Sumário D O S S I Ê
CETI CI S M O
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Introdução: O que o ceticismo nos levou a pensar? Fabien Pascal Lins
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Hume e o ceticismo: acerca do que é mais forte que a razão Ronney César Ferreira Praciano
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Wittgenstein e a Certeza: um cético? Leonel Olimpio
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O efeito aporético na discussão sobre a justificação epistêmica Helly Lucas Barros Crispim
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Ceticismo em relação ao não-espelho: civilização x transoutridade Henrique Azevedo
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O cinismo e os protótipos de risco Bruno Pereira Cavalcanti
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Sobre o Ceticismo Ruy de Carvalho
O que o ceticismo nos levou pensar? pp. 01 – 07
O QUE O CETICISMO NOS LEVOU A PENSAR? Anais do I Encontro sobre ceticismo da Universidade Estadual do Ceará.
O
s textos aqui publicados são frutos do I Encontro sobre ceticismo da Universidade Estadual do Ceará, realizado entre os dias 22 e 25 de fevereiro de 2016, no Centro de Humanidades (CH - Campus Fátima), na cidade de Fortaleza - CE. Foi a partir de uma constatação que se resolveu promover tal Encontro. Entre debates nas salas de aulas, conversas no pátio do CH e outros esbarrões no Cantinho da Filosofia, percebeu-se que, ao apresentarem seus temas de predileção, alguns dos estudantes e professores enxergavam em perspectiva, relativizavam universais, destronavam critérios, acolhiam impressões, capturavam fenômenos, observavam equipolências e, de modo circunstancial, arriscavam-se em suspender seus juízos. Como se bom grado, mau grado, suas falas reverberassem inquietações céticas, sejam elas de ordem epistemológicas, éticas ou ainda políticas. Isso se deve, mais do que provavelmente, à influência do professor Ruy de Carvalho que há alguns anos vem nos apresentando, ora de modo histórico, ora de modo ensaístico, as diversas potencialidades que o ato de duvidar trouxe, e ainda pode trazer, à Filosofia. Entusiasmados pelo hábito do quadro de professores do nosso departamento em promover encontros acerca de filósofos consagrados, tais como, entre outros, Santo Agostinho, Benedictus de Spinoza, Giambattista Vico, Georg W. F. Hegel, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, ou, ainda, Michel Foucault; nos pareceu pertinente tentar compor com tais iniciativas, expressando publicamente as vias céticas emprestadas por alguns dos pesquisadores dessa mesma comunidade científica. Eis porque, resolvemos convidar estudantes e professores a expor, de modo amplamente livre, suas impressões e demais usos do ceticismo. Sem restringir nosso
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Encontro a um tema, período, autor(a) ou método específico, tratava-se, em suma, de perguntar aos conferencistas o que o ceticismo os levava a pensar: que problemáticas e embates ainda podiam extrair dessa postura filosófica, nascida na Grécia, por volta do IV século antes da era cristã? Ao repassar os textos para a presente publicação, verificou-se que Ronney Praciano, Leonel Olimpio e Helly Lucas inclinavam-se em adotar uma abordagem histórica da Filosofia. De modo preciso irão ora cotejar textos específicos, ora cuidar de suas fortunas ou recepções críticas. De Hume a Gettier, passando por Wittgenstein, giraremos essencialmente em torno de questões epistemológicas, intimamente entrelaçadas, no meio das quais cada autor irá de algum modo se situar, se posicionar adotando estratégias céticas. Apoiando-se na Investigação Acerca do Entendimento Humano (1748), Ronney Praciano nos apresentará a problemática enfrentada por David Hume quanto à natureza do nosso conhecimento da experiência. Embora, observa Hume, não possamos ter uma certeza demonstrativa a respeito dos fatos da realidade (dizemos “amanhã o sol nascerá”, mesmo que a possibilidade contrária não possa ser negada), nós nos asseguramos deles na experiência e os consideramos evidentes. Assim sendo, “o que nos determina a contar com o que ainda não é”? Ou, segundo a bela fórmula empregada por Ronney: “o que nos impele inexoravelmente ao porvir”? Abordando o problema do conhecimento da experiência sob o prisma da linguagem, Leonel Olímpio partirá das objeções de Ludwig Wittgenstein (Sobre a certeza, ~1949-51) aos argumentos avançados, notadamente por George E. Moore (A defesa do senso comum, 1925), acerca da existência de “verdades empíricas das quais não se pode duvidar”. A partir dessa querela, Leonel se perguntará em que medida a distinção operada pelo filósofo austríaco entre certeza e conhecimento revelar-nos-ia a pretensão do mesmo em adotar uma postura epistemológica suspensiva. Se para Wittgenstein “precisamos antes de duvidar, saber se faz sentido duvidar”, não seria ele, indaga Leonel, um filósofo que “duvida da dúvida” e que, por conseguinte, assumiria um modo investigativo de cunho “metacético”? Atento aos filósofos contemporâneos que consideram ser a pergunta acerca da justificação epistêmica preliminar à própria pergunta sobre a natureza do conhecimento, Helly Lucas irá, por sua vez, mapear algumas tentativas recentes de resolução do chamado “problema de Gettier”. Partindo do artigo “Is Justified True Belief Knowledge?”(1963), no qual Edmund Gettier procura refutar a definição tradicional do conhecimento (a “DTC” como crença verdadeira justificada), Helly tencionará determinar se, ao procurarem assegurar a “infalibilidade da justificação epistêmica das crenças” para solucionar o “problema de Gettier”, os epistemólogos coerentistas, fundacionistas, internistas e externistas nos apresentariam teses aptas a resistir aos assédios de argumentos céticos, tais como os de regresso ao infinito e de circularidade.
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Noutras palavras, pergunta Helly, em que medida seria viável assentar a existência de um critério último e, portanto, não aporético para a justificação? Concomitantemente ao ceticismo epistemológico até então delineado, Henrique Azevedo, Bruno Cavalcanti e Ruy de Carvalho, autores dos três textos seguintes, abordarão temas mais explicitamente cosmológicos, antropológicos, éticos, econômicos ou, ainda, políticos. Veremos, ademais, que optaram por redigir textos de cunho ensaísticos, em que os filósofos serão antes convocados como aliados e suas teses, como caixas de ferramentas, manejadas para enfrentar questões preferencialmente contemporâneas. Diagnosticando que o “ocidente greco-romano-cristão é cético em relação ao não espelho” e, por conseguinte, patologicamente narcísico, Henrique Azevedo não irá perguntar se é possível, ou se é mesmo preciso, pensar o outro “sem partir ou chegar a nós mesmos”, pois, como frisa, ainda seriam maneiras de formular questões que “não passam de reverberações do modo europeu de se perguntar sempre por si mesmo”. Aspirando, à luz de suas leituras de Pierre Clastres e Viveiros de Castro, descolonizar pensamentos e modos de vida eurocentrados, Henrique perguntará, tanto a si mesmo, quanto aos seus leitores: o quão seríamos “capazes do outro”? Dito de modo mais preciso, tratar-se-á de saber até que ponto seria possível exercitar aquilo que Henrique denomina de transoutridade, isto é: a faculdade de enxergar o outro sem “sacralizar a si mesmo como grande espelho do cosmos”, envolvendo-se, pois, num processo de “desesgoistização” capaz de “reinventar todo o nosso ordenamento social”. Bruno Cavalcanti irá, no que lhe concerne, partir de um primeiro diagnóstico: tudo parece indicar que o capitalismo, enquanto “geocultura de legitimação” do humanismo como narrativa, já tenha perdido sua validade. Na esteira de Paulo Arantes, atentará para o modo segundo o qual nossa “nova era de expectativas decrescentes” reconfigura e se impõe aos desejos. Noutro termos, frente ao encolhimento do globo e a redução dos horizontes temporais ao momento presente: “o horizonte de desejo tende a zero”. Isso posto, Bruno nos apresentará um segundo diagnóstico. Partindo, dessa vez, de suas leituras de Peter Sloterdijk e Ruy de Carvalho, constatará que: “o cinismo enganchado na história das ideias aparece na contemporaneidade como indicador de uma crise da cultura em declive com as contradições do mundo capitalista”. Se assim for, de que modo o cinismo contemporâneo configuraria “um novo tempo” e nos conduziria “a um futuro irreconhecível, inexperimentável”? Estaria a vida cínica apta a “encontrar um tempo ainda mais interno que conhece apenas o agora, ao invés desse presente que nos espreme no vórtex das expectativas e reminiscências”? Para Bruno, tratar-se-á, em suma, de expor as estratégias que o cínico - esse filósofo das crises - adota para “reorientar o curso da sua existência” e, com isso, poder “fugir do tempo e se entremear no espaço”. Por ter, muito recentemente, assumido a Direção dos onze cursos que compõem o Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará, Ruy de Carvalho teve de Volume 5 no 2
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“desafiar o ser” para, de algum modo, contribuir à presente edição. Não podendo, frente aos “ossos do ofício”, transcrever a fala por ele proferida durante o Encontro sob a forma de artigo, resolveu nos brindar com algo que se assemelharia a uma carta de intenções ou, como ele mesmo define, a um tipo de soluço ou de síncope. Ruy nos apresentará, pois, as premissas de um artigo ainda não escrito, os pontos de partida de um projeto há muito ruminado. Evitando reduzir o ceticismo ao cerco epistemológico e procurando enfrentar as críticas tradicionalmente direcionadas à vida cética - considerada inviável e/ou conformista - Ruy acentuará as tonalidades “clínicas” e “antropológicas” dessa postura filosófica. O ceticismo seria clínico, porque “mais interessado na dor e no sofrimento que o dogmatismo causa a si e aos outros”; antropológico, porque comprometido com “uma certa maneira de viver, em um mundo e com os outros, em que o problema do sofrer e do fazer sofrer teriam a primazia frente à questão acerca da verdade, da crença, da certeza ou ainda do fundamento”. Apesar das diversas abordagens e problemáticas aqui enunciadas, constatou-se que os autores foram particularmente sensíveis às incidências da(s) experiência(s) no âmbito do conhecimento e, por extensão, da ética. Ronney, Leonel e Helly irão, cada um à sua maneira, realçar os limites que os hábitos, as crenças, os consensos, os sentidos e as singularidades irredutíveis de cada “objeto de conhecimento” afixam às pretensões da razão humana em: determinar aprioristicamente os fatos, saber absolutamente (inclusive por meio da linguagem) e encontrar uma definição universal do conhecimento. De outro lado, antes de recorrer ao arsenal cético para frisar as “indeterminações”, os “silêncios” ou as “aporias” que as experiências parecem “impor” às tentações absolutistas, Henrique, Bruno e Ruy se esforçarão em fazer das percepções fenomênicas um meio de pensar e, por conseguinte, de agir no mundo. Mais do que precariedades epistemológicas, serão potências éticas que, no cerne das experiências, procurarão entrever e destacar. Henrique encontrará nos costumes e pensamentos de alguns povos ameríndios sul-americanos expressões notáveis, encarnações factuais e parciais do conceito de transoutridade por ele proposto. Bruno irá associar a vida cínica à capacidade de fazer de si mesmo um protótipo, que atua arriscando-se nas circunstâncias disponíveis no agora. Por fim, o ceticismo clínico e antropológico anunciado por Ruy procurará tornar a filosofia potente, desde que motivado pela percepção dos sofrimentos, pelo perscrutar dos afetos tristes, produzidos por aquilo ou aqueles que santificam os suplícios. Em todos os casos, tudo se passa como se os autores não apenas se esforçassem em “seguir os fenômenos”, para falar como Sexto Empírico, mas em permanecer igualmente no espaço e no tempo que lhes são próprios. Sem propor nenhuma “porta de saída”, seja ela transcendente ou imanente, suscetível de reduzir o múltiplo ao uno e de neutralizar a variabilidade dos dados fenomênicos, os autores persistem, numa forma sadia de “teimosia”, em habitar a Terra. Recusam-se em dissociar o filosofar da vida experienciada e, como já entrevemos, nutrem-se para escrever: da força do hábito, das consequências dos consensos, da peculiaridade dos objetos, das diversidades
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cosmológicas, das oportunidades circunstanciais e, por fim, dos estímulos dos afetos nos corpos, logo no pensar. Alheios às grandes sínteses disjuntivas, todos parecem aqui cevar uma aproximação entre razão e experiência, isto é: compor uma relação em que ambos os conceitos não se excluam, porém se abasteçam, retroalimentem-se num embate sem fim. Em conversas que mais alongam do que cerceiam, forjam diálogos sem vencedores e vagueiam num tempo aiônico, tensional e insolúvel, que força ao incessante descentramento de si, à contínua descrença no mesmo e no absoluto. Fazendo da escrita um exercício de resistência à idolatria do eu, tudo indica que tendem a declinar o convite feito, ou imposto, pelas visões polarizadas do mundo. Resolveram, pois, não escolher entre A ou não-A, amigo ou inimigo, civilizado ou bárbaro, bem ou mal, verdadeiro ou falso, racional ou empírico, razão o u experiência... No lugar de advogar por partidos, escolas, conceitos ou teorias puras, os autores aqui expostos parecem ter encontrado, ou estar à procura, de uma maneira de “sujar as mãos”: trabalham as contradições demorando-se em seus pântanos, percorrem as tensões sem delas se furtar por meio de resoluções. Algo como uma tentativa de se filosofar espreitando fenômenos, capturando o diverso e ocupando o agôn para, no fundo, (re)inventar problemas. E la nave va…
Gratulações diversas: Para fazermos nossos devidos agradecimentos será preciso mencionar, brevemente, o contexto político em que ocorreu nosso I Encontro sobre o ceticismo. Realizado durante um período particularmente tenso e, portanto, igualmente rico, do Campus Fátima, que passava, como muitos diziam, por uma “crise institucional” envolvendo tudo e todos; promover qualquer tipo de atividade acadêmico-cultural, usufruir do auditório ou, de modo mais elementar, simplesmente “dar aula”, já não eram práticas assim tão evidentes ou, até mesmo, “toleradas”. Eis porque, nos apressamos em expressar nossa profunda admiração aos atuais coordenadores do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará. Sem jamais ceder aos clamores do autoritarismo e isentos de qualquer cacoete dogmático, os coordenadores e professores Eliana Sales Paiva e João Emiliano Fortaleza de Aquino demonstraram o quão, para eles, as Filosofias - para além de suas vertentes e manifestações específicas - mereciam espaço, eram dignas de serem ouvidas, acolhidas e, como se espera de um Centro de Humanidades, criticadas pelos “transeuntes” do Campus Fátima. Pela sensibilidade e determinação em garantir o devido amparo institucional ao nosso Encontro, transmitimos nossa gratidão. Contando com uma equipe experiente e por demais competente, agradecemos evidentemente os funcionários, estudantes e pesquisadores que, sempre
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compromissados com as atividades acadêmicas e culturais do CH, participaram de modo decisivo à organização e divulgação do presente Encontro. Obrigado àqueles que conosco navegaram, entre outros: Beatriz Lima, Clara Kevilla, Daniella Matias, Emília Lira, Erika Raianny, Maria Antônia Pinheiro, Suzana Magalhães, Stella Maris, Thaís Cruz, Valeria Raulino, Emídio Neto, Ivan Braga, Paulo Henrique Silva, Paulo Lima, Samuel Fonteles e Samuel Prado. Pela cumplicidade mágica e insistência em fazer perguntas exigentes, quando não, endiabradas durante os debates (e outros embates), queríamos aproveitar a oportunidade para saudar @s inesquecíveis: Amanda de Melo, Ana Carolina, Anne Helen, Anninha Fernandes, Beatriz Martins, Catarina Silver, Dara Reis, Elane Fideles, Irlana Melo, Isadora Paiva, Julia Catharina, Karol Rodrigues, Luiza Ferreira, Mariana Lacerda, Marry Antoine, Natyelle Martins, Palloma Soares, Viene Ferreira, Adriano Cardoso, Alexandro Mendes, Álvaro Lins, Bergson Melo, Breno Mendes, Carlos Henrique, Cesar Freitas, Djibril Perreira, Dju Livam, Dovale Iago, Edson Sá, Emanuel Machado, Fábio Rodrigues, Felipe Coelho, Felipe Castro, Henrique Garrel, Jaderson Nobre, Igor Mateus, Jair Soares, Lailson Fernandes, Leandro Ordnael, Natan Oliveira, Paulo Jorge Leandro, Pedro Henrique Magalhães, Leonardo Nascimento, Leonardo Pinheiro, Lucyen Franco, Matheus Rodrigues, Mario Castro, Pedro Henrique, Robson Breno, Rodrigo Noronha, Samuel Acácio, Wellington Coelho, Ygor Barros e tantos outros que vitalizam e viralizam tudo que tocam. Congratulamos os conferencistas que, de maneira espontânea e decidida, atenderam ao nosso convite. Estejam certos de que a qualidade ímpar de suas investigações tem sido, para nós, de suma importância. Pela beleza do gesto e generosidade das falas agradecemos, pois, todos que se dispuseram a remanejar seus textos para a presente publicação, assim como aqueles que, como eu, não puderam fazêlo a tempo, por motivos diversos e compreensíveis. Obrigado, pois, aos que, num contágio alegre, nos presentearam com as seguintes falas: Airton Uchoa ( “O ceticismo malandro de Brás Cubas” ), Bruno Cavalcanti ( “O Cinismo e o uso das próteses” ), Felipe Rocha ( "Montaigne e o ceticismo na Apologia de Raymond Sebond” ), Glauber Holanda ( “ΣΚΕΨΙΣ (SKĒPSIS): os céticos como grandes intelectos da história da filosofia” ), Helly Lucas ( "O efeito aporético na discussão sobre a justificação epistêmica" ), Henrique Azevedo ( "Céticos em relação ao não espelho: civilização x transoutridade!" ), Leonel Olímpio ( "Wittgenstein e a Certeza" ), Ronney Praciano ( "Hume e o ceticismo" ) e Ruy de Carvalho ( "Que política para o cético?” ). Não podíamos deixar de agradecer a professora Ilana Viana do Amaral que, em meio ao turbilhão de afetos durante o qual o Encontro se deu, teve a sagacidade de dar início, nesse mesmo período, ao “Transpassando” (Programa de Formação de Travestis e Pessoas Transgêneras, PROEX-UECE). Inserindo no âmago do Campus Fátima aquilo que consideramos ser um, mais do que saudável, polo de resistência ao discurso do ódio, Ilana soube oxigenar nossos ares. Pesquisadores que, como nós, encontram-se em maior
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ou menor grau animados por uma verve cética e que, portanto, são particularmente sensíveis a questões postas pela diversidade dos “usos e costumes”, solidarizam-se alegremente com tais estratégias de recusa e desnorteio de práticas excludentes que rondam, senão, estruturam nossas Instituições. O professor Eduardo Nobre Braga será aqui uma menção incontornável. Bárbaro saltitante, cuja nobreza se expressa na lucidez de um olhar afiado e cirúrgico, Braga tem sido um personagem conceitual - vertiginoso e potente - do Campus Fátima. Desarmando, com a delicadeza da Loucura erasmiana, todo discurso prêt-à-porter saturado por consolos metafísicos e outras “boas intenções” -, Braga soube bailar entre afetos, conseguiu deslocar perspectivas, curto-circuitar dogmas e propulsar o Curso de Filosofia a maquinar uma respiração própria; a experimentar - ocupando o “aqui e agora” - um futuro sem rosto, irreconhecível. Pela vida insuflada, um beijo Eduardo! Dedicamos a presente edição ao quadro dos professores do Centro de Humanidades da Uece, cujos ensinos e iniciativas nos inspiram diariamente. Como forma de reconhecimento, transmitimos nossos sinceros agradecimentos aos(às) professores(as): Adriana Barros, Cristiane Maria Marinho , Laura Tey Iwakami, Maria Terezinha de Castro Callado, Marly Carvalho Soares, Sylvia Peixoto Leão , Viviane Magalhães Pereira , Alberto Dias Gadanha, Alexandre de Moura Barbosa, Antônio Glaudenir Maia Brasil, Antonio Vieira da Silva, Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Estenio Ericson Botelho de Azevedo, Francisco Auto Filho, Francisco Luciano Teixeira, Francisco Venceslau de Oliveira, Itamar Lopes de Azevedo, João Bosco Rodrigues, José Expedito Passos Lima, Luís Alexandre Dias do Carmo e Regenaldo Rodrigues da Costa. Por último, mas não menos importante, gratificamos os membros do Apoena (Grupo de Estudos Schopenhauer – Nietzsche), por ter-nos concedido espaço em sua Revista Lampejo e, como sempre, apoiado incondicionalmente. Pela confiança, competência e relevância da Revista Lampejo para o presente contexto intelectual, cumprimentamos calorosamente: Herlany Siqueira, Luana Diogo, Marília Bezerra, Átila Monteiro, Daniel Carvalho, David Barroso, Gustavo Costa, Gustavo Augusto, Henrique Azevedo, Paulo Marcelo Brito, Pedro Moura, Rogério Moreira, Ruy de Carvalho, Thiago Mota e William Damasceno. A tod@s, o nosso muito obrigado!
Fabien Pascal Lins Doutorando em Filosofia (Unicamp – Bolsista Capes). Coordenador do I Encontro sobre ceticismo da Universidade Estadual do Ceará e Organizador da Edição Especial da Revista Lampejo: O que o ceticismo nos levou a pensar? Anais do I Encontro sobre ceticismo da Universidade Estadual do Ceará. E-mail: fabienlins@hotmail.com
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HUME E O CETICISMO: ACERCA DO QUE É MAIS FORTE QUE A RAZÃO Ronney César Ferreira Praciano * Resumo: O presente artigo tem por objetivo elucidar, a partir do pensamento de David Hume (1711-1776), a natureza dos nossos conhecimentos sobre os fatos. Desde a própria definição de um fato, ou, melhor dizendo, do juízo sobre o mesmo; até o critério de distinção que comumente fazemos entre as ideias do juízo (tomadas como espelhos dos fatos) e as ficções da imaginação (consideradas objetos da fantasia). Apoiando-se sobre a Investigação Acerca do Entendimento Humano (1748), este trabalho percorrerá a problematização tecida por Hume no que se refere à base dos nossos raciocínios factuais. Enfatizar-se-á três fatores centrais que possibilitam o conhecimento da experiência, são eles: a conjunção constante de objetos semelhantes; o costume ou hábito; e por fim, mas não menos importante, a crença. Tais elementos serão considerados a fim de compreendermos como a relação causal, que está na base de nossas proposições factuais, não pode ser determinada a priori pela razão, mas sim por um instinto natural de imperativa autoridade. Palavras-chave: Relação causal. Crença. Costume. Razão. Experiência.
Hume and scepticism: on what is stronger than reason
*Y Professor mestre: substituto/temporário (UECE). Email: ronneycesar90@hotmail.com Volume 5 no 2
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Abstract: This article pretends to elucidate, based upon the David Hume (1711-1776)’s philosophy, the very nature of our knowledge about facts. Since the proper definition of a fact, or, explaining better, the judgment of itself; to the distinguishing criterion that is generally made between the ideas of judgment (considering themselves as reflections of the facts) and the fictions of imagination (merely thought as objects of fantasy). Relying on the Enquiry Concerning Human Understanding (1748), this paper will cover the problematic treatment made by Hume about the basis of our factual reasonings. It will emphasize the three central factors that enable the knowledge of experience, they are: the constant conjunction of resembling objects; the custom or habit and, lastly but not less important, the belief. These elements shall be considered in order to comprehend that the causal relation, that is in the basis of our factual propositions, cannot be determined a priori by reason, but by a natural instinct of imperative authority. Key-words: Causal relation. Belief. Custom. Reason. Experience.
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que nos dá uma segurança sobre os supostos fatos da realidade? O que nos determina a contar com o que ainda não é e, estritamente falando, nem sequer o foi? Em outras palavras, o que nos impele inexoravelmente ao porvir? Para Hume, esse deve ser um problema importante ao filósofo já que foi pouco cultivado tanto pela filosofia antiga, quanto moderna. Assim, a questão a ser tratada aqui consiste em dar um passo atrás da própria experiência, visando investigar sobre quais fundamentos ou princípios se assentam a nossa certeza e expectativa sobre o curso das coisas. Desse modo, tendo em vista, contudo, apenas entender o que afinal nos assegura a dar um passo a frente à própria experiência. O presente artigo tem por objetivo elucidar, a partir do pensamento de David Hume (1711-1776), a natureza dos nossos conhecimentos sobre os fatos. Desde a própria definição de um fato, ou, melhor dizendo, do juízo sobre o mesmo; até o critério Texto de distinção que comumente fazemos entre as ideias do juízo (tomadas como espelhos dos fatos) e as ficções da imaginação (consideradas objetos da fantasia). Apoiando-se sobre a Investigação Acerca do Entendimento Humano (1748), este trabalho percorrerá a problematização tecida por Hume no que se refere à base dos nossos raciocínios factuais. Enfatizar-se-á três fatores centrais que possibilitam o conhecimento da experiência, são eles: a conjunção constante de objetos semelhantes, o costume ou hábito e, por fim, a crença. Tais elementos serão considerados a fim de compreendermos como a relação causal, que está na base de nossas proposições factuais, não pode ser determinada a priori pela razão, mas sim por um instinto natural de imperativa autoridade.
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1. O Conhecimento dos Fatos Dentre todos os objetos passíveis de conhecimento, podemos dividi-los em dois gêneros distintos, a saber, ou como relações de ideias (relations of ideas), ou como questões de fato (matters of fact). Um dos aspectos relevantes do ceticismo de Hume reside na concepção de que, no diz respeito aos fatos da experiência, qualquer um deles seja possível na medida em que for concebível pelo pensamento. Se pudermos conceber sem contradição um fato qualquer (garantir a possibilidade lógica de sua existência), então é possível que ele corresponda à realidade. Isso implica que, no que diz respeito aos fatos, não podemos excluir uma possibilidade, na medida em que ela não é autocontraditória. Por exemplo, não é autocontraditório pensar que tomar um copo d’água pode me asfixiar, ou aumentar minha sede em vez de matá-la. Todos esses exemplos são igualmente viáveis do ponto de vista lógico e podem, por isso, vir a ser de fato. Assim, nosso conhecimento factual (que lida com questões de fato) tem de sempre conceder às variedades dos fatos um lugar pelo menos possível. Ademais, com base nesse raciocínio, mesmo um fato oposto a outro, não sendo em si mesmo contraditório, pode ser sempre levado em consideração, ou seja, pode sempre estar de acordo com a realidade. Posso conceber sem contradição que ao me aproximar do fogo meu corpo se esfrie cada vez mais ao invés de se aquecer. Também posso considerar sem contradição que caiam bolas de fogo das nuvens pesadas que se aproximam ao invés de gotas de água. Desse modo, podemos dizer que o contrário de um fato é sempre possível, ou seja, na medida em que ele não implica numa contradição evidente ao pensamento, pode estar em consonância com a experiência. O contrário de um fato qualquer é sempre possível, pois, além de jamais implicar uma contradição, o espírito o concebe com a mesma facilidade e distinção como se ele estivesse em completo acordo com a realidade. Que o sol nascerá amanhã é tão inteligível e não implica mais contradição do que a afirmação que ele nascerá. Podemos em vão, todavia, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma contradição e o espírito nunca poderia concebê-la distintamente.1 Diferentemente, no que diz respeito às relações de ideias (o outro gênero do conhecimento), podemos falar de uma certeza demonstrativa. As relações de ideias consistem, de modo geral, nos raciocínios matemáticos que implicam em provas e demonstrações, extraindo daí um conhecimento certo e evidente. Tal conhecimento não necessita comprovar-se em fatos, ao contrário, ele se desenvolve pela simples operação do pensamento, procedendo conforme o princípio de não contradição. No caso das proposições aritméticas e geométricas, o contrário de uma relação de ideias será sempre e necessariamente contraditório ao pensamento. Que 4 vezes 5 é igual à metade de 40 exprime uma certeza demonstrativamente certa. Qualquer outra possibilidade é banida como equivocada ou contraditória em relação os termos da 1Y HUME, David. Investigação Acerca do Entendimento Humano. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo. Nova Cultural Ltda 2000, p. 48. Faremos referência à obra a partir de então como (IEH).
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equação. Ora, como vimos acima, é justamente essa certeza e evidência que não estão presentes nos juízos sobre os fatos. Sempre podemos pensar um fato contrário a outro sem que implique numa contradição necessária ao pensamento, sendo então possível que as coisas sejam como as concebemos. Afinal, ninguém pode demonstrar a falsidade de um fato concebível. No entanto, de modo geral, dentre todas as possibilidades logicamente viáveis, apenas algumas ou uma delas exercem uma influência mais poderosa sobre nosso entendimento, determinando assim nosso juízo factual. Inclinamo-nos para uma possibilidade no âmbito da experiência, embora, considerada em si mesma, ela não tenha mais consistência que qualquer outra igualmente concebida. Dizemos: amanhã o sol nascerá, mesmo que a possibilidade contrária não possa ser negada. Nesse caso, tal proposição parece evidente e nos dá segurança sobre a realidade de um fato da experiência, mesmo que seu conteúdo não esteja ainda ao alcance dos nossos sentidos e nem sequer já tenha sido um registro em nossa memória. Embora não possamos ter uma certeza demonstrativa sobre os fatos, nós nos asseguramos deles na experiência e os consideramos evidentes. Portanto, torna-se forçosa a pergunta: qual é a natureza dessa evidência quanto aos fatos? Hume sugere: “Todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na relação de causa e efeito. Apenas por meio desta relação ultrapassamos os dados de nossa memória e de nossos sentidos”.2 Consideremos então essa relação.
2. A Relação Causal O raciocínio causal é a operação do entendimento que nos leva a transpor os limites de nossas sensações atuais e dos registros de nossa memória. E, ainda mais, quando inferimos de um fato presente, outro ausente, nós supomos que haja entre eles uma conexão. É por meio da causalidade que estendemos nossas expectativas ao futuro, que ajustamos meios para a consecução de certos fins, que também somos auxiliados a extrair de algo aquilo que esperamos dele obter. Devido a isso, a relação causal entre ideias revela-se imperiosa na natureza humana. Alcançamos aqui uma segurança quanto aos fatos, eles não são simplesmente possíveis, ao contrário, parecem a nós certos ou evidentes. Assim, se a certeza que temos sobre a experiência se baseia no raciocínio causal, cabe perguntar como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito. Antes de tudo, e aqui notamos o ceticismo de Hume, tal conhecimento não deriva da razão a priori, mas inteiramente da experiência que nos apresenta uma conjunção constante de fenômenos3. Ou seja, extraímos conclusões causais de objetos após ter 2Y (IEH, p. 49). 3Y No instrutivo livro de Plínio J. Smith, a questão é colocada de modo disjuntivo, o que ilustra muito bem a conclusão humeana: “O argumento tem duas premissas, uma disjuntiva e outra negativa: Ou é a razão ou é a experiência o fundamento do raciocínio causal e Ora, não é a razão. Chegamos, por silogismo disjuntivo, à conclusão de que, portanto, a experiência é o fundamento do raciocínio causal”. SMITH, Plíno Junqueira. O Ceticismo de Hume. Edições Loyola. São Paulo:1994, p. 80.
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experienciado em várias situações semelhantes, percepções semelhantes, uma dando lugar à outra no curso da experiência. Assim, nenhum homem teria a capacidade, prescindindo da experiência dessa conjunção costumeira, de saber quais causas ou efeitos estariam ligados a um objeto. Não se trata aqui de uma descoberta da razão que, operando em caráter puro, poderia inferir o que ocasionou algo e/ou o que ele, por sua vez, seria capaz de ocasionar, independentemente da observação de casos semelhantes já decorridos. Apresente-se um objeto a um homem dotado, por natureza, de razão e habilidades tão fortes quanto possível; se o objeto lhe é completamente novo, não será capaz, pelo exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis, de descobrir nenhuma de suas causas ou efeitos [...] Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, tanto as causas que o produziram como os efeitos que surgirão dele; nem pode nossa razão, sem o auxílio da experiência, jamais tirar uma inferência acerca da existência real e de um fato.4 Restringindo-nos, portanto, aos limites da experiência, não podemos afirmar que a estrutura fundamental de um objeto nos seja revelada. Que possamos penetrá-lo nos seus constituintes essenciais, de modo a obter daí o total conhecimento de suas causas e efeitos a priori. Além do mais, das qualidades sensíveis que percebemos de um objeto, não temos condições de saber sobre os seus supostos poderes ocultos. Não há nenhuma conexão cognoscível entre qualidades e poderes. Ao observar pela primeira vez um objeto, em vão tentaríamos inferir o que ele poderia ocasionar, como base apenas na observação de suas aparências sensoriais. As puras operações da razão nada fariam nesse caso. Depuradas da experiência, elas não poderiam nos fornecer jamais o conhecimento da relação causal. Por outro lado, causa e efeito são termos que não são idênticos e nem sequer se assemelham de modo algum. “Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela”. 5 Não há nada no efeito que me leve à causa, nem pelo mais minucioso exame. O pensamento pode inclusive considerá-los independentemente um do outro já que “Tudo que é distinto é distinguível; e tudo que é distinguível é separável pelo pensamento ou imaginação”. 6 Sendo assim distintas, a existência da causa não implica na do efeito e vice-versa. Desse modo, não poderíamos a partir de um dos termos inferir o outro, pois não há relação necessária entre eles. Além do mais, se concebermos que na filosofia de Hume as relações são exteriores aos termos7, então a causalidade não pode ser determinada a partir da consideração dos objetos (percepções) em si mesmos. As ideias não implicam relações, ou seja, o calor não 4Y Ibid, p. 50. 5Y Ibid, p. 51. 6Y HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Déborah Danowski. São Paulo. Unesp: 2000. Sinopse, p. 672. Faremos referência à obra como (TNH). 7Y Em seu livro Empirismo e Subjetividade de 1953, Gilles Deleuze considera essa proposição como um princípio da filosofia associacionista de Hume. Diz ele: “o associacionismo é a teoria das relações na medida em que estas são exteriores às ideias, isto é, na medida em que dependem de outras causas”. DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. Tradução de Luiz Orlandi. Editora 34. São Paulo: 2012, p. 127.
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necessariamente está implicado no fogo, de modo que tais termos seriam essencialmente relacionados. A relação, ao contrário, é estabelecida a posteriori, e não implica nenhuma necessidade. A priori, nada em um evento sugere a existência de outro, e sua concepção deve ser inteiramente arbitrária já que todas as possibilidades são igualmente concebíveis, portanto, passíveis de ser factuais. Daí se concluir que não são nossos puros raciocínios que nos fazem dar preferência a um dos objetos em questão, já que nenhum destes é mais ou menos contraditório ao pensamento do que o outro. Em suma, todos os nossos raciocínios sobre os fatos fundamentam-se na relação de causa e efeito; é por meio dessa associação que estendemos nossas expectativas ao porvir. Embora tais inferências tenham por base a experiência, mesmo depois de experienciar arranjos causais nos fenômenos, nossas conclusões não se fundam sobre qualquer raciocínio ou operação do entendimento. Ao observarmos qualidades sensíveis que têm se mostrado constantemente conjugadas na experiência, não podemos inferir delas os seus poderes ocultos, por qualquer circunspecção de suas naturezas. Não descobrimos nenhuma conexão necessária entre os objetos que nos aparecem relacionados na experiência. As qualidades últimas e “essenciais” dos fenômenos nos são inacessíveis. O pão que nos alimenta (conjunto de qualidades sensíveis) não necessariamente alimenta outro animal. Portanto, não podemos dizer que essencialmente tais qualidades teriam tais poderes nutritivos. Tudo o que percebemos são qualidades sensíveis semelhantes que se sucedem em circunstâncias semelhantes. Mesmo que essa sucessão ocorra repetidas vezes, é importante notar que não há nos fenômenos sucessivos acréscimo de informação que forneceria a nós um elemento adicional, responsável por nos dispor favoravelmente a tirar daí a inferência. As sucessivas aparições contêm, nelas mesmas, tanto conteúdo quanto a primeira. Não há nada a mais nos fenômenos sucessivos semelhantes que assegure minha inferência. No entanto, se algo não muda ou é acrescido nas qualidades sensíveis semelhantes, ainda assim há uma mudança que possibilita a inferência - caso contrário, não precisaríamos das experiências para fortalecer nosso juízo, já o faríamos desde a primeira aparição, o que é um absurdo - essa mudança, consequentemente, não está no objeto enquanto tal, mas sim no sujeito.8 Da experiência e observação da conjunção constante, a mente extrai uma conclusão. Ela se estende para além do que lhe aparece, e supõe que de objetos semelhantes em aparência sucederão efeitos semelhantes, imaginando entre eles uma conexão inexplicável e um obscuro poder oculto na suposta causa. Nessa altura, vemos 8YAcreditamos que há aspectos objetivo e subjetivo da causalidade conforme a explicação humeana. A conjunção constante é um fator objetivo, no sentido de que seus elementos parecem vir à mente independentemente da disposição do sujeito. Por sua vez, o hábito é formado na imaginação sendo, porém, uma espécie de espelhamento da conjunção costumeira. Desse modo, embora seja formado na mente, o hábito tem um caráter objetivo devido à sua reprodução da experiência dos objetos. O aspecto sugerido por nós como subjetivo, tendo por fonte principalmente a subjetividade (aquilo que não aparece na experiência da conjunção constante e nem simplesmente a reflete) é o fator da crença que vem reforçar decisivamente as ações e os raciocínios causais.
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“que o espírito tira uma consequência; que deu um certo passo; que há um processo do pensamento e uma inferência que necessitam de uma explicação”.9 Ora, esta inferência de objetos na experiência, baseia-se na forte tendência de que o futuro assemelhar-se-á ao passado. Aqui, o sujeito vai além da experiência, tanto atual quanto decorrida. Ele acrescenta algo a ela que ela mesma não o autoriza. Desse modo, a mente se estende no tempo, se inclina, espera e conta com aquilo que ainda não é. A expectativa é de que posso esperar poderes similares a partir de qualidades sensíveis similares. O problema é que não há nenhum processo do raciocínio a priori que me certifique disso. Daí, ser necessário ao filósofo saber qual o fundamento dessa inferência.
3. Costume e Crença Embora possamos concordar que não há qualquer base racional para as nossas inferências causais sobre os fatos, nós ainda assim realizamos tal operação. Logo, deve haver outro princípio forte e decisivo que nos determina a tirar tal conclusão. Para Hume, este princípio é o costume ou o hábito. Trata-se de um princípio da natureza humana que é perfeitamente inteligível e perceptível em seus efeitos. Diz Hume: “o costume é o último princípio que podemos assinalar em todas as nossas conclusões derivadas da experiência [...] O guia da vida humana é o costume e não a razão”.10 É o hábito, portanto, que nos permite distinguir as ficções das crenças, as fantasias da imaginação dos juízos do entendimento. É o costume que faz pender nosso assentimento de hoje de que o sol amanhã nascerá, e a tomar o contrário disso como fantasia. O costume envolve e condiciona a crença que temos sobre os fatos da experiência. Ele assim procede com base na conjunção constante de eventos similares experienciados no passado. Falando mais claramente, quando cremos num fato? Quando, frente a uma percepção atual dos sentidos ou um dado da memória (que ao ser trazido à consciência é atualizado), somos guiados pelo hábito, com base nos casos passados, a antecipar o seu acompanhante usual que está relacionado à percepção atualmente representada ou percebida. “Toda crença em matéria de fato e de existência real, procede unicamente de um objeto presente à memória ou aos sentidos e de uma conjunção costumeira entre esse e algum outro objeto”.11 É com base na percepção presente e na conjunção constante experienciada que o costume age, antecipando junto ao fato atual a ideia a ele tantas
9Y (IEH, p. 54). 10Y Ibid, p. 61. Arriscamo-nos a interpretar que, sendo o costume o princípio que nos leva a raciocinar e agir em meio aos fatos da experiência, tal concepção pode ser analogamente levada ao âmbito da sociedade humana, assumindo assim dimensões não apenas psicológicas, mas também sociológicas ou culturais. O que nos justifica a tecer esse comentário é que, para Hume, a própria natureza humana se constitui na realidade social: “A natureza humana não pode de modo algum subsistir sem a associação de indivíduos [...]” HUME, David. Uma Investigação sobre os Princípios da Moral. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. Editora da Unicamp. São Paulo, 1995, p. 66. Sendo o guia da vida humana, o costume pode ser visto como uma força tanto natural quanto cultural. 11Y (IEH, p. 64).
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vezes jungida. Desse modo, o costume move-nos ao futuro, agindo a partir da experiência presente e sendo determinado pelo passado. Já que o costume condiciona a crença ou o assentimento, faz-se necessário explicar, em linhas gerais, a natureza da crença, já que nós não apenas concebemos um evento, mas, ainda por cima, cremos nele e esperamos que ele se apresente na experiência. Ora, a crença é uma operação da alma. “Esta crença é o resultado necessário de colocar o espírito em determinadas circunstâncias”.12 É importante atentar para a palavra necessário na afirmação acima. A crença acontece ao espírito como um fato natural. Não podemos escolher crer, como escolhemos pensar. Tudo o que é concebível é possível, e podemos conceber razoavelmente uma série de coisas, contanto que não se contradigam; mas, geralmente, não cremos em tudo o que concebemos. Uma forte característica da crença é que ela não é voluntária. Podemos até pensar no que quisermos, mas não está sob nosso poder acreditar em tudo o que pensamos. Portanto, a crença é algo mais do que uma simples concepção. Ela está envolvida com uma concepção, atua sobre uma ideia, mas não se reduz apenas a isso. Ela também não é uma ideia que a mente acrescenta a uma percepção de modo a tomar o seu partido, pois se assim o fosse, poderíamos crer no que quiséssemos apenas ao acrescentar-lhe a suposta ideia da crença. Desse modo, a crença parece ser não o conteúdo de uma concepção, mas sim uma maneira de conceber algo. Portanto, como a crença implica uma concepção, mas também é algo mais do que isso, e como não acrescenta nenhuma nova ideia à concepção, segue-se que é uma MANEIRA diferente de se conceber um objeto; algo que é sentido de maneira distinta, e, ao contrário de todas as nossas ideias, não depende de nossa vontade.13 A crença é portanto uma sensação (feeling). Trata-se de uma espécie de afecção mental. Ela modifica nosso modo de sentir uma ideia. A diferença, portanto, entre as ideias do juízo e os devaneios da fantasia reside em sentir as primeiras com muito mais intensidade do que as segundas. “Inverte-se assim toda uma visão tradicional da filosofia: a percepção tem prevalência sobre o raciocínio, o lógico cede lugar ao psicológico” (SMITH, 1995, p. 89). Consideradas em si mesmas, as percepções não se diferenciam, são os mesmos conteúdos tanto para o raciocínio quanto para a imaginação; ou seja, não há uma diferença nas ideias enquanto tais. A distinção resulta do fato de sermos mais sensíveis a umas do que a outras. E tal diferença sensível no modo de conceber é suficiente para acreditarmos numa ideia como algo real. Como dito antes, por sua vez, a crença é despertada tendo por base a experiência da conjunção constante entre as percepções. O fogo tem sido sempre percebido junto ao calor, essa conjunção constante em casos passados dispõe a imaginação a unir essas ideias de modo intenso na mente, seguindo o princípio do hábito. Fazendo assim com que da aparição de uma, a outra seja evocada ou concebida em detrimento de todas as outras 12Y Ibid. 13Y (TNH) Sinopse, p. 691.
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possibilidades. Mas não apenas isso, ao concebê-la, sinto-a com muito mais força e vivacidade do que qualquer outra coisa. E assim, passo a acreditar que o calor é uma qualidade ou poder inerente ao fogo, que ele existe realmente como algo no próprio objeto, como se o efeito já estivesse contido na causa. Desse modo, estendemos nossos juízos para além do momento presente. Ao percebermos ou concebermos o fogo, esperamos inexoravelmente daí o calor, contamos com isso, cremos, vivemos e agimos com base nisso. Essa sensação ou sentimento (feeling) está mais presente a nós do que as ficções, e pretende nos revelar realidades. Todas as vezes que um objeto se apresenta à memória ou aos sentidos, pela força do costume, a imaginação é levada imediatamente a conceber o objeto que lhe está habitualmente unido; esta concepção é acompanhada por uma maneira de sentir ou sentimento, diferente dos vagos devaneios da fantasia. Eis toda a natureza da crença.14 Nesse sentido, pensamos que a relação causal, associação que está na base de todos os nossos raciocínios sobre os fatos, é determinada por algo cuja fonte é inteiramente subjetiva. O sujeito vai além daquilo que é fornecido pela experiência, revertendo-a com algo que não extrai dela, embora não possa prescindir da mesma para realizar tal operação. A crença é uma espécie de véu afetivo (sensível) que é lançado involuntariamente pelo sujeito aos objetos, possibilitando assim que ele se estenda para além deles, que ele se incline ao futuro, processo necessário a toda ação e conhecimento factual. O sujeito não é inteiramente passível à experiência, ao contrário, ele a envolve com algo que dele emana para poder interagir causalmente com ela. Ao afirmar isso, não queremos dizer que a crença é imprescindível para simplesmente associar causalmente ideias. Ao contrário, é a “crença que resulta da relação de causa e efeito”. 15 Ademais, uma vez formada a relação na experiência, a imaginação é livre para aplicá-la a todas as ideias sujeitas a essa operação mental. A priori, a imaginação pode jungir ou disjungir quaisquer ideias que admitam separação e, também, uma posterior união. “Tudo que é distinto é distinguível; e tudo que é distinguível é separável pelo pensamento ou imaginação”,16 podendo ser, inclusive, unido ou associado por tal faculdade. No entanto, não poderíamos proceder na experiência sem o sentimento da crença. Não teríamos condições de assentir a um argumento e nem atuar nas circunstâncias particulares sem o auxílio desta maneira de conceber. A crença é um tipo de afeto que impulsiona o sujeito a apostar na possibilidade de um fato; um sentimento que lhe recorta, na experiência, o ponto de atuação de seu pensamento e ação. Embora seja um “produto” da relação causal, a crença, por seu turno, consolida-a de modo necessário à vida e às exigências da experiência.
14Y (IEH, p. 65). 15Y (TNH, Apêndice, p. 661). 16" Ibid. p. 672.
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A “verdade” no âmbito dos fatos consiste, pois, em uma sensação na mente; ela é muito mais sentida do que pensada. A crença, sendo um sentimento, tem de ser despertada influenciando uma ideia e tornando-a relevante ao juízo e à imaginação. Ela aviva o curso de nossas ideias e a sucessão dos nossos afetos. Determina-nos a certos pensamentos e inflama nossas paixões. Comentando suas próprias ideias, diz Hume na Sinopse do Tratado que:
[...] é impossível descrever por meio de palavras essa sensação [feeling], de que entretanto todos devem ter consciência em seu próprio íntimo. Ora a denomina uma concepção mais forte, ora uma concepção mais viva, mais vívida, mais firme ou mais intensa. Na verdade seja qual for o nome que possamos dar a essa sensação [feeling] que constitui a crença, nosso autor considera evidente que seu efeito sobre a mente é mais imperativo que o de uma ficção ou mera concepção. Prova isso por meio da influência da crença sobre as paixões e a imaginação, que só são movidas pela verdade ou por aquilo que tomamos como verdade.17
4. Associação de Ideias e Crença Resta-nos, então, dar uma palavra breve acerca da associação de ideias e sua influência sobre a crença. Hume pretende explicar as variedades da vida mental com base nos princípios de associação, que relacionam ideias com sensações ou lembranças presentes à mente. Esses princípios operam exercendo uma espécie de força atrativa que, quando da aparição de uma percepção à consciência, atua evocando ideias que estão relacionadas a tal percepção. Eles garantem assim toda a ordem e coerência dos nossos pensamentos e discursos, proporcionando um curso relativamente estável na sucessão de nossos conteúdos mentais. Os princípios associativos são três ao todo: semelhança, contiguidade e causalidade. Tão logo uma percepção faça sua aparição em nossa mente, somos apresentados a outra que lhe seja semelhante, contigua e/ou que a tenha gerado ou modificado, ou que seja por ela gerada ou modificada. Por exemplo, olhamos um retrato de uma paisagem conhecida; imediatamente nossos pensamentos são levados a conceber o próprio lugar em questão (semelhança). Suponhamos que esse lugar tenha sido uma rua na qual moramos no passado remoto. Pensamos numa casa (a casa de nossa infância), e logo nos acomete as ideias das casas vizinhas, das quitandas e, talvez, a do poste de luz que ficava logo ao lado (contiguidade no espaço e tempo). E ainda pode acontecer que pensemos no pedreiro, amigo de nossa família, que construiu a casa e reformou-a várias vezes seguidas (causalidade).
17Y (TNH, Sinopse,p. 692)
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Vemos nesse exemplo casos possíveis de sucessões de ideias reguladas por princípios de associação que, ao possibilitarem uma fácil transição entre as ideias, também avivam suas concepções e as paixões a elas relacionadas. Concebemos com mais força uma ideia que está associada a um objeto presente a nós. A partir da sensação presente, somos levados à ideia costumeiramente relacionada a ela. Os facilitadores dessa transição são justamente os princípios associativos descritos acima, que também influenciam a crença. “Ora, afirmo que esta crença – se se estende além dos dados da memória ou dos sentidos – é de natureza semelhante e surge de causas semelhantes à transição do pensamento e vivacidade da concepção, aqui explicadas”.18 Por conseguinte, a crença, sendo uma maneira mais forte e intensa de sentir uma ideia, baseia-se numa percepção atual e numa relação que a imaginação faz, guiada por princípios associativos, entre esta percepção e as ideias a ela habitualmente jungidas. Em suma, creio numa ideia porque transito mais facialmente (naturalmente) de uma sensação a ela. E, nessa transposição, também a força da sensação é transmitida à concepção e as paixões envolvidas são despertadas. Tudo se passa como se os princípios de associação conduzissem um fluxo de intensidades e forças que perpassam sensações, ideias e sentimentos, tornando-os mais presentes e reais, na mesma medida em que pulverizam as imagens bruxuleantes da fantasia. A crença, portanto, sendo um sentimento, é determinada por tais princípios. Por último, o que mais importa, conforme a pretensão deste artigo, é entender que a relação de causa e efeito, responsável por me antecipar a existência de um fato que transcende os sentidos e a memória, baseia-se não na razão, mas sim na experiência que, por um lado, me apresenta conjunções constantes de eventos semelhantes e, por outro, pela atividade da imaginação, os associa engendrando um hábito. A partir desses fatores objetivos da relação causal, um sentimento específico é despertado na mente do sujeito, ou seja, a crença. Esta sensação, de origem interna, é lançada aos fatos da experiência, envolvendo-os com algo que não estava neles. Assim, o sujeito se coloca no curso das coisas e, também, para além dele; antecipando o porvir e transcendendo os dados dos sentidos e da memória. A crença é o elemento subjetivo que vem reforçar e dar sentido à relação de causa e efeito, ou seja, à expectativa de que o futuro se assemelhe ao passado. Desse modo, ela influencia nossos juízos e nossas paixões, assegurando-nos no fluxo do tempo.
Considerações finais Essas teses, que no fundo parecem bem céticas, tendem a suprimir dos processos racionais a priori qualquer poder de influenciar nossa ação e nossos juízos sobre os fatos. Para Hume, a razão, se exercida em si mesma no seu máximo alcance, acaba por ser autodestrutiva. Com base nisso, constata que a tentativa do cético consiste em destruir a 18Y (IEH, p. 70).
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razão mediante argumentos e raciocínios lógicos.19 Vê-se que a razão é um vírus de si mesma, uma potência extremamente implosiva. O ataque cético parece sempre triunfar sobre a fragilidade da fundamentação das nossas crenças mais elementares, e todo o conhecimento factual acaba por degenerar em probabilidade (visto que não se pode demonstrar a falsidade de um fato, apenas se experiencia fatos). Hume parece conceber que o ceticismo seja insuperável para um filósofo. Na medida em que temos uma curiosidade teórica sobre o que nos faz esperar que o futuro se assemelhe ao passado, sobre por que de causas semelhantes esperarmos efeitos semelhantes, na medida em que surgir esse tipo de indagação profunda, é provável que um filósofo não se satisfaça independentemente de qualquer resposta. A dúvida aí sempre será insinuante e, se o raciocínio for consequente, emergirá gerando toda a sua perplexidade. Entretanto, a influência do instinto natural é soberana sobre o homem. Como vimos, a crença é um sentimento que, ao ser despertado, nos impele necessariamente ao consentimento e à ação na experiência. Assim, toda a nossa vida e as relações que fazemos entre os seus eventos está embasada apenas em uma espécie de instinto. Vivemos em uma condição peculiar na qual devemos raciocinar, crer e agir, embora não possamos justificar ou dar qualquer razão satisfatória do por que cremos; nenhuma dessas atividades podem remover as objeções levantadas contra elas. Contudo, podemos atestar que “A natureza é sempre mais forte que os nossos princípios”. 20 E por mais que duvidemos intensamente da instância de validação das nossas crenças, não podemos deixar de formá-las e viver de acordo como elas. Por seu turno, a força da natureza faz desvanecer qualquer dúvida e nos assalta quando menos esperamos. Afinal, ainda que não mais tenhamos consciência de uma operação, ela continua a influenciar nossos raciocínios e nosso gosto. “Pois, mesmo supondo que essas impressões se apaguem inteiramente de nossa memória, a convicção por elas produzida pode ainda permanecer”.21 Ademais, de modo impressionante, o costume impera absolutamente justamente quando não se faz sentir. “E é tão grande a influência do costume que, onde ela se apresenta com mais vigor, encobre, ao mesmo tempo, nossa natural ignorância e a si mesma, e quando dá a impressão de não intervir, é unicamente porque se encontra em seu mais alto grau”.22 Enquanto filósofos, o ceticismo triunfaria inexoravelmente, mas, enquanto homens, determinados pelos instintos cegos da natureza, a força dos argumentos céticos se exaure nas necessidades da ação e da crença. Não podemos dar uma razão satisfatória do porque acreditamos, mas não podemos escolher não acreditar. Essa concepção se torna ainda mais “naturalista” quando pensamos as ações humanas e a possibilidade de influência da razão sobre o caráter. Diz Hume num ensaio intitulado O Cético: “A 19Y Ibid, p. 147. 20Y Ibid, p. 150. 21Y (TNH, p.112). 22Y (IEH), p. 51.
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estrutura e constituição de nosso espírito depende tão pouco de nossa escolha como a de nosso corpo [...] Quem examinar sem preconceitos o curso das ações humanas verificará que os homens são quase inteiramente governados por sua constituição e sua personalidade, e que os princípios de ordem geral (princípios racionais) só têm influência na medida em que afetam nossos gostos e sentimentos”23.
Referências Bibliográficas HUME, David. Investigação Acerca do Entendimento Humano. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo. Nova Cultural Ltda 2000. ____________. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Déborah Danowski. São Paulo. Unesp: 2000. DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. Tradução de Luiz Orlandi. Editora 34. São Paulo: 2012. SMITH, Plínio Junqueira. O Ceticismo de Hume. Edições Loyola. São Paulo, 1995.
23Y HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Tradução de João Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora D’Oliveira. Editora Nova Cultural. São Paulo: 2000, p.183.
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WITTGENSTEIN E A CERTEZA: UM CÉTICO? Leonel Olimpio "O que é real? Tudo parece enganador, a superfície visível parece enganosa. Eu olho para a minha mão... São nervos, músculos, ossos. Vamos mais fundo: são moléculas e ácidos. Mais fundo: é uma valsa impalpável de elétrons e nêutrons. Mais fundo ainda: uma nebulosa imaterial. Quem pode provar que minha mão existe?" Salvador Dali Resumo: Abordando um texto pouco conhecido do autor Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Über Gewissheit traduzido como Sobre a certeza, o artigo discutirá as teses contrapostas pelo autor contra as ideias de Edward Moore, filósofo inglês. Partindo para a discussão sobre questões da teoria do conhecimento, ou seja, em relação ao ceticismo epistemológico. Seguindo para a problemática do “metaceticismo” wittgensteiniano, em que o autor será cético quanto ao próprio ceticismo. Termina apontando para um ceticismo ético em Wittgenstein, aonde se discutiria um modo de viver, de como o cético se relaciona com a filosofia, com a vida, e ainda como se mostra o papel do filósofo, que seria, essencialmente, o chato. Palavras-Chave: Wittgenstein. Ceticismo Epistemológico. Ceticismo Ético. Abstract: Addressing a little-known text by the author Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Über Gewissheit translated as On Certainty the article discusses how the author opposes the thesis as ideas of Edward Moore, an English philosopher. Leaving for a debate on questions of knowledge theory, ie in relation to epistemological skepticism. Moving on to a problematic of Wittgensteinian "metaceticism," in which the author is skeptical of the skepticism. It ends by pointing to an ethical skepticism in Wittgenstein, to the discussion of a way of living, how the skeptic relates to a philosophy, to life, and how to show the role of the philosopher, who would essentially be the "annoying critic" . Word-Keys: Wittgenstein. Epistemological Skepticism. Ethical Skepticism. Volume 5 no 2
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Introdução
I
remos discutir aqui principalmente as ideias escritas por Wittgenstein no seu livro Über Gewisshei” (Sobre a Certeza). Há uma edição em português dessa obra, no entanto, utilizamos a versão bilíngue alemão/inglês, da editora Harper Torchbooks, ou seja, toda tradução aqui para o português, é responsabilidade do autor do texto. O livro consiste do autor contrapondo as ideias de Edward Moore, que foi professor de Cambridge, conhecido filósofo inglês e que participou junto com Bertrand Russel e o próprio Wittgenstein da tradição inglesa na filosofia analítica. No entanto, é muito importante ressaltar que o livro consiste em apenas anotações do autor quanto a essas questões, e ele na maioria das vezes, ou em todas as vezes, não chegará a concluir nada de fato. O livro pode parecer muito contraditório, inconsistente, mas há questões colocadas pelo autor que devem ser levadas para um debate cético, ou para um debate sobre o metaceticismo que ele tenta construir, ou apontar para ele. E a partir desses “apontamentos” do autor, tentaremos dar uma linha de pensamento cético ou não para a filosofia de Wittgenstein.
1. A diferença entre “saber” e “ter certeza” Moore em artigos, como o "A defesa do senso comum"1, vai defender que há verdades empíricas de fato e que dessas podemos ter absoluta certeza, como por exemplo: "eu tenho duas mãos", "o mundo existia antes de eu nascer". A partir disso, Wittgenstein irá totalmente se contrapor a esse argumento, dizendo que Moore de fato tem certeza sobre aquilo, mas que isso não significa que ele detenha conhecimento sobre. Wittgenstein então, argumentará que a certeza existe, porém, ela seria algo completamente diferente do conhecimento, pois a certeza se caracteriza pelo fato de ele achar que sabe aquilo, e não por deter de fato conhecimento sobre aquilo.
“Die Gewißheit ist gleichsam ein Ton, in dem man den Tatbestand feststellt, aber man schließt nicht aus dem Ton darauf, daß er berechtigt ist.” "A certeza é como se fosse um tom de voz em que uma pessoa atesta como as coisas são, mas uma pessoa não infere do tom de voz da outra que ela está correta."-(WITTGENSTEIN,1972:p.6)
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Contemporary British Philosophy (2nd série), ed. J. H. Muirhead, 1925. Reeditada em G. E. Moore, Philosophical
Papers (1959).
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Assim, Wittgenstein irá dizer que a diferença entre o conceito de "saber" e o conceito de "ter certeza" não é de tanta importância, exceto quando dizer "eu sei" significa: "Eu não posso estar errado". Por isso, o austríaco dirá no começo do texto "Pode uma pessoa dizer o que ela conhece? Eu não acredito que possa". O que aqui já abre um debate muito grande, e que o próprio austríaco levanta no seu Tractatus, se seria possível a linguagem representar o mundo, que para a conhecida “primeira fase” do autor, é possível. Imaginemos por exemplo uma partitura, ela consegue representar em um papel como a música se desenvolve, seria assim também nossa linguagem em relação ao mundo? Ou seja, nesses escritos, Wittgenstein aponta para um pensamento de que nós podemos sempre estar errado sobre algo. Sobre isso, ele dirá:
“Ich weiß, daß hier ein kranker Mensch liegt? Unsinn! Ich sitze an seinem Bett, schaue aufmerksam in seine Züge. - So weiß ich also nicht, daß da ein Kranker liegt? - Es hat weder die Frage, noch die Aussage Sinn. So wenig wie die: 'Ich bin hier', die ich doch jeden Moment gebrauchen könnte, wenn sich die passende Gelegenheit dazu ergäbe.” "Eu sei que um homem doente está deitado aqui? Sem sentido! Eu estou sentado ao lado da cama dele, estou olhando atenciosamente para o rosto dele. Então eu não sei, nessa ocasião, que há um homem deitado aqui? Nem a pergunta nem a afirmação fazem sentido. Muito menos a afirmação "Eu estou aqui", e que eu poderia, de fato, usar em qualquer momento." (WITTGENSTEIN,1972:p.3)
Wittgenstein, com sua ironia, irá falar dos que afirmam sobre conhecimentos irrefutáveis, dizendo ainda "eles não se lembram de quando eles disseram 'eu pensei que eu soubesse'." Então, para o austríaco, Moore se enganava também na diferenciação dos conceitos, por fazer com que eles se pareçam os mesmos, conceitos como "saber", "ter certeza", "crer", para Moore, dizer "eu sei", é sim significar "eu não posso estar errado".
Wittgenstein irá também falar de como temos então certas proposições e saberes nas nossas mentes. Ele dirá:
“Ja, ich glaube, daß jeder Mensch zwei menschliche Eltern hat; aber die Katholiken glauben, daß Jesus nur eine menschliche Mutter hatte. Und Andre könnten glauben es gebe Menschen die keine Eltern haben und Volume 5 no 2
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die aller gegenteiligen Evidentz keinen Glauben schenken… Worauf gründet sich der Glaube, daß alle Menschen Eltern haben? Auf Erfahrung. Und wie kann ich auf meine Erfahrung diesen sichern Glauben gründen? Nun ich gründe ihn nicht nur darauf daß ich die Eltern gewisser Menschen kannte, sondern auf alles was ich über das Geschlechtsleben von Menschen und ihre Anatomie und Physiologie gelern habe; auch darauf was ich von Tieren gehört und gesehen habe. Aber ist das denn wirklich ein Beweis?” "Sim, eu acredito que todo ser humano tem pais humanos; mas os católicos acreditam que Jesus tinha apenas uma mãe humana. E outras pessoas podem acreditar que há humanos sem pai e mãe, e não dar nenhum crédito a qualquer evidência que se contrarie a isso…. Em que se baseia a crença de que todos os humanos têm pai e mãe? Na experiência. E como eu posso fundamentar na minha experiência essa crença convicta? Bem, eu me fundamento não só no fato de que eu conheci pais de algumas pessoas, mas em tudo que eu aprendi sobre a vida sexual humana e sua anatomia e psicologia; também no que ouvi e vi de animais. Mas isso é realmente uma prova?" (WITTGENSTEIN,1972:p.32)
Percebemos, que ele falará então do saber proveniente da experiência, mas ele irá dizer o que pode acontecer é que para isso, todos entramos em um consenso. Por exemplo, para resolver um problema de um curto-circuito, por consenso entre nós, chamaríamos um eletricista para consertar, ao invés de um médico, porque firmamos entre nós que o eletricista sabe mais sobre isso do que qualquer outro profissional.
2. Faz sentido duvidar?
“Es gibt Fälle, in denen der Zweifel unvernünftig ist, andre aber, in denen er logisch unmöglich scheint. Und zwischen ihnen scheint es keine klare Grenze zu geben. Alles Sprachspiel beruht darauf, daß Wörter und Gegenstände wiedererkannt werden. Wir lernen mit der gleichen Unerbittlichkeit, daß dies ein Sessel ist, wie daß 2x2=4 ist. Wenn ich also zweifle, oder unsicher bin darüber, daß das meine Hand ist (in welchem Sinn immer), warum dann nicht auch über die Bedeutung dieser Worte? Will ich also sagen, daß die Sicherheit im Wesen des Sprachspiels liegt?… Es handelt sich darum: Wie wird der Zweifel in's Sprachspiel eingeführt?”
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"Há casos em que a dúvida é insensata2, mas outros nos quais ela parece logicamente impossível. E parece não haver nenhum limite claro entre elas. Todo jogo de linguagem é baseado em palavras 'e objetos' que se reconhecem a si mesmos. Nós aprendemos com a mesma inexorabilidade que isso é uma cadeira como aprendemos que 2x2 = 4. Se, portanto, eu duvido ou estou incerto sobre isso ser minha mão (em qualquer sentido), por que, então não duvidar do sentindo dessas palavras também? O que eu quero dizer, então, a segurança reside na natureza de um jogo de linguagem?… Trata-se disso: como a dúvida é introduzida em um jogo de linguagem?"(WITTGENSTEIN, 1972: p.59-60)
Para esse momento, eu gostaria de falar de um problema que pode nos ajudar a entender o que o Wittgenstein está tentando falar sobre a dúvida quanto as palavras. Em uma mesa de jantar, todos se odeiam. Então, um homem pede para uma mulher lhe passar o sal, mas para o homem, o que é sal é açúcar, então já que a mulher não gosta do homem, ela decide ao invés de passar o sal, passar o açúcar. Mas, assim, o homem teve de fato o que queria. E fica a dúvida, não seriam assim toda as nossas concepções linguísticas? Alguns podem dizer que isso seria uma questão de valor apenas linguístico. No entanto, creio que há três pontos muitos importantes em tudo isso: pensamento, linguagem e realidade. E assim, esses pontos se interligam e cada um ajuda, com seus conceitos e reflexões, com o que tentamos entender sobre os três. Por que seria de pensamento? Porque aqui entra o problema se de fato aquilo que falamos é acessível ao outro, se é possível a compreensão da subjetividade. É um problema linguístico pois, como podemos saber se a linguagem “dá conta” de tudo que pensamos e queremos falar? E por último, um problema da realidade, pois a pergunta “o que é o real?” sempre vem à tona na filosofia, no entanto, como ela se dá para uma questão da fala e do entendimento? Ou seja, é possível falar sobre a “realidade”, é possível descrever a “realidade”? E como essa realidade se relaciona com a linguagem?
3. Ceticismo para além dos sentidos
“Was hindert mich anzunehmen daß dieser Tisch, wenn ihn nieman betrachtet, entweder verschwindet, oder seine Form und Farbe
} Pode-se traduzir “unvernünftig” por “insensato”, ou até “irracional”, no entanto opto pela primeira opção.
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verandert, und nun wenn ihn wieder jemand ansieht, in seinen alten Zustand zurückkehrt?” "O que me impede de supor que essa mesa, quando ninguém a observa, ou desaparece ou altera sua forma e cor e então quando alguém olha novamente para ela, ela volta a sua forma antiga?" (WITTGENSTEIN, 1972:p.29)
Após essa afirmação, Wittgenstein irá dizer que nessas situações, o "acordo entre a realidade", não valeria para nada. Porque aqui, a questão está para além dos nossos sentidos, pois a pergunta seria justamente, o que está acontecendo enquanto nossos sentidos não estão observando? O que o filósofo austríaco está tentando dizer é: enquanto você está lendo um pedaço de papel, as letras têm formas fixas, o papel tem uma forma física sólida, mas e quando deixamos de olhar para ele, o que acontece? O papel toma outra forma física? As letras se deformam? Logo após esse exemplo, ele colocará em questão outro, dirá ele:
“Wer annähme, daß alle unsre Rechnungen unsicher seien, und daß wir uns auf keine verlassen können (mit der Rechtfertigung, daß Fehler überall möglich sind) wurden wir vieleicht für verrückt erklären. Aber können wir sagen, er sei im Irrtum? Reagiert er nicht einfach anders? Wir verlassen uns darauf, er nicht, wir sind sicher, er nicht. "Se uma pessoa supõe que todos os cálculos são incertos e que nós não podemos nos ater a nenhum deles (essa pessoa se justificando dizendo que o erro é sempre possível) talvez nós chamaríamos essa pessoa de louca. Mas nós podemos dizer que ele está errado? Ele só não reage de maneira diferente? Nós nos atemos aos cálculos, ele não; nós estamos seguros, ele não." (WITTGENSTEIN,1972:p.29)
Vemos como Wittgenstein realmente aponta para um ceticismo. Talvez aqui Wittgenstein estivesse pensando mais claramente no debate envolvendo pensadores de sua época acerca da natureza ontológica dos números quanto a natureza ontológica dos números. Se os números são “coisas do mundo”, ou são criações humanas. Wittgenstein, apesar de estar em um “turbilhão científico”, criticará justamente o “cientificismo” da sua época. Achando que a ciência tinha coisas importantes a fazer, mas que essa mesma ciência não podia ser o padrão para outras coisas, como por
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exemplo, para a filosofia3. O que pode parecer estranho para alguns, mas o austríaco pensava que a filosofia deveria tomar seu próprio rumo, sem querer se espelhar nas ditas ciências naturais.
4. Um metaceticismo e suas implicações para a vida No entanto, a crítica de Wittgenstein é não só a Moore, como também aos céticos e ao ceticismo. Provavelmente, Wittgenstein se perguntava, como pode o ceticismo ser irrefutável, se ele é irrefutável, ele se torna uma verdade absoluta, e como poderia então isso existir logo com o ceticismo? Ele então percebe algo de interessante para se pensar sobre esse assunto. Assim, ele irá fazer todo o seu "metaceticismo". Wittgenstein dirá "O que nós podemos perguntar é se faz sentido duvidar". Afinal, por que duvidamos? Bertolt Brecht dizia que “a única certeza é a dúvida”, para Wittgenstein, precisamos antes de duvidar, saber se faz sentido duvidar, no entanto, aquele que duvida da dúvida, não é um cético? É a partir desse ponto, que tentamos levantar a questão de um Wittgenstein cético. No entanto, é necessário aqui a percepção e divisão de dois tipos de ceticismo, um epistemológico, o outro ético. Pensamos aqui, que Wittgenstein se preocupava com os dois, mas propriamente em “Über Gewissheit” ele tenha falado mais sobre epistemologia. Como então, se apresenta esse “metaceticismo” wittgensteiniano? Para existir a dúvida, precisou existir antes um momento de "não-dúvida". Para Wittgenstein, o ceticismo se esquece de há um momento de que é preciso não haver dúvida. Assim, ele escreverá sobre o exemplo das crianças, que quando se é criança, você não aprende a duvidar se aquela cadeira existe ou não, mas aprende apenas que a cadeira é para sentar. O que capacitou que alguns duvidássemos da existência dessa mesa, dessa sala? Só foi possível por termos tido esses momentos de "aprendizagem dogmática". Por isso, passamos por muito tempo sem duvidar de nada, momento que ele chamará de "nãodúvida", para assim depois podermos duvidar. Então, para ele é sempre importante ressaltar que para o ceticismo poder existir, antes deve haver algo que capacite a possibilidade da dúvida, e isso seria propriamente o não duvidar. Alguns podem dizer que o que Wittgenstein está tentando fazer é salvar o seu "Jogos de Linguagem". Pois no próprio "Sobre a certeza" ele dirá que precisamos no fundo, ter algo que não possamos duvidar, para assim um jogo de linguagem poder ter certa consistência. Dirá ele na página 22 do "Sobre a certeza", "Mas em algum lugar eu
} Recomendamos aqui, a leitura das Vermischte Bemerkungen, que pode ser traduzida como “Observações embaralhadas”. 3
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devo começar com uma suposição ou decisão". Porque assim, seria possível existir jogos de linguagem. Assim, ele dirá:
“Das Kind lernt nicht, daß es Bücher gibt, daß es Sessel gibt, etc, etc, sondern es lernt Bücher holen, sich auf Sessel(zu) setzen, etc. Es kommen freilich später auch Fragen nach der Existenz auf: 'Gibt es ein Einhorn?' u. s. w. Aber só eine Frage ist nur möglich, weil in der Rgel keine ihr entsprechende auftritt. Denn wie weiß man, wie man sich von der Existenz des Einhorns zu überzeugen hat? Wie hat man die Methode gelernt, zu bestimmen, ob etwas existiere oder nitch?” "As crianças não aprendem que livros existem, que poltronas existem, etc, etc, elas aprendem a buscar livros, sentar em poltronas, etc. Mais tarde, é claro que virão questões como a existência de objetos ou coisas. 'Existe uma coisa como um unicórnio?' e assim segue. Mas essa questão só é possível porque como regra nenhuma pergunta correspondente se apresenta. Pois como saber-se-ia convencer a si mesmo da existência dum unicórnio? Como alguém aprendeu o método de determinar se alguma coisa existe ou não?" (WITTGENSTEIN 1972, p.62-63)
Um jogo de linguagem não se constitui apenas de pensamento, mas sim quanto a linguagem enquanto a um fato social, um fato de que o que está havendo são falas, uma conversa entre duas ou mais pessoas. Resumindo, com a sua própria crítica, Wittgenstein tenta “salvar” os seus jogos de linguagem. Há, no entanto, uma afirmação no aforismo 559 que é muito interessante, e que talvez seja a passagem mais cética do livro, “você deve ter em mente que os jogos de linguagem são imprevisíveis. Eu quero dizer: não são fundamentados. Não são razoáveis(ou irracionais). São como a nossa vida.”4 Aqui, temos várias implicações. Primeiro, estaria Wittgenstein negando seu próprio conceito de “jogos de linguagem”? Ele estaria sendo cético quanto a eles, ainda dizendo que seriam “razoáveis”, e o oposto de “razoável”, que traduzimos como “irracional”, mas caberia talvez “improcedente”, “incoerente.” Segundo, aqui, falando dos jogos, ele os compara a vida, a vida em si. Ou seja, implicaria dizer também que a vida é irracional? Como poderia então teorias, a ciência, e a própria filosofia lidar com um mundo e a vida dessa maneira? Seria uma maneira “cética” de viver? } “Du mußt bedenken, daß das Sprachspiel sozusagen etwas Unvorhersehbares ist. Ich meine: Es ist nicht begründent. Nicht vernünftig (oder unvernünftig). Es steht da-wie unser Leben.” Über Gewissheit. New York: Harper Torchbooks, 1972. 4
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São muitas perguntas, e poucas respostas. De fato, vemos o quanto esse assunto era um problema para Wittgenstein, no que ele estava preocupado quanto a própria validade dos “estados-de-coisas”, que ele tanto fala no seu famoso Tractatus, mas acima de tudo quanto aos próprios conceitos de dúvida, certeza, ceticismo e realidade.
5. Wittgenstein: um cético? É possível então construir um ceticismo a partir de Wittgenstein? Afirmo que sim, pois questões como a dúvida, a certeza, o conhecimento e até de um certo “viver ético”5 é pertinente em toda a sua obra, ou seja, há um ceticismo epistemológico e ético vigente. Podemos nos perguntar também, quão cético é a famosa afirmação da sétima proposição do Tractatus, “wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schwegen”6 (Sobre o que não se pode falar, deve-se calar). Devemos falar sobre ética, religião, Deus? Diria um jovem Wittgenstein cheio de entusiasmo, “nein, nein, nein!! Das is nicht richtig!” 7. O que se pode fazer quanto a isso então? Viver. Falar sobre isso não cabe a filosofia, isso está para o indizível, isso é o indizível, tornando-se místico. Sobre isso, nós podemos agir, viver, atuar. Em todo esse debate de um Wittgenstein cético ou não, há outra pergunta a se fazer: percebendo que Wittgenstein tem pensamentos céticos, isso faz dele de fato um cético? Bem, é claro que essa pergunta vai de encontro com as próprias ideias sobre o que é ceticismo, ou como se entende o que é um cético. Talvez um cético, seja mais do que um simples duvidar de fatos epistemológicos, mas que isso implica também uma maneira de viver, uma “estética da existência”. E isso está intimamente ligado com o que Bertrand Russel achava sobre o ceticismo, que logicamente era algo irrefutável, mas como isso se daria na prática? Wittgenstein teria de fato se preocupado com isso? Sim, no entanto, não diretamente sobre o “dever do cético”, mas sim, até como se intitula sua biografia mais conhecida, “o dever do gênio”. Essa questão de fato permeia toda a vida e o pensando do austríaco. O próprio, vendo-se como gênio, se pergunta, já que eu sou um gênio, então qual o meu dever? A partir dessa constatação, ele tentará entender como se dá essa participação do gênio com o mundo, com a vida. Mas como para muitos a filosofia de Wittgenstein é mais fatiada do que uma pizza tamanho família, temos para alguns comentadores 2, 3, até 5 “Wittgensteins”. E claro, de suas diferentes fases, podemos ter inúmeras interpretações. No entanto, tendo como ponto de partida os escritos Über Gewissheit, é possível sim, tratar de um ceticismo wittgensteiniano, por todas as questões que ele não tenta solucionar, mas discutir, } Wittgenstein chega a afirmar em cartas que o sentido do Tractatus é ético. } Pág. 108 Tractatus Logico-Philosophicus. Londres:Routledge & Kegan Paul Ltd., 1922. 7 } “Não, não, não!! Isso não está certo!” 5 6
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criticar, apontar. Como o autor mesmo dirá no seu Big Typescript, “tudo o que a filosofia pode fazer é destruir ídolos. E isso significa não criar um novo – como, por exemplo, 'na ausência de um ídolo'.”8. Para Wittgenstein, o que restará para a filosofia é a crítica, a dúvida, o questionamento. O papel do filósofo é ser o chato. Aquele que sempre indaga, aquele que sempre duvida, aquele nunca se dá por um dogma no pensamento. E isso seria o que? Um cético. Um olhar quase que profano, para muitos, na filosofia. Wittgenstein é tido como cético para alguns, mas não para todos. Talvez ele mesmo tenha se sentido incomodado com todos esses rótulos que davam a ele, e tenha se incomodado também com a própria questão de que se é possível existir um cético de fato ou não, ou seria o ceticismo uma escada para um certo conhecimento. Até por isso, Wittgenstein talvez nunca tenha definido o que seria de fato "conhecimento" e o que caracterizaria isso, pois ele sempre foi muito "pé atrás" quanto as questões de crença e quanto a ciência em geral. Porém, suas questões estão aí presentes, para serem sempre duvidadas, e debatidas.
} “(Alles, was die Philosophie tun kann ist, Götzen zerstören. Und das heißt, keinen neuen – etwa in der ”Abwesenheit eines Götzen“ – zu schaffen.)” 8
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Referências Bibliográficas
WITTGENSTEIN, Ludwig. Über Gewissheit. New York: Harper Torchbooks, 1972 _________. Culture and Value-Vermischte Bemerkugen. Tradução Peter Winch. Chicago: The University of Chicago Press, 1984. _________. Tractatus Logico-Philosophicus. Londres:Routledge & Kegan Paul Ltd., 1922. _________. The Big Typescript, TS 213. Tradução e Edição C. Grant Luckhardt and Maximilian A. E. Aue.— German–English scholars’ ed. Oxford: Blackwell Publishing, 2005.
Outras referências WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. _________. Movimentos de pensamento: diários de 1930-1932/1936-1937. Tradução Edgard da Rocha Marques; editado por Ilse Somavilla. São Paulo: Martins Martins Fontes, 2010. MONK, Ray, Ludwig Wittgenstein-The Duty of Genius. Londres: Vintage Books, 1991
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O EFEITO APORÉTICO NA DISCUSSÃO SOBRE A JUSTIFICAÇÃO EPISTÊMICA Helly Lucas Barros Crispim * Resumo: Desde os contraexemplos contra a Definição Tradicional do Conhecimento (DTC) propostos por Edmund Gettier em seu ensaio de 1963 “Is Justified True Belief Knowledge? ”, que ficou popularmente conhecido como o problema de Gettier, a justificação epistêmica passou a ser muito discutida e culminou em diversas tentativas para uma melhor definição do conhecimento. Este trabalho tem o intuito de mostrar breve e modestamente a complexidade em torno da discussão sobre a justificação e como sua solução pode se mostrar negativa, abordando resumidamente algumas das diversas hipóteses em torno do que é a justificação epistêmica, qual é a sua natureza, e se ela é realmente necessária para o conhecimento. Observa-se que a justificação, assim como o conhecimento, enfrenta diversos problemas em sua definição, estes talvez até mais difíceis que aqueles em torno da definição do conhecimento. Observa-se também que a justificação parece ser uma exigência da razão, e como tal, leva-nos a um estado de aporia, pois, por um lado, se não houver uma justificação infalível, o agente cognitivo talvez nunca esteja satisfeito, exigindo mais justificações para cessar suas dúvidas e incertezas, e, por outro lado, a justificação infalível parece ser demasiada exigente, podendo limitar o que se entende como conhecimento, e, além do mais, parece ser bastante implausível, pois, além de gerar um regresso ad infinitum por conta dos critérios para uma tal justificação, parece difícil de ser aplicada a uma definição universal do conhecimento, posto que cada objeto do conhecimento tem sua peculiaridade. Palavras chaves: Epistemologia; Justificação epistêmica; Aporia; Coerentismo; Fundacionismo; Internismo; Externismo.
*! Graduando em filosofia pela universidade Federal do Ceará (UFC) Volume 5 no 2
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Abstract: Since the refutations against the traditional definition of knowledge known as JTB – a short for "Justified true belief" - exposed by Edmund Gettier in his 1963 essay "Is justified true belief knowledge?" which became known as "The Gettier problem", the epistemic justification came to be very much discussed and ended up in various tries for a better definition of knowledge. This work aims to show briefly and modestly the complexity around the discussion about the justification and how solutions for this problem can be negative. We do that by shortly approaching some of the different hypothesis about what an epistemic justification is, its nature, and if it is really necessary for knowledge. We notice that the justification, just as knowledge, face several problems for its definition. Those problems are maybe even more complex than those concerning the definition of knowledge. We also noticed that the justification seems to be demanded by reason and as such, leads us to a state of aporia, due to the fact that on the one hand, if there is no infallible justification, the cognitive agent will probably never be satisfied, demanding more justifications to diminish his doubts and uncertainties, and on the other hand, the infallible justification seems to be too demanding and could limit what is known as knowledge, and moreover, it seems to be very implausible for it can not only generate a regress ad infinitum, due to the criteria of this kind of justification, but also it seems difficult to be applied to an absolute definition of knowledge since each object of knowledge have its peculiarities. Key words: Epistemology; Epistemic justification; Aporia; Coherentism; Foundationalism; Internalism; Externalism.
Introdução
O
presente trabalho, além de mostrar uma porção das dificuldades em torno do problema do conhecimento, pretende dar apenas uma breve e modesta exposição sobre as principais correntes da epistemologia moderna e seu notável envolvimento com o ceticismo, bem como estimular, também, o interesse do leitor em estudar ou participar de tais investigações, visto que a epistemologia é uma área ainda muito negligenciada, especialmente nos cursos de filosofia do Brasil. A maioria dos estudantes optam por uma formação mais literária ou clássica da filosofia e evitam uma formação mais analítica. Pretendo convencer esse tipo de estudante, se vier a ler este trabalho, a verificar o que muitas vezes nossos preconceitos ou expectativas nos impedem de ver. Pretendo mostrar uma pequena porção do que há de interessante e importante neste lado. Antes de estudar os filósofos da teoria do conhecimento é recomendável ao leitor iniciante que tenha uma visão geral destes filósofos e de suas teses. Por isso, grande parte deste trabalho tem como referência obras introdutórias, afim de influenciar o leitor a recorrê-las. Iniciemos então nosso trabalho. O problema em torno da justificação epistêmica aparenta ser bem mais complexo que o problema sobre o que é conhecimento. Para alguns ela é condição para o conhecimento, para outros apenas uma garantia para o conhecimento. A justificação é facilmente passível de um regresso ao infinito e nos leva muitas vezes a estados de aporia. Grandes são os esforços dos epistemólogos em evitar ataques céticos, regressos ao infinito e circularidades relacionadas à justificação. Uma dessas tentativas é a aspiração a uma infalibilidade da justificação. Volume 5 no 2
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As discussões sobre a infalibilidade da justificação epistêmica tomaram grande força através das respostas aos problemas apresentados por Edmund Gettier em seu ensaio de 1963 “Is justified true belief knowledge?” onde ele refuta a famosa tese tripartida do conhecimento que o define como crença verdadeira justificada. Gettier elabora dois contraexemplos em que se há uma crença verdadeira e justificada, mas que ainda assim não se pode afirmar que o indivíduo tenha conhecimento. Em ambos os exemplos, Gettier apresenta dois personagens: Smith e Jones. No primeiro exemplo, Smith e Jones concorrem a um cargo numa certa empresa. Smith acredita na seguinte proposição a: “Jones ficará com o emprego e possui dez moedas no bolso” a partir desta proposição infere b: “O homem que ficará com o emprego possui dez moedas no bolso”, as evidências que Smith possui para justificar sua crença em a e inferir b são: há dez minutos atrás Smith contou as moedas de Jones e averiguou que este tinha dez moedas no bolso. O chefe da empresa havia assegurado a Smith que, no final, quem ficaria com o emprego seria Jones. Mas, sem o saber, quem ficaria com emprego seria, na verdade, o próprio Smith, e este possuía, também sem o saber, dez moedas no bolso. Sendo assim, Smith possuía uma crença verdadeira e justificada, mas não tinha conhecimento. No segundo exemplo, Smith se recorda que desde quando o conhecera, Jones era dono de um Ford, e, recentemente, recebera uma carona de Jones, que dirigia um Ford. Smith então elabora três proposições disjuntivas a partir da crença de que Jones possui um Ford, adicionando um terceiro personagem na estória, Brown. As proposições são as seguintes: a. “Ou Jones tem um Ford, ou Brown vive em Boston” b. “Ou Jones tem um Ford, ou Brown vive em Barcelona” e c. “Ou Jones tem um Ford, ou Brown vive em Brest-Litovsk”. Smith está justificado a acreditar nestas três proposições a partir de sua forte crença de que Jones possui um Ford. Contudo, sem o saber, o carro de Jones era na verdade alugado e Brown realmente vivia em Barcelona. Assim, Smith tinha uma crença verdadeira e justificada referente a proposição b, mas não podia afirmar que possuía conhecimento desta. As várias tentativas de refutar os problemas de Gettier levaram os epistemólogos a tomarem rumos diferentes. Alguns decidiram elaborar uma nova definição de conhecimento completamente diferente da tradicional, outros decidiram refutar os exemplos de Gettier, e ainda houve aqueles que almejaram corrigir a definição tradicional do conhecimento adicionando novas condições ou modificando as existentes. Mas a maioria deles concordava que havia algo de errado com a justificação e, a começar pelo problema da infalibilidade da justificação, trataremos sobre este problema aqui. A exigência de uma justificação infalível para uma crença se dá, de forma mais evidente, na perspectiva internalista com relação à natureza da justificação. Uma resposta diferente para esse problema poderá ser encontrada, como veremos mais adiante, em perspectivas externalistas. Examinaremos a seguir, como se dá a exigência da infalibilidade das crenças nas perspectivas internalistas e como o externalismo, ainda que muito plausível, não se mostra suficiente para a solução do problema.
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A discussão sobre a justificação epistêmica O internalismo é uma corrente que acredita que o agente cognitivo deve ser capaz de refletir sobre aquilo que justifica suas crenças. Isso se dá porque o agente só pode estar justificado por si mesmo em acreditar em algo se puder refletir e observar em primeira pessoa aquilo que justifica suas crenças. Portanto, a justificação é exigida pela razão, é uma garantia para que o indivíduo assuma o conhecimento de algo. A infalibilidade torna-se necessária, pois a partir do momento em que o agente cognitivo percebe uma possível falha na justificação, não considera mais que suas crenças estejam justificadas, pois sua razão exige outra justificação, e isso deve regressar ao infinito enquanto não houver uma justificação infalível. Tal problema serviu de inspiração para a resposta dos fundacionalistas com relação ao regresso epistêmico. Eles se apoiam na crença de que se não houver uma justificação infalível, não pode haver conhecimento. Os fundacionalistas então propõem a existência de um “dado”, que por sua vez é não conceitual e não inferencial, e por isso indubitável, infalível e incorrigível. Esse dado serve como matéria-prima à qual todos os conceitos são aplicados, se este fosse ausente, não haveria como conceituar. Essa é uma resposta dos fundacionalistas aos anti-fundacionalistas, como Wilfrid Sellars1, que afirma ser o dado um mito. O argumento de Sellars é o de que não há conhecimento nem justificação de algo que não seja através de conceitos e de modo conversacional, pois o que chamamos de conhecimento está ao nível do juízo. Portanto, não faz sentido afirmar que pode haver algo que seja não inferencial, o próprio dado é um conceito e existem outras crenças que o justificam, portanto, ele mesmo não pode ser não-inferencial, e assim é tido como um mito. Contudo, os fundacionalistas ainda possuem bons argumentos para se defenderem, e pôr o dado como matéria prima para os conceitos é um deles. Para um fundacionalista o dado recebido por qualquer agente cognitivo é o mesmo, os conceitos que o agente possui é que serão aplicados sobre o dado e tornarão a perceptiva do agente, com relação ao dado que recebe, diferente da dos outros. Mesmo assim, os anti-fundacionalistas propõem uma teoria da justificação diferente, que tente superar o problema da regressão. Grande parte dos adeptos desta teoria exigirão a reflexão do agente cognitivo, podendo então cair novamente no problema do regresso, como será visto. Essa teoria chama-se coerentismo. O coerentismo afirma que o erro do fundacionalismo é conceber a justificação como linear, portanto, o regresso é eminente. O coerentismo então usa-se de um critério para a justificação de alguma crença: a coerência que esta crença tem com relação a um sistema de crenças aceito pelo agente cognitivo. O termo coerência aqui, não se refere a uma relação lógica entre as crenças de um sistema, mas de uma relação probabilística entre as crenças. Estou justificado a acreditar que P pela crença X, a crença X dá probabilidade a P. Por exemplo, alguém poderia estar justificado em acreditar que o sol 1# Sellars expõesobre o mito do dado em seu ensaio de 1956 “Empirism and philosophy of mind”. O leitor interessado em uma pequena exposição do argumento de Sellars pode ler o capítulo 6 do livro “Introdução à teoria do conhecimento” de Dan O’brien publicado pela editora portuguesa Gradiva.
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nascerá amanhã, pois aquilo que o justifica fornece grande probabilidade de o sol nascer amanhã, no caso, o sol ter nascido todos as manhãs até então. Uma pessoa que não tenha conhecimento dos argumentos racionais para a existência de Deus, poderia acreditar que não há um Deus, como o Deus cristão, pela ausência de razões epistêmicas e a existência apenas de razões prudenciais por parte da grande maioria dos cristãos, dando grande probabilidade de Deus não existir para esta pessoa. Um sistema de crenças desse tipo é um sistema coerente de crenças. Como o coerentismo não concebe a justificação como linear, livra-se do regresso epistêmico. Contudo, um regresso aparece com a necessidade do agente cognitivo de refletir sobre o que torna seu sistema coerente. Essa exigência da reflexão se dá pela não plausibilidade de se ter um sistema coerente sem reflexão. Ora, se não preciso refletir sobre a coerência de meu sistema de crenças, posso acreditar, por exemplo, que toda vez que um galo canta é porque está de manhã, esta crença está apoiada probabilisticamente com a crença que tenho de que todas as manhas o galo canta. Contudo, há galos que podem cantar a noite ou em qualquer hora do dia, e eu só sou capaz de chegar nessa conclusão se refletir sobre essa possibilidade. Portanto, se não houver uma reflexão sobre o sistema de crenças, corre-se o risco de deixar o conhecimento a mercê da sorte. O problema é que, como não há uma crença básica, o agente cognitivo sempre será passível de não estar justificado, a não ser que haja uma justificação infalível, e isso o levará a um regresso ao infinito, pois sempre necessitará de justificação para cada uma das crenças que compõem seu sistema. Uma das respostas para esse problema é o externalismo. Se o agente cognitivo não necessita de justificação para ter conhecimento, então isso poderia nos livrar do problema do regresso. Há casos em que não precisamos refletir sobre nossas crenças para estarmos justificados em acreditar em algo. Por exemplo, quando estou com calor não preciso refletir sobre esta minha crença, sei imediatamente que estou com calor. Contudo, posso duvidar que estou com calor e a partir de então necessito de reflexão para estar justificado. Mas, isso não quer dizer que a reflexão seja necessária para se ter conhecimento, a reflexão do agente surge aí como forma de eliminar a dúvida, uma forma mais garantida para o conhecimento, que enfrenta muitos problemas. Os externalistas afirmam que não é todo caso em que o indivíduo está imediatamente justificado, existem condições para que isso ocorra. Uma delas é a de que a crença de S que P estará justificada, se P estiver em uma relação causal com a crença de S que P. Por exemplo, um músico profissional sabe distinguir entre as notas musicais de ouvido, pois estas notas causam a crença do músico em torno dela mesma. Uma outra condição surgiria com este exemplo: se o músico estivesse ouvindo uma nota que não conhecia, provavelmente estranharia e surgiriam certas dúvidas em sua mente. O agente cognitivo somente crê que P se for o caso que P, na condição de que se P continuasse a ser verdadeiro em circunstâncias diferentes, S continuaria acreditando que P. Essa é a teoria do rastreamento da verdade de Robert Nozick2, que defende o rastreamento da verdade 2o Nozickexpõe seus argumentos sobre o rastreamento da verdade em sua obra “Philosophical Explanations” de 1981. Ao leitor interessado em uma abordagem mais simples e rápida dos argumentos de Nozick, recomendo a leitura do capítulo 8 da obra “introdução à teoria do conhecimento ” (GRADIVA) de Dan O’Brien.
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através das crenças do agente cognitivo. Contudo, ainda que essa teoria seja forte e tentadora, ainda não está claro se ela se aplicaria a todos os casos. Existem casos em que necessitamos de justificação para nossas crenças, e mesmo com justificação, ainda não teríamos garantia de que temos conhecimento. Por exemplo, acreditava-se que a terra era o centro do universo, achava-se que isto era conhecimento e grande parte das pessoas estavam epistemologicamente justificadas em acreditar nisto. Somente hoje, depois do desenvolvimento científico somos capazes de dizer que o que tínhamos não era conhecimento. O externalismo não é capaz de garantir quando temos conhecimento ou não, exige-se, portanto, a justificação, mas mesmo esta, como fora visto no exemplo, não é suficiente.
Conclusão A justificação sempre nos leva ao mesmo dilema. Por um lado, necessitamos de uma justificação infalível que não nos leve a um regresso ao infinito. Por outro lado, uma justificação infalível não parece ser necessária para o conhecimento, visto que podemos ter conhecimento sem justificação e ainda podemos acabar por eliminar a possibilidade de se ter o conhecimento de algo que não possa ser justificado, pelo menos não de maneira infalível. Ora, as justificações que temos a respeito da existência do mundo ao nosso redor são falíveis, René Descartes é um grande exemplo de filósofo que pôs em dúvida a existência do mundo sensível. No entanto, por mais que possamos pôr em dúvida sua existência, ainda existe a possibilidade de o mundo sensível existir, por isso, se exigirmos a infalibilidade da justificação, podemos excluir a possibilidade de tomarmos como conhecimento a existência do mundo ao nosso redor. Nesse sentido, os problemas em torno da justificação epistêmica parecem ser talvez bem mais complicados do que o problema em torno da pergunta “o que é conhecimento? ”. E há ainda aqueles que, com todo direito, exigem que saibamos antes de tudo o que é o conhecimento, mas se para que saibamos disto necessitamos saber sobre a justificação, então estamos em um estado extremo de aporia. Quais são as justificações que tenho para acreditar que isto a minha frente é uma caneta? É a utilidade, ou causa final da caneta? Ora, as canetas são usadas para escrever e possuem tinta. Mas, existem canetas que continuam sendo canetas mesmo depois que a tinta acaba, ou ainda podem existir canetas em que não se tem como escrever com elas, pois podem ter estourado ou podem ter entupido. Se você diz que a caneta deixa de ser caneta por não ter mais tinta e não escrever, então temos uma solução para o problema e realmente o que define a caneta são seus atributos de ter tinta e escrever. Deveríamos então criar outro nome para aqueles objetos que parecem canetas, mas não são. Por acaso você diria que o corpo de um homem-morto não é mais um homem, pois agora está morto? Isso dependerá dos critérios que satisfazem a definição de um homem. Contudo, existem outros critérios que se podem atribuir a uma caneta, que não Volume 5 no 2
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apenas ter tinta e poder escrever, afinal, mesmo canetas com defeito de fabricação ainda são canetas para muitas pessoas. Ora, por que ainda são chamadas de canetas? Talvez porque existam outros critérios. A forma da caneta parece ser um critério, afinal, já vi várias canetas e todas elas têm um formato semelhante. Contudo, esta mesma caneta, pode ser destruída, sua forma pode ser mudada, e além disso não há de forma clara uma definição pura do que chamamos de caneta pela sua forma, pois elas possuem formas diferentes. Bem, então é pela semelhança entre as canetas que sei que são canetas? Este parece ser um bom critério, contudo, eu posso ter um brinquedo com a mesma forma da caneta, não sendo, portanto, uma caneta. E se pegássemos emprestado um termo metafísico de Aristóteles, e a caneta fosse definida por sua substância? Essa seria uma forma perfeita de definir a caneta, mas as substâncias são vistas por nós através de acidentes – coisas que existem de forma parasitária à substância – portanto só poderíamos identificá-las por seus acidentes. Afinal, qual é o critério para se definir uma caneta? A justificação pode nos levar para o conhecimento da caneta, mas o critério para a justificação parece ser mais difícil que os critérios para o conhecimento. Se a justificação exige critérios, temos um regresso ao infinito, pois esses critérios também exigem justificação. O problema é que tudo o que dizemos conhecer aparentemente pressupõe justificação. Ora, uma criança sabe que há em sua frente uma árvore, pois sua percepção torna-se uma justificação forte para ela acreditar que está vendo uma árvore a sua frente, se começa a se questionar sobre a árvore; passa a exigir, pois, novas razões para justificarem a crença e, portanto, passa a não ter mais como justificação sua percepção. A justificação é uma exigência do agente cognitivo, ao mesmo tempo ela exige certos critérios, e estes só são observados ao longo das mudanças de exigência e dúvidas do agente cognitivo. O problema é que, se não houver um critério último para a justificação, o agente cognitivo sempre pode criar alternativas que anularão a justificação. Há ainda mais um problema: a justificação também dependerá do objeto que procura justificar, tornando praticamente inviável a existência de um critério último para a justificação, visto que talvez precisássemos de uma justificação diferente para cada objeto de conhecimento.
REFERÊNCIAS FUMERTON, Richard A. Epistemology. Oxford: Blackwell Publishing, 2006, p. 33-52. (First book in Philosophy). GETTIER, Edmund. “Is Justified True Belief Knowledge?”. 1963, Analysis, 23: 121– 123, [Online]. Disponível em: <http://www.ditext.com/gettier/gettier.html> O’BRIEN, Dan. Introdução à Teoria do Conhecimento. 1ª Edição. Lisboa: Gradiva, junho de 2013, p. 380. (Filosofia Aberta). Volume 5 no 2
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RODRIGUES, Luís Estevinha. Conhecimento. In: Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica, Edição 2013, Centro de filosofia da Universidade de Lisboa. Disponível em: <http://compendioemlinha.letras.ulisboa.pt> (último acesso em 28 de julho de 2016).
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CETICISMO EM RELAÇÃO AO NÃO-ESPELHO: CIVILIZAÇÃO X TRANSOUTRIDADE! Henrique Azevedo*
Resumo: Esta foi uma fala proferida no I Encontro sobre ceticismo da Universidade Estadual do Ceará. Houve pequenas mudanças em relação àquela do dia do evento, mas sem nada substancial, senão correções de erros de digitação. O conteúdo versa sobre a proposição de um conceito, a saber, o de transoutridade, que diz respeito a um exercício de enxergar o outro em sua própria outridade sem remeter a nós mesmos, sem subsumi-lo em nosso modo de pensar ocidental como é próprio da “civilização europeia” e seus derivados. Para exemplificar a validade deste conceito proposto, trouxemos à tona o modo de vida e pensamento de alguns povos ameríndios sul-americanos que praticavam em sua cultura e costumes algo como uma transoutridade. Praticar isso não significa que eram transoutros, mas apenas que algo como isso é possível. Palavras-chave: Ceticismo; Ameríndios; Civilização; Transoutridade. Abstract: This was a speaking spoken at I Encontro sobre ceticismo da Universidade Estadual do Ceará. There were some little changes in relation to that speaking day, however without any substantial change, but correction of some typing errors. The content concerns about a concept, i.e., transoutridade, which means an exercise to see the other in its own otherity, without to remit back to us, nor assimilating it in our western way to think, as does the European civilization and
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its derivatives. To exemplify the validate of this concept, we brought to the scene the way of life of some South American indians, that have been practicing something like this transoutridade. This practice doesn't mean they were transoutros, but, just, it is possible. Keywords: Skepticism; Amerindians; Civilization; Transoutridade.
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isse Fernando Pessoa, reaproveitando uma frase do general romano Pompeu, do alto de sua lucidez poética: “navegar é preciso / viver não é preciso.” Essa exatidão ficou-nos mui clara a partir da chegada das primeiras navegações, pois a precisão científica da navegação trouxe um modo de vida outro em relação ao que aqui se praticava, que, em comparação, era por demais impreciso. A justeza do navegar mostrou a face completamente impertinente da civilização ocidental em sua sede de rejeição e assujeitamento daquilo que não é espelho. Narciso é mais que um mito de um herói, ele é a própria imagem da vida civilizada, organizada a partir do modelo de pensamento inaugurado pelo pai Parmênides. O civilizado trata de universalizar a sua visão sob a égide do princípio monista de identidade de que Ser = Pensar. O problema não é o que há de mais superficial neste modo de compreensão, mas sim no sutil movimento mesmo que subjaz a esta lógica identitária: há uma incapacidade ocidental patológica de entender tudo o que não é espelho, e tal entendimento dá-se a partir de seus próprios paradigmas. O ocidente greco romano é cético em relação ao não espelho Precisamente, como esta introdução nos mostra, não quero tratar aqui hoje de uma forma de ceticismo dentro dos parâmetros ocidentais, ou seja, nem acadêmico tampouco pirrônico. O que está em jogo aqui é uma forma sutil de ceticismo psicológico de massas, que permeia a alma do civilizado formado a partir da tríade cultural ocidental greco-romana-cristã, isto é, esta cultura tende a tratar o outro como outro de si mesmo, enquanto algo que já está embutido de alguma forma na universalidade de suas designações. O pensamento que se intitula racional tem como uma de suas bases a filosofia, enquanto instância fundadora de sua relação de organização tanto concreta quanto abstrata de seu mundo. A visão de mundo grega está no cerne dessa relação e é, por demais, devedora desse organizador da totalidade, que é o princípio de identidade de Parmênides: Vem, pois, e eu te direi - e tu, atenta para meu dito e leva-o contigo - os dois únicos caminhos de investigação em que se pode pensar. O primeiro, aquilo que é e que lhe é impossível não ser, é o caminho da convicção, pois a verdade é sua companheira. O outro, aquilo que não é e que precisa necessariamente não ser - esse, eu te digo, é uma trilha sobre a qual ninguém pode aprender. Pois não podes conhecer o que não é - isso é impossível - nem enunciá-lo, pois o que pode ser pensado e o que pode ser são o mesmo. (BARNES, 2003, p 153) Ora, isto abre a possibilidade para duas perguntas: é possível pensar o outro sem partir ou chegar a nós mesmos? Ou mesmo: precisamos pensar o outro? Infelizmente, estas duas questões não passam de reverberações do modo europeu de se perguntar Volume 5 no 2
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sempre por si mesmo. A história da colonização na América do Sul faz-nos ter a plena noção de que estas perguntas foram respondidas sim, mas a chumbo e sob o ferro das espadas. A miséria existencial nos é imposta pela razão de mundo civilizada nos compele a descolonizarmo-nos, partindo da questão mais precisa para uma mudança de paradigma de nosso modo de vida: somos capazes do outro? Ou, mais precisamente, é possível ir tão para além de toda essa confusão existencial, de modo a nada nos restar do anterior, nenhum resquício dialético, uma total transoutridade? A resposta a estas perguntas, confesso humildemente, será um grande e eloquente NÃO SEI. Podemos notar, no entanto, dois aspectos do modo como o colonizador vê o seu outro, a saber, 1- ou reconhecendo no outro algo de si mesmo, uma vez que este carregaria alguma coisa que o caracteriza como humano com; ou mesmo, seguindo este primeiro ponto, 2- como sua protocivilização ao entendê-la em sua infância, enquanto a sua estaria em um nível superior já adulto. Estas duas características podem ser encontradas em uma passagem da Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer, quando estes dizem no excurso sobre Ulisses que “terrível é a vingança que a civilização praticou contra o mundo pré-histórico e nisso ela se assemelha a pré-história.” (1985, p 70). Tal consideração da “civilização” nos traz de volta à interpretação do poema de Parmênides à deusa. Este revela-nos que a constância do pensamento europeu reside justamente na ideia de civilização em seus variados sentidos. Assim, duas características da tradição de vivência do monismo parmenideano nos são caras aqui: 1- não é que o NÃO-SER seja impossível de ser pensado, não possuindo verdade alguma, mas sim que ele NÃO-DEVE-PODER-SER de modo algum, reverberando tal consideração prontamente no modo de vida do homem europeu, branco, cis, patriarca; o ideal e o material deste aspecto foram levados às últimas consequências na prática de conquista americana (voltaremos a este aspecto). 2- A religião cristã interpretou o princípio de identidade a partir de si mesma, obviamente, e não do orfismo característico da MagnaGrécia à época. Isto quer dizer que houve um deslocamento do modo de apresentação do aspecto cosmológico, mas que não foi suficiente para se perder a relação entre cosmologia monista e modo de vida. Muito pelo contrário, reforçou o cristianismo como a única religião, a verdadeira, que todos inexoravelmente devem seguir. Estas duas características revelam, que a civilização, mais precisamente a que chegou à América, baseava-se na ideia renascentista de cultura superior (resgatando suas bases gregas), por meio do poder político coercitivo e da religião baseada na crença dogmática. Toda esta cena de uma tragédia anunciada revela-nos que nós, sentados aqui hoje, esquecemos algo importante; isto que esquecemos não foi o Ser de Heidegger em seu euro-etno-centrismo característico, mas sim esquecemos o Não-Ser, esquecemos o modo como nossos ancestrais indígenas organizavam seu mundo, suas bases cosmológicas, a não verdade civilizada. Talvez o esquecer seja uma grande bondade de nossa parte, pois o aculturamento que sofremos foi de tal modo bem-sucedido que não tivemos tempo de aprender algo outro para podermos, posteriormente, esquecermos. Volume 5 no 2
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Filhos de Parmênides e órfãos de Tapebas, Jenipapos Canindés, Cariris, Potiguares e etc. Aqui proponho pensarmos não apenas a partir do outro enquanto mero outro assujeitado pela violência sistêmica que fundou o direito, a propriedade, o rei e etc.; mas sim a partir de um transoutro, um pensamento que é capaz de ter em si o gérmen do NãoSer, do impensado, do diferente total, é a ideia de que os outros possuem seus estatutos próprios que não nos cabe assujeitar ao nosso. O transoutro a ser pensado não é um mero ultrapassar, tampouco um devir outro ou outra natureza; abandonemos, mesmo que por um breve instante, sem traumas, obviamente se possível, categorias como as de totalidade, universalidade, verdade, comensurabilidade, a fim de transoutrarmos. Pois, o transoutro é um eterno reconhecer a si mesmo como incompleto e incapaz de impor seus paradigmas. A primeira questão que se nos revela é: como? A resposta que proponho é um convite a transoutrarmos no pensamento ameríndio, mais precisamente, adentrarmos na cosmologia, principalmente, dos Tupinambás do litoral brasileiro e dos Guayakis do chaco paraguaio. Ora, para transoutrarmos ainda precisamos de um pouco de colonizações iniciais (em verdade, sempre o precisaremos, mas transoutro não reside nas peças que usamos, mas no modo como usamos, abrindo-nos não apenas ao outro, mas captando também o outro e deixando espaço para que outros Outros apareçam) e iniciaremos, expondo que os dois pilares que aqui imediatamente chegaram da Europa nas mentes e corações de padres e navegadores, em geral, foram a ideia de que Deus está no céu e o Rei, seu representante, está na terra a guiar os caminhos. Mais precisamente, refiro-me à religião baseada em uma crença dogmática e ao poder respaldado na coerção dos corpos. Desse modo, duas perguntas se abrem: seria possível haver poder sem coerção? E também uma religião sem crença? A resposta é sim. Vejamos um pouco do mundo dessa “gente sem fé, sem lei, e sem rei”, como diziam os cronistas do século XVI.
1. Da Falácia: “sou nem índio pra ter chefe!” Deve realmente ter sido espantoso para os europeus do século XVI ver as sociedades ameríndias das terras baixas da América do Sul. Ora, como nos afirma Pierre Clastres “as sociedades primitivas são sociedades sem estado” (p 132); aqui o que está em jogo é, justamente, a designação de que falta algo a estes homens, pois não se poderia naquela época, e nem agora, imaginar uma sociedade sem estado, pois “o estado é o destino de toda sociedade” (Idem). O critério da falta mostra sobretudo a incapacidade para compreender o modo de organização social completamente transoutra das sociedades ameríndias, um modo de vida que se revelou de extrema complexidade em suas alianças e constituição familiar de parentesco. Ou mesmo, melhor dizendo, o critério de Carl Schmitt para identificar o soberano como aquele que decide na exceção não se aplica de modo algum àquelas sociedades. Para compreendermos o poder, ou sua falta, na sociedade ameríndia devemos começar por entender o seu modo da organização social do trabalho; partamos das reflexões de Pierre Clastres: Volume 5 no 2
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O grosso do trabalho, efetuado pelos homens, consistia em arrotear, por meio de um machado e com o auxílio do fogo, a superfície necessária. Essa tarefa, realizada no fim da estação das chuvas, mobilizava os homens durante um ou dois meses. Quase todo resto do processo agrícola – plantar, mondar, colher -, em conformidade com a divisão sexual do trabalho era executado pelas mulheres. Donde a seguinte conclusão feliz: os homens, isto é, a metade da população, trabalhavam cerca de dois meses em cada quatro anos! O resto do tempo era passado em ocupações encaradas não como trabalho, mas como prazer: a caça, pesca; festas e bebedeiras; a satisfazer, enfim, o seu gosto apaixonado pela guerra. (2013, p 136)
Esta passagem nos mostra que comparado a nossa civilização, um índio trabalhava quase nada. Ele assegurava a subsistência da tribo em muito pouco tempo, deixando muito tempo livre para outras atividades bem mais prazerosas. Os cronistas do século XVI confirmam esta afirmação e se espantavam ao mostrar a saúde e bom aspectos dos índios, o que significa que ninguém estava passando necessidade alguma. Esse processo acima descrito se refere às sociedades que tinham a agricultura como sua principal fonte de subsistência, contudo para as sociedades nômades, como os Guayaki do chaco paraguaio, a caça e a coleta representavam a principal fonte de alimentação e, mesmo assim, a caça, por exemplo, era encarada bem mais como esporte do que como necessidade (o que não significa que não fosse necessária), entretanto havia uma regra em relação ao caçador: este não poderia comer daquilo que ele mesmo caça, e sim apenas do que o outro traz para a tribo; isto mostra o caráter de dependência para com o outro como algo que beneficiava toda a sociedade: uma sociedade materialmente solidária. Ora, isto significa que o tempo de trabalho do índio era mínimo e, relativo principalmente às sociedades nômades, a caça era vista bem mais como esporte do que como trabalho. Pergunto, com isso, para que trabalhar mais do que o necessário e criar um excedente de produção? De que lhes serviria isso? Só se trabalha além do necessário pela força, pela coerção, coisa que estava completamente ausente da sociedade ameríndia. Um homem caça para alimentar sua família e a tribo, reflexamente; e não porque alguém se apropria do excedente de sua produção, respaldado por leis petrificadas na forma estado e por um chefe que simboliza o poder sob a forma da coerção. No entanto, a tribo não possui um rei, mas um chefe e este chefe não é chefe de estado, obviamente não há estado; muito pelo contrário, as suas funções são muito limitadas e supõem, plenamente, a sua falta de poder coercitivo. Clastres, em sua Sociedade contra o estado, retira três características da chefia indígena a partir de um texto do antropólogo Robert Lowie intitulado Titular Chief, que diz:
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1- O chefe é um 'fazedor de paz'; ele é a instância moderadora do grupo, tal como é atestado pela divisão frequente do poder civil e militar. 2- Ele deve ser generoso com seus bens, e não se pode permitir, sem ser desacreditado, repelir os incessantes pedidos de seus 'administrados'. 3- Somente um bom orador pode ascender à chefia.” (2013, p 23)
A primeira característica mostra justamente o que todos já sabem, a sociedade indígena é uma sociedade voltada para a guerra, e nesta, justamente o chefe guerreiro organiza a estratégia guerreira. Contudo, esta característica só se efetivará se os seus guerreiros concordarem com a estratégia, caso contrário o chefe será destituído de suas funções. A segunda característica é a que mais nos traz um gozo reconfortante, pois para reconhecer o chefe nas tribos ameríndias, em geral, basta ver aquele que tem menos adereços e, quando os tem, são os mais pobres e sem pompa. O chefe tem como uma de suas funções primordiais atender aos pedidos de seus '‘administrados’'. Por conta de sua função destituída de poder, ele não é servido, mas sim, ao contrário, serve e este dever é primordial para a coesão e unidade da tribo. A terceira característica, por assim dizer, fecha a abóboda da tradição de chefia indígena, pois o chefe detém o poder de falar pela tribo, ele tem de ser articulado tanto para evitar (raramente, diga-se de passagem) uma guerra, quanto para não ficar sem nada devido aos incessantes pedidos. Os índios apreciam muito a palavra do chefe, mas desde que seja audível e satisfaça a eles seu proferimento. Os cronistas contam que, muitas vezes, não entendiam como o chefe falava praticamente para ninguém, pois todos os integrantes da tribo não davam a menor bola para o que chefia dizia, ou mesmo fingiam não dar bola. Mas, se a chefia indígena tem todos estes contratempos, então por que alguém queria ser chefe? Bem, podemos dizer que havia vantagens; citaremos duas por economia de tempo e ouvidos: primeiro, a literatura etnográfica mostra que o chefe tinha o privilégio da poligamia e, com isso, esta se dava sem possuir, ao mesmo tempo, o privilégio de melhor alimentação ou moradia diferente da dos outros. Segundo, ele possuía prestígio junto a tribo, algo que é bem diferente de possuir poder coercitivo. Este prestígio o elevava a alguém tido por grande guerreiro bem-visto, e não por sua condição material, uma vez que, por exemplo, não se distingue nas casas coletivas a rede do chefe. Portanto, a palavra do chefe, tão prestigiada na tribo, não tem, contudo, força de lei ou como diz Clastres sobre a chefatura: Um chefe não tenta (ele mesmo nem sonha) subverter a relação normal (conforme às normas) que mantém com o seu grupo, subversão que, de servidor da tribo, faria dele o senhor. Essa relação normal, o grande cacique Alaykin, chefe guerreiro de uma tribo abipone do chaco argentino, a definiu perfeitamente na resposta que deu a um oficial espanhol que queria convencê-lo a levar sua tribo a uma guerra que ele não desejava: 'os abipones, por um costume recebido de seus ancestrais, fazem tudo de Volume 5 no 2
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acordo com sua vontade e não de acordo com a do seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eu não poderia prejudicar nenhum dos meus sem prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus companheiros, logo eles me dariam as costas. Prefiro ser amado, e não temido por eles.' (Idem, p 145) O antimaquiavelismo do chefe dos Abipones mostra perfeitamente o modo como este se porta em relação ao poder. O seu poder não era baseado na coerção, mas sim na extrema liberdade da tribo enquanto unidade tanto guerreira quanto social geral. O poder, principalmente, de sujeitar os outros às próprias demandas, ou mesmo usar o estado e seu aparato para benefício próprio estava ausente no modo de pensar indígena. Havia poder sem coerção! Este modo de entender o poder nos leva a segunda parte de nossa fala, a saber, por que guerreiam os índios? A resposta a esta pergunta nos remete a seu caráter propriamente religioso ou, especificando melhor, sagrado.
2. Se não der certo com Piaget, vamos de Pinochet ou dos jesuítas e sua educação teológico-civil. O historiador helenista e mitólogo Fernand Robert, em sua A Religião grega, disse que “a religião não está no que se conta, mas no que se faz” (1988, p 6) e talvez este tenha sido o maior erro dos jesuítas ao não entender a relação dos indígenas com o seu sagrado, a sacralização de determinadas práticas não foi notada pelos jesuítas como um caráter religioso próprio, principalmente no que concerne aos tupinambás. Os religiosos que vieram à América em missão oficial foram incapazes de entender algo que não fosse idêntico a si mesmo e de modo piorado entenderam o modo de ser dos indígenas como uma vida sem religião, quando a pergunta a ser feita diante dos costumes indígenas seria: é possível haver religião sem crença? Pergunta impossível a um filho de Deus e de Parmênides. Para respondermos essa questão temos de entender o que Viveiros de Castro chama de inconstância da alma selvagem. Os jesuítas que aqui chegaram, de início ao falar aos índios das coisas de Deus, dos feitos de Jesus Cristo e de seus apóstolos foram plenamente escutados e aqueles praticaram por um curto período de tempo os costumes cristãos, tanto que em suas primeiras epístolas tratavam seu apostolado como algo muito interessante, pois os índios aceitam tudo e a maioria após escutar o evangelho queria se tornar, prontamente, cristão. Contudo, apenas alguns dias depois de se dizerem cristãos, voltavam a seus velhos costumes e diziam não lembrar de nada que os padres tinham falado. Isto posto, segundo Viveiros: Entre os pagãos do velho mundo, o missionário sabia as resistências que teria a vencer: ídolos e sacerdotes, liturgias e teologias – religiões dignas desse nome, mesmo que raramente tão exclusivistas como a sua própria. No Brasil, em troca, a palavra de Deus era acolhida com displicência pelo outro. O inimigo aqui não era um dogma diferente, mas uma completa indiferença ao dogma, uma recusa de escolher. Volume 5 no 2
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Inconstância, indiferença, olvido: “a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo”, desfia e desafia o desencantado padre Vieira. Eis por que São Tomé fora designado por Cristo para pregar no Brasil; justo castigo para o apóstolo da dúvida, esse de levar a crença aos incapazes de crer – ou capazes de crer em tudo, o que vem a dar na mesma: “outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos.” (2002, p 185) O ameríndio aceitou tudo que os padres falaram, justamente, por conta de ter em si, segundo Viveiros e Lévi-Strauss, uma abertura ao outro, uma incompletude ontológica. Ele nunca se considera formado, fechado, o índio é uma estátua de murta, e não de mármore e certamente essa característica revela o modo de se portar do índio relativo à sua religiosidade. Os jesuítas converteram os índios e estes seguiam os preceitos cristão por curto período de tempo e depois voltavam a seus velhos costumes de poligamia, canibalismo, violência e constante estado de guerra. Os jesuítas diziam que os índios não tinham religião, mas apenas superstições e não entenderam que os costumes indígenas eram a sua verdadeira religião (assim como os costumes cristãos), e esta enquanto algo completamente material se externalizava nos seus costumes. Ora, digo aqui que a única constância na alma do índio era a guerra, vivia-se para ela e esta, como precisamente entende Viveiros, era a sua religião. Aqui duas características saltam aos olhos. A primeira, concernente à religiosidade tupinambá, para Viveiros, era a total ausência de dogmas, coisa que uma mente europeia, filha de Jesus e, principalmente, de Parmênides não conseguia conceber. Mais precisamente, “no século XVI, a religião sem culto, sem ídolo e sem sacerdote dos tupinambás ofereceu um enigma aos olhos jesuítas” (2002, p 185); este enigma e a inconstância no aprendizado e desaprendizado das coisas de Cristo fez com que os padres endurecessem o discurso e convocassem a corte a ensinar a ferro e fogo àqueles. A segunda característica diz respeito, justamente, a essa abertura ao outro, essa incompletude ontológica que fazia com que os índios escutassem os europeus e inclusive seguissem suas determinações, mas com uma condição, a saber, que isso os tornassem mais potentes para a guerra. Aqui está o cerne da coisa, que pode ser materializada na condição canibal dos indígenas: a guerra indígena tinha como objetivo aprisionar guerreiros da tribo adversária e vingar-se dos antepassados mortos, tanto que os aprisionados iam sem resistência para a aldeia adversária. Eles podiam viver com a tribo durante anos, tomavam uma esposa para que na condição de cunhado ficassem sob a asa de seu sogro para o trabalho na tribo. Muitas vezes, estes prisioneiros iam para guerra junto com aqueles que o prenderam. Entretanto, uma coisa era certa: ele sabia que algum dia morreria e seria devorado. Fugir estava fora de questão, pois o desonraria enquanto guerreiro, que, como tal, tinha anseio de morrer comido para poder ser vingado. Aqui entra talvez a principal característica do que Viveiros cita como a condição religiosa dos ameríndios, a saber, o Volume 5 no 2
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ritual canibal. No dia da morte do cativo, era um dia de festa para a tribo, produzia-se o cauim para que houvesse bebedeira. O cativo era besuntado com uma gordura especial e colocado no centro da aldeia. O carrasco também se preparava durante todo o dia, pois este tinha de dizer algumas palavras no ritual, isto é, o carrasco diz ao cativo que este capturou e matou muitos da sua tribo e, por conta disso, será morto e também comido. O cativo diz que os da sua tribo virão e vingar-se-ão daqueles que o comerem. Depois disso tudo, o carrasco desfere um grande golpe na cabeça do cativo com uma espécie de tacape e o mata. A simbologia do canibalismo tem duas características interessantes: a primeira é que todos comem a carne do morto menos o carrasco, pois este captura algo bem mais interessante, a saber, o nome deste. Ao matá-lo automaticamente este rouba para si o nome daquele e o portará pelo resto da sua vida. A segunda característica é que a tribo inteira se porta como unidade digna de vingança, uma vez que todos comem da carne do cativo, enquanto gesto de vingança coletiva. Os índios podiam mudar todos os seus costumes, inclusive, este de comer a carne do cativo, por conta da perturbação teológica dos padres, mas nenhum deles estava disposto a abandonar a guerra e a vingança. Na verdade, era precisamente esta que os faziam aceitar o outro de tal maneira, esta é uma grande mostra da incompletude ontológica dos índios, que precisamente devoravam o outro como forma de eternamente tentarem completar a si mesmos. Os índios para poder guerrear eram capazes de vender sua alma ao diabo, ou melhor, ao europeu. Aparentemente pouco inclinados a qualquer oposição segmentar, os Tupi vendiam a alma aos europeus para continuar mantendo sua guerra corporal contra outros Tupi. Isso nos ajuda a entender por que os índios não transigiam com o imperativo de vingança; para eles a religião, própria ou alheia, estava subordinada a fins guerreiros: em lugar de terem guerras de religião, como as que vicejavam na Europa do século, praticavam a religião da guerra. (VIVEIROS, 2002, p 212). A constância da alma indígena residia na capacidade de guerrear e, justamente, aqui estava o cerne da religião indígena: os seus ritos canibais e outros serviam como forma de sacralização da guerra, como diz Viveiros, havendo, com isso, uma religião sem dogma e sem crença neste. Mas, satisfaz a categoria da religião para explicar este fenômeno?
3. Transoutridade: capacidade de ser outro e, se calhar, não voltar a si mesmo. Em vista destes temas antropofilosóficos aqui delineados, se nos faz mister perguntarmo-nos: a antropofilosofia está pronta para assumir integralmente sua verdadeira missão de ser a teoria-prática da descolonização permanente do pensamento? Para responder a esta pergunta retomo a tese de Viveiros, no posfácio à Arqueologia da Violência de Pierre Clastres, sobre a dupla visão da universalização da antropologia, a Volume 5 no 2
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saber, “por um lado, ela pode fazer funcionar a imagem dos outros de modo que esta revele algo sobre nós, certos aspectos de nossa própria humanidade que não somos capazes de reconhecer como nossos” e, por outro lado, “a segunda forma de universalização parte, ao contrário, do postulado de que os primitivos são mais parecidos conosco do que nós com eles. E como apenas parecidos, aspiram a ser como exatamente como nós, ou seja, a viver felizes sob o signo da santíssima trindade do Homem Moderno: o Estado, o Mercado e a Razão.” (2013, p 316 - 318) Este modo de entender estas sociedades não colonizadas pela trinca geocultural Grécia-Roma-Judéia, mostra o grande narcisismo da civilização ocidental filha de Parmênides, inclusive na Antropologia, que deveria ser aquilo que mostra o outro em seu valor próprio, sem inferioridade em relação ao ocidental, patriarca, branco. Incapaz de ver o outro senão como espelho, não consegue visualizar que há outras mentes, outros paradigmas de pensamento e reflexão, a duplicidade sujeito-objeto não satisfaz o pensamento ameríndio. Este modo de pensar sempre nos faz organizar uma visão, por assim dizer, mais do mesmo, o ser-outro nada mais foi e o é do que ser outro de nós mesmos. Ao contrário desse modo de pensar, os ameríndios sempre conseguiram colocarse no lugar do outro, uma vez que este completamente outro poderia trazer algo que neles mesmos não havia, mas ao contrário de Viveiros, não acho que seja para completá-los em sua ontologia incompleta, e sim como uma capacidade de não sacralizar a si mesmo como grande espelho do cosmos. Ora, não se tomar a si mesmo como sagrado é bem diferente de não estar completo, esta categoria humana demasiado humana. Há o sagrado, mas não há a completude do sagrado, visto haver uma brecha que permite o estatuto do outro como válido. Isto nada tem a ver com as mitologias demiúrgicas ou mesmo com a atividade xamânica de, por exemplo, contactar os espíritos; mas sim, a própria ideia de que há algo para além de mim que eu mesmo não posso me fechar. Não me refiro aqui a um perspectivismo ou multinaturalismo (categorias de Viveiros), enquanto capacidade tanto de se colocar no lugar do outro quanto de ver o outro também como si mesmo, dependendo da relação predatória que se estabeleça. Tanto animais quanto humanos, para os ameríndios, tem em si a capacidade de ser diferente de si mesmo, instável (jaguar ver o outro jaguar como homem, e no momento que ataca o humano, este último vira queixada); essa capacidade de perspectiva e multinaturalismo mostra que tais modos de entender-se enquanto outro dos indígenas ainda é visto sob categorias ocidentais, uma tradução que acaba por se tornar, enfaticamente, uma traição àquele modo de pensar. Mesmo as categorias das perguntas que fiz acima, isto é, sobre a política e a religião, duas vertentes do humano civilizado, também são incapazes de abarcar o mundo indígena, pois ainda estamos no paradigma do modo de compreensão tradutora de uma cultura a outra. Poder e guerra são duas categorias que não abarcam o modo de vida ameríndio ou como diz Belchior em Conheço o meu lugar: “ninguém é gente, Volume 5 no 2
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nordeste é uma ficção, nordeste nunca houve”; assim também índio nunca houve, guerra nunca houve, poder nunca houve, “conheço o meu lugar” de incapaz de discurso sobre este outro, se eu não me torno o outro em seus costumes e linguagem? Talvez seja por demais radical isto, mas tenho de admitir o outro em seu campo próprio sem o remeter a mim, minha cultura, meu modo de vida. Parmênides tem de morrer, mas também Deus. Mas este último foi morto por nós e enterrado por Nietzsche, apesar de nos assombrar o tempo todo feito um fantasma imaginário que se materializa em nossos comportamentos a partir da célebre ideia do: “Deus está vendo!” Transoutro é admitir que as ideias e as pessoas não giram em torno de nosso umbigo, é uma desesgoistização social tão profunda a ponto de reinventar todo o nosso ordenamento social que passa pela política, pela religião e, principalmente, pela economia. Apesar de nossos antepassados indígenas terem construído algo como uma transoutridade em suas variações culturais próprias, nós a destruímos a base de Parmênides e Jesus. Precisamos nos reinventar e construir o novo, organizarmo-nos transoutramente. Perpetuemos tal construção e se o caso for destruindo-a, mas mudemos, é imperativo!
BIBLIOGRAFIA ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BARNES, J. Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CLASTRES, P. A Sociedade Contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2013. ____________. A Arqueologia da Violência: Pesquisas de Antropologia Política. São Paulo: Cosac Naify, 2013. ROBERT, F. A Religião Grega. São Paulo: Martins Fontes, 1988. VIVEIROS DE CASTRO, E. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002. _______________________. Metafísicas Canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
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O CINISMO E OS PROTÓTIPOS DE RISCO Bruno Pereira Cavalcanti1 Resumo: A filosofia como tendência, sempre buscou aprimorar sua capacidade de orientação. Ao acompanhar os cínicos fazemos exatamente isso: nada mais que seguir pistas, indícios, traços, não ditos, exibições. Porém, o que nos faz percorrer esse caminho mais uma vez depois de tanto tempo na história do pensamento? O cinismo é a experiência autofágica da filosofia, pois enquanto efeito puro se desvia das ilusões, esbarra nos erros para chegar à simplicidade própria da vida, despida, estéril e esvaziada. É em sua lida com o nada constitutivo do universo e da história, a incompreensão de sua existência, e a impossibilidade da transferência dessa experiência, que este ritmo se inscreve nos mundos. Ademais, devido a não realização do cinismo pela via teórica, ele reverte-se em prática da vida comum para o qual a vista se volta, agora. Nesse presente trabalho, é essa travessia no espaço, e sua estadia no tempo que o tipo de vida cínico nos interessa. Buscamos entender, a partir da ideia que Paulo Arantes cria de risco, e através do modo como Peter Sloterdijk dimensiona o cinismo a questão: como o impulso cínico resiste no espaço ao pesar do tempo? De um lado, o risco de lidar com um horizonte obscurecido, de outro a vertigem de dispor somente do próprio corpo como espaço de experiência, faz o pensamento realizar a trilha da história como um estreito percurso do qual não pode esquivar, e que, como se diz, é preciso seguir até o fim. É assim que vemos o cinismo como aquele que faz do si mesmo um protótipo, no sentido mais usual da palavra: aquele que se aplica à vida com suas próprias ideias e princípios e se alia ao que está disposto. A fórmula, não há como ser hipócrita em seus prazeres, é posta novamente em teste pelo cínico, no caráter emergente no qual a filosofia se encontra prestes a aplicarem-lhe uma anestesia. Palavras-chave: Horizonte. Impulso. Vertigem. 1V Graduando no curso de filosofia licenciatura na Universidade Estadual do Ceará – UECE.email: cartola_able@yahoo.com.br.
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Cinism and risk prototypes Abstract: The philosophy as a trend has always sought to improve its capacity for guidance. By following the cynics we do just that: nothing more than follow clues, clues, traces, not said, exhibitions. But what makes us travel this road again after so much time in the history of thought? The cynicism is the autophagic experience of philosophy, for as a pure effect it deviates from illusions, it comes up against errors in order to arrive at the simplicity proper to life, naked, sterile and emptied. It is in its deal with the constitutive nothingness of the universe and of history, the incomprehension of its existence, and the impossibility of the transference of this experience, that this rhythm is inscribed in the worlds. In addition, due to the non-realization of cynicism by the theoretical way, it reverts in practice of the common life for which the sight turns, now. In this present work, it is this crossing in space, and your stay in the time that the cynical kind of life interests us. We seek to understand, from the idea that Arantes creates at risk, and through the way Sloterdijk sketches cynicism the question: how does the cynical impulse withstand space in spite of time? On the one hand, the risk of dealing with an obscured horizon, on the other hand the vertigo of disposing only of one's own body as a space of experience, makes thinking realize the path of history as a narrow path from which it can not avoid, and which, as If it is said, one must go to the end. This is how we see cynicism as that which makes of itself a prototype, in the most usual sense of the word: that one who applies to life with his own ideas and principles and is allied to what is willing. The formula, there is no way to be hypocritical in its pleasures, is put to the test again by the cynic, in the emerging character in which philosophy is about to apply an anesthesia. Keywords: Horizon. Impulse. Vertigo.
“Tentação comum a todas as inteligências: o cinismo.” Albert Camus, A desmedida na medida
O expandir da mente torna o labirinto mais estreito (e o peito?) E assim vão-se os dias, voltam as noites frias. Despertando em morte, caminhando de surto em surto. Equilibrando o cataclisma diário com o quanto pesa na balança esse silêncio... (O vento sul me aponta o norte...) Projetonave & Síntese, Em favor do réu
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Dentre tantos começos possíveis para vermos o acontecer da história de uma tentativa como é a dos “cínicos”, uma boa imagem seria a da história tão repetida nas cidades: uma família se muda da casa onde viveu tantos anos para uma região totalmente nova onde se poderá tentar mais uma vez a vida. Apesar de todo o trabalho e correria que uma mudança exige os olhares dos que desempilham seus pertences se veem atentos com uma cena não só comum, mas digamos até esperada: a reação do cão que caiu da mudança. Não só pelo riso compartilhado com que se acompanha seu movimento, mas como mesmo em meio a tantos odores desconhecidos pode o cão reorientar o curso da sua existência indo por todos os lugares, sentindo os cheiros nos arredores, deixando ali também a sua marca. Então, um dia, ou uma noite, ele se perde de sua redondeza, encontre outras fortalezas para além dos muros de seu lar. Atraído por um estranho som quase imperceptível, impregnando sua intuição, mobilizando o seu corpo, fazendo a travessia de um caminho ainda mais sinuoso: a lembrança de seu antigo lugar e o seu incessante continuar. A filosofia sempre buscou aprimorar essa capacidade de orientação. Talvez devido aos caminhos perigosos que trilhou e os outros com que se deparou. Ou como diria Ruy, rapidamente, o cinismo nos interessa na medida em que “trata-se de incorporar, por meio de árduos exercícios, o discernimento natural dos cães”. O cínico é aquele que opera o próprio corpo como propulsor com “a dura disciplina da autarquia (autarkeia), do autodomínio (enkrateia) e da liberdade de fala (parrhésia)” 2 faz de si campo de batalha. Se não se vive sobre a Terra de qualquer maneira, quem dirá no cosmos. E hoje sabemos como são rigorosas as viagens. Procuraremos saber, portanto, que alianças se fazem nesse caminho (rodós) do pensamento e como o impulso cínico resiste no espaço ao pesar do tempo, nesta malha espessa e entrelaçada...
Onde estamos? Que horas são? O cinismo enganchado na história das ideias aparece na contemporaneidade como indicador de uma crise da cultura em declive com as contradições do mundo capitalista, devastado, insaciado: o capitalismo enquanto “geocultura de legitimação” do humanismo como narrativa já perdeu sua validade. E na borda desse humanismo vemos proliferar outras potentes narrativas (zumbis, alienígenas, vampiros, androides, cyborgs, entre outros.) como variações daquela ideia de humano forjada no nascedouro da modernidade. Como bem afirma Sloterdijk “o homem nunca se encontra no ‘meio de sua essência’, mas se acha ao lado de si mesmo como outro em relação àquele que ele ‘propriamente’ era ou pode ser” 3. 2V JÚNIOR, Ruy de Carvalho Rodrigues. De Kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 18 3V SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe, Maurício Mendonça Cardozo, Pedro Costa Rego e Ricardo Hiendlmayer. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. p. 93.
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Os outros tipos da fôrma “homem” começam, pois, a funcionar tão melhor quanto mais velozmente se afastam da ideia de humanidade como aquilo que desembrutece o ser humano através de uma formação literária e amansadora – o mote do humanismo nos diz que “as boas leituras conduzem à domesticação” 4. Contudo, irrompem na subjetividade corporeidades heterogêneas que encontram nos meios alternativos de síntese social – a radiofusão, televisão, e internet – um espaço para si 5. Aos poucos, vemos nosso corpo se desmanchar na substância secretada pelo organismo que é lentamente derretido por dentro pelo eco do pergunta: “quem, ou melhor, o quê é este eu que diz eu?”. Vemos ao longe, vindo uma onda desinibidora se aproximando, aparentemente irrefreável, e sem precedentes. Eis que a questão nos interpela: “o que ainda domestica o homem, se o humanismo naufragou como escola de domesticação humana?” 6. A fissura cavada pelo projeto humanista ao afastar, condicionar e tentar controlar a população iletrada, levando-a ao embrutecimento produziu quase uma diferença de espécie em relação àquelas subjetividades formadas na “alta cultura” da escrita. É para essa decisão política quanto à espécie que estamos sendo levados. E, desde então, para dar um suprimento a essa perda do idílio, nos servimos da política e da economia como instrumentos para decidir sobre o sentido da criação como modificação da face do mundo e realocação de seus habitantes. Aliás, a nossa história poderia ser vista pelo olhar do que se perdeu, de quais dívidas não foram pagas, quais promessas não foram cumpridas, que cumplicidades foram dilaceradas, que corpos nos foram ocultados A animalidade do homem aparece aí, em seu fracasso de ser e permanecer animal, na recusa de ser aquilo que é, nesse cíclico recomeçar da existência. Essa derrota na tarefa de se tornar animal nos colocou na encruzilhada entre um adestramento eficaz ou uma criação, que nos permitisse formular um novo código de antropotécnicas capaz de alterar o invólucro que nos reveste. A política pensada por Sloterdijk tem em vista não a mera domesticação de rebanhos relativamente dóceis, mas uma maneira de lidar com o perigoso interesse em “uma neocriação sistemática de exemplares humanos mais próximos dos protótipos ideais” 7. Alguns veem na tomada de posição de Sloterdijk um afastamento do pós4V SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad.: José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação liberdade, 2000. p. 17. 5V O tom ficcional dessas narrativas ganha um peso maior porque a ficção nos vem perguntar de que real se trata, admitindo antes níveis, gradientes de realidade, do que um único lugar para o real. “[...] no estridente término da era nacional-humanista experimentaria mais uma vez uma florescência tardia; tratou-se aí de uma renascença planejada e reativa, que forneceu o padrão para todas as pequenas reanimações do humanismo desde então. Não fosse o pano de fundo tão escuro, dever-se-ia falar de um surto de fantasias e autoilusões.” SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad.: José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação liberdade, 2000. p. 15. 6V SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad.: José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação liberdade, 2000. p. 32. 7V SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad.: José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação liberdade, 2000.p. 50. Contra as interpretações extremadas Sloterdijk ainda acrescenta mais adiante: “Para o leitor moderno – que lança um olhar retrospectivo para os ginásios humanistas da era burguesa e para a eugenia fascista, ao mesmo tempo em que já espreita a era biotecnológica – é impossível desconhecer o caráter explosivo destas considerações.” p. 55.
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humanismo crítico, sob a alegação de que o autor credita uma suposta criação intensiva da perfectibilidade humana. Segundo Felinto e Santaella, “Sloterdijk lança a hipótese, veemente criticada, de que hoje a engenharia genética restaria como a única forma viável de neutralizar as tendências humanas ao barbarismo e bestialidade” 8. Mas, agucemos mais ainda nossos ouvidos: e se trouxermos a função oculta da criação, ou seja, a disputa entre os criadores e seus projetos criogênicos, como mais uma ocasião de se dar alguma forma à irreversibilidade do nosso destino? A que voz ainda se poderá atender se ainda formos capazes de ouvi-la? Albert Camus soa bem sedutor quando nos indica que a criação “tira o espírito de si mesmo e o coloca diante de outro, não para que se perca, mas para mostrar-lhe com um dedo preciso o caminho sem saída em que todos estão comprometidos” 9. Podemos encontrar aqui um vetor para ler o cinismo como esse limiar onde a teoria e sua vista cansada busca com o tato um acesso a práticas menos viciadas em sua autojustificação. O problema colocado por aquele que cria é o de como adquirir um saber-viver para além de um saber-fazer. A criação aqui não oferece saída alguma, não é uma resolução dos problemas que enfrentamos. É antes um sintoma da grande vontade de viver. “A aprendizagem é muito mais uma questão de erga, que de logoi ou mathémata” 10. A inteligência ordenadora libera os movimentos pungentes do pathos, para obter a força para erguer mais uma vez os pesados portais que podem lhe dar passagem e estadia. A filosofia em sua versão cínica nos ensina a “estar preparado para enfrentar todas as vicissitudes da sorte” 11. É assim que Diógenes toma o saber filosófico, alterando o estatuto da sua aplicação. Epicteto nos diz claramente do que se trata a atividade da filosofia, em seu Encheirídion 12: O primeiro e mais necessário tópico da filosofia é o da aplicação dos princípios, por exemplo: “Não sustentar falsidades”. O segundo é o das demonstrações, por exemplo: “Por que é preciso não sustentar falsidades?”. O terceiro é o que é próprio para confirmar e articular os anteriores, por exemplo: “Por que isso é uma demonstração? O que é uma demonstração? O que é uma consequência? O que é uma contradição? O que é o verdadeiro? O que é o falso?” Portanto, o
8V FELINTO, Erick. SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos: Vilém Flusser e o pós-humanismo. 1. Ed. São Paulo: Editora Paulus, 2012. p. 147. 9V CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad.: Ari Roitiman e Paulina Watch. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.p. 111.
10V JÚNIOR, Ruy de Carvalho Rodrigues. De Kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 23. 11V LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego, introdução e notas: Mário da Gama. 2. Ed. Reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p.168. 12V Como nos diz Dinucci e Julien na apresentação do texto de Epicteto, “o termo grego encheirídion se diz do que está a mão, sendo equivalente ao termo latino manualis, ‘manual’ em nossa língua. Significa também ‘punhal’ ou ‘adaga’, equivalente ao latino pugio, arma portátil usada pelos soldados romano atada à cintura.” DINUCCI, A. JULIEN, A. O Encheirídion de Epicteto. Archai n. 9, jul-dez 2012, p. 123.
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terceiro tópico é necessário em razão do segundo, mas, o primeiro é o mais necessário e onde é preciso demorar. 13
É bastante comum gastarmos nossos esforços e energias nos perdendo nas autoilusões contidas no terceiro tópico, e esquecemos completamente do primeiro. Os cínicos se encontram, ao contrário, bastante ocupados em estudar meticulosamente as vias da liberdade, espreitando as circunstâncias, e aprendendo como colocá-las à sua disposição 14. É isso que pode se entender por aplicação dos princípios: saber dispor da própria vontade, atividade que se estende por toda uma vida tão longe quanto seu fôlego possa alcançar. Diógenes, O Cínico, se apresenta como aquele cão que ao cair da mudança ousou mudar de vida. É na apreensão de sua solidão assistida e de sua liberdade vigiada que uma segunda mudança se inicia. O auge da vida filosófica idealizada na antiguidade pela figura de Sócrates nas veredas da razão é então difratado pela imagem de Diógenes nas sendas da loucura. Os cínicos se tornaram espectros que agora vivem a rondar como fantasmas os maquinismos modernos: “no coração do reaparecimento do cinismo na modernidade está a sua atávica relação com o outro da razão, ou seja, com a loucura e com o silêncio do logos” 15. Habitando o avesso da existência o cínico vive a sua maneira de ser abrasado pelo sol 16. Descobrimos, nessa via, a habilidade para o recomeço de existir, mudando a natureza de sua própria imagem, sobrevivendo à história, e vivendo para além dela. O movimento cínico atinge um ponto secreto em que a anedota de vida e o aforismo do pensamento confluem num mesmo sentido. A “invenção” ensejada pelo cinismo
13V DINUCCI, A. JULIEN, A. O Encheirídion de Epicteto. Archai n. 9, jul-dez 2012, p. 132. 14V A fim de intuir como nos colocamos na direção do impensado, podemos ver como os motivos de Epicteto, de tomar a filosofia segundo a eficiência de sua aplicação, ressoam em Giordano Bruno Em uma passagem do seu ” Tratado de Magia”, Giordano Bruno, no tópico “Sobre os vínculos dos espíritos (a começar por aquele que tem origem na tripla razão do agente, da matéria e da aplicação) ”, nos diz que: “São três os fatores requeridos para que as ações sobre as coisas sejam levadas a bom termo: a potência ativa detida pelo agente, a potência passiva presente no sujeito ou paciente (ou seja, a disposição definida enquanto aptidão, ou ausência de repugnância, ou ainda a incapacidade de resistir; estes termos são redutíveis a apenas um: as potencialidades da matéria) e a aplicação apropriada às circunstâncias temporais e locais, e outros dados concomitantes; para resumir cada um desses fatores numa só palavra, falarei de agente, de matéria e aplicação. A ausência deste trio perpétuo estorvará de imediato qualquer ação.” BRUNO, Giordano. Tratado da magia. Trad.: Rui Tavares. São Paulo: Martins, 2008. p. 97. 15V JÚNIOR, Ruy de Carvalho Rodrigues. De Kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 20. 16V Podemos tomar um grande fôlego se lermos o que Albert Camus tem a nos dizer em seu prefácio tardio de sua primeira obra, publicado por ocasião de uma nova tiragem em 1957. Quanto a essa relação cosmológica solar e mediterrânea que estabelecia com sua África natal ele nos diz: “Para corrigir uma indiferença natural, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol. A miséria impediu-me de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na história; o sol ensinou-me que a história não é tudo. Mudar a vida sim, mas não o mundo do qual eu fazia minha divindade.” CAMUS, Albert. O avesso e o direito. Trad.: Valerie Rumjanek. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 18.
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não foi um conjunto de doutrinas, muito menos um método, mas ele mesmo – uma demonstração concreta, porém, maleável, de um modus dicendi, uma maneira de se adaptar verbalmente a circunstâncias (usualmente hostis). E esse processo de invenção, essa retórica aplicada, que constitui o discurso cínico, um processo em que estratégia de sobrevivência e estratégias retóricas convergem e se misturam repetidamente. 17
O que vemos no desenvolvimento do cinismo orientado por uso da oralidade é sua difusão na vida comum, um contágio do pensamento; uma maneira não intelectual de praticar a filosofia noutra instigação; uma “indissociabilidade entre bios e retórica” 18. Isso o reveste de uma invisibilidade representativa, como um tipo corriqueiro de mágica que os ajuda a desaparecer silenciosa e rapidamente quando importunados. A existência nas superfícies não tem nada a buscar na terra além dela mesma, e com o clima que se instala, já não conseguimos dizer com tanta precisão que horas marcam o relógio do pensamento. Poderemos ainda saber aonde vamos, mesmo sem saber onde estamos? É esse o desafio que o cinismo interpõe onde quer que se manifeste. A nossa disposição de caminhar poderá alterar a paisagem? Como num sonho onde cada passo dado modifica completamente o ambiente
O risco vertiginoso Nessa altura da hora do mundo, com o tempo que nos resta, percebemos com um ruidoso barulho de explosão como a possibilidade de nossa aniquilação como espécie, levada a cabo ao longo de todo o século XX, deslocou drasticamente nossas expectativas quanto ao porvir. As bombas que dormem calmamente nos depósitos esperando outra grande verdade para voltar à tona, dão um tom de urgência às experiências que nos sobraram. Isso porque “a bomba não exige de nós nem combate, nem resignação; ela exige que façamos a experiência de nós mesmos. Nós somos ela. Nela se consuma o ‘sujeito’ ocidental” 19. Fomos aos poucos sendo isolados em nosso próprio corpo até o momento em que sedimentaram na nossa pele o último limiar. A distensão se tornou o nosso único recurso para seguirmos rumo às águas não cartografadas do completamente outro. Nesse tempo de natureza diferente, como nos diz Paulo Arantes, “a distância entre expectativa e experiência passou a encurtar cada vez mais e numa direção surpreendente, 17V BRANHAM, R. Bracht. Desfigurar a moeda. A retórica de Diógenes e a invenção do cinismo. In: M-O. Goulet-Cazé e R. B. Branham (Orgs). Os cínicos: o movimento cínico na Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Loyola, 2007. p. 102. 18V JÚNIOR, Ruy de Carvalho Rodrigues. De Kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 23. 19V SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe, Maurício Mendonça Cardozo, Pedro Costa Rego e Ricardo Hiendlmayer. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. p. 192.
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como se a brecha do tempo novo fosse reabsorvida, e se fechasse em nova chave, inaugurando uma nova era que se poderia denominar de expectativas decrescentes” 20. Instalamo-nos então numa crise permanente tão logo tomamos consciência do que a unificação do globo terrestre realmente nos trouxe. A noção de progresso começa a entrar em declive, e passamos a entender a Terra como esse ponto zero do deslocamento ao qual se remete o movimento. No momento em que se abandonou a encosta da praia para adentrar no espaço liso de todos os mares, e a se buscar implacavelmente o coração de todas as selvas, a noção de risco emerge dessa desventura exploratória. Paulo Arantes ao buscar identificar o instante histórico em que o horizonte contemporâneo do mundo começa a turvar e encurtar descobre a lógica mesma do Novo Tempo do Mundo, ou seja, “uma sociedade do risco que acarretaria precisamente uma tremenda reversão de todos os horizontes modernos de expectativa” 21 Ao lidar com os comércios de longa distância a ideia de futuro politicamente calculável começa, pois, a ser arrastada por um inédito transcurso temporal. Por vivermos em uma sociedade que herda da civilização industrial moderna o futuro como um depósito de esperanças, o conceito de risco é central para poder pensarmos como romper com nosso passado truncado. Ora, se a dinâmica do capitalismo é articulada por uma temporalidade direcional e em ascensão, podemos cair então na sua compulsão estrutural de empurrar o presente para frente. O que ocorre é um aprisionamento do futuro, que reforça a necessidade do presente, este, em erosão. “À medida, portanto, que o globo encolhe e os horizontes temporais se reduzem a um ponto em que só existe o presente, o horizonte de desejo tende a zero” 22. Começamos então a busca pelos meios de ultrapassar esse espaço de tempo, em direção ao ainda não experimentável. Nesse nível de esterilidade encontramos no cinismo, mais sintomaticamente com Diógenes, a preparação para esse tipo de viagem incerta: sua prontidão é sua aretê. Estranho demais pra estar vivo, raro demais pra morrer. É assim que faremos uma mínima necromancia 23, prática bastante comum em filosofia, ao invocar a corporeidade cínica, no sentido em que Sloterdijk nos sugere que “acima de qualquer necessidade tal como ele se apresenta, Diógenes poderia, antes, ser considerado o protótipo daquele que se vira sozinho.” 24 Mas, se Diógenes não é nem cão, nem homem, 20V ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 67.
21V ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência . 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 55. 22V ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência . 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 75. 23V “Em sétimo lugar, fala-se de magia quando as adjurações ou invocações não se dirigem a demônios ou heróis, mas através deles às almas dos defuntos, de cujos cadáveres ou parte deles se recebem oráculos, advinhando-se e conhecendo-se as coisas ausentes ou futuras; é esta espécie de magia chamada, por sua matéria e desígnio, necromancia.” BRUNO, Giordano. Tratado da magia. Trad.: Rui Tavares. São Paulo: Martins, 2008. p. 31. 24V SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe, Maurício Mendonça Cardozo, Pedro Costa Rego e Ricardo Hiendlmayer. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. p. 222.
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nem ateniense, que raio de vida é essa? O que ele faz ao tomar as formas abstratas do homem e do cão é um movimento de dobragem dos dois, criando um protótipo e vinculando a uma força eficiente, ou seja, consegue entrelaçar natureza e vontade25. Interessamo-nos aqui na propulsão dada à ideia de protótipo na medida em vemos Diógenes como aquele que faz de si mesmo um protótipo, no sentido mais usual da palavra: aquele que se arrisca, que se põe em teste tendo em vista que o mais livre dos seres é o que tem a maior capacidade de ação. Há aqui outro modo de conectar a inteligência à felicidade e à ausência de necessidades. Como bem nos indica Sloterdijk
As épocas de crise crônica solicitam à vontade de viver dos homens que aceitem a permanente incerteza como o pano de fundo inalterável de sua busca pela felicidade. Eis o momento em que tocam os sinos do kynismos. Afinal, ele é a filosofia da vida em tempos de crise. É somente sob seu signo que a felicidade permanece possível em uma atmosfera de incerteza. Sua lição é a limitação das pretensões, a flexibilidade, a presença de espírito, a escuta do que se oferece no instante. 26
Podemos, agora, voltar ao diagnóstico que Paulo Arantes quando aponta para o obscurecimento do horizonte do mundo, sob a configuração do novo tempo, nos conduzindo a um futuro irreconhecível, inexperimentável, que “infiltrou-se no presente, prolongando-o indefinidamente como uma necessidade tão mais necessária por coincidir com um futuro que em princípio já chegou” 27. Precisaríamos encontrar um tempo ainda mais interno que conhece apenas o agora, ao invés desse presente que nos espreme no vórtex das expectativas e reminiscências? Fazer de si um protótipo é experimentar de maneira enteógena essa corporeidade contingente que se move nos interstícios do instante (Aion) “sem espessura e sem extensão que subdivide cada presente em passado e futuro, em lugar de presentes vastos e espessos” 28. Sua atitude indica uma involução, ao passo que “involuir é formar um bloco que corre seguindo sua própria linha, ‘entre’ os termos postos em jogo, e sob as 25V Para entendermos melhor esse jogo entre natureza e vontade, no sentido elencado por Giordano Bruno, quando nos diz que: “A força eficiente é dupla na sua essência: natureza e vontade. A vontade é tripla: humana, demoníaca e divina. A natureza é dupla: intrínseca e extrínseca. A natureza intrínseca é, em si mesma, dupla: a matéria, ou sujeito, e a forma, com a sua virtude natural. A natureza extrínseca é também ela dupla: é tanto a imagem da natureza, vestígio, sombra ou luz, como aquilo que sobra ou está à superfície do objeto (como o calor e a luz no Sol e noutros corpos quentes), e ainda aquilo que do sujeito emana e se escapa (como a luz, que, espalhada pelo Sol se encontra nos corpos iluminados, e o calor, que associado à luz no Sol, se encontra também nos corpos aquecidos)”. BRUNO, Giordano. Tratado da magia. Trad.: Rui Tavares. São Paulo: Martins, 2008. p. 40 – 41. 26V SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe, Maurício Mendonça Cardozo, Pedro Costa Rego e Ricardo Hiendlmayer. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. pág. 183. 27V ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência . 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014. p.77. 28V DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad.: Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2011. p. 69.
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relações assinaláveis” 29. Neste ambiente hostil e todo-poderoso a orientação desse bloco em movimento se dá, pois, na diferença entre a expectativa e a atividade: enquanto no modo de expectativa o futuro vem de encontro a ele provocando contração e recolhimento, o contrário ocorre quando este mesmo bloco se põe em atividade e passa então a obter algum controle sobre os acontecimentos. Há precisamente neste último movimento um alheamento e uma expansividade resultantes da habilidade do cinismo em esticar-se, ou seja, em sua tática de fugir do tempo e se entremear no espaço. Estar nesse presente perspectivado e repartido nos incita a buscar um lugar que não nos foi previamente designado, em que temos que inventar, achar, “imaginar um tempo do pensamento que seja sincopado e descontínuo” 30, para dizer com Bento Prado Jr. Na tentativa de olhar para alem do quadro e imaginar todo um horizonte de expectativas, podemos lançar mão de Diógenes enquanto figura da vida como esgotamento do possível, pois “se viver pode ser concebido como uma experiência do possível”, nos fala Ruy sobre a queda do tempo, “então para aquele que, em todo possível experimenta o porvir como gasto, feito, realizado, tudo é vivido como ‘virtualmente passado, e já não existem nem passado nem futuro’” 31. Paulo Arantes é preciso ao nos indicar o momento exato dessa queda em que uma geração foi marcada ao ser apartada de seu passado e privada de um futuro algures. Ora, é essa experiência social conjunta do tempo e do espaço, o sistema de vasos comunicantes entre o olho que vê ‘em perspectiva’ e o horizonte coletivo de expectativa de que participa como filho de seu tempo, que começa a entrar em colapso com a primeira grande crise sistêmica da geocultura do capitalismo histórico, a Grande Guerra de 1914 a 1918 [...]. 32
A guerra se apresenta a nós como um dever de memória, em que a lembrança se esforça em atualizar em nossos corpos a energia dessa cisão. Caímos, portanto, nessa temporalidade aberta exigida pela insônia desse pensamento constante que nos “impõe o abandono das esperanças voltadas ao por vir que não virá, e obriga a uma ruminação sem fim nem consolo sobre aquilo que não tem Outro, isto é, todas as coisas” 33.
29V DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. 1730 – Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível... I n: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 4. Trad.: Suely Rolnik. 2ª Ed. São Paulo: Ed. 34, 2012. p. 20. 30V PRADO JR., Bento. Erro, ilusão, loucura: ensaios. Comentários de Arley Ramos Moreno, Sérgio Cardoso e Paulo Eduardo Arantes. São Paulo: Ed. 34, 2004. p. 14. 31V JÚNIOR, Ruy de Carvalho Rodrigues. De Kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 33. 32V ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência . 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 70 – 71. 33V JÚNIOR, Ruy de Carvalho Rodrigues. De Kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 34.
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A nova emergência da discussão sobre o cinismo se dá por uma escolha em ajustar as pupilas e ver a vida como um rascunho incompleto e não mais como uma moldura definitiva. A vitalidade de uma existência estaria, portanto, naquilo que se pode reter durante seu incurso, por mais breve que seja, onde as perdas são as margens determinadas que balizam sua aceitação ativa do relativo. “Diógenes sustentava que a palavra ‘inválido’, devia aplicar-se não aos surdos e cegos, mas a quem não tivesse uma sacola” 34. Num mundo de riscos incalculáveis, em que o acaso e as transformações superam todo planejamento e onde as velhas ordens já não se acham à altura dos novos acontecimentos, sua existência encontra nessa fórmula uma espécie de aerodinâmica. O uso do bastão e da sacola, já não expressaria o que há de mais basilar na linguagem, ou seja, no nível da designação o sim da mão que junta e o não da mão que afasta? E seu olhar fixo isolando aquilo que é percebido não seria como uma dimensão suplementar em que o tempo é deixado em segundo plano em função de um espaço ainda mais vasto? É nesse paradoxo entre uma intensa expressividade e uma extrema mudez que “o próprio silêncio, em última análise, guarda um sentido quando os olhos falam” 35. Sua posição de anômalo lhe permite fazer um uso incomum da linguagem, entendida esta como prótese que se encontra prosteticamente instalada em nós. Vivendo como um mendigo, Diógenes recebe em contrapartida a parrhesia como “um tipo peculiar de privilégio conferido, paradoxalmente apenas pelo costume” 36 pela sociedade na qual se encontra, mas da qual não faz parte. Entendemos melhor agora a loucura específica do cinismo indicada por Platão 37, e que está relacionado à sua ecolalia, ou seja, à rima das palavras em dissonância. A nossa fala, nesse sentido, “não surge como um sopro da alma, mas é uma maquinaria combinatória que age por si mesma, além de que o aparelho fonador é um instrumento técnico instalado no corpo biológico por meio da usurpação de órgãos cujas finalidades originais não serviam à fala” 38. A contaminação que o cínico propaga é produzida do modo como se esgueira até aos ouvidos. O decisivo é sabermos que ou nos tornamos capazes de fazer um bom uso dessa prótese, ou então nos resta saber o que é isto que fala através da nossa voz, e em que tempo se expressa. Por fim, segundo o que até aqui foi dito, se vermos na ideia de protótipo, retroativamente formulada por Sloterdijk, um investimento histórico posto em marcha na antiguidade como uma aventura, e recebido por nós com urgência, podemos entender a posição de risco que ele agora ocupa. E, temporariamente, nos coloca sob um novo 34V LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego, introdução e notas: Mário da Gama. 2. Ed. Reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p. 160. 35V CAMUS, Albert. O enigma. In: Núpcias, O verão. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. p. 117. 36V BRANHAM, R. Bracht. Desfigurar a moeda. A retórica de Diógenes e a invenção do cinismo. In: M-O. Goulet-Cazé e R. B. Branham (Orgs). Os cínicos: o movimento cínico na Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Loyola, 2007. p. 118. 37V “Alguém perguntou: ‘Que espécie de homem pensas que Diógenes é?’ A resposta de Platão foi: ‘Um Sócrates demente’”. LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego, introdução e notas: Mário da Gama. 2. Ed. Reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p. 165 38V FELINTO, Erick. SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos: Vilém Flusser e o pós-humanismo. 1. Ed. São Paulo: Editora Paulus, 2012. p. 148.
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olhar para aquela decisão política quanto a que modo de vida ainda pode vir a existir, como cultivo, no terreno árido da história. Isso devido ao fato de que no cinismo existe algo que nos desvia das escalas medianas que insistimos em criar, e nos faz ver as escalas sem limites que sustenta o movimento cínico, ou seja, a luz que aciona o protótipo do cínico é aquela falada por Camus, para o qual “é necessário nos voltarmos, abandonando nossos vínculos, para encará-la de frente, e que nossa tarefa, antes de morrer, é a de procurar, por entre todas as palavras possíveis, a correta denominação dessa luz” 39 Um protótipo se metamorfoseia na sociedade da qual se originou, a saber, a sociedade que lutou a Grande Guerra, e se perpetua resistindo com um corpo que não cabe nos enunciados que se remetem a ele: ele segue sendo um conteúdo sem expressão, ou uma simbiose singular para a qual os enunciados só o encontram obliquamente. Por outro lado, segue sendo uma espécie de vislumbre coletivo, algo que todos veem, mas não conseguem exprimir em toda sua intensidade, e por não ter atingido a homeostase com o organismo social, possui um quê de assignificância. É assignificante, provavelmente porque não se pode ainda dar um rosto 40 pra que se torne déspota. E o máximo que o seu gesto mais disseminado alcança quando nos pomos a observar o devir-ciborgue das pessoas nas ruas em seus celulares consumindo a informação como se fosse a melhor das mercadorias, é o rosto do indiferente, que esboça tão somente o esgotamento e o cansaço.
Considerações finais A corrosão do humanismo pelos ares de uma brisa que se aproxima de nós em um forte compasso nos permite encontrar a capacidade distintiva de Diógenes: a de saber distinguir os instrumentos dos aliados. A modernidade nos ensinou o poder de manipular os instrumentos, e aprendemos como a razão pode ser um instrumento tão forte, ou o maior entre eles. Porém, Diógenes nos mostra como a recusa de alimentar a civilização trouxe a ele a possibilidade de encontrar nos cães os aliados que os homens não puderam ser para ele. A fórmula, nenhum homem é hipócrita em seus prazeres 41 é posta novamente em teste pelo cínico, no caráter emergente no qual a filosofia se encontra prestes a aplicaremlhe uma anestesia. Pensar o protótipo é uma maneira de reverter esse uso da técnica, inventar outra desenvoltura não programada dos corpos enrijecidos. 39V CAMUS, Albert. O enigma. In: Núpcias, O verão. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. p. 118. 40V “Não somente a linguagem é sempre acompanhada por traços de rostidade, como o rosto cristaliza o conjunto das redundâncias, emite e recebe, libera e recaptura os signos significantes. É em si mesmo todo um corpo: é como o corpo do centro de significância no qual se prendem todos os signos desterritorializados, e marca o limite de sua desterritorialização. É do rosto que a voz sai [...] O significante se reterritorializa no rosto. É o rosto que dá a substância do significante, é ele que faz interpretar, e que muda, que muda de traços, quando a interpretação fornece novamente significante à sua substância. Veja ele mudou de rosto. O significante é sempre rostificado. A rostidade reina materialmente sobre todo esse conjunto de significâncias e de interpretações [...]” DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 2. Trad.: Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia leão. São Paulo: Ed. 34, 1995. p. 68. 41V CAMUS, Albert. A queda. Trad. Valerie Rumjanek. 8ª ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. A queda, p. 51.
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De tanto recomeçar nesse caminho criamos hábitos. Acordamos um dia e nos encontramos na embaraçosa situação de possuir sem verdadeiramente desejar. Talvez seja esse o peso morto da filosofia, em que a tática do cinismo nos convida a nos despojarmos desse excesso. O antigo problema de como chegar ao entendimento sem passar pela experiência convoca o corpo a se lançar numa outra dimensão de um plano em que o pensamento aproximativo é o único gerador de real. O cinismo nos ensina a destravar uma nova perspicácia para a investigação, onde o momento do que “ainda não se entende” possa talvez criar outro horizonte para o infinito que há em nós, e outro espaço para uma experiência de outro tipo.
BIBLIOGRAFIA ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014. BRUNO, Giordano. Tratado da magia. Trad.: Rui Tavares. São Paulo: Martins, 2008. CAMUS, Albert. A desmedida na medida. Trad.: Raphael Araújo e Samara Geske. 1ª ed. São Paulo: Hedra, 2014. ______, Albert. A queda. Trad. Valerie Rumjanek. 8ª ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. _____, Albert. O avesso e o direito. Trad.: Valerie Rumjanek. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. ______, Albert. O mito de Sísifo. Trad.: Ari Roitiman e Paulina Watch. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. ______, Albert. Núpcias, O verão. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. DINUCCI, A. JULIEN, A. O Encheirídion de Epicteto. Archai n. 9, jul-dez 2012, PP. 123 – 1 3 6 . D i s p o n í v e l e m : https://ri.ufs.br/bitstream/123456789/742/1/Encheir %C3%ADdionEpicteto.pdf. Acesso em 4 de Outubro de 2016. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad.: Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2011.
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DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 2. Trad.: Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia leão. São Paulo: Ed. 34, 1995. _________, Gilles. _________, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 4. Trad.: Suely Rolnik. 2ª Ed. São Paulo: Ed. 34, 2012. DEYVE, Redyson (Org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. FELINTO, Erick. SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos: Vilém Flusser e o póshumanismo. 1. Ed. São Paulo: Editora Paulus, 2012. LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego, introdução e notas: Mário da Gama. 2. Ed. Reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. M-O. Goulet-Cazé e R. B. Branham (Orgs). Os cínicos: o movimento cínico na Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Loyola, 2007. PRADO JR., Bento. Erro, ilusão, loucura: ensaios. Comentários de Arley Ramos Moreno, Sérgio Cardoso e Paulo Eduardo Arantes. São Paulo: Ed. 34, 2004. SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe, Maurício Mendonça Cardozo, Pedro Costa Rego e Ricardo Hiendlmayer. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. ___________, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad.: José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação liberdade, 2000.
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SOBRE O CETICISMO Ruy de Carvalho Prof. UECE
O texto pretende sugerir que o ceticismo, ao longo de sua tradição, tornou possível uma compreensão de seu sentido e papel, que elege o problema da dor/sofrimento, como questões fundamentais, paralelamente àquelas relativas ao conhecimento e às ético-morais. O que proponho é a ideia de um ceticismo enquanto clínica, como potencialização da filosofia; bem como a necessidade de relacionarmos o ceticismo com a antropologia, como forma de potencialização da filosofia. Ceticismo, assim, exigiria que a filosofia se confrontasse com a clínica e a antropologia. Se a clínica pode tornar a filosofia mais potente é porque o ceticismo está mais interessado na dor e no sofrimento que o dogmatismo causa a si e aos outros, do que com o problema do fundamento, da dúvida, do método, da certeza, da justiça, da crença etc. Se a antropologia pode tornar a filosofia mais potente é porque o ceticismo está íntima e decididamente comprometido com cosmologias não redutíveis à ontologia e à metafísica clássicas. O ceticismo, mais que teoria, doutrina ou uma formação discursiva entre outras, seria sobretudo uma atitude, uma certa maneira de viver, em um mundo e com os outros, uma certa ascese, uma certa prática ou exercício em que o problema do sofrer e do fazer sofrer teriam a primazia frente à questão acerca da verdade, da crença, da certeza, do fundamento, etc. Ele, o ceticismo, compreenderia a totalidade dos mundos possíveis como perpassada por uma conflito, um agonismo sem trégua e sem termo, com o que a filosofia ver-se-ia convidada a participar e a pensar. Nem clínica normativo-prescritiva
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nem cosmologia única, o ceticismo estaria interessado numa semiologia/sintomatologia em que a anamnese cederia lugar à genealogia e em que a terapia passaria por uma psicagogia; de maneira similar, as múltiplas cosmologias, não implicando nem exigindo uma equipolência suspensiva, abririam ao ceticismo a oportunidade de uma zetesis e de uma skepsis mais complexas e, no fundo, tendencialmente infinitas. Várias foram as acusações, por assim dizer, tradicionais, feitas ao ceticismo. Este seria uma posição que revelaria: 1.
IGNORÂNCIA : Ceticismo não é filosofia porque não constitui teoria/doutrina: nem
proposição nem proselitismo, a não ser que filosofia seja algo mais que teoria! 2.
FRAQUEZA/COVARDIA : Ceticismo é reativo: sempre se é cético de alguém; o
cético não tem a “coragem da verdade”, de assumir o risco, a não ser que o problema do ceticismo não possa ser reduzido ao problema do conhecimento, da verdade! 3.
ADOLESCÊNICA DO ESPÍRITO : Ceticismo é um momento necessário no caminho
para a verdade, para o verdadeiro conhecimento, mas um momento a ser ultrapassado, a ser superado, a não ser que a velhice só combine com dogmatismo! 4.
IDIOTICE : Ceticismo é uma forma de isolamento, pois é impossível ser cético
quotidianamente: não se atravessa uma rua quando se é cético, a não ser que se tenha sorte! A não ser que ceticismo seja algum tipo de jogo e de aposta! 5.
ANTI-REVOLUCIONARIO: Ceticismo não constitui política, uma vez que sem
teoria não há programa, não há objetivos, não há razão para um engajamento. Desta forma, várias foram as leituras e as posições sobre o ceticismo: 1.
Ceticismo é uma questão epistemológica. Ceticismo e dúvida, método,
fundamentação, etc. Filosofia da subjetividade e psicologismo. 2.
Ceticismo é um câncer moral. Ceticismo e má vontade, confiança, promessa, crença,
etc. Como e por que agir em nome de nada, da dúvida? 3.
Ceticismo é sociologicamente impossível. Seria inimaginável uma sociedade de
céticos. O que cimentaria tal comunidade? A duvida, a descrença em valores, a desconfiança de todos contra todos?
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4.
Ceticismo é antropologicamente improvável. O ceticismo é totalmente inadequado
quando se trata de pensar, do ponto de vista do poder, o bárbaro, o estrangeiro, os marginais de todos os tempos......o outro. 5.
Ceticismo é politicamente conservador. Em nome de que o cético lutaria contra as
tiranias, os totalitarismos e as injustiças de todas as épocas? Não pretendo, aqui, desenvolver, nem mesmo apresentar minha posição a respeito. O objetivo aqui é apenas anunciar e enunciar aquilo que deverá ser tratado por escrito em outro lugar. Meu ponto de vista: ceticismo tem sobretudo a ver com sofrimento e com visões de mundo, daí sua relação com uma certa clínica e com a antropologia. Já venho tratando disso em um curso no mestrado em filosofia da Universidade Estadual do Ceará e em um mini-curso no VIII Encontro Nietzsche-Schopenhauer. Aqui, portanto, fica apenas o anúncio.
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