Estudos Sobre a Leveza

Page 1

Estudos sobre a Leveza Fernando de F. L. Torres

1


Aos meus pais, pela paixão pela leitura e tudo que podemos agradecer a quem nos trouxe ao mundo e nos criou. À todos meus professores, em especial à Augusto Massi e Maurício Santana Dias, pelas aulas que marcam meus Estudos Sobre a Leveza. Ao Eric, amigo sincero, pela leitura minuciosa e sugestões. A todos eles, dedico este livro.


ManhĂŁ Deslumbro-me De imenso Giuseppe Ungaretti (Trad. H. de Campos)

3


Mándala de Areia

Abriu a porta. Percebeu o rosto do amigo marcado. Não se encontravam havia muito. As tempestivas rugas desenhavam o tempo. Deixava em sua feição a sutileza de alegria que precedia o sorriso de Pedro. Inevitável. O amigo, primeiro a chegar, trazia a esposa e uma garrafa de vinho. A companheira de Carlos ainda não terminara de preparar o jantar. Carlos sentou-se com Pedro, não podia ajudar na cozinha. A esposa do amigo logo se prontificou. De pronto. Serviu o vinho e conversaram. Beberam um pouco de vinho e ficaram em silêncio. Encerraram as palavras de reencontro. A campainha tocou novamente e Pedro esticou o pescoço. O convidado foi recebido com um abraço. Era o Paulo José, que para ele era um desconhecido. Chegou sozinho e menos efusivo. Foram apresentados. Paulo era jornalista e fora militante de esquerda. Colega de Carlos na faculdade de Direito. Não concluiu. Pedro nunca fora politicamente ativo, naquela época estava mais preocupado em correr atrás de um rabo-de-saia. Não falava de trabalho, nem do passado já distante. Os dois amigos de Carlos entenderam-se nas amenidades. O anfitrião foi à cozinha e Joana pediu que levasse os petiscos à mesa. Ana Beatriz, esposa do amigo, já de mangas arregaçadas, ajudava a preparar o jantar. Lembrou-se da música. Havia escolhido uma longa seleção de músicas agradáveis. A linha melódica de saxofone soou deliciosamente. Pedro fechou os olhos e sorriu, como se houvesse experimentado um sabor de incomensurável prazer. Paulo estranhou a reação, embora tenha esboçado um sorriso com a música. A campainha tocou pela derradeira vez na noite. Era um casal. Lúcia era uma velha conhecida de Carlos e Pedro, em outros tempos um rabo de saia, hoje editora de um famoso jornal. Homero era músico, de sorriso fácil e seguia o


ritmo da música com os dedos. Sua chegada sincronizou com o fim dos trabalhos na cozinha. Sentaram-se todos à mesa. Esmerado jantar. Todos os convidados, contadores de história. A conversa deslizou pelas horas sem que a noite, o álcool ou o cansaço os freasse. Carlos permanecia quieto a maior parte do tempo. Os olhos atenciosos seguiam os amigos com certa admiração. O anfitrião recusava pacificamente o papel de protagonista. Generosamente devolvia o foco pendular aos outros. Parecia, a Pedro, que ele queria aproveitar o máximo de cada um, do que pudessem lhe oferecer. Pedro, que fora o primeiro a chegar, esperou que todos saíssem. Quando conseguiu ficar a sós com Carlos ao se despedir, precipitou-se em fazer perguntas que lhe preocupavam. O amigo apenas o abraçou e se despediu.

5


Pontualidade

Era dia de tomar sorvete. Sexta-feira. O sorvete de morango, dizia o pai, era quase tão bom quanto da Copélia. E a menina acreditava, mas gostava mesmo do de pistache. O sorriso aberto do pai fazia o dia de sorvete o preferido de Beatriz. Porém, não foi o pai quem buscou a menina na escola aquele dia. Não seria a mãe. Essa jamais buscara a filha, tampouco o faria no futuro. Era o Motta, motorista de seu avô. Beatriz demorou anos para entender que esse era realmente o nome dele, não um trocadilho. O carro era frio, como se a vida não fizesse parte daquele universo; o chofer, por outro lado, tinha um sorriso simpático. Nunca ria. Pelo menos nunca lhe escapava uma risada. Sorria. Nessa sexta-feira, Motta não sorria. Impassível. Não que Beatriz pudesse perceber a diferença. Naquele tempo o sorriso do motorista não lhe tinha chamado atenção ainda. Foi um longo caminho desconfortável na direção suave de Motta. Não ia para sorveteria, nem mesmo para casa, o caminho era a casa de seu avô. Reticente, a menina entrou na casa do avô pelas pesadas portas de madeira A sala tão fria quanto o carro. O senhor, de cabelos grisalhos cuidadosamente arrumados, desprendeu a atenção dos papéis e, soltando o lápis, olhou-a por cima dos óculos. - Quer comer alguma coisa, pequena? - Seu avô nunca a chamara assim. Não se lembrava ao menos que algum dia a tenha chamado de Bia. - Não, obrigado, senhor. - disse Bia, sem jeito. Queria sorvete, mas isso era um segredo dela e de seu pai. - Seu pai pediu que eu buscasse você hoje. Entendo que vocês tinham um compromisso. Mas ele não poderá comparecer. - A menina estava confusa, na realidade, dificilmente uma menina de quase dez anos entenderia o conceito


de compromisso de seu avô. - Acontece, pequena, que nem ele nem sua mãe poderão te levar para tomar sorvete. Sabe, eles foram viajar e pediram para eu cuidar de você. - Como uma lua-de-mel? - Disse a menina tentando entender o que acontecia. - Infelizmente não, querida. Eles não foram viajar juntos. Mamãe está em um hotel. Vai descansar um pouco. Ficará até o final do ano. Seu pai foi ver o pai dele. O seu avô que você não conhece e que mora longe. A menina ficou aflita. Não conseguiu dizer nada. Nem mesmo sabia se precisava dizer alguma coisa. Permaneceu empertigada diante da mesa do avô. O senhor levantou-se e, sem dizer uma palavra, a guiou para um quarto preparado para sua chegada. Não estava tudo lá, mas estava seu urso de pelúcia favorito e a maior parte das roupas.

7


Os Vermelhos

Nada que se vendia nas lojas dos shoppings lhe servia. Sentou no banco traseiro do carro de seu genro e pensou em meio à procura que já se tornara cansativa. Eram sapatos para jovens. Já não se chamavam mais mocinhas. Jamais havia sido jovem, fora mocinha. O caminho percorrido de carro estava diferente. Não mais reconhecia os prédios que a cercavam, mas não causavam estranhamento à sua filha e seu genro, que guiava seguro. O passar dos anos só se fez retroceder quando avistou a Catedral. Sentia-se velha e inútil, tivera uma boa vida, sofrera muito, mas passara dos oitenta já fazia uns tempos. E quando o carro encostou à esquina da Quintino Bocaiúva com a Benjamin Constant, ao olhar para a loja de calçados e bolsas que ostentava em sua placa "Desde 1928", Maria Cândida mal pôde acreditar que ele a levara logo ali. A mesma loja, um pouco mais moça do que ela, fora o lugar onde comprara seu primeiro par de sapatos. Não que andasse descalça até os treze anos. Mais nova de três irmãs, herdara toda vestimenta que não se reduzira a trapos das duas mais velhas, e seus sapatos, até então, eram todos sapatos usados, sempre com solas novas pregadas com muito esmero e pouca habilidade por um tio que fora aprendiz de sapateiro. Os carros, tão raros em seu Ipiranga, não deixavam saírem daninhas do espaço entre as juntas nas ruas do centro. E a imagem de um sapatinho vermelho na vitrine nunca lhe sairá da cabeça. Sua irmã mais velha, Maria Franca, iria se casar e era preciso comprar sapatos novos para completar seu vestido com fita, encomendado para a melhor costureira do bairro. Seu pai, altivo como sempre, ordenou aos vendedores que trouxessem sapatos brancos que coubessem em sua filha. "Mas eu gostei é do vermelho", apontou a menina.


"Aquilo é sapato de prostituta, minha filha. Você quer envergonhar sua falecida mãe na frente do padre?" disse o pai secamente,"na minha família não existe mulher sem-vergonha!" e seguiram logo rua abaixo para comprar um chapéu. Sua mãe havia morrido poucos anos antes, por um daqueles motivos que não souberam ou não quiseram explicar para a menina. Desde então, a mais velha havia se enamorado do filho de um professor da Escola Normal, que estudara com afinco para se tornar advogado, e Maria Alva fora para um convento - era agora noviça. Cândida também se sentiu estranha ao colocar o vestido. Parecia pequeno, mesmo costurado por encomenda. Franzinas, suas pernas no espelho refletiam-se longas demais. Os braços, igualmente frágeis, tentavam fazer força para acertar melhor o vestido: cansou e foi pentear o cabelo. Olhou bem nos próprios olhos e viu um pouco das irmãs nele. Distraiu-se e calçou os sapatos. Deixando o incômodo de lado, sorriu para as visitas ao sair do quarto com elas. O casamento fora a primeira vez em muito tempo, quase um ano, que as irmãs estiveram todas juntas. Nascidas a cada três anos, a mais velha por pouco não casara com dezoito anos. Sua beleza ainda era desconjuntada, pueril; ao colocar o vestido de noiva parecia ainda mais deslocada. Fixava os olhos ao longe, como uma criança a esperar o pai voltar do trabalho. E Alva, a mais bonita de todas as meninas do bairro, sempre viva e de grandes olhos castanhos e alegres, parecia envelhecida e inchada, mesmo sem as roupas do convento e em seu novo vestido. Ambas, cada uma à sua maneira, melancólicas. A festa não se parecia com o que imaginara até então. Os homens sisudos e as mulheres a chorar não combinavam com a idéia de pernas a bailar em longos passos como do cinema. Em um canto, os homens fumavam e discutiam moral e política, no outro, as mulheres cochichavam coisas que todos sabiam. Poucas moças e rapazes foram convidados e estes, quase perdidos, não bailaram.

9


Alva sumiu logo depois com alguém conhecido e não convidado. Mandou os netos procurarem a caçula quando estava em seu leito de morte. Teve um a boa vida e outros filhos e, como percebeu a irmã, cercou-se de uma grande família.

Sete meses depois da festa, Franca afagara a dor da família com o saudável fruto de sua união. O menino se chamou Benedito e não se parecia com o pai, assim como os próximos três que se seguiram, cada um diferente do outro. O pai repetiu até o dia de sua morte que comera o pão que o diabo amassou com o rabo para criar sozinho as duas filhas. Nunca mais o nome da irmã desaparecida foi mencionado em sua frente. A Cândida, até aquele dia, restou usar sapatos pretos. O branco ficara pequeno logo e ela deixara de ser mocinha. Casou-se, não muito mais velha que a irmã, com seu único namorado, um empregado do comércio de seu pai. Ficou viúva cedo, seu pai e marido morreram juntos em um desastre de trem. Com mais de oitenta anos, entrou na loja e comprou os vermelhos.


Barulho Seco

"Do Municipal". A menina dançava. De olhos fechados, cumpria sua seqüência de balé no quarto apertado. Não era o mesmo que dançar na sala com espelhos e chão de tacos de madeira. Longos. Com certeza seria diferente o chão de linóleo do teatro. "Saiba seu tamanho"."Conheça seu espaço". Repetidamente. Reverberavam por seus músculos as ordens da professora. E a menina sabia, tanto que podia dançar a mesma rotina em seu quarto ou em outro ambiente, qualquer que fosse, de olhos fechados ou encarando concentrada o horizonte recôndito. Sorrateiro, o irmão espiava a menina no preciso saltitar. A delicadeza dos pés em movimento pelo ar era um incômodo. Como fizera outras vezes, o rapaz preparou o bote. Torturar a irmã mais nova era seu passatempo quase favorito. De um encontrão derrubou a menina e, de sua falta de graça, algo saiu errado. A menina não estava na posição que ele esperava. Não tinha o peso que imaginava. O joelho estalou como lenha na fogueira. Barulho seco. A perna fina dobrou como nunca antes, como não deveria naturalmente. Ainda, sem perceber a gravidade do ato, o garoto ria em transe. A risada sádica cortou os ouvidos da menina. Não conseguiu gritar. Desmaiou. Na cama, com um pouco de frio, acordou desnorteada. De alguém, entre as opressivas paredes brancas, soube que jamais dançaria novamente. Ninguém jamais soube, ela seria a primeira bailarina do Municipal.

11


Cheiro de Café Quente

Meu pai sempre contava de sua infância. O aroma de café de fazenda, fumegante, a água aquecida no fogão à lenha. Fogo estalado. O cheiro de ainda quente, na xícara de ágata, adoçado com rapadura. Seu avô que tomava o café e descansava do trabalho em sua marcenaria. A marcenaria do imigrante espanhol alimentou os sete filhos. O ofício aprendido na terra que ele deixara para trás sem grandes culpas. Terra e tempo distantes. Aqui era o chão de seus filhos. Desse barro foram feitos seus netos. Mas a oficina do velho marceneiro já não produzia para vender, e nem era mais necessário. Dali, naqueles anos, apenas se fabricava brinquedos, berços, camas, que ficavam em família. Vinte e três deles, quatorze varões e nove princesas. E em um desses verões, o Natal chegou cedo. Como era de costume, no dia seguinte ao fim das aulas, os pais deixaram cada uma das crianças com o dedicado artesão. Quando estes chegaram à fazenda, se depararam com duas casas nas árvores. Uma para suas princesas, com berços para as bonecas de pano. Outra dos meninos, um quase forte de faroeste. Defesa certa contra os constantes ataques apaches que os pequenos cowboys de cinema costumavam inventar. De manhã, quando ele passava com flores, entregava para suas pequenas, e jogava conversa fora, elas ficavam debruçadas nas janelas. Cores, flores, comidas de faz-de-conta, as meninas contavam tudo ao avô. De tarde, trazia capa e espada para seus valentes guerreiros. Quando cansavam destas, havia um brinquedo novo preparado. Carrinhos, espadas, peões, tudo saía da oficina na hora certa. Regalos pacientes, preparados durante o ano.


Aos domingos, tinha jogo de futebol. E não era dos clubes, não, era dos meninos. O dono do campo e das traves apitava o jogo. Os meninos jogavam sete de cada lado. Alegres pernas de pau. O Natal passou, passou Dia de Reis e um pouco depois de passarem as férias, passou o avô. Meu pai disse que nunca soube o que aconteceu com a fazenda ou com as casas nas árvores. Eu me lembro do cheiro de café já frio sobre as mesas de um agitado escritório em que acostumei a brincar. E meu pai, quando parava de assinar papéis, me levava para comer um sonho enquanto tomava seu cappuccino. Contava as histórias da fazenda em que passava as férias. Na espuma da xícara de meu pai, eu tentava entender o cheiro do café quente da fazenda de seu avô.

13


Esqueça Thanatos! E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure (Vinícius de Moraes - Soneto da fidelidade)

Entreolharam-se. Cruzaram seus caminhos naquele momento improvável. "Eu..." Foi interrompido por um gesto dela. Ela o precedeu corretamente, não sabia exatamente o que dizer. A última vez que a vira, anos antes, não, não havia nada a dizer. Ela estava certa. O silêncio era mais lucrativo entre eles. Hesitou mais uma vez, decidiu seguir como se não tivesse ao menos tentado o contato, mas ela segurou sua mão. Embora o rosto dela estivesse levemente marcado pelo tempo, sua pele ainda era macia e suas mãos inexoravelmente manchadas de tinta. Sentiu o toque suave e desprendeu-se, acerbo antes que a adrenalina o intoxicasse completamente. No restante da festa bailaram uma quadrilha dentre os tantos conhecidos, evitando-se reciprocamente. Passos de uma suíte improvisada naquele salão em que todos, exceto os dois, desconheciam o espetáculo sem público. Íntimo. Velado. Metódico, guardava no bolso direito do paletó os cartões que trocava, no esquerdo, ficavam as chaves de casa e do carro. Paletó azul, sem amassado. O cabelo, cuidadosamente penteado para trás, preso na camada sutil de gel. Ainda longe do final da festa, já não avistava a namorada de juventude evitando em movimentos gravitacionais a sua presença. Talvez pelo cansaço ou decepção de não prolongar o toque ou de segurar o roteiro ensaiado ao longo dos anos, decidiu deixar ir embora.


No caminho para o estacionamento, meteu a mão no bolso esquerdo e ali jazia um objeto inesperado. Uma caixa de fósforos, semelhante a essas de restaurantes, dobrando sobre si. No interior de sua aba o recado em letras firmes: "Esta noite - 23h." O item promocional era de um estúdio de arte. Fazia sentido. Entrou no carro e virou a chave em um só movimento. Deixou o estacionamento incerto de seu rumo. Era um marido decente e bom pai. Em casa lhe aguardavam. Ao menos esperavam que voltasse sem desvios. Vaidosa a oportunidade. Aparece quando quer. Inapropriada. Esperada oportunidade. Indelicada e aguardada. Curva após curva, longas avenidas incertas. Objetivo adjetivado e trocado. Odiava a si mesmo e desprezou sua conduta retilínea. O carro já desligado, junto ao meio fio. Ofegante, olhava no relógio. Os ponteiros acusavam a pontualidade. Suava e tremia. Decidira-se. Saiu do carro. Caminhou até a porta. Entrou. E sem uma palavra, fez amor como não fazia desde a juventude.

15


Brilhantes

Chovia. Gotas grossas explodiam feito balões d'água. Olhava pela janela e via pouco mais que uma melancólica parede cinzenta. Líquida e fluida. Era primavera e fazia frio. As juntas lhe doíam. "Dores de crescimento", alguém lhe disse. Desordenadas, certamente. Desconjuntada, se sentia enorme, achava que se os braços crescessem um pouco mais, se arrastariam no chão. Buscava em um olhar de desejo, desesperadamente, em vão. Havia uma festa para ir. O casamento de uma prima. Viajaria mais tarde, após o pai chegar do trabalho e nem ao menos havia feito a mala. Seriam alguns dias de festa, contando um feriado. Churrasco, fofoca entre as mulheres, igreja e a festa. Automaticamente tomou um banho, vestiu roupas confortáveis para viagem e quando foi buscar a velha mala para estufá-la de roupas, ela já a aguardava pronta, sobre a poltrona do quarto. Deslizou o zíper e espiou vagarosamente, criteriosamente verificou que estava tudo como ela mesma tivesse escolhido. No fundo, uma caixa rosa, com um vestido que ela não ousava espiar. A viagem, no banco solitário e confortável do carro de seu pai, passou rápido. Ao chegar ao antigo sítio foi levada a um quarto no qual já havia uma mala sobre a outra cama. Uma prima do noivo, que tinha a sua idade, fora escolhida para dividir um quarto que antes fora somente dela e da agora noiva. Os primeiros dias não foram dignos de nota. Mulheres fofocavam e os homens bebiam. Acompanhava a mãe e quando chegava o começo da noite estava exausta, mas não sabia exatamente o motivo, já que praticamente não fazia nada. Conversou uma ou duas vezes com a garota que dividia o quarto e não chegou a perguntar seu nome. Como não eram da mesma família, quase não se encontraram.


Na manhã de domingo, buscou seu último traje, o vestido. Abriu a caixa cuidadosamente e sobre o vestido amarelo repousava uma caixa de veludo. No interior almofadado estavam, reformados, o colar e os brincos de brilhante da família. Foram de sua mãe e, antes dela, de sua avó. Um bilhete. Tentou não chorar, pois já havia se maquiado. Vestiu-se. Colocou cuidadosamente os brincos e pediu para a companheira de quarto a ajudar com o colar. Sentiu o pingente arrastar pelo seu colo e notou que seus seios já não eram tão púberes. Virou-se e antes de perguntar qualquer coisa, notou, pela primeira vez, um olhar de desejo.

17


Trinta e Três Rotações Viu um coelho numa vitrine de um pet shop, que, em outros tempos, eram lojas de animais, e lembrou que seu filho disse que não são roedores, agora são lagomorfos. Ninguém perguntou aos coelhos, muito menos para às lebres, se eles queriam ser lagomorfos. Nos tempos em que aprendeu ciências, coelhos eram roedores e chapeleiros eram malucos. Não existem mais chapeleiros, pensando bem, viu um na Quintino outro dia, e que sempre esteve lá. Algumas coisas não mudam e continuava gostando dos coelhos como roedores. Parou o carro ali por conveniência e não queria comprar nada, pouco se deteve em alguma outra vitrine e quando estava para lançar passos na rua, teleco teco, a água começou a atingir o solo. Em poucos segundos, era como se Atlas, com o mundo nas costas, tivesse entrado debaixo de uma cachoeira com a face da cidade para cima. A escuridão dissipou-se rapidamente e a água passou a brilhar o reflexo abafado. Porém das poças não saiu vapor, mas surgiram felpudos coelhos brancos, malhados e de todas as outras cores que podem ter os coelhos. Carros desavisados atropelaram os primeiros que iniciaram a invasão. De súbito, eram tantos que os carros já não andavam, que para caminhar, os pés precisavam encontrar as brechas entre os peludos animais. Nos primeiros dias as pessoas ficaram nos lugares onde estavam no momento da chuva. Os animais tinham um senso finamente apurado de propriedade privada e respeitosamente ocuparam apenas áreas públicas. As autoridades tentaram, em vão, recolher os animais das vias e levá-los para longe. Caminhões partiram em direção às cidades litorâneas e despejaram animais ao mar. Aviões jogaram outros milhões sobre pontos restantes de mata atlântica para que suas carcaças servissem de adubo. Nada adiantou. Os coelhos multiplicavam-se como lagomorfos que eram. E de onde se removesse um


caminhão de animaizinhos, em não mais que um instante, já estava preenchido novamente. E como toda história pressupõe um protagonista (e deixo bem claro, reticente leitor que chegou até esse parágrafo, que nesta não é a imensa massa de coelhos), o nosso, que já havia perdido a reunião e cansado de esperar em um shopping center, abaixou-se em frente a um dos coelhos que o encarava na porta de saída e pediu gentilmente: "Leve-me ao seu líder". Sem resposta. Os olhos vermelhos continuaram o encarando, dobrou o focinho duas vezes para a esquerda e permaneceu absolutamente imóvel. Diante da impassividade do animalzinho, voltou ao pet shop, recolheu o colega encarcerado (e naquele momento não havia muito por que pagar por um coelho, de forma que o vendedor não cobrou pelo artigo), colocou-o na mochila e partiu para o meio da multidão. Andar nas ruas invadidas era como andar na neve. Esforço do passo lutando contra a resistência inerte, branca. Nas portas de cada edifício, as pessoas já em situação de fleuma. Alguns, já convencidos de que o coelhos não revidariam, passaram a comê-los. E pouco a pouco percebia que todos o olhavam ao atravessar, assim, sozinho, a invasão felpuda, com olhos de estranhamento. As autoridades já haviam desistido de tentar alguma coisa e todos se conformaram a esperar. Nosso herói continuou andando até encontrar o que um dia foi sua casa. Já não sabia quanto tempo ficara longe. Uma semana, talvez? Quiçá um mês? O fato é que a casa estava como deixara quando saiu. Vazia. Faltava nela o abraço afetuoso dos filhos, que um pouco antes haviam deixado de viver com ele. Não lhe fazia falta a frieza que os levou. Escolheu um velho disco de vinil. Encostou a agulha na superfície negra e degustou o chiado. O novo companheiro já estava agitado na mochila quando se lembrou de libertá-lo mais uma vez. Colocou-o na janela. Abriu uma cerveja e contemplou, como se mar fosse, a uniformidade branca a se mexer até o horizonte, como se girassem em torno de seu prédio, na velocidade de trinta e três rotações por minuto.

19


Vocação

A moça estava sentada quando ele chegou. Olhava, de dentro do café, em direção à rua. Avistou-o antes mesmo que ele percebesse que ela já o estava esperando. Abraçaram-se lentamente. "Você veio.", disse ela. "Eu disse que viria, Clara." "Não sei em que acreditar, não acredito mais em você." "Eu vou tomar um café.", disse ele. "Pede. Te espero aqui. Que café você vai tomar?" "Faz alguma diferença para você qual eu tomo? Café é tudo igual." " Você acha que é tudo igual. Não é, não. Você não é igual.", disse ela. "Não sou mesmo. Por isso que precisamos conversar. Você sabe o que sinto por você, mas amanhã..." "Vai pegar um café, a gente conversa depois que você pegar. Pega um para mim. Qualquer um. O que você estiver tomando." Ele entrou na fila e ela voltou a olhar para rua. Faziam silêncio enquanto um grupo conversava animadamente. Falavam de um filme que nem todos tinham visto. Clara permanecia olhando pela janela enquanto ele caminhava lentamente pela fila. Foi atendido e pediu dois mochaccinos. "O café.", disse ele. "Por que você fez isso? Se já sabia o fim. E não me diga que não sabia." "Eu não sabia, como eu poderia saber q u e . " "Que amanhã você entraria na Igreja?" "Eu sabia disso, mas que isso tudo aconteceria, não podia prever. Como eu poderia? Vai ficar tudo bem. Você tem de ter fé."


"E se eu tivesse ficado grávida? Que pai meu filho teria?" "Você está grávida?" "Esse não é o ponto. Você assumiu esse risco." " Você está grávida?" "Claro que não estou. Foi só uma noite. Da qual você se arrepende." "Não me arrependo. Eu precisava saber." "Se não se arrependesse você não faria o que vai fazer amanhã." "Entenda, por pouco eu não faço, mas é essa minha vontade. Eu desejo isso desde os doze anos. Como posso deixar isso de lado agora? Eu só precisava saber." "Não me venha com essa. Odeio a sensação de ser a última." "A única.", disse ele. "Não acredito." "Eu vim apenas para me despedir. Amanhã é o dia mais importante da minha vida. Eu esperei muitos anos por isso. Estudei muito. Então, vim dizer adeus. Espero um dia que passe o gosto amargo da minha boca." "Eu te amei.", disse ela. Ficaram em silêncio por algum tempo e terminaram seus cafés. Levantou-se e Clara não olhou nos olhos dele, nem se despediu. Ela tirou o pingente com uma cruz de seu pescoço e deixou no cinzeiro depois que ele saiu. Levantou-se e deixou o café, passando pela janela que observara enquanto o esperou.

21


Punctum & Fiaba

Em um jardim vivia uma formiga. Um canteiro de terra como outro qualquer. Da rachadura do cimento de seus limites fez-se a entrada de seu formigueiro. Esse era todo o universo desta formiga. Tudo que ela conhecia. Como nós sabemos, formigas não têm nome. Então a essa formiga, para facilitar meu ofício, será chamada de Tainá. Acontece que Tainá fora designada a uma função muito específica dentro do formigueiro. Embora ninguém entendesse os desígnios que comandavam a colônia, todas as formigas respeitavam. A função de nossa heroína, se é que podemos chamá-la assim, era seguir outra formiga e com ela buscar folhas para o formigueiro. Com isso, Tainá jamais havia liderado um caminho; por sinal ela, durante toda sua vida, havia caminhado olhando para o ventre da formiga que ia a sua frente. Claro que, contando assim, pode parecer que nossa protagonista não levava uma vida muito satisfatória. Mas ela era uma formiga e cumprir o seu dever era uma satisfação transcendente. E Tainá passava seus dias a seguir sua líder e a ajudando a carregar folhas. Um dia, sucedeu um acidente com a formiga que liderava seu caminho. Sem quem comandasse o trabalho, Tainá ficou sentada a esperar. Esperava sem saber muito bem o quê. Elaborou então o sentido de contemplar. Talvez na angústia de não saber o caminho, talvez por não saber a quem seguir, pela primeira vez, observou à sua frente mais que o ventre de uma companheira. Ergueu os olhos e observou onde restavam as folhas. Das folhas olhou além e viu, pela primeira vez, a dimensão do nada. Angustiada, procurou a presença de outra formiga. Ausência. Ainda contemplativa, passou a andar buscando dar sentido. O mundo se movimentava ao longe. O mundo era colorido e caótico.


Andou até que encontrou outra formiga, tentou conversar. Porém a formiga apenas seguiu sua tarefa. Tainá decidiu seguir aquela outra formiga e não entendeu sua tarefa. Seguiu-a até que a formiga desconhecida e calada entrou por uma rachadura diferente da que Tainá conhecia. Contemplou mais uma vez. E ali, parada, viu as flores caírem. Delicada chuva violácea. Seguiu pelas margens de concreto até encontrar sua abertura de costume, agarrou forte uma pétala disposta em frente, e com ela adentrou novamente para seu universo. E nesse ponto nossa protagonista deixou de ser Tainá e voltou simplesmente a ser uma formiga.

23


Elogio à Fábula

O menino estava sentado sobre a cerca. Nas estórias onde meninos sentam-se em cercas, eles não fazem muita coisa sobre elas, ficam ali, esperando que algo lhes aconteça. E este menino não era diferente, apenas que até aquele ponto de sua vida nada havia acontecido enquanto esperava. Passava os dias observando o caminhar das sombras, o dançar das plantas movidas pela música sutil do vento e um ou outro animal, de andar pacato, que cruzava a paisagem com muita pretensão. O dia estava terminando desesperançado. O menino se preparava para descer da cerca, caminhar com o sol avermelhado se escondendo, chegar em casa já na penumbra, tomar sua sopa com pão velho e dormir. Para, no dia seguinte, voltar à cerca, e, a cada sair, esperando por menos. Mas o fado daquele dia era diferente dos outros que o menino conhecera até aquele momento. Foi quando um improvável hipopótamo se aproximou do menino (aqui, obviamente, apenas nós sabemos que se tratar de um hipopótamo, porém, para ele, era um monstruoso e simpático animal; o menino não sabia o que era, como não saberia se a aproximação fosse, talvez, de um rinoceronte) e parou à sua frente, olhando com a cara redonda e olhos tristes para aquele serzinho que estava sobre a cerca. Caberia ao hipopótamo iniciar a conversa, mas este era tímido. O menino jamais poderia esperar que um hipopótamo falasse. Se imaginasse, saberia tudo que o animal poderia lhe contar. O menino saberia de onde vinha aquele ser desajeitado, saberia até se tratar de um hipopótamo, coisa que ele jamais descobriu. Se o hipopótamo tivesse vencido a timidez, poderia até ter contado ao menino uma estória, e esta ensinaria ao menino muitas coisas. Ele deixaria de esperar que algo acontecesse, e tudo mudaria.


Mas o menino correu. O hipopótamo, tímido, nunca mais se aproximou dos meninos sentados sobre cercas. O menino perdeu a esperança. Talvez por medo do inesperado, talvez por decepção.

25


Abstrato!

Sonhava. Sabia-se sonhando, pois não respirava. Mas não tinha bem certeza disso. Não havia relógios derretendo ou nenhuma outra cena de um quadro surrealista. Sentou-se esperando algo acontecer. Impaciente, levantou-se e meteu as mãos nos bolsos. Sim, estava bem vestido. Terno bem cortado e confortável. O relógio estava parado. Os dois ponteiros apontavam para cima e o dia era marcado por um significativo zero. Se não podia contá-lo, não havia por que reclamar do tempo perdido. A jovem que se aproximou era de praia. Pele branca escurecida pelo indefectível sol e longos cabelos castanhos com lampejos dourados. Era Alice de sorriso aberto. "Estou buscando um coelho." De súbito lhe veio a certeza que havia visto o felpudo passando. "Te ajudo." "Coelhos são muito importantes." "Sempre busquei coisas diversas de coelhos." "Deixe de lado o sempre." "Deixarei, mas não me soa bem a palavra 'importante." "As coisas são aquilo que lhe atribuímos. Já não podemos atribuir nada ao tempo. Os coelhos sim, existem." "A felicidade é como coelhos?" "Por que não seria?" "E a tristeza?" "Será se a ela atribuir existência." Respirou fundo e tentou definir o perdão que se esquecera de buscar em algum momento. Atribuiu importância.


"Um amolador dá importância às lâminas e um lavrador às laranjas. Escolhi coelhos por capricho." "E os encontra?" "Você não? Gosto quando eles se transformam em crianças, mas é mais bonito quando chove." "E se eu buscar o vento?" "Que delícia! O vento traz tudo que desejamos. É só não desejar enganado." "Como se deseja por engano?" "Se você desejar culpa, verá que não é bom. É assim em todo lugar. A regra não muda quando os relógios andam e o dia tem números. Deseja um coelho?" Não sabia desejar coelhos. Nem ao menos sabia se lembrava de ter visto um coelho na vida que não fosse um desenho. Alegremente, Alice gritou, já se afastando: "Abstrato! É só desejar abstrato!" Toda culpa foi embora e desejou.

27


Inesperado Gol

Quando André M. recebeu o telefonema, viu naquele trabalho apenas uma boa oportunidade de ganhar algum trocado. Cineasta, não conseguia se manter com o que realmente gostava. Ganhara fama em conseguir organizar os arquivos de vídeos amadores de ricaços e fazer filmes para ocasiões especiais. Quando lhe davam liberdade, conseguia entrevistar uma ou duas pessoas. Não sabia, porém, como poderia realizar o trabalho desta vez. Os arquivos que teria acesso seriam de um empresário recluso, cuja vida provavelmente pouca coisa teria de interessante. Além do mais, ele havia falecido já há alguns meses. Talvez alguma pista sobre sua personalidade, considerada por muitos, excêntrica. Um advogado da família explicou que todos os rolos estavam em um antigo frigorífico que ele havia comprado na década de setenta. Poucas pessoas tinham ainda películas guardadas, e André M. se interessou imediatamente. Foi explicado que era um enorme acervo de filmes, com pouca organização e que sua função não era montar um filme, mas de descobrir o que estava guardado para que pudesse ser vendido. De fato o arquivo era maior do que imaginava. O frigorífico funcionava apenas para conservar os filmes, e onde era o antigo escritório comercial foi feita uma pequena sala de cinema. Logo nos primeiros dias percebeu que o milionário havia comprado todo e qualquer rolo de filme que lhe aparecesse. Percebeu, com pouco mais de um mês de pesquisa, que muitos rolos estavam na ordem de lançamento nos cinemas paulistanos. Comprava os rolos que sobravam após as exibições. Alguns ainda estavam guardados com as notas. Descobriu, obviamente, rolos de filmes que, para muitos, estavam perdidos. Pediu prazo a seus novos empregadores para que pudesse classificar os filmes


com cuidado. Ao longo dos meses, se apaixonou reiteradamente por Claudia Cardinale. Tomou cuidado para que cada filme que assistia fosse convertido para o formato digital. Assistia de seis a sete filmes por dia, anotando e cruzando dados. Quando faltavam apenas os rolos guardados sem qualquer critério, passou a descobrir pedaços de filme, erros de gravações de clássicos, entrevistas e arquivos televisivos. Tudo era classificado e silenciosamente copiado. Já no meio destes cansativos arquivos aleatórios, em uma lata estava a inscrição nas letras cuidadosas do excêntrico colecionador: "Belíssimo gol na rua Javari". Pérola da coleção. Seria então o primeiro a assistir, depois de muitos anos, o famoso gol de Pelé. Rezava a lenda que este filme havia sido destruído no incêndio da Record. Colocou o rolo no projetor com o cuidado que era necessário. Sentou-se e a bola rolou livre. Não era o Santos. O filme era mais antigo que isso. Não se reconhecia o time que enfrentava àquele com a letra J gravada no manto. Assistiu com atenção. O jogo era lento, até que um garoto correu para o lançamento. A bola desceu entre ele e o zagueiro e sem tirar os olhos de nenhum dos dois, recebeu-a no peito encobrindo o adversário e, para escapar da falta, passou da linha da bola. Bola perdida, o desperdício de uma bela jogada. Não. Buscou a bola com o calcanhar e encobriu a si. Encarando o goleiro e a moldura que completaria sua arte, a bola não cai no chão, encontra o peito do pé envolto em couro. Violentamente. Não chegando a desenhar parábola até estufar as redes da Javari. Gol. Comemorou. Seu mortal gol. Não era o que esperava. Melhor. Jogada esquecida de um anônimo na semivárzea e filmada por acaso. Quase não percebeu a alegria de menino a pular. Alguém de seu time apontou para a câmera, o menino correu até a arquibancada e, com um gesto, pediu o filme.

29


Limpador de Para-Brisa

Foi quando ela abriu a porta e se pôs a sair do carro. Ele segurou a ponta de um longo casaco jeans que ela usava. O sobretudo que ele gostava. Um relacionamento não deveria acabar assim, não podia. Usou sua força e puxou-a de volta para o carro, já molhada pela chuva que insistia em cair. Eu não sei mais o que dizer, ouviu dela. Não diga nada. Não podia acabar assim. Não vai embora, não me deixe. Adrenalina em lágrimas, segurou o braço frágil com ainda mais força. Abandonado. Não posso. O mundo. Abraçaram-se. Sem namorada, sem mais passeios pelo Villa-Lobos, na noite sem carícias, vida solitária. Tirou a aliança de prata. Pega! É isso que você quer? Ela chorou. Não faz assim. Faço como eu quero, porra! Se é isso que você quer, pega a aliança, porra. Ela chorou. Era isso que ele queria. Vingança. Doía tanto que queria que ela chorasse. E devolva minhas coisas. Tudo objeto pequeno. Discos e livros. E um violão. Ele tinha outro, mas era seu violão. Ela pediu emprestado. Não tinha importância, duraria para sempre e iam casar, não importava se estava na casa de quem estivesse. Não durou. Ela chorou de novo. Não é isso que quero. Não assim. Você escolheu assim. Estava acuado, nesse momento o objetivo era causar o máximo de dano por meio de suas intempestividades. Ela chorou mais uma vez. Ele não agüentou e chorou. Eu te amei. Agora é diferente. Nada é diferente. Só é diferente por que você quer. Caiu um galho


grande de uma árvore em frente do carro. É melhor sairmos debaixo das árvores com essa chuva. Eu vou para casa. O desespero tomou o corpo dele e arrancou com o carro. Não foi exatamente a atitude que ela gostaria que ele tivesse. Mas ele não se importava com o que ela gostaria. Importava-se, sim. Estava em pânico demais para racionalizar suas ações. Ficaram em silêncio. Por muito tempo. É por isso que eu não quero mais. Você faz tudo do seu jeito. Silêncio. Me fala para onde estamos indo. Não sei. Não quero ficar parado na frente da sua casa. Não precisa ficar. Me deixa. Vai para casa. Ela estava cansada. Não sabia mais como dizer. Havia acabado. Ela precisava. Pára o carro. Para! Ele freou com força sobre as poças e o carro derrapou por alguns metros. Ela fez que ia sair do carro. Ele a segurou. Você se lembra daquele filme. Você me faz chorar. Preciso parar de chorar. De rir também? Agora parar de chorar é mais importante. Não somos personagens de filmes. Porra. E não eram. Ela não quis concordar. Eles viam comédias românticas demais no cinema. Ele adorava cinema. Ela gostava mais dele do que de cinema. É uma representação da realidade. E tão falsa quanto qualquer representação de qualquer coisa. Alguém sente aquilo. Alguém acha interessante dizer que sente aquilo. Não existe como discutir com você. Ele riu ironicamente. É só discutir com bons argumentos. Não é. Você não admite perder. Muito menos se for você. Você quis dizer para mim. Não. Disse você. Você é muito competitivo. Quer ser o melhor em tudo. Ele riu novamente. Achava que isso era uma qualidade. Você está me chamando de medíocre? Você não ouviu essa palavra da minha boca. Mas foi o que você quis dizer. Não fui eu que comecei essa conversa. Ficaram em silêncio de novo. Deu meia volta no carro. Parou novamente na vaga debaixo da árvore. Vai embora. Ela foi. Ela olhou uma vez para trás. Ele olhou para trás por muito tempo.


Boas Novas

Um bilhete sobre a mesa da sala. Hoje, ela não voltaria para casa. Deixaria de ser sua casa. Sirvo-me de um uísque vinte e um anos, guardado para ocasiões especiais. Bebo o conteúdo do copo em um gole. Lento. E abro a carta. Sem novidades. Completo sem gelo a próxima dose e tento desesperadamente sentir alguma coisa. Nem sequer a indiferença me atinge. E no meu quarto busco uma pequena garrafa de metal e alguns charutos cubanos. Meto-os nos bolsos do paletó e a casa fica para trás. Ainda no carro acendo o primeiro habano. Acelero a uma casa de tolerância. Escolho uma que não devo encontrar ninguém, uma barata. Bebo mais um gole de uísque e me inebrio com o tabaco para não sentir os cheiros acres do estabelecimento. Uma morena de olhos azuis estrábicos e pouca roupa me dá as boas-vindas. Uma loira com seios igualmente oblíquos dança pateticamente ao redor de um poste gasto e fosco. Nem ao menos me arrependo de estar aqui. Peço uma cerveja ao garçom com pinta de leão-de-chácara e ele me chama de doutor. Sento junto a uma mesa e aprecio o álcool e o tabaco. A dançarina vem me agradar, digo que não e a deixo para o próximo. Outras vêm e recuso. Quando apago meu charuto, deixo uma gorjeta ao garçom maior do que ele merecia, e me levanto. Na saída digo um gracejo financeiro à recepcionista dos belos olhos assimétricos. Ela olha para o brutamontes atrás do balcão, que ainda conta o dinheiro, e ele faz para que ela aceite meu convite. Ao entrar no meu carro, percebo que ela usa o mesmo perfume que minha mulher. Sempre disse a ela que fedia como puta. A garota chama-se Pamella, com dois "eles", e tem o nariz longo e reto. Grande, mas harmonioso. Pergunta-me se pode acender um cigarro e não me oponho.


No hotel, pago a ela o suficiente para que ela tenha um ótimo Natal. Estamos em setembro. Faço sexo burocrático. Por três vezes. Milagre da medicina. Espero ela dormir e deixo um bilhete no verso de meu cartão comercial: "Arrume um emprego de verdade. Procure-me segunda feira." Está amanhecendo e acendo mais um habano enquanto contemplo o amarelado frio da avenida. Vejo um palhaço malabarista atravessar em passos saltados a rua em movimento. Correndo, é atropelado. Deixa sua marca no pára-brisa do carro importado. Arlequinal. Banhados de sangue os transeuntes gargalham contagiados. Meu coração, sincera e finalmente, chora.


Barulho de Chuva

Sentiu falta das estrelas e buscou o céu. Sentiu falta da lua. E de tudo mais. Via-se transformado em um monstruoso engano. Lia livros demais. Nunca mais havia entrado em uma igreja. Crer era uma piada de mal gosto que Deus havia feito com ele. Era comunista. Materialista histórico. Supostamente era. Como supostamente era corintiano. Casou-se cedo, foi a coisa certa a fazer. Mal havia se formado na faculdade de direito. Como não tinha vontade de defender gente desonesta, foi trabalhar como jornalista. Essa era uma das opções dos formados pela São Francisco naquele tempo. Mas veio a revolução. Digo, Golpe. Aí, fodeu tudo. Foi perseguido. Entrou na clandestinidade e perdeu a mulher. Morreu de câncer sem ele nem mesmo ver. Foi preso e torturado e não se importou. Viu o amigo Vladimir pela última vez passando na frente de sua cela por uma fresta. Não se matou. Nem Vladimir. Os cheiros acres dos porões do II Exército ainda estavam presos a ele ao ser colocado da porta para fora no meio da noite. Teve medo de correr e ser morto em uma pretensa fuga. Sabia que não poderia ficar por ali. Tentou se lembrar dos últimos dez anos e não soube distinguir mais o tempo. Subiu as ladeiras da Vila Mariana e tampouco soube para onde ir. Queria enlouquecer, mas Deus havia pregado mais essa peça. Daquele primeiro de abril até esse Natal de 75 parecia ter acontecido tudo junto em apenas um instante. Cada dor que tivera fora eterna e lhe deixaria cicatrizes para vida. Não tinha dinheiro. Seguiu para casa de um amigo que ficara longe de toda agitação. Amigo de faculdade. Foi saudado com susto e dúvida. Medo. Sabia que não ficaria ali. Tentou pedir dinheiro, mas nem das primeiras palavras


escaparam do choro desesperado. Todas as lágrimas que escondeu dos putos dos milicos. Chegou em casa e ainda ouvia os barulhos. Da chuva e dos gritos. Trovão. Antes de chegar na janela, percebeu claras as marcas da invasão. Não lhe pegariam de novo. Decidiu. Virou de costas para a janela e o cenário se desmontou. A chuva, como se fosse ácido, corroeu em sua imaginação todo o concreto. Os casais se beijando. Alheios. O subjetivo. Materialista! Por Deus! Perdão! O cano do revolver iluminado por um raio. O trovão.



Ribalta

Olhou-se no espelho. Sentia a constante dor pressionando das têmporas ao centro das sobrancelhas. Bebeu o café. Um gole. Sobre a maquiagem branca delineou os traços circenses. A boca era pintada até as marcas do tempo, sob os olhos, uma lágrima. O coração batia tenso. O caminhar cadenciado, sobre o burro de pano, rangeu a madeira do palco. Melodia suave. A ritmada respiração de um menino atento na primeira fileira. Olhos arregalados seguindo a suavidade desengonçada. A precisão leve do engano fazia doer as juntas do artista. Estava velho. Já não sabia se rangiam as juntas ou as tábuas. A firmeza lancinante dos movimentos quase apagava as luzes que o miravam. Tinha dúvidas do primeiro tropeço proposital. O fado triste do palhaço talvez houvesse deixado de ser metáfora. Faltou-lhe uma respiração, de súbito. Il Cuore dellArlecchino. A gargalhada. Levantou-se do chão. Vibrante papel e tremor de vida. Entraram trotando seus apoios, malabaristas e rostos brancos. O tempo passa e, automatizado por cada diafragma incontrolável, saltam estripulias em transe. Ao final o aplauso. Agradece abraçando um discípulo de cada lado. Sem forças. Não está preparado para encerrar. O show deve continuar.


Samba na Rua

A voz feminina, ao telefone, era marcada por cigarros e excessos. Na ligação internacional, era quase reconhecível o timbre que um dia foi doce. Foi necessário identificação, marcas do tempo apagaram a lembrança. Talvez o tempo só instrumentalizou o esquecimento. Era Silvia que lhe falava. Quando doce foi Silvinha. Não ouvia aquela voz, ou o que havia sido, desde que, numa daquela noites de uísque, viu o gracejo avançado de Mário. Marião naquele tempo e antes. O recado era esse, o amigo estava morto. Silvia era a viúva. "Flávio" fez uma longa pausa."Ele pediu que viesse. Eu não queria. Deixou escrito. Tudo que queria e queria você aqui." Nunca quis mal o amigo, teria feito o mesmo. Silvinha era musa inevitável, mas Mário chegou atrasado e acabou por atravessar a amizade. Foi embora e desejou, só no seu íntimo, felicidade. Deixou Mário, deixou o violão. Foi para longe para viver sem o furor. Estava triste. Lembrou que conheceu Mário numa roda de samba, quieto, de olhos atentos ao batucar. Flávio, por sua vez, estudava violão clássico. Os dois, ainda meninos, desses que ainda não estão feitos, passaram a se encontrar em uma roda aqui e ali, notando a presença figurativa mútua quando iam ver os mestres. Um dia, quase sem querer, o violão de Flávio encontrou o tambor de Marião. Num desses muitos ensaios, nessas muitas rodas, um chegou para tocar e o outro sentou junto, a convite de um conhecido. Como se conhecessem por anos, tocaram sem ao menos trocarem palavras. Acompanharam, batucada e cordas, como ensaiaram tantos anos observando a velha guarda. Sabiam que o outro entenderia de onde veio a brincadeira.


Dali formou a banda. Quando o cavaquinho cansava, Flávio tocava dobrado. Quando os músicos guardavam os instrumentos e sobrava a percussão de um e o dedilhado de outro. Um dia, até na falta de qualquer coisa de bater, Flávio deu a Mário um violão reserva, que estava no carro para uma eventualidade, para que este batucasse. O violão ficou com Mário. Silvinha apareceu numa roda de samba. Era menina rica, sem muito que fazer e com muita vontade de dançar. Se Flávio soube falar com ela mais cedo, a raiz de Marião na velha guarda era adequada para a menina que queria ser diferente. E esse era o tempo em que os dois tocavam com todo mundo em todo lugar. Acabou que Mário fez a vida na batucada e o amigo foi estudar fora e se arranjou sem olhar para trás. Agora, Marião tinha ido embora e aquela que os separou o havia convidado para o velório. Deixou claro, iria por causa do amigo. No avião, ensaiou algumas coisas a dizer a velhos conhecidos. Vinte anos, talvez. Andava pelos corredores e, se não fosse pela longa turbulência, teria passado o vôo inteiro de pé. Chegou a desistir de aparecer, senão por três vezes, duas com certeza. Quando chegou ao velório, um rosto quase conhecido sorriu. Era um rapaz que tocava cavaquinho, acompanhou os amigos por uns seis meses, provavelmente o último. Estava inchado e as mãos de quem as usa para o trabalho pareciam não poder mais tocar o instrumento. E entre os dentes que lhe faltavam falou que era a Flávio que esperavam. Ao redor do caixão, estavam outros quatro, todos armados de seus instrumentos. O anfritrião sentou e na cadeira vazia estava o violão que Flávio dera ao amigo agora homenageado. Tirou o paletó, afrouxou a gravata e começou a dedilhar. Para que ninguém dançasse, mesmo sem prática, tocou um samba em sete. Nunca esquecera como fazer tal coisa. Mesmo sem ter um violão em sua casa, havia um em sua cabeça. Quando trocou uma nota, ninguém notou. Quando terminou, o silêncio. Respirou lento e tocou o samba que obcecava os dois. E o povo cantou


Ossanha. Levantou-se, com o violĂŁo apoiado no peito sem perder a batida ou errar uma corda. O cortejo seguiu pela rua. No ombro dos homens seguiu o caixĂŁo, que no transe o enterraram.


O Corpo

Naquela manhã, bem em frente da padaria, apareceu um corpo. Era uma mulher (alguns disseram que era uma menina) de boas roupas e absolutamente desconhecida a todos os frequentadores do estabelecimento. "Uma drogada!" - gritou um senhor. "Você chama todo mundo de drogado" - e era verdade. Aquele senhor já acusara a filha da senhora que replicava de drogada. Assim como o os filhos e netos de quase todos que estavam por ali. O padeiro estava preocupado. Se abrisse os portões, teria lucro ( já juntava uma multidão em volta do corpo) mas seus clientes teriam de pular o corpo para entrar, e isso poderia ser considerado ofensivo. Se fechasse a porta, seus clientes podiam perceber o inevitável: o pão três quadras acima tinha o mesmo preço e menos bromato. Podia perder clientes de qualquer maneira. Um jovem chegou e olhou com cuidado. Parecia uma colega do colégio, mas um telefonema já contrariou a teoria. Um repórter passou e tirou foto para o jornal. A polícia simplesmente não aparecia. Até que alguns curiosos, já enfadados da falta de respostas sobre o corpo da menina, resolveram que poderiam tirar fotos eles mesmos. Um homem, desses já feitos mas sem cabelos brancos, pediu para um amigo bater umas fotos: abraçou o corpo, fez pose e brincou. E veio a revolta. "pode ser filha de alguém!", "podia ser sua irmã!". E veio o linchamento. Da revolta, não se sabe muito bem quem, levantou-se o corpo, e a multidão poliforme seguiu a carregar a jovem em direção ao hospital, que sem espaço em seu necrotério negou armazenar a menina. A multidão seguiu em frente, e no rabo da revolta saíram médicos, enfermeiros, auxiliares e funcionários do hospital, em greve e carregando seus doentes até a autoridade mais próxima.


O rapaz linchado por conta da brincadeira chegou ao hospital com dificuldade. E este estava vazio.


Protocolo

I A máquina faz o café em ritmo lento. Ritmo mecânico. Leite e café em pó, açúcar e água. Beberagem sofrível na madrugada. Insone no hospital, Pedro ensaiou ligar o televisor da sala de espera. A máquina apita e ele tira o copo cuidadosamente pela portinhola que o monstruoso copeiro lhe serve. Gira duas vezes o palito de plástico. Hesita e mexe mais uma vez. Acomoda-se no sofá ocre que jamais faria parte de sua sala de estar (o tom é de incrível mau gosto e dificilmente combinaria com qualquer objeto) e tenta pensar em alguma outra coisa que não reflita sob a luz fluorescente daquele lugar. Sem sono e cansado demais para ler. A quietude do local já havia adiantado os estudos de mestrado para a alegria de seu orientador. O texto atormentado tomou corpo, o que em certas correntes acadêmicas era uma qualidade. Dormia quando era vencido pela exaustão e acordava com a boca seca de roncar, incomodava alguns enfermeiros que, quando viam o acompanhante perambulando na madrugada pela sala de espera, se aliviavam. Outros encaravam como piada, ainda mais porque a paciente, esposa de Pedro, não parecia se incomodar. Uma campainha quebra o silêncio. Auxiliar e enfermeiro se dirigem a uma porta que fica além da sala de espera e Pedro os vê passar com passo apertado, mas sem a ansiedade do inesperado. Aprendeu que poucas coisas são inesperadas em um hospital especializado. Não demora muito para uma senhora vir para a sala de espera. Ela olha para a rua. Ele conhece aquele olhar, é a tristeza e o alívio quase envergonhado. A senhora aperta os olhos com o polegar e o indicador da mão direita e chora por dor e vergonha. Copiosamente. Não há maquiagem para borrar. Alguns


instantes depois ela levanta a cabeça e estufa o peito, no que Pedro já entendeu ser o último esforço de uma longa jornada, o orgulho da derrota quase inevitável. No dia seguinte ela precisará consumir toda essa fagulha para resistir ao longo cerimonial. Pedro apenas observa esses instantes. Espectador de uma série deles. O fardo de sua insónia. Sinceramente, tenta não pensar em estar no lugar de tantos protagonistas que atravessam sua vista madrugada adentro. Na realidade nunca, nem por um momento, cogitou ser protagonista das mesmas cenas, que, como em um teste, repetem-se uma vez atrás da outra por pessoas absolutamente diferentes, cada qual com sua sutil interpretação pessoal.

II O sanduíche costumava demorar três ou quatro páginas nas mãos de Pedro. O suco, mais uma. Após, tomava notas sobre o que havia lido em uma folha dobrada ao meio que usava de marcador de páginas. Ao terminar um livro, cuidadosamente passava as anotações a limpo. Tinha tempo e uma bolsa de estudos. Marcou o livro e levantou-se para voltar a acompanhar a esposa. E assim, desapercebidamente, arrastou o olhar sobre as pessoas e prendeu a atenção em um rosto. Meramente semelhante ao que um dia havia sido um amigo. Sentado. Almoçando desconcertadamente como a maioria das pessoas que não vestem o branco. Naquele lugar, quem não é médico comia sem prestar atenção na comida. Pedro havia visto muito aquela expressão e concentrava-se nos estudos exatamente para evitar esse extravasar de desesperança. Naquele restaurante, no canto, não estava bem certo, via Antônio, desesperançado e perdido em seu próprio íntimo, em busca da motivação para


a próxima garfada. Quieto como aqueles que passam muito tempo em salas de espera e em quartos com meia-luz vendo alguém querido repousar. Aproximou-se tentando lembrar os traços comuns aos de um rosto adolescente agora homem, quase vinte anos depois, lentamente. O amigo o reconheceu no meio do caminho. Antônio estava mais grisalho do que o comum para a idade e seus olhos tristes nada se pareciam com os do garoto que costumava jogar bola de cabeça erguida. Abraçaram-se forte, em uma cumplicidade imediata. - Você? - Esposa. Estamos no sétimo andar. - Também, estamos no terceiro - falou Antônio. -Quanto tempo? - Seis meses. Ela reagiu bem com à químio. Mas estamos no meio do tratamento. - Estamos no final. Mas nosso final não é bom. Quero dizer, não é bom para mim, cara. Ela precisa descansar. Eu preciso descansar, mas não quero assim. Como se conformar com essa merda toda, porra? Silêncio. -

Desculpa, cara. Não estou legal - falou Antônio. -Vamos almoçar

amanhã. Vai ser bom não comer sozinho aqui. - Vamos, sim. Demorou alguns dias, mas almoçaram juntos. António estava cuidando de sua mulher desde o início da doença. Havia deixado o emprego para dedicar-se e agora se deparava com o vazio. As economias estavam no fim, beirava ao esgotamento em todos os aspectos em que a saúde pode ser identificada em uma pessoa e, contrariamente ao seu costume, não vencia. Os almoços se repetiam e Pedro descobriu que o amigo também sofria com a insónia. Tomavam, eventualmente, um café na madrugada, durante o qual pouco conversavam. O silêncio perturbava os almoços e em algum tempo Pedro voltou a ler e António, a mirar a desesperança. Sentavam-se juntos por mero costume.


III Ecoou pelos corredores um violino. O som quebrou a concentração de Pedro. Havia se acostumado com os barulhos rotineiros de um hospital. Mas a transgressão melódica causava estranhamento, deliciosa agressão aos sentidos calejados pelo ambiente etéreo. Sua esposa acordou e pediu que abrisse a porta, como quem abre a janela em uma casa no campo para deixar o dia e a vida entrar. As cordas tensionadas vibraram com clareza e Pedro calçou a porta para que não se fechasse. Segurou a mão de Paula, sua esposa, com firmeza. Não tardou que a música cessasse, certamente teriam reprimido tal subversão. Porém, quando estava por fechar novamente o quarto, dirigiu-se a ele uma senhora que se apresentou como promotora de eventos do hospital. Estavam levando alunos de um projeto social qualquer para tocar no hospital em comemoração ao Dia de Combate ao Câncer. Para ele, que ali estava de frente à senhora, explicar que combatia a doença todos os dias seria egocentrismo demais. Entraram dois rapazes, daqueles que já têm idade para raspar o bigode, mas ainda não o fazem. Colocaram seus violinos em posição, encostaram os arcos gentilmente. Inesperada elegância. O que parecia um pouco mais velho interrompeu a primeira nota e ruborizou. Esquecera de apresentar-a si e à peça que iria tocar. "Mozart escreveu esta peça para dois violinos." E se posicionou lentamente. Apesar da inaptidão de Pedro para a música, ele sabia que já ouvira execuções mais precisas da música. Os rapazes tocavam com dedicação e o quarto tornou-se pela primeira vez colorido. Dessa vez foi Paula quem agarrou firme a mão de seu marido e seu sorriso mais sincero em meses encontrou um caminho pelo seu rosto. Pedro chorou como até então não havia se permitido.


Quando a música acabou, agradeceram o presente. Paula consolou seu marido enquanto, em transe, não parou de chorar.

IV Revia suas anotações. Reler as anotações acalmava Pedro. Acostumou-se com os sentimentos de expectativa, porém devia controlar-se para que não contaminassem

o

ambiente.

A

esperança

e

as

expectativas

eram

diametralmente diversas para um paciente em tratamento. Sabia que um arrebatava o outro em uma situação em que tudo devia ser equilibrado, e, quando possível, controlado. Transparecer expectativas era injusto, desleal. Por isso repassava aquelas centenas de linhas manuscritas. Não queria pensar nas palavras impacientes de uma enfermeira que confidenciara sobre a reunião dos médicos no dia anterior. Era uma questão de contagem de células, um número que representava a simples condição de Paula poder entrar no carro e descansar na própria cama, com ele ao seu lado. Eram números aos quais ele havia se acostumado a pensar nos últimos meses, que fluíam para receptáculos cheios retirados metodicamente pelas enfermeiras no primeiro raio de sol da manhã. Naquela manhã preferiu desviar o olhar dos êmbolos e, para manter a mente longe deles, relia linha após linha tudo que havia escrito à mão nos meses anteriores. Tentava, em vão, imaginar quais informações relevantes não estavam sedimentadas em sua tese. Conhecia o ritual: antes do almoço um médico viria e diria que ele havia autorizado a alta. Depois ele seguiria uma burocracia entre papéis, assinaturas de guias do convênio, pagamento de despesas não autorizadas, como telefonemas e alguns detalhes que não somariam muito mais que duas ou três centenas de reais. Ficaria sem almoçar. E Pedro repassava o ritual em sua mente a cada linha. Não olhava o relógio e era quase insuportável.


Decidiu tomar um café. Caminhou até a sala de espera, vigiando se algum médico se encontrava no andar. No bolso, a cadência dos passos chacoalhava as moedas, no mesmo ritmo os olhos buscavam de um lado e de outro o jaleco branco de um médico encarregado. Gostava do som das moedas no bolso, por algum motivo lhe parecia quebrar a palidez das paredes. Na espera estava Antônio. Sério e duro. Desconsolado não era a palavra. Já não havia o que consolar. O amigo não tinha mais esperanças, apenas aguardava. Parecia que cada injeção de morfina que ele via ser aplicada em sua esposa entorpecia a ele. Impassível em sua seriedade e falta de objetivos. Estava claramente cansado. Contou a António sobre a confidência da enfermeira. Seria a última vez que sairiam do hospital. Todo protocolo havia se encerrado. O início da fase de controle estava próximo. Ele olhou fixamente nos olhos de Pedro enquanto este lhe contava as novidades, abraçou-o e desejou sorte. Talvez tenha sorrido, mas Pedro não chegou a ver a expressão. Tomaram o café em silêncio. Pedro voltou ao quarto minutos depois em sincronia com o chefe do departamento responsável por Paula. Tiveram uma longa conversa, e mais uma vez foi informado sobre o que deveria acontecer daquele ponto em diante da vida do casal. A reunião durou mais que o comum. Seguiu-se, então, a burocracia idêntica às anteriores.


Geladeiras Não Falam "We think too much and feel too little: More than machinery we need humanity; More than cleverness we need kindness and gentleness. Without these qualities, life will be violent and all will be lost" Sir Charles Chaplin

Encostou a agulha no velho disco de vinil. Sentou-se e limpou a mente esperando aquela seqüência de notas, daquele arranjo específico que costumava emocioná-lo quando mais jovem. Houve um tempo que ele podia quase chorar naquela execução. Já tentara beber um copo de uísque ou contratar mulheres. Ao entrar na vida adulta deixou de se emocionar. Aconteceu em algum ponto entre a cerimônia de casamento e o nascimento do primeiro filho. Gostaria de lembrar o momento exato que teve vontade de chorar ou de sorrir sinceramente, e sabia que acontecera naquele arpejo melodioso que esperava. Não que fosse indiferente. Sabia que era um bom pai, que seu filho o adorava e almejava sentir o mesmo. Se pudesse desesperadamente querer adorar seu filho, ele o faria com gosto. O casamento falido. Mais uma vez fez a coisa certa e deixou que ela se separasse. Ele podia viver com o prazer fugaz, mas ela não poderia contentar-se sabendo ser impossível o marido jamais seria feliz. Alguns poderiam dizer que ele estava deprimido, mas para isso era preciso que ele sentisse depressão. Foi em dois médicos diferentes e nenhum deles o diagnosticou assim. Não era um problema realmente, não estava, tampouco, infeliz. O momento que esperava. O breque, o tambor repicou dobrado e quando a primeira nota anunciou a segunda que cortava deliciosamente para o arranjo que ele ouvira por tantas vezes em vão a buscar o enigma de sua condição, o


disco pulou. Riscado. Foi acometido de desespero. Chorou por alguns minutos, decidiu. Abriu a porta e foi fazer algo que desejava.


Mattina

Vacilo no impulso de abrir os olhos. Em qualquer momento o alarme me obrigará a isso. Ouço os passos de um vizinho já apressado. Sei que, em todos os nove andares do meu prédio, as pessoas se movimentam. Estudantes andam pelas ruas e o ruído de suas conversas, ao atravessarem a Maria Antónia - como fiz durante quatro anos de minha vida -, me levam a um estado quase meditativo. Começo a planejar o trabalho e esqueço que, antes de tudo, tenho de escovar os dentes. Fui ao dentista, tirei o siso e escovar os dentes se tornou preocupação. Tenho medo de infecções. A amiga de uma vizinha minha teve infecção. Quando morava no interior, eu sabia de todos, vizinhos e amigos dos vizinhos e, às vezes, dos primos dos amigos dos vizinhos. Agora, sei apenas dos passos acelerados de meu vizinho, dos ruídos que vêm da rua e do silêncio de meu apartamento. Me sinto sozinha. O despertador não toca e fico com medo de morrer. O Sol bate no meu rosto. Abro os olhos. M'illumino, á'immenso.


Estudos sobre a Leveza - 3a Edição julho de 2014 TORRES, Fernando de F. L.

REVISÃO

Ellen Barros Eric Novello


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.