos fatos da realidade (dizemos “amanhã o sol nascerá”, mesmo que a possibilidade contrária não possa ser negada), nós nos asseguramos deles na experiência e os consideramos evidentes. Assim sendo, “o que nos determina a contar com o que ainda não é”? Ou, segundo a bela fórmula empregada por Ronney: “o que nos impele inexoravelmente ao porvir”? Abordando o problema do conhecimento da experiência sob o prisma da linguagem, Leonel Olímpio partirá das objeções de Ludwig Wittgenstein (Sobre a certeza, ~1949-51) aos argumentos avançados, notadamente por George E. Moore (A defesa do senso comum, 1925), acerca da existência de “verdades empíricas das quais não se pode duvidar”. A partir dessa querela, Leonel se perguntará em que medida a distinção operada pelo filósofo austríaco entre certeza e conhecimento revelar-nos-ia a pretensão do mesmo em adotar uma postura epistemológica suspensiva. Se para Wittgenstein “precisamos antes de duvidar, saber se faz sentido duvidar”, não seria ele, indaga Leonel, um filósofo que “duvida da dúvida” e que, por conseguinte, assumiria um modo investigativo de cunho “metacético”? Atento aos filósofos contemporâneos que consideram ser a pergunta acerca da justificação epistêmica preliminar à própria pergunta sobre a natureza do conhecimento, Helly Lucas irá, por sua vez, mapear algumas tentativas recentes de resolução do chamado “problema de Gettier”. Partindo do artigo “Is Justified True Belief Knowledge?”(1963), no qual Edmund Gettier procura refutar a definição tradicional do conhecimento (a “DTC” como crença verdadeira justificada), Helly tencionará determinar se, ao procurarem assegurar a “infalibilidade da justificação epistêmica das crenças” para solucionar o “problema de Gettier”, os epistemólogos coerentistas, fundacionistas, internistas e externistas nos apresentariam teses aptas a resistir aos assédios de argumentos céticos, tais como os de regresso ao infinito e de circularidade.
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Noutras palavras, pergunta Helly, em que medida seria viável assentar a existência de um critério último e, portanto, não aporético para a justificação? Concomitantemente ao ceticismo epistemológico até então delineado, Henrique Azevedo, Bruno Cavalcanti e Ruy de Carvalho, autores dos três textos seguintes, abordarão temas mais explicitamente cosmológicos, antropológicos, éticos, econômicos ou, ainda, políticos. Veremos, ademais, que optaram por redigir textos de cunho ensaísticos, em que os filósofos serão antes convocados como aliados e suas teses, como caixas de ferramentas, manejadas para enfrentar questões preferencialmente contemporâneas. Diagnosticando que o “ocidente greco-romano-cristão é cético em relação ao não espelho” e, por conseguinte, patologicamente narcísico, Henrique Azevedo não irá perguntar se é possível, ou se é mesmo preciso, pensar o outro “sem partir ou chegar a nós mesmos”, pois, como frisa, ainda seriam maneiras de formular questões que “não passam de reverberações do modo europeu de se perguntar sempre por si mesmo”. Aspirando, à luz de suas leituras de Pierre Clastres e Viveiros de Castro, descolonizar pensamentos e modos de vida eurocentrados, Henrique perguntará, tanto a si mesmo, quanto aos seus leitores: o quão seríamos “capazes do outro”? Dito de modo mais preciso, tratar-se-á de saber até que ponto seria possível exercitar aquilo que Henrique denomina de transoutridade, isto é: a faculdade de enxergar o outro sem “sacralizar a si mesmo como grande espelho do cosmos”, envolvendo-se, pois, num processo de “desesgoistização” capaz de “reinventar todo o nosso ordenamento social”. Bruno Cavalcanti irá, no que lhe concerne, partir de um primeiro diagnóstico: tudo parece indicar que o capitalismo, enquanto “geocultura de legitimação” do humanismo como narrativa, já tenha perdido sua validade. Na esteira de Paulo Arantes, atentará para o modo segundo o qual nossa “nova era de expectativas decrescentes” reconfigura e se impõe aos desejos. Noutro termos, frente ao encolhimento do globo e a redução dos horizontes temporais ao momento presente: “o horizonte de desejo tende a zero”. Isso posto, Bruno nos apresentará um segundo diagnóstico. Partindo, dessa vez, de suas leituras de Peter Sloterdijk e Ruy de Carvalho, constatará que: “o cinismo enganchado na história das ideias aparece na contemporaneidade como indicador de uma crise da cultura em declive com as contradições do mundo capitalista”. Se assim for, de que modo o cinismo contemporâneo configuraria “um novo tempo” e nos conduziria “a um futuro irreconhecível, inexperimentável”? Estaria a vida cínica apta a “encontrar um tempo ainda mais interno que conhece apenas o agora, ao invés desse presente que nos espreme no vórtex das expectativas e reminiscências”? Para Bruno, tratar-se-á, em suma, de expor as estratégias que o cínico - esse filósofo das crises - adota para “reorientar o curso da sua existência” e, com isso, poder “fugir do tempo e se entremear no espaço”. Por ter, muito recentemente, assumido a Direção dos onze cursos que compõem o Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará, Ruy de Carvalho teve de Volume 5 no 2
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“desafiar o ser” para, de algum modo, contribuir à presente edição. Não podendo, frente aos “ossos do ofício”, transcrever a fala por ele proferida durante o Encontro sob a forma de artigo, resolveu nos brindar com algo que se assemelharia a uma carta de intenções ou, como ele mesmo define, a um tipo de soluço ou de síncope. Ruy nos apresentará, pois, as premissas de um artigo ainda não escrito, os pontos de partida de um projeto há muito ruminado. Evitando reduzir o ceticismo ao cerco epistemológico e procurando enfrentar as críticas tradicionalmente direcionadas à vida cética - considerada inviável e/ou conformista - Ruy acentuará as tonalidades “clínicas” e “antropológicas” dessa postura filosófica. O ceticismo seria clínico, porque “mais interessado na dor e no sofrimento que o dogmatismo causa a si e aos outros”; antropológico, porque comprometido com “uma certa maneira de viver, em um mundo e com os outros, em que o problema do sofrer e do fazer sofrer teriam a primazia frente à questão acerca da verdade, da crença, da certeza ou ainda do fundamento”. Apesar das diversas abordagens e problemáticas aqui enunciadas, constatou-se que os autores foram particularmente sensíveis às incidências da(s) experiência(s) no âmbito do conhecimento e, por extensão, da ética. Ronney, Leonel e Helly irão, cada um à sua maneira, realçar os limites que os hábitos, as crenças, os consensos, os sentidos e as singularidades irredutíveis de cada “objeto de conhecimento” afixam às pretensões da razão humana em: determinar aprioristicamente os fatos, saber absolutamente (inclusive por meio da linguagem) e encontrar uma definição universal do conhecimento. De outro lado, antes de recorrer ao arsenal cético para frisar as “indeterminações”, os “silêncios” ou as “aporias” que as experiências parecem “impor” às tentações absolutistas, Henrique, Bruno e Ruy se esforçarão em fazer das percepções fenomênicas um meio de pensar e, por conseguinte, de agir no mundo. Mais do que precariedades epistemológicas, serão potências éticas que, no cerne das experiências, procurarão entrever e destacar. Henrique encontrará nos costumes e pensamentos de alguns povos ameríndios sul-americanos expressões notáveis, encarnações factuais e parciais do conceito de transoutridade por ele proposto. Bruno irá associar a vida cínica à capacidade de fazer de si mesmo um protótipo, que atua arriscando-se nas circunstâncias disponíveis no agora. Por fim, o ceticismo clínico e antropológico anunciado por Ruy procurará tornar a filosofia potente, desde que motivado pela percepção dos sofrimentos, pelo perscrutar dos afetos tristes, produzidos por aquilo ou aqueles que santificam os suplícios. Em todos os casos, tudo se passa como se os autores não apenas se esforçassem em “seguir os fenômenos”, para falar como Sexto Empírico, mas em permanecer igualmente no espaço e no tempo que lhes são próprios. Sem propor nenhuma “porta de saída”, seja ela transcendente ou imanente, suscetível de reduzir o múltiplo ao uno e de neutralizar a variabilidade dos dados fenomênicos, os autores persistem, numa forma sadia de “teimosia”, em habitar a Terra. Recusam-se em dissociar o filosofar da vida experienciada e, como já entrevemos, nutrem-se para escrever: da força do hábito, das consequências dos consensos, da peculiaridade dos objetos, das diversidades
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cosmológicas, das oportunidades circunstanciais e, por fim, dos estímulos dos afetos nos corpos, logo no pensar. Alheios às grandes sínteses disjuntivas, todos parecem aqui cevar uma aproximação entre razão e experiência, isto é: compor uma relação em que ambos os conceitos não se excluam, porém se abasteçam, retroalimentem-se num embate sem fim. Em conversas que mais alongam do que cerceiam, forjam diálogos sem vencedores e vagueiam num tempo aiônico, tensional e insolúvel, que força ao incessante descentramento de si, à contínua descrença no mesmo e no absoluto. Fazendo da escrita um exercício de resistência à idolatria do eu, tudo indica que tendem a declinar o convite feito, ou imposto, pelas visões polarizadas do mundo. Resolveram, pois, não escolher entre A ou não-A, amigo ou inimigo, civilizado ou bárbaro, bem ou mal, verdadeiro ou falso, racional ou empírico, razão o u experiência... No lugar de advogar por partidos, escolas, conceitos ou teorias puras, os autores aqui expostos parecem ter encontrado, ou estar à procura, de uma maneira de “sujar as mãos”: trabalham as contradições demorando-se em seus pântanos, percorrem as tensões sem delas se furtar por meio de resoluções. Algo como uma tentativa de se filosofar espreitando fenômenos, capturando o diverso e ocupando o agôn para, no fundo, (re)inventar problemas. E la nave va…
Gratulações diversas: Para fazermos nossos devidos agradecimentos será preciso mencionar, brevemente, o contexto político em que ocorreu nosso I Encontro sobre o ceticismo. Realizado durante um período particularmente tenso e, portanto, igualmente rico, do Campus Fátima, que passava, como muitos diziam, por uma “crise institucional” envolvendo tudo e todos; promover qualquer tipo de atividade acadêmico-cultural, usufruir do auditório ou, de modo mais elementar, simplesmente “dar aula”, já não eram práticas assim tão evidentes ou, até mesmo, “toleradas”. Eis porque, nos apressamos em expressar nossa profunda admiração aos atuais coordenadores do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará. Sem jamais ceder aos clamores do autoritarismo e isentos de qualquer cacoete dogmático, os coordenadores e professores Eliana Sales Paiva e João Emiliano Fortaleza de Aquino demonstraram o quão, para eles, as Filosofias - para além de suas vertentes e manifestações específicas - mereciam espaço, eram dignas de serem ouvidas, acolhidas e, como se espera de um Centro de Humanidades, criticadas pelos “transeuntes” do Campus Fátima. Pela sensibilidade e determinação em garantir o devido amparo institucional ao nosso Encontro, transmitimos nossa gratidão. Contando com uma equipe experiente e por demais competente, agradecemos evidentemente os funcionários, estudantes e pesquisadores que, sempre
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compromissados com as atividades acadêmicas e culturais do CH, participaram de modo decisivo à organização e divulgação do presente Encontro. Obrigado àqueles que conosco navegaram, entre outros: Beatriz Lima, Clara Kevilla, Daniella Matias, Emília Lira, Erika Raianny, Maria Antônia Pinheiro, Suzana Magalhães, Stella Maris, Thaís Cruz, Valeria Raulino, Emídio Neto, Ivan Braga, Paulo Henrique Silva, Paulo Lima, Samuel Fonteles e Samuel Prado. Pela cumplicidade mágica e insistência em fazer perguntas exigentes, quando não, endiabradas durante os debates (e outros embates), queríamos aproveitar a oportunidade para saudar @s inesquecíveis: Amanda de Melo, Ana Carolina, Anne Helen, Anninha Fernandes, Beatriz Martins, Catarina Silver, Dara Reis, Elane Fideles, Irlana Melo, Isadora Paiva, Julia Catharina, Karol Rodrigues, Luiza Ferreira, Mariana Lacerda, Marry Antoine, Natyelle Martins, Palloma Soares, Viene Ferreira, Adriano Cardoso, Alexandro Mendes, Álvaro Lins, Bergson Melo, Breno Mendes, Carlos Henrique, Cesar Freitas, Djibril Perreira, Dju Livam, Dovale Iago, Edson Sá, Emanuel Machado, Fábio Rodrigues, Felipe Coelho, Felipe Castro, Henrique Garrel, Jaderson Nobre, Igor Mateus, Jair Soares, Lailson Fernandes, Leandro Ordnael, Natan Oliveira, Paulo Jorge Leandro, Pedro Henrique Magalhães, Leonardo Nascimento, Leonardo Pinheiro, Lucyen Franco, Matheus Rodrigues, Mario Castro, Pedro Henrique, Robson Breno, Rodrigo Noronha, Samuel Acácio, Wellington Coelho, Ygor Barros e tantos outros que vitalizam e viralizam tudo que tocam. Congratulamos os conferencistas que, de maneira espontânea e decidida, atenderam ao nosso convite. Estejam certos de que a qualidade ímpar de suas investigações tem sido, para nós, de suma importância. Pela beleza do gesto e generosidade das falas agradecemos, pois, todos que se dispuseram a remanejar seus textos para a presente publicação, assim como aqueles que, como eu, não puderam fazêlo a tempo, por motivos diversos e compreensíveis. Obrigado, pois, aos que, num contágio alegre, nos presentearam com as seguintes falas: Airton Uchoa ( “O ceticismo malandro de Brás Cubas” ), Bruno Cavalcanti ( “O Cinismo e o uso das próteses” ), Felipe Rocha ( "Montaigne e o ceticismo na Apologia de Raymond Sebond” ), Glauber Holanda ( “ΣΚΕΨΙΣ (SKĒPSIS): os céticos como grandes intelectos da história da filosofia” ), Helly Lucas ( "O efeito aporético na discussão sobre a justificação epistêmica" ), Henrique Azevedo ( "Céticos em relação ao não espelho: civilização x transoutridade!" ), Leonel Olímpio ( "Wittgenstein e a Certeza" ), Ronney Praciano ( "Hume e o ceticismo" ) e Ruy de Carvalho ( "Que política para o cético?” ). Não podíamos deixar de agradecer a professora Ilana Viana do Amaral que, em meio ao turbilhão de afetos durante o qual o Encontro se deu, teve a sagacidade de dar início, nesse mesmo período, ao “Transpassando” (Programa de Formação de Travestis e Pessoas Transgêneras, PROEX-UECE). Inserindo no âmago do Campus Fátima aquilo que consideramos ser um, mais do que saudável, polo de resistência ao discurso do ódio, Ilana soube oxigenar nossos ares. Pesquisadores que, como nós, encontram-se em maior
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ou menor grau animados por uma verve cética e que, portanto, são particularmente sensíveis a questões postas pela diversidade dos “usos e costumes”, solidarizam-se alegremente com tais estratégias de recusa e desnorteio de práticas excludentes que rondam, senão, estruturam nossas Instituições. O professor Eduardo Nobre Braga será aqui uma menção incontornável. Bárbaro saltitante, cuja nobreza se expressa na lucidez de um olhar afiado e cirúrgico, Braga tem sido um personagem conceitual - vertiginoso e potente - do Campus Fátima. Desarmando, com a delicadeza da Loucura erasmiana, todo discurso prêt-à-porter saturado por consolos metafísicos e outras “boas intenções” -, Braga soube bailar entre afetos, conseguiu deslocar perspectivas, curto-circuitar dogmas e propulsar o Curso de Filosofia a maquinar uma respiração própria; a experimentar - ocupando o “aqui e agora” - um futuro sem rosto, irreconhecível. Pela vida insuflada, um beijo Eduardo! Dedicamos a presente edição ao quadro dos professores do Centro de Humanidades da Uece, cujos ensinos e iniciativas nos inspiram diariamente. Como forma de reconhecimento, transmitimos nossos sinceros agradecimentos aos(às) professores(as): Adriana Barros, Cristiane Maria Marinho , Laura Tey Iwakami, Maria Terezinha de Castro Callado, Marly Carvalho Soares, Sylvia Peixoto Leão , Viviane Magalhães Pereira , Alberto Dias Gadanha, Alexandre de Moura Barbosa, Antônio Glaudenir Maia Brasil, Antonio Vieira da Silva, Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Estenio Ericson Botelho de Azevedo, Francisco Auto Filho, Francisco Luciano Teixeira, Francisco Venceslau de Oliveira, Itamar Lopes de Azevedo, João Bosco Rodrigues, José Expedito Passos Lima, Luís Alexandre Dias do Carmo e Regenaldo Rodrigues da Costa. Por último, mas não menos importante, gratificamos os membros do Apoena (Grupo de Estudos Schopenhauer – Nietzsche), por ter-nos concedido espaço em sua Revista Lampejo e, como sempre, apoiado incondicionalmente. Pela confiança, competência e relevância da Revista Lampejo para o presente contexto intelectual, cumprimentamos calorosamente: Herlany Siqueira, Luana Diogo, Marília Bezerra, Átila Monteiro, Daniel Carvalho, David Barroso, Gustavo Costa, Gustavo Augusto, Henrique Azevedo, Paulo Marcelo Brito, Pedro Moura, Rogério Moreira, Ruy de Carvalho, Thiago Mota e William Damasceno. A tod@s, o nosso muito obrigado!
Fabien Pascal Lins Doutorando em Filosofia (Unicamp – Bolsista Capes). Coordenador do I Encontro sobre ceticismo da Universidade Estadual do Ceará e Organizador da Edição Especial da Revista Lampejo: O que o ceticismo nos levou a pensar? Anais do I Encontro sobre ceticismo da Universidade Estadual do Ceará. E-mail: fabienlins@hotmail.com
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HUME E O CETICISMO: ACERCA DO QUE É MAIS FORTE QUE A RAZÃO Ronney César Ferreira Praciano * Resumo: O presente artigo tem por objetivo elucidar, a partir do pensamento de David Hume (1711-1776), a natureza dos nossos conhecimentos sobre os fatos. Desde a própria definição de um fato, ou, melhor dizendo, do juízo sobre o mesmo; até o critério de distinção que comumente fazemos entre as ideias do juízo (tomadas como espelhos dos fatos) e as ficções da imaginação (consideradas objetos da fantasia). Apoiando-se sobre a Investigação Acerca do Entendimento Humano (1748), este trabalho percorrerá a problematização tecida por Hume no que se refere à base dos nossos raciocínios factuais. Enfatizar-se-á três fatores centrais que possibilitam o conhecimento da experiência, são eles: a conjunção constante de objetos semelhantes; o costume ou hábito; e por fim, mas não menos importante, a crença. Tais elementos serão considerados a fim de compreendermos como a relação causal, que está na base de nossas proposições factuais, não pode ser determinada a priori pela razão, mas sim por um instinto natural de imperativa autoridade. Palavras-chave: Relação causal. Crença. Costume. Razão. Experiência.
Hume and scepticism: on what is stronger than reason
*Y Professor mestre: substituto/temporário (UECE). Email: ronneycesar90@hotmail.com Volume 5 no 2
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Abstract: This article pretends to elucidate, based upon the David Hume (1711-1776)’s philosophy, the very nature of our knowledge about facts. Since the proper definition of a fact, or, explaining better, the judgment of itself; to the distinguishing criterion that is generally made between the ideas of judgment (considering themselves as reflections of the facts) and the fictions of imagination (merely thought as objects of fantasy). Relying on the Enquiry Concerning Human Understanding (1748), this paper will cover the problematic treatment made by Hume about the basis of our factual reasonings. It will emphasize the three central factors that enable the knowledge of experience, they are: the constant conjunction of resembling objects; the custom or habit and, lastly but not less important, the belief. These elements shall be considered in order to comprehend that the causal relation, that is in the basis of our factual propositions, cannot be determined a priori by reason, but by a natural instinct of imperative authority. Key-words: Causal relation. Belief. Custom. Reason. Experience.
Introdução
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que nos dá uma segurança sobre os supostos fatos da realidade? O que nos determina a contar com o que ainda não é e, estritamente falando, nem sequer o foi? Em outras palavras, o que nos impele inexoravelmente ao porvir? Para Hume, esse deve ser um problema importante ao filósofo já que foi pouco cultivado tanto pela filosofia antiga, quanto moderna. Assim, a questão a ser tratada aqui consiste em dar um passo atrás da própria experiência, visando investigar sobre quais fundamentos ou princípios se assentam a nossa certeza e expectativa sobre o curso das coisas. Desse modo, tendo em vista, contudo, apenas entender o que afinal nos assegura a dar um passo a frente à própria experiência. O presente artigo tem por objetivo elucidar, a partir do pensamento de David Hume (1711-1776), a natureza dos nossos conhecimentos sobre os fatos. Desde a própria definição de um fato, ou, melhor dizendo, do juízo sobre o mesmo; até o critério Texto de distinção que comumente fazemos entre as ideias do juízo (tomadas como espelhos dos fatos) e as ficções da imaginação (consideradas objetos da fantasia). Apoiando-se sobre a Investigação Acerca do Entendimento Humano (1748), este trabalho percorrerá a problematização tecida por Hume no que se refere à base dos nossos raciocínios factuais. Enfatizar-se-á três fatores centrais que possibilitam o conhecimento da experiência, são eles: a conjunção constante de objetos semelhantes, o costume ou hábito e, por fim, a crença. Tais elementos serão considerados a fim de compreendermos como a relação causal, que está na base de nossas proposições factuais, não pode ser determinada a priori pela razão, mas sim por um instinto natural de imperativa autoridade.
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1. O Conhecimento dos Fatos Dentre todos os objetos passíveis de conhecimento, podemos dividi-los em dois gêneros distintos, a saber, ou como relações de ideias (relations of ideas), ou como questões de fato (matters of fact). Um dos aspectos relevantes do ceticismo de Hume reside na concepção de que, no diz respeito aos fatos da experiência, qualquer um deles seja possível na medida em que for concebível pelo pensamento. Se pudermos conceber sem contradição um fato qualquer (garantir a possibilidade lógica de sua existência), então é possível que ele corresponda à realidade. Isso implica que, no que diz respeito aos fatos, não podemos excluir uma possibilidade, na medida em que ela não é autocontraditória. Por exemplo, não é autocontraditório pensar que tomar um copo d’água pode me asfixiar, ou aumentar minha sede em vez de matá-la. Todos esses exemplos são igualmente viáveis do ponto de vista lógico e podem, por isso, vir a ser de fato. Assim, nosso conhecimento factual (que lida com questões de fato) tem de sempre conceder às variedades dos fatos um lugar pelo menos possível. Ademais, com base nesse raciocínio, mesmo um fato oposto a outro, não sendo em si mesmo contraditório, pode ser sempre levado em consideração, ou seja, pode sempre estar de acordo com a realidade. Posso conceber sem contradição que ao me aproximar do fogo meu corpo se esfrie cada vez mais ao invés de se aquecer. Também posso considerar sem contradição que caiam bolas de fogo das nuvens pesadas que se aproximam ao invés de gotas de água. Desse modo, podemos dizer que o contrário de um fato é sempre possível, ou seja, na medida em que ele não implica numa contradição evidente ao pensamento, pode estar em consonância com a experiência. O contrário de um fato qualquer é sempre possível, pois, além de jamais implicar uma contradição, o espírito o concebe com a mesma facilidade e distinção como se ele estivesse em completo acordo com a realidade. Que o sol nascerá amanhã é tão inteligível e não implica mais contradição do que a afirmação que ele nascerá. Podemos em vão, todavia, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma contradição e o espírito nunca poderia concebê-la distintamente.1 Diferentemente, no que diz respeito às relações de ideias (o outro gênero do conhecimento), podemos falar de uma certeza demonstrativa. As relações de ideias consistem, de modo geral, nos raciocínios matemáticos que implicam em provas e demonstrações, extraindo daí um conhecimento certo e evidente. Tal conhecimento não necessita comprovar-se em fatos, ao contrário, ele se desenvolve pela simples operação do pensamento, procedendo conforme o princípio de não contradição. No caso das proposições aritméticas e geométricas, o contrário de uma relação de ideias será sempre e necessariamente contraditório ao pensamento. Que 4 vezes 5 é igual à metade de 40 exprime uma certeza demonstrativamente certa. Qualquer outra possibilidade é banida como equivocada ou contraditória em relação os termos da 1Y HUME, David. Investigação Acerca do Entendimento Humano. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo. Nova Cultural Ltda 2000, p. 48. Faremos referência à obra a partir de então como (IEH).
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equação. Ora, como vimos acima, é justamente essa certeza e evidência que não estão presentes nos juízos sobre os fatos. Sempre podemos pensar um fato contrário a outro sem que implique numa contradição necessária ao pensamento, sendo então possível que as coisas sejam como as concebemos. Afinal, ninguém pode demonstrar a falsidade de um fato concebível. No entanto, de modo geral, dentre todas as possibilidades logicamente viáveis, apenas algumas ou uma delas exercem uma influência mais poderosa sobre nosso entendimento, determinando assim nosso juízo factual. Inclinamo-nos para uma possibilidade no âmbito da experiência, embora, considerada em si mesma, ela não tenha mais consistência que qualquer outra igualmente concebida. Dizemos: amanhã o sol nascerá, mesmo que a possibilidade contrária não possa ser negada. Nesse caso, tal proposição parece evidente e nos dá segurança sobre a realidade de um fato da experiência, mesmo que seu conteúdo não esteja ainda ao alcance dos nossos sentidos e nem sequer já tenha sido um registro em nossa memória. Embora não possamos ter uma certeza demonstrativa sobre os fatos, nós nos asseguramos deles na experiência e os consideramos evidentes. Portanto, torna-se forçosa a pergunta: qual é a natureza dessa evidência quanto aos fatos? Hume sugere: “Todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na relação de causa e efeito. Apenas por meio desta relação ultrapassamos os dados de nossa memória e de nossos sentidos”.2 Consideremos então essa relação.
2. A Relação Causal O raciocínio causal é a operação do entendimento que nos leva a transpor os limites de nossas sensações atuais e dos registros de nossa memória. E, ainda mais, quando inferimos de um fato presente, outro ausente, nós supomos que haja entre eles uma conexão. É por meio da causalidade que estendemos nossas expectativas ao futuro, que ajustamos meios para a consecução de certos fins, que também somos auxiliados a extrair de algo aquilo que esperamos dele obter. Devido a isso, a relação causal entre ideias revela-se imperiosa na natureza humana. Alcançamos aqui uma segurança quanto aos fatos, eles não são simplesmente possíveis, ao contrário, parecem a nós certos ou evidentes. Assim, se a certeza que temos sobre a experiência se baseia no raciocínio causal, cabe perguntar como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito. Antes de tudo, e aqui notamos o ceticismo de Hume, tal conhecimento não deriva da razão a priori, mas inteiramente da experiência que nos apresenta uma conjunção constante de fenômenos3. Ou seja, extraímos conclusões causais de objetos após ter 2Y (IEH, p. 49). 3Y No instrutivo livro de Plínio J. Smith, a questão é colocada de modo disjuntivo, o que ilustra muito bem a conclusão humeana: “O argumento tem duas premissas, uma disjuntiva e outra negativa: Ou é a razão ou é a experiência o fundamento do raciocínio causal e Ora, não é a razão. Chegamos, por silogismo disjuntivo, à conclusão de que, portanto, a experiência é o fundamento do raciocínio causal”. SMITH, Plíno Junqueira. O Ceticismo de Hume. Edições Loyola. São Paulo:1994, p. 80.
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experienciado em várias situações semelhantes, percepções semelhantes, uma dando lugar à outra no curso da experiência. Assim, nenhum homem teria a capacidade, prescindindo da experiência dessa conjunção costumeira, de saber quais causas ou efeitos estariam ligados a um objeto. Não se trata aqui de uma descoberta da razão que, operando em caráter puro, poderia inferir o que ocasionou algo e/ou o que ele, por sua vez, seria capaz de ocasionar, independentemente da observação de casos semelhantes já decorridos. Apresente-se um objeto a um homem dotado, por natureza, de razão e habilidades tão fortes quanto possível; se o objeto lhe é completamente novo, não será capaz, pelo exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis, de descobrir nenhuma de suas causas ou efeitos [...] Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, tanto as causas que o produziram como os efeitos que surgirão dele; nem pode nossa razão, sem o auxílio da experiência, jamais tirar uma inferência acerca da existência real e de um fato.4 Restringindo-nos, portanto, aos limites da experiência, não podemos afirmar que a estrutura fundamental de um objeto nos seja revelada. Que possamos penetrá-lo nos seus constituintes essenciais, de modo a obter daí o total conhecimento de suas causas e efeitos a priori. Além do mais, das qualidades sensíveis que percebemos de um objeto, não temos condições de saber sobre os seus supostos poderes ocultos. Não há nenhuma conexão cognoscível entre qualidades e poderes. Ao observar pela primeira vez um objeto, em vão tentaríamos inferir o que ele poderia ocasionar, como base apenas na observação de suas aparências sensoriais. As puras operações da razão nada fariam nesse caso. Depuradas da experiência, elas não poderiam nos fornecer jamais o conhecimento da relação causal. Por outro lado, causa e efeito são termos que não são idênticos e nem sequer se assemelham de modo algum. “Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela”. 5 Não há nada no efeito que me leve à causa, nem pelo mais minucioso exame. O pensamento pode inclusive considerá-los independentemente um do outro já que “Tudo que é distinto é distinguível; e tudo que é distinguível é separável pelo pensamento ou imaginação”. 6 Sendo assim distintas, a existência da causa não implica na do efeito e vice-versa. Desse modo, não poderíamos a partir de um dos termos inferir o outro, pois não há relação necessária entre eles. Além do mais, se concebermos que na filosofia de Hume as relações são exteriores aos termos7, então a causalidade não pode ser determinada a partir da consideração dos objetos (percepções) em si mesmos. As ideias não implicam relações, ou seja, o calor não 4Y Ibid, p. 50. 5Y Ibid, p. 51. 6Y HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Déborah Danowski. São Paulo. Unesp: 2000. Sinopse, p. 672. Faremos referência à obra como (TNH). 7Y Em seu livro Empirismo e Subjetividade de 1953, Gilles Deleuze considera essa proposição como um princípio da filosofia associacionista de Hume. Diz ele: “o associacionismo é a teoria das relações na medida em que estas são exteriores às ideias, isto é, na medida em que dependem de outras causas”. DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. Tradução de Luiz Orlandi. Editora 34. São Paulo: 2012, p. 127.
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necessariamente está implicado no fogo, de modo que tais termos seriam essencialmente relacionados. A relação, ao contrário, é estabelecida a posteriori, e não implica nenhuma necessidade. A priori, nada em um evento sugere a existência de outro, e sua concepção deve ser inteiramente arbitrária já que todas as possibilidades são igualmente concebíveis, portanto, passíveis de ser factuais. Daí se concluir que não são nossos puros raciocínios que nos fazem dar preferência a um dos objetos em questão, já que nenhum destes é mais ou menos contraditório ao pensamento do que o outro. Em suma, todos os nossos raciocínios sobre os fatos fundamentam-se na relação de causa e efeito; é por meio dessa associação que estendemos nossas expectativas ao porvir. Embora tais inferências tenham por base a experiência, mesmo depois de experienciar arranjos causais nos fenômenos, nossas conclusões não se fundam sobre qualquer raciocínio ou operação do entendimento. Ao observarmos qualidades sensíveis que têm se mostrado constantemente conjugadas na experiência, não podemos inferir delas os seus poderes ocultos, por qualquer circunspecção de suas naturezas. Não descobrimos nenhuma conexão necessária entre os objetos que nos aparecem relacionados na experiência. As qualidades últimas e “essenciais” dos fenômenos nos são inacessíveis. O pão que nos alimenta (conjunto de qualidades sensíveis) não necessariamente alimenta outro animal. Portanto, não podemos dizer que essencialmente tais qualidades teriam tais poderes nutritivos. Tudo o que percebemos são qualidades sensíveis semelhantes que se sucedem em circunstâncias semelhantes. Mesmo que essa sucessão ocorra repetidas vezes, é importante notar que não há nos fenômenos sucessivos acréscimo de informação que forneceria a nós um elemento adicional, responsável por nos dispor favoravelmente a tirar daí a inferência. As sucessivas aparições contêm, nelas mesmas, tanto conteúdo quanto a primeira. Não há nada a mais nos fenômenos sucessivos semelhantes que assegure minha inferência. No entanto, se algo não muda ou é acrescido nas qualidades sensíveis semelhantes, ainda assim há uma mudança que possibilita a inferência - caso contrário, não precisaríamos das experiências para fortalecer nosso juízo, já o faríamos desde a primeira aparição, o que é um absurdo - essa mudança, consequentemente, não está no objeto enquanto tal, mas sim no sujeito.8 Da experiência e observação da conjunção constante, a mente extrai uma conclusão. Ela se estende para além do que lhe aparece, e supõe que de objetos semelhantes em aparência sucederão efeitos semelhantes, imaginando entre eles uma conexão inexplicável e um obscuro poder oculto na suposta causa. Nessa altura, vemos 8YAcreditamos que há aspectos objetivo e subjetivo da causalidade conforme a explicação humeana. A conjunção constante é um fator objetivo, no sentido de que seus elementos parecem vir à mente independentemente da disposição do sujeito. Por sua vez, o hábito é formado na imaginação sendo, porém, uma espécie de espelhamento da conjunção costumeira. Desse modo, embora seja formado na mente, o hábito tem um caráter objetivo devido à sua reprodução da experiência dos objetos. O aspecto sugerido por nós como subjetivo, tendo por fonte principalmente a subjetividade (aquilo que não aparece na experiência da conjunção constante e nem simplesmente a reflete) é o fator da crença que vem reforçar decisivamente as ações e os raciocínios causais.
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“que o espírito tira uma consequência; que deu um certo passo; que há um processo do pensamento e uma inferência que necessitam de uma explicação”.9 Ora, esta inferência de objetos na experiência, baseia-se na forte tendência de que o futuro assemelhar-se-á ao passado. Aqui, o sujeito vai além da experiência, tanto atual quanto decorrida. Ele acrescenta algo a ela que ela mesma não o autoriza. Desse modo, a mente se estende no tempo, se inclina, espera e conta com aquilo que ainda não é. A expectativa é de que posso esperar poderes similares a partir de qualidades sensíveis similares. O problema é que não há nenhum processo do raciocínio a priori que me certifique disso. Daí, ser necessário ao filósofo saber qual o fundamento dessa inferência.
3. Costume e Crença Embora possamos concordar que não há qualquer base racional para as nossas inferências causais sobre os fatos, nós ainda assim realizamos tal operação. Logo, deve haver outro princípio forte e decisivo que nos determina a tirar tal conclusão. Para Hume, este princípio é o costume ou o hábito. Trata-se de um princípio da natureza humana que é perfeitamente inteligível e perceptível em seus efeitos. Diz Hume: “o costume é o último princípio que podemos assinalar em todas as nossas conclusões derivadas da experiência [...] O guia da vida humana é o costume e não a razão”.10 É o hábito, portanto, que nos permite distinguir as ficções das crenças, as fantasias da imaginação dos juízos do entendimento. É o costume que faz pender nosso assentimento de hoje de que o sol amanhã nascerá, e a tomar o contrário disso como fantasia. O costume envolve e condiciona a crença que temos sobre os fatos da experiência. Ele assim procede com base na conjunção constante de eventos similares experienciados no passado. Falando mais claramente, quando cremos num fato? Quando, frente a uma percepção atual dos sentidos ou um dado da memória (que ao ser trazido à consciência é atualizado), somos guiados pelo hábito, com base nos casos passados, a antecipar o seu acompanhante usual que está relacionado à percepção atualmente representada ou percebida. “Toda crença em matéria de fato e de existência real, procede unicamente de um objeto presente à memória ou aos sentidos e de uma conjunção costumeira entre esse e algum outro objeto”.11 É com base na percepção presente e na conjunção constante experienciada que o costume age, antecipando junto ao fato atual a ideia a ele tantas
9Y (IEH, p. 54). 10Y Ibid, p. 61. Arriscamo-nos a interpretar que, sendo o costume o princípio que nos leva a raciocinar e agir em meio aos fatos da experiência, tal concepção pode ser analogamente levada ao âmbito da sociedade humana, assumindo assim dimensões não apenas psicológicas, mas também sociológicas ou culturais. O que nos justifica a tecer esse comentário é que, para Hume, a própria natureza humana se constitui na realidade social: “A natureza humana não pode de modo algum subsistir sem a associação de indivíduos [...]” HUME, David. Uma Investigação sobre os Princípios da Moral. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. Editora da Unicamp. São Paulo, 1995, p. 66. Sendo o guia da vida humana, o costume pode ser visto como uma força tanto natural quanto cultural. 11Y (IEH, p. 64).
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vezes jungida. Desse modo, o costume move-nos ao futuro, agindo a partir da experiência presente e sendo determinado pelo passado. Já que o costume condiciona a crença ou o assentimento, faz-se necessário explicar, em linhas gerais, a natureza da crença, já que nós não apenas concebemos um evento, mas, ainda por cima, cremos nele e esperamos que ele se apresente na experiência. Ora, a crença é uma operação da alma. “Esta crença é o resultado necessário de colocar o espírito em determinadas circunstâncias”.12 É importante atentar para a palavra necessário na afirmação acima. A crença acontece ao espírito como um fato natural. Não podemos escolher crer, como escolhemos pensar. Tudo o que é concebível é possível, e podemos conceber razoavelmente uma série de coisas, contanto que não se contradigam; mas, geralmente, não cremos em tudo o que concebemos. Uma forte característica da crença é que ela não é voluntária. Podemos até pensar no que quisermos, mas não está sob nosso poder acreditar em tudo o que pensamos. Portanto, a crença é algo mais do que uma simples concepção. Ela está envolvida com uma concepção, atua sobre uma ideia, mas não se reduz apenas a isso. Ela também não é uma ideia que a mente acrescenta a uma percepção de modo a tomar o seu partido, pois se assim o fosse, poderíamos crer no que quiséssemos apenas ao acrescentar-lhe a suposta ideia da crença. Desse modo, a crença parece ser não o conteúdo de uma concepção, mas sim uma maneira de conceber algo. Portanto, como a crença implica uma concepção, mas também é algo mais do que isso, e como não acrescenta nenhuma nova ideia à concepção, segue-se que é uma MANEIRA diferente de se conceber um objeto; algo que é sentido de maneira distinta, e, ao contrário de todas as nossas ideias, não depende de nossa vontade.13 A crença é portanto uma sensação (feeling). Trata-se de uma espécie de afecção mental. Ela modifica nosso modo de sentir uma ideia. A diferença, portanto, entre as ideias do juízo e os devaneios da fantasia reside em sentir as primeiras com muito mais intensidade do que as segundas. “Inverte-se assim toda uma visão tradicional da filosofia: a percepção tem prevalência sobre o raciocínio, o lógico cede lugar ao psicológico” (SMITH, 1995, p. 89). Consideradas em si mesmas, as percepções não se diferenciam, são os mesmos conteúdos tanto para o raciocínio quanto para a imaginação; ou seja, não há uma diferença nas ideias enquanto tais. A distinção resulta do fato de sermos mais sensíveis a umas do que a outras. E tal diferença sensível no modo de conceber é suficiente para acreditarmos numa ideia como algo real. Como dito antes, por sua vez, a crença é despertada tendo por base a experiência da conjunção constante entre as percepções. O fogo tem sido sempre percebido junto ao calor, essa conjunção constante em casos passados dispõe a imaginação a unir essas ideias de modo intenso na mente, seguindo o princípio do hábito. Fazendo assim com que da aparição de uma, a outra seja evocada ou concebida em detrimento de todas as outras 12Y Ibid. 13Y (TNH) Sinopse, p. 691.
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possibilidades. Mas não apenas isso, ao concebê-la, sinto-a com muito mais força e vivacidade do que qualquer outra coisa. E assim, passo a acreditar que o calor é uma qualidade ou poder inerente ao fogo, que ele existe realmente como algo no próprio objeto, como se o efeito já estivesse contido na causa. Desse modo, estendemos nossos juízos para além do momento presente. Ao percebermos ou concebermos o fogo, esperamos inexoravelmente daí o calor, contamos com isso, cremos, vivemos e agimos com base nisso. Essa sensação ou sentimento (feeling) está mais presente a nós do que as ficções, e pretende nos revelar realidades. Todas as vezes que um objeto se apresenta à memória ou aos sentidos, pela força do costume, a imaginação é levada imediatamente a conceber o objeto que lhe está habitualmente unido; esta concepção é acompanhada por uma maneira de sentir ou sentimento, diferente dos vagos devaneios da fantasia. Eis toda a natureza da crença.14 Nesse sentido, pensamos que a relação causal, associação que está na base de todos os nossos raciocínios sobre os fatos, é determinada por algo cuja fonte é inteiramente subjetiva. O sujeito vai além daquilo que é fornecido pela experiência, revertendo-a com algo que não extrai dela, embora não possa prescindir da mesma para realizar tal operação. A crença é uma espécie de véu afetivo (sensível) que é lançado involuntariamente pelo sujeito aos objetos, possibilitando assim que ele se estenda para além deles, que ele se incline ao futuro, processo necessário a toda ação e conhecimento factual. O sujeito não é inteiramente passível à experiência, ao contrário, ele a envolve com algo que dele emana para poder interagir causalmente com ela. Ao afirmar isso, não queremos dizer que a crença é imprescindível para simplesmente associar causalmente ideias. Ao contrário, é a “crença que resulta da relação de causa e efeito”. 15 Ademais, uma vez formada a relação na experiência, a imaginação é livre para aplicá-la a todas as ideias sujeitas a essa operação mental. A priori, a imaginação pode jungir ou disjungir quaisquer ideias que admitam separação e, também, uma posterior união. “Tudo que é distinto é distinguível; e tudo que é distinguível é separável pelo pensamento ou imaginação”,16 podendo ser, inclusive, unido ou associado por tal faculdade. No entanto, não poderíamos proceder na experiência sem o sentimento da crença. Não teríamos condições de assentir a um argumento e nem atuar nas circunstâncias particulares sem o auxílio desta maneira de conceber. A crença é um tipo de afeto que impulsiona o sujeito a apostar na possibilidade de um fato; um sentimento que lhe recorta, na experiência, o ponto de atuação de seu pensamento e ação. Embora seja um “produto” da relação causal, a crença, por seu turno, consolida-a de modo necessário à vida e às exigências da experiência.
14Y (IEH, p. 65). 15Y (TNH, Apêndice, p. 661). 16" Ibid. p. 672.
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A “verdade” no âmbito dos fatos consiste, pois, em uma sensação na mente; ela é muito mais sentida do que pensada. A crença, sendo um sentimento, tem de ser despertada influenciando uma ideia e tornando-a relevante ao juízo e à imaginação. Ela aviva o curso de nossas ideias e a sucessão dos nossos afetos. Determina-nos a certos pensamentos e inflama nossas paixões. Comentando suas próprias ideias, diz Hume na Sinopse do Tratado que:
[...] é impossível descrever por meio de palavras essa sensação [feeling], de que entretanto todos devem ter consciência em seu próprio íntimo. Ora a denomina uma concepção mais forte, ora uma concepção mais viva, mais vívida, mais firme ou mais intensa. Na verdade seja qual for o nome que possamos dar a essa sensação [feeling] que constitui a crença, nosso autor considera evidente que seu efeito sobre a mente é mais imperativo que o de uma ficção ou mera concepção. Prova isso por meio da influência da crença sobre as paixões e a imaginação, que só são movidas pela verdade ou por aquilo que tomamos como verdade.17
4. Associação de Ideias e Crença Resta-nos, então, dar uma palavra breve acerca da associação de ideias e sua influência sobre a crença. Hume pretende explicar as variedades da vida mental com base nos princípios de associação, que relacionam ideias com sensações ou lembranças presentes à mente. Esses princípios operam exercendo uma espécie de força atrativa que, quando da aparição de uma percepção à consciência, atua evocando ideias que estão relacionadas a tal percepção. Eles garantem assim toda a ordem e coerência dos nossos pensamentos e discursos, proporcionando um curso relativamente estável na sucessão de nossos conteúdos mentais. Os princípios associativos são três ao todo: semelhança, contiguidade e causalidade. Tão logo uma percepção faça sua aparição em nossa mente, somos apresentados a outra que lhe seja semelhante, contigua e/ou que a tenha gerado ou modificado, ou que seja por ela gerada ou modificada. Por exemplo, olhamos um retrato de uma paisagem conhecida; imediatamente nossos pensamentos são levados a conceber o próprio lugar em questão (semelhança). Suponhamos que esse lugar tenha sido uma rua na qual moramos no passado remoto. Pensamos numa casa (a casa de nossa infância), e logo nos acomete as ideias das casas vizinhas, das quitandas e, talvez, a do poste de luz que ficava logo ao lado (contiguidade no espaço e tempo). E ainda pode acontecer que pensemos no pedreiro, amigo de nossa família, que construiu a casa e reformou-a várias vezes seguidas (causalidade).
17Y (TNH, Sinopse,p. 692)
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Vemos nesse exemplo casos possíveis de sucessões de ideias reguladas por princípios de associação que, ao possibilitarem uma fácil transição entre as ideias, também avivam suas concepções e as paixões a elas relacionadas. Concebemos com mais força uma ideia que está associada a um objeto presente a nós. A partir da sensação presente, somos levados à ideia costumeiramente relacionada a ela. Os facilitadores dessa transição são justamente os princípios associativos descritos acima, que também influenciam a crença. “Ora, afirmo que esta crença – se se estende além dos dados da memória ou dos sentidos – é de natureza semelhante e surge de causas semelhantes à transição do pensamento e vivacidade da concepção, aqui explicadas”.18 Por conseguinte, a crença, sendo uma maneira mais forte e intensa de sentir uma ideia, baseia-se numa percepção atual e numa relação que a imaginação faz, guiada por princípios associativos, entre esta percepção e as ideias a ela habitualmente jungidas. Em suma, creio numa ideia porque transito mais facialmente (naturalmente) de uma sensação a ela. E, nessa transposição, também a força da sensação é transmitida à concepção e as paixões envolvidas são despertadas. Tudo se passa como se os princípios de associação conduzissem um fluxo de intensidades e forças que perpassam sensações, ideias e sentimentos, tornando-os mais presentes e reais, na mesma medida em que pulverizam as imagens bruxuleantes da fantasia. A crença, portanto, sendo um sentimento, é determinada por tais princípios. Por último, o que mais importa, conforme a pretensão deste artigo, é entender que a relação de causa e efeito, responsável por me antecipar a existência de um fato que transcende os sentidos e a memória, baseia-se não na razão, mas sim na experiência que, por um lado, me apresenta conjunções constantes de eventos semelhantes e, por outro, pela atividade da imaginação, os associa engendrando um hábito. A partir desses fatores objetivos da relação causal, um sentimento específico é despertado na mente do sujeito, ou seja, a crença. Esta sensação, de origem interna, é lançada aos fatos da experiência, envolvendo-os com algo que não estava neles. Assim, o sujeito se coloca no curso das coisas e, também, para além dele; antecipando o porvir e transcendendo os dados dos sentidos e da memória. A crença é o elemento subjetivo que vem reforçar e dar sentido à relação de causa e efeito, ou seja, à expectativa de que o futuro se assemelhe ao passado. Desse modo, ela influencia nossos juízos e nossas paixões, assegurando-nos no fluxo do tempo.
Considerações finais Essas teses, que no fundo parecem bem céticas, tendem a suprimir dos processos racionais a priori qualquer poder de influenciar nossa ação e nossos juízos sobre os fatos. Para Hume, a razão, se exercida em si mesma no seu máximo alcance, acaba por ser autodestrutiva. Com base nisso, constata que a tentativa do cético consiste em destruir a 18Y (IEH, p. 70).
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razão mediante argumentos e raciocínios lógicos.19 Vê-se que a razão é um vírus de si mesma, uma potência extremamente implosiva. O ataque cético parece sempre triunfar sobre a fragilidade da fundamentação das nossas crenças mais elementares, e todo o conhecimento factual acaba por degenerar em probabilidade (visto que não se pode demonstrar a falsidade de um fato, apenas se experiencia fatos). Hume parece conceber que o ceticismo seja insuperável para um filósofo. Na medida em que temos uma curiosidade teórica sobre o que nos faz esperar que o futuro se assemelhe ao passado, sobre por que de causas semelhantes esperarmos efeitos semelhantes, na medida em que surgir esse tipo de indagação profunda, é provável que um filósofo não se satisfaça independentemente de qualquer resposta. A dúvida aí sempre será insinuante e, se o raciocínio for consequente, emergirá gerando toda a sua perplexidade. Entretanto, a influência do instinto natural é soberana sobre o homem. Como vimos, a crença é um sentimento que, ao ser despertado, nos impele necessariamente ao consentimento e à ação na experiência. Assim, toda a nossa vida e as relações que fazemos entre os seus eventos está embasada apenas em uma espécie de instinto. Vivemos em uma condição peculiar na qual devemos raciocinar, crer e agir, embora não possamos justificar ou dar qualquer razão satisfatória do por que cremos; nenhuma dessas atividades podem remover as objeções levantadas contra elas. Contudo, podemos atestar que “A natureza é sempre mais forte que os nossos princípios”. 20 E por mais que duvidemos intensamente da instância de validação das nossas crenças, não podemos deixar de formá-las e viver de acordo como elas. Por seu turno, a força da natureza faz desvanecer qualquer dúvida e nos assalta quando menos esperamos. Afinal, ainda que não mais tenhamos consciência de uma operação, ela continua a influenciar nossos raciocínios e nosso gosto. “Pois, mesmo supondo que essas impressões se apaguem inteiramente de nossa memória, a convicção por elas produzida pode ainda permanecer”.21 Ademais, de modo impressionante, o costume impera absolutamente justamente quando não se faz sentir. “E é tão grande a influência do costume que, onde ela se apresenta com mais vigor, encobre, ao mesmo tempo, nossa natural ignorância e a si mesma, e quando dá a impressão de não intervir, é unicamente porque se encontra em seu mais alto grau”.22 Enquanto filósofos, o ceticismo triunfaria inexoravelmente, mas, enquanto homens, determinados pelos instintos cegos da natureza, a força dos argumentos céticos se exaure nas necessidades da ação e da crença. Não podemos dar uma razão satisfatória do porque acreditamos, mas não podemos escolher não acreditar. Essa concepção se torna ainda mais “naturalista” quando pensamos as ações humanas e a possibilidade de influência da razão sobre o caráter. Diz Hume num ensaio intitulado O Cético: “A 19Y Ibid, p. 147. 20Y Ibid, p. 150. 21Y (TNH, p.112). 22Y (IEH), p. 51.
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estrutura e constituição de nosso espírito depende tão pouco de nossa escolha como a de nosso corpo [...] Quem examinar sem preconceitos o curso das ações humanas verificará que os homens são quase inteiramente governados por sua constituição e sua personalidade, e que os princípios de ordem geral (princípios racionais) só têm influência na medida em que afetam nossos gostos e sentimentos”23.
Referências Bibliográficas HUME, David. Investigação Acerca do Entendimento Humano. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo. Nova Cultural Ltda 2000. ____________. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Déborah Danowski. São Paulo. Unesp: 2000. DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. Tradução de Luiz Orlandi. Editora 34. São Paulo: 2012. SMITH, Plínio Junqueira. O Ceticismo de Hume. Edições Loyola. São Paulo, 1995.
23Y HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Tradução de João Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora D’Oliveira. Editora Nova Cultural. São Paulo: 2000, p.183.
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WITTGENSTEIN E A CERTEZA: UM CÉTICO? Leonel Olimpio "O que é real? Tudo parece enganador, a superfície visível parece enganosa. Eu olho para a minha mão... São nervos, músculos, ossos. Vamos mais fundo: são moléculas e ácidos. Mais fundo: é uma valsa impalpável de elétrons e nêutrons. Mais fundo ainda: uma nebulosa imaterial. Quem pode provar que minha mão existe?" Salvador Dali Resumo: Abordando um texto pouco conhecido do autor Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Über Gewissheit traduzido como Sobre a certeza, o artigo discutirá as teses contrapostas pelo autor contra as ideias de Edward Moore, filósofo inglês. Partindo para a discussão sobre questões da teoria do conhecimento, ou seja, em relação ao ceticismo epistemológico. Seguindo para a problemática do “metaceticismo” wittgensteiniano, em que o autor será cético quanto ao próprio ceticismo. Termina apontando para um ceticismo ético em Wittgenstein, aonde se discutiria um modo de viver, de como o cético se relaciona com a filosofia, com a vida, e ainda como se mostra o papel do filósofo, que seria, essencialmente, o chato. Palavras-Chave: Wittgenstein. Ceticismo Epistemológico. Ceticismo Ético. Abstract: Addressing a little-known text by the author Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Über Gewissheit translated as On Certainty the article discusses how the author opposes the thesis as ideas of Edward Moore, an English philosopher. Leaving for a debate on questions of knowledge theory, ie in relation to epistemological skepticism. Moving on to a problematic of Wittgensteinian "metaceticism," in which the author is skeptical of the skepticism. It ends by pointing to an ethical skepticism in Wittgenstein, to the discussion of a way of living, how the skeptic relates to a philosophy, to life, and how to show the role of the philosopher, who would essentially be the "annoying critic" . Word-Keys: Wittgenstein. Epistemological Skepticism. Ethical Skepticism. Volume 5 no 2
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Introdução
I
remos discutir aqui principalmente as ideias escritas por Wittgenstein no seu livro Über Gewisshei” (Sobre a Certeza). Há uma edição em português dessa obra, no entanto, utilizamos a versão bilíngue alemão/inglês, da editora Harper Torchbooks, ou seja, toda tradução aqui para o português, é responsabilidade do autor do texto. O livro consiste do autor contrapondo as ideias de Edward Moore, que foi professor de Cambridge, conhecido filósofo inglês e que participou junto com Bertrand Russel e o próprio Wittgenstein da tradição inglesa na filosofia analítica. No entanto, é muito importante ressaltar que o livro consiste em apenas anotações do autor quanto a essas questões, e ele na maioria das vezes, ou em todas as vezes, não chegará a concluir nada de fato. O livro pode parecer muito contraditório, inconsistente, mas há questões colocadas pelo autor que devem ser levadas para um debate cético, ou para um debate sobre o metaceticismo que ele tenta construir, ou apontar para ele. E a partir desses “apontamentos” do autor, tentaremos dar uma linha de pensamento cético ou não para a filosofia de Wittgenstein.
1. A diferença entre “saber” e “ter certeza” Moore em artigos, como o "A defesa do senso comum"1, vai defender que há verdades empíricas de fato e que dessas podemos ter absoluta certeza, como por exemplo: "eu tenho duas mãos", "o mundo existia antes de eu nascer". A partir disso, Wittgenstein irá totalmente se contrapor a esse argumento, dizendo que Moore de fato tem certeza sobre aquilo, mas que isso não significa que ele detenha conhecimento sobre. Wittgenstein então, argumentará que a certeza existe, porém, ela seria algo completamente diferente do conhecimento, pois a certeza se caracteriza pelo fato de ele achar que sabe aquilo, e não por deter de fato conhecimento sobre aquilo.
“Die Gewißheit ist gleichsam ein Ton, in dem man den Tatbestand feststellt, aber man schließt nicht aus dem Ton darauf, daß er berechtigt ist.” "A certeza é como se fosse um tom de voz em que uma pessoa atesta como as coisas são, mas uma pessoa não infere do tom de voz da outra que ela está correta."-(WITTGENSTEIN,1972:p.6)
1P
Contemporary British Philosophy (2nd série), ed. J. H. Muirhead, 1925. Reeditada em G. E. Moore, Philosophical
Papers (1959).
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Assim, Wittgenstein irá dizer que a diferença entre o conceito de "saber" e o conceito de "ter certeza" não é de tanta importância, exceto quando dizer "eu sei" significa: "Eu não posso estar errado". Por isso, o austríaco dirá no começo do texto "Pode uma pessoa dizer o que ela conhece? Eu não acredito que possa". O que aqui já abre um debate muito grande, e que o próprio austríaco levanta no seu Tractatus, se seria possível a linguagem representar o mundo, que para a conhecida “primeira fase” do autor, é possível. Imaginemos por exemplo uma partitura, ela consegue representar em um papel como a música se desenvolve, seria assim também nossa linguagem em relação ao mundo? Ou seja, nesses escritos, Wittgenstein aponta para um pensamento de que nós podemos sempre estar errado sobre algo. Sobre isso, ele dirá:
“Ich weiß, daß hier ein kranker Mensch liegt? Unsinn! Ich sitze an seinem Bett, schaue aufmerksam in seine Züge. - So weiß ich also nicht, daß da ein Kranker liegt? - Es hat weder die Frage, noch die Aussage Sinn. So wenig wie die: 'Ich bin hier', die ich doch jeden Moment gebrauchen könnte, wenn sich die passende Gelegenheit dazu ergäbe.” "Eu sei que um homem doente está deitado aqui? Sem sentido! Eu estou sentado ao lado da cama dele, estou olhando atenciosamente para o rosto dele. Então eu não sei, nessa ocasião, que há um homem deitado aqui? Nem a pergunta nem a afirmação fazem sentido. Muito menos a afirmação "Eu estou aqui", e que eu poderia, de fato, usar em qualquer momento." (WITTGENSTEIN,1972:p.3)
Wittgenstein, com sua ironia, irá falar dos que afirmam sobre conhecimentos irrefutáveis, dizendo ainda "eles não se lembram de quando eles disseram 'eu pensei que eu soubesse'." Então, para o austríaco, Moore se enganava também na diferenciação dos conceitos, por fazer com que eles se pareçam os mesmos, conceitos como "saber", "ter certeza", "crer", para Moore, dizer "eu sei", é sim significar "eu não posso estar errado".
Wittgenstein irá também falar de como temos então certas proposições e saberes nas nossas mentes. Ele dirá:
“Ja, ich glaube, daß jeder Mensch zwei menschliche Eltern hat; aber die Katholiken glauben, daß Jesus nur eine menschliche Mutter hatte. Und Andre könnten glauben es gebe Menschen die keine Eltern haben und Volume 5 no 2
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die aller gegenteiligen Evidentz keinen Glauben schenken… Worauf gründet sich der Glaube, daß alle Menschen Eltern haben? Auf Erfahrung. Und wie kann ich auf meine Erfahrung diesen sichern Glauben gründen? Nun ich gründe ihn nicht nur darauf daß ich die Eltern gewisser Menschen kannte, sondern auf alles was ich über das Geschlechtsleben von Menschen und ihre Anatomie und Physiologie gelern habe; auch darauf was ich von Tieren gehört und gesehen habe. Aber ist das denn wirklich ein Beweis?” "Sim, eu acredito que todo ser humano tem pais humanos; mas os católicos acreditam que Jesus tinha apenas uma mãe humana. E outras pessoas podem acreditar que há humanos sem pai e mãe, e não dar nenhum crédito a qualquer evidência que se contrarie a isso…. Em que se baseia a crença de que todos os humanos têm pai e mãe? Na experiência. E como eu posso fundamentar na minha experiência essa crença convicta? Bem, eu me fundamento não só no fato de que eu conheci pais de algumas pessoas, mas em tudo que eu aprendi sobre a vida sexual humana e sua anatomia e psicologia; também no que ouvi e vi de animais. Mas isso é realmente uma prova?" (WITTGENSTEIN,1972:p.32)
Percebemos, que ele falará então do saber proveniente da experiência, mas ele irá dizer o que pode acontecer é que para isso, todos entramos em um consenso. Por exemplo, para resolver um problema de um curto-circuito, por consenso entre nós, chamaríamos um eletricista para consertar, ao invés de um médico, porque firmamos entre nós que o eletricista sabe mais sobre isso do que qualquer outro profissional.
2. Faz sentido duvidar?
“Es gibt Fälle, in denen der Zweifel unvernünftig ist, andre aber, in denen er logisch unmöglich scheint. Und zwischen ihnen scheint es keine klare Grenze zu geben. Alles Sprachspiel beruht darauf, daß Wörter und Gegenstände wiedererkannt werden. Wir lernen mit der gleichen Unerbittlichkeit, daß dies ein Sessel ist, wie daß 2x2=4 ist. Wenn ich also zweifle, oder unsicher bin darüber, daß das meine Hand ist (in welchem Sinn immer), warum dann nicht auch über die Bedeutung dieser Worte? Will ich also sagen, daß die Sicherheit im Wesen des Sprachspiels liegt?… Es handelt sich darum: Wie wird der Zweifel in's Sprachspiel eingeführt?”
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"Há casos em que a dúvida é insensata2, mas outros nos quais ela parece logicamente impossível. E parece não haver nenhum limite claro entre elas. Todo jogo de linguagem é baseado em palavras 'e objetos' que se reconhecem a si mesmos. Nós aprendemos com a mesma inexorabilidade que isso é uma cadeira como aprendemos que 2x2 = 4. Se, portanto, eu duvido ou estou incerto sobre isso ser minha mão (em qualquer sentido), por que, então não duvidar do sentindo dessas palavras também? O que eu quero dizer, então, a segurança reside na natureza de um jogo de linguagem?… Trata-se disso: como a dúvida é introduzida em um jogo de linguagem?"(WITTGENSTEIN, 1972: p.59-60)
Para esse momento, eu gostaria de falar de um problema que pode nos ajudar a entender o que o Wittgenstein está tentando falar sobre a dúvida quanto as palavras. Em uma mesa de jantar, todos se odeiam. Então, um homem pede para uma mulher lhe passar o sal, mas para o homem, o que é sal é açúcar, então já que a mulher não gosta do homem, ela decide ao invés de passar o sal, passar o açúcar. Mas, assim, o homem teve de fato o que queria. E fica a dúvida, não seriam assim toda as nossas concepções linguísticas? Alguns podem dizer que isso seria uma questão de valor apenas linguístico. No entanto, creio que há três pontos muitos importantes em tudo isso: pensamento, linguagem e realidade. E assim, esses pontos se interligam e cada um ajuda, com seus conceitos e reflexões, com o que tentamos entender sobre os três. Por que seria de pensamento? Porque aqui entra o problema se de fato aquilo que falamos é acessível ao outro, se é possível a compreensão da subjetividade. É um problema linguístico pois, como podemos saber se a linguagem “dá conta” de tudo que pensamos e queremos falar? E por último, um problema da realidade, pois a pergunta “o que é o real?” sempre vem à tona na filosofia, no entanto, como ela se dá para uma questão da fala e do entendimento? Ou seja, é possível falar sobre a “realidade”, é possível descrever a “realidade”? E como essa realidade se relaciona com a linguagem?
3. Ceticismo para além dos sentidos
“Was hindert mich anzunehmen daß dieser Tisch, wenn ihn nieman betrachtet, entweder verschwindet, oder seine Form und Farbe
} Pode-se traduzir “unvernünftig” por “insensato”, ou até “irracional”, no entanto opto pela primeira opção.
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verandert, und nun wenn ihn wieder jemand ansieht, in seinen alten Zustand zurückkehrt?” "O que me impede de supor que essa mesa, quando ninguém a observa, ou desaparece ou altera sua forma e cor e então quando alguém olha novamente para ela, ela volta a sua forma antiga?" (WITTGENSTEIN, 1972:p.29)
Após essa afirmação, Wittgenstein irá dizer que nessas situações, o "acordo entre a realidade", não valeria para nada. Porque aqui, a questão está para além dos nossos sentidos, pois a pergunta seria justamente, o que está acontecendo enquanto nossos sentidos não estão observando? O que o filósofo austríaco está tentando dizer é: enquanto você está lendo um pedaço de papel, as letras têm formas fixas, o papel tem uma forma física sólida, mas e quando deixamos de olhar para ele, o que acontece? O papel toma outra forma física? As letras se deformam? Logo após esse exemplo, ele colocará em questão outro, dirá ele:
“Wer annähme, daß alle unsre Rechnungen unsicher seien, und daß wir uns auf keine verlassen können (mit der Rechtfertigung, daß Fehler überall möglich sind) wurden wir vieleicht für verrückt erklären. Aber können wir sagen, er sei im Irrtum? Reagiert er nicht einfach anders? Wir verlassen uns darauf, er nicht, wir sind sicher, er nicht. "Se uma pessoa supõe que todos os cálculos são incertos e que nós não podemos nos ater a nenhum deles (essa pessoa se justificando dizendo que o erro é sempre possível) talvez nós chamaríamos essa pessoa de louca. Mas nós podemos dizer que ele está errado? Ele só não reage de maneira diferente? Nós nos atemos aos cálculos, ele não; nós estamos seguros, ele não." (WITTGENSTEIN,1972:p.29)
Vemos como Wittgenstein realmente aponta para um ceticismo. Talvez aqui Wittgenstein estivesse pensando mais claramente no debate envolvendo pensadores de sua época acerca da natureza ontológica dos números quanto a natureza ontológica dos números. Se os números são “coisas do mundo”, ou são criações humanas. Wittgenstein, apesar de estar em um “turbilhão científico”, criticará justamente o “cientificismo” da sua época. Achando que a ciência tinha coisas importantes a fazer, mas que essa mesma ciência não podia ser o padrão para outras coisas, como por
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exemplo, para a filosofia3. O que pode parecer estranho para alguns, mas o austríaco pensava que a filosofia deveria tomar seu próprio rumo, sem querer se espelhar nas ditas ciências naturais.
4. Um metaceticismo e suas implicações para a vida No entanto, a crítica de Wittgenstein é não só a Moore, como também aos céticos e ao ceticismo. Provavelmente, Wittgenstein se perguntava, como pode o ceticismo ser irrefutável, se ele é irrefutável, ele se torna uma verdade absoluta, e como poderia então isso existir logo com o ceticismo? Ele então percebe algo de interessante para se pensar sobre esse assunto. Assim, ele irá fazer todo o seu "metaceticismo". Wittgenstein dirá "O que nós podemos perguntar é se faz sentido duvidar". Afinal, por que duvidamos? Bertolt Brecht dizia que “a única certeza é a dúvida”, para Wittgenstein, precisamos antes de duvidar, saber se faz sentido duvidar, no entanto, aquele que duvida da dúvida, não é um cético? É a partir desse ponto, que tentamos levantar a questão de um Wittgenstein cético. No entanto, é necessário aqui a percepção e divisão de dois tipos de ceticismo, um epistemológico, o outro ético. Pensamos aqui, que Wittgenstein se preocupava com os dois, mas propriamente em “Über Gewissheit” ele tenha falado mais sobre epistemologia. Como então, se apresenta esse “metaceticismo” wittgensteiniano? Para existir a dúvida, precisou existir antes um momento de "não-dúvida". Para Wittgenstein, o ceticismo se esquece de há um momento de que é preciso não haver dúvida. Assim, ele escreverá sobre o exemplo das crianças, que quando se é criança, você não aprende a duvidar se aquela cadeira existe ou não, mas aprende apenas que a cadeira é para sentar. O que capacitou que alguns duvidássemos da existência dessa mesa, dessa sala? Só foi possível por termos tido esses momentos de "aprendizagem dogmática". Por isso, passamos por muito tempo sem duvidar de nada, momento que ele chamará de "nãodúvida", para assim depois podermos duvidar. Então, para ele é sempre importante ressaltar que para o ceticismo poder existir, antes deve haver algo que capacite a possibilidade da dúvida, e isso seria propriamente o não duvidar. Alguns podem dizer que o que Wittgenstein está tentando fazer é salvar o seu "Jogos de Linguagem". Pois no próprio "Sobre a certeza" ele dirá que precisamos no fundo, ter algo que não possamos duvidar, para assim um jogo de linguagem poder ter certa consistência. Dirá ele na página 22 do "Sobre a certeza", "Mas em algum lugar eu
} Recomendamos aqui, a leitura das Vermischte Bemerkungen, que pode ser traduzida como “Observações embaralhadas”. 3
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devo começar com uma suposição ou decisão". Porque assim, seria possível existir jogos de linguagem. Assim, ele dirá:
“Das Kind lernt nicht, daß es Bücher gibt, daß es Sessel gibt, etc, etc, sondern es lernt Bücher holen, sich auf Sessel(zu) setzen, etc. Es kommen freilich später auch Fragen nach der Existenz auf: 'Gibt es ein Einhorn?' u. s. w. Aber só eine Frage ist nur möglich, weil in der Rgel keine ihr entsprechende auftritt. Denn wie weiß man, wie man sich von der Existenz des Einhorns zu überzeugen hat? Wie hat man die Methode gelernt, zu bestimmen, ob etwas existiere oder nitch?” "As crianças não aprendem que livros existem, que poltronas existem, etc, etc, elas aprendem a buscar livros, sentar em poltronas, etc. Mais tarde, é claro que virão questões como a existência de objetos ou coisas. 'Existe uma coisa como um unicórnio?' e assim segue. Mas essa questão só é possível porque como regra nenhuma pergunta correspondente se apresenta. Pois como saber-se-ia convencer a si mesmo da existência dum unicórnio? Como alguém aprendeu o método de determinar se alguma coisa existe ou não?" (WITTGENSTEIN 1972, p.62-63)
Um jogo de linguagem não se constitui apenas de pensamento, mas sim quanto a linguagem enquanto a um fato social, um fato de que o que está havendo são falas, uma conversa entre duas ou mais pessoas. Resumindo, com a sua própria crítica, Wittgenstein tenta “salvar” os seus jogos de linguagem. Há, no entanto, uma afirmação no aforismo 559 que é muito interessante, e que talvez seja a passagem mais cética do livro, “você deve ter em mente que os jogos de linguagem são imprevisíveis. Eu quero dizer: não são fundamentados. Não são razoáveis(ou irracionais). São como a nossa vida.”4 Aqui, temos várias implicações. Primeiro, estaria Wittgenstein negando seu próprio conceito de “jogos de linguagem”? Ele estaria sendo cético quanto a eles, ainda dizendo que seriam “razoáveis”, e o oposto de “razoável”, que traduzimos como “irracional”, mas caberia talvez “improcedente”, “incoerente.” Segundo, aqui, falando dos jogos, ele os compara a vida, a vida em si. Ou seja, implicaria dizer também que a vida é irracional? Como poderia então teorias, a ciência, e a própria filosofia lidar com um mundo e a vida dessa maneira? Seria uma maneira “cética” de viver? } “Du mußt bedenken, daß das Sprachspiel sozusagen etwas Unvorhersehbares ist. Ich meine: Es ist nicht begründent. Nicht vernünftig (oder unvernünftig). Es steht da-wie unser Leben.” Über Gewissheit. New York: Harper Torchbooks, 1972. 4
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São muitas perguntas, e poucas respostas. De fato, vemos o quanto esse assunto era um problema para Wittgenstein, no que ele estava preocupado quanto a própria validade dos “estados-de-coisas”, que ele tanto fala no seu famoso Tractatus, mas acima de tudo quanto aos próprios conceitos de dúvida, certeza, ceticismo e realidade.
5. Wittgenstein: um cético? É possível então construir um ceticismo a partir de Wittgenstein? Afirmo que sim, pois questões como a dúvida, a certeza, o conhecimento e até de um certo “viver ético”5 é pertinente em toda a sua obra, ou seja, há um ceticismo epistemológico e ético vigente. Podemos nos perguntar também, quão cético é a famosa afirmação da sétima proposição do Tractatus, “wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schwegen”6 (Sobre o que não se pode falar, deve-se calar). Devemos falar sobre ética, religião, Deus? Diria um jovem Wittgenstein cheio de entusiasmo, “nein, nein, nein!! Das is nicht richtig!” 7. O que se pode fazer quanto a isso então? Viver. Falar sobre isso não cabe a filosofia, isso está para o indizível, isso é o indizível, tornando-se místico. Sobre isso, nós podemos agir, viver, atuar. Em todo esse debate de um Wittgenstein cético ou não, há outra pergunta a se fazer: percebendo que Wittgenstein tem pensamentos céticos, isso faz dele de fato um cético? Bem, é claro que essa pergunta vai de encontro com as próprias ideias sobre o que é ceticismo, ou como se entende o que é um cético. Talvez um cético, seja mais do que um simples duvidar de fatos epistemológicos, mas que isso implica também uma maneira de viver, uma “estética da existência”. E isso está intimamente ligado com o que Bertrand Russel achava sobre o ceticismo, que logicamente era algo irrefutável, mas como isso se daria na prática? Wittgenstein teria de fato se preocupado com isso? Sim, no entanto, não diretamente sobre o “dever do cético”, mas sim, até como se intitula sua biografia mais conhecida, “o dever do gênio”. Essa questão de fato permeia toda a vida e o pensando do austríaco. O próprio, vendo-se como gênio, se pergunta, já que eu sou um gênio, então qual o meu dever? A partir dessa constatação, ele tentará entender como se dá essa participação do gênio com o mundo, com a vida. Mas como para muitos a filosofia de Wittgenstein é mais fatiada do que uma pizza tamanho família, temos para alguns comentadores 2, 3, até 5 “Wittgensteins”. E claro, de suas diferentes fases, podemos ter inúmeras interpretações. No entanto, tendo como ponto de partida os escritos Über Gewissheit, é possível sim, tratar de um ceticismo wittgensteiniano, por todas as questões que ele não tenta solucionar, mas discutir, } Wittgenstein chega a afirmar em cartas que o sentido do Tractatus é ético. } Pág. 108 Tractatus Logico-Philosophicus. Londres:Routledge & Kegan Paul Ltd., 1922. 7 } “Não, não, não!! Isso não está certo!” 5 6
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criticar, apontar. Como o autor mesmo dirá no seu Big Typescript, “tudo o que a filosofia pode fazer é destruir ídolos. E isso significa não criar um novo – como, por exemplo, 'na ausência de um ídolo'.”8. Para Wittgenstein, o que restará para a filosofia é a crítica, a dúvida, o questionamento. O papel do filósofo é ser o chato. Aquele que sempre indaga, aquele que sempre duvida, aquele nunca se dá por um dogma no pensamento. E isso seria o que? Um cético. Um olhar quase que profano, para muitos, na filosofia. Wittgenstein é tido como cético para alguns, mas não para todos. Talvez ele mesmo tenha se sentido incomodado com todos esses rótulos que davam a ele, e tenha se incomodado também com a própria questão de que se é possível existir um cético de fato ou não, ou seria o ceticismo uma escada para um certo conhecimento. Até por isso, Wittgenstein talvez nunca tenha definido o que seria de fato "conhecimento" e o que caracterizaria isso, pois ele sempre foi muito "pé atrás" quanto as questões de crença e quanto a ciência em geral. Porém, suas questões estão aí presentes, para serem sempre duvidadas, e debatidas.
} “(Alles, was die Philosophie tun kann ist, Götzen zerstören. Und das heißt, keinen neuen – etwa in der ”Abwesenheit eines Götzen“ – zu schaffen.)” 8
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Referências Bibliográficas
WITTGENSTEIN, Ludwig. Über Gewissheit. New York: Harper Torchbooks, 1972 _________. Culture and Value-Vermischte Bemerkugen. Tradução Peter Winch. Chicago: The University of Chicago Press, 1984. _________. Tractatus Logico-Philosophicus. Londres:Routledge & Kegan Paul Ltd., 1922. _________. The Big Typescript, TS 213. Tradução e Edição C. Grant Luckhardt and Maximilian A. E. Aue.— German–English scholars’ ed. Oxford: Blackwell Publishing, 2005.
Outras referências WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. _________. Movimentos de pensamento: diários de 1930-1932/1936-1937. Tradução Edgard da Rocha Marques; editado por Ilse Somavilla. São Paulo: Martins Martins Fontes, 2010. MONK, Ray, Ludwig Wittgenstein-The Duty of Genius. Londres: Vintage Books, 1991
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O EFEITO APORÉTICO NA DISCUSSÃO SOBRE A JUSTIFICAÇÃO EPISTÊMICA Helly Lucas Barros Crispim * Resumo: Desde os contraexemplos contra a Definição Tradicional do Conhecimento (DTC) propostos por Edmund Gettier em seu ensaio de 1963 “Is Justified True Belief Knowledge? ”, que ficou popularmente conhecido como o problema de Gettier, a justificação epistêmica passou a ser muito discutida e culminou em diversas tentativas para uma melhor definição do conhecimento. Este trabalho tem o intuito de mostrar breve e modestamente a complexidade em torno da discussão sobre a justificação e como sua solução pode se mostrar negativa, abordando resumidamente algumas das diversas hipóteses em torno do que é a justificação epistêmica, qual é a sua natureza, e se ela é realmente necessária para o conhecimento. Observa-se que a justificação, assim como o conhecimento, enfrenta diversos problemas em sua definição, estes talvez até mais difíceis que aqueles em torno da definição do conhecimento. Observa-se também que a justificação parece ser uma exigência da razão, e como tal, leva-nos a um estado de aporia, pois, por um lado, se não houver uma justificação infalível, o agente cognitivo talvez nunca esteja satisfeito, exigindo mais justificações para cessar suas dúvidas e incertezas, e, por outro lado, a justificação infalível parece ser demasiada exigente, podendo limitar o que se entende como conhecimento, e, além do mais, parece ser bastante implausível, pois, além de gerar um regresso ad infinitum por conta dos critérios para uma tal justificação, parece difícil de ser aplicada a uma definição universal do conhecimento, posto que cada objeto do conhecimento tem sua peculiaridade. Palavras chaves: Epistemologia; Justificação epistêmica; Aporia; Coerentismo; Fundacionismo; Internismo; Externismo.
*! Graduando em filosofia pela universidade Federal do Ceará (UFC) Volume 5 no 2
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Abstract: Since the refutations against the traditional definition of knowledge known as JTB – a short for "Justified true belief" - exposed by Edmund Gettier in his 1963 essay "Is justified true belief knowledge?" which became known as "The Gettier problem", the epistemic justification came to be very much discussed and ended up in various tries for a better definition of knowledge. This work aims to show briefly and modestly the complexity around the discussion about the justification and how solutions for this problem can be negative. We do that by shortly approaching some of the different hypothesis about what an epistemic justification is, its nature, and if it is really necessary for knowledge. We notice that the justification, just as knowledge, face several problems for its definition. Those problems are maybe even more complex than those concerning the definition of knowledge. We also noticed that the justification seems to be demanded by reason and as such, leads us to a state of aporia, due to the fact that on the one hand, if there is no infallible justification, the cognitive agent will probably never be satisfied, demanding more justifications to diminish his doubts and uncertainties, and on the other hand, the infallible justification seems to be too demanding and could limit what is known as knowledge, and moreover, it seems to be very implausible for it can not only generate a regress ad infinitum, due to the criteria of this kind of justification, but also it seems difficult to be applied to an absolute definition of knowledge since each object of knowledge have its peculiarities. Key words: Epistemology; Epistemic justification; Aporia; Coherentism; Foundationalism; Internalism; Externalism.
Introdução
O
presente trabalho, além de mostrar uma porção das dificuldades em torno do problema do conhecimento, pretende dar apenas uma breve e modesta exposição sobre as principais correntes da epistemologia moderna e seu notável envolvimento com o ceticismo, bem como estimular, também, o interesse do leitor em estudar ou participar de tais investigações, visto que a epistemologia é uma área ainda muito negligenciada, especialmente nos cursos de filosofia do Brasil. A maioria dos estudantes optam por uma formação mais literária ou clássica da filosofia e evitam uma formação mais analítica. Pretendo convencer esse tipo de estudante, se vier a ler este trabalho, a verificar o que muitas vezes nossos preconceitos ou expectativas nos impedem de ver. Pretendo mostrar uma pequena porção do que há de interessante e importante neste lado. Antes de estudar os filósofos da teoria do conhecimento é recomendável ao leitor iniciante que tenha uma visão geral destes filósofos e de suas teses. Por isso, grande parte deste trabalho tem como referência obras introdutórias, afim de influenciar o leitor a recorrê-las. Iniciemos então nosso trabalho. O problema em torno da justificação epistêmica aparenta ser bem mais complexo que o problema sobre o que é conhecimento. Para alguns ela é condição para o conhecimento, para outros apenas uma garantia para o conhecimento. A justificação é facilmente passível de um regresso ao infinito e nos leva muitas vezes a estados de aporia. Grandes são os esforços dos epistemólogos em evitar ataques céticos, regressos ao infinito e circularidades relacionadas à justificação. Uma dessas tentativas é a aspiração a uma infalibilidade da justificação. Volume 5 no 2
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As discussões sobre a infalibilidade da justificação epistêmica tomaram grande força através das respostas aos problemas apresentados por Edmund Gettier em seu ensaio de 1963 “Is justified true belief knowledge?” onde ele refuta a famosa tese tripartida do conhecimento que o define como crença verdadeira justificada. Gettier elabora dois contraexemplos em que se há uma crença verdadeira e justificada, mas que ainda assim não se pode afirmar que o indivíduo tenha conhecimento. Em ambos os exemplos, Gettier apresenta dois personagens: Smith e Jones. No primeiro exemplo, Smith e Jones concorrem a um cargo numa certa empresa. Smith acredita na seguinte proposição a: “Jones ficará com o emprego e possui dez moedas no bolso” a partir desta proposição infere b: “O homem que ficará com o emprego possui dez moedas no bolso”, as evidências que Smith possui para justificar sua crença em a e inferir b são: há dez minutos atrás Smith contou as moedas de Jones e averiguou que este tinha dez moedas no bolso. O chefe da empresa havia assegurado a Smith que, no final, quem ficaria com o emprego seria Jones. Mas, sem o saber, quem ficaria com emprego seria, na verdade, o próprio Smith, e este possuía, também sem o saber, dez moedas no bolso. Sendo assim, Smith possuía uma crença verdadeira e justificada, mas não tinha conhecimento. No segundo exemplo, Smith se recorda que desde quando o conhecera, Jones era dono de um Ford, e, recentemente, recebera uma carona de Jones, que dirigia um Ford. Smith então elabora três proposições disjuntivas a partir da crença de que Jones possui um Ford, adicionando um terceiro personagem na estória, Brown. As proposições são as seguintes: a. “Ou Jones tem um Ford, ou Brown vive em Boston” b. “Ou Jones tem um Ford, ou Brown vive em Barcelona” e c. “Ou Jones tem um Ford, ou Brown vive em Brest-Litovsk”. Smith está justificado a acreditar nestas três proposições a partir de sua forte crença de que Jones possui um Ford. Contudo, sem o saber, o carro de Jones era na verdade alugado e Brown realmente vivia em Barcelona. Assim, Smith tinha uma crença verdadeira e justificada referente a proposição b, mas não podia afirmar que possuía conhecimento desta. As várias tentativas de refutar os problemas de Gettier levaram os epistemólogos a tomarem rumos diferentes. Alguns decidiram elaborar uma nova definição de conhecimento completamente diferente da tradicional, outros decidiram refutar os exemplos de Gettier, e ainda houve aqueles que almejaram corrigir a definição tradicional do conhecimento adicionando novas condições ou modificando as existentes. Mas a maioria deles concordava que havia algo de errado com a justificação e, a começar pelo problema da infalibilidade da justificação, trataremos sobre este problema aqui. A exigência de uma justificação infalível para uma crença se dá, de forma mais evidente, na perspectiva internalista com relação à natureza da justificação. Uma resposta diferente para esse problema poderá ser encontrada, como veremos mais adiante, em perspectivas externalistas. Examinaremos a seguir, como se dá a exigência da infalibilidade das crenças nas perspectivas internalistas e como o externalismo, ainda que muito plausível, não se mostra suficiente para a solução do problema.
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A discussão sobre a justificação epistêmica O internalismo é uma corrente que acredita que o agente cognitivo deve ser capaz de refletir sobre aquilo que justifica suas crenças. Isso se dá porque o agente só pode estar justificado por si mesmo em acreditar em algo se puder refletir e observar em primeira pessoa aquilo que justifica suas crenças. Portanto, a justificação é exigida pela razão, é uma garantia para que o indivíduo assuma o conhecimento de algo. A infalibilidade torna-se necessária, pois a partir do momento em que o agente cognitivo percebe uma possível falha na justificação, não considera mais que suas crenças estejam justificadas, pois sua razão exige outra justificação, e isso deve regressar ao infinito enquanto não houver uma justificação infalível. Tal problema serviu de inspiração para a resposta dos fundacionalistas com relação ao regresso epistêmico. Eles se apoiam na crença de que se não houver uma justificação infalível, não pode haver conhecimento. Os fundacionalistas então propõem a existência de um “dado”, que por sua vez é não conceitual e não inferencial, e por isso indubitável, infalível e incorrigível. Esse dado serve como matéria-prima à qual todos os conceitos são aplicados, se este fosse ausente, não haveria como conceituar. Essa é uma resposta dos fundacionalistas aos anti-fundacionalistas, como Wilfrid Sellars1, que afirma ser o dado um mito. O argumento de Sellars é o de que não há conhecimento nem justificação de algo que não seja através de conceitos e de modo conversacional, pois o que chamamos de conhecimento está ao nível do juízo. Portanto, não faz sentido afirmar que pode haver algo que seja não inferencial, o próprio dado é um conceito e existem outras crenças que o justificam, portanto, ele mesmo não pode ser não-inferencial, e assim é tido como um mito. Contudo, os fundacionalistas ainda possuem bons argumentos para se defenderem, e pôr o dado como matéria prima para os conceitos é um deles. Para um fundacionalista o dado recebido por qualquer agente cognitivo é o mesmo, os conceitos que o agente possui é que serão aplicados sobre o dado e tornarão a perceptiva do agente, com relação ao dado que recebe, diferente da dos outros. Mesmo assim, os anti-fundacionalistas propõem uma teoria da justificação diferente, que tente superar o problema da regressão. Grande parte dos adeptos desta teoria exigirão a reflexão do agente cognitivo, podendo então cair novamente no problema do regresso, como será visto. Essa teoria chama-se coerentismo. O coerentismo afirma que o erro do fundacionalismo é conceber a justificação como linear, portanto, o regresso é eminente. O coerentismo então usa-se de um critério para a justificação de alguma crença: a coerência que esta crença tem com relação a um sistema de crenças aceito pelo agente cognitivo. O termo coerência aqui, não se refere a uma relação lógica entre as crenças de um sistema, mas de uma relação probabilística entre as crenças. Estou justificado a acreditar que P pela crença X, a crença X dá probabilidade a P. Por exemplo, alguém poderia estar justificado em acreditar que o sol 1# Sellars expõesobre o mito do dado em seu ensaio de 1956 “Empirism and philosophy of mind”. O leitor interessado em uma pequena exposição do argumento de Sellars pode ler o capítulo 6 do livro “Introdução à teoria do conhecimento” de Dan O’brien publicado pela editora portuguesa Gradiva.
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nascerá amanhã, pois aquilo que o justifica fornece grande probabilidade de o sol nascer amanhã, no caso, o sol ter nascido todos as manhãs até então. Uma pessoa que não tenha conhecimento dos argumentos racionais para a existência de Deus, poderia acreditar que não há um Deus, como o Deus cristão, pela ausência de razões epistêmicas e a existência apenas de razões prudenciais por parte da grande maioria dos cristãos, dando grande probabilidade de Deus não existir para esta pessoa. Um sistema de crenças desse tipo é um sistema coerente de crenças. Como o coerentismo não concebe a justificação como linear, livra-se do regresso epistêmico. Contudo, um regresso aparece com a necessidade do agente cognitivo de refletir sobre o que torna seu sistema coerente. Essa exigência da reflexão se dá pela não plausibilidade de se ter um sistema coerente sem reflexão. Ora, se não preciso refletir sobre a coerência de meu sistema de crenças, posso acreditar, por exemplo, que toda vez que um galo canta é porque está de manhã, esta crença está apoiada probabilisticamente com a crença que tenho de que todas as manhas o galo canta. Contudo, há galos que podem cantar a noite ou em qualquer hora do dia, e eu só sou capaz de chegar nessa conclusão se refletir sobre essa possibilidade. Portanto, se não houver uma reflexão sobre o sistema de crenças, corre-se o risco de deixar o conhecimento a mercê da sorte. O problema é que, como não há uma crença básica, o agente cognitivo sempre será passível de não estar justificado, a não ser que haja uma justificação infalível, e isso o levará a um regresso ao infinito, pois sempre necessitará de justificação para cada uma das crenças que compõem seu sistema. Uma das respostas para esse problema é o externalismo. Se o agente cognitivo não necessita de justificação para ter conhecimento, então isso poderia nos livrar do problema do regresso. Há casos em que não precisamos refletir sobre nossas crenças para estarmos justificados em acreditar em algo. Por exemplo, quando estou com calor não preciso refletir sobre esta minha crença, sei imediatamente que estou com calor. Contudo, posso duvidar que estou com calor e a partir de então necessito de reflexão para estar justificado. Mas, isso não quer dizer que a reflexão seja necessária para se ter conhecimento, a reflexão do agente surge aí como forma de eliminar a dúvida, uma forma mais garantida para o conhecimento, que enfrenta muitos problemas. Os externalistas afirmam que não é todo caso em que o indivíduo está imediatamente justificado, existem condições para que isso ocorra. Uma delas é a de que a crença de S que P estará justificada, se P estiver em uma relação causal com a crença de S que P. Por exemplo, um músico profissional sabe distinguir entre as notas musicais de ouvido, pois estas notas causam a crença do músico em torno dela mesma. Uma outra condição surgiria com este exemplo: se o músico estivesse ouvindo uma nota que não conhecia, provavelmente estranharia e surgiriam certas dúvidas em sua mente. O agente cognitivo somente crê que P se for o caso que P, na condição de que se P continuasse a ser verdadeiro em circunstâncias diferentes, S continuaria acreditando que P. Essa é a teoria do rastreamento da verdade de Robert Nozick2, que defende o rastreamento da verdade 2o Nozickexpõe seus argumentos sobre o rastreamento da verdade em sua obra “Philosophical Explanations” de 1981. Ao leitor interessado em uma abordagem mais simples e rápida dos argumentos de Nozick, recomendo a leitura do capítulo 8 da obra “introdução à teoria do conhecimento ” (GRADIVA) de Dan O’Brien.
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através das crenças do agente cognitivo. Contudo, ainda que essa teoria seja forte e tentadora, ainda não está claro se ela se aplicaria a todos os casos. Existem casos em que necessitamos de justificação para nossas crenças, e mesmo com justificação, ainda não teríamos garantia de que temos conhecimento. Por exemplo, acreditava-se que a terra era o centro do universo, achava-se que isto era conhecimento e grande parte das pessoas estavam epistemologicamente justificadas em acreditar nisto. Somente hoje, depois do desenvolvimento científico somos capazes de dizer que o que tínhamos não era conhecimento. O externalismo não é capaz de garantir quando temos conhecimento ou não, exige-se, portanto, a justificação, mas mesmo esta, como fora visto no exemplo, não é suficiente.
Conclusão A justificação sempre nos leva ao mesmo dilema. Por um lado, necessitamos de uma justificação infalível que não nos leve a um regresso ao infinito. Por outro lado, uma justificação infalível não parece ser necessária para o conhecimento, visto que podemos ter conhecimento sem justificação e ainda podemos acabar por eliminar a possibilidade de se ter o conhecimento de algo que não possa ser justificado, pelo menos não de maneira infalível. Ora, as justificações que temos a respeito da existência do mundo ao nosso redor são falíveis, René Descartes é um grande exemplo de filósofo que pôs em dúvida a existência do mundo sensível. No entanto, por mais que possamos pôr em dúvida sua existência, ainda existe a possibilidade de o mundo sensível existir, por isso, se exigirmos a infalibilidade da justificação, podemos excluir a possibilidade de tomarmos como conhecimento a existência do mundo ao nosso redor. Nesse sentido, os problemas em torno da justificação epistêmica parecem ser talvez bem mais complicados do que o problema em torno da pergunta “o que é conhecimento? ”. E há ainda aqueles que, com todo direito, exigem que saibamos antes de tudo o que é o conhecimento, mas se para que saibamos disto necessitamos saber sobre a justificação, então estamos em um estado extremo de aporia. Quais são as justificações que tenho para acreditar que isto a minha frente é uma caneta? É a utilidade, ou causa final da caneta? Ora, as canetas são usadas para escrever e possuem tinta. Mas, existem canetas que continuam sendo canetas mesmo depois que a tinta acaba, ou ainda podem existir canetas em que não se tem como escrever com elas, pois podem ter estourado ou podem ter entupido. Se você diz que a caneta deixa de ser caneta por não ter mais tinta e não escrever, então temos uma solução para o problema e realmente o que define a caneta são seus atributos de ter tinta e escrever. Deveríamos então criar outro nome para aqueles objetos que parecem canetas, mas não são. Por acaso você diria que o corpo de um homem-morto não é mais um homem, pois agora está morto? Isso dependerá dos critérios que satisfazem a definição de um homem. Contudo, existem outros critérios que se podem atribuir a uma caneta, que não Volume 5 no 2
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apenas ter tinta e poder escrever, afinal, mesmo canetas com defeito de fabricação ainda são canetas para muitas pessoas. Ora, por que ainda são chamadas de canetas? Talvez porque existam outros critérios. A forma da caneta parece ser um critério, afinal, já vi várias canetas e todas elas têm um formato semelhante. Contudo, esta mesma caneta, pode ser destruída, sua forma pode ser mudada, e além disso não há de forma clara uma definição pura do que chamamos de caneta pela sua forma, pois elas possuem formas diferentes. Bem, então é pela semelhança entre as canetas que sei que são canetas? Este parece ser um bom critério, contudo, eu posso ter um brinquedo com a mesma forma da caneta, não sendo, portanto, uma caneta. E se pegássemos emprestado um termo metafísico de Aristóteles, e a caneta fosse definida por sua substância? Essa seria uma forma perfeita de definir a caneta, mas as substâncias são vistas por nós através de acidentes – coisas que existem de forma parasitária à substância – portanto só poderíamos identificá-las por seus acidentes. Afinal, qual é o critério para se definir uma caneta? A justificação pode nos levar para o conhecimento da caneta, mas o critério para a justificação parece ser mais difícil que os critérios para o conhecimento. Se a justificação exige critérios, temos um regresso ao infinito, pois esses critérios também exigem justificação. O problema é que tudo o que dizemos conhecer aparentemente pressupõe justificação. Ora, uma criança sabe que há em sua frente uma árvore, pois sua percepção torna-se uma justificação forte para ela acreditar que está vendo uma árvore a sua frente, se começa a se questionar sobre a árvore; passa a exigir, pois, novas razões para justificarem a crença e, portanto, passa a não ter mais como justificação sua percepção. A justificação é uma exigência do agente cognitivo, ao mesmo tempo ela exige certos critérios, e estes só são observados ao longo das mudanças de exigência e dúvidas do agente cognitivo. O problema é que, se não houver um critério último para a justificação, o agente cognitivo sempre pode criar alternativas que anularão a justificação. Há ainda mais um problema: a justificação também dependerá do objeto que procura justificar, tornando praticamente inviável a existência de um critério último para a justificação, visto que talvez precisássemos de uma justificação diferente para cada objeto de conhecimento.
REFERÊNCIAS FUMERTON, Richard A. Epistemology. Oxford: Blackwell Publishing, 2006, p. 33-52. (First book in Philosophy). GETTIER, Edmund. “Is Justified True Belief Knowledge?”. 1963, Analysis, 23: 121– 123, [Online]. Disponível em: <http://www.ditext.com/gettier/gettier.html> O’BRIEN, Dan. Introdução à Teoria do Conhecimento. 1ª Edição. Lisboa: Gradiva, junho de 2013, p. 380. (Filosofia Aberta). Volume 5 no 2
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RODRIGUES, Luís Estevinha. Conhecimento. In: Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica, Edição 2013, Centro de filosofia da Universidade de Lisboa. Disponível em: <http://compendioemlinha.letras.ulisboa.pt> (último acesso em 28 de julho de 2016).
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CETICISMO EM RELAÇÃO AO NÃO-ESPELHO: CIVILIZAÇÃO X TRANSOUTRIDADE! Henrique Azevedo*
Resumo: Esta foi uma fala proferida no I Encontro sobre ceticismo da Universidade Estadual do Ceará. Houve pequenas mudanças em relação àquela do dia do evento, mas sem nada substancial, senão correções de erros de digitação. O conteúdo versa sobre a proposição de um conceito, a saber, o de transoutridade, que diz respeito a um exercício de enxergar o outro em sua própria outridade sem remeter a nós mesmos, sem subsumi-lo em nosso modo de pensar ocidental como é próprio da “civilização europeia” e seus derivados. Para exemplificar a validade deste conceito proposto, trouxemos à tona o modo de vida e pensamento de alguns povos ameríndios sul-americanos que praticavam em sua cultura e costumes algo como uma transoutridade. Praticar isso não significa que eram transoutros, mas apenas que algo como isso é possível. Palavras-chave: Ceticismo; Ameríndios; Civilização; Transoutridade. Abstract: This was a speaking spoken at I Encontro sobre ceticismo da Universidade Estadual do Ceará. There were some little changes in relation to that speaking day, however without any substantial change, but correction of some typing errors. The content concerns about a concept, i.e., transoutridade, which means an exercise to see the other in its own otherity, without to remit back to us, nor assimilating it in our western way to think, as does the European civilization and
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its derivatives. To exemplify the validate of this concept, we brought to the scene the way of life of some South American indians, that have been practicing something like this transoutridade. This practice doesn't mean they were transoutros, but, just, it is possible. Keywords: Skepticism; Amerindians; Civilization; Transoutridade.
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isse Fernando Pessoa, reaproveitando uma frase do general romano Pompeu, do alto de sua lucidez poética: “navegar é preciso / viver não é preciso.” Essa exatidão ficou-nos mui clara a partir da chegada das primeiras navegações, pois a precisão científica da navegação trouxe um modo de vida outro em relação ao que aqui se praticava, que, em comparação, era por demais impreciso. A justeza do navegar mostrou a face completamente impertinente da civilização ocidental em sua sede de rejeição e assujeitamento daquilo que não é espelho. Narciso é mais que um mito de um herói, ele é a própria imagem da vida civilizada, organizada a partir do modelo de pensamento inaugurado pelo pai Parmênides. O civilizado trata de universalizar a sua visão sob a égide do princípio monista de identidade de que Ser = Pensar. O problema não é o que há de mais superficial neste modo de compreensão, mas sim no sutil movimento mesmo que subjaz a esta lógica identitária: há uma incapacidade ocidental patológica de entender tudo o que não é espelho, e tal entendimento dá-se a partir de seus próprios paradigmas. O ocidente greco romano é cético em relação ao não espelho Precisamente, como esta introdução nos mostra, não quero tratar aqui hoje de uma forma de ceticismo dentro dos parâmetros ocidentais, ou seja, nem acadêmico tampouco pirrônico. O que está em jogo aqui é uma forma sutil de ceticismo psicológico de massas, que permeia a alma do civilizado formado a partir da tríade cultural ocidental greco-romana-cristã, isto é, esta cultura tende a tratar o outro como outro de si mesmo, enquanto algo que já está embutido de alguma forma na universalidade de suas designações. O pensamento que se intitula racional tem como uma de suas bases a filosofia, enquanto instância fundadora de sua relação de organização tanto concreta quanto abstrata de seu mundo. A visão de mundo grega está no cerne dessa relação e é, por demais, devedora desse organizador da totalidade, que é o princípio de identidade de Parmênides: Vem, pois, e eu te direi - e tu, atenta para meu dito e leva-o contigo - os dois únicos caminhos de investigação em que se pode pensar. O primeiro, aquilo que é e que lhe é impossível não ser, é o caminho da convicção, pois a verdade é sua companheira. O outro, aquilo que não é e que precisa necessariamente não ser - esse, eu te digo, é uma trilha sobre a qual ninguém pode aprender. Pois não podes conhecer o que não é - isso é impossível - nem enunciá-lo, pois o que pode ser pensado e o que pode ser são o mesmo. (BARNES, 2003, p 153) Ora, isto abre a possibilidade para duas perguntas: é possível pensar o outro sem partir ou chegar a nós mesmos? Ou mesmo: precisamos pensar o outro? Infelizmente, estas duas questões não passam de reverberações do modo europeu de se perguntar Volume 5 no 2
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sempre por si mesmo. A história da colonização na América do Sul faz-nos ter a plena noção de que estas perguntas foram respondidas sim, mas a chumbo e sob o ferro das espadas. A miséria existencial nos é imposta pela razão de mundo civilizada nos compele a descolonizarmo-nos, partindo da questão mais precisa para uma mudança de paradigma de nosso modo de vida: somos capazes do outro? Ou, mais precisamente, é possível ir tão para além de toda essa confusão existencial, de modo a nada nos restar do anterior, nenhum resquício dialético, uma total transoutridade? A resposta a estas perguntas, confesso humildemente, será um grande e eloquente NÃO SEI. Podemos notar, no entanto, dois aspectos do modo como o colonizador vê o seu outro, a saber, 1- ou reconhecendo no outro algo de si mesmo, uma vez que este carregaria alguma coisa que o caracteriza como humano com; ou mesmo, seguindo este primeiro ponto, 2- como sua protocivilização ao entendê-la em sua infância, enquanto a sua estaria em um nível superior já adulto. Estas duas características podem ser encontradas em uma passagem da Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer, quando estes dizem no excurso sobre Ulisses que “terrível é a vingança que a civilização praticou contra o mundo pré-histórico e nisso ela se assemelha a pré-história.” (1985, p 70). Tal consideração da “civilização” nos traz de volta à interpretação do poema de Parmênides à deusa. Este revela-nos que a constância do pensamento europeu reside justamente na ideia de civilização em seus variados sentidos. Assim, duas características da tradição de vivência do monismo parmenideano nos são caras aqui: 1- não é que o NÃO-SER seja impossível de ser pensado, não possuindo verdade alguma, mas sim que ele NÃO-DEVE-PODER-SER de modo algum, reverberando tal consideração prontamente no modo de vida do homem europeu, branco, cis, patriarca; o ideal e o material deste aspecto foram levados às últimas consequências na prática de conquista americana (voltaremos a este aspecto). 2- A religião cristã interpretou o princípio de identidade a partir de si mesma, obviamente, e não do orfismo característico da MagnaGrécia à época. Isto quer dizer que houve um deslocamento do modo de apresentação do aspecto cosmológico, mas que não foi suficiente para se perder a relação entre cosmologia monista e modo de vida. Muito pelo contrário, reforçou o cristianismo como a única religião, a verdadeira, que todos inexoravelmente devem seguir. Estas duas características revelam, que a civilização, mais precisamente a que chegou à América, baseava-se na ideia renascentista de cultura superior (resgatando suas bases gregas), por meio do poder político coercitivo e da religião baseada na crença dogmática. Toda esta cena de uma tragédia anunciada revela-nos que nós, sentados aqui hoje, esquecemos algo importante; isto que esquecemos não foi o Ser de Heidegger em seu euro-etno-centrismo característico, mas sim esquecemos o Não-Ser, esquecemos o modo como nossos ancestrais indígenas organizavam seu mundo, suas bases cosmológicas, a não verdade civilizada. Talvez o esquecer seja uma grande bondade de nossa parte, pois o aculturamento que sofremos foi de tal modo bem-sucedido que não tivemos tempo de aprender algo outro para podermos, posteriormente, esquecermos. Volume 5 no 2
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Filhos de Parmênides e órfãos de Tapebas, Jenipapos Canindés, Cariris, Potiguares e etc. Aqui proponho pensarmos não apenas a partir do outro enquanto mero outro assujeitado pela violência sistêmica que fundou o direito, a propriedade, o rei e etc.; mas sim a partir de um transoutro, um pensamento que é capaz de ter em si o gérmen do NãoSer, do impensado, do diferente total, é a ideia de que os outros possuem seus estatutos próprios que não nos cabe assujeitar ao nosso. O transoutro a ser pensado não é um mero ultrapassar, tampouco um devir outro ou outra natureza; abandonemos, mesmo que por um breve instante, sem traumas, obviamente se possível, categorias como as de totalidade, universalidade, verdade, comensurabilidade, a fim de transoutrarmos. Pois, o transoutro é um eterno reconhecer a si mesmo como incompleto e incapaz de impor seus paradigmas. A primeira questão que se nos revela é: como? A resposta que proponho é um convite a transoutrarmos no pensamento ameríndio, mais precisamente, adentrarmos na cosmologia, principalmente, dos Tupinambás do litoral brasileiro e dos Guayakis do chaco paraguaio. Ora, para transoutrarmos ainda precisamos de um pouco de colonizações iniciais (em verdade, sempre o precisaremos, mas transoutro não reside nas peças que usamos, mas no modo como usamos, abrindo-nos não apenas ao outro, mas captando também o outro e deixando espaço para que outros Outros apareçam) e iniciaremos, expondo que os dois pilares que aqui imediatamente chegaram da Europa nas mentes e corações de padres e navegadores, em geral, foram a ideia de que Deus está no céu e o Rei, seu representante, está na terra a guiar os caminhos. Mais precisamente, refiro-me à religião baseada em uma crença dogmática e ao poder respaldado na coerção dos corpos. Desse modo, duas perguntas se abrem: seria possível haver poder sem coerção? E também uma religião sem crença? A resposta é sim. Vejamos um pouco do mundo dessa “gente sem fé, sem lei, e sem rei”, como diziam os cronistas do século XVI.
1. Da Falácia: “sou nem índio pra ter chefe!” Deve realmente ter sido espantoso para os europeus do século XVI ver as sociedades ameríndias das terras baixas da América do Sul. Ora, como nos afirma Pierre Clastres “as sociedades primitivas são sociedades sem estado” (p 132); aqui o que está em jogo é, justamente, a designação de que falta algo a estes homens, pois não se poderia naquela época, e nem agora, imaginar uma sociedade sem estado, pois “o estado é o destino de toda sociedade” (Idem). O critério da falta mostra sobretudo a incapacidade para compreender o modo de organização social completamente transoutra das sociedades ameríndias, um modo de vida que se revelou de extrema complexidade em suas alianças e constituição familiar de parentesco. Ou mesmo, melhor dizendo, o critério de Carl Schmitt para identificar o soberano como aquele que decide na exceção não se aplica de modo algum àquelas sociedades. Para compreendermos o poder, ou sua falta, na sociedade ameríndia devemos começar por entender o seu modo da organização social do trabalho; partamos das reflexões de Pierre Clastres: Volume 5 no 2
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O grosso do trabalho, efetuado pelos homens, consistia em arrotear, por meio de um machado e com o auxílio do fogo, a superfície necessária. Essa tarefa, realizada no fim da estação das chuvas, mobilizava os homens durante um ou dois meses. Quase todo resto do processo agrícola – plantar, mondar, colher -, em conformidade com a divisão sexual do trabalho era executado pelas mulheres. Donde a seguinte conclusão feliz: os homens, isto é, a metade da população, trabalhavam cerca de dois meses em cada quatro anos! O resto do tempo era passado em ocupações encaradas não como trabalho, mas como prazer: a caça, pesca; festas e bebedeiras; a satisfazer, enfim, o seu gosto apaixonado pela guerra. (2013, p 136)
Esta passagem nos mostra que comparado a nossa civilização, um índio trabalhava quase nada. Ele assegurava a subsistência da tribo em muito pouco tempo, deixando muito tempo livre para outras atividades bem mais prazerosas. Os cronistas do século XVI confirmam esta afirmação e se espantavam ao mostrar a saúde e bom aspectos dos índios, o que significa que ninguém estava passando necessidade alguma. Esse processo acima descrito se refere às sociedades que tinham a agricultura como sua principal fonte de subsistência, contudo para as sociedades nômades, como os Guayaki do chaco paraguaio, a caça e a coleta representavam a principal fonte de alimentação e, mesmo assim, a caça, por exemplo, era encarada bem mais como esporte do que como necessidade (o que não significa que não fosse necessária), entretanto havia uma regra em relação ao caçador: este não poderia comer daquilo que ele mesmo caça, e sim apenas do que o outro traz para a tribo; isto mostra o caráter de dependência para com o outro como algo que beneficiava toda a sociedade: uma sociedade materialmente solidária. Ora, isto significa que o tempo de trabalho do índio era mínimo e, relativo principalmente às sociedades nômades, a caça era vista bem mais como esporte do que como trabalho. Pergunto, com isso, para que trabalhar mais do que o necessário e criar um excedente de produção? De que lhes serviria isso? Só se trabalha além do necessário pela força, pela coerção, coisa que estava completamente ausente da sociedade ameríndia. Um homem caça para alimentar sua família e a tribo, reflexamente; e não porque alguém se apropria do excedente de sua produção, respaldado por leis petrificadas na forma estado e por um chefe que simboliza o poder sob a forma da coerção. No entanto, a tribo não possui um rei, mas um chefe e este chefe não é chefe de estado, obviamente não há estado; muito pelo contrário, as suas funções são muito limitadas e supõem, plenamente, a sua falta de poder coercitivo. Clastres, em sua Sociedade contra o estado, retira três características da chefia indígena a partir de um texto do antropólogo Robert Lowie intitulado Titular Chief, que diz:
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1- O chefe é um 'fazedor de paz'; ele é a instância moderadora do grupo, tal como é atestado pela divisão frequente do poder civil e militar. 2- Ele deve ser generoso com seus bens, e não se pode permitir, sem ser desacreditado, repelir os incessantes pedidos de seus 'administrados'. 3- Somente um bom orador pode ascender à chefia.” (2013, p 23)
A primeira característica mostra justamente o que todos já sabem, a sociedade indígena é uma sociedade voltada para a guerra, e nesta, justamente o chefe guerreiro organiza a estratégia guerreira. Contudo, esta característica só se efetivará se os seus guerreiros concordarem com a estratégia, caso contrário o chefe será destituído de suas funções. A segunda característica é a que mais nos traz um gozo reconfortante, pois para reconhecer o chefe nas tribos ameríndias, em geral, basta ver aquele que tem menos adereços e, quando os tem, são os mais pobres e sem pompa. O chefe tem como uma de suas funções primordiais atender aos pedidos de seus '‘administrados’'. Por conta de sua função destituída de poder, ele não é servido, mas sim, ao contrário, serve e este dever é primordial para a coesão e unidade da tribo. A terceira característica, por assim dizer, fecha a abóboda da tradição de chefia indígena, pois o chefe detém o poder de falar pela tribo, ele tem de ser articulado tanto para evitar (raramente, diga-se de passagem) uma guerra, quanto para não ficar sem nada devido aos incessantes pedidos. Os índios apreciam muito a palavra do chefe, mas desde que seja audível e satisfaça a eles seu proferimento. Os cronistas contam que, muitas vezes, não entendiam como o chefe falava praticamente para ninguém, pois todos os integrantes da tribo não davam a menor bola para o que chefia dizia, ou mesmo fingiam não dar bola. Mas, se a chefia indígena tem todos estes contratempos, então por que alguém queria ser chefe? Bem, podemos dizer que havia vantagens; citaremos duas por economia de tempo e ouvidos: primeiro, a literatura etnográfica mostra que o chefe tinha o privilégio da poligamia e, com isso, esta se dava sem possuir, ao mesmo tempo, o privilégio de melhor alimentação ou moradia diferente da dos outros. Segundo, ele possuía prestígio junto a tribo, algo que é bem diferente de possuir poder coercitivo. Este prestígio o elevava a alguém tido por grande guerreiro bem-visto, e não por sua condição material, uma vez que, por exemplo, não se distingue nas casas coletivas a rede do chefe. Portanto, a palavra do chefe, tão prestigiada na tribo, não tem, contudo, força de lei ou como diz Clastres sobre a chefatura: Um chefe não tenta (ele mesmo nem sonha) subverter a relação normal (conforme às normas) que mantém com o seu grupo, subversão que, de servidor da tribo, faria dele o senhor. Essa relação normal, o grande cacique Alaykin, chefe guerreiro de uma tribo abipone do chaco argentino, a definiu perfeitamente na resposta que deu a um oficial espanhol que queria convencê-lo a levar sua tribo a uma guerra que ele não desejava: 'os abipones, por um costume recebido de seus ancestrais, fazem tudo de Volume 5 no 2
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acordo com sua vontade e não de acordo com a do seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eu não poderia prejudicar nenhum dos meus sem prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus companheiros, logo eles me dariam as costas. Prefiro ser amado, e não temido por eles.' (Idem, p 145) O antimaquiavelismo do chefe dos Abipones mostra perfeitamente o modo como este se porta em relação ao poder. O seu poder não era baseado na coerção, mas sim na extrema liberdade da tribo enquanto unidade tanto guerreira quanto social geral. O poder, principalmente, de sujeitar os outros às próprias demandas, ou mesmo usar o estado e seu aparato para benefício próprio estava ausente no modo de pensar indígena. Havia poder sem coerção! Este modo de entender o poder nos leva a segunda parte de nossa fala, a saber, por que guerreiam os índios? A resposta a esta pergunta nos remete a seu caráter propriamente religioso ou, especificando melhor, sagrado.
2. Se não der certo com Piaget, vamos de Pinochet ou dos jesuítas e sua educação teológico-civil. O historiador helenista e mitólogo Fernand Robert, em sua A Religião grega, disse que “a religião não está no que se conta, mas no que se faz” (1988, p 6) e talvez este tenha sido o maior erro dos jesuítas ao não entender a relação dos indígenas com o seu sagrado, a sacralização de determinadas práticas não foi notada pelos jesuítas como um caráter religioso próprio, principalmente no que concerne aos tupinambás. Os religiosos que vieram à América em missão oficial foram incapazes de entender algo que não fosse idêntico a si mesmo e de modo piorado entenderam o modo de ser dos indígenas como uma vida sem religião, quando a pergunta a ser feita diante dos costumes indígenas seria: é possível haver religião sem crença? Pergunta impossível a um filho de Deus e de Parmênides. Para respondermos essa questão temos de entender o que Viveiros de Castro chama de inconstância da alma selvagem. Os jesuítas que aqui chegaram, de início ao falar aos índios das coisas de Deus, dos feitos de Jesus Cristo e de seus apóstolos foram plenamente escutados e aqueles praticaram por um curto período de tempo os costumes cristãos, tanto que em suas primeiras epístolas tratavam seu apostolado como algo muito interessante, pois os índios aceitam tudo e a maioria após escutar o evangelho queria se tornar, prontamente, cristão. Contudo, apenas alguns dias depois de se dizerem cristãos, voltavam a seus velhos costumes e diziam não lembrar de nada que os padres tinham falado. Isto posto, segundo Viveiros: Entre os pagãos do velho mundo, o missionário sabia as resistências que teria a vencer: ídolos e sacerdotes, liturgias e teologias – religiões dignas desse nome, mesmo que raramente tão exclusivistas como a sua própria. No Brasil, em troca, a palavra de Deus era acolhida com displicência pelo outro. O inimigo aqui não era um dogma diferente, mas uma completa indiferença ao dogma, uma recusa de escolher. Volume 5 no 2
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Inconstância, indiferença, olvido: “a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo”, desfia e desafia o desencantado padre Vieira. Eis por que São Tomé fora designado por Cristo para pregar no Brasil; justo castigo para o apóstolo da dúvida, esse de levar a crença aos incapazes de crer – ou capazes de crer em tudo, o que vem a dar na mesma: “outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos.” (2002, p 185) O ameríndio aceitou tudo que os padres falaram, justamente, por conta de ter em si, segundo Viveiros e Lévi-Strauss, uma abertura ao outro, uma incompletude ontológica. Ele nunca se considera formado, fechado, o índio é uma estátua de murta, e não de mármore e certamente essa característica revela o modo de se portar do índio relativo à sua religiosidade. Os jesuítas converteram os índios e estes seguiam os preceitos cristão por curto período de tempo e depois voltavam a seus velhos costumes de poligamia, canibalismo, violência e constante estado de guerra. Os jesuítas diziam que os índios não tinham religião, mas apenas superstições e não entenderam que os costumes indígenas eram a sua verdadeira religião (assim como os costumes cristãos), e esta enquanto algo completamente material se externalizava nos seus costumes. Ora, digo aqui que a única constância na alma do índio era a guerra, vivia-se para ela e esta, como precisamente entende Viveiros, era a sua religião. Aqui duas características saltam aos olhos. A primeira, concernente à religiosidade tupinambá, para Viveiros, era a total ausência de dogmas, coisa que uma mente europeia, filha de Jesus e, principalmente, de Parmênides não conseguia conceber. Mais precisamente, “no século XVI, a religião sem culto, sem ídolo e sem sacerdote dos tupinambás ofereceu um enigma aos olhos jesuítas” (2002, p 185); este enigma e a inconstância no aprendizado e desaprendizado das coisas de Cristo fez com que os padres endurecessem o discurso e convocassem a corte a ensinar a ferro e fogo àqueles. A segunda característica diz respeito, justamente, a essa abertura ao outro, essa incompletude ontológica que fazia com que os índios escutassem os europeus e inclusive seguissem suas determinações, mas com uma condição, a saber, que isso os tornassem mais potentes para a guerra. Aqui está o cerne da coisa, que pode ser materializada na condição canibal dos indígenas: a guerra indígena tinha como objetivo aprisionar guerreiros da tribo adversária e vingar-se dos antepassados mortos, tanto que os aprisionados iam sem resistência para a aldeia adversária. Eles podiam viver com a tribo durante anos, tomavam uma esposa para que na condição de cunhado ficassem sob a asa de seu sogro para o trabalho na tribo. Muitas vezes, estes prisioneiros iam para guerra junto com aqueles que o prenderam. Entretanto, uma coisa era certa: ele sabia que algum dia morreria e seria devorado. Fugir estava fora de questão, pois o desonraria enquanto guerreiro, que, como tal, tinha anseio de morrer comido para poder ser vingado. Aqui entra talvez a principal característica do que Viveiros cita como a condição religiosa dos ameríndios, a saber, o Volume 5 no 2
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ritual canibal. No dia da morte do cativo, era um dia de festa para a tribo, produzia-se o cauim para que houvesse bebedeira. O cativo era besuntado com uma gordura especial e colocado no centro da aldeia. O carrasco também se preparava durante todo o dia, pois este tinha de dizer algumas palavras no ritual, isto é, o carrasco diz ao cativo que este capturou e matou muitos da sua tribo e, por conta disso, será morto e também comido. O cativo diz que os da sua tribo virão e vingar-se-ão daqueles que o comerem. Depois disso tudo, o carrasco desfere um grande golpe na cabeça do cativo com uma espécie de tacape e o mata. A simbologia do canibalismo tem duas características interessantes: a primeira é que todos comem a carne do morto menos o carrasco, pois este captura algo bem mais interessante, a saber, o nome deste. Ao matá-lo automaticamente este rouba para si o nome daquele e o portará pelo resto da sua vida. A segunda característica é que a tribo inteira se porta como unidade digna de vingança, uma vez que todos comem da carne do cativo, enquanto gesto de vingança coletiva. Os índios podiam mudar todos os seus costumes, inclusive, este de comer a carne do cativo, por conta da perturbação teológica dos padres, mas nenhum deles estava disposto a abandonar a guerra e a vingança. Na verdade, era precisamente esta que os faziam aceitar o outro de tal maneira, esta é uma grande mostra da incompletude ontológica dos índios, que precisamente devoravam o outro como forma de eternamente tentarem completar a si mesmos. Os índios para poder guerrear eram capazes de vender sua alma ao diabo, ou melhor, ao europeu. Aparentemente pouco inclinados a qualquer oposição segmentar, os Tupi vendiam a alma aos europeus para continuar mantendo sua guerra corporal contra outros Tupi. Isso nos ajuda a entender por que os índios não transigiam com o imperativo de vingança; para eles a religião, própria ou alheia, estava subordinada a fins guerreiros: em lugar de terem guerras de religião, como as que vicejavam na Europa do século, praticavam a religião da guerra. (VIVEIROS, 2002, p 212). A constância da alma indígena residia na capacidade de guerrear e, justamente, aqui estava o cerne da religião indígena: os seus ritos canibais e outros serviam como forma de sacralização da guerra, como diz Viveiros, havendo, com isso, uma religião sem dogma e sem crença neste. Mas, satisfaz a categoria da religião para explicar este fenômeno?
3. Transoutridade: capacidade de ser outro e, se calhar, não voltar a si mesmo. Em vista destes temas antropofilosóficos aqui delineados, se nos faz mister perguntarmo-nos: a antropofilosofia está pronta para assumir integralmente sua verdadeira missão de ser a teoria-prática da descolonização permanente do pensamento? Para responder a esta pergunta retomo a tese de Viveiros, no posfácio à Arqueologia da Violência de Pierre Clastres, sobre a dupla visão da universalização da antropologia, a Volume 5 no 2
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saber, “por um lado, ela pode fazer funcionar a imagem dos outros de modo que esta revele algo sobre nós, certos aspectos de nossa própria humanidade que não somos capazes de reconhecer como nossos” e, por outro lado, “a segunda forma de universalização parte, ao contrário, do postulado de que os primitivos são mais parecidos conosco do que nós com eles. E como apenas parecidos, aspiram a ser como exatamente como nós, ou seja, a viver felizes sob o signo da santíssima trindade do Homem Moderno: o Estado, o Mercado e a Razão.” (2013, p 316 - 318) Este modo de entender estas sociedades não colonizadas pela trinca geocultural Grécia-Roma-Judéia, mostra o grande narcisismo da civilização ocidental filha de Parmênides, inclusive na Antropologia, que deveria ser aquilo que mostra o outro em seu valor próprio, sem inferioridade em relação ao ocidental, patriarca, branco. Incapaz de ver o outro senão como espelho, não consegue visualizar que há outras mentes, outros paradigmas de pensamento e reflexão, a duplicidade sujeito-objeto não satisfaz o pensamento ameríndio. Este modo de pensar sempre nos faz organizar uma visão, por assim dizer, mais do mesmo, o ser-outro nada mais foi e o é do que ser outro de nós mesmos. Ao contrário desse modo de pensar, os ameríndios sempre conseguiram colocarse no lugar do outro, uma vez que este completamente outro poderia trazer algo que neles mesmos não havia, mas ao contrário de Viveiros, não acho que seja para completá-los em sua ontologia incompleta, e sim como uma capacidade de não sacralizar a si mesmo como grande espelho do cosmos. Ora, não se tomar a si mesmo como sagrado é bem diferente de não estar completo, esta categoria humana demasiado humana. Há o sagrado, mas não há a completude do sagrado, visto haver uma brecha que permite o estatuto do outro como válido. Isto nada tem a ver com as mitologias demiúrgicas ou mesmo com a atividade xamânica de, por exemplo, contactar os espíritos; mas sim, a própria ideia de que há algo para além de mim que eu mesmo não posso me fechar. Não me refiro aqui a um perspectivismo ou multinaturalismo (categorias de Viveiros), enquanto capacidade tanto de se colocar no lugar do outro quanto de ver o outro também como si mesmo, dependendo da relação predatória que se estabeleça. Tanto animais quanto humanos, para os ameríndios, tem em si a capacidade de ser diferente de si mesmo, instável (jaguar ver o outro jaguar como homem, e no momento que ataca o humano, este último vira queixada); essa capacidade de perspectiva e multinaturalismo mostra que tais modos de entender-se enquanto outro dos indígenas ainda é visto sob categorias ocidentais, uma tradução que acaba por se tornar, enfaticamente, uma traição àquele modo de pensar. Mesmo as categorias das perguntas que fiz acima, isto é, sobre a política e a religião, duas vertentes do humano civilizado, também são incapazes de abarcar o mundo indígena, pois ainda estamos no paradigma do modo de compreensão tradutora de uma cultura a outra. Poder e guerra são duas categorias que não abarcam o modo de vida ameríndio ou como diz Belchior em Conheço o meu lugar: “ninguém é gente, Volume 5 no 2
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nordeste é uma ficção, nordeste nunca houve”; assim também índio nunca houve, guerra nunca houve, poder nunca houve, “conheço o meu lugar” de incapaz de discurso sobre este outro, se eu não me torno o outro em seus costumes e linguagem? Talvez seja por demais radical isto, mas tenho de admitir o outro em seu campo próprio sem o remeter a mim, minha cultura, meu modo de vida. Parmênides tem de morrer, mas também Deus. Mas este último foi morto por nós e enterrado por Nietzsche, apesar de nos assombrar o tempo todo feito um fantasma imaginário que se materializa em nossos comportamentos a partir da célebre ideia do: “Deus está vendo!” Transoutro é admitir que as ideias e as pessoas não giram em torno de nosso umbigo, é uma desesgoistização social tão profunda a ponto de reinventar todo o nosso ordenamento social que passa pela política, pela religião e, principalmente, pela economia. Apesar de nossos antepassados indígenas terem construído algo como uma transoutridade em suas variações culturais próprias, nós a destruímos a base de Parmênides e Jesus. Precisamos nos reinventar e construir o novo, organizarmo-nos transoutramente. Perpetuemos tal construção e se o caso for destruindo-a, mas mudemos, é imperativo!
BIBLIOGRAFIA ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BARNES, J. Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CLASTRES, P. A Sociedade Contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2013. ____________. A Arqueologia da Violência: Pesquisas de Antropologia Política. São Paulo: Cosac Naify, 2013. ROBERT, F. A Religião Grega. São Paulo: Martins Fontes, 1988. VIVEIROS DE CASTRO, E. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002. _______________________. Metafísicas Canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
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O CINISMO E OS PROTÓTIPOS DE RISCO Bruno Pereira Cavalcanti1 Resumo: A filosofia como tendência, sempre buscou aprimorar sua capacidade de orientação. Ao acompanhar os cínicos fazemos exatamente isso: nada mais que seguir pistas, indícios, traços, não ditos, exibições. Porém, o que nos faz percorrer esse caminho mais uma vez depois de tanto tempo na história do pensamento? O cinismo é a experiência autofágica da filosofia, pois enquanto efeito puro se desvia das ilusões, esbarra nos erros para chegar à simplicidade própria da vida, despida, estéril e esvaziada. É em sua lida com o nada constitutivo do universo e da história, a incompreensão de sua existência, e a impossibilidade da transferência dessa experiência, que este ritmo se inscreve nos mundos. Ademais, devido a não realização do cinismo pela via teórica, ele reverte-se em prática da vida comum para o qual a vista se volta, agora. Nesse presente trabalho, é essa travessia no espaço, e sua estadia no tempo que o tipo de vida cínico nos interessa. Buscamos entender, a partir da ideia que Paulo Arantes cria de risco, e através do modo como Peter Sloterdijk dimensiona o cinismo a questão: como o impulso cínico resiste no espaço ao pesar do tempo? De um lado, o risco de lidar com um horizonte obscurecido, de outro a vertigem de dispor somente do próprio corpo como espaço de experiência, faz o pensamento realizar a trilha da história como um estreito percurso do qual não pode esquivar, e que, como se diz, é preciso seguir até o fim. É assim que vemos o cinismo como aquele que faz do si mesmo um protótipo, no sentido mais usual da palavra: aquele que se aplica à vida com suas próprias ideias e princípios e se alia ao que está disposto. A fórmula, não há como ser hipócrita em seus prazeres, é posta novamente em teste pelo cínico, no caráter emergente no qual a filosofia se encontra prestes a aplicarem-lhe uma anestesia. Palavras-chave: Horizonte. Impulso. Vertigem. 1V Graduando no curso de filosofia licenciatura na Universidade Estadual do Ceará – UECE.email: cartola_able@yahoo.com.br.
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Cinism and risk prototypes Abstract: The philosophy as a trend has always sought to improve its capacity for guidance. By following the cynics we do just that: nothing more than follow clues, clues, traces, not said, exhibitions. But what makes us travel this road again after so much time in the history of thought? The cynicism is the autophagic experience of philosophy, for as a pure effect it deviates from illusions, it comes up against errors in order to arrive at the simplicity proper to life, naked, sterile and emptied. It is in its deal with the constitutive nothingness of the universe and of history, the incomprehension of its existence, and the impossibility of the transference of this experience, that this rhythm is inscribed in the worlds. In addition, due to the non-realization of cynicism by the theoretical way, it reverts in practice of the common life for which the sight turns, now. In this present work, it is this crossing in space, and your stay in the time that the cynical kind of life interests us. We seek to understand, from the idea that Arantes creates at risk, and through the way Sloterdijk sketches cynicism the question: how does the cynical impulse withstand space in spite of time? On the one hand, the risk of dealing with an obscured horizon, on the other hand the vertigo of disposing only of one's own body as a space of experience, makes thinking realize the path of history as a narrow path from which it can not avoid, and which, as If it is said, one must go to the end. This is how we see cynicism as that which makes of itself a prototype, in the most usual sense of the word: that one who applies to life with his own ideas and principles and is allied to what is willing. The formula, there is no way to be hypocritical in its pleasures, is put to the test again by the cynic, in the emerging character in which philosophy is about to apply an anesthesia. Keywords: Horizon. Impulse. Vertigo.
“Tentação comum a todas as inteligências: o cinismo.” Albert Camus, A desmedida na medida
O expandir da mente torna o labirinto mais estreito (e o peito?) E assim vão-se os dias, voltam as noites frias. Despertando em morte, caminhando de surto em surto. Equilibrando o cataclisma diário com o quanto pesa na balança esse silêncio... (O vento sul me aponta o norte...) Projetonave & Síntese, Em favor do réu
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Dentre tantos começos possíveis para vermos o acontecer da história de uma tentativa como é a dos “cínicos”, uma boa imagem seria a da história tão repetida nas cidades: uma família se muda da casa onde viveu tantos anos para uma região totalmente nova onde se poderá tentar mais uma vez a vida. Apesar de todo o trabalho e correria que uma mudança exige os olhares dos que desempilham seus pertences se veem atentos com uma cena não só comum, mas digamos até esperada: a reação do cão que caiu da mudança. Não só pelo riso compartilhado com que se acompanha seu movimento, mas como mesmo em meio a tantos odores desconhecidos pode o cão reorientar o curso da sua existência indo por todos os lugares, sentindo os cheiros nos arredores, deixando ali também a sua marca. Então, um dia, ou uma noite, ele se perde de sua redondeza, encontre outras fortalezas para além dos muros de seu lar. Atraído por um estranho som quase imperceptível, impregnando sua intuição, mobilizando o seu corpo, fazendo a travessia de um caminho ainda mais sinuoso: a lembrança de seu antigo lugar e o seu incessante continuar. A filosofia sempre buscou aprimorar essa capacidade de orientação. Talvez devido aos caminhos perigosos que trilhou e os outros com que se deparou. Ou como diria Ruy, rapidamente, o cinismo nos interessa na medida em que “trata-se de incorporar, por meio de árduos exercícios, o discernimento natural dos cães”. O cínico é aquele que opera o próprio corpo como propulsor com “a dura disciplina da autarquia (autarkeia), do autodomínio (enkrateia) e da liberdade de fala (parrhésia)” 2 faz de si campo de batalha. Se não se vive sobre a Terra de qualquer maneira, quem dirá no cosmos. E hoje sabemos como são rigorosas as viagens. Procuraremos saber, portanto, que alianças se fazem nesse caminho (rodós) do pensamento e como o impulso cínico resiste no espaço ao pesar do tempo, nesta malha espessa e entrelaçada...
Onde estamos? Que horas são? O cinismo enganchado na história das ideias aparece na contemporaneidade como indicador de uma crise da cultura em declive com as contradições do mundo capitalista, devastado, insaciado: o capitalismo enquanto “geocultura de legitimação” do humanismo como narrativa já perdeu sua validade. E na borda desse humanismo vemos proliferar outras potentes narrativas (zumbis, alienígenas, vampiros, androides, cyborgs, entre outros.) como variações daquela ideia de humano forjada no nascedouro da modernidade. Como bem afirma Sloterdijk “o homem nunca se encontra no ‘meio de sua essência’, mas se acha ao lado de si mesmo como outro em relação àquele que ele ‘propriamente’ era ou pode ser” 3. 2V JÚNIOR, Ruy de Carvalho Rodrigues. De Kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 18 3V SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe, Maurício Mendonça Cardozo, Pedro Costa Rego e Ricardo Hiendlmayer. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. p. 93.
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Os outros tipos da fôrma “homem” começam, pois, a funcionar tão melhor quanto mais velozmente se afastam da ideia de humanidade como aquilo que desembrutece o ser humano através de uma formação literária e amansadora – o mote do humanismo nos diz que “as boas leituras conduzem à domesticação” 4. Contudo, irrompem na subjetividade corporeidades heterogêneas que encontram nos meios alternativos de síntese social – a radiofusão, televisão, e internet – um espaço para si 5. Aos poucos, vemos nosso corpo se desmanchar na substância secretada pelo organismo que é lentamente derretido por dentro pelo eco do pergunta: “quem, ou melhor, o quê é este eu que diz eu?”. Vemos ao longe, vindo uma onda desinibidora se aproximando, aparentemente irrefreável, e sem precedentes. Eis que a questão nos interpela: “o que ainda domestica o homem, se o humanismo naufragou como escola de domesticação humana?” 6. A fissura cavada pelo projeto humanista ao afastar, condicionar e tentar controlar a população iletrada, levando-a ao embrutecimento produziu quase uma diferença de espécie em relação àquelas subjetividades formadas na “alta cultura” da escrita. É para essa decisão política quanto à espécie que estamos sendo levados. E, desde então, para dar um suprimento a essa perda do idílio, nos servimos da política e da economia como instrumentos para decidir sobre o sentido da criação como modificação da face do mundo e realocação de seus habitantes. Aliás, a nossa história poderia ser vista pelo olhar do que se perdeu, de quais dívidas não foram pagas, quais promessas não foram cumpridas, que cumplicidades foram dilaceradas, que corpos nos foram ocultados A animalidade do homem aparece aí, em seu fracasso de ser e permanecer animal, na recusa de ser aquilo que é, nesse cíclico recomeçar da existência. Essa derrota na tarefa de se tornar animal nos colocou na encruzilhada entre um adestramento eficaz ou uma criação, que nos permitisse formular um novo código de antropotécnicas capaz de alterar o invólucro que nos reveste. A política pensada por Sloterdijk tem em vista não a mera domesticação de rebanhos relativamente dóceis, mas uma maneira de lidar com o perigoso interesse em “uma neocriação sistemática de exemplares humanos mais próximos dos protótipos ideais” 7. Alguns veem na tomada de posição de Sloterdijk um afastamento do pós4V SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad.: José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação liberdade, 2000. p. 17. 5V O tom ficcional dessas narrativas ganha um peso maior porque a ficção nos vem perguntar de que real se trata, admitindo antes níveis, gradientes de realidade, do que um único lugar para o real. “[...] no estridente término da era nacional-humanista experimentaria mais uma vez uma florescência tardia; tratou-se aí de uma renascença planejada e reativa, que forneceu o padrão para todas as pequenas reanimações do humanismo desde então. Não fosse o pano de fundo tão escuro, dever-se-ia falar de um surto de fantasias e autoilusões.” SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad.: José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação liberdade, 2000. p. 15. 6V SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad.: José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação liberdade, 2000. p. 32. 7V SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad.: José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação liberdade, 2000.p. 50. Contra as interpretações extremadas Sloterdijk ainda acrescenta mais adiante: “Para o leitor moderno – que lança um olhar retrospectivo para os ginásios humanistas da era burguesa e para a eugenia fascista, ao mesmo tempo em que já espreita a era biotecnológica – é impossível desconhecer o caráter explosivo destas considerações.” p. 55.
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humanismo crítico, sob a alegação de que o autor credita uma suposta criação intensiva da perfectibilidade humana. Segundo Felinto e Santaella, “Sloterdijk lança a hipótese, veemente criticada, de que hoje a engenharia genética restaria como a única forma viável de neutralizar as tendências humanas ao barbarismo e bestialidade” 8. Mas, agucemos mais ainda nossos ouvidos: e se trouxermos a função oculta da criação, ou seja, a disputa entre os criadores e seus projetos criogênicos, como mais uma ocasião de se dar alguma forma à irreversibilidade do nosso destino? A que voz ainda se poderá atender se ainda formos capazes de ouvi-la? Albert Camus soa bem sedutor quando nos indica que a criação “tira o espírito de si mesmo e o coloca diante de outro, não para que se perca, mas para mostrar-lhe com um dedo preciso o caminho sem saída em que todos estão comprometidos” 9. Podemos encontrar aqui um vetor para ler o cinismo como esse limiar onde a teoria e sua vista cansada busca com o tato um acesso a práticas menos viciadas em sua autojustificação. O problema colocado por aquele que cria é o de como adquirir um saber-viver para além de um saber-fazer. A criação aqui não oferece saída alguma, não é uma resolução dos problemas que enfrentamos. É antes um sintoma da grande vontade de viver. “A aprendizagem é muito mais uma questão de erga, que de logoi ou mathémata” 10. A inteligência ordenadora libera os movimentos pungentes do pathos, para obter a força para erguer mais uma vez os pesados portais que podem lhe dar passagem e estadia. A filosofia em sua versão cínica nos ensina a “estar preparado para enfrentar todas as vicissitudes da sorte” 11. É assim que Diógenes toma o saber filosófico, alterando o estatuto da sua aplicação. Epicteto nos diz claramente do que se trata a atividade da filosofia, em seu Encheirídion 12: O primeiro e mais necessário tópico da filosofia é o da aplicação dos princípios, por exemplo: “Não sustentar falsidades”. O segundo é o das demonstrações, por exemplo: “Por que é preciso não sustentar falsidades?”. O terceiro é o que é próprio para confirmar e articular os anteriores, por exemplo: “Por que isso é uma demonstração? O que é uma demonstração? O que é uma consequência? O que é uma contradição? O que é o verdadeiro? O que é o falso?” Portanto, o
8V FELINTO, Erick. SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos: Vilém Flusser e o pós-humanismo. 1. Ed. São Paulo: Editora Paulus, 2012. p. 147. 9V CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad.: Ari Roitiman e Paulina Watch. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.p. 111.
10V JÚNIOR, Ruy de Carvalho Rodrigues. De Kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 23. 11V LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego, introdução e notas: Mário da Gama. 2. Ed. Reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p.168. 12V Como nos diz Dinucci e Julien na apresentação do texto de Epicteto, “o termo grego encheirídion se diz do que está a mão, sendo equivalente ao termo latino manualis, ‘manual’ em nossa língua. Significa também ‘punhal’ ou ‘adaga’, equivalente ao latino pugio, arma portátil usada pelos soldados romano atada à cintura.” DINUCCI, A. JULIEN, A. O Encheirídion de Epicteto. Archai n. 9, jul-dez 2012, p. 123.
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terceiro tópico é necessário em razão do segundo, mas, o primeiro é o mais necessário e onde é preciso demorar. 13
É bastante comum gastarmos nossos esforços e energias nos perdendo nas autoilusões contidas no terceiro tópico, e esquecemos completamente do primeiro. Os cínicos se encontram, ao contrário, bastante ocupados em estudar meticulosamente as vias da liberdade, espreitando as circunstâncias, e aprendendo como colocá-las à sua disposição 14. É isso que pode se entender por aplicação dos princípios: saber dispor da própria vontade, atividade que se estende por toda uma vida tão longe quanto seu fôlego possa alcançar. Diógenes, O Cínico, se apresenta como aquele cão que ao cair da mudança ousou mudar de vida. É na apreensão de sua solidão assistida e de sua liberdade vigiada que uma segunda mudança se inicia. O auge da vida filosófica idealizada na antiguidade pela figura de Sócrates nas veredas da razão é então difratado pela imagem de Diógenes nas sendas da loucura. Os cínicos se tornaram espectros que agora vivem a rondar como fantasmas os maquinismos modernos: “no coração do reaparecimento do cinismo na modernidade está a sua atávica relação com o outro da razão, ou seja, com a loucura e com o silêncio do logos” 15. Habitando o avesso da existência o cínico vive a sua maneira de ser abrasado pelo sol 16. Descobrimos, nessa via, a habilidade para o recomeço de existir, mudando a natureza de sua própria imagem, sobrevivendo à história, e vivendo para além dela. O movimento cínico atinge um ponto secreto em que a anedota de vida e o aforismo do pensamento confluem num mesmo sentido. A “invenção” ensejada pelo cinismo
13V DINUCCI, A. JULIEN, A. O Encheirídion de Epicteto. Archai n. 9, jul-dez 2012, p. 132. 14V A fim de intuir como nos colocamos na direção do impensado, podemos ver como os motivos de Epicteto, de tomar a filosofia segundo a eficiência de sua aplicação, ressoam em Giordano Bruno Em uma passagem do seu ” Tratado de Magia”, Giordano Bruno, no tópico “Sobre os vínculos dos espíritos (a começar por aquele que tem origem na tripla razão do agente, da matéria e da aplicação) ”, nos diz que: “São três os fatores requeridos para que as ações sobre as coisas sejam levadas a bom termo: a potência ativa detida pelo agente, a potência passiva presente no sujeito ou paciente (ou seja, a disposição definida enquanto aptidão, ou ausência de repugnância, ou ainda a incapacidade de resistir; estes termos são redutíveis a apenas um: as potencialidades da matéria) e a aplicação apropriada às circunstâncias temporais e locais, e outros dados concomitantes; para resumir cada um desses fatores numa só palavra, falarei de agente, de matéria e aplicação. A ausência deste trio perpétuo estorvará de imediato qualquer ação.” BRUNO, Giordano. Tratado da magia. Trad.: Rui Tavares. São Paulo: Martins, 2008. p. 97. 15V JÚNIOR, Ruy de Carvalho Rodrigues. De Kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 20. 16V Podemos tomar um grande fôlego se lermos o que Albert Camus tem a nos dizer em seu prefácio tardio de sua primeira obra, publicado por ocasião de uma nova tiragem em 1957. Quanto a essa relação cosmológica solar e mediterrânea que estabelecia com sua África natal ele nos diz: “Para corrigir uma indiferença natural, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol. A miséria impediu-me de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na história; o sol ensinou-me que a história não é tudo. Mudar a vida sim, mas não o mundo do qual eu fazia minha divindade.” CAMUS, Albert. O avesso e o direito. Trad.: Valerie Rumjanek. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 18.
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não foi um conjunto de doutrinas, muito menos um método, mas ele mesmo – uma demonstração concreta, porém, maleável, de um modus dicendi, uma maneira de se adaptar verbalmente a circunstâncias (usualmente hostis). E esse processo de invenção, essa retórica aplicada, que constitui o discurso cínico, um processo em que estratégia de sobrevivência e estratégias retóricas convergem e se misturam repetidamente. 17
O que vemos no desenvolvimento do cinismo orientado por uso da oralidade é sua difusão na vida comum, um contágio do pensamento; uma maneira não intelectual de praticar a filosofia noutra instigação; uma “indissociabilidade entre bios e retórica” 18. Isso o reveste de uma invisibilidade representativa, como um tipo corriqueiro de mágica que os ajuda a desaparecer silenciosa e rapidamente quando importunados. A existência nas superfícies não tem nada a buscar na terra além dela mesma, e com o clima que se instala, já não conseguimos dizer com tanta precisão que horas marcam o relógio do pensamento. Poderemos ainda saber aonde vamos, mesmo sem saber onde estamos? É esse o desafio que o cinismo interpõe onde quer que se manifeste. A nossa disposição de caminhar poderá alterar a paisagem? Como num sonho onde cada passo dado modifica completamente o ambiente
O risco vertiginoso Nessa altura da hora do mundo, com o tempo que nos resta, percebemos com um ruidoso barulho de explosão como a possibilidade de nossa aniquilação como espécie, levada a cabo ao longo de todo o século XX, deslocou drasticamente nossas expectativas quanto ao porvir. As bombas que dormem calmamente nos depósitos esperando outra grande verdade para voltar à tona, dão um tom de urgência às experiências que nos sobraram. Isso porque “a bomba não exige de nós nem combate, nem resignação; ela exige que façamos a experiência de nós mesmos. Nós somos ela. Nela se consuma o ‘sujeito’ ocidental” 19. Fomos aos poucos sendo isolados em nosso próprio corpo até o momento em que sedimentaram na nossa pele o último limiar. A distensão se tornou o nosso único recurso para seguirmos rumo às águas não cartografadas do completamente outro. Nesse tempo de natureza diferente, como nos diz Paulo Arantes, “a distância entre expectativa e experiência passou a encurtar cada vez mais e numa direção surpreendente, 17V BRANHAM, R. Bracht. Desfigurar a moeda. A retórica de Diógenes e a invenção do cinismo. In: M-O. Goulet-Cazé e R. B. Branham (Orgs). Os cínicos: o movimento cínico na Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Loyola, 2007. p. 102. 18V JÚNIOR, Ruy de Carvalho Rodrigues. De Kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 23. 19V SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe, Maurício Mendonça Cardozo, Pedro Costa Rego e Ricardo Hiendlmayer. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. p. 192.
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como se a brecha do tempo novo fosse reabsorvida, e se fechasse em nova chave, inaugurando uma nova era que se poderia denominar de expectativas decrescentes” 20. Instalamo-nos então numa crise permanente tão logo tomamos consciência do que a unificação do globo terrestre realmente nos trouxe. A noção de progresso começa a entrar em declive, e passamos a entender a Terra como esse ponto zero do deslocamento ao qual se remete o movimento. No momento em que se abandonou a encosta da praia para adentrar no espaço liso de todos os mares, e a se buscar implacavelmente o coração de todas as selvas, a noção de risco emerge dessa desventura exploratória. Paulo Arantes ao buscar identificar o instante histórico em que o horizonte contemporâneo do mundo começa a turvar e encurtar descobre a lógica mesma do Novo Tempo do Mundo, ou seja, “uma sociedade do risco que acarretaria precisamente uma tremenda reversão de todos os horizontes modernos de expectativa” 21 Ao lidar com os comércios de longa distância a ideia de futuro politicamente calculável começa, pois, a ser arrastada por um inédito transcurso temporal. Por vivermos em uma sociedade que herda da civilização industrial moderna o futuro como um depósito de esperanças, o conceito de risco é central para poder pensarmos como romper com nosso passado truncado. Ora, se a dinâmica do capitalismo é articulada por uma temporalidade direcional e em ascensão, podemos cair então na sua compulsão estrutural de empurrar o presente para frente. O que ocorre é um aprisionamento do futuro, que reforça a necessidade do presente, este, em erosão. “À medida, portanto, que o globo encolhe e os horizontes temporais se reduzem a um ponto em que só existe o presente, o horizonte de desejo tende a zero” 22. Começamos então a busca pelos meios de ultrapassar esse espaço de tempo, em direção ao ainda não experimentável. Nesse nível de esterilidade encontramos no cinismo, mais sintomaticamente com Diógenes, a preparação para esse tipo de viagem incerta: sua prontidão é sua aretê. Estranho demais pra estar vivo, raro demais pra morrer. É assim que faremos uma mínima necromancia 23, prática bastante comum em filosofia, ao invocar a corporeidade cínica, no sentido em que Sloterdijk nos sugere que “acima de qualquer necessidade tal como ele se apresenta, Diógenes poderia, antes, ser considerado o protótipo daquele que se vira sozinho.” 24 Mas, se Diógenes não é nem cão, nem homem, 20V ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 67.
21V ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência . 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 55. 22V ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência . 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 75. 23V “Em sétimo lugar, fala-se de magia quando as adjurações ou invocações não se dirigem a demônios ou heróis, mas através deles às almas dos defuntos, de cujos cadáveres ou parte deles se recebem oráculos, advinhando-se e conhecendo-se as coisas ausentes ou futuras; é esta espécie de magia chamada, por sua matéria e desígnio, necromancia.” BRUNO, Giordano. Tratado da magia. Trad.: Rui Tavares. São Paulo: Martins, 2008. p. 31. 24V SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe, Maurício Mendonça Cardozo, Pedro Costa Rego e Ricardo Hiendlmayer. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. p. 222.
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nem ateniense, que raio de vida é essa? O que ele faz ao tomar as formas abstratas do homem e do cão é um movimento de dobragem dos dois, criando um protótipo e vinculando a uma força eficiente, ou seja, consegue entrelaçar natureza e vontade25. Interessamo-nos aqui na propulsão dada à ideia de protótipo na medida em vemos Diógenes como aquele que faz de si mesmo um protótipo, no sentido mais usual da palavra: aquele que se arrisca, que se põe em teste tendo em vista que o mais livre dos seres é o que tem a maior capacidade de ação. Há aqui outro modo de conectar a inteligência à felicidade e à ausência de necessidades. Como bem nos indica Sloterdijk
As épocas de crise crônica solicitam à vontade de viver dos homens que aceitem a permanente incerteza como o pano de fundo inalterável de sua busca pela felicidade. Eis o momento em que tocam os sinos do kynismos. Afinal, ele é a filosofia da vida em tempos de crise. É somente sob seu signo que a felicidade permanece possível em uma atmosfera de incerteza. Sua lição é a limitação das pretensões, a flexibilidade, a presença de espírito, a escuta do que se oferece no instante. 26
Podemos, agora, voltar ao diagnóstico que Paulo Arantes quando aponta para o obscurecimento do horizonte do mundo, sob a configuração do novo tempo, nos conduzindo a um futuro irreconhecível, inexperimentável, que “infiltrou-se no presente, prolongando-o indefinidamente como uma necessidade tão mais necessária por coincidir com um futuro que em princípio já chegou” 27. Precisaríamos encontrar um tempo ainda mais interno que conhece apenas o agora, ao invés desse presente que nos espreme no vórtex das expectativas e reminiscências? Fazer de si um protótipo é experimentar de maneira enteógena essa corporeidade contingente que se move nos interstícios do instante (Aion) “sem espessura e sem extensão que subdivide cada presente em passado e futuro, em lugar de presentes vastos e espessos” 28. Sua atitude indica uma involução, ao passo que “involuir é formar um bloco que corre seguindo sua própria linha, ‘entre’ os termos postos em jogo, e sob as 25V Para entendermos melhor esse jogo entre natureza e vontade, no sentido elencado por Giordano Bruno, quando nos diz que: “A força eficiente é dupla na sua essência: natureza e vontade. A vontade é tripla: humana, demoníaca e divina. A natureza é dupla: intrínseca e extrínseca. A natureza intrínseca é, em si mesma, dupla: a matéria, ou sujeito, e a forma, com a sua virtude natural. A natureza extrínseca é também ela dupla: é tanto a imagem da natureza, vestígio, sombra ou luz, como aquilo que sobra ou está à superfície do objeto (como o calor e a luz no Sol e noutros corpos quentes), e ainda aquilo que do sujeito emana e se escapa (como a luz, que, espalhada pelo Sol se encontra nos corpos iluminados, e o calor, que associado à luz no Sol, se encontra também nos corpos aquecidos)”. BRUNO, Giordano. Tratado da magia. Trad.: Rui Tavares. São Paulo: Martins, 2008. p. 40 – 41. 26V SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe, Maurício Mendonça Cardozo, Pedro Costa Rego e Ricardo Hiendlmayer. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. pág. 183. 27V ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência . 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014. p.77. 28V DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad.: Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2011. p. 69.
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relações assinaláveis” 29. Neste ambiente hostil e todo-poderoso a orientação desse bloco em movimento se dá, pois, na diferença entre a expectativa e a atividade: enquanto no modo de expectativa o futuro vem de encontro a ele provocando contração e recolhimento, o contrário ocorre quando este mesmo bloco se põe em atividade e passa então a obter algum controle sobre os acontecimentos. Há precisamente neste último movimento um alheamento e uma expansividade resultantes da habilidade do cinismo em esticar-se, ou seja, em sua tática de fugir do tempo e se entremear no espaço. Estar nesse presente perspectivado e repartido nos incita a buscar um lugar que não nos foi previamente designado, em que temos que inventar, achar, “imaginar um tempo do pensamento que seja sincopado e descontínuo” 30, para dizer com Bento Prado Jr. Na tentativa de olhar para alem do quadro e imaginar todo um horizonte de expectativas, podemos lançar mão de Diógenes enquanto figura da vida como esgotamento do possível, pois “se viver pode ser concebido como uma experiência do possível”, nos fala Ruy sobre a queda do tempo, “então para aquele que, em todo possível experimenta o porvir como gasto, feito, realizado, tudo é vivido como ‘virtualmente passado, e já não existem nem passado nem futuro’” 31. Paulo Arantes é preciso ao nos indicar o momento exato dessa queda em que uma geração foi marcada ao ser apartada de seu passado e privada de um futuro algures. Ora, é essa experiência social conjunta do tempo e do espaço, o sistema de vasos comunicantes entre o olho que vê ‘em perspectiva’ e o horizonte coletivo de expectativa de que participa como filho de seu tempo, que começa a entrar em colapso com a primeira grande crise sistêmica da geocultura do capitalismo histórico, a Grande Guerra de 1914 a 1918 [...]. 32
A guerra se apresenta a nós como um dever de memória, em que a lembrança se esforça em atualizar em nossos corpos a energia dessa cisão. Caímos, portanto, nessa temporalidade aberta exigida pela insônia desse pensamento constante que nos “impõe o abandono das esperanças voltadas ao por vir que não virá, e obriga a uma ruminação sem fim nem consolo sobre aquilo que não tem Outro, isto é, todas as coisas” 33.
29V DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. 1730 – Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível... I n: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 4. Trad.: Suely Rolnik. 2ª Ed. São Paulo: Ed. 34, 2012. p. 20. 30V PRADO JR., Bento. Erro, ilusão, loucura: ensaios. Comentários de Arley Ramos Moreno, Sérgio Cardoso e Paulo Eduardo Arantes. São Paulo: Ed. 34, 2004. p. 14. 31V JÚNIOR, Ruy de Carvalho Rodrigues. De Kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 33. 32V ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência . 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 70 – 71. 33V JÚNIOR, Ruy de Carvalho Rodrigues. De Kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 34.
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A nova emergência da discussão sobre o cinismo se dá por uma escolha em ajustar as pupilas e ver a vida como um rascunho incompleto e não mais como uma moldura definitiva. A vitalidade de uma existência estaria, portanto, naquilo que se pode reter durante seu incurso, por mais breve que seja, onde as perdas são as margens determinadas que balizam sua aceitação ativa do relativo. “Diógenes sustentava que a palavra ‘inválido’, devia aplicar-se não aos surdos e cegos, mas a quem não tivesse uma sacola” 34. Num mundo de riscos incalculáveis, em que o acaso e as transformações superam todo planejamento e onde as velhas ordens já não se acham à altura dos novos acontecimentos, sua existência encontra nessa fórmula uma espécie de aerodinâmica. O uso do bastão e da sacola, já não expressaria o que há de mais basilar na linguagem, ou seja, no nível da designação o sim da mão que junta e o não da mão que afasta? E seu olhar fixo isolando aquilo que é percebido não seria como uma dimensão suplementar em que o tempo é deixado em segundo plano em função de um espaço ainda mais vasto? É nesse paradoxo entre uma intensa expressividade e uma extrema mudez que “o próprio silêncio, em última análise, guarda um sentido quando os olhos falam” 35. Sua posição de anômalo lhe permite fazer um uso incomum da linguagem, entendida esta como prótese que se encontra prosteticamente instalada em nós. Vivendo como um mendigo, Diógenes recebe em contrapartida a parrhesia como “um tipo peculiar de privilégio conferido, paradoxalmente apenas pelo costume” 36 pela sociedade na qual se encontra, mas da qual não faz parte. Entendemos melhor agora a loucura específica do cinismo indicada por Platão 37, e que está relacionado à sua ecolalia, ou seja, à rima das palavras em dissonância. A nossa fala, nesse sentido, “não surge como um sopro da alma, mas é uma maquinaria combinatória que age por si mesma, além de que o aparelho fonador é um instrumento técnico instalado no corpo biológico por meio da usurpação de órgãos cujas finalidades originais não serviam à fala” 38. A contaminação que o cínico propaga é produzida do modo como se esgueira até aos ouvidos. O decisivo é sabermos que ou nos tornamos capazes de fazer um bom uso dessa prótese, ou então nos resta saber o que é isto que fala através da nossa voz, e em que tempo se expressa. Por fim, segundo o que até aqui foi dito, se vermos na ideia de protótipo, retroativamente formulada por Sloterdijk, um investimento histórico posto em marcha na antiguidade como uma aventura, e recebido por nós com urgência, podemos entender a posição de risco que ele agora ocupa. E, temporariamente, nos coloca sob um novo 34V LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego, introdução e notas: Mário da Gama. 2. Ed. Reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p. 160. 35V CAMUS, Albert. O enigma. In: Núpcias, O verão. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. p. 117. 36V BRANHAM, R. Bracht. Desfigurar a moeda. A retórica de Diógenes e a invenção do cinismo. In: M-O. Goulet-Cazé e R. B. Branham (Orgs). Os cínicos: o movimento cínico na Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Loyola, 2007. p. 118. 37V “Alguém perguntou: ‘Que espécie de homem pensas que Diógenes é?’ A resposta de Platão foi: ‘Um Sócrates demente’”. LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego, introdução e notas: Mário da Gama. 2. Ed. Reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p. 165 38V FELINTO, Erick. SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos: Vilém Flusser e o pós-humanismo. 1. Ed. São Paulo: Editora Paulus, 2012. p. 148.
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olhar para aquela decisão política quanto a que modo de vida ainda pode vir a existir, como cultivo, no terreno árido da história. Isso devido ao fato de que no cinismo existe algo que nos desvia das escalas medianas que insistimos em criar, e nos faz ver as escalas sem limites que sustenta o movimento cínico, ou seja, a luz que aciona o protótipo do cínico é aquela falada por Camus, para o qual “é necessário nos voltarmos, abandonando nossos vínculos, para encará-la de frente, e que nossa tarefa, antes de morrer, é a de procurar, por entre todas as palavras possíveis, a correta denominação dessa luz” 39 Um protótipo se metamorfoseia na sociedade da qual se originou, a saber, a sociedade que lutou a Grande Guerra, e se perpetua resistindo com um corpo que não cabe nos enunciados que se remetem a ele: ele segue sendo um conteúdo sem expressão, ou uma simbiose singular para a qual os enunciados só o encontram obliquamente. Por outro lado, segue sendo uma espécie de vislumbre coletivo, algo que todos veem, mas não conseguem exprimir em toda sua intensidade, e por não ter atingido a homeostase com o organismo social, possui um quê de assignificância. É assignificante, provavelmente porque não se pode ainda dar um rosto 40 pra que se torne déspota. E o máximo que o seu gesto mais disseminado alcança quando nos pomos a observar o devir-ciborgue das pessoas nas ruas em seus celulares consumindo a informação como se fosse a melhor das mercadorias, é o rosto do indiferente, que esboça tão somente o esgotamento e o cansaço.
Considerações finais A corrosão do humanismo pelos ares de uma brisa que se aproxima de nós em um forte compasso nos permite encontrar a capacidade distintiva de Diógenes: a de saber distinguir os instrumentos dos aliados. A modernidade nos ensinou o poder de manipular os instrumentos, e aprendemos como a razão pode ser um instrumento tão forte, ou o maior entre eles. Porém, Diógenes nos mostra como a recusa de alimentar a civilização trouxe a ele a possibilidade de encontrar nos cães os aliados que os homens não puderam ser para ele. A fórmula, nenhum homem é hipócrita em seus prazeres 41 é posta novamente em teste pelo cínico, no caráter emergente no qual a filosofia se encontra prestes a aplicaremlhe uma anestesia. Pensar o protótipo é uma maneira de reverter esse uso da técnica, inventar outra desenvoltura não programada dos corpos enrijecidos. 39V CAMUS, Albert. O enigma. In: Núpcias, O verão. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. p. 118. 40V “Não somente a linguagem é sempre acompanhada por traços de rostidade, como o rosto cristaliza o conjunto das redundâncias, emite e recebe, libera e recaptura os signos significantes. É em si mesmo todo um corpo: é como o corpo do centro de significância no qual se prendem todos os signos desterritorializados, e marca o limite de sua desterritorialização. É do rosto que a voz sai [...] O significante se reterritorializa no rosto. É o rosto que dá a substância do significante, é ele que faz interpretar, e que muda, que muda de traços, quando a interpretação fornece novamente significante à sua substância. Veja ele mudou de rosto. O significante é sempre rostificado. A rostidade reina materialmente sobre todo esse conjunto de significâncias e de interpretações [...]” DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 2. Trad.: Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia leão. São Paulo: Ed. 34, 1995. p. 68. 41V CAMUS, Albert. A queda. Trad. Valerie Rumjanek. 8ª ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. A queda, p. 51.
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De tanto recomeçar nesse caminho criamos hábitos. Acordamos um dia e nos encontramos na embaraçosa situação de possuir sem verdadeiramente desejar. Talvez seja esse o peso morto da filosofia, em que a tática do cinismo nos convida a nos despojarmos desse excesso. O antigo problema de como chegar ao entendimento sem passar pela experiência convoca o corpo a se lançar numa outra dimensão de um plano em que o pensamento aproximativo é o único gerador de real. O cinismo nos ensina a destravar uma nova perspicácia para a investigação, onde o momento do que “ainda não se entende” possa talvez criar outro horizonte para o infinito que há em nós, e outro espaço para uma experiência de outro tipo.
BIBLIOGRAFIA ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014. BRUNO, Giordano. Tratado da magia. Trad.: Rui Tavares. São Paulo: Martins, 2008. CAMUS, Albert. A desmedida na medida. Trad.: Raphael Araújo e Samara Geske. 1ª ed. São Paulo: Hedra, 2014. ______, Albert. A queda. Trad. Valerie Rumjanek. 8ª ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. _____, Albert. O avesso e o direito. Trad.: Valerie Rumjanek. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. ______, Albert. O mito de Sísifo. Trad.: Ari Roitiman e Paulina Watch. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. ______, Albert. Núpcias, O verão. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. DINUCCI, A. JULIEN, A. O Encheirídion de Epicteto. Archai n. 9, jul-dez 2012, PP. 123 – 1 3 6 . D i s p o n í v e l e m : https://ri.ufs.br/bitstream/123456789/742/1/Encheir %C3%ADdionEpicteto.pdf. Acesso em 4 de Outubro de 2016. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad.: Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2011.
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DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 2. Trad.: Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia leão. São Paulo: Ed. 34, 1995. _________, Gilles. _________, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 4. Trad.: Suely Rolnik. 2ª Ed. São Paulo: Ed. 34, 2012. DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. FELINTO, Erick. SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos: Vilém Flusser e o póshumanismo. 1. Ed. São Paulo: Editora Paulus, 2012. LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego, introdução e notas: Mário da Gama. 2. Ed. Reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. M-O. Goulet-Cazé e R. B. Branham (Orgs). Os cínicos: o movimento cínico na Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Loyola, 2007. PRADO JR., Bento. Erro, ilusão, loucura: ensaios. Comentários de Arley Ramos Moreno, Sérgio Cardoso e Paulo Eduardo Arantes. São Paulo: Ed. 34, 2004. SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe, Maurício Mendonça Cardozo, Pedro Costa Rego e Ricardo Hiendlmayer. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. ___________, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad.: José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação liberdade, 2000.
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SOBRE O CETICISMO Ruy de Carvalho Prof. UECE
O texto pretende sugerir que o ceticismo, ao longo de sua tradição, tornou possível uma compreensão de seu sentido e papel, que elege o problema da dor/sofrimento, como questões fundamentais, paralelamente àquelas relativas ao conhecimento e às ético-morais. O que proponho é a ideia de um ceticismo enquanto clínica, como potencialização da filosofia; bem como a necessidade de relacionarmos o ceticismo com a antropologia, como forma de potencialização da filosofia. Ceticismo, assim, exigiria que a filosofia se confrontasse com a clínica e a antropologia. Se a clínica pode tornar a filosofia mais potente é porque o ceticismo está mais interessado na dor e no sofrimento que o dogmatismo causa a si e aos outros, do que com o problema do fundamento, da dúvida, do método, da certeza, da justiça, da crença etc. Se a antropologia pode tornar a filosofia mais potente é porque o ceticismo está íntima e decididamente comprometido com cosmologias não redutíveis à ontologia e à metafísica clássicas. O ceticismo, mais que teoria, doutrina ou uma formação discursiva entre outras, seria sobretudo uma atitude, uma certa maneira de viver, em um mundo e com os outros, uma certa ascese, uma certa prática ou exercício em que o problema do sofrer e do fazer sofrer teriam a primazia frente à questão acerca da verdade, da crença, da certeza, do fundamento, etc. Ele, o ceticismo, compreenderia a totalidade dos mundos possíveis como perpassada por uma conflito, um agonismo sem trégua e sem termo, com o que a filosofia ver-se-ia convidada a participar e a pensar. Nem clínica normativo-prescritiva
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nem cosmologia única, o ceticismo estaria interessado numa semiologia/sintomatologia em que a anamnese cederia lugar à genealogia e em que a terapia passaria por uma psicagogia; de maneira similar, as múltiplas cosmologias, não implicando nem exigindo uma equipolência suspensiva, abririam ao ceticismo a oportunidade de uma zetesis e de uma skepsis mais complexas e, no fundo, tendencialmente infinitas. Várias foram as acusações, por assim dizer, tradicionais, feitas ao ceticismo. Este seria uma posição que revelaria: 1.
IGNORÂNCIA : Ceticismo não é filosofia porque não constitui teoria/doutrina: nem
proposição nem proselitismo, a não ser que filosofia seja algo mais que teoria! 2.
FRAQUEZA/COVARDIA : Ceticismo é reativo: sempre se é cético de alguém; o
cético não tem a “coragem da verdade”, de assumir o risco, a não ser que o problema do ceticismo não possa ser reduzido ao problema do conhecimento, da verdade! 3.
ADOLESCÊNICA DO ESPÍRITO : Ceticismo é um momento necessário no caminho
para a verdade, para o verdadeiro conhecimento, mas um momento a ser ultrapassado, a ser superado, a não ser que a velhice só combine com dogmatismo! 4.
IDIOTICE : Ceticismo é uma forma de isolamento, pois é impossível ser cético
quotidianamente: não se atravessa uma rua quando se é cético, a não ser que se tenha sorte! A não ser que ceticismo seja algum tipo de jogo e de aposta! 5.
ANTI-REVOLUCIONARIO: Ceticismo não constitui política, uma vez que sem
teoria não há programa, não há objetivos, não há razão para um engajamento. Desta forma, várias foram as leituras e as posições sobre o ceticismo: 1.
Ceticismo é uma questão epistemológica. Ceticismo e dúvida, método,
fundamentação, etc. Filosofia da subjetividade e psicologismo. 2.
Ceticismo é um câncer moral. Ceticismo e má vontade, confiança, promessa, crença,
etc. Como e por que agir em nome de nada, da dúvida? 3.
Ceticismo é sociologicamente impossível. Seria inimaginável uma sociedade de
céticos. O que cimentaria tal comunidade? A duvida, a descrença em valores, a desconfiança de todos contra todos?
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4.
Ceticismo é antropologicamente improvável. O ceticismo é totalmente inadequado
quando se trata de pensar, do ponto de vista do poder, o bárbaro, o estrangeiro, os marginais de todos os tempos......o outro. 5.
Ceticismo é politicamente conservador. Em nome de que o cético lutaria contra as
tiranias, os totalitarismos e as injustiças de todas as épocas? Não pretendo, aqui, desenvolver, nem mesmo apresentar minha posição a respeito. O objetivo aqui é apenas anunciar e enunciar aquilo que deverá ser tratado por escrito em outro lugar. Meu ponto de vista: ceticismo tem sobretudo a ver com sofrimento e com visões de mundo, daí sua relação com uma certa clínica e com a antropologia. Já venho tratando disso em um curso no mestrado em filosofia da Universidade Estadual do Ceará e em um mini-curso no VIII Encontro Nietzsche-Schopenhauer. Aqui, portanto, fica apenas o anúncio.
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