Revista Tangerine #9

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Expediente Conselho Editorial Anna Stolf Bernadete Teixeira Genesco Alves Rita Ribeiro Organizadores Rogério de Souza Cristiane Gusmão Nery Curadoria Prof. Dra. Cristiane Gusmão Nery Prof. Dr. Guilherme Marcondes Tosetto Prof. Me. Rogério de Souza e Silva Orientação do Projeto Gráfico Joana Alves Projeto Gráfico e Diagramação Douglas Mendonça Desenvolvimento da marca Mariana Rena Priscila Lie Sasaki Coordenação do Centro de Estudos em Design da Imagem Genesco Alves José Rocha Andrade Apoio Laboratório de Design Gráfico – Escola de Design/UEMG Realização NUDEF – Núcleo de Design e Fotografia da Escola de Design/UEMG Escola de Design - UEMG R. Gonçalves Dias, 1434 – Lourdes, Belo Horizonte - MG, 30140-092

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Editorial Tangerine #9

A nona edição da revista Tangerine está finalmente pronta e com ela, tivemos diversas surpresas que vieram juntamente com o grande número de inscrições. Pela primeira vez transpusemos as fronteiras do estado de Minas Gerais e tivemos alcance nacional com inscritos de São Paulo (capital e interior), Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraíba, Brasília, Paraná e Rio grande do Sul.

Pela primeira vez também, temos, como convidados na curadoria das imagens, o professor doutor em Belas-artes/fotografia pela Universidade de Lisboa, Guilherme Tosetto e a professora doutora em Design pela UEMG, Cristiane Gusmão Nery. Dentre os muitos autores inscritos, alguns se destacaram e foram selecionadas para esta edição, os quais apresentamos aqui:

Ana Flora Gomes nos traz sua visão muito particular do universo feminino. Angelo Arantes com sua série “Devaneios” reconstrói no visual monocromático, suas impressões, percepções e sua visão de mundo.

Carolina Santana faz um mergulho no sensível por meio de seus autorretratos Eve Olegário resgata o universo místico e simbólico dos orixás presentes no ritual de iniciação desta manifestação religiosa de matriz africana.

Em “Tempo esculpido”, a artista Flávia Sampaio simboliza a passagem do tempo nas formas orgânicas de suas composições fotográficas. De forma irônica, o ensaio “Doces sonhos” de Gabriel Cabral mostra como a fotografia pode representar imagens de pesadelos, o macabro e o perturbador.

Já Gustavo Crivelari nos mostra em “Sete às seis”, o caos dos horários de rush numa grande cidade em imagens experimentais onde o movimento nos faz sentir a pressa daqueles que por ali transitam.

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Também experimental, são as imagens de Lohanna Letícia, que trazem a fauna e Flora em meio à urbanização no ensaio "Eu te vejo, você me vê?".

Lu Rocha mergulha fundo em memórias e sentimentos interiores na série “Se perdendo em si” e Luíza Kons, capa desta edição, faz um ensaio de grande sensibilidade intitulado “Em nome da mãe e do pai” com imagens que impressionam por sua força estética, como que saídas de um filme de Ingmar Bergman. A mesma sensibilidade, também aflora na sequência fotográfica “Movimento dos barcos” de Nuri Macedo, inspirada na canção de mesmo nome composta por Jards Macalé.

Pedro Fonseca Patti é autor de “Metanoia”, outro ensaio experimental e autorreflexivo apresentado por meio de duplas exposições.

“Sem Lua” de Regina Rocha Pitta, mostra as fotos de céus estrelados que sempre nos impressionam.

A paulista Samanta Ortega em “Políticas do flerte” produziu um ensaio que faz o uso da técnica de cianótipo como elemento expressivo em sua narrativa sobre as conflitantes emoções que envolvem os relacionamentos. Além dos inscritos, contamos com a presença da artista e fotógrafa mineira Ana Paola Guerra e com o artigo da professora Cristiane Nery sobre as formas narrativas presentes nos fotolivros autorais, tema de sua tese de doutorado. Em outras palavras, a edição #9 de Tangerine, está imperdível e disponível para fruição. Aproveitem!

Rogério de Souza

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SUMÁRIO Ensaios O Infinito é feminino | Ana Flora Bavaresco Gomes

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Devaneios | Angelo Arantes

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"Aos Orixás | Eve Olegário

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Não sou tua Vênus | Carolina Santana

Tempo Esculpido | Flávia Sampaio Doces Sonhos | Gabriel Cabral

Sete às seis | Gustavo Crivellari

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Eu te vejo, você me vê? | Lohanna Leticia

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Em nome da mãe e do pai | Luiza Kons

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MetaNoia | Pedro Patti

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se perdendo de si | Lu Rocha

Movimento dos barcos | Nuri Macedo

Sem lua | Regina Rocha Pitta

Políticas do Flerte | Samanta Ortega

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Entrevista

Artigo

Anna Paola Guerra

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FOTOLIVRO: fotografia, design e narrativa | Cris Nery

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Reflexos e reflexões

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Último Disparo

Os textos que acompanham os ensaios fotográficos são de autoria dos fotógrafos/as e não necessariamente expressam a opinião da Revista Tangerine ou de seus organizadores.

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Ensaios

O infinito é feminino

Ana Flora Bavaresco Gomes A obra “O infinito é feminino” traz à tona um momento de entendimento pleno da artista enquanto mulher. Um processo nem sempre tão claro, que à primeira vista parece se dar em um estalar de dedos pela simplicidade do fato, que de simples não há nada. Um devaneio que caiu no meu colo quando completei 2 décadas nesse solo. Uma plenitude onde há dor, a vontade é de se agarrar a esse segundo regado à aceitação e um tanto de alienação, e não voltar mais ao entendimento que o mundo fora do meu Eu entendido como o arquétipo da mulher. Uma obra refúgio.

Ana Flora Bavaresco Gomes é estudante de Artes Visuais pela Universidade de Brasília (UnB). Seu contato com a fotografia começou despretensiosamente, posando para um amigo e há cerca de um ano passou para trás das câmeras como autora e usa desta ferramenta para se encontrar.

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Devaneios

Angelo Arantes A velocidade dos acontecimentos, que nos é apresentada, na contemporaneidade, bem como a nova forma de vida virtual, que passamos a experimentar, talvez tenha nos tirado a capacidade sensorial de observar o ambiente. O meu estranhamento vem do que passou a ser “lucidez”, na aceitação da nova realidade que, a meu ver, firma-se justamente no esquecimento do mundo orgânico. Com a proposta de contrapor e equilibrar essa condição na minha vivência, por meio de pausas, em determinados momentos do dia, voltadas para a contemplação, tento criar o que seria um mundo utópico no atual contexto, desenvolvendo, a partir dessa ótica, a série "Devaneios". Para exteriorizar e gravar este estado de contemplação, transformando-o em fotografia e vídeo, uso como ferramenta, o filtro de um ampliador fotográfico, acoplado à lente do celular criando imagens monocromáticas e reduzindo, assim, a quantidade de informação. A impressão que tenho, do meu cotidiano, acerca da vida virtual, é de um mundo carregado de informações visuais, onde a escassez do tempo, necessária para absorção dessas informações, acaba me levando a uma sensação de um tempo acelerado e com poucas oportunidades de contemplação. Ao transformar a imagem, tornando-a monocromática, conecto-me a um estado contemplativo, imersivo e, talvez, utópico, para os padrões atuais, surgindo aí, a escolha do nome Devaneios.

Angelo Arantes é artista, fotógrafo e aluno no curso de Especialização em Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Desenvolve suas pesquisas na área da fotografia experimental, participou de diversas exposições e mostras coletivas, entre elas Efêmero Festival (Fortaleza/CE), com Curadoria de Eustáquio Neves, Maré Festival (Natal/ RN) e Festival Foto em Pauta (Tiradentes/MG).

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Não sou tua Vênus Carolina Santana

“Não sou tua Vênus” é uma série de fotografias que partem de uma pesquisa que venho realizando desde 2018, onde investigo as ontologias do corpo em diversas linguagens como o desenho, a fotografia e a videoarte. O livro “Vida Sensível” que inspira minha pesquisa, é uma obra literária de Emanuele Coccia. No livro, o autor trata de como a humanidade constituiria, não um apartamento da animalidade, mas o seu aprofundamento, o aprofundamento no “sensível” – e o que conhecemos por mundo seria justamente esta esfera composta apenas por imagens. Imbuída da sensibilidade dessa obra, criei as imagens para essa série como um mergulho nos momentos vividos para alargar as possibilidades de traduções dos instantes, gerando imagens de autorretratos. As ações são por mim exploradas a partir do gesto, do movimento e suas conexões. Nas imagens, existe uma construção das visualidades de corpos em iminência de ser onde as estruturas criadas, remontam a uma quase coreografia do corpo-ruína se relacionando com ele mesmo em um tecido composto pela cor e o espaço que o circunda. O resultado culmina em uma mimese do corpo sensível que, unido a esses elementos, seus acúmulos de movimentos e visualidades gera, a cada instante, um novo corpo que se apresenta nas imagens a partir dessas ações.

Carolina Santana é artista visual e educadora licenciada em Artes Visuais pela Escola de Design / UEMG. Desde 2010 atua como educadora e coordenadora de projetos educativos em museus e é co-realizadora do Educativo Cultural Malacaxeta (BH / MG). Como artista, investiga a ontologia dos corpos, o sensível e autonarrativas em múltiplas linguagens como a fotografia, o desenho, a escrita, a videoarte e a dança.

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"Aos Orixás" Eve Olegário

“Aos Orixás” trata-se de uma série de fotografias, realizadas em Bertioga, Rio de Janeiro, São Paulo e São Roque, em datas e contextos distintos. As fotos, apresentadas em sua versão original e com o tratamento de fotomontagem, retratam um ritual de iniciação religiosa, a venda de artigos religiosos, como esculturas e ervas, e os elementos da natureza sentidos através do tato e da visão. Composta com elementos simbólicos para a representação dos Orixás, esta sequência tem como objetivo levar a cultura afro-brasileira e a religião de matriz africana para fora do seu ambiente de origem, mas respeitando seus fundamentos e ritos. Acredita-se que ao falar dos Orixás e trazer os significados dos mesmos de forma artística, é importante manter os Segredos do Axé, pois este é um fenômeno social e cultural cujo valor deriva de sua circulação dentro de comunidades restritas. É o caso, por exemplo, das hierarquias rituais do Candomblé, que colocam o acesso às sabedorias da prática dependente de um processo longo e complexo da iniciação que, no decurso do tempo, promove a abertura aos segredos do candomblé para quem o pratica. É necessária, também, certa sensibilidade para desmistificar as imagens dos Orixás perante aqueles que não as conhecem, por se tratar de uma prática cultural que ainda sofre grande intolerância no Brasil.

Eve Olegário é fotógrafa formada pela Faculdade Belas Artes/São Paulo, editora de imagens e criadora de Editoriais com foco em economia criativa e periférica com o projeto social Fotada Violenta. Atua nos segmentos fotográficos de Retrato, Moda, Still de produto, Fine Art, Gastronomia, Turismo, Arquitetura e Interiores.

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Tempo Esculpido Flávia Sampaio

“Um artista pode alcançar a ilusão de uma realidade exterior, e obter efeitos cuja naturalidade os faça em tudo semelhantes à vida...” Esculpir o Tempo, de Andrei Tarkovski No ano de 2020 as portas da rua se fecharam para a fotografia de rua. Procuro uma alternativa de produção e arrisco o still, sem muita precisão. Gosto da experiência que se configura. Inicio a exploração em abril 2020. Um processo que me permitia respirar fora da caixa, de casa, nos pequenos passeios que se tornaram uma rotina criativa. Durante o caminhar desperto para observação da natureza e para curiosidade sobre espécies familiares ou desconhecidas de fisiologia única. O olhar busca figuras orgânicas-botânicas no chão batido de terra, nas margens das calçadas, na mata, nos biomas possíveis, urbanos ou não. A necessidade de concepção deflagra o ritual da coleta que marca o deslocamento e o trajeto. Um cientificismo imaginado surge a partir do encantamento com folhas, flores, cachos pendentes em frágeis galhos, frutos caídos esparramados pelo chão. Carrego os objetos da natureza para fora de seu habitat. Fragmentos capturados são isolados sobre fundo neutro para serem manuseados. Convivo com as formas ainda frescas. Outras vezes, aguardo que murchem, sequem, apodreçam. Da transformação, para esculpi-los no tempo e no formato. Entendimento do ciclo temporal que escorre. Transplantados e moldados assumem nova identidade. Inaugura-se a construção da luz mutável que entra pela janela daquele pequeno cômodo transformado em estúdio, trocando de tonalidade e incidência com o passar das estações. Corpos sinuosos transparecem. Como descreve Octavio Paz, em O Arco e a Lira, ... “a revelação assume a forma particular da experiência poética”. Os seres surgem desde a manipulação até o efetivo registro fotográfico no mergulho que converte a matéria bruta. A intenção metalinguística do que se ilumina, congela e revela. A experiência sensorial imagética se expande para o entrelaçamento de palavras. Surgem poemas. Reflexão sobre experiência que molda novas criaturas. Instante ilusório que confunde o olhar antes de acionar o disparador. “A

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revelação de nossa condição é igualmente criação de nós mesmos”, (in O Arco e a Lira). “Não sabemos até onde os podres o ajudaram nessa obstinação de ver o sol”, diz Manoel de Barros em O Guardador de Águas. São os secos arreganhados comungando com os frescos adocicados que levam à investigação dos contornos e cores sob diferentes ângulos de convergência de luz e a feitura que transfigura. Marcas da passagem do instante ressuscitam as experiências que também se apresentam em pequenos poemas. A beleza que habitava om frescor desafia e o desgaste refutado. O escondido se expõe. A investigação que poderia somente evidenciar as marcas, aponta para uma revalorização e ressignificação do que se deteriora. A degradação revela um novo existir.

Flávia Sampaio é graduada em Comunicação Social pela Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Atuou como redatora nos jornais Folha de S. Paulo e em Estado de S. Paulo e editora de internacional na revista IstoÉ. Trabalhou também na Agência Estado na direção do departamento de distribuição de textos e imagens para 200 jornais do Brasil. Dedica-se à fotografia como expressão desde 2018 e já participou de mostras em Recife (I Encontro Festival de Fotógrafas latino-americanas), Tiradentes/MG (Foto em pauta), São Paulo (Galeria MH8) e do Paraty em Foco.

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Doces Sonhos Gabriel Cabral

“Doces Sonhos” é uma série ficcional que busca recriar o universo dos pesadelos, em que situações levemente anormais se misturam com encontros assustadores. A série foi despertada por uma imagem que surgiu num misto de acaso técnico e minuciosa direção de personagens, abrindo assim, no final de 2014, uma nova janela de possibilidades narrativas na qual mergulhei intensamente até meados de 2017. Desde então, o trabalho entrou em um estágio latente de maturação e edição, acompanhado pelo surgimento pontual de novas imagens e por meio de novas linguagens. O trabalho se desenvolveu como uma investigação sobre meus próprios sonhos (e pesadelos) da infância. Neles, cenas ordinárias escalavam subitamente para um espetáculo de terror e medo. Adicionando referências do cinema, da pintura e dos quadrinhos, que também compõem meu imaginário juvenil, fui elaborando as imagens dessa série, advindas de diferentes naturezas, linguagens e abordagens, em um misto de fotografia de rua, direção teatral, manipulação digital e apropriação. Todas essas estratégias, são formas de tentar materializar sentimentos ambíguos de desejo e repulsa, de um olhar que admira e teme ao mesmo tempo, um equilíbrio entre o fascínio e a vontade de fugir.

Gabriel Cabral é educador e artista visual, tendo a fotografia na base da maioria de suas explorações. Constrói seu trabalho em séries pelas quais aborda desde dinâmicas sócio políticas, à efemeridades da vida, passando ainda por narrativas oníricas. Atua como editor nas Sô Edições e na Revista Clan, Além de produzir o No Programa de Hoje, podcast sobre artes visuais, suas linguagens e processos criativos.

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Sete às seis

Gustavo Crivellari A série “Sete às seis” nasceu há pouco tempo, de uma ânsia não tão nova. Sempre gostei de estar na rua, observando e sentindo, tentando decifrar os milhares de rostos que vejo todas as vezes que saio. Cada um, um pedaço de história ambulante, que carrega mágoas, alegrias, frustrações, medos e anseios. Grande parte da minha produção fotográfica vem da possibilidade de poder parar e assistir a rua durante os horários de pico e perceber como a dinâmica da cidade se transforma durante eles. A pressa e a euforia predominam, a efemeridade desponta, os rostos e as histórias que carregam passam em questão de segundos, local de transição, cidade invisível. Essas fotos foram realizadas das 17:30 às 18:30, no horário de pico de uma quinta-feira, na Praça Sete de Setembro. A ideia foi trazer os passos apressados das pessoas por meio de uma maior exposição, cada um que transita por ali, deixa seu rastro e passa a integrar aquele local, mesmo não querendo. “mil e mui tos out ros ros tos sol tos pou coa pou coa pag amo meu” (ANTUNES, A. 2 ou + corpos no mesmo espaço. São Paulo: Perspectiva, 1998)

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Gustavo Crivellari Guimarães é aluno do curso de Design Gráfico da Escola de Design/UEMG. Seu interesse pela fotográfica começou desde muito novo e em 2017 passou a praticá-la mais seriamente. Em 2018 atuou como fotógrafo freelancer, fotografando shows e eventos. A partir de 2020 passou a estudar outros campos da imagem e dedicar-se à fotografia de rua. É também assistente em estúdio de fotografia e direção.

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Eu te vejo, você me vê? Lohanna Leticia

A série de seis imagens obtidas pela manipulação da opacidade e sobreposição permitem contrastar o encontro da fauna e flora em meio à urbanização, questionando os hábitos que plantas e animais adquirem perante este “novo normal” na selva de concreto que os rodeiam. As fotografias permitiram analisar as maneiras de gerar uma estratégia projetada não apenas para alterar a maneira como pensamos sobre nosso mundo físico e social, mas também para levar esse mundo a dimensões extraordinárias. Analisando as fotografias tiradas com uma câmera super zoom, pude notar como os animais conseguiam direcionar o olhar em minha direção mesmo em momentos os quais eu não havia tomado conhecimento da presença deles no local escolhido para o ensaio. Tomando como inspiração o panoptismo, em que Michel Foucault, em seu livro “Vigiar e punir: o nascimento da prisão” de 1976, apresenta em dado momento o conceito de uma prisão idealizado no século XVIII pelo também filósofo inglês Jeremy Bentham que consiste em uma penitenciária onde as celas formam um anel em torno de uma grande torre, onde o guarda pode vigiar a todos os prisioneiros sem ser visto. Assim, surge a série com olhares e encontros inesperados, onde por meio de uma câmera me sinto bisbilhotando e vigiando espaços que sempre estiveram ao meu alcance nas redondezas de onde eu moro, porém sem meu aparato tecnológico não percebia tais olhares.

Lohanna Leticia é artista visual e estudante de graduação em Artes Visuais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Desenvolve uma multifacetada poética que abrange a arte tecnologia aplicada as redes sociais por realidade aumentada e algoritmos. Tendo como enfoque a esculturas tridimensionais digitais e em cerâmica, performance, fotografia e produções audiovisuais.

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Se perdendo de si Lu Rocha

A série “se perdendo de si” são autorretratos híbridos que nasceram das reverberações que o conto de Clarice Lispector, “Obsessão”, teve sobre mim, através do comportamento de Cristina, a personagem do conto. O texto trata de uma mulher que sofria as opressões do patriarcado e mesmo com todo esse sofrimento, quando teve a chance de se libertar procurou a companhia de alguém que a tratava da mesma forma e mesmo quando tomou consciência do abuso, voltou a sua vida anterior, como se não pudesse viver sem essa opressão. As questões tratadas na série, são de tempos, quando criança também, em que fui tratada como objeto e subproduto. Para tentar suportar (hoje tenho essa consciência) me escondia dentro de mim mesma e como consequência acabei me perdendo de mim. Vivi uma vida de imposições com valores abusivos, mas que na época, eu não tinha essa consciência. Fizeram-me acreditar que eu não era nada e que eu não tinha nenhum valor. Durante muito tempo acreditei nessas mentiras como se fossem verdades. Passei por lugares sombrios até entender que, o que disseram e fizeram a mim, já não mais eram as minhas verdades. Desde então, venho me reencontrando, remendando os pedaços e tentando entender quem eu realmente sou.

Lu Rocha é natural de Belo Horizonte/MG. Formada em Artes Plásticas Licenciatura pela Escola Guignard-UEMG em 2018 e aluna do curso Design de Ambientes da Escola de Design-UEMG. Sua relação com fotografia se dá por meio de pesquisas em fotografia digital, analógica e híbrida, buscando encontrar um estilo próprio.

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Em nome da mãe e do pai Luiza Kons

Nenhuma terra me foi. Repito essa frase. Escrevo os mesmos parágrafos em diferentes combinações. Sou meu plágio mais dolorido. As imagens se amontoam. Derivadas. As mesmas. Me queimam. Me devoram. E eu deixo. Deixo elas serem meu corpo. É que eu moro na angústia dos olhos da mãe. E nas ausências do pai. Deveria me levantar. Seguir em frente. Não é assim? Mas, e as paredes? Derrube. Rápido. Há algo que escorre. Ninguém diz que escuta. É ensurdecedor. Rápido. Antes que te levem. Vão tirar tua roupa e te virar do avesso. A pele por dentro, as veias por fora. Vermelhos. Todos vermelhos. A ponta do cabelo vai ser fundida ao couro cabeludo. Não importa o delírio dos seus sonhos. Escorre. E depois que molha é escorregadio. Você cai. E é infiltrada. Cada vez que o líquido te abraça, te leva um pedaço. Luiza Possamai Kons é mestre em Artes pela Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), e graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Luiza Entende a fotografia como uma ferramenta política para refletir as relações e os vínculos. Em seu processo de criação discute gênero, pertencimento e as imagens que não foram.

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Movimento dos barcos Nuri Macedo

Inspirado na música “Movimento dos Barcos” do compositor Jards Macalé, produzi um ensaio fotográfico analógico, com interpretação livre da letra da canção. Pela minha leitura, a música fala sobre uma recusa a continuar as coisas monótonas como estão. “Vou sair sem abrir a porta”, mostra este rompimento, de forma brusca, devido ao cansaço e à desilusão do eu lírico. Entre desculpas e arrependimentos, o eu lírico se despede, um pouco monótono, quando diz: “É impossível levar um barco sem temporais, e suportar a vida como um momento além do cais”. Após o desgaste deste rompimento, vem a mudança. Surge o sentimento de protagonismo, de não querer observar a vida em terceira pessoa, de viver o momento, e que seja um momento efêmero. Estou cansado e você também Vou sair sem abrir a porta E não voltar nunca mais

Desculpe a paz que lhe roubei

E o futuro esperado que nunca lhe dei

É impossível levar um barco sem temporais

E suportar a vida como um momento além do cais Que passa ao largo do nosso corpo Não quero ficar dando adeus As coisas passando

Eu quero é passar com elas

E não deixar nada mais do que cinzas de um cigarro E a marca de um abraço no seu corpo

Não, não sou eu quem vai ficar no porto chorando

Lamentando o eterno movimento... movimento dos barcos... (Movimento dos barcos – Jards Macalé e Capinan)

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Direção: Nuri Macêdo Carvalho Modelo: Carolina Macedo Carvalho Filme: Kodak Double-X @100

Nuri Macedo, nascido em Patos de Minas/MG, mora atualmente em Belo Horizonte. Estudante de licenciatura em música pela UFMG, pratica a fotografia artística experimental, principalmente em suporte analógico 35mm.

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MetaNoia

Pedro Fonseca Patti Em meio a tempos de isolamento, fez-se necessário um convívio intensificado do eu consigo mesmo. Desprovido de uma educação emocional e de uma cultura receptiva de ações que promovem a saúde mental, o ser humano tem tido dificuldade de organizar seu mundo interno. Escutar a si mesmo e enxergar seu próprio reflexo não é sítio fácil de se habitar e os efeitos do isolamento social e do confinamento em casas e apartamentos turvam nossas águas que um dia pareciam cristalinas, congelando-as em um passado distante, acessível somente por memória. No fio narrativo traçado, o sujeito toma consciência de si como quem re-experiencia uma memória antiga, onde boia o retrogosto da história já vivida e escorre o desejo por uma nova existência. O enclausuramento físico e psíquico com seu próprio corpo impede a transgressão de quem não se identifica mais com sua própria imagem. Quando se dedica a cada detalhe de seu mal, é fácil querer sentir-se como seu próprio avesso, no entanto a troca de pele não é processo leve. Por meio das duplas exposições analógicas realizadas com filme preto e branco 35mm, o confronto consigo mesmo é representado em um sujeito que tem seu interior atravessado, desvelando as várias versões de si que mascaram a roupagem humana. Além disso, o congelamento das fotografias ilustra o aprisionamento de corpo do sujeito, reafirmando como estamos presos a nós mesmos, e a busca por transgressão é, por fim, a partir do espelho, barrada por seu próprio reflexo.

Pedro Fonseca Patti é fotógrafo, mineiro e experimentador. É também estudante de psicologia na UFMG, campo de conhecimento do qual retira a matéria prima para suas imagens, ancoradas em temáticas da psicanálise e da mente humana.

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Sem lua

Regina Rocha Pitta Este ensaio é proveniente de um antigo desejo de fotografar o céu noturno. A chance surgiu em dezembro 2020 depois de cerca de nove meses de isolamento devido à pandemia da Covid19 – com algumas saídas obrigatórias. Uma “fuga” para um sítio afastado da área urbana permitiu a observação do céu em uma noite que começou com uma chuva fina, mas que depois parou e deixou as estrelas salpicarem o espaço escuro. A noite sempre foi alvo de poetas por sua aura de mistérios. Talvez pela falta de luz, a escuridão pareça esconder segredos e isso faz com que enigmas sejam imaginados. Tentar desvendar esses aspectos me moveu a fazer este ensaio. Não tinha ideia de que ela, a noite, se mostraria tão colorida e cheia de formas. Minha relação com a noite é especial, porque é quando gosto de trabalhar, de ler, de ver um filme. Sou uma notívaga e gosto do silêncio que ela traz. Acredito que minha relação com a noite venha das madrugadas em que minha avó me acordava, pouco antes do amanhecer, para ver a Estrela Dalva. Só mais tarde vim a saber que aquele astro era na verdade o planeta Vênus, o mesmo que na astrologia significa o amor, a beleza. Às vezes passava uma estrela cadente e ela dizia: “faz um pedido”. E eu ficava pensando no que pedir e, claro, perdia a oportunidade. Mas na verdade, depois de meses de tensão devido à Covid19, sem uma vacina, vendo o número de mortes crescer, ter a oportunidade de poder respirar profundamente foi como encontrar a liberdade.

Regina Rocha Pitta é natural do Rio de Janeiro e atualmente reside em Campinas /SP. Tem formação em jornalismo e atua como artista visual desde 1994, utilizando a fotografia como meio de expressão. Participou das mostras “6.380 km de la Habana a Campinas (2019) ” em Cuba, “Reconstruyendo Metáforas”, na Bolívia, no 15º Salão de Artes Visuais de Ubatuba/SP e na Galeria Alternativa de Contagem/MG, do site Resumo Fotográfico.

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Políticas do Flerte Samanta Ortega

“Políticas do Flerte” é uma série experimental sobre a decadência de uma paixão. Da separação de dois pedaços que um dia já foram atados. É uma carta de amor e uma carta de despedida que rasga o futuro. O que podíamos ter sido? Por quê o seu amor me dói? Como chegamos no aqui, no agora, no adeus? Utilizando fotografias 35mm inéditas, reveladas em processo cruzado, intersecciono trabalhos manuais e digitais de manipulação e impressão. Inspirada pelos roteiros de performance de Alan Kaprow, proponho o olhar ao amor como um happening, onde existe um futuro que nunca vai acontecer conforme o planejado. A dança do amor não é coreografada. A dança do amor às vezes acaba na queda. Nós. É plural, o que quer dizer mais de um. É a primeira pessoa, a primeira que eu vejo. Penso, vivo. Também quer dizer que estamos atados. Já fomos muito. Apertados, sufocantes. Respiramos o mesmo ar tantas vezes que poderíamos chamar de nosso. Nós. Um espaço, uma brecha. Nesse nó, no coração entrelaçado, no sangue compartilhado. Eu sangraria por você. Não só como já o fiz tantas vezes que talvez eu esteja em falta. Faltou pedaços de mim pra te dar. Você não sabe lidar com a falta. Eu não sei como te ajudar com isso. Não saberia dizer se foi você ou eu. Se não é você, se sou eu. Por quê o seu amor me dói? Ou se chamamos de amor um campo de guerra. Chamamos de amor por muito tempo. No amor não há regras. Na guerra sim. Assim, assinalo as diferenças das causas de destruição. Poderia-se dizer que a guerra é a falta de amor, mas eu não acho isso. Não acho nem um pouco, porque na guerra e no amor perdura o interesse. Nossos interesses contrários, trabalhando juntos. Puxando a mesma corda em direções contrárias. Qual foi a direção que tomamos?

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O rumo, o caminho andado. O caminho por onde eu tracei as curvas do seu corpo com meus dedos e toquei suas feridas tentando curar, pegar pra mim a sua dor. Eu sou por você. Nós. Eu disse muitas coisas. Você menos. Às vezes era demais esse pouco. Desgastante, pesado. O silêncio? Impossível de engolir. Você me dava na boca o seu silêncio. Um garfo arranhando no prato. Silêncio. Preenchi espaços com palavras que nunca poderiam ser repetidas para outra pessoa. Você. Você. Porque era você. Era tudo. Era nós. E éramos parte de algo. Nunca. Foi assim que você disse quando eu te perguntei sobre o eterno. Amor pra sempre o amor que não morre. Vive, perdura, se sobrepõe às expressões do tempo, do espaço. O universo se desdobrando pra caber somente isso aqui. Eu, você, o mundo. A gente achava que enquanto ninguém mais entendia como, iríamos contra. Tudo, todos, a___b, eu você. Unitariamente dois. Eu te perguntei quantas vidas dura a saudade. Silêncio. Onde a gente se encontra? Nunca. Te escrevi uma carta de amor ridícula assim como todas as cartas de amor que também são ridículas. Te escrevi uma despedida que ressoava com meu choro. Ridículo. Te chorei muitas vezes o ridículo. Adeus. Passou algum tempo e os dias são rasos. Te escrevi uma carta de amor em despedida chorando em cima das palavras ridículas dos meus dias rasos e o problema é que ainda me pergunto Você leu? Samanta Ortega nasceu e vive em São Paulo. É artista visual, designer, graduanda em Produção Multimídia e especializada em processos analógicos na fotografia. Seu trabalho se pauta principalmente em práticas híbridas e experimentais, como manipulações físicas e digitais em fotografia 35mm e o autorretrato. Vê a arte como uma constante caminhada de busca e perda, onde as narrativas pessoais se interseccionam com o mundo de fora. Em 2021 foi selecionada pela Sô Edições para a publicação do minizine “Enquanto Espero”. Foi curadora fotográfica para a página “Foto Femme United” e é parte da comissão de organização da plataforma “Coleccionismo Contemporáneo Latinoamerica”.

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Entrevista 186

Anna Paola Guerra Uma breve apresentação sobre você (mini biografia). Anna Paola Guerra – Nasceu em Belo Horizonte em 1969, é Bacharel em Física pela UFMG, durante o mestrado resolveu mudar de área e foi estudar Design Gráfico na UEMG. Interessada pela linguagem fotográfica, desde 1995 tem feito trabalhos nesta área.


Como você começou a fotografar? Sempre fotografei com câmera digital, de forma despretensiosa em caminhos diversos, percursos cotidianos e viagens. Do início até agora, posso dizer que essa atividade não mudou muito, continuo caminhando com minha câmera digital sem saber muito sobre meu próximo “encontro”. Quais são suas referências na fotografia, no cinema e na literatura? Sempre gostei do heterogêneo, multidisciplinar. Quando estava na graduação em Física, por exemplo, busquei iniciação científica em holografia na Belas Artes. Quase tudo me interessa, o díspar, que a princípio não está entrelaçado, pode fazer sentido mais tarde e constituir o que nos afeta, nosso olhar. Apesar desse interesse por tudo, nunca quis que trabalhos de outros fotógrafos, principalmente, fossem referência, porque se trata de uma atividade criativa existencial pessoal. Para responder parcialmente e mais especificamente à pergunta citaria a tríade Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa numa constelação vasta que me inspira. O que você fotografa? Fotografia é uma via de mão dupla. As coisas, às vezes, capturam mais do que são capturadas. Coisas, objetos fora de suas funções se expressam, nos olham e nos fixam. É menos sobre o sujeito que fotografa e o objeto e mais sobre o que se passa entre eles de forma reversível. Como se dá o processo de criação dos seus trabalhos fotográficos? Não sei bem como se dá esse processo criativo, só sei que predisposição e acaso fazem parte. Sempre tenho minha câmera comigo, gosto de sair para andar, e não sei o quê, onde e como vou encontrar o que “eu” fotografo. Não é um processo completamente racional e controlado.

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Artigo

FOTOLIVRO: fotografia, design e narrativa Cris Nery1

Inicio este texto com a seguinte indagação: quais as afinidades e dessemelhanças entre os ensaios fotográficos e os fotolivros? A princípio,

podemos aproximar o fotolivro do ensaio fotográfico porque ele é, também,

uma sequência de fotografias que, sozinhas, não são mais importantes que o todo.

Nesse sentido, ao refletir sobre o suporte da impressão ou sobre a ampliação fotográfica, um ensaio fotográfico pode, por exemplo, ter como suporte: o papel fotográfico emoldurado; as telas de tecido; as projeções em

paredes; as imagens digitais etc. Podem, ainda, ser expostos em galerias e museus, em sites e redes sociais, em museus virtuais, em revistas digitais

e impressas, e também publicados como livros de fotografia, catálogos ou até mesmo fotolivros.

No fotolivro, a fotografia é impressa nas páginas de um livro, o que o torna

suporte e também uma linguagem artística. As fotografias sequenciadas em um fotolivro devem, portanto, utilizar a linguagem artística desse suporte para narrar o que será contado pelo autor/fotógrafo. Há outro suporte para a impressão das fotografias, denominado Livro de Artista.

1 Doutora em Design; Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais – Belo Horizonte/MG. Para saber mais sobre as referências utilizadas neste texto da Revista Tangerine: NERY, Cristiane Gusmão. Tese: Imagens Cruzadas: design gráfico e montagem cinematográfica na edição de fotolivros. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Antônio Silva. 2020. Disponível em: https://www.academia.edu/44335655/IMAGENS_CRUZADAS_Design_ gr%C3%A1fico_e_montagem_cinematogr%C3%A1fica_na_edi%C3%A7%C3%A3o_de_ fotolivros Acesso em: 08 mar. 2022.

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Porém, trata-se de uma discussão mais ampla, a qual não será abordada neste momento. Recomendo a leitura da pesquisa do Professor Doutor Amir Cadôr para mais aprofundamento2. Dito isto, sumariamente, o fotolivro é um livro e, portanto, se insere no contexto de qualquer tipo de livro, uma vez que o conteúdo precisa ser desenvolvido, o design editorial precisa ser projetado, a diagramação precisa ser realizada, assim como o tratamento das imagens, a impressão, a publicação, a distribuição, as doações de exemplares e/ou as vendas. Tais processos nos levam a pensar na pergunta feita por Lyons (2011): afinal, quem faz os livros? 3 Ele explica que os autores escrevem textos, daí a questão da autoria. Mas, quem faz o objeto livro? Para Lyons (2011), o livro é feito por diversos profissionais e dentre estes está o Designer, que é quem “constrói” o objeto livro, escolhe o tipo de papel, o tamanho, a diagramação das imagens, as cores, a tipografia, a capa, os acabamentos etc. As gráficas imprimem, e os editores publicam os livros. A produção de um livro envolve, portanto, uma grande rede de profissionais (LYONS, 2011). Sendo assim, se os autores escrevem os textos, podemos dizer que os fotógrafos são autores que produzem as fotografias e criam uma narrativa que querem contar a partir das imagens que fazem.

O fotolivro é, portanto, uma narrativa contada por meio das fotografias do fotógrafo/ autor. Por essa razão, a produção de um fotolivro assemelha-se à produção de outros livros. Porém, no desenvolvimento de um fotolivro, a parceria entre o fotógrafo, o designer e o editor torna-se, por assim dizer, o alicerce para o sucesso da obra. Tratase de um trabalho cujo autor/fotógrafo deve participar de todas as decisões gráficas, uma vez que elas irão influenciar a “leitura” da história que ele quer narrar por meio das fotografias. Além disso, a sequência das imagens quase sempre é pensada antes pelo fotógrafo, visto que em alguns momentos ela acontece durante a diagramação da obra.

2 Professor Amir Brito Cadôr. Disponível em: http://somos.ufmg.br/professor/amir-brito-cador Acesso em 03 mar. 2022. 3

LYONS, M. Livro: uma história viva. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011.

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Podemos aplicar para esse processo, o conceito de Imagens Cruzadas de Etienne Samain (2012) 4. Para o autor as imagens possuem a capacidade de gerarem significados quando são colocadas umas ao lado das outras. Importante ressaltar que a sequência das fotografias influencia a história que será contada, assim como a ordem dessas imagens, a posição e o tamanho que ocupam na página e a definição da cor. A beleza das fotografias pode ser suficiente para o sucesso de um livro de fotografias, mas pode não ser suficiente para o êxito de um fotolivro, uma vez que é necessário saber construir a narrativa utilizando a linguagem desse suporte. Por isso, são muito comuns as aproximações feitas entre a teoria da montagem cinematográfica e a sequenciação de fotografias em fotolivros. E, como explica Samain (2012), uma única imagem já tem o poder de suscitar nossos pensamentos, mas quando diferentes imagens se cruzam, elas detêm o poder de alterar o interpretante – a partir da Semiótica de Peirce (1995)5. Uma vez discutido o suporte fotolivro, partiremos agora para o ‘lugar’ de exposição dos fotolivros. Por exemplo: onde encontramos fotolivros, onde estão expostos? Como temos acesso? Como compramos? O lugar do fotolivro pode ser desde a livraria física e virtual para compra; passando pelas galerias e museus onde são expostos e consultados como acervo, até as bibliotecas, específicas de fotografia e arte, ou bibliotecas comuns. Os fotolivros já são produzidos para comercialização, mas há uma grande questão quanto à distribuição. Como fazer com que essa produção chegue ao grande público e não se torne restrita ao público dos festivais de fotografia?

4

SAMAIN, Etienne (org.). Como pensam as imagens. Campinas, SP:

Unicamp, 2012. 5

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PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo, Editora Perspectiva, 1995.


Dessa forma, o Fotolivro se inclui em toda a história do livro como tecnologia humana, além de adicioná-lo, também, na história das tecnologias que foram surgindo para inserções das imagens em livros, tais como as iluminuras, xilogravuras, litogravuras e a ampliação e a impressão da fotografia em papel. Como explica Kossoy (2006), a fotografia foi, inclusive, uma solução para imprimir imagens em papel, ou seja, imprimir com luz6. E, afinal, o que faz um fotolivro ser um fotolivro? Especialmente, é a intenção do autor/fotógrafo em contar uma história com um formato de narrativa visual7. Fotolivro é um termo que surge no início do século XXI para denominar certos livros fotográficos que se distinguiam de outros tipos de publicações que continham fotografias em seu miolo, por justamente proporem uma narrativa visual. Em suma, os fotolivros objetivam contar uma história. Essa qualidade os diferencia, principalmente, de outros impressos, tais como: revistas, jornais, catálogos de exposição; ensaios fotográficos publicados em revistas ou coleções; livros de artistas, entre outros. A grande questão é que algumas dessas distinções são fronteiriças. Por exemplo, um catálogo de exposição pode vir a ser um Fotolivro. Um Livro de Artista também pode vir a ser um Fotolivro e assim por diante. Por isso, é importante identificar que a intenção do autor ou fotógrafo ao produzir o objeto Fotolivro (normalmente com a parceria de ao menos dois outros profissionais: o designer e o editor) seja criar uma narrativa por meio das fotografias.

6 KOSSOY, B. Hercule Florence: a descoberta isolada da fotografia no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. 7 Para saber mais sobre Narrativa Visual: ALVES, André. Os argonautas do mangue. Precedido de Balinese character (re)visitado por Etienne Samain. Campinas, SP: Editora da Unicamp e Imprensa Oficial, 2004.

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Villatoro (2017) explica que o fotolivro possibilita acrescentar à linguagem fotográfica outro elemento: a narrativa8. Narrativa esta que não necessariamente precisa ser linear, podendo, até mesmo, ser abstrata, fragmentada, paradoxal, não-linear, fantástica. O nome Fotolivro também foi aceito devido ao seu uso em diversas publicações de coletâneas de Fotolivros, tais como: Fotolivros Latinoamericanos9; The Photobook: A History,10 publicado em três volumes. Ao longo das décadas de 2000, 2010 e 2020 muitas coletâneas foram publicadas, surgiram encontros em festivais de fotografia e também seminários acadêmicos para discutir e expor fotolivros. Grandes exposições foram realizadas, muitas delas para acompanhar o lançamento das coletâneas. Foi o caso da exposição ‘Fotolivros latino-americanos’ realizada no Instituto Moreira Salles de São Paulo em 201311 e da ‘Exposição Fenômeno Fotolivro’ em 2017 no CCCB – Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona que lançou juntamente uma série de catálogos que objetivam refletir sobre o suporte enquanto linguagem12.

8 VILLATORO, V. La imagen que narra. Catálogo de la Exposiçión Fenómeno Fotolibro. RM: Barcelona, 2017. 9 FERNÁNDEZ, Horacio. Fotolivros latino-americanos. São Paulo: Cosac Naify, 2011. 10 PARR, M; BADGER, G. The Photobook: a history. Volume I. Londres; Phaidon Press Limited, 2004. 11 Exposição Fotolivros latino-americanos. IMS. Disponível em: https://blogdoims. com.br/fotolivros-latino-americanos/ Acesso em: 02 mar. 2022. 12 Exposição Fenômeno Fotolivro. CCCB. Disponível em: https://www.cccb.org/es/ exposiciones/ficha/fenomeno-fotolibro/225004 Acesso em: 02 mar. 2022.

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Os pesquisadores e estudiosos se debruçaram a estudar os livros ilustrados fotograficamente (Photographically illustrated books13) desde a incorporação de fotografias coladas nas páginas dos miolos de livros a partir da década de 1840. Dessa forma, o termo Fotolivro passa, também, a denominar livros do “passado”, digamos, anteriores ao século XXI e que continham as mesmas “qualidades ou definições” que, de acordo com os estudiosos, caracterizavam um fotolivro. Portanto, a partir da adoção do termo Fotolivro e de todos os eventos e discussões a seu respeito, foi natural que fotógrafos, designers e editores quisessem publicar fotolivros e participar dos eventos. Explicando de forma elementar: as fotografias são produzidas por um fotógrafo, o objeto livro é diagramado por um designer e publicado por um editor. Ainda temos aqui vários profissionais que podem estar envolvidos, principalmente no que se refere à produção gráfica, além da comercialização, distribuição e discussão em torno da autoria. O autor pode ser o fotógrafo, que conta a história. Ou a história pode ser construída em parceria pelos profissionais envolvidos, designer e editor. O autor pode ser o fotógrafo ou pode ser uma autoria conjunta.

13

Photographically illustrated books. British Library. Disponível em: https://www.

bl.uk/collection-guides/photographically-illustrated-books# Acesso em: 08 mar. 2022. Para saber mais: The Pencil of Nature. 1844–46. William Henry Fox Talbot. MET. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/267022 Acesso em: 08 mar. 2022. Photographs of British Algae: Cyanotype Impressions. 1843 – 1853. Anna Atkins. The New York Public Library. Disponível em: https://digitalcollections.nypl.org/collections/ photographs-of-british-algae-cyanotype-impressions#/?tab=about Acesso em: 08 mar. 2022.

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De qualquer forma, surgiram as feiras, publicações independentes, convocatórias de bonecas de fotolivros cuja premiação era a publicação e a distribuição do fotolivro vencedor. Basta digitar na busca da internet o termo Convocatória de Fotolivros14 ou

em inglês Photobook Dummy Award15 e a lista que surge é interminável. E o mais interessante é que foi um fenômeno mundial e que adentrou

também o meio acadêmico e os estudiosos das universidades, museus, bibliotecas e variados tipos de instituições. Citando Horacio Fernández, “a biblioteca agora é o museu” (2017)16.

Para citar algumas bibliotecas em que podem ser encontrados fotolivros e livros de fotografia: Coleção Livro de Artista em Belo Horizonte organizada pelo Prof. Dr. Amir Cadôr17; A Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles em São Paulo18; Foto Colectania em Barcelona / Espanha19; entre outras. Acrescenta-se, também, a importante Base de Dados de Livros de Fotografia20.

14 Exemplo de uma das convocatórias para publicação de fotolivros realizadas no Brasil. Revista ZUM. Disponível em: https://revistazum.com.br/en/festival-zum-2021/ convocatoria2021/ Acesso em: 02 mar. 2022. 15 Exemplo de uma convocatória internacional importante de bonecas de fotolivros. THE KASSEL DUMMY AWARD. Disponível em: https://fotobookfestival.org/kasseldummy-award/ Acesso em: 02 mar. 2022. 16 FERNÁNDEZ, Horacio. La biblioteca es el museo. Catálogo de la Exposiçión Fenómeno Fotolibro. RM: Barcelona, 2017. 17 Coleção Livro de Artista. Disponível em: https://www.bu.ufmg.br/bu_atual/ especiais-e-raros/artes/livro-de-artista/ Acesso em: 02 mar. 2022. Blog da Coleção Livro de Artista. Disponível em: https://colecaolivrodeartista.wordpress.com/ Acesso em: 02 mar. 2022. 18 Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles. Disponível em: https:// ims.com.br/acervos/biblioteca-ims-paulista/ Acesso em: 02 mar. 2022. 19 Foto Colectania. Disponível em: https://fotocolectania.org/es/collection/ Acesso em: 02 mar. 2022. 20 Base de Dados de Livros de Fotografia. Disponível em: https://livrosdefotografia. org/ Acesso em: 02 mar. 2022.

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Partindo, portanto, do pensamento da fotografia, do design e da narrativa, apresentarei dois fotolivros citados por Horacio Fernández na coletânea Fotolivros Latino-Americanos (2011), os quais estão disponíveis para consulta no acervo da Coleção Livro de Artista: Aeroporto, de Claudia Jaguaribe (2002), e Doorway to Brasilia, de Aloisio Magalhães e Eugene Feldman (1959). Devido à importância das duas publicações, é possível encontrar muitas informações disponíveis sobre ambas as obras, caso surja o interesse em aprofundar mais a respeito. Aeroporto, de Claudia Jaguaribe, foi publicado em 2002. De acordo com Fernández (2011, p. 206), o projeto Aeroporto incluía uma exposição e um catálogo. Porém, “Claudia conseguiu quebrar a rotina do mundo da arte e fazer do livro uma obra autoral, no mesmo nível de exigência da exposição” (FERNÁNDEZ, 2011, p. 206). Ainda de acordo com o autor, o design de tal obra é assinado por Rodrigo Cerviño Lopez.

Aeroporto. Claudia Jaguaribe, 2011. Foto: Cris Nery. 0ut. 2019. Fonte: Coleção Livro de Artista/UFMG.

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Doorway to Brasilia, de Aloisio Magalhães e Eugene Feldman, foi publicado em 1959 e tanto as fotografias, quanto o design são creditados aos dois profissionais. De acordo com Fernández (2011, p. 81), as possibilidades de linguagem das artes gráficas empregadas na primorosa impressão do fotolivro o tornam um exemplo de “riqueza de texturas, tonalidades e transparências das fotografias, sua escala monumental, o cuidado dos

contrastes exagerados ou da impressão do foco, a elegância da fonte New

Gothic, em negrito, impressa em cinza; enfim, todo o alarde gráfico de um livro tão extraordinário quanto seu tema” (FERNÁNDEZ, 2011, p. 81). Em minha tese de doutorado (NERY, 2020, p. 176-188), me foi possível observar toda a riqueza expressa pelo livro, uma vez que realizei uma análise da obra que compreendeu diversos aspectos, tais como ficha técnica; partes do fotolivro; análise descritiva; análise de conteúdo; análise do projeto gráfico; objeto; material e layout21. A base de dados de livros de fotografia disponibiliza um review da obra, ou seja, uma visualização das páginas sendo passadas. Trata-se de um recurso bastante utilizado e divulgado para disponibilizar fotolivros de maneira digital22.

21 NERY, Cristiane Gusmão. Tese: Imagens Cruzadas: design gráfico e montagem cinematográfica na edição de fotolivros. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Antônio Silva. 2020. Disponível em: https://www.academia.edu/44335655/IMAGENS_CRUZADAS_Design_ gr%C3%A1fico_e_montagem_cinematogr%C3%A1fica_na_edi%C3%A7%C3%A3o_de_ fotolivros Acesso em: 08 mar. 2022. 22 Doorway to Brasilia. Disponível em: https://livrosdefotografia.org/publicacao/459/ doorway-to-brasilia Acesso em 7 mar. 2022.

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Doorway to Brasilia. Aloisio Magalhães e Eugene Feldman, 1959. Foto: Cris Nery. 0ut. 2019. Fonte: Coleção Livro de Artista/UFMG.

Para encerrar este texto, gostaria de ressaltar novamente a enorme

quantidade de informações que podem ser obtidas on-line para quem se interessar em ‘descobrir’ fotolivros e seus autores. São monografias, dissertações, teses, pesquisadores, seminários, revistas, artigos, festivais, convocatórias, exposições, acervos, coleções, bibliotecas. Divirtam-se!

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Último Disparo

Reflexos e reflexões Há mais de dez anos o saudoso professor e pesquisador sobre fotografia, Arlindo Machado revisitou a ideia de que a fotografia poderia ser feita pela junção entre diferentes mídias. Ele perguntou, o quanto em uma fotografia, em particular aquelas que intencionam a expressão artística, conteria elementos extraídos da pintura, do cinema, da literatura e até mesmo da música. Com isso, propunha que a fotografia pode sempre se distanciar do registro da realidade, transformando-se em um veículo de livre expressão: um ponto de confluência envolvendo várias artes. Qual o percentual dessas diferentes mídias fará parte da obra fotográfica dependerá das intenções e das referências visuais e artísticas acumuladas pelo autor. Numa releitura do que já havia dito Ansel Adams, Sebastião Salgado também afirma que “você não fotografa com a câmera, mas sim com toda a sua cultura”. Diante disso, perguntamos: como sua cultura se fará perceber em seu próximo trabalho fotográfico?

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