Revista A23_7

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reportagem cinco cidades que despertam

publicação trimestral

novo suplemento o cão vasco está de volta

2010 | #7 | Março.Maio €1.50

Retratos do país-bordel

Reportagem libertina, entre bordéis à beira da estrada

Entrevista de arnaldo saraiva a agustina bessa-luís

Madrid me matou por tiago salazar

reportagem os ‘escravos’ de cerro rico


Quinta dosTermos A excelĂŞncia da natureza na qualidade de um vinho

Quinta dos Termos 6250 - 161 Carvalhal Formoso - Belmonte Telef: 275 471 070 Email. quintadosternos@mail.telepac.pt


EDITORIAL

DESTAQUES

Em Viagem

O país não precisa de quem diga o que está errado; precisa de quem saiba o que está certo. Agustina Bessa-Luís Seja no fim da rua ou na outra ponta do mundo, há sempre uma boa história pronta a ser contada. Neste número da A23, fomos à procura destas histórias, as de um Portugal profundo, autêntico e desconhecido da maioria, mas também as de outras partes do mundo, cuja tensão narrativa nos faz rapidamente viajar. Muitos anos passaram depois do aparecimento do primeiro comboio em Portugal. Estas são memórias que o tempo não apaga e os comboios continuam a percorrer as linhas sinuosas que atravessam o nosso país. Rui Pelejão é o maquinista de uma viagem desde as peripécias do aparecimento dos comboios, até ao encanto que ainda hoje uma viagem pode ter. Primeira paragem: a zona do interior do país, mais precisamente a Beira Baixa. Desta vez, ficamos apeados nos subúrbios da Beira, à mercê de uma “reportagem libertina” sobre os bordeis à beira da estrada. Poderá, afinal, o sexo ainda ser tabu? O bordel de beira de estrada não aparece na tv, nem faz manchetes na imprensa regional. Não é notícia. Não teria existência. E no entanto existe. No âmbito da colaboração com o The Portfolio Project, coordenado por Susana Paiva, a A23 publica um interessante portfolio de seis fotógrafos que, ao longo de 36 imagens, captam cidades que despertam entre as cinco e as nove da manhã. Que segredos escondem as cidades quando amanhecem? Haverá algo em comum captado por estes fotógrafos em diferentes cidades mas a horas idênticas? No plano internacional, destaque para a reportagem de Paulo Nunes dos Santos sobre Cerro Rico, mais precisamente Potosí, classificada pela UNESCO património mundial, a partir do olhar dos seus habitantes. Daqui, viajamos novamente para Portugal, para as Covas do Monte, captada pela objectiva de Pedro Martins. Esta aldeia perdida no meio de uma imensa montanha de xisto, num vale da Serra de São Macário, tem 58 habitantes que vivem quase exclusivamente da pastorícia – mais de 2000 cabras constituem aquele que será talvez o maior rebanho do país. O portfolio é dedicado à obra de Ricardo Alevizos, que aqui damos a conhecer, e entrevistámos uma das maiores romancistas contemporâneas, Agustina Bessa-Luís, sobre o olhar atento e rigoroso de Arnaldo Saraiva. A viagem é assinada por Tiago Salazar que, qual guia exímio, nos leva pelas praças e ruas de Madrid, “uma cidade de instinto matador”. O escritor Manuel da Silva Ramos revela-se-nos numa surpreendente crónica em jeito de autobiografia. Pela primeira vez, a A23 integra um suplemento especial, “O Cão”, coordenado por Vasco Castro. Aquele que é talvez o mais célebre caricaturista português, partilha com o leitor o seu exímio sentido de humor e crítica num suplemento onde se destaca ainda a notável entrevista de Tiago Salazar ao padre Mário de Oliveira. Que este seja mais um contributo para olhar para o Portugal profundo ou, quanto muito, uma forma aprofundada de ver Portugal.

Ricardo Paulouro

PÁGS.08-11 REPORTAGEM A PRIMEIRA HORA Cada amanhecer é o começo de um novo dia. Alípio Padilha, José Crúzio, Manuel Ferreira Chaves, Pedro Amaral, Susana Paiva e Victor Coelho trazem-nos 36 imagens, com as particularidades próprias de cada cidade, de cada lugar. São 36 imagens de cidades que despertam, captadas entre as 5 e as 9 horas da manhã. Lisboa, Fundão, Viseu, Portugal, Quintana Roo, Yucatán Peninsula, México, Essaouira (antigo Mogador), Marrocos.

PÁG.14-15 FOTO-REPORTAGEM COVAS DO MONTE À sua volta fica uma imensa montanha de xisto, manchada de verde das giestas e do mato, aqui e ali salpicada por algumas manchas de pinheiro e alguns, poucos, eucaliptos. Olhando no prolongamento do vale são visíveis os campos férteis e verdejantes. Ali perto, o Portal do Inferno espreita...

PÁG.02-03 OPINIÃO “Regionalização: por um país mais equilibrado” “Os Amigos de Polanski” “Manuel Alegre, o melhor candidato da esquerda?” “P.P.P. (Pagos para Prevaricar)”

PÁG.04-13 REPORTAGEM “A Todo o Vapor” “Retratos do País-Bordel” “Os ‘Escravos de Cerro Rico”

PÁG.16-19 PORTFOLIO “The Portfolio Project - Ricardo Alevizos”

PÁG.20-21 ENTREVISTA “Entrevista a Agustina Bessa-Luís”

PÁG.22-23 CULTURA “Músicos / Actores ou Actores / Músicos?” “A Cara da Gente”

PÁG.24-25 VIAGEM MADRID ME MATOU Admitamos. Madrid é um palco de Satyricon, com os seus homens de expressões másculas de lenços vermelhos na lapela e mulheres de “salero” como o fogo abrasivo que sopra da Plaza de las Ventas. Uma cidade de instinto matador onde as ruas são alfândegas de gente e dormir um verbo em desuso. A última tentação dos madrilenos é matar pela boca.

“Tindersitcks”

PÁG.25 GASTRONOMIA “Tia Alice”

PÁG.26-27 CRÓNICA “Manuel da Silva Ramos”

SUPLEMENTO O CÃO

Director Ricardo Paulouro/ Director-Adjunto Paulo Nunes dos Santos, Pedro Leal Salvado/ Chefe de Redacção Margarida Gil dos Reis/ Produção Executiva João Paulo Alexandre/ Colaboram neste número Arnaldo Saraiva, Hortense Martins, Manuel da Silva Ramos, Pedro Fiúza, Pedro Martins, Pedro Teles Ramos, Rita Barata Silvério, Rui Pelejão, Tiago Salazar/ Fotografia Adriano Batista, Alípio Padilha, José Crúzio, Luísa Ferreira, Manuel Ferreira Chaves, Margarida Dias, Pedro Amaral, Pedro Martins, Rui Dias Monteiro, Ricardo Alevizos, Susana Paiva, Victor Coelho/ Ilustração Vasco Castro/ Design Gráfico Filipe Matos/ Periodicidade Trimestral/ Tiragem 5.000 exemplares/ Impressão Mirandela Artes Gráficas/ Distribuição Vasp/ Propriedade Associação Cultural A.23 ( www.a23online.com / a23online@gmail.com) Número do registo na ERC 125073 Morada e sede de redacção Rua dos Três Lagares — Edifício Laranjeiras, Torre 3,6º — Fundão


Opinião . 02

Sinais Limpar Portugal A ideia surgiu de uma iniciativa semelhante que teve lugar na Estónia. Denominado de “Vamos fazê-lo”, conseguiu eliminar 10 mil toneladas de lixo abandonado por todo o país, em apenas cinco horas, e envolvendo uma logística que integrou ONG’s, cientistas, figuras públicas e políticos, incluindo o próprio Presidente da Estónia. Importando esta ideia, a Coordenação do Projecto Limpar Portugal tem agora o objectivo de juntar o maior número de voluntários e parceiros, como instituições e empresas públicas e/ou privadas, que através da cedência de meios (humanos e/ou materiais à excepção de dinheiro) estejam interessadas em dar apoio ao movimento.

Vítor Constâncio A nomeação de Vítor Constâncio para Vice-Presidente do Banco Central Europeu, entidade reguladora do sistema económico-financeiro da União Europeia, levanta várias questões. Por um lado, não deixa de ser estranho que alguém que tenha sido tão criticado internamente na questão de supervisão da Banca, que tenha sido apontado tantas e tantas vezes como um verdadeiro incompetente, seja agora agraciado com a mesma função para todo o espaço europeu. Das duas uma, ou Vítor Constâncio não é tão mau como a oposição portuguesa o pinta, ou então é mesmo mau e incompetente e os membros da União Europeia querem-no naquele lugar para fechar os olhos à actividade bancária europeia, deixando-a trabalhar desreguladamente.

Regionalização: Por um país mais equilibrado

OS AMIGOS DE POLANSKI

Texto de Hortense Martins

Texto de Rita Barata Silvério

Já muito foi escrito sobre o tema da Regionalização. Há quem a defenda, justificando o nosso atraso face aos outros países, com a falta de uma divisão administrativa, que dê poderes às regiões, constituindose assim um nível de organização intermédio. Mas há também quem acredite que esta alteração, apenas irá trazer mais dispêndio de recursos, sem reflexo no desenvolvimento harmonioso do país. Incluo-me no grupo dos que defendem a Regionalização. Aliás, penso que ao longo destes anos de Democracia, algumas coisas teriam sido diferentes caso já tivéssemos avançado neste processo de organização político/ administrativa e de criação das regiões. Na região da Beira Interior, perto de Espanha, há muito que de alguma maneira contactamos com a diferença organizativa dos nossos vizinhos espanhóis. Lembro-me bem, e já lá vão talvez 16 anos, quando se tentou desenvolver um Projecto de Promoção Conjunta que incluía a Extremadura espanhola e a raia portuguesa, desde a nossa região da Beira Baixa até ao Norte Alentejano. Do lado espanhol estavam os vários interlocutores, devidamente representados e legitimados, para falarem, negociarem e decidirem, não só em termos associativos, mas também ao nível político… Do lado português poderão imaginar o difícil que foi. Cada um com as suas ideias, e com as melhores intenções, mas no fim, sem capacidade de representação/poder de decisão. Apesar de todo o trabalho e boa vontade, de muitos dos que lá estavam, que genuinamente acreditavam que era possível fazer algo, em prol destas duas regiões, não foi possível fazer com que o projecto avançasse. Não devemos ver a Regionalização como um milagre, qual varinha mágica para tornar finalmente Portugal num país mais coeso. Sei que muito do nosso atraso, em termos de desenvolvimento e coesão, advém da nossa deficiente organização e pouco espírito associativo. Temos muitas associações, muitas “quintas”, mas pouca massa crítica para fazer realmente a diferença. No caso da Regionalização, todos sabemos que só será possível a sua implementação se houver um referendo, de acordo com o art. 255º da nossa Constituição. E embora exista já quem vem desenvolvendo “novas teorias”, a verdade é que de acordo com a Lei, “as regiões administrativas são criadas simultaneamente” em todo o País. Penso que não seria muito útil, e até poderia ser contraproducente, que se criasse a região do Algarve ou do Norte, e se

deixasse para trás outras regiões… As expectativas, que rodeiam a sua criação, são sobretudo ao nível do combate ao centralismo de Lisboa, da redução das assimetrias entre o Norte e o Sul, e sobretudo entre o Litoral e o Interior. Sabemos que é sobretudo nesta extensa faixa mais próxima de Espanha que existem ainda problemas, ao nível de desenvolvimento, do envelhecimento da população, e nalguns concelhos risco acentuado de desertificação. São necessárias políticas efectivas de promoção de desenvolvimento e a sua aplicação com eficácia nestes territórios. A criação de um nível intermédio de poder parece-me essencial para este efeito. Tal como está referido na moção sectorial, aprovado no Congresso do PS, e que também subscrevi, “as regiões precisam de estabilidade institucional e de um projecto de longo prazo”. Muitos problemas já não encontram resposta à escala municipal. “É preciso mais inovação na organização, mas descentralização de competências e coordenação de acção.” Na verdade, “Portugal precisa de consolidar uma estrutura regional com escala apropriada, competências, autoridade e poder de decisão, capaz de assumir e dar coerência aos projectos, definir prioridades e coordenar acções, num quadro transparente de responsabilização política”. O Partido Socialista e o seu grupo parlamentar escolheu o tema da Regionalização para as suas últimas jornadas, que se realizaram no Interior, em Beja. Assumiu assim o debate sobre esta importante questão, com vista a criar um consenso nacional. Sabemos que a própria ANMP (Associação Nacional de Municípios Portugueses) a defende. Alguns mudaram de opinião e hoje também já a defendem, como Rui Rio. Sabemos que a Regionalização precisa de uma reforma do Estado. O último governo iniciou este trabalho através do PRACE. No último referendo, em 1998, mais de 50% dos eleitores, quase 4,5 milhões de pessoas, não foram votar. De acordo com a Constituição, terá que haver um novo referendo. Façamos com que o debate seja sério e aprofundado. O PS iniciou uma reflexão séria e exigente, afastando antagonismos demagógicos e procurando construir um modelo que seja verdadeiramente indutor do desenvolvimento das nossas regiões, especialmente as do Interior. O País ganhará com um Portugal mais coeso e equilibrado. E acredito que o Interior também. Nós merecemos. Deputada à AR PS, Membro do GT Desenvolvimento Regional

xocoa

Rua do Crucifixo 112-114,1100-185 Lisboa Baixa Chiado T/ + 351 213 466 370 lisboa@xocoa-bcn.com

Um adulto que tem relações sexuais com uma criança comete um crime, seja este adulto um bom vizinho, um cabrão que bate na mulher, uma vítima da sociedade, um generoso filantropo ou um cineasta genial. É um crime nos Estados Unidos, em Portugal ou na Islândia. Outra coisa é que estes crimes de pedofilia se persigam e os pedófilos sejam castigados, ou senão que o perguntem aos putos da Casa Pia. E Roman Polanski não só violou uma miúda de treze anos, como também a drogou, confessou o crime e depois fugiu dos Estados Unidos a sete pés. Agora que foi preso na Suiça 32 anos depois, o mundo das artes reclama, indignado, uma atençãozinha especial, a liberdade incondicional e o perdão absoluto como se a condição de artista eximisse a qualquer escritor, realizador, cantor ou pintor de pacotilha de delinquir. Como se no fundo ser dono de um Oscar desse direito à absolvição, não importando a natureza ou aberração do crime, como se houvesse dois tipos de pessoas (as ungidas pelas musas da criação e o povão a quem a lei se deve aplicar por falta de amor ao cinema) artistas e cineastas, actores e ministros levantam a voz contra a América que dá medo (Mitterand dixit) e a Suiça que, vergonhosamente imaginem, se atreve a prender artistas. Ouvindo esta gentalha que se insurge contra o possível julgamento de um gajo que violou uma criança, palavra de honra, tira-se-me a vontade de ir ao cinema, de lhes pagar as entradas, de alugar DVDs e até, se me apuram, de dar uma parte dos meus impostos para a cultura. Como é lógico os crimes, para este lobby de ungidos, só prescrevem para os autores de obras de arte e nunca para padres pedófilos, carrascos da repressão de Pinochet ou guardas da campos de concentração nazi. Claro, uma criança nunca estará à altura das grandes causas universais que dão direito a manifestações às portas de igrejas e embaixadas, manifestos sofridos e concertos a favor das vítimas, e muito menos se a dita criança teve a sorte de ser violada pelo fabuloso e internacionalmente reconhecido Roman Polanski. É que uma gaja já começa a ficar farta de tanto relativismo moral, no me jodan. www.rititi.com


P.P.P. (Pagos Para Prevaricar)

Texto de Rui Pelejão

Texto de Pedro Leal Salvado

Um circo de variedade e de tontarias, é assim que se vai organizando a vida política portuguesa, mais dada às actividades recreativas, golpadas e conspirações de restaurante finório do que a socorrer a vida de um país à beira da apoplexia. Ainda mal rescaldados de um ano de eleições em barda, parece que começou agora o corridinho para as eleições presidenciais. Como vivemos numa paróquia, o arranque oficial da campanha foi dado no boletim da paróquia, quando Manuel Alegre se descaiu ao “Expresso”, afirmando que era candidato ao Presidente da República. Parem as rotativas, o “scoop” do ano, Manuel Alegre candidato a Presidente da República, quem diria. Agora só falta Cristo descer à terra e Marcelo ser candidato a líder daquela confraria da Lapa, ou dizer que Santana Lopes continua por aí, como o zombie político mais vivaço da história da democracia portuguesa. A um ano das eleições, Manuel Alegre chegouse à frente, ou seja, atravessou-se; antes que a esquerda romântica e a outra, pragmática, começasse a burilar figurões presidenciáveis nas páginas dos pasquins solícitos. Logo foi acusado de estar a lançar uma candidatura prematura e sem apoios, mas se recordarmos, fez exactamente como Jorge Sampaio, que se candidatou a presidente sem perguntar nada a ninguém, marcando desde logo o seu território com um bom sentido de oportunismo político. No caso de Manuel Alegre, este anúncio não passa de uma mera formalidade técnica, porque depois dos resultados obtidos nas eleições onde foi derrotado por Cavaco Silva, Manuel Alegre pressentiu que a sua voz tinha um milhão de legionários, prontos a segui-lo na sua cruzada contra o Partido Social Democrata do PS (o de Sócrates) e contra a direita dos patrões e da globalização, ou contra o sistema partidário em geral, ou seja, Alegre é o campeão dos desencantados, descontentes e idealistas. Isso e um pouco da sua vaidade (justificada, aliás) são o carimbo da sua candidatura. Mais interessante que a crónica de uma candidatura anunciada, foi ver a onda de reacções que esta gerou, com os caudalosos comentários, análises e escalpelizações. Particularmente curioso é ver o embaraço do PS com este reclame prematuro (como se não estivessem à espera) e também algum desconforto das hostes cavaquistas que trataram de começar a colar Manuel Alegre ao Bloco de Esquerda e à esquerda mais ou menos pipoca e radical. No PS, espante-se, há quem duvide da capacidade de Manuel Alegre derrotar Cavaco, ou sequer de ser um bom candidato presidencial para o PS. Quero crer que este raciocínio, produzido por exemplo por Sérgio Sousa Pinto ou Vitalino Canas, (ventríloquos de José Sócrates) não é produto de pura destrambelhice socialista. É antes o azedume entranhado, ressabiamento por Manuel Alegre se ter atrevido a pensar pela sua cabeça e ser uma voz dissonante do orfeão afinado da direcção do partido. Para muitos “aparatchicks” socialistas, Alegre é um traidor que não soube comungar das homilias e da vontade do chefe, e se Roma não paga a traidores, o PS muito menos.

Os políticos socialistas começam a parecer desligados da realidade e a viver no seu próprio mundo de fábula e de política de gabinetes. E isso é perigoso porque são eles que estão sentados em frente às gamelas do poder. Em primeiro lugar acreditam que Cavaco está irremediavelmente ferido na sua credibilidade com o caso das escutas, e por isso, qualquer luminária que avance com o beneplácito de Sócrates, será aclamada num triunfal desfile para o Palácio de Belém. Acontece que a memória dos portugueses é curta e a esponja é forte. Se decidir avançar para a sua recandidatura, Cavaco será um candidato praticamente imbatível, não porque tenha exercido um magistério de grandeza ou substância, mas pela simples razão de que os portugueses querem uma trela forte em Sócrates e nos seus mastins. Foi aliás esse sentimento anti-Sócrates (agora mais arreigado) que deu a vitória a Cavaco nas últimas presidenciais, ao unir o centro-direita contra uma esquerda dividida pelos seus imensos egos. Se o PS quiser repetir a gracinha, só há uma conclusão a tirar. O PS de Sócrates prefere o professor de Boliqueime, apesar de tudo mais previsível e institucional, do que o libertário e impulsivo de Alegre, que será sempre um canhão à solta em Belém. Se o PS acredita que um candidato seu com o rótulo de marioneta de Sócrates pode aspirar a mais do que 15 por cento dos votos, está obviamente a delirar, ou então a produzir um candidato fantasma, para incinerar as hipóteses de Manuel Alegre chegar a Belém. Nomes como Jaime Gama, António Vitorino ou mesmo António Costa ou Jorge Sampaio são autênticas anedotas num confronto com Cavaco. A verdade é esta, nenhum candidato inventado por Sócrates terá a mínima hipótese de bater Cavaco, e na esquerda não há uma única figura presidenciável (já agora, na direita também não).Manuel Alegre, apesar de ser uma figura histórica do PS (e não do Bloco de Esquerda) é o único candidato com estatuto de independência suficiente para agregar os votos da esquerda sociológica, e até poder colher votos no centrão que ainda tenha memória das desastradas patarequices de Cavaco. Por mais que custe ao PS de Sócrates, Alegre pode até não conseguir bater Cavaco, mas se não for ele, mais ninguém é. Sócrates sabe isto, mesmo pensando, venha o diabo e escolha. Curiosamente, Cavaco e Alegre partilham um capital imenso, que é o descontentamento generalizado com a política partidária. Eles encarnam uma espécie de mitologia de personalidades independentes, acima da política, que é obviamente uma construção boa para captar votos, mas que não passa disso mesmo, uma construção. Cavaco e Alegre são políticos como os outros, que souberam explorar esse distanciamento altivo, e uma espécie de nojo da política. Fizeramno de uma forma calculista e pragmática, como qualquer político de concelhia. Assim sendo, o dilema de Sócrates é o mesmo que o nosso, venha o diabo e escolha o novo presidente da paróquia.

O modelo não é novo mas, como todas as obras do “engenho e arte” português, é aplicado discretamente e em lume brando, como se quer, para que ninguém repare. Falo das P.P.P., as Parcerias Público-Privadas. Com as Finanças Públicas no caos que se conhece, com um endividamento excessivo e incomportável já a curto prazo, andou bem o Governo em impor limites ao endividamento público, nomeadamente ao endividamento das autarquias locais, através da Lei das Finanças Locais. Sucede que, e como é já costume no nosso País, uma boa regra não tarda a gerar todo um leque de excepções. O princípio da citada Lei é bom: responsabilizar as Autarquias em termos financeiros, impondo-lhes limites de endividamento, de modo a não serem criar situações insustentáveis e que poderiam em muitos casos pôr em causa a viabilidade económica de muitos Municípios. Não tardaram no entanto as Autarquias a encontrar expedientes que permitissem excepcionar esses mesmos limites. O objectivo é claro: desorçamentar, ou seja, como a Lei impõe limites ao endividamento orçamentado, há que engendrar formas de obter empréstimos fora do orçamento. O caso mais flagrante, e sobre o qual já escrevi, é o das Empresas Municipais. Mas também as Empresas Municipais têm um limite: o da sua própria sustentabilidade, pelo menos em termos formais.

Assim, uma qualquer “mente brilhante” arquitectou um novo esquema, o das Parcerias PúblicoPrivadas. Através deste expediente, e como o próprio nome indica, os Municípios criam uma nova figura, na qual têm apenas uma posição minoritária, sendo a maioria do capital privado. Em teoria, é um bom sistema, pois o grosso do investimento é privado. Acontece que na realidade apenas é uma parceria formalmente, na qual a participação privada é compensada por dinheiros públicos, quer através de transferências de capital, subsídios ou protocolos. Estas P.P.P.s permitem, no entanto, que as Autarquias contraiam empréstimos indirectamente, através dos privados. No fim, são os dinheiros públicos que acabam por pagar toda a factura: os privados pedem o empréstimo, os Municípios transferem depois mensalmente as rendas para os privados pagarem tal empréstimo. Tudo isto é feito com a complacência do Estado – ele próprio também useiro e vezeiro deste expediente. Temos de concordar com o Professor Doutor do I.S.E.G. João Cantiga Esteves: “temos um modelo de regras de boas práticas e de boa gestão importado dos melhores sistemas europeus, mas depois criamos Institutos Públicos, Empresas Públicas, Empresas Municipais, Parcerias Público Privadas, para fugirmos a essas mesmas regras”.

Opinião . 03

Manuel Alegre, o melhor candidato da esquerda?


reportagem . 04


A CP comemorou recentemente 150 anos sobre o nascimento do caminho-de-ferro em Portugal. Passámos em alta velocidade pela estação de Braço de Prata, nos subúrbios industriais de Lisboa e dedicamos um minuto de misericórdia ao Cardeal-Patriarca e altos dignatários da nação que ficaram apeados na viagem inaugural do comboio em Portugal no dia 28 de Outubro de 1856. Texto de Rui Pelejão Fotografias de Margarida Dias

A

história é aliás bem portuguesa … A cerimoniosa viagem foi organizada com pompa e circunstância como um hino ao progresso alavancado pelo Partido Regenerador, então no poder, e pelo seu “maquinista” de serviço, Fontes Pereira de Mello. O dinâmico Ministro do Reino foi o grande impulsionador da política de “melhorias materiais” que se consubstanciou no arranque do projecto ferroviário, para o qual Portugal partia já com mais de duas décadas de atraso. A empreitada e exploração da primeira linha de comboio em Portugal foi entregue à Companhia Central Peninsular dos Caminhos de Ferro de Portugal, (criada em Londres a 14 de Maio de 1852), do inglês Hardy Hislop. Foi também um projecto polémico que dividiu as elites pensantes e incendiou o clima intelectual do nosso país, com a famosa polémica de Alexandre Herculano e Lopes de Mendonça, o primeiro diabolizando o comboio e as suas consequências nefastas para o “municipalismo” e para uma certa pureza moral do mundo rural; o segundo endeusando essa ferramenta de progresso, da livre circulação de bens e de ideias, que de facto se iria concretizar. O progresso sempre foi em Portugal pomo de discórdia, como se vê pela polémica gerada em torno do TGV, o comboio de alta velocidade que Portugal pretende lançar nos próximos anos. Mas voltemos à manhã de azáfama que levou multidões à beira da linha para ver passar esse cavalo do progresso ou máquina diabólica, conforme as opiniões: “Tenho a certeza que foram inspirados pelo Demónio! Não o digo a rir. Mas vejam aqueles uivos, aquele fogaracho, aquele fragor! Ai que arrepia!”, dizia a beata D. Josefa ao benevolente Padre Amaro de Eça de Queirós. O Rei D. Pedro e os barões e baronetes da nação enchiam com garbo e curiosidade as carruagens do novo meio de transporte. Infelizmente as duas primeiras locomotivas adquiridas para o serviço dos caminhos-

de-ferro eram sucata da qual os ingleses se desfizeram com alívio. E, no regresso da viagem inaugural, quando se entoavam loas ao comboio e aos seus méritos, perto de Sacavém, partiram-se as tubagens de vapor de uma das máquinas, obrigando-a a deixar pelo caminho parte da comitiva, incluindo o Cardeal-Patriarca. A oposição ao Partido Regenerador não tardou em rosnar sarcasmo em “O Português”: - «A Regeneração escolheu locomotivas à sua imagem: podres como ela!» Um bom livro é uma companhia indispensável para uma viagem de comboio. Oscar Wilde costumava dizer que levava sempre o seu diário para ter uma leitura extraordinária no comboio. Nós preferimos as deliciosas memórias da Marquesa de Rio Maior, que recorda com sublime ironia o dia em que se assistiu ao nascimento do caminho-de-ferro em Portugal: “Finalmente, avistámos de longe um fumozito branco, na frente de uma fita escura que lembra uma serpente a avançar devagarinho. Era o comboio! (…) Vinha festivamente embandeirado o Wagon em que viajava El-Rei D. Pedro V. O comboio parou um momento na estação, de onde se ergueram girândolas estrondosas de foguetes; vimos El-Rei debruçar-se um instante, e fazer-nos uma cortesia; (…) A máquina, escusado será dizer, das mais primitivas, (parecia um enorme garrafão) não tinha força nem idade para puxar todas as carruagens que lhe atrelaram; e foraos largando pelo caminho. Algumas, de convidados, nos Olivais. O Wagon do Cardeal Patriarca, e do Cabido, ficou em Sacavém; mais um, recheado de dignatários, ficou no desamparo na Póvoa (…) Esses desprotegidos da sorte, semeados pela linha ao acaso das debilidades da tracção acelerada, só chegaram alta noite a Lisboa, depois de ousadíssimas aventuras, que encheram durante meses os soalheiros oficiais. Até andou gente com archotes, pela linha, em procura dos náufragos do Progresso.” A banhos em Cascais Apesar das peripécias da primeira viagem, o comboio do progresso arrancou a todo o vapor na segunda metade do séc. XIX, numa primeira fase através de contratos de concessão e exploração a empresas privadas e, mais tarde, (a partir de 1870) com o Estado a assumir as “despesas” de desenvolvimento da infra-estrutura ferroviária, em virtude dos baixos resultados de exploração que no dealbar do séc. XX desinteressaram a maioria dos investidores privados. A opção por dotar o país de artérias ferroviárias sobrepôs-se a todos os outros meios de transporte; em detrimento,

por exemplo, do investimento na navegabilidade dos rios, nas estruturas portuárias, ou mesmo da construção de estradas, cujos principais eixos vieram decalcar os traçados dos caminhos-de-ferro. A linha para Cascais, inicialmente até à Cruz Quebrada, foi das primeiras a ser criada, tornando aquela localidade uma estância balnear de eleição dos lisboetas que “copiavam” assim os hábitos da família real e da aristocracia que fazia férias em Cascais. A conclusão da linha do Norte e da ligação a Espanha obrigaram à adopção da chamada bitola ibérica, diferente por exemplo da francesa, porque ainda pairava a sombra das incursões napoleónicas, e esperava-se que a República de Bonaparte pudesse vir por aí abaixo, tomar a rédea da Monarquia Constitucional. Não vieram fardas nem canhões, mas ideias, já que o comboio aproximou Portugal da Europa e das correntes de pensamento libertário e humanista. «Com o comboio não foram só as ideias a circular mais rapidamente. A melhoria das comunicações aproximou o campo dos centros urbanos e criou condições para o aparecimento de um mercado nacional. Para quem vivia confinado aos limites das suas aldeias o comboio foi o meio de alargar os horizontes, por vezes de um modo drástico, acabando, por vezes, a viagem do lado de lá do oceano», conforme explica a historiadora Maria Magalhães Ramalho. O lançamento das bases da infra-estrutura ferroviária marcou também a entrada na era moderna da nossa engenharia, forjada nas complexas obras, nomeadamente para a travessia de rios, como a monumental Ponte D. Maria Pia no Porto, que permitiu a ligação ferroviária entre as duas principais cidades do país. O esforço ferroviário foi de tal ordem que em 1910 a generalidade das linhas que ainda hoje constituem a espinha dorsal do nosso sistema ferroviário estava concluída. A partir daí, um novo meio de transporte conquistava Portugal – o automóvel, e o comboio foi perdendo a sua influência progressista, mas nunca o seu encanto e o seu papel determinante na circulação de pessoas e bens em Portugal. A história é aliás bem portuguesa … A cerimoniosa viagem foi organizada com pompa e circunstância como um hino ao progresso alavancado pelo Partido Regenerador, então no poder, e pelo seu “maquinista” de serviço, Fontes Pereira de Mello. O dinâmico Ministro do Reino foi o grande impulsionador da política de “melhorias materiais” que se consubstanciou no arranque do projecto ferroviário, para o qual

Portugal partia já com mais de duas décadas de atraso. A empreitada e exploração da primeira linha de comboio em Portugal foi entregue à Companhia Central Peninsular dos Caminhos de Ferro de Portugal, (criada em Londres a 14 de Maio de 1852), do inglês Hardy Hislop. Foi também um projecto polémico que dividiu as elites pensantes e incendiou o clima intelectual do nosso país, com a famosa polémica de Alexandre Herculano e Lopes de Mendonça, o primeiro diabolizando o comboio e as suas consequências nefastas para o “municipalismo” e para uma certa pureza moral do mundo rural; o segundo endeusando essa ferramenta de progresso, da livre circulação de bens e de ideias, que de facto se iria concretizar. O progresso sempre foi em Portugal pomo de discórdia, como se vê pela polémica gerada em torno do TGV, o comboio de alta velocidade que Portugal pretende lançar nos próximos anos. Reviver o passado no Douro O Intercidades chega ao Entroncamento, artéria principal do sistema ferroviário nacional. Apeamo-nos para visitar um pouco da história da ferrovia em Portugal, já que aqui se ergue o embrionário Museu Nacional Ferroviário, que vai guardar os tesouros e os engenhos que escreveram um século e meio de história dos comboios no nosso país. Com um valioso espólio disperso por vários núcleos museológicos no país, a CP pretende concentrar aqui a sua memória, se quisermos, a sua Torre do Tombo. Desde as pioneiras locomotivas avapor, às carruagens reais, passando por material de fiscalização de linha, fardas do início do século XX, o Museu Nacional Ferroviário é um projecto ambicioso e uma montra de eleição que pretende espelhar mais de um século e meio de história. Mas é também uma história viva que a CP e alguns operadores turísticos pretendem recriar com os comboios históricos na linha da Beira Baixa, à semelhança do que acontece com a Linha do Douro e do Corgo, em que antigas locomotivas a vapor e carruagens “vintage” restauradas recriam o espírito e o encanto das viagens de comboio do início do Século XX. Com um fiozinho branco desenhado no horizonte, o comboio vai irmanado com o rio, por esse país adentro, seja no Douro vinhateiro das estações de azulejaria deslumbrante, como a do Pinhão, ou pelas margens do Tejo, entre túneis, castelos de Almourol, e o casario das vilas ribeirinhas que saúdam o comboio que passa, hoje como há 150 anos.

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A todo o vapor


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COVAS DO MONTE Texto e fotografias de Pedro Martins

A

aldeia, pertencente à freguesia de Covas do Rio, fica situada num vale da Serra de São Macário, em pleno massiço da Gralheira, a uma altitude de 450 m. À sua volta, fica uma imensa montanha de xisto, colorida pelo verde das giestas e do mato, aqui e ali salpicada por algumas manchas de pinheiro e alguns, poucos, eucaliptos. Olhando no prolongamento do vale são visíveis campos férteis e verdejantes. Ali perto, o Portal do Inferno espreita... Apenas nos anos oitenta se abriu a estrada à qual o alcatrão chegou mais tarde. Dali não segue para mais lado nenhum, mas por estrada florestal - o popular estradão - pode-se desfrutar de um belo passeio até Covas do Rio. A aldeia de Covas do Monte é constituída na sua maioria por construções de xisto, apresentando as casas um telhado de lousa feito por placas desta mesma rocha. Dispostas em ruas sinuosas, as casas têm, por norma, um piso térreo onde se abrigam os animais e as alfaias agrícolas e um primeiro andar reservado para habitação. Ali vivem 58 pessoas que têm na pastorícia a sua principal fonte de rendimento. As cerca de 2000 cabras que marcam a dinâmica da localidade sobem, diariamente, num espectáculo inusitado e surpreendente, as várias encostas em torno da povoação. Para as guardar, os habitantes organizaram “parceiradas” em que se revezam na guarda do gado (pobreiro). É esta lógica comunitária em torno da pastorícia que reforça a identidade singular da aldeia em que, visita após visita, se continua a surpreender o visitante. Ao final do dia o gado desce a encosta rumo à aldeia, oferecendo aos presentes a mais extraordinária experiência sensorial – envoltas numa imensa núvem de poeira levantada pelo calcorrear do rebanho e recortadas pelos últimos raios de luz, as cabras distribuem-se sozinhas e ordeiramente pelas estreitas ruas da aldeia dirigindo-se cada uma para o seu curral. No prolongamento do vale ficam situadas as “Terras do Pão”, lugar de terrenos férteis e com abundância de água que, escorrendo da serra por alguns ribeiros, no estio é utilizada e distribuída pelos campos através de um regadio tradicional. É essa mesma água a força motriz das mós, nos seculares moinhos de água, onde se procede à moagem dos cereais para se fazer a broa. Antigamente existiam na aldeia três lagares de azeite, dos quais um, o comunitário, se encontra neste momento em recuperação. O Restaurante da Associação dos Amigos de Covas do Monte, resultante da recuperação de uma antiga escola primária, merece uma visita atenta, podendo aí degustar-se algumas das especialidades regionais, como os rojões ou o cabrito e a vitela assada.


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© Alípio Padilha


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A Primeira Hora

C

ada amanhecer é o começo de um novo dia. Alípio Padilha, José Crúzio, Manuel Ferreira Chaves, Pedro Amaral, Susana Paiva e Victor Coelho trazem-nos 36 imagens, com as particularidades próprias de cada cidade, de cada lugar. São 36 imagens de cidades que despertam, captadas entre as 5 e as 9 horas da manhã. Lisboa, Fundão, Viseu, Portugal, Quintana Roo, Yucatán Peninsula, México, Essaouira (antigo Mogador), Marrocos. Um exercício de convívio com o silêncio do amanhecer, quando todos ainda teimam em ficar de olhos fechados. A arte não ficou indiferente a esta hora particular do dia, fronteira entre o sonho e o despertar. Tal é o caso da fotografia que não é alheia à singularidade deste momento e da vida da cidade que desperta. Momentos fugitivos, com mais ou menos nevoeiro, instantes absolutos onde se capta o eclodir do dia com uma luz irrepetível. Ao olhar para cada uma destas fotografias, verdadeiras explorações dos mistérios da luz, como não nos lembrarmos de Josef Sudek, o checoslovaco encadernador que andava pela ruas de Praga, curvado pelo peso da máquina fotográfica (Kodak 1894) e de um antigo tripé, movendo-se lentamente entre a luz e a escuridão. Se a fotografia tem alguma coisa de quimérico, Sudek representava bem esta busca do fotógrafo, intensa e dramática, por uma luz diferente. De boina e capa preta, ombro esquerdo mais inclinado a compensar a perda do outro braço perdido durante a Primeira Guerra Mundial, Sudek escolhia muitas vezes a névoa cinzenta da madrugada para fotografar. Nestas cidades que despertam, o mais difícil é aprender a olhar para as coisas que ninguém ainda notou e que, contudo, estão à vista de todos. O silêncio da hora ajuda à concentração: fixar uma posição na magnífica variedade que a cidade nos dá, ajustar a lente, disparar. Tal como Sudek, que para ‘ver’ Praga teve de a abandonar brevemente, o amanhecer desperta um certo distanciamento em relação à cidade por onde passamos diariamente. Nesse instante, no silêncio que inunda a cidade que se renova, como Aurora, somos conduzidos por uma mão invisível que nos leva ao encontro da cidade que, perante os nossos olhos, se inventa. Texto de Ricardo Paulouro

© Manuel Ferreira Chaves

À venda em todo o país © Alípio Padilha

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pedro amaral

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AlĂ­pio Padilha

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josĂŠ crĂşzio

susana paiva

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Texto e fotografias de Paulo Nunes dos Santos

otosí, classificada pela UNESCO como património mundial, para além da curiosidade de ser a mais alta cidade do planeta, merece apenas uma outra razão para ser visitada, as minas da enigmática Cerro Rico, uma montanha que foi um dia a mais importante fonte de rendimento da coroa espanhola e é hoje o único meio de sustento para milhares de Bolivianos. À chegada a Potosí, é impossível não ficar deslumbrado com a imponente montanha que figura como pano de fundo da cidade. Sente-se de imediato que a gente que ali habita tem um respeito incontestável por Cerro Rico, quer seja pelo significado histórico, pela importância económica ou simplesmente pelo medo que o povo tem daquela há muito conhecida como a montanha que come os homens. Guiado por Willie, um antigo mineiro e único sobrevivente de 4 irmãos que perderam a vida em acidentes de trabalho dentro da montanha, faço uma paragem no mercado dos mineiros onde sou aconselhado a adquirir folhas de coca, cinza de banana, cigarros, álcool etílico e barras de dinamite, que servirão de salvo-conduto para entrar nas minas. Após uma caminhada de cerca de uma hora, em muito dificultada pela altitude, e após mascar quantidades significativas de folha de coca misturada com bicarbonato de sódio (que serve de catalisador), chego a uma zona de entrada para as minas. Cá fora encontram-se algumas mulheres e crianças que parecem estar à espera de algo ou alguém. Willie explica-me que as mulheres estão a aguardar os maridos e filhos, e que não são permitidas dentro das galerias por se acreditar que trazem má fortuna a quem ali labora. “Apenas uma das muitas crenças e misticismos de Cerro Rico”, acrescenta. Feitas as negociações com um dos encarregados das minas, e após um breve ritual conduzido na língua nativa dos Aymara, sou autorizado a iniciar aquela que virá a ser uma das experiencias mais brutais e chocantes de toda a minha existência. Entro, e de imediato sente-se uma sinistra quantidade de pó a circular no interior das estreitas galerias, tornando o ar praticamente irrespirável. O calor é praticamente insuportável, e Willie diz-me que as temperaturas podem atingir os quarenta graus centígrados. Assim que descemos uns metros, as galerias começam a ficar mais estreitas obrigando-me a caminhar de joelhos por um túnel onde a única direcção possível é em frente. Voltar para trás está fora de questão, mesmo porque não é possível virar o corpo num espaço tão confinado. Com a câmara fotográfica numa mão e uma lanterna na outra, sigo Willie na esperança que rapida-

mente chegue a uma galeria mais espaçosa e com ar mais respirável. Percorridas umas boas dezenas de metros, é chegada a altura de descer umas escadas rudimentares feitas de madeira que dão acesso a um nível inferior onde de repente se vislumbram à distância as ténues luzes projectadas pela chama do capacete dos que aí trabalham. Aqui, um conjunto de homens rasteja, martela, cava e iça até a superfície cestos contendo quilos de pedregulhos, onde outros num esforço notoriamente diabólico, empurram vagões contendo duas toneladas de minério (essencialmente prata, zinco e estanho). Há quem grite “dinamite!”, e passados uns segundos sente-se uma explosão que parece estremecer todo o interior da montanha. Levanta-se ainda mais pó e a galeria fica completamente às escuras. Mais um buraco aberto em busca de um novo filão. Prosseguimos por entre túneis e buracos até que a actividade dos mineiros cessa repentinamente e Willie informa-me que é hora de almoço e temos de ir prestar respeito pelo El Tio. Intrigado, sigo Willie e muitos dos mineiros para uma pequena galeria onde um estátua sinistra é parte dominante do espaço. “Este é El Tio”, esclarece Willie. Uma estátua com corpo de homem e cabeça e chifres de cabra, que representa o diabo, adorado pelos mineiros quando dentro da montanha. Sou então convidado a participar num ritual de oferenda ao El Tio. Um a um vãose acendendo cigarros que são postos na boca do diabo, seguidos de folhas de coca colocadas sobre membros e álcool polvilhado em volta da estátua. E então altura de “almoçar”, que significa não mais do que mudar a coca que trazem na boca por novas folhas, e descansar apenas por meia hora. É durante esta meia hora que tenho a oportunidade de ouvir as histórias que estes homens têm para partilhar. Falam-me da esperança de vida ridiculamente baixa de quem passa os dias respirando o ar quase insuportável das galerias e dos 8 milhões de pessoas que terá perdido a vida naquelas minas desde a chegada dos espanhóis. Um dos mineiros diz-me que “em Cerro Rico quem trabalha no subsolo sabe que, muito provavelmente, morrera nas minas ou por causa delas”. Fala-me também do insignificante lucro que a maioria dos mineiros retira deste árduo ofício, afirmando que “não há salários fixos em Cerro Rico, o rendimento depende apenas da quantidade e qualidade da produção diária”. Terminada a hora de almoço, decido que é tempo de terminar a visita e peço a Willie que me guie de volta a superfície. Após percorrer inúmeros túneis em diferentes níveis da mina, subimos escadas por buracos sem resguardos nem qualquer tipo de segurança, e finalmente chego à superfície e à luz do dia. Uma vez cá fora, sinto-me esgotado, anestesiado, chocado e sem reacção, isto provocado pelo que vi e ouvi dentro de Cerro Rico. Homens que trabalham em condições desumanas por não terem outra alternativa. Homens que arduamente laboram entre dez a doze horas por dia com a certeza de que possivelmente nunca irão enriquecer e que um dia irão morrer à mercê da montanha. Senti-me também afortunado por não ser um dos ‘escravos’ de Cerro Rico.

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OS ‘ESCRAVOS’ DE CERRO RICO


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Reportagem libertina, entre bordéis à beira da estrada escondidos nas alcovas do puritanismo beirão. Com Ovídio como companheiro e os ensinamentos da “Arte de Amar” no bolso, partimos à procura de sexo sem vista para o mar. Texto de Rui Pelejão Fotografias de Adriano Batista

A

luz vermelha na longa recta de uma estrada próxima do Fundão, chama imediatamente à atenção. Não são os foguetes proibidos da festa do Anjo da Guarda, mas apenas um velho bordel de estrada. Outrora uma churrasqueira que se passou a dedicar a outro tipo de comércio de carne. À porta, uma motocultivadora, duas carrinhas agrícolas a cair da tripeça e uma motorizada, deixam adivinhar o tipo de clientela. Avançamos decididos para o balcão-altar com um poster do Sporting campeão (uma raridade), uma imagem da Nossa Senhora e as garrafas em parada militar à espera de ser dissipadas. Como é época alta, este bordel tem agora seis meninas: três brasileiras, duas romenas e uma ucraniana. “Normalmente só cá temos três ou quatro. Chega e sobra”, resmunga-nos o barman com fronha de poucos amigos, enquanto nos serve um Licor Beirão. As prostitutas estão sentadas nas mesas com três ou quatro clientes. Os restantes ganham coragem e embalo no balcão. Mesmo a pagantes é preciso coragem. Todos parecem sonâmbulos de olhar perdido. As putas de serviço são entradotas, gorduchas e ficam a dever uns centavos a uma beleza, que porventura se dissipou com o uso. Percebe-se que é um bordel pobre, à medida da carteira de clientes pobres. Uma das prostitutas, a mais nova, levanta-se com dificuldade sobre os saltos e aborda-nos com um português tão desengonçado como o andar: “Olá, chamo-me Alessandra e tu?” Convida-nos para nos sentarmos. Aceitamos pagar-lhe um flute xaroposo de whisky cola a vinte euros, porque sabemos que “amor de mulher da vida e convite de taberneiro, só por dinheiro.” A história é um disco tantas vezes riscado neste país-bordel, onde o amor se encontra exposto

para consumo na casa. Um país de públicas virtudes e vícios privados, varrido a campos de golfe, casas de passe e bares de alterne: “Sou da Roménia, tenho vinte e seis anos. Trabalhava numa fábrica de cablagens”, lá vai ela apalpando o português fanhoso e a perna de Ovídio, “vim para Portugal há três meses com uma amiga. Comecei a trabalhar numa casa em Vila Velha de Ródão, depois estive em Castelo Branco e agora o patrão mandou-me para aqui.” Faz uma careta de repúdio. Não gosta deste fim do mundo: “Vim de Bucareste para fugir à miséria, e aqui há uma miséria ainda maior. Não me importo com o que faço, mas os clientes daqui são muito miseráveis, não cheiram bem como tu!” e aponta para Ovídio “queres vir?”. São 60 euros por uma hora e tal. Declinamos o convite que se estendia para o corredor dos fundos, onde recebem os clientes em quartinhos abafados, com uma cama, uma pechiché e uma mesinha de cabeceira. Alessandra mostra um sorriso desdentado, mas franco: “Tá bem. Olha, há uma coisa que gosto em Portugal. Sabes o que é? A comida”. E deixa-nos, para dar atenção ao cliente da mesa ao lado, que cambaleia a cabeça sobre a enésima garrafa de Super Bock. Reconheço-o. É M., meu amigo de infância. Costumávamos brincar juntos no campo a guardar as cabras e as ovelhas do rebanho do pai dele. Agora está gasto pelo álcool e pelo azedo da vida. Os olhos varejados de sangue já não têm o lampejo do rapaz irrequieto que eu conheci. Só saiu daqui para cumprir o serviço militar, onde agarrou o vício do Ventil e das Minis. De regresso à terra, trabalhou no campo, guardou rebanhos e deu ao litro nas obras. Todo o tusto que amealhou foi estoirado nos copos. Por aqui, mulheres em idade casadoira é mentira e a caminho dos 40, M. perdeu a esperança no amor. Agora afoga-se nos whiskys caros e no amor pago a 50 euros à beira da estrada. Trágico foi também o destino de um velhote da aldeia, que animado pelo vigor inesperado do Viagra e pela miragem da luz vermelha, uma noite, já bêbado que nem um cacho depois de uma sessão com uma brasileira, tomou a pé o caminho errado e entrou pela A23, onde morreu atropelado à entrada do túnel da Gardunha. É M. quem me conta esta história, sentenciando: “Um dia sou eu.” Homem pobre, homem rico. Bordel pobre, bordel rico. Prosseguimos para um bar de alterne, a caminho da Covilhã. Uma vivenda vistosa e recatada, com Mercedes e outras bólides de matrícula

francesa estacionadas à porta. Dez euros de consumo mínimo. Entramos e, na pista, dança-se ao som de “As meninas da Ribeira do Sado é que é/ lavram a terra com as unhas dos pés”. Não me parece a mais adequada canção para a sensualidade do roça-roça, mas os clientes parecem gostar. São também poucos, mais novos e mais bem vestidos do que no bordel de estrada. As meninas também têm um ar mais cuidado e insinuante. Num bar de alterne o negócio é pagar copos em troca de atenção e alguns apalpões. Lu, uma mineirinha rechonchuda e bonita, sentase à nossa mesa e pede o inevitável xarope de whisky com água suja do capitalismo, agora a 25 euros. Percebe-se que tem outro traquejo. Veio do Brasil há já um ano e define-se como “garota de programa” e não como “quenga”: “Vivo com uma amiga na Covilhã, e recebemos senhores em casa, mas apenas clientela seleccionada. A maior parte deles são de outras cidades, ou empresários em viagem, já que é raro alguém da Covilhã bancar um programa. Sabe como é, para mijar fora do penico, convém ser longe de casa.” Lu explica que “nesta discoteca não se pode subir com o cliente, estamos aqui apenas para conversar, dar algum carinho e recebemos percentagem nas bebidas. Se a menina quiser, pode encontrar com o cliente, mas lá fora.” Uma noite com Lu pode custar até 200 euros, “tudo depende, do que o cliente quer. Tenho um um senhor de posição da Guarda que me visita apenas para me ver tocar e dar palmadinha na minha bundinha. Não pede mais nada.” Nos sofás repolhudos na zona mais escura do bar um cliente ressona copiosamente, estendido com as peúgas brancas a assomarem no escuro: Ovídio boceja. A noite já vai longa e o licor beirão pesa-lhe na pestana. Desanimado, encolho os ombros. Fiquei a saber tanto sobre sexo no Interior como sobre a vida sexual das tartarugas do Índico. Sei apenas que cada um deve descobrir o seu caminho para a felicidade sexual, iluminado pela lunar luz de Agosto, porque vida só há uma e tem essa estranha mania de se gastar depressa. Ovídio anima-me: “Mas eis que o leito cúmplice recebeu dois amantes. Detém-te, Musa, à porta fechada deste quarto. Sem a tua ajuda, completamente sós, as palavras, acorrerão em tropel, e na cama, a mão esquerda não ficará inactiva. Os dedos acharão com que ocupar-se nas partes onde, misteriosamente o Amor deixa cair os seus dardos.” Este Ovídio é que a sabe toda.

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Retratos do país-bordel


ricardo alevizos

Eu e os outros

the portfolio project

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Ricardo Alevizos iniciou-se na fotografia desde cedo e nela encontrou uma forma de se estudar e descobrir a si próprio. “Eu e os Outros”, uma série constituída por onze fotografias, é exemplo de como a fotografia pode também ser um processo de (auto)análise e permanente descoberta. Há dois aspectos que nos chamam desde logo a atenção: a explosão de cor, que alterna com a sobriedade do preto e do branco, e a representação de corpos que, qual performer, se contorcionam. Considerada durante anos o parente pobre da fotografia artística, a cor ganhou uma importância significativa na fotografia. Associado às sombras e aos jogos de luz, o matiz colorido evoca em quem o contempla uma certa sensação de mistério. Em cada uma destas imagens, a cor ora revela, ora camufla as várias versões de um mesmo corpo. Esta inquietante beleza de retratos de corpos que nos obrigam a contorcer o olhar de forma a poder acompanhar os seus vários movimentos e posições expressa também a sua condição e evidencia a sua vulnerabilidade. Arriscamos dizer que estamos perante muito mais do que nus artísticos que nos fazem recuar aos nus masculinos com fins científicos de Muybridge, ao corpo semi-nu fotografado de Nijinsky no início do século XX, ou ao mais recente reconhecimento do nu como arte. Em cada posição do corpo, encontramos uma explosão de emoções com as quais nos podemos identificar, ou não. Este será talvez o prazer da alteridade. O que vejo? Sou eu em frente ao outro, frente a outros sob formas várias, a quererem sair de si, a quererem ser outro, a incorporarem gestos e expressões. O que posso reconhecer no corpo do outro? Este enigma da relação entre o eu e o outro, desse outro que também sou eu, é aquilo que, talvez, Ricardo Alevizos procura nestas imagens – a expressão do abismo na intenção de existir no corpo do outro. Afinal, a fotografia é eco do que não pode falar, mas também do que não pode deixar de existir. Margarida Gil dos Reis


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THE PORTFOLIO PROJECT Plataforma educativa na área da fotografia, coordenada por Susana Paiva, que funciona como um espaço de partilha e crescimento individual na área da fotografia. Articulando dois interfaces absolutamente autónomos - um privado e outro público - o Portfolio Project constitui-se com um espaço singular no panorama da fotografia portuguesa, reunindo numa mesma plataforma online três conceitos base – a de uma publicação sobre fotografia, a de um espaço de formação contínua à distância orientado por profissionais e a de um portal associativo onde se divulgam fotografias desenvolvidas no âmbito de projectos individuais ou colectivos.

SUBMISSÕES TPP Aberto à candidatura espontânea de todos os fotógrafos amadores ou profissionais que queiram participar nos seus projectos ou actividades colectivas, o TPP encontra-se também disponível para a apreciação crítica de portfolios de fotógrafos que desejem publicar o seu trabalho na secção “multimédia” da A.23ONLINE. Para mais informações sobre a adesão à plataforma THE PORTFOLIO PROJECT ou sobre as normas de submissão de trabalhos para publicação por favor contactar através do email: a23@theportfolioproject.org. Para mais informações consulte: www.theportfolioproject.org


cultura

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ENTREVISTA A AGUSTINA BESSA-L A propósito da publicação de A Corte do Norte, falaremos sobre a vida e a obra de Agustina que, há cerca de dez anos, eu disse que era a grande senhora da literatura portuguesa. A Agustina nasceu a 15 de Outubro. Dá alguma importância ao facto de ter nascido sobre o signo da Balança? Agustina - Em geral, acabamos sempre por dar algum significado a essas coisas, sobretudo nos tempos de lazer em que temos ocasião para nos debruçarmos sobre esses simbolismos. Passei a dar menos significado quando me disseram que o signo da Balança tinha um sentido muito diferente daquele que eu lhe dava. Eu julguei que era o signo da estabilidade e, afinal, disseram-me que era da instabilidade (risos). De qualquer maneira, a astrologia não lhe é indiferente... Não me é de todo indiferente e se ela durou até aos nossos dias é porque ela tem alguma importância. Sente-se, de algum modo, privilegiada por ter nascido no Norte de Portugal, numa aldeia muito antiga chamada Vila Meã e que fica perto do Douro e de Amarante? Eu começo por me sentir privilegiada por ter nascido num Domingo. Nos países nórdicos, as pessoas dão um sentido especial aos nascimentos nos Domingos por todo o simbolismo que este dia tem. Nasceu num Domingo mas não à hora da missa. Pois não, nasci às seis da tarde e chovia muito. Dizem que as pessoas que nascem ao Domingo têm o poder de prever o futuro. De modo que isso foi algo que me acompanhou sempre. Agustina, em Portugal, é um nome raro que, creio, se deve à sua avó materna que era espanhola, como é, aliás, a sua mãe, pelo menos na origem. A minha mãe nasceu em Zamora, veio muito nova para Portugal. Agustina é um nome que não é usado, que na grafia portuguesa não existe, mas que corresponde ao Agustinha, de forma que é um nome relativamente vulgar. Em Espanha, é muito vulgar até. A Agustina gosta do seu nome? Gosto. Quando era miúda, até aos 12, 13 anos, gostaria de me chamar Maria Teresa. Achava o nome muito mais forte, talvez porque Santa Teresa era a mulher das Letras, sobretudo na região de Castela, e eu sabia muitas histórias pícaras dessa época. Esta foi, aliás, uma figura que me acompanhou sempre. Falamos da sua ascendência espanhola, pelo lado materno, e gostaria de lhe perguntar se reconhece em si traços ou marcas da cultura espanhola. Muitos, não só na literatura. Identifico-me com personagens, com maneiras de dizer e de escrever. Li, há tempos, uma entrevista com Ballester e senti que podia ter dito muita coisa tal como ele disse. É uma espécie de corrente sanguínea que corre com a mesma intensidade e temperatura. Na sua infância ainda visitou várias vezes Espanha, ou não? Não. A primeira vez que saí de Portugal já tinha mais de 30 anos, em 1959. A Agustina sempre teve uma boa relação com a sua mãe? Relativamente, pois muitas vezes não temos uma boa relação. De resto, o meu relacionamento com as

pessoas não é pacífico e isso gera sempre surpresa, indignação, reconciliação. As relações com o seu pai eram mais pacíficas. Sim, porque o meu pai era uma pessoa sempre em trânsito. Não era aquele chefe de família com uma vida muito ordenada. Era um homem boémio e encantador. Com as minhas desculpas antecipadas, gostava que comentasse o facto de dizerem que a Agustina casou por anúncio. E se isso ficasse para os biógrafos? (risos) Acho que aos biógrafos temos de lhes deixar qualquer coisa! Preocupa-se muito com a sua indumentária? Até uma certa altura, julguei que me preocupava, mas quando li no Diário de Virgina Woolf o que ela diz das rivalidades dela e das amigas a respeito do vestuário, achei que eu era uma santa criatura, quase ingénua, porque não me preocupo a esse ponto. Tem vivido em vários lugares: Porto, Vila Meã, Povoa, Coimbra. A partir de certo momento, de fins da década de 50, passou a viajar muito. Tem necessidade da mudança de lugares ou foram apenas as contingências da vida? Não tenho necessidade de mudança. De resto, os portugueses viajam muito e não têm necessidade de mudar. São, ao mesmo tempo, sedentários de coração e de imaginação são mais voláteis. Disse uma vez que viajava para adquirir a intimidade do importuno... Sim... quando ouço frases que tenha dito ouço-as sempre com mais atenção porque, por vezes, tenho dificuldade em acreditar que fui eu que as disse (risos). Falemos dos seus estudos. Fez estudos no ensino básico, secundário... Secundário só até ao terceiro ano. Estudei ain-da até ao quinto ano mas não cheguei a fazer exame. Esteve num colégio de Doroteias na Póvoa do Varzim e no Porto. Aí, teve, certamente, uma educação bastante religiosa. Não tanto como pode parecer. A educação das Doroteias não tem nada a ver com aquela religiosidade quase fanática. Nesse tempo, havia uma directora que tinha vivido na Suíça durante muitos anos e que trazia já um sentido de educação muito diferente daquele que havia em Portugal. Por exemplo, o preparar as raparigas para serem senhoras do seu destino, não estudarem só um bocadinho de piano e Francês, como era costume. Esteve sempre interna nesse colégio? Não, estive sempre externa, a viver em casa dos pais. Nunca a interessaram os estudos a nível universitário? A certa altura sim, quando estive em Coimbra, mas já estava casada. Achei que seria interessante e não difícil. Mas, nessa altura, com família já constituída, isso exigia outra disponibilidade. Mas eu já me tinha começado a lançar nas Letras e não sentia isso como uma necessidade. A sua universidade foram as leituras que fazia desde os seis anos. Sabe-se de alguns livros que a interessaram desde menina, desde a Bíblia, às Mil e

uma Noites, aos pícaros, até aos clássicos do século XVI e XVIII. E também muito má literatura. Há uma idade em que a má literatura pode ser maravilhosa. Essa literatura era literatura cor-de-rosa? Eram, sobretudo, aventuras, clássicos france-ses que não se podem propriamente chamar de má literatura. Pelo contrário, para o desabrochar da imaginação pode ser um auxiliar muito poderoso. E o Camilo que tanta gente aponta como uma espécie de mestre? Em que idade a Agustina se encontrou com a sua obra? Bastante tarde. O Camilo surgiu na minha vida por acaso. Conhecia alguma coisa do Camilo, sobretudo o Camilo pícaro, mas em profundidade só mais tarde tomei contacto com ele, com aqueles livros de capa vermelha encarnada que se encontravam facilmente nas bibliotecas. Mas nem sempre me interessavam. Mais tarde é que pude entender melhor o Camilo. Pertence a uma geração com alguns nomes distintos nas Letras. Saramago, por exemplo, nasceu no mesmo ano da Agustina e, por volta de 1922, aparecem romancistas como Ruben A., Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Namora, Vergílio Ferreira ou poetas como Sophia de Mello Breyner e Eugénio de Andrade. No entanto, nunca se integrou numa geração que, aliás, nunca se formou também como um grupo autónomo. Nunca teve essa espécie de sensibilidade geracional? Pelo facto de ser mulher e não fazer um curso universitário, estive, desde o início, mais isolada. Compreendo que para um homem, até pela facilidade de contactos que tinha, proporcionava-lhe uma espécie de fidelidade a uma época, de encontros assíduos e constantes dos quais podia até resultar uma escola. Isso não aconteceu comigo porque eu vivia muito isolada. Nem a minha família pertencia ao meio intelectual, nem se relacionava com pessoas do meio. Lembro-me que para mostrar os meus primeiros livros tinha que pedir a alguém que conhecesse alguém para poder ter um parecer sobre eles. Aos 16 anos tinha um romance escrito. Nunca teve vontade de publicar nada em jornais ou revistas do tempo? Ainda publiquei alguma coisa. Depois ficava muito indignada porque eu mandava os textos manuscritos e depois saíam com imensas gralhas e eu ficava muito desiludida. Creio que a primeira coisa que publiquei foi no jornal de Gaia, teria eu uns 17 ou 18 anos. Falo de diversos géneros e noto, na verdade, que os tem percorrido quase todos. Conto, novela, romance, teatro, peça para televisão, crónica, memória, biografia, polémica e até livros de viagem. Falta só o diário e a poesia... Mas comecei com a poesia (risos). Teria talvez uns doze anos e o gosto por escrever e desenvolveu-se em mim um ímpeto sonetista que, penso, todos nós teríamos por essa idade, e acho que foi aí que se revelou o gosto da palavra, a atracção que as palavras exercem umas nas outras, aquela espécie de colectivismo que há na gramática e nas palavras. Ballester diz, a certa altura, na entrevista que lhe fazem, que deixou de ser poeta porque não podia ser senão um bom poeta e que a poesia exige realmente o grande poeta. Eu já tenho surpreendido na Agustina algumas


Entrevista de Arnaldo Saraiva

ironias sobre os poetas. Mas isso não quer dizer que eu não os respeite extraordinariamente. Tanto que as minhas grandes admirações estão na poesia. E as suas leituras de poesia são intensas? Sim, acho que quando encontro um grande livro de poesia ele é o meu livro de cabeceira, enquanto que um romance nunca é. A Agustina situaria a prosa do lado do discursivo e do menos sintéctico. Mas eu distingo na sua prosa, ao nível imagístico e de ritmo, páginas, como nos Incuráveis, sobre as quais não teria dificuldade em caracteriza-las de poesia em prosa. Entramos assim na sua estilística, caracterizada pelo gosto pela frase ampla ou pela frase elíptica, aforística. De onde lhe vem este gosto pelo aforismo que alguns lhe censuram? Quando há tempos me fizeram uma pergunta semelhante saiu-me a resposta de que nós, os portugueses, somos assim. Acho que isso tem muito que ver com a minha naturalidade de portuguesa porque há realmente uma cultura que é feita de uma escolha de determinados temas que aprendemos a valorizar desde crianças e há uma cultura que nós trazemos nas nossas veias através de centenas de milénios. Acho que essa cultura aforística faz parte da cultura portuguesa. A sua construção é também sinuosa. Acha que isso entra também nas características da expressão portuguesa? Sim, penso que a partir do século XVI / XVII. Sobretudo na literatura dita de frades...

entrevista . 21

LUÍS

Fotografia de Luisa Ferreira

De frades e de judeus (risos). Está tão atenta à rua como ao livro? Às vezes um diálogo com uma pessoa que parece que não diz nada pode ser, para mim, o princípio de um livro ou até o princípio de uma ideia. Foi isso que a levou ao jornal? Foi, sobretudo, uma série de circunstâncias e um aproveitamento dessas circunstâncias para remediar uma situação, que era a situação do jornal. A verdade é que alguma coisa de importante sucedeu no que se refere a contactos. Por exemplo, nós intelectuais, de um modo geral, através da educação que temos, habituamo-nos a viver fechados sobre nós próprios, personagens que nos são oferecidos através da literatura, e a fazermos uma estimativa da vida que não é a vida real. Lemos muito e acabamos por compreender a vida através dos livros, por mais realistas que eles sejam. Mas eles falseiam sempre, de algum modo, a verdade e a realidade humana. Embora todos os seus livros explorem o mundo das relações humanas, curiosamente pouco da infância, parecem também fascinados pelo mundo das mulheres. Acha que isso se impôs como mulher? Em grande parte como mulher porque acho que nós só produzimos uma obra com valor, qualidade ou possibilidades de ter esse valor se nos debruçarmos sobre aquilo que nos é mais fácil conhecer. Eu, como mulher, debruçando-me sobre uma natureza feminina, é-me mais fácil chegar a ela através de mim mesma. Numa segunda razão, acho que as mulheres não tiveram até hoje assim tantos historiadores porque quase sempre foram os homens

que falaram das mulheres e falaram das mulheres, justamente, através deles, vendo sempre a mulher como uma forma de travesti. Eu costumo dizer que a mulher fatal é um travesti do homem porque não corresponde à natureza feminina, em nenhuma circunstância. Acho que é tempo de uma mulher falar realmente daquilo que era, de uma maneira melodramática, uma incógnita, mas que estava na sombra. A Agustina emenda muito pouco. Sim, emendo muito pouco, o que não quer dizer que seja assim tão louvável como algumas pessoas possam supor. Primeiro, quer dizer que não valorizo demasiado aquilo que escrevo, isto é, não o tenho como uma escritura. Para mim, emendar deve ser o sacralizar aquilo que se escreve. A Agustina parece também muito sensível ao tempo. Não há livro nenhum seu que não venha datado no fim. Adere totalmente ao seu tempo ou sonha com tempos melhores? Não sonho com tempos melhores. Sou, de certa maneira, adepta de uma visão intemporal da existência. Perguntavam-me, insistentemente, há tempos, o que é que eu pensava do além da vida, se seria uma existência que se podia continuar ou completar. Eu dizia “espero que sim porque gostaria de continuar a viver noutra dimensão e para pregar sustos às pessoas que cá ficam” (risos). Incomodar mesmo depois da morte... Fazer-me lembrar. É só isso. Entrevista realizada em 1987


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Músicos/Actores ou Actores/Músicos? Texto de Pedro Teles Ramos

E se afirmássemos assim “à bruta” que dois dos maiores escritores de canções do momento são dois actores de reconhecido talento com carreiras cinematográficas feitas de escolhas que têm tanto de acertado como de complexo? Mas vamos pôr-lhes nomes, apelidos e... banda! O primeiro é canadiense e chama-se Ryan Gosling. Mesmo os mais distraídos lembrar-se-ão dele por “Half Nelson” de 2007 (mais as raparigas que os rapazes), pelo qual chegou a estar nomeado aos Oscares desse ano. A banda deste senhor em companhia do seu amigo Zach Shields chama-se Dead Man’s Bones e lançou em 2009 um primeiro disco com um título homónimo. E que disco! A música de uma beleza selvagem e desmesuradamente simples assenta numa fascinação do duo pelo fantasmagórico e o sobrenatural apresentado num tom de cabaret pop “Lynchiano”. As influências são mais que muitas e vêm de todas as épocas. De Kurt Veill aos Beach Boys, passando obviamente por Badalamenti, mas também por Jonhy Cash e chegando à fronteira de uns Flaming Lips. Mas o que mais sobressai é a autenticidade produto de um conjunto de regras que, mais que limitar, aportam instinto, força e verdade: nunca mais de 3 repetições de cada tema; nada de guitarras eléctricas; obrigação de tocar todos os instrumentos mesmo que seja a primeira vez que o fazem; utilização de um coro de crianças em todas as canções. Tudo isto faz de “Dead Man’s Bones” um sortilégio do qual saímos razoavelmente agitados mas igualmente purificados pela sua deliciosa e aterradora beleza. O segundo é americano e chama-se Jason Schwartzman. Sobrinho de Francis Ford Coppola e portanto primo de Sofia e Roman é o actor fetiche de Wes Anderson com quem escreveu o maravilhoso “The Darjeeling Limited”, e mais recentemente é o protagonista principal e compositor de “Bored to Death” a série mais desconcertante da HBO e talvez de toda a TV. Os mais atentos lembrar-se-ão dele de “Rushmore” em 1998 onde dava vida a um fantástico Max Fisher que ajudou a lançar em definitivo a carreira do seu

amigo Wes Anderson. Doze anos depois “Rushmore” continua a ser uma obra de um humor elegante e sóbrio e talvez o filme de Anderson que melhor sobrevive ao tempo. Ora então a “one man band” criada por este senhor dá pelo nome de Coconut Records e em 2009 entregou-nos “Davy”, isto depois de um primeiro disco em 2006 que passou ao lado da crítica e do público em geral. E é muito provável que aconteça o mesmo com “Davy”. Porquê? Porque é um disco completamente fora de tempo e de lugar. É um disco dos anos sessenta do século XX editado nos anos zero do século XXI pela Baby Records, editora criada pelo próprio Jason para editar os seus discos. Um disco que poderia ter saído de qualquer sessão de gravação dos anos 60 dos Beatles, dos Beach Boys, ou de Donovan, mas que também é uma homenagem maior à sua influência mais contemporânea, Elliott Smith, de quem Jason podia ser o irmão mais novo. Canções como “Microphone”, “Wandering Around”, “Any Fun” ou “Is This Sound OK” fazem deste disco uma obra prima intemporal para guardar na nossa estante especial entre o “Revolver” dos Beatles e o “Figure 8” do Elliott Smith.” Nem mais nem menos! E a moda promete. Em 2010 voltará Zooey Deschanel com o esperado segundo disco de She & Him em companhia de M. Ward, e está já disponível a banda sonora daquele que promete ser um dos acontecimentos do ano - “Gainsbourg (Vie Héroique)” de Joann Sfar - integralmente cantada pelos actores sob direcção do nosso conhecido Gonzales. Dead Man’s Bones: http://www.myspace.com/deadmansbones Coconut Records: http://www.myspace.com/coconutrecords Bored to Death: http://www.hbo.com/bored-to-death She & Him: www.sheandhim.com/sheandhim.php Gainsbourg (Vie Héroique): www.gainsbourg-lefilm.com


o último livro de crónicas de baptista-bastos Pela acutilância do seu pensamento, pelo festim da nomeação da literatura, pela agudeza do propósito político e também pelo seu lirismo, os romances de Baptista-Bastos não deixam ninguém indiferente. Mas Baptista-Bastos também é um formidável cronista. Sempre culto, com um estilo admirável, já o sabíamos desde “As Palavras dos Outros”, desde “Capitão de Médio Curso“ ou “Cidade Diária“. Agora com “A Cara da Gente“ Baptista-Bastos é extraordinário. Não há ninguém a escrever crónicas sobre Lisboa melhor que ele, com essa maneira tão particular. Estas crónicas são essenciais documentos humanos para se compreender a atmosfera social da nossa capital. Da «desobediência cultural» exprimida em “As Palavras dos Outros“, Baptista-Bastos passou à desobediência dos sentimentos. Emociona-nos. Diz-nos coisas sobre, por exemplo, a velhice que nunca tínhamos visto em nenhum livro português. O autor avisa-nos logo na capa que as crónicas que vamos ler são prazeres, devaneios, invenções e passeatas. Porém, o livro é muito mais que isso: é um formidável livro com perto de setenta histórias todas brilhando com o mesmo quilate. Cada uma delas é pois um diamante e este tesouro submerge-nos e somos levados ao divino. São páginas sublimes sobre a velhice, como já disse, e o desejo. Veja-se a crónica “O Rosto do Espelho“ onde o autor se desnuda e afirma que já não tem gosto em sair de casa : «A velhice é uma forma de estar quieto» e um pouco mais atrás : «A velhice permite-nos folhear coisas devagar e ver o mundo de uma varanda triste». São páginas de uma grande emoção sobre o amor perene que nunca desaparece nem abranda, o amor da juventude eterna, aquele que faz dormir os velhos esposos de mão dada, tinham-se conhecido « no tempo em que o mundo era um rapaz e uma rapariga no mundo ». São páginas de uma imensa emoção por um bairro que o viu nascer: a Ajuda. Com as suas figuras típicas, os seus ciganos, os seus futebolistas ( aqui é-se do Belenenses de

pai para filho ) , os seus bêbados, soldados corneteiros, reformados, etc. São linhas extremamente nostálgicas sobre outras partes da Lisboa Antiga, por exemplo, a Mouraria, com o seu Salão Lisboa, o cinema, mais conhecido pelo Piolho, e o seu campeão de boxe Belarmino Fragoso ou então sobre a Rua das Portas de Santo Antão onde havia o Arcádia, cabaré de luxo ( hoje é a Cervejaria Solmar) onde dançava a Pepita Pellegrin, e a ópera no Coliseu onde o pai do nosso autor o levava. A Pepita com as suas contorções corporais punha os latifundiários da cortiça em transe. São páginas e páginas de profundíssima ternura pelos humanos as que contêm a história “Um pouco de ternura“ onde uma mulher desconhecida vivendo num bairro popular de Lisboa é suspeita de ser uma prostituta quando no fundo ela é só uma boa alma caridosa que faz a leitura a pessoas idosas a domicílio. São páginas de sincera admiração pelos mágicos do futebol ( Eusébio, Matateu, Vicente, Feliciano que nasceu na Covilhã e foi para o Belenenses, Vasques, os Cinco Violinos etc ), pelos malabaristas da palavra os escritores Maria Judite de Carvalho, Alexandre O´Neill, Eduardo Guerra Carneiro, Carlos de Oliveira, etc ). São páginas de grande generosidade sobre pintores, ciclistas, actores de teatro, jornalistas, guitarristas, compositores, etc. E no meio deste carrossel humano o autor lembra gravemente que no antigamente lisboeta «era proibido beijar em qualquer estação do ano», dá conta de uma patética beldade que por ser demasiado bela ficou só e louca, recorda os seus avós que se amavam e o diziam : «A gente quando gosta, deve dizer que gosta, não deve ocultar nem dissimular os sentimentos». «Escrevo sobre pessoas: creio que nunca escrevi sobre outra coisa senão pessoas» confessa Baptista-Bastos algures neste livro. Tem razão e fá-lo de uma forma magnífica. Este livro é uma fantástica bíblia de calor humano e de compreensão pelo outro. M.S.R

Tindersticks

Texto de Pedro Fiuza

No dia 6 de Fevereiro de 2010, o Teatro Municipal da Guarda assistiu a um momento histórico, numa digressão por Portugal, os Tindersticks deram aquele que foi, para mim, o melhor concerto que já houve na chamada Beira Interior. A banda encabeçada por Stuart Staples ofereceu ao cheio auditório uma viagem pelos seus oito álbuns, com particular destaque para o último Falling Down a Mountain. Nesta viagem não faltaram My Sister, A Night In, City Sickness, Bathtime, Marbles. Para os mais apreciadores… talvez tenham faltado outros grandes temas, claro, depois de um concerto triunfal e com uma discografia recheada de canções que tocam de perto na perfeição, a noite poderia não ter terminado. O grande auditório do Teatro Municipal da Guarda aplaudiu de pé estes novos Tindersticks, que sofreram uma mutação da sua formação e que apenas restam três dos elementos da sua formação original. O concerto foi, se assim se pode dizer, bastante orientado para um lado mais rock, sem aquela estética de cabaret decadente que os identificava noutros tempos, mas não faltaram os momentos mais doces em que a música quase aquática e a

voz de Stuart Staples levavam o público para um ponto mais elevado na sensibilidade. Foi uma noite histórica. É sempre um prazer viajar à Guarda e entrar naquela que é, para mim, uma das melhores salas de espectáculos de Portugal. Tudo parecia perfeito, aquele auditório, o som óptimo, o ambiente que o público criou. Uma aposta claramente ganha e mais uns pontos marcados na programação de um Teatro que já não serve só a Guarda, um Teatro que serve todo o interior do país. Estes novos Tindersticks provaram que, apesar do peso da sua história, ainda têm muitas cartas para dar e um longo caminho para percorrer. Eu, que sou um dos seus muitos seguidores, achei que faltou Tiny Tears… mas isso sou eu… e também não se pode ter tudo!!! E já agora, vale a pena dizer, ainda bem para todos os habitantes do centro interior deste país que existe um homem chamado Américo Rodrigues, que tem um teatro para as pessoas. Aqui fica a merecida vénia e a promessa de muitos regressos. Obrigado por uma noite mágica, quem foi não pode ter ficado indiferente.

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“A CARA DA GENTE “


BOA VIDA

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Admitamos. Madrid é um palco de Satyricon, com os seus homens de expressões másculas de lenços vermelhos na lapela e mulheres de “salero” como o fogo abrasivo que sopra da Plaza de las Ventas. Uma cidade de instinto matador onde as ruas são alfândegas de gente e dormir um verbo em desuso. A última tentação dos madrilenos é matar pela boca. Texto de Tiago Salazar Fotografia de Ricardo Paulouro

Madrid me matou

Eran las cinco en punto de la mañana quando Javier Valdés, El Manitas de Plata, começou o recital. Tinha o rosto pálido como um mandarim chinês e o corpo abaulado de muitos copos virados nos reais tabernáculos da Chueca, mas nenhum dos seus dedos mostrava a menor hesitação. O barulho ensurdecedor de há minutos estancou por completo e uma assistência imune ao álcool e à fadiga plantou-se em cada pedra da calçada, de cócoras, sentada no chão, empoleirada nos candeeiros, em cima de mesas e cadeiras, para ouvir o tocador. Javier traçou então as pernas esquálidas, encolheu-se todo como um gato e aconchegou ao peito uma guitarra de dezasseis cordas e de verniz estalado que, com um sorriso trocista, dizia herdada de Django Reinhardt. Na meia hora seguinte os dedos do tocador não pararam nem sequer para coçar a orelha ou desviar a comprida melena de açor que lhe tombava nos tendões inchados das costas da mão. Para onde olhasse agora, Javier haveria de ver um mar de gente de alma vadia em delírio, como um casal de velhos no balaústre de uma varanda de madeira, embalado um no outro no ritmo plangente de uma mazurca. A história repete-se todas as noites noutros bairros de Madrid, dos castiços La Latina, Lavapiés ou Huertas, aos mais sofisticados Salamanca ou Chamberi. Madrid é uma cidade sem parança e a música da guitarra o seu elixir da longa vida. Haja “tapas”, copos, bandoleiros, futebol, “paseos”, “calles” e “plazas” e qualquer madrileno será um homem feliz. À primeira vista para quem regressa a Madrid – e quem foi, volta sempre – a cidade mantém-se igual a si própria, com tascas apaineladas de azulejos onde senhoras aprumadas de leque e sentadas em canapés se deixam cortejar furtivamente por homens de falas viris, lenços vermelhos na lapela e modos taurinos, os “chuleros”, como lhes chamou Luís Buñuel. Há, porém, uma nova Madrid que desponta entre as tabernas rústicas coa-

lhadas de tinto e bodegões infernais, uma cidade moderna de restaurantes minimalistas, bares de culto e hotéis de design. Guiado por Ernesto e Pepe, dois boémios madrilenos de casta, um alternativo o outro tradicional, fui fazer Madrid, o mesmo será dizer “tapear”, ir “de copas” e bailar, verbos exclusivos dos madrilenos e andaluzes resumidos na palavra “movida”, que deu frutos nos anos 8o depois de quatro décadas de atrofio franquista e que continua a bombear. Ernesto, o alternativo, prefere a navegação ao deus-dará e ao calhas, e como o vagabundo de Cela leva-me de passeio pelos bas-fonds da Chueca, o bairro gay de Madrid onde, como é próprio da comunidade, impera a extravagância. Aqui para quem nos lê, seja gay, simpatizante ou irredutível, não há como esta rapaziada para pôr uma cidade a fervilhar, e faça ou não parte da tribo o viajante deve vir espreitar como são as noites da Chueca. A Chueca é um parente rico do Bairro Alto de Lisboa com bares porta sim, porta sim, cada um mais esmerado do que o outro, e onde pulsa a melhor animação, a mais bulhenta, alegre e tumultuosa. Há réplicas de festim por toda a cidade, para todas as classes e feitios e a todos os dias da semana, como na zona que vai da Puerta del Sol à Plaza de Santa Ana e à Huerta. Mas a Chueca é onde se varrem de vez todas as melancolias, o bairro onde apesar do domínio gay, convivem todas as espécies de raças, desde os betinhos madrileños de cabelo penteado em bico de pato, a cyber-punks, dreads, diáconos – o voto de castidade não impede a degustação de aguardentes caseiras – ou outra raça entretanto patenteada. E para quem teme o pior, o melhor que pode ouvir de um rapazinho com voz de eunuco é um piropo do tipo “que guapo eres, tiendes el culo mas sexy que los pies”. É na Chueca, na Calle Augusto Figueroa, que os Bardem, uma família de actores pontuada por Javier, tem o seu La Bardemcilla, um restaurante


e bar que garante andamento até se cair no “tablado”. Entre uns pimentos de Padrón grelhados, croquetes de arroz e gengibre ou um taco de bacalhau regados de Riojas de várias castas e procedências pode ouvir-se o “nuevo flamenco”, um ritmo que mistura o flamenco com sons brasileiros, caribenhos, argentinos ou africanos, inventado pelos madrilenos para rivalizar com Sevilha. o Cardamomo continua a ser o «Rei da Taconea”, a par do Gabrieles que segue uma linha purista e está entre os patronos do flamenco de Madrid. Ernesto prefere os tocadores de rua e é com ele que conheço Javier, não o Bardem, o que deu pena, mas o Valdés, que embora artista anónimo, engelhado como um pêro, branco como um lençol e sem ter onde cair morto, não se fica nada atrás no talento para empolgar multidões. Para Valdés, Madrid é como as termas de Trillo: tudo curam menos gálico e loucura. Se Valdés não está a dar espectáculos no bairro da Chueca, anda como um Nosferatu em versão sentimental de guitarra à ilharga à procura de varandins floridos para tocar serenatas a “señoras necesitadas”. Todas as sextas-feiras, os 573 cabeleireiros da cidade enchem-se para lá das costuras de senhoras com necessidades de alinho. Fala Pepe: “Espanhola que se preze tem que andar impecável, até para ir à missa.” É aquela velha rábula do “salero” e do donaire que continua irresistível. Por menos abonada, de beleza ou baguito, não há espanhola que não ofusque as vistas, deixando os olhos de quem passa revirados para Alcobaça. E os vestidos nunca têm traça. São essas senhoras e senhoritas que polvilham a cidade de uma segunda camada de beleza, a juntar ao património monumental que rivaliza com as cidades mais ricas da Europa. Só a visão nocturna da Plaza de Cibeles bastava para deixar qualquer cortesão ou aldeão de boca à banda. Junte-se-lhe o Palácio Real, o Mosteiro de Las Descalzas Reales ou os Paseos do Prado e da Castellana e fica o assunto arrumado. A marca arquitectónica dos Habsburgos, Bourbons e até do caudilho Franco perpetua-se e sempre que a cidade ameaça decadência, há sempre um alcaide ou um movimento espontâneo de cidadãos que impede a catástrofe. No perímetro urbano, não há um prédio esventrado ou entregue às ratazanas, e toda a cidade respira saúde. Sei por Javier que o arquitecto Siza Vieira prepara neste momento uma intervenção no eixo mais emblemático – e problemático – de Madrid, a ligação dos “paseos” do Prado e Recoletos, cuja finalidade é devolver a zona aos peões. o espaço central, numa extensão de vários quilómetros a ligar a Praça Colón à de Atocha, terá jardins sucessivos e uma componente lúdica e cultural, propondo um passeio entre os museus Thyssen, Prado, Rainha Sofia e o remodelado centro cultural de La Caixa. Outro dos objectivos de Siza passa por devolver a condição original de fontes às estátuas de Cibeles e Neptuno, retirando-lhes os “anéis” colocados no século XIX, o que deixará à vista os seus maravilhosos espelhos de água. Madrid é isto, uma cidade em renovação contínua e repleta de manhã ao sol-pôr de uma alfândega de gente. Falávamos de monumentos, pois não espanta que muitos deles, quando se julgavam condenados à implosão, eis que algum empresário de bom senso se lembra de lhes dar nova vida. Foram os casos do Palácio de Gaviria, dos antigos teatros Eslava e Teatriz ou do Café del Círculo de Bellas Artes, outrora marcos da beleza oitocentista, agora ícones da noite madrilena. No caso do Teatriz, um teatro onde passaram peças de dramaturgos como Garcia Llorca ou Goméz de La Serna, e que hoje é um dos restaurantes de referência da nova Madrid, o restauro leva a chancela de Phillipe Starck. Para além da carta soberba de pratos de fusão de comida andaluz e mediterrânea, com nota de destaque para as trufas e escalopes, não deixe de visitar as casas de banho atrás do palco. Aliás, a nova “movida” de Madrid passa pela abertura de um número impressionante de bares e restaurantes que rompem com a cultura tradicional das tascas e “bodegas”. Numa semana a fazer Madrid, isto é, sem quase cair na cama, palmilhei mais de uma vintena dos ditos “incontornáveis” a conselho de Pepe e Ernesto, dois boémios também conhecidos por Pança y Pança. As escolhas são sempre aleatórias e reflexas das papilas e inclinações de quem as faz. Mas estas têm muito boa vontade e devoção canónica ao segundo maior prazer que a vida me deu. Fica a outorga. É uma história verdadeiramente dramática andar de bar em bar, restaurante em restaurante, cozinha em cozinha,

armado em peregrino de Santiago com especialização em degustações e libações. Para mais que não o sou, embora conte a comida entre os meus prazeres supremos. ora esta experiência madrilena é de antologia. Não sei se pela companhia se pelo calibre dos chefs, o certo é que saí de todos os lugares com muito pouca vontade de “me marchar”. E comecei logo pelo La Broche, que está entre os pecados capitais da nova cozinha espanhola. o chef Sergi Arola, discípulo do catalão Ferran Adriá, do El Bulli e do La Terraza del Casino, inspirou-se nos pratos estilizados franceses à base de frutos do mar e gelados para fazer uma carta onde pontuam as sardinhas marinadas e recheadas com ovas de arenque e o gaspacho de foie gras com gelado de baunilha. Outra opção é o lombo de bacalhau em geleia de água do mar, caviar e verduras. Para fechar em beleza, talvez uns raviolis de manga. Ou talvez, a contento, um charutinho Farias. Depois do La Broche, a tendência natural dos madrilenos é virar a esquina e ir “de copas” ou dançar no La Moma, um bar e discoteca onde pára a finaflor das capas da “Hóla”. Para os mais alternativos, o caminho é o Bar Cock, na Chueca, um bar de estilo belle époque, que se gaba de oferecer os melhores “mojitos” da cidade – e só lhe fica bem a gabarolice. No estilo minimalista do La Broche, há o La Terraza del Casino, cuja varanda permite uma vista soberba das grandes avenidas e que o crítico do “El País”, José Carlos Capel, considerou “do outro planeta”. Experimentei ainda o El Chaflán, que tem a cozinha a cargo do chef Juan Pablo Pablado e é insuperável nos seus tartares, sobretudo o de atum com sopa de pistácios. Os “boquerones” marinados com queijo fresco e massa também não estavam nada mal. Trata-se do Balzac, por detrás do Museu do Prado, a cargo do chef Andrés Madrigal, um pupilo de Alain Ducasse, autor de algumas obras-primas da gastronomia, em particular os “huevos rotos con erizos em salsa de chipirones” e o “tartar de gambas marinadas en cebolillo y menta”. Ou seja, coisas de cacaracá.

A TIA ALICE UM ESPAÇO A DESCOBRIR E A DEGUSTAR

elogios de um restaurante divino: a tia alice em fátima Texto de Manuel da Silva Ramos Em 1997, para festejar os meus cinquenta anos pagãos resolvi ir à Tia Alice em Fátima. O meu querido amigo e grande cozinheiro algarvio Vila dizia-me sempre que era o melhor restaurante de Portugal. Lá fui, ou antes, lá fomos, eu, o meu antigo editor, o Alface, e respectivas esposas. Antes do almoço, fomos beber um aperitivo para animar o treçolho e depois de termos passado por milhentas lojas de bugigangas, santinhos e outras mercadorias da piedade, encontrámo-nos por fim num bar neutro. Aí, curiosamente, um padre escocês recém-chegado bebia já. Era, claro, whisky e nós sentámo-nos ao lado com martinis. Depois de estabelecermos uma conversa sobre o Stevenson e o monstro do Loch Ness, o padre espantado pela nossa erudição literária em jejum foi-se rapidamente às suas ocupações religiosas e nós resolvemos aproximarmo-nos da Tia Alice. O estômago dava heras. Situado nas redondezas de Fátima, a dois quilómetros da Basílica, perto de uma singela igreja antiga e quase em frente de uma unidadezinha de rebobinagem, o restaurante está inserido dentro de uma casa típica de aldeia e goza de uma excelente situação quase anónima. Nunca mais esquecerei as seis horas que passámos dentro desse restaurante nesse sábado de aniversário e de peregrinação. Aceitaram-nos como íamos : munidos de um bolo comprado na Pastelaria Suíça em Lisboa e duas garrafas de champanhe francês. E depois, comemos e bebemos e recitámos poesia durante seis horas, e quando acabámos já os comensais da noite chegavam. A atmosfera, a gentileza, a qualidade da cozinha deixaram-nos assombrados. O ano passado voltei lá e tive a mesma impressão que da primeira vez. Desta vez foi o filho da patroa que me acolheu mas tudo continuava como dantes. O mesmo requinte tanto na comida como no ambiente, a mesma atmosfera de quietude propícia ao prazer dos sentidos, parecia que estávamos em cima de uma nuvem doiradoira. Comemos, contrariamente, à primeira vez, não uma invulgar açorda de marisco mas uma açorda de bacalhau simplesmente divina. Esta açorda ligeiríssima adquire um atributo quase volátil devido ao facto de ser feita com papo-secos. A vitela estufada com grelos regalou a seguir o nosso espírito sensual. Éramos já monarcas deste reino. Os grelos, particularmente saborosos, tinham sido criados na areia e isso dava ao produto uma característica única. Quanto à carne, ela descia na boca sem uma pessoa ter tempo de invocar os deuses do Yucatán. Já tive amigos meus que vieram aqui e adoraram tanto o bacalhau à Tia Alice gratinado no forno e com gambas como a chanfana de cabrito. Assim como as sobremesas, onde se distinguem os doces conventuais e o gelado caseiro. Sosseguemo-nos. A Tia Alice perpetua-se, igual ao forno de antigamente para regozijo do nosso clube de detectives gastronómicos. E até as belíssimas empregadas são como as de antanho. E confesso : se lá no outro mundo houvesse um Tia Alice começava já desde hoje a acreditar na ressurreição. « O mais vulgar dos homens é um grande artista desde que mime as suas desgraças » dizia Alain. Ao que eu acrescento : « O comensal é um grande gourmet logo que dramatize o seu apetite e ultrapasse o portal da Tia Alice .» Ámen.

Restaurante Tia Alice Rua do Adro, 2495 Ourém Tel. 249 531 737 (é melhor reservar)

boa vida . 25

gastronomia


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* Gosto dos moralistas franceses. Joubert, La Rochefoucault, Vauvenargues, Chamfort, etc. Foram eles que me ajudaram a passar o meu exílio francês, de quase trinta anos, sem soçobrar na loucura. Cito o terceiro : « As mulheres não compreendem que há homens que não estão interessados nelas ». E frequentei também grandes poetas desconhecidos que me ajudaram a esquecer Portugal : Alphonse Rabbe, Charles Lassaily, Xavier Forneret, etc. Deste último, deixo esta máxima que até faz empalidecer um morto: « O Pinheiro, com o qual se fazem caixões, é uma árvore sempre verde ».

Vou agora explicar como tudo aconteceu. O meu pai acabado de chegar de bicicleta das Minas da Panasqueira, onde tinha ido tirar umas medidas, entrou na cama onde jazia a minha mãe com borbulhas vermelhas nos dedos inchados. Era da lixívia. Assim fui concebido num instante. Com calças de terylene. Lembro-me muito bem do meu pai me atar com uma linha branca à mesa onde talhava os fatos para eu não ir brincar porque deitava sangue pelo umbigo devido ao facto da parteira não me ter ligado bem o cordão umbilical. Lembro-me muito bem que aos seis anos queria ser padre e fazia grandes discursos na alfaiataria do meu pai porque achava que os padres tinham sempre mulheres à roda deles à escuta. Lembro-me que quando vestia um fato novo ou umas calças ou uma samarra me roçava primeiro nas paredes para não aparecer como um rico diante dos meus amigos pobres. Lembro-me da neve da Covilhã que aparecia sempre como uma dama elegante e rebuçada. Lembro-me de todos os clientes da oficina do meu pai. E das suas histórias, preocupações, sonhos, sofrimentos. Nasci escritor por causa de fatos incógnitos e fatos de mortos. Mas também de fatos de casamento, de pessoas que tinham esperanças de ser felizes num país que não conhecia a palavra FELICIDADE. Durante três dias comiam como papogres, bebiam como sacos rotos, dançavam até ao tombo. Depois voltavam à dura realidade do fascismo. O meu pai foi padrinho de casamento de muitos operários têxteis da Covilhã porque eles não tinham dinheiro para adquirir um fato de casamento e pedindo ao meu pai matavam dois coelhos numa só cajadada. Eu também ia e à noite, miúdo cansado e cheio de sono, era entre grandes terrinas de arroz doce com canela que eu adormecia nessas camas repletas em quartos sombrios sem janelas. Lembro-me de ter começado a escrever aos doze anos de idade como se tivesse saído de um camião de feras depois de uma longa viagem. A culpada foi a filha bastarda do conde do Refúgio que me ofereceu para o meu aniversário A Família Inglesa do Júlio Dinis. Nesse mesmo dia li a obra toda e resolvi ser escritor, aos onze anos. O meu pai entretanto continuava a fazer bons fatos. A sua arte sempre foi para mim um modelo. Ainda me recordo de umas calças brilhantes e finas que ele me fez com as quais eu ilustrava o mundo. Uma cavalona de mulher, criada minhota da tal filha bastarda do conde do Refúgio, um dia piscou-me o olho depois de se ter perfumado com Tabu, o perfume dos ciganos. Eu vinha de fazer um soneto e não tive dificuldades em me encostar com essas calças brilhantes a ela que passava a ferro. A sua esmerada indiferença sempre me pareceu ser o símbolo deste país. Anos terríveis esses, onde quem se masturbava tinha de ser forçosamente infeliz e quem arranjava uma cachopa era para a vida. Nunca estive neste lote e foi depois de ter publicado Os Três Seios de Novélia que decidi partir para França como emigrante político e sexual. Ia ser feliz e fui. De todos os anos de exílio ( foram muitos ) lembro só duas mulheres porque não quero parecer presunçoso. Fiora tinha vinte anos e era uma loira estudante. Viera de Maastricht, e tinha em casa uma pele de serpente. Ela gostava de se enrolar nua nessa pele de serpente e depois pedia-me para a possuir. Possuía-a muitas vezes a altas horas da noite em cemitérios de Toulouse, contra jazigos silenciosos, enquanto ouvíamos ao longe na noite profunda o barulho dos carros que passavam nas auto-estradas. Ou então era em hotéis baratos cheios de operários magrebinos que dormiam como esfinges. Também me lembro de Armelle. Era uma ninfomaníaca bretã que só gostava de ser possuída nas igrejas. Fiz-lhe tantas vezes a vontade que um dia me começou a amar com uma devoção ímpar. Corria os cafés de Toulouse à minha procura, os bares, as boates. Quando não me encontrava bebia até ficar inconsciente e depois engatava um estudante qualquer e chamava-o com o meu nome e ia para a cama com ele. Mas nunca ia para as igrejas. As igrejas eram o meu domínio. O do poeta maldito português. O do santo.

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Conheci boa gente que não achava graça nenhuma a este país. O Alface, o Ernesto Sampaio, mais longe o Fernando Madureira, mais perto o Eduardo Guerra Carneiro. Tudo gente que gostava de rir. Morreram. Foram esquecidos. Ninguém se quer lembrar deles agora. Parece que em Portugal a posteridade literária pertence só àqueles que têm um partido ou é para os que se auto-promovem até ao autismo faraónico dizendo mal dos colegas e auto-proclamando a sua falsa genialidade ou para aqueles que se calam que é uma forma singela de publicidade. Cuidado, em França, nos anos sessenta do século passado, Sartre brilhava como um sol único. Hoje, é o sol negro de Bataille que ofusca o autor de « Qu´est-ce que la littérature ? »

E agora ? Continuo a cavalgar o tigre, não há outra solução. Um tigre bem humano.

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Fui viver para a Graça. Em dez anos escrevi e publiquei dez livros. Com muito esforço, disciplina, coragem. Provei o que valia. Mas o esforço foi inútil. O drama é que os portugueses não gostam de rir. Um preto gigante, um anão bon vivant, um hermafrodita da Nazaré, um despedido operário têxtil da Covilhã, um escritor vagabundo, uma norueguesa ninfomaníaca que só gosta de pretos de Lisboa, três raparigas provincianas cheias de sonhos promissores, não são companhias decentes. O português gosta de literatura séria porque ele é todo um paradoxal jardim zoológico sem porteiros. Aberto a todos os ventos comerciais. Contraditório como uma osga. E triste como uma porta invisível.

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Embora tenha conhecido o exílio como Cioran, não estou de acordo com ele: « Nascimento e algemas são sinónimos. Ver o dia, é ver algemas...» Durante muitos anos para mim cada dia que se levantava era sinónimo de vagina diferente. E quando isso acontecia, ( principalmente nos anos 1970-1974 ), era o paraíso na Terra. O único. * Nasci quando regressei a Portugal em 1997. Com 50 anos ia enfim exprimir tudo o que tinha vivido. Nu, diante do espelho reconheci-me. Os alienaditos infantis olharam de lado. Os portugueses não gostam de tochas ardentes. Nem de experiências interiores irreversíveis. Além disso, o meu caso não interessava já ninguém. Tinha passado de moda a revolta. E quando ela inunda mais de uma geração é suspeita. É sabido que num dia de revolução o francês pára para ir almoçar. O português para ir comprar A Bola.

A POESIA PREVISÍVEL; A REVOLTA E O SEXO Texto de Manuel da Silva Ramos Fotografia de Rui Dias Monteiro

CRÓNICA

26 .CRÓNICA


A vida – minhas obras completas, como já o disse uma vez.

Às vezes dou por mim a pensar no que teria sido a minha vida se não tivesse partido para o estrangeiro durante tantos anos. Estaria morto, eu que detesto fardas e militares. Ou estaria careca, eu que abomino a vida familiar convencional. Ou estaria viciado nas putas, eu que só amo o sexo gratuito e feito com amor no momento. Felizmente, para a solidez da minha higiene mental, vivi durante muitos anos fora da pátria copulando e instruindo-me enquanto uns sonâmbulos tristes andavam aos tirinhos coloniais matando tudo o que lhes aparecia na frente. Lembro-me que a minha campanha africana foi feita em Paris soltando um dia um canário amarelo num restaurante depois da sobremesa ou dando uma aula no bar da Universidade de Vincennes para pedreiros estudantes e professores, sobre a influência da sardinha enlatada no desenvolvimento da poesia portuguesa. Quando a minha filha francesa nasceu em 1984 fui comemorar num bar de Toulouse. Era o Père Bachus. Aí, logo que entrei, fui chamado por um jovem executivo de pasta preta na mão e fato completo. Sabia que eu era um poeta português e queria que eu lhe contasse logo ali a melhor história do mundo. Já tinha bebido uns copos valentes, e de facto, não tardei a contarlhe a melhor história do mundo, a mais inventiva, era fácil. Ele gostou, delirou. E abrindo a pasta preta , cheia e a abarrotar de notas, disse: « Leve o que quiser ! » Eu sorri e fui-me embora sem nenhum franco. Na rua pus-me logo à procura de outro bar. Já tinha esquecido a história que tinha contado. Mas hoje tenho a certeza de que era tão boa como uma história de R.L.Stevenson. Gosto dos escritores franceses porque levam o sofrimento até ao fim. Não para épater la galerie. É como as mulheres francesas: quando amam, amam mesmo, e vão para a cama sem pensar no dia seguinte. A revolta deles também vai até ao fim: veja-se Sade. O maior escritor do mundo. Porque a literatura, por natureza, é malsã.

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Volto ao meu pai e à sua generosa hospitalidade. À sua bondade e à sua grande compreensão da vida. Quando eu levei à Covilhã o Ernesto Sampaio houve entre eles imediatamente um entendimento extremo. O Ernesto acabara de perder a Fernanda Alves, o amor da sua vida, e andava inconsolável. Aliás ele não tardaria a morrer por causa disso. Mas nesse almoço em casa dos meus pais, comendo a sopa de feijão verde que a minha mãe tinha confeccionado com muito amor, ele sentiu-se subitamente feliz. Estava entre pessoas simples, que compreendiam a sua tragédia, que faziam da hospitalidade um afecto inesgotável. Esse calor humano que o rodeou nesse dia fê-lo esquecer por momentos a agreste solidão em que vivia.


6 Bióloga oferece o seu corpo à Ciência

Escárnio&Maldizer

Os Orgasmos de Clara

Grafonolas da política

Clara Pinto Correia, bióloga de profissão, dá aulas na Universidade, publicou livros científicos, passou pelo jornalismo como repórter e cronista, pelo teatro como actriz, pela televisão em júris de concursos, pela literatura com dois romances interessantes, “Adeus Princessa” e “Os Mensageiros Secundários”, leiam que vão gostar, e sempre com um espírito azougado e presença algo impertinente. A oferecer oxigénio fresco, inclusive porque muito fotogénica, sim, sim, às medíocres mornices e tartufices luso-habituais, teve um episódio infeliz com uma crónica assinada e muito parecida com uma crónica da “New Yorker” dos States, precalço menor, já esquecido. Cabecitas enviezadas já espreitam que estou aqui com esta “manteiga” só para malhar de seguida. Engano. Não temos gosto para tais merdices... adiante. Vamos ao que interessa. CLARA expôs investigações próprias sobre o orgasmo feminino, em fotos. Não procurou cobaias, como foi o caso de FREUD, REICH, KINSEY, MASTER e JONSHON, pioneiros sobre a sexualidade no século vinte. A bióloga não saiu do leito conjugal, deu o seu próprio corpo

ao manifesto. Em natural colaboração com o marido, o nosso também amigo PEDRO PALMA, que participou e fotografou, é desenhador e fotógrafo. A moral cristã está safa. O casal apresentou depois os resultados da investigação, estética e científica, na galeria do Centro Cultural de Cascais, e as fotos também se encontram na Internet. E, já agora... Houve um fotógrafo português, anos 1930, que se especializou em fotos, não de orgamos, mas de vaginas. Um pioneiro, portanto. Talvez inspirado pela obra prima de Courbet, “A Origem do Mundo”, e talvez não, que o quadro esteve em segredo até muito recentemente e não era referida nas histórias de Arte. Nascido em Vila Real, de nome CORREIA ou CARDOSO... encontrou emprego, em Lisboa, como fotógrafo da Aeronáutica Militar. Fotografou “vistas aéreas” e outras “vistas” mais íntimas, enfim, vaginas. Na década de 1980 vivia e mantinha estúdio no Chiado, Lisboa, entre o teatro S. Luiz e o São Carlos, guardando aí a sua preciosa colecção, dezenas muitas de fotos. Tinha uma filha, que terá herdado. Um tesouro artístico, ignorado e por descobrir. Fernão K.

Quando vejo Manuela Ferreira Leite, arvorada em padeira de Aljubarrota, contra os ventos de Castela, ou quando olho a sua imagem brandindo os números do défice e do endividamento público, logo os seus ares arcaicos me fazem lembrar o outro professor de Finanças, que veio de Coimbra para sarar as contas públicas, e, ao fim de 47 anos sentado no trono da ditadura, deixava um país com os cofres do Banco de Portugal cheios de barras de ouro, mas vegetando na mais atroz pobreza física e mental. Não faltam na política estas figuras que sobem ao púlpito da nação para falarem no interesse da nação e no contrário dele, ao mesmo tempo tão dr. Jekyl e Mr Hyde, que predicam a magistratura da boa consciência, mas esquecem o asneirento e despesista passado ministerial (das finanças), que trazem na ponta da língua os direitos cívicos, mas logo abençoam a sua crucificação, na primeira curva da estrada. Com ela, resolver os problemas bicudos das contas, emagracer o défice, é fácil: basta pôr uma canga pesada

aos ombros do povo e, se for preciso, suspender a democracia por seis meses, sabe-se lá se dar uns safanões a tempo aos que ousarem dizer não. Não admira que a senhora D. Manuela Ferreira Leite tenha sido derrotada, como foi, nas últimas eleições. Grafonola da política, continua a falar, a falar, como se o disco estivesse rachado. Neste labirinto kafkiano, é como se a senhora estivesse convencida de ter ganho as eleições ou tivesse sido coroada como rainha absoluta do reino da estupidez. Não está sózinha no exército de “salazares empalhados” (como diria Mestre Aquilino) que andam por aí. Outra nota do provincianismo português é o excesso de demagogia parlamentar (ou de cariz partidário). Tão em voga que se tornou moda. Entra também para a galeria do reino da estupidez. Todos da oposição falam em soluções para o desemprego. Mas não vão além de medidas assistencialistas. Medidas concretas: zero! Prometer, não custa nada... André Leónidas


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4 as grandes entrevistas do cão

Mário de oliveira, um padre lixado “o papa é actualmente o único monarca absoluto” Este “habeas corpus” ao casamento homossexual reabre campo de discussão para outros temas espinhosos na sociedade e na Igreja Católica, caso dos padres procriadores ou do fim do celibato entre padres que praticam o ministério? Deveria (re)abrir, mas, hoje, infelizmente, nada nas altas esferas da nossa Igreja católica nos diz que irá ser assim. E de certeza que não será assim. Para nossa vergonha católica. E para nosso mais completo descrédito. A Cúria Romana, com os seus cardeais sem entranhas de humanidade, todos eunucos à força (mai-la sua hierarquia episcopal e paroquial à frente de todas as dioceses e paróquias territoriais espalhadas pelo Mundo, toda, infantilmente, obediente e reverente às ordens emanadas de Roma; toda feita só de homens, e homens eunucos à força e prisioneiros de privilégios de que não querem abdicar; sem um pingo de espinha dorsal e cheia de medo do Núncio apostólico do Vaticano, a residir na capital de cada país da Cristandade, com a missão de controlar e registar ao pormenor tudo o que os bispos e os párocos possam dizer e fazer de dissonante da linha traçada pelo Papa), em lugar de saudar e acompanhar esta abertura da Sociedade civil, fecha-se demencialmente ainda mais no seu reduto moralista sem Moral. A esterilidade dos eclesiásticos é a excepção ou a regra? É a regra. Salta à vista de toda a gente. Falo, obviamente, de esterilidade no sentido mais lato, não apenas no sentido sexualgenital. De resto, a pior esterilidade dos eclesiásticos nem é a sexual-genital. É, sim, aquele seu esquizofrénico jeito clerical de ser-viver todos os dias. O templo e o altar que eles profissionalmente frequentam e onde são reis e senhores absolutos, nunca foram espaços e ambientes de fecundidade humana. São, até, o que há de mais estéril. Já era assim com os sacerdotes dos velhos cultos do Paganismo religioso. Até podiam ser casados e ter filhas, filhos, mas eram os mais estéreis dos seres humanos. Ocupavam-se exclusivamente das imagens das deusas e dos deuses, faziam todos aqueles ritos e rezas sem sentido e, com isso, não só alienavam as populações, como ainda lhes alimentavam os ancestrais medos com que elas andavam possessas e que as tornavam violentas umas para com as outras. Como hoje ainda sucede. E para pior. Não só com os cultos religiosos nos templos e nos altares, mas também e sobretudo com os cultos seculares /laicos, em honra do Senhor Deus Dinheiro, sem dúvida, o mais omnipotente, o mais omnipresente e o mais omnisciente dos deuses-ídolos deste nosso Século XXI. Conhece padres que emprenharam já de votos assumidos e que não abdicaram da batina? Não sou detective particular, nem polícia de costumes. Como presbítero da Igreja do Porto, toda a minha vida está centrada na missão de Evangelizar os pobres e os povos. Sou, ao mesmo tempo, jornalista de profissão (hoje, já na reforma, se bem que

ainda mais activo do que nunca), mas nunca enveredei pelo jornalismo de investigação de costumes, muito menos dos meus irmãos padres /presbíteros. Sempre deixei isso aos clérigos juízes dos Tribunais eclesiásticos e aos moralistas laicos que, por vezes, em matéria de costumes, nomeadamente, no campo do exercício da sexualidade humana e clerical, conseguem ser ainda piores do que os juízes eclesiásticos. Eu sei que os meus camaradas jornalistas que enveredam por aí, pretendem saber se os padres são coerentes com o que prega a instituição que eles integram. Só que, em meu entender, os jornalistas deveriam ser os primeiros

da Igreja, denunciam, abertamente, uma e outra vez, como eu próprio faço, o Moralismo imoral da instituição eclesiástica, em todas as suas áreas, que não apenas na área da Lei do celibato obrigatório dos padres, mesmo que, por via disso, venham a ser canonicamente penalizados e, porventura, arbitrariamente afastados de funções. Porque, no tocante ao Moralismo imoral da Igreja católica, o mais grave nem chega a ser a Lei do celibato dos padres. Basta ver as aberrações que esse Moralismo imoral ensina e impõe, ainda hoje, aos casais católicos, aos adolescentes, aos homossexuais /lésbicas. É de bradar aos céus, melhor, à Terra.

“ Prossigo, como presbítero da igreja do Porto, felizmente sem ofício pastoral oficial. “ “ Toda a fé religiosa tem na sua génese o ídolo e a idolatria “

a denunciar como imoral o moralismo pregado pela instituição católica, em vez de correrem a acusar (não estou a referir-me aos casos de pedofilia, que sempre devem ser denunciados, seja quem for o abusador dos menores) os possíveis “prevaricadores” desse moralismo imoral. Porque o que é imoral nunca é para ser acatado e praticado, mas para ser denunciado e, até, infringido. Condenemos, sem rebuços, o Moralismo imoral. Não condenemos os “prevaricadores” que, com as suas práticas “prevaricadoras” (também não estou a pensar em casos de violações que devem ser denunciados), estão a deitar por terra o Moralismo imoral institucionalizado! É histórico que os padres católicos sempre procriaram, sobretudo no Brasil, onde deram nomes ilustres à política, às letras, à diplomacia e por aí fora. Além de Papas pais, ou do nosso Aquilino Ribeiro, um acaso feliz de um romance de vigário. Esta tradição povoadora do clero e dos seus homens doutos não devia ser enobrecida ao invés de satirizada? Em coerência com o que acabei de dizer, deveria responder sim, a esta sua pergunta. Entendo, inclusive, que a comunicação social e a literatura, assim como o cinema e as conversas de café deveriam enobrecer tais homens, em lugar de os satirizarem, como quase sempre fizeram /fazem. Satirizar esses homens é dar mais força ao Sistema eclesiástico moralista intrinsecamente perverso. É ser também perverso. Por mim, prefiro outra postura: nem enobrecer, nem satirizar, muito menos, humilhar. Prefiro a postura evangélica e jesuânica daqueles poucos presbíteros e bispos que, dentro

Assumir esta deriva oficial de filhos de padres, vigários, presbíteros, párocos, priores ou afins seria uma forma de, por exemplo, arregimentar mais seminaristas e rejuvenescer a Igreja? Não creio. Ninguém é padre /presbítero da Igreja por sucessão genealógica, como numa monarquia, em que o filho do rei, rei será. E, se rei não for, pelo menos, príncipe /princesa será. Se entrássemos por aí, a Igreja seria uma empresa mais, no universo das empresas. Uma espécie de transnacional da Religião. Por sinal, é isso que a Igreja católica, hoje, parece ser, uma transnacional do Religioso, da Idolatria religiosa. Porque os presbíteros, quase todos, desistiram de o ser e, em seu lugar, passaram a assumir-se como “sacerdotes”. Foi o Concílio de Trento (século XVI), de triste e má memória, que operou esta transubstanciação. Perversa, diga-se, com toda a força de que formos capazes. Foi também neste Concílio que a Lei do Celibato obrigatório deixou de ter mais escapatórias. Até então, muitos padres que as populações tinham por “amancebados”, na realidade, eram casados. Só que ninguém sabia, para lá dos próprios. Casavam-se clandestinamente. E foi para acabar com esta derradeira possibilidade, que o Concílio de Trento definiu como doutrina de Fé (uma aberração de todo o tamanho!), que o sacramento do matrimónio só seria válido, quando fosse realizado na presença do pároco da noiva ou do noivo. Até então, o sacramento acontecia, sempre que um homem, padre que fosse, e uma mulher se declarassem marido e mulher, nem que fosse apenas perante as estrelas numa noite de luar. Em meu entender, só haverá mais padres / presbíteros na Igreja, quando este modelo

institucional de Igreja que hoje conhecemos desaparecer. Presbítero da Igreja, só mesmo por vocação. Nunca por procriação! Nem sequer como profissão. Já agora, como é que os padres resolvem os naturais ardores do desejo, a paixão, a tesão? Lêem Platão no lugar da Playboy ou da Gina? Teria de perguntar a cada um deles, porque cada ser humano, também o ser humano que se tornou padre, é único e irrepetível. Não há dois casos iguais. Os padres /presbíteros que o são por vocação, como é o meu caso pessoal, e não por profissão ou como modo de vida, não precisam de frequentar Platão, muito menos a Playboy ou a Gina. Não porque essas sejam áreas interditas a um padre /presbítero da Igreja. Não são. Nada é interdito a um ser humano constituído na Liberdade e na Maioridade. Mas bastanos frequentar-escutar-ser-viver, todos os dias, o belíssimo Poema erótico bíblico, Cântico dos Cânticos. Porque, lá, onde abundam os afectos partilhados, na sua máxima expressão, que é a Gratuidade e não a lei, a sexualidade humana é sempre vivida com a mesma naturalidade com que se respira. Na pedagogia do seminário continua a induzir-se a masturbação para expiar a libertação do tirano? Do que hoje sucede, nos seminários, não posso falar. Mas não creio plausível tal coisa. Os tempos são outros e até os últimos quatro anos de Teologia, antes da ordenação, são passados na Universidade Católica, numa grande mistura de cursos, de mulheres e de homens, da mesma idade. Quanto ao passado, posso testemunhar que eu próprio frequentei o seminário durante 12 anos, entre 1950-1962, em regime de internato, e nunca percebi que nos fosse induzida, por parte do chamado “director espiritual”, semelhante orientação. O que sempre percebi é que praticamente tudo o que dissesse respeito a sexo era pecado, inclusive, a masturbação, um termo que, entretanto, nunca chegava a ser sequer pronunciado! A pedagogia era outra: manter-nos ininterruptamente ocupados, sem intervalos para a ociosidade, então, referida como “a mãe de todos os vícios”. Todos os minutos estavam programados, até o tempo de brincar e de dormir. Era como se todos fôssemos seres assexuados, sem sexo! A ideologia que, então, se respirava no seminário era manifestamente moralista, fazia ver pecado em tudo o que tivesse a ver com sexo, mas, entratanto, não deixava de cultivar sólidos valores, só que dentro dessa visão moralista. O enredo d’ O Crime do Padre Amaro ainda se mantém contemporâneo? Pode haver ainda um caso ou outro, mas não é hoje o comum entre os padres da Igreja católica. Pelo menos, entre nós. Não digo que esta mudança resulte da maturidade do padre. Acho, até, que é o contrário. É ainda o Moralismo, entranhado como um mítico demónio na consciência dos padres, a fazer das dele. Cumpre-se – ou, dito pela negativa, não se faz isto ou aquilo – porque a Lei


5 manda ou proíbe. E o desrespeito da Lei, para estes homens que não saíram do Moralismo, é sempre pecado, mais ou menos grave. E o pecado é um risco de condenação. O pior do Moralismo eclesiástico é manter as pessoas, padres e bispos incluídos, em estado de menoridade, por toda a vida. Fossem adultos, e seriam eles próprios os primeiros a derrubar o Sistema que os oprime e amedronta. Porque, afinal, o Sistema Eclesiástico é criação humana, é criação do Poder ou da fome / sede de Poder Eclesiástico. Não vem de Deus. Só do Ídolo. Cresçam os padres /presbíteros no Humano, e o Moralismo que os infantiliza, cai como um baralho de cartas. Erguer-seão, em seu lugar, padres /presbíteros em estado de Liberdade e de Maioridade Humana. Criadores de Liberdade e de autonomias. A Cúria Romana não gostará de semelhante revolução, mas não terá outro remédio senão aguentar. Ou terá de fechar as portas, por falta de quadros qualificados. Assim, pobres homens clericais, não passam de eunucos

nalizado na Igreja. Manter por mais tempo essas leis, é pecado. Acatá-las e respeitá-las, sem convicção pessoal, só porque são leis da Igreja, é pecado. E nem é preciso ser muito corajoso para se avançar nesta direcção. O Povo de Deus, na sua esmagadora maioria, não quer outra coisa. E como reza um velho ditado teológico-popular: Vox populi, vox Dei (= voz do povo, voz de Deus). Avance-se, então. Já. Saibam que há 16 séculos, já era tarde para avançarmos! Acha que o Prémio Pessoa, o bispo do Porto D. Manuel Clemente, um homem com uma voz de largo espectro, devia desviar uns decibéis para estes temas espinhosos? Devia, mas não é o que está a acontecer, nem acontecerá. Como eu próprio escrevo no meu mais recente livro, NOVO LIVRO DO APOCALIPSE OU DA REVELAÇÃO, edição AREIAS VIVAS (um livro que revela o que o romance Caim, de Saramago, esconde!), os caminhos que o Bispo Manuel Clemente tem trilhado,

“ O poder político e financeiro, que deu o prémio Pessoa ao bispo do Porto, não dá ponto sem nó “ “ O sistema eclesiástico moralista é intrinsecamente perverso “

à força, que nunca chegam a libertar-se definitivamente do medo do “pai”, da “Lei”, do “Pecado”. Até que a Morte, quando chegar, faça o que os próprios, há muito, haveriam de ter feito! É um mito rural que os padres de vilas e aldeias se amigam com as suas devotas? Acho que é um mito. Pode haver excepções a esta regra. Mas serão só isso: excepções. Como já disse, a “lei”, o “medo”, o “pecado”, o “castigo” ainda continuam a ter muito peso nos clérigos, formatados para obedecer à lei moralista e ao bispo-senhor. Pelo menos, os párocos mais velhos. Os das novas gerações, forma(ta)dos na Universidade Católica, em ambientes outros, poderão comportar-se de outro modo. Mesmo assim, o recente caso do Pe. Rui, obscenamente, mediatizado até à náusea, veio mostrar que, quando ele não foi mais capaz de resistir aos encantos da sua paroquiana, bem mais nova do que ele, pôs, de imediato, um ponto final no ofício de pároco e partiu para outra. O que só confirma o que comecei por responder: Hoje, é mais um mito rural, do que um facto. A Igreja só teria a ganhar na sua modernização se acabasse com estes dogmas arcaicos? Sim, só teria a ganhar. Mas não confunda as coisas. Não são dogmas. São meras leis eclesiásticas que, assim como foram criadas pelos próprios homens da Igreja, à revelia do Evangelho de Jesus e das práticas paradigmáticas das primeiras comunidades do Novo Testamento, também podem e devem ser banidas, a qualquer momento, por eles. Cabe às gerações deste nosso Século XXI abolir de vez o que nunca deveria ter sido institucio-

desde que aceitou ser Bispo do Porto, podem ser muito eclesiásticos-católicos, mas não são nada jesuânicos. E, se não são nada jesuânicos, são inevitavelmente caminhos desviados do Caminho, da Verdade e da Vida que é Jesus, o filho de Maria. E, por isso, desviados dos seres humanos de carne e osso, também dos padres e dos bispos, inclusive, dele próprio, e das suas (nossas) legítimas aspirações. Fossem caminhos jesuânicos, e o Prémio Pessoa nunca lhe teria sido atribuído. O Poder Político e Financeiro que lhe deu o Prémio Pessoa nunca dá ponto sem nó. Os cem anos da implantação da República estão aí. O Prémio Pessoa veio na hora H. Pensam que temos Bispo do Porto ao jeito de Jesus? Desenganem-se. Só ao jeito do Poder Eclesiástico que se mantém “homossexualmente casado” com o Poder Político e, obviamente, com o Poder Financeiro. Não ver isto, é ser-se cego. Admitir o contrário, é ser-se ingénuo. Não me peçam que eu seja cego. Muito menos, ingénuo. Que lhe diz a personalidade do actual Papa? É o mais medonho rosto do Poder Eclesiástico. Tudo em Bento XVI sai errado. Como errado foi o seu percurso, desde que trocou a Teologia, em que era um dos maiores especialistas na Europa, pela Idolatria do Vaticano. Passou-se de armas e bagagens para a Cúria Romana, já com o fito de vir ser eleito papachefe-de-estado-do-Vaticano. Conseguiu. Acho que é hoje o mais infeliz dos seres humanos. Prisioneiro do Ídolo, que ele confunde com Deus. Quem o vê em acção vê o Ídoloem-acção. O Ocidente, na sua hipocrisia, faz de conta que o estima e acolhe. Mas eu acho que ninguém o ama. Como ele, tão pouco

ama alguém. Nem sequer a si mesmo o papa Bento XVI ama. Se se amasse a si mesmo, fugiria da Cúria Romana, do Estado do Vaticano, verdadeiro ninho de víboras. Infelizmente, estes homens, meus irmãos, tornam-se absolutamente cegos, quando mais pensam que passaram a ver como nunca antes. Tornam-se absolutamente cegos e conduzem as pessoas que confiam neles, para o Abismo. É o que Bento XVI está a fazer: a levar a Igreja católica para o Abismo. Nem tudo, porém, está perdido. Porque, do Abismo, erguer-se-á a Igreja-fermento-na-massa e a Primavera com que o papa João XXIII, de feliz memória, sonhou, segue dentro de momentos. Por mim, alegro-me, desde agora. Na esperança. A vinda a Fátima é uma mera etapa de calendário ou pode ter importância na discussão do cânone? Uma coisa eu lhe(s) garanto: Quando um papa viaja até Fátima, o local mais idolátrico de Portugal e da Europa, pelo menos, no âmbito da chamada Idolatria religiosa, é porque o Estado do Vaticano está mal de finanças. Ou ainda somos tão ingénuos que pensamos que o papa vem a Fátima e vai de mãos abanar para o Vaticano? Uma mera etapa de calendário, ou alguma coisa mais? Nunca, digo-lhe eu, uma visita papal é uma mera etapa de calendário. A Cúria Romana, da qual o papa Bento XVI é o actual chefe de turno, nunca dá ponto sem nó. Neste caso concreto, a Cúria Romana precisa de controlar mais e mais os dinheiros de Fátima. Assim como precisa de rentabilizar mais os lucros do santuário. As viagens papais são altamente rentáveis para os cofres da Cúria Romana. Em que se baseia para este ditakt? Como teólogo, o papa Bento XVI sabe, quanto eu, que Fátima, com as suas pretensas aparições no remoto ano de 1917, sete anos depois da implantação da República, é tudo mentira e crime, orquestrado pelo clero de Ourém e não só. Com uma diferença. Eu digo-o, sem que a voz e a mão me tremam. E ele, pelo contrário, simula, quando não diz, até, o contrário. Nega a verdade conhecida por tal, o que, na catequese por onde ele foi catequizado em criança-adolescente, perfaz um pecado contra o Espírito Santo! As populações, sedentas de folclore, de maravilhoso, de espectáculo e de ópio para as suas dores, hoje mais do que muitas, correrão ao encontro dele. Infelizmente, as populações sempre ovacionam os seus opressores / tiranos, quando estes se vestem de “pastores” e de “representantes de Deus na terra”, e desprezam /matam os profetas. Desconhecem que só mesmo o Deus-Ídolo é que tem representantes na terra, precisamente, nos homens do Poder, e quanto mais absoluto melhor. E o papa – quem o não sabe? – é actualmente o último monarca absoluto da Europa. E do Mundo Espantam-se que eu diga estas coisas, como presbítero da Igreja do Porto? Não se espantem. Pensem só que o chamado “Ministério ou Serviço de Pedro”, na Igreja de Jesus, não é Poder, muito menos Poder monárquico absoluto. Este é Tirania! E aos tiranos, há que os apear do trono quanto antes. Tomem estas minhas palavras como uma ajuda nesse sentido e, portanto, como uma manifestação de amor fraterno da minha parte. Porque a minha alegria, neste particular, é que este Tirano de turno seja derrubado e, em seu lugar, se erga o Ser Humano de carne e osso, Ratzinger, de seu nome, meu / nosso irmão. Tiago Salazar

Quem é quem?

Padre Mário de Oliveira Nasceu a 8 de Março de 1937, em Lourosa, Feira. Foi ordenado padre/ presbítero da Igreja do Porto, a 5 de Agosto de 1962. Desde então, até ficar, desde Março de 1973, por decisão pessoal unilateral do Bispo António Ferreira Gomes, na anómala situação canónica de padre sem ofício pastoral oficial, que é aquela em que ainda hoje se encontra, foi sucessivamente coadjutor da Paróquia das Antas, no Porto; professor de Religião e Moral nos Liceus Alexandre Herculano e D. Manuel II, também no Porto; capelão militar na Guiné-Bissau, de onde foi expulso, ao fim de quatro meses, por pregar o Evangelho da Paz aos que lá faziam a Guerra Colonial; pároco de Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, onde, desassombradamente, levou a sério a sua missão de Evangelizar os pobres, o que lhe valeu a exoneração, ao fim de 14 meses, decidida pelo então Administrador Apostólico da Diocese, o Bispo Florentino de Andrade e Silva, esse mesmo que, ao ver-se, ele próprio, 15 dias depois, afastado do cargo, devido ao inesperado regresso do exílio de dez anos do Bispo do Porto, levou com ele, da Cúria diocesana, a prova do crime, concretamente, o decreto comprovativo da exoneração; pároco de Macieira da Lixa, concelho de Felgueiras, em cujo exercício foi duas vezes preso pela Pide em Caxias e outras tantas julgado no Tribunal Plenário do Porto. Em Maio de 1974, já sem qualquer título pastoral oficial, ainda integrou, a pedido dos próprios, a Equipa de Padres da Zona Ribeirinha do Porto. E, sem deixar esse serviço presbiteral, tornou-se, em Janeiro de 1975, jornalista-delegado no Porto do vespertino República (carteira profissional n.º 492). Quando, um mês depois do 25 de Novembro de 1975, este vespertino acabou, por decisão do novo Poder Político emergente, foi sucessivamente redactor principal dos jornais Página Um, Aqui e Correio do Minho. Ao completar 50 anos de idade e 25 anos de presbítero, decidiu passar a integrar a pequenina Comunidade Jesuânica de Base “Grão de Trigo” e, com ela, viver organicamente ligado ao povo marginalizado de S. Pedro da Cova. Fundou, aí, juntamente com outros cristãos e cristãs de base, a Associação Padre Maximino, da qual continua a ser presidente da AssembleiaGeral, e lançou o Jornal Fraternizar, de que é director e redactor principal, há 23 anos consecutivos. Desde Fevereiro de 2004, como quem faz jus ao nome – Padre Mário da Lixa – pelo qual continua a ser ainda hoje mais conhecido, passou a viver sozinho numa casinha arrendada, em Macieira da Lixa. Como autor, tem mais de 30 livros publicados, todos fecundamente polémicos (ver a lista completa dos títulos, nas páginas finais deste volume).


2 á laia de editorial

Polanski, pedófilo

Isto está complicado. O discurso público e também o privado, as fórmulas verbais, hoje a cada momento, em uso nas relações e comportamentos esbarram, esborram-se! e autojustificam-se deste modo tão vulgarizado, que isto está complicado. Mal escondendo uma realidade que assusta a todos. Este fingimento que é um impulso com antigas e persistentes raízes, onde tudo aparece nebulosamente já como corrente e normal, conforme à natureza das coisas e das gentes, obriga a pensar. Que o abismo está aí, no passo, em frente. Não só no imaginário em desvario, mas à vista de de um simples olhar. O celebrado doutor de Viena veio dizernos, há já quase um século, que o inconsciente, todavia é vivíssimo da costa, revela a verdade intensa de cada um e de toda a sociedade, que fórmulas e gestos aparentemente anónimos são uma realidade viva. Questão académica. Estamos pois fartos de ouvir que é complicado. A propósito de tudo e mais alguma coisa. Aquele jogo de futebol… aquelas coisas dos bancos, de ministros, de fulano e cicrano. E… e … Na boca de tantos é sinal de maleita profunda, entranhada. De antigas e persistentes raízes, agora uma vez mais renovadas. As instituições, os indivíduos, a vida pública e privada, enfim, todo e todos encontramo-nos neste limite soletrado, suicidário, pré-comatoso. Onde alguns auguram que o país e a sua história, de mais de oito séculos, está por um fio. Estes país-pátria onde nascemos, vivemos e havemos de deixar para os que crescem entretanto, este torrão de natal de tamanhas gerações já passou por momentos trágicos, guerras civis, ocupações, crises de identidade, dilemas, desesperos, opressões… E resistiu. Em nome e pela força da liberdade de pensar e viver. Pensar criticamente e viver na paixão de viver. Com imensa força e muita mágoa, por certo valores de sempre diz-nos a história. O nosso programa encontra-se neste fundamento essencial e se definiu na liberdade de imprensa, tão só. Programa a jornalístico e satírico, nada mais.

Os factos são conhecidos. Roman Polanski, o célebre cineasta, cometeu um crime de pedofilia, em Los Angeles. Embebedou e violou uma criança de 13 anos, a quem depois entregou uma forte soma de dinheiro, para a calar. E fugiu da América. Está agora preso na Suíça, em risco de extradição. A intelligentzia europeia faz intenso alarido na defesa do artista, pelo seu grande talento e que o crime até já teria prescrito. Esquece-se o fundo da questão. Que a pedofilia é crime contra a humanidade, não prescreve. As Nações Unidas assinaram, já em 1959, a “Declaração dos Direitos da Criança”, onde se proclama a necessidade contra toda a forma de negligência, de crueldade e de exploração” (art. 8º). Nem mais, e tão só.

Vasco Castro, Tiago Salazar, João Vasco, Tinho, Fernão K., Repórteres e críticos de serviço / Editor Ricardo Paulouro / A23 / Design Gráfico Filipe Matos Suplemento satírico A23, Rua dos Três Lagares, Edifício Laranjeiras, Torre 3, 6º, 6230-Fundão

Vate Alegre

Irmãos, rosnemos Para MEDINA CARREIRA, um sentido e sincero abraço, que o sangue marrano no seu melhor, em fervor e lucidez e coragem mental, sangue afinal tão nosso, de todos nós, eia!, estilhaça manhãs e fingimentos lorpas e nos supõe que nem tudo está perdido, pois que tanto aparece deliciosamente em imagens da televisão a mandar umas bocas certas e ferozes, bocas sobre as elites que hoje nos governam, sobre coisas da hora, de ontem e de hoje, enfim, do estado da nação que vamos sendo! Sobre o Estado, o governo, os empresários e a tropa fandanga privada e partidária que mama e enche a mula... hélas! Saudemos o tom de Medina, a voz alerta de carreira, as meninges de Medina Carreira, algo capitalista-anarquista de boa cepa, de quem não deve nem teme e se peida para tudo e todos! Em nome da consciência própria e da liberdade de expressão, é um eco precioso, rindo de quem conhece os dossiês e sabe do que fala, economista reputado e que até já foi ministro competente e digno, não aconteceu a todos, é respiração rija. Precisamos disto. Cheira Bem. Que o espectáculo obsceno vindo das bancadas do poder, de Cavacos, Sócrates e mais uns tantos outros figu -rões que se pavoneiam nos medias... já estamos fartos, bolas e pôrra! Basta de mercearia e de agiotagem! Irmãos, rosnemos.

Crónica das Vidas Irrisórias Quando os portugueses chegaram a Portugal, descobriram uma terra cheia de pomares, cabras e recos que passavam o melhor do tempo a pastar, comer bolotas e fornicar uns com os outros, alegremente. Por esta altura, também chegou o nosso primeiro rei, D. Afonso, meio francês e meio galego, ou por aí, um tipo de muito mau pêlo, e tudo isso ficou no nosso destino, genético, como se diz. E depois, todos os outros. Até ao meio-judeu Salazar e o

muito germano e nazi, Spínola, e mais alguns e tal e coisa. Um fartote. Já esquecia o Cavaco e o Sócrates, mas, pronto, não esqueço, o Cavaco e o Sócrates. Então acordei, enjoado, e fui mijar. Bati uma punheta, a ver se passava. Vejo televisão a mais. Ou será dos jornais de referência?... Vou perguntar à bruxa Maya, que a sabe toda e tem crónica na TV, nos jornais de referência e nos outros. Fernão K

As FP em filme As FP-25 em Filme Um dos dinâmicos produtores de filmes da nossa praça prepara um filme sobre as famosas FP-25 e já encomendou o guião. Recorde-se que o grupo da extrema-esquerda guerrilheirista assustou a sociedade portuguesa nos idos de 1970 pós-revolução. Houve assaltos a bancos, bombas, mortos e feridos. E presos, e julgamentos – o célebre processo de Monsanto – com muitas absolvições. Ficou a sensação que nem tudo se soube, que muito ficou por contar, ou mal contado. Os nomes de Otelo, herói do “25 de Abril”, de Carlos Antunes e Isabel do Carmo, líderes da esquerda mais extremada, foram referidos. A justiça ilibou-os. Será, obrigatoriamente, um filme político de tema actual, género cultivado entre nós. Estamos a ver um Rui Simões e pouco mais, sendo umas narrativas romanceadas e subjectivas, como filmes de Pedro Vasconcelos, Fonseca e Costa, Seixa Santos... Otelo, que sonhou ser actor como seu avô, não se supõe figurar no elenco. Veremos.


3 A hora é grave, o tema é sério. Pois fiquem sabendo, amáveis leitores, que a corrupção não se define como roubo. Questão nuclear: não é roubo. Há três tipos de corrupção: na sociedade, no indivíduo e no corpo. E corresponde a três graus de consciência. Assim... Certo que o corpo se corrompe e acaba em lixo, lama, adubo. Ninguém duvida. Um filosofo, de nome Gaspard Koenig, avança na tese inovadora que a corrupção é a vida, que todos os sabem e compreendem, “que devemos em grande parte à corrupção, o equilíbrio que introduz entre os desejos de todos, a prosperidade de ontem e o crescimento de hoje”. Assim mesmo. Corrupção significa prosperidade e crescimento, palavras mágicas das nossas sociedades actuais! Num volume de 280 páginas, “As discretas virtudes da corrupção” – Grasset, Paris, Koenig, o nosso autor explica, cinicamente?..., que uma sociedade purificada, virtuosa, sem corrupção, estiola irremediavelmente, aborrece-se e morre. Morre... Mais pobre e maldita. Nem mais, nem menos. Cruel destino! Tudo isto recolhido no “Le Monde” de 31 de Outubro. Quem somos nós para duvidar?!

Opinião . 03

A corrupção é a vida


não morde para não morrer envenenado, mas rosna...

e cristo disse fodam-se todos sim, os padres praticam os evangelhos

o triunfo dos Recos vate que vate alegre a corrupção é a vida os orgasmos de clara polanski pedófilo notícias da manjedoira

mário de oliveira, um padre lixado o papa vem a fátima porque está mal de finanças


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