lampejo - vol.6 n.1

Page 1


[179] Direito à moradia: afinal do que se trata? Thais Oliveira Ponte

Índice

[202] Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue Bruno Pereira Cavalcanti Ruy de Carvalho Rodrigues Júnior ENSAIOS

ARTIGOS [01] Por Que Somos Decadentes? Afirmação e Negação da Vida Segundo Nietzsche (prólogo) Evaldo Sampaio [18] Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano Ricardo de Oliveira Toledo [37] Para uma aproximação entre as noções de Cultura e Anarquismo Ivânio Lopes de Azevedo Jr.

[216] Ser mulher na pós-graduação em Filosofia Ana Carla de Abreu Siqueira [221] O Compromisso da Filosofia M. Bezerra Neto. ENTREVISTA [225] Sérgio Sampaio e a dialética do esclarecimento fazem 70 anos: entrevista com Jorge Verly e Wilberth Salgueiro Vitor Cei

[47] Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche. Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral Luana Mara Diogo

TRADUÇÃO

[66] Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze Filipe Caldas O. Passos

Revista Lampejo ISSN 2238-5274

[86] Considerações sobre tolerância em Herbert Marcuse e Slavoj Zizek Mikaelly da Costa Jucá [96] Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol Juliana Braga Guedes [109] Biopolitique et neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion sócio-environnemental Thiago Mota [122] Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra Luciana Ribeiro Conz Paulo Henrique Albuquerque do Nascimento [140] Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus Leandson Vasconcelos Sampaio [153] Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático Jéssyca Aragão de Freitas [166] O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi Alan Duarte Araújo

[234] Ode a Nietzsche Jim Morrison

Editores

Ceará – UFC)

Leonel Olímpio Luana Diogo Thiago Mota

Prof. Dr. Luiz Orlandi (Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP)

Comissão editorial Átila Monteiro Daniel Carvalho David Barroso Fabien Lins Gustavo Costa Gustavo Ferreira Henrique Azevedo Paulo Marcelo Brito Rogério Moreira Ruy de Carvalho William Mendes Conselho editorial Prof. Dr. Ernani Chaves (Universidade Federal do Pará – UFPA) Prof. Dr. J Maia de Mello (Universidade Federal da Bahia – UFBA) Prof. Dr. Jair Barboza (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC) Prof. Dr. José Maria Arruda (Universidade Federal Fluminense – UFF) Prof. Dr. Luiz Felipe Sahd (Universidade Federal do

Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO) Prof. Dr. José Olímpio Pimenta (Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP) Prof. Dr. Peter Pál Pelbart (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP) Prof. Dr. Roberto Machado (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ) Prof. Dra. Rosa Maria Dias (Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ) Prof. Dr. Sylvio Gadelha (Universidade Federal do Ceará – UFC) Projeto gráfico e diagramação Herlany Siqueira Pedro Moura


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

Por Que Somos Decadentes? Afirmação e Negação da Vida Segundo Nietzsche (prólogo) Evaldo Sampaio1

Resumo: Trata-se aqui da republicação do prólogo de Por Que Somos Decadentes? Afirmação e Negação da Vida Segundo Nietzsche (Editora UnB). O livro é a versão de uma Tese de Doutoramento em Filosofia defendida em 2009 na Universidade Federal de Minas Gerais. No prólogo se traça um cenário histórico-conceptual da ruptura que a filosofia prática de I. Kant operou quanto à reflexão ética da Antiguidade, e de como as críticas que a ele foram em seguida endereçadas por de A. Schopenhauer se tornaram um ponto de partida para a filosofia “extramoral” de F. Nietzsche. Além disso, o prólogo discute preliminarmente a principal tese metodológica do livro (que a interpretação da filosofia de Nietzsche se deve pautar apenas pelos textos que ele próprio publicou ou deixou preparado para publicação e Professor Adjunto III da Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Metafísica. Este texto é uma reapresentação do “prólogo” de Por Que Somos Decadentes? Afirmação e Negação da Vida Segundo Nietzsche, publicado em 2013 pela Editora da Universidade de Brasília. Resisti ao impulso de reescrever o texto original ao ponto de torná-lo um “posfácio”. Mesmo assim, não resisti a suprimir e acrescentar aqui e ali. Agradeço aos amigos e editores da Lampejo pela oportunidade de revisitar meu primeiro longo pecado literário, à Capes, que financiou a pesquisa de doutoramento concluída em 2009 no Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais que serviu de base para o livro e à Universidade de Brasília, cujo edital de 2011 permitiu que, após a seleção pública, fosse publicado o livro do qual se extrai agora o prólogo. 1

Volume 6 no 1

!1


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

ter como princípio regulador reconstituir o ponto de vista crítico do autor), bem como a sua principal tese hermenêutica (que a questão central da filosofia de Nietzsche seria o “problema da decadência”, o qual o conduz a investigar as formas de afirmação e negação da vida). O objetivo da republicação é celebrar a amizade com o APOENA, no qual os primeiros resultados e impasses deste trabalho foram apresentados, assim como retomar o debate em aberto sobre os temas discutidos no livro. Palavras-chave: Teoria da decadência; Afirmação e Negação da Vida; F. Nietzsche Abstract: This is an reissue of the prologue of Por Que Somos Decadentes? Afirmação e Negação da Vida Segundo Nietzsche (Editora UnB, 2013). The book is an altered version of a PhD thesis that had been submitted in 2009 at the Federal University of Minas Gerais. In the prologue is drawn a historical-conceptual scenario of the rupture that the practical philosophy of I. Kant operated on the ethical reflection of the Antiquity and how the criticism that was addressed to him by A. Schopenhauer became a point of departure for the "extramoral" philosophy of F. Nietzsche. The prologue also discusses preliminarily the main methodological thesis of the book (that the interpretation of Nietzsche's philosophy should be guided only by the texts he himself published or prepared for publication and that the principle which must guide the interpretation of his work is a reconstitution of the author’s critical point of view), as well as its main hermeneutical thesis (that the central question of Nietzsche's philosophy is the "problem of decadence” which leads him to investigate the forms of affirmation and denial of life). The purpose of this republication is to celebrate the friendship with APOENA, in which the first results and impasses of this work were presented, as well as to retake the open debate on the themes discussed in the book. Keywords: Theory of Decadence; Affirmation and Denial of Life; F. Nietzsche

E

mbora nossa época lance um mau olhado a quem reivindique hierarquias, nem por isso deixamos de avaliar uns aos outros. Assim, eventualmente nos perguntamos se este indivíduo ou esta comunidade é melhor ou pior do que aquele ou aquela, bem como medimos nossas condutas procurando as maneiras mais adequadas de obter o que desejamos ou nos esclarecermos quanto aos nossos próprios desejos. Explicitamente ou não, vivemos de acordo com juízos que nos guiam ao deliberarmos das decisões mais banais até as mais angustiantes. É verdade que estas questões não ocupam a todos e que muitos jamais indagam com alguma profundidade para que vivem e, por conseguinte, como viver melhor. No entanto, há quem fique admirado com tantas formas de apreciar, depreciar ou se pôr indiferente às coisas. Não mais interessados neste ou naquele comportamento, mas na própria existência ou no humano que as adorna, alguns se aventuram inclusive a perguntar qual o sentido da vida e do homem. Estes “pesquisadores e microscopistas da alma”2 seguem a orientação primordial da filosofia clássica, a qual se dedicava “à vida e ao que se relaciona 2

GM §1

Volume 6 no 1

!2


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

conosco”3 e à busca por uma existência plenamente realizada. Afinal, como professou Sócrates, “o importante não é viver, mas viver bem”4. Mesmo quando Aristóteles, na Ética à Nicômaco, identifica Filosofia com teoria, tem em vista mostrar que a vida seria bem realizada como uma atividade teórica5 . A Filosofia era então procurada por aqueles que desejavam se tornar os melhores seres humanos e viverem tão bem quanto um homem possa viver6. Não é casual que uma das mais antigas fontes conservadas acerca da História da Filosofia reúna numa mesma exposição as vidas e as doutrinas dos filósofos ilustres, pois estas sem aquelas seriam como que sofismas. Dito de maneira direta: no sentido original da Filosofia persiste a evidência de que há diferentes maneiras de viver, e a pretensão de que umas são superiores e outras inferiores. Justificar uma forma de vida superior equivale a justificar a própria amizade à sabedoria. Por isso, torna-se tão importante saber o que é a excelência [ἀρετή] do homem para, em seguida, determinar “se é algo que se ensina, ou que se adquire pelo exercício, advém aos homens por natureza ou por alguma outra maneira”7. A ideia mesma de excelência humana já pressupõe ou constata que a condição comum do homem está abaixo do que ele pode vir a ser. Se tal como parecia às doutrinas clássicas a excelência é a própria vida feliz ou, no mínimo, seu requisito indispensável, o tipo ordinário de homem é “não feliz” ou “infeliz”, aquele cuja vida não é plenamente realizada. Diferente das doutrinas éticas contemporâneas, que se concentram em questões sobre como devemos tratar as outras pessoas e quais obrigações temos para com elas, as doutrinas clássicas estavam primordialmente interessadas na procura pelo soberano bem e pelo que constitui enfim a mais desejável das existências. Não obstante as escolas filosóficas antigas se distinguissem pela maneira de definir o soberano bem que todos procuram, em momento algum lhes ocorrera separá-lo da felicidade e da vida presente. Como não seria um bem o que não oferecesse a seu possuidor nem aprovação nem vantagem, às doutrinas clássicas “seria absurdo ou irrelevante dizer ao homem que ele é obrigado a fazer o que lhe é vantajoso e assumir um ar ameaçador a fim de lhe prescrever sua própria

3

Diôgenes Laêrtios, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, I, 18.

4...Platão,

Críton, 48b. Por isso, convém concordar com a suspeita de V. Goldschmidt quando interpreta que, segundo os diálogos de Platão, “talvez o conhecimento das formas nos é necessário não para viver, mas para viver bem” (cf. Os Diálogos de Platão, p. 26). 5

P. Hadot, O que é Filosofia Antiga?, p. 119-138.

6

A. Nehamas, The Art of Living: socratic reflexions to Plato from Foucault, p. 2.

7

Platão, Menon, 70a-71b.

Volume 6 no 1

!3


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

felicidade”. Por conseguinte, a moral grega e latina tão só nos apresentam quadros ou retratos que exortam a superioridade do sábio8 . Mas quando Immanuel Kant propôs que cabe à ética dar leis ao que “deve acontecer, mesmo que nunca aconteça”9, traçou-se uma cisão entre esta realidade e uma “outra”, pois a instância seria agora o ideal e não o real. Se o soberano bem diz respeito ao ideal, então não procura legislar sobre o que é vantajoso na vida presente e não pode mais ser simplesmente identificado com a vida feliz. Torna-se agora imprescindível não apenas exortar e sim fundamentar a ética. Nessa conjuntura, uma vez que a condição suprema para o soberano bem é a conformidade do agente para com a lei moral e o homem é, por suas próprias limitações, incapaz de alcançá-lo nesta vida, o primeiro “postulado da razão prática” e condição de possibilidade da moralidade é a imortalidade da alma. A completa correlação da vontade com a lei moral (nos próprios termos de Kant, a “santidade”) exigiria uma “existência e personalidade duradoura no infinito do mesmo ser racional”10. Essa completa correlação da vontade com a lei moral é aquilo que Kant denomina de “boa vontade”, a vontade de agir por dever, e somente ela pode ser considerada boa sem restrição11. Se alguns talentos do espírito ou qualidades do temperamento “são favoráveis a esta boa vontade e podem facilitar muito a sua obra”, estes “não têm, todavia, nenhum valor íntimo absoluto”12. Eles pressupõem ainda e sempre “uma boa vontade que não é boa por aquilo que promove ou realiza, [...] mas tão somente pelo seu querer” considerado em si mesmo13. Com esse deslocamento sinuoso, Kant prescreve que “a metafísica dos costumes [i.e., a ciência da moral] deve investigar a ideia e os princípios duma vontade pura e não as ações e condições psicológicas do querer humano em geral”14 . O valor moral de uma ação recai na intenção do agente submetido àquilo que este “deve” querer ou fazer. Conquanto pareça um tanto exagerado, não é um equívoco concordar com Arthur Schopenhauer que, com o advento do cristianismo, inconscientemente ou não, a ética tomou em geral sua forma da moral teológica e dela extraiu noções como lei, prescrição e dever. Daí porque a filosofia prática de Kant – talvez o exemplo paradigmático da filosofia moral moderna - assume uma gramática imperativa, 8

V. Brochard, “Moral Antiga e Moral Moderna”, p. 136-137.

9

A. Schopenhauer, Sobre a Fundamentação da Moral, §4, §6.

10

I. Kant, Crítica da Razão Prática, segunda parte, IV.

11

I. Kant. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, primeira seção.

12

Idem, introdução.

13

Idem.

14

Idem.

Volume 6 no 1

!4


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

encontrando nesta o seu foro íntimo. Como a Schopenhauer parece que puros conceitos abstratos a priori sem conteúdo real e sem qualquer tipo de fundamentação empírica não poderiam pôr em movimento a vontade humana, “para que se possa admitir numa ciência da moral leis para a vontade, tem-se de demonstrá-las e derivá-las a partir de sua existência”15 . Por conseguinte, à ética convém apresentar as “leis da motivação” que conduzem a vontade humana e “esclarecer, explicar e reconduzir a sua razão última os modos muito diferentes de agir dos homens no aspecto moral” cujo impulso próprio “será a razão última da moralidade e o seu conhecimento o fundamento da moral”16 . Diferente de Kant, para quem se impõe uma vontade pura submetida ao dever e independente do querer sensível, a concepção de vontade em Schopenhauer é antivoluntarista e antidualista. Ele rejeita que haja ocorrências exclusivamente mentais da vontade ao julgar que todo ato volitivo é também um movimento ou ação corporal17 . O motivo da identificação dos movimentos corporais com os atos da vontade concerne à natureza de nosso acesso cognitivo ao corpo. As “afecções corporais são [...] para o entendimento o ponto de partida da intuição do mundo”18. Por meio delas o corpo é dado ao sujeito do conhecimento “de duas maneiras completamente distintas”, a saber, “uma vez como representação na intuição do entendimento, como objeto entre objetos e submetido às leis destes” (representações abstratas), ou “como aquilo que é conhecido imediatamente por cada um e indicado pela palavra ‘vontade’” (representações intuitivas)19. As representações abstratas podem ser explicadas pelas representações intuitivas. Mas qual seria o significado das próprias representações intuitivas? Esse enigma remete ao mundo para além de nossas representações subjetivas e aponta para o que Schopenhauer designa como “Vontade” (uso a maiúscula aqui para distingui-la daquela vontade considerada apenas psicologicamente), um conhecimento a priori do corpo, já que, como dito, “não posso de modo algum representar a minha vontade sem representar meu corpo”. Se a ética consiste em 15

A. Schopenhauer, Sobre a Fundamentação da Moral, §6.

16

Idem, §13.

C. Janaway, Schopenhauer, “Will and Nature”, p. 141-142. Com tal identificação entre vontade e corpo, Schopenhauer estabelece uma fissura na longa tradição que, mais precisamente desde Santo Agostinho toma a vontade como tema filosófico de modo que, como bem destaca Janaway, um verbete do The Oxford Companion to Philosophy sobre o tópico parece correto ao informar que “a Vontade alcança sua apoteose filosófica n’O Mundo como Vontade e como Representação de Schopenhauer” (idem, 138). Dentre outras consequências, note-se que a vontade não pode então ser dissociada, como antes, do “desejo” ou de sua realização propriamente dita. 17

18

A. Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação, §18.

19

Idem.

Volume 6 no 1

!5


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

apreender aquilo que move a Vontade, diz respeito então a esse conhecimento a priori do corpo, o ser íntimo de cada um que, com Kant, Schopenhauer personifica como um “sujeito inteligível”. A tarefa da filosofia é uma repetição completa ou “espelhamento” do mundo em conceitos abstratos através do qual a Vontade se torna autoconsciente do que quer, no caso, a própria vida tal como esta se manifesta. Na terminologia de Schopenhauer, este querer a vida tal como ela se manifesta é a “vontade de viver”20. Diante disso, Schopenhauer considera que a Vontade afirma a si mesma através dos indivíduos quando, descobrindo-se objetivada no mundo e na vida não mais por um desejo cego e sim pela consciência e pela reflexão, não obstrui de modo algum o seu querer. Por outro lado, há uma orientação vital distinta pela “negação a que a vontade chega quando um conhecimento total de sua essência atua sobre ela como um sedativo da volição”21 . Essa negação da vontade de viver não é o mero desejo de aniquilamento da vida, já que afirmar e negar são modos de existir, de maneira que a afirmação e a negação do querer-viver são, respectivamente, “um simples querer e não querer”22 o mundo tal como este se mostra. Do ponto de vista ético-metafísico, a afirmação e a negação da vida exprimiriam para Schopenhauer a razão última dos modos muito diferentes de agir do homem. Haveria então três motivações para a vontade humana desigualmente distribuídas entre os indivíduos: o egoísmo [“não ajudas a ninguém, mas prejudica a todos se fores levado a isso”], a maldade [“prejudica a todos que puderes”] e a compaixão [“não faças mal a ninguém, mas antes ajuda a todos os que puderes”]23. Aquelas representariam a afirmação da vontade de viver e esta a sua negação. Já que “a Vontade é em si a única realidade, puramente livre, que se determina a ela mesma” e, por isso, “para ela, não existe lei”, Schopenhauer considera que “expor a afirmação e a negação [da Vontade de viver] à luz da razão é o único fim que me posso propor; quanto a impor uma ou outra facção, ou a aconselhá-la, seria coisa tola e aliás inútil”24 . Em tal tolice e inutilidade recaem justamente aqueles que buscam, através da moral, mostrar o que deve ser e não aquilo que é. Não ser imperativa não impede, contudo, que a filosofia moral de Schopenhauer seja judicativa e assim julgue qual tipo de conduta é mais elevada, qual maneira de viver é superior. Desse ponto de vista ético e metafísico, Schopenhauer garante que a satisfação ou a felicidade são apenas negativas e que as conhecemos indiretamente, 20

Idem.

21

Idem, §54, §68.

22

A. Schopenhauer, “Contribuição à doutrina da afirmação e da negação do querer-viver”, §161.

23

A. Schopenhauer, Sobre a Fundamentação da Moral, §14.

24

Idem, §16, §54.

Volume 6 no 1

!6


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

porque consistem no desaparecimento de uma privação e precisamente essa privação do querer é sua condição preliminar. Portanto, o que há de imediato é somente a necessidade, a vontade não satisfeita, a “dor”25. Por “dor” Schopenhauer entende não apenas “o sofrimento efetivo e visível, mas a toda espécie de desejo que [...] perturba o nosso repouso e também qualquer aborrecimento que [...] faz da vida um fardo”. Uma vez satisfeita a vontade, cessa momentaneamente a privação. Porém, logo em seguida, o indivíduo retorna ao estado de privação em que se encontrava antes da satisfação do desejo. Já que “nenhuma satisfação e nenhum contentamento podem durar”26 , então o próprio termo “felicidade” é um eufemismo, já que “por viver feliz se deveria entender ‘viver menos infeliz’, ou seja, de modo suportável”27. Como se rejeita que a existência possa ser, por si mesma, preferível a não existência28 , o que seria então o “soberano bem”? Nada mais do que “a supressão espontânea e total, a negação do querer, o verdadeiro nada de toda vontade. Trata-se de um estado único em que o desejo se detém e se cala, em que se encontra o único contentamento que não se arrisca a passar, esse último estado que liberta de tudo”, algo como “o único medicamento radical para a doença”, a negação da vontade de viver29. Se o soberano bem é a negação da vontade de viver, então o egoísmo e a maldade dele nos afastam por serem formas de afirmação do querer individual e a compaixão (cujo pressuposto é a renúncia de si) é a conduta moral por excelência. Por sua “abnegação e guerra de morte travada contra o egoísmo”, a negação da vontade de viver consiste numa sabedoria de vida e constitui a essência de um modo de viver superior, o ascetismo30 . Uma vez que “o espírito ascético forma a alma do Novo Testamento”, Schopenhauer julga que, “por mais paradoxal que isto possa parecer àqueles que não atingem o cerne das coisas”, sua filosofia, mesmo sem Deus, merece ser denominada como a doutrina propriamente cristã. Afinal, sua doutrina explica e “confessa sinceramente a indignidade do mundo, apontando para a negação da vontade como caminho para a sua salvação”31. Se houver alguém forte ou tolo o bastante para afirmar a vida apesar de desperto a todo o sofrimento e dor que nela imperam, que o faça. Por sua vez, Schopenhauer somente encontra um consolo (metafísico) na negação ascética da vontade de viver cujo tipo ideal é o santo.

25

A. Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação, §58.

26

Idem.

27

A. Schopenhauer, Aforismos para a Sabedoria de Vida, p. 141.

28

Idem, introdução.

29

A. Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação, §65.

30

Idem, §68.

31

A. Schopenhauer, “Contribuição à doutrina da afirmação e da negação do querer-viver”, §163.

Volume 6 no 1

!7


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

A filosofia de Friedrich Nietzsche é uma experiência de pensamento sobre quem seria forte – ou “tolo” - o bastante para afirmar a vida incondicionalmente. Como a suprema afirmação da vida não se dá por aquele que meramente rejeita por um otimismo superficial a angústia e a dor, Nietzsche percebe que não se trata ali de apenas contestar uma descrição da existência e sim a inevitabilidade de uma avaliação pessimista caso a existência seja tal como o pessimista a descreve. Nietzsche aceita a imagem do mundo como um conflito incessante da vontade consigo mesma segundo a qual a existência é marcada pela falta que não pode jamais ser suprimida e se questiona como e sobretudo para quem é possível nesse estado de coisas alcançar a “serenidade” [Heiterkeit]32. O que encontra então é a pergunta pelo valor do otimismo e do pessimismo para a vida e, num sentido mais amplo, o valor da afirmação e da negação da vida. A reorientação básica em relação à doutrina de Schopenhauer consiste em perguntar que tipo de vida é esta que afirma ou que nega a própria vida, entendendo que aquela representa a saúde, a força e a ascensão, enquanto esta parece apontar para a doença, a fraqueza e a decadência dos impulsos vitais. A primeira indicação de resposta é sugerida involuntariamente pelo próprio Schopenhauer quando este analisa que no contraste simbólico “entre o espírito do paganismo greco-romano e o cristão se situa de modo acentuado a diferença entre a afirmação e da negação do querer-viver”33. Daí por que, inicialmente, Nietzsche se interroga sobre a origem da tragédia ática, interessado especialmente na relação entre “pessimismo e helenismo”, pois que tipo de sensibilidade para com a dor teria conduzido os gregos voluntariamente “para o mito trágico, a imagem de tudo quanto há de terrível, maligno, enigmático, aniquilador e fatídico no fundo da existência”? Teria sido, como no caso do cristianismo, “essencial e basicamente, asco e fastio da vida, que apenas se disfarçava, apenas se ocultava, apenas se enfeitava sob a crença de uma ‘outra’ ou ‘melhor’ vida”? Ou a arte e mitologia trágicas teriam origem no “prazer, da força, da saúde transbordante, de uma plenitude demasiado grande”34 que encontra “até no ferimento o poder curativo”35? Se uma análise psicológica da origem da tragédia a partir da relação dos gregos para com a dor mostrasse que, diferente dos indianos e dos modernos europeus retratados por Schopenhauer, as festas em homenagem ao deus Dioniso revelam “uma propensão para o duro, horrendo, o mal, o problemático na existência, devido ao bem-estar, a uma plenitude CI, prólogo: “Manter a serenidade em meio a um trabalho sombrio e sobremaneira responsável não é façanha pequena; e, no entanto, o que seria mais necessário do que a serenidade?”. 32

33

A. Schopenhauer, “Contribuição à doutrina da afirmação e da negação do querer-viver”, §162.

34

NT, “Tentativa de autocrítica” §4-5.

35

CI, prólogo.

Volume 6 no 1

!8


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

de existência”, isso significaria que “há um pessimismo da força” bastante distinto do “pessimismo romântico” moderno. Esse pessimismo da força - ou segundo uma terminologia mais depurada, o dionisíaco -, não seria como que uma indicação de potência e saúde da própria vontade de viver? E, em contrapartida, aqueles que negam o querer-viver pela incapacidade para suportá-lo em suas formas mais desafiadoras não seriam “o signo do declínio, da ruína, do fracasso, dos instintos cansados e debilitados”36 , enfim, aspectos da decadência dos impulsos vitais? Trata-se aqui, portanto, de pensar, pelo fio condutos da obra de Nietzsche, os pressupostos e implicações de uma questão original da filosofia, a saber, “qual a melhor maneira de viver?”. Espero mostrar que a reflexão sobre os preconceitos morais desenvolvida por Nietzsche alcança sua plenitude numa investigação sobre a ascensão e decadência dos impulsos vitais de modo que, além desta constituir o núcleo de suas pretensões, indica que tanto o adequado questionamento como as eventuais respostas sobre as formas superiores ou inferiores de viver remetem a uma crítica dos juízos de valor morais. A principal dificuldade é compreender o que significa interrogar tais juízos de valor morais “sob a ótica do fenômeno vida”, como é proposto por Nietzsche, e qual o valor mesmo de uma tal interrogação. Num trabalho escrito pouco depois d’O Nascimento da Tragédia, no caso, a II Consideração Extemporânea, ele se questiona acerca “Das vantagens e desvantagens da história para a vida”, ou seja, pergunta-se em que medida a “consciência histórica”, que constitui uma das principais inovações teóricas do séc. XIX, é um sintoma de crescimento ou degeneração da vida. O mesmo procedimento persiste no (elíptico) argumento de um trabalho posterior, quando se contrapõe, nas entrelinhas, à ciência moderna o que se poderia com ele denominar de “gaia ciência”. Um estudo decisivo nessa direção se inscreve n’A Genealogia da Moral, na qual a inquirição “sob a ótica da vida”37 guia a demarcação entre a “moral dos senhores” e a “moral dos escravos”, visando assim mostrar como os juízos de valor “bom” e “ruim” daqueles expressam uma vitalidade ausente nos juízos “bem” e “mal” destes38. Mas é apenas em seus últimos trabalhos publicados ou autorizados para publicação que tais disposições vitais são recobertas explicitamente pelas noções de ascensão e decadência da vida. Somente então Nietzsche se encontra em condições de determinar e justificar conceptualmente o que lhe parece constituir a virtude e o vício, a felicidade e a miséria do homem. E, justamente por isso, ao avaliar toda a sua obra no Ecce Homo, Nietzsche orienta a exposição acerca de si pela tentativa de mostrar como seu itinerário expressa sobretudo a ascensão dos impulsos vitais. Enfim, o problema da 36

NT, prólogo §1.

37

GM, prólogo §3.

38

GM, primeira dissertação.

Volume 6 no 1

!9


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

ascensão e da decadência da vida passa a ser refletidamente a medida do valor para sua própria filosofia. Porém, questões sobre “como é possível avaliar algo sob a ótica da vida?”, “o que seria precisamente a ascensão e decadência existencial?”, “seria a própria filosofia de Nietzsche um sintoma do crescimento ou da degeneração dos impulsos vitais?”, não receberam respostas claras ou incontroversas. Por tais interrogações pretendo retomar o assumido “páthos trágico” da filosofia de Nietzsche para investigar os pressupostos e implicações relacionados à determinação de formas superiores e inferiores de vida na modernidade. A hipótese inicial é de que Nietzsche, trazendo como pano de fundo aquela “doutrina propriamente cristã” (a saber, a ensinada pelo mestre Schopenhauer), por “seu instinto em prol da vida [...] inventou para si uma contradoutrina e uma contravaloração da vida puramente artística” e, por isso, já “anticristã”, uma vez que o cristianismo condena qualquer valor que não seja moral39. Para essa tarefa, Nietzsche não encontrou aliados mesmo na própria Filosofia. Afinal, como ele próprio faz saber, “esse pensamento desrespeitoso, de que os grandes sábios são tipos da decadência” foi o que o fez perceber, já n’O Nascimento da Tragédia, “num caso em que o preconceito dos doutos e indoutos se opõe de modo mais intenso”, “Sócrates e Platão como sintomas de declínio, como instrumentos da dissolução grega [...]”40. Se mesmo aquele “precavido e hostil silêncio”41 inicial à moral cristã era necessário para o cultivo e distanciamento de uma contradoutrina, em seguida, de posse desta contra-avaliação, Nietzsche começa a sua campanha contra “a moral da renúncia de si”42 . Daí que, por conter entre as linhas uma radical crítica dos juízos de valor da moral e da filosofia, O Nascimento da Tragédia representa para seu autor uma primeira e decisiva reavaliação de todos os valores43 e O Anticristo, seu último livro preparado para publicação, a realização plena desse projeto. No itinerário que se estabelece entre estas duas obras, Nietzsche, pelo que descreve como um maior aprendizado sobre a própria natureza do dionisíaco44, descobriu a importância de “derrubar ídolos”45, i.e., ideais, como parte da plena afirmação da vida. Uma segunda hipótese de leitura é de que Nietzsche, numa posição tensa que evita tanto o dogmatismo quanto o relativismo historicista, encontra na disjunção 39

NT, “Tentativa de autocrítica” §5.

40

CI, II §1.

41

NT, “Tentativa de autocrítica” §5.

42

EH, “Aurora”.

43

CI, X §5.

44

GC §370.

45

EH, prólogo §2.

Volume 6 no 1

!10


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

entre afirmação e negação da vida o acesso à investigação sobre a ascensão e decadência dos impulsos vitais e o novo lugar de reavaliação de todos os valores. Essa suposição, a rigor, advém da autointerpretação que Nietzsche propõe acerca de seu pensamento no prólogo de um de seus últimos trabalhos, O Caso Wagner. Tal autointerpretação nos assegura que aquilo que mais interessou a Nietzsche é o “problema da decadência”. A curiosa “originalidade” aqui é que a maior parte dos leitores ignora ou desconsidera essa autointerpretação do autor, de modo que assumi-la como senha para se interpretar adequadamente a filosofia de Nietzsche é adotar uma posição antagônica quanto a inúmeras leituras exemplares. Poder-se-ia até contestar a relevância do “problema da decadência” por este se encontrar num livro no qual seu autor diz representar um “breve descanso” e mesmo um momento para brincadeiras. Todavia, a epígrafe do citado livro, “ridendo dicere severum” [rindo, dizer coisas graves], mostra por que Nietzsche, “em meio a tantas brincadeiras”, apresentava ali “uma questão com que não se deve brincar”46. O problema da decadência aponta que a distinção – ou, em termos mais contundentes, o “páthos da distância” – entre a afirmação e a negação da vontade de viver, bem como entre a ascensão e a decadência dos impulsos vitais, é a orientação que subsiste em ato desde os primeiros escritos de Nietzsche. Daí que ele assuma a sua filosofia como um desenvolvimento derradeiro da moral que enfrenta e que lhe constitui, como uma espécie de autossuperação da própria moralidade cristã que aponta contra si mesma um mortífero “pessimismo além do bem e do mal”47 . Diante dessa nova instância de avaliação, que Nietzsche oportunamente denomina de “imoral” ou “extramoral”, pode-se enfim sentenciar por que nós, homens modernos, somos decadentes e, em contrapartida, o que é “nobre”, ou seja, o que é a “vida plenamente realizada” [eudaimonia]. Para que não restem dúvidas: proponho aqui, em contraste aos que ignoram ou consideram secundárias as observações de Nietzsche quanto à ascensão e decadência dos impulsos vitais, que tal doutrina ou teoria é o coração selvagem de sua filosofia. A este novo âmbito de investigação filosófica, bem como aos seus procedimentos, objetivos e ressonâncias, pode-se denominar de “filosofia extramoral”. Já na década de 1960, Pierre Klossowski questionava “como será possível falar do ‘pensamento de Nietzsche’ sem fazer um balanço de tudo aquilo que já foi dito? Não correríamos o risco de seguir por caminhos já percorridos, por trilhas já tantas vezes demarcadas, de fazer imprudentemente perguntas já ultrapassadas e mostrar assim uma negligência, uma total falta de escrúpulos, em relação a exegeses

46

CW, prólogo.

47

NT, “Tentativa de autocrítica” §5.

Volume 6 no 1

!11


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

minuciosamente empreendidas ainda bem recentemente?”48. Parece-me razoável que a principal dificuldade não reside na extraordinária quantidade de volumes dedicados à filosofia de Nietzsche e sim nos problemas ou lacunas hermenêuticas destas leituras. Mais precisamente: a multiplicidade (e conflito aparentemente insolúvel) de interpretações sobre o pensamento de Nietzsche se deve sobremaneira à falta de uma reflexão adequada ou suficiente acerca de qual é a melhor forma de ler seus escritos – ou, quem sabe, à descrença quanto ao próprio sentido desta questão. Se a referida pluralidade de interpretações disponíveis prova que há mais de uma forma de ler Nietzsche, não convém ao leitor procurar, caso existam, as mais apropriadas? O caminho aqui é tão inusitado quanto evidente: trata-se de escutar o que o próprio Nietzsche diz acerca de si para, em seguida, constatar se esta autorrepresentação é compatível com o que se realiza em ato em suas investigações. A autorrepresentação de Nietzsche se restringe aos trabalhos que ele próprio publicou ou deixou autorizados para publicação. Por mais “óbvia” que tal conduta pareça à primeira vista, suas consequências são desde já polêmicas. Afinal, como o que Nietzsche declara sobre suas incursões filosóficas não diz respeito a frases isoladas ou esboços preparatórios, porém aos escritos por ele publicados ou autorizados para publicação, a leitura ora pretendida está em manifesto antagonismo para com a principal abordagem historiográfica da atual recepção crítica. Isso por que esta frequentemente confere – explícita ou implicitamente - estatuto próximo, igual ou até superior aos esboços preparatórios em relação aos trabalhos publicados

48

P. Klossowski, Nietzsche e o Círculo Vicioso, p. 15.

Volume 6 no 1

!12


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

ou autorizados para publicação por Nietzsche49. Procuram assim problematizar ou explicar estes por aquelas versões preliminares e, também por isso, desconsideram a articulação interna dos níveis de argumentação filosófica que os aforismos de Nietzsche integram. Logo, da tentativa de se interpretar sentenças isoladas, surgem inúmeras leituras conflitantes e sem nenhum contexto textual direto para que tais desacordos sejam aferidos. Ora, como julgo que o corpus de uma hermenêutica responsável é, salvo casos particulares, a obra assumida pelo autor – e não seus esboços ou extratos -, a proposta aqui é, como dito, óbvia, embora inusitada dada a tendência hegemônica da recepção crítica à filosofia de Nietzsche. Se ainda assim corro o risco de repetir problemas e hipóteses já levantados por leitores competentes, julgo que o faço inspirado por uma trilha bastante distinta e ainda por se percorrer. Há certa discussão especializada sobre o estatuto do material filosófico assinado por Nietzsche. Tal debate pode ser descrito como um desacordo acerca da diferença ou igualdade de relevância entre os escritos publicados e/ou preparados para publicação pelo próprio autor e um conjunto bastante heterogêneo de trabalhos que reúnem anotações dispersas, aulas e conferências quando de seu professorado na Basiléia, versões preliminares de parte da obra autorizada, poemas, além de pequenos ensaios e artigos. Quanto a estes trabalhos que não foram publicados pelo próprio Nietzsche, pode-se, com Walter Kaufmann (cf. Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Anticrhist, p. 76-77), dividi-lo em três categorias: i) trabalhos que Nietzsche preparou para publicação, mas que não publicou devido ao colapso de 1889 (O Anticristo, Ecce Homo, O Caso Wagner, Nietzsche contra Wagner), que devem ser tratados como obras; ii) Notas de aulas quando do professorado em Basileia, que apresentam importantes informações sobre sua compreensão da Antiguidade grega e que não mostram grandes dificuldades hermenêuticas; iii) Uma massa de fragmentos e notas que incluem ensaios inconclusos, breves anotações, esquemas e projetos de obras por serem redigidas. (c) pode ser dividido em duas classes: (c.1) o material que nunca fora publicado em nenhuma obra; (c.2) notas que foram aproveitadas com modificações em obras. (c.2) não revela as concepções finais de Nietzsche, mas apenas os seus estágios de preparação. O material de (c.1) precisa ser distinguido radicalmente das obras, uma vez que não se sabe como este seria utilizado ou mesmo se o seria. Estas notas, das quais se originou o “apócrifo” Vontade de Poder e cujas circunstâncias de edição são detalhadamente examinadas por Kaufman, apesar de filosoficamente interessantes, foram superestimadas no passado, especialmente por Elizabeth Förster-Nietzsche, irmã e detentora do espólio de Nietzsche após o colapso do autor, que pela ocultação do Nachlass tentou impor por mera autoridade de que naqueles manuscritos que originaram a suposta magnum opus estavam às ideias centrais de seu irmão. Compartilho plenamente da posição metodológica de Kaufmann que subordina a interpretação do corpus não publicado e/ou não preparado para publicação por Nietzsche às obras por ele organizadas/ editadas. Logo, por “obras” de Nietzsche entendo aqui apenas os escritos que este publicou e/ou preparou para publicação. Portanto, eventuais formulações extraídas de notas de trabalho, recurso utilizado por vezes indiscriminadamente pela recepção especializada, serão aqui desconsideradas. Ainda sobre a questão dos “fragmentos póstumos”, Kaufmann narra o uso ideológico destes por Alfred Bäumbler, catedrático da Universidade de Berlin e “intérprete oficial” de Nietzsche para os nazistas, cujo Nietzsche, Der Philosoph und Politiker [1931] defende que o autor não queria realmente dizer o que escreveu em seus livros, estando sua “verdadeira” filosofia nos manuscritos. Para além do ardil de suprimir as contradições que sua interpretação encontrava frente às obras do interpretado, o procedimento de Bäumbler mostra como a supressão da unidade de pensamento de Nietzsche, superficialmente justificada por seu estilo aforismático, permite que sobre ele recaia praticamente todo tipo de leitura. Sobre o uso tendencioso das notas preparatórias de Nietzsche por Alfred Bäumbler, ver também Mazzino Montinari, Interpretações Nazistas. Sem o perceber, parte substancial da recepção crítica, embora recuse as leituras de Elizabeth Förster-Nietzsche e Bäumbler, reproduzem por vezes acriticamente as mesmas estratégias que, adequadamente conduzidas, dão consistência aos devaneios hermenêuticos destes primeiros intérpretes. 49

Volume 6 no 1

!13


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

Este exercício de leitura não se deu de maneira acrítica nem a priori, sendo o resultado de perguntas e respostas obtidas diante das inúmeras dificuldades com as quais uma leitura filosófica se confronta. Para lidar com tais dificuldades, estou em débito com uma vertente da recente teoria semiótica do texto, com alguns aspectos do estruturalismo francês (notadamente, aqueles ensinados por Victor Goldschmidt), bem como com a leitura “não-historicista” da História da Filosofia na linha de Leo Strauss e de seus discípulos. O embate, por vezes crítico, com estas concepções exegéticas me permitiu identificar e enfrentar os principais obstáculos de interpretação. Como não se trata enfim de elaborar um tratado ou mesmo um discurso do método, evito também uma exposição prévia exaustiva da abordagem hermenêutica, discutindo-a quando as citadas dificuldades aparecerem pontualmente. Aliás, o debate aberto com a literatura especializada ficará aqui em segundo plano, restrito por vezes às notas de rodapé e centrado antes nas opções metodológicas do que em seus resultados para, quem sabe, “negligenciando” algumas exegeses minuciosamente empreendidas ainda bem recentemente, o diálogo direto com Nietzsche enquanto intérprete privilegiado de si possa assumir o núcleo mesmo desta investigação. Da decisão por se tomar a autointerpretação do autor (a sua “intenção filosófica”) como um discurso privilegiado pelo qual se deve guiar a execução de seu projeto, segue-se que antes mesmo de discutir alguns pontos dissonantes na recepção crítica acerca da filosofia de Nietzsche, cabe recuperar o que o próprio diz explicitamente ou permite dizer sobre tais pontos. Apenas para ilustrar uma diferença crucial de tal abordagem, note-se que, quanto ao debatido problema acerca da unidade filosófica da obra de Nietzsche, condição indispensável para que se estabeleçam os seus problemas e temas centrais, convém indagar por que Nietzsche afirma a unidade de sua filosofia50 antes de se investigar se é correto lhe acompanhar neste julgamento. Do mesmo modo, perante o citado desacordo sobre a concessão de mesmo estatuto hermenêutico a tudo que Nietzsche escreveu ou apenas ao que ele publicou ou deixou preparado para publicação, cuido primeiro de questionar como o próprio autor, segundo seu ponto de vista crítico, pareceria inclinado a se posicionar quanto a esse ponto. Uma leitura genético-histórica, tão recorrente na recepção crítica de Nietzsche, revela-se insatisfatória para lidar com estas dificuldades justamente por tornar “temporâneo” um pensador que se quer “extemporâneo”. Ademais, se é possível dizer que Nietzsche questionaria ou mesmo rejeitaria a atual leitura genético-histórica ou historicista de suas obras, dificilmente ele poderia recusar o tipo de interpretação aqui pretendido na medida em que esta apenas se propõe a reconstituir, tanto quanto possível, a intenção filosófica do próprio pensador. Tentar entender Nietzsche por como “ele” entende a si mesmo seria uma 50GM,

prólogo §2.

Volume 6 no 1

!14


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

inovação metódica? Talvez não. Mas ao menos não seria uma corrupção metodológica. Ramifico a exposição em três momentos que reúnem hermenêutica e crítica conceptual. Esse duplo eixo convida tanto a uma inquirição da plausibilidade da leitura ora apresentada do pensamento de Nietzsche quanto da pertinência da proposta filosófica assumida para além de sua correção exegética. Isso não significa, como as discussões acima deixam entrever, nenhum relaxamento na seriedade da leitura, apenas que as pretensões aqui não se reduzem a um exercício de interpretação. As três partes do texto representam níveis complementares através dos quais basicamente os mesmos temas e conceitos são discutidos, conquanto um determinado nível de investigação dê maior ênfase a este problema ou àquele conceito. Nesse sentido, cada um dos níveis significa uma via paralela para se alcançar o mesmo território de pensamento e, embora mais ou menos independentes uns dos outros, sua convergência oferece uma visão de conjunto da filosofia extramoral de Nietzsche. A primeira parte (“Estrutura e discurso genealógico”) examina a coerência interna do pensamento de Nietzsche entendido como uma reflexão sobre o problema da decadência. Para tanto, articulam-se indicações diretas e indiretas de Nietzsche quanto aos seus principais procedimentos discursivos de modo a mostrar como ele espera ser lido e como, sob tal exigência, sua filosofia possui uma unidade exemplar. Parto da constatação de que embora o próprio autor declare que o “problema da decadência” foi o que sempre o ocupou, poucos deram a devida relevância a tal indicação. Busco então mostrar que tal autointerpretação, se problemática à primeira vista, é justificável por si mesma e coerente com suas pretensões. Num âmbito mais geral, ao se interrogar tanto como Nietzsche se interpreta quanto como ele espera ser interpretado, o capítulo traz à tona polemicamente o debate um tanto esquecido ou conduzido insatisfatoriamente na recepção crítica, no caso, se há uma forma de leitura superior e propriamente filosófica dentre as inúmeras possibilidades de compreensão de um determinado discurso filosófico. Na segunda parte (“A moral de um imoralista”), seguindo o movimento interno do pensamento de Nietzsche para mostrar como suas reflexões (inclusive autorreflexões) ditas “psicológicas” sobre os preconceitos morais o conduziram a uma doutrina da ascensão e decadência dos impulsos vitais, espero apresentar de que maneira o problema da decadência foi o que sempre lhe interessou. Proponho então explicitar o percurso que vai da moral do conhecimento para o conhecimento da moral, reconstituindo a singularidade da abordagem dos preconceitos morais que tornam seu autor o “primeiro imoralista”. Para tanto, examino a peculiar relação de psicologia e história na filosofia de Nietzsche até que se esclareça como, pelo

Volume 6 no 1

!15


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

contraste entre a afirmação e a negação da vontade de vida - i.e., da “vontade de poder” -, ele encontra o “objeto” de sua filosofia “extramoral” ou “imoral”. Espero mostrar como tal descoberta lhe permite alcançar uma perspectiva quanto ao valor dos valores que evita tanto o objetivismo quanto o relativismo moral. Na terceira e última parte (“A filosofia do anticristo”), após revelado o quê significa a autointerpretação da filosofia de Nietzsche enquanto uma teoria da decadência e como esta veio a ser, trata-se enfim de indagar por que a crítica dos valores da modernidade nos sentencia como decadentes e de que maneira o dizer “Não” aos mais “altos ideais” pode ser a expressão de uma natureza afirmativa por excelência. Conjecturo que tal resposta se encontra na adequada compreensão do projeto de “reavaliação de todos os valores”. Nesse ínterim, a partir de um itinerário sugerido novamente pelo próprio Nietzsche, segundo o qual as três dissertações da Genealogia da Moral seriam estudos preliminares para a mencionada reavaliação, realizo um exame específico da “psicologia dos ideais ascéticos” conduzida na terceira dissertação para, em seguida, explicar como se dá o projeto de reavaliação de todos os valores em sua contundente expressão n’O Anticristo. A hipótese de leitura é de que Nietzsche, ao mesmo tempo em que diagnostica por que o ideal ascético persiste sutilmente sob as mais diferentes expressões da modernidade, elabora um “contraideal” destinado “aos mais saudáveis”.

Referências Bibliográficas BROCHARD, V. “Moral antiga e moral moderna”. In: Cadernos de Ética e Filosofia Política 8, 1/2006, [on line], disponível em http://www.fflch.usp.br/df/cefp/Cefp8/ brochard.pdf. GOLDSCHMIDT, V. Os Diálogos de Platão: Estrutura e Método Dialético. São Paulo: Ed. Loyola, 2002. JANAWAY, C. “Will and Nature”. In: JANAWAY, C (Org.) The Cambridge Companion to Schopenhauer. New York: Cambridge University Press, 1999, p. 138-170. KANT, I. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2008. _______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2007. KAUFMANN, W. Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist. 4th. Ed. Princeton: Princeton, 1974. KLOSSOWSKI, P. Nietzsche e o Círculo Vicioso. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000.

Volume 6 no 1

!16


Por que somos decadentes? Afirmação e negação da vida segundo Nietzsche (prólogo), pp. 01-17

LAÊRTIOS, D. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. 2ª. Ed. Brasília: Ed. UnB, 1988. NEHAMAS, A. The Art of Living. Berkeley: University of California Press, 1998. NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo [NT]. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. _____________. A Gaia Ciência [GC]. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. _____________. A Genealogia da Moral: uma polêmica [GM]. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. _____________. O Caso Wagner [CW] / Nietzsche Contra Wagner. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. _____________. Crepúsculo dos Ídolos [CI]. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. _____________. Ecce Homo [EH]. São Paulo: Companhia das letras, 2000. PLATÃO. Críton. Brasília: Editora Unb, 1997. ________. Menon. São Paulo: Loyola, 2001. SAMPAIO, E. Por Que Somos Decadentes? Afirmação e Negação da Vida Segundo Nietzsche. Brasília: Editora UnB, 2013. SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação [Tomo 1]. São Paulo: Editora Unesp, 2005. __________________. “Contribuição à doutrina da afirmação e da negação do querer-viver”. In: Obras reunidas. São Paulo: Abril Cultural, 1978, Coleção Os Pensadores. __________________. Sobre a Fundamentação da Moral. São Paulo: Martins Fontes, 2001. __________________. Aforismos para a Sabedoria de Vida. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Volume 6 no 1

!17


Jacob Burckhard e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano Ricardo de Oliveira Toledo1 Resumo: Esta pesquisa verifica as análises de Jacob Burckhardt (1818-1897) sobre o projeto político-cultural de líderes europeus, especialmente, Otto von Bismarck, para uma Europa industrialista e as pessoas que nela viviam. Bastante atento aos impactos dos processos históricos para a cultura, o historiador suíço tentou compreender o seu tempo como um período de crise com sérios riscos para o surgimento de indivíduos que contribuíssem para o florescimento de uma cultura forte. O espírito industrialista demandava o aumento do número de trabalhadores para as fábricas e uma ciência que servisse como subsídio para a crescente industrialização. Este estudo transita entre as reflexões de Burckhardt a respeito do Renascimento Italiano como um momento propício para o aparecimento de indivíduos soberanos e a chamada Era das Revoluções como uma época de fortalecimento dos Estados que a tudo subjugavam ou suprimiam. O professor da Universidade de Basileia se deteve, particularmente, com os efeitos da unificação alemã, puxada pelos interesses industrialistas, para o espírito germânico. Defende-se que Burckhardt, embora mais conhecido por suas contribuições para a história enquanto disciplina, tem papel fundamental para a filosofia em sua crítica da Modernidade.

1

Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: ricardotoledo1979@hotmail.com.

Volume 6 no 1

18


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

Palavras-chave: Industrialismo, Modernidade, Cultura, Indivíduo, Crise.

Jacob Burckhardt and the threat of the industrialist spirit to the sovereign individual Abstract: This research verifies the analyzes of Jacob Burckhardt (1818-1897) on the politicalcultural project of European leaders, especially Otto von Bismarck, for an industrialist Europe and for its individuals. Very attentive to the impacts of historical processes on culture, the Swiss historian tried to understand his time as an age of crisis with serious risks for the emergence of individuals who contributed to the flourishing of a strong culture. The industrialist spirit demanded an increase in the number of workers for the factories and a science that would serve as a subsidy for growing industrialization. This study transits between Burckhardt's reflections on the Italian Renaissance as a favorable period for the emergence of sovereign individuals and the so-called Age of Revolutions as a time of strengthening of the States that overwhelmed or suppressed everything. The professor at the University of Basel was particularly concerned with the effects of German unification, driven by industrial interests, to the Germanic spirit and its cultural productions. It is argued that Burckhardt, though best known for his contributions to history as a discipline, plays a fundamental role in philosophy for it critique of Modernity. Keywords: Industrialism, Modernity, Culture, Individual, Crisis.

Introdução

E

mbora Jacob Burckhardt não seja comumente considerado um filósofo, título que ele mesmo não assumia, suas reflexões sobre a cultura e sobre o indivíduo, inscritas em sua historiografia, conferências e cartas, são de inegável valor filosófico. Prova disso é a apropriação que um dos mais famosos e importantes filósofos do século XIX, Friedrich Nietzsche (1844-1900), fez de boa parte dos conceitos postulados pelo historiador suíço. Pode-se dizer, também, que o pensamento de Burckhardt se apresenta como uma alternativa ao hegelianismo e ao marxismo para se compreender o problema da Modernidade, industrialização, cultura e indivíduo para os europeus oitocentistas. No entanto, o que se pretende neste artigo não é estabelecer um debate entre Burckhardt e outras correntes intelectuais de seu tempo, mas apresentar elementos valiosos de sua crítica ao projeto político-cultural de Otto von Bismarck (1815-1898) e suas consequências para a cultura e para o indivíduo no industrialismo embrionário da Alemanha unificada. Igualmente, intenta-se oferecer material crítico para se pensar se as tendências industrialistas contemporâneas contribuem ou não para o florescimento de indivíduos soberanos. As teorias de Burckhardt não poderiam ser rotuladas como otimistas, pois rejeitavam a visão de que um período da história seria mais perfeito que os anteriores. Nas épocas mais fecundas, o drama da humanidade sempre teria assumido a forma de tragédia. Seu

Volume 6 no 1

19


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

pessimismo, de bases schopenhauerianas, refutava a doutrina da perfectibilidade hegeliana, que deprecava um irrevogável progresso.2 Apesar de o homem buscar o melhor para si, não se pode falar numa história progressiva, considerando-se que sempre existem alternâncias entre o bem-estar e a decadência. Burckhardt não negava que tivesse ocorrido um progresso (Fortschritte) tecnológico ao longo da Modernidade. Porém, não acreditava num progresso orientado por forças teleológicas. Em suas investigações historiográficas, vê-se que mais vale uma cultura que não permanece estática e fechada em si mesma. Daí ele avaliar a cultura italiana do Renascimento como aquela em que ocorreu um progresso, pois vários de seus elementos e seus indivíduos contribuíram dinamicamente para que ela se diversificasse e fosse o berço de grandes obras. Além disso, não existiria progresso ininterrupto, como se a humanidade continuasse sua marcha para a perfectibilidade irreversível. Assim, a cultura e a sociedade dos tempos de Burckhardt não eram um melhoramento das anteriores. Em vez disso, em muitos sentidos, a Europa do século XIX não contava com os inumeráveis elementos presentes na Itália renascentista e, portanto, nem poderia restaurá-la. Burckhardt considerava o Estado, a religião e a cultura como as potências da história. As duas primeiras enquanto estáticas, e a última, dinâmica. Em sua visão, o fluxo histórico corre no sentido de tais forças, sem ciclos ou desenvolvimento finalístico. 3 A cultura é a soma dos desenvolvimentos espontâneos e criativos do espírito agindo e modificando as instituições estáticas, sem uma validade universal ou coercitiva. Nela se materializa o espírito de um povo e são abarcadas oposições ao Estado e à religião. Num significado restrito tem em vista o idioma e as produções espirituais, como a arte, e no mais geral a unidade formada por milhões de pessoas.4 Daí que: “O Estado e a Religião [sejam] a expressão das necessidades políticas e metafísicas que reivindicam aceitação universal, enquanto a Cultura corresponde às necessidades materiais e espirituais que não reivindicam aceitação universal”. 5 Paula Vermeersch comenta que Burckhardt considera a existência de um espírito humano que seria um reservatório de todas as experiências da humanidade através do tempo, vestindo-se de maneira diversa em cada época histórica.6 Outra noção que contribuirá para a leitura e interpretação deste artigo é aquela de crise, que Burckhardt define como um processo histórico acelerado. Assim ele escreve: “O processo de

2

Cf. ROSSI, R. Nietzsche e Burckhardt. Genova: Tilgher, 1987.

3

Cf. OLIVEIRA, J. P. O futuro aberto: Jacob Burckhardt, G. W. F. Hegel e o problema da continuidade histórica. Tese de Doutorado. Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2006. 4

Cf. também: CARPEAUX, Otto Maria. “Jacob Burckhardt: o profeta de nossa época”. In ____. A Cinza do Purgatório. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1942. 5

Cf. BURCKHARDT, J. Reflexões sobre a História. Rio de Janeiro, Zahar Editora, 1961, p. 34.

6

VERMEERSCH, P. Jacob Burckhardt e suas reflexões sobre a história. In. História Social. Revista do IFCH/ Unicamp. Campinas, Unicamp, nº 10, 2003, p. 215-238. Cf. também: GAY, Peter. “Burckhardt, o poeta da verdade”. In: O estilo na História. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 131-166.

Volume 6 no 1

20


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

evolução histórica adquire [...] uma velocidade vertiginosa, acontecimentos que normalmente levariam séculos para atingir seu pleno desenvolvimento perpassam céleres como espectros, no decurso de poucas semanas e meses, esgotando-se [...] logo depois”.7 No entendimento do professor de Basileia, as verdadeiras crises surgiriam raramente e desembocariam numa verdadeira mudança no status quo de um povo. Passa a haver uma inversão na qual o grupo social dominante cede lugar ao dominado ou a uma estrutura política profundamente diversa, abalando o fundamento sócio-político de uma nação. Muitos exemplos históricos de revolução são, de fato, pseudocrises, pois, embora sejam marcados por sua intensidade e tenham produzido atritos civis e religiosos, não acarretaram transformações radicais. Desse tipo são as guerras das Duas Rosas, na Inglaterra, período em que o povo foi conduzido a choques civis que, no entanto, interessavam às facções nobres daquele reino, fazendo com que o poder permanecesse nas mãos da nobreza. A invasão bárbara que levou à decadência do Estado romano ocidental no século V é um modelo de verdadeira crise, apesar de ser “absolutamente sui generis e incomparável a qualquer outra de que [se tenha] notícia”.8 Característica predominante deste processo foi a substituição de um Estado pelo poder que se institucionalizou e se hierarquizou na figura de uma Igreja. Entretanto, uma crise genuína não significa propriamente a completa derrocada de velhos elementos, e sim a fusão de uma nova potência material com uma antiga, promovendo uma metamorfose espiritual. Enfim, “aparentemente, uma condição prévia para a eclosão de qualquer crise é a existência de uma rede de comunicações bastante extensa e a difusão ampla de uma maneira de pensar, de uma mentalidade já originalmente semelhante”. 9 Como se verá, Burckhardt sentia que a Europa, com destaque aqui para os alemães, estava vivenciando um período de revoluções que se materializava em crises com possíveis impactos sobre seus indivíduos e sobre a cultura. Com a Revolução Francesa, com seu marco inicial em 1789, foram consolidados os fundamentos do industrialismo e suas influências na cultura e na política.10 Paralelamente, foram abertas as veredas para a democracia, o socialismo e o comunismo na Europa. Os dois últimos séculos representariam a eminente ameaça de desequilíbrio entre as potências históricas, a saber, o Estado, a religião e a cultura, dando primazia à primeira delas com consequente esmagamento do indivíduo. Sabendo-se de tais definições, quais seriam os diagnósticos de Burckhardt sobre a cultura de seu tempo em relação a outras épocas da história europeia? Não estaria ela 7

BURCKHARDT, J. Op. cit., 1961, p. 171.

8

BURCKHARDT, J. Ibidem, p. 173.

9

Ibidem, p. 175.

10

Cf. FERNANDES, C. S. Jacob Burckhardt. História da Era da Revolução: introdução. In: MALERBA, Jurandir. (Org.). Lições de História: Da história científica à crítica da razão metódica no limiar do século XX. Rio de Janeiro; Porto Alegre: Editora FGV; Editora PUC-RS, 2013.

Volume 6 no 1

21


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

passando por um momento de decadência? Reflexões sobre estas questões são vistas nos contrapontos entre o espírito alemão pós-unificação e aquele do Renascimento italiano e nas leituras que ele faz das transformações que ocorriam em seu tempo.

Reflexões sobre a cultura industrialista da nova Alemanha Bismarck, também conhecido como o Chanceler de Ferro, liderou a empreitada de transformar os trinta e nove reinos germânicos num único Estado Nacional. A unificação se efetivou em 1871, quando a Prússia venceu a França na Guerra Fanco-Prussiana. Na ocasião, os estados do sul foram anexados ao novo território alemão. Criava-se, então, o II Reich (ou II Império Alemão), que passaria a experimentar um rápido desenvolvimento militar, político e econômico. Porém, uma unidade permanecia não concluída: a identidade cultural dos cidadãos alemães. Nas rédeas de um projeto cultural pensado por Bismarck, o antigo espírito do povo germânico deveria ser substituído por um vigoroso espírito para um Estado recém-nascido. Para este propósito bastaria a Kulturkampf anticlerical de Bismarck? Ou que o espírito alemão imitasse a Europa industrialista, onde se corporificava a cultura da máquina? Uma crítica recorrente de Burckhardt, e que será verificada ao longo deste trabalho, diz respeito ao destino cultural dos indivíduos alemães. Após a vitória da guerra contra a França, Bismarck incentivou no novo Estado Alemão um espírito de unidade nacional. Mais do que simples sentimento, esta unidade deveria ser respaldada pela criação de laços institucionalizados que promoveriam o nascimento de um povo que superasse as arcaicas diferenças políticas e culturais. Um exemplo de como tal esforço foi levado a cabo é a nomeada Kulturkampf, quando o chanceler assumiu que a autoridade e a influência clerical católica na Alemanha eram antagônicas aos interesses do Estado. Ao promulgar leis que regulavam as iniciativas católicas em solo alemão, Bismarck procurava retirar da Igreja Católica qualquer capacidade de ameaçar a soberania Alemã em todos os âmbitos. De certo modo, buscava maior secularização para a vida pública.11 É estranho, no entanto, designar como Kulturkampf um movimento que tentava suprimir aspectos da vida cultural de parte do povo alemão. O que significaria empreender esforços pela Kultur de acordo com a mentalidade alemã naquele contexto? Como Burckhardt encarava tais iniciativas? Para refletir sobre a primeira dessas perguntas, recorre-se a Norbert Elias para que a sociogênese do termo Kultur seja discutida. Nas palavras do historiador, a “[...] palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é Kultur. [Esta palavra alude] a fatos intelectuais,

11

Cf. ROSE, J. Otto Von Bismarck. Chelsea House Pub, 1987. (col. World leaders past and present , vol. 35).

Volume 6 no 1

22


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

artísticos e religiosos [...]”. 12 Por seu turno, o adjetivo Kulturell não seria adequado para qualificar comportamentos pessoais. Antes, apontava para o produto de atividades intelectuais, artísticas ou religiosas do espírito germânico. A palavra mais utilizada para classificar o modo de uma pessoa se comportar de maneira mais cultivada, naquilo que mais se aproximaria da práxis civilizada para os europeus no século XIX, seria kultiviert. O conceito de Kultur era delimitador, uma vez que servia para distinguir o espírito do povo alemão dos demais povos, especialmente do francês. Logo, era etnocêntrico, além de ser exaltado como crucial na elaboração de uma identidade nacional para a nova nação alemã. De um lado, ajudava a responder sobre o que era verdadeiramente alemão e, do outro, o que o espírito genuinamente alemão poderia criar. A Kultur do II Reich não apenas esperava imprimir uma identidade ao povo alemão como, também, contrapunha o espírito de um novo tempo, isto é, mais moderno, intelectual, burguês e apto para o industrialismo à obsoleta mentalidade aristocrática ruralista que, até então, atrapalhava as iniciativas unificacionistas. Como descreve Elias, por toda parte, em círculos da classe média, sobretudo entre os jovens, eram identificados “[...] sonhos vagos de uma nova Alemanha unida, de uma vida natural [...] em contraste com a vida antinatural da sociedade de corte [...]. A estrutura da sociedade absolutista de pequenos Estados não proporcionava uma abertura a ela”.13 No lugar de uma aristocracia cortesã com suas tendências ruralistas, Bismarck abria espaço tanto para uma aristocracia militar quanto para uma burguesia nacional forte. Ao lado disso tudo, Kultur também significava uma rejeição ao intelectualismo importado e aos costumes cortesãos franceses. Não se pode deixar de notar que, sob o cetro de Bismarck e de seus companheiros nacionalistas, o ideal de Kultur assume um caráter político por excelência. Um dos sintomas da secularização da cotidianidade para as massas germânicas, isto é, da força política sobre quaisquer formas de ascetismo remanescentes da antiga Europa medieval, de um lado, e da reformada, de outro, deveria ser o alistamento dos indivíduos para o trabalho assalariado, o que seria a base do industrialismo europeu da segunda metade do século XIX e na Alemanha unificada. Era o momento fronteiriço entre o ruralismo dos velhos Estados germânicos e a produção em larga escala para atender ao crescente comércio internacional. Para tanto, era imperioso o estabelecimento de um exército de indivíduos preparados para jornadas extenuantes de trabalho nas fábricas e, ao mesmo tempo, de um corpo de intelectuais tecnocratas para as inovações que o mercado exigia. Roberto Rossi14 sustenta que o distanciamento da cotidianidade através de uma liberdade politicamente conservadora e aristocrática permitiria a Burckhardt contemplar com mais clareza a história. Assim havia feito com o otimismo hegeliano dos alemães, os 12

ELIAS, N. O processo civilizatório I. Rio de Janeiro, Zahar Editora, 1990, p. 335.

13

ELIAS, Ibidem, 1990, p. 614.

14

ROSSI, R. Op. cit, 1987.

Volume 6 no 1

22


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

positivistas de matrizes comteanas e, diga-se de passagem, as ondas proletárias. Ele era um mestre de seu tempo, de seu povo, apesar disso, distante desse, conservando sempre seu peculiar modo aristocrático. Mostrava repugnância pelo novo conhecimento, odiava os congressos, a academia e a vida pública. Roberta Garner15 indica que, aos olhos de Burckhardt, as tendências românticas oitocentistas, das quais o nacionalista Richard Wagner e seus companheiros faziam parte, eram características de uma sociedade que se fundamentava em ideais revolucionários. Em 1848, enquanto ocorria uma revolução liberal e imprimia-se o Manifesto Comunista, de Marx e Engels, o historiador via naquelas ideias propostas de transformações sociais e, consequentemente, culturais, alheias ao seu aristocratismo e conservadorismo. Em seu conjunto, formavam um todo confuso, desembocando, em muitos casos, num nacionalismo exagerado, com suas frentes políticas em quase todos os rincões europeus. Correspondendo-se com Hermann Shauenburg, em 23 de agosto de 1848, Burckhardt declara que tudo estava desconjuntado e que sentia a desorganização da vida privada na Alemanha e uma Europa arruinada.16 De qualquer maneira, não se apresentava depressivo, mas enfrentava os males da Modernidade de cabeça erguida, pronto para fazer dela suas peculiares leituras críticas. Numa carta para Friedrich von Preen, do início de 1870, Burckhardt demonstrou sua apreensão quanto ao futuro cultural da Alemanha. Ponderava que os dois povos de grande espírito do continente europeu, os franceses e os alemães, estavam passando por uma completa mudança em sua cultura.17 O preocupante não seria a guerra travada, mas o novo espírito (der neue Geist) que viria a se configurar naquela época de guerras. Ao menos, esperava que fosse um momento decisivo para que Hegel se aposentasse definitivamente e que Schopenhauer, a quem chama várias vezes de o “Filósofo”, ganhasse maior credibilidade. Noutra carta, ao mesmo destinatário, do dia 26 de abril de 1872, reflete sobre as recentes consequências da vitória de Bismarck e de sua administração militarizada, que em pouco tempo empurraria os trabalhadores miseravelmente para as fábricas, dando lugar a um Estado industrialista.18 O desenvolvimento de uma soberania inteligente (intelligenten Herrschergewalt) e duradoura ainda estava em sua infância. É um fato a antipatia de Burckhardt por Bismarck, como se constata na correspondência a Preen, em 3 de julho de 1870:

Depois de as pessoas terem sido manipuladas por duas décadas e sempre instigadas a desejarem e a quererem algo, surge, de repente, um “voluntarioso” (Bismarck) de primeira classe em Sadowa; e, desde então, 15

GARNER, R. Jacob Burckhardt as a Theorist of Modernity: Reading The Civilization of the Renaissance in Italy. In. Sociological Theory, Vol. 8, No. 1 (Spring, 1990), p. 48-57. 16

BURCKHARDT, J. Cartas. Trad. Renato Rezende. Rio de Janeiro, Topbooks, 2003, p. 275-277.

17

BURCKHARDT, J. Ibidem, 2003, p. 214.

18

BURCKHARDT, J. Ibidem, 2003, p. 269.

Volume 6 no 1

23


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

exausta por todo o esforço anterior, elas caem a seus pés e passam a querer o que ele quer, e simplesmente agradecem a Deus porque há alguém para lhes apontar alguma direção.19

Indiferentemente de a Kulturkampf de Bismark ter encorajado os alemães a todas as formas de niilismo, apesar de uma posterior e bem-sucedida resistência do catolicismo, exerceu um efeito cultural completamente empobrecedor, pois a todos lançava num movimento geral mundial: a ascensão do mundo dos trabalhadores.20 Cássio da Silva Fernandes destaca que Burckhardt era um homem cansado de seu tempo, não mantendo boa relação com qualquer coisa lembrasse a Modernidade.21 A partir de uma carta para Schauenburg, de fevereiro de 1846,22 pode-se ler uma lista de indivíduos dos quais o suíço queria se desvencilhar. Eram eles os radicais, comunistas, industriais, doutos, ambiciosos, reflexivos, abstratos, absolutos, filósofos, sofistas, fanáticos do Estado e idealistas. Para Fernandes, em contraste com as ondas modernizantes do norte da Europa, Burckhardt buscava em Roma um lugar de refúgio.23 A cidade italiana, como nenhuma outra, era onde ainda perduravam as ruínas da Antiguidade. Em suas viagens para a “velha Europa”, tendo como fundo seus monumentos, ansiava por um recolhimento contemplativo. Não sabia como lidar com as transformações, em especial, políticas, pelas quais seu continente passava, guardando delas um pessimismo constante. A formação dos novos Estados nacionais europeus esfacelava as esferas tradicionais de poder e impunha laços sociais artificiais. Em seu forte conservadorismo rejeitava as sublevações camponesas e proletárias de seu tempo, além de seus resultados. Fazia questão de contrastar a cultura do norte e a do sul europeu, berço dos grandes indivíduos que, em sua ação concreta no mundo, construíram aquilo que viria a ser conhecido como o Renascimento italiano. Isso colaborou para a elaboração de um dos maiores legados de Burckhardt: a redescoberta do homem em sua singularidade na Renascença italiana.O que tornava a cultura do Renascimento forte era a emancipação dos indivíduos das grandes instituições estáveis. A soberania política dos principados italianos se apoiava sobre um solo recorrentemente movediço. As guerras e traições – algumas efetivadas entre parentes - ameaçavam o poder dos governantes e, consequentemente, a vida de seus súditos e pupilos, ao mesmo tempo em que geravam uma 19

BURCKHARDT, J. Ibidem, 2003, p. 285-286.

Burckhardt opina o seguinte sobre modelos políticos autocráticos nos moldes da Kulturkampf: “[…] a Alemanha e a Suíça tentam tornar o catolicismo completamente submisso ao Estado, isto é, não só privá-lo dos direitos comuns como também torna-lo inócuo para sempre” (BURCKHARDT, J. Reflexões sobre a História. Trad. Leo G. Ribeiro. Rio de Janeiro, Zahar Editora, 1961, p. 210-211).

20

FERNANDES, C. S. Jacob Burckhardt e a preparação para A Cultura do Renascimento na Itália. In. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, 2006, Vol.3, Ano III, nº 3, p.1-18. 21

22

BURCKHARDT, J. Op. cit., 2003, p. 198-199.

23

Cf. também, BURCKHARDT, J. Ibidem, 2003, p. 204. Carta a G. Kinkel, de 12 de setembro de 1846.

Volume 6 no 1

24


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

necessidade de aprimoramento bélico e artístico, tanto em âmbito individual, de um tipo de indivíduo soberano, quanto político. No entendimento de Burckhardt, teria havido, durante o Renascimento, um verdadeiro florescimento do indivíduo e, com este, o alvorecer de uma nova humanidade, preparando a Europa para o mundo moderno. Neste ponto vale mencionar que aqui não se deve confundir Modernidade com moderno.24 O primeiro termo se refere à era marcada pelo industrialismo, pela agitação do trabalho e pela difusão de ideais políticos para as massas. O segundo aponta para a passagem da Idade Média para a Moderna como aquele momento no qual o homem está desejoso pelo novo – apesar de esta distinção de termos não ser tão clara nos textos do historiador. Na visão de Garner,25 Burckhardt acreditava que a descoberta do ser humano, o despertar da personalidade e o desenvolvimento do indivíduo são as marcas por excelência do Renascimento como o primeiro momento da época moderna. Aquele período caminhou em direção a uma nova consciência do mundo, do ser humano, de seu impulso criativo e da cultura. A individualidade passou a preceder ao sentimento imperioso do grupo, do clã, da coletividade. Após a quase vigília medieval, na qual o homem somente se reconhecia diluído em uma raça, povo, casta, corporação ou família, foi na Itália em que, pela primeira vez, o homem tornou-se um indivíduo espiritual, reconhecendo-se como tal. O indivíduo conseguiu se alçar para além dos grilhões das autoridades religiosas, políticas e da tradição. Em conjunto, começou a trabalhar para a satisfação de seus interesses, muitas vezes, conflitando com as imposições morais majoritárias de sua sociedade. O esforço do indivíduo para uma distinção quanto aos demais, batalhando para o aprimoramento de própria personalidade, propiciou ao Renascimento cada um de seus gênios, bem como o culto a eles. Se havia alguma liberdade obtida na vida individual, essa não seria gratuita, pois o indivíduo sabia quão grande seria a obstinação imprescindível para preservar sua autonomia. Não era fácil lograr uma personalidade livre em meio a uma vida nem sempre confortável, com súbitas mudanças, assaz violentas, num mundo em que a opinião de alguém poderia lhe render as coisas mais temidas, dentre as quais a morte e o exílio. A vida sem riscos idealizada pela socialdemocracia da Modernidade – segundo Burckhardt, levada a cabo por Bismarck,26 desempenharia uma tarefa simetricamente oposta: imolava e impedia a formação completa do indivíduo a partir de seus impulsos. Assim, o suíço preocupava-se com o destino cultural da Europa, notadamente, do espírito alemão, e seus impactos sobre seus indivíduos, como escreve para Preen, em 1870:

Assim como eu, você acha que tudo na velha Europa parece fora dos eixos Cf. KAHAN, A. S. Aristocratic Liberalism: The social thought of Jacob Burckhardt, John Stuart Mill and Alexis de Tocqueville. New York, Oxford University Press, 1992, p. 81-125. 24

25

GARNER, R. Op. cit., p. 48-57.

26

Cf. BURCKHARDT, Op. cit., 2003, p. 285.

Volume 6 no 1

24


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

este ano, e isso julgando a partir de um conhecimento inteiramente diferente dos assuntos do dia a dia. Realmente já não sei o que ganha a cultura alemã em fazer o indivíduo feliz em seu íntimo; todos esses pequenos centros culturais, onde o espírito alemão fica lado a lado com o filisteísmo alemão, estão sendo explodidos com éclat, e, no fim das contas, a principal consequência da centralização é a mediocridade espiritual, que se torna mais desagradável pela crescente opressão do “trabalho árduo”. O termo reduzido à sua expressão mais simples significa, grosso modo, em minha opinião, o seguinte: alguém que não tem, ou que não ganha dinheiro suficiente para fazer figura em uma grande cidade irá, gentilmente, deixar de existir. Se o espírito alemão ainda pode extrair, do âmago de seus verdadeiros poderes, uma reação contra a grande violência que lhe esta sendo perpetrada, ou se é capaz de se opor a essa violência com uma nova arte, poesia e religião, então estamos salvos, mas, se não, não estaremos. Eu digo: religião, porque sem uma vontade sobrenatural para contrabalançar o clamor do poder e do dinheiro, isso não pode ser feito. 27

Os custos da afirmação política alemã de Bismarck e seu capitalismo para a cultura poderiam ser altos e, por enquanto, incomensuráveis. Em contraste com o espírito autônomo do gênio do indivíduo soberano italiano, que havia se formado no solo instável da vida política, os alemães viam sua nação se formar a partir de uma forte instabilidade, mas que, ao buscar a estabilidade política através da institucionalização de setores da cultura, retirava de seus indivíduos a autonomia. A Renascença permitia a distinção, ao passo que a nova política cultural da Alemanha poderia suscitar o nivelamento e a passividade entre as pessoas. Em Reflexões sobre a História, Burckhardt explicita sua desaprovação aos projetos culturais voltados apenas para atender às demandas unificacionistas de certos governantes. Assim escreve: na “verdade há vários espertalhões desonestos, que afirmam que uma vez unificado completamente o Estado, eles poderiam prescrever-lhe um programa cultural ideal”.28 Porém, o que permanece detrás dessa cultura ideal é uma conformação do indivíduo aos propósitos estatais porque, para ele, mais vale pertencer a um grande Estado do que possuir uma grande cultura. Para alguns, pertencer a um Estado pequeno, que possua pouca força comercial e pequeno poderio bélico diante dos demais, é vergonhoso. Quando muito, a cultura aparece apenas como mero adereço, no melhor dos casos um elemento de segunda ordem. O indivíduo civilizado do II Reich era débil e sem qualquer nobreza, indiferente às origens de seu povo. Neste ponto, concorda-se com o significado do termo “Wolk” explicitado por George Mosse.29 “Wolk” denotaria um conjunto de indivíduos 27

BURCKHARDT, Ibidem, 2003, p. 268.

28

BURCKHARDT, J. Op. cit., 1961, p. 100.

29

MOSSE, G. The crisis of german idelology. New York, Grosset and Dunlap, 1998.

Volume 6 no 1

25


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

unidos por uma essência transcendente, um sentimento de comunidade que é, igualmente, fonte da criatividade de seus membros. No novo Estado os alemães se uniam por laços artificiais, ou seja, pela exaltação de valores políticos destoantes da natureza vigorosa e aristocrática de seus antepassados: eram meros cidadãos. Como expressa o professor de Basileia, o “Estado tornou-se meramente um triste exercício do poder, um pseudoorganismo existente de per se”. 30 Portanto, além de não haver, durante os anos 1870 e 1880, uma cultura de identidade nacional inequívoca, não havia um ser alemão encarnado, unívoco e coerente. Existiam somente algumas manifestações isoladas sobre as quais se conseguiria construir a ideia de identidade nacional. A falta de unidade cultural alemã naquele período foi muito bem descrita por um dos colegas de Burckhardt na Universidade de Basileia, Friedrich Nietzsche, como aponta Chiara Piazzesi31 e se comprova em sua Primeira Consideração Extemporanea. Vale dizer que, tanto no contexto de Burckhardt quanto de Nietzsche, unidade não significa uniformidade. Para Burckhardt, se o Renascimento italiano foi um momento em que a instabilidade política, de competição entre as cidades, do entusiasmo pelo novo e do secularismo, o que permitiu o surgimento de indivíduos soberanos e do uomo universale, a subserviência das instituições aos Estados industrialistas propiciava apenas a formação de eruditos e de operários para as fábricas, que buscavam, sobretudo, a organização, o progresso, a estabilidade e o bem-estar. O grande indivíduo, indispensável para a cultura, estava ameaçado. Johan Huizinga 32 explica a figura do uomo universale, isto é, do grande gênio do Renascimento, como aquele indivíduo de personalidade livre, que pairava sobre doutrinas e moralidades, sendo, também, arrogante, frívolo e dado ao prazer. Embora fosse curioso por tudo que o cercava, orientava-se por suas próprias regras, não pelas normas de uma autoridade, como aquelas que determinavam as atividades intelectuais no período medieval. Em suma, guardava uma paixão pagã pela beleza. Estas forças estavam diminuídas na cultura europeia do final do século XIX. Abaixo segue a reflexão de Burckhardt sobre l’uomo universale:

Quando, pois, um tal impulso para o mais elevado desenvolvimento da personalidade combinou-se com uma natureza realmente poderosa e multifacetada, capaz de dominar ao mesmo tempo os elementos da cultura de então, o resultado foi o surgimento do “homem universal” – l’uomo

30

BURCKHARDT, J. Op., cit. 1961, p. 98

31

PIAZZESI, C. Nietzsche: Fisiologia dell’arte e décadence. Lecce: Conte Editore, 2003.

32

HUIZINGA, J. The problem of Renaissance. In. Men and ideas: Essays on History, the Middles Ages, the Renaissance. Trad. J. Holmes e H. Marle. New York, Harper Torchbooks, 1970.

Volume 6 no 1

26


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

universale – que à Itália e somente a ela pertence. 33

Na esfera pessoal, a educação do indivíduo plenamente desenvolvido aparece no texto de Burckhardt como Bildung, isto é, o árduo processo para que alguém seja capaz de construir e dar forma a si mesmo. Já na esfera cultural, um indivíduo que reúne em si o máximo em potência histórica de seu tempo é capaz de expressar no produto de seu trabalho uma gama indescritível de propriedades de sua cultura. Mais do isso, transformase num elo necessário, um momento ímpar de sua cultura.34 Logo, a dominação de todos os elementos da cultura não é análoga a um caráter meramente erudito no uomo universale. O gênio renascentista não era o indivíduo que possuía muita informação, mas aquele utilizava o que aprendeu ou assimilou com o intuito de aplicar em uma criação. Acreditava que quanto maior fosse o leque de sua investigação, de seu aprimoramento técnico, do domínio de seu corpo, do trato com a matéria inorgânica e orgânica ao seu redor, maior seria sua capacidade criativa e a relevância de seu juízo sobre todos os temas, transformando-se em fonte de inspiração. Noutros termos, quanto mais rigorosa é a formação a que se impõe, maior será a tarefa para a qual se destinará. O Renascimento contou com aquele tipo de homens que Burckhardt chamou de plenamente desenvolvidos.

Homens de saber enciclopédico existiram ao longo de toda Idade Média em diversos países, uma vez que esse saber configurava então um todo reunido e delimitado; da mesma forma, encontramos artistas universais até o século XII, quando os problemas da arquitetura eram relativamente simples e uniforme, e no campo da escultura e da pintura, o objeto a ser representado prevalecia sobre a forma. Na Itália do Renascimento, pelo contrário, encontramos concomitantemente em todas as áreas artistas a criar o puramente novo e, em seu gênero, perfeito, impressionando-nos ainda grandemente como seres humanos. Outros são também universais fora dos limites de sua arte, na colossal amplidão do domínio espiritual. 35

Diferentemente do europeu culto de seu tempo, que buscava o saber indiscriminadamente, mas insistia em sua passividade cultural, o grande indivíduo do Renascimento bebia do passado para se tornar uma peça indispensável para a sua cultura. Todavia, mesmo sendo influenciado e tocado numa união fecunda pelo poderoso humanismo dos antigos gregos e romanos, pois o “Renascimento não se teria configurado na elevada e universal necessidade histórica que foi se pudesse abstrair tão facilmente dessa 33

BURCKHARDT, J. A Cultura do Renascimento na Itália. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.150.

34

Cf. BURCKHARDT, J. Op. cit., 1961, capítulo V.

35

BURCKHARDT, Ibidem, 2009, p. 150.

Volume 6 no 1

27


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

Antiguidade”,36 o gênio renascentista trabalhou para o nascimento de um profícuo e original espírito italiano. Tanto os eruditos, sobretudo, os que subjugavam o saber científico à tecnocracia industrial, quanto os operários almejados pelos líderes da nova Alemanha pareciam dispensáveis para a cultura. Noutros termos, por esta não logravam qualquer coisa grandiosa.A burguesia foi responsável pela aurora de uma nova cultura com o florescimento das cidades a partir do século XII, processo que ela dirigiria até seu ápice na atmosfera renascentista italiana. Porém, havia uma camada de trabalhadores que atendia ao sistema de corporações na qual a cultura encontrava terríveis limitações.37 O aprendizado e a prática do trabalho manufatureiro exigiam do indivíduo exaustiva repetição. O sistema de corporações deixava seus trabalhadores alheios ao dinamismo de uma cultura que se configurava como um empreendimento de espíritos que poderiam se dar o luxo de propor e experimentar novidades. Os burgueses nas cidades nascentes investiam em arte e conhecimento, permitindo que artistas e pensadores obtivessem subsídios para suas inovações. Em contraste, a burguesia industrialista do século XIX somente pensava em como aumentar suas riquezas, ainda que, para isso, tivesse que esmagar quaisquer iniciativas em prol da cultura. Apoiava a posse das instituições de ensino pelo Estado para que formassem trabalhadores para suas fábricas. Esses últimos seguiam o exemplo de seus ancestrais nas corporações de ofício. Como repetidores incansáveis, estavam privados das rédeas de suas vidas e da cultura. São chamados por Burckhardt de massa, uma espécie de exército inculto, que não entende e, por este motivo, não acessa a nenhum dos grandes produtos da cultura. Tratando-se da arte, por exemplo, a única da qual poderia usufruir seria aquela feita para o descanso e nunca para o enlevo espiritual. Como se vê, a insatisfação de Burckhardt em relação aos alemães seu tempo tinha como alvo tanto os cultos quanto os incultos, grosso modo, respectivamente, os eruditos das universidades e os operários, uma vez que os dois grupos tornavam-se cada vez menos criativos e vigorosos. Outro relance do conservadorismo de Burckhardt é sua aversão aos possíveis movimentos das massas formadas nas fileiras da produção industrial. Aliás, ele tinha forte preocupação com uma verdadeira revolução, isto é, aquela que culminaria com a inversão das castas sociais no poder, o que explica parte da sua crítica aos comunistas oitocentistas, inscrita numa carta de 5 de maio de 1846 a H. Schauenburg.

Aqueles que agora pulam à frente das cortinas, os poetas e pintores comunistas e seus similares são meros Bajazzi, que apenas preparam o público. Nenhum de vocês sabe ainda o que o povo é, e quão facilmente ele se transformará em uma horda de bárbaros. Você não sabe que tirania será exercida sobre o espírito, sob o pretexto de que a cultura é a aliada secreta do 36

BURCKHARDT, Ibidem, 2009, p. 177.

37

Cf. BURCKHARDT, Ibidem, 2009, p. 95.

Volume 6 no 1

28


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

capital que deve ser destruído. Aqueles que esperam dirigir o movimento com a ajuda de sua filosofia, e mantê-los nos trilhos parecem-me completos idiotas. Eles são os feuillants do movimento que está por vir, e, assim como a Revolução Francesa, o movimento irá desenvolver-se como fenômeno natural, envolvendo tudo o que é abominável na natureza humana. Eu não quero experimentar esses tempos, a menos que seja obrigado a fazê-lo; pois quero ajudar a salvar as coisas, tanto quanto minha humilde posição me permitir. [...] Nosso destino é ajudar a construir mais uma vez quando a crise tiver passado.38

Nas palavras “o que há de abominável na natureza humana”, Burckhardt indica implicitamente o contrassenso que jaz nos ideais comunistas. Se o proletariado permanecia submisso, isso se dava em razão do adestramento a que era submetido. Porém, como era próprio da natureza humana, invariável em toda história, ao se colocar o poder nas mãos de alguém ou de um grupo, todo altruísmo apregoado cairia por terra, trazendo à tona o orgulho e o egoísmo. Durante o processo de crise, diante das resistências materiais das castas dominantes, a massa se veria ligada por laços de solidariedade e esperança, pelos quais, para o suíço, até pessimistas se tornam otimistas. Esta ilusão desapareceria após as celebrações festivas que precedem os futuros dias de labor rude e intenso. Logo após a eliminação dos velhos elementos opressores, os que de fato iniciaram a crise são postos de lado, substituídos por outros e novas formas de opressão surgem. O pessimismo de Burckhardt quanto ao papel das crises (revolucionárias) para a instauração da paz e do progresso duradouros se faz notar em sua crença de que é ingênuo esperar que tal condição, nunca alcançada, por mais violentas e aparentemente transformadoras que tenham sido determinadas sublevações, possa ser estabelecida no presente.39 Assim, tanto “os indivíduos como a massa atribuem tudo que lhes causa desconforto às condições predominantes no passado mais recente, sem jamais reconhecer que, na maioria dos casos, trata-se de falhas determinadas pela própria imperfeição inerente ao ser humano”. 40 O agravante das insurreições populares estaria numa suposta ameaça da restauração das mais diversas formas de barbarismo. Logo, há um risco para a cultura. Embora a maneira de Burckhardt pensar a história fosse totalmente distinta, por exemplo, do Marxismo de seu século, pois não se adequava a um método nos moldes do materialismo histórico, não estaria descartada a possibilidade de uma revolução das massas urbanas de seu tempo. Porém, o comunismo seria inviável, pois, segundo a perspectiva de Burckhardt, o ser humano é um ser movido 38

BURCKHARDT, Op. cit., 2003, p. 200.

39

Cf. SIGURDSON, R. F. Jacob Burckhardt's social and political thought. Toronto: University of Toronto Press, 2004 40

BURCKHARDT, Op. cit., 1961, p. 176.

Volume 6 no 1

29


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

por seus impulsos com sede de poder. Sua natureza é imutável enquanto a história é o palco das transformações. Vale dizer, ainda, que mergulhadas nos processos de crise, as massas permanecem alienadas aos interesses de seus dirigentes:

As massas, cuja irritabilidade só é grande no princípio das crises, tornam-se indiferentes ao movimento e dele se afastam. É possível que já tenham salvaguardado o que puderam pilhar em meio à confusão, ou talvez só participaram moderadamente da crise, contradizendo as afirmações daqueles que supunham uma participação incondicional e fanática das massas nas crises; na verdade, as massas, como sucedeu com os camponeses, nunca foram interrogadas quanto à sua opinião sobre a crise. [...] Uma vez desencadeada a onda de violência, despertam-se muitas forças adormecidas, as quais, erguendo-se em meio ao tumulto, reclamam seu quinhão na pilhagem geral, absorvendo totalmente o movimento renovador, sem importar-se absolutamente com o conteúdo ideal. [...] Ao serem mandados para o cadafalso de preferência os indivíduos, que representam um ponto culminante e extremo da crise, foram liquidados. [...] Os sobreviventes, ou seja, os instigadores da crise não sacrificados por ela, sofrem uma profunda metamorfose interna: - agora eles querem em parte desfrutar dos benefícios da vida e em parte querem salvar a própria pele. [...] É incrível o desalento que se apodera de todos, a desilusão que sucede às crises, independentemente da miséria que continua a campear. 41

Como se nota, não havia uma saída simples para a situação dos indivíduos na jovem configuração espiritual industrialista europeia oitocentista. Numa parte estão aqueles que foram lançados nas guerras nacionalistas, como os alemães, que se equivocavam quanto aos seus genuínos objetivos, pois pensavam que lutavam por patriotismo, ao passo que serviam para os fins políticos e econômicos de uma classe social que demarcava cada vez mais o seu poder na esteira de um Estado centralizador e suas figuras militares proeminentes. Muitos dos que sobreviveram aos frontes de batalha (ou seus descendentes), posteriormente, eram lançados nas fábricas. Noutra ficavam os utópicos, que acreditavam que este recémformado exército de incultos e culturalmente caudatários poderia superar, por si mesmo, a sua condição miserável e criar uma sociedade totalmente benéfica a seus indivíduos. Para Albert Coll, o pensamento de Burckhardt se chocava contra as grandes instituições de todas as espécies, uma vez que não traziam o enobrecimento que apregoavam, mas eram hostis à liberdade humana e tinham como efeito a desumanização. Quando uma instituição se tornava suficientemente poderosa, fosse ela o Estado com seus 41

Ibidem, p. 185-186.

Volume 6 no 1

30


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

departamentos ou algum agrupamento religioso, cedo ou tarde cairia na tentação da uniformidade e da conformidade. Em contraste, o historiador amava pequenas cidades, pequenas repúblicas e pequenas associações privadas onde havia espaço para o pluralismo, liberdade e diversidade. O Estado industrialista era alvo recorrente de suas críticas em função da devastação que a industrialização, a moderna tecnologia e o progresso econômico infligiam à ordem estabelecida, o que era nefasto tanto para a vida das pessoas, sendo a antítese do modo de vida humano, quanto para a natureza, que era espoliada. Os custos da industrialização eram o barateamento da cultura, a entronização da mediocridade em todos os níveis da vida pública, a ascensão dos demagogos “que conduziriam as ondas de política de massa e a cultura para instalar uma tirania armada com todos os instrumentos fornecidos pelo capitalismo industrial de larga escala, pela ciência e pela tecnologia”.42 Num precioso comentário de Ernani Chaves, que distingue unidade de uniformidade, de modo que o indivíduo não seja reduzido a uma peça passiva no jogo da cultura, percebe-se a ideia de remodelação (umgestalten), de modificação, como sendo uma ação que transforma e institui em meio à heterogeneidade do universal uma unidade. Isso corrobora com o que se disse aqui, a saber, de que unidade cultural para Burckhardt não é o mesmo que uniformidade, mas organização no interior da heterogeneidade. Chaves continua dizendo que se “os exemplos privilegiados de Burckhardt são os artistas e poetas, os filósofos e destacados pesquisadores, podemos dizer que esta ideia de remodelação implica, em última instância, na de criação”.43 Uma enorme força intelectual ou moral desses grandes indivíduos resultaria e se expressaria na atividade criadora, que o comentador ressalta como sendo o ponto máximo da unidade estabelecida entre o universal e o indivíduo. Retira-se disso que, numa sociedade em que o Estado enquanto potência histórica cresce desequilibradamente, a noção de grandeza pode ser deslocada dos grandes mestres e criadores da cultura para aqueles que detêm o poder ou que tenham realizado feitos que poderiam até ser realizados por outros, mas não se encaixam no tipo de indivíduos soberanos. Para as demais pessoas restaria uma passividade diante da cultura e da história.44 Burckhardt conservou seu desafeto por Bismarck, arquétipo dos demagogos contemporâneos, até idade avançada. Em 25 de setembro de 1890, escrevendo para Preen, diz: “Aprovo inteiramente seu apoio ao memorial de Bismarck, por mais detestável que eu sempre tivesse considerado esse individuo, e a despeito do mal que suas ações causaram a nós [...], seu Kulturkampf [...] teve o efeito de encorajar todas as formas de niilismo e 42

COLL, A. Introdução à edição do Liberty Fund. In. BURCKHARDT, J. Cartas. Trad. Renato Rezende. Rio de Janeiro, Topbooks, 2003, p. 39. 43

CHAVES, E. Cultura e política: O jovem Nietzsche e Jakob Burckhardt. In: Cadernos Nietzsche, USP, São Paulo, n. 9, 2000, p. 47. 44

Cf. Também, KAEGI, Werner. Avant-propos. In: BURCKHARDT, Jacob. Considérations sur l’Histoire Universelle. Paris: Payot, 1965.

Volume 6 no 1

31


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

desagregação”. O Chanceler de Ferro havia sido necessário para que a Alemanha tivesse chegado ao posto político e industrial em que se encontrava no final daquele século, who embora tal situação significasse um mal para a cultura não apenas naquela nação como, também, noutras, como a Suíça.

Considerações finais As ondas industrialistas que varreram a Europa a partir do século XVIII e conduziram processos históricos, como a guerra Franco-Prussiana e a subsequente criação do Estado alemão, significaram para Burckhardt um momento de décadence da cultura e uma ameaça para o florescimento de indivíduos soberanos. Como regra surgiram os indivíduos adestrados, formados para o trabalho assalariado e fabril, enquanto a ciência perdia sua autonomia e se rendia aos interesses da indústria. No lugar de elogios, os líderes desses processos, como Bismarck, foram alvo de contundentes críticas do historiador suíço. Qualquer tentativa de mudar tal situação a partir da criação de outros laços artificiais, como seriam as propostas comunistas, deveriam ser rechaçadas. As críticas de Burckhardt devem ser vistas como uma alternativa para reflexões a respeito do industrialismo contemporâneo, que ainda dirige a formação de grande parte dos indivíduos, que servem como ferramenta para o sistema capitalista de produção em larga escala. Mesmo a academia tem sido utilizada como ambiente para a educação de profissionais da indústria, que serão seus operários, técnicos ou gestores. Alguns governos, ocidentais e orientais, têm clamado pelo fim da educação humanística para que se tenha mais tempo e recursos financeiros para a formação profissional. Não deixando de fazer menção aos indivíduos que se destacam na inovação de tecnologias, uma grande massa permanece alheia à cultura, como se não se sentisse responsável por oferecer algo para ela. Como já foi denunciado por filósofos como Adorno e Horkheimer, a arte baixa se rendeu à indústria cultural e a grande arte é cada vez menos acessada. Cabe perguntar quantos do nosso tempo se preocupam com seus possíveis legados. O industrialismo tomou conta da maior parte da vida social, desde os processos produtivos, passando pelo formativo, de consumo, sem deixar de mencionar a força que tem nas tomadas de decisões políticas e na proposição de novos conflitos entre nações ou civis. Outro aspecto a se ressaltar das críticas de Burckhardt é sua descrença nos movimentos revolucionários como solução para as querelas sociais, apontando que seu impacto sobre a cultura pode ser mais negativo que os efeitos políticos e econômicos esperados. O século XX ficou marcado por muitas iniciativas para grandes transformações, como as políticas fascistas, neoliberais e socialistas. Aquelas que se institucionalizaram podem ser passíveis do pensamento de Burckhardt sobre a acomodação, uniformização e atentado contra a autonomia de seus indivíduos. Como dito, este é um viés possível para reflexões e deve ser

Volume 6 no 1

32


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

confrontado com outros, dentre os quais os menos conservadores. De qualquer forma, uma valiosa lição deixada por Burckhardt é a de que ele não se contentou em ser um contemplador passivo dos fatos da história, um mero erudito, mas foi capaz de realizar preciosas reflexões que o ajudaram a se posicionar diante do mundo em que viveu.

Referências bibliográficas BURCKHARDT, J. Reflexões sobre a História. Rio de Janeiro, Zahar Editora, 1961. ____. Cartas. Trad. Renato Rezende. Rio de Janeiro, Topbooks, 2003. ____. A Cultura do Renascimento na Itália. São Paulo, Companhia das Letras, 2009 CARPEAUX, Otto Maria. “Jacob Burckhardt: o profeta de nossa época”. In ____. A Cinza do Purgatório. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1942. CHAVES, E. Cultura e política: O jovem Nietzsche e Jakob Burckhardt. In: Cadernos Nietzsche, São Paulo, USP, n. 9, 2000, p. 41-66, COLL, A. Introdução à edição do Liberty Fund. In. BURCKHARDT, J. Cartas. Trad. Renato Rezende. Rio de Janeiro, Topbooks, 2003, p. 35-43. ELIAS, N. O processo civilizatório I. Rio de Janeiro, Zahar Editora, 1990. FERNANDES, C. S. Jacob Burckhardt e a preparação para A Cultura do Renascimento na Itália. In. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, 2006, Vol.3, Ano III, nº 3 ____. Jacob Burckhardt. História da Era da Revolução: introdução. In: MALERBA, Jurandir. (Org.). Lições de História: Da história científica à crítica da razão metódica no limiar do século XX. Rio de Janeiro; Porto Alegre: Editora FGV; Editora PUC-RS, 2013. GARNER, R. Jacob Burckhardt as a Theorist of Modernity: Reading The Civilization of the Renaissance in Italy. In. Sociological Theory, Vol. 8, No. 1 (Spring, 1990). GAY, Peter. “Burckhardt, o poeta da verdade”. In: O estilo na História. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 131-166. HUIZINGA, J. The problem of Renaissance. In. Men and ideas: Essays on History, the Middles Ages, the Renaissance. Trad. J. Holmes e H. Marle. New York, Harper Torchbooks, 1970. KAEGI, Werner. Avant-propos. In. BURCKHARDT, Jacob. Considérations sur l’Histoire

Volume 6 no 1

33


Jacob Burckhardt e a ameaça do espírito industrialista ao indivíduo soberano, pp. 18-36

Universelle. Paris: Payot, 1965. KAHAN, A. S. Aristocratic Liberalism: The social thought of Jacob Burckhardt, John Stuart Mill and Alexis de Tocqueville. New York, Oxford University Press, 1992. MOSSE, G. The crisis of german idelology. New York, Grosset and Dunlap, 1998. OLIVEIRA, J. P. O futuro aberto: Jacob Burckhardt, G. W. F. Hegel e o problema da continuidade histórica. Tese de Doutorado. Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2006. PIAZZESI, C. Nietzsche: Fisiologia dell’arte e décadence. Lecce: Conte Editore, 2003. ROSE, J. Otto Von Bismarck. Chelsea House Pub, 1987. (col. World leaders past and present , vol. 35) ROSSI, R. Nietzsche e Burckhardt. Genova: Tilgher, 1987. SIGURDSON, R. F. Jacob Burckhardt's social and political thought. Toronto: University of Toronto Press, 2004. VERMEERSCH, P. Jacob Burckhardt e suas reflexões sobre a história. In. História Social. Revista do IFCH/Unicamp. Campinas, Unicamp, nº 10, 2003, p. 215-238.

Volume 6 no 1

34


Para uma aproximação entre as noções de Cultura e Anarquismo, pp. 37-46

Para uma aproximação entre as noções de Cultura e Anarquismo Ivânio Lopes de Azevedo Jr1 Resumo: O objetivo deste artigo é construir uma aproximação conceitual entre as noções de cultura e anarquismo, tentando evidenciar o caráter complexo e indeterminado do sentido de ambos os termos. Do ponto de vista metodológico, ressalto a positividade das contribuições da antropologia econômica, em especial, dos estudos do teórico e ativista anarquista David Graeber. A partir de sua obra Dívida: os primeiros 5000 anos, é possível identificar, à luz de evidências empíricas, a proficuidade de sua narrativa histórico-cultural que revela a base da heteronomia econômica e social que, há milênios, persegue os diversos agrupamentos humanos. A relação de endividamento entre credor e devedor é, como tento evidenciar, o elemento central da referida heteronomia. O anarquismo que, por sua vez, defende uma sociabilidade autônoma e anti-hierárquica se apresenta, portanto, enquanto negação da cultura dominante que, segundo Graeber, se constituiu historicamente nos termos do endividamento econômico o qual, nos últimos milênios, se amparou no constante imbricamento entre Estado e Mercado. Palavras-chave: Cultura, Anarquismo, Dívida, Heteronomia. Abstract: The objective of this article is to construct a conceptual approach between the notions of culture and anarchism, trying to highlight the complex and indeterminate character of the meaning of both terms. From the methodological point of view, I emphasize the positivity of the contributions of economic anthropology, especially the studies of the 1

Doutor e professor adjunto da Universidade Federal do Cariri (ivanio.azevedo@ufca.edu.br)

Volume 6 no 1

37


Para uma aproximação entre as noções de Cultura e Anarquismo, pp. 37-46

anarchist theorist and activist David Graeber. From his work Debt: the first 5000 years, it is possible to identify, in the light of empirical evidence, the prophesy of its historical-cultural narrative that reveals the basis of economic and social heteronomy that, for millennia, has persisted in the various human groupings. The relationship of indebtedness between creditor and debtor is, as I try to show, the central element of said heteronomy. Anarchism, which in turn advocates an autonomous and anti-hierarchical sociability, is therefore a negation of the dominant culture which, according to Graeber, was historically constituted in the terms of economic indebtedness which, in the last millennia, has been supported by the constant Imbrication between State and Market. Key-words: Culture, Anarchism, Debt, Heteronomy.

E

ste artigo se propõe a construir uma relação conceitual que, em meu entender, se mostra urgente e necessária tanto para a dimensão teórica quanto para crítica prática. Em outras palavras, uma reflexão que articula a noção de anarquismo, em sua acepção política, com a lassa e problemática noção de cultura tem implicações não apenas para os discursos filosóficos de segunda ordem como também para a militância que luta, cotidianamente, em prol de experiência social não estatista e anti-hierárquica. O ganho que, talvez, a aproximação entre tais noções pode trazer para a filosofia se refere, metodologicamente, ao aprofundamento do particular o qual, como é recorrente em tratamentos sistemáticos, é tragado pela generalidade da abstração conceitual, ficando assim à mercê das mediações universalistas, muitas vezes, sem a devida base empírica. Para militância anarquista, quem sabe, o ganho epistêmico venha com uma constante revisitação às múltiplas experiências humanas apoiadas pelas pesquisas antropológicas que, ao examinar e detalhar o particular das ocorrências históricas, permite a construção do ponto de vista dos de baixo, pois assim pode tensionar e descontruir narrativas dominantes nas quais os mesmos não se reconhecem.

Assim, divido a argumentação em dois momentos principais. Primeiramente, tentarei examinar as especificidades das duas noções, anarquismo e cultura, ressaltando sua natureza indeterminada no que toca ao seu grau complexidade que, em meu entender, deve ser aprofundado à luz de um esforço teórico multidisciplinar, distanciando-se assim de toda e qualquer interpretação que busca estabelecer o significado dos termos definitivamente. Melhor do que a precisão terminológica baseada em mediações pretensamente definitivas é o entendimento da pluralidade de sentidos que as palavras assumem ao longo da história. Sentidos estes que, em muitos casos, revelam uma enorme riqueza de detalhes sobre as experiências humanas mais longínquas, quase sempre marginalizadas pela história oficial e pelas

Volume 6 no 1

38


Para uma aproximação entre as noções de Cultura e Anarquismo, pp. 37-46

filosofias metafísicas, como diria Hilary Putnam2 , que se constituíram como se fosse possível enxergar a realidade com os olhos de Deus. Em um segundo momento, dialogarei especialmente com o antropólogo e ativista anarquista David Graeber que publicou um importante estudo chamado de Dívida: seus primeiros 5000 anos (GRABER, 2011). Nesta obra, Graeber tenta demonstrar, apoiando-se fortemente em fontes empíricas, que há milhares de anos a história da humanidade reatualiza um mesmo tipo de relação de poder que se apresenta sempre na forma de uma dívida a qual se ampara na incestuosa relação entre Estado e Mercado, dimensões coirmãs da vida social. Destaco sua crítica aos economistas fortemente influenciados por Adam Smith os quais normalmente assumem, em sua compreensão, o falso mito do escambo como hipótese histórico-econômica fundamental a partir da qual o capitalismo moderno é explicado. Com Graeber, é possível perceber que a experiência estatista da humanidade, em seus vários modos, pressupõe a institucionalização da violência física, bem como a colaboração entre alguma forma de Estado e alguma forma de Mercado. Instâncias estas que são co-originárias e intrinsecamente ligadas. O dinheiro, fundamentado no cálculo de proporções, é a solução que, mesmo antes da escrita, tornou possível a quantificação da dívida entre os homens, constituindo-a como instrumento de dominação e violência. Pelo que as evidências históricas indicam, há pelo menos cinco mil anos, a humanidade vem sendo perseguida pelo imperativo moral que diz: “Toda dívida deve ser paga”! Em nome deste princípio, a violência física e a opressão econômica, sistemáticas, vêm sendo justificadas. Ao cabo, espero deixar mais evidentes as razões que me levam a apostar que os estudos que assumem a tarefa de radicalizar a reflexão sobre as experiências culturais baseadas na relação de endividamento, no detalhe, podem servir de reforço teórico para justificativa anarquista de uma experiência horizontal e anti-hierárquica, pois defender a ruptura com a heteronomia seria, em outros termos, desfazer a imbricada relação entre Estado, Mercado e dívida. Para tanto, Graeber ajuda a entender, partindo das pistas antropológicas, a gênese da dominação econômica em suas diversas formas que, em última análise, consistem na expressão mesma da heteronomia e das desigualdades sociais. Passo, então, ao mérito da questão. *** Raymond Willians em Ideias sobre a Natureza faz uma ponderação metodológica 2

Nesta perspectiva [perspectiva do realismo metafísico], o mundo consiste de alguma totalidade fixa de objetos independentes da mente. Há exatamente uma completa e verdadeira descrição do “modo como o mundo é”. Verdade envolve algum tipo de relação por correspondência entre palavras ou pensamentos-signos e coisas externas e conjunto de coisas. Eu chamarei esta perspectiva de externalista, porque seu ponto de vista favorito é o ponto de vista do Olho de Deus (PUTNAM, 1981, p. 49)

Volume 6 no 1

39


Para uma aproximação entre as noções de Cultura e Anarquismo, pp. 37-46

importante que, em certo sentido, coloca os termos a partir dos quais compreendo o estatuto semântico das noções de anarquismo e cultura. Ele afirma:

“Algumas pessoas quando veem uma palavra, pensam que a primeira coisa a fazer é defini-la. Dicionários são produzidos e, com uma demonstração de autoridade não menos confiante por ser normalmente tão limitado no tempo e no espaço, o que é denominado um significado apropriado é atribuído. Mas embora seja possível fazer isso de modo mais ou menos satisfatório com algumas palavras simples que nomeiam certas coisas e efeitos, essa operação não é apenas impossível, mas irrelevante no caso de ideias mais complexas. O que importa nelas não é o significado mais adequado, mas a história e a complexidade dos significados: as alterações conscientes ou os seus usos conscientemente diversos; e com a mesma frequência, aquelas mudanças e diferenças que, marcadas por uma continuidade nominal, expressam radicalmente mudanças diversas muitas vezes despercebidas, em um primeiro momento, na experiência e na história”. (WILLIAMS, 2011, p.90).

A posição de Willians, exposta nesta citação, traz em si principalmente, a meu ver, uma crítica à pretensão de autoridade semântica facilmente encontrada em teorias gerais e em explicações com pretensões universais. Com isso, não defendo que caíamos em um relativismo onde nem os sentidos dos termos básicos de uma teoria sejam determinados, mas questiono sim o suposto poder normativo que uma explicação geral possa vir a assumir. Parece-me mais profícuo que, ao invés de buscarmos o melhor conteúdo conceitual para os termos–chave de uma filosofia a partir de uma demonstração por absurdo, procedimento este mais do que comum nas exposições filosóficas, onde a verdade de A é consequência do absurdo de não-A, devemos assumir uma postura mais aberta aos múltiplos sentidos das palavras, das ideias e das teses em voga nos mais diversos contextos. Esta abertura ao que a experiência histórica pode nos fornecer, através de fontes arqueológicas e pistas antropológicas, por exemplo, exige do pesquisador uma maior flexibilidade no tratamento das questões que, a partir de então, não são apenas derivadas de uma hipótese metafísica, mas dos registros das experiências fáticas. Uma coisa é entender a formação do Estado moderno a partir da hipótese da natureza humana e outra é investigar, empiricamente, as causas das diversas configurações que as formas de Estado, simultaneamente, assumiram nos tempos mais longínquos mediante registros de dívidas, narrativas e/ou documentos sobre a cunhagem. A hipótese da qual parto é que essa posição mais aberta para a multiplicidade da experiência humana, muito comum à antropologia mais recente e aos estudos culturais, carrega consigo uma aproximação com a perspectiva das reflexões anarquistas.

Volume 6 no 1

40


Para uma aproximação entre as noções de Cultura e Anarquismo, pp. 37-46

Anarquismo e cultura aparecem muito mais como noções motoras que acionam uma enorme faixa de possibilidades do que conceitos fixos e assertivos. Ao passo que o sentido do vocábulo inglês Culture, no termos de Edward Tylor (2009), sintetiza os significados de Kultur do alemão (referente à formação espiritual) e Civilisation do frânces (expressando à constituição de um povo), a saber: a cultura é “todo o complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (Taylor, 2009, p.69), o anarquismo, por sua vez se apresenta como o negativo que, de certa maneira, pergunta pelo sentido de toda essa produção espiritual a partir do constante tensionamento entre processos heterônomos institucionalizados e o desejo latente e sempre insurgente da autonomia humana. Na medida em que a cultura aparece como lugar da consolidação da norma, do estabelecimento dos modos de vida heterônomos, o anarquismo anuncia a possibilidade da coexistência dos modos de vida autônomos e autogeridos, abrindo uma perspectiva insurgente que subverteria toda a experiência social até então. Uma das conclusões de Graeber é que nos últimos cinco milênios todas as formas de sociedade carregaram três elementos organizacionais: o comunismo de base, um sistema de troca e uma estrutura hierárquica (GRABER, 2011, p.94). Se a cultura é conjunto de possibilidades que se engendrou sempre dentro desses limites, o anarquismo surge enquanto uma possibilidade lógica e histórica de subversão da cultura na medida em que se propõe uma sociabilidade anti-hierárquica. Kropotkin (2015) em uma tentativa de explicitar o sentido do termo anarquismo remonta às ideias libertárias de Zenão3 fundador do estoicismo, passando por Willian Godwin, até chegar a Proudhon (1975) que, em 1840, em seu escrito O que é a propriedade? usou o termo anarquia para designar um estado social de não-governo. O que está por trás desta terminologia não é a pretensão de determinar um conteúdo conceitual no interior de uma visão sistemática que, em última instância, assume um programa filosófico ou um projeto político de poder. A compreensão do termo anarquismo não se daria, portanto, nem por derivação, nem 3

“O melhor expoente da filosofia anarquista na Grécia antiga foi Zenão (342-267 ou 270 a.C.), cretense, fundador da escola estóica, que opôs uma clara consciência de comunidade livre sem governo à utopia estatista de Platão. Repudiou a onipotência do Estado, seu caráter intervencionista e regulamentador, e proclamou a soberania da lei moral do indivíduo, sublinhando então que, embora o necessário instinto de autodefesa leve o homem ao egoísmo, a natureza proporcionou um corretivo dando ao homem outro instinto: o social. Quando os homens forem bastante razoáveis para seguir seus instintos naturais, se unirão acima das fronteiras constituirão o cosmo. Não precisarão então de tribunais de justiça nem de polícia, não terão templos nem cultos públicos, não utilizarão moeda alguma: haverá doações livres ao invés de trocas. Infelizmente, não chegaram até nós as obras de Zenão e sô conhecemos citações fragmentárias. No entanto, o próprio fato de sua formulação ser semelhante à utilizada hoje, mostra até que ponto é profunda a tendência da natureza humana de que foi porta-voz” (KROPOTKIN, 2015, p.4).

Volume 6 no 1

41


Para uma aproximação entre as noções de Cultura e Anarquismo, pp. 37-46

por intuição intelectual ou intuição sensível. O mesmo ocorre, igualmente, com a noção de cultura. O anarquismo dialoga diretamente com as experiências sociais e com suas consequências fáticas. Trata-se, então, de conhecer e compreender as escolhas realizadas pelos humanos na experiência social para que, a partir daí, outros rumos e outros compromissos históricos possam ser assumidos. Errico Malatesta (2009) reforça uma posição antissistemática quando diz: “o anarquismo em suas origens, aspirações, em seus métodos de luta, não está necessariamente ligado a qualquer sistema filosófico(...) O anarquismo nasceu da revolta moral contra as injustiças sociais” (MALATESTA, 2009, p.4). Vale destacar que a pesquisa histórica, econômica e antropológica de Graeber em seu estudo sobre as relações de dívida nos últimos 5 mil anos parte, claramente, de um incômodo moral e não de um problema teórico, a saber: “por que as dívidas devem ser pagas? ”. Para uma crítica da economia política, portanto, não bastaria a explicitação rigorosa da dialética entre a essência e a aparência ou a produção e a circulação do sistema capitalista, pois uma experiência social não estatista e antihierárquica não decorre logicamente da consciência das contradições econômicas, apesar de, a clareza conceitual, consistir em uma etapa importante no processo revolucionário. Anarquismo e cultura, enquanto noções complexas e arredias à austeridade sistemática e metafísica, parecem se aproximar quando, de alguma maneira, compreendemos as questões cruciais da dinâmica social na perspectiva de uma reflexão radical acerca dos modos de vida à luz de todo o processo heterônomo que marcou a formação das civilizações. *** A meu ver, o estudo de Graeber, ao reconstruir a história da dívida explicita muito mais do que a diversidade das formas de dominação econômica, pois com sua narrativa é possível apontar, hipoteticamente, a gênese da própria heteronomia social. A história oficial, internalizada pelo senso comum, comente um erro básico de interpretação que compromete todo o nosso entendimento das bases econômicas sobre as quais se assentaram os múltiplos modos de vida. Construir uma narrativa que se fundamenta em um suposto estado de natureza, sem a devida base empírica, e que, efetivamente está limitado apenas à perspectiva da história ocidental narrada pelos “vencedores”, parece ter sido a fonte do equívoco do pensamento econômico clássico. Graeber diz: “Estamos acostumados a pensar que o sistema de crédito é relativamente recente. A história padrão é que primeiro veio o escambo, depois o dinheiro físico e, só então, o crédito. Na verdade, parece ter acontecido o oposto. O crédito veio antes. A moeda foi inventada bem mais tarde, talvez dois mil anos

Volume 6 no 1

42


Para uma aproximação entre as noções de Cultura e Anarquismo, pp. 37-46

depois das primeiras transações de crédito conhecidas. E o escambo — do tipo “eu te dou 20 galinhas em troca dessa vaca” — só ocorre mesmo de forma ampla em lugares onde as pessoas estão acostumadas a usar dinheiro, mas de uma hora para outra perdem o acesso à moeda. Então, desse ponto de vista, crédito e dívida sempre estiveram no centro da economia. E o que o registro histórico revela é que hoje estamos fazendo tudo errado”(GRAEBER, 2016).

A leitura padrão é que primeiro veio o escambo, depois o dinheiro e em seguida o crédito. Esta parece ter a sido sequência dos fatos proposta pela narrativa histórica dominante que se justificou a partir da hipótese fundante da economia clássica de Smith a qual destaca a inclinação humana em, naturalmente, trocar objetos em nome de suas necessidades e vontades. Contudo, o que os registros históricos evidenciam, como diz Graeber, é o exato oposto. A dinâmica de endividamento por meio de registros de crédito é o que funda as trocas e, assim, as relações de dominação e heteronomia sociais. No Capital, encontramos de modo bem formulado esta compreensão questionada por Graeber sobre a ordem dinheirocrédito. Diz Marx: “O dinheiro de crédito se origina diretamente da função do dinheiro como meio de pagamento, já que são colocados em circulação os próprios certificados de dividas por mercadorias vendidas, para transferir os respectivos créditos. Por outro lado, ao estender-se o sistema de crédito, estende-se a função do dinheiro como meio de pagamento. Enquanto tal, recebe forma própria da existência, na qual ocupa a esfera das grandes transações comerciais, enquanto as moedas de ouro e prata ficam confinadas à esfera do varejo. Com certo nível e volume de produção de mercadorias, a função do dinheiro como meio de pagamento ultrapassa a esfera da circulação de mercadorias. Ele torna-se a mercadoria geral dos contratos. Renda, impostos etc. transformam-se de entrega em natura em pagamentos em dinheiro” ((MARX, 1988, p. 116.).

Nas conclusões de Graeber, de fato, há uma inversão na compreensão da dinâmica econômica. Estas implicações, certamente, estão relacionadas ao seu método antropológico de pesquisa baseado em fontes e estudos cuja flexibilidade da lógica interna inerente à exposição dos seus resultados parece ser maior do que a que encontramos na economia clássica, ainda bastante condicionada a uma forma préestabelecida de leitura da experiência. Em Riqueza das Nações, Smith ainda parte de uma concepção jusnaturalista na qual se funda o self interest e o direito à propriedade privada.

Volume 6 no 1

43


Para uma aproximação entre as noções de Cultura e Anarquismo, pp. 37-46

Para Graeber, a diferença entre uma dívida e uma mera obrigação é que a primeira pode ser quantificada enquanto a segunda não. O dinheiro aparece, assim, com a função de determinar a dívida em um quantum. A relação entre credor e devedor comumente pressupõe uma simetria formal de partida é rapidamente implodida quando da realização da operação de crédito a qual traz consigo, contrariamente, a assimetria entre quem empresta e quem paga. Os relatos históricos que revelam as diversas formas de dívida se espalham por várias épocas e regiões do mundo. Vão desde empréstimos para custear ritos como casamentos ou funerais até o financiamento de campanhas militares dos exércitos imperiais. As garantias ou formas de pagamento se estendem da devolução da quantia corrigida a juros compostos até a entrega de um membro da família ou, em muitos casos, a cessão da própria liberdade do devedor, ou seja, da institucionalização da dívida decorrem diversas formas de violência que juridicamente se assentam sobre as normas estatais. O mercado, então, não decorre da espontaneidade de agentes econômicos hipotéticos que, por necessidade, interagem entre si para trocar objetos excedentes ou de interesse particular. O mercado surge então como a esfera das relações de crédito, instituindo a dívida como medium das relações sociais as quais tem como seu garantidor máximo o Estado. Afirma Graeber: “ Na ótica do senso comum, Estado e Mercado se destacam acima de tudo como princípios diametralmente opostos. A realidade histórica, porém, revela que os dois nasceram juntos e sempre estiveram entrelaçados” (GRABER, 2016 p.29). O que se constata é que a humanidade vem reatualizado desde a antiga Mesopotâmia até os dias atuais, passando pelo Ocidente e pelo Oriente, a mesma herança social independente do sistema econômico vigente, qual seja: a dívida. Apesar das diferenças técnicas e terminológicas entre Graeber e Marx, em O Capital, destaco uma passagem que talvez se constitua uma interseção entre ambos. Cito Marx: “A luta de classes do mundo antigo, p. ex., move-se principalmente na forma de uma luta entre credor e devedor...” (MARX, 2001, P. 162) *** Pois bem, nesses termos, é possível concluir o seguinte dos estudos de David Graeber favorecem o aprofundamento das noções de cultura e anarquismo nos seguintes aspectos: i) é sempre necessário reler a história e para isso é preciso confrontar as hipóteses metafísicas com os registros históricos; ii) há um imperativo moral que imputa ao devedor a obrigação pelo pagamento de suas dívidas o qual perpassou diversos sistemas de organização social nos últimos cinco mil anos. Isto não é exclusivo das economias de mercado. Poucas sociedades conseguiram escapar à matematização da dívida, como, por exemplo: os Tivs na Nigéria e os Leles no Congo Belga, apesar de seus modos particulares de endividamento. Em resumo, a história da dívida é a história da heteronomia econômica e social. iii) as relações de

Volume 6 no 1

44


Para uma aproximação entre as noções de Cultura e Anarquismo, pp. 37-46

endividamento que compõem versões do mercado, desde seu primeiro registro na Suméria, exigem a atuação do Estado como garantidor da cobrança das dívidas e como instância de legitimação de aplicação da violência como forma de sanção. O desenvolvimento do cálculo para a determinação das dívidas está pari passu com a institucionalização da violência; iv) O poder dos credores atuou sempre no sentido de manter o endividamento como uma relação perpétua. Talvez o elemento mais heterônomo na dívida é que ela surge para não ser paga; v) a cultura humana tem carregado há milhares de anos um resíduo social que reúne uma relação íntima entre Estado, Mercado, Dívida, Poder e Violência, constituindo-se em múltiplas formas de dominação as quais preservam a heteronomia na base. Graeber mostra que por muitas vezes as economias baseadas em dívidas quantificadas chegaram ao limite, provocando enormes agitações sociais que colocaram em risco a estrutura hierárquica do poder heterônomo. Por parte dos gerentes do Estado, só havia uma saída: anistiar todos os devedores e liquidar todas as suas dívidas, pois, do contrário, a própria verticalização do poder político e econômico estaria em xeque. Nos tempos de hoje, em que as relações de endividamento subjugam nações inteiras em favor de interesses dos grandes monopólios financeiros, um exame mais acurado acerca dos modos como as diferentes culturas lutaram contra o julgo da dívida, como proposto por Graeber, é urgente. O anarquismo político que ressurge de modo mais evidente na contemporaneidade, pós 2008, enquanto uma possibilidade de organização social horizontal, autogerida e anti-hierárquica precisa se apropriar das experiências insurrecionais que historicamente se apresentaram contra o império da dívida. O negativo posto pelo anarquismo pode ser entendido como contracultura na medida em que vem se sedimentando uma cultura de universalização da dívida. A potência do anarquismo enquanto uma das expressões negativas da cultura está na possibilidade de que, um novo de tipo de sociabilidade, se consiga liquidar o somatório de todas as dívidas quantificadas, transformando-as, talvez, em registros arqueológicos de uma época em que o homem matava e morria em nome de uma dívida impagável em que ele mesmo era o credor, o devedor, o contador e o carrasco.

Referências Bibliográficas GRAEBER, David (2011). Debt: The First 5,000 Years. New York: Melville House Publishing. ___________________. Dívida sempre foi uma questão de poder. O Globo: 2016. Entrevista concedida a Guilherme Freitas. ___________________. Dívida: os primeiros 5000 anos. Tradução Rogério Bettoni. São Paulo: Três Estrelas, 2016.

Volume 6 no 1

45


Para uma aproximação entre as noções de Cultura e Anarquismo, pp. 37-46

KROPKTIN, Piotr. Anarquismo. In: Curso Teoria e História do Anarquismo. Instituto de Teoria e História do Anarquismo. São Paulo: 2015. MALATESTA, Errico. Anarquismo e Anarquia. Faísca Publicações Libertárias, 2009 MARX, Karl. O Capital. Livro I. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural: 1988. __________. O Capital. Livro I. 18ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. PROUDHON. O que é a propriedade? Tradução Marilia Caeiro. 2ª edição. Lisboa: Editora Estampa, 1975. PUTNAM, Hilary. Reason, Truth and History. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. TAYLOR, Edward. A Ciência da Cultura. In: Celso Castro (org.) Evolucionismo Cultural. Tradução Maria Lúcia de Oliveira, 2ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. Tradução André Glaser. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

Volume 6 no 1

46


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral Luana Mara Diogo1 Resumo: No presente artigo tratamos da relação entre moral, ascetismo e niilismo a partir da filosofia de Friedrich Nietzsche. Utilizamos principalmente os escritos de maturidade do filósofo alemão, dando maior enfoque as obras Além do bem e do mal e Genealogia da moral. Nietzsche foi o principal teorizador do niilismo, entendendo o conceito como o grande vazio da modernidade. Aprofundar a pesquisa sobre tal noção relacionando-a com a moral e o ascetismo é atual, pois o problema niilismo adentra o século XX e torna-se importante nos debates da filosofia contemporânea. Palavras-chave: Niilismo; Moral; Ascetismo; Vontade de verdade Abstract: In this article we discuss the relationship between morality, asceticism and nihilism from Friedrich Nietzsche's philosophy. We mainly use the writings of maturity of the German philosopher, giving greater focus to the works Beyond good and evil and The Genealogy of morals. Nietzsche was the main theorist of nihilism, understanding the concept as the great emptiness of modernity. Deepening the research on this notion relating it to morality and asceticism is current, for the nihilism problem enters the twentieth century and becomes important in the debates of contemporary philosophy. Keywords: Nihilism; Moral; Asceticism; Will of truth

Mestre em filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e professora de filosofia da rede estadual de ensino. E-mail: luanadiogo@yahoo.com.br 1

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

N

I

a obra de 1886 intitulada, Além do bem e do mal, Nietzsche pretende, partindo do seu entendimento sobre dogmatismo e vontade de verdade, questionar até que ponto a noção de dogma e a noção de Verdade, entendida como Universal, ainda se sustentam. O homem traz consigo uma vontade de verdade, e até meados do século XIX, período em que Nietzsche produziu seus escritos, o que imperou foi a “verdade” de um determinado grupo, qual seja, dos dogmáticos. O filósofo alemão mostra que, ao invés de se pensar a partir das possibilidades, há casos em que os homens preferem se agarrar a tal vontade, e esta, encontra-se ligada a uma necessidade metafísica, ou seja, o homem troca o imanente pelo transcendente, perdendo assim uma visão perspectivística do mundo. Além disso, a ciência, ferramenta principal dos dogmáticos modernos, tendo como cerne a vontade de verdade, se difere pouco da moral vigente, ou seja, cristã. Isso porque ambas trabalham com valores morais que suprimem a vida. Em Crepúsculo dos ídolos, quando Nietzsche aponta o problema de Sócrates, ele diz: “Em todos os tempos, os homens mais sábios fizeram o mesmo julgamento da vida: ela não vale nada... Sempre, em toda parte, ouviu-se de sua boca o mesmo tom – um tom cheio de dúvida, de melancolia, de cansaço da vida, de resistência à vida”2. A ciência seria uma espécie de crença que se máscara de razão, pois os valores que estão em sua base são os mesmos que estão na base do cristianismo. Ambos buscam uma verdade que valha para toda a humanidade, procurando assim limitar o olhar humano. Segundo Roberto Machado:

Se há continuidade entre ciência e moral é porque tanto a verdade quanto o bem são “valores superiores” ou aspectos da mesma realidade suprema de onde derivam todos os valores. E como é a vontade de nada que caracteriza os valores “superiores à vida”, os valores considerados superiores são negadores da vida: o que define o valor dos valores superiores é o niilismo.3

É importante trazer uma das primeiras denominações feitas por Nietzsche dos niilistas como “fanáticos puritanos da consciência”, e estes preferem “um nada seguro a um algo incerto para deitar e morrer”4 . Essa primeira denominação nos ajuda a entender a citação acima. Neste mesmo aforismo, Nietzsche já surge com uma primeira ideia do que seria o niilismo, entendendo este como marca de uma alma 2

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das letras, 2008. p. 17.

3

MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. p. 78.

4

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 15.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

desesperada, extremamente cansada e fatigada. Há naqueles que carregam tal vontade de verdade, uma necessidade exacerbada de se voltar para a fé antiga, abrindo mão das novas ideias, pensando ser essa a melhor maneira de viver. Nietzsche afirma que nisso há desconfiança, descrença, desgosto, desdém e náusea, ou seja, niilismo. Em Além do bem e do mal, ele traça a história da moral, afirmando ser esta a mais longa história da humanidade. Na pré-história o homem vivia em um período pré-moral, onde as ações eram julgadas a partir de suas consequências, ou seja, o ato era considerado positivo ou negativo partindo do resultado final. Porém esse período é superado por um período que o filósofo chama de período moral, onde há uma mudança de perspectiva e o que se leva em consideração é a origem da ação e não mais as consequências desta. Esse período moral vai até os dias de Nietzsche, e podemos afirmar que chega até nós, pois ainda avaliamos moralmente as ações partindo da intenção de cada agente. Não podemos ignorar que aqui há um problema, pois valeria a intenção mesmo se ela fosse de encontro à vontade de cada um? Evidentemente que não podemos dar maior atenção a esta problemática, pois teríamos que cravar uma discussão com Kant, que neste momento não é oportuna. No entanto, para cruzar os limites deste período moral, o autor de Zaratustra aponta para um momento extramoral, onde os imoralistas (no caso, ele mesmo) levariam em conta o caráter não intencional da ação, ou seja, nos aproximaríamos do instinto e do inconsciente. Dessa maneira haveria uma superação da moral. Tomando como ponto de partida essas informações, poderíamos então afirmar que no período pré-moral não há niilismo consumado, pois ainda não há a moral socrática-judaica-cristã. Partindo da teorização nietzschiana, vemos o niilismo como algo indissociável da moral, ou seja, o niilismo se dá quando há uma moral estabelecida, e por moral entendemos aquela que Sócrates gesta e que ganha forma com o cristianismo. Em última análise, sem moral não há niilismo de fato, havendo apenas a possibilidade de decadência, pois a decadência ocorre devido a um enfraquecimento da força.5 É somente no período moral que o niilismo surge e se consolida. A exacerbação da moral torna o niilismo mais latente, e o homem não pode mais ignorá-lo. Assim, torna-se necessária a transição do período moral para o período extramoral, havendo aí a esperança de um salto para além do niilismo.

A superação da moral, num certo sentido até mesmo a autosuperação da moral, inclusive: este poderia ser o nome para o longo e secreto lavor que ficou reservado para as mais finas e honestas, e também mais maliciosas consciências de hoje, na condição de Em Nietzsche a decadência está ligada diretamente ao orgânico, ao fisiológico, por isso a doença é para ele sinônimo de decadência, e ele próprio se assumiu como um décadent. 5

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

ardentes pedras de toque da alma.6

A moral precisa ser superada por ela mesma, ela deve ser atravessada por ela mesma, sendo levada ao limite até que não tenha mais condições de sustentação. Nietzsche, ao fazer uma análise da filosofia moderna, a entende como um ceticismo epistemológico, e também como uma filosofia anticristã. No entanto, o filósofo afirma que embora anticristã a filosofia de seu tempo não é antirreligiosa, pois há aí tanto dogmatismo quanto nas religiões. Mas, afinal, como é possível um anticristão religioso? Muito se pode entender com a afirmação de Nietzsche e com a questão posta acima. O filósofo alemão constatou na obra Gaia Ciência, que Deus está morto e que os próprios homens o mataram. O anúncio da morte de Deus, feita pelo homem louco é talvez uma das mais significativas passagens da obra nietzschiana e embora extensa nos parece importante citá-la.

O homem louco. - Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? - E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? - gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassino! Mas como fizemos? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda 'em cima' e 'embaixo'? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? - também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuirá sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, 6

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 37.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele.7

Nota-se no citado aforismo a semelhança, não por acaso, de um relato de Diógenes Laércio, no qual um louco com lanterna na mão procura um homem pelas ruas da Grécia Antiga. Aqui o louco procura Deus em meio a descrentes, no qual podemos pensar os intelectuais modernos, em sua grande maioria ateus, que embora neguem Deus não se livram da sombra de um valor que vive entre os homens, ainda que de forma eclipsada. Estes ateus zombam do louco e não veem seriedade em sua busca incessante. É no instante em que o homem com a lanterna afirma que eles, todos eles são os assassinos de Deus, que o homem louco passa a ser ouvido. A questão então é: como o homem viverá desamparado, sem aquilo que lhe servia de pilar? Nietzsche mostrará através das perguntas perturbadoras do “insensato”, que o homem deve assumir a responsabilidade de seu ato. Depois que a luz, o horizonte, o grande consolo se desfaz, o homem não tem mais um norte por onde referenciar seus valores, ou onde se apoiar. E então o louco percebe que aqueles ali presentes não são ainda capazes de se erguer e construir uma nova tábua de valores. Eles apagam, destroem, e criam substitutos para o Deus morto, com outros nomes. Novas lutas. - Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos – uma sombra imensa e terrível. Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. Quanto a nós – nós teremos que vencer também a sua sombra. 8

É nesse momento de desamparo e falta de respostas, onde o homem luta para vencer seus fantasmas, que o niilismo se consuma na modernidade. Nietzsche encerra seu texto sobre o homem louco, com o resultado da visita do “insensato” às Igrejas. Nesse momento percebemos não somente a consumação da morte de Deus, mas o significado deste acontecimento para as diversas instâncias da sociedade. O que para uns é vazio, para outros torna-se saída. As igrejas guardam o corpo de Deus como saída para a manutenção de uma ordem fadada ao fracasso. O Deus morto, é um desdobramento próprio de um determinado momento histórico, o 7

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das letras, 2005. p. 147-148.

8

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das letras, 2005. p. 135.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

que morre não é simplesmente o grande Senhor do cristianismo, mas todo um critério valorativo que serviu durante milênios como modelo estruturador de uma ordem civilizatória. Quando Nietzsche afirma que este morreu e fede, não é apenas o símbolo maior do Ocidente, mas também tudo aquilo que desde a Antiguidade serve de parâmetro para o homem. Morre a crença em noções como “fim”, “unidade” e “ser”. Morre a deusa razão dos antigos e modernos, o Deus dos cristãos e os deuses ainda existentes. Retomando Além do bem o do mal, o que ocorre é que o homem, mesmo sem Deus, por comodidade e utilitarismo, não consegue ou não quer se livrar dos dogmas religiosos. A religião é responsável por limitar o homem no que diz respeito às suas ações, buscando construir uma moral que, amenizando as dores e questionamentos humanos, o leva a uma negação de suas potencialidades. Nisso há um niilismo com a máscara mais daninha. O homem que não consegue se livrar de suas amarras, mesmo constatando que estas são ficções, encontra-se radicalmente envenenado por um sentimento que o enfraquece e o adormece. O sacrifício é apontado como um ritual que acompanha o homem desde o período pré-moral. Porém, na passagem de um período para o outro, há outra mudança de perspectiva, ou seja, não é mais o resultado da ação ou o valor da intenção, mas o homem que antes sacrificava pessoas agora passa a sacrificar seus próprios instintos. O problema agora é que se o homem sacrifica tudo que tem, ou seja, seus próprios instintos, o que restaria então para pôr em sacrifício? Nietzsche responde:

Não era preciso, finalmente, sacrificar tudo o que há de consolador, sagrado, salvador, toda esperança, toda fé numa harmonia oculta, em bem-aventuranças e justiças futuras? Não era preciso sacrificar o próprio deus, e, por crueldade a si mesmo, adorar a pedra, a imbecilidade, a gravidade, o destino, o nada? Sacrificar Deus ao nada – esse paradoxal mistério da crueldade derradeira ficou reservado para a geração que surge agora: todos nós já sabemos alguma coisa disso. – 9

Depois de uma longa história de inúmeros sacrifícios o que resta ao homem? Nada. O niilismo está posto, resta saber o que cada um fará com ele, dele e para ele e, principalmente, para livrar-se dele. Em Contribuição à história natural da moral 10, Nietzsche pretende se lançar 9 10

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 54. Quinto capítulo de Além do bem e do mal.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

em uma pesquisa para reunir material e entender como se dá o nascimento, crescimento e morte dos sentimentos de valor. Para ele, o erro dos pensadores até então foi desejar a fundamentação da moral, e cada um o fez à sua maneira. Aqui, percebe-se a crítica feita pelo filósofo alemão, principalmente a Kant. Nietzsche é o primeiro filósofo que desmascara o que há por trás de uma fundamentação moral, e percebe que só se chega verdadeiramente ao problema da moral quando se compara as “possíveis morais”. Nas suas palavras: “não chegaram a ter em vista os verdadeiros problemas da moral – os quais emergem somente na comparação de muitas morais”11 . Sobre a moral, diz Nietzsche:

Considere-se toda moral sob esse aspecto: a “natureza” nela é que ensina a odiar o laisser aller, a liberdade excessiva, e que implanta a necessidade de horizontes limitados, de tarefas mais imediatas – que ensina o estreitamento das perspectivas, e em determinado sentido também a estupidez, como condição de vida e crescimento. 12

O filósofo alemão entrega-se completamente à pesquisa e, também nesta obra se percebe o que posteriormente se transformaria em uma genealogia da moral. No primeiro capítulo de Além do bem e do mal, Nietzsche aponta para a importância de uma nova espécie de filósofos, que sejam capazes de filosofar além do bem e do mal, ou seja, enfrentando os sentimentos de valor vigentes. Os grandes problemas da moral surgem na Grécia Antiga, primeiramente com a priorização que Sócrates dá à razão e, em seguida, na dicotomia platônica entre mundo sensível e mundo inteligível. Platão, quando lança mão do mundo sensível como “inferior” ao inteligível, desvalora a vida em prol da busca pela Verdade.

Platão... quis, com toda a energia – a maior energia que um filósofo já empregara! -, provar a si mesmo que razão e instinto se dirigem naturalmente a uma meta única, ao bem, a “Deus”; e desde Platão todos os teólogos e filósofos seguem a mesma trilha – isto é, em questões morais o instinto, ou a “fé”, como dizem os cristãos, ou “o rebanho”, como digo eu, triunfou até agora.13

Nietzsche entende instinto de rebanho, ou instinto gregário, como o retrato do homem guiado pelo cristianismo. Os valores judaico-cristãos buscam nivelar o povo e 11

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 74-75.

12

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 77-78.

13

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 83.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

domesticá-lo, para que desse modo a dominação aconteça sem resistência. E, para que essa dominação ocorra, valores como obediência e temor criam tamanha relevância que faz com que o homem viva uma existência de medo. Embora ele acredite obedecer a Deus, na realidade o que há é uma instituição que criou uma moral baseada na ideia de Deus. Essa moral busca preservar a humanidade a qualquer custo, e essa preservação finda por aniquilar as forças que são naturais de cada ser humano, pois não há mais necessidade de conflito. O homem se torna acomodado e passa a ver a própria vida como algo pesado. Historicamente os povos foram educados a obedecer e não a mandar, salvo algumas exceções. Em Roma, a vingança, a astúcia, a ânsia de domínio, eram tidas como morais. Porém, com os novos valores, o que eram qualidades passam a ser pecado, e há uma completa inversão dos valores.

O quanto de perigoso para a comunidade, para a igualdade, existe numa opinião, num estado ou afeto, numa vontade, num dom, passa a constituir a perspectiva moral: o temor é aqui novamente o pai da moral. Quando os impulsos mais elevados e mais fortes, irrompendo passionalmente, arrastam o indivíduo muito acima e além da mediania e da planura da consciência de rebanho, o amor-próprio da comunidade se acaba, sua fé em si mesma, como que sua espinha dorsal é quebrada: portanto, justamente esses impulsos serão estigmatizados e caluniados. 14

Os valores que dominam a Europa do século XIX são os valores da moral de rebanho. É a nova espécie de filósofos, ou seja, os filósofos do futuro, que estão incumbidos de transvalorar, de buscar o novo, de criar. Seriam esses filósofos do futuro também os que apontariam as saídas para um ultrapassamento do niilismo? No aforismo intitulado Nós, que somos de outra fé, Nietzsche dirá:

...para onde apontaremos nós as nossas esperanças? – para novos filósofos, não há escolha; para espíritos fortes e originais o bastante para estimular valorizações opostas e tresvalorar e transtornar “valores eternos”, para precursores e arautos, para homens do futuro que atem no presente o nó, a coação que impõe caminhos novos à vontade de milênios. 15

14

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 88.

15

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 91.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

É interessante perceber as oscilações do pensador alemão quanto à crença nesses novos espíritos. Em alguns momentos ele se percebe como tal, e afirma haver outros com ele. Em outros momentos olha de fora, como quem espera uma mudança que não acontecerá em seu tempo, mas somente no futuro. O próprio Nietzsche, que embora se visse como o primeiro niilista completo da Europa, não se livrou do sentimento aterrorizante do Nada.

II Na obra Genealogia da Moral, Nietzsche se lança para além da busca pela origem da moral. Com este escrito, o filósofo alemão pretende apontar os problemas existentes em torno do valor da moral. Para Thelma Lessa da Fonseca, o objetivo de Nietzsche com esta obra é: “perscrutar a procedência da moral e, daí, declarar que ela não é eterna e que suas leis, outrora entendidas como imutáveis não possuem fundamento transcendente algum”16. Nietzsche inicia retomando seu educador Schopenhauer e o valor que este conferiu ao não-egoístico, dizendo: “’não-egoísmo’, dos instintos de compaixão, abnegação, sacrifício, que precisamente Schopenhauer havia dourado, divinizado, idealizado, por tão longo tempo que afinal eles lhe ficaram como “valores em si”, com base nos quais ele disse não à vida e a si mesmo”17. A partir destas palavras, podemos apontar para uma primeira conclusão acerca da relação entre homem e moral, qual seja: os valores são conferidos à moral por nós mesmos. Nietzsche alimentava uma profunda desconfiança dos “instintos” defendidos por Schopenhauer, ou seja, dos valores que seu mestre conferiu à moral. Havia na filosofia schopenhaueriana mais budismo do que Nietzsche era capaz de aceitar. A filosofia do autor de O mundo como vontade de como representação era para seu educando uma filosofia da compaixão e do sofrimento. Em Crepúsculo dos Ídolos, o autor de Zaratustra seguindo a lógica do não-egoísmo mostra como o homem prejudica a si mesmo quando tenta ser altruísta.

Escolher instintivamente o que é prejudicial para si, ser atraído por motivos “desinteressados” é praticamente a fórmula da décadence. “Não buscar sua própria vantagem” - isto é apenas a folha de parreira moral para cobrir um fato bem diferente, ou seja, fisiológico: “Não sou mais capaz de encontrar minha vantagem”... Desagregação dos instintos! O ser humano está no fim, quando se torna altruísta. Em lugar de dizer ingenuamente “eu não valho mais nada”, a mentira moral diz, na boca do décadent: “ Nada tem valor- a vida não vale FONSECA, Thelma L. da. Nietzsche e a auto-superação da Crítica. São Paulo: Humanitas Editorial; Fapesp, 2007. p. 32. 16

17

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 11.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

nada”... 18

É a partir dessa valorização do “não-egoísmo”, que o homem passa a se afastar de si e se aproximar do perigoso “nada”. Para Nietzsche, o homem é seduzido e tentado a esse nada, e esse seria talvez o “grande perigo para a humanidade”.

[...] precisamente nisso enxerguei o começo do fim, o ponto morto, o cansaço que olha para trás, a vontade que se volta contra a vida, a última doença anunciando-se terna e melancólica: eu compreendi a moral da compaixão, cada vez mais se alastrando, capturando e tornando doentes até mesmo os filósofos, como o mais inquietante sintoma dessa nossa inquietante cultura europeia; como o seu caminho sinuoso em direção a um novo budismo? a um budismo europeu? a um – niilismo?... 19

O niilismo moderno, dessa maneira surgiria a partir da moral da compaixão, esse budismo europeu. Essa moral schopenhaueriana é um reflexo, uma exteriorização, um tornar-se visível da fraqueza constitutiva (decadência, niilismo e pessimismo) do homem moderno. Por sinal, aqui reside uma bela leitura nietzschiana do pessimismo de Schopenhauer. A época de seu educador necessitava de seu pessimismo como contraponto lúcido ao desvario otimista, último estertor da moral cristã, que se nutria das filosofias do Idealismo Alemão. Quando se deixa de valorizar a vida, ou melhor, quando o homem passa a valorar a vida, quando o homem se volta contra a vida, ele passa a olhar para trás e esse retrocesso o carrega para o esvaziamento de sentido. A vida já não parece mais passível de ser valorada. Podemos considerar Nietzsche o filósofo da novidade. Dentre as novidades que este pensador anuncia está a exigência de uma crítica dos valores morais, e mais que isso, uma crítica ao valor destes valores. Ou seja, embora praticamente toda a filosofia Ocidental seja composta de críticas aos valores morais, Nietzsche busca aplicar a genealogia como maneira necessária para compreender e lançar críticas a tal moral, não mais compreendendo esta como algo constitutivo do ser humano, mas como algo criado por este.

Para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral como consequência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa,

18

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das letras, 2008. p. 83.

19

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 11.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado. 20

Dessa forma, antes de qualquer coisa torna-se necessária fazer uma genealogia da moral. É preciso que se investiguem as origens para que se comece a compreender a moral e suas máscaras. Esta tarefa é deveras difícil, afinal a moral se desdobra e pode assumir a veste de um veneno, ou seja, de algo prejudicial. Também pode vestir-se de estimulante e assim algo vantajoso. No entanto, está em Nietzsche essa predisposição à “investigação”. Partindo de sua educação histórica e filológica, atrelada ao “senso seletivo em questões psicológicas”, o filósofo alemão se põe a investigar a moral e os juízos de valor que pertencem a esta “doença”. Para nós, esta investigação leva também ao interior do niilismo europeu. O homem nasce permeado de valores morais que se mostram socialmente aceitos, e por isso, inquestionáveis. Porém, cabe se perguntar a quem é interessante que pensemos ser o “bom” mais elevado que o “mau”. Essa pergunta pode soar ingênua a princípio, mas quando nos questionamos sobre quem estipulou o que é “bom” e o que é “mau”, a pergunta parece ser extremamente pertinente.

E se o contrário fosse a verdade? E se no “bom” houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro? Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo menor, mais baixo?... De modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que precisamente a moral seria o perigo entre os perigos?...21

Nessa passagem, Nietzsche nos faz um questionamento, qual seja: a moral estaria a nosso favor? Ao que parece essa moral que impera a mais de dois mil anos levou o homem a apagar-se, e essa falta de brilho e de força, o tornou niilista. O homem moral é essencialmente niilista, pois a moral é negadora da potência, e potência é vida. Desta maneira, aquilo que nega a vida, ou seja, que a valora negativamente, ou simplesmente, que a valora, é niilismo. O niilismo se encontra na própria visão moral do mundo, e quando colocamos a vida a disposição desta visão findamos por valorála, e assim pesamos a vida com uma balança niilista. O niilismo está intrinsecamente ligado a moral socrática-platônica cristã.

20

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 12.

21

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 12.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

Na dissertação intitulada “Bom e mau”, “bom e ruim”, primeira das três dissertações que compõem a Genealogia, diz Nietzsche: “A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação”.22 O homem de rebanho torna-se criador, mas o que pode criar um homem esvaziado? A resposta é simples: vazio, nada. Se de um lado a moral nobre afirma a existência, por outro, a moral escrava a nega. O homem gregário diz não a tudo o que está fora, que é outro e com isso deixa de olhar para si. “...a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação”.23 Quando se trata de fortes, o agir é espontâneo, ou seja, é ação, força. O Não é apenas um desenho em tons de cinza perto das cores do Sim. Nietzsche recorre à aristocracia grega para mostrar como se relacionavam fortes e fracos antes dessa inversão de valores.

Os “bem-nascidos” se sentiam mesmo como os “felizes”; eles não tinham de construir artificialmente a sua felicidade, de persuadir-se dela, menti-la para si, por meio de um olhar aos seus inimigos (como costumam fazer os homens do ressentimento); e do mesmo modo, sendo homens pleno, repletos de força e portanto necessariamente ativos, não sabiam separar a felicidade da ação – para eles, ser ativo é parte necessária da felicidade (nisso tem origem [fazer bem: estar bem]) – tudo isso o oposto da felicidade no nível dos impotentes, opressos, achacados por sentimentos hostis e venenosos, nos quais ela aparece essencialmente como narcose, entorpecimento, sossego, paz, “sabbat”, distensão do ânimo e relaxamento dos membros, ou, numa palavra, passivamente. 24

A felicidade deixa de ser energia e passa a ser repouso. Enquanto a retidão de sentimentos e palavras é engrandecida entre nobres, entre homens apequenados os sentimentos e palavras passam por desvios, curvas, desníveis. Falta transparência. É em uma dessas curvas que o homem adentra o terreno do niilismo. O ressentido transforma o nobre “bom” em “mau”, e com isso os valores se invertem e a moral do forte não mais domina, os homens passam a viver sob o domínio da moral do ressentimento.

22

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 26.

23

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 26.

24

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 27.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

O que constitui hoje nossa aversão ao “homem”? - pois nós sofremos do homem, não há dúvida. - Não o temor; mas sim que não tenhamos mais o que temer no homem; que o verme “homem” ocupe o primeiro plano e se multiplique; que o “homem manso”, o incuravelmente medíocre e insosso, já tenha aprendido a se perceber como apogeu e meta – que tenha mesmo um certo direito a assim sentir, na medida em que se perceba à distância do sem-número de malogrados, doentios, exaustos, consumidos, de que hoje a Europa começa a feder, portanto como algo ao menos relativamente logrado, ao menos capaz de vida, ao menos afirmador de vida... 25

O homem tornou-se mínimo, vazio, niilista. A Europa sucumbiu e busca-se urgentemente afirmadores da vida, ou seja, fortes que não foram completamente apagados pelos ressentidos. Nietzsche espera encontrar o que temer, um “acaso feliz” que possa redimir o homem e assim ter novamente fé no homem. A falta de fé simboliza o cansaço do homem diante de si mesmo e isso é niilismo. “A visão do homem agora cansa – o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem...”26. Na terceira e última dissertação a qual Nietzsche intitulou “O que significam ideais ascéticos?”, o filósofo alemão buscou mostrar como o ascetismo se dá nas diversas camadas da sociedade e o que ele significa para o homem. Já no primeiro aforismo o problema parece estar resolvido. Ele caminha buscando o que significa o ideal ascético para os artistas, e para estes seriam muitas coisas ou simplesmente nada. Para eruditos e filósofos seria uma espécie de instinto capaz de levá-los a elevação espiritual. Já para a maioria dos homens, ou seja, os “desgraçados”, seria “sua grande arma no combate a longa dor e ao tédio”. O homem de rebanho se apavora diante da possibilidade de sentir dor e busca de qualquer maneira banir essa dor, e assim através do ascetismo se veem como bons demais para esse mundo e passam a ansiar profundamente um outro mundo. Para os sacerdotes o ideal ascético passa a ser sua principal forma de exercer o poder. Para os santos o descanso no nada, que para Nietzsche significa o mesmo que o descanso em Deus.

Porém, no fato de o ideal ascético haver significado tanto para o homem se expressa o dado fundamental da vontade humana, o seu horror vacui [horror ao vácuo]: ele precisa de um objetivo – e preferirá ainda querer o nada a nada querer. - Compreendem?... Fui 25

NIETZSCaHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 31.

26

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 32.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

compreendido?... “Absolutamente não, caro Senhor!” - Então comecemos do início.27

E assim entendemos que nos ideais ascéticos mora o niilismo. O homem não suporta viver sem saber as causas dos acontecimentos. O homem não suporta viver sem desejar e sem algo para se sustentar. E se não há mais nada para conhecer e para desejar, o próprio nada é o que se quer. Para religiosos, Deus é esse nada. Para filósofos a própria filosofia, e ambas, religião e filosofia, estariam submetidas à mesma moral. Para Nietzsche ascetismo e contemplação estão intimamente ligados. Os homens inativos, não guerreiros, quando surgem são desprezados. Para inverter tal desprezo, os homens contemplativos despertam o temor dos demais e é através dos ideais ascéticos que esse sentimento de medo surge entre aqueles que não partilhavam do poder da contemplação.

[…] de início, o espírito filosófico teve sempre de imitar e mimetizar os tipos já estabelecidos do homem contemplativo, o sacerdote, o feiticeiro, o adivinho, o homem religioso, em suma, para de alguma maneira poder existir: por um longo tempo o ideal ascético serviu ao filósofo como forma de aparecer, como condição de existência – ele tinha de representá-lo para poder ser filósofo, tinha de crer nele para poder representá-lo.28

Dessa maneira, a filosofia até a modernidade tem ligação direta com o ascetismo. Assim, desde os primeiros homens contemplativos até os contemporâneos de Kant, passando por sacerdotes e feiticeiros, há um mergulho profundo no niilismo. Filosofia, ascetismo e niilismo, uma trindade que deu certo. Nietzsche conheceu de maneira próxima essa relação, pois seus mestres Wagner e Schopenhauer foram antes de tudo, ascetas. Nos ascetas existe uma contradição muito séria para Nietzsche, qual seja, a vida contra a vida. Esse choque não é simplesmente um problema psicológico, mas também fisiológico e isso torna o ascetismo um absurdo. Nietzsche mostrará que também há perspectivas nos ideais ascéticos. Os ideais ascéticos serviram para a preservação da vida. O homem decadente, começa a degenerar e entende que precisa buscar algo para proteger a sua vida do completo esvaziamento. Tais ideais surgem então do instinto que o ser humano tem para a cura. Haveria dessa maneira duas perspectivas para compreender os ideais ascéticos, 27

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 80.

28

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 97.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

a primeira seria a que nega a vida como sendo a vida sofrimento. A segunda seria a que defende e busca manter a vida, mesmo que não o faça de maneira direta. Os sacerdotes desejam ser um outro, e é esse desejo que move tanto o próprio sacerdote ascético como seus seguidores. Essa vontade de ser outro é ainda uma vontade e finda por preservar de alguma maneira a existência.

[…] como não seria um tão rico e corajoso animal também o mais exposto ao perigo, o mais longa e profundamente enfermo entre todos os animais enfermos?... O homem frequentemente está farto, há verdadeiras epidemias desse estar-farto (- como por volta de 1348, no tempo da dança da morte): mas mesmo esse nojo, essa fadiga, esse fastio de si mesmo – tudo isso irrompe tão poderosamente nele, que se torna imediatamente um novo grilhão. O Não que ele diz à vida traz à luz, como por mágica, uma profusão de Sins mais delicados; sim, quando ele fere, esse mestre da destruição, da autodestruição – é a própria ferida que em seguida o faz viver... 29

Entendamos aqui nojo, fadiga e fastio como sentimentos que levam ao niilismo. Assim, essa citação aponta para uma importante questão do presente trabalho: o niilismo é um problema histórico, que está no próprio movimento da humanidade, e dessa maneira é algo vivo e persistente. Se esse nojo, e mais especificamente o nojo ao homem desencadeia também uma compaixão pelo homem, tal casamento seria a “última vontade do homem”, e essa vontade derradeira é a vontade de nada, o niilismo. Aqui Nietzsche define-o como sendo a união entre o nojo do homem por si mesmo e a compaixão decorrente desse nojo. Quem dissemina esse sentimento entre os homens não são aqueles tidos como os maus, ou seja, não são os animais de rapina, os fortes. São os doentes, os mais fracos que inundam a humanidade com sentimentos negativos. Esses homens surgiriam de uma espécie de agravamento do ascetismo. Se os ascetas anseiam por ser outro, e esse anseio os torna de certa maneira desejantes da vida, quando eles percebem que não há possibilidade de ser um outro e que a única vida possível é esta, não há mais anseio por nada, mas pelo nada. Os sacerdotes ascéticos possuem, segundo Nietzsche uma importante missão:

De fato ele defende muito bem o seu rebanho enfermo, esse estranho pastor – ele o defende também de si mesmo, da baixeza, perfídia, malevolência que no próprio rebanho arde sob as cinzas, e do que mais for próprio de doentes e combalidos; ele combate, de modo 29

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 102.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

sagas, duro e secreto, a anarquia e a autodissolução que a todo momento ameaçam o rebanho, no qual aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é continuamente acumulado. Descarregar este explosivo, de modo que ele não faça saltar pelos ares o rebanho e o pastor, é a sua peculiar habilidade, e suprema utilidade; querendo-se resumir numa breve fórmula o valor da existência sacerdotal, pode-se dizer simplesmente: o sacerdote é aquele que muda a direção do ressentimento.30

Compreende-se então que esse pastor possui um poder imenso, capaz de transformar a própria existência. Essa mudança na direção do ressentimento se dá também quando o homem sofredor busca no mundo e nos outros a causa de sua dor. Seu sacerdote o faz entender que a responsabilidade do sofrimento e da dor é do próprio doente e assim consegue direcionar o ressentimento para outras vias. O homem de rebanho não passa a ter como único inimigo o animal de rapina, pois ele próprio é causador de sofrimento. Em vias de conclusão, Nietzsche nos faz um alerta em relação ao sacerdote ascético entendido como um médico. Para o pensador alemão, isto seria um equívoco, pois embora ele medique seus súditos, o mesmo é incapaz de investigar as causas da doença e com isso é incapaz de curá-la efetivamente. O sofredor aprende maneiras paliativas para combater o sofrimento e não é capaz de encontrar a origem de sua doença para poder ansiar por uma vida sem dor. Se tanto sacerdotes como filósofos estão à disposição dos ideais ascéticos, quem ou o que poderia se opor a esses ideais? A resposta de Nietzsche continua a mesma desde O nascimento da tragédia, qual seja, a arte. A ciência não foi capaz, na realidade tornou-se também corruptível. Na arte há uma boa consciência, a vontade de iludir não é vista como negativo e a mentira é santificada. Porém, segundo Nietzsche o artista é facilmente corruptível (leia-se Wagner) e essa corrupção é para ele talvez a mais grave. “Considerem-se os períodos da história de um povo nos quais o homem douto ganha evidência: são épocas de cansaço, muitas vezes de crepúsculo, decadência – a força que transborda, a certeza de vida, a certeza de futuro se foram”31. Platão foi um douto este douto que “desbancou” Homero.

Precisamente a autodiminuição do homem, sua vontade de diminuirse, não se acha em avanço irresistível desde Copérnico? Oh, a crença em sua dignidade, singularidade, insubstituibilidade na hierarquia dos seres se foi – ele se tornou bicho, anima, sem metáfora, restrição 30

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 107-108.

31

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 132.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

ou reserva, ele, que em sua fé anterior era quase Deus (“filho de Deus”, “homem Deus”)... Desde Copérnico o homem parece ter caído em um plano inclinado – ele rola, cada vez mais veloz, para longe do centro – para onde? rumo ao nada? Ao “lancinante sentimento do seu nada”?... 32

Nesta citação podemos entender que uma tentativa de saída através da ciência não funciona de fato como saída do niilismo, ao contrário, é um mergulho mais fundo, pois agora não há mais a crença em Deus, e perde-se também a crença no próprio homem. Se os sacerdotes ascéticos não conseguiram ser bons médicos, os cientistas não são superiores. A moderna historiografia é, em seu cerne, niilista. A historiografia passa apenas a buscar constatar e descrever, não mais a provar ou negar. Isso para o filósofo alemão significa ascetismo, e em última instância também niilismo. Nas palavras de Nietzsche:

Vemos um olhar triste, duro, porém decidido – um olho que olha para longe, como faz um explorador polar desgarrado (para não olhar para dentro? Não olhar para trás?...). Há apenas neve, a vida emudeceu; as últimas gralhas que se fazem ouvir dizem “Para quê?”, “Em vão!”, “Nada!” - nada mais cresce ou medra, no máximo metapolítica petersburguense e “compaixão” tolstoiana.33

Os modernos, à medida que se distanciam de si e olham para longe ansiando acabar com o presente, torna-se niilista pois esse anseio por um além em detrimento de um anseio pela vida torna o homem negador. Assim como a natureza proporcionou chifres aos touros e dentes aos leões, também proporcionou ao homem pés, não simplesmente para correr ou andar, mas para pisar, e mais precisamente, para pisotear todos os ideais ascéticos desonestos. “Todo o meu respeito ao ideal ascético, na medida em que é honesto! enquanto crê em si mesmo e não nos prega peças!”34. Para ele a honestidade é uma grande qualidade, e como o próprio niilismo, os ideais ascéticos possuem uma face respeitável. Nas últimas páginas de sua Genealogia, Nietzsche nos aponta algumas respostas que nos parece de suma importância. Ele explica que deixará de lado as complexidades do espírito moderno pois “Tais coisas serão por mim tratadas em 32

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 133.

33

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 134-135.

34

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 13

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

outro contexto, com maior profundidade e severidade (sob o título de 'História do niilismo europeu'; numa obra que estou preparando: A vontade de poder. Ensaio de tresvaloração de todos os valores)”35. Essas palavras nos parecem importantes pois embora a Genealogia da Moral seja uma obra que ponha em relevo a questão do niilismo, não como tema central, mas como tema complementar de suma importância, Nietzsche sabia que tal noção merecia não apenas aparecer como complemento de suas obras a respeito da moral, mas como noção-chave para compreender a própria modernidade36. Nietzsche diz: “[…] pereceu o cristianismo como dogma, por obra de sua própria moral; desta maneira, também o cristianismo como moral deve ainda perecer – estamos no limiar deste acontecimento”37. O filósofo afirma que os dois próximos séculos (seguindo de seu século) serão o palco para esse perecimento da moral. E Nietzsche conclui:

Não se pode em absoluto esconder o que expressa realmente todo esse querer que do ideal ascético recebe sua orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio – tudo isso significa, ousemos compreendê-lo, como vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontade!... E, para repetir em conclusão o que afirmei no início: o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer...38

Ideais ascéticos e niilismo possuem uma forte ligação. Além disso, o niilismo e o ascetismo só se acentuam devido à exacerbação da moral socrática-platônica-cristã. Desse modo, o homem moderno se sustenta na vontade de nada para fugir do nada de vontade. No entanto, esse sustentáculo é frágil e possui em suas bases enganos milenares. Quando o niilista se livra da ideia de um mundo verdadeiro, ou seja, quando esse mundo verdadeiro se torna uma fábula, no desespero o homem finda por abolir também o mundo aparente. Infelizmente abolir o mundo aparente significa reduzir a 35

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 137.

Tal obra não chegou a ser publicada, chegando a nós apenas os aforismos póstumos onde Nietzsche esboçou questões profundas acerca do niilismo europeu. 36

37

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 138.

38

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 140.

Volume 6 no 1


Moral, ascetismo e niilismo em Nietzsche Um percurso por Além do bem e do mal e a Genealogia da moral, pp. 47-65

nada tudo o que temos. Em Crepúsculo dos Ídolos, diz Nietzsche:

Abolimos o mundo verdadeiro: que mundo restou? O aparente, talvez?... Não! Com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente! (Meio-dia; momento da sombra mais breve; fim do longo erro; apogeu da humanidade; INCRIPT ZARATUSTRA [começa Zaratustra])”39.

A bela metáfora do meio-dia, onde há uma clareza quase que total e não há mais como esconder, serve para mostrar qual o próximo momento do europeu. Nietzsche lança seu Zaratustra para tentar guiar a humanidade para longe dos velhos erros.

Referências Bibliográficas ARALDI, Clademir Luís. Niilismo, Criação, Aniquilamento – Nietzsche e a filosofia dos extremos. 1. ed. São Paulo: Unijui. 2004 FONSECA, Thelma Lessa da. Nietzsche e a auto-superação da Crítica. 1. ed. São Paulo: Humanitas Editorial; Fapesp, 2007 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1985 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009
 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005
 NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 NIETZSCHE, Friedrich. Sobre o niilismo e o eterno retorno. In: Os pensadores. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1987 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007

39

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das letras, 2008. p. 32.

Volume 6 no 1


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze Filipe Caldas O. Passos1 Resumo: O presente artigo investiga, de modo preliminar, o impacto das novas tecnologias no existir humano, tomando como principais referências as questões da técnica moderna de acordo com o pensamento heideggeriano e da sociedade de controle segundo o pensamento deleuziano. Com isso, não se intenta aproximar, de maneira precipitada, as filosofias de Martin Heidegger e Gilles Deleuze, mas de pensar o tema supracitado a partir de conceitos elaborados por ambos os autores. Primeiramente, tratamos da questão da técnica moderna em Heidegger. Depois, da questão da sociedade de controle conforme Deleuze. Por fim, estabelecemos algumas relações entre essas noções com o intuito de pensar o já mencionado impacto das novas tecnologias no existir humano.

1

Mestre em Filosofia pela UECE. Professor na mesma instituição.

Volume 6 no 1

66


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

Palavras-chave: Verdade; poder; desejo; técnica moderna; sociedade de controle. Abstract: This article investigates in a preliminary way the impact of new technologies in human being, taking as main references the questions of the modern technics according to heideggerian thought and the society of control according to deleuzian thought. Thus, this article does not attempt to approach the philosophies of Martin Heidegger and Gilles Deleuze in a hasty way, but rather to think of the aforementioned theme from concepts elaborated by both authors. First, we address the question of modern technics in Heidegger. Then we address the question of the society of control according to Deleuze. Finally, we establish some relationships between these notions in order to think about the already mentioned impact of new technologies in human existence. Keywords: Truth; power; desire; modern technics; society of control.

Introdução

E

ste artigo trata, de forma preliminar, do impacto das novas tecnologias no existir humano, tomando como principais referenciais teóricos as questões da técnica moderna de acordo com Martin Heidegger (1889-1976) e da sociedade de controle segundo Gilles Deleuze (1925-1995). Faz-se isso não com o intuito de simplesmente aproximar os pensamentos filosóficos de ambos os autores, desconsiderando suas especificidades e até mesmo suas divergências. Não se trata, portanto, de forçar uma aproximação. No entanto, também não se trata de meramente admitir como certo e inquestionável o pensamento de um dos filósofos em detrimento do outro. Logo, o objetivo deste texto não é também o de uma polêmica gratuita. O que se intenta é utilizar, como ferramentas metodológicas, conceitos elaborados por ambos, para pensar o tema deste escrito, sem estabelecer compromissos apressados.

Em um primeiro momento, abordamos a questão da técnica moderna de acordo com o pensamento heideggeriano. Nessa abordagem, enfatizamos a relação que Heidegger estabelece entre a referida questão e os conceitos de verdade e metafísica. Segundo o filósofo alemão, a técnica possui um vínculo com a verdade e esse vínculo não foi devidamente pensado pela tradição filosófica ocidental. Isso, por sua vez, se deve ao fato de que a história da filosofia consiste, conforme sua interpretação, na história da metafísica compreendida como história do esquecimento do ser, da verdade do ser. Somente posta nesses termos e considerada nessas relações é que a questão da técnica moderna, bem como suas implicações nos modos de ser, pensar e agir do homem, pode ser devidamente compreendida. A seguir, tratamos da questão da sociedade de controle segundo Gilles Deleuze. Iniciamos essa segunda parte do artigo enfatizando as contribuições de Michel Foucault (1926-1984) no que diz respeito à elaboração do conceito supracitado. Nas palavras do próprio Deleuze, Foucault já vinha se debruçando sobre

Volume 6 no 1

67


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

a questão da sociedade de controle pouco antes de sua morte prematura. É no âmbito do poder, mais especificamente, do biopoder que essa questão surge. Para Foucault, o biopoder se constitui a partir das interações entre a biopolítica e o poder disciplinar. Esse biopoder, entretanto, vinha sofrendo certas transformações, sobretudo após a Segunda Grande Guerra. Constata-se, desde então, uma espécie de crise do poder disciplinar e sua substituição gradativa por aquilo que Deleuze denomina sociedade de controle. O biopoder se renova e passa a se constituir cada vez mais com base na articulação entre a biopolítica e a sociedade controle. Eis o principal impacto das novas tecnologias nas vidas dos indivíduos e das sociedades de acordo com a interpretação deleuziana. Por fim, buscamos refletir sobre as contribuições tanto da questão da técnica moderna em Heidegger quanto da sociedade de controle em Deleuze no que diz respeito à relação atual entre o ser humano e as novas tecnologias, pensando suas principais tendências e também a configuração de alternativas.

A questão da técnica moderna em Heidegger Martin Heidegger abordou o conceito de técnica relacionando-o com os de verdade e metafísica. Para tratar do referido conceito, mais especificamente, do de técnica moderna, bem como de seu vínculo com os de verdade e metafísica, o presente texto se baseou nos seguintes escritos de Heidegger: O que é metafísica? (1929); A essência da verdade (1930); A teoria platônica da verdade (1931/1932, 1940); Aletheia (1943); Carta sobre o humanismo (1946); Logos (1951), A questão da técnica (1953); Serenidade (1955); Identidade e diferença (1957). Para se pensar adequadamente a questão da técnica moderna em Heidegger é necessário pensar primeiramente o que significa o conceito mais amplo de técnica segundo a interpretação do referido autor. De acordo com Heidegger, a essência da técnica não possui um sentido técnico. A técnica, acima de tudo, consiste em uma forma de a verdade do ser se dar. Essa noção de verdade, por sua vez, possui um sentido originário, que chegou a ser expresso no pensamento pré-socrático, sobretudo com Parmênides e Heráclito2 , e se perdeu a partir da consolidação do pensamento filosófico como metafísica a partir de Platão3. Verdade – alétheia, em grego – consiste, originariamente, no processo de desvelamento, de desencobrimento do ser. Porém, na medida em que o ser se

2

Cf. HEIDEGGER, Martin. Aletheia; Logos. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006. 3

Cf. HEIDEGGER, Martin. A teoria platônica da verdade. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.

Volume 6 no 1

68


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

desvela, ele também se vela. O mistério do ser prevalece em sua vigência. O ser não se deixa abarcar, esgotar pela totalidade e hierarquia dos entes. Essa vigência do ser ilumina os entes, abre o mundo de determinada maneira ao homem, compreendido como Dasein – o ser-aí, o aí-do-ser, o ente capaz de pensar o Ser e de expressá-lo por intermédio de suas obras. Nesse processo, o ser mesmo se vela, se retrai. Esse é, portanto, o sentido originário da verdade, que caiu no esquecimento a partir da consolidação do pensamento metafísico, desde então adquirindo outros sentidos, tais como o de adequação entre proposição e estado de coisas ou remetendo à certeza do sujeito no âmbito do pensamento moderno. Sobre essa questão da verdade, Heidegger afirma:

[...] O velar iluminador é, quer dizer, faz com que se essencialize a concordância entre conhecimento e ente. [...] A resposta à questão acerca da essência da verdade é a dicção de uma viravolta no interior da história do seer. Porque ao seer pertence o velar iluminador, ele aparece inicialmente à luz da retração que encobre. O nome desta clareira é alétheia.” 4

Esse modo de considerar a verdade consiste, de fato, em uma viravolta na história da metafísica como história do esquecimento do ser, já que esta confunde ser e ente, tomando o ser como o ser do ente, ou, por outras palavras, como a entidade do ente. A metafísica não leva em consideração o que Heidegger designa como diferença ontológica entre ente e ser. 5 A partir da consolidação da metafísica, a verdade aparece como concordância entre o que é pensado e aquilo que o ente é. Nisso consistiria o conhecimento. Com o predomínio do pensamento metafísico, esquece-se do velar iluminador, da retração que encobre, como algo inerente à verdade do Ser. Heidegger também lhe chama de clareira – Lichtung, em alemão –, pois, na clareira, uma luz brilha envolta pelas sombras do entorno. Essa imagem evoca o mistério, o insondável, o inesgotável do Ser, cujo dar-se iluminador funda mundos históricoculturais, mas que sempre escapa ao modo como no interior destes ele – o ser mesmo – é tematizado. E a metafísica simplesmente esquece esse necessário encobrimento do ser pelo próprio ser. Assim, o conceito de verdade aparece no pensamento heideggeriano como uma 4

HEIDEGGER, Martin. A essência da verdade. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 213. 5

Sobre isso, diz Heidegger: “A diferença de ente e ser é o âmbito no seio do qual a metafísica, o pensamento ocidental em sua totalidade essencial, pode ser aquilo que é. O passo de volta, portanto, se movimenta para fora da metafísica e para dentro da essência da metafísica [...].” (HEIDEGGER, Martin. Identidade e diferença. In: Que é isto – A filosofia?; Identidade e diferença. 2. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2009)

Volume 6 no 1

69


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

espécie de jogo de velamento-desvelamento do ser. No desvelar do ser sempre se instaura um mundo histórico-cultural no interior do qual o homem – Dasein – compreende a si e aos demais entes de determinada maneira. Mas, nesse desvelar, o próprio ser se vela, se retrai. Ele se recolhe em seu mistério. O pensamento simplesmente não consegue abarcá-lo, somente aquilo que ele de certa forma ilumina. Esse iluminar consiste em um descobrir, um desencobrir algum novo aspecto dos entes em sua totalidade, que antes se encontrava como que vedado, coberto. É precisamente nesse desencobrimento que se encontra, segundo Heidegger, a essência originária da técnica. É por isso também que ele sustenta que a essência da técnica não é precisamente nada de técnico. Quanto a essa relação entre técnica e desencobrimento, portanto, entre técnica e verdade, Heidegger diz: “A técnica não é, portanto, um simples meio. A técnica é uma forma de desencobrimento. Levando isso em conta, abre-se diante de nós um outro âmbito para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do desencobrimento, isto é, da verdade.”6 O filósofo alemão estabelece, portanto, uma relação essencial entre técnica e verdade. Sendo a verdade sempre um modo de o ser se desvelar, embora nesse processo também se vele, recolhendo-se no mistério que nenhum sistema de pensamento, metafísica alguma, consegue superar, pode-se dizer, com Heidegger, que a técnica, pelo menos em seu sentido originário, consiste em um desvelar do próprio ser. Nas palavras do referido autor, a tradição metafísica, sobretudo a partir do momento em que se instaura a metafísica moderna, faz com que esse sentido originário da técnica, compreendida como manifestação da verdade, do desvelamento do ser, seja esquecido. Além do que foi exposto nos parágrafos anteriores, vale também ressaltar que, originariamente, a técnica possui, segundo Heidegger, um sentido poético. No caso, o pensador alemão se refere à poíesis como constitutiva da essência da técnica. Poíesis significa, em grego, produção, mas em um sentido mais amplo, significando um produzir que conduz do encobrimento para o desencobrimento. Portanto, a essência da técnica – em grego, téchne – se encontra na poíesis e esta, na medida em que consiste em um certo desencobrimento do Ser, comporta em si a verdade – em grego, alétheia. Quanto a isso, Heidegger sustenta o seguinte:

[...] O deixar-viger concerne à vigência daquilo que, na pro-dução e no pro-duzir, chega a aparecer e apresentar-se. A pro-dução conduz do encobrimento para o desencobrimento. Só se dá no sentido próprio de uma pro-dução, enquanto e na medida em que alguma coisa encoberta chega ao des-encobrir-se. Este chegar repousa e oscila no 6

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006. p. 17.

Volume 6 no 1

70


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

processo que chamamos de desencobrimento. Para tal, os gregos possuíam a palavra alétheia [...].”7

Com base na citação acima, percebe-se que o filósofo alemão compreende a essência – a proveniência – da técnica no sentido de uma pro-dução, de uma condução do que se encontra encoberto para um modo de desencobrimento. Esse desencobrimento, por sua vez, consiste em um modo de a verdade do ser se dar. O conceito de verdade que aqui se apresenta é compreendido como um velar iluminador. O que se desencobre, se desvela e assim se ilumina simultaneamente se encobre, se vela, se oculta em mistério. Uma via de acesso se abre para os entes, para o mundo. Outras tantas vias possíveis se fecham. O pensamento anterior à metafísica explicita esse velamento. Quando, porém, a metafísica se consolida, a partir do pensamento platônico, o velamento do ser pelo próprio ser cai no esquecimento. A arrogância dessa forma de pensamento tenta abarcar a totalidade do ser, ao passo que somente expressa os entes reunidos já sob a luz de um certo velar iluminador. Assim, à luz da metafísica, portanto, do esquecimento da verdade do ser, do velar iluminador inerente ao ser, a técnica deixa de ser vista em seu sentido poético e, por conseguinte, na sua articulação originária com o conceito de verdade. A partir de então, principalmente a partir da metafísica moderna, que confere centralidade à noção de sujeito, a essência da técnica se estabelece sob a forma da disponibilidade que garante, que assegura ao homem um poder de exploração sobre a natureza. Heidegger denomina a essência da técnica moderna, fruto do esquecimento metafísico da verdade do Ser, com-posição – em alemão, Ge-Stell. Antes, porém, de se abordar com mais detalhes a questão da com-posição, é necessário que se faça algumas considerações a respeito da questão da natureza, mencionada no parágrafo anterior. Em grego, natureza se diz physis. De acordo com Heidegger, o sentido originário dessa palavra, da mesma forma que os de técnica, poesia e verdade, foi esquecido. A tradição metafísica de pensamento contribuiu fortemente para o esquecimento desse sentido originário, que expressava uma proximidade em relação à verdade do ser, fazendo a linguagem corresponder ao seu apelo na medida em que preservava e, portanto, respeitava o seu mistério. A palavra physis designava aquilo que eclode, que se manifesta por si. Ela possui uma proximidade de sentido com a palavra poíesis, portanto, com a noção de desencobrimento. Isso também a aproximava da experiência originária da verdade, da alétheia. Nas palavras do próprio Heidegger:

7

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006. p. 16.

Volume 6 no 1

71


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

[...] Também a physis, o surgir e elevar-se por si mesmo, é uma produção, é poíesis. A physis é até a máxima poíesis. Pois o vigente physei tem em si mesmo (hén heautou) o eclodir da pro-dução. Enquanto o que é pro-duzido pelo artesanato e pela arte, por exemplo, o cálice de prata, não possui o eclodir da pro-dução em si mesmo mas em um outro (hén allo), no artesão e no artista. 8

Com o advento da técnica moderna, cuja essência não mais se encontra no âmbito da pro-dução, mas da com-posição, a relação entre o homem e a natureza sofre profundas transformações. A natureza, que, nos primórdios da civilização ocidental, ou seja, na Grécia pré-socrática, era compreendida como um surgir e elevar-se por si mesmo, como a máxima poíesis (pro-dução), agora aparece ao homem como fonte de recursos naturais a serem maciçamente explorados. Essa exploração encontra largamente sua legitimação em toda justificativa que apresenta como o objetivo da técnica – e do conhecimento que esta implica – beneficiar o homem. A essência da técnica moderna, compreendida como Ge-Stell – com-posição –, faz a natureza aparecer como fonte de recursos disponíveis, cuja disponibilidade deve se afinar com o cálculo e o planejamento humanos. Instaura-se, portanto, uma relação entre o homem e a natureza que não mais se caracteriza pela confiança, isto é, pelo cuidado e paciência que caracteriza, por exemplo, o modo tradicional de o camponês lavrar a terra. A relação entre homem e natureza, no âmbito da técnica moderna, sobrepuja a confiança em prol da garantia, do asseguramento. Nessa relação, predomina a atitude do tornar disponível através do calcular, do planejar em larga escala. A própria ciência moderna se desenvolve largamente sob o predomínio da forma de pensamento que caracteriza a técnica moderna. A essência desta rege aquela9. Nessa relação entre ciência e técnica modernas, o homem se encontra comprometido sob uma certa forma de comportamento, também regido pela vigência 8

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006. p. 16. Heidegger diz o seguinte sobre a regência da técnica sobre a ciência moderna: “Para a cronologia historiográfica, o início das ciências modernas da natureza se localiza no século XVII, enquanto que a técnica das máquinas só se desenvolveu na segunda metade do século XVIII. Posterior na constatação historiográfica, a técnica moderna é, porém, historicamente anterior no tocante à essência que a rege.” (HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006. p. 25) Além disso, sobre a relação entre ciência e técnica nos dias atuais, o filósofo alemão afirma: “Os domínios das ciências distam muito entre si. Fundamentalmente diversa é a maneira de tratarem seus objetos. Esta dispersa multiplicidade de disciplinas só continua sendo mantida em uma unidade por meio da organização técnica das universidades e faculdades e só conserva um significado pela fixação das finalidades práticas das especialidades [...].” (O que é metafísica? In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 114) 9

Volume 6 no 1

72


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

da disponibilidade. Esse poder vigente também acaba por disponibilizar o homem à sua maneira, embora este frequentemente nutra a ilusão de que, com todo o aparato técnico, estaria se assenhoreando do que o cerca10. É precisamente aqui que se encontra a ameaça fundamental da técnica moderna à essência do homem, que Heidegger expressa nas seguintes palavras:

A ameaça que pesa sobre o homem não vem, em primeiro lugar, das máquinas e equipamentos técnicos, cuja ação pode ser eventualmente mortífera. A ameaça, propriamente dita, já atingiu a essência do homem. O predomínio da com-posição arrasta consigo a possibilidade ameaçadora de se poder vetar ao homem voltar-se para um desencobrimento mais originário e fazer assim a experiência de uma verdade mais inaugural.11

Essa ameaça à essência do homem pela vigência da técnica moderna e, por conseguinte, pelo predomínio do pensamento que calcula, que caracteriza a ciência, demanda o cultivo de outra forma de pensamento, capaz de pensar adequadamente a essência da técnica, da ciência e do próprio homem. Heidegger chama essa forma de pensamento de meditação. Somente um pensamento que medita seria, portanto, capaz de lidar propriamente com a ameaça resultante do predomínio do pensamento que calcula, instrumento da com-posição vigente no âmbito da técnica moderna No texto intitulado Serenidade, Heidegger aborda de forma bastante clara a relação entre o pensamento que medita e o pensamento que calcula. Sem negar a importância deste, que, de fato, propicia um maior conforto e uma maior praticidade à vida humana, o filósofo alemão defende a necessidade do cultivo daquele, pois possibilita ao homem tornar-se novamente próximo à verdade do ser. Trata-se, portanto, de ir além dos limites impostos pelo predomínio do pensamento que calcula, já que este “não é um pensamento que medita (ein besinliches Denken), não é um pensamento que reflete (nachdenkt) sobre o sentido que reina em tudo o que existe”.12 Esse sentido é o do próprio ser, mesmo que destinado sob a forma do esquecimento, sentido cujo apelo somente o pensamento que medita consegue corresponder. 10

Nas palavras de Heidegger: “O homem não é o senhor do ente. O homem é o pastor do ser.” (HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 355) Isso porque o homem, acima de tudo, “deve guardar a verdade do ser.” (HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 343) 11

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006. p. 31. 12

HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 13.

Volume 6 no 1

73


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

O pensamento que medita implica, por sua vez, uma postura simples e tranquila, um certo desapego em relação ao mundo da técnica. Não se trata simplesmente de negá-lo, mas de, ao mesmo tempo em que se colhem os benefícios do progresso técnico, ser capaz de não tomar os objetos técnicos como algo de absoluto13 . Essa postura permite ao homem se abrir para o sentido oculto que rege a técnica moderna, que é o da verdade do ser em sua destinação histórica14. À postura simples e tranquila em relação aos objetos técnicos Heidegger a chama de serenidade para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen). Quanto à relação com o sentido oculto da técnica, ele o chama de abertura ao mistério (die Offenheit für das Geheimnis). O filósofo alemão exprime a afinidade dessas duas formas de agir com a seguinte sentença: “Quando a serenidade para com as coisas e a abertura ao mistério despertarem em nós, deveríamos alcançar um caminho que conduza a um novo solo. Neste solo a criação de obras imortais poderia lançar novas raízes.” Trata-se aqui do solo concedido ao homem pelo próprio ser, no qual o homem sempre se encontra enraizado, mesmo quando disso tenha se esquecido.

A sociedade de controle segundo Deleuze Gilles Deleuze abordou brevemente o tema da sociedade de controle. Suas considerações sobre o referido tema se baseiam em larga medida nas pesquisas desenvolvidas por Michel Foucault a respeito da questão do poder. Assim, tomamos como principais referências não somente alguns escritos de Deleuze, mas também de Foucault. Dentre os escritos deste foram selecionados os seguintes: História da sexualidade 1: A vontade de saber (1976) e a entrevista Verdade e poder (1977). Daquele, selecionou-se os seguintes escritos: Diferença e repetição (1968); A lógica do sentido (1969); Mil platôs (1972); O anti-Édipo (1972); as entrevistas Sobre o capitalismo e o desejo (1973), Um retrato de Foucault (1986) e Controle e devir (1990); o texto intitulado Post-scriptum sobre as sociedades de controle (1990). 13

Quanto a isso, diz Heidegger: “[...] Deixamos os objetos técnicos entrar no nosso mundo quotidiano e ao mesmo tempo deixamo-los fora, isto é, deixamo-los repousar em si mesmos como coisas que não são algo de absoluto, mas que dependem elas próprias de algo superior. Gostaria de designar esta atitude do sim e do não simultâneos em relação ao mundo técnico com uma palavra antiga: a serenidade para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen).” (HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 24) 14

Nas palavras do filósofo alemão: “[...] O sentido do mundo técnico oculta-se. Porém, se atentarmos agora, em particular e constantemente, que em todo o mundo técnico deparamos com um sentido oculto, então encontramo-nos imediatamente na esfera do que se oculta de nós e se oculta precisamente ao vir ao nosso encontro. O que, deste modo, se mostra e simultaneamente se retira é o traço fundamental daquilo que chamamos o mistério. Denomino a atitude em virtude da qual nos mantemos abertos ao sentido oculto no mundo técnico a abertura ao mistério (die Offenheit für das Geheimnis).” (HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 25)

Volume 6 no 1

74


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

Primeiramente, faz-se necessário abordar, em linhas gerais, a questão do poder segundo Foucault. Para este, não se deve compreender o poder como algo que evidentemente alguns possuem e outros não, nem como algo que simplesmente se concentra em certos espaços do corpo social, tomados como centros de poder e em relação aos quais as regiões periféricas dele seriam destituídas. O filósofo francês compreende que o poder está difundido por todo o corpo social, como uma espécie de rede dotada de um caráter dinâmico. Além disso, o poder não possui meramente um caráter negativo, repressor. Ele, acima de tudo, é produtivo, formatador de subjetividades. De acordo com Foucault, no que concerne ao poder, “[...] deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir [...].”15 O corpo social se mostra, com base nas investigações realizadas por Foucault, permeado por uma rede dinâmica de poderes e contrapoderes, de macro e de micropoderes. Onde um poder se exerce, ele sempre encontra uma certa margem de resistência, mesmo em qualquer espaço mais específico, que o filósofo francês denomina microfísico. Isso possibilita ao poder assumir diferentes configurações não somente através do espaço, como também no decorrer do tempo. Uma dessas configurações, fruto da dinâmica das relações de poder é aquilo que o referido filósofo chama de biopoder. O biopoder é uma certa configuração de poder que se instaura a partir do fim do século XVIII. Trata-se de uma tecnologia de poder que reúne em si as técnicas do poder disciplinar ou anatomopolítica e da biopolítica. Essa configuração do biopoder atinge o seu apogeu no século XX. Após a Segunda Guerra Mundial, o biopoder se reconfigura, na medida em que as disciplinas entram em crise e, em seu lugar, articulando-se com a biopolítica, estabelece-se gradativamente o poder que se exerce como controle. A respeito disso, afirma Deleuze:

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seu apogeu no século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado para outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola [...], depois a caserna [...], depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. [...] Mas as disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra Mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais,

15

FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 27. ed. São Paulo: Graal, 2013. p. 45.

Volume 6 no 1

75


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

o que deixávamos de ser.16

Conforme a citação acima, percebe-se que o poder disciplinar, que é um dos elementos constituintes, em conjunto com a biopolítica, do biopoder, caracteriza-se pelo poder que se exerce através das práticas de confinamento. Essas práticas de confinamento, por sua vez, se exercem no âmbito daquilo que se poderia chamar de instituições de sequestro e seu modus operandi se aplica através da compartimentalização do espaço e da administração do tempo, docilizando os corpos dos indivíduos e, nesse processo, formatando suas subjetividades17. Na medida em que essa forma de poder se exerce sobre os corpos dos indivíduos, isto é, individualmente e, por conseguinte, anatomicamente por assim dizer, Foucault o chama também de anatomopolítica. A biopolítica, por sua vez, exerce-se de outra forma ou, melhor dizendo, em outro nível. Enquanto a anatomopolítica é praticada nos corpos tomados individualmente e com precisão anatômica, a biopolítica opera em um nível mais amplo, exercendo-se sobre a coletividade, sobre o corpo da população. No âmbito da biopolítica, instaura-se toda uma gama de saberes e práticas como os da estatística, da previdência e da assistência social. Todos esses saberes e práticas são conduzidos no sentido de tornar, juntamente aos saberes e práticas exercidos no nível da anatomopolítica, a vida humana maximamente inserida nos circuitos de produção, maximizando, portanto, sua produtividade. Isso é que constitui o sentido do biopoder e, dessa forma, pode-se compreender que a ascensão do capitalismo fora possibilitada em larga medida pela constituição desse mesmo biopoder. Quanto a isso, diz Foucault:

Esse biopoder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. Mas o capitalismo exigiu mais do que isso; foi-lhe necessário o crescimento tanto de seu reforço quanto de sua utilizabilidade e docilidade; foram-lhe necessários métodos de poder capazes de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem por isso torná-las mais difíceis de sujeitar; se o desenvolvimento dos 16

DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 224. 17

Nas palavras de Foucault: “[...] Atuando sobre uma massa confusa, desordenada e desordeira, o esquadrinhamento disciplinar faz nascer uma multiplicidade ordenada no seio da qual o indivíduo emerge como alvo de poder [...].” (FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 27. ed. São Paulo: Graal, 2013. p. 25)

Volume 6 no 1

76


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

grandes aparelhos de Estado, como instituições de poder, garantiu a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e de biopolítica, inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração das coletividades), agiram no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das forças que estão em ação em tais processos e os sustentam [...]. 18

Em suma, o biopoder se constitui no fim do século XVIII, a partir da articulação entre o poder disciplinar ou anatomopolítica e a biopolítica, ou seja, com a articulação entre um poder que se exerce sobre os corpos dos indivíduos com precisão anatômica, através das práticas de confinamento, e o poder que se exerce sobre o corpo da população, através de práticas administrativas do Estado. Essa configuração do biopoder atinge seu apogeu no século XX. Entretanto, após a Segunda Grande Guerra, um de seus elementos constituintes, o poder disciplinar, entra em crise e, em seu lugar, passa a se exercer cada vez mais um poder que se caracteriza pelo controle. Essa transformação será abordada mais adiante. Antes, porém, é importante que se faça mais algumas considerações sobre a relação entre o biopoder e o capitalismo, desta vez levando em consideração, como o faz Deleuze, a articulação entre as esferas do poder e do desejo19 . De acordo com Deleuze, toda formação social se estrutura sobre processos de codificação que se exercem sobre o desejo, tentando impedir seu livre fluxo e a produção de linhas de fuga para fora dos limites impostos pela formação vigente. A formação social do capitalismo, no entanto, não opera simplesmente através de um código, de um sistema fixo de leis, preceitos e impedimentos, mas de uma axiomática que exerce o poder através da manipulação e canalização dos fluxos de desejo, utilizando seus deslocamentos para se reorganizar. Nas palavras do filósofo francês:

[...] O capitalismo tem um caráter muito particular: as suas linhas de fuga não são apenas dificuldades que lhe sobrevêm, são condições de seu exercício. Ele constitui-se sobre uma descodificação generalizada de todos os fluxos, fluxos de riqueza, fluxos de trabalho, fluxos de linguagem, fluxos de arte, etc. Não refez um código, constitui uma espécie de contabilidade, de axiomática de fluxos descodificados, na 18

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015. p. 152. 19

Segundo Deleuze: “[...] A organização de poder é a maneira como o desejo já está no econômico, como a libido investe o econômico, assedia o econômico e alimenta as formas de repressão política.” (DELEUZE, Gilles. Sobre o capitalismo e o desejo. In: DELEUZE, Gilles. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 333)

Volume 6 no 1

77


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

base de sua economia. Ele liga os pontos de fuga e distribui antecipadamente. Alarga sempre os seus próprios limites e tem sempre de colmatar as novas fugas em novos limites. Não para de transpor os seus limites que tornam a aparecer mais longe [...]. 20

No Anti-édipo, Deleuze expõe mais detalhadamente o modo como a axiomática do capitalismo vem ocupar o lugar do código que rege as outras formações sociais. Diferentemente deste, porém, a axiomática inerente ao capitalismo possui um caráter mais dinâmico, com o poder de se reinventar através de processos de canalização da produção desejante, dos fluxos libidinais, das linhas de fuga. Trata-se de uma axiomática com um grande poder de reterritorialização do desejo, cujo sentido produtor impele à afirmação, à criação, à desterritorialização, em suma, ao desmantelamento da rigidez repressora dos códigos instituídos. Reterritorialização axiomática da desterritorialização libidinal. Sobre isso diz Deleuze:

A potência do capitalismo é realmente esta: sua axiomática nunca está saturada, é sempre capaz de acrescentar um novo axioma aos axiomas precedentes. O capitalismo define um campo de imanência e não para de preenchê-lo. Mas este campo desterritorializado encontra-se determinado por uma axiomática, contrariamente ao campo territorial determinado pelos códigos primitivos [...]. 21

Essa articulação entre poder e desejo também é, de certa forma, abordada por Foucault. Segundo este, conforme exposto alguns parágrafos acima, o poder não é necessariamente repressor, mas produtor. Além disso, se o poder fosse necessariamente repressor, como se explicaria o seu exercício, inclusive, até às vias da dominação, uma vez que não há poder sem contrapoderes que com ele estejam relacionados? Há que se pensar, sustenta Foucault, no caráter sedutor do poder. O poder, portanto, não é meramente o que reprime. O poder seduz22. O biopoder, como configuração de poder que possibilitou o desenvolvimento do capitalismo, é, por conseguinte, investido pelo desejo. Há desejo sustentando, 20

DELEUZE, Gilles. Sobre o capitalismo e o desejo. In: DELEUZE, Gilles. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006.p. 340. 21

DELEUZE, Gilles. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 332.

22

Quanto a isso, afirma Deleuze: “O poder, segundo Foucault [...], não se reduz à violência, isto é, à relação de força com um ser ou um objeto; consiste na relação de força com outras forças que ela afeta, ou mesmo que a afetam (incitar, suscitar, induzir, seduzir etc.: são afetos) [...].” (DELEUZE, Gilles. Um retrato de Foucault. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 150)

Volume 6 no 1

78


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

inclusive, aquilo que Deleuze chama de sociedade de controle, que é um componente fundamental do biopoder nos dias atuais. É também no campo do desejo que se produz uma capacidade de resistência. Antes, porém, de se abordar as relações de submissão e resistência à sociedade de controle, é necessário que se compreenda em que consiste essa forma de poder, quais suas principais características, suas aplicações e implicações. A sociedade de controle é uma forma de poder que se instaura com a crise do poder disciplinar23. O controle possui como principais características as seguintes: primeiramente, ele não demanda práticas de confinamento, já que se utiliza de novas técnicas para se exercer; ele é, portanto, mais sutil que o poder que se exerce através das disciplinas, que confinam os corpos e formatam as subjetividades através da compartimentalização do espaço e da administração do tempo no interior de instituições de sequestro, como a escola, a fábrica, a prisão, etc.; por fim, remontando ao que se disse no parágrafo anterior, o controle se exerce também através da manipulação e canalização do desejo, mas de maneira diferenciada em relação à da sociedade disciplinar. Essas três características principais da sociedade de controle serão abordadas com mais detalhes nos parágrafos a seguir. O controle, como foi dito logo acima, não demanda práticas de confinamento, pois emprega novas técnicas para o seu pleno exercício. Ele, diferentemente das disciplinas, possui uma maior dinamicidade e flexibilidade, condizente com a axiomática que rege a organização do capitalismo. Se o poder disciplinar se exercia através de processos, mais rígidos, de modelagem, o poder como controle se exerce através de processos, mais flexíveis, de modulação. Isso lhe garante maior sutileza e maior alcance. Quanto a isso, afirma Deleuze: “[...] Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto ao outro [...].”24 Além disso, se o poder disciplinar tinha a prisão como modelo, inclusive, para locais como a escola, a fábrica, etc., o controle toma como padrão a empresa e sua lógica de funcionamento. A organização empresarial e suas dinâmicas de operação exercem o poder de modo mais fluido, mais sutil e, portanto, mais pernicioso. A respeito disso, Deleuze sustenta o seguinte, utilizando como exemplo uma 23

Sobre isso, diz Deleuze: “Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. [...] Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo [...].” (DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 224) 24

DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 225.

Volume 6 no 1

79


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

comparação entre a fábrica e a empresa:

[...] Numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás. [...] A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emolução, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do “salário por mérito” tenta a própria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa.25

Essa lógica empresarial, que invade os mais diversos campos, como os da escola, da vida pessoal – que agora se apresenta como algo a ser gerido que nem uma empresa –, etc., e suas técnicas de “salário por mérito”, “formação permanente”, etc., funciona através de canalizações do desejo. Pode-se acrescentar a essas técnicas também as oriundas do progresso tecnológico, assimiladas pela lógica empresarial, como os avanços nos sistemas de vigilância, crédito e comunicação26 . As subjetividades são constituídas de tal forma a desejarem os resultados ditados por

25

DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 225. 26

A respeito dos sistemas de vigilância no interior da sociedade de controle, mais especificamente no caso do regime prisional, diz Deleuze: “[...] a busca de penas ‘substitutivas’, ao menos para a pequena delinquência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas [...].” (DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 229) Pode-se acrescentar a isso os sistemas de segurança amplamente utilizados hoje em dia, com suas câmeras de vigilância, alarmes, dentre outros dispositivos. Quanto ao que se pratica com os sistemas de crédito, por exemplo, afirma o filósofo: “[...] O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado [...].” (DELEUZE, Gilles. Postscriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 228) Apesar de que a figura do homem endividado também possua um sentido mais amplo, como, por exemplo, em relação à necessidade imposta de uma formação permanente: “[...] A educação será cada vez menos um meio fechado, distinto do meio profissional – um outro meio fechado –, mas [...] os dois desaparecerão em favor de uma terrível formação permanente, de um controle contínuo se exercendo sobre o operário-aluno e o executivo-universitário. Tentam nos fazer acreditar numa reforma da escola, quando se trata de uma liquidação. Num regime de controle nunca se termina nada [...].” (DELEUZE, Gilles. Controle e devir. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 220) Por fim, no que pode muito bem remeter ao impacto dos sistemas de comunicação sobre as relações sociais: “[...] Talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. Estão inteiramente penetradas pelo dinheiro: não por acidente, mas por natureza [...].” (DELEUZE, Gilles. Controle e devir. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 221)

Volume 6 no 1

80


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

essas técnicas e a sujeição a essa lógica27. O controle, como certa configuração de poder, também seduz. Lógica empresarial e sociedade de controle, por sua vez, estão associadas a uma mutação do próprio capitalismo. É o que sustenta Deleuze. Segundo ele, o capitalismo do século XIX foi de concentração, tanto em termos de produção quanto de propriedade. O capitalismo, nos dias de hoje, é tipicamente de sobreprodução, caracterizando-se principalmente por se sustentar não mais sobre o âmbito da produção, mas pela ampliação das vendas e pela conquista dos mercados. Ele se dirige cada vez mais para o setor de serviços e adquire um viés amplamente financeiro. Para tanto, a ampliação dos sistemas de crédito e, por conseguinte, dos processos de endividamento exercem um papel fundamental. A esse respeito, afirma Deleuze:

[...] É um capitalismo de sobreprodução. Não compra mais matériaprima e já não vende produtos acabados: compra produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso, ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa [...].28

Essa mutação do capitalismo e, associada a ela, da configuração do poder, mutação que se caracteriza pela instauração de um capitalismo de sobreprodução e de uma sociedade de controle que lhe corresponde, impôs um certo direcionamento aos rumos da evolução tecnológica, cujos aparatos tanto servem para o exercício do controle quanto para as formas de resistência29. Sobre isso, diz Deleuze: É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, 27

Deleuze menciona, por exemplo, a demanda de muitos jovens por uma formação permanente: “[...] Muitos jovens pedem estranhamente para serem ‘motivados’, e solicitam novos estágios e formação permanente [...].” (DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 230) 28

DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 228. 29

Quanto à produção pelo poder de suas próprias formas de resistência, afirma Foucault, utilizando como exemplo o que se passou, no âmbito das lutas políticas, a partir da constituição do biopoder: “[...] Contra esse poder ainda novo no século XIX, as forças que resistem se apoiaram exatamente naquilo sobre o que ele investe – na vida e no homem enquanto ser vivo. [...] O que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, entendida como as necessidades fundamentais, a essência concreta do homem, a realização de suas virtualidades, a plenitude do possível. [...] Foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas, ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de direito [...].” (FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015. p. 156-157)

Volume 6 no 1

81


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

não porque as máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de lhes darem nascimento e de utilizá-las. As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência e o ativo, a pirataria e a introdução do vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo [...]30

Deleuze compreende que, da mesma forma que essas tecnologias são empregadas pela sociedade de controle e, por conseguinte, pelo capitalismo de sobreprodução, também podem servir às formas de resistência a ambos. Ele entende que a pirataria e os vírus de computador podem servir na constituição de contrapoderes, tal como a greve e a sabotagem serviram às formas de resistência no âmbito da sociedade disciplinar e do capitalismo de concentração31 . No entanto, o essencial se encontra em libertar o desejo de sua manipulação e canalização pelo controle, pela axiomática dominante. Essa libertação do desejo tem que se fazer, segundo Deleuze, coletivamente e de forma a não se concentrar em organizações unitárias, que acabariam minando o seu potencial. É isso que Deleuze quer dizer quando se refere à libertação do desejo no sentido de “suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. [...] Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo.”32

Considerações finais O tema deste artigo consiste em uma breve aproximação entre as problemáticas da técnica moderna, segundo Heidegger, e da sociedade de controle, de acordo com Deleuze. Nas duas partes anteriores, tratou-se em linhas gerais de cada uma dessas problemáticas, expondo-se suas principais características e 30

DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 227. 31

Sobre isso, Deleuze afirma o seguinte: “[...] A pirataria ou os vírus de computador, que substituirão as greves e o que no século XIX se chamava de sabotagem.” (DELEUZE, Gilles. Controle e devir. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 221) Quase trinta anos após Deleuze ter feito essa afirmação, constata-se que não foi isso o que aconteceu, embora esses novos elementos tenham até certo ponto se somado, por exemplo, à prática das greves como formas de resistência. 32

DELEUZE, Gilles. Controle e devir. In: In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 222.

Volume 6 no 1

82


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

possíveis implicações. Nos parágrafos a seguir, será feita uma aproximação entre a questão da técnica moderna em Heidegger e a questão da sociedade de controle em Deleuze. De antemão, estabelecemos que essa aproximação não tem caráter conclusivo, mas que visa ressaltar a importância das interpretações desenvolvidas por ambos os autores para a compreensão do tema da técnica e de seus desdobramentos nos tempos atuais. Uma primeira forma de aproximação pode se estabelecer a partir de uma confrontação entre as problemáticas da técnica moderna e da sociedade de controle e o modus operandi do pensamento metafísico, sobretudo no que diz respeito à questão da diferença. No que concerne à questão da diferença, tanto Heidegger quanto Deleuze sustentam que esta não foi pensada propriamente pela metafísica. A tradição do pensamento metafísico caracteriza-se, sobretudo, pela redução da diferença à identidade. Embora Heidegger e Deleuze abordem a questão da diferença de formas distintas – o primeiro considerando a diferença ontológica entre Ser e ente; o segundo como aquilo que já em Platão aparece como simulacro, como cópia imperfeita da ideia 33 –, essa questão aparece como crucial para se compreender a crítica de ambos ao modo metafísico de pensar, e as problemáticas em torno da questão da técnica e da sociedade de controle chamam a atenção para isso – Heidegger sustentando a necessidade de se cultivar um pensamento meditativo capaz de pensar, contrariamente à metafísica34, a diferença entre ente e ser; Deleuze defendendo a afirmação da diferença, de sua potência criadora, perante o controle, a axiomática vigente35.

33

Quanto a isso, diz Deleuze: “Reconhecemos esta dualidade platônica. Não é, em absoluto, a do inteligível e a do sensível, da Ideia e da matéria, das Ideias e dos corpos. É uma dualidade mais profunda, mais secreta, oculta nos corpos sensíveis e materiais: dualidade subterrânea entre o que recebe a ação da Ideia e o que se subtrai a esta ação. Não é a distinção do Modelo e da cópia, mas a das cópias e dos simulacros. O puro devir é a matéria do simulacro, na medida em que se furta à ação da Ideia, na medida em que contesta ao mesmo tempo tanto o modelo como a cópia [...].” (DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2011. p. 2) 34

Nas palavras de Heidegger: “Na medida em que a metafísica pensa o ente enquanto tal, no todo, ela representa o ente a partir do olhar voltado para o diferente da diferença, sem levar em consideração a diferença enquanto diferença.” (HEIDEGGER, Martin. Identidade e diferença. In: HEIDEGGER, Martin. Que é isto – A filosofia?; Identidade e diferença. 2. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2009p. 74) 35

Deleuze afirma que quer pensar “a diferença em si mesma e a relação do diferente com o diferente, independentemente das formas da representação que as conduzem ao Mesmo e as fazem passar pelo negativo.” (DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. p. 16) Na mesma obra, mais adiante, ele também afirma: “[...] quando os problemas atingem o grau de positividade que lhes é próprio e quando a diferença torna-se objeto de uma afirmação correspondente, eles liberam uma potência de agressão e de seleção [...]. O problemático e o diferencial determinam lutas ou destruições, em relação às quais as do negativo não passam de aparência [...]. Não é próprio do simulacro ser uma cópia, mas subverter as cópias, subvertendo também os modelos: todo pensamento torna-se uma agressão.” (HEIDEGGER, Martin. Identidade e diferença. In: HEIDEGGER, Martin. Que é isto – A filosofia?; Identidade e diferença. 2. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2009. p. 16-17)

Volume 6 no 1

83


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

Outra forma de aproximação se articula por meio da questão da história. Para Heidegger, trata-se de pensar a história da filosofia como história da metafísica e esta como história do esquecimento do ser. A técnica moderna corresponde a um momento dessa história. Para o filósofo alemão, cabe ao pensamento que medita pensar o sentido que se oculta no pensamento que calcula. Isso significa, em última instância, por o pensamento a caminho daquilo que na história do pensamento foi esquecido. Quanto a Deleuze, este pensa a história, da qual o capitalismo de sobreprodução e a sociedade de controle são os últimos produtos, como uma forma de se aprisionar o devir. Trata-se, para ele, de libertar o devir contra o jugo da história36 Por fim, pode-se aproximar técnica moderna em Heidegger e sociedade de controle em Deleuze através da questão do niilismo. Ambos os pensadores sofreram certa influência do pensamento de Nietzsche, e o tema do niilismo também foi abordado por eles. Heidegger considera niilismo o próprio esquecimento do ser pela tradição do pensamento metafísico. Já Deleuze toma o niilismo como toda forma de negação da diferença. Para ambos, faz-se necessária uma superação do niilismo, cujas manifestações mais recentes são, do ponto de vista heideggeriano, a técnica moderna, e, do ponto de vista deleuziano, a sociedade de controle. Como foi dito desde o início deste artigo, tentou-se aproximar as problemáticas da técnica moderna em Heidegger e da sociedade de controle em Deleuze com o intuito de resgatar as contribuições de ambos os autores para se pensar a questão da técnica e suas implicações nos dias de hoje. Essa tentativa de aproximação está longe de ser conclusiva. Espera-se que ela possa suscitar novos questionamentos e novas repercussões.

Referências DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2011. __________. Controle e devir. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. __________. Diferença e repetição. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. __________. Mil platôs. v. 4. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. __________. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 36

Nas palavras de Deleuze: “[...] A história só é feita por aqueles que se opõem à história (e não por aqueles que se inserem nela, ou mesmo a remanejam). [...] Devir, um pouco de devir em estado puro, trans-histórico. [...] Não há ato de criação que não seja trans-histórico [...].” (DELEUZE, Gilles. Mil platôs.v. 4. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. p. 99-100)

Volume 6 no 1

84


Técnica moderna e sociedade de controle: um breve diálogo entre Martin Heidegger e Gilles Deleuze, pp. 66-85

2010. __________. Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. __________. Sobre o capitalismo e o desejo. In: DELEUZE, Gilles. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006. __________. Um retrato de Foucault. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015. __________. Verdade e poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 27. ed. São Paulo: Graal, 2013. HEIDEGGER, Martin. Aletheia. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006. __________. A essência da verdade. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. __________. A questão da técnica. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006. __________. A teoria platônica da verdade. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. __________. Carta sobre o humanismo. In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. __________. Identidade e diferença. In: HEIDEGGER, Martin. Que é isto – A filosofia?; Identidade e diferença. 2. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2009. __________. Logos. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006. __________. O que é metafísica? In: HEIDEGGER, Martin. Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008. __________. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.

Volume 6 no 1

85


Considerações sobre tolerância em Herbert Marcuse e Slavoj Zizek, pp. 86-95

Considerações sobre tolerância em Herbert Marcuse e Slavoj Zizek Mikaelly da Costa Jucá1 Resumo: No presente artigo, considerando a importância e a atualidade do pensamento de Herbert Marcuse (1898-1979) em torno da questão da tolerância que aqui será central, utilizada como um importante instrumento de dominação dos indivíduos, assim o filósofo definira como tolerância repressiva. Pretende-se expor os limites da tolerância, a qual tem como único objetivo de criar um conformismo por parte dos indivíduos, contendo falsos e contraditórios discursos em defesa da antiviolência na sociedade abundante. Com isso iremos fazer uma aproximação a crítica atual de Slavoj Zizek que não é diferente da crítica Marcuseana. Palavras Chaves: Tolerância Repressiva. Violência. Marcuse. Zizek. Abstract: In the present article, considering the importance and the present time of Herbert Marcuse (1898-1979) around the question of the tolerance that here will be central, used as an important instrument of domination of individuals, so the philosopher defined as repressive tolerance. It’s intended to expose the limits of tolerance, which has as only objective of creating a conformism on the part of the individuals, containing false and contradictory discourses in defense antiviolence in abundant society. With this we will make an approximation to the current criticism of Slavoj Zizek that is not different from the critic Graduanda em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Membro do Grupo de Pesquisa “GP-Marcuse: atualidade do pensamento político de Herbert Marcuse”. E-mail: kaelly_92@hotmail.com 1

Volume 6 no 1

86


Considerações sobre tolerância em Herbert Marcuse e Slavoj Zizek, pp. 86-95

Marcuseana. Keywods: Tolerance Repressive. Violence. Marcuse. Zizek.

1. A tolerância como instrumento de uma democracia totalitária

‘’ Mais do que nunca, sustento a proposição de que o progresso em liberdade exige progresso na consciência da liberdade.’’ (Herbert Marcuse)

A

democracia reconhecida como a forma mais adequada de uma organização política principalmente para os países capitalistas, a qual sempre recebeu a atenção da reflexão inovadora da teoria crítica da sociedade de Herbert Marcuse, tais reflexões foram e continuam sendo bastante atuais na sociedade contemporânea. Mas para o filósofo apenas a criticidade não basta, pois corre o risco de ser esquecida, a crítica tem de estar conjunta com a práxis objetiva. O objetivo geral desse artigo é de entendermos principalmente o pensamento de Marcuse um dos principais pensadores alemão da teoria crítica do século 20, especificamente sobre a tolerância na sociedade unidimensional e o uso do discurso sobre a violência, conceitos esses trabalhados pelo Filósofo. Dessa forma faremos uma assimilação com Slavoj Zizek um dos pensadores atuais do século 21, que por mais que ambas as críticas pudessem vim de épocas diferentes, ainda se fazem bastantes atuais e por isso destaco a importância de ambos filósofos.

Pretenderemos resolvermos os seguintes questionamentos: como a tolerância torna-se instrumento de controle na sociedade contemporânea avançada onde apenas a favorece? E como o discurso de violência acaba por fazer parte de uma ideologia liberal da tolerância proclamada pelo status quo? Assim, iremos propor a partir das seguintes bases: 1) compreender a democracia que seria até então a favor do povo, torna-se totalitária na sociedade afluente e 2) apresentar o significado de tolerância libertadora como saída diante de uma democracia totalitária. Para responder essas questões iremos usar como base os seguintes textos: Tolerância repressiva de Herbert Marcuse e a obra Violência de Slavoj Zizek. A justificativa que nos leva a desenvolver está pesquisa está na inquietação com o rumo que uma democracia totalitária tem no desenvolver de uma sociedade

Volume 6 no 1

87


Considerações sobre tolerância em Herbert Marcuse e Slavoj Zizek, pp. 86-95

unidimensional, que tem como principal objetivo deixar os indivíduos inertes ao que acontece por trás das cortinas, impedindo qualquer forma de oposição utilizando seus discursos contraditórios em defesa da tolerância e da violência. Dentro do sistema capitalista existe uma sociedade unidimensional2 conceito trabalhado por Marcuse para definir uma sociedade sob total administração a qual só serve para fortalecer o controle sobre os indivíduos por meio de liberdades democráticas. O sistema estabelecido decide quanta liberdade o povo pode e deve ter e nessa aparente sociedade democrática a tolerância estaria inserida como instrumento para conter os indivíduos. Slavoj Zizek assim como Marcuse percebe que no meio dessa liberdade democrática, o discurso do tolerar é propagado mais como um discurso ideológico, que vale apenas para o status quo, perdendo assim seu verdadeiro conteúdo diante da realidade. Nunca houve tanta liberdade de expressão, tantas opiniões diferentes propagadas pelas mídias sociais, publicidade, propaganda, etc. E isso em uma sociedade capitalista parece ser positivo, no entanto mais adiante mostraremos que não é tão positivo como parece. A ordem democrática defende e propõe uma harmonia conciliadora mesmo diante de diferentes opiniões dos indivíduos, possibilitam uma convivência compensadora, fazendo com que muitas vezes prevaleça ideias conservadoras, tudo em favor de uma ordem. Segundo Marcuse a tolerância dentro de uma democracia totalitária torna-se instrumentalizada, prevalece assim um pensamento unidimensional, mesmo todos podendo se expressar são manipulados por opiniões engessadas, ocorrendo uma absorção do negativo pelo positivo, uma tolerância do pensamento positivo. Porém o Filósofo defende um pensamento autônomo que o indivíduo seja capaz de escolher quais são as verdadeiras e falsas informações: Na democracia próspera, prevalece a discussão próspera e, dentro da estrutura tradicional, é em grande parte tolerante. Podem ser ouvidos todos os pontos de vista: o comunista, o fascista, a esquerda e a direita, o negro e o branco, os paladinos do desarmamento e os defensores da preparação militar. Além disso, nos debates que se arrastam nos meios de comunicação, a opinião estúpida é tratada com o mesmo respeito que a inteligente, o mal informado pode falar tanto quanto o bem informado, e a propaganda anda no mesmo barco com a educação, e a verdade com a falsidade. Justifica essa pura tolerância do sensato e do insensato o argumento democrático de que ninguém, nem grupo nem indivíduo, tem o privilégio da verdade e é capaz de definir o que é certo ou errado, o bom ou o mau. Todas as opiniões conflitantes, por Para Marcuse nas sociedades industriais avançadas prevalece uma sociedade unidimensional, onde prevalece ideias e comportamentos unidimensionais, onde o pensamento crítico é anulado. Uma sociedade a qual Marcuse denomina: sociedade sem oposição, tudo está padronizado e controlado pelo estabelecido, como consequência seria o conformismo social. 2

Volume 6 no 1

88


Considerações sobre tolerância em Herbert Marcuse e Slavoj Zizek, pp. 86-95

conseguinte, devem ser submetidas ao ‘’ povo’’ para deliberação e escolha. Já sugerimos, porém, que o argumento democrático implica uma condição necessária, isto é, que o povo seja capaz de deliberar e escolher na base do conhecimento, que deve ter acesso ás informações autênticas e que, nessa base, a avaliação deve resultar de um pensamento autônomo.3 As palavras como tolerância, liberdade e democracia perdem seu real sentido e valor, tornam-se meros instrumentos de uma racionalidade irracional, fazendo com que prevaleça um universo fechado mantendo comportamentos, linguagens e pensamentos unidimensionais, os indivíduos manipulados pelas satisfações e falsas necessidades promovidas pelo status quo perdem sua autonomia individual, sentemse parte do sistema e pertencentes de uma liberdade, sendo assim satisfatórios pois aniquila qualquer tipo de oposição ao que está estabelecido. Com a instrumentalização da tolerância em uma democracia liberal passa a valer o mesmo que significava no passado, a qual fortalecia a tirania que atualmente favorece a volta de valores tradicionais, fortalecendo o controle dos indivíduos deixando-os inertes por meio de uma democracia totalitária, que propaga uma liberdade de opinião, cito Marcuse: ‘’ nesse caso, a liberdade (de opinião, de assembleia, de expressão) é mais um instrumento para absorver a servidão’’. Se antes a tolerância deveria ser uma força de oposição, hoje ela torna-se forma de aceitação do que está posto assim o domínio torna-se mais intenso sob os indivíduos, o qual se vê conformado, prevalecendo uma consciência feliz4, ou seja, o tolerar passa a ser omissão e até mesmo satisfação diante do estabelecido, Marcuse afirma em seu ensaio sobre a tolerância: ‘’A tolerância é estendida ás políticas, ás condições e aos modos de comportamento que não deveriam ser tolerados porque eles estão impedindo, se não destruindo, as chances de se criar uma existência sem medo e miséria.’’ A tolerância muda seu real sentido e perde sua autonomia diante do status quo, onde o indivíduo é manipulado e doutrinado por um sistema que lança opiniões já aceitas e repetidas pelos dominados. Marcuse irá distinguir dois tipos de tolerância existente numa sociedade industrial avançada: a tolerância passiva, onde o indivíduo estará inerte a qualquer caos que esteja ocorrendo, mesmo que seja prejudicial a própria sociedade, pois suas ideias já estarão estabelecidas através das mídias e comunicações, presentes em contradições, como ‘’pela paz faremos guerra’’ e a tolerância ativa ou o que Marcuse chamará essa tolerância -não partidária de ‘’partidária’’ ou ‘’pura’’ que é a tolerância MARCUSE, Herbert. Ensaio sobre Tolerância Repressiva. Tradução: Ruy Jungmann, In: R. P. Wolff, B. Moore, e Herbert Marcuse, Crítica da tolerância pura. Rio de Janeiro: Zahar, publicada em 1969, p. 99 3

No livro O homem Unidimensional, Marcuse alertará que devido as liberdades satisfatórias, há uma perca da consciência e autonomia do indivíduo, pois o mesmo estará satisfeito, prevalecendo uma consciência feliz. 4

Volume 6 no 1

89


Considerações sobre tolerância em Herbert Marcuse e Slavoj Zizek, pp. 86-95

deferida tanto a esquerda como a direita, tanto para os movimentos de agressão como os de paz, fazendo com que a esquerda e a direita tornarem-se semelhantes. Com o aumento de liberdade de expressão o filósofo deixará claro que sempre foi partidária, por meio da variedade de opiniões moldadas, esse progresso de liberação, escondi suas reais finalidades, com isso a razão instrumental acaba por estar favorecendo ainda mais a unificação dos opostos: A tolerância como liberdade de expressão é o modo do melhoramento, o progresso na estrada da libertação, não porque não haja verdade objetiva, e o melhoramento forçosamente será uma acomodação entre grande variedade de opiniões, mas porque há uma verdade objetiva que pode ser descoberta, verificada, aprendida ao se conhecer e compreender aquilo que é e aquilo que pode ser feito para melhorar o destino da humanidade.5 Marcuse então definirá como tolerância repressiva a falsa tolerância presente em uma sociedade também repressiva que acarreta um compromisso com o status quo. No entanto o Filósofo defendera a substituição por uma tolerância libertadora, para isso o indivíduo deve ser livre da falsa consciência que lhe é imposto. O indivíduo para torna-se verdadeiramente autônomo, livres de exigências repressivas, devera reestabelecer uma reflexão e a negação do estabelecido diante de uma administração totalitária. Essa tolerância libertadora significaria então para o autor: ‘’ Tolerância libertária, então, significaria intolerância contra os movimentos da Direita e tolerância aos movimentos da Esquerda’’. Marcuse deixa claro o erro que ocorre deixando a direita livre para se expressar, aparecendo assim políticos como exemplo Jair Bolsonaro, propagando discursos totalitários que favorece a tirania, ‘’ a suspensão da tolerância para com os movimentos repressivos antes que eles possam torna-se ativo’’. Tenho consciência de que nesse momento não é fácil a compreensão do Filósofo e pode até parecer contraditório, o que não é, pois o mesmo deixará claro em todo seu ensaio e aqui quero esclarecer que nem todo argumento ou discurso deve ser aceito ou mesmo ouvido, pois é a partir disso que o fascismo começa a aparecer. Um fascismo e totalitarismo obscuro que não se permitem reconhecidos dentro de uma democracia. Sob esse parâmetro complemento com Slavoj Zizek que irá destacar o que ele chamará de tolerância liberal existente, onde torna-se quase obrigatório o dever de aceitar as variedades de discursos, uma tolerância passiva, onde não invada a liberdade de opinião do outro, respeitando seu espaço, ou seja, é preferível tolerar do que reivindicar e como já falado antes, isso é bastante positivo para o sistema capitalista, onde o indivíduo não poderá se opor a qualquer dito por mais que seja MARCUSE, Herbert. Ensaio sobre Tolerância Repressiva. Tradução: Ruy Jungmann, In: R. P. Wolff, B. Moore, e Herbert Marcuse, Crítica da tolerância pura. Rio de Janeiro: Zahar, publicada em 1969, p.95 5

Volume 6 no 1

90


Considerações sobre tolerância em Herbert Marcuse e Slavoj Zizek, pp. 86-95

ridículo ou não. Então nos aparece os seguintes questionamentos retóricos sobre os limites da tolerância na área social: Por que deve-se tolerar as exploração de classes ou de grupos socais? Por que tolerar a pobreza e a fome, resultando em desigualdades sociais? Por que tolerar o racismo obscuro na sociedade? Por que tolerar o racismo, a homofobia? Por que tolerar o intolerável? será que nesse momento esse não seja o limite da tolerância? Zizek afirma que a tolerância na sociedade liberal está cheia de limitações que os indivíduos não conseguem enxergar.

2. Violência como um discurso ideológico a favor do status quo A partir do conceito que trabalhamos no primeiro tópico, sobre a tolerância repressiva definida por Marcuse e que Slavoj Zizek chamará de tolerância liberal, essas existentes em uma democracia totalitária, debruçamo-nos, neste momento a partir desses conceitos sobre a questão da violência, essa que aparentemente parece ser intolerável em uma sociedade liberal. Em uma democracia conservadora o discurso contra a violência, é visto como uma defesa a ordem e segurança das pessoas, além do mais torna-se mais vantajoso nesta democracia que o sujeito seja apenas um telespectador dos acontecimentos do que se opor a posicionamentos que prejudicam ele mesmo abafando assim as contradições. Na base ética para os indivíduos conviverem em sociedade pacifica a violência é vista como algo prejudicial para a sociedade mas Slavoj Zizek alerta para um tipo de violência muito mais perigoso a violência invisível na sociedade: ‘’ Opor-se a todas as formas de violência, de violência física, direta, a violência ideológica, parece ser a preocupação maior da atitude liberal tolerante que hoje prevalece’’. Se diante de um governo totalitário, onde não prevalece a vontade do povo, em algum momento o povo sairá do inanimado, revoltando-se diante de situações insuportáveis, manifestando por direitos e mudanças sociais e políticas, manifestações essas que atualmente tornaram-se bastante agressivas, diante dessas reações torna-se nítido a insatisfação dos indivíduos. Esta violência não é necessariamente a física, Slavoj Zizek chamará de violência sistêmica, uma violência em anonimato presente no século 21, uma violência despercebida, mais opressora a qualquer tipo de oposição. Um aparente liberalismo antiviolência que se apresenta cheia de contradições no estado, na polícia pacificadora, no sistema ao todo. Nada mais violento do que o discurso proclamado pela direita sobre a tolerância, nada mais violento do que o discurso atual sobre a igualdade, nada mais violento do que a afirmação presente no discurso do governo brasileiro, onde prevalece uma total tolerância. A violência e a repressão só é defendida por governos democráticos, totalitários, quando lhes convém, para manter a ordem e a tranquilidade, oprimem, batem, destroem o que for contrário a seus

Volume 6 no 1

91


Considerações sobre tolerância em Herbert Marcuse e Slavoj Zizek, pp. 86-95

ideais. Marcuse irá diferenciar dois tipos de violência, uma violência revolucionária praticada pelos oprimidos e uma reacionária praticada pelos opressores. Onde a verdadeira violência está presente na sociedade avançada: Mesmo nos centros de civilização adiantados, a violência realmente predomina: é praticada pela polícia, nas prisões, nos asilos de alienados, na luta contra as minorias raciais; é levada igualmente pelos defensores da liberdade metropolitana aos países atrasados. Essa violência realmente gera a violência.6 Herbert Marcuse será um defensor feroz de uma violência revolucionária das classes oprimidas, uma violência libertadora e dirá: ‘’ Quando as minorias empregam a violência, não dão início a uma nova cadeia de violência, e sim tentam suprimir a existente’’. Zizek também atentara sobre o discurso proclamado contra a violência, a favor da lei e da ordem, um discurso ideológico para desarmar uma violência necessária. Os dominantes temem esse tipo de reação pois abalam os estabelecido e incomodam. As minorias como uma parte da população tornada invisível, propondo afirmar sua existência através da violência revolucionária como um grito para a sociedade para avisar que eles ainda estão vivos e agindo. Marcuse irá defender a luta das minorias que ele considera como potencias radicais e revolucionárias, movimentos que fariam parte do que ele chama de catalisadores que seriam os negros, os homossexuais, o movimento feminista, etc. Marcuse trabalha esse conceito para mostrar que esses grupos podem ser revolucionários, contrários ao estabelecido, neles estão presente a força que se precisa, definindo melhor: ‘’ O conceito “catalisador” significa as tendências de desintegração existentes na sociedade unidimensional, que podem romper a consciência administrada da classe trabalhadora e reativar seu pensamento e práxis revolucionária.’’7 .

3. A uso da tolerância e da violência a favor de uma democracia totalitária no Brasil No Brasil provavelmente nunca se falou tanto sobre a questão da tolerância, seja ela social, seja ela política, racial, enfim, na verdade uma falsa tolerância existente que obscurece questões, sem superá-las, uma tolerância que não transcende os limites da tolerância formal. Uma tolerância imposta por um governo apoiado pela mídia que querem a todo custo contrapor a negação de uma crise social e política. O povo que tolera seus governantes mesmo em meio ao caos, toleram mediante seus MARCUSE, Herbert. Ensaio sobre Tolerância Repressiva. Tradução: Ruy Jungmann, In: R. P. Wolff, B. Moore, e Herbert Marcuse, Crítica da tolerância pura. Rio de Janeiro: Zahar, publicada em 1969, p.107 6

7

IVO, Rene. O sentido do conceito catalisador na teoria crítica de Herbert Marcuse.

Volume 6 no 1

92


Considerações sobre tolerância em Herbert Marcuse e Slavoj Zizek, pp. 86-95

discursos vazios que não se materializam na prática. Uma política de massa que só quer reproduzir e voltar ao passado visando apenas a manutenção do poder, mesmo o povo indo as ruas, gritando com palavras de ordens, fingem que não veem ou ouvem, que não é nada menos que minorias a se opor. Os falsos discursos democráticos no ano de 2016 dos que até então deveriam representar o povo, votaram a favor do impeachment de Dilma Rousseff, sendo que os mesmos sendo investigados por crimes de corrupção ou no ano de 2017 esses mesmos representantes do povo juntamente com a mídia conservadora defendem reformas que prejudicam em grande parte o trabalhador, com justificativas de que é necessário para o ajuste estrutural da economia brasileira, utilizando slogans chantagistas e emocionais como ‘’reformar hoje para garantir o amanhã’’, aqui observa-se inúmeras contradições de uma democracia totalitária, um governo até então é provisório. Tais exemplos deixam explícito a verdadeira violência existente em um País, como já esclarecido não é apenas física é pior ainda onde o povo tem que aceitar a todo custo o que está a sua frente. Manifestações com o uso extremo da arbitrariedade por parte do governo, só demonstram o quanto incomodam vê pessoas se oporem, tomemos como exemplo, manifestações de 2017 contra Temer em Brasília, onde o governo autoriza a convocação das Forças Armadas diante um milhares de manifestantes protestando contra as reformas trabalhistas e da previdência além da defesa de eleições diretas antecipadas para presidência da República. A violência das manifestações que tanto é denunciada pela mídia, é apenas uma amostra da insatisfação do povo, interrompendo a inércia perante essa violência invisível (onde aparentemente não existe violência), essa sendo a forma mais brutal, onde cada sujeito deve permanecer no seu lugar, mesmo que decisões futuras mudem suas vidas, permanecendo inertes e aceitando tudo o que proposto como se fosse para o bem de todos. Deixemos claro que não se defende aqui qualquer tipo de violência mas a violência revolucionária que se opõe diante da violência invisível que essa sim tem como função levar o indivíduo ao estado de conformismo. Diante da maior violência brasileira, onde um governo provisório em situação de crise política e econômica, aproveitam-se de uma época onde o desemprego e a pobreza cresce, tirarem direitos de trabalhadores que por muito tempo lutaram por direitos e foram conquistados, essa é a violência tampada pelas mídias com justificativas chantagistas e contraditórias. Uma mídia totalitária propagando o ódio por aqueles que desejam mudanças, desfavorecendo qualquer tipo de manifestação, tentando mostra lados negativos de um movimento. Uma explosão social que o próprio governo e mídia são os culpados, os mesmos desviam as atenções do verdadeiro problema. E cito Zizek:

Volume 6 no 1

93


Considerações sobre tolerância em Herbert Marcuse e Slavoj Zizek, pp. 86-95

Há uma anedota bem conhecida em que um oficial alemão visitou Picasso em seu estúdio em Paris durante a Segunda Guerra Mundial. Chocado com o ‘’ caos’’ vanguardista de Guernica, perguntou a Picasso: ‘’ Foi você que fez isto?’’. Ao que Picasso replicou, calmamente: ‘’ Não, isto foi feito por vocês!’’. Atualmente, muitos liberais, ao serem confrontados com explosões violentas com as desordens de 2005 nos subúrbios de Paris perguntam aos poucos esquerdistas que ainda apostam numa transformação social radical: ‘’ Não foram vocês que fizeram isto? É isto que vocês querem?’’. E nós deveríamos responder, como Picasso: ‘’ Não, foram vocês que fizeram isto! Este é o verdadeiro resultado da sua política!8 Torna-se essencial essa discursão que é tão atual diante de grandes mudanças e até mesmo retrocessos na sociedade brasileira, onde as maiores vítimas são as classes mais pobres, os trabalhadores, as minorias, etc. Essas são potências libertadoras que para se libertarem das algemas do conformismo devem agir e contestar diante do estabelecido. Marcuse não fica preso em apenas identificar os problemas de uma sociedade, evita cair no ceticismo absoluto, na pura negatividade, conhecido por alguns por ser pessimista e utópico no entanto suas obras demonstram seu lado revolucionário, onde busca sempre apontar alternativas teóricas e política para o futuro, propondo saídas frente a uma tolerância repressora. Como saída apenas o indivíduo por ele mesmo poderia sair das amarras de uma sociedade fechada, prevalecendo uma consciência livre e autônoma assim poderia romper com a falsa consciência, prevalecendo uma tolerância libertadora como alternativa autêntica que seja capaz de se opor ao que está sendo propagado. Diante de todos esses pontos apresentados, é nítido que a tolerância defendida por Herbert Marcuse e Slavoj Zizek está longe da ideia de que tudo que é dito deve ser aceito, de que toda opinião deve ser aceita, a tolerância tem seus limites quando o mercado de ideias propaga o intolerável e os indivíduos devem distinguir por meio de uma consciência autônoma, o verdadeiro do falso, da realidade real e a realidade irracional. Assim, termino citando Zizek no final do livro Violência: ‘’ Por vezes, não fazer nada é a coisa mais violenta que temos a fazer’’ (ZIZEK, Slavoj, p. 137)

Referências bibliográficas KELLNER, D. Introdução à 2ª edição. In: MARCUSE, H. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. Tradução de Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: Edipro, 2015. ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução de Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014, p 23 8

Volume 6 no 1

94


Considerações sobre tolerância em Herbert Marcuse e Slavoj Zizek, pp. 86-95

MARCUSE, Herbert. Ensaio sobre Tolerância Repressiva. Tradução: Ruy Jungmann, In: R. P. Wolff, B. Moore, e Herbert Marcuse, Crítica da tolerância pura. Rio de Janeiro: Zahar, publicada em 1969 ______. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução de Álvaro Cabral. 8. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2015a. ______. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. Tradução de Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: Edipro, 2015b. _____. Um ensaio sobre a libertação. Tradução de Maria Ondina Braga. Lisboa: Livraria Bertrand, 1977. TRIGO, Luciano. A violência segundo Zizek e uma canção da Jovem Guarda.Globo.com, rio de Janeiro, 27 julho 2014. Disponível em:<http:// g1.globo.com/pop-arte/blog/maquina-de-escrever/post/violenciasegundo-zizek-euma-cancao-da-jovem-guarda.html>. Acesso em: 27 out. 2014 ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução de Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014

Volume 6 no 1

95


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol Juliana Braga Guedes1 Resumo:A obra Um beijo dado mais tarde [1990], escrita por Maria Gabriela Llansol, autora portuguesa, é composta por seis capítulos que desviam de uma ordem romanesca tradicional. A estranheza é, por excelência, o assunto dessa análise e sua noção formula críticas sobre a arte e os conceitos canônicos pré-estabelecidos por uma tradição literária dos gêneros, principalmente, o narrativo. A experimentação da narrativa poética da escritora portuguesa reside na desorientação textual, que desvia as palavras de um lugar seguro chamada por uma das personagens de “a impostura da língua”. Além disso, esse estudo trata da escritura, não mais subordinada a uma ordem da língua cotidiana. Palavras-chave:Gênero narrativo; Arte; Estranheza; Língua. Abstract:The work A kiss given later [1990], written by Maria Gabriela Llansol, Portuguese author, is composed of six chapters that deviate from a traditional romanesque order. The strangeness is, par excellence, the subject of this analysis and its notion formulates criticisms on the art and canonical concepts pre-established by a literary tradition of the genres, mainly, the narrative. The experimentation of the poetic narrative of the Portuguese writer resides in textual disorientation, which diverts the words from a safe place - called by one of the characters of "the imposture of the language." Moreover, this study deals with writing, no longer subordinated to an order of everyday language. Mestra em Letras. Professora de literatura do Instituto UFC Virtual. E-mail: guedesbjuliana@gmail.com 1

Volume 6 no 1

96


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

Keywords: Narrative genre; Art; Strangeness; Language.

1. Introduçāo

A

obra Um beijo dado mais tarde [1990], publicada pela editora portuguesa Rolim, escrita por Maria Gabriela Llansol, é composta por seis incomuns capítulos. Cada um deles vem acompanhado, no início, por um “prólogo” e as ações estão totalmente repartidas por uma sequência particular de enumeração. Dessa forma, as entradas dos capítulos, i.e., os prólogos, possuem um tema trágico, a partir do conceito clássico2 que conhecemos, e elementos diferentes e misturados divididos ao ritmo da narrativa, totalmente fragmentada e despedaçada, para nos desviar de uma ordem romanesca tradicional com começo, meio e fim. As principais qualidades da escritura llansoliana são: palavras em itálico, traços estendidos como cortando a “fala” do texto, linhas com espaços vazios, letras em caixa baixa no início de parágrafos, aspas utilizadas para ressaltar um monólogo, passagens de estrutura lírica e trechos em branco como pausas ou intervalos de pensamento. A narrativa de Maria Gabriela Llansol traça um destino atormentado, bonito por ser indecifrável, e sem qualquer tipo de sujeição dita lógica, ou seja, em Um beijo dado mais tarde não encontramos um fim visado ou estórias que se concatenem para um centro unificador. Esse estudo pretende refletir sobre essa exigência de finalidade do gênero narrativo e aprofundar a composição da obra de arte literária, principalmente, a partir da estranheza ocasionada pelos elementos intrínsecos à obra em questão, por muitos críticos, dita hermética, mas este termo, apenas, evoca uma espécie de zona de conforto da qual pretendemos nos afastar. A laboriosa legibilidade da escrita de Llansol está desde as imagens conflitantes criadas, até a liberdade da construção frasal, entre uma linha e outra. Linhas essas constantemente entrecortadas. Assim, por não se aprisionar em sintagmas gramaticalmente “corretos”, a narrativa acumula tonalidades mais desafiantes. O desvio da ordem, nessa obra em análise, fica bem próximo de um automatismo da escrita, prática muito usada pelos vanguardistas surrealistas. Com isso, as técnicas, que operam a escrita llansoliana, tornam-se experimentos da própria narrativa, como se fossem metanarrativas, e ficam bem distantes de um Prólogo é um termo que provém da língua grega e que se refere a um pequeno discurso, no qual se desenvolve ideias preliminares sobre o assunto que vai crescer no desenrolar da obra. O prólogo forma uma das partes principais da tragédia clássica grega, como uma espécie de introdução e preparação para a entrada do coro antecedendo as cenas principais dos atos. O prólogo faz a exposição do assunto a ser tratado. No entanto, para alguns teóricos literários, o prólogo seria apenas um paratexto. Llansol usa o prólogo para apresentar um acontecimento trágico desconcertante e, em seguida, a narrativa segue um curso, não necessariamente, para desenvolver o assunto do prólogo, mas para apresentar ações repletas de incertezas, misturando diversos gêneros, tais como: teatro, poesia e prosa. 2

Volume 6 no 1

97


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

encontro marcado com um desfecho, elemento característico do gênero narrativo tradicional. Na “errância”3 do ato de narrar, busca-se um fio, não mais condutor, mas um outro, que não aprisiona elos, antes os pulveriza, como, por exemplo, o fio de Ariadne, no labirinto do Minotauro, que abandona o fio, para abraçar o próprio caminho desconhecido do labirinto, i.e., esse fio, no romance de Maria Gabriela Llansol, deixa aberto as possibilidades de uma construção narrativa outra: um gênero modificado, ao mesmo tempo, “errante”, narrativo e lírico (poético). As instituições acadêmicas mais tradicionais, que formularam o pensamento canônico, pontuadas pela divisão tripartida dos gêneros em: narrativo, dramático e lírico, ainda desejam manter a dominação de um telos, capaz de impor uma verdade indissolúvel, confiscando para si uma garantia dos sentidos das coisas. Entretanto, com o barroco e, mais tarde, com a modernidade, a doutrina dos gêneros literários foi questionada e, até hoje, há obras quase inclassificáveis pelo seu teor de hibridismo, é o caso de Um beijo dado mais tarde, de Maria Gabriela Llansol. Com isso, é descoberto, na desmesura das intermitências da composição do romance em estudo, os contornos vacilantes presentes na sua diegese, não mais clássica, e a apresentação da “errância” como modus operandi na obra de arte literária contemporânea: ressignificando os objetos da narrativa, despossuindo o mundo fictício e misturando os gêneros literários, transgredindo as características preservadas pela teoria clássica dos gêneros. De acordo com Lopes (2012, p. 41):

A vontade de comunicar do artista, quando não conduz à imposição de uma vontade codificadora apenas cria uma maneira de dizer e um dizer sem maneiras, sem garantias, impulso de deslocação sem ponto de partida fixo.

A poética de Maria Gabriela Llansol encontra uma forma própria de agrupar as maneiras de dizer o seu enredo e se afasta dos padrões romanescos e ficcionais tão bem alinhados e descritos pela teoria clássica dos gêneros. O escrever da escritora lusitana agencia forças tão enigmáticas, que aquilo encontrado fora de uma finalidade, ausente da técnica tradicional de se narrar, é denominado estranheza. Por Termo usado em entrevistas dadas por Llansol, como também, em obras críticas da portuguesa Silvina Rodrigues Lopes. A “errância” é explicada através da “teoria da des-possessão”, esta criada por Silvina Rodrigues Lopes (2013), na qual se busca uma nova relação com a leitura dos textos de Llansol. A “des-possessão” se refere a essas mutações de sentidos na língua literária nas quais os objetos não serão mais reconhecidos (possuídos) por seus nomes ordinários, sequer ordenados por uma tipologia classificatória. A “errância” é uma forma de pulverizar as ações do romance e deixá-los livres por um fluxo incomum de ideias, possíveis apenas através da escritura e do uso da língua literária. Portanto, a relação de errância será evidenciada ao despedaçar os tecidos e os objetos, aplicando-lhes novos sentidos, dessa narrativa indeterminável e incomensurável. 3

Volume 6 no 1

98


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

isso, a imprevisibilidade da obra de arte literária trabalhada em Um beijo dado mais tarde, vinculada a uma estranheza da escritura e dos elementos empregados, para alcance das “errâncias”, serão pontos a serem processados para o entendimento da narrativa poética de Llansol. Portanto, a estranheza será, por excelência, o nosso lugar de apoio e criticará os conceitos canônicos pré-estabelecidos nas instituições acadêmicas e manuais de literatura.

2. Obra de arte literária e o canto das sereias A estranheza é a noção que aproxima a escritura de Llansol de um pensamento crítico sobre o conceito de que a arte literária pode ser desprovida de qualquer norma ou sistema. A estranheza formula outros sentidos na narrativa, rompe ordens, rejeita normatizações ou generalizações. A obra de arte literária contemporânea deixa de ser imitação ou representação da natureza e assume outras variações, para abordar um modo próprio, no qual demonstre os mecanismos que compõem a estrutura do texto literário. Dessa maneira, é através das vozes “errantes” da escrita de Llansol que surgirão presenças transfiguradoras do humano e os objetos serão incomuns, pois receberão outras nomeações e funções. Vozes muito próximas do inumano “Canto das Sereias”, mito grego, que não satisfará a felicidade dos navegantes (leitores) e deixará no ar um som estranho, mágico e periclitante ao homem. O canto desses seres marinhos, embora muito sedutor, ocasionava confusão, pois apenas dava a entender alguma coisa e despertava no insólito uma potência secreta e enigmática. Assim é o escrever llansoliano, repleto de sons, imagens e vozes que se destinam a vorazes cenas as quais formam figuras em movimentos ondulatórios, sem jamais encontrar um porto seguro, uma finalidade, não havendo, assim, uma felicidade encantada, apenas restando uma estranheza. A narrativa de Llansol é similar ao canto das sereias, pois temos a certeza da condução de algo desastroso, muitos se afogam, encantados pelo cantarolar, outros escapam, como Ulisses, i.e, os leitores podem se asfixiar nas palavras conduzidas pela trama de Um beijo dado mais tarde e ficarem perdidos nessa tentação, ou, buscarem na estranheza o elemento de resistência, uma saída do terrível encanto. No prólogo do “I Capítulo”, intitulado A Morte de Assafora, as imagens são entorpecidas, quase sem rumo aparente: _____________ prendeu a cabra a um castanheiro que se via da janela mas estava longe; a cabra não deixava de se ouvir e, mesmo depois do pôr-do-sol,

balia; disse

que ia cortar-lhe o som, e dirigiu-se para ela com a mão direita e uma faca; o pelo agitou-se sem balir, e

Volume 6 no 1

99


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

ficou a sangrar; mais nenhum ruído atravessou o nosso sossego, mas uma segunda língua, com parte no céu-daboca, principiou a nascer-lhe, da autora).

e foi ela a voz. (LLANSOL, [1990], p. 07, grifo

A cena chega com uma ação simples de prender um animal a uma árvore observada pela narradora. O canto inumano da cabra, que lembra o das sereias de Ulisses, conduz o movimento da narrativa. O som é ferido pelo silêncio dos pelos agitados do animal, pela faca de um sujeito sem nome e pelo sangue. Do ruído do canto da cabra passando para o sossego do “sem-som”, sem ruído, nasce uma espantosa segunda língua, esta figurada numa voz. Quiseram calar o canto inumano, mas acabaram por dar cabo de uma voz à qual um pouco adiante da narrativa, a rapariga que temia a impostura da língua, chamada Témia, recebe-a de legado. A voz secreta dessa personagem advém da imperfeição de um som inumano, da cabra. Nessa voz, a narrativa espreita-nos e se inicia; de acordo com Blanchot (1959, p. 13): “Le récit commence où le roman ne va pas et toutefois conduit par ses refus et sa riche négligence. Le récit est héroïquement et prétentieusement le récit d’un seul épisode, celui de la rencontre d’Ulysse et du chant insuffisant et attirant des Sirènes”.4 Nessa citação, é visível como a arte literária da narrativa carrega imagens e modifica vozes afastadas de uma realidade prosaica ou cotidiana. O prólogo do “I Capítulo” traz a morte de uma cabra que faz nascer uma língua negligente que se torna voz, e mais adiante essa língua é confiada à personagem Témia. Dessa maneira, o mundo poético e narrativo de Llansol resiste à chamada ordem clássica de um romance. Assim, ficamos inebriados com as artimanhas de uma tensão implícita nesse acontecimento trágico da cabra. Quando avançamos no texto literário, observamos cortes inacabados que geram um jogo artístico de elementos narrativos muito particulares. Enquadrar o processo de escrita de Llansol em um esquema visual e cartesiano de análise, não seria o suficiente para apreender o aspecto fugidio e inesperado que a diferencia do gênero narrativo clássico. A narrativa da escritora portuguesa está fora da formatação esperada num romance convencional. Entrementes, para entender uma obra de arte literária, na contemporaneidade, é mister analisar os elementos de estranheza na narrativa, os desdobramentos da teoria clássica dos gêneros literários e os devires das imagens múltiplas construídas nas cenas apresentadas.

Tradução nossa: “A narrativa começa onde o romance não vai, mas para onde conduz, por suas recusas e sua rica negligência. A narrativa é, heroica e pretensiosamente, o relato de um único episódio, o do encontro de Ulisses com o canto insuficiente e sedutor das Sereias”. 4

Volume 6 no 1

100


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

3. As metamorfoses da escritura A partir da crítica feita ao gênero narrativo, é observada uma tradição ainda dominante em torno do romance. Em contrapartida, esse estudo elucida uma atenção mais profunda acerca do escrever, a urdidura da escritura, afastando-se de imposições totalizantes e rompendo com teleologias. Interrogar o impossível, amar a imperfeição e desconstruir a legibilidade da narrativa, formam os passos da análise de Um beijo dado mais tarde. Com esses aspectos, optamos em riscar a frivolidade bela do texto artístico e literário, sem esteticismos fundantes, para o direito de analisar como a estranheza projeta uma prática mais crítica da leitura e do pensamento sobre a obra de arte literária. Dessa forma, para adentrar os elementos formadores dessa estranheza na escritura de Llansol, é preciso ousar na compreensão das justaposições de fragmentos e imagens desconexas no decorrer da narrativa:

Na alteração do mundo, a intenção crítica altera-se, mas mais do que nessa alteração, em que momentaneamente perde o pé, importa pensar que o desejo de pé-firme da crítica é sempre uma prisão do pensamento ao conhecimento, e nessa medida um dificultar da saída do paradigma do terrorismo da soberania, do mestre enquanto aquele que “quer-fazer-saber-que-sabe-fazer”, que é o paradigma de uma utopia imposta como fábula que oculta a sua força de autoimposição numa suposta naturalidade e/ou comprovação histórica. (LOPES, 2012, p. 101, grifo da autora).

Por isso, parte da crítica feita hoje, infelizmente, reduzida a resenhas jornalísticas efêmeras, quer concluir que a obra de Maria Gabriela Llansol é ininteligível ou críptica, como afirma Moisés : “A crítica foi uma atividade muito exercitada e muito respeitada nos tempos modernos, você ainda deve estar lembrado. Hoje, em tempos ditos pós-modernos, ela anda um pouco anêmica, reduzida ao rápido resenhismo jornalístico, necessário, mas não suficiente” (2000, p. 335). Ademais, há concordância com Lopes, na citação mais acima, pois a análise superficial de uma obra se opera em parâmetros que tentam erroneamente circundar uma visão comum. “Perder o pé” ou achar a narrativa de Um beijo dado mais tarde “sem pé nem cabeça” seria, na verdade, um pontapé inicial para entender as forças conflitantes do processo de escritura e da estranheza dos elementos formadores do ato de narrar e não reduzi-la a uma narrativa difícil de entendimento feita de códigos indecifráveis. Acreditar numa saída prática do mestre, como avaliada por Lopes, que quer segurar com o punho o conhecimento é ir contra a possibilidade de novas conexões, camuflando a falta de sentido, no próprio mundo ordinário; é, no mais, postular que somente a partir do hibridismo de gêneros seja viável entender as figuras metamorfoseadas e deslindadas na obra de Llansol. Portanto, na direção da

Volume 6 no 1

101


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

estranheza e não, somente, na comprovação histórica do hibridismo de gêneros, apontamos elementos nesse estudo, que estruturam as potências “errantes” da narrativa poética da escritora portuguesa: prólogos teatrais sem coro, elementos encantados, metanarrativas, vozes estranhas, espaços em branco e objetos desorientadores. As metamorfoses na escritura de Llansol marcam as personagens, que tem nomes próprios e alcunhas muito singulares, como, por exemplo, Témia, a rapariga que temia “a impostura da língua”, até as ações plurissignificativas que enumeram descontinuamente os capítulos, depois de pavorosos prólogos. Esses traços fortificam a ideia de um escrever sem exigências pautadas numa teleologia, i.e., a narrativa llansoliana não é voltada para uma utilidade prática a serviço da palavra ou de um sentido em estado de dicionário. Nesse aspecto, é interessante voltarmos à negligência da narrativa pontuada no pensamento de Maurice Blanchot e a ideia de “errância” em Silvina Rodrigues Lopes, para fazer voltar à força imanente contida na própria escritura, consagrando-a em si mesma e liberando investigações mais autônomas.

4. Escrever nāo é ver O caráter assimétrico de Um beijo dado mais tarde proporciona ao leitor um entendimento descontínuo. As relações formuladas, as vozes ficcionais e os diálogos pseudo-humanos são borrifados por uma força incomum de narrar. A obra parece estar sempre ondulando em um movimento vertiginoso. Mesmo apresentando um prólogo em cada capítulo, a trama se desmancha pelo caminho e não possui começo, meio ou fim. É sempre um trajeto, um navegar e um percorrer, jamais linear. A escritura de Llansol é repleta de intermitências sem nenhuma pretensão de continuidade. A diegese é reformulada, não sendo algo esperado, correndo o risco de ser avaliada como niilista, pois confunde as ações, incomoda o processo de leitura e não há uma compreensão fixa. Além disso, é observado na urdidura do texto um malestar e um pessimismo nas personagens, criados através de uma polifonia conflitante. Por conseguinte, essa descontinuidade da narrativa llansoliana traça, na verdade, a finitude do humano e sua impossibilidade de dar sentido às coisas. Desde quando viver é ter uma rua de mão única, um caminho em linha horizontal com apenas duas fases inabaláveis: nascimento e morte? O suposto “contínuo” da vida é somente um modelo que nega as lacunas e vivências humanas para se focar nas tarefas cotidianas de sobrevivência. Portanto, a atmosfera ousada da narrativa llansoliana está em escrever a vivacidade dos objetos ao redor, supostamente inertes, captar os movimentos desses objetos com as pessoas, mostrar que a própria escrita literária falha ao tentar transferir para a ficção algum sentido das experiências humanas e

Volume 6 no 1

102


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

explorar o sem sentido mais a fundo e em ir, radicalmente, na aporia das palavras. Saber ler e escrever corretamente e dito “normalmente” impõe uma ordem, i.e., o poder da organização de uma língua. Entretanto, o enredo de Maria Gabriela Llansol rompe com a escrita padronizada e trabalha na reorganização das palavras construindo um próprio corpus que desafia a ordem estabilizante. O melhor de tudo é que a narrativa, embora estilhaçada, trace um novo olhar mais esforçado de leitura, saindo dos paradigmas da escrita ordenada. A narrativa llansoliana usa o artifício da enumeração, as frases são caóticas e elencam transes de escrita para privilegiar a dispersão das próprias palavras. Nisso, a poética da narrativa, em Llansol, apresenta um rompimento com a língua cotidiana, usada para se comunicar uns com os outros. Essa língua do dia a dia é nomeada, na narrativa de Um beijo dado mais tarde, como “a impostura da língua”, i.e., se refere à imposição pragmática da comunicação para que os interlocutores se entendam e, assim, ao cortar essa função ordinária da língua, as palavras usadas, na trama llansoliana, rompem com a “impostura da língua’ e passam por um desvio artístico de estranha beleza poética:

Alguém, deitado no chão, procura penetrar o monte ____________ e eu baixome para impedir que as palavras se espalhem na rua; surge, então, em lugar inferior às sílabas/letras e acentos, um ninho de gatos brancos que reconheci serem aves do paraíso. – Também há alegria sobre a terra – diz-me Bach. (LLANSOL, [1990], p.11, grifo da autora).

No fragmento é percebido uma troca sutil da ordem das palavras, esta vinculada às letras e às sílabas, para algo descontínuo ao criar um novo lugar, que acolhe essas palavras, com a vida animal: gatos brancos transformados em pássaros. O ser que escreve evita que as palavras sejam desperdiçadas na rua, i.e., as palavras são utilizadas numa nova ordem, fora da “impostura da língua”. A nova ordem está na desordem poética da narrativa, num lugar ainda terreno, mas antropomorfizado. A fratura da “impostura da língua” proporciona uma alegria diferente, como disse Bach, e, assim, possibilita um novo conjunto de palavras, criando uma língua mais dispersa, num lugar inferior às sílabas/letras. Para Blanchot (1969, p. 30):

C’est la dispersion même – le désarrangement – qui, en se retournant, s’affirme alors comme l’essentiel, réduisant à l’insignifiant tout pouvoir déjà organisé, suspendant toute possibilité de réorganisation et pourtant se donnant elle-même, en dehors de tout organe organisateur, comme l’entre-deux: avenir de l’ensemble

Volume 6 no 1

103


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

où le tout se retient.5

A reviravolta é um movimento de mudança brusca muito bem explorada na trama llansoliana. Não há um centro protetor que organize ou direcione a narrativa. A escritura gira na mobilidade dispersante das palavras. A força contida nessa abertura à dispersão, sem início ou desfecho, atinge uma intensidade poética arrebatadora. Lopes (2013, p. 13) acrescenta ainda mais sobre esse modo de narrar experimental da autora portuguesa e expressa algo em relação a um trânsito da leitura:

A experimentação na escrita surge em Maria Gabriela Llansol como trânsito da leitura à escrita, ordenação do caos textual no corpo em transe, dionisíaco, capaz de presentificar e amar o distante. É uma experimentação radical, ousada e por isso perigosa, ao mesmo tempo que guarda em si vestígios embrionários, limiares esboçados e abandonados, conclusões irrisórias, em suma, o caminho do ensaio, as cinzas de uma matéria combustível e o resto, que não teve fogo ou sopro que ateasse a perfeição.

Dessa maneira, o dionisíaco em Llansol impulsiona um efeito que leva o texto para uma travessia desconhecida. O escrever é instrumento liberador da desordem e transforma as palavras num emaranhado sobreposto, que turva a visão durante a leitura. Ver é saber que aquilo visto à distância nos devolve uma imagem entre a visão e o objeto. Entretanto, escrever não é ver. A escrita é feita de palavras e a palavra se torna caos, pois, de acordo com Blanchot (1969, p. 40):

“[...] La parole est guerre et folie au regard. La terrible parole passe outre à toute limite et même à l’ilimité du tout: elle prend la chose par où celle-ci ne se prend pas, ne se voit pas, ne se verra jamais; elle transgresse les lois, s’affranchit de l’orientation, elle désoriente”.6

O “ninho de gatos brancos”, retomando três citações acima, tem uma relação destoante com as “sílabas/letras e acentos”. O ser que escreve chega a pronunciar que o ninho está em um “lugar inferior”, reconhecido como um lugar de alegria pela Tradução de Aurélio Guerra Neto: “É a própria dispersão – a desordem – que, passando por uma reviravolta, se afirma, então, como o essencial, reduzindo à insignificância todo o poder já organizado, suspendendo toda possibilidade de reorganização e, não obstante, oferecendo-se ela própria, fora de todo órgão organizador, como o entremeio: futuro do conjunto em que o todo se retém”. 5

Tradução nossa: “[...] A palavra é, para o olhar, guerra e loucura. A terrível palavra ultrapassa todo limite e até, o ilimitado do todo: ela toma a coisa por onde não se a toma, por onde não é vista, nem nunca será vista; ela transgride as leis, liberta-se da orientação, ela desorienta”. 6

Volume 6 no 1

104


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

personagem Bach. Essa alteração traceja diversos caminhos que ultrapassam a visão “comum”, indo além do visível-invisível. Nesse ponto, a experimentação da narrativa reside na desorientação que desvia as palavras de um lugar seguro (“a impostura da língua”) e no fato da escritura literária não se subordinar a uma ordem da língua cotidiana. A escritura é dionisíaca, pois as palavras estão dispersas. Portanto, a estranheza na diegese llansoliana colabora para a construção de um mundo singular que transfigura o texto em mutações e figuras. O desenrolar da trama, que tem como pano de fundo a “impostura da língua” de Témia e uma série de ações pavorosas relacionadas com objetos de uma casa e à própria escrita, apresenta mutações de sentidos cada vez mais marcadas no desenvolvimento de Um beijo dado mais tarde. Somos lançados para um contexto doméstico “não-comum”, pois a casa da narrativa está constantemente suspensa e conectando episódios diáfanos. Muitas personagens são figurações que constelam nichos intercalados de ações. Elas possuem desde nomes bíblicos, como Salomé e Elcana, até adjetivos, que foram modificados em nome próprio, como Infausta e Témia. Conforme Silvina Rodrigues Lopes, a primeira coisa a compreender é que não há personagens nos livros de Maria Gabriela Llansol, mas sim “imagens em devir”, “hóspedes de rara presença”, inclusive com reelaborações de figuras históricas, como por exemplo, o músico Bach. Témia, figura principal de Um beijo dado mais tarde, tem sede de justiça, pois “[...] Na casa não se administrava bem a Justiça da língua” (LLANSOL, [1990], p. 07) e, assim, é observada uma relação com a deusa grega, Têmis, que possuía o título de “deusa da Justiça”, como também, há um caráter onomástico entre as palavras: Témia, temia, temível e temor; leia-se: “sintome Témia, temível e com temor” (LLANSOL, [1990], p. 08, grifo nosso). Dessa maneira, a escritura de Llansol é recortada por metamorfoses que elencam vários acontecimentos ininterruptos num fôlego galopante e até confuso de assimilar. As imagens tratadas na narrativa se perdem no pensamento e deslocam a visão para um efeito quase irreconhecível. Os textos sopram mais desejo que dizer. Em outras palavras, a narrativa poética de Maria Gabriela Llansol versa sobre objetos e vozes enigmáticas e não se destina a uma compreensão pragmática. Com a superação de uma poética própria, a obra de arte literária não se subordina a um pensamento institucional e prático. O que o texto quer é galopar pela lucidez do desejo e sair da obediência do sistema e das regras legitimadas. Para Lopes (2013, p. 17): “as escritas vivem nas vozes que as fazem deflagrar até a magnificência que se atinge no humano ou ao horror sobre que este se destaca”. O domínio hierárquico da língua está entregue ao dionisíaco das palavras, representando uma poética contemporânea. Por ora, não conseguimos definir o gênero do texto de Llansol, sequer saber para onde a narrativa dela nos direciona e isso nos causa um choque, pois estamos bem acostumados e domados pelas reproduções legitimadas de

Volume 6 no 1

105


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

uma tradição literária dos gêneros. A nossa crítica reside em demonstrar a singularidade que interrompe análises já defasadas ou insuficientes e trazer o direito de destaque à forma artística da obra de arte literária, mais potente e desencadeadora de enigmas por resolver. Qual é o segredo?

“havia um segredo”; era a trepadeira que envolvia o lugar ______________ tudo tão simples: A é serva; quando engravida de B, o filho da casa, só pode cantar o amor de boca fechada; alguns anos mais tarde, o filho da casa contrai matrimónio, e dessa união tem uma filha ______________; o primeiro filho – o da serva – foi abortado; e “sobre esta casa pairou um mistério, um não-dito, que alisou, numa pequena pedra, uma irreprimível vontade de dizer.

Deste mistério, e

no fim de um trabalho executado a som e a cinzel, fez-se a rapariga que temia a impostura da língua e que queria”, através da palavra, fazer ressoar fortemente, o seu irmão morto. (LLANSOL, [1990], p. 12, grifo da autora).

O excerto foi copiado tal qual está em Um beijo dado mais tarde se aproximando de uma estrutura predominante do gênero lírico, recriando o hibridismo da prosa-poética. O árduo artesanato da escritura de Llansol está tecido num zigue-zague tão expressivo e multiplicador de sentidos que cultiva um movimento inexprimível. A narradora revela a existência de um segredo entre a casa, o envolvimento de uma criada com um dos patrões, a morte de um filho e o nascimento da rapariga que temia “a impostura da língua”. Parte do segredo se manifesta nos espaços em branco ou representado por traços longos: grafias que exprimem linhas do “não-escrito”. O “não-escrito” fortifica um “não-dito” e cria um mistério. O “canto de amor” foi mantido fechado na boca da serva. Um canto abortado que se manteve no desejo de dizer. Cantar significa também poetar. Os cantos são formas poéticas longas, típicas do gênero épico. Agora o som e o cinzel esculpiram desse canto misterioso um nascimento. No nascer (no cantar), a rapariga que temia “a impostura da língua” queria poetar a “palavra-segredo”, que ressoasse com força, para retumbar a morte do irmão abortado. Esse terceiro elemento, o mistério, causa-nos um afastamento da “impostura da

Volume 6 no 1

106


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

língua” e traz a possibilidade da experimentação das palavras. Maria Gabriela Llansol nos catalisa em sua cena amorosa para uma prática diferente do ato de narrar: ela explora o “não-dito”. Lopes (2013, p. 80) acrescenta: “a «impostura da língua» é antes de mais a ilusão de um ajustamento das palavras às coisas, a ilusão fenomenológica de acesso às coisas em si, objectos”. Dessa maneira, a “rapariga que temia a impostura da língua” quer achar através da palavra, algo que ressoe a morte do irmão. Entretanto, o mistério está na possibilidade desse “não-dito”. Portanto, ao experimentar o saber que envolve o “não-dito”, a rapariga não encontra a palavra salvadora, sua demanda, se desvirtua do ato de narrar e traz à tona esse “não-dito”, que diz mais que qualquer palavra imposta pela língua. Com isso, retomo o canto das sereias, inumano e “não-dito”, um som emitido por palavras ou não. “Cantar o amor de boca fechada” é cantar noutra língua, rodeada por um “não-dito”, pois envolvido por um mistério, um ruído não explicado por palavras. O segredo não está no filho bastardo abortado, mas sim na impossibilidade de se cantar a morte da língua, pois a impostura das palavras ordinárias falseia o acesso às coisas, deixando-as opacas de linguagem. Assim sendo, o “não-dito” poderia, sim, resgatar a ideia da perda da morte. Resta-nos saber como esse mistério que envolve a morte da língua e o nascimento da impostura se resolveria. A possível resposta está na experimentação aberta da palavra, ao romper com as barreiras da sistematização das letras e ultrapassar os sentidos, deslocando limites e ampliando dimensões textuais.

Referências BLANCHOT, Maurice. Une voix venue d’ailleurs. France: Gallimard, 2002. ______. Uma voz vinda de outro lugar. Trad. Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011a. ______. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2011b. ______. La part du feu. France: Gallimard, 1949. ______. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ______. Le livre à venir. France: Gallimard, 1959. ______. A conversa infinita 1: a palavra plural. Trad. Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2010a. ______. A conversa infinita 3: a ausência de livro. Trad. João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2010b. ______. A conversa infinita 2: experiência limite. Trad. João Moura Jr. São

Volume 6 no 1

107


Crítica e estranheza na narrativa poética de Maria Gabriela Llansol, pp. 96-78

Paulo: Escuta, 2007. ______. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. ______. L’ espace littéraire. France: Gallimard, 1955. ______. L’entretien infini. France: Gallimard, 1969. ______. L’écriture du désastre. France: Gallimard, 1980. ______. The writing of the disaster. Translated by Ann Smock. USA: University of Nebraska, 1986. BRANDÃO, Ruth Silviano. Minotauro: o insuportável desígnio. Belo Horizonte: Cas’a’escrever, 2015. CADERNO de leituras: Selecção de artigos publicados na imprensa generalista portuguesa em torno de alguns livros de Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Mariposa Azual: Espaço Llansol, 2011. HOMERO. Odisseia. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. LLANSOL, Maria Gabriela. Um beijo dado mais tarde. Lisboa: Rolim, [1990]. ______.______. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013. ______. Um falcão no punho. Belo Horizonte: Autêntica, 2011a. ______. Entrevistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2011b. LOPES, Silvina Rodrigues. Teoria da des-possessão. Lisboa: Averno, 2013. ______. A estranheza-em-comum. São Paulo: Lumme Editor, 2012a. ______. Literatura, defesa do atrito. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2012b. MOISÉS, Leyla-Perrone. Inútil poesia e outros ensaios breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 1979.

Volume 6 no 1

108


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socioenvironnementalE Thiago Mota1 Résumé : Au lieu de trouver sa fin, le capitalisme a été capable dans les dernières trois décennies de renouveler son esprit, tout en incorporant les critiques tantôt sociales, tantôt esthétiques, que l’on lui a adressées. Un néocapitalisme équipé d’un mécanisme d’endogènisation est parvenu à se forger, de telle façon qu’une critique qui ne veuille pas tomber son otage doit, tout d’abord, en faire une décodification. Nous proposons donc d’appliquer les instruments conceptuels mis en place par l’analyse de la biopolitique e de la gouvernementalité élaborée par Foucault entre 1976 et 1979, notamment l’analyse des dispositifs de savoir-pouvoir, au domaine de la science de l’administration et, plus spécifiquement, à celui de l’éthique de la gestion socio-environnementale. Cela rend possible une reconstruction compréhensive de la généalogie de la biopolitique telle que Foucault l’a projetée, ainsi que la mise à jour de ses idées à l’égard des problèmes qui concernent nos jours. Cela permet aussi de suivre le parcours de la réflexion autour de la biopolitique au-delà des travails de Foucault, surtout chez quelques héritiers italiens, comme Agamben et Negri. En conclusion, nous défendons qu’une reconstruction de la matrice théorique d’approche de la triangulation généalogique entre le pouvoir souverain, les disciplines et la biopolitique par le moyen d’un échange avec les sciences du management permet d’identifier l’éthique de la Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará – UFC, com projeto acerca de Foucault, na linha de pesquisa ética e filosofia política. 1

Volume 6 no 1

109


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

gestion socio-environnementale, cette sorte d’une « éco-éthique » sociale, comme un dispositif néocapitaliste qu’il faut décodifier. Mots-clefs : Biopolitique, Gouvernementalité, Critique, Management, Ecologie.

Biopolítica e Neocapitalismo: Foucault e a ética da gestāo socioambiental Resumo: Em lugar de chegar ao fim, o capitalismo vem sendo capaz, ao longo das três últimas décadas, de renovar seu próprio espírito e incorporar as críticas sociais e estéticas que lhe têm sido dirigidas. Um neocapitalismo apresentando forte mecanismo de endogenia se forjou, de maneira que qualquer crítica que não queira acabar sua refém precisa, hoje, acima de tudo, proceder à sua decodificação. Nesses termos, objetivamos aplicar os instrumentos conceituais da análise da biopolítica e da governamentalidade – desenvolvidos por Foucault entre 1976 e 1979, incluindo a abordagem dos dispositivos de saber-poder – no campo das ciências da administração e, mais especificamente, no da chamada ética da gestão socioambiental. Isso possibilita uma reconstrução abrangente da genealogia da biopolítica tal como Foucault a concebe, tendo em vista enfrentar problemas relacionados aos dias atuais. Isso também permite seguir o percurso da reflexão em torno da biopolítica além dos trabalhos de Foucault, especialmente em alguns de seus herdeiros italianos, como Agamben e Negri. Em conclusão, defendemos que a reconstrução da matriz teórica de abordagem da triangulação entre poder soberano, disciplinas e biopolítica, através de uma interlocução com os estudos da administração, permite identificar a ética da gestão socioambiental, esta forma de “eco-ética social”, como um dispositivo neocapitalista que carece ser decodificado. Palavras-chave: Biopolítica, Governamentalidade, Crítica, Administração, Ecologia.

Du nouvel esprit du capitalisme à l’éthique de la gestion socioenvironnementale

R

écemment, dans son discours aux manifestants du mouvement Occupy Wall Street, Slavoj Zizek (2011) reprisait une idée qui peut nous servir de point de départ : “It is easy for us to imagine the end of the world – see numerous apocalyptic films –, but not end of capitalism.” Zizek parvient souvent à nos rendre des images concrètes de la réalité. Celui-ci tient, pour ainsi dire l’idée générale que l’on fait du capitalisme, à la sortie de la première décennie du XXIe siècle : le capitalisme est devenu une donnée de nature, une fatalité inexorable, de telle façon que l’on ne peut pas imaginer sa fin. À certains égards, ce fait est étonnant. Une fois que le capitalisme a été l’objet de critique au moins depuis que Marx l’a découvert en tant que tel, nous pourrions bien imaginer frais que l’humanité trouverait un jour une forme non capitaliste

Volume 6 no 1

110


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

d’organisation de l’économie et de la vie sociale en général. Pourtant ce n’est pas cela qui est vérifié en regardant l’histoire, surtout les dernières décennies. Comme l’a montré un ouvrage remarquable de Luc Boltanski et Ève Chiapello (1999), publié au tournant du siècle, le capitalisme est parvenu à se relancer en se faisant un « nouvel esprit », qui a pu absorber les critiques que lui ont été adressées, soit du point de vue du social, soit du point de vue de l'artiste, tout en les reversant le sens.2 Ce « néocapitalisme » aurait donc été capable de tirer profit des évènements de résistance aux revendications à la fois sociales (plus d’égalité) et esthétiques (plus de liberté) dont la forme prototypique est devenue, pour grande part des auteurs, le mai 68. Si la rigidité des postes et horaires de travail contraignait la créativité et l’authenticité, si l’enjeu économique de la croissance et du profit engendrait des inégalités et des risques écologiques, le néocapitalisme a su inventer le temps de travail flexible et le boulot par projets, l’attention à tous les stakeholders et la durabilité. Et il l’a fait en axiomatisant en termes de valeur d’échange tout ce qui était gardé au plus intime ou protégé par la radicalité critique. Nous pensons que la survivance du capitalisme, son caractère tardif (Spätkapitalismus, late capitalism), découle d’une capacité que lui est inhérente, de ce que Boltanski et Chiapello appellent la « cooptation-assimilation » et que nous voudrions appeler : le mécanisme d’endogènisation néocapitaliste.3 Malgré le néologisme, l’idée est simple : le capitalisme est toujours la cible des critiques, mais il parvient toujours à en trouver des réponses puisqu’il est capable de surcodifier toute critique que lui soit adressé. À cet égard, mon illustration favorite est encore celle de Che Guevara, l’icône de la lutte anticapitaliste, transformé en silk-screen et imprimé sur des T-shirts C&A en solde. En effet, le néocapitalisme n’a fait que potentialiser le mécanisme endogènisant présent en tout capitalisme, pour le rendre hyperendogènisant. Découlant de la transition de l’administration à la gestion, c’est-à-dire du modèle de l’organisation pyramidale hiérarchique du fordisme au modèle de l’organisation en réseau du toyotisme, le nouveau capitalisme s’instaure comme une puissance flexible, pluriconnective, rhizomique. Il a appris à répondre aux revendications pour plus d’autonomie, d’authenticité, de créativité, de liberté, moins de rigidité, de bureaucratie, d’aliénation en les incorporant au nouvel éthos qui s’exprime dans les manuels de néo-management.

À cet égard, au monde anglophone, une référence importante est Richard Sennett (2005), qui parle plutôt d’une « culture of the new capitalism ». 2

Nous reprenons la piste lancée, en portugais, par Peter Pál Pelbart (2003, 102), qui parle à cet égard d’« endogenia ». 3

Volume 6 no 1

111


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

L’un des aspects centraux du néocapitalisme est l’articulation d’une forme nouvelle de gestion qui se déploie en symbiose avec le déploiement d’un domaine de savoir, précisément celui des sciences de la gestion ou du management. Malgré son statut épistémologique disputable, la science de la gestion est considérée en général une science sociale appliquée, constituée de façon pluridisciplinaire, sur la base de relations transversales entretenues par plusieurs sciences humaines (économie, psychologie, sociologie, anthropologie, pédagogie, droit), ainsi que par la philosophie, notamment l’éthique. Or, l’évolution de la science de la gestion entre les années 1970, encore sous l’influx du mai 68, et les derniers dix ans reflètent le changement de paradigme qui nous autorise à parler de néocapitalisme. Le plus frappant à cet égard est que ce nouveau savoir et cette nouvelle pratique de gouvernement sont mis à point par le moyen l’assimilation des derniers acquis de la recherche éthique, c’est-à-dire la conception d’une éthique attentive aux risques de l’espècisme, une éthique à la fois sociale et environnementale. Pour telle éthique, ce qui importe désormais est surtout garantir que la quête du profit ne soit pas en contradiction avec les enjeux sociaux et écologiques du développement durable, ceci orientant fondamentalement une nouvelle éthique capitaliste. Or, nous pensons que nous y avons une des plus pertinentes ressources de la stratégie d’autolégitimation mise en marche par le néocapitalisme. Décodifier l’éthique de la gestion socio-environnementale devrait donc être un enjeu majeur de la critique contemporaine.

Généalogie de la biopolitique et de la gouvernementalit Apparemment, ce qui se trouve en crise, malgré toutes les alarmes de récession, n’est pas le capitalisme. Il s’agit plutôt d’une crise de la critique au capitalisme. Une précaution épistémologique qui doit être recommandée à toute critique du capitalisme qui ne veuille pas devenir son otage consisterait donc à se rendre compte tout d’emblée de cette puissance endogènique de la cible même des efforts critiques. Il faut d’abord décodifier le discours néocapitaliste, en dessiner le plan, en faire la cartographie. Pour le faire, il faut utiliser un cadre conceptuel, un « appareil de décodification », non pas parce que le néocapitalisme diffuse des messages encryptés – tout au contraire, il s’agit du temps des prêts-à-penser en 140 signes –, mais parce que son discours est diffusé de façon à ne pas permettre d’interpréter tous les liens qu’il implique ni ses conséquences en ce qui touche la pratique

Volume 6 no 1

112


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

Un des cadres de référence théorique qui permettent sans doute de saisir le discours et la pratique du néocapitalisme peut être découpé des travaux développés par Michel Foucault l’en appliquant la méthode de recherche historique, la généalogie du pouvoir. Si nous nous rappelons que ce moment de la production intellectuelle de Foucault (en gros, les années 1970) est justement celui où le concept de dispositif vient remplacer celui d’épistémè. Notre hypothèse générale est que le mécanisme d’endogènisation du néocapitalisme peut être saisi en toute acuité si l’on l’analyse comme un trait constitutif de ce que Foucault appelle le dispositif de savoirpouvoir. Au sens de Foucault, en général, un dispositif est un système de renforcement mutuel entre les pratiques de savoir et les rapports de pouvoir, une machine à produire des régimes de vérité, démarquant les bornes entre ce qui vaut comme vrai ou faux pour des sujets eux-mêmes produits par ces régimes. En fait, plutôt que producteurs de vérités, les dispositifs sont des machines à produire de sujets, ou encore des machines à produire de la vie utile : ils produisent des producteurs4 . Consacrés à la subjectivation (ou à l’assujettissement)5, les dispositifs sont le résultat d’agencements de pratiques discursives et non discursives, sont des technologies ou des rationalités. À son tour, ces rationalités sont autopoétiques, sont des intelligences artificielles ou des automates qui ne dépendent pas d'un sujetopérateur, dans la mesure où elles sont capables d’optimalisation performative indépendante virtuellement infinie. En tant que machines abstraites intelligentes, rationalités, les dispositifs sont équipés de réflexivité, c’est-à-dire sont capables d’autoperception et d’autocorrection de son fonctionnement, en absorbant la critique et en renversant leur sens. Pour le dire en un mot, les dispositifs sont endogèniques. Foucault (1976) lui-même n’a pas cessé de dire que, dans le passage du pouvoir souverain, qui caractérisait l’Ancien Régime (« faire mourir ou laisser vivre »), au biopouvoir en sens large, relatif à la société moderne (« faire vivre ou laisser mourir »), tout se joue sur le problème de créer des dispositifs produisant de la vie utile, c’est-à-dire des sujets mieux adaptés au mode de production capitaliste6 . Le dessin du concept de dispositif est donc fait de façon à permettre de saisir à la fois La question est donc la même posé par Marx (2008) lorsqu’il aborde la production de la plus-value dans Le Capital, à savoir la question de la production des producteurs. 4

Nous employons subjectivation pour référer le processus global de production de sujets, qui se divise en deux processus plus stricts et opposés, celui de l’assujettissement, qui implique l’exercice d’un savoir ou d’un pouvoir (décrits par l’archéogénéalogie), et celui de la résistance, c’est-à-dire d’un contre-savoir et contre-pouvoir (la possibilité d’une an-archéologie) qui implique des pratiques de soi ou de singularisation – Foucault (2001, 1552) arrive à parler des « pratiques libération ». 5

6 L’articulation entre Foucault et Marx dans ce point a été bien saisie, dans le contexte des derniers développements de la théorie critique de la société, par Thomas Lemke (2007). 6

Volume 6 no 1

113


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

les rapports de pouvoir (production politique) les rapports de production (économique). En d’autres termes, l’évolution des modes de production est au fond l’évolution des dispositifs de savoir-pouvoir. Ainsi, l’optimalisation des disciplines est mise à point en fonction du déploiement du capitalisme, mode production auquel elles sont étroitement liées. Pourtant, à un moment donné de son évolution, c’est le capitalisme lui-même qui aura besoin de se libérer des contraintes du pouvoir disciplinaire pour aller audelà, pour s’auto-dépasser tout en restant cohérent à soi-même. Ce mouvement constitue la transition, décrite par Deleuze dans le Post-scriptum sur les sociétés de contrôle (1990), entre la société disciplinaire (capitaliste) et la société de contrôle (néocapitaliste). Malgré l’efficace incontestable des disciplines, il y a toujours quelque chose qui échappe, qui s’enfuit, qui résiste, un excédent de force qui reste indisciplinée et par conséquent ne parvient pas à être capitalisé. L’évolution politicoéconomique représentée par le néocapitalisme consiste, selon la logique de l’optimalisation performative, à rendre possible la capitalisation sur cela qui avait toujours été libre et sous-utilisée. En fait, Foucault (2004) montre que ce n’est pas une innovation, il s’agit plutôt d’une tendance de la pensée libérale, présente déjà chez ses fondateurs du libéralisme du XVIIIe siècle. La formule serait : « Comment contrôler la liberté au nom de la liberté ? En la produisant. » Le contrôle productif de la liberté est le résultat de l’évolution de rationalité de la pratique de gouvernement dont la généalogie s’identifie à celle du libéralisme. Son caractère biopolitique relève du fait que ces pratiques ne sont pas des genres de discipline, mais des pratiques ou des techniques de gestion de la vie. La transition de la société disciplinaire à la société de contrôle, ou encore l’accouplage des technologies de gouvernement aux technologies disciplinaires implique donc un recentrage de la méthode généalogique. Si dans Surveiller et punir (1975) il s’agit de la subjectivation du corps individualisé par les disciplines (le corpsmachine des individus), dans les cours de 1976 à 1979 il s’agira de la subjectivation le corps totalisé de la population (le corps-espèce des êtres humains). La biopolitique n’est rien d’autre que l’ensemble des techniques d’objectification de normalisation de la vie humaine en tant que population. Les politiques de santé publique, natalité, longévité, races, etc. sont des moyens de gouverner les aspects différents selon lesquels le sujet-objet « population » commence d’être forgé au XIXe siècle. D’où le lien entre la biopolitique au sens strict et la gouvernementalité, c’est-à-dire l’ensemble de pratiques rationnelles de gouvernement, les arts de gouverner qui visent, chaque moment, à produire de la vie utile. Le plus juste serait donc de parler,

Volume 6 no 1

114


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

à l’intérieur de la méthode généalogie, d’un moment disciplinaire et d’un moment biopolitique, ce dernier lié à une généalogie de gouvernementalité.7 Dans les trois cours que Foucault a prononcées au Collège de France entre 1976 et 1979, à savoir dans Il faut défendre la société (1976-1977) dans Sécurité, territoire, population (1977-1978) et dans Naissance de la biopolitique (1978-1979), se trouve l’essentiel de cette généalogie de la gouvernementalité. Quoique ces cours aient eu lieu pendant la deuxième moitié des années 1970, ils n’ont pas été connus par le grand public que lorsqu’ils sont apparus environ 30 ans plus tard, en 1997 et en 2004 – bien que les réflexions foucaldiennes autour de la biopolitique exercent des effets importants sur les recherches d’élèves italiens des cours des années 1970 comme Giorgio Agamben et Antonio Negri, célébrités au milieu académique depuis le début du XXIe siècle. Or, la publication de ces cours témoigne d’une relancée des études foucaldiennes qui a permis de réarranger ses pièces sur le tableau, en le rendant de nouveau l’actualité. La publication des cours de la deuxième moitié des années 1970 a impliqué, en fait, l’abandon du schéma dualiste qui opposait le pouvoir souverain au pouvoir disciplinaire (biopouvoir), au nom d’une triangulation qui met en perspective l’exercice du pouvoir en fonction des rapports entre le pouvoir souverain, le pouvoir disciplinaire et le contrôle biopolitique au sens strict. Dans ce contexte, Foucault fait sa seule incursion par l’histoire contemporaine en analysant, dans Naissance de la biopolitique, l’évolution récente du capitalisme à l’Atlantique Nord, attention spéciale consacrée au néolibéralisme, aussi allemand (ordolibéralisme) que nord-américain (école de Chicago). Pour nous, cette interprétation généalogique du néolibéralisme n’a pas encore épuisé sa capacité à produire des effets. Les analyses foucaldiennes des phénomènes de production simultanée de sujets et de capitaux, ainsi que celui de la formalisation de la société selon le modèle de l’entreprise (FOUCAULT 2004, 135-165) et celui de la subjectivation de l’homo œconomicus comme entrepreneur de lui-même (FOUCAULT 2004, 221-245), rendent une clef de lecture qui permet de repenser de manière décisive des questions pertinentes à la gestion de nos jours. Entre ces questions sont l’entrepreneuriat, le leadership, la responsabilité sociale et environnementale des entreprises (envers tous les stakeholders possibles), la consommation éthique, l’éducation écologique des manageurs et, de façon plus générale, le développement durable. Bref, qu’est-ce que cette « durabilité » dont parle tout le monde sinon une sorte de « parasitabilité », c’est-à-dire le déploiement d’une exploitation de la nature et de l’espèce humaine qui est à la fois moins intensive et plus durable et qui veut assurer aux générations futures un monde à exploiter ? D’ailleurs, cela est suggéré déjà par la manière dont le cours de 1977-1978 et celui de 1978-1979 ont été publiés en Allemagne, c’est-à-dire comme deux volumes d’une même Geschichte der Gouvernementalität (FOUCAULT 2006). 7

Volume 6 no 1

115


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

C’est donc à l’intérieur du cadre théorique de cette généalogie biopolitique de la gouvernementalité néolibéral que nous pouvons mieux saisir le mécanisme endogènique du néocapitalisme. Cela constitue l’essentiel de l’arrière-plan épistémologique sur lequel nous pouvons mettre en perspective la question de l’éthique de la gestion socio-environnementale. Toutefois, pour le faire, quelques ajustements de la méthode foucaldienne sont nécessaires.

Le danger du foucaldisme, résistance biopolitique et la généalogie du management Tout d’abord, il faut rester attentif vis-à-vis du danger de l’idéologisation de la pensée de Foucault, malgré lui. Le fait que Foucault ait toujours essayé de séparer son travail de la critique de l’idéologie, en remplaçant ce concept (qui suppose la binarité du vrai et du faux) par celui de dispositif (concernant plutôt aux effets de vérité des discours sur les sujets)8, n’a jamais suffi pour que sa pensée ne soit pas devenue une mode, le « foucaldisme ». Quoique les instruments conceptuels mis à point par les recherches foucaldiennes puissent servir à la construction de l’appareil de décodification du néocapitalisme capable de rendre compte de son aspect endogènique, le fait c’est que les idées de Foucault, surtout son éthique, peuvent et sont parfois endogènisées par les formations du savoir qui nourrissent le nouvel esprit du capitalisme. En grande mesure, on trouve dans la littérature autour de Foucault l’hypertrophie de ce qui a déjà été appelé « le club des amis de la subjectivation » (LEGRAND 2004, 27), c’est-à-dire ceux qui sont toujours prêts à proposer des audaces subjectivations expérimentales libres aux endroits plus improbables et qui parviennent à mélanger le zen-budéisme à la stylistique de l’existence pour écrire des modes d’emploi de l’éthique à l’usage des manageurs RH. Ces absorptions de la pensée de Foucault ne cessent pas d’engendrer de faux problèmes tels que : « comment ne pas être disciplinés ? », « comment échapper à la vigilance panoptique ? », « comment résister à l’assujettissement aux normes ? » (LEGRAND 2004, 28), auxquels nous ajouterions : « comment s’enfuir du contrôle au grand air ? », « comment s’autogérer dans un monde gouvernementalisé ? », « comment produire de la vie au-delà du biopouvoir ? ».

Celui-ci est le point d’opposition entre Foucault et Marx qui est souvent mal compris par les interprètes, soit ceux qui veulent les approcher, soit qui veulent les séparer. 8

Volume 6 no 1

116


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

Ce genre de question est caractéristique d’une appropriation éclectique qui fait de Foucault le philosophe de la liberté pour y appuyer des modèles de subjectivation émancipatoire. À cet égard, un exemple très intéressant est l’appropriation de la pensée de Foucault par une école de sciences de la gestion née au Royaume Uni, aux années 1990, comme réponse à la montée du néoconservatisme postérieure au Consensus de Washington et, puis, cultivée dans tout le monde anglophone, y compris le nord de l’Europe, à savoir les Critical Management Studies (CMS). En participant de la vague des Critical Studies, les CMS tiennent en fait son point de départ dans une interprétation de la théorie critique de la société, pour se rendre compte bientôt que ce n’est pas l’approche plus complète des questions du pouvoir et de la subjectivité dans le monde du travail. Ils effectuent donc un déplacement épistémologique afin d’opérer une incorporation de la manière foucaldienne de penser ces questions permettant d’avancer vers un stage réflexif plus élevé. Il s’agira ainsi d’abandonner la perspective marxiste pour développer une conception polycentrique ou microphysique des rapports de pouvoir à l’endroit de travail, ce mouvement contenant un potentiel émancipatoire dans la mesure où il ouvre à l’individu, ensoi libre, les fronts de la résistance à l’intérieur même de l’entreprise. Ainsi, les CMS pensent d’aller au-delà de Foucault dans le sens de la promotion de l’émancipation au sein du marché (ALVESSON e WILLMOTT 1992). La dépêche à faire de Foucault un penseur de l’émancipation, exemplifiée par les CMS, semble oublier que la généalogie est une méthode historique, pour employer le mauvais mot, « neutre », c’est-à-dire est une méthode aux intentions descriptives, non pas fondationnelles ou transcendantales, la critique découlant de l’analyse des empiricités, non pas de l’irréalisation d’un cadre de principes à priori. Plutôt que du réalisable, il s’agit, à la fois pour l’archéologie et pour la généalogie, de la réalité qui, soumise à la description disséquant exhaustivement documentée, peut en fait devenir inacceptable.9 D’où la résistance. Autrement dit, l’archéologie du savoir n’est une critique des à priori historiques que dans la mesure où elle en fait l’archive sans en proposer d’emblée un substitut. À cet égard, Foucault parlait d’un « positivisme heureux » de l’analyse archéologique, que ne tient pas à démontrer la vérité des faits, mais à montrer comment les faits deviennent des vérités (FOUCAULT 1969, 165). La généalogie ne fait que continuer le même geste en ce qui concerne les rapports de pouvoir constituant des régimes de vérité qui gouvernent la vie. D’où le nominalisme de base de ce qui peut être appelé l’archéogénealogie (DAVIDSON 1991), c’est-à-dire un genre de discours analytique qui, au lieu de partir des universaux historiques, demeure dans un scepticisme, qui ne croit qu’aux cas, aux exceptions, aux détours, aux particularités.

9

En ce sens, Boltanski (2008) parle en « rendre la réalité inacceptable ».

Volume 6 no 1

117


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

Ainsi, plutôt que de faire du foucaldisme en posant les choses d’emblée en termes d’émancipation et de propositions de modèles de subjectivation libre, avant de passer à la construction d’une expérience éthique de soi dissociée des injonctions des rapports de pouvoir, la résistance est d’abord liée, chez Foucault, à tout un effort de déconstruction épistémique. Il s’agit donc d’une sorte d’anarchisme théorique, qui tente de déconstruire l’édifice des dispositifs de savoir-pouvoir décrit selon la méthode archéogénéalogique par le moyen d’une attitude de contre-conduite. Anarchéologie, selon il l’explicite dans le cours Du gouvernement des vivants (FOUCAULT 2011). Cela ne veut pourtant pas dire qu’il n’est pas possible d’utiliser Foucault dans une expérience de libération authentique, comme sa propre pensée l’indique, mais que l’utilité à donner à une pensée comme celle de Foucault est tout d’abord critique. C’est en fait à l’égard de telle tâche que ses instruments conceptuels acquièrent leur fonctionnalité et c’est donc par-là que leur pertinence doit être évaluée. Par ailleurs, il ne s’agit pas d’affirmer qu’il ne soit pas possible de surmonter ce que Foucault a été capable de faire. L’actualité de la recherche autour de la biopolitique repose sur le fait qu’aujourd’hui plusieurs auteurs – parfois des anciens élèves des cours de Foucault aux années 1970 – sont en train de développer des travaux autour des questions et d’employer les outils épistémologiques introduits visà-vis des problèmes contemporains de la biopolitique et de la gouvernementalité. Entre les interprétations de la généalogie du pouvoir faites aujourd’hui par les auteurs qui veulent conjuguer Foucault à une certaine lecture de la tradition marxiste notamment liée au mouvement ouvrier italien (des auteurs comme Antonio Negri & Michael Hardt et Maurizio Lazzarato) se trouvent les prolongements, en fait, plus intéressants du travail de la critique de l’archéogénéalogique. Ceux auteurs proposent de penser la biopolitique au-delà des formes de la surveillance et du contrôle, comme des formes de résistance, comme une puissance capable de produire de la vie en dehors et en opposition au biopouvoir, comme bio-puissance de la multitude résistant à l’Empire (NEGRI e HARDT 2001). Évaluer la justesse exégétique de cette interprétation ainsi que sa possibilité en ce qui concerne la question de construction des moyens d’organisation qu’une telle puissance doit utiliser pour dépasser le spontanéisme et le réactivisme de la politique du blocage serait donc nécessaire, pourtant nous n’y avons assez d’espace que pour l’indiquer.

Volume 6 no 1

118


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

En tout cas, il faut reconstruire la généalogie de la gouvernementalité afin de montrer toutes les dimensions du problème. Foucault bâtit sur base d’un tête-à-tête constant aux sciences humaines. Dans le cas de la généalogie de la gouvernementalité libérale, l’interlocution est entretenue surtout avec l’économie, le droit et la science politique. Or, c’est assez curieux qu’il n’y ait pratiquement pas de mention, dans les cours de la deuxième moitié des années 1970, à un des savoirs chargés de la question du gouvernement, au moins depuis la fin du XIXe siècle : la science de la gestion. Pour en trouver une analyse bien détaillée et documentée en abondance, il faut en fait à l’étude de Luc Boltanski et Ève Chiapello sur le nouvel esprit du capitalisme (1999) qui d’ailleurs, à certains égards, exprime la crise de la pensée 68. On sait bien qu’une reconstruction de la généalogie de la gouvernamentalité néolibérale implique l’usage d’un cadre conceptuel tout à fait différent de celui mis en œuvre par Boltanski et Chiapello, plutôt attachés à une sociologie pragmatique (à l’inspiration de Weber, plutôt que de Nietzsche, et de Bourdieu) et à la critique des idéologies. Nous avons trouvé nonobstant quelques procédés opérant dans cet ouvrage, à l’exemple de son analyse comparative du corpus de la littérature managériale des années 1960 à celui des années 1990 – ainsi que travail exemplaire en ce sens est celui de Vincent de Gaulejac (2005) sur la « société malade de la gestion » – qui nous ont étés très utiles.10

Pistes pour décodifier l’éthique de la gestion socio-environnementale La tâche ne consiste donc pas simplement à reconstruire la généalogie de la gouvernementalité à travers une mise à jour des analyses que Foucault faisait porter sur la littérature en économie, droit et sciences politiques des années 1970 (bien qu’il faille voir, du point de vue de la généalogie, ce que disent ces sciences aujourd’hui). Cette reconstruction implique d’appliquer les instruments de la recherche généalogique à une formation de savoir différente de celles que Foucault a étudiées, c’est-à-dire à la science da la gestion. Il s’agit donc de faire une généalogie du management sur base d’une analyse comparée des corpora de la science de la gestion tantôt des années 1970 (sur lesquels Foucault aurait pu porter), tantôt des années 1990 et 2000, qui concernent directement le temps présent.

Un autre travail exemplaire en ce sens est celui de Vincent de Gaulejac (2005) sur la « société malade de la gestion ». 10

Volume 6 no 1

119


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

Pourquoi aborder la science de la gestion et non pas l’économie, ou encore l’école de Law and Economics, évolution de la pensée à la fois juridique et économique, qui met à jour nombre de thèses (notamment celles de l’ordoliberalisme) que Foucault analyse dans Naissance de la biopolitique, si notre but est de reconstruire la généalogie de la gouvernamentalité biopolitique ? Pourquoi établir une interlocution critique avec un domaine scientifique si destitué de prestige philosophique qui pourrait même passer par un savoir insurrectionnel ? S’il est juste de dire que la science de la gestion est une formation de savoir transdisciplinaire dont la conceptuelle dépend d’autres sciences, comme l’économie, la science politique ou le droit, il est impossible de dénier les effets de vérité que le discours managérial opère en direct sur grand nombre de sujets chargés de fonctions de gestion, en général les plus laborieux d’entre eux. L’enseignement des compétences de la gestion est de plus en plus répandu et transversalité, à l’instar de l’expansion des MBAs (Master in Business Administration) dans tous les domaines. De même que l’on peut dire que l’économie est une science équipée, comparativement, de résilience épistémologique davantage, on peut dire que la science de la gestion a, aussi en comparaison, de la performativité, en tant que capacité à produire des effets, davantage et sur un public cible plus nombreux. Dans le contexte présent, nous ne pouvons qu’indiquer la nécessité d’une analyse sérieuse de l’éthique incluse dans le corpus bibliographique des sciences de la gestion. Cela permet à la fois de se centrer sur la portion, pour ainsi dire, plus philosophique de ce domaine et de toucher secondairement des questions économiques, juridiques et politiques. Nous y voyons se former, quoique encore sans le connaître les détails, à travers la grille d’analyse offerte par la généalogie de la gouvernamentalité biopolitique, une éthique de la gestion aux prises avec les dernières tendances de la pensée sociale et environnementale qui peut être considéré une éthique néocapitaliste. Voilà cela de qu’il s’agit de décodifier.

Bibliographie AGAMBEN, Giorgio. Qu’est-ce qu’un dispositif ? Paris : Rivages, 2007. ALVESSON, Mats; WILLMOTT, Hugh (eds.). Critical Management Studies. London : Sage, 1992. BOLTANSKI, Luc. Rendre la réalité inacceptable. Paris : Demopolis, 2008. BOLTANSKI, Luc ; CHIAPELLO, Ève. Le nouvel esprit du capitalisme. Paris : Gallimard, 1999. DAVIDSON, Arnold. “Archeology, Genealogy, Ethics.” In: Foucault: A Critical Reader, por HOY, David (ed.). Malden: Blackwell, 1991, pp. 221-233.

Volume 6 no 1

120


Biopolitique et Neocapitalisme. Foucault et l'ethique de la gestion socio-environnementale, pp. 109-121

DELEUZE, Gilles. Pourparlers. Paris: Minuit, 1990. __________. Foucault. Paris: Minuit, 1986. FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II : 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001. __________. Do governo dos vivos: Curso no Collège de France (1979-1980): excertos. 2.ed. Tradução: N. Avelino. Rio de Janeiro: Achiamé, 2011. __________. Geschichte der Gouvernementalität. Band I: Sicherheit, Territorium, Bevölkerung. Band 2: Die Geburt der Biopolitik. Frankfurt a.M. : Suhrkamp, 2006. __________. Histoire de la sexualité, vol. 1 : La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976. __________. Il faut défendre la société (1975-1976). Paris: Gallimard, 1997. __________. Naissance de la biopolitique (1978-1979). Paris: Gallimard, 2004. __________. Sécurité, territoire, population (1977-1978). Paris: Gallimard, 2004. GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação: introdução e conexões a partir de Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. GAULEJAC, Vincent de. La société malade de la gestion : idéologie gestionnaire, pouvoir managérial et harcèlement social. Paris : Seuil, 2005. LAZZARATO, Maurizio. Les révolutions du capitalisme. Paris : Empêcheurs de Penser en Rond, 2004. LEGRAND, Stéphane. “Le marxisme oublié de Foucault.” Actuel Marx (P.U.F.) v. 2, n. 36 2004, pp. 27-43. LEMKE, Thomas. Bio-politics: an Advanced Introduction. New York, London: New York University Press, 2011. MARX, Karl. Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Bd. 1. 33.ed. Berlin: Dietz, 2008. NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Empire. Harvard University Press, 2000. PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. SENNETT, Richard. The Culture of New Capitalism. New Haven: Yale University Press, 2005. SILVEIRA, Rafael. Michel Foucault – Poder e análise das organizações. São Paulo: Ed. FGV, 2005. ZIZEK, Slavoj. The Event: Philosophy in Transit. London: Penguin, 2014

Volume 6 no 1

121


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra Luciana Ribeiro Conz1 Paulo Henrique Albuquerque do Nascimento2 Resumo: Considerando a função da filosofia de enriquecer a compreensão que os indivíduos e a sociedade têm de si mesmos, bem como seu exercício de questionamento acerca do nosso tempo presente, este ensaio traz as contribuições de Nietzsche e, de forma lateral, algumas contribuições de Michel Foucault, numa discussão voltada para o campo da saúde. Os apontamentos são direcionados para qual concepção de saúde tem sido produzida em algumas políticas discursivas da saúde pública no Brasil, a fim de que seja possível fazer uma problematização ética sobre as práticas e valores sobre a saúde que já produzimos e viabilizar novas formas possíveis de uma saúde outra, que se amplia através da multiplicidade e da experimentação. O legado da interrogação deixado pelos referidos filósofos disparam importantes rompimentos para com a tradição normativa sobre corpos e saúde, que homogeneíza e serializa os seres humanos, algo bastante vigente em nosso contemporâneo. Neste sentido, pensar uma saúde outra se faz como necessário mecanismo de tensionamento Mestranda em Psicologia na Universidade Federal do Ceará. Especialista em Saúde Coletiva pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 1

2

Mestrando em Psicologia na Universidade Federal do Ceará.

Volume 6 no 1

122


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

às unanimidades e pretensas formas de saber hegemônicos, que incidem sobre o corpo e produzem subjetividades de maneira normativa, através de um determinado parâmetro de promoção de saúde. Palavras-chave: Nietzsche, Foucault, corpo, saúde outra.

Abstract: Considering the function of the philosophy in enriching the understanding that individuals and society have of themselves, as well as their exercise of questioning about our present time, this essay brings the contributions of Nietzsche and, in a lateral way, some contributions of Michel Foucault, in a discussion focused on the field of Health Care. The notes are directed towards which conception of health has been produced in some discursive policies of public health in Brazil, so that it is possible to do an ethical problematization about the practices and values about health that we already produce and call attention to new and possible forms of another health that expands itself through multiplicity and experimentation. The legacy of the interrogation left by these philosophers triggers important disruptions to the normative tradition on bodies and health, which homogenizes and serializes human beings, something quite current in our contemporary. In this sense, thinking about health is another necessary mechanism of tensioning the unanimous and supposed hegemonic forms of knowledge, which affect the body and produce subjectivities in a normative way, through a certain parameter of health promotion. Keywords: Nietzsche, Foucault, body, another health.

Comecei uma dieta, cortei a bebida e comidas pesadas e, em 14 dias, perdi duas semanas. Tim Maia

Introdução

A

imagem de pensamento instaurada pelos filósofos Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Michel Foucault (1926-1984) se constituem como importantes disparadores de questionamentos e rompimentos com uma tradição filosófica ocidental clássica, balizada por diversas hierarquias, naturalizações e dicotomias, sendo a dicotomia corpo/mente uma delas. E é sobre essa última que o presente ensaio pretende tangenciar, tomando alguns recortes do funcionamento da política pública de saúde no Brasil, problematizando algumas possíveis reatualizações da dicotomia corpo/mente no funcionamento dessa política de saúde e no modo como passa a moldar corpos e subjetividades. Nietzsche buscou combater os valores tradicionais de sua época mas que até os dias atuais encontram-se como base da valoração de um determinado tipo de

Volume 6 no 1

123


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

corpo e de uma determinada forma de entender a saúde, lançando mão de análises extemporâneas, disruptivas e agonísticas. Algumas dessas concepções dos valores tradicionais estão ancoradas por uma filosofia do sujeito ou mesmo por uma cisão entre o que seria biológico versus cultural, individual versus social. Para tanto, no intuito de problematizar uma normativa atual sobre a noção de corpo bem como uma determinada concepção de saúde - que homogeneíza e serializa os seres humanos, padronizando formas de existência-, utilizaremos alguns conceitos dispostos por Nietzsche, a fim de fazê-los funcionar em outros campos, atualizando seus conceitos ferramenta, numa reflexão crítica sobre nosso tempo presente, tomando como especificidade a produção de corpos e subjetividades, a partir de uma modelo de saúde que se faz hegemônico nas políticas públicas de saúde. Desse modo, o presente texto tem como objetivo não só lançar mão da crítica nietzschiana acerca da noção de corpo e de saúde, como também pensar essa crítica para além de campos não enveredados pelo filósofo. Nesse caso, o intuito aqui é muito mais de pensar com Nietzsche, do que escrever sobre Nietzsche. O recorte será especificado para alguns apontamentos acerca da política pública de saúde vigente, atentando para seu construto histórico, a fim de que seja possível analisar alguns mecanismos do que denominamos pausterização dos corpos, de gestão da vida, das formas de existência, a partir de algumas práticas discursivas e não discursivas na política pública de saúde e toda a maquinaria em torno dela que acabam por blindar alguns processos de singularização e as multiplicidades da existência. No caso, apontará algumas descontinuidades no que se referem ao conceito de saúde que estaria oposto à noção de doença, mas também lançará mão de análises que questionam uma outra forma possível de binarismo que seria a de vida versus morte, quando a noção de saúde parece, às vezes, confundir-se com a noção de vida.

As questões de saúde no Brasil e a aproximação entre este conceito e o conceito de vida. Durante o período colonial, a organização sanitária brasileira era subordinada à metrópole, o que só mudaria com a vinda da família real para o Brasil em 1808. Houve a partir daí uma reorganização das instituições sanitárias, de modo que os municípios passaram a ser responsáveis pela saúde pública, entretanto, em casos de problemas mais complexos, as medidas sempre eram pensadas e tomadas pelo governo central.

Volume 6 no 1

124


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

[...] ao final do Império, era rudimentar e centralizada a organização sanitária brasileira, incapaz de responder às epidemias e de assegurar a assistência aos doentes, sem discriminação. As pessoas que dispunham de recursos eram cuidadas por médicos particulares, enquanto os indigentes eram atendidos pelas casas de misericórdia, pela caridade e pela filantropia. Com a proclamação da República, a responsabilidade pelas ações de saúde passou a ser atribuída aos estados. [...] Durante a passagem do século XIX para o XX, início da industrialização do Brasil, a saúde despontava como questão social, ou seja, como um problema que não se restringia ao indivíduo, exigindo respostas da sociedade e do poder público (PAIM, 2009, p. 27).

Naquele período, o modelo de políticas públicas de saúde era o modelo do assistencialismo, com políticas desconexas, no qual somente em casos extremos o Estado interviria nas questões de saúde, pois esta não era considerada um direito da população (PAIM, 2009). A partir dos anos de 1930, o modelo passa a ser o modelo de seguro social, que se iniciou com a medicina Previdenciária. Mas, o direito à saúde ainda não estava vinculado à condição de cidadania, não se constituindo nem como um direito (PAIM, 2009. p. 33). Em 1980, inicia-se o movimento de reforma sanitária, que vai ter culminância na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), depois da histórica VIII Conferência Nacional de Saúde (1986), a partir da qual o conceito de saúde se desprende do termo doença. Nesse cenário, é possível analisar que o campo institucional formalizado em torno da saúde começa a repensar o que significa esse conceito de saúde, que anteriormente era tratado somente como ausência de doença. E isso não vem a ser um movimento isolado no Brasil, mas atravessado também pelo movimento da Reforma Psiquiátrica que se deu em maior força em países como Itália e França, ganhando ressonâncias também no campo da saúde mental no Brasil (PAIM, 2009). Com efeito, a criação do SUS também esteve em consonância com um movimento político de resistência e atrelado ao processo de redemocratização do país, após a experiência com o regime da Ditadura Civil-Militar (1964-1985). Assim, a criação do SUS não pode ser analisada somente a partir do campo da saúde, mas como um movimento de questionamento às formas totalitárias de governo, na reivindicação por maior participação popular nas formas de gestão, bem como por maior acesso à saúde, educação, habilitação e na busca por maior estado de bemestar-social, de um modo geral. Destarte, o Brasil começou a aplicar o modelo de seguridade social, que tem como mudança primordial a consideração da saúde

Volume 6 no 1

125


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

enquanto direito de todos e dever do Estado, conforme explícito na Constituição Federal do Brasil (1988). As diretrizes fundamentais do SUS, de acordo com o ABC de doutrinas e princípios (1990), se norteiam pelos seguintes preceitos: Universalidade, Equidade e Integralidade. Com acentuada relevância para esta explanação, o princípio de integralidade, ainda segundo esse documento, apregoa uma concepção de indivíduo como um todo indivisível e por extensão associa uma imagem de saúde que também se propõe compreender toda essa complexidade. Associado à integralidade e para fundamentá-la, aparecem produções sobre colaboração interprofissional, que consiste na prática de interdisciplinaridade dentro dos centros de saúde, de modo a considerar o beneficiário do serviço de maneira global. Cada vez mais, o SUS abre espaço para este tipo de prática, tendo fundado em 2008 o NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Este núcleo é constituído por uma equipe de profissionais da saúde que não compõem a equipe básica de saúde da família (médico, enfermeiro, técnico em enfermagem e agente de saúde) e que assistem aos Centros de Saúde da Família - CSFs. Outra das bases fundamentais do SUS é o controle social, através do qual a população, em tese, tem condição de participação ativa nas decisões tomadas com relação às questões de saúde nos municípios. Através dessa contextualização, percebemos que algumas práticas de promoção de saúde parecem invadir todos os âmbitos da vida dos sujeitos, de modo que os termos saúde e vida, no SUS, estão intimamente entrelaçados. Outro ponto interessante é que muitas vezes essa vida de que se fala é medida por meio da morte. As formas de majorar a vida parece tomar muito mais a morte como parâmetro. A produção da vida por um adiamento da morte, entendendo essa morte como uma morte biológica. Isso pode ser percebido através da análise dos índices fundamentais para as práticas no âmbito da saúde: índices de mortalidade infantil, índices de morte da juventude negra, formas de prevenção ao suicídio, taxas de longevidade, além de que as principais políticas de promoção de saúde se baseiam nas maiores causas de morte para eleger seus focos. A promoção de saúde parece estar atrelada a uma prevenção da morte.

Saúde/doença – morte/vida: rompendo dicotomias ou instaurando novas?

Volume 6 no 1

126


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

O conceito vigente de saúde pode ser recortado aqui na concepção da Organização Mundial de Saúde (OMS), bem como na política pública de saúde no Brasil, que toma o Sistema Único de Saúde como ponto de convergência. No campo da saúde no Brasil, por exemplo, trabalha-se com a perspectiva da integralidade e essa proposta está relacionada à noção da saúde. Segundo a OMS (1978), saúde é um perfeito estado de bem estar físico, social, psicológico, econômico e espiritual. É interessante atentar como esse regime discursivo da saúde pode englobar diversos campos, às vezes, aparentemente, tão distantes, mas que se avizinham a partir do efeito unitário que esse conceito apresenta. O SUS opera no Brasil com um conceito similar, de modo que as práticas de promoção de saúde assumem uma amplitude tal que intencionam, escoam (para) e invadem todos os aspectos da vida dos indivíduos. Entende-se que essa perspectiva da adoção do conceito de saúde, agora abordada numa maior amplitude, passa a não mais dar conta somente de um antagonismo a uma doença neural, anatômica ou fisiológica, mas que diz respeito a vários outros aspectos que são tidos como constituintes do sujeito, como o social, o psicológico, o cultural, dentre outros. Desse modo, há uma aproximação entre essa nova perspectiva de se entender o que vem a ser saúde e a conceituação que se faz sobre vida, ou pelo menos do que seria uma vida saudável. Isso não significa numa desqualificação desmedida à concepção de saúde operada pelo SUS, bem com a uma desqualificação a tudo que seja direcionado por ele, visto que compreendemos que o processo de privatização da política pública de saúde, bem como as atuais investidas governamentais em prol de minimizar os seus recursos, desmantelando-o, constituem um retrocesso a uma série de conquista dos movimentos sociais e das políticas públicas em geral, a fim de torna-la cada vez mais um tipo de serviço que pode ser vendido para determinados clientes, numa lógica empresarial. Entretanto, mesmo podendo ser compreendido nesse âmbito progressista, essas políticas de saúde, quando compreendidas com o objeto de prevenir a morte biológica como modo pensar a existência, devem ser problematizadas fazendo ecoar uma desnaturalização da legitimidade que os discursos da saúde tem assumido em nossa sociedade. Essa é uma forma de destoar das padronizações embutidas na circulação de discursos como “O ministério da saúde adverte”, “Isso é bom para sua saúde”, de modo a questionar muito mais esse lugar de autoridade e legitimidade que a categoria tem se instalado com forma de gestar a existência, moldar corpos e subjetividades. Essa forma de questionamento pode ser melhor visualizada quando tomamos como referência alguns valores que são adotados na nossa contemporaneidade,

Volume 6 no 1

127


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

mesmo que se fale que vivemos uma crise dos valores culturais. É o que Costa posiciona, afirmando que: A virtude moral deixou de ser o único padrão de vida reta e justa. Agora, o Bom ou o Bem também são definidos pela distância ou proximidade da ‘qualidade de vida’, que tem como referentes privilegiados o corpo e a espécie. [...] O cuidado de si, antes voltado para o desenvolvimento da alma, dos sentimentos ou das qualidades morais, dirigem-se agora para a longevidade, a saúde, a beleza e a boa forma. Inventou-se um novo modelo de identidade, a bioidentidade, e uma nova preocupação consigo, a bioascese, nos quais o fitness é a suprema virtude. Ser jovem, saudável, longevo e atento à forma física tornou-se a regra científica que aprova ou condena outras aspirações à felicidade (COSTA, 2004, p. 191).

Costa ainda acrescenta que essa produção da bioidentidade está inserida num contexto da Bioética, a qual “se tornou o correlato moral do ideal natural da qualidade de vida.” (2004, p. 191). Nesse contexto, vê-se que tipo de relação pode ser feita entre essa “boa forma de agir” e as significações atribuídas ao que vem a ser a promoção de saúde, no campo das políticas públicas de um modo geral. A boa forma de agir seria aquela que segue a normativa da boa saúde, a normativa de prevenir tudo aquilo que poderia agravar as forças produtivas do corpo e leva-lo à morte biológica. Ou seja, partindo dessa ideia que a nova conduta a ser seguida deve ser regida pela lógica da saúde do corpo e do bem-estar da “mente” 3, instauram-se diversos dispositivos que embasam e justificam variados discursos que retroalimentam esse modo de agir. É o que ocorre, por exemplo, nas influências midiáticas articuladas ao discurso científico como mecanismos de otimizar seus interesses de venda de determinados produtos e práticas de consumo, fazendo esse discurso da saúde ser cada vez mais capilar. Fala-se de produtos para saúde dos cabelos, saúde das unhas, saúde dos rins, saúde dos pés, num esquartejamento do corpo e segmetarização da vida. Assim, apesar de haver um rompimento com a noção de corpo x mente em muitas dessas práticas e discursos de saúde, não se estaria formulando outras formas de cisão, outras formulações hierárquicas que passam a desqualificar determinados modelos de vida? E isso pode ser percebido também na propagação de programas televisivos que convidam médicos, psicólogos, nutricionistas, educadores físicos, dentre outros, 3

O termo mente aqui empregado está relacionado à lógica da integralidade, princípio fundamental do SUS.

Volume 6 no 1

128


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

em nome do “Bem estar”4 e da “Medida Certa”5 , que cada vez mais são reconhecidos como especialistas e assumem um lugar de fala, legitimidade e autoridade para produzir efeitos de verdade nas formas de gestão da vida, sobre os alimentos que devem ser ingeridos, o horário que devem ser consumidos, nas formas de vestir, dormir, a quantidade de horas que se deve dormir, o que calçar, o que e quanto beber... Todo um campo de incidência que produz um corpo, uma fabricação que materializa uma forma de existência, produz subjetividades, mas, entretanto, trata-se de uma produção que já está esquadrinhada previamente com o intuito de blindar o espaço para o aparecimento do novo, para a diferença, para o intempestivo e o fugidio. E tudo em nome de uma suposta boa saúde, da boa forma de existir, de agir, de pensar. Essas características se embasam na perspectiva de que aqueles que não estão enquadrados na boa forma de agir são considerados problemáticos. E são neles que a saúde pública vem a se basear com maior intensidade nos princípios da prevenção, de antecipação à própria doença, produzindo modos de gerir a vida, tendo como referência os princípios da boa alimentação, na justificativa para se praticar exercícios e como fazê-los, o porquê em optar por não usar drogas, ou se usá-las, usálas da forma menos prejudicial à saúde - apenas para citar alguns exemplos. Tendo dimensão de toda essa temática abordada, vê-se o pressuposto de dever assumir a conduta da boa forma de agir é fator inquestionável. Por que fazer/ não fazer algo tendo como justificativa dizer que esse algo irá afetar/beneficiar a saúde é uma justificativa que quase sempre não admite irrefutabilidade? Por que, cada vez mais, os discursos estão produzindo esse tipo de agenciamento? Quais efeitos esse tipo de dispositivo produz ao adotar a postura do politicamente correto a partir do ideal de saúde? Como essa lógica da primazia da saúde assume uma configuração ontológica em que não se pode pensar numa crítica? Tudo isso gera um maquinário de organização das ações humanas, de tal modo que: Qualquer comentário sobre hábitos alimentares, por exemplo, desencadeia, em geral, uma tagarela, bizarra e infatilizada competição sobre quem faz mais exercícios; quem come menos gordura; quem é capaz de perder mais quilos em menos tempo; quem deixou de fumar

Termo que também faz alusão ao programa da Rede Globo, rede aberta de televisão, que tem o intuito de apresentar, de maneira informal, ao público, assuntos diversos relacionados à saúde, trazendo ainda, em cada edição do programa, especialistas para tratar da temática da saúde eleita na ocasião. 4

Faz alusão à competição organizada pelo programa televisivo Fantástico, também da rede Globo de televisão, em que havia o incentivo e o acompanhamento de especialistas para que os participantes da competição percam peso e entrem na “medida certa”. No caso, aqueles que mais se adequam a tais medidas ganham a competição. 5

Volume 6 no 1

129


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

há mais tempo; quem ingere mais vegetais, alimentos e fármacos naturais etc. [...] Os que não aceitam jogar o jogo são vistos como problemáticos, do ponto de vista emocional, já que se entregam, sem escrúpulos, à autodestruição física e moral. Afinal, pensamos, sem a boa forma, não teremos oportunidade alguma de ser vencedores. O mal do século é o mau do corpo (COSTA, 2004, p. 200).

Tomando todo esse modo de inscrever as problemáticas investigativas acerca do nosso tempo presente, como então pensar outros modos de existência, de experiências do viver, nesse contexto de espraiamento de práticas e discursos em torno da saúde? Trata-se somente de negar tais modelos normativos, mas de fazê-los ecoar por outras perspectivas, entendo que essa padronização não é um processo que pode ser visto como dominação absoluta. E isso o que a filosofia nietzschiana pode nos ajudar a pensar, seguir questionando e formular outros modos de posicionar algumas reflexões sobre nosso tempo presente.

O que o pensamento de Nietzsche e Foucault nos dá a pensar sobre corpo e saúde? Na obra nietzscheana, é possível encontrar alguns indícios de formulação crítica das noções de corpo e saúde, colocando em questão o ponto de vista da tradição da filosofia ocidental, e lança mão de uma nova perspectiva para pensar o corpo e a saúde, o que contribui para uma visão mais afirmativa sobre o homem e o mundo (PEIXOTO, 2010), sendo possível atribuir formas outras de pensar a relação com o corpo, com a saúde e os processos de subjetivação engendrados e atravessados pelos encontros dessas relações. Ao pensarmos o papel da filosofia de enriquecer a compreensão que os indivíduos e a sociedade têm de si mesmos, trazer Nietzsche para a discussão de quais perspectivas de saúde almejamos romper e/ou produzir, permite criar uma problematização ética sobre os discursos e práticas sobre a saúde que já produzimos. Os seus questionamentos formulados há mais de um século revelam-se incrivelmente relevantes na sociedade atual e podem contribuir na criação de novos e singulares modos de efetuarmos saúde. Nietzsche foi um dos primeiros filósofos a contrariar a noção dualista de corpo e mente tão tradicional na Filosofia, instaurada com maior força na figura de Descartes. Nietzsche coloca o corpo como problema de primeira ordem, afirmando que tudo, inclusive os valores, começam por ele, e discorda de uma metafísica onde há um espírito separado da fisiologia corporal. Ele devolve o “fora” do pensamento quando diz que só pensamos enquanto acontecemos e o contrário disso seria apenas

Volume 6 no 1

130


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

imaginação. Para Nietzsche, a civilização reprime aspectos vitais do corpo por meio do princípio de autoconservação e desenvolve uma concepção de corpo como uma configuração instável, um ajustamento hierarquicamente estruturado de uma multiplicidade de impulsos em combate. Para Nietzsche, “a consciência é um órgão como o estômago” (NIETZSCHE, 2013, p.51) e diz que “esta pequena razão que chamas de ‘espírito’, meu irmão, é apenas um instrumento de teu corpo, um instrumento bem pequenino, um joguete da tua grande razão” (Ibidem). Quando ele faz uma genealogia da moral, percebe que ao longo da história da humanidade o homem atribuiu o seu desejo a uma falta, desejando sempre algo e a partir do momento que procura preencher essa falta e não consegue, remete-se a um ideal, à falta de algo que não existe na vida. Recorre a uma instância maior que hipoteticamente preencheria esse vazio, como a um Deus, mas também a ciência e/ou a lei (NIETZSCHE, 1998). Justamente por entender pensamento enquanto acontecimento, esse modo de viver nega a vida enquanto acontecimento e separa o ser humano da capacidade de experimentar, deixando-o assim ausente de sua vivência. Nesse arranjo, o homem apenas está a imaginar e não está a pensar e a experimentar porque para isso ele precisaria agir, contudo, está preso a um ideal, a uma imagem, abdicando da experiência como algo desacoplado e passado. O homem se vê inacessível a essa experiência porque só consegue enxergá-la quando ela já passou (KLOSSOWSKI, 2010). Quando o homem começa a viver em sociedade e a desenvolver políticas de estruturação e controle dessas sociedades, ele precisa criar regras e ideais comuns, e para isso ele cria uma moral comum a todos, que liga o estilo de vida ao que ela deve, é como se a vida lhe fosse dada como um presente e por isso o homem devesse algo por tê-la (FUGANTI, 2008). E como um presente valioso, ele se sente no dever de protegê-la, de mantê-la com medo de gastá-la ou perdê-la. Segundo Pierre Klossowski (1905-2001), filósofo que estudou os pensamentos de Nietzsche, esta é uma vida pobre, infeliz e reativa porque apenas reage ao que se passa e não têm força para criar e estilizar a própria existência. Contudo, percebe também que é necessário libertar essa vida desse aprisionamento e restituir esse homem de sua potência, sair da idéia do que o homem deve para que o homem pode (KLOSSOWSKI, 2010), na saída de um registro meramente prescritivo para um registro das possibilidades do existir, experienciar, viver. Ou seja, buscar as forças ativas que o corpo tenha, mas que por diferentes motivos, estejam aprisionadas e despotencializadas.

Volume 6 no 1

131


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

Aqui poderíamos pensar brevemente como esse princípio da autoconservação apontado por Nieztsche também não poder ser compreendido no funcionamento de muitas das práticas de saúde que tomam a morte como algo a se prevenir. Ao mesmo tempo, não queremos fazer com isso uma apologia à morte, ao suicídio, mas muito mais questionar que modelo de existência é esse que parece ser medido pela morte, ou pela ausência da morte, mas uma morte biológica do corpo e não uma morte da potência e aprisionamento do viver. Este novo estado será agora de inconstância, já que o principal não será mais a conservação da vida, mas a experimentação ativa. Desta forma, Nietzsche coloca como necessária a tensão entre o corpo e o Caos, afirmando que é a partir deste encontro que os impulsos afloram e a criação acontece. Surge então, antes de mais nada, uma maquinaria que Nietzsche tem prazer em considerar, não sem malícia; mais intensamente, porém, ele é solicitado por essas forças que parecem reduzir o ser humano ao estado de autômato. Daí o sentimento liberatório: reconstituir o ser vivo de acordo com essas mesmas forças, restituir a ele a espontaneidade impulsiva (KLOSSOWSKI, 2010, p.70).

Para isso, Nietzsche coloca que é preciso substituir a semiótica “consciente” para uma semiótica impulsiva, visto que essa suposta consciência escamoteia, renega e trai os movimentos, ignorando o combate perpétuo das forças e assim conservando o automatismo sob a aparente espontaneidade do pensamento. Para isso, Klossowski afirma que: [...] para reencontrar a espontaneidade autêntica, o produtor dessas “categorias” (conscientes), o órgão intelectual, deve ser tratado a partir de então, por sua vez, como simples autômato, puro instrumento: a partir de então como espectador de si mesmo, o autômato só vai encontrar sua liberdade no espetáculo que vai da intensidade à intenção e desta à intensidade (KLOSSOWSKI, 2010, p. 70-71).

A vida ativa, para Nietzsche é aquela que cria para si uma moral que tem como base a intensidade e não o julgamento ou o ressentimento. É ter a capacidade de quando receber um estímulo, criar uma zona de amortecimento para ampliar a variação de respostas. Em outras palavras, a vida ativa aumenta sempre as possibilidades de responder a um estímulo de fora, ela investe em uma vida que é capaz de ser afetada ao máximo sem perder a sua natureza (NIETZSCHE, 2005).

Volume 6 no 1

132


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

Klossowski (2010) faz uma analogia com o ouro que é um metal valioso porque é capaz de sofrer várias modificações, mas permanece sendo ouro. A dureza do ouro não está relacionada à identidade, ao “eu”, mas a uma permanência de potência, de capacidade de se potencializar. Aproveitar as situações para criar novas possibilidades. Assim como o ouro, a vida ativa se mantém firme e com o máximo de flexibilidade e abertura para o acontecimento. Ela não moraliza o acontecimento e diz sim à própria existência e às forças que constituem a sua maneira de viver. Ela inventa uma maneira de viver e a afirma como boa, porque ela acontece de modo tal que a torna mais forte. Contudo, as condições para tal dependem de suas próprias forças, e não das circunstâncias exteriores. Ou seja, bom para ela é quando vive de um jeito tal que lhe torna capaz de criar as próprias condições da sua existência (NIETZSCHE, 1995). Existir, então, se torna sinônimo de criar, de fazer a diferença, onde a sua própria existência é afirmação da diferença. E desse modo, a bioidentidade, mencionada no tópico anterior, não pode ser entendida por essa via da criação, justamente, porque não é no solo identitário, como um lugar da representação e do reconhecimento que a existência vem a ser positivada aqui, mas é justamente no ato de diferir, fluir, fruir e transitar por vias ainda não terriorializadas e aprisionadas pela marcação de limites e fronteiras, como muitas vezes desemboca esse princípio que tende a nomear, cristalizar e por uma imobilidade. Afirmar a vida pela diferença não significa afirmar a vida estabelecendo um lugar próprio à diferença. Desse modo, bom, nesse entendimento da vida criativa, torna-se sinônimo de interessante e não o contrário de mal, ruim, negativo, ao mesmo tempo em que se torna difícil lhe atribuir um antagonismo que o posicione em polos. A vida ativa transforma a sua existência em algo interessante de acontecer (NIETZSCHE, 2001). Essa vida ativa não está correlata àquela boa forma de agir engendrada por algumas práticas de discursos do campo da saúde, mencionada anteriormente, pois não está no registro do prescrito, mas no registro da experimentação, da invenção e da abertura. Por ter plasticidade, ela passa pelos diferentes momentos da vida com maior facilidade, porque afirma a fatalidade sem ser um determinista ou um fatalista conformado, mas sabendo que o tempo não para e independe de suas ações. Ao invés da rigidez, ela adquire essa plasticidade para inverter uma força de coação em uma força de liberdade, uma tristeza em uma alegria, um inimigo em um aliado, uma doença em uma potência. A riqueza deste tipo de vida não vem de seus bens ou das condições sociais em que ela está inserida, mas é exatamente a capacidade de transmutar uma paixão

Volume 6 no 1

133


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

em ação, de encontrar a necessidade no acaso, a essência no acidente, ou seja, sua fortuna está em extrair algo de um acontecimento para virar combustível da própria potência de existir. Ela preenche alegrias ativas que dependem de si mesma, fazendo com que ela se torne causa e finalidade de si mesma. A ação que ela efetua, a partir do momento que afirma a sua diferença, gera efeitos múltiplos de realidades, ressoando como uma onda. Porém, esta força é tamanha que quando ressoa, pode ameaçar a segurança e a fragilidade de uma outra vida que seja reativa e fraca. Nesses momentos, a vida ativa é chamada de violenta, selvagem, inconsequente, louca, doente (FERREIRA, 2007). A vida reativa é essencialmente uma vida separada do que ela pode e ao não agir guarda para si uma energia que se transforma em ressentimento. Ela está sempre tendendo à(o) e nunca criando, está sempre a mercê do contexto e do fora. Como ela desqualifica a ação, o investimento é no ideal, acreditando que a existência é inferior porque não supre todas as suas faltas e gera dor. Uma dor que além de torná-la mais miserável e triste acaba sendo testemunha da inferioridade deste mundo e da imperfeição da existência (FERREIRA, 2007). Para Nietzsche, a vida ativa ou reativa pode se dar em um mesmo corpo em momentos ou situações diferentes de sua existência, até porque o corpo é composto de forças ativas e reativas. Porém, quando as forças reativas imperam sobre as forças ativas, se estabelecerá a vida reativa e neste sentido que iremos chamar esse arranjo de adoecimento. O que vai diagnosticar este adoecimento é uma avaliação das hierarquias dos impulsos, que para uma vida ativa, possibilitam a experimentação de diferentes modos de existir, ao contrário da vida reativa que será mais forte a força de conservação (KLOSSOWSKI, 2000). E é nesse entendimento da multiplicidade das potencialidades do corpo que faz sentido entender porque não buscamos alocar o conceito de saúde, a promoção de saúde, tomando somente o telos da prevenção de uma morte biológica, mas, mesmo nesse telos, abrir caminhos para formas ativas de experienciar o corpo, a saúde, a vida, e não somente seguir as formas prescritas e préfabricadas. É também uma forma pensar a criação pela via da “subversão inocente”, quando não se sabe como as coisas tem que ser feitas, como a vida deve ser vivida, e justamente por isso, as formas possíveis de fazê-la são múltiplas e ainda a serem criadas. Já em sua época, Nietzsche criticava que aquilo que comumente se buscava como saúde seria uma tentativa de conservar o corpo, prolongar a sua duração e reduzir a sua intensidade em uma constante decadência como estratégia da sociedade para manter os corpos cada vez mais produtivos e por mais tempo dentro do cotidiano moderno (FERREIRA, 2010).

Volume 6 no 1

134


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

[...] a capacidade de produzir aquilo que pode ser trocado estabelece uma norma variável de “doença” e de “saúde”, ou mesmo de justificativa social. Moralmente, essa censura, ou considera o transgressor como ininteligível, ou o estigmatiza como improdutivo (KLOSSOWSKI, 2000, p.172, grifos dos autores).

Ao romper com essa lógica industrial que atingia o seu auge na Europa no final do século XIX, o filósofo acaba sendo alvo de represálias e as suas idéias servindo de evidências para classificar seu estado de insanidade e loucura. Klossowski (2010) afirma que o lúcido, o delírio e o complô são indissolúveis em Nietzsche e que não necessariamente isto lhe foi “patológico”, já que as iniciativas experimentais no mundo necessitam de uma lucidez que só é válida na medida em que a obscuridade total é considerada (FERREIRA, 2010). [...] Apresento aqui uma série de estados psicológicos, como signos de uma vida plena e florescente, os quais, hoje em dia, se convencionou julgar como mórbidos. Enquanto isso, não sabemos mais qual é a diferença entre aquilo que é são e aquilo que é doente: é uma questão de graus. Nesse caso, afirmo que aquilo que chamamos hoje de ‘são’ representa um nível mais baixo do que aquilo que, em condições favoráveis, seria são – afirmo que somos relativamente doentes (...). A superabundância de seiva e de forças pode provocar sintomas de não-liberdade parcial, de alucinações sensoriais, de refinamentos sugestivos, assim como também um empobrecimento vital – a excitação é condicionada de outro modo, mas o efeito continua sendo o mesmo... Mas a repercussão não é a mesma: o extremo enfraquecimento de todas as naturezas mórbidas, após suas excentricidades nervosas, nada tem em comum com os estados do artista, o qual não tem que expiar seus períodos de felicidade... Ele é suficientemente rico para isso: ele pode desperdiçar sem ficar mais pobre [...]” (NIETZSCHE apud KLOSSOWSKI, 2000, p221, grifos nossos).

Nietzsche utiliza a figura do artista assim como do gênio como exemplos de vida ativa, por estes terem uma idiossincrasia de inventor que os transforma em seres únicos, casos singulares, criando novas formas de existência e de se expressar ao disciplinarem seus impulsos em favor de existências mais potentes (NIETZSCHE, 2003). Promover a saúde levando em consideração a filosofia nietzschiana nos traz o desafio de nos aproximar da vida artista que se faz quando se rebela contra a fixidez durável, vivendo cada experiência sem pré-julgamentos baseados em uma moral

Volume 6 no 1

135


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

imposta e em um gregarismo (FERREIRA, 2005). Todavia, a saúde enquanto vida vivida ao máximo não será sinônimo de irresponsabilidade, falta de regras e limites, mas comporá uma hierarquia dos impulsos que o próprio corpo estabelecerá, de acordo com valores e morais intrínsecos a ele. Na sociedade ocidental contemporânea, o culto ao corpo saudável adquiriu grande valor e importância associado a uma noção de saúde prescritiva a tal ponto que alguns afirmam que estaríamos vivendo em uma cultura somática (PEIXOTO, 2010). Todavia, são esses os corpos e essa saúde que realmente importam se queremos construir um mundo mais afirmativo no que se refere à potência e à singularidade? Nietzsche nos inquieta neste sentido, deixando um importante armamento para pensarmos a saúde de forma a fugirmos de justificativas baseadas em discursos pré-definidos e autoritários que atuam como discursos de verdade e vão em direção da obediência e de uma dominação dos corpos enfraquecidos de potência. Ver e atuar através de pressupostos nietzschianos rompe com a lógica vigente do saber do especialista e nos colocar em posição de igualdade com o outro proporcionando assim encontros éticos e produtores de uma saúde da potência dos corpos. A saúde não deve ter fins úteis a um regime opressivo de discursos de verdade, mas a busca de fortalecer corpos singulares e potentes. Não estar mais em posição de reproduzir, mas produzir experiências, valores e as condições de sua própria vida. Portanto, assumimos aqui que a principal arma para a luta por uma saúde da potência não está em um discurso, mas deposita-se fundamentalmente na disposição de cada composição hierárquica de impulsos de se auto-organizar e entrar em relação, criando experiências e permitindo-se afetar e ser afetada, produzindo assim, diferentes configurações de vida e diferentes saúdes. Por isso, muito mais do que pensar numa outra saúde, parece fazer mais sentido, nessa perspectiva, pensar numa saúde outra. Visto que uma pretensão de encontrar uma outra saúde poderia fazer entender que nesse modelo de saúde vigente não houvesse espaço para potência, para ranhuras que fazem esse mesmo lugar da saúde cambalear, como se não fosse possível questionar. Não é o lugar utópico de uma outra saúde que queremos nos coadunar. Não é o lugar da isenção de políticas reativas, visto que no mesmo corpo, uma vida ativa e uma reativa podem coexistir, disputar. O que parece ser mais interessante pensar é qual lugar dessa vida ativa nesses modos de produção de vida que parecem uma produção em série. E, ao mesmo tempo, não direcionar qual seria “uma verdadeira vida ativa”, pois esse direcionamento também tem o risco de virar uma produção em série.

Volume 6 no 1

136


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

Nesse caso, o conceito de heterotopias trabalhado por Foucault (2013) também pode ser um conceito-ferramenta potente para entender esse lugar outro (e não o outro lugar) como um espaço em que o tempo da experiência e o tempo da intensidade sejam possíveis, muito mais do que um tempo cronológico, um tempo que seria marcado pela morte, como parece demarcar algumas práticas de saúde. O autor pensa esse lugar das heterotopias, marcando uma diferença com as utopias, dando-lhes também um lugar para a ciência: Pois bem, sonho com uma ciência – digo mesmo ciência – que teria por objeto esses espaços diferentes, esses outros lugares, essas contestações míticas e reais do espaço em que vivemos. Essa ciência estudaria não as utopias, pois é preciso reservar esse nome para o que não tem lugar algum, mas as heterotopias, espaços absolutamentes outros (FOUCAULT, 2013, p. 20-21)

As heterotopias assumem uma materialidade no instante em que instauram intensidades, na produção de linhas de fuga e naquilo que resiste. Assim, pensar a saúde como um lugar da heterotopia pode ser também um modo de inscrever fissuras no modo hegemônico de compreender a saúde como uma forma de prevenção da morte biológica, permitindo a emergência de outros efeitos de sentido, de experiência, de estar e habitar (n)o mundo, o que também tem atravessamentos na concepção de potência dos corpos singulares e fortalecidos, pensada por Nietzsche. Gallo (2015) também se mune desse conceito de heterotopias para pensar uma escola outra, e não uma outra escola, e acreditamos que também podemos fazer a mesma operação com a concepção de saúde que temos instalada na política pública. Parafraseando o autor, trata-se de pensar e produzir uma saúde outra na saúde mesma. Ou seja, a ideia de pensar uma saúde outra, e não uma outra saúde, é uma forma de posicionar não um lugar utópico e pensar muito mais àquilo que pode escapar, se irromper, que ainda não está territorializado e capturado pelos efeitos cercadores de uma saúde marcada pela morte biológica, mas que permite uma experiência corpórea, pulsante e viva. É a afirmação de um lugar minoritário que essa saúde outra pode ocupar, mas também, entendemos que essa saúde outra não deve se pretender maioria e hegemônica, pois “[...] quando formos maioria, será o momento de não sermos mais aquilo que estamos nos tornando” (BENEVIDES, 2015, p.198).

Volume 6 no 1

137


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

Referências Bibliográficas BENEVIDES, Pablo; MOTA, Thiago. Isso não é um manifesto; são dois. Lampejo – Revista eletrônica de filosofia e cultura. Fortaleza. v. 7, n. 1, pp. 195-207, 2015. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Nacional de Assistência à saúde. ABC do SUS: Doutrinas e princípios. Brasília: Ministério da Saúde, 1990. _______. Constituição Federal de 1988. CARDOSO JR, Hélio. Rebello. Espinosa e Nietzsche: Elos onto-práticos para uma filosofia da imanência. In: Site Benedictus Espinoza. 01 jul. 2007. Disponível em: http://www.benedictusdespinoza.pro.br/ Artigo_Helio_Rebello_Espinosa_Nietzsche.pdf. Acesso em 15 de agosto de 2014. COSTA, Jurandir. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Gramond universitária, 2004. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. ________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 37. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. ________. O corpo utópico, as heterotopias; tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo, n-1 Edições, 2013. FERREIRA, Amauri. Introdução à Filosofia de Nietzsche. 2ªed. São Paulo. Escola Nômade; 2007. FUGANTI, Luiz. Saúde, desejo e pensamento. São Paulo: Hucitec; 2008. GALLO, Sílvio. Pensar a escola com Foucault: além da sombra da vigilância. In: CARVALHO, Alexandre; GALLO, Silvio (orgs). Repensar a educação: 40 anos após vigiar e punir. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2015. KLOSSOWSKI, Pierre. Nietzsche e o Círculo Vicioso. Tradução: Hortencia S. Lencastre. Rio de Janeiro: Pazulin; 2000. MOREIRA, Adriana Belmonte. Corpo, saúde e medicina a partir da filosofia de Nietzsche [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2006. NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Tradução: Márcio Pugliesi. Curitiba. Editora Hemus; 2001. __________. Assim falou Zaratustra. Tradução: Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003. __________. Ecce Homo. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras; 1995.

Volume 6 no 1

138


Contribuições da filosofia de Nietzsche e Foucault na percepção de uma saúde outra, pp. 122-139

__________. Genealogia da moral – uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras; 1998. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional sobre cuidados primários de saúde. Alma-Ata, URSS, 6-12 de setembro de 1978. PEIXOTO JR, Carlos Augusto. Algumas considerações nietzschianas sobre corpo e saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 14, n. 35, Dez; 2010. PAIM, Jairnilson. O que é o SUS? Coleção temas em saúde. Editora Fiocruz. Rio de Janeiro, 2009.

Volume 6 no 1

139


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus Leandson Vasconcelos Sampaio1 Resumo: O trabalho visa apresentar nas obras do romancista-filósofo Prêmio Nobel de Literatura em 1957 Albert Camus (1913-1960) a relação entre Ética, Literatura, Engajamento e Responsabilidade, levando em consideração que o pensador franco-argelino está inserido em uma tradição de escritores que utilizam além dos ensaios filosóficos, também textos literários como método de pensamento, ressaltando a sensibilidade através da narratividade literária. Desse modo, mostraremos notrabalho como há no pensamento camusiano uma busca pelo equilíbrio entre a razão e a sensibilidade a partir de uma escrita imag-ética, tanto através dos ensaios filosóficos, quanto através da sensibilidade literária. A relação entre Filosofia e Literatura caracteriza no filósofo africano uma fusão entre pensamento e a imagem literária, por isso a escrita imag-ética de Camus faz parte do seu método de filosofar, pois a imagem dá substância ao pensamento. Mostraremos também que, enquanto intelectual engajado, desde a sua juventude na Argélia, Camus utiliza seus textos literários como forma de posicionamento político e de denúncia, pois, para ele, escrever é agir. Considerando que, para ele, mesmo o silêncio é também um posicionamento político, pretendemos mostrar como o engajamento camusiano com a Literatura está ligado a um ethos da responsabilidade do escritor. Para Camus, o escritor é livre para escrever, mas há sempre uma responsabilidade ético-política na escrita. Em uma época em que o potencial bélico do mundo nunca foi tão potente, incluindo, sobretudo, as bombas-atômicas, para

1

Licenciado, bacharel e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Volume 6 no 1

140


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

Camus, que foi Editor-chefe do jornal Combate, - principal jornal clandestino da Resistência à Ocupação nazista na França - a responsabilidade ética do escritor possui uma dimensão fundamental de compromisso para com a coletividade. Neste horizonte, como a escrita camusiana é uma escrita ligada às questões do presente, mostraremos a dimensão ética da escrita e a sua relação com a escrita literária a partir do diagnóstico do seu tempo, que necessitava de respostas para questões decisivas. Como a reflexão filosófica camusiana trata sempre de questões decisivas, o que está em jogo na ética do escritor engajado é o combate à legitimação da violência, sobretudo, a que parte de sistemas filosófico-políticos totalizantes, tanto de direita quanto de esquerda, tema este que abordaremos a partir dos editoriais jornalísticos intitulados Nem Vítimas, Nem Verdugos (1947). Palavras-chave: Camus, ética, literatura, política

"S

ó se pensa através das imagens. Se queres ser filósofo, escreva romances.” (CAMUS, s/dC: 18), escreveu o Albert Camus em seus Cadernos, aos 23 anos. Neste horizonte, para o romancista-filósofo Prêmio Nobel de Literatura em 1957, em seu método de pensamento a imagem literária está intrinsecamente ligada ao seu método de filosofar buscando um equilíbrio entre a sensibilidade literária e a reflexão filosófica, não reduzindo assim a Filosofia apenas à análises logicistas, escolásticas e exegéticas2 , ampliando a dimensão da escrita em sua “filosofia transposta em imagens” (CAMUS, 1998: 133), havendo no pensamento camusiano “uma oscilação constante entre reflexão e escrita ficcional” (PINTO, 1998: 21). Desse modo, a Literatura camusiana não é então uma mera ilustração de sua Filosofia, faz parte de uma articulação intrínseca em seu método de pensamento:“Explicam-me este mundo com uma imagem. Então percebo que vocês chegaram à poesia: nunca poderei conhecer. Tenho tempo de me indignar? Vocês já mudaram de teoria” (CAMUS, 2004: 34). Ou seja, a articulação entre Filosofia e Literatura se dá através do pensamento imagético, em uma fusão entre a reflexão filosófica e a sensibilidade da narratividade literária. Diz Camus em O Mito de Sísifo:

Os grandes romancistas são romancistas filósofos, isto é, o contrário de escritores de tese. Assim Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoievski, Proust, Malraux, Kafka, para só citar alguns. [...] A escolha que eles fizeram de escreverem em imagens em vez de escreverem em raciocínios é indicadora de um certo pensamento que lhes é comum na [...] convicção da mensagem instrutiva da aparência sensível. (CAMUS, 2004: 122). Como ressalta Nilson: “O emprego de imagens em Camus corresponde adequadamente a sua posição de valorizar o sensível e não reduzir a filosofia à dimensão lógica”. (SILVA, 2013, p. 9. Disponível em: <http://migre.me/gm7gl>. Acesso em: 1 de Ago. 2017. 11:00h). 2

Volume 6 no 1

141


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

Nesta perspectiva, compreendemos Camus como artista-filósofo, pois com a imagem artística da narratividade literária Camus transfigura a realidade enquanto filósofo-criador. “O filósofo, mesmo que seja Kant, é criador. Tem seus personagens, seus símbolos e sua ação secreta.” (CAMUS, 2004: 115). Ou seja, não podemos separar o pensamento camusiano em uma hierarquia e sim tratar os seus escritos unindo a criação artística e a Filosofia. A criação artística, diferentemente do que se pensa no senso comum, faz parte de um modo de pensar a realidade e não de fugir dela, sendo o ato de escrever uma forma também de inserir-se no mundo, não de escapismo.

Aí reside o engano de uma certa crítica que coincide com a visão que o senso comum tem do romance: evasão e desligamento do mundo, separação da vida, edulcoração que seria ao mesmo tempo traição da realidade. Compreender dessa maneira o romance é deixar-se guiar pela lógica binária que governa os nossos hábitos: ou o mundo real, ou a ficção, com a exclusão completa de um pelo outro. Ora, a contradição presente na atitude revoltada e expressa na arte nos convida a considerar os dois elementos ao mesmo tempo. A criação humana não é sempre e necessariamente a produção de uma ilusão. (LEOPOLDO, 2004: 230-231).

Assim, entendemos que a Literatura não se desliga do mundo, ao contrário, a narratividade literária é também uma forma de inserção e comprometimento com realidade. Em outras palavras, a criação romanesca também está comprometida com a realidade prática, possuindo assim uma tarefa ética:

A tarefa ética deve ser entendida em estrita conexão com o envolvimento do homem no conhecimento da realidade humana: sendo a existência o fundamento compreensivo desse conhecimento, aquilo que esse fundamento nos revela acerca da realidade humana nos compromete com a sua realização, principalmente porque a compreensão da existência não significa apropriar-se de um dado, mas comprometer-se com uma tarefa, com algo que temos de fazer, e não apenas contemplar. É nesse sentido que a tarefa ética da literatura acompanha o caráter eminentemente prático do conhecimento do homem: escrever é agir. (LEOPOLDO, 2004: 258).

Volume 6 no 1

142


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

Desse modo, podemos dizer que a articulação entre Filosofia e Literatura desvela um êthos3que também está ligado ao engajamento camusiano, levando em consideração também que para Camus escrever é agir, pois “cada palavra engaja.” (CAMUS, 1944: 136 apud GERMANO, 2008: 267)4. Neste sentido, ao decidir escrever, o escritor sai de sua esfera individual e passa para a esfera da coletividade. A sua obra que fomenta uma visão de mundo também demonstra os seus posicionamentos sobre o mundo direta ou indiretamente, tendo em vista que até mesmo o silêncio é um posicionamento5. “No sentido estrito, o escritor engajado é aquele que assumiu, explicitamente, uma série de compromissos com relação à coletividade, que ligou-se de alguma forma à ela por uma promessa e que joga nessa partida sua credibilidade e sua reputação” (DENIS, 2002: 31). Em outras palavras, escrever é um ato e este ato possui as suas consequências a partir dos posicionamentos tomados pelo escritor:

engajar-se significa também tomar uma direção. Há assim no engajamento a idéia central de uma escolha que é preciso fazer. No sentido figurado, engajar-se é desde então tomar uma certa direção, fazer a escolha de se integrar numa empreitada, de se colocar numa situação determinada, e de aceitar os constrangimentos e as responsabilidades contidas na escolha. Por conseguinte e sempre de modo figurado, engajar-se consiste em praticar uma ação, voluntária e efetiva, que manifesta e materializa a escolha efetuada conscientemente. (DENIS, 2002: 32).

Neste sentido, diz Amitrano em nota de rodapé: “Ao designar um êthos em Camus, pressuponho que ele possua em sua filosofia a inserção de um pensamento da práxis, isto é, a inserção de uma teoria cujo objeto seja a ação humana. Com a designação de êthos é possível visualizar, em seu pensamento, algo que se difere de uma posição teorética; isto é, de uma Metafísica ou Física. O que, de fato se vê é a inserção de um pensamento da práxis, uma teoria cujo objeto é a ação humana e pela qual se investiga aquilo que, de certo modo, constitui uma forma de política”. (AMITRANO, 2014: 26-27). 3

CAMUS, A.Combat Clandestin, nº 58, juillet 1944. Cahier Albert Camus 8: 136.In: GERMANO, Emanuel Ricardo. O pensamento dos limites: contingência e engajamento em Albert Camus. Tese de Doutorado - Faculdade de F., Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2008. 4

Ressalta Denis: “Toda obra literária, qualquer que seja a sua natureza e a sua qualidade, é engajada, no sentido em que ela é portadora de uma visão do mundo situada e onde, queira ela ou não, se revela assim impregnada de posição e escolha. Para o escritor, não há escapatória possível, mesmo pelo silêncio”(DENIS, 2002: 36). 5

Volume 6 no 1

143


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

Camus, que foi engajado desde a sua juventude na Argélia 6 e posteriormente como Editor-Chefe do jornal do jornal Combat (principal jornal clandestino da Resistência durante a Ocupação nazista na França), sempre assumiu o seu compromisso com a realidade presente7 . A urgência do momento presente está ligada à tarefa ética da escrita engajada que rompe com qualquer tentativa de imparcialidade da escrita, pois “a preocupação com a posteridade dá lugar à consciência da urgência, a reinvindicação de autonomia e de distância transforma-se numa exigência de responsabilidade e de participação, a postura de imparcialidade anula-se” (DENIS, 2002: 67). Com efeito, a escrita engajada também possui a sua modéstia ao comprometer-se com a realidade presente. Como comenta Denis:

O escritor engajado renuncia, portanto, a apostar na posteridade e escolhe resolutamente responder às exigências do tempo presente. E ele assume o sacrifício da sua glória póstuma como inerente ao seu engajamento, vendo aí um salutar exercício de modéstia que atesta a sua vontade de reunir-se ao mundo dos homens e de tomar parte nos debates que o agitam. (DENIS, 2002: 41).

Assim, a escrita engajada possui uma responsabilidade ética para com o presente e para com a coletividade, recusando o conforto da irresponsabilidade. Na Conferência “O Artista e seu tempo” na Universidade de Uppsala na Suécia em 1957, Camus faz a reflexão sobre o papel do escritor engajado e a responsabilidade do escritor, ou melhor, dos artistas, pois “o tempo dos artistas irresponsáveis passou” (CAMUS, s/dB: 177). Lembrando que “quando Camus diz ‘artista’ ele também diz ‘filósofo’” (GERMANO, 2008: 183), a crítica camusiana também se dirige aos filósofos com as suas meras formalidades e abstrações que servem como fuga da realidade:

Os fabricantes de arte (ainda não disse os artistas) da Europa burguesa, antes e depois de 1900, aceitaram, assim, a Sobre isto, diz Aronson: “Jornalista engajado, Camus teve seu papel na libertação de acusados em mais de um caso importante. Entre 5 e 15 de Junho de 1939, ele escreveu uma série de reportagens sobre a fome e a pobreza na região costeira e montanhosa da Kabylia. Estes estiveram entre os primeiros artigos detalhados já escritos por um argelino europeu descrevendo as condições miseráveis de vida da população nativa. Camus conclamou a administração colonial a oferecer um salário mínimo, a construir escolas e a distribuir comida.”.(ARONSON, 2007: 52). 6

Como ressalta Denis: “Com efeito, engajando-se, o escritor se decide a ir ao encontro das exigências do tempo presente. Ele deseja que a sua obra aja aqui e agora e ele aceita, em compensação, que ela seja situada, legível num contexto limitado e, portanto, ameaçada por uma obsolescência rápida. Disso resulta que o escritor engajado escolheu de qualquer modo sacrificar a posteridade da sua obra para responder à urgência do momento.” (DENIS, 2002: 79). 7

Volume 6 no 1

144


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

irresponsabilidade, porque a responsabilidade supunha uma rotura esgotante com a sua sociedade (os que realmente romperam chamavam-se Rimbaud, Nietzsche, Strindberg e sabe-se o preço que pagaram). É dessa época que data a teoria da arte pela arte, o divertimento de um artista solitário, é bem justamente a arte artificial de uma sociedade fictícia e abstrata. O seu resultado lógico é a arte dos salões ou a arte puramente formal que se nutre de preciosismos e de abstrações e que acaba pela destruição de toda a realidade. (CAMUS, s/dB: 148).

Ou seja, a crítica camusiana à “arte pela arte” é também uma crítica à arte submissa ao mercado, levando em consideração que os artistas já não podem se dar ao luxo da irresponsabilidade, sobretudo, em uma época perpassada por grandes guerras, estados totalitários policialescos, bombas atômicas, Campos de Concentração etc. Por isso, diz Camus na Conferência que “Racine, em 1957, pediria desculpa de ter escrito Bérénice em vez de combater em defesa do Edito de Nantes” (CAMUS, s/dB: 140-141). Neste horizonte, a recusa da irresponsabilidade é também uma recusa da passividade intelectual que assombra o seu tempo, que é também uma característica da escrita engajada. Assim, comenta Denis:

O que caracteriza desde então o engajamento é a recusa da passividade com relação a este inevitável envolvimento no mundo. Já que não é possível eludir a escolha, é preciso realizá-la voluntariamente e lucidamente, melhor do que ser escolhido pelas circunstâncias ou pela situação. (DENIS, 2002: 36).

A responsabilidade ética do escritor engajado para com a coletividade também está ligada ao risco de escrever, sobretudo, em épocas de cerceamento contínuo da liberdade, por isso, em seus Discursos da Suécia (1957) Camus diz que “é preciso que assumamos todos os riscos e trabalhos da liberdade” (CAMUS, s/dB: 175). Havia sempre o perigo rondando os escritores engajados, principalmente os escritores clandestinos8 . Camus chegou a ser ameaçado de morte por conta dos seus

Ressalta Aronson: “Ao publicar muitos artigos clandestinos, frequentemente sob circunstancias perigosas, para fortalecer o povo contra os alemães ou para encorajá-los, eles se habituaram a pensar que escrever é um ato, e adquiriram o gosto pela ação. Longe de fingir que o escritor não é responsável, eles exigiram que ele esteja pronto a cada momento para pagar pelo que escreve. Na imprensa clandestina não havia uma só linha que não pusesse em risco a vida do autor ou do impressor ou daqueles que distribuíam os panfletos da Resistência; assim, após a inflação dos anos entre guerras, quando as palavras pareciam papel-moeda, pelo qual ninguém podia pagar em ouro, a palavra escrita reencontrou o seu poder” (ARONSON, 2007: 94). 8

Volume 6 no 1

145


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

escritos9, as publicações precisavam de um cuidado extra.“Criar, atualmente, é criar perigosamente. Toda publicação é um ato e este ato expõe às paixões de um século que nada perdoa”. (CAMUS, s/dB: 140). Nesta perspectiva, a ética da escrita engajada está também no fato de haver uma responsabilidade onde as palavras necessitam ser mensuradas. “Essa consciência da responsabilidade do órgão de imprensa diante do público nascera na luta da imprensa clandestina. Nessa época as palavras deviam ser pensadas, pois um engano poderia significar a prisão ou a morte” (BARRETO, 1971: 127). Neste sentido, diz Camus em um de seus Editoriais do jornal Combat:

O que nós queremos? Uma imprensa que seja clara e viril e escreva em um estilo descente. Quando nós sabemos, como nós jornalistas temos conhecimento nesses últimos quatro anos, que escrevendo um artigo pode trazer você a prisão ou te matar, fica claro que as palavras tem valor e devem ser mensuradas cuidadosamente. O que nós estamos esperando é restaurar a responsabilidade jornalística com o público. (CAMUS apud ARAÚJO, 2009: 4 apud LÉVI-VALENSI, 2002: 22).

Com efeito, podemos dizer que o que Camus diz sobre a responsabilidade jornalística também vale para a Filosofia e a Literatura na qual, neste sentido, as palavras também devem ser cuidadosamente mensuradas. A responsabilidade para com as palavras em Camus está ligada aos escritores que legitimam a violência para fomentar ideologias políticas. As palavras irresponsáveis podem gerar “banhos de sangue” e terror em um mundo com potencial bélico sem precedentes na história, por isso é preciso assumir o compromisso ético com as palavras dos escritores engajados. Nos Editoriais do jornal Combat intitulados Nem Vítimas, Nem Verdugos, Camus faz a reflexão sobre o avanço das ciências belicistas que os Estados utilizam como técnica do medo. Diz Camus: “O século XVII foi o século das Matemáticas, o século XVIIIo século das Ciências Físicas, e o século XIX o da Biologia. O nosso século XX é o século do medo” (CAMUS, s/dA: 163). Assim, Camus ressalta o avanço científico aliado aos Estados totalitários sustentados por ideologias, por isso ele diz que “a ciência é certamente uma causa do medo, porque os seus últimos progressos técnicos obrigaram a negar-se a si mesma, e porque os seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam a destruição da terra inteira” (CAMUS, s/dA: 163). A racionalidade que proporcionou o avanço científico também trouxe o medo como técnica aliada aos Estados belicistas:

Ressalta Todd: “No hotel, por telefone e por escrito, Camus recebeu ameaças de morte. Ele poderia ser sequestrado”. (TODD, 1998: 638) e “No exterior do Círculo, cerca de mil opositores se agitam. Eles gritam: - Mendès fuzilado! – Morra Camus!”. (TODD, 1998: 639). 9

Volume 6 no 1

146


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

O ponto de partida de Nem vítimas nem carrascos é a constatação, que será também a origem de O Homem revoltado, que nossa época se caracteriza pelo assassinato lógico, isto é, pela justificação filosófica da violência. A política está, com efeito, dominada pelas ideologias – o liberalismo ou o marxismo – que defendem, em nome da liberdade ou da luta contra a alienação, certas formas de violência. Além disso, estas ideologias não se limitam a legitimar as atrocidades, elas impõem também o silêncio aos que são neutros ou que gostariam de denunciar os exageros do seu próprio campo. (WEYEMBERGH, 1998: 121-122, tradução nossa)

Neste horizonte, “Camus prossegue notando que a civilização contemporânea de seu tempo se aprimora no ideal hobbesiano de tornar, mais do que nunca, o medo, uma técnica de controle social” (GERMANO, 2008: 237). O medo está ligado à engrenagem do Estado que utiliza de forma sistemática as técnicas, sobretudo, bélicas, de controle e ameaça à vida de diversas formas, pois, afirma, ainda em O Século do Medo, que “se o medo em si não pode ser considerado como uma ciência, não há dúvida de que ele seja, entretanto, uma técnica” (CAMUS, s/dA: 164). As engrenagens mortíferas do Estado dominaram o século XX: “Este homem mecanizado, dominado pelo medo, traumatizado pela guerra,silenciado pela indiferença a quem se dirige Camus, ‘segrega desumanidade’, pois, seencontra aprisionado pelo fatalismo. A engrenagem da morte dele se apoderou”. (GERMANO, 2008: 237).Continua Germano:

Do ponto de vista da responsabilidade do intelectual, para Camus, vencer a técnica do “medo”, significa, então, testemunhar a injustiça de ambos os lados da“trincheira”, cruzando o fosso que separa as ideologias e que impõe o silêncio comedido diante da injustiça. (GERMANO, 2008: 251).

Então, a tarefa ética do intelectual engajado é a de romper com o silêncio e enfrentar o medo que se concretiza no cotidiano gerando um silêncio que é também ruidoso. Como ele afirma: “Penso, no entanto, que em vez de condenar o medo, devemos considerá-lo como um dos primeiros elementos da situação e, por conseguinte, tentar reagir contra ele” (CAMUS, s/dA: 168). Por isso, é necessário fomentar o diálogo em meio ao que ele chamou de “uma imensa conspiração de silêncio, provocada pelos mesmos a quem ela interessa” (CAMUS, s/dA: 166). No editorial intitulado O caminho do diálogo em Nem Vítimas, Nem Verdugos, Camus

Volume 6 no 1

147


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

afirma que “Sim, o que é necessário combater hoje é o medo e o silêncio [...]. O que é necessário defender é o diálogo e a comunicação universais dos homens entre si. A servidão, a injustiça, a mentira, são pragas que cortam a comunicação e impedem o diálogo” (CAMUS s/dA: 204-205). É necessário o diálogo para combater o medo e o silêncio, engajando-se em um mundo que “nos parece ser conduzido por forças cegas e surdas, incapazes de ouvir os gritos de alerta, os conselhos e as súplicas” (CAMUS, s/dA: 165). Na reflexão camusiana “delineia-se uma concepção intransigente da responsabilidade do intelectual. Trata-se de emitir uma mensagem clara aos filósofos de plantão – que molham suas penas no sangue e não na tinta” (GERMANO, 2010: 32). Dito de outro modo, Camus faz uma dura crítica aos intelectuais que buscam legitimar a violência.

Em Nem vítimas,Nem Carrascos a indignação de Camus está dirigida contra oslegitimadores profissionais de plantão que, em robe de chambre, incentivam eplanejam, de seus escritórios, o derramamento de sangue – alheio, seguramente; para Camus, os intelectuais como Sartre fazem parte da engrenagem da morte que se autolegitima e absolve pelo conceito de finalidade histórica que constroem da clausura tépida dos gabinetes. São mais uma faceta da tecnologia do medo que, dos homens às técnicas, mobiliza para matar. (GERMANO, 2008: 140).

Camus coloca-se em combate direto aos escritores que exaltam a violência em nome de abstrações teóricas. A tarefa da responsabilidade ética do intelectual engajado insere-se no combate à legitimação da violência em nome de ideologias totalizantes.

É neste sentido que podemos compreender o texto de Camus como um ato emdefesa de uma concepção rigorosa, e no limite, intransigente, da responsabilidadeintelectual. Enquanto, em nome de uma moral da responsabilidade, do lado de Sartre eMerleau-Ponty legitima-se, no período, a violência “progressiva”, Camus se insurgecontra a filosofia da legitimação do assassinato: o que se mostra inadmissível, comodissemos, é que, em robe de chambre, os filósofos, de seus escritórios, legitimem eincentivam o derramamento de sangue: sobretudo se é o sangue alheio que está emquestão. (GERMANO, 2008: 241).

Volume 6 no 1

148


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

O filósofo franco-argelino em Nem Vítimas, Nem Verdugoscombatetodas as filosofias que legitimam a morte, sobretudo, por trás do conforto das Academias ou dos escritórios dos jornais, pois estes intelectuais não possuem “nenhuma imaginação no que diz respeito à morte dos outros. Este é o mal do nosso século, tal como o fato de amar pelo telefone, de não trabalhar a matéria, mas a máquina de matar e de ser morto por procuração” (CAMUS, s/dA: 174). A responsabilidade ética do intelectual exige um imperativo intransigente contra as engrenagens da morte em nome do Estado.Por isso, Camus recusa “um mundo em que o crime é legal e que a vida humana é considerada como fútil” (CAMUS, s/dA: 170). Ele coloca-se em seus Editoriais de forma crítica com relação a todos os intelectuais que legitimam a morte.

Esta “assepsia de gabinete” dos editores da Temps Modernes, que pretendesujar as mãos com sangue dos outros, certamente, contrasta com a atitude camusiana.Enquanto do Deux Margots, do Flore ou da cour aux ErNeSt, os elegantes editores daTemps Modernes, passado o sufoco, seus amigos incentivam tecnicamente oassassinato lógico de seus pares revolucionários, compensando sua inação por umfuror teórico, Camus, que conhece bem mais de perto as exigências da história,encarnadas, seja na miséria do subúrbio da África do Norte aonde nasceu e se criou,seja nas alcovas da Resistência parisiense, esforça-se para construir uma salvaguardafilosófica da vida. (GERMANO, 2008: 242).

Há uma dimensão ética fundamental de preservação da vida na filosofia ético-política de Camus, por isso ele critica todas as filosofias que incentivam a violência, sobretudo, as que não levam em consideração a possibilidade inclusive de destruição do mundo em guerras nucleares.Do ponto de vista antropológico, a violência é inevitável, entretanto, do ponto de vista da responsabilidade ética do escritor engajado ela não deve ser legitimada, sobretudo, em nome de ideologias, por isso ele diz que “as pessoas, como eu, desejariam um mundo, não em que se tivesse deixado de matar (nós não somos tão ingênuos como isso!), mas um mundo em que o assassínio não fosse legitimado” (CAMUS, s/dA: 174-175). Assim, a reflexão camusiana nos leva a fazer uma reconsideração da noção de utopia política, considerando o avanço científico-bélico que se tornou a pior face negativa da Ciência no século XX.

É, pois necessário admitir que a recusa da legitimação do crime nos obriga a reconsiderar a noção de utopia. Quanto a esta, parece-nos poder dizer o seguinte: a utopia é o que está em consideração com a

Volume 6 no 1

149


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

realidade. Deste ponto de vista, seria inteiramente utópico desejar que nunca mais ninguém voltasse a matar. Essa seria a utopia absoluta. Mas exigir que o crime deixe de ser legitimado seria uma utopia bem menor. Por outro lado, as utopias marxista e capitalista, ambas baseadas na idéia de progresso, ambas convencidas de que a aplicação dos seus princípios deve fatalmente conduzir ao equilíbrio da sociedade, são utopias muito maiores e que, ainda por cima, nos estão a custar demasiado caro. (CAMUS, s/dA: 176-177).

A utopia modesta de Camus é a de salvar os corpos para que o futuro seja possível: “A minha convicção é que já não podemos razoavelmente ter a esperança de tudo salvar, mas que pelo menos podemos tentar salvar os corpos para que o futuro continue a ser possível” (CAMUS, s/dA: 189). Neste sentido é que no Editorial intitulado Socialismo Mistificado, Camus afirma: “Será necessário, então, escolher uma outra utopia mais modesta e menos onerosa. Pelo menos, é assim que se coloca o problema, uma vez que se recusa a legitimação do crime” (CAMUS, s/dA: 189). Ou seja, Camus busca uma utopia modesta, contra o crime legitimado: “Constatamos assim que o fato de recusar a legitimação do crime não é mais utópico que as atitudes realistas de hoje” (CAMUS, s/dA: 178). Então, ele propõe uma utopia modesta contra as ideologias que sustentam a legitimação da violência: “O imperativo ético de ‘salvar os corpos’, ‘utopia em menor grau’, é erigido, portanto, contra as ideologias absolutas que, à esquerda e à direita sacrificam os homens singulares à história, em virtude de suas diferentes concepções do progresso” (GERMANO, 2008: 242). Neste horizonte, Camus busca uma filosofia política que não seja legitimadorada violência10, tema este que desenvolverá em O Homem Revoltado (1951). O compromisso do escritor de romper com o silêncio contra as engrenagens da morte também mostra que o pensamento camusiano é uma forma de denúncia, por isso o artista-filósofo evoca em seu discurso este rompimento com a abstenção:

No meio desta balbúrdia, o escritor já não pode esperar manter-se à parte para perseguir os pensamentos e as imagens que lhes são queridos. Até aos nossos dias, e de qualquer maneira, a abstenção sempre foi possível na história. Aquele que não aprovava podia muitas vezes calar-se ou falar de outra coisa. Hoje tudo mudou. O próprio silêncio assume um temível sentido. A partir do momento em que a própria abstenção é considerada como escolha, punida ou louvada como tal, o artista, quer queira, quer não, está embarcado. Diz Germano: “Contra a utopia de que a engrenagem da violência progressiva, ou dos regimes policiais quaisquer que eles sejam, instaurem a justiça terrestre, Camus contrasta sua utopia modesta e, portanto, ‘menos onerosa’ - um mundo no qual a violência não seja mais legítima.” (GERMANO, 2008: 242). 10

Volume 6 no 1

150


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

Embarcado parece-me aqui mais justo do que comprometido [engagé]. Não se trata, na verdade, para o artista, de um compromisso voluntário, mas antes de um serviço militar obrigatório. Qualquer artista dos nossos dias está embarcado na galé de seu tempo. Tem que resignar-se, mesmo pensando que essa galé cheira a arenque, que os seus guarda-chusmas são realmente demasiado numerosos e que, além disso, leva mal rumo. Estamos em pleno mar. O artista, tal como os outros, tem que remar, por sua vez, sem morrer, se puder, isto é, continuando a viver e a criar. (CAMUS, s/dB: 137-138).

Em suma, à luz do romancista-filósofo africano, podemos pensar sobre a relação entre Filosofia e Literatura a partir de um compromisso ético-político do escritor engajado, levando em consideração o cuidado minucioso com as palavras e suas consequências no presente. A ética da responsabilidade da escrita engajada camusiana exige uma crítica intransigente contra as filosofias que justificam a morte em nome de ideologias e das engrenagens dos Estados que se sustentam a partir do paradigma do medo encarnado no cotidiano e que precisa ser enfrentado. Em outras palavras, Camus nos leva a refletir sobre as consequências éticas da escrita evocando a responsabilidade dos intelectuais, recusando a apatia e a passividade diante de um mundo constantemente aniquilado com a atmosfera política sombria do seu Século, assim como nós também no presente momento do atual contexto político brasileiro. Diante disso, como Camus, é preciso romper com o silêncio e pensarmos hoje em como nos comprometermos, sem nada temer.

Referências Bibliográficas AMITRANO, Georgia Cristina. Albert Camus:um pensador em tempos sombrios. Uberlândia: EDUFU, 2014. ARAÚJO, Pedro Zambarda. Jornalismo francês e Albert Camus. Revista Anagrama. Revista Interdisciplinar da Graduação, 2009. Disponível em: <http:// www.usp.br/anagrama/Zambarda_Camus.pdf>. Acesso: Ago. 2016. ARONSON, Ronald. Camus e Sartre. O fim de uma amizade no pós-guerra. Editora Nova Fronteira: São Paulo, 2007. BARRETO, Vicente. Camus – Vida e Obra. José Álvaro Editor S.A.: Rio de Janeiro, 1971.

Volume 6 no 1

151


Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

CAMUS, Albert. A Inteligência e o Cadafalso e outros ensaios. Rio de Janeiro: Record, 1998. _______. Cartas a um amigo alemão.Lisboa: Edição Livros do Brasil, s/dA. _______. O Avesso e o Direito seguido de Discursos da Suécia. Lisboa: Livros do Brasil, s/dB. _______. Primeiros Cadernos.Lisboa: Edição Livros do Brasil, s/dC. _______. O Mito de Sísifo – ensaio sobre o absurdo. Rio de Janeiro: Record, 2004. DENIS, Benoît. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. São Paulo: EDUSC, 2002. GERMANO, Emanuel Ricardo. O pensamento dos limites: contingência e engajamento em Albert Camus. Tese de Doutorado - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo: São Paulo, 2008. PINTO, Manuel da Costa.Albert Camus: um elogio do ensaio. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998. SILVA, Nilson Adauto Guimarães da.Albert Camus e a Cultura Grega Clássica. Disponível em: <http://migre.me/gm7gl>. Acesso em: Ago. 2016 LEOPOLDO, Franklin. Ética e Literatura em Sartre: ensaios introdutórios. São Paulo: Editora UNESP, 2004. TODD, Oliver. Albert Camus: uma vida. Rio de Janeiro: Record, 1998. WEYEMBERGH, M. Albert Camus ou la mémoire des Origines. Paris: Le point philosophique. De Boeck Université, 1998.

Volume 6 no 1

152


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático Jéssyca Aragão de Freitas1 Resumo: Em sua obra Crepúsculo dos ídolos, mais precisamente no capítulo intitulado “O Problema de Sócrates”, Nietzsche discorre sobre a Mosca de Atenas e vê nele o caráter de decadência que subverteu a atividade lúdica dos gregos para algo propriamente moral e valorativo. No desenrolar de sua cultura, os gregos passaram a incorporar juízos de valor cada vez mais intensificados e começaram a se colocar acima da própria vida, resguardando ao caráter racional a fundamentação de suas próprias existências. O tipo mais sofisticado de tal sintoma seria Sócrates. Enquanto meio idiossincrático dos valores metafísicos, Sócrates perpetuaria a crença nas dualidades, a crença nos valores absolutos e, por conseguinte, a desvalorização do caráter de vir-a-ser à própria existência. A moralidade, nesse sentido, seria posta como inimiga da vida; inimiga da exacerbação dos instintos – característica crucial da vontade de potência que permeia todas as relações. No jogo da racionalidade socrática os valores se invertem: a dialética e sua retórica argumentativa passam a se consolidar contra o argumento da autoridade – fruto da superabundância dos instintos. Sócrates, sendo também fruto dessa decadência dos valores tradicionais gregos, emerge como contraponto, com recurso à decadência de tais valores. O presente trabalho tem como base a interpretação de Nietzsche sobre a decadência dos valores tradicionais gregos e a consequente emergência da 1

Graduada e Mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará - UECE

Volume 6 no 1

153


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

racionalidade dialética, fruto do cultivo de uma existência pautada em valores cada vez mais transcendentais em detrimento do caráter aparente e contingencial da própria vida. Nietzsche, nesse sentido, tipifica Sócrates como aquele que concedeu aos gregos o remédio ideal para tal decadência: a moral construída sobre os alicerces da razão, virtude e felicidade. O próprio Sócrates seria, segundo Nietzsche, a figura paradigmática do sintoma de decadência, e aquela da qual a filosofia se tornara alicerce de uma metafísica pautada em subterfúgios dualistas. Palavras-chave: Nietzsche; Sócrates; Decadência; Moralidade; Razão.

Nietzsche et la décadence hellénique: un problème socratique Résumé: Dans son œuvreCrépuscule des Idoles, plus précisément dans le chapitre intitulé « Le problème de Socrate », Nietzsche parle de la Mouche d'Athènes et voit en elle le caractère de décadence qui subvertit l'activité ludique des grecs pour quelque chose proprement morale et évaluatif. Dans le dérouler de leur culture, les Grecs ont commencé à incorporer des jugements de valeur de plus en plus intensifiés et ont commencé à mettre au-dessus de la propre vie, gardant au caractère rationnel la basede leurs propres existences. Le type le plus sophistiqué de ces symptômes serait Socrate. Tandis que moyen idiosyncrasique des valeurs métaphysiques, Socrate aura perpétué la croyance en dualités, la croyance dans les valeurs absolues et donc la dévaluation du caractère à venir-à-être à leur propre existence. La moralité, en ce sens, elle serait placée comme ennemie de la vie; ennemie d'exacerbation des instincts – une caractéristique essentielle de la volonté de puissance qui imprègne toutes les relations. Dans le jeu de la rationalité socratique les valeurs sont inversées: la dialectique et sa rhétorique argumentative commencent à consolider contre l'argument d'autorité – fruit de la surabondance des instincts. Socrate, étant également fruit de cette décadence des valeurs traditionnelles grecques, émerge comme un contrepoint, avec ressourceà la décadence de ces valeurs. Ce travail est basé sur l'interprétation de Nietzsche sur la décadence des valeurs traditionnelles grecques et la conséquente émergence de la rationalité dialectique, fruit de la cultivation d’une existence guidé des valeurs de plus en plus transcendantales au détriment du caractèreapparente et contingente de la vie elle-même. Nietzsche, en ce sens, caractérise Socrate comme celui qui a donné à les grecs le remède idéal pour une telle décadence: la morale construite sur les fondations de la raison, la vertu et le bonheur. Socrate lui-même était, selon Nietzsche, la figure paradigmatique de la décadence et ce qui la philosophie est devenue le fondement d'une métaphysique guidée par subterfuge dualiste. Mots-clés: Nietzsche; Socrate; Décadence; Moralité; Raison.

E

m O Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche efetua uma crítica à filosofia socrática e ao que considera ser o sintoma de uma inversão dos valores próprios da cultura helênica, baseados em uma afirmação da vida e dos instintos humanos. A inversão destes valores, segundo o filósofo alemão, culminaria em uma decadência dos impulsos helênicos. O tipo característico desta decadência seria

Volume 6 no 1

154


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

Sócrates, ao propor como remédioà decadência uma supervalorização da racionalidade em detrimento dos valores de afirmação da vida. A obra apresenta uma oposição aos sistemas filosóficos e morais que se constituem a partir de juízos de valor sobre da vida – como se esta fosse passível de ser conceituada de forma racionalmente válida.Para o filósofo, todo e qualquer julgamento acerca da vida é incognoscível ao homem, enquanto vivente e participante desta. Tais julgamentos, conseguintemente, são apenas sintomas da decadência:

Juízos, juízos de valor acerca da vida, contra ou a favor, nunca podem ser verdadeiros, afinal; eles têm valor apenas como sintomas, são considerados apenas enquanto sintomas — em si, tais juízos são bobagens. É preciso estender ao máximo as mãos e fazer a tentativa de apreender essa espantosa finesse [finura], a de que o valor da vida não pode ser estimado. Não por um vivente, pois ele é parte interessada, até mesmo objeto da disputa, e não juiz; e não por um morto, por um outro motivo. — Que um filósofo enxergue no valor da vida um problema é até mesmo uma objeção contra ele, uma interrogação quanto à sua sabedoria, uma não-sabedoria2.

Tais sistemas são característicos da metafísica tradicional, que se alicerça sobre fundamentos últimos acerca da realidade. Contrariamente a esses sistemas fundacionais, Nietzsche propõe sua “filosofia do martelo”, ou seja, demolir as velhas verdades e propor um novo tipo de cultura, voltada para a dinamicidade do vir-a-ser, do caráter contingencial da vida. No capítulo “O Problema de Sócrates” da referida obra, Nietzsche aponta os principais sintomas da decadência da Mosca de Atenas, desenvolvidos como juízos de valor acerca da vida: seu moralismo patológico; a equivalência entre razão=virtude=felicidade; a descrença dos valores ascendentes da vida; a razão enquanto condutora de conceitos eternos e absolutos; o abandono dos impulsos como critério de aperfeiçoamento humano e as dualidades decorrentes de sua metafísica, evidenciadas através de seus conceitos de “mundo verdadeiro” e“mundo aparente”. Para Sócrates, o aperfeiçoamento humano estava intimamente relacionado à domesticação dos instintos por meio da razão. Segundo ele, é preciso que o homem desvie-se das coisas ligadas ao corpóreo e direcione-se às coisas inteligíveis. É

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 2. 2

Volume 6 no 1

155


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

preciso, portanto, abandonar os instintos e necessidades corporais e elevar-se para a busca de coisas mais nobres, louváveis eracionais. Como dissemos anteriormente, Nietzsche considerava os juízos acerca da vida meros sintomas da decadência, sintomas estes efetivados por meio de um instrumento capaz de elevar os valores ascendentes – instintuais – da vida em prol do elemento racional: tal instrumento é a dialética. A filosofia socrática é, pois, dialética por excelência, na qual sua força está centrada em seu caráter de elucidação argumentativa. Um dos principais elementos do método dialético socrático é a ironia3 , no qual o filósofo simula a própria ignorância e mostra-se interessado em aprender com seu interlocutor, assumindo a posição de questionador e estimulando o interlocutor a respondê-lo, a posicionar-se, enquanto este imprudentemente acredita ser possuidor de um saber.Neste ponto, ironia e refutação (elenchos) se encontram, pois, ao fingir concordar com as teses sugeridas pelo interlocutor, ainda sob o disfarce de “nada saber”, o filósofo engrandece-as a ponto de ridicularizálas,evidenciando seus problemas formais e induzindo o interlocutor à refutação de si mesmo e ao reconhecimento da própria ignorância4 . Assim, a refutação purifica a alma do interlocutor das falsas opiniões, preparando-lhe para a descoberta do conhecimento verdadeiro. Na “Alegoria da Caverna” presente no livro VII d’A República, a dialética é apresentada como o instrumento capaz de libertar o filósofo de sua morada subterrâneae elevá-lo para o mundo real, para o mundo das essências imutáveis. A dialética, portanto, libertaria o conhecimento das hipóteses e do sensível, permitindo ao homem alcançar aquilo que é verdadeiro e essencial em cada coisa, pela percepção da realidade inteligível da qual participa o objeto de investigação5. Em contrapartida, para Nietzsche a dialética socrática é propriamente o instrumento de decomposição do elemento trágico existente na civilização helênica até então. O uso dialético para Sócrates, segundo Nietzsche, é uma forma daquele tornar-se tirano, tornar-se sábio ao devolver um contra-argumento plausível para seu interlocutor e fazer dele joguete de suas próprias concepções. A dialética seria, para o 3

Do grego eironeía, que significa “ignorância simulada”.

Em resumo, Pierre Hadot explica: “La ironía socrática consiste en fingir querer aprender algo de su interlocutor para llevarlo a descubrir que no conoce nada en el campo en el que pretende ser sabio." Cf. HADOT, Pierre. ¿Qué es la filosofía antigua? Traducción de ElianeCazenave Tapie Isoard. México: Fondo de Cultura Económica, 1998. No livro I da República, em diálogo com Sócrates, Trasímaco afirma: “Ó Hércules! Cá está a célebre e costumada ironia de Sócrates! Eu bem o sabia, e tinha prevenido os que aqui estão de que havias de te esquivar a responder, que te fingirias ignorante, e que farias de tudo quanto há para não responder, se alguém te interrogasse”. Cf. PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2014. 337a. 4

PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2014. 534b. 5

Volume 6 no 1

156


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

filósofo alemão, um modo de degradar a inteligência de seu antagonista e, por conseguinte, uma forma de vingança do próprio Sócrates ante os instintos até então usufruídos pelos helênicos. No sétimo parágrafo, Nietzsche indaga:

— É a ironia de Sócrates uma expressão de revolta? De ressentimento plebeu? Goza ele, como oprimido, de sua própria ferocidade nas estocadas do silogismo? Vinga-se ele dos homens nobres a quem fascina? — Como dialético, tem-se um instrumento implacável nas mãos; pode-se fazer papel de tirano com ele; expõe-se o outro ao vencê-lo. O dialético deixa ao adversário a tarefa de provar que não é um idiota: ele torna furioso, torna ao mesmo tempo desamparado. O dialético tira a potência do intelecto do adversário. — Como? A dialética é apenas uma forma de vingança em Sócrates? 6

Os modos dialéticos eram repudiados por toda sociedade helênica aristocrática até Sócrates. Tais modos associavam-se a desonestidade e, consequentemente, eram tidos como inconvenientes. Como exercício da razão e da elucidação argumentativa, a dialética contrapunha-se a aristocracia, fundamentada na autoridade e no comando. Neste contexto, a boa sociedade “desconfiava de toda essa exibição dos próprios motivos7 ”, pois, como esclarece Nietzsche,

Coisas de respeito, como homens de respeito, não trazem assim na mão os seus motivos. É indecoroso mostrar todos os cinco dedos. É de pouco valor aquilo que primeiramente tem de se provar. Onde a autoridade ainda faz parte do bom costume, onde não se “fundamenta”, mas se ordena, o dialético é uma espécie de palhaço: as pessoas riem dele, não o levam a sério8.

Contudo, em dado momento, o gosto helênico se altera em favor da dialética e aquilo que antes era objeto de repúdio para a aristocracia, torna-se remédio. Tal inversão de valores ocorre através da dialética socrática – recurso último da decadência. Se antes tínhamos a afirmação de gostos refinados, agora, com NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 7. 6

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 5. 7

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 5. 8

Volume 6 no 1

157


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

a ascensão dialética, a plebe chega ao alto por intermédio de Sócrates. O filósofo grego, desse modo, “foi o palhaço que se fez levar a sério9”. É necessário, portanto, investigar o que de fato aconteceu. No parágrafo nove, Nietzsche descreve que a deterioração dos instintos já estava ocorrendo em toda a Atenas e que, diante disto, a cidade caminhava para o fim. É dessa maneira que Sócrates intervém como última esperança de reconstrução dos helenos e, consequentemente, sua dialética – antes repudiada pela sociedade helênica – apresenta-se como remédio para a decadência:

A mesma espécie de degenerescência já se preparava silenciosamente em toda parte: a velha Atenas caminhava para o fim. — E Sócrates entendeu que o mundo inteiro dele necessitava — de seu remédio, seu tratamento, seu artifício pessoal de autopreservação.... Em toda parte os instintos estavam em anarquia; em toda parte se estava a poucos passos do excesso: o monstrum in animo era o perigo geral. “Os instintos querem fazer o papel de tirano; deve-se inventar um contratirano que seja mais forte” 10.

O contratirano, além de inventado, se consolidou entre os atenienses, propondo-lhes um novo meio de tornar suas existências suportáveis. O significado dessa virada dialética é a construção do homem teórico em contraponto ao homem lúdico, afirmador de sua existência. Assim, em suma, o remédio socrático para decadência surge entre os helenos como um propulsor da própria decadência, enquanto instrumento de degeneração dos instintos – propriedades fulcrais da vontade de potência presente em todas as relações – e do caráter contingencial da vida, enquanto projeto de uma existência fundada em valores transcendentais. Ao eleger a dialética como antídoto necessário para regeneração da decadência helênica, o filósofo grego faz da razão um tirano. A racionalidade, deste modo, é tomada como elemento redentor do mundo helênico e os instintos humanos – alicerces da cultura helênica – são substituídos pelo otimismo tirânico da razão, como explica Nietzsche: “A racionalidade foi então percebida como salvadora, nem

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 5. 9

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 9. 10

Volume 6 no 1

158


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

Sócrates nem seus “doentes” estavam livres para serem ou não racionais — isso era de rigueur [obrigatório], era seu último recurso11”. Assim, com a ascensão da dialética socrática, todos os instintos humanos tornaram-se sinônimos de decadência e fraqueza. Para a filosofia socrática – compreendida como atividade autônoma do pensamento – os instintos tornaram-se obstáculos para ascensão à verdade, como podemos verificar através da seguinte passagem do diálogo Fédon, de Platão:

E com referência à aquisição do conhecimento. O corpo constitui ou não um obstáculo, quando chamado para participar da pesquisa? O que digo é o seguinte: a vista e o ouvido asseguram aos homens alguma verdade? Ou será certo o que os poetas não se cansam de afirmar, que nada vemos nem ouvimos com exatidão? Ora, se esses dois sentidos corpóreos não são nem exatos nem de confiança, que diremos dos demais, em tudo inferiores aos primeiros? Não pensas desse modo? [...] Então quando é que a alma atinge a verdade? É fora de dúvida que, desde o momento em que tenta que investigar algo na companhia do corpo, vê-se logrado por ele. [...] Ora, a alma pensa melhor quando nada disso tem a perturbá-la, nem a vista nem o ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e, concentrada ao máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando o tanto quanto possível qualquer comércio com ele, e esforça-se para apreender a verdade 12.

O corpo e os instintos humanos adquirem, por meio de Sócrates, um estatuto epistemológico e moral de inferioridade. Há, na filosofia socrática, uma tentativa de denegação do caráter aparente e contingencial da própria vida. Os instintos, neste sentido, promovem o distanciamento da verdade – que deve, a todo custo, ser buscada. Torna-senecessário, portanto, lutar contra os instintos e influências corporais, em prol da soberania da razão. É preciso, sobretudo, combater racionalmente as paixões. É por isso que Sócrates afirma, no Fédon, que a filosofia, enquanto esforço de desvinculação da alma em relação às exigências corpóreas, pode ser considerada uma preparação para morte, uma libertação do corpo: “é possível que

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 10. 11

12

PLATÃO. Fédon. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: ed.ufpa, 2011. 65a-c.

Volume 6 no 1

159


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

todos os que se dedicam verdadeiramente à Filosofia a nada mais aspirem do que morrer e estarem mortos13”. Com o otimismo da razão –único recurso para perpetuação da existência –, os instintos transformam-se em empecilhos,à medida que propendem ao contingente e não à atividade racional; tais instintos, portanto, devem ser superados para que a racionalidade conserve-se imaculada, nítida e impalpável. Em síntese, Sócrates surge, em um período de decadência helênica, como o recurso último e “médico” necessário para a decadência. Contudo, para Nietzsche, Sócrates foi não só fruto desta decadência, mas também o mais decadente dos gregos, além da figura paradigmática mais sofisticada do sintoma de decadência.

— Seu caso era, no fundo, apenas o caso extremo, o que mais saltava aos olhos, daquilo que então começava a se tornar miséria geral: que ninguém mais era senhor de si, que os instintos se voltavam uns contra os outros. Ele fascinou por ser esse caso extremo — sua amedrontadora feiura o distinguia para todos os olhos; ele fascinou ainda mais intensamente, está claro, como resposta, como solução, como aparência de cura para esse caso14.

A partir de Sócrates a razão tornou-se o fundamento de todo moralismo, formulado sobre a equação razão=virtude=felicidade 15. Para Nietzsche,o grande engenho de Sócrates foi ter descoberto o remédio necessário para aquele momento de crise. Entretanto, a superabundância lógica e teórica empregada pelo filósofo grego culminaram no esgotar-se do caráter instintivo e inconsciente da existência helênica e, semelhantemente, a degradação dos impulsos provocara a exacerbação da racionalidade. Os filósofos moralistas posteriores, ressalta ainda Nietzsche, prosseguiram imitando o erro socrático – a crença na racionalidade a qualquer preço PLATÃO. Fédon. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: ed.ufpa, 2011. 64a. Ao discorrer sobre o assunto, G. Reali explica: “o verdadeiro filósofo deseja a morte, e a verdadeira filosofia é exercício de morrer”. Cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia Grega e Romana III - Platão. São Paulo: Edições Loyola, 2007. Pág. 204. No Fédon, aprender a filosofar significa aprender a morrer em vida, isto é, aprender a neutralizar o máximo possível às necessidades corpóreas, para que as mesmas não obstruam a ascese da alma e esta, por sua vez, purifique-se a fim de alcançar o conhecimento verdadeiro. 13

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 9. 14

“Tento compreender de que idiossincrasia provém a equação socrática de razão = virtude = felicidade: a mais bizarra equação que existe, e que, em especial, tem contra si os instintos dos helenos mais antigos.” Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 4. 15

Volume 6 no 1

160


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

–, alterando apenas a expressão da decadência para uma ideia de moral do aperfeiçoamento.

O fanatismo com que toda a reflexão grega se lança à racionalidade mostra uma situação de emergência: estavam em perigo, tinham uma única escolha: sucumbir ou — ser absurdamente racionais... O moralismo dos filósofos gregos a partir de Platão é determinado patologicamente; assim também a sua estima da dialética. Razão = virtude = felicidade significa tão-só: é preciso imitar Sócrates e instaurar permanentemente, contra os desejos obscuros, uma luz diurna — a luz diurna da razão. É preciso ser prudente, claro, límpido a qualquer preço: toda concessão aos instintos, ao inconsciente, leva para baixo... 16

Na Apologia a Sócrates, o próprio filósofo grego anuncia-se como exemplo a ser imitado. Segundo sua interpretação do oráculo dos Delfos, o deus Apolo não apenas o proclamara o mais sábio de todos os homens, mas também convocaratodos os homens a se tornarem sábios como ele:

E parece que, falando desse Sócrates, ele utiliza meu nome fazendome exemplo (parádeigma), como se dissesse: “entre vós, ó humanos, o mais sábio é aquele que, como Sócrates, reconhece que verdadeiramente não vale nada diante do saber” 17.

Sócrates acreditava que o deus lhe havia empregado uma importante tarefa: tornar os homens melhores através da razão. Para tanto, o filósofo grego deveria fazer com que estes reconhecessem, por meio da dialética, suas próprias ignorâncias. Era preciso, portanto, que os homens adotassem um ideal de vida assentando em uma ininterrupta busca pelo saber e pela verdade. Nesse viés, emerge a suficiência do homem teórico, profundamente convicto de que a razão é o instrumento necessário para que o homem ascenda e alcance a verdade; trata-se de uma "ilusão metafísica" que se perpetuará na atividade filosófica de grande parte da história da filosofia. NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 10. 16

PLATÃO. Apologia a Sócrates. 23a-b. Tradução feita diretamente do grego pela própria autora do artigo, com base notexto estabelecido por John Burnet. 17

Volume 6 no 1

161


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

Para Nietzsche, a dialética socrática – ou o “remédio socrático” –, foi um mero paliativo aos valores até então caracterizados como nobres, pois longe de fornecer uma cura para a “doença ateniense”, tal método, contrariamente, apenas fomentoua decadência:

Sócrates foi um mal-entendido: toda a moral do aperfeiçoamento, também a cristã, foi um mal-entendido... A mais crua luz do dia, a racionalidade a todo custo, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, em resistência aos instintos, foi ela mesma apenas uma doença, uma outra doença — e de modo algum um caminho de volta à “virtude”, à “saúde”, à felicidade... Ter de combater os instintos — eis a fórmula da décadence: enquanto a vida ascende, felicidade é igual a instinto18.

Sócrates, deste modo, não foi apenas o mais decadente dos gregos, mas foi também aquele que conduziu o povo ateniense para a solidificação da decadência, enquanto negação dos instintos. O remédio apresentado por Sócrates revelou-se como uma doença ainda mais grave, pois fez com que os sábios tivessem a pretensão de colocarem-se acima da vida, para julgá-la. Tal julgamento sustenta-se na máxima: [a vida] “ela não vale nada”. O filósofo grego, deste modo, transformou sua doença em regra moral para a vida de muitos filósofos posteriores, que perceberam em seu modo de viver e em seu sofrimento o fundamento da própria existência. Logo, Sócrates não foi o único decadente, pois, tal como ele, todos aquelas considerados os “mais sábios de todos os tempos” negaram a vida e, por conseguinte, todos eles foramdecadentes.A busca de uma verdade absoluta, permanente e transcendental representa um instinto de degeneração e de morte. Para Nietzsche, contrariamente, a vida possui um valor máximo, na qual nenhum ideal transcendental pode apreendê-la. Em suma, a vida basta a si mesma. Nietzsche ainda ressalta que a ilusão dialética – isto é, a ideia de dialética como remédio para à decadência – construída por Sócrates é, por fim, rejeitada pelo próprio filosofo grego, pois este, na verdade, almejava a própria morte.

18NIETZSCHE,

Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 11.

Volume 6 no 1

162


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

— Terá ele mesmo compreendido isto, esse mais sagaz dos ludibriadores de si mesmo? Terá dito isto a si próprio afinal, na sabedoria de sua coragem ante a morte?... Sócrates queria morrer: — não Atenas, mas ele deu a si veneno, ele forçou Atenas ao veneno... “Sócrates não é um médico”, disse para si em voz baixa, “apenas a morte é médico aqui... Sócrates apenas esteve doente por longo tempo...” 19

O único médico capaz de remediar Sócrates foi, por fim, a morte. Não é à toa que o filósofo grego, à beira da morte, anuncia:“Viver — significa há muito estar doente: devo um galo a Asclépio, o salvador20”.Sócrates esteve somente doente por um longo período21. O posicionamento de Sócrates perante a morte exemplifica nitidamente o julgamento negativo efetuado pelos sábios acerca da vida – ela não vale nada. Nietzsche compreende que este juízo de valor a respeito da vida, tal como este cansaço vital demonstrado por Sócrates, são sintomas de uma doença: toda e

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 12. 19

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo “O Problema de Sócrates”, § 1. Nietzsche refere-se a seguinte passagem doFédon, na qual Platão narra os últimos instantes da vida do mestre: “E ele [Sócrates], sem deixar de andar, ao sentir as pernas pesadas, deitou-se de costas, como recomendara o homem do veneno. Este, a intervalos, apalpava-lhe os pés e as pernas. Depois, apertando com mais força os pés, perguntou se sentia alguma coisa. Respondeu que não. Em seguida, sem deixar de comprimir-lhe a perna, do artelho para cima, mostrou-nos que começava a ficar frio e a enrijecer. Apalpando-o mais uma vez, declarou-nos que no momento em que aquilo chegasse ao coração, ele partiria. Já se lhe tinha esfriado quase todo o baixo-ventre, quando, descobrindo o rosto – pois o havia tapado antes – disse, e foram suas últimas palavras: – ‘Críton’ exclamou, ‘devemos um galo a Asclépio. Não te esqueças de saldar essa dívida!’ – ‘Assim farei’, respondeu Críton; ‘vê se queres dizer mais alguma coisa.’ A essa pergunta, já não respondeu. Decorrido mais algum tempo, deu um estremeção. O homem o descobriu; tinha o olhar parado. Percebendo isso, Críton fechou-lhe os olhos e a boca”. Cf. PLATÃO. Fédon. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: ed.ufpa, 2011. 117e-118a (Grifo nosso). Na mitologia grega, Asclépio representa o deus da medicina e, portanto, é aquele que promove a cura. Durante seu culto, o povo helênico sacrificava galos como oferendas em agradecimento a determinadas curas alcançadas. Ao se remeter ao deus em seu último instante de vida, Sócrates parece agradecê-lo pela única cura possível, a saber, a morte. Neste sentido, viver é estar doente e morrer é curar-se. 20

Em sua obra A gaia ciência, Nietzsche ainda escreve: “Terá sido a morte, ou o veneno, ou a piedade, ou a malícia – alguma coisa lhe desatou naquele instante a língua, e ele falou: ‘Oh, Críton, devo um galo a Asclépio.’ Essa ridícula e terrível ‘última palavra’ quer dizer, para aqueles que têm ouvidos: ‘Oh, Críton, a vida é uma doença!’ Será possível? Um homem como ele, que viveu jovialmente e como um soldado à vista de todos – era um pessimista? Ele havia feito uma cara boa para a vida, o tempo inteiro ocultando o seu último juízo, seu íntimo sentimento! Sócrates, Sócrates sofreu da vida! E ainda vingou-se disso – com essas palavras veladas, horríveis, piedosas e blasfemas! Também Sócrates necessitou de vingança? Faltou um grão de generosidade à sua tão rica virtude? – Ah, meus amigos, nós temos que superar também os gregos!” Cf. NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Livro quarto, § 340 – Sócrates Moribundo. 21

Volume 6 no 1

163


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

qualquer negação da vida representa um sintoma de morbidade, de debilidade e de degeneração impulsional. Com a dialética socrática e a supervalorização da filosofia teórica, a própria vida adquire um negativo juízo de valor, transformando-se em uma incessante busca pela verdade absoluta. Desse modo, o filósofo grego torna-se a mais emblemática personificação da decadência e da falta de hierarquização dos impulsos. Através de Sócrates a filosofia teórica ergue-se em detrimento dos instintos e dos impulsos corpóreos e, assim, a figura do filósofo grego torna-se o ponto de partida de toda filosofia decadente: é preciso imitar Sócrates. Sócrates transforma-se, pois, no modelo ideal a ser seguido pelos grandes sábios, pelos transmissores da filosofia metafísica dualista ou, mais precisamente, da doença metafísica.

Referências ALVES, Alexandre. Helenismo e crítica da modernidade: A relação com a Antiguidade no pensamento de Nietzsche. Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, págs. 1-17, 2008. AZEREDO, V. D. Nietzsche e os gregos. Revista Hypnos, São Paulo, n. 21, p. 273-287, 2008. BITTENCOURT, Renato Nunes.Nietzsche e a fisiologia como método de interpretação de mundo.Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche,Rio de Janeiro,vol. 4, n. 1, págs. 67-86, 2011. FREZZATTI Jr., Wilson Antônio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura / biologia. Ijuí: Editora da UNIJUÍ, 2006. __________________________. A psicologia de Nietzsche: afirmação e negação da vida como sintomas de saúde e doença. In: SOUZA, E. C. de; CRAIA, E. C. P. Ressonâncias filosóficas: entre o pensamento e a ação. Cascavel: EDUNIOESTE, 2006b. Págs. 65-82. __________________________. O problema de Sócrates: um exemplo da fisiopsicologia de Nietzsche. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 20, n. 27, págs. 303-320, 2008. HADOT, Pierre. ¿Qué es la filosofía antigua? Traducción de ElianeCazenave Tapie Isoard. México: Fondo de Cultura Económica, 1998.

Volume 6 no 1

164


Nietzsche e a decadência helênica: um problema socrático, pp. 153-165

MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 2006. _______________. Nietzsche: uma filosofia a marteladas. São Paulo: Brasiliense, 1991. MENEGHATTI, Douglas. As imagens de Sócrates na filosofia de Nietzsche. Kínesis, São Paulo, Vol. VI, n° 12, p.74-88, 2014. NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. __________________. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2014. _______. Fédon. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: ed.ufpa, 2011. PLATO. Platonis Opera. Texto estabelecido por John Burnet. 1ª Edição. Oxford: Oxford University Press, 1903. REALE, Giovanni. História da Filosofia Grega e Romana III - Platão.São Paulo: Edições Loyola, 2007.

Volume 6 no 1

165


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi Alan Duarte Araújo Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar de que maneira, em Auschwitz, ocorre a transposição de uma ética, nietzschiana, que lida com a figura de um “superhomem”, para uma ética circunscrita em um “sub-homem”. Tamanho impasse se explica a partir da tentação de analisar a figura do “campo”, a qual Primo Levi descreve em seus textos, tendo em vista conceitos chaves nietzschianos, de maneira que a estrutura concentracionária nazista passa a ser vista como expressão da vida enquanto “vontade de poder”, em toda sua dimensão cruel. Dessa forma, a confusão se estabelece em torno da figura dos “proeminentes”, como uma possível expressão de uma “aristocracia guerreira” definidora de valores e que, enquanto nobres, possuiriam poder sobre si e sobre seu destino; sobre a relação entre “memória” e “esquecimento”, uma vez que ambas podem ser tomadas como expressão de uma “força ativa”, com fins a conservação da “ordem psíquica”; além da possibilidade de no campo ser distinguido claramente uma suposta oposição entre os “fracos”

Volume 6 no 1

166


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

e os “fortes”, sob o critério da sobrevivência no “campo”. No entanto, a análise mais detalhada das considerações do Primo Levi acerca de Auschwitz revela as variadas aporias que tal ponto de vista implica, levando em consideração, principalmente, o que o autor italiano compreende por “Zona cinzenta”. Para tanto, parte-se da perspectiva de que o descrito pelo autor em “É isto um homem?”, no capítulo intitulado “Aquém do bem e do mal”, enquanto uma intrincada relação do lícito e ilícito do “campo”, na verdade é uma reflexão que perpassa por toda a obra, revelando sobre a figura do “muçulmano”, como o “sub-homem”, a chave de compreensão do “campo” e da estrutura jurídico-política que o leva a acontecer. Desse modo, a verdade do “campo” não estaria na figura do “proeminente”, quando, na realidade, ele também está destinado a morrer lá dentro. Para tal análise, leva-se em consideração, além das obras do filósofo alemão Nitezsche e do intelectual italiano (e sobrevivente do “campo”) Primo Levi, os apontamentos feitos por Giorgio Agamben na obra “O que resta de Auschwitz?”. Por fim, depois de Auschwitz, as esperanças nietzschianas na figura daquele que, pleno de alegria e de força, redimirá as esperanças no homem comum, foram minoradas. Resta compreender o “testemunho” dos sobreviventes do “campo” para lutar contra a ameaça do fascismo ainda presente. Palavras-chave: Primo Levi; Auschwitz; Ética.

Résumé: Cette étude vise à examiner comment, à Auschwitz, est la mise en œuvre d'une éthique, de Nietzsche, qui traite de la figure d'un “surhomme” pour l'éthique confinée dans un “sous-homme”. Impasse taille est expliquée de la tentation d'analyser la figure du “champ” qui Primo Levi décrit dans ses écrits, dans les concepts de commande clés nietzschéens, de sorte que la structure concentrationnaire nazie est considérée comme une expression de la vie “volonté de puissance”, dans toute sa dimension cruelle. Ainsi, la confusion est établie autour de la figure du “premier plan” comme possible l'expression d'une “aristocratie guerrière” définissant les valeurs et que, si noble, possèdent un pouvoir sur eux-mêmes et sur leur destin; sur la relation entre la “mémoire” et “oblivion”, puisque les deux peuvent être considérés comme l'expression de “force active” à des fins de conservation “préjudice psychologique”; outre la possibilité du terrain, il se distingue nettement d'une prétendue opposition entre la “faible” et “forte” selon le critère de la survie dans le “champ”. Cependant, une analyse plus détaillée des considérations Primo Levi sur Auschwitz révèle les apories variés qu'une telle vision implique, en tenant compte en particulier, que l'auteur italien entend par “zone grise”. Par conséquent, nous partons du point de vue que décrit par l'auteur dans “Est-ce un homme?” Dans le chapitre intitulé “Court du bien et du mal”, tandis qu'une relation complexe du bien et du mal “champ” en fait il est une réflexion qui imprègne tout le travail, révélant sur la figure du “musulman” que la compréhension “sous-humaine” du “champ” clé et le cadre juridique et politique qui conduit à se produire. Ainsi, la vérité serait du “champ” ne pas être en position de “remarquable” quand, en réalité, il est également destiné à mourir. Pour cette analyse prend en compte, outre les travaux du

Volume 6 no 1

167


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

philosophe allemand Nitezsche et intellectuel italien (et Survivor “champ”) Primo Levi, les notes faites par Giorgio Agamben dans le livre “Ce qui reste d'Auschwitz?”. Enfin, après Auschwitz, le chiffre nietzschéenne d'espoir en ce plein de joie et de force, espère racheter l'homme du commun, ils ont été amoindries. Il reste à comprendre le “témoignage” des survivants du “champ” pour lutter contre la menace du fascisme toujours présent. Mots-clés: Primo Levi; Auschwitz; Éthique.

Introduçāo

P

ensar a estrutura concentracionária do “campo” (também conhecido por Lager) nazista, diz respeito a evitar, primordialmente, circunscrevê-lo em uma dimensão histórica e territorial precisa, enquanto uma “anomalia” ocorrida no passado. Na realidade, é mais vantajoso a compreensão de sua essência, ou seja, da estrutura jurídico-política que o levou a ocorrer, de modo que possibilita o leitor a perceber suas diversas manifestações ao longo da história no Ocidente, bem como o “espectro” do fascismo que ronda na atualidade. No entanto, a tentativa de compreensão do que seja o “campo” parece guiar a infindáveis “aporias”, levando em consideração os próprios “paradoxos” lá presentes, bem como à figura do “testemunho” e a impropriedade da língua dos homens livres de dar conta do que ocorreu em Auschwtiz. Palavras como “frio”, “fome”, “cansaço” são insuficientes para representar tamanha crueldade, o que levou o Primo Levi (1988, p. 182) a afirmar que se “os Campos de Extermínio tivessem durado mais tempo, teria nascido uma nova, áspera linguagem […]”. Mas ele também oferece chaves para a compreensão dessa estrutura complexa. E, ainda uma vez, hoje, como na antiga lenda, nós todos percebemos (e os mesmos alemães o percebem) que uma maldição – não transcendente e divina, mas imanente e histórica – pende sobre essa insolente estrutura, fundada na confusão das linguagens e erguida a desafiar o céu, como uma blasfêmia de pedra. (LEVI, 1988, p. 105)

Portanto, deve-se evitar a análise do ponto de vista teológico, destituindo, assim, os homens de sua culpa, enquanto a atribui a Deus. Ademais, Agamben (2008, p. 27) insiste na precariedade da análise delimitada a partir do ponto de vista jurídico, uma vez que o Direito não esgota o problema de Auschwtiz, seja em face do “testemunho”, que não é um terstis, próprio de um processo jurídico, mas um superstes, indicando aquele que vivenciou o evento, mas não como um terceiro. Isto fica claro quando o

Volume 6 no 1

168


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

próprio Primo Levi, uma testemunha no sentido não jurídico (superstes, portanto), uma vez que, judeu, foi prisioneiro no “campo”, afirma, logo no prefácio de seu livro “É isto um homem?” que não escreve para fazer novas denúncias (indicando que o próprio Direito não dá conta do que houve ali). Levando isso em consideração, é notório as inúmeras vias de análise que o “testemunho” apresenta, as quais nem sempre são próprias para um devido desvelamento do que houve no “campo” e das circunstâncias nas quais ele surge. Diante disso, entende-se que uma das possíveis vias de estudo equivocada da obra do Primo Levi é a partir da ética nietzschiana, uma vez que, nos elementos paradoxais do “campo”, tais como a figura dos “proeminentes”, a luta presente entre os prisioneiros para a sobrevivência, o problema da memória entre os sobreviventes, poder-se-ia trabalhar com conceito como “vontade de poder”, “aristocracia guerreira”, “esquecimento ativo”, conceitos do filósofo alemão Nietzsche. Nesse ponto, perderse-ia de vista a figura do “muçulmano”. Portanto, levanta-se a questão: em que medida a figura do “muçulmano” pode ser entendida como uma categoria central para a compreensão da lógica de funcionamento do “campo”, enquanto espaço paradigmático biopolítico? Para tanto, realiza-se a análise hermenêutica das obras do Primo Levi e do Nietzsche, além das considerações do Giorgio Agamben acerca de Auschwitz e do Estado de Exceção, o qual, uma vez tornado regra, permite o aparecimento daquele.

Do Estado de exceçāo ao "campo" O poder político encontra-se fundado a partir da distinção entre zoé, enquanto manifestação do simples viver biológico, comum a todos os viventes, e o bíos, entendido como as diferentes formas de viver próprias de um indivíduo ou grupo. (AGAMBEN, 2015, p. 14) No Estado normal, a “vida nua” (zoé) é reunida nas diversas formas de vida social, ao passo que no Estado de exceção, a “vida nua” aparece como o fundamento último da política. Na realidade, somente em função de uma “máquina biopolítica” é que se estabelece a distinção de tais instâncias (zoé e bíos), apresentando-se, pois, como uma “ficção de articulação”. Desse modo, Agamben (2004, p. 14) entende que a “exceção” é esse dispositivo original articulador e biopolítico que permite o Direito se referir à vida e a incluir em si por meio de sua suspensão, ligando e abandonando ao mesmo tempo o vivente ao ordenamento jurídico.

Volume 6 no 1

169


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

Levando isso em consideração, nota-se uma tentação de circunscrever espacial e temporariamente a “exceção” em face da necessidade e da emergência. Agamben (2004, p. 18) percebe justamente que o Estado de exceção tornou-se regra, não apenas uma medida excepcional, mas uma “técnica de governo”, ou seja, como um “paradigma constitutivo da ordem jurídica”. Estado esse que, em vez de se caracterizar como “pleno de poderes” (pleromatico), como a representação clássica dos Estados totalitários, assume a forma de um vazio de Direito (kenomatico), possibilitando, portanto, situá-lo face à “anomia” que lhe é constitutiva. Do seu caráter anômico que se abre uma “lacuna” a partir da qual opera uma “suspensão do ordenamento vigente para garantir-lhe a existência.” (AGAMBEN, 2004, p. 49) Tendo isso em vista, Agamben (2015, p. 42) pontua que “o campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a se tornar rega”, o que permite situá-lo não somente como um acontecimento histórico, como uma “mancha” no passado, que ficara lá, mas, na verdade, entende-se o “campo” como o “nomos do espaço político no qual vivemos”. Tal reflexão se torna clara a partir da transformação que o instituto jurídico Schutzhalf apresentou, de modo que posteriormente embasou a criação dos Lager nazista. Tal mecanismo dizia respeito à proteção da liberdade pessoal ante a suspensão da lei, que caracteriza a emergência. Posteriormente, inverte-se o intuito de tal norma, de forma que ela agora se refere a possibilidade de “prender em custódia”, preventivamente, indivíduos que representam perigo para o Estado, independentemente de qualquer comportamento penalmente relevante. (AGAMBEN, 2015, p. 42) Portanto, ante a imprudência de situar o “campo” historicamente, e de modo acabado, enquanto algo que ficara no passado, Agamben (2015, p. 45) alerta que tal espaço biopolítico se caracteriza pela “materialização do Estado de exceção” e pela “criação de um espaço para a vida nua”, em que se exerce uma “pura dominação de fato”, logo, não restrito ao seu imaginário histórico. No “campo”, ainda, é possível vislumbrar um paradoxo que lhe é constitutivo, uma vez que tal espaço se situa fora do ordenamento jurídico, mas não lhe é exterior, de tal maneira que quem nele vive está em uma “zona de indistinção” em que as barreiras entre o dentro e o fora, o lícito e o ilícito, a exceção e a regra, são borradas. Primo Levi (1988, p. 21-22) assim que chega ao campo concentracionário nazista percebe tal “anomia”. Ao descer do trem e se encaminhar para dentro do “campo”, os guardas pareciam “simples guardas” que apenas cumpriam seus deveres diários. Mas bastou Renzo demorar um instante a mais para se despedir de sua noiva, Francesca,

Volume 6 no 1

170


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

o guarda deu-lhe um soco na cara. Não obstante, ainda na chegada, o método de seleção entre os “hábeis” e os “inábeis” (estes que se dirigiriam para a câmara de gás) não seguia um critério determinado, de modo que entrava no “campo” quem casualmente descia pelo lado “certo” do vagão, uma vez que ele passou a ser aberto pelos dois lados, em que um deles conduziria à morte imediata, enquanto o outro adiaria esta morte, a qual ainda é certa. Tal anomia era o que conferia o “caráter absurdo” ao campo, de modo que Levi (1988, p. 37) se percebia tomado pela suspeita de que tudo o que ele ali vivia não passava de uma “gigantesca palhaçada”. Isto também era expresso naquilo que Levi intitula como “Aquém do bem e do mal”, enquanto uma intricada relação do lícito com o ilícito, uma vez que: […] o roubo na fábrica, punido pelas autoridades civis, é autorizado e incentivado pelos SS; o roubo no Campo, severamente reprimido pelos SS, é considerado pelos civis como operação normal de troca; o roubo entre Häftlinge, em geral, é punido, mas a punição toca, com igual severidade, tanto ao ladrão como à vítima. (LEVI, 1988, p. 125) Não a toa, o tráfico com os trabalhadores externo é considerado uma operação normal de câmbio, ainda que proibido pelo regulamento do Campo, além do roubo contra os próprios “companheiros” presos, uma vez que o roubo aqui torna-se um pressuposto de sobrevivência (ainda que aqui este termo assuma apenas a extensão da “vida nua” cujo fim, certamente, será a morte), este já aceito pelos SS.

O campo e ética nietzschiana Justamente nesta relação de lícito e ilícito no “campo”, a qual Levi traduz por “Aquém do bem e do mal”, pode-se vislumbrar uma luta pela sobrevivência entres os próprios prisioneiros, uma vez que eles se veem obrigados a roubar um dos outros para poder permanecer vivos por mais tempo. O “campo” é o espaço no qual ocorre uma “luta sem remissão”, onde “cada qual está cruelmente só” e cada um está pronto para te derrubar. (LEVI, 1988, p. 129) Quem melhor compreendeu, dentre os italianos presos, essa lógica do Lager como expressão da vida de guerra, foi o Alberto, amigo de Levi. Por isso ele revelou uma maior capacidade de adaptação, de modo que, descreve Levi (1988, p. 80-81), ele “foi à luta desde o primeiro dia”, torna-se, desde cedo, um dos privilegiados.

Volume 6 no 1

171


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

Nota-se, aqui, uma suposta convergência com o pensamento de Nietzsche, especialmente no que diz respeito a encarar a vida como expressão da “Vontade de poder”, ou seja, como sendo “essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do alheio e do mais fraco, opressão, dureza, imposição das próprias formas, incorporação e, pelo menos, no caso mais ameno, exploração”. (NIETZSCHE, 2013, p. 210) A partir desse ponto de vista, é possível estabelecer a gênese da distinção entre “moral dos senhores” e “moral dos escravos”. “Senhores” entendidos como uma “aristocracia guerreira”, determinadora de valores, tomando a si, primordialmente, como “bom”. Tal classificação não diz respeito a aspectos financeiros, a despeito do nome, mas enquanto uma expressão psicológica (e fisiológica), na medida em que traz em si o “traço de caráter típico” da veracidade, uma “nobreza da alma”. Tal aspecto se desdobra em uma capacidade de ação que é “afirmadora de si” e que, portanto, não é mera reação. “Nobre” com aquele que doma o caos e se fortalece a partir dele, sendo seu próprio “critério de medida de valor” e possuindo poder sobre si e sobre seu destino. (NIETZSCHE, 2013, p. 28) Ora, tal semelhança se estabelece a partir do que no “campo” se percebe a figura do “proeminente”. É Alberto que, por seus “traços de caráter típico”, tais como sua inteligência e intuição, aumentou sua chance de sobrevivência. Observa-se uma “lei feroz” em Auschwitz: “a quem já tem, será dado; de quem não tem, será tirado.” Este “implacável processo de seleção natural”, determina que o caminho para a “salvação”, enquanto sobrevivência (mas que não é redentora), é estreito. Sobrevivência esta que não se dá sem a renúncia de algo do mundo moral. (LEVI, 1988, p. 129-130) Dos exemplos que Levi utiliza para descrever os “proeminentes”, algum “traço de caráter típico”, além da renúncia ao mundo moral, sempre veem à tona. Seja na figura de Schepschel, que por meios dos seus “jeitinhos esporádicos” (dentro da lógica de um aquém da moral), conseguir assumir uma posição de destaque, e, quando apresentada a oportunidade, não hesita em açoitar um “companheiro” prisioneiro. Seja Alfred L., o que demonstra possuir uma incrível resiliência, uma vez que em meio ao caos e perda da “vontade” que se demonstra em Auschwitz, ele se esforçava para manter uma aparência “digna”, na medida do possível, destacando-se dos demais. Seja o Elias, um anão que apresenta uma força física descomunal, o que o permitia realizar os trabalhos físicos com relativa tranquilidade. (LEVI, 1988, p. 136-144) Nesse sentido, é compreensível a tentação de encarar Auschwitz a partir da “lógica dos prominentes”, os quais, apesar de serem minorias no “campo”, eram a maioria dentre os sobreviventes, de acordo com Levi (2016, p. 12). Quando não, entende-se

Volume 6 no 1

172


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

que a oposição “forte/fraco” nietzschiana reside sob o critério de sobrevivência, uma vez que esta “força” se exterioriza como “puro agir”, expressão da “vontade de potência”, ou seja, presente na “aristocracia guerreira”, caindo mais uma vez na “lógica dos proeminentes”. (NIETZSCHE, 2013, p. 42) Tal tentação apresenta seus teóricos ao longo da história do pensamento, como nos alerta Agamben (2008, p. 97). Terrence Des Pres é um deles, o qual, ao apresentar o livro The survivor, an anatomy of life in the death camps, exalta o paradigma ético do sobrevivente. Tanto Des Pres quando Bettelheim, outro intelectual que, a apesar das suas divergências com o Des Pres, reivindica com ele a importância da “dignidade” para aquele que intenta sobreviver ao “campo”. Nota-se portanto, ainda, a circunscrição da reflexão no campo nietzschiano de determinação de valores a partir dos mais fortes. Por fim, a questão da “memória” se mostra relevante para tal convergência com o pensamento nietzschiano, uma vez que uma das motivações que os prisioneiros encontravam para sobreviver ao “campo” era para poder “relatar a verdade”, dar o depoimento, como Levi (1988, p. 55) traduz do que o ex-sargento Steinlauf lhe diz. Ademais, há uma outra face da memória no “campo”: o esquecer para poder continuar a viver. Desse modo, há dois exemplares de sobreviventes: os que falam sobre a sua experiência e os que não falam. A despeito da simplificação da motivação do esquecimento ou da sustentação da memória, a ambiguidade reside, terminando por separar os sobreviventes em dois. Nietzsche capta tal dualidade em diferentes momentos da sua vida. Ainda jovem, ele escreve um texto intitulado Da utilidade e desvantagem da história para a vida, em que ele se sustenta a concepção da história (enquanto aquilo que compõe a memória), expressão afirmadora de vida, de modo que o indivíduo “forte” é aquele que possui a necessária “força plástica” para lidar com o peso histórico, sem sucumbir. E uma vez que o peso se torne insuportável, far-se-á necessário lidar com uma noção de “história crítica”, separando o que vale a pena guardar e o que não vale. (NIETZSCHE, 2003, p. 30) Já o Nietzsche (2013, p. 56) mais maduro, na Genealogia da moral, sustenta a importância do “esquecimento ativo” em vistas da manutenção da “ordem psíquica”, ou seja, com respeito a possibilitar o viver e o agir. Por outro lado, contrabalanceia-se o esquecimento com a faculdade contrária da “memória”, a qual, ante uma obrigação de prometer (ou sobreviver, no caso das testemunhas de Auschwitz, poder-se-ia pensar) apresenta como uma “vontade ativa” de reter impressões. Expressa-se, pois, como uma “memória vontade”. Nem o esquecimento nem a memória aparecem aqui

Volume 6 no 1

173


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

como uma expressão do “ressentimento” negador de “vontade”, mas como afirmação de vida.

Entre o aquém e o além da moral Ante a tentação de conceber o campo concentracionário nazista sob a perspectiva nietzschiana, percebe-se que uma avaliação mais cuidadosa revela a fragilidade de tal intenção. Não a toa, Agamben (2008, p. 31) insiste: “Por meio de um gesto simetricamente oposto ao de Nietzsche, Levi deslocou a ética para aquém do lugar em que estamos acostumados a pensá-la.” A ruptura se inicia a partir do que Levi entende por “zona cinzenta”. Esta aparece no “campo”, como uma impossibilidade de estabelecer um “nós” contra “eles”, os inimigos, na medida “o inimigo estava ao redor, mas também dentro de nós.” (LEVI, 2016, p. 29) O novato no Lager era recebido com hostilidade, diferentemente do esperado. Assim como o prisioneiro cuja força estava no fim. Ambos, de certa maneira, representavam um “empecilho” para os prisioneiros mais “velhos” (em poucos meses já se envelhecia no campo e se era considerado veterano) nas suas tentativas de luta pela sobrevivência. Ainda para Levi (1988, p. 60), “os privilegiados oprimem os não privilegiados. Na base desta lei, sustenta-se a estrutura social do campo”. “Zona cinzenta” esta, a qual, “ao mesmo tempo separa e une os campos dos senhores e dos escravos”. (LEVI, 2016, p. 32) A despeito das explicações sociológicas e psicológicas de tal fenômeno que Levi tenta estabelecer para essa aporia, ele entende que não se trata meramente de uma luta de todos contra todos, mas de um mecanismo do poder, dos opressores de degradar e assimilar as vítimas a si, estabelecendo um vínculo de cumplicidade, manchando-os com crimes. Tal “zona” diz respeito ao mecanismo mesmo de funcionamento do Lager, em que o caso-limite se observava nos SonderKommandos, os quais eram, na maior parte, judeus responsáveis pela gestão dos fornos crematórios. De tão degradados, os nazistas os consideravam semelhantes, chegando a absurda cena de uma partida de futebol entre os SS e os SK. (LEVI, 2016, p. 42) O que a “zona cinzenta” revela, pois, é uma incapacidade de tomar a si como determinador de valores, em face do outro (inclusive o valor da dignidade). Desse modo, o critério de distinção entre “forte” e “fraco” não reside mais na sobrevivência (as próprias dualidades extremas caem ante ao “campo”). Na realidade, os

Volume 6 no 1

174


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

sobreviventes são a exceção do campo. A morte se torna uma realidade cotidiana e anônima, de modo que ela se torna regra, em que o impróprio inautêntico da morte, apropria-se do próprio, inscrevendo-se em um horizonte de quase certeza. (AGAMBEN, 2008, p. 82) Falar dos Lager nazista não significa falar de uma “ética do sobrevivente”, como o fez Des Pres, ou de valorizá-lo, como fez Bettelheim. Na realidade, Levi estabelece outro conceito que confere prudência ao distanciamento operado no presente trabalho da ética nietzschiana. Tal conceito é o da “vergonha”. É preciso acentuá-la justamente em face dos que invertem a lógica do “campo”. Os “salvos” do Lager não eram os melhores, os predestinados ao bem, os portadores de uma mensagem: tudo o que eu tinha visto e vivido demonstrava o exato contrário. Sobreviviam de preferência os piores, os egoístas, os violentos, os insensíveis, os colaboradores da “zona cinzenta”, os delatores. […] Sobreviviam os piores, isto é, os mais adaptados; os melhores, todos, morreram. (LEVI, 2016, p. 65) A “vergonha” aparece ante duas culpas fundamentais. A culpa de ter feito nada ou de não ter feito o suficiente para resistir a opressão lá vivenciada, na medida em que houve sim revoltas, amplamente descritas, em Triblinka, Sobibór, Birkenau (outros Lager nazistas), muito embora nenhuma delas tenha sido bem-sucedida. (LEVI, 2016, p. 128) Já a outra fonte da culpa diz respeito à falta de solidariedade ante os demais prisioneiros, revelando aqui a conexão existente entre a “zona cinzenta” e a “vergonha” experimentada. Para Levi (2016, p. 64) é inevitável experimentar vergonha por estar vivo no lugar de um outro, especialmente quando no “campo” há a suposição de que este outro, o “afogado”, é mais digno de viver. Uma vez que no “campo” cada um se apresenta como o “Caim do seu irmão”, sobreviver diz respeito se adequar e sucumbir a tal lógica, de modo que os que dispunham de um “privilégio” no “campo” foram maioria entre os sobreviventes. Nós, sobrevivente, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem o fez, quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo; mas são eles, os “muçulmanos”, os que submergiram – são eles as testemunhas integrais, cujo depoimento teria um significado geral. Eles são a regra, nós, a exceção.” (LEVI, 2016, p. 66) Portanto, a lógica do “campo” reside nos “muçulmano”. Somente a partir deles é possível entender a real dimensão do que lá se apresentou. Dessa maneira, entende-

Volume 6 no 1

175


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

se que o que Levi decide restringir a um capítulo do É isto um homem?, sob o título de Aquém do bem e do mal, na realidade perpassa toda a obra, não se limitando unicamente a descrever a complexa relação entre lícito e ilícito, mas de um deslocamento para o aquém em vista de dar conta de um “sub-homem”, o “muçulmano”. Ora, pensar para “além da moral”, estabelece-se em face de um “super-homem”, mas que não dá conta do que houve no “campo”. “Muçulmanos” são os personagens que surgem no “campo”, os quais, já sem forças para resistirem, estavam próximos ao fim, de modo que os demais prisioneiros sequer dirigiam a palavra a eles, ou mesmo aproximavam-se deles na hora do trabalho, uma vez que não lhes restavam força de vontade para maneirar no trabalho, tendo em vistas a própria conservação. “Conceito-limite” do homem, situado na fronteira entre “humano” e “inumano”, de modo que é inevitável o questionamento acerca do conceito mesmo de “homem”. O “muçulmano”, enquanto “figura-limite” do homem torna possível a compreensão da fragilidade de se pensar o homem a partir do pensamento de Nietzsche, em especial, do absurdo de tentar enquadrar tal caracterização aos prisioneiros de Auschwitz. Lá reinou uma completa ausência de controle sobre o destino, ainda que, paradoxalmente, o destino se apresenta-se seguramente como a morte, enquanto regra. Não obstante, nesses que “tocaram o fundo”, já não há resquícios de “vontade”, de “força”, seja em face do trabalho ou mesmo do próprio marchar, uma vez que, em face da “morte da alma”, os nazistas entenderam ser preciso que música substituísse suas “vontades”, levando-os como o “vento leva as folhas secas”. No “campo”, a morte apresenta-se antes da morte física. O “muçulmano” é a prova disso. (LEVI, 1988, p. 70-71) Considerar que o “sobrevivente” não é a autêntica “testemunha”, mas sim aqueles que “afogaram”, “fitaram a Górgona”, estabelece um paradoxo, uma vez que os que testemunham não são as “autênticas testemunhas”, mas os que assumiram esse posto por “delegação”. A despeito das diferentes problemáticas que tal paradoxo coloca à reflexão, ele convida a pensar no real significado do “testemunho”. De uma certa maneira, Agamben já situa a resposta no título de seu livro O que resta de Auschwitz?. É possível estabelecer o nexo deste título com a solução ao problema levantado uma vez que já foi desfeita, na introdução, a tentação de compreender o “campo” como um aspecto histórico que ficou no passado. Logo, a pergunta deste título não se refere aos resquícios históricos do fenômeno do “campo”. Levi (2016 p. 15) auxilia a redimensionar o problema do real sentido do testemunho com algumas perguntas que inauguram seu próprio relato: “[…] em que medida o mundo concentracionário morreu e não retornará mais […]? Em que medida retornou ou

Volume 6 no 1

176


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

está retornando? Que pode fazer cada um de nós para que, neste mundo pleno de ameaças, pelo menos esta ameaça seja anulada?” Nessas indagações já estavam presentes a compreensão de que o “campo” não “morreu” com Auschwitz. O que o levou a ocorrer está presente em diferentes pontos do Ocidente, justamente em face da tomada da “exceção” enquanto paradigma de governo. Somente a partir da real compreensão do “testemunho”, o que perpassa pela compreensão da relação do “campo” com um “aquém do bem e do mal” e da “figuralimite” do homem, é que é possível “munir-se” contra o fascismo reinante.

Conclusāo A partir do exposto, é possível concluir que o distanciamento da ética nietzschiana é necessário em face da compreensão do fenômeno que ocorreu em Auschwitz, desde a instauração do Estado de Exceção que culminou no campo concentracionário, até a advento da figura do “muçulmano”. Somente a partir de um “aquém do bem e do mal”, enquanto expressão mesma deste “sub-homem”, ou “figura-limite” do homem, é possível se deparar com a verdade do “testemunho”, que nada mais é, senão a permanência do “campo” na história do Ocidente. O “espectro” do fascismo se faz presente ante o modelo paradigmático de governo por meio da exceção. Compreender tal dinâmica é preciso com a finalidade de combatê-la.

Referências Bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2004. __________. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2015. __________. O que resta de Auschwitz?: o arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. __________. Os afogados e os sobreviventes: Os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Tradução de Antônio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013.

Volume 6 no 1

177


O aquém do bem e do mal em Auschwitz: de Nietzsche a Primo Levi, pp. 166-178

__________. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2013. __________. Segunda consideração intempestiva: Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

Volume 6 no 1

178


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

Direito à moradia: afinal do que se trata? Thais Oliveira Ponte1 Resumo: Este trabalho parte do pressuposto de que o direito à moradia resulta dos conflitos entre os interesses divergentes dos agentes sociais que participam da construção do espaço urbano. Em um primeiro momento, são apresentadas as bases do direito à moradia digna, com destaque para algumas das concepções doutrinárias e formas jurídicas que antecederam e influenciaram o reconhecimento, no âmbito do direito constitucional positivo, desse direito à moradia digna. Essa análise situa-se, portanto, no campo dos estudos jurídicos. Em um segundo momento, partindo do pressuposto de que o conflito de interesses está na essência do direito, são abordados especificamente os conflitos em torno da moradia, que são aqueles que constituem a base material para a construção do direito de morar. Nesses termos, o presente trabalho tem como objetivo apresentar o que de fato se entende quando se fala em morar de forma digna. De modo geral, concluímos que, embora a legislação seja utilizada como instrumento de neutralização dos conflitos sociais, o direito à moradia também é, pelo menos em parte, fruto da luta dos grupos excluídos do acesso à moradia. Palavras-chave: Direito à moradia. Legislação urbanística. Planejamento e gestão.

Droit au logement: et enfin, qu'est-ce que c'est? Résumé : Cet article suppose que le droit d’accès au logement résulte du conflit entre les intérêts divergents des acteurs sociaux participant à la construction de l’espace urbain. Dans un premier temps, les bases du droit à un logement convenable sont présentées, mettant en Arquiteta e urbanista. Mestra em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco. 1

Volume 6 no 1

179


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

lumière quelques-uns des concepts doctrinaux et les formes juridiques qui ont précédé et influencé la reconnaissance, dans le droit constitutionnel positif, de ce droit à un logement décent. Cette analyse appartient donc au terrain des études juridiques. Dans un deuxième temps, en supposant que le conflit d’intérêts est au cœur du droit, nous approchons les conflits qui arrivent spécifiquementautour du logement, qui sont ceux qui fournissent la base matérielle pour la construction du droit de se loger. En ces termes, ce travail vise à présenter ce que signifie réellement se loger d’une manière digne. Dans l'ensemble, nous concluons que, bien que la législation soit utilisée comme instrument de neutralisation des conflits sociaux, le droit au logement est au moins en partie le résultat de la lutte des groupes exclus de l’accès au logement. Mots-clés : Droit au logement. Loi urbaine. Aménagement et gestion.

1. Fundamentos do Direito à Moradia

A

tradição do pensamento jurídico ocidental é atravessada pela distinção entre direito natural e direito positivo. Tal distinção remonta ao pensamento antigo, grego e latino. De início, os termos “natural” e “positivo” foram usados para diferenciar na linguagem aquilo que era oferecido pela natureza daquilo que era uma convenção criada pelo homem. Posteriormente, essa distinção, que inicialmente dizia respeito à linguagem, é incorporada analogamente para o direito. Segundo o filósofo do direito italiano Norberto Bobbio (1995), a distinção entre o conceito de direito natural e direito positivo já se encontra nas obras de Platão e de Aristóteles. Na época clássica, o direito natural era conhecido como direito comum, aquele que tem em todos os lugares a mesma eficácia e permanece imutável no tempo. Já o direito positivo era conhecido como direito especial ou particular, no sentido daquilo que só tem eficácia na civilização em que é posto e que pode ser modificado com o tempo, tendo em vista que uma norma pode ser anulada ou modificada seja pela mudança nos costumes, seja por uma outra norma. Apesar de um não ser necessariamente superior ao outro, naquela época, o direito positivo prevalecia sobre o direito natural sempre que ocorresse uma antinomia entre os dois (BOBBIO, 1995). Na Idade Média, ao contrário, a relação entre as duas espécies de direito se inverte, passando o direito natural a prevalecer sobre o direito positivo, tendo em vista que o direito natural não era mais constituído por normas comuns, mas por normas fundadas na vontade do próprio Deus. Erigido sobre um alicerce teológico, o direito natural assumia um caráter divino, em oposição ao caráter humano do direito positivo. Na concepção medieval, o direito natural permanece fixo e imutável no tempo, enquanto o positivo modifica-se com o passar da história. Afirma Bobbio

Volume 6 no 1

180


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

(1995) que é dessa época de predomínio da visão de mundo do cristianismo que provém a tendência do pensamento jusnaturalista a considerar-se como superior ao direito positivo. Do ponto de vista conceitual, o direito natural deriva da natureza de algo, de sua essência. Segundo Gouveia (1998), sua principal natureza são as leis naturais. Advêm da criação da sociedade, através de normas consideradas divinas, às quais todos os homens estariam subordinados. Consiste na ideia abstrata do Direito e, como afirma Falcão (2008), pressupõe o que é correto, o que é justo. Incorpora, portanto, a noção de uma justiça superior e anterior. Por remeter à essência do seu objeto, possui validade universal e imutável. Já o direito positivo é estabelecido pelo Estado. Constitui-se como o conjunto de normas jurídicas escritas e não escritas, vigentes em um determinado território e, também, internacionalmente, na relação entre os Estados. Apesar de emergir nos primórdios da civilização ocidental, consolida-se como esquema de segurança jurídica a partir do século XIX, tendo como fundamento a estabilidade e a ordem da sociedade. Incorpora, também, a noção de justiça, associando o que é legal ao que é justo. Quando o direito natural e o direito positivo não mais são considerados direito no mesmo sentido, o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio, ou seja, ocorre a redução de todo direito ao direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria de direito. Nasce, então, o positivismo jurídico ou juspositivismo. Bobbio (1995) fala que essa passagem da concepção jusnaturalista para a positivista, ou seja, do processo de positivação das normas naturais, está diretamente ligada ao surgimento do Estado. O principal representante do pensamento juspositivista é o jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen, que, em sua obra Teoria pura do direito, sustenta a ideia de elevar o direito à condição de ciência positiva, objetiva e exata, e para isso procura desvencilhar o direito de normas de direito natural, bem como eliminar a ligação do direito com campos do conhecimento subjetivos. O juspositivismo de Kelsen não reconhece nenhuma lei moral ou natural como critério de validade das normas positivas, nem tampouco esse critério pode ser estabelecido pela via de uma referência ao ideal de justiça (KELSEN, 1979). Contrariando o pensamento juspositivista, o pensamento jusnaturalista tem como pontos principais a ideia de que existe um direito comum a todos os homens e que o mesmo é universal. Esse direito é anterior ao direito positivo, que é aquele

Volume 6 no 1

181


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

fixado pelo Estado, e todos os homens o recebem de forma racional. Suas principais características, segundo Norberto Bobbio (1995), são a universalidade, a imutabilidade e o seu conhecimento através da natureza racional do homem. Segundo o mesmo autor, os comportamentos regulados pelo direito natural são bons ou maus, sendo a razão responsável por separar o joio do trigo. De modo geral, os jusnaturalistas compartilham a ideia de que os direitos ditos naturais são anteriores ao direito estatal, pois estão ligados à razão e à natureza dos seres humanos. Nos primórdios, o direito natural teria tido o papel de regular o convívio social dos homens que ainda não conheciam leis escritas. Dada a inexistência de direitos positivos, o direito natural cumpria função de direito objetivo. Com o surgimento do direito positivo por meio da atuação do Estado, a função do direito natural passa a ser a de uma espécie de contrapeso à atividade legislativa do Estado, fornecendo subsídios para a reivindicação de direitos pelos cidadãos, passando ele, portanto, a cumprir papel de direito subjetivo. Pode-se dizer que entre o direito natural antigo e o moderno há mais continuidade do que ruptura, a distinção residindo, sobretudo, no fato de que, no direito natural moderno, a ênfase recai no aspecto subjetivo do direito. A partir do século XVIII, o direito natural passa a ser uma base para as pessoas reivindicarem direitos individuais perante o Estado e é nesta concepção, em que os seres humanos possuem direitos inerentes à sua qualidade de pessoas humanas, que o direito natural se torna o alicerce dos Direitos Humanos Fundamentais – dos quais, atualmente, através de vários tratados e declarações, conforme veremos mais adiante, o direito à moradia digna faz parte – em casos de omissão do poder estatal no seu monopólio de criação de leis.

1.1. Moradia como Bem Jurídico Essencial Segundo o dicionário, por “moradia” entende-se: “lugar onde se mora, casa de habitação; domicílio, residência. Lugar onde existe habitualmente uma certa e determinada coisa. Estada, permanência, residência”.2 Essa definição aponta para a ideia de que a moradia é o lugar em que certa coisa mora, habita, reside, pode permanecer, pode estar e, portanto, pode existir. Por definição, sem ter onde morar, ninguém pode existir.

Michaelis: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: <http:// michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php>. Acesso em: 18 dez. 2015. 2

Volume 6 no 1

182


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

Desde a pré-história, os seres humanos tiveram a necessidade de se abrigar das intempéries da natureza, de se proteger dos animais selvagens, de lugar para descansar, de um lugar de permanência e de identificação. Ter um lugar para existir e se desenvolver é algo naturalmente necessário, mais do que desejável. Para satisfazer as necessidades básicas da vida, como repousar, trabalhar, educar-se, faz-se necessário um lugar fixo e amplamente reconhecido por todos (SOUZA, 2008). Segundo Loreci Nolasco (2008), o direito à moradia estampa a necessidade primária do homem, sendo requisito imprescindível para uma vida digna e plena. Nolasco disserta ainda que: “[...] a casa é o asilo inviolável do cidadão, a base de sua indivisibilidade, é, acima de tudo, como apregoou Edward Coke, no século XVI: ‘a casa de um homem é o seu castelo’” (2008, p. 87). No mesmo sentido, para José Afonso da Silva, “morar” significa “ocupar um lugar como residência; ocupar uma casa, apartamento etc., para nele habitar e residir com animus de permanência, na condição de recôndito para abrigar a família” (SILVA, 2006, p. 314). A moradia é considerada uma necessidade indispensável e primária dos seres humanos. Como afirma Souza (2008), sua indispensabilidade está ligada a necessidades básicas da vida dos humanos. Nesse sentido, a moradia é um direito comum a todos os homens, ou seja, um direito universal e inerente às pessoas humanas, cuja validade precede sua positivação na legislação internacional e nacional. Seguindo essa linha de raciocínio, este trabalho compreende a moradia como um direito natural de todos os seres humanos. Nos primórdios, quando a intenção dos seres humanos era apenas se abrigar ou se proteger de algum modo, qualquer local podia servir: uma caverna, uma árvore, estruturas rudimentares, feitas com barro, galhos e folhas. Segundo Correia (2004), a função desses abrigos primitivos era servir de: teto, alojamento e refúgio, lugar de proteção, defesa e autonomia de seus ocupantes contra as intempéries e ameaças externas. Trata-se do abrigo diante dos rigores da natureza – a chuva, o frio, o sol forte, as ventanias; do lugar de proteção diante de investidas externas contra indivíduos. (CORREIA, 2004, p. 47).

À medida que a agricultura se desenvolvia, os homens foram paulatinamente abandonando sua condição nômade e passando a se fixar em locais estratégicos para o cultivo do solo. A fixação do homem estimulou o desenvolvimento e o refinamento das formas de se alojar e de se proteger das intempéries, o que acarretou a diversificação das formas de morar.

Volume 6 no 1

183


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

O desenvolvimento da civilização, que culmina no processo de industrialização alavancado pelo sistema capitalista, provocou uma drástica redução da possibilidade de o homem se abrigar de forma natural ou de forma artesanal, uma vez que o meio deixou de fornecer o material necessário à construção dos abrigos. Sobre a redução das possibilidades do espaço para moradia, escreve Nolasco: Se em seu estado natural o homem, na imensidão do orbe, encontrava um ponto para estabelecer-se e a abundância de material para a sua edificação, o incremento da população e a carência de espaços livres foram comprimindo a potencialidade de exercício de moradia, até a sua gradual e drástica redução, senão extinção para os mais desfavorecidos (os moradores debaixo das pontes, das ruas, das praças e das calçadas), como ocorre diariamente nos grandes aglomerados humanos. (NOLASCO, 2008, p. 88).

Ao longo da história e da transformação no modo de viver do homem, outros significados foram sendo incorporados à habitação. A sua definição enquanto mero alojamento e abrigo foi questionada e novos modelos de moradia foram sendo elaborados, transformando a relação dos indivíduos com a casa, com o corpo, com a família o com espaço (CORREIA, 2004). Telma de Barros Correia (2004) afirma que nesse período surge a noção de moradia como “espaço sanitário”3 e como “santuário doméstico”4 e que o hábitat moderno do homem é formado da articulação desses dois conceitos e das demais alterações no espaço complementares à redefinição da forma de morar. É importante também nesse processo de redefinição o fato de a casa passar a ser objeto de consumo, a ideia da casa como propriedade a converte em um objeto de valor, indicando, por exemplo, a situação social do seu dono. O conceito de moradia ultrapassa as definições de alojamento, abrigo, e ganha aspectos subjetivos ligados diretamente ao desenvolvimento social, moral e psíquico do homem. Para Souza (2008), a moradia se configura como sendo um elemento social do ser humano que influencia diretamente a formação do seu caráter e da sua personalidade. Nesse sentido, a moradia é um bem irrenunciável da pessoa natural e Correia (2004, p. 48) afirma que espaço sanitário “trata-se de converter a moradia em espaço confortável, A por normas de higiene, capaz de garantir certa privacidade a seus moradores e de alterar a vida doméstica por meio de instrumentos de regulação. Na construção desse novo modelo de moradia, o interior da casa foi reorganizado segundo uma racionalidade nova, que modifica seu projeto e seu uso, separando a classificando funções, ordenando, clareando, iluminando e arejando ambientes.” 3

Correia (2004, p. 52) define santuário doméstico da seguinte forma: a casa também pode configurarse como lugar da família; o lugar por excelência onde esta se realiza e fortalece; o espaço apropriado à constituição de um lar, com suas trocas afetivas, hierarquias, formas de proteção e controles. À ideia do bem-estar da vida doméstica liga-se intimamente a noção da casa como uma referência espacial fixa da família: seu ponto de partida, seu invólucro, a testemunha de suas alegrias e dores, o chamado “santuário doméstico”. 4

Volume 6 no 1

184


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

deve, necessariamente, ser bem juridicamente protegido, ou seja, toda pessoa tem direito de possuir uma moradia, sendo essa a ambiência apropriada para a sua fixação e para o desenvolvimento de uma vida privada, que consequentemente, refletirá no seu modo de agir na esfera pública. No mesmo sentido, Loreci Nolasco (2008) afirma que: Dar ao indivíduo o direito de morar é promover-lhe o mínimo necessário a uma vida decente e humana. É proporcionar-lhe condições mínimas de sobrevivência. A casa é o lugar de encontro de várias gerações que, reciprocamente, se ajudam a alcançar uma sabedoria mais plena e a conciliar os direitos pessoais com as outras exigências da vida social. (NOLASCO, 2008, p. 88-89).

A autora chama a atenção para o fato de que possuir um lar é uma condição necessária para uma vida minimamente decente e humana. Nesse sentido, a moradia é um dos indicadores do nível de qualidade de vida de um indivíduo. Além disso, ressalta Nolasco, que a moradia é o lugar em que os indivíduos aprendem as primeiras noções de direitos, onde as primeiras noções de cidadania surgem através da convivência doméstica e familiar. Aos poucos, a moradia foi ganhando elementos protetivos que desdobravam de sua simples existência e alcançou o status de direito fundamental do ser humano. LoreciGottschalk Nolasco (2008) afirma que: [...] moradia é o lugar íntimo de sobrevivência do ser humano, é o local privilegiado que o homem normalmente escolhe para alimentarse, descansar e perpetuar a espécie. Constituiu o abrigo e a proteção para si e os seus; daí nasce o direito a sua inviolabilidade e à constitucionalidade de sua proteção. (NOLASCO, 2008, p. 88).

A moradia representa uma esfera de proteção da intimidade da pessoa, sendo essencial para a qualidade de diversos aspectos da vida humana. Sua importância inicial decorre da sua própria essência instintiva e natural, ou seja, torna-se ambiente de proteção das adversidades externas e dos outros semelhantes. Posteriormente, torna-se instrumento principal do fenômeno da urbanização e das questões ligadas à fixação dos homens à cidade. A partir desse momento, a moradia passa a ser vista como um problema social. É neste cenário de constante urbanização, mais especificamente durante o processo de consolidação da revolução industrial, que a moradia vai se colocar em um papel central, pois suas condições mínimas serão extremamente necessárias para

Volume 6 no 1

185


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

garantir a formação de cidadãos enquanto sujeito de direitos e também enquanto sujeito econômico, cujo papel na produção e reprodução do capital é central. Após instalado esse cenário onde os problemas diretamente ligados à questão da moradia afloram de forma evidente, ela passa a ser objeto juridicamente relevante, ganhando, com isso, a proteção do Estado por meio do direito. Criam-se, portanto, mecanismos de defesa e proteção, ou seja, impõe-se ao Estado e aos particulares um dever de proteger e promover este direito, que se mostra vital para um bom e perfeito desenvolvimento humano. O reconhecimento da moradia enquanto direito passou por um longo caminho, que inclui seu reconhecimento na esfera dos direitos humanos fundamentais e também pelo processo de universalização desses direitos. O reconhecimento dos direitos naturais na esfera do direito positivo passou pela elaboração de diversas Cartas, Declarações e Constituições. No contexto da globalização, o tema dos direitos humanos, ou seja, aqueles direitos e liberdades básicas decorrentes da dignidade e do valor inerente à pessoa humana independente de raça, cor, religião, etnia, se consolidou como tema global que tem como base a universalização do direito. Nelson Saule Júnior (1999) fala que o processo de universalização dos direitos faz surgir um novo sujeito social. As mutações decorrentes do processo de industrialização e seus reflexos na sociedade, o impacto tecnológico e científico, bem como o surgimento do “sujeito de direito internacional” (SAULE JÚNIOR, 1999, p.65) que possui novos anseios e necessidades, acarretam a transformação do Estado liberal (Estado formal de direito) para o moderno Estado de direito (Estado social e democrático de direito) (SARLET, 2012). Ainda sobre o papel desse novo Estado de direito, Henrique Lewandowski afirma que: “o novo papel desse Estado consiste, basicamente, em promover os direitos econômicos e sociais, isto é, de colocar em prática uma vasta gama de prestações positivas em benefício da coletividade” (LEWANDOWSKI, 1984, p. 63). Três fortes questões influenciaram o processo de universalização dos direitos humanos. A primeira foram as transformações no âmbito do Estado já citadas anteriormente. Segundo, as transformações que ocorriam no âmbito da sociedade que saía de um pós-guerra, vários países, sobretudo europeus, estavam passando por um processo de reconstrução e a humanidade havia sido abalada pela barbárie da Segunda Guerra Mundial. E, por fim, o surgimento do sujeito enquanto detentor de direitos inalienáveis. Nesse sentido, havia a necessidade de se pensar um mundo sob novos alicerces ideológicos, no qual direitos básicos, como a vida e a moradia, pudessem ser preservados. A consolidação da concepção do homem enquanto sujeito de direitos universais lançaria a possibilidade de uma futura paz. Uma das mais

Volume 6 no 1

186


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

importantes tentativas de universalização dos direitos humanos ocorreu legalmente quando do estabelecimento, em 10 de dezembro de 1948, em Paris, pela Organização das Nações Unidas, composta por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, da Declaração Universal dos Direito Humanos (DUDH). A partir desse momento, com a instituição da DUDH são adotadas medidas para assegurar o seu reconhecimento, bem como tem início um processo de elaboração de diversas convenções e declarações estabelecendo organizações e mecanismos de proteção dos direitos humanos, nos quais está incluída a moradia digna, seja em âmbito internacional ou nacional (SAULE JÚNIOR, 1999).

1.2. O Direito à Moradia no Contexto do Direito à Cidade Para o filósofo, sociólogo e urbanista francês Henry Lefebvre (2012), o direito à cidade é uma utopia, mas não porque se trate de um ideal inalcançável. O direito à cidade é um objetivo político-filosófico fundamental, capaz de mobilizar para a luta as forças sociais cujos interesses materiais opõem-se à lógica capitalista de produção da cidade, que mercantiliza o espaço urbano e o transforma em uma gigantesca engrenagem a serviço do capital. Com efeito, convém partir de um questionamento acerca das “necessidades urbanas”: não seriam essas, sobretudo, necessidades de lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontros, onde as trocas não passariam pelo comércio, nem seriam guiadas pelo lucro? Segundo Lefebvre (2012, p. 119): O direito à cidade não se pode conceber como um simples direito de visita ou de regresso às cidades tradicionais. Ele só pode formular-se como direito à vida urbana, transformada e renovada. Que o tecido urbano cerca o campo e o que resta da vida campesina, pouco importa, desde que o “urbano”, lugar de encontro, prioridade do valor de uso, inscrição no espaço de um tempo promovido ao nível de bem supremo entre os outros bens, encontre a sua base morfológica, a sua realização prático-sensível.

Portanto, não se deve considerar que ter acesso a uma qualidade de vida relativa, em uma cidade capitalista, seja o mesmo que ter direito à cidade. Este implica uma vida urbana inteiramente diferente, em uma sociedade que se organiza, no seu conjunto, de modo diferente. Compreendido como “direito à vida urbana”, o “direito à cidade”, no sentido de Lefebvre, pressupõe um arranjo social em que a

Volume 6 no 1

187


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

lógica do capital não impera nem dita todos os ritmos, e o valor de uso tem primazia sobre o valor de troca. A cidade é, sobretudo, “lugar de encontro” e de convivência das diferentes classes e grupos em um espaço potencialmente conflituoso. Todavia, o processo de urbanização – do qual Lefebvre, em 1968, dá como exemplos os planos para a Paris – tem contribuído para anular essa faceta contraditória da vida urbana, neutralizando os conflitos sociais. De modo geral, pode-se dizer que a urbanização acarretou a subordinação do espaço da cidade à lógica da produção capitalista, transformando lugares que outrora possibilitavam a convivência entre as pessoas em espaços onde as relações de troca prevalecem e outras possíveis formas de convivência encontram-se praticamente anuladas. Esse cenário, em que a cidade é negada à população, é também aquele em que a questão da moradia aparece como um problema da cidade, uma vez que negar a cidade à população também significa negar a possibilidade mesma de habitar na cidade. Contudo, deve-se ter em mente que essa negação da cidade não é universal, mas diz respeito a uma determinada fração da população, precisamente aquela que não tem condições de arcar com o custo de vida e de moradia locais. Na abordagem original de Lefebvre, o direito à cidade não se refere a mais um direito institucionalizado no arcabouço jurídico do Estado. Esse conceito para o autor tinha mais a ver com uma ruptura com a ordem urbana capitalista e, consequentemente, com as relações da organização social inerentes a esse modelo econômico. Ao contrário disso, a luta pelo direito à moradia travada pelos movimentos sociais, ocorre muito no sentindo de inscrever as carências habitacionais no campo do direito, de torná-las direitos sociais, para assim a moradia tornar-se reconhecidamente objeto de direito e, também, para que a moradia fosse levada a nível de direito fundamental de todos os seres humanos, positivada e institucionalizada pelo Estado. Para o filósofo o ato de habitar é uma condição revolucionária, porque é capaz de se opor dialeticamente ao movimento de homogeneização do capital, mas habitar não se resume a ter uma moradia, afinal trata-se do direito à cidade no sentido político. Ainda segundo ele, somente as classes ou frações de classes capazes de tomar iniciativas revolucionárias no sentido de encontrar soluções para os problemas urbanos é que atingiriam a cidade renovada, que é fruto da luta dessas forças sociais e políticas. Por outro lado, é preciso destacar que as lutas por habitação não significam, necessariamente, o direito à cidade, pois podem conduzir justamente ao oposto daquilo que Lefebvre pensava, ou seja, incitar a prevalência da forma mercadoria, através das relações pautadas no valor de troca sobre o valor de uso.

Volume 6 no 1

188


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

O conceito de direito à cidade foi retomado ainda por diversos autores, mais recentemente, o geográfico britânico David Harvey, no contexto da emergência de vários tipos de movimentos sociais no mundo inteiro retoma as ideias de Henri Lefebvre sobre o direito à cidade. Para Harvey o direito à cidade surge das ruas como um pedido de socorro da população oprimida. O autor fala que as lutas dos movimentos no Brasil, por exemplo, para a incorporação dos artigos sobre a política urbana não tinham nada a ver com a ideia de Lefebvre, mas tudo a ver com as lutas acerca de quem vai configurar as características da vida urbana. Em algum momento da luta dos movimentos, eles perceberam que poderiam ser bem sucedidos mais rapidamente juntos, e que a luta pela cidade envolvia suas próprias lutas. O direito à cidade de Harvey (2014) guarda semelhança com o conceito pensado por Lefebvre (2012), pois também busca uma ruptura com a ordem global instituída de concentração de riquezas, privilégios e consumismo. No conceito de direito à cidade pensado por Harvey, é posto em destaque o potencial revolucionário dos movimentos sociais urbanos de inventar e reinventar a cidade de acordo com seus anseios. Nesse sentido, para Harvey (2014, p. 28): o direito à cidade é, portanto, muito mais do que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais profundos desejos. Além disso, é um direito mais coletivo do que individual, uma vez que reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e a nossas cidades, como pretendo argumentar, é um dos nossos direitos humanos mais preciosos, ainda que um dos mais menosprezados.

Harvey (2014) pensa o direito à cidade em nível de direito fundamental dos seres humanos, colocando-o em um patamar de direito comum a todos os homens e que, portanto, é universal. Esse fato guarda proximidade com o aspecto natural do direito à moradia que, por um lado, se inscreve no campo do direito natural e, por outro lado, hoje é um direito positivado nas normais nacionais e internacionais como um direito humano fundamental dos homens e das mulheres. O direito à cidade no sentido que Harvey (2014) apresenta se aproxima mais de como o direito à moradia é visto neste trabalho. As conquistas do direito à moradia estão diretamente ligadas às lutas travadas na rua, bem como às reinvindicações dos movimentos sociais, que no caso brasileiro demostraram um poder de transformação do cenário existente. No mesmo sentido, para Harvey (2014) o direito à cidade passa pela reinvindicação de algum tipo de atuação radial, de

Volume 6 no 1

189


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

“poder configurador” (HARVEY, 2014, p. 30) nos processos de urbanização, de algum tipo de exercício sobre o modo como as cidades são feitas. 2. O Conflito de Interesses como Essência do Direito à Moradia 2.1. Conflitos entre os Agentes Produtores do Espaço de Morar A produção do espaço de morar resulta de um conflito de interesses, que tem na disputa pela terra urbanizada seu principal foco. Segundo Villaça (2001), a busca por melhores localizações no espaço urbano reflete a luta de classes: [...] o grande desnível social entre classes nas metrópoles [...] faz com que nelas seja realçada aquela faceta da luta de classes que é travada em torno das condições de produção/consumo do espaço urbano, isto é, em torno do acesso espacial às vantagens ou recursos do espaço urbano. (VILLAÇA, 2001, p. 47).

O território urbano condensa uma série de articulações, de forças sociais e de agentes que o produzem e reproduzem. Em uma perspectiva mais geral, os agentes sociais que fazem e refazem a cidade são: os proprietários dos meios de produção, sobretudo os grandes industriais; os proprietários fundiários; o Estado; os promotores imobiliários; e os grupos sociais excluídos (CORRÊA, 1995). A definição dos papéis, e mesmo a constituição de cadaagente, não acontece de forma rígida, pelo contrário, ela adquire características diferentes de acordo com o contexto social onde se estabelece o conflito. Segundo Corrêa (1995, p. 44), esses agentes inseridos em um determinado contexto socioespacial e temporal refletem as necessidades e possibilidades sociais existentes nesse contexto e, portanto, “materializam os processos sociais na forma de um ambiente construído”. Cada grupo possui interesses específicose dirige suas práticas espaciais de forma a alcançá-los. Com efeito, os interesses desses agentes dificilmente podem ser compatibilizados, de modo que a relação entre eles é conflituosa, tendo em vista que é permeada pelos interesses particulares de cada um. Em uma perspectiva mais específica, no que se refere aos agentes produtores da moradia, Azevedo (1982) identifica os seguintes agentes: os incorporadores ou também chamados de promotores imobiliários, os proprietários urbanos, os escritórios de planejamento e projeto, as empresas de construção civil, as corretoras de imóveis, os compradores e o Estado. É importante ressaltar ainda que, na atual conjuntura, onde a esfera financeira vem atingindo diversas dimensões da sociedade devido ao processo de sobreacumulação do capital, de aumento da formação de um mercado secundário de

Volume 6 no 1

190


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

hipoteca e de participação mais intensa de fundos e veículos financeiros, novos agentes têm entrado em cena no conflito em torno da moradia. O segmento empresarial e financeiro passa a ter forte hegemonia no contexto da produção de moradia, principalmente, as instituições financeiras privadas (ROLNIK, 2015). No que diz respeito ao conflito em torno da moradia, nesta pesquisa destacamos, com base na categorização apresentada anteriormente, a participação de cinco agentes que se sobrepõem nesse conflito, a saber: segmentos empresariais e financeiros, responsáveis pela injeção de capital financeiro; promotores imobiliários, que participam de uma produção privada e formal da moradia; proprietários fundiários, detentores dos terrenos urbanos; grupos sociais excluídos, que se encarregam de uma produção informal da moradia; e Estado (esfera municipal, estadual e federal), suposto mediador desse conflito. Agentes envolvidos na produção da moradia AGENTES

CARACTERISTICAS

Proprietários Fundiários

Têm interesse especial na valorização fundiária e na moradia enquanto valor de troca. Sua atuação ocorre no sentido de obter a maior renda fundiária de sua propriedade. Essa renda fundiária volta-se para o uso comercial ou residencial de status. Uma das formas de os proprietários de terras influenciarem na produção do espaço urbano é através da pressão junto aos governos, principalmente os municipais, para que, na formulação da legislação de ordenamento do solo, seus interesses sejam privilegiados.

Promotores Imobiliários (ou incorporadores)

Atuam desde quando, em determinado momento histórico, a moradia se inseriu como mercadoria no modo de produção capitalista. Quando o valor de uso da habitação se transforma em valor de troca e passa a ser viabilizado por um capital imobiliário, agora descolado da propriedade fundiária. Operam no mercado para obter lucro através da compra e venda de imóveis e como intermediários nas transações imobiliárias. Procuram obter valor na troca da moradia. Sua atuação espacial ocorre de modo desigual, criando e reforçando a segregação residencial que caracteriza a cidade capitalista.

Segmentos empresariais e financeiros

São aqueles segmentos que se utilizam de capital financeiro para conseguir recursos para investimento em habitação, tonando-se menos dependentes do SFH no que diz respeito a fatores de produção.

Grupos sociais excluídos

Estado

São aqueles que não possuem condições financeiras de alugar ou de comprar um imóvel. No contexto da luta por moradia, esse agente aparece na figura daqueles que são alvos de remoções, de reassentamentos ou que moram de forma irregular. A sua produção de moradia ocorre predominantemente às margens do imobiliário formal. A atuação do Estado na moradia, ocorre de forma direta, através de medidas governamentais implementadas (ser) ou de forma indireta no plano ideal, inscrito na produção de normas e expectativas normativas (dever ser). Atua na organização espacial da cidade (legislação, zoneamento), impondo restrições ao uso do solo e para isso utiliza o planejamento e a gestão. Sua atuação tem sido variável no tempo e no espaço, refletindo a dinâmica da sociedade da qual é parte constituinte. Fontes: AZEVEDO, 1992; CORRÊA, 1995. ROLNIK, 2015. Organizado pela autora.

Volume 6 no 1

191


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

Esse grupo excluído do acesso à moradia foi, ao longo do tempo, criando formas de organização popular que tinham como bandeira a luta por moradia digna, seja no campo de uma atuação concreta do Estado, seja na luta pela incorporação da moradia digna como um direito na legislação. A partir da análise do quadro, é possível perceber que a moradia não tem o mesmo valor para os diferentes grupos. Na produção da moradia, tanto naquela promovida pelo poder público, quanto na promovida pelo setor privado, os agentes buscam direcionar suas ações para obter vantagens diferentes. Cabe, assim, analisar de forma mais atenta o papel do Estado nesse processo, visto que esse é um dos importantes agentes do espaço urbano e do espaço de morar. Esse agente será abordado de forma mais específica no próximo tópico.

2.2. Moradia: de Direito Estatal a Direito Social A problemática concernente ao direito à moradia remete aos conceitos de Estado e de justiça, que requerem análise específica, ainda que sucinta. Por um lado, na esteira do marxismo estruturalista representado pelo cientista político grego Nicos Poulantzas, procuramos não compreender o Estado como uma “Coisa”, ou seja, um instrumento passivo, sem nenhuma autonomia, neutro e totalmente manipulado por uma única classe ou fração de classe. Por outro lado, não vamos conceber o Estado como um “Sujeito”, isto é, como uma entidade dotada de autonomia absoluta, que seria resultado do processo histórico de racionalização da sociedade civil. Consideramos que o Estado é, antes de tudo, uma relação ou, como diz Poulantzas (2000): O Estado, no caso capitalista, não deve ser considerado como uma entidade intrínseca, mas, como aliás e o caso do “capital”, como uma relação, mais exatamente como a condensação material de uma relação de forças entre classes e frações de classes, tal como ele expressa, de maneira sempre especifica, no seio do Estado. (POULANTZAS, 2000, p. 130).

O Estado não é uma substância homogênea, mas é composto por elementos heterogêneos e suas fraturas. Ou seja, além de serem diferentes entre si, os elementos que compõem o Estado encontram-se em relação de luta uns com os outros, constituindo forças. O confronto entre essas forças revela as fraturas internas ao Estado.

Volume 6 no 1

192


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

Convém notar que, ao ver o Estado como relação de forças, ou ainda, como uma condensação das relações de forças, Poulantzas (2000) distancia-se da ortodoxia marxista que reduz o Estado a mero instrumento de dominação manipulado pela burguesia na luta de classes. Em outros termos, o Estado não é apenas parte integrante da superestrutura ideológica construída pelos capitalistas para garantir a exploração do trabalho. Na medida em que é atravessado por uma lógica das forças, o Estado não é somente o reflexo dos interesses das elites no poder, mas também resulta das reivindicações e da pressão exercida pelas classes populares. Assim, o Estado é concebido como um campo de relações de poder de várias ordens: política, econômica, cultural, familiar etc. Todo esse campo de relações conflituosas condensa-se no aparelho do Estado, que nada mais é que uma espécie de sumo da luta de classes, a resultante das relações entre os vetores das lutas sociais. A ideia é que a coexistência dos diferentes atores no seio da sociedade ocorre na forma da contradição e da luta; é uma correlação de forças, uma tensão social em que o Estado emerge ou submerge. Logo, ele não deve ser concebido como um bloco monolítico ou como uma ordem heteronômica que seria imposta de fora para a sociedade. Do ponto de vista dialético, o Estado é, antes, produto das contradições sociais, sua trajetória descreve o rastro da história da luta de classes. Conforme observa Poulantzas (2000): Na realidade, as lutas populares atravessam o Estado de lado a lado, e isso não acontece porque uma entidade intrínseca penetra-o do exterior. Se as lutas políticas que ocorrem no Estado, atravessam seus aparelhos, é porque essas lutas estão desde já inscritas na trama do Estado, do qual elas esboçam a configuração estratégica. Certamente, as lutas populares, e mais geralmente os poderes,ultrapassam de longo o Estado: mas por mais que elas sejam (e elas o são) propriamente políticas, não lhe são realmente exteriores. Rigorosamente falando, se as lutas populares estão inscritas no Estado, não é porque sejam absorvidas por uma inclusão num Estado-Moloch totalizante, mas sim antes porque é o Estado que está imerso nas lutas que o submergem constantemente. Fica entendido, no entanto, que até as lutas (e não apenas as de classe) que extrapolam o Estado não estão, no entanto, “fora do poder”, mas sempre inscritas nos aparelhos de poder que as materializam e que, também eles, condensam uma relação de forças (as fábricasempresas, a família numa certa medida, etc.). Em razão do encadeamento complexo do Estado com o conjunto de dispositivos do poder, essas lutas mesmas têm sempre efeitos, “ a distância” desta feita, no Estado.(POULANTZAS, 2000, p. 143-144).

Volume 6 no 1

193


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

Em oposição às utopias anarquista e pacifista, entende Poulantzas que não existe um “fora do poder”, embora haja um “fora do Estado”. De fato, as relações de poder não se restringem às relações de força travadas no âmbito do Estado, nem todo poder deve ser confundido com o poder estatal. Pode-se pensar em relações de poder que têm lugar no interior das fábricas ou empresas, das famílias, das escolas, dos hospitais. Todas essas relações de poder constituem algo que Poulantzas vai denominar com um termo que ele toma de empréstimo de Michel Foucault (1979, p. 244): os “dispositivos do poder”. No entanto, o uso que ele faz desse termo não coincide com aquele do autor de Vigiar e punir. Embora reconheça a independência dos diferentes dispositivos – as empresas, famílias, escolas etc. – em relação aos aparelhos de Estado, Poulantzas defende (ao contrário de Foucault) a existência de um “encadeamento complexo” entre o Estado e os dispositivos de poder, que, apesar de externos, não apenas têm, mas também sofrem a influência da ação estatal. Se o Estado não é simplesmente um bloco homogêneo, nem um instrumento de uma classe, ele também não constitui um produto desconexo e independente das relações de forças sociais (este é mais um ponto de divergência com Foucault). O Estado tem uma unidade traduzida em uma política global e maciça que é exercida em favor da classe ou fração hegemônica. Como esclarece Poulantzas (2000, p. 132): “O Estado, sua política, suas formas, suas estruturas, traduzem, portanto, os interesses da classe dominante não de modo mecânico, mas através de uma relação de forças que faz dele uma expressão condensada da luta de classes em desenvolvimento”. Logo, embora seja um composto de elementos heterogêneos, o Estado, que também é produto da pressão das classes populares, pode ser posto a serviço dos interesses da classe dominante. Exatamente isso é o que acontece no Estado capitalista, que é aquele que se põe a serviço da dominação de classe promovida pela elite proprietária do capital. Embora o Estado capitalista seja o resultado da condensação das relações entre múltiplas forças e interesses divergentes, ele funciona em conformidade com a lógica do capital. Esta é contraditória porque promove a exploração e a alienação do trabalhador e da força de trabalho, ao mesmo tempo em que se desenrola em um cenário jurídico-político em que se prega o discurso da igualdade e liberdade, o discurso dos “direitos inalienáveis”, exemplificado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Sensível a essa problemática, o sociólogo e jurista português Boaventura de Sousa Santos (2008), retomando a concepção do Estado como condensação de forças sociais, explica que:

Volume 6 no 1

194


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

O Estado é capitalista na medida em que, ao condensar, como articulação dominante, as relações sociais de produção capitalista, está dependente da lógica do capital e, portanto, do processo de acumulação que por ela se rege. O Estado é assim a forma política dessas relações e caracteriza-se pela exterioridade do político (reduzido ao estatal) ao econômico e pela superordinação do primeiro, enquanto expressão do interesse comum, ao segundo, expressão dos interesses particulares. Esta relação entre o político e o econômico pressupõe uma mediação que seja simultaneamente exterior e superior tanto ao político quanto ao econômico. Essa mediação é o direito. A lógica do capital é conflitual porque se consubstancia numa relação de exploração. Existe historicamente enquanto luta de classes. Mas, além disso, é contraditória porque a relação de exploração tem lugar numa arena jurídico-política de igualdade e liberdade. (SANTOS, 2008, p. 24-25).

O Estado capitalista é aquele em que se passa uma redução do político ao econômico que leva à subordinação dos interesses comuns ao interesse particular, em nome da eficiência e do acréscimo permanente de performatividade ao modo de produção. Ora, essa “economicização” da política supõe que uma “mediação” seja feita, entre o político e o econômico, por uma instância que, em tese, situar-se-ia em posição superior tanto a este quanto àquele. Tal instância de mediação é o direito. Contudo, cumpre observar que, para Santos (2008), a mediação jurídica não constitui nenhuma forma de resolução de conflitos entre partes nem da luta de classes, mas a forma institucionalizada da subordinação do Estado à dinâmica da economia. Por conseguinte, positiva-se um direito capitalista, composto de leis que regulam os conflitos sociais unilateralmente, isto é, em função da lógica do capital, dos interesses do mercado e da classe dominante. Em lugar de solucionar os conflitos e atender às demandas normativas do todo da sociedade, a mediação políticoeconômica realizada pelo direito capitalista se presta, assim, a neutralizar a luta de classes, dispersando-a e a levando a um “estado de latência”. Segundo Santos (2008, p. 31): A função política geral do Estado consiste precisamente em “dispersar” essas contradições e essas lutas de modo a mantê-las em níveis tensionais funcionalmente compatíveis com os limites estruturais impostos pelo processo de acumulação e pelas relações sociais de produção em que ele tem lugar.

Para manter os conflitos em uma situação de latência, o Estado se vale de diferentes mecanismos de dispersão das contradições, que constituem um conjunto

Volume 6 no 1

195


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

articulado e internamente diversificado de dispositivos governamentais. Santos distingue os seguintes mecanismos de dispersão: (a) mecanismos de socialização/ integração, (b) mecanismos de trivialização/neutralização e (c) mecanismos de repressão/exclusão (SANTOS, 2008, p. 31). Tais mecanismos são utilizados ou não pelo Estado de forma desigual nas diferentes áreas da vida social, o que confere caráter assimétrico e fragmentado, mais aqui, menos ali, à dominação capitalista. Podemos visualizar esses mecanismos de dispersão dos conflitos sociais em ação fazendo referência ao fracasso das políticas habitacionais e, em especial, daquelas adotadas nos países da periferia capitalista. Nesse contexto, a solução encontrada por grande parte das populações para permanecer morando nas cidades é ir habitar em uma favela, como costuma ocorrer nas metrópoles brasileiras. Dado o elevado valor econômico para morar, o conflito entre as forças sociais se faz muito presente, bem como as reinvindicações e a luta de grupos sociais por melhores condições de moradia. Nesse cenário, as medidas adotadas pelo Estado capitalista vão implicar, de modo geral, na adoção de mecanismos de dispersão das contradições. Assim, as remoções violentas de assentamentos precários, seja para realização de grandes obras, seja para a retirada do incômodo social que é a favela para uma parcela mais abastada da população, podem ser identificadas como mecanismos de repressão/exclusão. Nas situações onde existe uma tolerância em relação às favelas com o intuito de garantir a manutenção da “paz social”, da “ordem pública” e dos “bons costumes”, pode-se dizer que o Estado utiliza mecanismos de trivialização/ neutralização. Por fim, nos casos em que grupos sociais em luta por moradia digna exercem pressão sobre o Estado, este pode recorrer a mecanismos de integração/ socialização, nos quais a pressão social é incorporada e a participação popular é manipulada. Assim, ao invés de levar à solução das demandas dos movimentos sociais ou à resolução dos conflitos, a absorção realizada pelo Estado tem por objetivo neutralizar a polarização social, que é em princípio incontrolável. Este último mecanismo opera de modo particularmente discreto e sutil (soft power), uma vez que não procura deslegitimar o movimento abertamente, e sim incorporar a sua potência de forma manipulada e controlada. Tendo em vista enfatizar um pouco mais a tese que se encontra em Boaventura de Sousa Santos de que o próprio direito pode ser e é utilizado pelo Estado para dispersar e neutralizar os conflitos sociais, é interessante fazer uma passagem pelas considerações do jurista pernambucano Marcelo Neves (1994) a respeito da legislação simbólica. Em sua versão progressista, o positivismo jurídico defende que as leis são elaboradas para propiciar transformações que possibilitem a justiça social.

Volume 6 no 1

196


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

Para Neves (1994), essa visão do direito é simplista. O tecido social e os sistemas jurídico e político são complexos demais para que a atuação do Estado através da legislação possa ser considerada apenas como instrumento de transformação social. Neves (1994, p. 31-32) afirma que uma grande quantidade de leis “desempenha funções sociais latentes em contradição com sua eficácia normativo-jurídica, ou seja, em oposição ao seu sentido jurídico manifesto”. Nesse sentido, Neves (1994, p. 32) define legislação simbólica “como produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico”. Em outros termos, as leis elaboradas pelo Estado, em muitos casos, não visam aos fins a que se propõem, mas servem para dispersar conflitos sociais, ou mantê-los naquilo que Boaventura Santos (2008) designa como “estado de latência”. A dispersão dos conflitos sociais e, de modo mais amplo, a dominação de classe são, no caso, as reais finalidades políticas, em oposição ao sentido jurídico que se manifesta na lei. É importante destacar que o campo conceitual da legislação simbólica é amplo, de modo que existem categorias diversas. Neves (1994) categoriza o conteúdo da legislação simbólica em três tipos: a confirmação de valores sociais, a legislação-álibi e a legislação como forma de compromissos dilatórios. O primeiro tipo confirmação de valores sociais ocorre quando grupos sociais em disputa exigem do legislador uma posição em torno dos valores em jogo na disputa. Neste caso, os grupos que se encontram em disputa, veem o reconhecimento legislativo como vitória e consequentemente como afirmação de superioridade dos seus valores, pouco importa se a legislação terá ou não eficácia. A intenção é influenciar o Estado na sua posição de elaborador da legislação para que formalmente sejam proibidas condutas que não condizem com seus valores. O segundo tipo legislação-álibi acontece quando o Estado, muitas vezes sobre pressão direta de uma classe social, elabora uma legislação para satisfazer as expectativas dos cidadãos, mesmo sabendo que não existem as condições para que a legislação seja efetivada. Através desse artifício, o Estado procura dispersar as contradições e as pressões políticas sobre ele ou também se mostrar acessível às exigências realizadas pela população. Nesse sentido, afirma Neves (1994): A legislação-álibi constitui uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas, desempenhando uma função ideológica. [...] é evidente que a legislação-álibi pode induzir “um sentimento de bemestar” (resolução de tenção) e, portanto, servir à lealdade das massas. (NEVES, 1994, p. 39-40).

Volume 6 no 1

197


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

O terceiro e último tipo é a legislação como forma de compromissos dilatórios. Neves (1994, p. 41) afirma que a “legislação simbólica pode servir para adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios”. Neste caso, os grupos em conflitos, não terão suas divergências resolvidas através da criação de uma norma, mesmo esta sendo elaborada e aprovada consensualmente entre os grupos, pois já existe a perspectiva de sua ineficácia. Nesse sentido, o conflito não é resolvido pelo estabelecimento da norma, mas tem sua solução adiada para um futuro indeterminado. Contudo, as críticas marxistas ao direito como instrumento ideológico de dominação de classe e de neutralização dos conflitos sociais, em geral, não levam em consideração o pluralismo jurídico, ou seja, a ideia de que existem outras formas de direito além daquela que é produzida pelo Estado. Joaquim Falcão (2008) distingue duas orientações majoritárias acerca do direito na contemporaneidade: o monismo e pluralismo. O monismo jurídico reconhece a existência de apenas um direito em toda a sociedade, a saber, o direito positivo estatal. Segundo Falcão (2008): O monismo de origem kelseniana concebe o direito como um sistema normativo fechado, logicamente hierarquizado de forma dedutiva e posto pela Estado. Responde historicamente à predominância do Estado na sociedade contemporânea desenvolvida, e transforma direito e justiça em direito estatal e justiça estatal. (FALCÃO, 2008, p. 97).

No monismo, há uma relação vertical entre Estado, população e as normas: o Estado situa-se no topo, como detentor de todo o poder na elaboração das normas, restando à população apenas receber o que já foi elaborado. A aplicação do direito legal, ou seja, do direito positivo estatal, resulta no justo legal, na justiça enquanto concretizada exclusivamente através da aplicação da lei emanada do Estado. Ao contrário do monismo, o pluralismo jurídico reconhece o direito estatal como uma das várias formas jurídicas que podem existir na sociedade. O pluralismo jurídico nega o Estado como centro único do poder político e a fonte exclusiva de toda a produção do direito, de modo que o direito estatal é apenas hegemônico ou dominante, mas não é exclusivo (FALCÃO, 2008). Neste caso, a relação entre Estado, população e normas ocorre de forma horizontal, na medida em que os cidadãos participam de modo direto da elaboração das normas. Além disso, na perspectiva pluralista, o justo não é o que resulta da aplicação da lei ou do direito legal, mas o que resulta da negociação entre uma pluralidade de agentes sociais. Não se trata do justo legal nem da justiça estatal, mas de uma justiça social, produzida pela negociação dos agentes, uma justiça plural.

Volume 6 no 1

198


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

Nesse sentido, pensamos que diversas ações dos grupos sociais excluídos, seja no sentido de elaboração das leis, seja no sentido da transformação do quadro da moradia através da resistência e da luta, sofrem influência dos mecanismos de dispersão das contradições nos termos de que fala Santos (2008). Quando essas lutas se configuram em pressionar o Estado para a elaboração de uma legislação que garanta o direito de morar, em muitos casos, o que o Estado utiliza é elaborar uma legislação simbólica, como revemos alguns exemplos no decorrer do texto. Por tanto, consideramos o direito à moradia digna um direito natural dos seres humanos, tendo em vista sua importância para a prática das necessidades básicas das pessoas. O direito à moradia não deve ser compreendido, a partir da perspectiva monista, como um conjunto de normas que emana unilateralmente do Estado. O direito à moradia não é apenas o direito legal, nem é a consubstanciação da justiça legal. Assumindo o ponto de vista pluralista, pode-se ver que o direito à moradia precisa ser construído como um direito social resultante da participação de múltiplos agentes sociais (proprietários fundiários, promotores imobiliários ou incorporadores, segmentos empresariais e financeiros, grupos sociais excluídos e Estado) em um processo de negociação, e não apenas do poder estatal de legislar. O Estado, não apenas como Poder Legislativo, mas também como Administração Pública e como Poder Judiciário, é sem dúvida um dos produtores desse tipo de direito social, mas está longe de ser o único. O direito social à moradia também é produzido de maneira direta pelos agentes sociais concernidos pela problemática da moradia. Assim, de um lado, os proprietários e/ou agentes imobiliários, de outro, moradores e/ou “invasores”, também podem estar diretamente envolvidos na produção do direito de morar enquanto partícipes de processos de negociação. Além disso, concluímos que é enquanto direito social que o direito à moradia pode superar a condição de legislação simbólica e de mecanismo ideológico de dispersão das lutas sociais, adquirindo uma significação especial para a ação política de resistência na contemporaneidade. A construção pluralista do direito também dá sentido às lutas sociais, que enxergam no direito um alvo e uma conquista que podem se materializar na forma muito concreta da moradia digna.

Referências Bibliográficas AZEVEDO, Sérgio; ANDRADE, Luis Aureliano. Habitação e poder: da Fundação da Casa Popular ao Banco Nacional de Habitação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.

Volume 6 no 1

199


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

BOBBIO, Noberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra; tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 1995. CORREIA, Telma de Barros. A construção do habitat moderno no Brasil – 1870-1950. São Carlos: RiMar, 2004. ENGELS, Friedrich.Sobre a questão da moradia. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2015. FALCÃO, Joaquim. Justiça Social e Justiça legal: Conflitos de Propriedade no Recife. In FALCÃO, Joaquim (Org.). Invasões urbanas: conflitos de direito de propriedade. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2008. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979. GOUVEIA, Alexandre Grassano. Direito natural e direito positivo. Jus Navigandi, publicado em 12/1998. Disponível em: <https//jus.com.br/artigos/6/direito-naturalpositivo> Acesso em: 12 abr. 2016. HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. Tradução: Jeferson Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2014. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 1979. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Edição portuguesa traduzida a partir da edição francesa. Tradução Rui Lopo. 1. ed. Lisboa: Estúdio, 2012. LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Proteção dos direitos humanos na ordem interna e internacional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. NEVES. Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994. NOLASCO, LoreciGottschalk. Direito fundamental à moradia. São Paulo: Pillares, 2008. PECHMAN, Robert Moses; RIBEIRO, Luís César. O que é questão da moradia. São Paulo: Nova Cultura: Brasiliense, 1985.

Volume 6 no 1

200


Direito a moradia: afinal do que se trata?, pp. 179-201

POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015. ______. O direito à moradia no Brasil e no mundo. Oculum Ensaios. Campinas, 2008, p. 147-163. SANTOS, Boaventura de Sousa. O Estado, o direito e a questão urbana. In: FALCÃO, Joaquim (Org.). Invasões urbanas: conflitos de direito de propriedade. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2008. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004. ______. Direito à cidade: trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São Paulo: Instituto Polis: Max Limonad, 1999. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel: FAPESP: 2001.

Volume 6 no 1

201


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue1 No presente a mente, o corpo é diferente
 E o passado é uma roupa que não nos serve mais Belchior

Bruno Pereira Cavalcanti2

Resumo: A antropologia contemporânea é caracterizada pela inversão ontológica da posição que o homem ocupava na modernidade. A centralidade e univocidade conceitual do ser humano são vistas agora em termos pluriversais, de modo que os vetores que garantiam a fixidez do seu lugar ontológico, agora o transpassam; ao invés de convergirem a ele, se movimentam em direção às diversas regiões do ser, permitindo seu acesso em diversos Trabalho produzido para publicação na revista Lampejo.

1

Graduando em Filosofia - Licenciatura pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Email: cartola_able@yahoo.com.br 2

Volume 6 no 1

202


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

sentidos. O conceito de humano perde sua primazia e o homem é pensado na atualidade do ponto de vista filosófico em função de determinadas imagens que se manifestam como próteses desse conceito. É dessa maneira que neste trabalho se pretende esboçar a imagem da construção em ruínas, e em processo, do homem como um c1b0rgue: um ser híbrido de máquina e organismo que se desmonta e remonta, que é desterritorializado, que já mudou tanto o lugar em que vive que agora tem que mudar a si mesmo para (sobre) viver nessa nova atmosfera. É remetendo-se a esse referencial teórico que pretendemos pensar essa imagem do homem em suas relações com as máquinas e com os outros a partir da matriz onde predomina à informação em fluxo entre os componentes, e onde o meio se apresenta como a própria mensagem. A cibernética possibilita intersecionar o homem e a máquina colocandoos em um mesmo horizonte: o da comunicação. Dessa relação surge no imaginário o c1b0rgue como o ser que se situa no nível pós-humano, superando dualismos de gênero, dualismo mente e corpo, ou pelo menos reconfigurando-os. Palavras-chave: Organismo. Máquina. Pós-Humano.

CONSIDERAÇŌES INICIAIS

Surgindo no presente, vindo de um lugar ulterior e ainda não conhecido (possivelmente o reino dos acontecimentos), numa noite escura e num ambiente sujo, no meio dos raios de descargas elétricas, entre máquinas, no subúrbio das cidades, despido de pudor, curvado e com um joelho abaixado ensaiando os movimentos de uma condecoração (ou de uma insurreição), semblante indiferente, o corpo e a postura de um titã, olhando a cidade, do alto: assim nos aparece o c1b0rgue. Não se sabe sua origem, nem gênese, é um aparecimento que causa surpresa, porém não nos espanta. Emerge, na metade do século XX, dos desejos delirantes da política, da ciência, da ficção, da insuficiência de um “ser humano” e do encantamento com o futuro. Talvez também das florestas mitológicas habitadas por sátiros, faunos e centauros, que nos seduzem para os benefícios da maravilha de ter o melhor de dois mundos vividos simultaneamente. Em suma: o c1b0rgue se apresenta a nós como a materialização de uma visão coletiva, de uma época tal que olhava pra si mesma e via as possibilidades que ainda restavam das restrições em seus modos de vida.

E

A tentativa de produzir o ser humano iniciada na modernidade, do qual o homem surgia do húmus e trazia uma fecundidade para enraizar nele mesmo uma árvore de saberes e virtudes únicas, agora se apresenta à filosofia recente de maneira insuficiente. A modernidade via tal projeto cristalizando-se numa moldura definitiva,

Volume 6 no 1

203


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

porém, certo ramo da filosofia atual tende a ver por esboços e não por molduras definitivas. Isso se deve ao já crescente, e ainda em curso, desenvolvimento das ciências em geral, na qual, o homem é tomado em sua variedade dimensional, em seus termos probabilísticos. Para falar com Lima Vaz:

As antropologias filosóficas contemporâneas preferem reconhecer a pluridimensionalidade dos sentidos que a experiência de seu próprio ser revela ao homem e procuram situar-se numa perspectiva que lhes pareça privilegiada para, a partir dela, construir um discurso englobante e coerente sobre a totalidade da experiência humana. Nesse caso não é a centralidade de um lugar único gerador de sentido (como o lógikon clássico ou o Cogito cartesiano), mas a pluralidade de lugares de sentido que permite igualmente a pluralidade dos discursos antropológicos. 3

Depois de muito remexerem em suas terras, o homem, hoje, um ser geral e abstrato, logo quase vazio, se mostra agora com um novo tipo de húmus, e uma grande umidade. O nosso interesse aqui será o de caricaturar algumas facetas que essa criatura parece assumir, procurando não a sua verdade última, ou sua identidade, mas circunscrevendo suas ações e atitudes possíveis. Existe aqui um tom, um incômodo que percorre a nossa tentativa de fotografar esse ser em movimento, que, do nosso ponto de vista, protagoniza um modo de vida emergente: o c1b0rgue como associação de máquina e organismo. Pretendemos sugerir uma imagem do c1b0rgue no sentido do acoplamento homem-máquina dentro da máquina, e não no sentido da difusão popular, principalmente cinematográfica, do homem com próteses e componentes metálicos, (ainda que não descartemos tal possibilidade e admitindo a importância do cinema como um importante referencial desse modo de vida se mencionássemos as grandes produções sci-fi do século XXI). O c1b0rgue é entendido aqui como um ser hodierno e atual do qual seus verbos são conjugados no presente e não no futuro. Não o entendemos como um ser catastrófico que causa uma viragem definitiva no clímax da peça tragicômica. Em suma, pretendemos aqui esboçar a imagem do c1b0rgue em conexão com outras imagens que também se comunicam com ele para que possamos destravar outros modos operantes de batalha, explorar outros acoplamentos entre homens e máquinas.

VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia Filosófica. 7. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004. pg. 136 3

Volume 6 no 1

204


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

1. A MEIO CAMINHO ENTRE O MAQUÍNICO E O ORGÂNICO A subjetividade humana é uma construção em ruínas, um edifício abandonado. A ciência ao longo da perda do referencial ontológico do “humano” - construído desde o início da modernidade - enquanto se desenvolvia foi mudando radicalmente o corpo humano, testando seus limites de tal forma que o conceito de alma, ou de essência humana se tornou frágil demais e teve de ser reconsiderado. Quando se cria os autômatos, as máquinas, e constructos do gênero e se percebe que elas desempenham funções análogas a da atividade humana, o homem se vê fragilizado perante tais criaturas, surgindo questões como as que nos sugere Donna Haraway:

onde termina o humano e onde começa a máquina? Ou, dada a ubiquidade das máquinas, a ordem não seria inversa? : onde termina a máquina e onde começa o humano? Ou ainda, dada a geral promiscuidade entre o ser humano e a máquina, não seria o caso de se considerar ambas as perguntas simplesmente sem sentido? Mais do que a metáfora, é a realidade do ciborgue, sua inegável presença em nosso meio (‘nosso’?), que põe em xeque a ontologia do humano. Ironicamente, a existência do ciborgue não nos intima a perguntar sobre a natureza das máquinas, mas muito mais perigosamente, sobre a natureza do humano, que somos nós?4

A noção de humano é co-fundida à máquina criada pelo próprio homem. A partir dessa relação, que se encontra cada vez mais esparsa, e cada vez mais “promíscua”, a subjetividade humana tende a ser repensada agora em seu deslocamento para os termos de uma imagem que deixe clarividente essa associação entre os compostos biológicos tão conhecidos por nós (o assim chamado homem cheio de significados), articulado com os aparelhamentos maquínicos produzidos nos últimos séculos. É na metade do século XX, nos estudos de cibernética, que encontramos a ideia do ciborgue em processo de testes. O primeiro ciborgue foi um rato de laboratório desenvolvido a partir de um programa experimental no Hospital Estadual de Rockland, em Nova York, no fim dos anos cinquenta: “implantou-se no corpo do rato uma pequena bomba osmótica que injetava doses precisamente controladas de substâncias químicas que alteravam vários de seus parâmetros fisiológicos. Ele era em parte animal, em parte máquina” 5. Manfred Clynes e Nathan Klyne em 1960 cunharam, então, o termo “ciborgue” “[cyborg] (abreviatura de ‘cybernetic organism’) HARAWAY, Donna. KUNZRU, Hari. TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. pg.10-11. Daqui em diante vamos nos referi a essa obra como “Antropologia do ciborgue” 4

5

Antropologia do ciborgue, p.121.

Volume 6 no 1

205


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

para descrever o conceito de um homem melhor adaptado aos rigores da viagem espacial” 6. É preciso guardar o seguinte fato: o ciborgue é criado de uma misto de sonho militar e científico e de um delírio literário ficcional, na construção de um supersoldado, com uma grande missão dada pelos seus superiores: resistir. Desde então, o c1b0rgue tem habitado fortemente o imaginário científico e popular. Uma criatura na qual há “algo de monstruoso, à medida em que implica o derretimento das fronteiras entre humano e animal, entre gêneros, entre humano e maquínico, natural e artificial, mente e corpo, físico e não físico” 7. A cibernética foi uma ciência decisiva no processo do forjamento do ciborgue. Norbert Wiener (1984 – 1964) foi quem reuniu o conjunto de ideias sobre a teoria da transmissão de mensagens da engenharia elétrica e a designou de Cibernética, derivada da palavra grega kybernetes, que significa piloto, a mesma palavra grega designada para timoneiro. O trabalho de Wiener teve como foco o de aproximar o homem da máquina equiparando-os como dois dispositivos que funcionam num base comum de transmissão de mensagens, mais precisamente por este ter encontrado no mundo um padrão de vida que é regida pela informação e pelas mensagens. Uma das teses de seu livro “Cibernética e Sociedade: O uso humano de seres humanos” é a de que: a sociedade só pode ser compreendida através de um estudo das mensagens e das facilidades de comunicação que disponha; e de que, no futuro desenvolvimento dessas mensagens e facilidades de comunicação, as mensagens entre o homem e as máquinas, entre as máquinas e o homem, e entre a máquina e as máquinas, estão destinadas a desempenhar papel cada vez mais importante. 8

Ao propor esta tese, Wiener dá um passo importantíssimo em direção agrupar em terreno comum os seres vivos e as máquinas, numa sincronização nada estranha. Mais que isso, propõe uma similitude entre ambas as partes: “o sistema nervoso e a máquina automática são, pois, fundamentalmente semelhantes ao constituírem ambos, aparelhos que tomam decisões com base em decisões feitas no passado” 9. 6

Antropologia do ciborgue, p. 121.

FELINTO, Erick. SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos: Vilém Flusser e o póshumanismo. 1. Ed. São Paulo: Editora Paulus, 2012. Pg.30. Daqui em diante vamos nos referir a essa obra como: “O explorador de abismos”. 7

WIENER, Norbert. Cibernética e Sociedade: O uso humano de seres humanos. 3.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1954. pg. 16. Daqui em diante vamos nos referir a essa obra como “Cibernética e Sociedade”. 8

9

Cibernética e Sociedade, pg. 34.

Volume 6 no 1

206


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

As ideias de Wiener deixaram um séquito de pessoas prontificadas a concretizar seu sonho de elaborar uma ciência da comunicação e do controle. O melhoramento do corpo, se acreditava, poderia ser feito por meio do melhoramento dos sistemas de estímulo-resposta, ou então por meio de conexão com outros seres, Porém, as pesquisas não avançaram muito devido à descoberta de uma incongruência entre os mecanismos de controle dos animais e das máquinas. Apesar disso, a cibernética legou à posterioridade duas profundas influências: primeiro, a visão do mundo como uma coleção de redes, o que possibilitou o avanço da Internet; segundo, de que não existe uma distinção tão clara entre animais e máquinas, entre o orgânico e o maquínico. Wiener ainda nos fala:

Modificamos tão radicalmente nosso meio ambiente que devemos agora modificar-nos a nós mesmos para poder viver nesse novo meio ambiente. Não podemos viver no antigo. O progresso não só impõe novas possibilidades para o futuro como também novas restrições 10

O imaginário que popularmente se têm dos ciborgues é povoado por seres híbridos com próteses de metal em seu corpo, às vezes com superforça, e com seu sistema biológico em funcionamento com um sistema automático, numa relação de estímulo-resposta. O surgimento desse novo modo de vida no imaginário, e aos poucos na realidade, tem sua importância no fato de que é através desse conjunto de imagens que se pretende construir um mapa com novas territorialidades entre o humano e o animal, o orgânico e a máquina, o físico e o não físico. Porém, tal imagem não se detém apenas no campo do futuramente possível, do virtual, no sentido de ainda ser feito: abrimos hoje mesmo, um caminho, um ródos, para que esse ser onírico do futuro com seus implantes caminhe entre nós, mas, também operamos uma espécie de versão análoga desse ciborgue ao criar redes – entendidas como a estruturação do ciberespaço: a figura do hacker, por exemplo, vem aqui iluminar a realidade do “ciborgue do futuro” na sua própria existência presente 11. 10

Cibernética e Sociedade, pg. 46.

Convém aqui mencionar, a título de ilustração, o filme de ficção científica “The Terminator” de 1984, do diretor americano James Cameron no qual é apresentada uma versão da temática do ciborgue. O ciborgue do filme, de esqueleto metálico recoberto por tecido vivo e inteligência artificial, de nome Cyberdyne Systems Model 101 - 800 Series Terminator (interpretado pelo ator Arnold Schwarzenegger) é transportado no tempo do ano de 2029 para a Los Angeles do dia 12 de maio de 1984 (o presente da época em que o filme foi lançado). Mas, o que chama mais a atenção e nos interessa mais é o texto inicial que abre o filme no qual é dito: “As máquinas erguem-se das cinzas do fogo nuclear. A guerra pra exterminar a humanidade durava décadas, mas a batalha final não seria no futuro. Seria decidida aqui no presente. Esta noite...”. Mencionamos isso aqui, para ratificar como pretendemos considerar o ciborgue no sentido do presente e de sua realidade em tal momento, e não apenas no campo das possibilidades. 11

Volume 6 no 1

207


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

As relações aqui apresentadas, apesar de não terem uma fronteira nítida – e podem ter? –, têm um território específico. Para ser mais pontual, tentamos até aqui sugerir a relação entre o humano e a máquina “dentro da máquina”, pela presente ubiquidade com que acontece, por exemplo, a relação do homem com o computador e as demais interfaces mediadoras com a internet. Pensar o ciborgue dentro do ciberespaço é pensar a esparsa relação que se apresenta a nós na contemporaneidade, ao andar pelas ruas e ver as pessoas com suas máquinas de bolso em uma profunda imersão. Pretendemos pensar não mais o “cyborg” apenas como um cibernético orgânico, mas o “c1b0rgue”, o em sua configuração cibernético-orgânicaalgorítimica12.

2. O C1B0RGUE COMO CRIADOR DE REDES Após ter apresentado minimamente o momento histórico e as condições do surgimento dos ciborgues e de suas primeiras estruturações buscaremos nesse segundo momento lançar luz na espécie análoga a do ciborgue com próteses (se assim podemos nomear, pois as palavras nos faltam e ele nos escapa) mencionada anteriormente, a saber, o c1b0rgue, mais precisamente em uma de suas facetas, a do hacker, com a sua principal atividade: criar redes. A escritura desse ser, dessa espécie, deliberadamente grafada com “1” e “0” no lugar de “i” e “o”, respectivamente, é uma tentativa de nossa parte para subverter a formação do nome ciborgue a partir do processo de justaposição e aglomeração dos nomes “cybernetic” e “organism”, pensado por Klyne e Clynes. Colocar os números no lugar das letras na nomenclatura do ser aqui apresentado tem, de saída, três funções aqui: a primeira pretende indicar de maneira visual, o seu duplo caráter, deixando transparecer de início uma estranheza que não se estranha, causada por ele, pois apesar de ver números, os lemos imediatamente como letras, compreendendo o sentido que a palavra sugere; a segunda função é de mostrar a permeabilidade existente na relação homem-computador-internet de modo que queremos falar aqui dessa especificidade de ciborgue no sentido da junção homem-máquina “dentro” da

Pensamos ser importante ainda, para demarcar um conjunto referencial, duas produções cinematográficas recentes que apresentam o tema por nós tratado de uma forma bastante elucidativa: “Her” de 2013 do diretor Spike Jonze; e “Transcendence” de 2014 do diretor Wally Pfister. 12

Volume 6 no 1

207


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

máquina, e mais precisamente no ciberespaço da internet13; e a terceira é o dispositivo de controle e significação que o “1” e o “0” tem na lógica computacional e na estruturação da internet como comandos que emitem sim/ não, falso/ verdadeiro, tudo/ nada, ligado/ desligado, ou seja, o c1b0rgue como ser que ao estruturar redes detém o aparato de controle para assegurar esses locais de trânsito de fluxos de dados. Como sugerimos é em termos de umidade, permeabilidade, infiltração que pensamos aqui o c1b0rgue, e não nos termos do tão conhecido “húmus” característico da humanidade. Desse modo, evocamos aqui a categoria criada de modernidade líquida, criada por Zygmunt Bauman para situar a localidade do nosso c1b0rgue. Assim, segundo o próprio Bauman a modernidade líquida caracteriza-se pelo fato de que o “longo esforço parra acelerar a velocidade do movimento chegou a seu ‘limite natural’”14. Estamos no momento fluido da modernidade que se caracteriza por não fixar o espaço, nem prender o tempo, onde se rompe toda e qualquer barreira espaçotemporal. A modernidade inicia-se por separar o espaço e o tempo, antes percebido como intrínsecos e indistintos na experiência vivida; a pós-modernidade caracterizase pela colonização do espaço pelo tempo. É nesse campo que podemos pensar o c1b0rgue: dentro do ciberespaço da internet. O ciborgue procurado pela cibernética é o homem com constructos maquinais acoplados a si, carregando-os pelas ruas, porém, antes de atingirmos a ubiquidade desse tipo de ser na experiência cotidiana, temos já na atualidade um tipo análogo de relação, em uma nova configuração: o homem funde-se à máquina para conquistar o ciberespaço, e “entra” no ciberespaço nessa condição, enquanto c1b0rgue. Porém, essa entrada no ciberespaço da internet não se dá somente de maneira virtual, e é preciso delimitar isso. 13

Uma das linhas de pesquisa da cibernética que mais se desenvolveu foi a internet: a partir dos computadores, os primeiros aparelhos capazes de calcular e armazenar programas surgiram, primeiramente, nos Estados Unidos e na Inglaterra por volta de 1945. Após passarem aproximadamente quinze anos no poder de militares, o uso civil desses aparelhos disseminou-se nos anos 60. Desde então ocorreu um maior desenvolvimento da automação, barateamento dos aparelhos, e gradativamente um novo movimento sociocultural nascia no final dos anos 80 e início dos anos 90, originado por jovens profissionais e universitários americanos com consequências mundiais. Naturalmente, “diferentes redes de computadores que (...) se juntaram umas às outras enquanto o número de pessoas e de computadores conectados à inter-rede começou a crescer de forma exponencial”. Surge desse processo uma estrutura que possibilita um novo meio de comunicação: o ciberespaço. Como Pierre Lévy sugere o termo “especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo” . Um fluxo de informação intangível provoca uma maior dissipação de eventos e de culturas diversas pondo em contato todos os seres que a esse espaço aderem. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 1ª Ed. São Paulo: Editora 34, 1999. pg. 32. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2001. pg.17-18. 14

Volume 6 no 1

209


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

A categoria do virtual, com que geralmente são analisados os domínios do ciberespaço, é estranhamente complicada, como se a internet não fosse exatamente real, com carga empírica “palpável”, ou como se ela existisse apenas enquanto possibilidade de viver outra vida mais fecunda dada as condições com que ela se apresenta enquanto divertimento. Por isso, trazemos aqui um modo novo de olhar essa disposição. E para tanto usufruímos da noção elaborada por Peter Sunde, um dos criadores do maior site de livre compartilhamento de arquivos na internet: The Pirate Bay. Em uma audiência realizada para dar esclarecimentos à justiça sobre a pirataria que seu site supostamente realizaria nos domínios da propriedade intelectual de grandes empresas midiáticas e sobre as relações que mantinha com seus amigos programadores, Sunde é perguntado de que maneira conheceu seus parceiros, se “in real life” (na vida real) ou virtualmente, na internet. Ele responde que os conheceu na internet, e justifica o porque que eles não utilizam o termo “in real life” em oposição à internet e diz: “Nós não gostamos dessa expressão (IRL - In Real Life - Na vida Real). Nós falamos AFK - Away From Keyboard (Ausente do teclado). Nós achamos que a internet é real”15. É esclarecedor como tal noção derrete a polaridade “real-virtual” na qual o debate é geralmente posto, e a internet é entendida por quem a programa e a produz em termos de realidade e não como dissociada, tomada a parte, sobreposta, ou subjacente, ou apenas possível, ou simplesmente como um lugar de divertimento. A relação da internet com o nosso substrato orgânico, assim chamado corpo, se dá quando estamos ou não associado, intervindo ou operando nesta. Não há apenas uma sobreposição da internet sobre realidade, criando uma virtualidade, ou espaço de jogo das possibilidades, mas ambas são tratadas do ponto de vista da própria realidade por quem a cria. O nosso c1b0rgue se mostra a nós, agora, mais real do que virtual, e mais online num mundo de vitalidade do que offline deste. Para falar com Donna Haraway o ciborgue “é um tipo de eu-pessoal e coletivo-pós-moderno, um eu desmontado e remontado” 16. Podemos ainda lançar mão de outro argumento em favor dessa presença do c1b0rgue no mundo do real. Julian Assange, um ciberativista australiano, em seu livro “Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet” nos lança um chamado à guerra cibernética em curso, travada na Internet. Como ele mesmo diz na introdução:

KLOSE, Simon. KÖHNCKE, Anne. PERSSON, Martin. SØRENSEN, S. B. The Pirate Bay: Away From Keyboard. [Filme-Vídeo]. Produção de Martin Persson, Simon Klose, Signe Byrge Sørenssen, Anne Köhncke, direção de Simon Klose. Suécia, 2013. Arquivo em MKV, 82 min. Cor. Som. 15

16

Antropologia do ciborgue, p. 63-64.

Volume 6 no 1

210


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

“Este livro não é um manifesto. Não há tempo para isso. Este livro é um alerta.” 17 . Dentre vários aspectos, Assange tenta nos alertar sobre a internet como um grande sistema de vigilância e controle dado a sua grande militarização18, e sobre como a internet pode se tornar uma arma de dominação, ou de libertação. E faz isso do ponto de vista de quem interfere diretamente na estrutura da internet, criando-a e recriando-a continuamente. A internet surge na guerra e a marca do controle não está dissociada dela. Aqueles que a criam exercem necessariamente um controle sobre aqueles que simplesmente a utilizam, sem se dar conta do forte conflito que se dá desde as bases físicas até aos seus domínios criptográficos. Se existe uma situação tal que exige essa disposição combatente em um terreno como a internet, o c1b0rgue deve ser entendido como o ser que possui a habilidade de interferência e operação no domínio da internet. Uma incongruência surge, então: a necessidade de estar online na rede e entendê-la em sua configuração técnica para que seja possível a resistência contra o controle negador da liberdade. A questão gira em torno de que não basta apenas navegar nos domínios da internet, ou apenas se “balançar na rede” como a maioria faz, pois a internet como divertimento é algo posterior a sua existência como máquina de guerra. Se a liberdade dos indivíduos está em risco, também, na internet e este não é um território tão paradisíaco, tomar conhecimento disso é também tomar posse da própria existência em detrimento das instâncias que a dominam a todo instante, uma atitude afirmativa. Como esclarece Julian Assange:

Eu gostaria de refletir sobre como nós deveríamos apresentar nossas ideias. Meu maior problema, falando como alguém que está cercado pela vigilância do Estado e viu como a indústria de segurança transnacional se desenvolveu ao longo dos últimos vinte anos, é que estou muito familiarizado com esse cenário e

ASSANGE, Julian. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. Tradução de Cristina Yamagammi. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. pg. 25. A partir de agora vamos nos referir a esta obra como “Cypherpunks”. 17

O que Assange nos fala sobre a militarização do ciberespaço: “Atualmente tenho visto uma militarização do ciberespaço, no sentido de uma ocupação militar. Quando nos comunicamos por internet ou telefonia celular, que agora está imbuída na internet, nossas comunicações são interceptadas por organizações militares de inteligência. É como ter um tanque de guerra dentro do quarto. É como ter um soldado entre você e sua mulher enquanto vocês estão trocando mensagens de texto. Todos nós vivemos sob uma lei marcial no que diz respeito às nossas comunicações, só não conseguimos enxergar os tanques – mas eles estão lá. Nesse sentido, a internet que deveria ser um espaço civil, se transformando em um espaço militarizado. Mas ela é um espaço nosso, porque todos nós a utilizamos para nos comunicar uns com os outros, com nossa família, com o núcleo mais íntimo de nossa vida provada. Então, não prática, nossa vida privada entrou em uma zona militarizada. É como ter um soldado embaixo da cama. É uma militarização da vida civil.” Cypherpunks, pg. 53. 18

Volume 6 no 1

211


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

não sei como olhar para isso da perspectiva de quem vê de fora. Mas agora o nosso mundo é o mundo de todos, porque todo mundo já jogou seus detalhes mais secretos na internet. Precisamos dar um jeito de transmitir o que aprendemos enquanto ainda é possível. 19 Assange, perante a enorme força com que a internet nos apresenta, faz um chamado à população mundial para que saiam do conforto de suas redes e aprendam a construí-las, ou dizendo de uma melhor forma, pede para que olhemos para as bases de nossas redes, onde elas estão sustentadas, e, que vejamos as colunas hostis de onde nos balançamos em aparente fluidez. Desse modo:

Criar redes significa articular competências cruzadas, promover hibridismos, fertilizar o devir. Nesse sentido, a dissolução de fronteiras nacionais teria uma positividade apenas – e tão somente – quando acompanhada da manutenção das singularidades locais. Um mundo sem fronteiras não significa um mundo sem diferenças, mas, antes um mundo no qual as diferenças podem comunicar-se livremente entre si, em constantes fluxos e reconfigurações. 20 Assumir o modo de vida c1b0rgue, afirmá-lo, é fundamentalmente uma atitude política, que avista não apenas os limites, mas, antes, as possibilidades de vida num mundo que avança para uma distopia do controle e do subjulgamento dos indivíduos. Algumas perguntas se formam em nós ao longo das reflexões aqui esboçadas sobre o c1b0rgue. Que vivência o homem experimenta em si mesmo, hoje? Será algo parecido com a que o grego dionisíaco, que querendo “a verdade e a natureza em sua máxima força – ele vê a si mesmo encantado em sátiro” 21? O descentramento que as forças da contemporaneidade produzem em seu corpo e mente é tal, que não se vê mais como um ser pleno de humanidade, porém como algo híbrido, derretido, reconfigurado, como uma criatura fantástica, algo próximo de um personagem de um filme de ficção científica? Ou ainda: vamos preferir trabalhar como robôs e simular uma vida humana, ou experimentar outras vivências como c1b0rgues? Podemos, com 19

Cypherpunks, pg. 44.

20

O explorador de abismos, pg. 22.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das letras, 2007. Pg, 55. 21

Volume 6 no 1

212


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

a perspectiva do c1b0rgue estabelecer outra relação com a ciência e a arte de modo a tornar possível um novo entrelaçamento entre estas áreas e a filosofia e retomar o diálogo, em detrimento das noções filosóficas insuficientes?

CONSIDERAÇÕES FINAIS A perspectiva aqui apresentada procurou sugerir, quem sabe seduzir, e talvez até estabelecer um novo modo de olhar para o homem, e criar outros sentidos para uma nova experiência de mundo. Em vista disso tínhamos a limitação dos conceitos mais antigos e buscando alguns autores que possam lançar outra luz sobre o assunto pensar esse assunto inquietante, a saber, o que a figura do ciborgue indica para os nossos tempos e quais essas novas bases existenciais a que o homem se levou e foi levado. E as ciências constituem um papel importantíssimo na mediação das novas formas de interação com o meio a partir das tecnologias e das máquinas. Pensar como é possível o acoplamento do homem com a máquina – ou seria da máquina com o homem? – dentro dos limites internet no que a máquina e as interfaces dão suporte, não tem o tom finalizador de apresentar um modo de vida integral, ou que esteja finalizado: pelo contrário, como quem vê de fora, olhar para o tipo de vida que surge da união homem-máquina, mas perpassando o olhar para dentro da própria máquina, e não apenas do ponto de vista do homem. Tal ambição nos deixa mais dúvidas que certezas, porém o mais importante foi feito: lançar um olhar, uma perspectiva de direcionamento para que possamos pensar essas relações, e sabendo da importância política que a acompanha. O c1b0rgue, como o resolvemos nomear, nos vem à mente acompanhada da tentadora figura do sátiro, não apenas pela sua hibridização, mas também pela ebriedade que evoca, a hesitação, essa monstruosa e sublime figura. Se está em nossos caminhos beber na fonte das antigas mitologias, e se o homem atual e ocidental sempre volta a seu berço grego é no canto das tragédias que o encontramos. Se evocamos o sátiro e pretendemos levá-lo a sério como uma forte figura que encontra seu símile na atualidade, é porque o nosso c1b0rgue relembra esse ser em seus principais gestos, ou seja, em suas muitas facetas reunidas em um só ser. Para falar e finalizar com Nietzsche:

Assim surge aquela figura fantástica e aparentemente tão escandalosa do sábio e entusiástico sátiro, que é concomitantemente ‘o homem simples’ em contraposição ao deus: imagem e reflexo da natureza em seus impulsos mais fortes, até mesmo símbolo desta e

Volume 6 no 1

213


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

simultaneamente pregoeiro de sua sabedoria e arte – músico, poeta, dançarino, visionário, em uma só pessoa. 22

BIBLIOGRAFIA

ASSANGE, Julian. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. Tradução de Cristina Yamagammi. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2001. FELINTO, Erick. SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos: Vilém Flusser e o pós-humanismo. 1. Ed. São Paulo: Editora Paulus, 2012. HARAWAY, Donna. KUNZRU, Hari. TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009 KLOSE, Simon. KÖHNCKE, Anne. PERSSON, Martin. SØRENSEN, S. B. The Pirate Bay: Away From Keyboard. [Filme-Documentário-Vídeo]. Produção de Martin Persson, Simon Klose, Signe Byrge Sørenssen, Anne Köhncke, direção de Simon Klose. Suécia, 2013. Arquivo em MKV, 82 min. Cor. Som. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 1ª Ed. São Paulo: Editora 34, 1999 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das letras, 2007. VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia Filosófica. 7ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das letras, 2007. Pg, 59. 22

Volume 6 no 1

214


Uma imagem do homem na atualidade: o C1b0rgue, pp. 202-215

WIENER, Norbert. CibernĂŠtica e Sociedade: O uso humano de seres humanos. 3.ed. SĂŁo Paulo: Editora Cultrix, 1954

Volume 6 no 1

215


Ser mulher na pós-graduação em Filosofia, pp. 216-220

Ser mulher na pósgraduação em Filosofia Ana Carla de Abreu Siqueira1

B

astam poucos anos de estudo para ficar evidente que o espaço das mulheres na filosofia é pequeno e constantemente ignorado. Com efeito, desde a graduação, a filosofia produzida por mulheres é pouco explorada. Mais do que isso: no Brasil, o número de mulheres na pós-graduação em Filosofia é inferior ao número de homens, tanto no corpo discente como no corpo docente2. Este texto não tem pretensões de discutir os motivos que causam o afastamento das mulheres na história da filosofia. Também não apresenta dados sobre a pouca demanda dos estudos de filósofas e sobre gênero. Essas reflexões já estão sendo realizadas e apropriadas com mérito por estudiosas especializadas no assunto. Trata-se de um desabafo e uma tentativa de discutir algumas percepções sobre a dificuldade que é ser mulher na pós-graduação em filosofia. Em muitos textos de filósofos consagrados e obrigatórios nos currículos, deparamo-nos com passagens que colocam a mulher em condição de inferioridade.

Doutoranda em Filosofia – UFC/Funcap

1

Cf. ARAÚJO, Carolina. Mulheres na Pós-Graduação em Filosofia no Brasil, p.4: “A comunidade é atualmente composta por 4.437 indivíduos, dos quais 1.199 mulheres, 27% dos indivíduos, e 3.238 homens, 73% dos indivíduos. Desse total 3.652 indivíduos são discentes, dos quais 1.036 mulheres e 2.616 homens, ou seja, entre os estudantes de pós-graduação em filosofia no Brasil há 28,4% de mulheres e 71,6% de homens. No total são 785 indivíduos que trabalham como professores de PPGFs no Brasil, dos quais 163 são mulheres e 622 homens, portanto as mulheres compõem 20,76% dos indivíduos docentes, enquanto os homens são 79,24%.” 2

Volume 6 no 1

216


Ser mulher na pós-graduação em Filosofia, pp. 216-220

Mostrar o rebaixamento da condição feminina significa evitar a repetição desse erro. Afinal, quando escolhemos ler esses autores – os quais fracassaram na tarefa de reconhecimento do gênero feminino – não podemos reproduzir o machismo presente em seus discursos. Suas ideias moldam até os dias atuais a perspectiva de leitores no espaço acadêmico e na vida cotidiana. O diálogo filosófico requer confiança entre seus interlocutores e, se professores e alunos estão presos a um sistema misógino, certamente as mulheres não terão chances de expor seus argumentos com a mesma segurança que os homens foram ensinados a ter. Ainda existe um longo caminho até o reconhecimento da nossa independência intelectual. Para isso, não é preciso deixar de lado os textos escritos por homens nem começar a ler apenas mulheres. Antes de tudo, é essencial não silenciar uma mulher quando ela mostra o seu pensamento e também participar da luta contra as inúmeras injustiças sofridas diariamente por tantas mulheres. No ambiente acadêmico, isso infelizmente é comum quando alguém procura elogiar a aparência de uma mulher em detrimento do seu esforço e da sua inteligência ou atribui a um homem a autoria de um texto apenas por ter sido bem escrito e argumentado. Nós possuímos a mesma autoridade em discussões sobre política, ética, epistemologia, linguagem, estética, hermenêutica e qualquer assunto relevante à nossa existência. Também precisamos sentir que somos representadas, conhecendo os textos escritos por pensadoras e utilizando seus pressupostos como apoio para debates e reflexões. Temos como exemplos notáveis Mary Wollstonecraft, Simone de Beauvoir, Hannah Arendt, Susan Sontag, Angela Davis, Iris Marion Young, Judith Butler, Djamila Ribeiro, Hypatia de Alexandria, Carla Rodrigues, Jeanne Marie Gagnebin, Suzana Castro e Marilena Chauí. Entretanto, percebemos que as desigualdades de gênero nunca foram questionadas. Mulheres possuem especificidades, mas nem por isso devem ser coadjuvantes na história da filosofia. Seria necessário pensar como as vivências femininas devem ser incorporadas em uma discussão crítica. Sabemos que os debates em torno das questões de gênero encontraram e ainda encontram resistência nos grupos de pesquisa e nas salas de aula. A figura masculina ainda aparece em lugar de protagonismo, baseando-se em teorias arcaicas de que a mulher é intelectual e biologicamente mais fraca do que o homem. A criação do GT Filosofia e Gênero pela Anpof, por exemplo, foi um passo essencial para a discussão de questões feministas a partir de uma base filosófica e para a modificação dos modos patriarcais de filosofar. A filosofia não pode deixar de interagir com as situações concretas da vida humana. Portanto, as premissas filosóficas oferecem um apoio sólido nas discussões em torno de pautas essenciais para o feminismo, tais como o engajamento da mulher na política, a cultura do estupro, a liberdade da mulher em situações de violência

Volume 6 no 1

217


Ser mulher na pós-graduação em Filosofia, pp. 216-220

doméstica e as vivências corporais, uma vez que o controle dos corpos femininos é uma característica marcante da sociedade patriarcal. Porém, o debate feminista ainda parece causar desconforto nos homens. Eles teriam medo de perder um espaço de fala dominante e exclusivo? De reconhecer que o gênero feminino possui questões particulares a serem discutidas e que não devem ser isoladas? Receiam que sejamos bem-sucedidas e que livros escritos por mulheres sejam citados com maior frequência em artigos, dissertações e teses? O machismo no ambiente acadêmico é tão banalizado, que está refletido até mesmo nas conversas fora das salas de aula. “Esqueça o namorado e vá escrever.” “Acho que você não vai defender.” “Você não vai passar no doutorado.” “Vai ter tempo de estudar, sendo casada?” “Você estava bonita na seleção.” Todas essas são frases reais escutadas por mim e por colegas nos departamentos de filosofia. São frases bastante difíceis de serem escutadas e situações revoltantes de serem testemunhadas. As limitações desse discurso contribuem para que qualquer mulher venha a se sentir isolada durante os anos de pós-graduação. Imaginem a solidão que é ser mulher na filosofia: assistimos às aulas em uma sala repleta de homens e, mesmo quando há um número consideravelmente alto de mulheres, ainda somos a minoria. De fato, homens dominam a filosofia, pois quase todos os professores são do sexo masculino. Além disso, o maior número de autores lidos – quase como uma totalidade – são homens. Imaginem a solidão de ser uma aluna na hora da defesa: depois de alguns anos sendo orientada por um professor, ela ainda é avaliada por outros docentes do sexo masculino, uma vez que eles também predominam nas bancas de qualificação e defesa. O olhar deles sobre nós, sua compreensão das nossas palavras e o modo como escutam o nosso discurso formam um momento de autoridade masculina. Nossa percepção filosófica e nosso esforço dependem da avaliação e da aprovação dos homens. Afinal, o que dizer da história da academia quando o número de mulheres matriculadas em um programa de pós-graduação ou ligadas ao corpo docente não chega à metade do número de homens? O que dizer quando o número de mulheres é tão reduzido que chega a ser igual ao número de homens com determinado nome?3 Isso sem esquecer que o número de mulheres negras é ainda menor, chegando a ser inexistente em alguns departamentos, reflexo dos problemas históricos que a academia precisa superar para alcançar a igualdade que sonhamos para todas. Para alguns, um suposto desinteresse bastaria para explicar a redução do número de mulheres que encontramos a cada nível: na graduação há mais mulheres do que no mestrado, onde há mais mulheres do que no doutorado e, por sua vez, aí Tomo como exemplo um dado sobre o Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFC: em 2015, havia quarenta e três alunos matriculados no doutorado. Apenas quatro de nós éramos mulheres; quatro era também o número de homens que se chamavam Daniel. 3

Volume 6 no 1

218


Ser mulher na pós-graduação em Filosofia, pp. 216-220

encontramos mais mulheres do que no corpo docente4 . Isso acontece porque, desde os primeiros anos de carreira, encontramos obstáculos variados: casos de assédio que fazem com que mulheres desistam, a falta de apoio à mulher que é mãe e trabalha, o esgotamento mental de quem é desacreditada. E por qual motivo algumas pessoas ainda dizem que não nos interessamos? Será que ainda enxergam a mulher como um ser passivo e submisso, incapaz de impor suas ideias? A proporção feminina é baixa porque estamos diante de um problema cultural. Não se trata de um limite atinente à constituição física ou à inteligência. Infelizmente, porém, ainda permanece uma crença machista de que a filosofia não é assunto de mulher. Mas nós queremos estudar e temos o direito a um aperfeiçoamento constante. Estudamos autores masculinos – e eu mesma, confesso, fui conduzida neste caminho – ou ao menos partimos deles por dois motivos óbvios: o primeiro, porque respeitamos a história da filosofia e não pretendemos simplesmente descartar tudo o que já foi construído e as teorias que nos são relevantes; e o segundo, porque a eles sempre foram dadas oportunidades de estudar. Foram eles que, durante séculos de privilégio, tiveram a chance de ler, escrever, repetir e refutar aquilo que outros homens disseram. Como consequência inevitável, desde que começaram a filosofar, homens acreditam possuir o direito de nos explicar coisas. Eles sempre têm algo a nos dizer, estão sempre dispostos a nos corrigir, a fazer interferências públicas e até mesmo acreditam que, quando não concordamos com eles, significa que não entendemos. Isso acontece ainda que sejamos mais qualificadas no assunto em discussão. Que possamos então deixar que as mulheres expliquem coisas umas para as outras. E se cada uma de nós se propuser a assistir suas aulas e palestras, convidá-las para bancas de qualificação e defesa, utilizar mais comentadoras em textos, já estamos fazendo um exercício importante na filosofia, senão urgente e essencial: dar voz e mais credibilidade às mulheres. Afinal, questionar nosso lugar na filosofia também significa fazer um exercício filosófico. Ser mulher na pós-graduação em filosofia é uma tarefa difícil, que nos exige sacrifícios e nos deixa mais exaustas do que supostamente deveríamos ficar. Não bastam as horas de estudo, discussões e dedicação à escrita. É preciso provar diariamente que merecemos estar ali, que somos capazes de filosofar e discutir com homens que se impõem com a vantagem de uma tradição que sempre os colocou como donos da razão. É preciso ler e confrontar ideias masculinas, para discuti-las Cf. ARAÚJO, Carolina. Mulheres na Pós-Graduação em Filosofia no Brasil, p.8: “Se tomamos os dados da pós-graduação aqui levantados em contraste com os números mais recentes da graduação (2014), temos que as mulheres são 38,4% dos graduados, 28,45% dos discentes matriculados na pósgraduação, 28,36% dos discentes da pós-graduação em geral, 20,94% dos docentes permanentes da pós-graduação, 19,95% dos docentes de pós-graduação em geral e 12,16% dos docentes que são convidados a participar de mais de um programa de pós-graduação.” 4

Volume 6 no 1

219


Ser mulher na pós-graduação em Filosofia, pp. 216-220

com outros homens e ter sempre que ouvir algum comentário machista, impiedoso e, às vezes, constrangedor. Muitas vezes, não podemos contestar porque corremos o risco de sermos silenciadas, perseguidas e difamadas. Somos vistas como exageradas, sensíveis e vulneráveis. Mas só estamos vulneráveis a todos os tipos de assédio, sem receber apoio de professores e colegas, pois falar sobre isso incomoda. Nós não queremos elogios sobre nossa aparência. Não queremos expor o corpo para ter alguma atenção, tampouco escondê-lo para evitar constrangimentos. Ser mulher na pós-graduação e fazer filosofia é buscar um espaço de fala, mostrar a relevância da nossa percepção e contribuir para as discussões que inquietam qualquer existência. Se a filosofia surgiu para confrontar os mitos, que possamos – como filósofas, pensadoras e estudiosas – derrubar o mito de que a mulher é incapaz de filosofar.

Fortaleza, 06/03/2017.

Referências ARAÚJO, Carolina. Mulheres na Pós-Graduação em Filosofia no Brasil – 2015. São Paulo: ANPOF, 2016, disponível em <http://anpof.org/portal/images/Documentos/ ARAUJOCarolina_Artigo_2016.pdf>. Último acesso em 03/03/2017. RODRIGUES, Carla. A filosofia (brasileira) não é feita só por homens. <http:// anpof.org/portal/index.php/en/comunidade/coluna-anpof/1033-a-filosofiabrasileira-nao-e-feita-so-por-homens>. Último acesso em 01/03/2017. You

Volume 6 no 1

220


O compromisso da Filosofia, pp. 221-224

O compromisso da Filosofia

N

M. Bezerra Neto

as “Teses sobre Feuerbach” (11ª. Tese), Marx já alertava sobre as diversas maneiras e tarefas sobre como encararmos o mundo e o representar – o que, de antemão, implica uma atitude filosófica – uma vez que esta atitude só adquire sentido e validade se for suficientemente capaz de transformar a realidade, ao contrário de tudo isso, não passa de pura especulação metafísica que procura captar uma “essência imutável” e abstrata naquilo que às vezes manifesta apenas uma forma fenomênica e parcial de sua totalidade.

O problema mencionado acima deve ser tratado como aspecto inerentemente histórico e, ao mesmo tempo, relevante, sobre os conceitos filosóficos. Sem dúvida, longe de ser só um problema abstrato de epistemologia, ou uma indagação pseudoconcreta, a questão do estatuto das categorias epistemológicas do conhecimento, isto é, daquilo que deve ser universal, deve estar, ainda assim, no centro dos debates filosóficos, não porque se trate de uma questão inerente ao sentido tradicional da filosofia, mas porque o tratamento da universalidade das categorias filosóficas só revela a posição e a função históricas da filosofia na cultura intelectual dominante. O fato marcante é que a filosofia analítica pós-moderna se propõe nada menos que esconjurar mitos da modernidade ou fantasmas metafísicos, tais como verdade, totalidade, sujeito, objeto, etc. dissolvendo o sentido destes conceitos em afirmações hermenêuticas sobre operações, poderes, dispositivos institucionais, vontade, etc. particularmente identificáveis. O resultado mostra, de forma estranha, a “insignificância” da destruição de tudo o que é abrangente e consistente, para só deixar apenas o fantasma do contingente e da probabilidade do que o discurso é capaz de demonstrar: o fantasma da denotação linguística pós-moderna, para a qual

Volume 6 no 1

221


O compromisso da Filosofia, pp. 221-224

a verdade dos conceitos se reduz tão somente à relação entre referentes de pensamento, e não mais entre Ser e Pensamento concretos. Ainda que cada interpretação ou representação possa expressar adequadamente um processo mental particular, a ação de imaginar quando pretendo dizer Eu ou aquela foi uma boa ação, nem uma só destas formulações, entanto, parece captar ou, inclusive, descrever o significado concreto e total daqueles termos. Estas categorias seguem persistindo tanto no senso comum, quanto no campo axiológico do conhecimento, e cada uso seu as distingue das diferentes formas de disposição que, para o pensamento hoje em voga completam seu significado. Evidentemente, tais conceitos não podem alcançar status de validade mediante a afirmação de que denotam uma totalidade que é superior e diferente de suas partes. Na aparência, podem ser, mas essa totalidade requer pelo menos uma análise do contexto da experiência não distorcida. Se a análise supralinguística for rejeitada, e a linguagem comum for tomada como valor imediato; isto é, se uma totalidade falaciosa de compreensão geral for substituta de um universo prevalecente de comunicação, determinada a priori, os conceitos universais em foco serão certamente interpretados, e seu conteúdo mitológico pode ser dissolvido em apenas formas de condutas e disposições. Evidentemente, se esta compreensão filosófica não abrange esses processos de identificação com processos sociais objetivos, como uma mutilação da consciência infligida aos indivíduos pela ordem social dominante, essa filosofia apenas consegue lutar então contra o fantasma das essências que quer desmistificar, e a conversão torna-se assim falaciosa precisamente porque traduz o conceito em formas reais de condutas, disposições e habilidades e, ao fazê-lo, toma as aparências distorcidas pela própria realidade. Universalidade dos conceitos Se o pensamento deriva de condições histórico-sociais que operam abstratamente, deve existir, porém, alguma base objetiva sobre a qual se deva fazer a distinção entre as várias possibilidades projetadas pelo pensamento entre formas de distinção conceitual contraditórias? E mais, a questão não pode ser discutida apenas com referência a disposições ou concepções filosóficas, pois à medida que uma concepção filosófica se apresenta ideologicamente, não deixa de ser também uma proposta histórico-social; quer dizer, ela está associada inegavelmente a uma etapa histórica e a um determinado tipo ou nível de desenvolvimento social específico e, assim, a compreensão filosófica crítica e progressista deve se referir sempre às possibilidades alternativas desse desenvolvimento. A busca de critérios para se distinguir entre diferentes projetos filosóficos deve levar então à busca de critérios para julgar entre diferentes propostas alternativas

Volume 6 no 1

222


O compromisso da Filosofia, pp. 221-224

históricas, entre diferentes modos possíveis de entender e transformar a sociedade e o homem. Eis porque algumas proposições que sublinham o caráter histórico dos conceitos filosóficos, longe de impedir sua validade objetiva, definem, ao contrário, a base para essa validade objetiva. Ainda que pensando e representando para si mesmo, a partir de uma posição particular em sociedade, o filósofo o faz, todavia, sempre a partir de sua experiência coletiva transmitida e utilizada por esta sociedade. Mas, ao fazê-lo, pensa e representa dentro da esfera comum de fatos e possibilidades; muitas vezes, apesar das condições objetivas estabelecidas pela ordem histórica, a formação de seus conceitos, mesmo oposta à sua consciência, no fim, permanece determinada mesmo pela estrutura objetiva – e não pela lógica predominante – dos elementos que não são dissolvidos em elementos subjetivos. Não pode ser válido assim nenhum conceito que defina seu objeto apenas a partir de propriedades e funções que não lhe pertençam ( por ex., pensar o homem pela possibilidade de permanecer eternamente jovem). Efetivamente, a natureza apreende o sujeito sempre num universo de possíveis históricos, e a objetividade aparece sob um horizonte sempre em devir. Através de diversos meios e suportes individuais da experiência social, através de diferentes projetos que guiam as formas de pensar, desde os fatos cotidianos, até a ciência e a filosofia, a interação entre o sujeito coletivo e o mundo persiste e constitui, portanto, a validade real desses conceitos universais. Assim, a formação dos conceitos permanece inevitavelmente determinada pela estrutura da materialidade que não se dissolve em abstrações metafísicas. Vejamos então alguns critérios que nos possam aproximar da verdadeira validade de um projeto histórico. Estes critérios, na verdade, têm que se referir ao modo como um projeto histórico é capaz de realizar suas possibilidades – é evidente que não devem ser possibilidades formais, mas aquelas que envolvem as formas da existência humana real. Tal realização deve estar sem dúvida em movimento, sob uma situação histórica concreta. E toda forma social concreta só pode expressar tal realização, embora, ao mesmo tempo, toda sociedade estabelecida se encontra perante a possibilidade de uma práxis histórica diferente, em termos quantitativos, que pode ameaçar os marcos legais estabelecidos, dado que ela precisa demonstrar a certeza e a validade de seu conteúdo histórico. Assim, a sociedade comandada pela produção de valores intercambiáveis tem demonstrado à exaustão, historicamente, que tais valores não foram nunca aqueles que podem elevar o homem acima de sua restrita dimensão de indivíduo puramente biológico, comandado simplesmente pelas determinações das necessidades vitais. Os critérios que podem orientar a verdade histórica objetiva devem ser formulados não como critérios de uma racionalidade prática apenas, inerente a tal

Volume 6 no 1

223


O compromisso da Filosofia, pp. 221-224

projeto de valor quantitativo, mas, sobretudo, de uma razão qualitativa superior. E, para tanto, tal projeto deve: a) transcender a ordem do existente proposto, de acordo com as possibilidades reais abertas no nível alcançado pela consciência social sobre a realidade histórica concreta, bem como dos elementos culturais à disposição; b) esse projeto, para rejeitar a totalidade estabelecida, deve demonstrar sua racionalidade própria superior mediante o duplo sentido de: oferecer a perspectiva de preservar e ampliar as conquistas alcançadas em termos civilizatórios; sua realização deve oferecer maiores possibilidades de certeza e segurança epistemológica para a existência coletiva, dentro de uma ordem histórica que ofereça oportunidades reais de livre desenvolvimento das faculdades humanas. É verdade, contudo, que esta noção de racionalidade contém um juízo de valor, uma vez que este critério de Razão tem sua origem numa concepção axiológica em que a verdade não pode separar-se de valores como livre desenvolvimento das faculdades essencialmente humanas, enquanto recursos e capacidades intelectuais e materiais disponíveis para a luta pela existência concreta dos indivíduos. Enquanto processo histórico, este deve ser também dialético, como reconhecimento e domínio das potencialidades libertadoras. Assim, o grau em que se encontra a consciência libertadora só pode alcançar sua superação na luta contra essa ordem social. A verdade e a liberdade do pensamento revolucionário devem ter sua base e sua razão nessa luta, daí Marx ter afirmado que “o proletariado será a força histórica libertadora somente quando se apresentar como força revolucionária” (Grundrisse – 2006). A dissolução do capitalismo ocorrerá somente quando o proletariado se tornar consciente de si mesmo e das condições e processos que sustentam a ordem social. Esta tomada de consciência para si é o requisito básico para o progresso histórico; é o elemento da liberdade que abre as possibilidades de alcançar a necessidade dos fatos dados. Sem essa consciência, a história recai na obscuridade de um futuro incerto e incontrolável. Sem dúvida, esta é a base objetiva da racionalidade histórica, na qual deve firmar-se o compromisso filosófico pela transformação revolucionária das estruturas de obstrução das possibilidades e dominação humana sob o comando exclusivo da racionalidade da ordem do capital. Brejo Santo, Ce, dezembro de 2016.

Volume 6 no 1

224


Sampaio e a Dialética do esclarecimento faz 70 anos: entrevista com Jorge Verly e Wilberth Salgueiro, pp 225-233

Sampaio e a Dialética do esclarecimento fazem 70 anos: entrevista com Jorge Verly e Wilberth Salgueiro Vitor Cei1 Resumo: O principal objetivo desta entrevista com os professores Jorge Verly e Wilberth Salgueiro é compartilhar com os leitores da revista Lampejo uma dupla efeméride: os setenta anos de nascimento do compositor Sérgio Sampaio e os setenta anos de publicação da Dialética do Esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Horkheimer, escrita na Califórnia em 1944, mas publicada em 1947 pela Editora Querido, de Amsterdam. Ainda que a emergência de novos tipos de vida social, o aparecimento de novos traços formais na vida cultural e a consolidação de uma nova ordem econômica mundial tenham transformado o mundo contemporâneo, as obras permanecem atuais. Salgueiro e Verly, pesquisadores das obras de Adorno e Sampaio, mostram que os conceitos do filósofo alemão e as canções do compositor capixaba são instrumentos epistemológicos com os quais podemos fundamentar uma crítica da cultura contemporânea.

Palavras-chave: Sérgio Sampaio. Dialética do Esclarecimento. Teoria Crítica.

Doutor em Estudos Literários (UFMG). Professor da Universidade Federal de Rondônia e líder do grupo de pesquisa Ética, Estética e Filosofia da Literatura. E-mail: vitorcei@gmail.com 1

Volume 6 no 1

225


Sampaio e a Dialética do esclarecimento fazem 70 anos: entrevista com Jorge Verly e Wilberth Salgueiro, pp 225-233

Sérgio Sampaio and the Dialectic of Enlightenment at seventy: interview with Jorge Verly and Wilberth Salgueiro Abstract: The main objective of this interview with Jorge Verly and Wilberth Salgueiro is to share with the readers of the journal Lampejo an important date: the seventieth birthday of the musician Sérgio Sampaio and the seventieth anniversary of Horkheimer and Adorno’s Dialectic of Enlightenment, written in California in 1944, but published in 1947 by Querido Verlag in Amsterdam. Although the emergence of new types of social life, new formal features in cultural life and the consolidation of a new world economic order have transformed the contemporary world, the works still remain highly topical. Duarte, an Adorno scholar from Brazil, shows that the concepts of the German philosopher are a valid source of knowledge in order to substantiate a critique of the contemporary culture. Keywords: Sérgio Sampaio. Dialectic of Enlightenment. Critical Theory.

Apresentação

J

orge Luís Verly Barbosa é graduado em História. Tem mestrado em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo, com dissertação sobre a intertextualidade na obra de Caetano Veloso, e, atualmente, desenvolve pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFES, sob orientação de Wilberth Salgueiro, com a tese Adornando um Velho Bandido: Sérgio Sampaio à luz de Theodor W. Adorno. Ele tem experiência nas áreas de História e Letras, interessando-se principalmente pelos seguintes temas: relações entre História e Literatura, Teoria Crítica (em especial a obra de Theodor W. Adorno) e Poética da Canção. Wilberth Claython Ferreira Salgueiro possui graduação em Letras PortuguêsLiteratura pela UERJ, mestrado em Literatura Brasileira pela UFRJ, doutorado em Teoria da Literatura pela UFRJ e pós-doutorado em Literatura Comparada pela UERJ e em Literatura Brasileira pela USP. Ingressou, em 1993, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde, a partir de maio/2014, se tornou Professor Titular. Desde 2007, é bolsista PQ-2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, com taxa de pesquisa pela Fapes desde 2013. Líder do Grupo de Pesquisa Poesia: suportes formais e sistemas de significação, registrado no CNPq, desde 2001. Atualmente desenvolve o projeto de pesquisa Poesia de testemunho e catástrofe cotidiana: trauma, humor e violência. 1. Gostaríamos de compartilhar com os leitores duas importantes efemérides: os setenta anos de publicação da Dialética do

Volume 6 no 1

226


Sampaio e a Dialética do esclarecimento fazem 70 anos: entrevista com Jorge Verly e Wilberth Salgueiro, pp 225-233

Esclarecimento e de nascimento de Sérgio Sampaio. O compositor nasceu em Cachoeiro do Itapemirim no dia 13 de abril de 1947, enquanto a obra de Theodor Adorno e Max Horkheimer foi escrita na Califórnia em 1944, mas publicada em 1947 pela Editora Querido, de Amsterdam. Qual é o principal legado deixado por eles para os nossos dias? Até que ponto a Teoria Crítica da Sociedade e as músicas de Sérgio Sampaio podem nos ajudar a pensar a realidade brasileira, especialmente na conjuntura política atual? Inicialmente, gostaríamos de demarcar a feliz coincidência desses duplos setenta anos. Temos aqui dois momentos nodais do pensamento e da arte no século XX, ainda que a obra de Theodor W. Adorno possua uma visibilidade bem maior que aquela experimentada pelo cancioneiro de Sérgio Sampaio. Vistos e pensados em separado, cada um deles contribuiu de modo autônomo para a compreensão do signo que marcou (algumas vezes de morte) o século passado: a catástrofe. Enquanto a Dialética do esclarecimento procurou mostrar, partindo de um exercício filosófico rigoroso e mediado, como a razão instrumental tem servido desde sua alçada ao centro da filosofia iluminista, como um mecanismo de administração do mundo a partir da expansão implacável do capitalismo tardio, responsável pela barbárie-mor do século XX – a dupla fascismo e Segunda Grande Guerra –, as canções de Sérgio Sampaio se revelaram como momentos utopicamente negativos em face justamente das catástrofes advindas da transformação da razão e da arte em instrumentos de dominação ideológica via Entkunstung, isto é, na transformação das obras em “coisas entre as coisas”. A obra de Sampaio é, se nos for permitido o uso da metáfora, uma espécie de “grito” contra a indústria cultural, em especial o mercado fonográfico e sua sistêmica transformação das canções em produtos palatáveis e digeríveis por ouvintes já bastante regredidos. Esse seria o grande ponto de confluência entre a proposta contida na Dialética do esclarecimento e no cancioneiro sampaiano: escapar de um pensamento e de uma arte reificadas pela via da crítica sobre elas mesmas. Pensar o pensamento e reartificar a arte seriam movimentos presentes no livro de Adorno e Horkheimer e nas canções de Sampaio. Quanto ao aspecto de pertinência e de atualidade dessas duas obras, pensamos ser interessante recorrer ao que diz Márcio Seligmann-Silva quanto ao próprio conceito de atualidade em Adorno (e também em Benjamin) e que aponta não a uma atualidade dos nomes, mas sim à capacidade de que ideias-força e conceitos ligados a estes mesmos nomes, Adorno e Sampaio, possam mobilizar ainda hoje compreensões sobre o mundo em que vivemos. No caso particular do Brasil pós-golpe, esta atualidade reside na possibilidade se pensar o país ainda sob a égide da catástrofe e da barbárie. Quando avistamos tantas tentativas de retirada de direitos, quando assistimos ao ressurgimento repotencializado de ideologias de direita e de inspiração

Volume 6 no 1

227


Sampaio e a Dialética do esclarecimento fazem 70 anos: entrevista com Jorge Verly e Wilberth Salgueiro, pp 225-233

claramente fascista, quando vimos o apodrecimento do poder, é que faz sentido a recusa a um pensamento consolador ou a uma arte pacificadora e falsamente conciliatória. Adorno e Sampaio ainda estão aí para nos mostrar que fora da complexidade não há resposta e que nenhuma solução advirá sem um exame rigoroso, negativamente dialético e sempre autônomo do mundo.

2. Cada autor possui um modus operandi, por assim dizer. Vocês poderiam comentar sobre as opções formais que norteiam os estilos de Adorno e Sampaio? Primeiro, é preciso demarcar que Adorno produziu ininterruptamente, desde meados dos anos de 1920 até o fim da vida (1969), perfazendo, entre livros e ensaios, mais de uma centena de textos, em sua maioria densos e porosos como Minima Moralia, Dialética Negativa e Teoria Estética. Já Sérgio Sampaio lançou, em vida, apenas três discos no curto período entre 1972-1982 e que somados a um disco póstumo, alguns compactos e gravações esparsas, somam pouco mais de cinquenta canções. Supomos que este seja o primeiro indício da diferença entre seus estilos, quer dizer, temos uma volumosa produção teórico-crítica (Adorno) em cotejo com uma produção mais concisa, sucinta mesmo (Sampaio) – o que não significa uma medição de densidade ou uma comparação axiológica, na qual Adorno venceria Sampaio por ter, supostamente, alcançado nessa quantidade uma maior expressividade ao seu pensamento, enquanto Sampaio tenha tido essa mesma expressividade frustrada por uma produção pequena e errática; fujamos sempre do pensamento ligado ao idêntico e ao reducionismo da razão instrumental. Quanto ao modus operandi, podemos recorrer às palavras de ambos na tentativa de recompor a maneira como cada um deles construiu sua obra. Em “O ensaio como forma”, publicado no volume Notas de literatura I, Adorno escreve que, em oposição às formas clássicas e cientificizadas de escrita, a forma-ensaio é caracterizada pelo exercício de uma liberdade que faz dela – ao contrário daquilo que se quer original, total e objetivamente exposto – algo sempre reflexivo e autônomo, uma vez que se debruça sobre o já-dito de modo mediado, buscando não a resposta para a pergunta “O que isso quer dizer?”, mas sim procurando evidenciar os momentos de significado que, para citá-lo, “estão encapsulados em cada fenômeno espiritual”. O ensaio, a partir do acionamento de conceitos e de ideias-força em estado de constelação, proporciona uma leitura e uma análise do objeto que ultrapassa o desejo de aprisioná-lo. Ele é sempre movimento, é sempre uma tentativa de ir adiante, é sempre um ato contra a reificação do pensamento. A produção adorniana sempre privilegiou o ensaio como forma central de expressão. Mesmo livros mais extensos, como Dialética do esclarecimento, Dialética Negativa ou

Volume 6 no 1

228


Sampaio e a Dialética do esclarecimento fazem 70 anos: entrevista com Jorge Verly e Wilberth Salgueiro, pp 225-233

Teoria Estética, estão estruturados sob a forma fragmentária e desdobrável do ensaio, com um rigor e uma capacidade interpretativa impressionantes. Há a ideia mais ou menos corrente de que Adorno é um autor difícil e, para alguns, ilegível mesmo. De fato, não encontraremos nele o tom professoral e que deseja facilitar aquilo que diz e tampouco há nele o desejo de ser definitivo e peremptório naquilo que diz. O rigor do pensamento e da escrita adorniana têm como fito exatamente o oposto e que é certeza de que a empiria social só pode ser autonomamente avaliada quando em estado de permanente reflexão – e, como esta não se extingue num texto, há por parte de alguns leitores essa sensação de incompreensão e de inconcretude. Uma frase em Adorno nunca está de fato acabada, nunca é definitiva, nunca esgota as possibilidades interpretativas. E isso requer do leitor um rigor em parte semelhante àquele empregado no momento da escrita. Um rigor que diz respeito menos a um propósito teleológico de encontrar a chave do que é dito, mas de tomar esse dito como algo a dirigir o pensamento para o sempre-movimento. Numa linha muito próxima, Sérgio Sampaio canta, em “Real beleza”: “Sei como dói meu amor de poeta / Se vê linha reta / Quer logo entortar”. Há um traço comum entre o modo com que Adorno exerce a escrita (que é, parti pris, o instrumento de expressão de seu pensamento) e a concepção de tortuosidade expressa no verso sampaiano. A ideia de que a linha reta, isto é, a planificação imposta como norma dos produtos da indústria cultural é um dado a ser rechaçado (entortado) parece-nos ser a tônica do que se pode chamar de método composicional em Sérgio Sampaio. Suas canções, em lugar de vincular-se ao esquemático e ao normativo presente na seara dos produtos manufaturados, estão eivadas de uma fidelidade à forma, ao momento de união entre a história e o estético. Tomemos como exemplo sua célebre “Eu quero é botar meu bloco na rua”, a canção que, talvez mal ouvida e mal interpretada ao longo dos tempos, fez de Sampaio um incômodo maldito no contexto da música popular brasileira. Embora sua estrutura musical tenha assento em um ritmo consagrado entre nós, a marcha-rancho, a letra aponta para uma recusa à fórmula: nada do que é dito ali remete ao clima festivo que é peculiar ao carnaval sugerido pelo uso do ritmo; antes expressa o clima de derrota vivido pela sociedade brasileira na década de 1970, imediatamente após o AI-5 e ao recrudescimento da repressão militar. Contudo, esses dados da empiria social estão presentes não como “tema”, mas como conteúdo de verdade (o Wahrheitsgehalt): versos como “(Há quem diga) Que eu caí do galho e que não vi saída”, “Eu, por mim, queria isso e aquilo” e “E que Durango Kid quase me pegou” não informam diretamente da realidade brasileira, mas têm como referência o clima de encurralamento, indecisão e interdição experimentado pelos brasileiros e pelas brasileiras naquele momento e que que podem ser percebidos de modo imanente na forma tensionada da canção. É nessa tortuosidade, ou melhor, nesse não-

Volume 6 no 1

229


Sampaio e a Dialética do esclarecimento fazem 70 anos: entrevista com Jorge Verly e Wilberth Salgueiro, pp 225-233

alinhamento nem ao esquema industrial da canção de consumo e nem ao engagement claramente político (e, retomando Adorno, já contaminado por um movimento dialético positivo, falso) que reside a validade da obra do Velho Bandido da música brasileira.

3. Adorno e Horkheimer buscam explicar os fundamentos da ideologia nazista, revelando como funciona a exteriorização e aceitação massiva de sentimentos hostis e antidemocráticos contra minorias étnicas, religiosas e outras. Sampaio, por sua vez, denunciava a opressão e a perseguição militar aos brasileiros durante os anos de chumbo. Nos últimos anos nós temos presenciado múltiplos índices da recaída da cultura na barbárie. Na União Europeia e nos Estados Unidos, políticos neofascistas com discursos nacionalistas, populistas, islamofóbicos e xenofóbicos têm ganhado espaço. Em nosso país, parlamentares e cidadãos pedem a volta da ditadura militar e hostilizam as minorias. As correntes reacionárias e aventureiras que se mostram no horizonte político atual constituem uma ameaça concreta? Diríamos que não apenas uma ameaça concreta, mas uma possibilidade cada vez mais visível no terrível horizonte político que ora enxergamos no Brasil. O subtítulo do capítulo da Dialética do esclarecimento que trata do antissemitismo, “Limites do esclarecimento”, mostra-se cada vez mais acertado enquanto momento em que a barbárie torna-se possível na falha dialética representada pelo falso esclarecimento. E esse bojo de atrocidades citadas na questão – e que podem encontrar no predicado “fascismo” algum tipo de síntese, ainda que correndo o risco de cair na dialética tal como pensada por Hegel – é algo não apenas visível, como palpável no Brasil de hoje. A assertiva de que “o mal tão profundamente arraigado na civilização não encontra sua justificação no conhecimento” encontra ressonância na estupidificação social e que é um dos sintomas da administração empreendido pelo capitalismo agora em fase global. Quando Adorno e Horkheimer escreveram a Dialética do esclarecimento, tinham como modelo um mundo ainda marcado pelo triunfo do capitalismo tardio e por uma subjetividade marcada pelo consumo e pela lógica de trocas, ingredientes que, ajuntados os mecanismos psíquicos, acabaram por provocar a pressão social direcionada ao diferente como forma de enfrentamento e que engendrou a adesão da civilização europeia ao antissemitismo. No Brasil e no mundo de hoje, esse processo é potencializado pela falência do sistema capitalista de molde tradicional e pelo consequente enfraquecimento dos Estados em face do mercado. Permanece a necessidade de se encontrar o culpado adequado à satisfação dessa pulsão bárbara que, retomando Freud, causa o contínuo mal-estar na cultura ocidental. No caso brasileiro, essa violência está orientada àqueles que, numa mirada

Volume 6 no 1

230


Sampaio e a Dialética do esclarecimento fazem 70 anos: entrevista com Jorge Verly e Wilberth Salgueiro, pp 225-233

racionalmente instrumental, representam os fatores de enfraquecimento nacional, minorias que são identificadas tanto como representantes de um capitalismo global falho como de ideologias consideradas nocivas à nacionalidade. Diríamos que há uma verdadeira ansiedade por alguém que personifique esse discurso, que seja refratário dessa pulsão. E, sem recorrermos ao expediente de citar nomes, não é muito difícil encontrar muitos desses “alguéns” no mundo político, religioso ou mesmo na seara da indústria cultural no Brasil de agora.

5. Nas últimas décadas as mercadorias da indústria cultural têm se tornado mais sofisticadas, enquanto muitos artistas passaram a dialogar com a produção mercantil. Quais seriam os critérios estéticos para distinguir as autênticas obras de arte musical e literária dos produtos da indústria cultural? Essa questão é muito interessante porque atinge em cheio o modo de fazer canção popular no Brasil desde meados dos anos de 1950. É certo que o contexto norte-americano observado por Adorno – referimo-nos menos à Dialética do esclarecimento e mais a textos que tratam especificamente de música popular, como “O fetichismo na música e a regressão da audição” (1938), “Sobre música popular” (1941) e “Moda atemporal – sobre o jazz” (1953) – é bem diverso do brasileiro. Não podemos falar aqui em indústria cultural do mesmo modo como Adorno falava nela nos anos 1930-40, porque se por lá e, em certa medida, no contexto europeu, ela era já um braço do capitalismo e de seus mecanismos de dominação ideológica, aqui ainda vivíamos um momento pré-industrial e no qual o conceito de “popular” estava menos ligado aos fenômenos de padronização e de estandardização e mais às manifestações populares ainda não cobertas pelo véu tecnológico da indústria cultural. E é por conta disso que, nas décadas de 1950 (Bossa Nova), 1960 (Canção de Protesto e Tropicália) e 1970 (Desbunde), teremos uma canção popular com um forte viés crítico a respeito da realidade social brasileira. Não estamos afirmando que toda a música popular da época possuía algum grau de autonomia em relação ao mercado, do mesmo modo como a literatura, ainda que contando com nomes como o de Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, por exemplo, estava isenta de reproduzir a forma padrão da arte como produto, como coisa. O que queremos demarcar é que o contexto brasileiro era (e ainda é) diverso do americano evidenciado nos estudos de Adorno e que essa diversidade acabou por gerar obras que se colocavam, ao menos, como críticas, seja no aspecto formal, seja no modo como tematizar a empiria social. Hoje, entretanto, na fase global do capitalismo, a indústria cultural deixa de ser apenas um instrumento e passa a ser uma norma de conduta, o filtro que a tudo

Volume 6 no 1

231


Sampaio e a Dialética do esclarecimento fazem 70 anos: entrevista com Jorge Verly e Wilberth Salgueiro, pp 225-233

planifica, uma fôrma da qual saem numa velocidade espantosa verdadeiros refratários no qual o público se vê encaixado e do qual se julga parte através do mecanismo de pseudo-identificação. O dano e a barbárie do mundo são subsumidos em dolentes canções de amor, em livros culinários e palatáveis ou em blockbusters cinematográficos em que o real é escondido por uma ideologia de controle e de administração. Mas esses produtos convivem com as obras autônomas que, a despeito deles, continuam existindo como momentos de tensão, como instantes em que a utopia negativa contra a cooptação é ensejada. Não há uma receita que nos ensine a saber distingui-los, mas há sempre a indicação de que o ouvinte, o leitor e o espectador sejam capazes de enxergar nas obras aspectos que indicam um ponto para além do imediato. Um desses aspectos é o caráter enigmático (Rätselcharakter) que é, conforme a Teoria estética, inerente às obras autônomas. Enigma aqui é menos mistério e incompreensão, e mais desafio, charada, ponto de interrogação diante da complexidade que é o mundo. Quando uma obra se apresenta como tensão e como incompletude àquele que a contempla (e o olhar detido sobre o objeto pode e deve ser uma ferramenta importante para o espectador), podemos chamá-la autônoma.

6. O que um crítico de formação/inspiração adorniana precisa observar para analisar bem uma letra de música, extraindo dela o máximo de relações intra e extratextuais? Ainda na Dialética do esclarecimento encontramos o ato de “pensar o já pensado” como uma das mais fortes invectivas lançadas por Adorno e por Horkheimer contra o falso esclarecimento. Por outras palavras, a talvez única possibilidade de autonomia e de emancipação dos sujeitos recai sobre o reexame mediado sobre o já posto, visando extrair desse exercício não uma síntese dialética que seria meramente uma oposição ao idêntico mas o exercício da não-identidade, de outras potências que se escondem sob o discurso estabelecido por um dado objeto. Esse exercício filosófico parece ser a tônica para a análise da canção pela via adorniana. Sobretudo quando se tem de lidar com um repertório conceitual que em grande medida se insurge com veemência contra o potencial de reificação que existe na música popular, como é o caso das teses adornianas. O professor Henry Burnett propõe uma equação radical ao dizer que na exegese da música popular se deve pensar com Adorno ou contra Adorno. Em nossa visão, a proposta adequada é que se pense com e contra ele, uma posição em que, diante da constelação do pensamento adorniano, seja possível “ler” a música popular com elas, mas também contra elas, num processo de permanente crítica e mediação. Este é um caminho apontado pelo próprio filósofo frankfurtiano no ensaio “Sobre sujeito e objeto”, em que encontramos uma crítica contundente às tentativas – geralmente empreendidas pela filosofia idealista e seus seguidores – de coisificar o mundo pela via de abstração do

Volume 6 no 1

232


Sampaio e a Dialética do esclarecimento fazem 70 anos: entrevista com Jorge Verly e Wilberth Salgueiro, pp 225-233

objeto, tornando-o tão exteriorizado ao ponto de anular o sujeito. Adorno antes diz que é o próprio sujeito o responsável pela mediação entre si mesmo e o objeto. Trazendo esse raciocínio para a exegese da canção popular, devemos pautar a relação entre ela (objeto) e aquele que a analisa (sujeito) num movimento de constante mediação, em que o ponto de interlocução seja a História e que irmana a ambos. Somente assim torna-se possível compreender a canção popular como um instrumento de reflexão sobre o real. Com efeito, pensar a canção popular fora dos quadros da indústria cultural é uma tarefa impossível e já nula em si mesma. O exercício correto deve ser o de pensar em que medida certas canções e certos compositores, partindo dessa mesma indústria, realizam movimentos críticos a ela, seja na forma, seja na performance de suas tensões, seja, enfim, na construção de uma reflexão liberada e que faça com que o sujeito que a contemple empreenda um primeiro movimento em direção a uma possível emancipação.

7. Alguma consideração final? Pensamos que a pertinência do pensamento de Adorno e das canções de Sérgio Sampaio mostra-se ainda muito contundente quando lemos coisas como uma notícia que acaba de chegar num aplicativo de jornais: cinco menores foram ontem (estamos em 2017!) queimados vivos durante uma rebelião em um centro de internação de menores em conflito com a lei em Recife. Cinco menores queimados vivos! Somando isso às notícias que diuturnamente chegam da Síria, de Londres, do Pará ou da Nigéria, temos a certeza de que a barbárie continua sendo a norma deste mundo cada vez mais administrado. Pensá-lo pelo prisma da constelação adorniana ou pelo filtro artístico das canções sampaianas pode não ser um consolo – e talvez não haja algum –, mas ao menos mantém vivo em nós um pensamento que se insurge contra a instrumentalização, contra a catástrofe e contra a reificação travestida com o nome de progresso.

Volume 6 no 1

233


Ode a Nietzsche, pp. 234-236

Ode a Nietzsche Jim Morrison

Ele abraçou o cavalo pelo pescoço E o beijou por inteiro Amo meu cavalo Se juntou uma multidão Seu senhorio apareceu E levou Frederico de volta a seu quarto No segundo andar Onde ele começou a Tocar piano como um louco E a cantar como um louco Oh... fui crucificado e Inspecionado e Ressuscitado e Se você não acredita Vou lhe dar minha mais nova Sonata filantrópica E a família do senhorio se horrorizou Então, o mandaram para seu amigo Overbeck E ele chegou em três dias, de coche

Volume 6 no 1

234


Ode a Nietzsche, pp. 234-236

E levaram Frederico para o asilo E sua mãe se juntou a ele E pelos quinze anos seguintes Choraram E choraram E riram E olharam para o sol E para cada qual

Tradução: Leonel Olímpio1 e Thiago Mota2

Ode to Nietzsche Jim Morrison He threw his arms around the horse’s neck And kissed him everywhere I love my horse A crowd gathered His landlord appeared And took Frederick back up to his room On the second floor Where he began to Play the piano madly And sing madly like Oh... I’m crucified and Inspected and Resurrected and If you don’t believe that 1

Graduando em filosofia – UECE.

2

Professor de filosofia – UECE, doutorando – UFC.

Volume 6 no 1

235


Ode a Nietzsche, pp. 234-236

I’ll give you my latest Philanthropic sonata And the landlord’s family was amazed So they sent for his friend Overbeck And he got there in three days by coach And they took Frederick to the asylum And his mother joined him And for the next fifteen years They cried And cried And laughed And looked at the sun And everyone

Referência: MORRISON, Jim. An improvised ode to Friedrich Nietzsche. Saratoga Springs–NY, 1º set. 1968. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1RlrPV3cHag>. Acesso em: 31 mai. 2017.

Volume 6 no 1

236


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.