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BLACK PANTERA PÕE FOGO NOS RASCISTAS
by comlimone
“PADRÃO É O CARALHO!” Fotos: Ariela Bueno /Divulgação
Por Lucas Vieira
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Durante uma festa, o baixista mineiro Chaene Gama ouviu uma canção sertaneja que trazia uma ideia preconceituosa em sua letra: “A coisa tá feia, a coisa tá preta”. Na cabeça do músico, a frase racista se transformou. “Eu pensei: ‘Porra, não! A coisa tá linda, a coisa tá preta! A gente é preto e é lindo pra caralho, não tem essa que só existe um padrão de beleza’”. Da militância contra todos os preconceitos e da quebra de padrões nasceram os principais temas das músicas de Ascensão, terceiro disco da banda mineira Black Pantera, que conta também com os músicos Charles Gama (guitarra e voz) e Rodrigo “Pancho” (bateria) em sua formação. Obra que se destaca justamente por ser preta, linda e fora dos padrões, Ascensão teve seu primeiro single disponibilizado em janeiro. “Padrão É o Caralho” tem discurso direto e a sonoridade mistura o punk com diferentes vertentes do heavy metal, fazendo com que o Black Pantera não se enquadre em nenhum rótulo. É uma proposta musical de esquerda, a favor das minorias, defendida por um power trio em que todos os músicos são negros, algo muito incomum no universo do metal no Brasil. A partir dessas ideias, o trio criou uma letra em que incentiva seu público à aceitação - “Sinta-se bem, não seja escravo de um espelho” - e questiona os padrões eurocêntricos da sociedade: “Em um mundo de vaidades, quem decide o que é feio?”. “PADRÃO É O CARALHO!”BLACK PANTERA MOSTRA O PODER DE UMA BANDA DE ROCK FORA DOS PADRÕES NO NOVO Ainda confrontando tradições e o embranquecimento da história, protesta na última estrofe: “Jesus não era branco, não era ariano! A vida começou no continente africano!”.
DISCO ASCENSÃO
Já em “Estandarte”, gravada com a banda Tuyo, falam abertamente sobre todas as formas de amor - “O amor é aquilo que faz, ele não diferencia os iguais. Quais são as cores da bandeira, quais são as cores do amor? - e contra a hipocrisia: “Saíram do armário, assumiram o preconceito, em nome da família, em nome do respeito”. O grupo comenta sobre a música: “Não é nosso lugar de fala, mas a gente vê que essas pessoas também sofrem apenas por existir e querem ser livres. Lembro que um fã mandou uma mensagem dizendo que a gente deveria ter uma música LGBTQIA+ e dissemos para ele aguardar que ela já estava gravada”.
Da mesma forma, o fato de morarem em Uberaba soma-se aos pontos fora da curva. Segundo os músicos, não há vontade de sair do interior de Minas Gerais para morar no eixo Rio - São Paulo. Inclusive na faixa “Não Fode o meu Rolê”, em que voltam ao tema da igualdade (“Não vem nos rotular, não vem nos enquadrar, são todos iguais sim”), celebram Parque São Geraldo, Conexão Leblon e Coreinha, localidades da cidade em que se criaram.
FOGO NOS RACISTAS
O racismo vivenciado pelos negros desde o começo da vida, apareceu logo em um dos primeiros shows do Black Pantera. “Eu lembro que a gente foi tocar em um festival aqui na região e, quando estávamos pegando nosso equipamento, um metaleiro nos viu e falou: ‘Vish, vai virar pagode agora?’. Nós fizemos o melhor show da noite e o cara depois apareceu pedindo desculpas, porque sabia que a gente tinha ouvido o comentário. A nossa resposta foi que a gente não esperava menos desse tipo de pessoa preconceituosa”, relembra Chaene.
Outro momento em que o racismo foi muito agressivo para a banda aconteceu na Itália, na mesma viagem em que a banda se apresentou no festival Download 2017, em Paris. “Fomos os únicos parados em um posto de gasolina. Os policiais começaram a perguntar o que a gente estava fazendo, pediram passaporte, procuraram drogas. Quando falamos que éramos músicos brasileiros, revistaram a van inteira e, como não acharam nada, disseram que os pneus não estavam em condições para que seguíssemos viagem. Fomos obrigados a pagar um guincho de 500 euros e eles ficaram lá rindo e tirando onda, o racismo foi visível”, relembram os membros em entrevista ao canal WikiMetal, no YouTube.
As situações de preconceito vividas diariamente serviram de inspiração para o trio compor “Fogo nos Racistas”, canção lançada como segundo single de Ascensão. A banda chama atenção para o combate aos intolerantes, que não aceitam os negros em lugar de destaque na sociedade - “Eu sei, nossa simples existência já é uma afronta, os demônios em você não aguentam ver outro preto que desponta”. Sucesso no YouTube, o clipe da canção é carregado de simbologias e já nos primeiros segundos, a frase de Malcolm X - uma das maiores influências do movimento pelos direitos dos negros em todo o mundo - dá clareza ao discurso da música em poucas palavras: “Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”. Ogum, orixá do fogo, do metal e da guerra também aparece no clipe, representado após os membros do Black Pantera realizarem uma consultoria sobre como incluí-lo no clipe de forma respeitosa com as religiões de matriz africana.
Outra personagem importante do clipe é Madalena Giordano, mulher negra que foi submetida ao trabalho escravo desde a infância e, em 2020, foi resgatada aos 46 anos. Madá, como é chamada pelos amigos, também vive em Uberaba e foi apresentada a Chaene em um show que o baixista realizava na cidade: “Eu estava tocando e me perguntaram
se eu a conhecia. Chamei a Madá até o palco e a apresentei ao público. Quando ela fez sua festa de um ano de liberdade eu fui convidado. Foi nesse evento que a convidei para participar do nosso clipe e ela aceitou na hora”. O baixista acrescenta: “a maior forma de resistência é uma mulher preta. Aquela mulher é a personificação do que é resistir. Hoje ela tenta aproveitar a vida, sorri, faz natação, bebe, dança, gosta de música, de ver as bandas. Ela merecia tudo de bom, viver 150 anos para compensar tudo que ela passou. Viva a Madá”.
Assim como a presença de Madalena Giordano, a força da mulher negra está estampada na capa de Ascensão. A imagem foi captada pelo fotógrafo Victor Balde em Moçambique e apresenta as modelos Ana Francisco e Carolina Antônio em releitura de fotografia de Giovanni Marrozzini para a série “Nouvelle semence” (2010). A arte em breve estará disponível nas versões físicas do álbum, que foram lançado em CD e LP.
Ainda que seja uma obra para provocar reflexão, sua agressividade gera também estranhamentos e preocupações. “Eu estava na casa da minha mãe um dia e um brother passou, disse que adorou o som, mas que seria bom a gente fazer uma nota dizendo para não botar fogo em ninguém. Tive que explicar que o fogo é exclusão dos racistas da sociedade, é colocá-los em seu lugar. Nós pretos já estamos cansados de ter que explicar tudo com o racismo tão estruturado na sociedade. Se você assiste a um noticiário, lê um jornal, vê a quantidade de notícias sobre negros e casais gays que sofrem violência todos os dias. Então, a violência do título da nossa música não é nada perto do que a gente sofre todos os dias”, comenta Charles.
Chaene conta que seu pai também fez um questionamento, preocupado: “Meu pai uma vez perguntou se a gente não tem medo, ainda mais vendo células neonazistas crescendo todos os dias. O lance que eu vejo é que, por enquanto, a gente tá lutando só por igualdade, equidade. Se fosse por vingança o bicho pegava, porque os declarados negros e pardos no país são maioria. Mas aqui no Brasil não é como os EUA, onde a galera quebra delegacia e vai pra cima. Por enquanto a história é literal: denuncia os caras, faz eles serem presos e faz essas pessoas terem medo. Tão matando os irmãos, tão matando as irmãs e isso é sério. Quem ouve e critica a ideia dessa música é porque tem medo mesmo”.
É exatamente olhando para o racismo dentro do universo do heavy metal que o Black Pantera se posiciona como resistência, para mostrar que o lugar do preconceito é no lixo. “Existem muitos reacionários, mas nosso público só cresce, então o som chega a mais pessoas e é isso que a gente quer: ocupar todos os espaços e quebrar barreiras, para que aqueles que lutam contra o preconceito cheguem junto. A gente quer ver mais bandas pretas, bandas de mulheres, bandas LGBTQIA+”, afirmam.
E não é só pelo universo do rock e do metal que o Black Pantera gosta de transitar. Para os músicos, estar em festivais com artistas de gêneros musicais completamente diferentes também é importante, conforme revelam: “É incrível tocar em Belém tendo a Pabllo Vittar, o Baco Exu do Blues e um artista regional no mesmo dia. A gente ouve as pessoas dizerem que nunca se sentiram representadas em um show de rock e se sentem assim no nosso. Ouvir que somos necessários transformou a gente. A banda hoje é maior que nós, passamos a estudar e ler mais por conta disso”, conta Chaene, que revela estar lendo o livro “O Quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista”, do autor negro Abdias do Nascimento.
Com essa postura, a banda também conquistou fãs que desempenham papéis de destaque na luta pelos direitos dos negros no Brasil. Um deles é Silvio de Almeida, advogado, filósofo e professor universitário que também atua como presidente do Instituto Luiz Gama. “A gente conversa muito pelo WhatsApp, ele separa coisas para a gente ler”, revelam os músicos. Outra fã assumida é Luana Genót, fundadora e diretora executiva do Instituto Identidades do Brasil: “Ela fala que escuta nosso som quase todo dia, gosta muito de ‘Padrão é o Caralho’. É uma pessoa incrível, nossa madrinha. Graças a ela que vamos para o Rock in Rio, ela promoveu o encontro que gerou nosso convite para o Palco Sunset”.
Assim, sabendo que o racismo está diariamente na jornada do Black Pantera, os integrantes fazem questão de ressaltar que a origem do rock é negra e que é preciso lembrar dessa história: “Tem gente que replica racismo e isso precisa mudar. Se as pessoas soubessem a história do rock’n’roll, seria diferente. Não adianta só falar de Beatles e Elvis, tem a Sister Rosetta Tharpe, por exemplo, e o Death, que surgiu antes do Ramones na história do punk. Existiu gente preta na criação, no cerne de todo o rolê. Uma banda de pretos incomoda”.
UMA BANDA EM ASCENSÃO
Ascensão é o terceiro disco do Black Pantera, antecedido por Black Pantera Project (2015) e Agressão (2018). A história da banda começa com o guitarrista e vocalista Charles Gama que, cansado de tocar versões de músicas famosas na noite (fazendo até um cover de Michael Jackson), resolveu montar um projeto autoral. O músico foi desacreditado pelos amigos, que não achavam ser possível um trabalho de composições próprias fazer sucesso em uma cena marcada pelo pop-rock e pelo sertanejo. Convicto, começou a fazer as músicas que integrariam o repertório inicial do seu projeto.
Inclusive Chaene, irmão do guitarrista, também não acreditava no projeto até conhecer as músicas, já no dia da gravação. O baixista relembra: “Eu não queria participar nem emprestar meu baixo. Mas nossa mãe insistiu e eu disse pro meu irmão que só iria pro estúdio depois que as guias estivessem prontas, achei que ia gravar tudo de uma vez só. Pensei que seria um trem de dois, três acordes, e na hora que ouvi aquele som cheio de nuances, baterias pesadas, eu falei: ‘Pô, Charlim, que coisa é essa?’ e ele respondeu: “É meu som, fi!”.
A música sempre esteve presente na vida de Charles e Chaene. Quando eram crianças, o pai dos músicos trabalhou na área de eventos, excursionando com artistas e trazendo o universo musical para perto dos filhos. A mãe também teve importância fundamental na cultura dos artistas. Trabalhadora doméstica, trazia para a dupla os quadrinhos doados das casas em que trabalhava. A família tinha um gosto musical variado. Entre os LPs que ouviam estavam obras de Michael Jackson, Queen, James Brown e Metallica.
Da mesma forma, a cultura pop tem grande espaço na vida dos mineiros. Além de mostrar sua geladeira cheia de adesivos de personagens como Deadpool e Darth Vader - além de um “Fora Bozo”, que o baixista faz questão de destacar -, Chaene revela que tanto ele quanto o irmão são fãs da TV Manchete, extinto canal televisivo que tem espaço cativo no coração das crianças das décadas de 1980 e 1990, pela programação que incluía animes e tokusatsus como Cavaleiros do Zodíaco, Shurato, Changeman e Black Kamen Rider - esse último, o favorito do músico, que ainda guarda um boneco de época que ganhou de presente da mãe.
Esse gosto do Black Pantera pela cultura pop fica claro também nas músicas de Ascensão. “Anti Vida” é baseada na equação de mesmo nome presente na mitologia dos quadrinhos da DC Comics. Segundo a ficção, a fórmula procurada por Darkseid, vilão das histórias da Liga da Justiça, dá ao seu usuário a capacidade de controlar todas as formas de vida sencientes do universo, destruindo todas as suas vontades. Chaene usou o conceito para fazer uma crítica à situação política do Brasil, ao governo Bolsonaro e ao negacionismo tão presente durante a pandemia. “A equação anti-vida tira a vontade de viver das pessoas, transformando-as em zumbis. É uma crítica a esse desgoverno, em que vivemos entre luto e luta, com esses negacionistas que são piores que o vírus”.
O último integrante a entrar no grupo, Rodrigo “Pancho”, também não acreditou de cara no projeto autoral de Charles. A amizade deles teve início na cena musical de Uberaba, onde começou sua carreira tocando percussão em grupos de samba. Ao lado de Chaene, tocou na banda
B4, em que criou um entrosamento com o baixista que seria fundamental para o power trio. Atualmente, também tocam juntos com diversos artistas de forró e outros gêneros como freelancers, quando não têm nenhum compromisso do Black Pantera agendado.
Após se recusar a gravar o primeiro EP do Black Pantera, o baterista pirou ao ouvir as duas primeiras músicas depois de prontas, e ficou doido para participar do grupo. “Ele zicou tanto que o primeiro batera quis sair e o segundo não deu conta. Só aí que rolou de ele entrar na banda”, conta Chaene.
Rodrigo compõe o visual da banda utilizando uma máscara da série La Casa de Papel. Considerado um rebelde por seu trabalho surrealista no começo do século XX, o pintor espanhol Salvador Dalí empresta seu rosto para o disfarce utilizado pelos personagens da obra, que realizam um assalto como ato de resistência contra o sistema. Em um ensaio, o baterista chegou com o adereço. Havia passado em uma loja para comprar uma fantasia para o filho, viu o disfarce entre os produtos e gostou. “No começo, muita gente via aquele cara mascarado no palco e não sabia que era o Rodrigo. Foi assim que nasceu o personagem Pancho que, para ele, é um alter ego. Ele diz que a máscara é como um elmo, ele veste e se sente pronto pra guerra. Ele fica gigante”, conta Chaene.
A princípio, o nome do personagem, “Pancho”, agradava a Rodrigo esteticamente. Porém, uma descoberta inusitada fez com que a alcunha adquirisse um motivo espiritual. Os colegas de banda revelam que um dia perguntaram ao baterista que, se surpreendeu com a coincidência: “esse nome é por causa do seu avô? Ele também tinha o apelido de ‘Pancho’”.
Assim como os personagens de La Casa de Papel, o Black Pantera também tem sua forma de protestar contra o sistema capitalista e a opressão social em Ascensão. Em “Evilcred”, canção inspirada nos baixos poderosos do Fishobone, dos primeiros anos do Red Hot Chilli Peppers e no peso do funk metal, a banda critica os bancos: “Todo brasileiro é fodido, endividado. O pobre tem que dividir as compras, financiar, e o sistema só lucra com isso”, comentam.
Também sobre a situação política e econômica do Brasil, a canção “Revolução É o Caos” surgiu de um riff de guitarra de Charles, com letra feita em parceria com Chaene. O som é direto, pesado, e nas palavras do guitarrista “fala sobre a sociedade atual, a gente joga na cara tudo que está acontecendo e como as pessoas estão
lidando. Para mudar vai ser preciso uma revolução que só pode ser caótica. A gente enxerga o caos de várias formas, como a votação nas urnas e o caos diário do pai que sai para trabalhar e sofre várias humilhações em seu cotidiano, por exemplo”.
O baixista complementa: “Parte também da questão abolicionista, foram muitas batalhas para libertar os negros, nossa liberdade floresceu do sangue desses negros e de diversas outras batalhas, pelo direito das mulheres também, por exemplo. Tem horas que a gente precisa ser mais Malcolm X do que Luther King. É uma letra brutal, pode ser que, depois que a galera ouvir essa música, passe a querer usá-la em alguma manifestação”.
Olhando para o Brasil, o trio lamenta: “A banda está evoluindo, mas parece que as coisas no país foram só piorando”. A situação política do país também foi a inspiração para “Delírio Coletivo”, que trás muitos protestos contra o presidente Bolsonaro: “Foi uma canção que saiu rápida, com letra do Chaene. É um questionamento sobre como um cara desses pode chegar ao poder sendo negacionista, racista e preconceituoso, matando mais de 600 mil pessoas com suas atitudes na pandemia. Se a gente pegar o que tá rolando no Brasil agora vai precisar de mais de 10 anos para mudar. Então, se ele foi eleito pela maioria, tá todo mundo louco, vivendo um delírio coletivo”.
Ao fazer uma análise da banda chegando ao terceiro disco, Charles reconhece que o primeiro disco soa mais inocente - “apesar do seu poder de fogo” -, que o entrosamento melhorou em Agressão e que agora o power trio encontra-se mais maduro. “Como músico, melhorei bastante. Canto melhor, sei controlar os agudos e graves da minha voz. Tocar com o Chaene e o Rodrigo é muito bom, eu pensava muito em power chord e os caras têm essa coisa de tocar tudo, se pedir para tocar xaxado eles tocam”. “O pai do Rodrigo chegou a parcelar nossas passagens em 12 vezes no cartão dele na primeira vez que fomos para a França, porque o cachê não cobria”, recordam. A história começa a mudar em 2018, ano de lançamento do segundo álbum, Agressão. Foi quando se apresentaram na Virada Cultural, em São Paulo, e se aproximaram de Adriano Zanetti, atual empresário da banda, que conseguiu que realizassem diversos shows entre os anos de 2018 e 2019.
Entre as apresentações marcantes desse período, a banda destaca a abertura do show do Dead Fish, durante o lançamento do álbum “Ponto Cego” (2019). “A gente foi com tudo e a galera ficou impressionada. O Rafael [Ramos, diretor artístico da Deck Music] estava na plateia e nos procurou depois do show, disse que iria nos ligar e fechamos o contrato”, relembram.
Tanto pela admiração como em forma de agradecimento, a banda convidou Rodrigo Lima, vocalista do Dead Fish, para participar de Ascensão. O músico participa da faixa “Dia do Fogo”, composição que critica as queimadas na Amazônia tendo como pano de fundo uma lenda indígena ianomâmi. Popularmente, 10 de agosto de 2019 ficou conhecido como Dia do Fogo, data em que produtores rurais do Norte do país teriam iniciado um movimento para incendiar áreas da maior floresta tropical do mundo.
Com contrato assinado com a Deck, a banda lançou em 2020 o single “I Can’t Breathe”, em homenagem a George Floyd, negro estadunidense brutalmente assassinado pela polícia. No mesmo ano, lançaram o EP “Capítulo Negro”, em que trouxeram para o seu universo musical três composições de diferentes autores da música brasileira: “Identidade” (Jorge Aragão), “Todo Camburão Tem um pouco de Navio Negreiro” (Alexandre Meneses, Marcelo Lobato, Falcão, Marcelo Yuka e Nelson Meirelles) e “A Carne” (Seu Jorge,
O LONGO CAMINHO ATÉ O TOPO
O caminho até Ascensão foi longo para o Black Pantera. Com as atividades da banda iniciadas em 2014, foi apenas em 2019 que deixaram de ser independentes - “Até então era só nóis por nóis”, relembra Chaene. Em busca de conquistar novos espaços, Charles enviou as músicas do trio para o Afropunk, projeto que incentiva e divulga a cultura negra através de seu site e, também, pelo festival que ocorre desde 2005 em diversos países como Estados Unidos, França e Brasil.
Como quem joga uma garrafa ao mar, Charles não sabia se haveria um retorno relacionado ao link do Soundcloud enviado no inbox do Afropunk no Facebook. A resposta veio em forma de uma resenha sobre as quatro primeiras músicas do trio, publicada em 22 de dezembro de 2014 e assinada por Nathan Leigh. No texto, o colaborador do site diz: “A interação entre os membros aproveita ao máximo sua formação mínima. A banda é pura força da natureza, força mínima destrutiva”.
A postagem da resenha nas redes sociais do projeto trouxe visibilidade internacional para o Black Pantera. Usuários de diversos países passaram a seguir a banda, o que fortaleceu a hipótese de o trio tocar fora do Brasil. Assim, em 2016, antes de se apresentarem em capitais brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, os músicos mineiros fizeram seu primeiro show internacional, no festival Afropunk em Paris. No ano seguinte, voltaram à França para o Download, evento que também contou com Slayer, System of a Down e Green Day em seu line-up. Em 2018, foram aos Estados Unidos, onde também tocaram no Afropunk, em edição realizada no Brooklin, em Nova Iorque.
Em momentos em que precisaram de investimentos, recorreram a rifas, financiamento coletivo e contaram com a ajuda de amigos e da família -
Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti). A obra foi lançada também em formato de curta metragem, disponível no YouTube.
A luta para conquistar espaço no mercado fonográfico está representada nas letras de Ascensão. Em “A Besta”, a banda fala sobre “botar os bichos pra fora”, conforme afirma Charles: “A besta é a gente, nós fazemos uma correria todos os dias que não é vista. Então, também é para dizer a quem não gosta que respeite, porque tem um trabalho ali que ninguém vê, e porque a gente passa por muita coisa”. Já em “Eles que Lutem”, o recado é empoderador: “Vão querer te dizer qual é o seu lugar, vão querer te convencer a não acreditar. É preciso entender, não vão te aceitar. Nada pode nos deter, eles que lutem!”. A cultura pop aparece mais uma vez nos versos da canção: “Não tem joia do infinito, não tem esfera do dragão, não tem gênio da lâmpada, não tem padrinho nem varinha de condão. Só existe a vontade de chegar”.
Charles avalia o novo momento, com a banda fazendo parte de uma gravadora, como muito prazeroso: “A mudança é enorme. Antes éramos só nós três, agora existe uma equipe que rala muito, tudo aumentou. Nos sentimos orgulhosos de tudo que corremos atrás pra chegar nesse nível onde se facilita muitas coisas. Ter várias pessoas cuidando do nosso trabalho o engrandece muito, afinal não se trata apenas de criar músicas”.
DO ESTÚDIO PARA A ESTRADA
O repertório de Ascensão se estruturou no final de 2019 e os planos eram realizar uma turnê em Portugal com quatro shows e, na volta, gravar o novo disco no Rio de Janeiro. Porém, com a chegada da pandemia, em março daquele ano, a história mudou. Com o novo cenário, a banda passou a ensaiar menos, enfrentaram períodos de pouca perspectiva financeira - em que contaram com auxílio da gravadora -, e se encontraram, ainda que com pouca frequência, para o lançamento de “I Cant Breathe” e “Capítulo Negro”. Foi em outubro de 2020 que voltaram a se ver com regularidade, ainda tomando os cuidados necessários contra a Covid-19.
Já com o repertório ensaiado, a banda viajou para o Rio de Janeiro para realizar as gravações. Ficaram hospedados no apartamento da Deck, na Barra da Tijuca, e só se deslocavam para ir até o estúdio. A ideia era que a gravação durasse duas semanas, porém, foi realizada em um tempo ainda menor: 13 dias.
O ritmo foi bastante intenso. Ao lado do produtor Rafael Ramos, a banda costumava chegar ao estúdio às 13 h e voltar para casa às 3 h da manhã. “No primeiro dia, o Rodrigo comprou 200 Salonpas, porque ele gravou por 12 horas e ainda faltavam oito guias para finalizar”, relembram os colegas. Chaene gravou as linhas de baixo em dois dias, com muitas repetições para encontrar o take perfeito. Charles revela que trabalhou com o mesmo vigor e contou com duas guitarras e um set de pedais incrível nas sessões.
Apesar das gravações terem ocorrido em 2020, a banda decidiu que
só lançaria Ascensão quando a pandemia estivesse mais tranquila. O motivo foi que queriam poder levar o álbum para os palcos assim que fosse lançado: “A gente tinha noção de que não ia sair tão rápido, porque, quando terminamos de gravar, a pandemia cresceu ainda mais. A gente queria lançar como fez agora, podendo sair marcando shows a rodo, a galera agora está vacinada. Muitos artistas lançaram discos maravilhosos nesse período e perderam o timing dos shows, não queríamos que isso acontecesse”, revela Charles.
A canção que abre o álbum, “Mosha”, foi feita, nas palavras da banda, “para entrar com os dois pés na porta”. É uma das primeiras composições feitas em parceria pelos três membros do Black Pantera, construída para ser a abertura do disco desde que o riff surgiu. Além da energia, a canção fala sobre o mosh (transformado aqui no verbo “moshar”) ou mosh-pit, espaço comum em shows de metal e punk onde parte do público se reúne para dançar e curtir a apresentação entre empurrões, pulos e até saltos do palco para a plateia (o stage diving). A “arte de moshar” tem como origem considerada os shows da banda Bad Brains, uma das grandes influências dos uberabenses, que gritava ao seu público, com sotaque jamaicano, a frase “mash it up” (em tradução livre, “batam uns contra os outros”).
A canção é também uma declaração da saudade que o Black Pantera sentia dos palcos durante a pandemia. Com álbum lançado em 11 de março, a banda iniciou sua turnê dois dias depois, com show em Uberaba, que contou com abertura das bandas Ferpanozoi e Clandestinos, dois grupos conterrâneos de música autoral. Até a data de fechamento desta edição, a turnê contava com 12 apresentações marcadas, entre os estados de Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro.
Entre os destaques da turnê, está o show que o Black Pantera irá realizar no festival Rock in Rio, em 2 de setembro. Abrindo o evento no Palco Sunset, o grupo dividirá a apresentação com o trio pernambucano Devotos, banda punk em atividade desde a década de 1980 que é uma lenda no underground brasileiro.
O convite foi motivo de emoção para os dois grupos, que se preparam para esse momento histórico. Chaene conta: “A gente ligou pro Cannibal [baixista e vocalista do Devotos] e ele não acreditou, disse que era um sonho da vida dele tocar no Rock in Rio. Para a gente também é um sonho: duas bandas pretas de punk, em formato power trio, com ideologia parecida juntas. Nossas vozes vão ser as primeiras a serem ouvidas no festival e vamos nos apresentar no mesmo dia do Living Colour. O que a gente mais quer agora é tocar essas músicas e preparar esse show. Ascensão está chegando”.