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O APOCALIPSE DE VANESSA

Por Fernando de FreitasO DOCE APOCALIPSE

Foto Vanessa Curci /divulgação Na primeira metade dos anos 90, a cena musical paulistana era mais uma vez efervescente. Em um apartamento na Heitor Penteado, viviam Chico Cesar e Zeca Baleiro, que, entre trabalhos aqui e ali, tocavam na noite da zona oeste paulistana. Ainda, naquele tempo, a Vila Madalena guardava o romantismo boêmio e não era difícil encontrá-los por lá, tocando ou confraternizando, na companhia de Vanessa Bumagny. O Brasil vivia um rescaldo da eleição (e impeachment) de Fernando Collor e uma certa esperança de estabilidade monetária e política. Era um momento em que parecíamos viver um país agridoce. Essa sensação marcou a geração e permeou os melhores trabalhos do trio, que seguiu carreiras entremeadas e independentes. Entre as desilusões e esperanças, Vanessa lança o álbum “Cinema Apocalipse”, que traduz um novo momento de sentimento agridoce ao que vivemos e a faixa que quase dá título ao álbum, “Cinema Ilusão”, tem a participação dos amigos.

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OS PLANOS ATRAVESSADOS

Com a intenção de manter certa periodicidade de 5 ou 6 anos entre cada álbum, Vanessa estreou “De Papel” (2003); na sequência lançou “Pétala por Pétala” (2009), com produção assinada por Zeca Baleiro, e “O Segundo Sexo” (2014); então, entre 2019 e 2020, era o momento de lançar mais um álbum. Compositora contumaz, Vanessa conta ter mais de 300 canções e a escolha de um repertório começa pelo resgate destas músicas e o encontro com um tema. Porém, nem sempre foi assim, ela conta que demorou muito para se legitimar como compositora, o que aconteceu no período que viveu em Barcelona. “Cinema Ilusão” daria nome ao projeto, uma canção de desamor com tons de otimismo. Porém, durante o processo do álbum sobreveio a pandemia de Covid-19 que passou a marcar o trabalho. Tendo planejado o lançamento de um álbum para 2020, com a pandemia veio a mudança de planos. “Eu pensei: não vou lançar um álbum na pandemia, vou lançar, no máximo, um single, um disco, um álbum, não tenho coragem”. O trabalho passou a ter novo cronograma e passou a chamar “Cinema Apocalipse”, com uma referência à “Canção para Ninar o Apocalipse”. Essa tensão entre a ilusão e o apocalipse se torna, no trabalho de Vanessa, o distanciamento em relação à câmera de cinema, e ela, a diretora que escolhe cada enquadramento destas crônicas do absurdo que invadem o retrato cotidiano. Conta Vanessa que confiou em suas sensações. “Pode ser uma teoria sem embasamento nenhum, mas acho que as pessoas estavam ouvindo muita música, mas ouvindo com uma certa cautela”.

SEM AMARRAS OU COMPROMISSOS

“Cinema Apocalipse” é álbum que transparece liberdade. Ainda que seus laços com Chico César e Zeca Baleiro estejam presentes, as parcerias de Vanessa vão mais longe e incluem canções com Luiz Tatit e Fernanda Takai, por quem ela não esconde sua admiração. O beat eletrônico tem um lugar especial na obra, tanto que ele abre o álbum com “Tudo Está Bem” e “Ousadia”, mas os instrumentos orgânicos reaparecem em seguida, nas faixas seguintes até o retorno do beat. Esse jogo dá ao conjunto uma certa contradição sonora, que é complementar. É em aparentes paradoxos que forma o sabor agridoce delicado de Vanessa, entre o prazer e a estupefação. Se com os amigos de longa data, a sonoridade remonta ao trabalho em conjunto, em que a oposição das vozes se faz presente, há também uma sensação de complementaridade. Com Fernanda Takai, o flerte é completamente diferente, os timbres são nuances, embora a maciez de Takai seja inconfundível. Na realidade, a melodia de voz faz contraste com a sonoridade eletrônica. Esses elementos traziam ao álbum um caráter que apresentava novidades e, para isso, Vanessa queria um momento em que as pessoas estivessem mais abertas para o mundo. Mas essas possibilidades sempre parecem estar mitigadas, com a chance de não acontecer, diante das necessidades de testagem de equipe e o fantasma de novas ondas. Porém, mesmo assim Vanessa conseguiu lançar o trabalho em uma noite no SESC.

O QUE OUÇO É MINHA VIDA

Em uma noite típica do outono paulistano, Vanessa se apresentou no lançamento do livro da jornalista Flora Miguel. Uma apresentação intimista de voz e violão em uma pequena livraria e café na entrada da Vila Madalena para um público selecionado. Ao terminar a primeira canção, um homem exclamou: “que voz linda! Eu sou cego, o que eu ouço é a minha vida!”, o que pode ser uma excelente metáfora acidental para o próprio trabalho da cantora e compositora. A vida, ou melhor, a potencialidade do viver é a marca mais característica deste álbum, como se a paralização das atividades fizesse Vanessa cantar sua ânsia de viver. A faixa “Fome de Tudo” talvez seja o exemplo mais pungente desta escolha, o amor que ela buscava ao conceber a obra se materializa em sua voz neste chamado à vida. Nesta simbiose entre público e artista, esta faz do cantar a sua vida e isso reflete no público que, ao ouvi-la, encontra a plenitude da relação. Sobrevém a potência das canções. Esta potência se marca na dicotomia aparente entre as faixas “Cinema Ilusão” e “Canção de Ninar o Apocalipse”, mas não se encerra apenas nestas faixas. Em um momento em que o obscurantismo está tão forte, o trabalho de Vanessa Bumagny representa um posicionamento não panfletário, mas absolutamente político, sobre a necessidade da arte em nossas vidas.

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