,,Editorial
,,Destaque
Ricardo Paulouro
P.08 REPORTAGEM
Carteiros do Fim do Mundo Já não se escrevem cartas de amor como antigamente. Na era do “fast love” dos piropos via SMS, dos “chats” e da Internet, o romantismo lacrado num envelope perfumado é um romantismo extinto.
© Margarida Dias
© Margarida Dias
A 20 de Outubro foi aprovada, na Conferência Geral da UNESCO, em Paris, a chamada convenção sobre a Diversidade Cultural. A Convenção, usada por franceses e americanos para desencadear mais um desentendimento, foi, no entanto, exaltada pela imprensa. A diversidade cultural é, justamente, uma “herança comum da humanidade” e torna-se urgente criar uma plataforma de apoio e protecção. Artistas e cidadãos devem, cada vez mais, garantir a liberdade de expressão e a liberdade criativa. Na era da globalização, as obras artísticas não são apenas veículos de mensagens mas um ponto de encontro de olhares e entendimentos. Referindo-se a esta luta de forças, entre o indivíduo e o que o rodeia, formulou Kafka uma das suas mais conhecidas parábolas que, para muitos, tem funcionado como enigma: “Ele tem dois adversários. O primeiro empurra-o pelas costas, desde a origem. O segundo bloqueia o caminho à sua frente. Ele dá luta a ambos. Na verdade, o primeiro apoia-o no seu combate contra o segundo, ao empurrá-lo para diante; e, do mesmo modo, o segundo apoia-o no seu combate contra o primeiro, ao fazê-lo retroceder. Mas isto é assim apenas em teoria. Pois não existem apenas os seus adversários, existe ele próprio também, e quem sabe realmente quais são as suas intenções?” Na verdade, o enigma de Kafka continua por resolver pois consiste numa assombrosa inversão da relação entre a experiência e o pensamento. Mas, cada vez mais, saber pensar afigura-se como a parte mais vívida e vital da realidade. De que temos então medo? Teremos medo de falar ou de apenas nos surpreendermos? Este ele referido por Kafka é cada indivíduo, cada cidadão, cada artista, cada intelectual. É através da afirmação do que se é que se quebra o hiato entre passado e futuro. E se cada vez mais a liberdade parece ser uma missão sem esperança, fruto da opressão de forças de poder disseminadas e escondidas na sociedade, ela deve ser o território em que nos movemos. Hanna Arendt já o havia dito: “A raison d’être da política é a liberdade, e o seu campo de experiências é a acção”. Mas quando essa liberdade se torna a exacta antítese da «liberdade interior», a arte e o pensamento são as melhores formas de restabelecer uma condição perdida. Olhar em redor é por isso fundamental, fugindo a análises introspectivas e demasiado centradas no que nos move. A A23 procurou por isso, neste número, retratar a diversidade cultural que nos rodeia. O hiato entre passado e futuro dos correios em Portugal, o flagelo social da violência doméstica, os instantes mágicos que só a fotografia pode reter, o humor crítico de José Vilhena, as comunidades mais discriminadas como é o caso da comunidade cigana, a diversidade de sons e músicas que passaram pelo TMG, os milhões de anos que passaram pelas rochas em Penha Garcia. Todos estes temas e outros convergem nessa abertura tão desejada. Porque acreditamos que o futuro da sociedade reside na aposta na diversidade cultural, na consciência da riqueza da arte e da cultura. Ainda podemos chamar verdade àquilo que podemos mudar. Essa verdade é o solo que pisamos e o céu que se estende por cima de nós.
© Rui Monteiro
Diversidade cultural, uma aspiração
P.05 OPINIÃO
“O sindicalismo e os desafios da globalização”
P.06 DOSSIER CIDADANIA
“Sem Voz nem Voto em Casa”
P.16 ENTREVISTA
Entrevista a José Vegar “Serviços Secretos Portugueses”
P.18 CRÓNICA P.14 FOTO ENSAIO
“A Grande Beatitude de Monsieur Ramos”
Um olho no Mercedes e outro no cigano
P.26 CULTURA
No Bairro da Sapateira, em Castelo Branco, respira-se hospitalidade. Cada um dos moradores, novos ou velhos, encontra a sua energia na pulsação da terra. Os rostos, esses, acusam os sulcos do tempo ou o queimado do sol. Em cada um a terra escreveu a sua mensagem de vida.
P.30 ARQUITECTURA
TMG - Ciclo Vozes do Outro Mundo; Entrevista a José Vilhena; “Cansaço”; “Para quando os Shane Meadows na A23?”; “Telegrama do Direito à Diferença” Casa da Moagem - Cidade do Engenho e das Artes
P.32 VIAGEM P.22 PORTFOLIO
Margarida Dias. Outros mundos, de nada e de tudo O que vemos de facto quando olhamos para uma fotografia? Como definir uma prática, se quisermos um ritual, que restitui a presença aos ausentes? Margarida Dias fotografa, há mais de vinte anos, momentos inscritos nessa ténue linha entre o dito e o não-dito, entre o nada e o tudo. A palavra cede o lugar à imagem e é nesse ponto, cego e luminoso, que reside o desvio do efeito de verdade do real.
“Pelos Trilhos do Tempo. Rota dos Fósseis em Penha Garcia”
P.35 GASTRONOMIA
“Laurentina. A Beira no seu melhor”
P.36 FOTOGRAFIA “Vidas por Contar”
P.38 INTRIGAS LITERÁRIAS P.39 PROVA DE CONTACTO P.40 MEMÓRIA
Director/ Ricardo Paulouro Director-adjunto/ Pedro Leal Salvado Chefe de Redacção/ Margarida Gil dos Reis Colaboram neste número/ Dulce Gabriel, Jacinto Galião de Tormes, Luís Antunes, Manuel da Silva Ramos, Miguel Correia, Paula Nogueira, Pedro Fiúza, Pedro Ramos, Rahul Kumar, Raquel Silva, Rita Barata Silvério, Rui Pelejão Marques, Tânia Belo, Vasco Paulouro Neves, Vítor Afonso Design Gráfico/ contiudo.com | David Duarte, Nuno Lages Foto de Capa/ Margarida Dias (Rogério Samora em Ricardo III, 2003) Fotografia/ David Júlio Carvalho, Estúdio Rosel, Manuel Luís Cochofel, Margarida Dias, Mónica Moitas, Pedro Cunha, Pedro Martins, Rui Dias Monteiro Ilustração/ Lucas Almeida , Sicrano Periodicidade/ Trimestral Tiragem/ 10.000 exemplares Impressão/ Mirandela Artes Gráficas Distribuição/ Gratuita Propriedade/ Associação Cultural A.23 | associacao23@gmail.com | www.contiudo.com | contiudo@gmail.com Número registo na ERC/ 125073 Morada e sede de redacção/ Rua dos Três Lagares - Edifício Laranjeiras, Torre 3, 6º - 6230 Fundão A.23 // 01
© Manuel Luís Cochofel
,,Memória do homem sem saudades
Mário Cesariny (1923-2006)
“Ama como a estrada começa.” (Estado Segundo, XXI) Poeta maior, a vida de Mário Cesariny passou discreta a muitos. O jovem aluno da Escola de Artes Decorativas António Arroio, estudante de música dirigido pela mão do compositor Fernando Lopes Graça, descobriu a poesia do movimento da mão sobre o papel e a tela. A estadia em Paris, em 1947, e o encontro com André Breton marcaram a sua vida. A Literatura agradece-lhe a experimentação e a criatividade que provou nas artes. Mário Cesariny mostrou-nos como o insólito e o inverosímil podem coexistir. Este foi talvez o artista português que de forma mais plena assumiu o surrealismo, não como método, mas como forma de insurreição permanente. Nos últimos anos, Cesariny deixou de escrever poesia. Os amigos surrealistas foram morrendo, assim como as tertúlias nos cafés que preenchiam o seu quotidiano. Mas “é-se surrealista porque se é surrealista!”. Cesariny será sempre o homem que escreve ou pinta. À mão.
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Sinais
Roseta e a nova política + Helena Helena Roseta e a sua candidatura à Câmara Municipal de Lisboa representam uma lufada de ar fresco no panorama político nacional. Uma candidatura assente fundamentalmente num dever de cidadania, afastada da lógica pré-programática partidária. É um sinal claro que a política partidária começa afastar-se da realidade da sociedade e dos cidadãos, pelo menos o suficiente para abrir espaços a movimentos independentes como este que agora concorre à autarquia de Lisboa. Não rejeita coligações à partida e apresenta um único objectivo: salvar Lisboa e para isso quer os mais capazes para o efeito, independentemente de cores políticas ou escolhas partidárias. Uma visão de poder ao serviço do “bem público” em claro confronto com o infelizmente comum poder ao serviço do “bem próprio”. Uma nova maneira de fazer política parece começar a germinar na capital, mas estará a sociedade portuguesa preparada? Cipriano e o Coro Misto + Maestro Maestro Cipriano e o Coro Misto estão novamente de parabéns. Desta vez foi no Festival de Budapeste onde o Coro Misto arrecadou mais uma medalha de Ouro e consequente primeiro prémio. Um incentivo a todos aqueles que teimam em produzir cultura à margem do poder autárquico, mostrando que em democracia, o ostracismo e a arrogância de nada valem contra a liberdade de criação cultural, mais ainda quando essa criação reveste a excelência e qualidade que o Coro Misto possui. Mas apesar de não ver o seu trabalho reconhecido na cidade da Covilhã cujo nome elevaram e continuam a elevar internacionalmente, o Maestro Cipriano e o seu Coro Misto receberam das mãos da Governadora Civil de Castelo Branco a mais importante honra do Distrito, a medalha de mérito.
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Manuel Frexes ou o conceito de «crítica» Na sessão comemorativa dos 260 anos do concelho do Fundão, Manuel Frexes utilizou o seu discurso para discorrer sobre o conceito de «crítica», associando-a a “uns quantos que, agarrados a clichés decrépitos e restritivos de intelectualidade e cultura, passam a vida a elogiar e a considerar aquilo que se faz nos outros concelhos, procurando encobrir sistematicamente os elevadíssimos níveis de qualidade cultural que o Fundão alcançou nos últimos tempos.” As palavras não permitem, no entanto, um uso aleatório e generalizador. Esse é o poder e a magia da palavra: uma palavra actuante é aquela que é cuidadosamente utilizada ou, como disse Eugénio de Andrade, “Sê paciente; espera que a palavra amadureça”. Não foi esse o caso do Presidente da Câmara Municipal do Fundão que refugiando-se no «cliché» da perseguição proferiu afirmações generalizadoras, não fundamentadas e desmesuradamente narcisistas. De uma coisa está Manuel Frexes certo: o intelectual é aquele que sabe criticar, isto é, que sabe pensar, dizer, agir , numa certa relação com o que existe, com o que se sabe, com o que se faz, uma relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros também. Michel Foucault disseo: “há os intelectuais e os homens do poder”. Ambos coexistem mas nunca se anularão.
,,Caro amigo
não fumador Texto | Rita Barata Silvério (escreve diariamente no blog www.rititi.com)
Faz-me o favor de não te exaltares. Esta minha guerra contra a lei anti-fumos não tem nada a ver contigo. Confesso-te, com o coração na mão e desejando-te o melhor na vida, que me estou bem cagando para ti. Agora, para esta onda puritana promovida por uma comissão longínqua das bruxelas que me quer o bem, ai, já não me estou a cagar. Não te confundas, caro amigo não fumador, esta lei não visa proteger a qualidade dos teus brônquios, mas sim evitar que os meus se contaminem, que eu me mantenha dentro dos parâmetros do socialmente adequado. Porque esta lei é o princípio de uma outra maneira de governar, aquela que nos quer o bem, o melhor para o cidadão que teima em comportar-se como um troglodita. Nós somos uns idiotas imaturos. Eles, as comissões encarregadas de elaborar estudos e dossiers, as ligas da luta contra o dente amarelo, os anúncios do ministério com fotos de meninos infelizes rodeados de fumo, os nossos amigos e sabem o que nos convém: jornadas
,,Cartoon
laborais das sete às duas, jantar antes das dez, almoços de trabalho sem conhaque e dominó, junk-food baixa em calorias, sessões matinais de jogging pelo parque, colesterol baixo e iogurte sem gorduras. Um mundo onde todos sejamos felizes, sem defeitos nem doenças, onde ninguém ofenda o outro com vícios hediondos e ‘terceiromundistas’. Querem-me tanto e tão bem eles que não consentirão que se me suba a tensão, foda sem camisa ou me cure a depressão com a ingestão massiva de dez menus mcroyal deluxe com coca-cola. Isto é só o princípio. Oxalá a minha saúde lhes importasse uma merda, oxalá que estes governos amiguinhos se preocupassem com a minha real qualidade de vida, como o poder de compra, a poluição acústica nas cidades, a qualidade dos transportes públicos, a criação de mais escolas públicas, a segurança no centro e me deixassem em paz sobre o que como, fumo ou bebo e mais quando pago com isso tudo o que eles não fazem. [x]
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O sindicalismo e os desafios da globalização
Texto | Vasco Paulouro Neves
Os últimos meses em Portugal ficaram marcados pela greve geral convocada pela CGTP no dia 30 de Maio e o seu aparente fracasso. Este facto veio colocar de novo na “ordem do dia” os difíceis desafios que enfrenta o movimento sindical nas sociedades contemporâneas e, independentemente das suas especificidades nacionais, reflecte uma realidade bem mais global: a inegável fragilidade actual do sindicalismo no contexto da globalização capitalista. Essa fragilidade assume várias formas. É uma fragilidade política, na medida em que o colapso do Bloco de Leste e a consequente perda de credibilidade do socialismo enquanto paradigma sócio-político alternativo ao capitalista, levou inevitavelmente ao isolamento político do movimento operário. É uma fragilidade social, pois a fragmentação do movimento social veio questionar a hegemonia do movimento operário enquanto sujeito social e político privilegiado das transformações sociais emancipatórias. É também uma fragilidade teórica e prática, pois, por um lado, as transformações estruturais profundas provocadas pelos processos hegemónicos da globalização capitalista neoliberal tiveram consequências perversas ao nível da organização do trabalho, bem como de outras áreas da sociedade. Estes processos implicaram mudanças profundas na configuração das relações entre o Estado, o trabalho e o capital, com uma clara desvantagem para a esfera do trabalho. Como é evidente, realidades como a crescente precarização do trabalho, a desregulação dos mercados e a deslocalização da produção ou a destruição do espaço nacional como espaço privilegiado da regulação sócioeconómica e da cidadania, dificultam a acção e a margem de manobra dos sindicatos. Por fim, e não menos importante, é uma fragilidade ideológica na medida em que o modelo neoliberal, à força de uma mensagem tantas vezes difundida por “tantos” intelectuais e cronistas, aparece aos olhos de uma imensa
maioria como algo de natural e inevitável. Desta forma, fenómenos como o ataque aos direitos sociais do Estado-providência, a desregulação e flexibilização do mercado de trabalho ou a privatização de sectores fundamentais do Estado, como a educação ou a saúde, aparecem retratados como “reformas” inadiáveis, como ajustamentos fundamentais e inevitáveis a uma nova realidade económica e socio-política, que apenas alguns “arcaicos” contestam e rejeitam. Romper com o fatalismo do pensamento neoliberal é hoje uma das tarefas fundamentais dos sindicatos (e não só), que necessitam daquilo que Bourdieu chamou “«desfatalizar» politizando”. Também a emergência dos novos movimentos sociais, com a consequente maior “visibilidade” de outros processos de exploração e de opressão social fora do espaço da produção, colocando em causa a “primazia da classe” preconizada pelo marxismo (até aqui a tradição teórica emancipatória por excelência), constituem um desafio extremamente exigente ao velho movimento sindical. O protagonismo crescente destes novos actores sociais, com as suas identidades e narrativas próprias, muitas vezes de natureza transclassista, traz consigo novas dinâmicas políticas e sociais com as quais o movimento sindical terá de lidar no quadro de uma realidade cada vez mais fragmentada e heterogénea. Com os processos de globalização capitalista a colocarem em causa alguns dos pilares fundamentais sobre os quais assenta o edifício social e politico das sociedades modernas, sobrou para os sindicatos o papel de ser o maior defensor desse contrato social “em ruínas” que tanto ajudou a construir. Mas esse papel de garante do Estado-providência só poderá ser cumprido com a reinvenção das suas narrativas e práticas, desde logo com a consciência dos limites do espaço nacional e a abertura a outras narrativas de revolta. [x]
,,IMAGO versus
ICAM
Texto | Sérgio Felizardo (Direcção do Festival IMAGO)
Isto realmente não cabe na cabeça de ninguém. Andar aqui a contrariar a tendência natural da vida e insistir em fazer coisas de jeito é, de facto, contra natura. Em vez de seguirmos o rebanho e deixarmo-nos de tretas culturais e de tentarmos combater a desertificação e a inércia de uma zona do País já muito sacrificada e onde só os velhos deviam viver (e poucos mesmo assim), não, insistimos em fazer e, mais, fazer bem. Toda a gente sabe que isto é para deixar à morte. Quem é que se lembrava de fazer o único Festival de Cinema do País dedicado aos jovens? Ainda para mais, um Festival que sendo no Fundão, consegue atrair gente de todos os cantos do País, muitos estrangeiros e chega a receber mais de 1500 filmes de 70 países de todo o Mundo, projectando assim a região e o País a um nível poucas vezes visto. (…) Pois esta malta dos cargos-públicos-cujo-trabalho-é-dardinheiro-a-chupistas-culturais-como-nós-que-não-fazemos-nadae-andamos-aqui-só-a-pastar-à-espera-de-viver-dos-subsídios às vezes esbarra com gajos-como-nós-que-não-queremosos-subsídios-para-viver-à-conta-deles-mas-sim-para-fazer-ascoisas-bem-feitas e depois arranja chatices escusadamente. Nós, os gajos do IMAGO, entendemos que o apoio que o ICAM nos atribuiu para a realização do Festival em 2007 não foi justo e, qual hereges dos montes, mesquinhos e vis que nunca estamos satisfeitos com o que nos dão, decidimos protestar. Ao protesto foi-nos dada uma daquelas respostas à malta dos cargospúblicos-cujo-trabalho-é-dar-dinheiro-a-chupistas-culturaiscomo-nós-que-não-fazemos-nada-e-andamos-aqui-só-a-pastarà-espera-de-viver-dos-subsídios:“Vocês não têm razão, porque nós é que temos. Ponto final”. Não concordámos outra vez e do protesto passámos ao tribunal. Agora, aguardando serenamente novidades da justiça, cá vamos lutando mais uma vez para encontrar outras formas de apoio que compensem aquilo que o ICAM nos devia ter dado e não deu. Uma tarefa que pensamos sempre que será mais simples em cada ano que passa, porque, enfim, cada vez temos mais visibilidade, cada vez trazemos mais gente cá à terra, cada vez temos melhor programação, cada vez mais somos um ponto obrigatório de encontro entre jovens cineastas, aspirantes a cineastas e profissionais do meio que queiram ver o que realmente (REALMENTE) de novo se vai fazendo pelo mundo fora... Mas, claro, óbvio, lógico, nada disto interessa. Porquê? Porque não. Ponto final. E têm-me perguntado ultimamente: Mas vocês com tantas queixinhas (QUEIXINHAS, CLARO ESTÁ!) não têm medo de represálias? Não acham que não vos vão dar sequer um cêntimo? Bem, meus amigos, para isso só temos uma resposta: ERA SÓ QUE FALTAVA!!! PONTO FINAL.
Nota: *A CINEMA JOVEM – Produção de Eventos Culturais, CRL, organizadora do Festival IMAGO tem neste momento em curso no tribunal um processo contra o ICAM relativo aos resultados do Concurso Público de Apoio à Realização de Festivais Nacionais 2006. No referido concurso, a que concorreram com o projecto para a realização do IMAGO 2007 obtiveram o quarto lugar na classificação e um apoio financeiro de 50.000 euros. Um valor muito aquém do pedido pela organização (69.000 euros) e que consideraram injusto tendo em conta a classificação final - 7,64 pontos, quando comparada com a classificação do terceiro classificado, o Festival de Tróia, com 7,67 pontos e 75.000 euros de apoio.
ENSAIO // 05
,, Ninguém escreve Carteiros do fim do mundo
aoTi Manel Texto | Rui Pelejão Marques Fotografia | Rui Monteiro
“Ninguém é mais solitário do que aquele que nunca recebeu uma carta.” Elias Canetti Uma caligrafia bonita, esculpida, morosa. Como Cargaleiro a cinzelar mármore, Manuel Beja debruçase com cuidados de artesão sobre a folha de papel branco e desenha as capitulares com vagar e minúcia de estilete BIC. Uma caligrafia ornamentada, quase barroca, que enche de orgulho o antigo ferroviário, reclinado na velha cadeira de mogno entronizada no terreiro de luz do Abril-em-flor beirão: “Toda a gente me gaba a letra”, aventa com um sorriso empinado nos óculos garrafais que tentam iludir as cataratas do octogenário escrevinhador. “Nos Escalos, antigamente, a minha mãe era das poucas que sabia ler e escrever e era assim que ganhava mais uns trocados para alimentar sete filhos. Lia e escrevia as cartas para o povo. Acho que lhe herdei o jeito”. Imagino a letrada camponesa no Largo dos Escalos como os escribas que montavam banca e tinteiro no Largo do Pelourinho de Lisboa no final do século XVI para escreverem cartas galantes a soldo; ou Florentino Ariza, personagem de “Amor em Tempos de Cólera” de Garcia Marquez, dedilhando a sua angústia em cartas de amor mercenárias forjadas para outros amantes se amanharem nos montes de Vénus. Já não se escrevem cartas de amor como antigamente. Na era do “fast-love” dos piropos via SMS, dos “chat´s” e da Internet, o romantismo lacrado num envelope perfumado é um romantismo extinto. Ti Manel contorna o sobrescrito com a língua, para acicatar a goma que sela as palavras esculpidas: “É para o meu irmão que está em França. Hoje em dia, já ninguém escreve cartas por causa do telefone. Já nem o carteiro vem à nossa porta. É pena, uma carta escrita tem outra graça.” Desde que Ti Sebastião, o antigo carteiro do “giro” de Castelo Novo se reformou, as quintas semeadas no sopé da Gardunha já não recebem com alegria o estardalhaço da motorizada zundape-alada deste Mercúrio rural, fintado a canzoada para entregar o correio, dois dedos de conversa e boa disposição: “Agora as caixas de correio estão concentradas em caminhos 06 // REPORTAGEM
de acesso às quintas e já não se entrega a correspondência ao domicílio como antigamente. Muitas vezes os carteiros nem conhecem as pessoas. No meu tempo não era assim. Íamos a todas as quintas, mesmo as mais remotas. Conhecia toda a gente e ao longo dos anos fui ficando amigo de muitos deles. Vi gente nascer, crescer, casar, partir e morrer”, conta Ti Sebastião enquanto prepara a pauta para o ensaio da Banda de São Vicente da Beira, da qual é maestro. Empunha a batuta com as mãos que durante anos cavaram o fundo da sacola de carteiro, garimpando cartas que traziam as novas - boas e amargas -, a esperança e a angústia. O mestre de música sabe que o homem que inaugurou a moderna indústria dos correios com a invenção do selo postal em 1837 era também maestro? Sir Rowland Hill, administrador do Correio inglês, venceu a casmurrice da Câmara dos Lordes e impôs uma reforma postal que consagrava um sistema de padrões tarifários que permitia aos Correios cobrar antecipadamente pelos serviços prestados, bastando colar um comprovativo do pagamento sobre a encomenda. Nascia assim a lambidela no selo postal, gesto universalmente repetido que permitiu aos serviços de correios de todo o mundo crescerem e democratizar esse sistema de comunicação tão antigo como a própria escrita, cujos registos mais ancestrais remontam a 2.400 AC no Egipto, quando os sigmanacis – velozes mensageiros - percorriam grandes distâncias a pé, de cavalo ou a camelo, carregando os papiros e correspondência com que os faraós mandatados pelo deus Sol, subjugavam o seus domínios à beira-Nilo. A banda afina a marcha, o sisudo oboé abafa a fanfarronice do cornetim, o mesmo que serve de símbolo ao cavaleiro do logótipo dos CTT, que sopra as novas de um mundo em permanente mudança, um mundo em que já ninguém escreve ao Ti Manel: “Até a reforma é depositada no banco. Só recebo publicidade do Jumbo e recibos da água e da luz. Hoje em dia, a única coisa que leio é o Jornal do Fundão para ver os resultados dos Escalos nos distritais e saber quem morreu por lá”. Todas as quintas-feiras, Manuel Beja desenferruja o reumático até à caixa do correio com o coração acelerado pela secreta e irreprimível esperança de ter uma carta do seu irmão Carlos.
A mesma esperança renovada que levava o velho coronel de Gabriel Garcia Marquez a desesperar todas as sextas-feiras a carta da pensão do seu filho morto na revolução, a carta de um tempo que já não volta: “Estou à espera de uma carta urgente – disse ele – é de avião. O administrador procurou nos compartimentos classificados. Quando acabou de ler, repôs as cartas na letra correspondente, mas não disse nada. Sacudiu as palmas das mãos e dirigiu ao coronel um olhar significativo. - Devia chegar hoje de certeza – disse o coronel. O administrador encolheu os ombros. - A única coisa que chega de certeza é a morte, coronel”.
Giro do carteiro Uma azáfama própria de quem sabe que o relógio é ladrão. No Centro de Distribuição Postal do Fundão, Joaquim Leal, chefe da distribuição, não me passa grande cartão. São 8.30 horas da manhã e para aqueles homens que separam com afã o correio, o dia já corre longo. “Vai com o carteiro Pedro, que dá a volta pela Serra do Açor. Temos vinte e quatro carteiros neste centro de distribuição, com rotas que abarcam todo o concelho do Fundão e algumas freguesias da Covilhã. É um trabalho duro e desgastante, vai ver”. Todas as manhãs, a rotina da expedição e separação do correio repete-se nos 378 centros de distribuição postal espalhados por Portugal Continental e ilhas. Ao todo são 1917 postos de correio e quase 6500 giros de distribuição postal que em 2005 levaram ao destinatário mil e trezentos milhões de objectos postais. As cartas já estão separadas por ruas e números das casas, que é aliás a razão histórica da toponímia e da numeração das portas – a distribuição do correio ao domicílio. A reluzente “diligência” vermelha dos CTT estaciona no átrio e o “cocheiro” Pedro Santos estende-me um afável passou bem: “Pronto para uma volta pelo fim do mundo?” É essa a cartografia da reportagem – uma peregrinação interior à velocidade da expedição do correio por um mundo desligado da modernidade das comunicações móveis, dos SMS, da Internet de banda larga, do e-mail e do satélite espião. REPORTAGEM // 07
No vale fértil da Cova da Beira, as cerejeiras em flor vão estendendo aquele manto branco que nos envolve na pertença da terra e na promessa carnuda das cerejas temporãs. Parece um postal ilustrado, como aquele que vou bisbilhotando no maço de cartas da EDP, Caixa Geral de Depósitos, Segurança Social, Workers Board do Canadá. Mas este postal é da Toscana e escrito em francês: “Mommi: Je suis en Italie e il fait chaud. Je fais de visites qui sont longue.” Faço visitas que são longas … Para Pedro Santos, longas são
Estacionamos o “bólide” resfolegante e com os maços de correspondência na mão, partimos para a distribuição “apeada”, que se faz porta-a-porta por ruelas intransitáveis. O ritmo não abranda e rapidamente se galgam as ruas vazias, se batem a portas mudas com cartas registadas. O sol morno ilumina as ruas íngremes, as casas e janelas aferrolhadas parecem amortalhadas para um velório. O silêncio é apenas interrompido pelo coro desafinado dos cães que parecem anunciar a vinda do carteiro. Por falar de cães, é verdade que são o pior amigo do carteiro? “Agora já me conhecem todos. Hoje só ladram desta maneira por causa de si, que é um estranho. Uma vez apanhei um susto com um cão preto enorme nas Minas. Já tinha pedido ao dono para o prender, mas naquele dia ele apareceu-me de surpresa num sítio onde não tinha escapatória. Ele desatou a correr para mim a ladrar que nem um desalmado. Então, em vez de fugir, lembrei-me de correr para ele aos gritos a abanar o maço de cartas. O medo devia dar-me um ar assustador, porque ele acabou por se arrepender e pirou-se a ganir com o rabinho entre as pernas”, gargalhou Pedro. Uma das prerrogativas dos carteiros é recusarem-se a entregar correspondência em quintas ou casas em que os animais não estejam acorrentados, mas uma vez por outra, algum carteiro leva para casa umas bainhas novas nas calças,
a tal que se aventura nesta região calejada pelo Zêzere, pela serra e pelas minas. Passando o Ourondo e a sua ribeira, estamos já no Concelho da Covilhã e os cimos desnudados da Serra do Açor oferecem uma visão de território remoto, bravio, onde apenas prospera o xisto, como pedra de toque das construções arrancadas à terra. São aldeias de cabeça erguida, apesar do isolamento e do abandono a que foram votadas: “O que mais me indigna é a forma como esta terra e estas gentes foram exploradas ao longo de décadas. Desde Salazar que Portugal extraiu aqui a riqueza do volfrâmio às custas do esforço e da miséria destas povoações e o que é que elas receberam em troca? Uma mão cheia de nada. Nem estradas, nem acessos condignos, nem assistência, nem equipamentos sociais, nada, apenas o esquecimento.” Pedro Santos conhece bem as soleiras destas portas esquecidas, onde as viúvas dos mineiros recebem as pensões apropriadamente ditas de sobrevivência: “São pensões baixas, muitas vezes para pessoas que não têm outra fonte de rendimentos. Sou eu que as levo e sei bem as dificuldades por que muitas passam.” A chegada do carteiro com a magra pensão, representa um momento de alívio e felicidade, bem ilustrada no rosto da velhota que desce a custo as escadas de pedra da sua casa, nos arredores de Casegas.
as horas que “pedala” em contra-relógio como o mais famoso carteiro da história do ciclismo, o americano Lance Armstrong. Lavacolhos, a primeira contagem de montanha desta etapa ergue-se como o nosso Alp d´Huez. Gracejo sobre a picaresca origem do nome desta terra abespinhada na encosta da serra a 13 quilómetros do Fundão, mas Pedro Santos prefere falar de coisas mais sérias: “Já cá vive pouca gente, só aos finsde-semana é que tem alguma vida. Não há trabalho, os mais novos partiram todos e os mais velhos vão morrendo.” É a funesta aragem que varre todas estas terras da orla Noroeste do concelho do Fundão, marcadas pela desertificação e por esse véu negro que se abate sobre as antigas aldeias mineiras; as aldeias das viúvas negras … A primeira correspondência é distribuída nos “arredores” da terra. É a distribuição “montada”, já que mal saímos da carrinha, basta encostá-la à caixa do correio e depositar os livrinhos de “Liturgia Diária”, que pelos vistos têm saída por estas bandas: “Muita gente compra imagens da Nossa Senhora por cinco euros, são cinco euros que lhes fazem falta, mas como é pela Nossa Senhora …”, longe chegam os tentáculos cobiçosos do negócio da fé …
alinhavadas à dentuça. Larguemos estas deambulações zoológicas e vamos ao cafezinho: “Este senhor espera sempre por mim todas as manhãs, ali na esquina para irmos beber um café”. Numa aldeia às moscas, um carteiro é sempre uma boa companhia, e ainda por cima uma companhia rotineira, diária, pontual. Café abençoado e marcha para a maternidade dos bombos. A porta da garagem do Sr. Natalino abre-se como a gruta dos alquimistas. Aqui trata-se da alquimia do som. É nesta oficina do Sr. Natalino que se perpetua este saber ancestral. “Os materiais usados são a pele de cabra, a madeira de castanho e de silva, o zinco e a corda. É com isto que fazemos os bombos e as caixas, de mais pequena dimensão”, explica o artesão. “O segredo está na escolha certa dos materiais e sobretudo na afinação”. E como prova de vida, lá extrai do imponente nado-bombo aquele som gutural, bruto e impregnado de uma força criadora, que ganha sentido colectivo no vigoroso matraquear de joelho ao alto, que faz do Grupo de Bombos de Lavacolhos um dos mais singulares “ex-libris” da tradição etno-musical portuguesa. Trocámos os bombos pela guitarra de Carlos Paredes no rádio, os “verdes anos” que nos embalam na estrada nacional 238,
O canário, o Açor e o poeta
“O giro começa em Lavacolhos, vamos ao Ourondo, subimos a serra do Açor até Casegas. Vai depois conhecer a minha terra – Sobral de São Miguel. A terra mais bonita do mundo”, informa com orgulho estampado no sorriso. Pedro Santos tem 37 anos. É carteiro há doze: “O meu pai já era carteiro, mas teve um acidente grave que o inutilizou e eu acabei por ficar no seu lugar, logo a fazer o giro das Minas da Panasqueira.” A conversa quebra-gelo vai decorrendo à medida que a sua diligência-Ford negoceia as curvas serranas do Castelejo.
Liturgia diária ou geografia do esquecimento
08 // REPORTAGEM
Começamos a ronda por Casegas. O maço de cartas corresponde aos padrões habituais – publicidade, bancos, luz, água e naturalmente, pensões: “Cavalitos ou burritos?” indaga o senhor da mercearia. Perante a minha confessa ignorância, Pedro sorri e explica, “Cheque ou contas”. No lar da terceira idade, uma fileira de velhos está mergulhada numa vigília sonolenta ao sol, interrompida pelo sopro de vitalidade e alegria da visita do carteiro. Ninguém espera uma carta, mas num lar de idosos, uma visita, nem que seja a do carteiro, é um sinal de vida. Seguimos em ritmo de contra-relógio a nossa colectânea de portas, com rostos que se entreabrem de curiosidade. No quintal do Sr. Joaquim, antigo pastor e tocador de pífaro estende-se uma longa colecção de chocalhos, que ele toca com a bengala como se fosse o carrilhão de Mafra. Num tasco, fardado da camisola interior de alças, o servidor de copos-três a perder de vista desmonta cuidadosamente uma decrépita máquina de barbear: “Vai fazer a barba hoje?” zomba Pedro, “que remédio!” replica o tasqueiro, que mantém em espera de
boca seca o cliente de mata-ratos na mandíbula impaciente. A mesma impaciência treinada com que o canário do homem sentado na cozinha-gaiola pede “vinho!”. Ora esta, um canário-bebedolas?! “Este ainda o estou a ensinar, mas antes tive um que aprendia tudo num tirinho e sempre que me via a beber, pedia vinho”. Melhor sorte a deste canários amestrados para a vinicultura do que os seus semelhantes que antigamente eram industriados para morrer nas minas, vasculhando as entranhas gasosas da terra e dando o alarme aos mineiros, quando os níveis de gases venenosos lhe calavam o minúsculo bico-cantor. O dia do carteiro é um coleccionar de histórias: “Cada dia tenho uma história nova para contar. Vamos criando laços de amizade com a convivência com estas pessoas e além disso vamos fazendo isso, correndo estas serras e estas aldeias. Era incapaz de estar fechado num escritório, este trabalho faz-me sentir livre.” Na sacola das histórias de carteiro, Pedro recorda quando fez de conselheiro matrimonial para um casal de septuagenários: “Andavam sempre às turras, e um dia, o velhote, farto da mulher lhe moer o juízo, meteu lá em casa uma prostituta brasileira para fazer a ´lida` da casa. A velhota ficou para morrer, e um dia lá estive a acalmá-la e a dar-lhe conselhos para manter o casamento. Ela ficou tão agradecida que me
Carta das Minas Não sei se por contágio do carteiro nativo, Sobral de São Miguel insinua-se ao olhar do viajante como a terra mais bonita do mundo. Incrustada no alto de um vale orientado para o majestoso Gondufo, o terreno montanhoso pintado a carqueja e urze, destaca aquele casario que se estende nas margens do ribeiro que dá de beber ao vizinho Zêzere. Paramos em frente a uma casa, onde no terreiro um casal desfruta da sombra de um chapéu-de-sol. “São os meus pais”. Enquanto a mãe bate uns ovos que vão encorpar as típicas talassas da terra, João Santos resume uma vida de carteiro nas Minas da Panasqueira: “Era um trabalho tramado. Sempre aí a calcorrear montes e vales, com neve e um frio de rachar no Inverno e um calor infernal no Verão. Fiz muitos anos a rota das Minas, vi muita miséria e sofrimento, muita gente a rebentar de fome, muito mineiro com os pulmões rebentados.” Falámos nos tempos antigos em que a correspondência chegava à terra nos alforges de um burro: “Era a Ti Correia da burra, chamávamos-lhe Correia, porque era ela que trazia o correio”, explica. Corremos depois as ruas sinuosas do Sobral. Pedro Santos conhece cada casa, da pedra, cada laje, cada cara que se desvela à sua passagem. “Viva Pedrinho”, “Traz carta para mim”, lá está
que aflige este antigo mineiro de 82 anos, um dos poucos da sua idade a sobreviver à silicose: “Entrei para as minas com 14 anos, no tempo da II Guerra em que trabalhavam lá perto de 5 mil homens, fora os que andavam ao quilo. Descia para os poços com umas cordas para montar os andaimes. Depois fiz de tudo. Estive lá enterrado 22 anos às vezes 12 horas por dia com uma buchazita no estômago. Vi muito companheiro morrer, depois abalei para a França.” A mulher recorda com lágrima de azedume esses tempos: “Era uma revolta que crescia na gente, ver uns com tanto e outros que se estoiravam lá por baixo por meia dúzia de tostões que mal davam para alimentar a família. Quase todos os dias morria alguém na mina, e a espera era uma angústia para as mulheres que ficavam cá fora a ver se era o seu homem.” As minas acabaram por cobrar a sua dívida assassina a José Cambra que viu um pulmão extraído, tem cancro da mama e faz um intenso tratamento de radioterapia: “Tenho de ir a Coimbra uma vez por mês, gasto 17 contos no táxi e nem o Estado, nem ninguém me dá uma ajuda.” Da sua boca não soa a queixume, porque é um homem calejado por uma vida que não lhe roubou a dignidade e a força de viver que se adivinha nos olhos alegres de adolescente-velho. Mais uma jeropiga para a viagem, à sua saúde, Senhor José Camba, velho mineiro.
queria dar dois contos de réis, insistia, dizendo que se fosse a um advogado, também teria de pagar. O que é certo é que os velhotes lá fizeram as pazes.” Entretidos na palheta, alheamo-nos da paisagem que rodeia a estrada que liga Casegas ao Sobral de São Miguel. Estamos no coração da Serra do Açor. A estrada serpenteia pelas encostas vestidas de cores da Primavera que irrompem do ventre de uma terra rica em estanho, volfrâmio e pirite. “Passo por aqui todos os dias. A serra nunca está na mesma, muda de cor todos os dias. Está a ver a base amarela, é a cor das giestas, carquejas e maias. Estas vão subindo a encosta e empurrando o vermelho e os tons rosa que lhe emprestam as urzes.” A poesia criadora da natureza e o seu efeito encantatório sobre o carteiro de Sobral de São Miguel lembram-me um outro poeta e um outro carteiro. Pablo Neruda e o seu carteiro encantado pelas metáforas da mesma forma que Pedro Santos se deslumbra com a pintura de cores da “sua” serra, levando no bojo da sua sacola as cartas, de quem Neruda dizia: “quanta verdade tristonha e mentira risonha uma carta nos traz”.
a frase da vizinha do lado de roupão enfiado da velha música do Sérgio Godinho. Ao contrário do lotado lar de Casegas, a Escola Primária do Sobral tem apenas seis crianças. A professora leva-nos a ver a árvore da paz moldada em papel pelos miúdos que em breve partirão para a escola secundária mais próxima, a umas dezenas de quilómetros, deixando a árvore da paz sem quem a enxerte. Rute, a jovem arqueóloga de 23 anos, preferiu continuar na sua terra a enxertar a sua árvore da paz – o pequeno núcleo museológico feito de doações locais: “Para já o meu projecto de vida passa por aqui. Gosto muito da minha terra e enquanto puder vou por cá ficar.” Ela é também uma das impulsionadoras do “blogue” de Sobral de São Miguel, que na era digital, faz aquilo que durante centenas de anos esteve reservado às cartas escritas – aproximar as pessoas separadas pela distância. Num dos “posts”, fotografias de emigrantes na Suiça, com mensagens para a sua terra; noutro o resumo do “derby” entre os Galitos da Serra e o Casegas. José Camba puxa-nos a manga sem direito a recusa para a sua adega, refugiando-nos num copo de bendita jeropiga das abelhas que invadem as escadas da casa contígua: “As ferroadas das abelhas fazem bem ao reumático”. Não é o reumático o mal
No café do francês não são mineiros que almoçam, porque o volfrâmio já não tem uso para as armas ou a fuselagem das naves que foram conquistar o espaço. O almoço agora é para os trabalhadores que montam as pás dos parques eólicos que estão a nascer nas encostas do Açor. Depois de esmifradas as entranhas é o vento desta terra que agora gera uma riqueza que dificilmente será redistribuída. A única coisa que resta para distribuir são as cartas para os lugares da Pereira e da Cerdeira, contíguos ao Sobral, e depois a recolha em sentido inverso, da correspondência que se leva de volta, como os ponteiros do relógio que descrevem a exactidão dos dias iguais, mas sempre diferentes, como o são os dias do carteiro Pedro. Se, como dizia Simone de Beauvoir, “não se pode escrever nada com indiferença”, então a indiferença é o destinatário mais certo da nossa escrita, tão perdida como as aldeias das viúvas negras da Serra do Açor. Neste mundo em que ninguém escreve ao Ti Manel, o carteiro renova a esperança, da mesma forma que a serra renova as suas cores, todos os dias, num “tempo só sensível pelo alastrar da sombra”. [x] REPORTAGEM // 09
,,Sem voz
nem voto em casa Texto | Dulce Gabriel Fotografia | © Cindy Sherman in Retrospective
Chama-se Ana mas poderia ser Maria, Conceição ou Magda, o nome não interessa se o que nos propomos é apresentar o retrato possível da violência doméstica na região. Mas esta mulher de quem falamos nem sequer se pode dizer que seja pobre ou oriunda de uma família problemática. A Ana é tão só uma entre muitas. 14 // DOSSIER CIDADANIA
Cada vez há mais mulheres que são vítimas de maus-tratos físicos e psicológicos, porque a pressão psicológica também é uma forma de vitimar pessoas mais ou menos fortes e habilitadas. Mas a Ana tem perto de 60 anos e toda a vida morou em Lisboa, regressou agora às suas origens, na Beira Baixa, para tentar resolver um problema aparentemente sem solução. Vítima de violência desde há um par de anos, Ana vai sobrevivendo com força e tenacidade “que não sabe onde vais buscar, talvez se prenda ao ser superior” que para ela representa a religião e a fé que lhe estão associadas. Acabrunhada pelas agruras da vida e porque a idade também já não perdoa, esta beirã de marcas negras nos olhos convive diariamente com a doença do marido alcoólico e a falta de dinheiro para coisas tão básicas como a comida e medicamentos. E é esta mesma mulher que se esforça para minorar “o problema de saúde do marido”, mesmo se como compensação recebe “tareias e nódoas negras” visíveis ao olhar de quem com ela se cruza nas ruas da pequena aldeia que a viu nascer e a recebeu de volta depois da “fuga” da metrópole, pensando “que a tranquilidade do meio rural” haveria de lhe equilibrar os dias. Ana trabalha à hora em casa de quem lhe confia a limpeza e as lides domésticas. A luta contra a falta de “verba até para o pão, quanto mais para internar” o marido ocupa-lhe as horas do dia que termina, invariavelmente “com mais insultos e palavrões” acompanhados de maus-tratos físicos. Apesar do sofrimento Ana recusa-se a participar às autoridades o caso – “Deus me livre” - atira, como que para nos dizer que tem de conviver
parceria estabelecida no princípio do ano entre a PSP, GNR, Associação de Desenvolvimento Integrado da Beira Baixa, Hospital Amato Lusitano e Centro Hospitalar da Cova da Beira, delegação distrital da União das Misericórdias, Sub-região de Saúde, Coordenação da Área Educativa e Ordem dos advogados (delegações de Castelo Branco, Covilhã e Fundão). “Atender a vítima de agressão de forma célere e acompanhála desde a denúncia até ao acolhimento” é a missão deste Núcleo criado num Distrito que em 2006 registou nos 11 concelhos 392 casos de violência, “um número que pode ser bastante abaixo da realidade” alerta a governadora civil de Castelo Branco que desde a primeira hora soube aproveitar a prioridade estabelecida pela secretária de estado adjunta e da reabilitação Idália Moniz quando anunciou a constituição de estruturas de apoio às vítimas de violência doméstica, em todos os distritos. Na nova estrutura “há apoio diversificado” às vítimas que podem continuar a fazer as queixas nos postos da GNR ou da PSP, mas que desta forma usufruem de “um atendimento qualificado, para que o processo decorra mais rápido e de forma integrada” explicou a coordenadora Raquel Mendes. A vítima é recebida no núcleo, onde é feito um plano de interpretação da crise e das necessidades reais da vítima e seus dependentes, de forma a encaminhá-la para os diferentes parceiros, levá-la ao hospital ou centro de saúde e a instalá-la numa das duas casas-abrigo das Misericórdias do distrito onde ficam temporariamente, para depois serem encaminhadas para lares de acolhimento existentes em outras zonas do país. Desde que foi criado, o gabinete já recebeu
uma cultura de consciencialização das vitimas para os seus direitos” e propor “o reforço das medidas de protecção à vitima e de repressão do agressor”. O projecto inscreve-se na iniciativa europeia “parlamentos unidos para combater a violência doméstica contra mulheres” à qual a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa deliberou associar-se em Junho de 2006. A revisão das medidas de repressão do agressor é de resto apontada pelos especialistas na matéria e em particular pela APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), como sendo de extrema urgência, tendo em conta que “apenas um em cada 20 julgamentos realizados no mundo por violação sexual a mulheres e crianças acabam em condenação”, revelou este ano o alto comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACDH). A violência contra as mulheres e as raparigas é considerada pelo ACDH como um “dos problemas mais sérios e importantes” da actualidade, contudo, apenas cinco por cento dos julgamentos celebrados no mundo por violação sexual acabam com sentença para os acusados. O organismo das Nações Unidas para os direitos humanos refere também que “apesar da dimensão do problema e das consequências e custos para o indivíduo e sociedade, a vontade política para acabar com a cultura de impunidade e prevenir a violência ainda não se materializou”. Em jeito de conclusão, a governadora civil de Castelo Branco congratula-se com os avanços registados nos últimos anos em Portugal mas assume que a prevenção da violência doméstica deveria ser motivo de “uma campanha choque e maior envolvimento dos media” como já acontece em Espanha. [x]
com o destino que essa força superior lhe colocou no caminho e que se chama violência doméstica. E não se pense que esta mulher é mal amada pelo companheiro, só porque agora é “pobre”. Há muitos anos que Ana sente na pele a ira do seu companheiro de vida. “Sempre assim foi, não é agora que vai mudar”, explica Ana ao mesmo tempo que tenta desculpar este homem tirano e feroz que “desde sempre abandonava o emprego para ir até às tabernas” e cujo nome jamais chegará ás entidades que controlam e previnem a violência doméstica. Ana “come com o pão, as chapadas e murros” de que é vitima, “basta que ele (o marido) esteja com o copito”. “Nem os filhos o travavam”, desabafa a mulher que perdeu o emprego para vir para o interior “pensando que em casa dos sogros ele se deixava da bebida”. Este é apenas um dos rostos que engrossam a estatística da violência exercida sobre as mulheres e no primeiro trimestre de 2007, só no distrito de Castelo Branco, foram denunciados no Núcleo de Atendimento a Vítimas de violência doméstica, sedeado no Governo Civil, 91 casos, um número elevado, considerou a governadora Alzira Serrasqueiro, na apresentação do gabinete de apoio que conta com a contribuição de nove instituições/parceiros interessados em reduzir o número de vitimas e sensibilizar a sociedade “para a importância da denúncia”. A estrutura, coordenada pela assistente social Raquel Mendes, resulta da
350 queixas de mulheres e 12 de homens, havendo também denúncias que vitimaram crianças e uma “percentagem considerável de idosos” explica a governadora civil de Castelo Branco referindo-se ao período compreendido entre Janeiro e final de Março. Alzira Serrasqueiro diz que a vítima de violência tem “entre 24 a 50 anos e que as zonas urbanas de Castelo Branco, Covilhã, Fundão e Sertã, por esta ordem “contabilizam o maior número de casos de um tipo de crime que não atinge apenas as mulheres”, como o comprovam os gráficos, adverte. De resto, são as pessoas desempregadas e com poucas habilitações quem mais sofre e pratica actos agora mais fáceis de denunciar. No distrito de Castelo Branco, “há um trabalho ainda incipiente mas que vai melhorar”, admite a governadora civil, quando confrontada com a necessidade de levar a julgamento e eventual condenação os autores do crime em causa. Alzira Serrasqueiro refere-se à necessidade de aprofundar as relações “com o Ministério Público”. O combate à violência doméstica foi recentemente motivo de um projecto-lei conjunto aprovado na AR por unanimidade e aclamação e no qual todos os partidos com representação parlamentar assumem o compromisso de “avaliar o enquadramento jurídico existente em Portugal relativo à violência doméstica, com o objectivo de o actualizar” além disso, os partidos propõem-se “promover
Apesar do sofrimento, Ana recusa-se a participar às autoridades o caso – “Deus me livre” - atira, como que para nos dizer que tem de conviver com o destino que essa força superior lhe colocou no caminho e que se chama violência doméstica.
DOSSIER CIDADANIA // 11
,,Serviços Secretos Portugueses História e Poder da Espionagem Nacional - (José Vegar) Entrevista de | Raquel Silva Fotografia | Mónica Moitas
Os serviços secretos portugueses estão amaldiçoados por fantasmas de um passado a que não pertencem, são impotentes para romper a manipulação executada pelos governos que os tutelam, lidam sem sucesso com a extrema desconfiança do poder representativo, o ódio dos cidadãos, a animosidade dos instrumentos do Estado, para além de aturarem o desprezo das empresas, e não podem disfarçar a ausência de memória e a imaturidade operacional que marca as suas investigações. Há uma passagem no início deste livro que pinta um cenário altamente cinzento relativamente aos serviços secretos em Portugal. Não retira nem uma vírgula? Esse parágrafo diz tudo e, infelizmente, é bestialmente realista. Aliás demorou-me alguns dias a fazer exactamente para compatibilizar aí tanta coisa (risos). Se você pensar num país como os Estados Unidos ou como o Reino Unido que estiveram sob ameaça desde a Segunda Guerra Mundial, a questão dos serviços de informações ou dos serviços secretos faz parte da consciência colectiva democrática dos cidadãos. Toda a agente percebe que têm que existir, porque percebeu na pele que um Estado sem esses serviços é vulnerável e se assim é os primeiros alvos são os cidadãos... As pessoas percebem a razão de existir e isso torna o trabalho deles muito mais fácil. Os cidadãos colaboram, as universidades colaboram... se um pós graduado entrar para o FBI nos Estados Unidos as famílias sentem-se orgulhosas, é Serviço Público, como eles dizem. Em Portugal temos um Estado bastante frágil praticamente desde o século XVI. Não faz muito parte da nossa cultura, nós cidadãos termos a consciência de que pertencemos a um Estado, de que somos uma colectividade e trabalhamos para ela. Isto é logo um problema. Não nos sentirmos parte de um todo tem a ver com séculos e séculos de Estado frágil e também, e é preciso dizê-lo, por uma grande falta de cultura democrática. Mas isso é só o começo porque depois temos um problema que foi a acção da PIDE que juntou as funções de serviços de informação às de polícia política. Polícia política que exerceu a sua actividade sobre a maior parte de todos os líderes políticos que hoje estão no poder. Ou seja, você tem uma uma cultura política que tem medo, desconfia e não gosta de serviços de informações. Você não encotra um único líder politico que lhe diga “os serviços de informações são úteis e muito importantes, vamos requisitar os serviços deles”. Se o poder político está sempre a falar dos Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos isso espalha-se por osmose. Se você, por exemplo, for um funcionário dos serviços secretos ingleses e contactar uma empresa do tipo da Sonae para que lhe envie alguém para ajudá-lo a fazer a leitura de alguns dados financeiros, vão dizer-lhe “Com certeza!”. Agora, se alguém do SIS ligar para o BPI a pedir um tipo de ajuda similar vai ouvir: “Colaborar com o SIS nem pensar!” 12 // ENTREVISTA
A mudança é uma questão de tempo ou livros como este ajudam a acelerar o processo? Eu acho que livros como este podem ser úteis mas não sei se não será uma questão de tempo porque, afinal, já lá vão 30 anos desde o 25 de Abril e nada evolui. Parece-me que é, fundamentalmente, uma questão de coragem política. Eu tento alertar para isso quando ponho aí uma história ficcional em que os serviços secretos estavam a colaborar com o Ministério da Educação para tratar de indivíduos com insucesso escolar que podiam cair na marginalidade, estou a fazer um esforço pedagógico para mostrar que o SIS não anda só atrás de espiões. Agora, o problema é que as coisas continuam bloqueadas: tem os responsáveis dos serviços a dizerem que sem escutas não conseguem trabalhar o terrorismo islâmico e não há um único político a dizer que é preciso rever a lei em Portugal. Isto de ser jornalista também é ser uma espécie de espião... O jornalista é igual ao espião e ao polícia: procura informação e analisa informação. O objectivo é o mesmo só que o espião trabalha para o Estado e o jornalista para o leitor. Acredita que o trabalho jornalístico pode mesmo ajudar os serviços secretos? Sem dúvida. Mas deixe-me só fazer um parêntesis: eu não acho que o jornalista deva ser militante, acho que deve recolher os factos e ponderá-los. Dito isto eu acho que o trabalho jornalístico é fundamental para a criação de uma consciência cívica e para um alertar dos problemas. Há tarbalhos de jornalistas sobre a corrupção ou a educação que são notáveis e ajudam a perceber muito mais. Portanto eu acho que têm um papel fundamental na criação de uma consciência dos cidadãos, na criação de informação que não está disponível e, no fundo, dizer: ‘você não andava a pensar nisto, mas isto é grave!’ Voltando aos serviços secretos, o facto de pertencermos à UE não representa uma pressão para nos modernizarmos? Sem dúvida e a pressão neste momento já existe. Se um argelino que é suspeito em Roma vier para Lisboa temos toda a UE a pressionar para o encontramos. Toda a nossa
exigência, a nossa capacidade de resposta e de trabalhar em rede aumentou muito devido à pressão externa, o que é extremamente benéfico. Porque há aqui um problema que as pessoas não percebem: se você não conseguir encontrar o argelino vão mandar cá os próprios agentes italianos atrás dele e, depois, vão dizer que você é incompetente e se é incompetente não lhe dão informação e fica fora da rede. Sim, a pressão externa tem sido enorme e as pequenas inovações que têm sido feitas tem sido muito à custa disso. Como resumiria o ângulo deste livro? É uma resenha histórica, é uma reportagem que deu em livro, o que é? Eu próprio penso muito nisso... Ainda no outro dia fui a uma conferência do Pacheco Pereira e às tantas alguém perguntou se ele era um académico, um comentador ou um político... e ele, muito tranquilamente, respondeu: ‘sou muitas coisas!’ E eu também acho que este livro é muitas coisas. Era para ser um livro sobre os serviços contemporâneos, o terrorismo e o crime organizado. Essa era a matriz. Depois comecei a pensar na necessidade de dar uma perspectiva histórica (que deve ter alguns erros porque não sou propriamente um perito na área). E depois era preciso tornar o texto atraente. O que eu diria é que é um livro de investigação sobre os serviços secretos e o que eles fazem, com uma grande tentativa de harmonia narrativa conseguida através da história de ficção. Está aqui uma questão, pensem nela... é o mote? É mais conheça o que se está a passar à sua volta. Percebe que quando vai comprar caril ao Martim Moniz pode estar ao lado de um terrorista argelino. Perceba que quando vai na auto-estrada Lisboa-Porto ela podia ter sido muito mais barata. Perceba que chega ao Algarve e o apartamento onde vai ficar de férias pertence a um mafioso russo...esse tipo de coisas. Para chegar à conclusão que os Serviços Secretos como estão neste momento são dispensáveis (como se lê na parte final)? É redutor dizer que são dispensáveis, o que eu quero dizer é que é possível que alguém pense politicamente (teoria e execução) e reformule todo o sistema. Porque enquanto houver esta sobreposição e estes conflitos de competências quem perde são os cidadãos. [x]
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Bairro da Sapateira A origem dos ciganos continua a ser um mistério. O que hoje se sabe, graças a indícios nos vários dialectos do seu idioma – o romani – é que vieram do norte da Índia para o Médio Oriente há cerca de mil anos. Trabalhavam como menestréis e mercenários, ferreiros e artistas, damas de companhia e aios. Espalharam-se por várias zonas da Europa e aponta-se que talvez o seu nomadismo se tenha devido essencialmente à sua difícil integração social. Devido ao tom escuro da pele e às práticas de quiromancia e adivinhação foram vítimas de perseguição em vários países. Hoje, estima-se que existam cerca de 8 a 12 milhões de ciganos dispersos pela Europa, o que os torna a minoria mais populosa do continente europeu. A A.23 encontrou em Castelo Branco um exemplo de reintegração da comunidade cigana, apesar das duras críticas tecidas a esta obra, apelidada de “gueto do século XXI”. Situado no lugar da Sapateira, a dois quilómetros da cidade, encontrámos um bairro de portas abertas à natureza que alojou cerca de vinte famílias que até então viviam em barracas num local próximo do chamado viaduto de acesso ao Bairro da Carapalha. Neste bairro respira-se hospitalidade. Cada um dos moradores, novos ou velhos, encontra a sua energia na pulsação da terra. Os rostos, esses, acusam os sulcos do tempo ou o queimado do sol. Em cada um, a terra escreveu a sua mensagem de vida. Pedro Salvado 14 // FOTO ENSAIO
Texto | Rahul Kumar (sociólogo) Fotografia | Rui Monteiro
,,Um olho no
Mercedes e outro no cigano
FOTO ENSAIO // 15
“Cigano: s. m., indivíduo pertencente a uma raça nómada, a raça cigana, provavelmente originária da Índia e emigrada para a Europa Central, que possui um código ético próprio e que se dedica ao comércio, ao artesanato, a ler a sina, etc.; fig., vendedor ambulante; homem astuto, velhaco, trapaceiro, burlador; adj, ladino, esperto, ardiloso.” “Ciganar: v.int., proceder como cigano; trapacear; ludibriar; viver de intrujices; pedinchar.” Dicionário Universal de Língua Portuguesa, Texto Editores, 2006
É impossível compreender a situação dos ciganos em Portugal sem ter em mente esta definição de dicionário. A contradição entre a situação”objectiva” dos ciganos e a forma como são vistos em Portugal, por uma parte significativa da população, é extraordinária. Dois estudos conduzidos pela Númena – Centro de Investigação em Ciências Sociais e Humanas, um sobre as Experiências de Discriminação dos Imigrantes e Minorias Étnicas, desenvolvido em 2005, e outro intitulado O Acesso dos Ciganos aos Serviços Sociais, 2007, fornecemnos alguns dados que permitem contextualizar a situação social dos ciganos em Portugal. No estudo de 2005, 29% da amostra de ciganos não tinha qualquer escolaridade e 42% tinha apenas a quarta classe, com mais 25% com o sexto ano concluído. Isto é, 96% dos indivíduos não possuía qualquer educação acima do sexto ano de escolaridade. No mesmo estudo, 67% dos indivíduos de etnia cigana declarava ter um trabalho, uma proporção muito próxima da taxa de emprego nacional, que em 2003 era de 68,1%. Já no que toca à ocupação os dados são ainda mais esclarecedores: 90% dos ciganos enquadra-se na categoria das ocupações não-qualificadas ou indiferenciadas, quase sempre a venda ambulante. Sector que para além de se encontrar em franco declínio em Portugal, fruto de políticas económicas e urbanísticas que afectam igualmente, por exemplo, os pequenos comerciantes, não garante rendimentos mensais fixos e funciona em larga medida à margem da economia formal. Este simples facto tem implicações no quotidiano dos indivíduos: impossibilita o estabelecimento de contratos de arrendamento ou compra de habitação; inviabiliza o acesso aos empréstimos bancários; impede o acesso aos benefícios de todo o sistema contributivo da segurança social, e em especial às reformas e pensões. Este retrato, que deveria originar revolta e indignação tanto por parte dos cidadãos como autoridades dá azo, porém, a indiferença e desconfiança, sentimentos que não podem de forma alguma deixar de ser equacionados fora do contexto do racismo e do preconceito prevalecentes em relação aos ciganos. A instituição de uma série de benefícios sociais enquanto direito, isto é, fora do espaço arbitrário da caridade, essencial para garantir um conjunto de serviços e bens básicos aos grupos sociais mais fragilizados encontra fortes resistências, não apenas nos sectores tradicionalmente adversos à extensão dos direitos sociais mas dos próprios encarregados de providenciar esses serviços. Os ciganos, 16 // FOTO ENSAIO
por sua vez, são muitas vezes tidos como os principais beneficiários indevidos dessas medidas. Nesse sentido não é incomum ouvir assistentes sociais a referir casos de ciganos que “vêm receber o Rendimento Social de Inserção (RSI) de Mercedes” (sempre de Mercedes curiosamente), funcionários do centro de emprego que, apesar da evidência diariamente constatada que nenhum patrão contrata ciganos, afirmam sem ambiguidades que “eles não querem é trabalhar” ou cidadãos revoltados com o facto de terem trabalhado as suas vidas inteiras para agora “darem casas aos ciganos”. Isto é, “eles” são burlões, trapaceiros e ardilosos. Como no dicionário. E tudo isto com a quarta classe. Estes soundbytes, certamente partilhados por muitos outros portugueses, falham em compreender alguns pontos essenciais. Antes de mais que se trata de uma questão de exclusão com raízes no mais profundo racismo, como indica o uso recorrente do “eles”, e a generalização do comportamento de um individuo para um grupo inteiro, que deixou de ser identificado fenotipicamente para passar a ser culturalizado (as novas vestes do racismo). Em segundo lugar que condições de discriminação e pobreza centenárias geram nos indivíduos formas de resistência aos poderes e grupos que sentem como ameaçadores. A chamada “cultura cigana”. Em terceiro lugar que a implementação de políticas públicas pró-activas e estabelecidas enquanto direito, fora dos humores e das agendas de instituições e funcionários, é um instrumento
O RSI... tem permitido que inúmeras famílias ciganas e não só, passem a ser integradas no Serviço Nacional de Saúde, que mais crianças completem a escolaridade obrigatória e que inúmeros adultos tenham acesso a cursos de formação.
essencial de integração social. O RSI, por exemplo, apesar de todas as suas lacunas, tem permitido a que inúmeras famílias, ciganas e não só, mas também elas, passem a ser integradas no Serviço Nacional de Saúde, que mais crianças completem a escolaridade obrigatória, que inúmeros adultos tenham acesso a cursos de formação (a relevância e os objectivos destas, como doutras, formações é todo um outro debate). De um modo mais geral, a questão dos ciganos não diz respeito apenas aos ciganos. Condensa uma escolha, difícil de colocar em prática, certamente, mas que deve orientar as decisões que tomamos enquanto colectivo. Trata-se, de modo básico, de saber o que queremos dos nossos impostos: casas, escolas e hospitais ou esquadras, tribunais e prisões? Os franceses escolheram a segunda hipótese.
Dados estatísticos: 41% dos ciganos afirmam já lhes ter sido negado um emprego pela sua origem étnica. 25% dos ciganos referem já lhes ter sido vedada a entrada num restaurante pelo facto de serem ciganos. 60% dos ciganos que tentaram alugar uma casa consideram que não conseguiram a casa pela sua origem étnica. 51% dos ciganos que tiveram contacto com a Polícia em 2004 afirmaram terem sido mal tratados pelas autoridades. Numa escala de 1 a 7, sobre o seu sentimento de identificação e pertença a Portugal 67% dos ciganos responderam 7. O segundo grupo da amostra com mais empatia com o país foi o guineense: 20% responderam 7. Num ranking de 31 minorias, residentes em diversos países europeus, os ciganos ficaram posicionados no oitavo lugar dos mais discriminados, a grande distância de todos os outros grupos minoritários residentes em Portugal.
Nota: Todos os dados estatísticos foram retirados de um relatório da Númena para o Observatório Europeu do Racismo e Xenofobia (EUMC), produzido no contexto de um estudo comparativo sobre Experiências de Discriminação dos Imigrantes e Minorias Étnicas na Europa, a ser editado brevemente. A amostra portuguesa era constituída por imigrantes brasileiros, cabo-verdianos, guineenses e ucranianos, para além dos ciganos.
FOTO ENSAIO // 17
Texto | Manuel da Silva Ramos Ilustração | Lucas Almeida
,,A Grande Beatitude de Monsieur
Ramos
O passado ( agora eu sei ) é uma certa abertura praticada subitamente num pano de cena de um teatro... No outro dia, pelo mais puro dos acasos, encontrei-me no teatro X... à procura do meu amigo T...que é aí encenador oficial e depois de ter deixado o meu bilhete de identidade à porta avancei para o seu escritório . Não o achando, pus-me a vagabundear pelos bastidores e de repente encontrei-me num palco escuro iluminado por uma pequena luz vermelha presa ao tecto. Os dois panos estavam corridos e eu naturalmente pensei que o meu amigo estava sentado na plateia, do outro lado dessa barreira máxima, tão importante numa peça de teatro. Arredei cuidadosamente o pano direito com a destra, com a firme disposição de ver o meu amigo embrenhado em papéis mas só vi o meu passado, límpido, brutal, tragicamente desconexado... Estava a chegar a uma grande praça cor de rosa vindo de uma pequena rua de peões. Na praça o pavimento era de mármore branco e a luz que aí se reflectia dava aos transeuntes mil aspectos definitivos, como se na vida fossem molduras de quadros vivos. Eu avançava com um passo decidido com uma maleta preta na mão e rapidamente cheguei diante do hotel que fazia esquina numa rua que desembocava na praça. Era um dos hotéis mais conhecidos dessa cidade francesa, o maior, pois os seus numerosos quartos faziam quase a totalidade do edifício em L, poderosamente construído com tijolos róseos. Por ironia da sorte, em cada extremidade do prédio imponente em forma de grande transatlântico, jazia desde séculos um convento de irmãs religiosas e uma igreja no lado oposto. No meio havia um baldio e um caminho rodeado de muros altos que fizera outrora secretamente a comunicação entre a luxúria e o pecado. Agora era um refúgio urinante de mendigos e bêbados... Entrei no hotel e pedi a chave do meu quarto e depois de subir dois andares pelas escadas cheguei a um corredor numerado. Penetrei no quarto mais afastado e rapidamente me senti bem, tranquilo, protegido. Coloquei a maleta em cima da cama e fui lavar as mãos. Voltei e pus-me ao trabalho. Tirei o berbequim e a caixa das brocas e comecei a furar a parede ao lado da chaminé inútil que fazia só decoração. Estive nesta operação toda quase uns vinte minutos. Depois mudei para a broca maior e ainda estive neste trabalho mais uma boa meia hora. Depois contente observei o buraco e depois de retirar a terra com uma pequena escova vi que estava suficientemente largo. Completamente 18 // CRÓNICA
em suores sentei-me numa cadeira e tirei do bolso do casaco o meu primeiro cassecroute. Tinha mais uma bucha no outro bolso mas esta soube-me bem e fiquei satisfeito. Levantei-me e olhei-me no espelho por cima da falsa chaminé. Tinha os olhos brilhantes de expectativa. Agachei-me e pus-me a olhar pelo buraco. Era incrível. Lá estava tudo: a neve caindo sobre uma casa com esquisitas ameias, um miúdo a estudar num quarto sem janelas e com uma trave incómoda ligando a parede e o tecto, uma braseira incandescente rodeada de homens roucos e casacos cheios de pó...Era a minha infância no país longínquo, perdido. O choque foi de tal maneira brutal que me levantei pois faltava-me o ar. Ouvi de repente outros ruídos de brocas nos corredores. Era gente que praticava o buraco erótico, outros o religioso, outros o político. Mas a maior parte era o buraco erótico pois muitas vezes fui surpreendido nesse hotel por uma irrupção acidental de pensamento enquanto fazia amor com uma desconhecida...Agachei-me outra vez e desta vez vi-me resplandecente, novo. Devia ter dez anos e olhava de pé o buraco do meu sexo pendente como se eu fosse uma mina de perpétua vitalidade com água pura, fresca, saltitante...Depois a imagem mudou e agora era o meu pai que se activava à minha volta com a boca cheia de reluzentes alfinetes. Provava-me um casaco com a sua infinita ternura de homem experimentado. Sentia muito bem esse calor que brotava dele e que me parecia um fogo inextinguível. Depois ainda me vi mais uma vez com um livro francês debaixo do braço e procurando a sombra de uma nogueira próxima de um ribeiro... Subitamente a luz apagou-se e a cena francesa terminou. Fiquei surpreendido e glacé. Um frio começou-me a percorrer os membros. De repente senti que alguém me agarrava o ombro e me forçava a olhar novamente um foco cónico de luz. Avançava desta vez num corredor de uma casa que tinha a particularidade de ser forrado com um pano purpurino. Subi até ao terceiro andar e inopinadamente encontrei-me diante de uma porta onde estava escrito um nome e uma profissão barrada a vermelho : M me Raymond ( voyante ).Toquei à campainha da ex- vidente mas ninguém me abriu. Como a porta estava encostada entrei e depois de ter atravessado duas peças mergulhadas na penumbra encontrei-me num grande quarto cheio de luz. Uma matronaça estava numa cama e esperava-me. Disse-me isso logo que entrei. Comia chocolates de uma caixa redonda e estava nua.
Uma matronaça estava numa cama e esperava-me. Disse-me isso logo que entrei. Comia chocolates de uma caixa redonda e estava nua. Era duma monstruosa gordura e já não se lembrava de mim.
Era duma monstruosa gordura e já não se lembrava de mim. Já não era a mulher que eu amara numa igreja quando chegara aos vinte anos a esse país estranho e generoso. Ela falava agora de electrochoques, de perseguições familiares, de um marido morto com um propositado apocalipse de cogumelos venenosos, de neurolépticos e ansiólitos, de certos dias do mês em que desbloqueava como as estrelas cadentes...Fez-me avançar e disse-me para eu me meter e que não risse lá dentro...Meti a cabeça dentro da sua incomensurável, infinita cona, tão grande como a grande agulha de Étretat. E senti-me lá bem, numa paz de estrangeiro a tudo, de guerreiro valente e morto ... De repente ela falou dirigindo-se a um soldado desconhecido : « Ça suffit, mon brave ! » Chega, que já viste o suficiente ! Apanhado e abalasurdo, recuei de dois passos. E foi ainda a recuar que saí dessa casa que cheirava a enxofre e a mijo de gato. Decididamente não me reconhecia a mulher que eu fizera gozar dentro dum confessionário até à loucura.... Engordara, ficara louca, delirava... Depressa me encontrei na rua e depressa entrei num café onde ao balcão engoli quatro ricards para me restabelecer. Já mais calmo pensei no que me acontecera e no que vira no interior da cona da minha antiga partenaire. Era um horrendo segredo que não valia a pena revelar a ninguém...Nem no leito de morte e com um copo de champanhe na mão...Nessa tarde para acalmar a minha angústia que era uma pedreira escavada numa montanha verdíssima e o meu riso, essas pedras naturalmente polidas que esperam a hora do embarque, engatei a primeira rapariga de olhos azuis que encontrei na rua e levei-a para um hotel barato mais uma garrafa de Bordéus.. Rapidamente a beatitude voltou, desta vez depois das reverendíssimas ondas de prazer, dos gritos, das súplicas...Mas uma outra onda me traiu, maligna, e tive de ir à retrete vomitar o vinho...Quando voltei a rapariga que me amara tinha desaparecido...Assim fiquei na cama nu até a noite se instalar...Depois enquanto me vestia pensei que Deus não me tinha ensinado a foder e que tinha sido a corrente tumultuosa da vida que me tinha ensinado a sobreviver a todas as catástrofes que eram também outras tantas mesas postas de bom riso no casamento de uma esquina crua com a minha realidade mágica --- união sem noivos, sem padre infame, sem fotógrafo inútil... [x] Nota: Este texto é o último no livro “ O Sol da Meia- Noite “ que contém os seguintes textos: “ O Sol da Meia- Noite “, “ Contos do Bem- Aventurado Errante “ e “ A Grande Beatitude “.
CRÓNICA // 19
,,Portfolio
Margarida Dias Outros mundos, de nada e de tudo
Orgia, 2005 Luísa Cruz, João Grosso e Kjersti Kaasa D. Juan, 2004 Carlos Peixoto Ilíada, 2006 Gianluigi Tosto Respirações de Inês, 2005 Eurico Lopes
Texto | Margarida Gil dos Reis
O que vemos de facto quando olhamos para uma fotografia? Como definir uma prática, se quisermos um ritual, que restitui a presença aos ausentes? Margarida Dias fotografa, há mais de vinte anos, momentos inscritos nessa ténue linha entre o dito e o não-dito, entre o nada e o tudo. A palavra cede o lugar à imagem e é nesse ponto, cego e luminoso, que reside o desvio do efeito de verdade do real. Fotógrafa voltada para a noite, o preto e branco tem feito parte do seu processo criativo: um tecido de sombras ponteado com cor. Gestos, rostos, fragmentos do tempo que teimam em se fazer mostrar, em nos olhar, olhos nos olhos, como se quase sentíssemos o lento pulsar de um corpo vivo. Através da fotografia, Margarida Dias constrói outros mundos onde a palavra, em silêncio, respira ofegante, prestes a ser dita e a dizer-se. Estes são momentos únicos onde a luz desvela os rostos e o espectador tem a difícil tarefa de recriar uma dramaturgia, uma história ou, simplesmente, uma palavra. Por isso espera-se. Espera-se pacientemente para capturar o segredo que reside em cada imagem. Talvez porque, segundo La Rochefoucauld, o real, como o sol ou a morte, queima e cega se fitado de frente.
Fedra, 2007 Beatriz Batarda
Perfil Depois de completar o plano de estudos de fotografia (1983/89) do Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, Lisboa, Margarida Dias foi convidada para aí continuar como professora (1989/2006). Foi também professora de fotografia no IAO – Instituto de Artes e Ofícios, da Universidade Autónoma de Lisboa. Simultaneamente, prossegue a sua actividade como fotógrafa profissional, com colaboração em revistas, jornais, agências de publicidade, ateliers de design e de arquitectura. É, desde 2003, colaboradora do Teatro Nacional D. Maria II, colaborando pontualmente com a Escola de Mulheres e o Teatro Municipal Maria Matos. Com várias exposições individuais e colectivas, está representada em colecções tanto públicas como privadas, quer no estrangeiro (Fondazione Italiana per la Fotografia – Turim, Itália), quer em Portugal (Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa; Encontros de Imagem – Braga; Colecção Culturgest; Colecção PLMJ – Sociedade de Advogados). Margarida Dias tem publicado desde 2000 um calendário temático com as suas fotografias. Publicou igualmente o livro O Segredo, sobre o Atelier do escultor Lagoa Henriques, edição do Arquivo Fotográfico de Lisboa, CML, 2001.
Desejos Brutais, 2003 Manuela Couto e RogĂŠrio Samora
Aconteceu no TMG
Ciclo “Vozes do outro Mundo”
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Teatro Municipal da Guarda | Junho 2007
Alquimias Vocais Texto | Vítor Afonso
Texto | Victor Afonso Fotografia | ?????????????
22 // ENTREVISTA
A voz como veículo comunicacional e a voz como meio de expressão artística. Ambas as formas foram (e são) modelos de desenvolvimento humano e civilizacional. Na senda do ciclo que o Teatro Municipal da Guarda promoveu em Junho, “Vozes do Outro Mundo”, o que importa agora analisar é a segunda forma que a voz pode tomar: a artística. E neste capítulo a história da música e das artes (das tradicionais às de vanguarda) registam um longo e diversificado historial de experiências com a voz. Dependendo da época histórica e da localidade geográfica, a voz adquiriu sempre uma maior ou menor importância no contexto da criação musical, fosse nos rituais religiosos, pagãos ou festivos.
Houve alturas em que a música detinha um carácter unicamente vocal (como no Canto Gregoriano), outras em que desempenha uma função eminentemente ritualista e de profunda evocação da alma humana (como o canto Qwalli do Paquistão, o Cante Jondo andaluz, o fado português, as tradições vocais das tribos africanas e de países do extremo Oriente, como as impressionantes vozes dos budistas tibetanos). A voz é uma espécie de consciência individual do indivíduo, de projecção interior que revela as capacidades expressivas do indivíduo, que expõe a nu os mais recônditos recantos emocionais da alma e os traços de carácter. Independentemente da zona do planeta ou do povo que estejamos a falar, o certo é que cada tradição ou forma de expressão musical baseada na voz tem a sua própria especificidade linguística. Umas valorizam mais o aspecto fonético e tímbrico, outras a vertente rítmica do fraseado dos sons, outras ainda, as linhas melódicas improvisadas ou previamente escritas. No século XVI, na cultura ocidental, começaram a utilizar-se categorias básicas para classificar as vozes humanas, segundo as suas tessituras: soprano e contralto para vozes femininas e tenor e baixo para as masculinas (surgiram depois outras variantes para registos intermédios). Foi neste contexto que surgiu uma das formas musicais que mais valor outorga às capacidades vocais dos intérpretes: a ópera. A partir do início do século XX, surgiram géneros musicais que seriam impossíveis de imaginar sem a intervenção vocal: o jazz, os blues, o gospel, o rock, o pop, o soul, entre muitos outros estilos. A voz adquire autonomia artística própria, e muitos artistas fazem dela o seu verdadeiro instrumento criativo (o único, sem recurso a outros ditos convencionais). Na área das vanguardas, a voz tem sido utilizada como ferramenta para os poemas fonéticos dos dadaístas e dos modernistas portugueses, assim como para as experiências electrónicas e de spoken Word de certos cantores e compositores contemporâneos (Meredith Monk, Joan La Barbara, Phil Minton, Alvin Curran, John Cage, Bobby McFerrin, etc). No seguimento desta introdução, o Ciclo “Vozes de Outro Mundo” que o Teatro da Guarda organizou entre 5 e 22 de Junho revelou múltiplas formas artísticas de abordagens à voz enquanto instrumento com potencialidades sonoras e musicais inusitadas. Um programa de espectáculos promissor,
diversificado e de qualidade internacionalmente reconhecida. Um ciclo que aborda vozes excêntricas e invulgares e, inerentemente, músicas vindas do “outro mundo.” Para começar, dia 8 chegou do longínquo Canadá Tanya Tagaq; é Inuit, povo indígena das regiões árticas do Quebeque. Tagaq é uma notável “throat singer” (pratica canto gutural) que construiu carreira ao fim de 6 anos de percurso baseando-se no fascinante canto tradicional dos esquimós. A excentricidade vocal de Tanya Tagaq seduziu a pop star islandesa Björk para colaborar na música “Ancestors”. Logo no dia a seguir (dia 9) apresentou-se no Pequeno Auditório do TMG um jovem artista que está a arrebatar o panorama musical europeu (e sobretudo o panorama ligado à cultura juvenil do hiphop): Shlomo, de seu nome artístico. A sua jovialidade não o impediu de ser já nomeado para um Grammy e de colaborar (quem mais?) com Björk. E porque é que Shlomo tem uma voz “do outro mundo”? A resposta é elementar: porque Shlomo tem capacidades vocais invulgares para qualquer mortal, capaz de imitar qualquer instrumento ou género musical com desarmante facilidade. A técnica que utiliza, conhecida como “beatboxing”, já não é nova, mas Shlomo usa-a de forma inovadora no sentido de não se limitar a debitar ritmos maquinais que poderiam ser emitidos por uma caixa de ritmos. Este inglês usa apenas como ferramentas a versatilidade técnica da sua voz, um simples sampler e dois microfones. O resultado é um exímio e espantoso trabalho vocal e rítmico que deixa qualquer espectador rendido à criatividade deste jovem “beatboxer”, capaz de emitir dois ou três sons diferentes simultaneamente. Basta abrir o youtube e constatar o espanto que provocou na assistência do programa de TV britânico Jools Holland com a sua inusitada performance vocal. Na tarde que precede o espectáculo Shlomo orienta uma Oficina de Beatbox, para os interessados no movimento Hip-hop. Huun-Huur-Tu. Nome bizarro para designar um grupo de música. Chegam da distante Tuva, uma quase esquecida república da Federação Russa, situada entre a Mongólia e a Sibéria. É este quarteto de músicos e cantores que se apresenta no Teatro Municipal da Guarda no dia 20 de Junho. Munidos de instrumentos tradicionais de cordas tuvanos, os Huun-Huur-Tu recorrem ao canto gutural, forma vocal tecnicamente complexa, porque recorre ao controlo dos sons
emitidos pela boca, laringe, faringe, entre outros métodos de produção vocal. A música deste grupo é profunda, parece vinda das entranhas do corpo, numa espécie de comunhão intrínseca com a natureza e com as raízes nómadas dos povos ancestrais de Tuva. Um universo musical à parte, portanto. Para fechar este invulgar e fascinante ciclo de “Vozes do Outro Mundo”, dia 22 de Junho, um artista belga que é muito mais do que um cantor: Bernard Massuir. Oriundo das artes do espectáculo, Massuir é não só um excelente cantor (na acepção convencional do termo) como um intérprete que dá valor ao lado lúdico e humorístico da performance, dado que as suas composições originais são como que peças de brinquedo onde o som inaudito, os jogos fonéticos e rítmicos da voz perfazem um puzzle musical deveras contagiante e divertido. “La Voix Est Libre” (título sugestivo) é o novo trabalho do belga Bernard Massuir, o mesmo trabalho que apresentou ao vivo no TMG. Para além da sua voz, Massuir toca um raro e antigo instrumento francês chamado basses aux pieds, uma espécie de acordeão que é tocado com os pés (!) e que o seu avô, também ele músico, usava no início dos anos 20 do Século XX. Em suma, “Vozes do Outro Mundo” é um programa aliciante e rico, que celebra a voz como novo paradigma da música do Século XXI. [x]
Tanya Tagaq Canadá
Shlomo Inglaterra
Huun-Huur-Tu Tuva
Bernard Massuir Bélgica
CULTURA // 25
Franco atirador da literatura, humorista temido, pintor, José Vilhena semeou milhões de gargalhadas e fez da ironia uma arma de arremesso contra a hipocrisia. Apesar de já ter sido processado seis vezes depois do 25 de Abril, a voz de Vilhena manteve-se incisiva e crítica perante a realidade que nos cerca. Salazar, Caetano, Sá Carneiro, Eanes, Soares, Cavaco, Guterres, Santana Lopes, Sócrates, entre muitos outros, são a sua matéria de criação. Um dia, com o brilho nos olhos próprio de quem conhece o valor da palavra, disse que a política é uma porca que, de quatro em quatro anos, pare uma ninhada de deputados. Talvez porque, segundo Vilhena, um bom humorista está muito ligado a uma crítica política, a uma crítica de costumes e a uma crítica dos poderosos.
,,O humor inteligente de
José Vilhena
Entrevista | Ricardo Paulouro Fotografia | David Júlio Carvalho
26 // ENTREVISTA
Quem é o José Vilhena? Nasci em Figueira de Castelo Rodrigo. Vim para Lisboa muito novo, onde fiz o 3º ano do liceu, depois mudei-me para o Porto onde conclui o liceu. Faço a Faculdade de Belas Artes no Porto até ao terceiro ano, entretanto fui para a tropa e mudo-me outra vez para Lisboa onde concluo o 4º ano de arquitectura. É por essa altura que começo a trabalhar nos jornais e a fazer bonecos até hoje. Nasce na Beira Alta. Que memória guarda desse tempo? Nos anos em que eu já pensava um bocadinho acabava por ir pouco à terra, ia lá só nas férias grandes. Nessa altura havia muita miséria, muita desgraça. Entretanto as pessoas começaram a emigrar e basta dizer que hoje são metade do que eram na altura. Em 1955 inicia a sua primeira aventura como editor de “O Mundo RI” que curiosamente era composto e impresso no Fundão… Não só o “O Mundo Ri”, os meus primeiros livros também foram impressos no Fundão. Eu ia lá muitas vezes por causa disso. Fundei a editora com o Armando Paulouro com quem me dava muito bem. Tivemos essa rábula de fazer uma revista que ainda nos deu chatices. Acabamos presos por causa disso e de uns postais meus…
Quando Vilhena filmou “O Quinto Pecado”, no Fundão
O que era “O Mundo Ri”? Era uma editora. Nessa altura a censura não me deixava estar ligado a uma empresa de livros. Eu fazia quase tudo, escrevia e ilustrava. Só que oficialmente a editora era do Simões Nunes e do Armando Paulouro.
P: José Vilhena rodou um filme no Fundão. Como é que se chamava esse filme? R – O filme chamava-se “O Quinto Pecado”.
Uma das personagens tipo que o José Vilhena criou foi a do censor. Isso era uma forma de vingança? A censura incomodava toda gente. Se bem que a censura nas revistas dava uma certa abertura que dava nos jornais. Acontecia muitas vezes eu fazia um boneco para o “Diários de Lisboa” e ser cortado pela censura e depois passar no “O Mundo Ri”.
P: Quem é que escreveu o argumento? R – Eu fazia tudo: escrevi o argumento, realizei-o e até o fotografei. P: O que era “O Quinto Pecado”? R – A história do filme andava à volta de uns tipos que só pensavam em comer e nunca o conseguiram. Era um filme burlesco que tentava misturar Charlot com Jacques Tati.
Outra das personagens que não escapa à pena de José Vilhena é a hierarquia eclesiástica. Porquê? Eu acho que a igreja sempre foi responsável por uma quantidade de atrocidades, através dos tempos, nunca se há-de livrar das patifarias que fez ao longo de dois mil anos. A Igreja católica era um apoio do Estado Novo, era um apoio do fascismo. Mas a personagem que o José Vilhena mais amou é a mulher… Sabe que 90% das anedotas giram em volta de mulheres! As mulheres são sempre um pivot fundamental para as revistas humorísticas. Em oposição à mulher aparece sempre um politico corrupto, um patrão desonesto, um latifundiário depravado, um padre em crise de vocação. O José Vilhena escrevia nas entrelinhas? Uma mulher bonita, bem feita, em contraste com o homem dono dela dá sempre azo a desenhos humorísticos. Nas capas do “O Mundo Ri” fiz muito isso. Mas os leitores liam ou não nas entrelinhas? Nessa altura já sabiam ler nas entrelinhas, às… Logo a seguir ao 25 de Abril lança a “Gaiola Aberta”. Como é que conseguiu ser tão rápido? Eu já tinha muito material feito, só com o 25 de Abril é que pude ter uma revista em meu nome. Que revistas é que criou depois do 25 de Abril? Durante dez anos publiquei “A Gaiola Aberta”, depois fiz o “Fala Barato”, “O Cavaco”, “O Moralista” e agora voltei a publicar. É verdade que “O Cavaco” é uma homenagem a Rafael Bordalo Pinheiro? Pelo menos é uma ideia que me veio do Rafael Bordalo Pinheiro que, como sabe, criou uma revista com o nome de “António Maria”, que era, nem mais nem menos, que o Primeiro-Ministro no tempo dele. Era o António Maria Fontes Pereira de Melo.
A ideia é um relâmpago ou é trabalhada? Às vezes a ideia surge por acaso, outras vezes é preciso trabalhar a ideia, porque as coisas não surgem por inspiração divina. O treino diário acaba por ser fundamental. Qual é o laboratório do humorista? Muitas vezes é a própria vida, as relações que se estabelecem. Outras vezes são as coisas que se lêem. O José Vilhena tem um livro, “O Canal Zero”, publicado nos anos sessenta que contém uma visão muito critica em relação à televisão. Passados 40 anos e com a evolução que houve no sector, continua a ter o mesmo olhar em relação à televisão ou acentuou-se ainda mais? Eu vivo muito à custa da televisão. É um motivo de inspiração. Hoje, a televisão é o poder, nós já não somos governados por um governo ou pela Assembleia da Republica, nós somos governados pela televisão, hoje a televisão é quem manda neste país.
P: O José Vilhena era o padre… R – (Risos) Era. Pedimos as vestimentas a uns padres ali das redondezas para encenar um funeral. P: Quantas horas de filmagens é que fizeram? R – Cerca de 20 horas de filmagens em película 16 mm. Os negativos devem estar nos arquivos da Odisseia Filmes. P: Não ficou com nada? R – Tenho alguns minutos em 35 mm e algumas dezenas de fotografias. P: Que sítios frequentava no Fundão? R – Um café na Praça Velha, o Aliança.
Alguma vez viu o “Big Brother”? Não costumo ver esse tipo de programas porque não vejo qual é o interesse de ver pessoas a dizer patetices umas às outras. Ao princípio ainda pensei que tivesse um pouco de erotismo, o que não se confirmou. Em 1961, publica a trilogia “História da Pulhice Humana” e é convidado para a Sociedade Portuguesa de Escritores. Quem o convidou? Fui convidado por Aquilino Ribeiro mas recusei porque achei que não merecia.
Quantas vezes é que foi processado? Já depois do 25 de Abri fui processado cinco ou seis vezes, mas o processo maior foi o da Carolina do Mónaco em que ela pedia 75 mil contos, mas que felizmente venci em tribunal. Tive outros, o da Caras Lindas, o da Bárbara Guimarães…
Ao longo da sua vida publicou mais de setenta livros. Qual é o seu preferido? Gosto muito da trilogia da “História da Pulhice Humana” que teve muito impacto. Também gosto muito de um livro, “O Elogio da Natureza”. Mas tenho orgulho em todos os livros que escrevi.
Acha que o português lida mal com a ironia? Eu acho que não, a maior parte dos portugueses até tem muito ‘fair play’. Eu chateei muitos políticos como o Mário Soares e o Cavaco e eles nunca levaram a mal. Por exemplo, chateei o Mário Soares de todas as maneiras e feitios e até lhe enviei um livro que lhe dediquei. O Mário Soares escreveu-me a agradecer.
Quem são os seus escritores portugueses preferidos? As minhas grandes referências são o Eça de Queirós e o Camilo Castelo Branco. Também admiro muito o Fialho de Almeida. De escritores actuais gosto do Lobo Antunes.
No livro “Os Testamentos Traídos”, Milan Kundera define o humor como o “relâmpago divino que descobre o mundo na sua ambiguidade moral e o homem na sua incapacidade de julgar os outros”. O que é um bom humorista? Um bom humorista está muito ligado à crítica, a uma crítica de costumes e a uma crítica dos poderosos. O poder não gosta de ser ridicularizado. Os poderosos têm a mania das grandezas e tudo isso é destruído com humor. Quando se ridiculariza uma pessoa, toda aquela proa vai por água abaixo. Foi o que aconteceu com vedetas da SIC que são supra-sumos da inteligência portuguesa. Quando são ridicularizadas, chateiam-se, é claro.
P: Quem eram os actores? R – O curioso nesse filme é que os actores eram os velhos do albergue, depois havia uma rapariga (Filomena) que era muito fotogénica.
As pessoas têm a ideia do José Vilhena como o verdadeiro anarquista. Esta imagem corresponde à realidade? Corresponde à realidade e eu sei que é essa a imagem que o público tem de mim. Humorista, ilustrador, escritor, editor, pintor. De todas estas facetas qual é a que prevalece? Se eu fosse muito rico, só pintava. A minha grande paixão é a pintura. Sendo o José Vilhena um homem de milhões de palavras, digame a palavra que melhor fale de si. Trabalho. Só vejo a palavra trabalho. CULTURA // 27 [x]
,,Cansaço Texto | Pedro Fiúza
É uma época sem precedentes na forma de encarar as coisas. Um cansaço. Uma ausência da vontade de fazer. Um descrédito absoluto pelo carácter das instituições. O grande desejo é fazer um espectáculo terrorista, o mito do espectáculo perfeito que toca directamente na consciência de quem o vê. A alternativa é o voto do silêncio, o suicídio do teatro, um afastamento precoce que surge da noção da impossibilidade. Ainda não ganhámos nada. É uma questão geracional; ou ainda não tivemos tempo, ou alguém luta com unhas e dentes para não termos escolha e aceitarmos a engrenagem da manutenção. O que deve mover os novos deve ser a urgência do risco e não a urgência da estabilidade. O risco é a criação da forma, a estabilidade é já uma propagação. Ainda não tivemos nem tempo, nem oportunidade. O descrédito é mútuo. Nós ainda sonhamos com a nossa revolução que há-de vir. O nosso teatro ainda não existe porque ainda não o experimentámos, são coisas ainda furtivas, à margem da instituição, nas sombras, nos subterrâneos do poder instalado. Neste momento só os jovens podem mudar o que quer que seja, têm menos fantasmas do passado próximo, ainda não se fixaram no objectivo, ainda não definiram a sua luta. O teatro vive de rasgos luminosos, o teatro é uma criação objectiva, é um querer dizer, um querer fazer, é uma paixão, uma entrega. Não podemos encarar o teatro como uma força viva enquanto lidarmos com indiferença ao seu estado nulo de sensibilidade. O teatro é sensível na sua essência. Há uma desistência deste estado de morte lenta do teatro meramente conceptual, feito por supra sumos de qualquer coisa e para iluminados; há uma desistência do teatro antropológico intelectual que afasta o público com a sua repetição formal demasiado gasta em lutas antigas e ultrapassadas. Nos palcos vive o tédio. Faltam os rasgos, a novidade, a verdade, a acção. Vemos o teatro mas o teatro não aparece, fica algures, é um potencial adormecido que ninguém ousa acordar. Será que é medo? Será que não é objectivo de quem o faz usar a sua força única, a força que o define? Durante anos e anos houve a preocupação formal da sua definição, abriu-se o conceito ao limite, surgiram inúmeras formas híbridas, novas técnicas, colagens, subversões... Agora parece que o teatro é algo que já não o é, parece que não importa, é uma referência esfumada que se faz, por onde se deriva, sem que se chegue ao centro do que é. Claro que isto é uma visão facilmente refutável, mas é uma visão que assume a sua própria subjectividade. Há-de vir o tempo. Há-de vir o tempo. O Rei morreu, viva o Rei. O mundo não pára. O teatro há-de ter a sua convulsão ansiosa para provar que é necessário, para provar o seu sentido. Porque quem já não tem nada para dizer devia estar calado. Porque quem já não tem a paixão devia retirar-se. Porque quem já não o sente devia extinguir-se. A acção política do teatro já não é a sua existência, é a sua voz, é a sua forma, é a sua finalidade. Acreditar que só o facto de fazê-lo já é lutar contra a corrente é aceitar o vazio que o teatro não pode ter. É obrigatório que o teatro aconteça porque só isso o pode salvar. O teatro vive numa espécie de exílio. Nada tem de participativo no mundo. Está como que esquecido. Vive de situações que é preciso denunciar. Talvez quando se mudarem realmente as formas deste vazio em que vivemos se possa também resgatar o teatro, se possa também fazê-lo acontecer, sem barreiras, sem limitações. Qual é o dever da juventude afinal? [x] 28 // CULTURA
,,Para quando os Shane Meadows da A23? Texto | Pedro T. Ramos
Shane Meadows é, para a maioria, um desconhecido realizador britânico de 35 anos que nasceu em Uttoxeter, Staffordshire nas bem provincianas East Midlands inglesas, e que construiu uma carreira capturando a realidade diária dessa Inglaterra provinciana com objectividade, talento e um sentido de humor muito peculiar. Shane foi um jovem problemático que saiu cedo da escola, se uniu a uma emergente “National Front” durante a era Thatcher e tinha decidido transformar-se num gangster que ficasse na história como nos filmes. Mas a sua carreira criminal durou pouco pois num dos seus golpes mais ousados (o roubo de uma bomba para aumentar os seios na Boots da esquina) foi apanhado, julgado e humilhado no tribunal. O jovem Shane decide nesse momento dirigir toda a sua energia para os filmes. Para começar faz um contrato que se veio a revelar fundamental para a sua carreira: Trabalhar de borla no que quer que fosse para a produtora Intermedia Films em Nottingham (terra do Robin dos Bosques), e em troca poder usar todo o equipamento de imagem e edição da produtora para as suas primeiras experiências vídeo. Depois de reunir uma colecção de algumas curtas em vídeo começou a mostrá-las a alguns amigos que entusiasmados com o que viram começaram a colaborar com ele e a produzir também alguns pequenos filmes. Como não encontravam espaços para os exibir começaram a organizar sessões especiais num antigo cinema que foram ganhando popularidade e chegaram a transformar-se num pequeno festival de vídeo. Depois de um período de produção intensa de curtas metragens (mais de 50!!!) Shane Meadows estreiase nas longas metragens com um dos melhores filmes ingleses da década de 90 – Twenty Four Seven. A partir daí foi regularmente entregando jóias desapiedadas sobre personagens que vão vendo o tempo passar, em cidades onde nada acontece, o desemprego alastra, a pequena criminalidade floresce e as drogas, mais ou menos legais, vão aliviando os dias dos “sobreviventes”. No Reino Unido só Shane Meadows, juntamente com o bizarro Pawel Pawlikowski e a descoberta do IMAGO 2005, e posteriormente oscarizada Andrea Arnold, conseguem filmar
as suas raízes mais profundas e provincianas, conseguem expor as suas experiências e daqueles que os rodeiam de uma forma crua e visceral, mantendo um distanciamento para que seja o espectador a julgar o pouco que há para julgar. Aquilo que nos é mostrado é tão próximo de nós, da vida pequenina e provinciana de qualquer habitante de um qualquer País Europeu, que nos deixamos levar por uma atitude contemplativa como se estivéssemos a ver desfilar pelos nossos olhos uma representação das imagens que nos povoam os dias. Apesar de exemplares exóticos, Shane e os seus colegas, conseguem alguma visibilidade tanto interna como externa. O seu último filme, recentemente estreado em Inglaterra – This is England - foi entusiasticamente recebido pela crítica e obteve mesmo os prémios maiores dedicados ao cinema independente britânico. Estes realizadores da M1 britânica poderiam ter um paralelo na A23 portuguesa. Mas não têm e dificilmente vão ter. Isto apesar do talento desbordante que encontramos em alguns jovens da região que apresentam trabalhos no IMAGO e que têm conseguido dar o salto para alguns festivais de importância maior no panorama internacional, e de uns tantos esforçados que com a ajuda do artista da novela de ocasião, lá vão estreando com algum alarido local os seus “vídeos caseiros” que conseguem apesar de tudo fazer circular pelos circuitos de festivais mais pequeninos. Foi assim que Shane Meadows começou. A existência no eixo A23 de 2 estruturas de excelência em termos de meios e programação cultural como são o TMG e a MOAGEM, a existência e visibilidade do festival IMAGO, e os cursos de Cinema e Multimedia da Universidade da Beira Interior e do politécnico de Castelo Branco, poderiam e deveriam criar as condições para a formação e fixação de jovens em projectos de produção audiovisual que necessitariam obviamente de um acompanhamento e apoio por parte do poder central e de uma verdadeira integração sinergética local, para daqui a alguns anos estarmos a falar de um Zina Caramelo ou de um Rodolfo Pimenta como hoje falamos de um Shane Meadows. [x] Shane Meadows: www.shanemeadows.com
,,Telegrama do
direito à diferença Texto | Luiz Antunes
O corpo afina-se stop. Significar a imagem do corpo, mostrar a sua vulnerabilidade. Stop stop. Não ser reconhecido como um profissional que rasga as entranhas com suor e prazer para nunca falhar, stop. Ser diferente de qualquer outro artista, ser bailarino e acabar a carreira aos 40 com costas tortas e pés deformados. Stop. Ser da responsabilidade dos governos financiar um desenvolvimento profissional, dos artistas profissionais, assim como sustentar a reconversão de certas categorias de artistas, tais como os profissionais da dança (Congrès Mondial sur 1’application de la Recommandation relative a la condition de l’Artiste organizado e realizado na sua sede pela UNESCO, em cooperação com o Ministère Francais de la Culture, a Commission National Francaise pour l’UNESCO; artigo 32) e ser tudo uma enorme falácia. Stop, stop stop. Valor que se resume normalmente a um reconhecimento por prémios, condecorações presidenciais ou a papeis de meros acompanhantes ao estrangeiro de presidentes e ministros. Stop, stop. Cultura entregue a curiosos das artes que olham directamente para os seus centros corpóreos mas que devido à arte da coloração das almas com a cor certa, tudo esterilizam. Stop stop stop stop stop. Arte efémera em que o seu saber e mestria não é defendido, nem regulamentado; em que não existe um curso de formação para professores, nem é necessário ter um diploma para ensinar, nem para abrir escolas de dança, a todos é permitido fazê-lo sendo o resultado alunos com talento, recebendo lições de “professores” nem sempre qualificados. Stop, stop. Espectáculos apresentados a tempo, a custo de muito queijo derretido sobre cereais transformados em fios longos e cozidos “al dente”, com pagamentos pagos às prestações e em tempo de anacrusa. Stop, stop. Tempo de valorização dos medíocres. Stop stop. Institutos que subsidiam os AI’s AI’s dos amigos esfaimados. Stop Stop Stop. Arte das elites e para as elites e com as elites (económico-sociais ou pseudo-intelectuais), mas levada a cena pelos míseros silenciosos e sub nutridos seres dançantes, stop stop stop. Tempo de ouvir os violinos de Chopin assim como ver o casamento de Odette no Lago dos Cisnes em tempo de Natal. Stop stop. A cultura a quem de direito, aos humanistas, aos artistas, aos conhecedores do que são as dificuldades e de como se obtêm as glórias. Programar corpos que dançam e que não são conceitos complexos do nada. A cultura não é uma moda, nem estandarte de guerra, são as nossas raízes, é a nossa história individual tornada colectiva, traduzida actualmente numa brincadeira de mimadas crianças crescidas. Stop. Se não temos condições para podermos ter um ensino com as mínimas condições na área artística assim como dar condições mínimas aos seus profissionais é preferível que assumamos de uma vez por todas que não queremos nem temos capacidades; deve ser uma atitude consciente e naturalmente ponderada. Stop stop. Esta é a revolução cultural, prometida na cultural revolução dos cravos? Então Senhoras profissionais do prazer ao poder, pois os filhos já lá estão. Stop stop stop. Parece que é tempo de arrumar as trouxas e zarpar. Stop Stop Stop. [x]
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,, Casa da Moagem Cidade do Engenho e das Artes Inaugurada no dia 16 de Dezembro de 2006, a Casa da Moagem marcou a paisagem do Fundão. A reconversão do edifício da antiga Fábrica da Moagem num centro de artes e ofícios foi uma obra muito aguardada. Localizado num dos extremos da cidade, este complexo fabril passou a conter um centro cultural contemporâneo que visa a revitalização do artesanato local. O projecto, a cargo do arquitecto Miguel Correia / Ideias do Futuro, visou preservar a fluidez do espaço exterior envolvente e intervir no interior do edifício. Uma obra que passou pela recuperação do existente e a integração de um novo edifício no conjunto assim como o arranjo do espaço exterior. “Preservar a memória colectiva de quem habitava este espaço”, assume-se como o principal objectivo da requalificação de um edifício cuja história é também a da própria cidade. Uma obra arquitectónica que marca não só o Fundão, mas sobretudo, a Beira Interior.
Texto | Miguel Correia_ Arquitecto As características arquitectónicas da envolvente , foram determinantes na implantação e tratamento volumétrico procurando manter a relação com o existente e com o conjunto urbano em que a mesma se insere, como também propor um conceito renovado de utilização do espaço envolvente, com a uma lógica de circulação que promove a vivência do exterior. A intervenção funciona como o elo de ligação entre o edifício existente e a conservação do seu núcleo de maior interesse arquitectónico e histórico como modo de ligação à memória colectiva com o modo de vivência que lhe estava associado, o restante edifício caracteriza-se por ter uma proposta de linguagem leve e contemporânea, dotando este dos meios necessários ao seu bom funcionamento. É com esta proposta que se pretende que a Casa da Moagem possibilite uma nova aproximação da população à cidade, e que o espírito da moagem seja de novo uma realidade pelo reconhecimento da sua importância na cidade. Estes espaços vão possibilitar a exposição de antiga maquinaria e espólio aquando da laboração, como um revivalismo de sua identidade.
Composição Arquitectónica Pretendeu-se a criação de um espaço arquitectónico que, possibilite uma utilização contínua, rica, diversificada e valorosa, contribuindo para a manutenção de uma cidade qualificada e dinâmica, conceitos próprios para a cidade do Fundão. Foi desejo que toda e qualquer intervenção neste lote urbano, pudesse, tanto quanto possível, ser absorvida pela envolvente urbana, criando desta forma, não mais uma imposição arquitectónica, mas um pacto de prestigio, cumplicidade e interacção entre o objecto arquitectónico e a envolvente em que se insere. O projecto enquadra a Moagem numa lógica urbana que se assume controlada, de forma a criar situações urbanas interessantes, virando-se para a vista e exposição Solar a Sul. A linguagem arquitectónica de uma grande componente de contemporaneidade vive de um certo minimalismo, desprovendo os edifícios de adornos ou elementos decorativos suplementares. A utilização de materiais simples transmite um desejo de pureza, que componha o conjunto sem o desvirtuar, possibilitando o elemento de referência presente na linguagem escolhida. O diálogo em torno do edifício é sempre assegurado por uma gradação de elementos visuais e físicos que o garantem. A utilização do vidro e de guardas permeáveis à visão, de zonas verdes que resguardam a privacidade, a utilização de pedra para nomear determinados acontecimentos, assumemse como parte integrante de uma harmonia que compõem um conjunto que se pretendia ser uno sem ser monolítico. A componente paisagística foi projectada, para que em consonância com a atitude projectual promova a privacidade através de conjuntos arbóreos que não comprometam a entrada de luz, que enriqueça e valorize o conjunto aqui proposto.
A solução arquitectónica da Casa da Moagem caracteriza-se por manter um volume que corresponde à estrutura existente, mantida e utilizada para comportar o Auditório, Fonoteca, Videoteca e Espaços de apoio. Este espaço pretende manter viva a existência da Casa da Moagem e a preservação da sua memória. Confinante a este, surge outro de linguagem mais contemporânea, com uma permeabilidade visual que possibilita o deslumbramento do primeiro. Este comporta áreas administrativas, circulações, salas expositivas, área multiusos e cafetaria. Pelo exterior possibilita-se a criação de um circuito de onde se vai descobrindo vários ambientes e possibilitar o estreitamento da relação edifício/visitante. O processo de reconversão da Casa da Moagem vai ser alvo de um faseamento de obra. Na primeira fase pretende-se realizar o edifício sobre o qual este processo se debruça. Sendo este a porta de entrada para um circuito cultural de apoio ao município. Numa segunda fase pretende-se fazer a reconversão das construções adjacentes e construção de raiz de equipamentos, que vão dotar este espaço da capacidade de resposta às necessidades pretendidas. É na segunda fase de projecto que estão contemplados pontos de atravessamento e ligação entre os dois corpos construídos, que permite dar continuidade à ideia do conjunto cultural. Este conjunto vem concretizar uma intenção de criar um circuito cultural e de apoio turístico, possibilitando que quem o percorre possa fazer parte do percurso histórico da cidade do Fundão e especificamente da actividade da antiga moagem. Há uma intencionalidade de poder ter em exposição a maquinaria que fazia parte do processo de laboração. Este circuito tem ainda a característica de proporcionar uma interacção e estreitamento entre o visitante e as actividades artesanais locais que estarão expostas e em desenvolvimento. É no decorrer desta lógica que o visitante pode ir passando entre os vários espaço e vivenciando as diferentes actividades que lhe são proporcionadas, tais como: cinema, teatro, exposições, artesanato, espaço de videoteca e fonoteca, entre outras. [x]
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ARQUITECTURA // 31
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Pelos trilhos do tempo
Rota dos Fósseis em Penha Garcia Texto | Paula Nogueira Fotografia | pmartins.net | Pedro Martins
A Primavera parece ter chegado mais cedo, também para aquelas bandas, tão floridos estão os vasos e os canteiros que engalanam as casas. As ruas de Penha Garcia estão mais animadas neste domingo à tarde. Casais, pequenos grupos de caminheiros - muitos equipados a rigor, com botas, bastões e máquinas fotográficas - sobem e descem as ruas íngremes, por entre o casario do cimo da vila. Mas o que faz com que, todos os fins de semana, centenas de pessoas ali acorram, abalando a pacatez desta vila raiana, habituada a ver os turistas centrarem as suas incursões pela “mais portuguesa” Monsanto ou pela gloriosa Egitânia? No largo onde um monumento perpetua a memória da mais popular tocadora de adufe, “Ti Catrina Chitas”, os placares informativos levantam a ponta do véu. Ali começa a “Rota dos Fósseis”, um percurso pedestre de três quilómetros, onde as pedras são a grande atracção turística. Fomos perceber porquê, guiados por Carlos Neto de Carvalho, geólogo da Câmara de Idanha e um dos grandes responsáveis pela inclusão do Parque Icnológico de Penha Garcia, juntamente com mais 16 geomonumentos da Região, na Rede Global de Geoparques da UNESCO. Estamos em pleno vale do Rio Pônsul, retido mais acima pela Barragem de Penha Garcia, entre rochas de quartzitos, que os anos moldaram e ajudaram a guardar vestígios de um tempo em que este pedaço de terra (denominado de Placa Ibérica) fazia parte do Oceano. O tempo de que falamos mede-se por centenas de milhões de anos. E os vestígios gravados nestas rochas datam de há 480 milhões de anos, 250 milhões de anos antes dos dinossauros! Em terra firme, a vida resumia-se à existência de bactérias. Mas os mares eram habitados por organismos mais complexos, o mais famoso dos quais dá pelo nome de trilobite. Tratava-se de um animal invertebrado com uma dimensão média de cerca de 7 centímetros, e que possuía um esqueleto exterior, que ia mudando de acordo com as várias etapas de crescimento, podendo por isso cada animal ter dado origem a mais que um fóssil. Na altura, explica Carlos Neto, “estes organismos eram os senhores dos oceanos, pois não havia praticamente vida na terra”. 32 // VIAGEM
480 milhões de anos escritos num vale Descendo o vale, de olhos bem abertos e fixados nas rochas, cedo encontramos os tais icnofósseis, que têm o nome científico de cruzianas e onde estão gravados os vestígios do comportamento das trilobites. Na verdade estas cruzianas não são mais do que o rasto deixado pela deslocação das trilobites no fundo marinho. Para quem pouco ou nada percebe de geologia o que vemos são pequenas elevações em relevo, como se uma toupeira minúscula tivesse feito aqueles pequenos carreiros de linhas onduladas que às vezes se cruzam. Outros fósseis permitemnos ter uma ideia mais precisa do corpo do animal, que um leigo diria parecer-se com um escaravelho. Os habitantes de Penha Garcia chamavam a estes afloramentos nas rochas “pedras pintadas” ou “pedras escrevidas”. E até há poucos anos não era assim tão raro aparecer por aqui curiosos a levar um pedaço destas pedras para dizerem que tinham um fóssil em casa.
Em 2003 a Câmara Municipal de Idanha organiza um seminário e convida vários especialistas dos dois lados da fronteira onde são dados a conhecer fósseis de Penha Garcia. Ao mesmo tempo aquela autarquia estava envolvida no processo de criação da Naturtejo-Associação de Municípios Natureza e Tejo, que integra os concelhos de Castelo Branco, Idanha, Nisa, Oleiros, Proença-a-Nova e Vila Velha de Ródão e que tem objectivo a promoção turística destes concelhos, que apesar da sua localização periférica possuem um vasto património cultural e ambiental à espera de ser explorado. É então, recorda Carlos Neto, que um geólogo espanhol lança a proposta de criação de um geoparque, como projecto âncora do desenvolvimento turístico de todo o território abrangido pela Naturtejo. Três anos depois de um intenso trabalho de inventariação, durante o qual foram identificados 74 sítios de interesse geológico nos seis concelhos que integram a Naturtejo - de
Daqui, algumas rochas mais parecem lâminas, dispostas em linhas paralelas, interrompidas aqui e ali por carreiros, ou pequenas depressões, salpicadas de verde da erva. No centro do vale um pequeno fio de água, que mais não é que o rio, seguindo o seu curso natural, interrompido pela artificial parede de betão, que retém a água, do outro lado do miradouro. Lá no meio, um pequeno casario e uma ponte, dão a pincelada bucólica à paisagem. Começamos a descer, dispensando as informações das placas de madeira e a literatura do panfleto, que nos tinham oferecido no Posto de Turismo. Afinal não podíamos ter melhor guia, que Carlos Neto de Carvalho, cujo entusiasmo logo nos contagia. Caminho abaixo o geólogo não poupa nas explicações e nos detalhes. Aqui, diz, “estas formações rochosas, albergam 450 fósseis, que são depositárias de 17 formas diferentes do comportamento das trilobites”. As tais cruzianas, como são chamadas, tanto podem estar ao alcance da nossa mão,
Mas muitos geólogos, Carlos Neto incluído, sabiam do tesouro que esta garganta do Pônsul guardava e o território era frequentado por muitos colegas. Ele vinha por aqui desde 1995 e alguns anos mais tarde resolveu fazer a sua tese de mestrado sobre os icnofósseis que se encontravam em formações de vários locais do País, de Montesinho a Barrancos, passando por Penha Garcia. Tal como outros geólogos percebeu que o que distinguia estes fósseis era o seu excelente estado de conservação, já que a alteração química das rochas foi praticamente nula e a fracturação levou a que as camadas da rocha adquirissem uma posição vertical, permitindo que o rio pudesse encaixar e aprofundar o seu leito, expondo as camadas e tornando acessível a sua observação. A Câmara Municipal, recorda Carlos Neto, muda entretanto de mãos e entre alguns responsáveis “surge a curiosidade de perceber o que andavam por aqui a fazer uns turistas de picareta na mão, que na verdade eram geólogos, não só portugueses e espanhóis como de outros países”.
promoção, de elaboração da candidatura - a UNESCO aprova, por unanimidade a integração do Geoparque da Naturtejo, na Rede Europeia e Global de Geoparques. Legitimada que foi a relevância do património geológico deste território, torna-se agora necessário dar visibilidade e sustentabilidade ao projecto. Em Penha Garcia, onde já antes da classificação foi criada a rota dos fósseis, o trabalho ainda mal começou, porque as responsabilidades foram redobradas.
como em zonas menos acessíveis. O nosso guia agradece à natureza a forma como resguardou muitas delas em zonas de acentuado declive. Assim não ficaram tão expostas à cobiça alheia e hoje podem formar parte deste museu ao mar livre. Mas Domingos Rodrigues, o guarda do Parque, não deixa passar nenhum caminhante sem lhe chamar a atenção para uma pedra mais trabalhada, mesmo que a uns metros de distância do nosso nariz. Nada mais simples que atirar uma pedra em direcção à rocha para onde devemos olhar e ver os tais carreiros em relevo que foram feitos por uns bicharocos há 480 milhões de anos! A rota sai agora do trilho entre as rochas e encaminha-nos para os edifícios em pedra, ao lado do moinho recuperado, onde o rio, que lá de cima parecia um fio de água, tem, afinal, a força suficiente para fazer girar o engenho que faz girar a mó. Ao lado, o palheiro serve de depósito a largas dezenas de fósseis. É aqui que se concentram alguns dos mais preciosos exemplares das cruzianas. Oportunidade para observarmos de perto a diversidade de movimentos deixados pelas trilobites,
Fósseis na rota do turismo cultural A “Rota dos Fósseis” ganha adeptos de dia para dia. E só no domingo, em que também nós contámos para a estatística, 230 pessoas tinham percorrido os três quilómetros do percurso que serpenteia o vale e cuja forma de anfiteatro lhe confere um carácter cénico, muito atraente em termos visuais. O passeio começa cá em cima, junto à igreja, cujo largo termina num miradouro, de onde se alcança todo o vale.
VIAGEM
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esculturas naturais que não deixam indiferentes o mais ignorante dos caminhantes. Carlos Neto explica que este depósito é provisório. Na vila, já se encontram em obras um conjunto de edifícios que hãode acolher estes exemplares, devidamente expostos e com informação detalhada e que formarão o centro de interpretação do Parque Icnológico de Penha Garcia. A par deste projecto, que permitirá ao visitante tirar um melhor partido da observação dos fósseis que o percurso proporciona,
está também a ser preparado um guião específico destinado à exploração do Parque, por parte do público escolar. “O objectivo é ajustar a informação que os jovens aqui podem colher aos currículos do ensino básico e secundário”. Os turistas que não são alunos também não estão esquecidos pois uma empresa de animação irá, em breve, colocar à sua disposição um conjunto de actividades, aliadas ao turismo de natureza, onde a interpretação da paisagem, se poderá combinar, por exemplo com desportos radicais.
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Mesmo sem este acrescento de adrenalina, a Rota dos Fósseis não perde o seu interesse. Agora, que o tempo dá mais vontade de passear, o visitante pode acrescentar à farda de caminheiro o fato de banho e a toalha. É que o vale também tem uma queda de água e uma piscina fluvial. O recanto ideal para um banho retemperador, depois de um passeio por entre pedras que contam uma história de quase meio milhão de anos. [x]
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Laurentina: A Beira no seu melhor
No Reino do Bacalhau
“O bacalhau é o prato do nobre que será sempre pobre...” Frase demolhada e cortada de “O Sol da Meia-noite” de Manuel da Silva Ramos Texto | Jacinto Galeão de Tormes Fotografia | David Júlio Carvalho
O dia 21 de Abril ficará marcado com uma cruz pendente no calendário das minhas recordações gastronómicas. Fui comer à Laurentina e a Beira Baixa veio de repente ao meu encontro, com o seu arsenal de sabores, a sua magia de prazeres, a sua lista infinita de paladares surpreendentes. Nesse sábado acalorado, com uma Lisboa quase deserta, foi fácil chegar à agradável e pedestre Avenida Conde de Valbom, onde o senhor Pereira – o rei incontestável do bacalhau – tem o seu reino reservado para nós. Numa sala ampla, com um palco cheio da natureza tumultuosa (adivinhemos um rio caudaloso a correr por trás de uma profusão de calhaus) e umas belíssimas aguarelas moçambicanas do pintor Pádua, sentámo-nos prontos para o milagre. E foi mesmo um milagre que nos aconteceu! Eis que surge, apoiado juvenilmente numa bengala, o rapaz irrequieto de São Jorge da Beira com um rosto achinesado de homem experiente que andou por quatro costados e Áfricas. O senhor Pereira é um homem impressionante, um beirão que não renega nada: nem a mercearia-taberna do pai onde aprendeu a desenrascar-se, nem o restaurante de Lourenço Marques onde fez conhecer o peixe gadídeo que matou muita saudade a muito português. E é ele que me vai servir de guia, numa autêntica travessia de sabores digna do estuário de um limpopo, com uma rodela de Tejo. Começámos por umas azeitonas que tinham a particularidade de nos envolver num clima de mistério. Seriam de que olival? Daqueles olivais que vemos entre Vale de Prazeres e o Fundão? Ou de Alcaria? O certo é que raramente comemos umas tão terrenas, incrivelmente saborosas. Vieram depois, como não podia deixar de ser, um pratinho de bolos de bacalhau. Luminosos, bem repletos de bacalhau, estalantes, douradíssimos, reconstituintes, foram uma autêntica surpresa para a boca. Bebemos mais um copo de Alpedrinha (o formidável e frutado vinho da Adega Cooperativa do Fundão que nos acompanhou suavemente durante toda a refeição) e entrámos na famosa couvada. Recebemo-la de braços abertos num tacho de barro vermelho como convém a um pitéu que alia intimidade e poder de consistência. De repente, sumiram-se todas as nossas dúvidas. Íamos direitos outra vez à Beira, às resplendorosas couves que habitam as nossas hortas de estimação, regadas com cuidados maternais em leiras geométricas e constantes (mãe, são estas couves que tu metes na sopa de feijão vermelho e que sabem a um frio nascer do sol no alto das Penhas Douradas?) bendita seja esta couve mil vezes orvalhada! É ela que trará ao bacalhau da Islândia a doçura que ele precisa para activar as nossas papilas. O senhor Pereira explica: “Coma devagar! Saboreie este bacalhau que é único! O bacalhau islandês tem mais óleo, tem lascas que se desenrolam como bifes! Não enrola este bacalhau! Não é palha!” O homem que teve no Alto Maé, em Lourenço Marques, o restaurante “Leão de Ouro”, tem razão. Este bacalhau, além de ser divino, coloca-nos numa grande ilha de prazer egoísta. E com as fabulosas batatas de Aveiro “gostosíssimas porque criadas em terreno arenoso” inundadas por um belo azeite do Fundão e alho ele vibra
no seu esplendor de Reiquejavique. Bisamos levados por um apetite de todos os santos. E será o senhor Vieira uma outra quixotesca personagem deste restaurante utópico, que trabalha há trinta e cinco anos com o dono da Laurentina, que nos trará outra posta do senhor dos mares. O senhor Pereira aproveita este suplemento para nos falar de São Marcos. É devoto. E construiu até ermidas em seu louvor em sítios íngremes. A exaltação continua desta vez com a chegada dos queijos em bruto. São duas metades de lua crescente que nos iluminam. Queijo queimoso do Fundão, acinzentado e delicioso! Queijo caseiro de Castelo Branco, untuoso e varonil! Com um tónico Alpedrinha vamos aos céus! E para terminar (enquanto o senhor Pereira se levanta para ir para um casamento e nos convida para a oportunidade de um novo dia, “seja sempre bem vindo e bem haja como dizem lá para os nossos sítios”) atacamos um arroz doce que nos lembra a infância dourada e uma tigelada que lembra o pôr-do-sol em São Jorge da Beira, a última aldeia do concelho do Fundão. São já quatro horas quando saímos da Laurentina (Laurentinas são as habitantes de Lourenço Marques). Prometemos ao rapaz beirão de São Jorge da Beira que voltaremos no Verão para provarmos umas punhetas de bacalhau, especialidade da casa, que é o nu bacalhau cru. Tínhamo-nos roçado a uma das belezas mais esplendorosas da vida: a comida vinda do mar e posta à nossa disposição pela mão delicada da amizade. Longa vida ao rei do bacalhau! Obrigado senhor Pereira por estes momentos intensos que fugiram como cabritos serranos diante de um automóvel. E como as laurentinas que nunca dizem não ao português suave o Mestre do Gadus Moorhrua há trinta anos que recebe com a afirmativa, para glória dos beirões e arredorescos, famintos e blasés. Viva o rei do bacalhau! [x]
Foi sem dúvida nenhuma à força de bacalhau que o escritor islandês Halldor Laxness (Prémio Nobel da Literatura em 1955) conseguiu escrever cinquenta romances. A recente tradução em português de “Gente Independente” é para amantes de bacalhau e não só.
Restaurante Laurentina Av. Conde Valbom nº71-A 1050-067 Lisboa Tlf. 21 796 02 60 Horário Almoço - das 12.00h às 15.00h Jantar - das 19.00h às 22.30h Preços Médios - 15 - 20 Euros De Novembro a Fevereiro abre aos Domingos para almoços. Encerra aos Domingos o resto do ano.
GASTRONOMIA // 35
,,Vidas por contar Texto | Margarida Gil dos Reis Fotografia | Fernando Henriques Duarte - “Rosel”
Não sabemos se já morreram ou se ainda estão entre nós. Vemo-los nos seus momentos mais felizes, através do olhar de um estúdio de fotografia da Beira, o Estúdio Rosel, no Fundão. Não os conhecemos mas podemos sonhar com eles. Esse é o poder da fotografia: o permitir-nos imaginar e contar uma história.
Em todas as casas existem restos de memórias, o rasto do tempo guardado em gavetas, entre livros, pendurado nas paredes. Rostos, casas e paisagens desaparecidas, retratos de pessoas que nem se chegou a conhecer. O encontro com um álbum de fotografias é talvez uma das descobertas mais fascinantes. Recheado de fotografias, mais ou menos amarelecidas, o álbum desperta o nosso instinto voyeurista. No momento em que se abre há algo que nos impede de o fechar. Saudade, melancolia ou simples curiosidade, observamos mas temos também a sensação de estarmos a ser observados. Subitamente, compartilhamos uma intimidade e quase parece que esses rostos nos olham e nos querem fazer uma pergunta. Não importa quem foram os retratados, mas sim o facto de terem existido. No seu anonimato, observam-nos com tamanha curiosidade que nos apercebemos como em cada uma dessas fotografias o tempo parece ter parado. Acredita-se que o início do declive do retrato pictórico tenha coincidido com o aparecimento da fotografia. Progressivamente, o fotógrafo substituiu o pintor que fazia retratos. Aquele que até então era um privilégio de alguns – retratar-se – passou a estar acessível a todos, de forma mais fiel e bastante mais económica. Rapidamente se tentaram rebater as qualidades da fotografia, salientando as incomparáveis qualidades do retrato pictórico. Como poderia uma máquina interpretar a alma do retratado? O papel interpretativo do fotógrafo era injustamente negado, enquanto se exacerbava uma percepção psicológica que, na verdade, estava ausente dos retratos pictóricos. Excepções à parte para a intensidade dos auto-retratos de Rembrandt, David, Goya ou Rafael, a fotografia passou a ser o meio privilegiado de representação. Note-se que, na maioria dos casos, a função do retrato era sublinhar um determinando papel social. O ‘indivíduo’ dá lugar a uma função, onde o tempo é regido por estereótipos. A crítica tem associado o declínio do retrato pictórico com 36 // FOTOGRAFIA
algumas obras de Théodor Géricault, quadros vazios de moralismo, apenas retratos onde os sujeitos pintados não tinham uma função social. Para Géricault a sociedade era naturalmente negativa, logo, a sua obra era anti-social. Courbet, Degas, Cézanne ou Van Gogh ainda pintaram retratos de amigos, onde a amizade era o elo de ligação entre o artista e o retratado; Toulouse-Lautrec, pelo contrário, estabeleceu uma reciprocidade social entre quem observa e quem é observado, ao pintar uma série de retratos de prostitutas que parecem nos analisar. Poderíamos continuar a discorrer por inúmeras possíveis razões para o protagonismo que a fotografia assumiu. Aquilo que nos continuará a intrigar num álbum fotográfico é porque somos olhados, ao invés de olharmos apenas? Pensariam essas pessoas, quando posavam, no efeito que teriam sobre o seu voyeur? Perguntamo-nos onde estará hoje este rapaz, quem será filho de quem, em que pensava aquela mulher, conseguiremos identificar este homem pelo seu olhar em criança? A fotografia é o testemunho da eleição humana de um determinando momento. Por algum motivo entendeu-se que valia a pena registar aquele instante. Este será talvez um processo de tornarmos consciente a nossa observação. Mas qual é o sentido de uma fotografia? Na sua relação com o tempo, a fotografia torna-nos conscientes da importância da ausência e da presença ao fixar um momento de um contínuo temporal. Se um director de cinema pode manipular o tempo, o fotógrafo não o pode fazer, apenas fixá-lo. É isto que distingue a fotografia: esse instante. Por breves segundos, o observador sente uma inexplicável sensação de poder porque pode manipular o destino de cada uma daquelas vidas, escrevê-las, dar-lhes continuidade. Páginas soltas de uma história que, se nos for desconhecida, nos permite que a continuemos. Nesse momento, fazemos parte dessa história, de outra vida que, através da imaginação, passa a ser nossa também.
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,,Romance Cidade Proibida de Eduardo Pitta | Editora Quidnovi “Cidade Proibida”, com a chancela da Quidnovi, é o romance de estreia de Eduardo Pitta, escritor, crítico e autor de um dos blogues de referência da nossa blogosfera, “Da Literatura”. A agilidade da escrita, sempre pontuada com uma fina ironia, permite ao leitor ler este livro de um fôlego só. O rigor do crítico está também presente nesta obra que abre com uma “Tábua de personagens” onde nos são apresentadas, uma a uma, cada uma das personagens com quem se convive ao longo da leitura. Martim, dos bem instalados Moncadas, português dos Estoris, que estuda em Inglaterra e encontra, em Portugal, Rupert, dos Davies, proleta inglês que dá aulas no British Council. Esta história de amor, onde a questão da homossexualidade é protagonista, é, sobretudo, uma reflexão sobre a sociedade contemporânea. Transcreve-se aqui um pequeno excerto do livro: Nessa manhã Martim não tinha ido à empresa, viera para Lisboa com o fito de mostrar a casa a Rupert. O telemóvel continuava na pasta, provavelmente desligado, e Rupert, com a pressa da saída, esquecera-se do seu no Instituto. A notícia provocou neles um estupor que durou dias. Esqueceram o almoço e foram para casa de Nora. A televisão repetia incessantemente as imagens dos aviões a embater nas torres. Quando a primeira desabou já eles
estavam em casa. Martim julgou ouvir ranger os dentes de Rupert mas o eco da reportagem triturava tudo. Nora, que também tinha ido para o Estoril, entrou na biblioteca no exacto momento em que uma gigantesca onda de detritos engolia as ruas à volta do WTC. Ficou parada a ver de longe, as mãos apoiadas na mesa de jogo, e depois avançou devagar, colocando-se no meio dos dois e enlaçando-os pela cintura. Nenhum dos três falou, olhos vazados no ecrã. Martim saiu de casa da mãe no dia 21.” [x]
,,Ciências Sociais Trabalhadores do Sexo Uni-vos!
de Ana Lopes | Editora Dom Quixote Da colecção «Temas de Hoje», a Dom Quixote publica este livro de Ana Lopes, com prefácio de Chris Knight e Camila Powers, sobre a luta de um sector da força de trabalho. Um grupo de profissionais do sexo da International Union of Sex Workers uniu-se para mais tarde de juntar ao movimento laboral. Sendo um sector explorado, este é também um sector discriminado e estigmatizado. A antropóloga do Porto, Ana Lopes, adapta aqui a sua tese de doutoramento que lhe deu um reconhecimento internacional. Ao eleger para universo de investigação os trabalhadores do sexo, Ana Lopes utilizou como título o apela e a palavra de ordem do movimento que ajudou a criar e que saiu às ruas do Soho há seis anos. [x]
,,Intrigas Literárias
,,Teatro Bertolt Brecht | Teatro IV org. Vera S. P. Lemos | Livros Cotovia Com a chancela da Cotovia, chega-nos o quarto volume de teatro de Bertolt Brecht, numa colecção de oito volumes de «Teatro Traduzido». Com a organização e a introdução de Vera San Payo de Lemos, este volume inclui cinco peças do dramaturgo alemão escritas no exílio: “Os cabeças redondas e os cabeças bicudas ou Os ricos dão-se bem com os ricos”; “Os sete pecados mortais dos pequeno-burgueses”; “Os horácios e os curiácios”; “As espingardas da Senhora Carrar” e “Terror e miséria do Terceiro Reich”. Em plena década de 30, no século XX, Brecht vê-se obrigado a sair da Alemanha em 1933, com a subida de Hitler ao poder. Privado dessa interacção entre a escrita e o palco, resta-lhe encontrar outros meios de publicar e levar à cena as suas peças. Utilizando várias estratégias para iludir a censura, Brecht desenvolve temas como o fascismo ou as teorias da raça, chegando a construir uma personagem com os mesmos traços do ditador Hitler ou utilizando a guerra civil espanhola como metáfora dos conflitos vividos na Alemanha. “Os sete pecados mortais dos pequeno-burgueses”, pensados em sete andamentos, contam, aliás, com música do também exilado Kurt Weill, associando sempre o didactismo a uma reflexão mais filosófica. Todas as peças nos remetem para uma actualidade política vivida pelo Autor, mostrando-nos como o teatro pode ser um eficaz instrumento estético e político. [x]
A ironia pode ser sinónimo de talento. A troca de ideias e frases entre escritores e pensadores mostra-nos como o insulto pode ser considerado um género literário. Aqui ficam alguns desses diálogos, críticas mais ou menos ferozes que nos recordam como o nosso tempo evolui a partir das dialécticas do pensamento.
VLADIMIR NABOKOV SOBRE SIGMUND FREUD
OSCAR WILDE SOBRE HENRY JAMES
“Aprecio muito Freud como autor cómico.”
“Está a aprender, mas temo que nunca chegará à paixão.”
GABRIEL GARCÍA MARQUEZ SOBRE RABINDRANATH TAGORE
OSCAR WILDE SOBRE ANDRÉ GIDE
“O indiano Rabindranath Tagore, a quem devemos tantas lágrimas de crocodilo, foi arrastado pelo ventos da justiça do caralho.”
ERNEST HEMINGWAY SOBRE WILLIAM FAULKNER “Pobre Faulkner. Será que crê verdadeiramente que as grandes emoções surgem das grandes palavras? Será que acredita que não conheço as palavras sonantes? Conheço-as de sobra. Mas há palavras mais velhas e mais simples, e essas são as que uso.”
VICENT HUIDOBRO SOBRE PABLO NERUDA “É um romântico de má morte.” 38 // INTRIGAS LITERÁRIAS
“Não gosto dos seus lábios. São bastante rectos, como os lábios de alguém que nunca mentiu.”
FRANCISCO UMBRAL SOBRE OCTAVIO PAZ E MÁRIO VARGAS LLOSA “As minhas duas últimas colaborações no “El Pais” foram sobre Octávio Paz e Vargas Llosa, a quem definia mais ou menos como homens paralelos à CIA, e não como insulto ou denúncia mas sim como orientação ideológica para os leitores.”
PABLO NERUDA SOBRE VICENTE HUIDOBRO “Um comunista de cu dourado.”
WILLIAM FAULKNER SOBRE ERNEST HEMINGWAY “Hemingway nunca utilizou uma só palavra que pudesse levar o leitor em busca de um dicionário.”
© Pedro Cunha
Fotógrafo do jornal “Público”, Pedro Cunha (1963-) tem participado em diversas exposições colectivas em que se destacam “Fotojornalismo Ibérico”, “Um ano do ‘Público’” e “200 anos do Colégio Militar”. Uma parte significativa da sua obra fotográfica é dedicada à natureza, o que terá a ver com a sua experiência relativamente às paisagens naturais, observação de aves e às acções de formação em que participou nesse âmbito. A fotografia, mesmo nos jornais, revela, cada vez mais ter um valor próprio. Aquilo que mostra e a forma como mostra fazem desta arte a captação de um instante, de um olhar, de um sorriso ou de um raio de luz. Em 2001, Pedro Cunha ‘capturou’ através desta arte o Padre Virgílio, observador meteorológico benévolo no Fundão. Nesse cruzamento de olhares, entre quem é fotografado e quem fotografa, imortaliza-se a expressão de quem, através de uma fotografia, perpetua a vida. [x]
,,memória [A]
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Torre do Castelo
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A vida mercantil nas casetas
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Mercado das madeiras na Devesa, década de 20 - Castelo Branco
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© Programa Polis em Castelo Branco, Álbum Histórico
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,,ainda se lembra “Tomando farinha 33 valerás por três!” Este foi o slogan que durante anos cativou crianças mas também adultos. Para muitos, um prato tradicional, a famosa farinha é hoje difícil de encontrar. Quem a provou dificilmente esquecerá o sabor a chocolate que fazia desta refeição nutritiva um verdadeiro prazer. O costume de inserir brindes nas suas embalagens tornava-a ainda mais apetecível para pequenos e graúdos. Uma memória presente no paladar de muitos que continua viva pela curiosidade que desperta naqueles que desejam provar “o alimento para toda a família”.
,,sabia que... 1,9 milhões de portugueses dizem ter ido a uma exposição em 2006 37% da nossa população tem excesso de peso O televisor está presente em 99,6% das casas portuguesas No primeiro trimestre de 2007, cada português viu, em média, por dia, em sua casa, 3 horas, 36 minutos e 37 segundos de televisão 7 de cada 10 mulheres que abandonam o vício do tabaco durante a gravidez voltam a fumar depois de nascer o filho
,,tendência Estiveram representados no Salão de Milão 07 onde se encontraram algumas das ideias mais revolucionárias em termos de design. A VIA promove e valoriza a imagem criativa e inovadora das Indústrias Francesas do Móvel em França. Acolhendo jovens artistas do sector do mobiliário, apresentam interessantes propostas onde o aspecto lúdico se cruza com o pragmatismo. Aos 22 anos, Noé Noviant assina a ideia destas divertidas cadeiras, cujas pernas se entrelaçam. A sua inspiração? A vida de qualquer estudante. www.via.fr PUB