Edição Nº 26 - Belém, 2015

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REVISTA BRASILEIRA DE

Literatura Comparada

Belém-PA 2015


Diretoria

Abralic 2014-2015

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Germana Maria Araújo Sales (UFPA)

Vice-Presidente

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REVISTA BRASILEIRA DE

Literatura Comparada

ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp.

Belém-PA

n.26

p. 1-121

2015


2015 Associação Brasileira de Literatura

Comparada

A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN 0103-6963) fundada em Porto Alegre (RS), no ano de 1986, é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), entidade civil de caráter científico e cultural, que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Editora Comissão editorial

Maria de Fatima do Nascimento Germana Maria Araújo Sales Marli Tereza Furtado Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja Mayara Ribeiro Guimarães Maria de Fátima do Nascimento

Revisão Editoração

Maria de Fátima do Nascimento Samantha Andrade de Araújo

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Belém: Abralic, 1991v.1, n.26, 2015 ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada. CDD 809.005 CDU 82.091 (05)


Sumário

Apresentação Germana Maria Araújo Sales

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Artigos

Romances brasileiros em Portugal no último quartel do Oitocentos: circulação e recepção

Juliana Maia de Queiroz

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As malogradas edições de O coronel Sangrado de "Inglês de Souza Marcela Ferreira

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Palavras impublicáveis”: o que o acervo de Carlos Drummond de Andrade revela sobre sua poesia erótica

Mariana Quadros

Música enlatada no cinema: a América de Monteiro Lobato Milena Ribeiro Martins

Do romance histórico à ficcionalização da cultura popular em As Minas de Prata: a prosa de caráter histórico mais verdadeira que a História? Rafaela Mendes Mano Sanches

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Imprensa e Literatura: o caso dos periódicos na formação do leitor infantil e juvenil em Mato Grosso Renata Beatriz Brandespin Rolon

Normas da revista

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Revista Brasileira de Literatura Comparada Nº26 Pesquisa em Fontes Primárias Apresentação Germana Maria Araújo Sales Imagine você descobrir um título de um romance do qual nunca teve conhecimento e que foi escrito por uma autora ou um autor totalmente desconhecida/o e não referida/o nas histórias literárias ou nas antologias já disponíveis. Que grata surpresa encontrar documentos antigos, cartas ou diários que revelam uma parte da história não contada! Esses achados trazem uma alegria irrefutável ao pesquisador e uma emoção de causar arrepios e são possíveis graças à existência das fontes primárias, que reúnem um corpus volumoso e ocupam um espaço privilegiado entre os trabalhos acadêmicos. A pesquisa em fontes primárias recupera desde as informações contidas em jornais de épocas passadas, acervos de bibliotecas antigas, inventários, correspondências, anotações íntimas, almanaques, revistas, entre outros acervos que municiam os pesquisadores curiosos e ávidos por descobertas inéditas, recônditas no passado. Com esse objetivo, o dossiê PESQUISA EM FONTES PRIMÁRIAS reúne ensaios que dão conta de retomar e revisar, por meio de trabalhos que se apropriam dessas fontes, as informações sobre a produção e a circulação de obras em diferentes suportes, bem como o registro da recepção de tal produção. A contribuição de pesquisadores que se utilizam desses suportes primários vislumbra reunir diferentes abordagens que contemplem as fontes primárias por meio da apresentação de resultados e de discussões teóricometadológicas, alem de perspectivas de sistematização e disponibilização do corpus documental oriundo de semelhantes pesquisas. Neste volume, estão reunidos 06 (seis) artigos, assinados por pesquisadores das diversas regiões do país, que se encarregam do trabalho de reaver informações e dados importantes e fundamentais para a História literária. Diante desse panorama, leremos o artigo “Romances brasileiros em Portugal no último quartel do Oitocentos: circulação e


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recepção”, de Juliana Maia de Queiroz, cujo estudo expõe o contexto português de circulação de romances brasileiros em Portugal por meio de dois catálogos, o da Livraria internacional de Ernesto Chardron e o da Livraria Bertrand e, a partir daí, lista os títulos de romances brasileiros presentes no mercado editorial português da segunda metade do século XIX. O artigo analisa ainda a recepção crítica de José de Alencar e de Machado de Assis em solo luso, o que demonstra o diálogo existente entre Brasil e Portugal, ao contrário do que comumente está registrado como um movimento de rompimento entre as literaturas desses dois países. O segundo artigo, “As malogradas edições de O coronel Sangrado, de Inglês de Sousa”, de autoria de Marcela Ferreira, recupera os primeiros capítulos do romance do autor paraense, publicados em 1876, no jornal O Constitucional, e também, em segunda publicação, com apenas sete capítulos, no ano de 1877, e a edição em livro, de 1882, para assim cotejar as publicações de O coronel Sangrado, que, pelas circunstâncias de cada uma, podem receber a alcunha de “malogradas”. “Palavras impublicáveis: o que o acervo de Carlos Drummond de Andrade revela sobre sua poesia erótica”, de Mariana Quadros, que imerge no acervo de Carlos Drummond de Andrade e observa a variedade da fortuna dos documentos reunidos pelo escritor, ainda dispersos por arquivos públicos e restrito à divulgação em revistas. Diante desse material, oportunizado pela busca em fontes primárias, o ensaio propõe uma leitura dos versos eróticos assinados por Drummond. No terceiro texto, “Música enlatada no cinema: a América de Monteiro Lobato”, Milena Ribeiro Martins discute a construção das ideias expressas em América (1932), cujo tema se detém sobre o efeito da modernização da sociedade e das artes, com as mudanças por que passava a indústria cinematográfica, com as consequências da substituição das orquestras ao vivo, no cinema, pela introdução da música mecânica. As discussões propostas no trabalho têm por base o acervo do jornal The New York Times, representado na obra por artigos e imagens, que são discutidos pelos personagens.


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O artigo “Do romance histórico à ficcionalização da cultura popular em As Minas de Prata: a prosa de caráter histórico mais verdadeira que a História?”, assinado por Rafaela Mendes Mano Sanches, examina o romance As Minas de Prata, de José de Alencar, a partir da recepção crítica do romance histórico junto aos intelectuais e romancistas do Oitocentos, que debateram, inclusive, as questões relativas à cultura popular integrada à obra histórico-ficcional, observando assim os elementos que compõem a estrutura da narrativa, em relação com as discussões entre história, ficção e tradição popular, próprias ao período em escopo. O dossiê é concluído com o artigo “Imprensa e Literatura: o caso dos periódicos na formação do leitor infantil e juvenil em Mato Grosso”, de autoria de Renata Beatriz Brandespin Rolon, cujo destaque está na formação do campo literário em Mato Grosso, no qual está inserida a literatura infantojuvenil no Estado. A efetivação desse percurso foi possível a partir da leitura dos periódicos A Juventude (1916 a 1917), os jornais escolares O Pequeno Mensageiro (1920) e O Liceu (1930), responsáveis pela representação do universo infantil nesses suportes de escrita. Os textos se coadunam pelo escopo das fontes primárias, recompondo caminhos do passado que se reconstrói/constrói pela escrita que desenha diferentes itinerários só possíveis de reconhecimento por meio da escavação em escaninhos tão longínquos, que encantarão os leitores para o conhecimento de novas possibilidades e recorrências de pesquisa.


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Romances brasileiros em Portugal no último quartel do Oitocentos: circulação e recepção Brazilian novels in Portugal in the last quarter of the nineteenth century: circulation and reception Juliana Maia de Queiroz* RESUMO: O estudo da literatura embasado em fontes primárias permite ao pesquisador se aproximar não apenas das obras em si, mas de inúmeros elementos envolvendo a produção, circulação e a recepção crítica no período em que estas vieram à luz. Este artigo apresenta inicialmente o contexto português de circulação de romances brasileiros em Portugal por meio de dois catálogos, o da Livraria Internacional de Ernesto Chardron e o da Livraria Bertrand, buscando evidenciar os títulos de romances brasileiros presentes no mercado editorial português da segunda metade do século XIX. Em seguida, busca-se apresentar parte da recepção crítica de José de Alencar e de Machado de Assis em solo lusitano com o objetivo de revelar interesses e diálogos mais abrangentes do que supõem as histórias literárias tradicionais que costumeiramente apontam um movimento quase exclusivo de ruptura entre as Literaturas desses dois países. PALAVRAS-CHAVE: Fontes primárias; Catálogos de livreiros; Romances brasileiros; Mercado editorial português; Recepção crítica.

_________________________ * Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Professora de Literatura Portuguesa/ Faculdade de Letras (FALE)/Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém - Pará.

ABSTRACT: The literature study based on primary sources allows the researcher toapproach not only to the literary work itself but also to numerous elements involving theproduction, circulation and critic reception. This article first presents some aspectsconcerning Brazilian novels in circulation in the Portuguese book market by thepresentation of two book catalogues from different bookstores: Livraria Internacional de Ernesto Chardron e Livraria Bertrand. After that, this article presents some extracts fromcritical reception related to José de Alencar and Machado de Assis in Portugal in thesecond half of the nineteenth century. The idea is to reveal some interests and relationsmuch more effective than the traditional literary histories assume. It seems to us that therehas been much more dialogue between the Portuguese and the Brazil literature than it isusually considered by the traditional literature studies. KEYWORDS: Primary sources; Book catalogues; Brazilian novels; Portuguese book market; Critic reception.


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É consenso entre os historiados do livro e da leitura reivindicar para o romance o lugar de gênero literário por excelência da Europa e da América ao longo do século XIX. Estudos acerca do gosto literário português oitocentista mostram que a preferência pelo romance teria chegado via traduções de obras francesas primeiro e, depois, se consolidado pela circulação e recepção tanto de obras estrangeiras quanto da expressiva produção de romance nacional. Garret, Herculano, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, nomes da literatura romântica, dentre outros, figuram em páginas não apenas de periódicos, mas também de catálogos de livreiros, bibliotecas e de gabinetes de leitura portugueses da segunda metade do século XIX. Tais espaços de leitura não surgiram aleatoriamente no contexto português do Oitocentos. Maria Manuela Tavares Ribeiro conta-nos que ao longo daquele século houve várias iniciativas do governo a fim de estimular a escolarização de homens e mulheres, bem como de práticas de leitura. Nesse sentido, um grande formador de opinião pública e importante componente para a disseminação pelo gosto literário romanesco foi o periódico. A periodicidade da propagação de notícias, romances-folhetins, crônicas, romances seriados e de crítica literária fomentaram um contexto de intensa efervescência cultural igualmente para autores e leitores portugueses. Nesse período, há a publicação de várias obras compondo bibliotecas populares que eram constituídas por coleções de prosa de ficção destinadas a entreter e moralizar, além de ensinar conceitos e fatos históricos, sociais e políticos aos leitores portugueses daquele tempo. Segundo Ribeiro, deve-se a editores como David Corazzi, por exemplo: (...) uma notável produção de nove coleções. A primeira, a Biblioteca Selecta Ilustrada, que difundiu obras de Leite Bastos, Gervásio Lobato, Zola, foi inaugurada em 1870. Foi pioneiro na divulgação, entre nós, dos romances de Júlio Verne, que coligiu nas Viagens Maravilhosas aos Mundos conhecidos e Desconhecidos (1874-1888). (...) No contexto do debate sobre a questão colonial e da disputa dos ávidos interesses das potências europeias no continente africano, a vulgarização dos romances de Verne (alguns deles alusivos à África) provocou particular impacto. Como outras obras de teor científico e instrutivo faziam parte da coleção Aventuras de Terra e Mar (RIBEIRO, 1999, p. 200-201).


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O papel dos editores foi fundamental para o crescimento do mercado livreiro em Portugal na segunda metade do século XIX. A maioria de origem francesa, instalada em Portugal desde o século anterior ou início do Oitocentos, esses homens e também mulheres, ligados ao ramo dos livros, investiram em um comércio que se mostrou rentável, a contar pelos catálogos de suas livrarias à disposição dos leitores portugueses na segunda metade do Oitocentos. A pesquisa com esses catálogos chama a atenção de pesquisadores, pois é possível examinar, a partir de suas linhas, diversos dados que vão desde os títulos à venda, passando pelos preços, bem como a materialidade, a possibilidade de se averiguar a maior recorrência de autores nacionais ou estrangeiros, as traduções, além do número de edições etc. Há um universo ricamente encadernado (parodiando a terminologia para descrição de livros presentes nos próprios catálogos) que pode ser explorado a partir do exame dessas fontes primárias específicas. No que se refere à presença da literatura brasileira em Portugal, destacamos o Catálogo das publicações brasileiras recebidas pela Livraria Internacional de E. Chardron (1874), dedicado exclusivamente ao livro publicado no Brasil a ser vendido em terras portuguesas. Parece-nos ser o único do período exclusivo às obras brasileiras, o que nos leva a crer que o mercado português estava em franca expansão no último quartel do Oitocentos, tanto que poderia investir também na venda de livros d´além-mar ao lado dos nacionais e europeus. Composto de vinte páginas, este catálogo de livros revela os autores brasileiros em evidência no Brasil na segunda metade do século XIX: José de Alencar; Pereira da Silva; Joaquim Manuel de Macedo; o jovem Machado de Assis; Bernardo Guimarães e Luís Guimarães Júnior, como demonstra a imagem de suas páginas internas:


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Catálogo das publicações brasileiras recebidas pela Livraria Internacional de E. Chardron (1874)1

Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal

Ora, se todos esses livros brasileiros estavam disponíveis ao público leitor português, qual teria sido a reação da crítica literária especializada em relação à literatura brasileira? Pelo que constatamos até agora, uma parte da crítica enalteceu a nossa literatura, lamentando, contudo, a parca divulgação desta em Portugal. Camilo Castelo Branco, por exemplo, em Noites de Insônia oferecidas a quem não pode dormir (1874), destaca a iniciativa de Chardron ao divulgar e tornar disponível ao público leitor, por meio de seus catálogos e de suas lojas de livros, a literatura brasileira muito pouco conhecida pelos leitores portugueses. Na contramão, alguns críticos teceram comentários menos elogiosos sobre o que consideravam a incipiente literatura brasileira. O caso que ora destacamos é o de Pinheiro Chagas por ser um autor que ocupou tanto a posição de detrator quanto de defensor, ou seja, primeiro fez severas críticas à literatura brasileira, mas depois parece ter mudado de ideia.

__________________ Já nos referimos a este catálogo em artigo de 2013. Conferir: QUEIROZ, Juliana M. “Brasil e Portugal: Relações Transatlânticas e Literárias no século XIX” In: Polifonia. Revista do Programa de pósgraduação da UFMT, Cuiabá, 2013. pp 189-203. 1


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Em texto publicado em 1868, intitulado Literatura Brasileira, Pinheiro Chagas afirma que apesar de haver talentos na “antiga colônia americana, não se pode dizer que o Brasil possua uma literatura” já que a literatura nacional seria aquela que reflete, como um espelho, uma existência característica. Sendo o Brasil uma “nação moderna, filha da Europa”, em suas palavras, não teria ainda uma “imagem bastante colorida e enérgica” (CHAGAS, 1868, pp. 222-224)2 . Adiante em seu texto, Pinheiro Chagas tece longos comentários sobre o romance Iracema, elogiando o autor brasileiro por sua criação: Iracema é uma tentativa, uma lenda apenas de 156 páginas, mas em que se revela o estilista primoroso, o pintor entusiasta das paisagens natais, o cronista simpático dos antigos povos brasileiros. Pela primeira vez aparecem os índios, falando a sua linguagem colorida e ardente, pela primeira vez se imprime fundamente o cunho nacional n´um livro brasileiro, pela primeira vez são descritos os selvagens com aqueles toques delicados (...) a musa nacional solta-se enfim dos laços europeus, e vem sentar-se melancólica e pensativa, à sombra das bananeiras, vendo o sol apagar o seu facho ardente na perfumada orla das florestas americanas (CHAGAS, 1868, p. 219-220).

__________________ Atualizamos a ortografia dessa e das demais citações do texto.

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Para o crítico, Alencar seria o escritor brasileiro que teria se aproximado mais da cor local, constituindo assim uma iniciativa literária importante, derivando daí seus elogios mais entusiasmados, tanto que o crítico compara o romancista brasileiro ao norte-americano Fenimore Cooper, cujas obras teriam circulado no século XIX no Brasil e em Portugal. Contudo, a segunda parte do texto revela um Pinheiro Chagas bastante incomodado com o que ele considerava ser o grave defeito dos livros brasileiros: “a falta de correção na linguagem portuguesa ou, antes, a mania de tornar o brasileiro uma língua diferente do velho português, por meio de neologismos arrojados e injustificáveis e de insubordinações gramaticais” (p. 221). Não por acaso Pinheiro Chagas adotou uma postura rígida em relação ao que ele classificava como corrupção da língua portuguesa por parte dos autores brasileiros no


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que diz respeito, sobretudo, à correção gramatical. Não se pode perder de vista que ele foi um escritor ligado ao grupo literário mais conservador da segunda metade do século XIX em Portugal, liderado por Antonio Feliciano de Castilho, grupo esse que seria duramente combatido pela famosa Geração de 70, dando origem ao movimento realista na literatura desse país3 . Contudo, Alencar também ganhou elogios pelo seu talento “reputado por seus patrícios como um dos ornamentos mais distintos da atual literatura no Brasil” (SILVA, 1866, pp. 244-246), na voz de Inocêncio Francisco da Silva e, de igual modo, foi destacado por outro crítico português, Romeo Júnior, que o localizou “(...) entre os mais ilustres da inteligência brasileira” (JÚNIOR, 1866, pp. 6-7). Até mesmo o próprio Pinheiro Chagas, quando da passagem de Alencar por Portugal, buscou corrigir sua apreciação um tanto quanto negativa em relação ao autor brasileiro, informando aos leitores que estes poderiam encontrar os livros deste romancista na Livraria Bertrand e na Livraria Internacional de E. Chardron. A menção a esses dois livreiro-editores não é fortuita. Conforme já mostramos anteriormente, no Catálogo das publicações brasileiras recebidas pela Livraria Internacional de E. Chardron (1874) encontramos dezessete títulos de Alencar ao lado de outros tantos de Joaquim Manoel de Macedo e de Pereira da Silva, revelando uma ampla oferta de títulos brasileiros à disposição dos leitores portugueses. No catálogo da Livraria Bertrand contabilizamos, na seção dedicada a romances nacionais e traduzidos, doze obras de Alencar. A título de ilustração, vejamos a capa do catálogo com dados preciosos. Trata-se de um extrato de um acervo supostamente maior, indicando aos leitores que havia muito mais livros à disposição do público consumidor na Livraria Bertrand. Além disso, há a especificação quanto ao tipo de livro: são livros em língua portuguesa, antigos e modernos. Os termos antigos e modernos se referem à presença tanto de obras de séculos anteriores quanto àquelas mais próximas à data de publicação do catálogo (1876). Na segunda imagem, temos uma das páginas internas desse catálogo com títulos de

____________________ 3 Cf. Verbete “CHAGAS, Manuel Joaquim Pinheiro”. In: Dicionário do Romantismo Literário Português. Coordenação Helena Carvalhão Buescu. Lisboa: Editorial Caminho,1997. p. 88-89.


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Alencar e de outros autores brasileiros, como Bernardo Guimarães e Joaquim Manuel de Macedo, por exemplo, ao lado de autores portugueses e de outras nacionalidades, revelando uma oferta de obras bastante significativa:

Viúva Bertrand & C.ª – Catálogo (extrato) de livros portugueses antigos e modernos à venda nesta livraria (1876).

Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal


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Viúva Bertrand & C.ª – Catálogo (extrato) de livros portugueses antigos e modernos à venda nesta livraria (1876).

Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal

Note-se que, de José de Alencar, temos nesta página três títulos: Iracema, lenda do Ceará (romance, 1865); O Jesuíta (teatro, 1875); Lucíola, perfil de mulher (romance, 1862). Entretanto, nas outras páginas do catálogo, temos ainda: Cinco minutos (1856); Diva (1864); O Ermitão da Glória (segundo volume de Alfarrábios, (1873); O Gaúcho (1870); O Guarani (1857); As minas de prata (1865); A pata da gazela (1870); O Sertanejo (1875); O tronco do Ipê (1871). Destaca-se, ainda, a presença de obras que haviam sido publicadas no Brasil apenas um ano antes da confecção do catálogo (1876), como é o caso de As minas de prata, por exemplo. Essa sincronia na oferta de livros nos dois lados do Atlântico revela um trânsito efetivo de obras literárias entre os dois países. Muito provavelmente, o mercado livreiro tenha impulsionado, inclusive, a mudança na apreciação crítica em relação aos autores brasileiros em solo lusitano.


Romances brasileiros em Portugal no último quartel do...18 Se tomarmos o intervalo entre o ano de 1868, por exemplo, data da publicação do texto de Pinheiro Chagas em que este teceu severas críticas ao romancista brasileiro, e 1873, ano em que atuava como um dos redatores do periódico O Brasil , de ampla circulação em várias cidades portuguesas e províncias brasileiras, observamos que sua rigidez parece ter dado lugar a um discurso bem mais ameno: Com muita mais facilidade se estuda na nossa terra a literatura chinesa do que a literatura brasileira. E não se imagine que exagero. Os editores parisienses mandam para Lisboa, entre as novidades de livraria, os romances chineses traduzidos por Stanislas Julien, o célebre sinólogo que faleceu há poucos dias; ao passo que do Brasil as únicas novidades que para cá nos vem são café, açúcar e bananas. Ora, eu não desprezo as bananas, o açúcar e o café, mas gostava que viessem também alguns livros revelar ao público português que os ignora absolutamente, os esplendores da literatura brasileira (CHAGAS, 1873, p.1) 4.

______________ 4 Atualizamos a ortografia dessa e das demais citações do presente texto.

Publicado em 25 de março de 1873, na primeira página, sob o título de Bibliografia Brasileira o texto de Pinheiro Chagas é bastante elogioso acerca dos escritores brasileiros e, inclusive, enaltece José de Alencar com honrosos predicados, chegando a admitir que o texto crítico a Iracema, publicado em 1868, é “pobre, defeituoso e incompleto”. Cinco anos depois, ao escrever para um periódico que, em suas palavras, “assumiu e desempenha cabalmente a missão de ligar os dois povos entre si, de os tornar mais conhecidos, de fazer com que mutuamente se apreciem” (CHAGAS, 1873, p.1), o crítico português afirma ter como objetivo contribuir, como redator de O Brasil, para que as relações literárias entre Portugal e Brasil se estreitem. Para tanto, pretende comentar alguns dos livros que lhe chegam dos “inúmeros paquetes que estabelecem entre os dois hemisférios uma verdadeira ponte flutuante” (CHAGAS, 1873, p. 1). E um dos autores que lhe chegara à mesa era o jovem Machado de Assis por meio de seu romance Ressurreição (1872), cujo estilo é elogiado por Pinheiro Chagas:


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Mas o que não se pode deixar de admirar neste belo livro é a encantadora sobriedade do estilo, o fino toque de um lápis prestigioso, e o delicado estudo de uns certos cambiantes da paixão, que revelam em Machado de Assis um escritor fadado para os estudos psicológicos, que são a base principal do romance íntimo na sua acepção mais elevada (CHAGAS, 1873, p.1).

Interessa ressaltar que Pinheiro Chagas enaltece a tendência machadiana para o estudo psicológico como contraponto a uma visão supostamente estereotipada que os leitores do periódico poderiam ter dos escritores brasileiros como autores de narrativas em torno apenas da cor local: Poeta dos salões, romancista da sociedade mais distinta, Machado de Assis entendeu e entendeu bem que não devia apresentar-se com chapéu de palha de roceiro, casaco de cetim branco etc a pretexto de calor e de cor local. Vestiu pelo contrário a sua casaca francesa, calçou as luvas cor de pérola, sem que isso de modo nenhum prejudicasse a originalidade de seu espírito. Porque efetivamente, se o estilo de Machado de Assis tem todo o cunho europeu, respira o gracioso aroma parisiense, isto não quer dizer que o escritor brasileiro copie os parisienses e imite os europeus (CHAGAS, 1873, p.1).

Muito semelhante, nesse sentido, é a opinião do próprio Machado de Assis em seu conhecido texto “Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade”, publicado no mesmo ano (1873) em que Pinheiro Chagas faz a apreciação do romance Ressurreição no periódico O Brasil , em Lisboa. Tanto Machado quanto Chagas apontam como uma das principais características da literatura brasileira o tratamento da cor local e dos usos e costumes da realidade brasileira, sobretudo nos romances, o gênero mais apreciado nos dois lados do Atlântico àquela altura. Haveria, contudo, uma vertente ainda pouco explorada no romance brasileiro sobre a qual assim se posiciona Machado:


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Aqui o romance como tive ocasião de dizer, busca sempre a cor local. A substância, não menos que os acessórios, reproduzem geralmente a vida brasileira em seus diferentes aspectos e situações. Não faltam a alguns de nossos romancistas qualidades de observação e de análise, e um estrangeiro não familiar com os nossos costumes achará muita página instrutiva. Do romance puramente de análise, raríssimo exemplar temos (...) Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos comuns os exemplos que podem satisfazer à crítica; alguns há porém, de merecimento incontestável. Esta é, na verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e ao mesmo tempo das mais superiores. Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares de observação, que, ainda em literaturas mais adiantadas, não andam a rodo nem são a partilha do maior número (ASSIS, 1997, p. 806) 5.

________________ 5 Texto publicado pela primeira vez no periódico Novo Mundo, edição de 24 de março de 1873

Nota-se para além da simultaneidade da publicação de apreciações semelhantes acerca da literatura brasileira nos dois lados do Atlântico, a opinião explícita do crítico português de que Machado de Assis seria o romancista brasileiro que justamente superaria os limites do tratamento exclusivo da cor local em sua obra ao lançar mão do romance de cunho psicológico. Tal feita, segundo Pinheiro Chagas, se constituiria por meio de uma linguagem apurada e elegante no tratamento dos "cambiantes da paixão" escritos com "lápis prestigioso" (CHAGAS, 1873, p.1). Machado, por sua vez, ao apontar a raridade e a dificuldade de se encontrar exemplares do que ele chama de “romance puramente de análise” (ASSIS, 1997, p.807) não deixa de se referir, ainda que indiretamente, ao início de sua produção romanesca que, a esta altura, buscava dialogar com um universo ficcional mais psicológico e analítico, termos usados pelos dois críticos e escritores em cena. Outra voz coetânea tanto de Machado quanto de Pinheiro Chagas que aponta a novidade temática e estilística do romance de estreia de Machado de Assis é a do brasileiro Luís Guimarães Júnior, poeta, jornalista e “folhetinista elegante e jovial”, segundo Machado de Assis (p. 807). Guimarães Junior enaltece a construção com “cuidado e garbo” do personagem Dr. Félix no romance Ressurreição, mas segundo ele, os demais personagens “empalidecem ao pé do herói”, motivo pelo qual, segundo o crítico:


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(...) o livro de Machado será muito estudado, mas por muito pouca gente. Não é um romance que atraia o vulgo: é sim um quadro que chama o olhar dos entendidos e a atenção dos amigos de boa e eficaz literatura. O estilo é acurado, é trabalhado, é desenvolvido com uma solicitude às vezes exagerada, e que em um ou em outro ponto parece pertencer mais aos arabescos da arte do que à espontaneidade do sentimento (JUNIOR, 1872, p. 3 apud GUIMARÃES, 2004, p. 135).

Em estudo sobre a figuração de leitor nos romances de Machado de Assis e sua recepção crítica, Hélio de Seixas Guimarães aponta o estranhamento de críticos brasileiros à época da publicação de Ressurreição em relação à falta “das paixões violentas, das grandes tempestades do coração e da espontaneidade do sentimento” no romance de estreia machadiano. Nesse sentido, acostumados a uma literatura com contornos tipicamente românticos e ao tratamento da cor local, destaca-se que tanto o brasileiro Luís Guimarães Junior quanto o português Pinheiro Chagas de certa forma previram quase que simultaneamente que o romance de estreia de Machado não atenderia às expectativas de leitores acostumados a “bananeiras e jabuticabas”, como jocosamente afirmou o crítico português (CHAGAS, 1873, p. 1). O caso específico da recepção crítica de Pinheiro Chagas a José de Alencar e a Machado de Assis é ilustrativo não apenas da recepção de dois nomes consagrados das letras brasileiras em terras portuguesas, mas, sobretudo, do alcance ou tentativa de estreitamento das relações literárias e editoriais entre esses dois países. Não nos esqueçamos de que Alencar e Machado não foram os únicos a serem apreciados pelo crítico português que se voltou também a Pereira da Silva e ao poeta Castro Alves, dentre outros. Além disso, o registro de Pinheiro Chagas em um periódico voltado para leitores portugueses e brasileiros dos dois lados do Atlântico ganha contornos relevantes para um olhar mais preciso das relações literárias entre Portugal e sua antiga colônia na América na segunda metade do século XIX, período em que o gênero romance


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ganhou a atenção de leitores, livreiros e editores. Esse novo ângulo revela interesses e diálogos mais abrangentes do que supõem as histórias literárias tradicionais que costumeiramente apontam um movimento quase exclusivo de ruptura entre as literaturas desses dois países. Assim, o exame das fontes primárias em foco (catálogo de livros e textos de recepção crítica, publicados tanto no suporte livro quanto em periódico) traz à luz aspectos pouco explorados que uma análise puramente histórica ou estilística do texto literário - sem levar em consideração seu contexto de produção, circulação e recepção - não permitiria. Referências ASSIS, Machado de. “Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de Nacionalidade”. In: Machado de Assis. Obra Completa . Volume III. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997. BRANCO, Camilo Castelo. “Literatura Brasileira”. In: Noites de Insônia oferecidas a quem não pode dormir. Porto/ Braga: Livraria Internacional de Ernesto Chardron e Eugénio Chardron, 1874. CHAGAS, Pinheiro. “Bibliografia Brasileira”. In: O Brasil. 3º ano, número 69. Lisboa, edição de 25 de março de 1873. _________.“José de Alencar”. In: Diário da Manhã Lisboa, nº 365, 1ª página, edição de 21 de setembro de 1876. __________.“Literatura Brasileira”. In: Novos Ensaios Críticos . Porto: Viúva Moré Editora, 1868. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis. O romance machadiano e o público de literatura no século XIX. São Paulo: Nankin Editorial: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. JÚNIOR, Romeo. As letras no Brasil. Duas palavras acerca de um folheto do Sr. Antero de Quental. Braga:Tipografia de Domingos G. Gouvea, 1866. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. “Livros e Leituras no século XIX”. In: Revista de História das Ideias. O Livro e a Leitura. Volume 20. Coimbra: Faculdade de Letras, 1999. SILVA, Inocêncio Francisco da. “José de Alencar”. In: Arquivo Pitoresco, Semanário Ilustrado. Lisboa, 1866.


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As malogradas ediçþes de 2 FRURQHO 6DQJUDGR de InglĂŞs de Sousa1 T KH IRLOHG HGLWLRQV RI 7KH &RORQHO 6DQJUDGR E\ ,QJOrV GH 6RX]D Marcela Ferreira  RESUMO: O romance O coronel Sangrado , de InglĂŞs de Sousa (1853–1918), ficou conhecido na histĂłria literĂĄria por preceder em quatro anos a publicação do primeiro romance naturalista brasileiro, O mulato , de AluĂ­sio Azevedo (fato que se deu em 1881). No entanto, a pesquisa em periĂłdicos revela que os primeiros capĂ­tulos do romance foram publicados em 1876, no jornal O Constitucional , e que sua segunda publicação deu-se em 1877, naRevista Nacional de CiĂŞncias, Artes e Letras – na qual o autor publicou apenas sete capĂ­tulos do livro –, consagrando-se a data da revista como a da primeira publicação do romance. Entretanto, essa edição diverge daquela que conhecemos hoje, a qual provavelmente foi estabelecida a partir da edição em livro, de 1882, feita pelo prĂłprio autor. Pretende-se, neste artigo, demonstrar como foram essas publicaçþes deO coronel Sangrado , que, pelas situaçþes de cada uma, podem receber o epĂ­teto de “malogradasâ€?. PALAVRAS-CHAVE: O coronel Sangrado, InglĂŞs de Sousa, periĂłdicos, imprensa, romance brasileiro.

_________________________ 1 Este artigo ĂŠ fruto da tese de doutorado em Letras denominada “InglĂŞs de Sousa: imprensa, literatura e Realismoâ€?, defendida e aprovada, na UNESP – FCL – Assis, em maio de 2015. * Doutora em Letras pela UNESP – FCL – Assis. Professora do Instituto Federal de Educação, CiĂŞncia e Tecnologia de GoiĂĄs – Campus Uruaçu–Uruaçu-GO.

ABSTRACT: Inglês de Sousa’s novel 7KH FRORQHO 6DQJUDGR is acknowledged by the literary history as the book that preceded in four years the publication of the first naturalistic Brazilian novel, 7KH PXODWWR by Aluísio Azevedo (event that took place in 1881). In despite of that, the historic research reveals that the novel’s first chapters were published in 1876 in the newspaper 7KH &RQVWLWXWLRQDO and that its second publishing took place in 1877, in the 1DWLRQDO 0DJD]LQH RI 6FLHQFH, Arts and Letters – where only seven chapters of the book were published –, what conventionally established the date of the magazine’s publishing as the date of the first publishing of the novel. Nevertheless, this edition diverges from the one we know today, which was probably established from the edition of the book proceeded by the author in 1882. This article intends to discuss these publications of The colonel Sangrado in order to prove why each of them can be described as "foiled". KEYWORDS: The colonel Sangrado, Inglês de Sousa, newspapers, press, Brazilian novel.


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Introdução A pesquisa em periódicos do século XIX pode trazer subsídios para a compreensão e estabelecimento da História Literária Brasileira, visto que os jornais e revistas eram importantes meios de divulgação e publicação de literatura naquela época. A maioria das novidades literárias passava pelas diversas folhas, apesar de que, em sua grande maioria, tinham vida efêmera e circulação restrita. Machado de Assis, Olavo Bilac, Manuel Antônio de Almeida, dentre muitos outros, valeram-se de periódicos para publicar seus trabalhos, que saíram muitas vezes primeiramente por esse suporte e não pelo livro. Situação semelhante a do escritor oitocentista Inglês de Sousa, que colaborou na imprensa pernambucana e paulista. Herculano Marcos Inglês de Sousa nasceu em 1853, na cidade de Óbidos, estado do Pará. Aos 12 anos, sai de sua terra natal para estudar no Maranhão, passa pelo Rio de Janeiro e termina os preparatórios em Pernambuco, matriculando-se em 1872, na Faculdade de Direito de Recife. O jovem acadêmico tem contato com o grupo denominado de “Escola de Recife” e, por conseguinte, com as ideias novas, que segundo Sílvio Romero (1910, p. 359), esvoaçavam-se de “todos os pontos do horizonte”. Durante esse tempo, o jovem escritor colabora nos jornais de Recife, restringindo-se a dois gêneros: a crítica literária e a crônica. No entanto, é nesta época, especificamente no ano de 1875, que escreve seu primeiro romance O cacaulista. Em 1876, muda-se para São Paulo, matricula-se na Faculdade de Direito, onde cursa o último ano de bacharelado. O envolvimento com os acadêmicos rende participação em jornais como A Academia de S. Paulo. Neste publica os primeiros capítulos do romance O cacaulista e os contos “O recruta” e “Amor que mata”, que são publicados com uma revisão do autor, no ano de 1893, no livro Contos amazônico, pela Laemmert. Ainda no ano de 1876, Inglês de Sousa publica nas folhas paulistas capitulos dos romances História de um pescador e O coronel Sangrado, respectivamente, na Tribuna Liberal e em O Constitucional. Os três romances citados compõem a série que o autor denominou de “Cenas da vida do Amazonas”.


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O coronel Sangrado, romance em evidência neste artigo, é composto de 26 capítulos, sendo a continuação de O cacaulista, que termina com a ida de Miguel a Belém, por causa de uma desilusão amorosa e da perda de um pedaço de terra. Em O coronel Sangrado, do qual os leitores só conhecerão a história na íntegra em 1882, Miguel volta para Óbidos e o coronel Sangrado, chefe local, convida-o por causa de sua rixa com o tenente Ribeiro, para participar de uma campanha política. Miguel não aceita e segue para o sítio de sua mãe. Mas o coronel vê nele o futuro genro e seu sucessor; assim começa a preparar a carreira política do rapaz, primeiramente como vereador. Os membros do partido do coronel, não compactuando com as ideias dele, armam um golpe para que Miguel não seja eleito, mas a filha do coronel, Mariquinha, ouve tudo e conta para Miguel, no intuito de que ele tomasse alguma providência. Nesse meio tempo, Miguel descobre que sua amada Rita ficara viúva e vai atrás dela, não se importando com as revelações de Mariquinha. Ao saber que Miguel não foi eleito, o coronel fica gravemente doente e, depois, quando sabe que Miguel estava de casamento marcado com a filha do tenente, tem um acesso de cólera e falece. Mariquinha acaba ficando sozinha. Os romances O cacaulista e História de um pescador ganharam uma edição em livro, ainda no ano de 1876. O que não aconteceu com O coronel Sangrado, que foi publicado na Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras, no ano de 1877. A primeira edição do romance em livro ocorre somente em 1882, pela Tipografia do Diário da Manhã. No entanto, a data de publicação do romance ficou fixada pela história literária oficial como sendo em 1877. Esses esclarecimentos sobre o romance e a constatação de que o mesmo teve edições malogradas, somente são possíveis com a pesquisa nos periódicos da época. Para O coronel Sangrado, a data de publicação do romance tornou-se importante por causa das discussões que surgiram no século XX sobre o início do Naturalismo na literatura brasileira, visto que a obra de Inglês de Sousa precede a publicação de O mulato, de Aluísio Azevedo, que se dá em 1881. Todavia, não haveria implicações relacionadas ao suporte de publicação de O coronel Sangrado, se não fossem por algumas divergências entre as publicações, na Revista Nacional, em 1877 e, em livro, no ano de 1882.


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1 – As publicações malogradas Em maio de 1876, seguindo a tendência de outras folhas da época, o Correio Paulistano cria a seção “Revista dos jornais”, com a intenção primordial de “dar aos leitores a suma de tudo o que for publicado nos jornais da capital, quer diários, quer periódicos” (REVISTA..., 1876, p.2). A partir das informações veiculadas nessa seção, é possível recolher informações sobre o periódico O Constitucional, que se autodenominava conservador, com publicações esparsas, às vezes semanais, outras quinzenais. É nessa folha que ocorre a primeira aparição de O coronel Sangrado na imprensa, exatamente no dia 11 de maio de 1876. O romance, subtitulado de “Cenas da vida do Amazonas”, é assinado por Luiz Dolzani, pseudônimo que não chega a ocultar o nome de seu autor, visto que na imprensa paulista a autoria é revelada para todos os leitores. As notícias sobre a publicação do romance na folha em questão são publicadas até julho de 1876, na seção do Correio Paulistano. De O Constitucional há somente notícias, o que impede a confirmação da quantidade de capítulos publicados no referido periódico. O último anúncio da publicação é de 19 de julho de 1876, no 14º número do jornal. No número seguinte, anuncia-se a publicação de outro romance, O meu simpático, de Xavier. Seria um substituto do romance? Ou os dois foram publicados ao mesmo tempo? A dúvida persiste sobre a situação do romance no jornal O Constitucional. Concomitante com a publicação em O Constitucional, Inglês de Sousa publica na Academia, o romance O cacaulista. Na verdade, O coronel Sangrado é a continuação deste, mas o autor opta nesse instante pela publicação dos dois, ocupando os jornais paulistas de sua literatura amazônica. Por esse aparecimento de forma intensa na imprensa acadêmica paulistana, já que nesse período também publica contos, Carlos Ferreira, apresenta o jovem escritor na imprensa diária, fazendo uma apreciação crítica de sua ficção, no dia 28 de maio de 1876, no Correio Paulistano. Apresentando Inglês de Sousa e comentando os dois romances citados, o poeta afirma:


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.26, 2015 Tanto um como outro são dois trabalhos dignos de nota, dois cometimentos de fôlego que trazem em si a tríplice bondade do interesse no entrecho, de verdade no desenho dos costumes do norte, e da simplicidade e naturalidade do diálogo e no estilo em geral! Ambos são admiráveis fotografias da natureza opulenta do Amazonas, caráter especial do povo e cunho pitoresco de seu viver íntimo e digno de ser devidamente poetizado. Luiz Dolzani, a meu ver, promete ser, dentro de pouco tempo, o romancista por excelência nacional, mais pronunciado que o sr. Alencar, mais abundante que o sr. Juvenal Galeno, mais verdadeiro e correto que o dr. Bernardo Guimarães (FERREIRA, 1876, p. 1).

Carlos Ferreira em seu texto, que em junho do mesmo ano foi cedido na íntegra para o jornal carioca O Globo, ainda anuncia que Inglês de Sousa pretendia publicar “em volume brevemente” os dois romances. Concretizou-se, ainda em 1876, a publicação de O cacaulista, pela Tipografia do Diário de Santos e, de outro romance, que também foi publicado na imprensa, História de um pescador. Em janeiro de 1877, com a derradeira publicação em volume de O cacaulista, o Correio Paulistano afirma que o Coronel Sangrado, “brevemente sairá a luz” (PUBLICAÇÕES..., 1877, p. 1), o que não acontece tão prontamente. Os jornais silenciam sobre o romance, quando finalmente em agosto de 1877 são anunciadas as novidades literárias do próximo volume da Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras, dentre elas, a publicação do romance O coronel Sangrado. A Revista Nacional foi fundada em julho de 1877, por Inglês de Sousa e Antonio Carlos Ribeiro, sendo amplamente divulgada nos jornais do Rio de Janeiro, Recife, São Paulo e Campinas. Há um esforço por parte dos editores de divulgar a Revista pelo Brasil, fato que pode ser atestado pelas propagandas persistentes nos jornais. A Revista era publicada uma vez por mês e tinha de 64 a 150 páginas. Propunha-se, conforme o anúncio da Gazeta de Campinas, a “reunir e dar a lume as melhores produções inéditas dos homens de letras do Brasil, tanto no campo da ciência, como no da literatura e das artes” (A REVISTA..., 1877, p. 4). Com assinaturas de 5.000 réis por ano para Santos e São Paulo e, de 6.000 réis para “qualquer ponto do Brasil ou do estrangeiro”, os editores também prometiam que em cada número apareceria “uma crônica do movimento literário, científico e artístico do mundo


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civilizado e um boletim bibliográfico do que de mais importante se publicasse na Europa e na América” (Ibidem). No primeiro volume da Revista Nacional, que corresponde ao período de julho a setembro de 1877, Inglês de Sousa colabora com crônicas e com o conto “O sineiro da matriz”, gênese do conto “O rebelde”, dos Contos amazônicos. É somente no 2º volume da Revista, de outubro a dezembro de 1877, que são publicados os primeiros capítulos de O coronel Sangrado. O volume é divulgado nos meses de novembro e dezembro, estendendo até março de 1878. Um dos divulgadores do periódico é Franklin Távora, que na seção “Publicações da quinzena”, da Ilustração Brasileira, apresenta o mais recente número da Revista, ressaltando que “não desdiz dos anteriores, nem sob o aspecto da forma literária nem sob o dos assuntos que nele vem a lume” (TÁVORA, 1877, p. 181). Depois, concentra-se em avaliar O coronel Sangrado: No romance de costumes, intitulado – O coronel Sangrado -, oferece-nos o Dr. Inglês de Sousa, seu autor, descrições fiéis e animadas da vida dos habitantes do Amazonas. A natureza esplêndida desta grande região aparece sobriamente reproduzida, não sem graça e interesse, em alguns pontos do trabalho de que estamos tratando. [...] O Coronel Sangrado é um novo subsídio da literatura do norte (Ibidem).

Nesse texto de divulgação da revista e principalmente do romance, Távora ainda transcreve excertos da obra, dando destaque às passagens em que a natureza é descrita, como a carta escrita pela personagem Miguel a bordo do vapor Madeira, em sua viagem de retorno a Óbidos. No segundo volume da Revista Nacional, Inglês de Sousa publicou os sete primeiros capítulos de O coronel Sangrado, cinco na primeira parte do segundo volume e dois na segunda parte. Depois da publicação desses números, não há menção nos jornais sobre outros números do periódico; foram, provavelmente, publicados na Revista apenas os primeiros capítulos do romance em questão. Depois disso, há um novo silêncio na imprensa sobre o romance, que é


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quebrado somente em janeiro de 1881, quando é anunciada pelo periódico paulista Jornal da Tarde a publicação em volume de O coronel Sangrado , assinado por Luiz Dolzani, “pseudônimo de um [dos] mais aplaudidos romancistas brasileiros” (O CORONEL..., 1881, p.2). A publicação em livro não acontece nesse ano. A partir das notícias dos jornais, é possível constatar que O coronel Sangrado não foi publicado em livro no ano de 1877. Nesse ano, apenas os primeiros capítulos do romance foram publicados. Se o romance tivesse sido publicado em livro em data anterior, ou mesmo no ano de 1877, data na qual o romance ficou vinculado, a sua venda seria provavelmente anunciada nos jornais paulistas, como ocorreu com os romances O cacaulista e História de um pescador, divulgados até dezembro de 1879. Outro fato é que na época não era comum publicar ao mesmo tempo um romance em periódico e em volume, assim sendo, o último número da Revista é impresso em 1878, apesar de corresponder a dezembro de 1877, praticamente descartando a possibilidade de O coronel Sangrado ter sido publicado no ano anterior. Somente Rodrigo Octávio, biógrafo do autor, ao resumir as notas bibliográficas de Inglês de Sousa em 1955, esclarece que O coronel Sangrado foi publicado pela primeira vez na Revista Nacional, em 1877, e em volume, no ano de 1882, pela Tipografia do Diário da Manhã (OCTAVIO FILHO, 1955, p. 43). A informação sobre a publicação em livro pode ser confirmada pela capa do romance (Figura 1).


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O coronel Sangrado de 1882

Figura 1- Primeira página do romance, publicado em 1882 pela Tip. do Diário da Manhã. Fonte: Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos.

Desperta estranheza tanto a ausência de propagandas para comercializar O coronel Sangrado, em decorrência de sua publicação em livro, como também a parcimoniosa menção ao romance feita por aqueles que se reportaram a Inglês de Sousa. Em 1882, somente Távora cita o romance em seu artigo “La literatura brasilera – escritores del Norte del Brazil”, na Nueva Revista de Buenos Aires, sem nenhuma referência que o romance tinha sido publicado recentemente. Entretanto, em A Semana, no ano de 1887, ao listar os escritores do Norte, refere-se ao romance em sua publicação na Revista, não mencionando nada sobre o volume: “Inglês de Sousa deu a lume na Revista Nacional o ‘Sineiro da matriz’ e O coronel Sangrado, em separado ‘O recruta’, primeiro de uma série intitulada ‘Contos do Amazonas’” (TÁVORA, 1887, p. 363). Importantes críticos literários contemporâneos a Sousa também não se referem ao romance. Sílvio Romero, apesar de citar Luiz Dolzani como romancista integrante da segunda fase da Escola de Recife, sendo um dos fundadores do “movimento espiritual” que espalhou “as novas ideias que


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modificaram a nossa velha intuição romântica” (ROMERO, 1888, p. 1187), não explicita sobre as obras do autor em seus livros de crítica. Araripe Júnior na análise de O missionário, nem ao menos cita as primeiras obras de Sousa. A mesma situação de Araripe é válida para José Veríssimo. Os necrológios de Sousa também não informam com precisão sobre seus primeiros romances, muitas vezes sem citá-los, pondo em destaque apenas O missionário e Contos amazônicos. O romance que é lido hoje pelas duas edições da Universidade Federal do Pará (1968 e 2003) é oriundo de uma edição rara de 1882 e, não da edição da Revista Nacional, pois nesta foram publicados apenas sete capítulos e esses ainda apresentam algumas diferenças dos mesmos capítulos publicados em livro. Estudiosos posteriores que levantaram a bandeira da importância de Inglês de Sousa para a literatura brasileira, não afirmam com exatidão sobre a edição utilizada em seus estudos sobre o autor. Lúcia Miguel Pereira, por exemplo, na relação dos “Livros consultados”, de sua História da literatura brasileira: prosa de ficção de 1870 a 1920, dá o seguinte esclarecimento: “faltando a folha de rosto do volume consultado não se podem precisar o lugar e a data da impressão, que devem ser São Paulo, 1877” (PEREIRA, 1957, p. 321, grifo nosso). O ano de publicação de O coronel Sangrado que se fixou foi 1877, portanto, aquele da publicação dos sete primeiros capítulos na Revista Nacional, que tinha a opção de ser encadernada com requinte. De toda forma, é preciso ressaltar que, se considerarmos a publicação em periódico, o romance é de 1876, pela publicação também de alguns capítulos no jornal O Constitucional, mas se trata de um jornal efêmero, que não foi tão divulgado como a Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras. No ano de 1882, não há propaganda nos principais jornais paulistas e cariocas divulgando a publicação do romance em livro. Esta primeira publicação em volume de O coronel Sangrado, pela Tipografia do Diário da Manhã, não teve nenhuma repercussão. 2 – Comparações: revista versus livro Por suas edições malogradas, não é possível falar em repercussão de O coronel Sangrado no século XIX. Os poucos comentários e citações da obra são em decorrência da publicação na Revista Nacional. Ademais, o romance é apenas


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lembrado em circunstâncias diversas, como na publicação de O missionário em 1891 e nas congratulações pelo aniversário do autor. Assim sendo, infere-se que o romance não foi lido por muitas pessoas naquela época, o que reflete também numa ausência de crítica propriamente dita. No século XX, Lúcia Miguel Pereira têm papel importante na renovação dos estudos sobre Inglês de Sousa, analisando com minudência o romance em questão. Para Lúcia Miguel Pereira, Inglês de Sousa conseguiu captar a vida com seus sentidos aguçados e espírito livre em O cacaulista e História de um pescador, aprimorando essas qualidades em O coronel Sangrado, “onde a objetividade rigorosa, tão cara a Flaubert, deixou entretanto ao autor liberdade de movimentos, onde a vida política e social de uma pequena cidade provinciana é pintada com precisão” (PEREIRA, 1957, p. 160). Além disso, afirma que o livro é “prematuro; introduziu aqui os novos métodos antes do momento propício” (Ibidem) . Afirmações que podem ser questionadas na atual conjectura. É inquestionável que Sousa trabalha de forma bem mais realizada as características do Realismo nesse romance, chegando até mesmo a ousar em certos momentos, dando ares de Naturalismo, no entanto, os capítulos publicados são diferentes daqueles do livro editado em 1882. Os sete capítulos publicados na Revista Nacional diferem, não com mudanças substanciais, dos mesmos publicados em livro. Primeiramente, os capítulos foram intitulados da seguinte forma: 1: Na botica, 2: O coronel Sangrado, 3: A bordo, 4: Mariquinha, 5: O recomendado do sr. tenente-coronel, 6: A ideia do coronel Sangrado e 7: No Paranamiri. Os títulos apenas remetem à situação ou à personagem em foco no capítulo. Além disso, o autor ora retira, ora muda algumas palavras, trocando por sinônimos; às vezes exclui frases inteiras, ou mesmo as reescreve. Mas, de toda forma, preserva-se o fio narrativo. No entanto, duas mudanças chamam a atenção. A primeira delas é o uso do vocábulo patológico, no capítulo 2, que não aparece na publicação da Revista Nacional, sendo acrescido em livro. A palavra aparece quando se explica a aptidão do coronel Sangrado com as sangrias: “costuma também ele receitar muitas sangrias, e como sucedeu que em alguns casos patológicos não fez mais do que aliviar os males do doente” (SOUSA, 2003, p. 36). A palavra


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aparece quando se explica a aptidão do coronel Sangrado com as sangrias: “costuma também ele receitar muitas sangrias, e como sucedeu que em alguns casos patológicos não fez mais do que aliviar os males do doente” (SOUSA, 2003, p. 36). A palavra é empregada na medicina e este acréscimo pode significar uma preocupação do autor com as novas ideias na literatura, sentidas e divulgadas com mais intensidade na década de 1880. A segunda alteração também se trata de um acréscimo, na edição de 1882, ocorrido no mesmo capítulo. É um parágrafo longo, abordando a atuação do coronel Sangrado nas eleições: Tal era o homem na guarda nacional e nas eleições. Quando se tratava de levar votantes à urna, Severino de Paiva era o mesmo comandante de batalhão despótico e malcriado, cheio de iras e de arrotos de importância. Vinha isso de entender ele que em política partidária deviam reger as mesmas leis de disciplina militar que queria fazer prevalecer para a guarda nacional. Para ele, guarda era sinônimo de votante, e estava intimamente convencido de que se o governo lhe confiara o penacho de tenente-coronel comandante, fora para alinhar os votantes como alinhava os soldados, para fazer descarregar cédulas na urna como fazia descarregar as velhas e enferrujadas espingardas dos seus subordinados. O governo, no entender de Severino de Paiva, era uma entidade superior, infalível e toda-poderosa que distribuía patentes e arrecadava votos. Uma derrota eleitoral para o tenente-coronel seria como uma sedição entre os seus guardas, coisa que ele não podia acreditar que jamais acontecesse, porque seria ela uma negação de toda a ordem social, segundo as ideias do digno oficial. A guarda nacional e as eleições eram as duas coisas que mais o preocupavam, e que tinham o poder de mudá-lo completamente, transformar-lhe o caráter e alterar-lhe profundamente os sentimentos (SOUSA, 2003, p. 35).

As descrições feitas por Inglês de Sousa mostram o voto de cabresto, muito comum durante as eleições no Brasil Império. O coronel Sangrado se porta como um tirano, leva sua função ao extremo e acredita que o governo é uma “entidade superior”, que definia os postos que ocupavam e arrecadava votos. Cego por sua importância e autoridade, não acredita que possa acontecer uma derrota eleitoral, para ele isso seria um crime grave, como uma sedição. Esse parágrafo adicionado na publicação em livro pode revelar que ao


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reescrever O coronel Sangrado o autor se preocupou em retratar a política com mais precisão. Entre 1877 e 1882, Inglês de Sousa se envolveu profundamente com a política, fundando e editando jornais que defendiam o partido liberal, candidatando-se a deputado e sendo nomeado para importantes cargos públicos. Provavelmente, essa vivência influiu na reescrita do romance, em que ele incorpora cenas interessantes sobre a temática. De toda forma, a parte do romance publicada na Revista já revela a relação da obra com a estética realista. No prefácio de História de um pescador, Inglês de Sousa, provavelmente pensando sobre a nova estética, aponta um defeito em sua obra: a descrição das personagens, que aparecem sem que se precedesse o “retrato físico e moral” (SOUSA, 2007, p. 41). Em O coronel Sangrado já se verifica uma modificação, pois as personagens aparecem e logo são apresentadas, com informações tanto sobre os aspectos físicos quanto sobre os psicológicos. Percebe-se a apresentação não só das personagens principais, que têm constante atuação no romance, mas também das secundárias, que não têm muita participação na história, mas que se fazem importante por representarem a região amazônica. A personagem coronel Sangrado é alvo de várias (descrições, nas quais o narrador lhe atribui diversas características: O tenente-coronel Severino (a personagem que acaba de entrar na botica do Anselmo) era um homem magro e comprido, de pequenos olhos pardos, de maçãs salientes e de nariz fenomenal. Em lugar de bochechas tinha concavidades escuras; a boca tinha-a grande e feia, de delgados e pálidos lábios, de dentes magros e enormes. O queixo pontiagudo parecia querer encontrar-se à força com o nariz, as orelhas afastadas do crânio tinham ares de abanos, e os cabelos de um louro ardente, engordurados e corredios, caíam-lhe desmazeladamente sobre a estreita fonte. Uns espessos bigodes da cor dos cabelos, e cortados em forma de escova, cobriam-lhe quase a boca, e um cavanhaque comprido e fino dava-lhe certo ar de petulância burlesca. Pés e mãos enormes. Quando andava sacudia desajeitado os braços e as pernas, e entesava o busto, atirando a cabeça para trás. Vestia quase sempre ampla sobrecasaca de brim branco, calças e colete de ganga amarela, e usava o clássico chapéu-de-manilha. Os enormes


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sapatos de enfiar trazia-os sempre lustrosos e limpos; em compensação a camisa não atestava muda frequente. As unhas grandes, a barba de três dias, a caixa de rapé e o lenço encarnado. (SOUSA, 2003, p. 33).

A descrição da personagem coronel Sangrado é pertinente aos romances realistas, revelando o feio e o sujo, tendo em vista que a personagem beira ao horror, como uma figura desajeitada e monstruosa, todo desalinhado fisicamente, até mesmo ao andar, sacudindo os braços e as pernas desajeitadamente. O desasseio também é parte dessas características, pois o capitão traz os cabelos “engordurados”, além de “unhas grandes” e “barba de três dias”. Outro exemplo importante dessas descrições realistas refere-se à filha de Sangrado, a Mariquinha, que é apresentada como feia, apesar do narrador mostrar os contrastes ligados à fisionomia da moça: A filha do tenente-coronel não era uma rapariga bonita, e havia mesmo quem a dissesse feia. Nisto, porém, lhe faziam injustiça. Ela tinha magníficos cabelos castanhos que lhe caíam abundantemente sobre as espáduas, e uns olhos pardos, grandes e lânguidos, quase sempre ocultos por compridas e sedosas pestanas, mas que quando apareciam lançavam um olhar doce, meigo, acariciador. A tez alva e pálida de ordinário, finíssima a pele, o nariz sem graça e comum, grande a boca, mas completos e alvíssimos dentes. O pescoço um tanto comprido, mas bem feito, delgado e flexível o talhe, o busto de perfeição admirável. Os pés e as mãos nem pequenos nem grandes. Tinha quando andava movimentos, ondulações de cobra, requebros que despertavam o despeito das amigas, que alcunhavam-na de faceira (SOUSA, 2003, p. 50).

A moça era chamada de feia, feiarrona, velhita, alcunha dada por seu pai e pelas pessoas, quando se referiam a ela. Além disso, o ridículo ronda a moça, que se veste com um vestido, na ocasião em que recebe Miguel em sua casa, que seria como o “supra-sumo do ridículo no Pará”, mas que em Óbidos era a última moda (SOUSA, 2003, p.49). A sujeira e a feiura são características frequentes nas personagens do romance, revelando a descida de tom na literatura e ligando o romance ao Realismo, saindo do idealismo romântico.


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Em dois momentos, Inglês de Sousa também deixa clara a influência do meio para a alteração da personalidade das personagens. O tempo passado em Belém muda as ideias de Miguel, no entanto “se a civilização lhe modificara as ideias, não havia tido grande influência sobre os seus sentimentos”: Miguel, que viveu cinco anos na cidade de Belém, com a sociedade mais culta do Pará, tinha todos os exteriores do homem civilizado, mas ainda conservava muito do antigo pescador do Paraná-Mirim. A vida da cidade conseguira modificar-lhe o caráter e abrandar-lhe o gênio, mas não o curou radicalmente. O rapaz, diferentemente de outros tempos, almejava agora a paz e a tranquilidade e queria esquecer as injúrias outrora recebidas, mas isto não era mais que uma vitória ganha pela cabeça sobre o coração. Homem ilustrado hoje, ele abjurava as mesquinhas ideias de outras eras, mas, mau grado seu, o coração ainda sentia o espinho de um ressentimento vago que Miguel não ousava confessar a si mesmo. O que dissera ao coronel Sangrado, o que fizera ver em Óbidos era o que queria sentir, mas não era o que verdadeiramente sentia. (SOUSA, 2003, p. 66).

O narrador descreve na figura de Miguel uma dualidade entre quem ele realmente era e o que aparentava ser, que também é mostrada em outra passagem, quando descreve o moço no vapor Madeira: A cabeça constantemente erguida dava ao passageiro do Madeira um ar nobre e altivo, temperado pela placidez das feições. O corpo era elegante, não dessa elegância afetada dos nossos ridículos gomeux; mas de uma elegância natural, quase selvagem. Via-se que a vida das cidades dificilmente moldara à sua feição uma natureza virgem. Por vezes, pelos movimentos bruscos que como descuidadamente o assaltavam, via-se perfeitamente aparecer o filho do mato sob o invólucro mentiroso do cidadão. Um observador veria sob as vestes da moda bater o peito do matuto ingênuo e simples. Para os que o cercavam, porém, o passageiro do Madeira era um moço do tom que viera trazer da capital as últimas modas e as últimas notícias. Era um objeto de inveja, porque decerto excitaria a imaginação de todas as moças da terra (SOUSA, 2003, p. 41-2).


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A relação entre o meio e a influência deste sobre a personalidade também é vista na descrição de Mariquinha. Deixa-se claro que, “educada como o fora, a sua incapacidade era real para as lutas do galanteio”. A menina apresentava uma excessiva timidez e um extraordinário acanhamento, mas quando estava com suas amigas íntimas era outra pessoa, existindo “em sua alma aquela contradição frequente nos espíritos que uma educação rigorosa e acauteladora tem enchido de timidez, fazendo-os retrair-se e concentrar-se, tolhendo-lhe as livres manifestações”. A moça se tornou assim por causa da educação recebida da mãe, uma mulher que “não sabia ler nem escrever, grosseira em excesso, de uma baixeza de linguagem e de sentimentos”, que a maltratava e pretendia ter “sobre a filha o direito do senhor sobre o escravo”. A menina, fraca e tímida de caráter, andava sempre com os olhos vermelhos, do “pranto frequentemente vertido”. A moça só não chegou às últimas consequências dessa educação repressora, porque foi levada para Santarém, aos cuidados de uma senhora portuguesa, que conseguiu desenvolver na menina os “dotes de espírito que a primeira educação tinha quase apagado”, adquirindo também “modéstia de maneiras”. De toda forma, a timidez e o acanhamento permaneceram e “as suas grandes virtudes ficavam como que ocultas sob aquele modesto invólucro, e só para quem a conhecesse bem, Mariquinha poderia revelar-se” (SOUSA, 2003, p. 56). Nos capítulos publicados na Revista também há uma mudança de foco. Na conversa entre o capitão Matias e Emília, na botica, percebe-se que a pergunta recai sobre se Miguel gostava de Mariquinha, e em livro dá-se o contrário. Tudo isso é perceptível pela mudança de gênero na fala do capitão, de “o moço gosta dela?”, no primeiro texto, para “A moça gosta dele?”, em livro. No capítulo 6, “A ideia do coronel Sangrado”, o narrador já mostra que enquanto na cidade todos falavam do casamento entre Miguel e Mariquinha, o moço, que estava no Paraná-mirim, “ardia pela filha do tenente Ribeiro, e era presa de sentimentos contrários, de uma paixão viva” (SOUSA, 1877, p. 148). Essa frase é retirada da versão em livro, não antecipando acontecimentos futuros e deixando a história se voltar para o amor que Mariquinha sente por Miguel e, no final, sua tristeza.


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Emília, que aparece na botica, não tendo outras participações na história, é descrita com sensualidade. A moça é faceira, tem entre 18 e 20 anos, e é escrava do coronel Sangrado. Aliás, a palavra escrava aparece apenas na primeira versão, substituída por crioula. A descrição da moça, que recebe o epíteto de “chibante”, recai sobre seu vestido “extremamente decotado”, usando alecrim e manjerona atrás da orelha; sendo “faceira e dengosa, ria-se a todo o momento, deixando aparecer duas ordens de magníficos dentes, pequenos e afiados”. Na transposição desses primeiros capítulos para o livro, Inglês de Sousa também retirou uma remissão ao leitor do capítulo 2 – “imagine-a o leitor”-, alguns parênteses com explicações sobre a história (sobre Óbidos – “porque em Óbidos não há quintais murados”, sobre a botica do Anselmo, “como em todas as terras pequenas, era o centro das intrigas” e também sobre o Uricurizal, “não vale dez réis de mel coado”), e as notas de rodapé que informavam ao leitor as passagens que ligam o romance a’O cacaulista. A essência de O coronel Sangrado já está nos primeiros capítulos da Revista, revelando que o autor, como nos outros livros e contos publicados na mesma época, mostrase filiado à estética realista, da forma como ele a compreendeu . No entanto, o título de inaugurador da estética naturalista, por antecipação ao romance O mulato de Aluísio Azevedo, de 1881, dado por alguns estudiosos, é questionável, visto que não é possível afirmar que o romance que se lê hoje, estabelecido pela edição de 1882, é o mesmo de 1877. A versão publicada em livro foi reescrita, com alterações, exclusões e acréscimos, como se observou nos apontamentos feitos sobre os primeiros capítulos do romance publicados na Revista . Cabe ressaltar que Sousa também revisou seus contos para a edição de 1893, dos Contos amazônicos. Considerações Finais Em 1882, ao mencionar O coronel Sangrado em sua crítica, Távora expõe as formas pelas quais o romance é escrito, afirmando que é “una evolución que recomienda el escritor al examen del futuro historiador de la literatura brasilera” (TÁVORA, 1882, p. 236-7). Ainda valorizando os


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primeiros romances de Sousa, sustenta que são “libros de mérito”, mas que o próprio autor os considera “meros ensayos”(Ibidem). Sousa não se pronuncia sobre os comentários de Távora, no ano em questão, dedica-se à advocacia e à política, deixando de lado a imprensa e a literatura. Nem mesmo a publicação em livro de O coronel Sangrado é divulgada pelo autor. Fato que provavelmente concorreu para o romance cair no esquecimento. Contudo, ao revisar a História Literária Brasileira, os críticos do século XX trouxeram à luz o romance de Sousa. Assim sendo, não só O coronel Sangrado, como também O cacaulista e História de um pescador , ganharam uma segunda edição em livro, pela editora da UFPA. No entanto, a participação do autor na imprensa ainda não tinha sido estudada, o que traz novos subsídios para se repensar a obra do escritor paraense. A publicação dos capítulos de O coronel Sangrado na Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras não correspondendo ipsis litteris à publicação em livro, nos leva a questionar novamente o título de inaugurador da estética naturalista dado ou explicado pelos críticos. Como o livro só foi publicado na íntegra em 1882, então Inglês de Sousa já conhecia toda a polêmica levantada por O primo Basílio (1878), a publicação de O mulato (1881) de Aluísio Azevedo, a divulgação dos livros de Eça de Queiroz, Flaubert, Zola, e mais perto dele, o livro O naturalismo em literatura (1882) de Sílvio Romero. É provável que o argumento principal do romance já estivesse pronto em 1876, mas o estilo naturalista encontrado em alguns episódios pode muito bem ser o resultado de uma reescrita/revisão para a publicação de 1882. Isso explicaria os traços naturalistas do romance, que chamaram tanto a atenção dos críticos no século XX. Ainda não é possível pôr uma pedra na questão, em relação às modificações feitas pelo autor na reescrita da obra, pois somente com o manuscrito completo poder-se-ia afirmar qual o verdadeiro estado da obra no ano de 1877. Pelas evidências levantadas, a disputa entre Inglês de Sousa e Aluísio Azevedo, pela primazia de inaugurador da estética naturalista, está abalada; no entanto, nada impende de afirmar que o autor paraense é um realista com seus romances e contos.


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Referências A REVISTA nacional. Gazeta de Campinas . Campinas – SP, p. 4, 31 de jul. 1877. FERREIRA, Carlos. Luiz Dolzani. Correio Paulistano, São Paulo, p. 1, 28 maio 1876. O CORONEL Sangrado. Jornal da Tarde, S. Paulo, 15 jan. 1881. OCTAVIO FILHO, Rodrigo. Inglês de Sousa. 1º centenário de seu nascimento. Rio de Janeiro: Editora Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1955. PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira : prosa de ficção de 1870 a 1920. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1957. PUBLICAÇÕES. Correio Paulistano, S. Paulo, p. 1, 14 jan. 1877. REVISTA dos jornais. Correio Paulistano, São Paulo, p. 2, 12 maio 1876. ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. (1830-1877). Tomo II. Rio de Janeiro, Garnier, 1888. _______Provocações e debates. Contribuições para o estudo do Brasil social. Porto: Livraria Chardon/Imprensa Moderna, 1910. SOUSA, Inglês de. O coronel Sangrado: (cenas da vida do Amazonas). Belém: EUDFPA, 2003.p. 36. ________ O coronel Sangrado. Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras, São Paulo, out – dez 1877. ________O coronel Sangrado : (cenas da vida do Amazonas). São Paulo: Tipografia do Diário da Manhã, 1882. ________Ao leitor. I: SOUSA, H. Inglez de (Herculano Inglez). História de um pescador: (Cenas da vida do Amazonas). Belém: EDUFPA, 2007. TÁVORA, Franklin. Escritores do Norte do Brasil. A Semana, p. 363, 26 nov. 1887. ________Publicações da quinzena. Ilustração Brasileira , Rio de Janeiro, n. 35, p. 181, 1º dez 1877. ________.La literatura brasilera – escritores del Norte del Brasil. Nueva Revista de Buenos Aires, Buenos Aires, Ano II, Tomo V, Buenos Aires – Argentina, 1882. Ano II, Tomo V.


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“Palavras impublicáveis”: o que o acervo de Carlos Drummond de Andrade revela sobre sua poesia erótica Unpublishable words: what Drummond’s archive reveals about his erotic poetry Mariana Quadros* RESUMO: O acervo de Carlos Drummond de Andrade ainda não suscitou leituras suficientes para a observação da variedade e da riqueza dos documentos coligidos pelo escritor. Além do material salvaguardado pela Fundação Casa de Rui Barbosa e pelo Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, há diversos registros dispersos por arquivos públicos e textos divulgados em revistas. Alguns deles – como esboços, entrevistas ou trechos críticos encontrados em cartas – podem permitir leituras inovadoras dos poemas drummondianos. Os versos eróticos, pela insistência com que são mencionados nos documentos investigados, parecem ser os que mais se beneficiam das informações apresentadas em outros suportes que não o livro. Daí dedicarmos este artigo a uma revisão da poesia erótica de Drummond a partir de hipóteses propiciadas pela investigação de fontes primárias. PALAVRAS-CHAVE: Carlos Drummond de Andrade. Erotismo. Fontes primárias.

________________________ * Doutora em Teoria Literária pela Faculdade de Letras da UFRJ .Docente do Colégio Pedro II (Rio de Janeiro).

ABSTRACT: Carlos Drummond de Andrade’s archive has not raised enough readings to make clear the variety of the documents collected by the writer. In addition to the material safeguarded by Fundação Casa de Rui Barbosa and Instituto Moreira Salles, in Rio de Janeiro, there are also several texts published in magazines and many records scattered in public archives. Some of them – such as sketches, interviews or critical passages in letters – could lead to new reviews of Drummond’s work. The erotic verses are very mentioned in the documents investigated. So they probably are the most up benefiting from information found in primary sources. Therefore we start with hypotheses provided by primary sources to read Drummond’s erotic poetry. KEYWORD: Carlos Drummond de Andrade. Eroticism. Primary sources.

À obra de Carlos Drummond de Andrade têm sido dedicadas tantas leituras que não será rara a sensação de desnorteamento do pesquisador diante de material ao mesmo tempo tão rico e tão explorado. Inesgotáveis, a poesia e a prosa drummondianas certamente continuarão


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a pemitir interpretações inovadoras àqueles que se arriscarem a enfrentar a complexidade dessa escrita. O acervo de Carlos Drummond de Andrade, também bastante profícuo, não tem suscitado suficientes investidas dos críticos, contudo. Meticulosamente organizado pelo autor, seu arquivo – salvaguardado pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Casa de Rui Barbosa (AMLB/ FCRB) e pelo Instituto Moreira Salles – pode propiciar leituras imprevistas e mesmo inacessíveis sem a consulta às fontes primárias. Este trabalho pretende demonstrar tal produtividade por meio da apresentação da análise de alguns poemas drummondianos em confronto com fontes primárias a eles concernentes. Essa abordagem parece se justificar devido à importância assumida pelo registro da atividade literária para o autor. De fato, o cuidado com os procedimentos de transmissão da obra constitui uma das faces de Drummond certamente não de somenos relevância. Já em 1966, em seu diário, ele lamentava a falta de apoio do governo para a criação de um instituto que preservasse o legado de Cecília Meirelles. Em 1972, uma crônica do poeta inspiraria a futura fundação do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Casa de Rui Barbosa. A inclusão do acervo literário no patrimônio público brasileiro foi um dos grandes legados do poeta. A despeito das preocupações de Carlos Drummond de Andrade com esse patrimônio, o desejo preservador conviveu constantemente com procedimentos destrutivos quando da constituição de seu acervo. Tal arruinamento faria parte de todo acervo, poderíamos retificar, mas o dele chama atenção pela sistemática ordem aplicada aos documentos. É possível reconhecer nesse legado uma escrita que ilumina a obra poética drummondiana. Devido à variedade de documentos e gestos que compõem essa escrita, recortamos o objeto de nossa análise de modo a esclarecer – pelo exemplo singular – procedimentos de rasura e conservação que talvez possam ser elucidativos dos modos como Carlos Drummond de Andrade interveio na transmissão de seu legado são aqueles acerca de sua poesia erótica. Eles são também, entre os documentos deixados pelo escritor, os que mais evidenciam os desafios do pesquisador que se dedica à


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análise das fontes primárias. Por isso destinamos este artigo a uma revisão da poesia erótica de Drummond a partir de questões suscitadas pelas fontes encontradas em revistas e em documentos pessoais preservados no acervo do autor, na Casa de Rui Barbosa. 1 Em busca de poemas perdidos: vestígios, hipóteses O trabalho com as fontes primárias muitas vezes propicia hipóteses inovadoras a partir de encontros fortuitos e surpresas. Por isso, traço um breve percurso das questões suscitadas por um documento encontrado ao acaso entre os muitos registros consultados no AMLB da Fundação Casa de Rui Barbosa. O que primeiro me chamou atenção na poesia erótica de Carlos Drummond de Andrade não foram os poemas de O amor natural , publicado em 1992, quase cinco anos após a morte do autor. Instigou-me inicialmente um trecho de carta, encontrado durante minhas atividades como assistente de pesquisa em um projeto acerca do escritor, o Projeto Memória , financiado pelas Fundações Banco do Brasil e Casa de Rui Barbosa. Dedicava-me então à leitura daquela que é talvez a mais extensa correspondência de Carlos Drummond preservada pelo AMLB: a epistolografia trocada com Abgar Renault. Em meio aos muitos documentos consultados, em uma carta de 10 de janeiro de 1954, deparei-me com esta declaração: “A ideia da publicação en secret dos poemas eróticos foi posta de lado: iria desmoralizar-me até a décima geração. Imagine que a notícia chegou a ser publicada nos jornais!”. O excerto revelava a longevidade do problema do erotismo drummondiano, que se iria tornar público décadas mais tarde. Além disso, a passagem inscrevia em um oxímoro as contradições da poesia erótica quando atraída para o espaço social: o escritor pretendeu divulgar os versos, tirá-los de sua obscuridade; porém, no mesmo golpe, queria ocultá-los, mantê-los em segredo ou “en secret”, na expressão velada por outra língua. O drama se mostraria mais complexo ao confrontarmos o trecho da carta a outros registros legados pelo autor sobre o tema. Nos anos 1980, quando as entrevistas concedidas por Carlos Drummond de Andrade já haviam se tornado frequentes, ele passou a recompor em suas declarações


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públicas o dilaceramento exposto na carta de 1954. De umlado, o escritor divulgou a temporalidade instável dos poemas obscenos, levando a crer que os versos inéditos haviam atravessado sua obra: “esses poemas abrangem uma faixa muito longa de vida, não são de hoje”, afirmou em entrevista de 1984. De outro, lançou luz para os textos sigilosos, anunciados como um segredo que ele levaria consigo ao morrer: “Não quis publicar até agora e hesito ainda em publicar – ou antes resolvi não publicar”, titubeou o escritor em entrevista dos anos 1980 (apud FERREIRA, 1992, p. 317). No entanto, a destruição dos versos era desmentida por sua reprodução. Desde a década de setenta, textos eróticos esparsos vinham sendo veiculados pelo autor em edições de arte e em revistas voltadas para diferentes públicos. Esses documentos eram frequentemente lembrados nas mesmas entrevistas em que Carlos Drummond prometia fazer desaparecer o livro obsceno. Um exemplo dessa contradição é verificado na extensa conversa do escritor com Geneton Moraes Neto (2007, p. 32): “Mas publiquei cinco ou seis desses poemas em revistas. Um saiu no Correio Itabirano; um, numa revista de São Paulo; outro, numa revista no Rio”, declarou o poeta logo após garantir que não divulgaria em livro os textos eróticos. Portanto, nem todos os versos estavam fadados à morte quando Drummond sentenciou seu desaparecimento. Nas entrevistas, encontramos o reverso do paradoxo expresso na carta: nesta, o escritor anuncia uma contraditória publicação “en secret” para logo depois descartá-la;naquelas, promete a destruição do que entretanto recorda estar preservado por diferentes periódicos. Diante da diversificação do conflito, podemos estabelecer um arco entre o dilaceramento registrado em diferentes décadas. A respeito do projeto abortado nos anos 1950, lembramos que a publicação restrita talvez permitisse violar o ocultamento dos versos sem infringir seu caráter marginal, foco do prazer transgressivo. Dessa forma, a veiculação dos poemas reproduziria o presumível conteúdo transgressor dos versos. Por outro lado, o anúncio da edição secreta nos jornais inviabilizava a manutenção da face subterrânea daquela escrita. Entretanto, nas publicações esparsas dos anos 1970 e 1980 talvez se realizasse o plano de dar aos textos uma permanência permeada pelo velamento: as revistas


“Palavras impublicáveis”: o que o acervo de Carlos Drummond.. 45 masculinas, perecíveis, e as edições de arte, raras, seriam resguardadas somente por alguns colecionadores ou por arquivos e bibliotecas. Transgredia-se, assim, a morte decretada para os textos sem lhes garantir uma vida pública ampla. Contíguos às páginas voltadas ao consumo do sexo ou em volumes de luxo, os versos teriam um fim próximo ao da matéria de que tratavam: assim como o efêmero êxtase, o gozo dos poemas seria tanto mais intenso quanto os leitores (o autor aí incluído) conhecessem a perecibilidade ou a raridade do material em suas mãos. A hipótese poderia ser validada pela não publicação da coletânea até o momento da morte do poeta. A edição póstuma viria violentar o drama do erotismo drummondiano. Contudo, a pesquisa nas fontes primárias mostrou ser o problema mais complexo. O escritor entregara a alguns amigos e familiares cópias do conjunto de poemas. Desse modo, ele legava a outrem a decisão acerca da divulgação ampla do material. Em 1985, em entrevista publicada no Jornal do Brasil, afirmava que caberia à Maria Julieta dar a palavra final sobre a edição e admitia, rindo, que ela era favorável à produção do livro. Os netos do escritor, seus herdeiros, manteriam a posição. Pouco antes de falecer, Drummond parecia, pois, conhecer o destino de seus versos eróticos. Finalmente estava rompido o nó entre ocultamento e divulgação. Os poemas deixavam de ser um problema. A aporia abre novos caminhos, todavia. Se a edição póstuma expõe o erotismo, o escritor protege-se dele graças à morte. O homem ocultado pelo féretro já não pode ser ferido pela repercussão do livro, a lápide preservando-o de conhecer aquela desmoralização temida desde os anos 1950. Entretanto, a publicação após a morte do poeta não exauriu todos os perigos. Algo permaneceu vulnerável: o conjunto da obra drummondiana, uma vez que a coletânea foi veiculada quando Carlos Drummond não podia mais rebater possíveis críticas. Os versos eróticos ficavam assim suscetíveis aos mal-entendidos não previstos ou rebatidos durante a vida do autor. Poesia para a posteridade, O amor natural é o legado que o poeta não quis testemunhar. A partir desse conflito, longevo, poderíamos propor uma primeira hipótese, em que identificaríamos os versos de


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O amor natural, publicado em 1992, àqueles anunciados na carta de 1954. Dessa forma, tendo sido produzidos na década de 1950, os versos eróticos seriam um novo fruto da retração reconhecida na lírica do autor publicada em tal período. Nesse sentido, o erotismo seria a face solar do retraimento social estudado detalhadamente pela fortuna crítica mais atual de Drummond, sobretudo por Vagner Camilo (2001) e Betina Bischof (2005) em seus livros dedicados ao tema. Aquela proposição poderia ser confirmada pelas declarações do escritor na imprensa resumidas acima, especialmente por aquela que explicitava a temporalidade incerta dos poemas eróticos. Outras fontes pareceram comprovar a identidade entre a escrita erótica de outrora e aquela que veio à luz postumamente. Maria Lucia do Pazo Ferreira, pesquisadora a quem Drummond remeteu seus poemas eróticos inéditos, localiza a gênese dos textos nos anos 1940, em uma cronologia pouco definida: ora os textos são situados no pós-guerra, ora entre 1939 e 1945. Na página 65 de sua tese (op. cit.), Maria Lucia do Pazo Ferreira afirma: “No após guerra – quando os poemas foram criados – a repressão da sexualidade ainda era vigorosa e a permissão de falar sobre o sexo, resumia-se ao discurso científico.” Na página 218, ela se contradiz: “Conquanto os poemas de O amor natural tenham abordado a feição erótica em diversas épocas – inclusive este 'No pequeno museu sentimento' evoque reminiscências do pastoril desde o helenismo – foi na virada do século XX que Drummond produziu esta obra, entre 1939 e 1945.” Lygia Fernandes, amante do escritor ao longo de três décadas, é mais precisa: “Não posso provar porque, depois de batidos a máquina, os poemas eram picados e jogados no lixo, mas havia poemas de 1948” (apud MORAES NETO, op. cit., p. 353). Tal hipótese, baseada em declarações pessoais, é sedutora a ponto de cegar o pesquisador – de cegar-me. O documento íntimo, registro com ares de confidência, encanta por parecer um indício irrefutável: uma promessa de verdade imediata. No entanto, a historiografia fez-me lembrar os riscos advindos da crença ingênua na autenticidade dos documentos. Estudiosos como Ângela de Castro Gomes, Philippe Artières e Cristophe Prochasson permitiram-me conceber que a manutenção de um arquivo pessoal, mesmo quando assistemática, participa de uma


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escrita da memória. Mais além, constitui as peças na defesa de um julgamento inconcluso, a ser prosseguido ainda após a morte do autor: O arquivamento do eu não é uma prática neutra; é muitas vezes a única ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e tal como ele desejaria ser visto. Arquivar a própria vida é simbolicamente preparar o próprio processo: reunir as peças necessárias para a própria defesa, organizá-las para refutar a representação que os outros têm de nós. Arquivar a própria vida é desafiar a ordem das coisas: a justiça dos homens assim como o trabalho do tempo (ARTIÈRES, 1998, p. 31). Na tentativa de desafiar o julgamento dos homens, o arquivista busca legar um acervo que se possa crer independente de seu controle sobre os documentos preservados. De tal obscurecimento do domínio do autor sobre o arquivo depende o feitiço a ser oferecido ao público: um retrato excessivamente fiel, submisso, vitorioso sobre o tempo, pois faz valer a vontade do escritor mesmo quando sua vida é finda. Os estudos contemporâneos sobre arquivo possibilitaram que eu não ficasse cativa desse fascínio, levando-me a reconhecer a necessidade de chamar atenção para o gesto enunciativo que deu origem ao acervo legado. O avançar das pesquisas fez-me ver como essa etapa seria fundamental para empreender uma leitura que não apenas se submetesse à história do erotismo drummondiano construída pelo autor em cartas ou nos jornais. No processamento dos poemas eróticos por Drummond, o escritor, Lygia Fernandes e Maria Lucia do Pazo Ferreira não são as testemunhas mais confiáveis: os primeiros por serem interessados; a última por conhecer acerca da origem dos textos somente o que lhe informou o escritor. Suas declarações não constituem, portanto, prova suficiente de que reencontremos em O amor natural os poemas eróticos drummondianos de meados do século XX. O problema foi se mostrando mais e mais complexo. O convívio com o material de arquivo impeliu-me a rever o sentido das declarações de Carlos Drummond de Andrade acerca de sua poesia erótica. Percebi ser excessivo propor que ele desejasse lançar luz sobre o projeto abortado em 1954 em suas declarações à imprensa. Significativamente, os indícios do volume secreto foram encontrados em documentos mantidos no acervo de outro escritor, sobre o qual a ingerência de Drummond era minimizada. As peças do processo de


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arquivamento fogem ao controle do autor. Em sua declaração, inexata – “esses poemas não são de hoje” –, Carlos Drummond apenas expandia a fenda aberta por sua escrita erótica. Além disso, os textos mencionados na carta a Abgar Renault aparentemente não foram conservados. Minha hipótese mostrava-se improvável. Tampouco seria possível comprovar sua falsidade, uma vez que ela partia de um vazio: não temos mais acesso ao erotismo de outrora. Considerando o extenso acervo legado pelo autor, o descarte se tornará significativo: participará da escrita da história da poesia drummondiana. Tal destruição ativa é afirmada diversas vezes por Carlos Drummond de Andrade em suas declarações a respeito de O amor natural. O discurso marginal à poesia parece instaurar, assim, um vazio que não permite reencontrar a pretensa verdade dos originais apagados. Ou, antes, faz vislumbrar a verdade possível apenas na ruína. Essa fratura nos leva a questionar como abordar o material deixado pelo escritor em seu arquivo quando nele inscreve sucessivos e aparentes vazios. A problemática subjacente a essa interrogação é a da herança, da destruição. Na obra de Drummond, o arruinamento é um tema constante. Não raro, a dissolução é gozada pelo sujeito ou valorizada por ele. Desde Alguma poesia, o poema “Sabará” faz o elogio das ruínas de nosso patrimônio. Sintomaticamente, a destruição é visada em uma das cidades históricas mineiras, alvo principal do projeto de salvaguarda levado a cabo, alguns anos depois, por Rodrigo Mello Franco de Andrade, no Iphan, em que Drummond trabalhou durante mais de uma década. Em “Sabará”, como em outros textos do poeta, o dispêndio é um problema complexo: privilegia-se o fragmento decorrente da destruição em detrimento do monumental. Além disso, a adesão às formas decompostas de nosso patrimônio pode ser compreendida como parte do prazer com a destruição da família – não esqueçamos que Rodrigo Mello Franco e Carlos Drummond eram filhos de importantes clãs mineiros. Nesse contexto, o apequenamento de si e a vontade de morte, encenados diversas vezes na poética drummondiana, atravessam o gozo da ruína porque instituem o fim de uma violenta linhagem A ruína, claro está, não tem um tratamento exclusivamente disfórico. Ao contrário, Carlos Drummond


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de Andrade faz ver a potência dos destroços. Em suas diversas declarações acerca de sua poesia erótica, Drummond lança luz para os vazios em seu arquivo: os poemas não estão lá ou não ainda. Ele o faz de modo a se contrapor ao risco de petrificação de sua obra? Temerá ele a mitificação de seu acervo em abordagens que apenas considerem a positividade dos documentos resguardados? A obra literária certamente resiste à paralisante sistemática da memória, que pode mover a organização e a fundação dos arquivos, segundo Henry-Pierre Jeudy (1990). Quando a conservação obceca, o registro do tempo pode ser apagado – os documentos irmanados em uma indiferenciada contiguidade. Este será o caso de uma escrita arquivística fundada no pavor da evanescência. Não é este o caso do acervo de Drummond – ou não inteiramente. Nele, há uma elaboração dos traços deixados, em que se entretece o patrimonial à dilapidação. A complexidade da obra de Drummond permite encontrar, em convívio ou em tensão com a escrita do desmoronamento, a manutenção da herança por meio da escrita (na poesia e nos arquivos) e também a persistência do sujeito e da família em meio aos sucessivos rituais poéticos de destruição. Os caminhos da poesia erótica drummondiana nos levam a mais bem conhecer esse complexo entrelaçamento entre permanência e morte. Propomos ver na poesia póstuma parte de uma história fragmentada, composta de vazios, legado maldito. Os vestígios dessa outra escrita erótica, apagada, foram encontrados em documentos preservados em um acervo de outro escritor, sobre o qual a ingerência de Drummond era minimizada. Do mesmo modo que a literatura, o arquivo resiste à uniformização. Esse traço é ainda mais marcante nos arquivos literários, cujo conteúdo não é meramente histórico. Documentos pessoais convivem com escritas limítrofes à literatura. É importante, portanto, que a abordagem do material aí encontrado caminhe em direção oposta à da petrificação do arquivo ou da santificação dos traços do escritor. É preciso ler vestígios, traços de um processo de escrita obscurecido, mais do que marcas de uma verdade a ser encontrada. Para tanto, confrontamos textos diversos, de modo a delinear essa trajetória, marcada pela reprodução, mas também pelo dispêndio.


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A edição póstuma coroa uma trajetória marcada além disso pela mobilidade temporal, sem que isso constitua uma fraqueza que seja preciso superar a todo custo. Ao contrário, a indefinição é um traço que podemos explorar para fazer jus à importância dessa obra. Em primeiro lugar, a instabilidade confronta o marco temporal que vem sendo usado para definir o valor de parte da poesia de Carlos Drummond de Andrade. Em 1962, sua “figura de poeta estava completa”, segundo João Alexandre Barbosa (2002, p. 45). Os volumes publicados depois desse período seriam “desiguais e menos definidos que os livros marcantes do período em que nomearam a crista e o arco da história (1930-1962)”, defende Wisnik (2005, p. 24). Esse pesquisador, porém, não deixaria de notar que os livros editados após 1962 trazem “poemas e problemas que os estudos críticos parecem ter abordado pouco.” (idem, p. 24) Talvez essa omissão decorra mesmo de que se haja criado uma falsa totalidade a recusar os volumes produzidos na velhice do autor. O amor natural estaria, por sua data de publicação, entre essas coletâneas. Todavia, a poesia obscena pode ter atravessado a obra de Carlos Drummond de Andrade. Levando isso em conta, seria adequado restringir a leitura dos textos de O amor natural ao momento cronológico em que foi publicado, em 1992, após a edição de Amar se aprende amando e antes de Farewell? Outras pesquisadoras do erotismo drummondiano já levantaram dúvida semelhante, embora restringissem o problema ao lugar instável do volume no seio dos livros publicados a partir dos anos 1970. Em estudo de 1987, Rita de Cássia Barbosa interrogou se alguns poemas originários de O amor natural não teriam sido deslocados para livros dos anos 1970 e 1980. A pergunta partiu da aposição, em publicações na imprensa, de poemas depois incluídos na edição póstuma a textos já divulgados em livros do período. A dúvida foi adensada pela observação da semelhança temática e formal entre alguns textos eróticos e outros de A paixão medida, Corpo e Amar se aprende amando. A estudiosa deixava aberta a questão, reforçando nossa hipótese sobre a instabilidade da coletânea no seio da obra de Carlos Drummond de Andrade. Alguns anos mais tarde, em livro de 1995, Mirella Vieira Lima propôs integrar a poesia obscena à poética drummondiana inaugurada em fins dos anos 1960 e desenvolvida na década seguinte com a


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divulgação dos volumes que comporiam Boitempo. Para esse cálculo, partiu de um exemplar único de O amor natural confiado em 1977 a José Mindlin e das publicações na imprensa e nas edições de arte, já mencionadas. Ao fazê-lo, ela ignorou os diversos confrontos que se podem estabelecer entre os versos lascivos e os textos editados no período em que se entregou a raridade ao bibliófilo: obliterou a distância a separar o dispêndio próprio ao erotismo e a reprodução das cadeias familiares apresentada em Boitempo; além disso, olvidou a diferença substancial entre a montagem dos poemas eróticos e aquela privilegiada nos livros que traçam uma narrativa biográfica. Por não reconhecer a dificuldade de datar os versos obscenos, o estudo de Vieira Lima não chega a confirmar a radical instabilidade de O amor natural. Apesar disso, novamente vemos um pesquisador frente ao problema lançado pela temporalidade estranha a que foi relegado o volume – após a morte, mas quando em vida? A biografia do livro é a tal ponto incerta que seria possível inverter o ponto de vista adotado pelas pesquisadoras. Teria o poeta direcionado sua escrita dos anos 1970 e 1980 para que o volume temido fosse mais bem assimilado? A pergunta, claro está, não tem resposta. Entretanto, ela evidencia a inadequação de pontos de vistas baseados em marcos temporais quando se quer compreender O amor natural. Concebidos à margem, os poemas eróticos de Carlos Drummond estimulam uma leitura que não os encarcere nos limites da coletânea póstuma ou em uma “fase” da obra do autor, divisão de resto quase sempre questionável. Por isso, não pretendo definir a data dos textos. Ainda menos me importou ao fim encontrar os originais mencionados na carta de 1954. Interessa-me sobretudo compreender a interação desse volume insituável com o restante da poesia de Carlos Drummond de Andrade. Parece-me advir dessa relação grande parte do perigo constituído pela literatura obscena: vergonha, hesitação, adiamento inscrevem nos registros acerca de O amor natural um risco que talvez não decorra apenas do tema, pouco afeito á integração em uma sociedade indecisa entre o conservadorismo e a superexposição da intimidade sexual. É possível que a ameça se estenda ao legado do autor.


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Tal problema colocou-me frente a interrogações que iam além da leitura dos versos divulgados no volume de 1992. Como compreender a anunciada “desmoralização” do autor pela escrita erótica? De que forma essa ameaça extravasa os contornos da imagem do homem Carlos Drummond de Andrade? O que tal desonra tem a dizer acerca do papel do escritor em uma sociedade que o tornou célebre não apenas por seus livros, mas também por sua intervenção nos jornais e pela participação na vida pública nacional? Aquele misto de vergonha (“en secret”) e de prazer (o erotismo resistindo ao longo de décadas ainda que ameaçador) poderá mover uma nova leitura dos versos eróticos, dos outros versos? Como a obra deixada na obscuridade transgride a escrita legada por Carlos Drummond de Andrade nas coletâneas publicadas desde sua estreia? De fato a transgride? E, se o faz, é graças a procedimentos próprios do erotismo durante anos obsceno? No espaço exíguo deste ensaio, não responderemos de forma extensiva a essas questões. Entretanto, é possível demonstrar de que forma as interrogações suscitadas pelo material de arquivo podem enriquecer a leitura do conjunto de poemas lançados em O amor natural ao chamarem atenção para a importância de que esses versos sejam analisados em comparação com o conjunto da obra de Carlos Drummond de Andrade. 2 Abre-que-fecha-que-foge: sobre os poemas tornados públicos A publicação em 1992 de O amor natural prometia esclarecer o tema da sexualidade em uma obra marcada, desde seu lançamento em 1930, pela angústia decorrente do “sequestro sexual”, na expressão de Mário de Andrade em carta de 1º de julho de 1930 ao amigo mineiro (ANDRADE & ANDRADE, 2002, p. 390-1). O sexo, demonstra Mário, não é plenamente sublimado na obra drummondiana. Há sempre um resíduo: a inquietude decorrente da repressão sexual. Os primeiros poemas eróticos publicados na imprensa nos anos 1970 pareciam revelar o aspecto apaziguado daquele mesmo movimento de inscrição do desejo, problematicamente realizado desde Alguma poesia. Da


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___________________ 1 A expressão “vontade interdita” se encontra em “Girassol”, de Brejo das almas (1934): “havia também (entre vários) um girassol. A moça passou. / Entre os seios e o girassol tua vontade ficou interdita” (ANDRADE, 2002, p. 55). “Coito” é o título do poema publicado no exemplar de novembro de 1975 da revista Homem . O texto foi incorporado, com alterações, a O amor natural sob o título “A castidade com que abria as coxas”.

“vontade interdita” nos primeiros livros até o coito exposto nos poemas eróticos,1 poderíamos observar um percurso de reconciliação com o sexo, tornado o fundamento da poesia. É significativo, nesse sentido, que um dos textos eróticos veiculados na imprensa – “Amor – palavra essencial” -conclame o amor a guiar o canto poético, já que constitui uma força capaz de unir os sexos e as palavras. Porém, sob a aparente pacificação, reside ainda a inquietude. Não mais aquela limitada ao tema abordado, como no “sequestro sexual” engenhosamente observado por Mário de Andrade na fase inicial da escrita drummondiana. Trata-se da manutenção de um problema complexo analisado por Antonio Candido no célebre ensaio “Inquietude na poesia de Drummond”: a desconfiança de Drummond em relação à legitimidade da própria poesia. Especialmente nos livros dos anos 1940 e 1950, o poeta hesita entre a exposição dos anseios individuais e a preocupação com os problemas sociais. Por isso, a poesia se torna um processo de constante embate entre o dito e o que se excluiu do poema. A partir do pensamento de Candido, mas sem nos concentrarmos na angústia decorrente da “tirania da subjetividade” analisada por ele, podemos estender a inquietação com a escrita ao conjunto da obra drummondiana. De fato, a criação em Drummond é indissociável da “dinâmica de adentramento-distanciamento do processo poético”, nos termos de Marlene de Castro Correia (2002, p. 116). Embate similar deixa marcas na escrita erótica de Carlos Drummond de Andrade, conforme comprovam as declarações do autor acerca dos poemas. Esta não é uma conclusão evidente, entretanto. À primeira vista, a passagem da carta de Drummond a Abgar Renault e os trechos de entrevistas compilados não parecem confirmar a inquietude do autor diante da própria produção, que defendemos ser um dos fundamentos da escrita erótica drummondiana. Aparentemente, explicita-se aí somente o receio do poeta com a mácula de sua imagem pública. Talvez essa motivação não esteja excluída do adiamento da revelação dos textos. Contudo, quando se leva em conta que a escrita erótica vinha sendo realizada (e questionada) por Drummond pelo menos desde a década de 1950, aquela dinâmica de adentramento e distanciamento da criação poética revela-se como um dos cernes da recusa à publicação.


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Um ensaio crítico publicado em Passeios na ilha em 1952, dois anos antes da redação da carta citada, ajuda a compreender a constante problematização dos poemas eróticos por Carlos Drummond de Andrade. Em “Maria Isabel: canto amoroso”, o escritor observa que o amor em Visão de paz “só à primeira vista é físico e individual; logo se adivinha que se reveste de sentido coletivo” (1975, p. 131). Ele acrescenta: “Maria Isabel é solidária e fraterna; o fundo de sua natureza se nos revela tanto mais puro quanto mais despida de ênfase socializante é a sua expressão” (idem, p. 132). O trecho, embora se detenha em obra alheia, parece uma defesa do revés sofrido pela poesia drummondiana em 1951, com Claro enigma, e já anunciada em 1948, em Novos poemas. Nesses livros, Drummond afasta-se da “ênfase socializante” de Sentimento do mundo (1940), José (1942) e A rosa do povo (1945). De acordo com excelente estudo de Vagner Camilo (op. cit.), a transformação foi acusada, em diferentes críticas publicadas na imprensa, de alheamento das lutas concretas, subjetivismo, recusa à comunicação. Já se vê que o receio de Drummond, exposto na carta a Abgar Renault, não dizia respeito apenas à difamação do homem que escreve, mas antes de tudo ao poeta e à sua poesia. Note-se, a esse respeito, que a crítica de esquerda vinculada ao Partido Comunista Brasileiro, fonte de parte dos ataques à poesia de Drummond na década de 1950, estigmatizava o amor como tema próprio dos que se entregam a “sobressaltos egoístas” – para retomarmos a expressão de um dos quadros do PCB, Cárrera Guerra (apud MORAES, 1994, p. 117). No ensaio sobre a poesia de Maria Isabel, o escritor rebate as possíveis críticas de alheamento e individualismo contra poemas centrados na temática amorosa. O texto, anterior à desistência em 1954 de se publicar a coletânea erótica, defende que o viés solidário da poesia pode se realizar mesmo naqueles textos despidos da ênfase socializante. Por que então Drummond resiste à publicação? Uma possível resposta, a que nos interessa analisar, leva adiante a inquietude com o processo poético. Também essa interrogação é iluminada pelo ensaio a respeito da lírica amorosa de Maria Isabel. Afirma Drummond (op. cit., p. 133): “Os poetas se iludem como os outros homens, e este livro de Maria Isabel é fruto de generosa ilusão. Ela antecipou a hora da canção feliz”. Na década de 1950, seria


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também precoce a publicação dos textos eróticos? As circunstâncias sociais impediriam a expansão do sentido coletivo subjacente à comunhão pelo amor? Nova carta de Drummond a Abgar Renault confirma essa leitura: Já ia escrever-lhe reclamando o poema do rapaz, mencionado em seu último cartão, quando ele me chegou em outro envelope. Gostei da coisa, simples e marcante, mas acho um pouco difícil que alguma revista o publique. Primeiro, porque praticamente não existem mais revistas literárias neste Brasil já tão desenvolvido em petróleo, automóveis e biquínis. Depois, porque uma ou outra publicação que circula por aí, com algum espaço reservado à poesia, continua observando aqueles mesmos critérios morais estritos de antes da era espacial e que são hoje uma forma final de hipocrisia impressa (Arquivo Abgar Renault, AMLB/ FCRB).

O texto, datado de 28 de março de 1966, atesta a persistência da desconfiança nas possibilidades de uma leitura poética não moralista. Além disso, acrescentamos a partir da interação do epistolário com a escrita ensaística de Drummond, o próprio aspecto jubiloso dos poemas parcialmente revelados a partir dos anos setenta arrisca revelarse inócuo (uma ilusão) se não se coaduna com condições sociais favoráveis à leitura da fusão dos corpos como um modo de solidariedade. Estamos, pois, frente ao problema das relações entre lírica e sociedade. A questão, complexa em si, é particularmente rica na obra de Carlos Drummond de Andrade. Em sua poesia, mesmo naqueles livros aparentemente distanciados da “praça de convites”, é possível observar a tensão entre transitividade e intransitividade do texto literário. Retomando o pensamento de Adorno, importantes obras críticas, como as de Vagner Camilo e Betina Bischof, demonstraram que o retraimento do sujeito participativo drummondiano na década de 1950, mesmo quando constitui uma espécie de antítese da sociedade, é ainda um fait social. Além disso, até em A rosa do povo, a obra mais significativa do engajamento drummondiano o projeto de participação é constantemente minado pela dúvida em relação à eficácia da poesia como instrumento de ação. Ao se fundar na inquietude diante da palavra e de sua inserção social, a poesia drummondiana expõe-se ao perigo. Torna-se uma “poética do risco”, na expressão de Iumna Simon.


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Os poemas eróticos não se dissociam do perigo a que se submete a escrita em tensão entre autonomia e transitividade. Ao contrário, a recusa inicial à publicação será substituída, na década de 1970, pela revelação irônica dos perigos indissociáveis do erotismo poético. A inquietude com o processo de criação se revela não apenas no tecido dos textos, mas em seus espaços de publicação. Veiculados em revistas pornográficas ou em edições de arte, os poemas revelam a fragilidade do projeto de comunhão por meio do sexo (e da palavra). A divulgação de alguns textos em periódicos como Ele & Ela, Status ou Homem deixa ver a dúvida que acompanha a revelação dos textos eróticos na década de 1970. Nesse espaço, os poemas expõem sua problemática contiguidade à pornografia: como as entrevistas e artigos publicados por diversos intelectuais nas revistas citadas, os poemas instauram um espaço de reflexão; por sua temática, no entanto, são inegavelmente próximos às imagens de jovens nuas divulgadas nas páginas das revistas. Nesse sentido, parecem assumir uma característica recorrente nas definições de pornografia: o efeito de excitação do receptor. A ação da escrita no corpo de quem lê, em seu sexo, aproxima os textos dos tabus – ou mesmo da abjeção – comumente associados ao gozo erótico. O poeta revela, assim, aquilo que teme: o aviltamento do sexo, mais de uma vez criticado em entrevistas concedidas na década de 1980. Afirma Drummond: O fato é que hoje não se distingue mais o erotismo propriamente dito e a pornografia, que é uma deturpação da noção pura de erotismo. Se eu publicasse agora o livro iria enfrentar, por assim dizer, um elenco bastante numeroso de livros em que a poesia chamada erótica não é mais do que poesia pornográfica e às vezes nem isso, porque é uma poesia mal feita, sem nenhuma noção de poética (apud FERREIRA, op. cit., p. 317).

Novamente, o ceticismo atravessa a relação do poeta com a vida literária. Mais uma vez, lucidamente Drummond expõe os riscos a que submete sua produção: de um lado, rejeita a confusão entre o erotismo e a pornografia, palavra tornada fetiche; de outro, atrai os poemas eróticos publicados em vida para o âmbito da mercadoria, da promessa de gozo que sustenta em grande medida a venda de revistas do gênero. O próprio processo de veiculação dos textos parece voltar-se contra eles, ameaçá-los, em uma nova


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face da poética do risco. Drummond hesita e expõe sua inquietude no modo como divulga seus poemas. No outro extremo, em publicações de luxo como Amor, amores e Amor, sinal estranho, os textos eróticos parecem revelar o fechamento a que se arrisca a poesia. A inquietação devido à proximidade entre autonomia e elitização da literatura é reiterada por Drummond em suas reflexões à margem da poesia, como nesta declaração: O tesouro estético do mundo alegra, alimenta, consola os privilegiados, que têm acesso aos seus primores, mas as grandes massas humanas parecem condenadas para sempre a não participar do festival. Eu pergunto se não há um egoísmo fundamental no criador literário, no artista, que se distrai com as formas da beleza, com o jogo sutil do espírito, enquanto a realidade em volta é apenas o esforço pela sobrevivência, sem qualquer horizonte, qualquer Gioconda de museu (2008, p. 92).

Evidentemente, o desencanto agudo em relação à literatura precisa ser questionado em um estudo da poesia drummondiana visto que essa desilusão aparecer de forma diversificada na escrita do autor. O trecho é elucidativo, no entanto, do procedimento irônico que funda a publicação restrita nas edições de luxo, justo em uma poética que tem como um de seus problemas a inserção social da literatura. Essa restrição se torna ainda mais emblemática quando em confronto com o adiamento sucessivo da edição do livro erótico, em movimento oposto ao da precocidade observada pelo escritor na divulgação do júbilo poético por Maria Isabel nos anos 1950. Na escrita erótica, o descompasso entre os poemas e a sociedade torna-se ainda mais intenso uma vez que não se trata apenas de amor, mas de sexo e da “hipocrisia” que pode rondar o tema, para retomar a expressão usada por Drummond em carta citada. Em entrevista ao Estadão em 1987, ele confirmaria a percepção de tal desacordo entre seus poemas eróticos e o tempo em que poderiam ser publicados: “Passaram a moda, não pretendo publicar”. No entanto, como sabemos, a despeito desse descompasso, alguns textos eróticos foram publicados nas décadas de 1970 e 1980. Outros viriam à luz postumamente em edição preparada pelo autor, cujo exemplar com emendas é preservado pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa. A publicação não dirime a inquietude. Após ter sido divulgada a totalidade dos poemas em livro, a inquietação revelaria um novo aspecto. Além da desconfiança em relação à legitimidade da poesia erótica, a dinâmica de adentramento-


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distanciamento do processo poético se faz sentir por meio do confronto estabelecido pelos poemas de O amor natural com o conjunto da obra poética de Carlos Drummond de Andrade. Uma das epígrafes do livro indicia o mecanismo de retomada e inversão realizado pelos poemas. “O que deu para dar-se a natureza” diz o trecho do canto IX de Os Lusíadas. A retomada da epopeia relida em “A máquina do mundo”, de Claro enigma, é significativa, visto que constitui um índice do confronto entre o poema da década de 1950 e textos da coletânea erótica publicada postumamente. Em oposição à recusa da “total explicação da vida” oferecida pela máquina do mundo no poema de Claro enigma, o último texto de O amor natural afirma a aceitação do conhecimento decorrente do sexo: Para o sexo a expirar, eu me volto, expirante. Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo. Amor, amor, amor – o braseiro radiante que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo.

Estabelece-se um jogo especular entre os poemas publicados com quarenta anos de intervalo. Na década de cinquenta, “desdenhando colher a coisa oferta” que se abria gratuita, o texto institui uma poética da perda: A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas.

Uma vez incorporada a perda de um objeto jamais possuído, a poesia se torna melancólica, de acordo com a definição freudiana desse afeto. O objeto ausente torna-se, então, condição do conhecimento – “avaliando o que perdera”, lê-se no poema – e fundamento de uma cosmovisão que pensa o mundo tão somente porque parece dele se afastar. No texto de O amor natural, como no poema de Claro enigma, a problemática do conhecimento persiste, visto que o orgasmo oferece a “explicação do mundo”. Há, no entanto, uma sutil diferença no saber propiciado pelo sexo: já não se trata de uma visada totalizante do mundo, possível apenas no pensamento prémoderno. No poema de O amor natural, o sujeito aceita a máquina, mas já não aquela marcada pelo fechamento e pela totalização e sim pela efemeridade. Por meio dessa aceitação eminentemente moderna, reverte-se a melancolia e afirma-se o


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gozo no momento mesmo em que a perda máxima se insinua: a falência da vida, o fim da potência. A inversão estabelecida pelo confronto entre os textos permite-nos sustentar a hipótese de que O amor natural revela uma face da modernidade drummondiana ainda pouco analisada: aquela que, embora sem ignorar os riscos envolvidos em uma escrita erótica, constitui-se para além da melancolia, da perda, do esvaziamento. Em outros termos: uma poética do gozo, que ao longo de décadas não se deu a ver, obscena. Essa hipótese torna-se ainda mais fecunda uma vez que levemos em conta a dedicação do poeta à escrita erótica pelo menos desde a década de 1950, conforme atesta trecho da correspondência de Carlos Drummond de Andrade já citado. Os poemas eróticos constituem, portanto, uma espécie de suplemento aos diferentes livros publicados. Há outras marcas desse embate além daquele estabelecido com Claro enigma. Veja-se a esse respeito, nos poemas eróticos, o reverso do familiarismo, que predomina na escrita memorialística de Boitempo e dota grande parte da poesia de Drummond de um aspecto trágico. Diz “Adeus, camisa de Xanto”, de O amor natural: “que de tudo nem ao menos/ (seria tão bom, no entanto)/ ficou um filho, uma filha”. Confira-se ainda o anverso do desejo de participação, predominante na lírica drummondiana da década de 1940, exposto em “Era manhã de setembro”: “Pensando nos outros homens/ eu tinha pena de todos/ aprisionados no mundo”. Assim, O amor natural relê, pervertendo, textos ou aspectos significativos de diferentes fases da poesia drummondiana. Por meio dos poemas eróticos, o escritor põe em questão o conjunto de sua própria obra. O risco instaurado pela poesia erótica torna-se, então, inseparável de sua produção e também de sua divulgação. Se, de acordo com Barthes (2008, p. 63), “o texto é (deveria ser) essa pessoa desenvolta que mostra o traseiro ao Pai político”, Drummond parece questionar: será isso possível? Haverá um tempo adequado para a veiculação do canto feliz? Não se pode excluir dessa economia da dúvida a renovação dos questionamentos no livro final de Drummond, Farewell (1996), em que a satisfação e o gozo predominantes em O amor natural são quase sempre substituídos por uma poética da perda. A inquietude, então, se expande. Leva-nos a vislumbrar nessa poesia uma face de nossa modernidade literária que importa ainda conhecer.


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Considerações finais Tendo atravessado a escrita de Carlos Drummond de Andrade durante anos, os versos eróticos do poeta pareceram quase sempre à crítica especializada um suplemento que pouco teria a dizer acerca da obra do autor tornada canônica, sobretudo daquela publicada até 1962. Entretanto, os registros acerca do tema no acervo pessoal do escritor e nos arquivos públicos parecem direcionar a leitura para caminho oposto. A insistência na importância do erotismo por Carlos Drummond e os temores manifestos por ele parecem indicar que os versos fesceninos poderiam ameaçar não só a imagem pessoal do homem famoso, mas também permitir a revisão de sua obra. É provável que justamente devido a essa importância os textos de O amor natural não tenham vindo à luz durante a vida do poeta, mas tenham sido preparados para a publicação póstuma, em edição com emendas encontrada no AMLB. Registrados em um arquivo público concebido parcialmente pelo próprio autor, esses versos – sabia-o Drummond – teriam de vir à luz, assim como os vários registros legados esparsamente por ele acerca dos poemas. Dessa forma, como os amantes expostos nos versos, os textos do livro seriam preservados dos conflitos do mundo durante um período limitado, ao fim do qual – previa o poeta – teriam de enfrentar um contexto que ele julgava destruidor. As previsões não se confirmaram, contudo. O amor natural não pareceu macular a herança transmitida por Drummond. Talvez isso decorra apenas da solidez da obra editada pelo poeta até sua morte ou até 1962, segundo o ponto de vista adotado. Investi em uma outra hipótese, entretanto: quiçá os versos eróticos não hajam abalado o legado drummondiano porque eles também trazem ricas novidades que importa compreender. Esta foi a aposta deste trabalho. Referências ADORNO, T. Palestra sobre lírica e sociedade. In: Notas de literatura I . Tradução de J. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/ Ed. 34, 2003. p. 95-89. ______."Engajement". In: Notas de literatura . Tradução de C. A. Galeão e I. A. da Silva. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1991. ANDRADE, C. D. de. Tempo vida poesia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. ______. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.


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Música enlatada no cinema: a América de Monteiro Lobato Canned music on the movies: Monteiro Lobato’s America Milena Ribeiro Martins* RESUMO: América (1932) é uma obra ficcional de gênero híbrido, na qual dois personagens discutem temas relacionados às sociedades americana e brasileira dos anos 1920 e início dos 1930. Um dos temas são as transformações por que passava a indústria cinematográfica, mais precisamente os efeitos da mecanização da música no cinema, quando as orquestras ao vivo foram substituídas pela música gravada ou ‘enlatada’. Tal assunto culmina com uma discussão sobre a modernização da sociedade e das artes. Neste trabalho, apresentamos e discutimos a construção das ideias expressas em América sobre esse tema, com base em pesquisas no acervo do jornal The New York Times . Encontram-se nesse jornal artigos e imagens que são discutidos pelos personagens da ficção. PALAVRAS-CHAVE: Monteiro Lobato. América. The New York Times. Cinema. ABSTRACT: America (1932) is a fictional work of hybrid genre in which two characters discuss some subjects related to the American and Brazilian societies of the 20’s and early 30’s. One of its subjects is the transformation that affected the cinematographic industry: precisely the effects of music mechanization on the movies, when alive orchestras were been replaced by recorded music, a.k.a. ‘canned music’. This subject ends up with a discussion about the modernization of society and arts. In this paper, we present and discuss the construction of these ideas in America, based on The New York Times electronic collection. At this newspaper one can find some articles and images discussed by Lobato’s characters. KEYWORDS: Monteiro Lobato. America. The New York Times. Movies ______________________________ * Doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp. Professora Adjunta da Universidade Federal do Paraná. Departamento de Literatura e Linguística. Curso de Letras, CuritibaPR.

1 Máquinas modernas em tempos de crise Depois de ter vivido nos Estados Unidos por quase quatro anos, quando trabalhou como adido comercial do Brasil no Consulado de Nova York, Lobato publicou América (1932), obra ficcional de gênero híbrido, misto


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de narrativa de viagens, romance de ideias e crônica social. Há nesse livro um forte pendor informativo: destinado ao público brasileiro, o livro traz uma série de informações não-ficcionais sobre os Estados Unidos (dados históricos, populacionais, informações sobre extensão das estradas, quantidade de automóveis, renda per capita, número de universidades, de estudantes, de bibliotecas, de acervo, etc.). Esses dados são usados em geral de maneira comparativa: nas conversas entre o narrador brasileiro (sem nome) e Mr. Slang, seu interlocutor inglês, comparam-se os Estados Unidos com o Brasil e discutem-se os rumos do desenvolvimento dos dois países. Eis um exemplo dessa comparação: o trabalhador americano dirige uma máquina e (conforme especula o narrador) depois de trabalhar dedica-se ao lazer, “vai ouvir songs pelo rádio.” (LOBATO, 1948, p.66). Continua ele: Aquele patife lá, de charuto na boca e perneiras, com rádio em casa e certamente um Ford no fundo do quintal ganhará quanto? No mínimo cinco dólares por oito horas de trabalho. O nosso Jeca, por um trabalho muito mais penoso e de sol a sol, apanha, em média, 2.000 réis, que ao câmbio de 10$000 por dólar correspondem a 20 centavos – a vigésima quinta parte do jeca americano! E inda por cima insultam-no, acusam-no de não ter ‘poder aquisitivo’, de não comprar livros, de não ser sócio da Liga da Defesa Nacional... (LOBATO, 1948, p.67).

A apresentação dos dados e a comparação suscitam discussões entre o narrador e Mr. Slang. O tema das máquinas na vida do agricultor desemboca em outros, que são a proliferação de máquinas dos mais diversos tipos na vida dos americanos e as transformações que essas máquinas operam no mundo do trabalho, com a criação de novas funções e a extinção de funções antigas, que passam a ser desempenhadas pelas máquinas. Assim, aludindo às “comodidades modernas” que povoam a vida do agricultor americano, o narrador elenca, além do rádio, “a máquina de lavar, a máquina de passar, a máquina de aspirar pó, a máquina de lustrar, a máquina de descascar laranjas, a máquina de matar mosquitos...” e o carro, descrito como “máquina de devorar milhas”, ou como o “cabrito de aço” (LOBATO, 1948, p.67).


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Depois de observarem a presença intensiva de máquinas na sociedade americana e as transformações que elas operam no mundo do trabalho, os personagens discutem a “crise geral” da sociedade americana — crise de emprego, sobretudo. Segundo Mr. Slang, o uso intensivo de máquinas aumenta a eficiência do homem americano: — [...] Cada americano produz tanto quanto 42 homens naturais, isto é, 42 homens desmaquinados, que só usam os músculos que Deus lhes deu. — Acho isso excessivo, Mr. Slang. A crise geral que já se acentua e vai ser tremenda provém deste uso crescente da máquina. Ouço toda gente prever isso. — Logo está errado. Toda-Gente é o único animal de estupidez maior que a do peru. O fato de toda gente pensar assim vale-me por prova bastante de erro (LOBATO, 1948, p.68).

Lembremo-nos de que Lobato estava informado a respeito da economia americana por injunções trabalhistas: uma de suas funções como adido comercial era contribuir para ampliar a exportação de produtos brasileiros, o que seria menos provável em tempos de crise. Por essa razão, a discussão ficcional sobre a crise do trabalho está diretamente vinculada a questões com as quais ele lidou profissionalmente. O narrador se refere, como se pode perceber, a uma sensação geral que pode ser documentada por meio de consultas a jornais da época e a dados econômicos em livros de história e economia — sobretudo quando, hoje, vinculamos tal notícia de crise às sucessivas crises que culminaram com a Grande Depressão ou Crise de 1929, que foi, como o narrador se referiu, uma crise de superprodução. Curiosamente, embora América seja de 1932, o narrador faz referência à crise antes da quebra da bolsa de Nova York em 1929 — assunto que só aparecerá no final do livro, nos capítulos XXXIII e XXXIV. Por isso, talvez, ele alude mais a uma sensação geral do que a fatos precisos, e alude como a uma preocupação, não como a um fato político-econômico claramente identificado. De onde viria essa informação do narrador? Quem é o “toda gente” a quem ele se refere? Certamente os jornais noticiaram preocupações de economistas com a crise do emprego e a superprodução, mas nesse momento específico a informação aparece como uma impressão


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sem referência a uma fonte (precisa ou imprecisa). Em outros momentos, como veremos, as informações de fontes aparecem com um pouco mais de precisão. Impressiona, em América, a presença de tantos dados econômicos e o posicionamento dos personagens diante do desenvolvimento econômico dos Estados Unidos, do Brasil e de outros países. Impressiona também a atualidade de alguns comentários dos personagens, sobretudo aqueles que estabelecem aproximações e comparações entre as economias da China, da Índia e do Brasil — o que ganhou recorrência e densidade em análises econômicas deste século. Mr. Slang e o narrador não eram economistas. Lobato tampouco o era. Mas era um empresário, já havia vivenciado situações de crise que culminaram com a falência de sua empresa. Além disso, o interesse de Lobato por assuntos relativos à economia internacional está diretamente vinculado à sua função como adido comercial e à sua tarefa, dentro desse emprego, de analisar o desempenho comercial do Brasil no exterior. Mr. Slang e o narrador palpitam a respeito de muitos temas. Conversam sem compromisso, poder-se-ia dizer num primeiro momento. Mas essa conversa sem compromisso tem fundamentos em dados econômicos a que o escritor tinha acesso — seja como o leitor eclético e inveterado que parecia ser, seja como funcionário do corpo diplomático brasileiro. O descompromisso, então, talvez não deva ser levado tão a sério. Não se trata apenas de uma discussão de ideias inconsequente. Trata-se da ficcionalização de uma conversa que, se fosse real, carregaria consigo a marca da efemeridade das palavras que o vento leva; mas é um texto que, uma vez publicado, converte a suposta efemeridade da palavra oral em algo mais duradouro e consequente, se considerarmos a permanência da escrita e o trabalho com a escrita como algo mais pensado e elaborado que um batepapo. As discussões dos dois personagens se adensam também se inserimos América num conjunto de obras ficcionais de Lobato em que o futuro é objeto de discussão: O Presidente Negro, A Reforma da Natureza e A Chave do Tamanho, por exemplo. Em América, Lobato lança olhares para o futuro a partir da discussão do presente. O momento econômico suscitava inquietações, era propício ao tipo de discussão que os personagens sustentam.


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Segundo Eric Hobsbawn, pouco se podia projetar sobre os rumos da sociedade em crise, o que gerava desconfiança com relação aos discursos de economistas, políticos, de pessoas autorizadas: A Grande Depressão confirmou a crença de intelectuais, ativistas e cidadãos comuns de que havia alguma coisa fundamentalmente errada no mundo em que viviam. Quem sabia o que se podia fazer a respeito? Certamente poucos dos que ocupavam cargos de autoridade em seus países e com certeza não aqueles que tentavam traçar um curso com os instrumentos de navegação tradicionais do liberalismo secular ou da fé tradicional, e com cartas dos mares do século XIX nas quais era claro que não se devia mais confiar. Até onde se podia confiar nos economistas, por mais brilhantes que fossem, quando demonstravam, com grande lucidez, que a Depressão em que eles mesmos viviam não podia acontecer numa sociedade de livre mercado propriamente conduzida, pois [...] não era possível nenhuma superprodução que logo não se corrigisse? (HOBSBAWN, 1995, p.106-7).

______________ 1 Referência ao subtítulo de A Relíquia (1887), de Eça de Queirós, escritor muito lido por Monteiro Lobato.

Talvez a força que ganham certas discussões políticas, econômicas e sociais feitas sob o viés da literatura, sob “o manto diáfano da fantasia1” , esteja associada a essa referida descrença nos discursos de economistas e políticos. Assim, embora Lobato tenha sido um membro oficial do governo brasileiro nos Estados Unidos, desempenhava ao mesmo tempo uma outra função na sociedade brasileira, a de escritor — e, como escritor, ele não traça um discurso oficial, mas apresenta as discussões de América pela voz de personagens que podem ser classificados, segundo as palavras de Hobsbawn, como intelectuais, ativistas e cidadãos comuns. Mr. Slang tenta convencer o narrador e, em última instância, o leitor, de que suas projeções e especulações estão certas. Uma das forças do seu argumento provém da apresentação de suas ideias como diferentes das do senso comum; por serem diferentes, merecem atenção. Outro aspecto que as destaca é o fato de provirem de um observador relativamente alheio aos fatos, emocionalmente distanciado — posição que ele reitera por não ser nem americano nem brasileiro, portanto potencialmente apto a discutir com distanciamento os problemas dos dois países.


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Soma-se a isso um olhar que ultrapassa a observação do momento presente e planeja colocar em perspectiva os problemas analisados. É assim que Mr. Slang observa que o problema daquele momento histórico não era específico daquele momento e daquele país, e trata dele como um fato social atemporal: — Sempre houve uma crise de trabalho, mais ou menos aguda. Quando se agrava, torna-se sensível — e todos gritam que há crise. Quando minora, todos proclamam que os tempos estão normais. Esse estado de crise permanente, ora mais, ora menos agudo, não passa dum lógico efeito da lentidão da adaptação humana. O homem é lerdo e estúpido.— Explique-se. Não estou entendendo. — Cada vez que aparece alguma nova máquina, ou nova invenção — e progredir é isso, maquinar, inventar — criam-se condições novas de vida, que provocam deslocações de homens. Quando apareceu o automóvel, milhares de cocheiros foram deslocados das suas boleias, milhares de tratadores de cavalos foram para o olho da rua. Crise? Deslocamento apenas. A máquina nova não veio diminuir o trabalho, sim aumentálo, como os fatos o provam. Apenas criou trabalho novo. Surgiu a tarefa nova do chauffeur, e as dos reparadores de carros, lavadores, vendedores de gasolina e todo esse mundo da indústria automotora. E aqui temos o ponto. Os cocheiros e mais homens postos à margem pelo auto foram em número tremendamente inferior ao dos homens chamados a desempenhar as tarefas novas que o automobilismo criou. — É. Não deixa de ser assim, concordei. Mas... (LOBATO, 1948, p.68-69).

Ao introduzir o tema pelo exemplo do automóvel, Slang suscita simpatia por suas ideias, já que o automóvel parecia ter vindo para ficar, era símbolo de ostentação e sonho de consumo mesmo nas classes médias brasileiras e, além de tudo, era um símbolo inequívoco de modernidade, tema central de América. As profissões que estavam em vias de desaparecer, segundo Mr. Slang, não eram glamourosas; pelo contrário, eram símbolo de estagnação, do atraso da vida rural, de um mundo que se desejava superar ou cuja importância se pretendia diminuir em função do elogio a um modo de vida urbano (tema caro ao universo ficcional de Lobato).


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Outro aspecto do argumento de Mr. Slang ao qual vale a pena chamar a atenção é a associação entre a constatação da crise e a dificuldade humana em se adaptar. Sem mencionar explicitamente Charles Darwin ou a Herbert Spencer, Mr. Slang se refere à ideia evolucionista segundo a qual aqueles que se adaptam às mudanças sobrevivem, enquanto os demais sucumbem. Aqueles que não se adaptam, ou que têm maior dificuldade de se adaptar, Slang os desqualifica por meio das palavras “lerdo e estúpido”. O tom é semelhante ao da crítica feita por Lobato nos artigos “Uma velha praga” e “Urupês” (LOBATO, 1948a), em que o articulista ridiculariza o outro (o caipira, naqueles textos; neste, os “inadaptados”) e por meio da crítica propõe uma nova postura diante dos fatos – postura de adaptação, de aceitação das mudanças. Tal postura traz em si o apelo a uma abertura para a novidade, em detrimento do apego ao que é tradicional. (Essa questão do embate entre tradição e modernidade é uma das mais caras e complexas questões na obra lobatiana.) Logo depois de tratar do automóvel, Slang chega ao tema sobre o qual desenvolverá seu argumento de maneira mais específica e documentada: o cinema. Automóvel e cinema, ambos ícones da modernidade, têm em comum a velocidade. Mr. Slang clama por um processo de adaptação que seja igualmente veloz. Como muitas novidades tecnológicas popularizadas nas primeiras décadas do século XX, automóvel e cinema causaram estranhamento e perplexidade, exigindo da sociedade um processo de adaptação para que seus benefícios fossem usufruídos. Que novas tecnologias causam estranhamento e perplexidade, isso é fácil de se observar. A resistência a mudanças está associada dentre outros fatores à sobreposição de novidades, o que faz com que uma tecnologia seja logo substituída por outra e, portanto, o difícil processo de aprendizagem e adaptação a ela tenha que ser sucedido por outro processo de adaptação a outra novidade, e assim sucessivamente. Novas tecnologias exigem constante disposição à aprendizagem. Isso talvez justifique a lentidão na incorporação de novidades tecnológicas ao hábito do grosso da população, até que elas de fato mostrem que vieram para ficar. A rapidez com que surgem pode estar ligada à efemeridade de sua sobrevivência.


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Aparentemente, Mr. Slang defende a adaptação do homem às novidades do mundo moderno, como o automóvel. Não se trata, como vimos, de uma novidade nem muito nova (a despeito da aparente redundância) nem efêmera, mas de algo que já tinha algumas décadas de vida e que mostrava ter vindo para ficar, tendo se incorporado vertiginosamente aos modos de vida das mais diferentes sociedades (mais nas urbanas que nas rurais, mais nuns países que em outros, e com significados culturais diferentes, mas de presença indiscutível nas sociedades modernas). O mesmo se pode dizer do cinema. No caso do cinema, a adaptação exigida por Mr. Slang é dirigida a um grupo muito específico: os músicos que trabalhavam para o cinema. Em três páginas do capítulo VIII de América, Mr. Slang informa brevemente algumas das mudanças ocorridas na indústria cinematográfica, na relação entre som e imagem; depois, informa sobre o movimento dos músicos que, em face do risco de perderem seus empregos, protestam contra as inovações; e por fim manifesta sua opinião, reiterando a necessidade de adaptação. Vejamos mais de perto essas informações e argumentos. 2 Música em lata Mr. Slang não explica certos detalhes que, à época da publicação do livro, certamente eram conhecidos de seus leitores, mas hoje demandam esclarecimentos. Trata-se do momento de transição entre o cinema mudo e o falado, quando inovações tecnológicas permitiram que a música passasse a ser transmitida mecanicamente, em sincronia com as imagens e o som das vozes dos atores, de tal forma que a música ao vivo, que acompanhava as projeções dos filmes de então, foi substituída pelo que passou a se chamar ‘música enlatada’. Estava chegando ao fim o tempo das orquestras executando performances dentro das salas de cinema, concomitantemente à projeção das fitas. Mr. Slang posiciona-se favoravelmente às mudanças que permitiram a sincronia entre som e imagem, criticando a atitude dos músicos da American Music Association, que resistiam às mudanças. O elogio de Mr. Slang a tais inovações deve-se, por um lado, a uma


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tendência sua de elogiar o progresso, a mecanização, as inovações científicas de um modo geral. Além disso, Mr. Slang elogia as mudanças porque elas caminhavam progressivamente para a eliminação ou substituição de um tipo de relação entre som e imagem que ele considerava artificial: os sons produzidos pelos músicos tinham a função de ocupar o espaço deixado pela falta do som da voz dos atores dos filmes. Segundo ele, O cinema, ainda a meio caminho da sua evolução, reproduzia os movimentos da boca de quem fala, mas não o som da fala. Por ser chocante para o público que tanta gente na tela falasse sem que nenhum som fosse ouvido, houve necessidade de criar um corpo de milhares e milhares de “tapeadores” sônicos — homens que tiravam de cordas de tripa e canudos de latão sons combinados segundo certas regras, com os quais substituíam, para o ouvido dos espectadores, os sons articulados que deviam sair das bocas dos personagens. O truque pegou. Como seria impossível ao ouvido humano ouvir ao mesmo tempo a música e a fala dos personagens, os espectadores ouviam a música e dispensavam-se de ouvir a fala inexistente (LOBATO, 1948, p.69 e 71).

mostrou-se a personagem-título do romance bernardiano O índio Afonso (1872-1873), um cafuzo

Se a atitude dos músicos cobria uma falha do cinema e era portanto uma “tapeação” do público, ela merecia chegar ao fim. Para intensificar o argumento, marcando negativamente os “músicos de cinema”, Mr. Slang se refere a eles e a seus instrumentos por meio de termos depreciativos, tais como tapeadores, velharia, instrumentos feitos de corda de tripa (o que, mesmo sem ser falso, é nomeado de forma depreciativa) e latão. Seguindo o argumento de Mr. Slang, se os músicos são tapeadores, sua eliminação é positiva. O que é negativo, segundo ele, é a atitude dos músicos de resistência à “evolução” das técnicas de sincronia entre som e imagem. A explicação de Mr. Slang trata da substituição da música pela voz, mas não propriamente da eliminação dos músicos do espetáculo do cinema. Afinal, o personagem não discute nesse momento a música como parte do espetáculo. Discute apenas a substituição da execução de sons ao vivo por sua reprodução mecânica (fosse ela gravada ou enlatada). E parte de um pressuposto que podemos considerar equivocado: de que “seria impossível ao ouvido humano ouvir ao mesmo tempo a música e a fala dos personagens" (p.71).


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Mr. Slang não desenvolve extensamente esse ponto. Em seguida, trata das associações dos músicos, da manutenção de alguns postos de emprego e do desaparecimento de outros tantos: Mas o cinema completou a sua viagem evolutiva. Aprendeu a falar. Chegou à reprodução da voz e, muito naturalmente, teve de dispensar o concurso dos “tapeadores”. Em vez de se regozijarem com o grande passo que aquilo significava, os músicos arrepelaram as cabeleiras e deram de organizarse numa cruzada contra a vibração de outra origem que não as das suas cordinhas de tripa. Tenho acompanhado a guerra contra a música em lata, como eles chamam à coisa nova. É extremamente pitoresca essa campanha promovida pela American Music Association, mas serve apenas para divertir o público (LOBATO, 1948, p.71).

Mr. Slang usa uma metáfora do desenvolvimento humano — “aprendeu a falar” — para se referir ao desenvolvimento das tecnologias sonoras no cinema. Só assim pode considerar “natural” uma inovação tecnológica. Segundo seu argumento, se um desenvolvimento natural e esperado, como a aquisição da fala, é motivo de regozijo, também o deveriam ser as inovações sonoras de então. Essa naturalização da música mecânica ou enlatada lhe permite colocar em segundo plano e descartar a discussão a respeito do desemprego de uma parcela dos músicos do cinema2. É importante evidenciar o tratamento da evolução como algo “natural” porque, se ela fosse de fato natural, não haveria o que discutir, e o argumento de Slang comportaria uma verdade, não uma opinião. Mr. Slang não leva em consideração, por exemplo, variáveis econômicas: a mecanização do som poderia ter como fundamento a intenção de diminuir os custos da produção cinematográfica, fatos que ele poderia ter considerado, dado seu interesse por aspectos relativos á produção industrial eficiência, etc. Por que Mr. Slang não considerou esse aspecto? Para responder a essa questão e justificar a sua pertinência, destaquemos um outro aspecto do trecho acima citado: Mr. Slang diz estar acompanhando “a guerra contra a música em lata”, a “campanha promovida pela American Music Association”. Trata-se de uma referência contextual e também textual menos imprecisa que a anterior, quando o narrador aludia a uma crise geral prevista por toda gente. Faz supor que tenha havido,

________________ _____ 2 Em editorial de 22 de outubro de 1929, o jornal The New York Times informa que cinco mil músicos haviam perdido o emprego “por causa da popularidade de filmes com acompanhamento sonoro”. “Fresh music and canned”, p.26. [Obs.: São de minha autoria as traduções de textos e anúncios citados neste artigo.


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________________ 3 Mr. Slang se referiu à American Music Association, mas quem de fato assina as peças publicitárias a que faremos referência é a American Federation of Musicians. 4 A qualidade da reprodução desse anúncio em América não é boa o suficiente para avaliar detalhes da ilustração e mesmo para ler o que está escrito no cupom. O cotejo com os outros anúncios da mesma entidade publicados no jornal é que nos permite conferir o que dizem as letras miúdas.

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como de fato houve, um movimento que poderia ser acompanhado pelos jornais. As referências diretas e indiretas a fatos, pessoas e a notícias, nesse livro, não são falsas pistas, são indicações de um quadro social mais amplo que pode ser recomposto pela consulta a jornais do final dos anos 1920 e início dos anos 1930 — fontes primárias hoje acessíveis por meio de acervos eletrônicos que ampliam consideravelmente as possibilidades de compreensão de uma obra como América, cujas relações com o contexto de origem são tão profundas. Pesquisando arquivos do The New York Times , encontramos uma série de artigos e imagens que tratam do assunto sobre o qual os dois personagens lobatianos conversam. Trazer à tona os textos e imagens veiculados pelos jornais de então permite que se explicite a rede de textos com os quais a narrativa de Lobato dialoga; permite assim compreender melhor as ideias dos personagens; e permite também reconstruir o processo de escrita de América , livro profundamente intertextual. No meio dessa discussão sobre a música enlatada no cinema, Lobato reproduz numa página inteira de América uma peça publicitária da Federação Americana de Músicos (LOBATO, 1948, p.70).3 Trata-se de uma ilustração seguida de texto em inglês. Na figura, vê-se um robô inserindo uma variedade de instrumentos musicais numa máquina de moer carne. A outra extremidade da máquina despeja notas musicais e outros sons numa lata, em cujo rótulo se lê “Canned ‘music’ for theatres”. Diante da cena, uns poucos espectadores estão sentados numa sala de cinema, em meio a muitas poltronas, e um homem caminha em direção à saída 4. O texto que acompanha a imagem intitula-se “Making musical mince meat”, que talvez possa ser traduzido como “Fazendo picadinho da música” — para, usando a gíria brasileira, sugerir a ideia de destruir ou arrasar com alguma coisa. O texto descreve a situação de um público amante de música ao vivo que compra seus ingressos, mas recebe música enlatada, entretenimento de qualidade inferior vendido pelo mesmo preço da música orquestral. Em seguida, pergunta: “Você permitirá que a gloriosa arte musical morra neste país?” E pede-se para que a resposta “não” seja seguida do preenchimento e envio de um cupom, por meio do qual o cidadão se inscreveria na Liga da Defesa da Música e se oporia ao fim da música ao vivo nas salas de espetáculos. Não há


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nenhum pedido de apoio financeiro, apenas a inscrição do simpatizante numa associação, “without further obligation”. Porque o texto está em inglês, inserido num livro escrito em português, é fácil supor que esse anúncio seria um documento de uma época, provavelmente um recorte de periódico americano lido por Lobato no período em que ele viveu nos Estados Unidos. Embora não fosse impossível tratar-se de uma criação ficcional, nossa pesquisa em fontes primárias e bibliográficas tem constatado que, em América, as referências a livros, jornais e a pessoas são identificáveis, não são produção ficcional. 3 Do jornal para o livro Num levantamento feito nos arquivos do jornal The New York Times, encontramos uma série de peças publicitárias da Federação Americana de Músicos da qual faz parte a página acima descrita, reproduzida em América . Encontramos seis anúncios da mesma família nos anos de 1929, 1930 e 1931, todos assinados por The American Federation of Musicians, presidida por Joseph N. Weber. Em todas as figuras, um robô atua como personagem principal, representando a mecanização da música. Ao lado dele, vitimizados por ele, aparecem personagens que simbolizam a música ou os músicos. O primeiro anúncio, de 21 de outubro de 1929, traz um robô tocando (e ao mesmo tempo destruindo) uma harpa, no alto da qual um anjinho amarrado chora copiosamente. A rudeza do robô contrasta com a delicadeza do anjinho. De boca aberta, o robô parece sorrir sarcasticamente, embora seja difícil avaliar a expressão facial de seu rosto de lata. Ao lado deles, um cãozinho ganindo produz algumas notas musicais: as notas não saem da harpa, mas dos latidos do cão. Abaixo da figura, um texto intitulado “The robot as an entertainer” (O robô como um artista), que traz por subtítulo “Is his substitution for real music a success?” (Sua substituição pela música de verdade é um sucesso?) (THE AMERICAN FEDERATION OF MUSICIANS, 1929, p.19). O texto reconhece o valor da sincronização entre som e imagem no cinema pela possibilidade de se chegar ao cinema falado. Mas considera que a substituição da “música real” por “música mecânica sincronizada” deve-se


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tão somente a uma razão econômica, ao desejo de tornar o espetáculo mais barato. Considera que “a maquinaria tem desempenhado um grande serviço à humanidade” e que seu propósito é “preservar os homens e mulheres de trabalhos ignóbeis e desprovidos de alma”. Mas adverte, objetando o título, que “a máquina não é um artista”. E elenca uma série de efeitos sociais negativos dessa substituição do homem pela máquina, dos artistas de carne e osso pelo robô, e da música “de verdade” pela música mecanizada. Dentre eles, “prejuízo à cultura americana”, “corrupção da apreciação pública de boa música, o que seria uma calamidade cultural”; a diminuição dos postos de trabalho e, consequentemente, a falta de incentivo aos jovens para o desenvolvimento de seu talento em função do desinteresse pela carreira musical; a perda do “contato espiritual entre o artista e o público” e a “desumanização do cinema”. A única vantagem dessa inovação, segundo o texto, seria o lucro das companhias. (idem) O segundo anúncio, de 28 de abril de 1930, representa a música por meio de uma figura feminina que remete a ninfas gregas (traços clássicos, vestes leves e esvoaçantes, membros nus, coroa de louros). Opondo-se a ela, uma enorme mão robótica a expulsa de algum lugar. A mão é claramente identificada: “Canned music magnate” (Magnata da música enlatada). E o título pergunta: “Banish music?” (Banir a música?) O texto e a imagem trazem respostas negativas a essa pergunta. O público marcha em direção a essa figura feminina carregando placas em que se lê “We want living art” (Queremos arte ao vivo). No texto, “milhões de espectadores”, “artistas sábios” e até mesmo administradores de salas de cinema de elite fazem coro com a imagem, protestando pela manutenção da música ao vivo nos cinemas. Nessa ocasião, a Liga em defesa da música já conta com dois milhões e meio de membros, como informa o anúncio (THE AMERICAN FEDERATION OF MUSICIANS, 1930a, p.27) O terceiro anúncio, de 1 de setembro de 1930, qualifica o robô (e a música mecanizada) como “monstruoso fruto do moderno industrialismo” e opõe a ele não figuras simbólicas, mas um músico de carne e osso, vestido de terno e ameaçado fisicamente pelo robô. Contra ele, apenas os espectadores teriam poder (THE AMERICAN FEDERATION OF MUSICIANS, 1930b, p.30). No quarto anúncio, de 10 de novembro de 1930, o robô é um jardineiro que destrói a árvore da “cultura musical americana”, cortando-lhe todos os frutos (instrumentos musicais) e regando-a com música enlatada. O texto elogia a


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cultura musical americana, considera que seus artistas estão entre os melhores do mundo e se pergunta pelo futuro dessa cultura. Cabe ao público escolher entre a “performance inspiradora” dos músicos de carne e osso ou o “barulho estridente” da “maquinaria sem coração” (THE AMERICAN FEDERATION OF MUSICIANS, 1930c, p.16) O quinto anúncio, de 9 de março de 1931, assemelha-se ao segundo, apresentando o embate entre uma Musa de aspecto helenizante e o robô de sempre. O texto pergunta ao público se ele deseja “som” sem “música”, se deseja monotonia, corrupção do gosto, destruição da arte (THE AMERICAN FEDERATION OF MUSICIANS, 1931a, p. 24) E por fim o sexto anúncio, de 10 de agosto de 1931, apresenta o robô como rival de um tocador de realejo. O tocador se vê diante de um dilema, uma incompreensão: por que ele e sua música mecânica são expulsos dos ambientes enquanto o seu rival cobra para executar música igualmente mecânica? (THE AMERICAN FEDERATION OF MUSICIANS, 1931b, p.12) São muitos os elementos a serem analisados para quem se interessa pela polêmica. Para nossos objetivos, talvez seja suficiente salientar a oposição entre símbolos da modernidade versus símbolos de uma tradição cultural antiga, consolidada, de forte apelo cultural e emocional. O robô como epítome da mecanização da arte congrega em si a ideia de falta de qualidade, de desatenção ao detalhe e, acima de tudo, de desumanização. Segundo os anúncios, a arte mecanizada é, em última instância, uma ameaça: seus produtos conhecidos são de baixa qualidade, seu efeito sobre o emprego dos músicos é digno de repúdio social, sobretudo num momento de crise geral, e o desenvolvimento futuro daquilo que no presente já é indesejado também amedronta. O que alguns veem como progresso, a Federação Americana de Músicos vê como “retrocesso da cultura musical” [Says talk movie won’t affect music, 1928, p.28]. Mr. Slang é, em muitos aspectos, um admirador do progresso, da mecanização, da industrialização. Em sua discussão a respeito da crise geral do emprego, da mecanização da vida moderna e, ligando as duas coisas, da mecanização da música no cinema, ele rebate alguns dos argumentos apresentados pela Federação Americana de Músicos. Seu discurso está em consonância com uma série


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de outros artigos publicados no mesmo jornal, que vão paulatinamente apresentando vantagens da música enlatada. É também apontando defeitos da música ao vivo. Vejamos alguns desses argumentos. 4 O público dos cinemas

___________________ 5 A primeira versão que se conhece de “O fisco” tem por título “O imposto único /Conto de Natal”. Com esse título, o conto foi publicado pela primeira vez em dezembro de 1918 na Revista do Brasil. No ano seguinte, nova versão do conto foi incluída em Cidades Mortas, com o mesmo título, que seria modificado em edições posteriores. (Cf. MARTINS, 1998).

Num breve artigo de 1926, o jornal The New York Times reproduz uma declaração da Warner Brothers acerca da invenção que sincronizava música com imagem. A empresa propagandeava as vantagens do invento, afirmando que “a menor sala de projeção do país estará apta a oferecer entretenimento musical sofisticado, similar àqueles apresentados pelas casas da Broadway.” (Canned music for pictures, 1926, p. X3) A empresa colocou em primeiro plano, como se vê, a disseminação de uma nova forma de entretenimento, comparando sua qualidade à dos espetáculos musicais mais famosos do país. Aliou, portanto, a popularização da arte a um alto padrão de qualidade. De acordo com a afirmação da Warner Brothers, a tecnologia faria chegar a um número muito maior de espectadores e a rincões antes esquecidos — faria chegar a todo o país — espetáculos de qualidade. A ideia era cara a Lobato, que, à sua maneira, também a colocara em prática em sua atividade editorial, investindo na distribuição de livros por todo o Brasil, por meio da ampliação de sua rede de distribuidores: intencionava vender livros em qualquer estabelecimento comercial. (BIGNOTTO, 2007) E, no que diz respeito ao cinema e ao seu público, Lobato também era um observador das diferenças existentes entre públicos de estratos sociais variados. É o que se pode perceber, por exemplo, no conto “O imposto único” (ou “O fisco”5) , em que o narrador observa as atitudes de famílias italianas do Brás nas ruas, nas confeitarias, nos carros e no cinema. Lá, uma família numerosa assiste aos filmes em sessão contínua, pagando uma vez e assistindo duas. Além dessa maneira de fazer valer o preço do ingresso, o narrador observa também a intensidade das emoções vividas por esses espectadores nas comédias e nos dramas: Em seguida, toca para o cinema! Abarrota os de sessão corrida. O Braz chora nos lances lacrimogêneos da Bertini e ri nas comédias a gaz hilariante da L-Ko mais do que autorizam os mil e cem da entrada. E repete a sessão, piscando o olho: é o jeito de dobrar a festa em extensão e obtê-la a meio preço, 550 réis — um negocião (LOBATO, 1919, p.131).


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Observa-se nesse conto, escrito mais de uma década antes de América, o interesse de Lobato pelo cinema. A breve mas importante inserção do cinema nesse conto se observa tanto pela representação das atitudes de grupos de espectadores como também pela referência a aspectos materiais, de interesse histórico, como o preço dos ingressos, o nome da companhia e os estilos de filmes que estavam em cartaz nas salas de cinema da São Paulo das primeiras décadas do século XX. Interessado, portanto, desde há pelo menos uma década, em formas de democratização das artes — que passavam por exemplo pela atenção dada nesse conto ao preço dos ingressos no cinema, como também pelas iniciativas em publicar livros baratos, em coleções populares (Cf. BIGNOTTO 2007 e MARTINS 2003) — Lobato dá continuidade, em América, a essa discussão. A adesão de Mr. Slang à música enlatada pode ajudar a indicar o apreço de Lobato pelas inovações tecnológicas (especialmente mas não exclusivamente as ocorridas na indústria cinematográfica) e pela fruição do cinema e da arte em geral pelo grande público. Mas, num primeiro momento, interessa observar que é a popularização da arte por meio da redução do preço que merece destaque. O argumento de Mr. Slang vai nessa direção: há tal morte da música, como eles proclamam. Há mais música, há multiplicação da música — música para todos, mais barata — e melhor. Como para ser reproduzida no cinema falado tem ela de ser produzida pelo sistema antigo, o cuidado é extremo na sua escolha e na escolha dos executantes. Os bons músicos, os ótimos executantes ficaram — e são mais bem pagos. O esfregador de cordas ou o vulgar assoprador de saxofone, esse acabou. (LOBATO, 1948, p.71)

Enquanto os anúncios assinados por Joseph Weber alardeiam o desemprego dos músicos, Mr. Slang trata da manutenção do emprego dos bons, dos melhores. E desloca o foco da atenção: o que lhe interessa não é o emprego ou o desemprego dos músicos, mas a multiplicação de salas de projeção, a diminuição do preço dos ingressos e o aumento da qualidade dos espetáculos. Um editorial publicado no final de 1929 coloca alguma água na fervura: sem tom polêmico, considera que há diferenças substanciais entre reprodução mecânica e ao vivo, mas que cada qual tem o seu espaço e, em certa medida, sua fatia de público.


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O artigo considera, por exemplo, que parte do público “compartilha com os músicos um sentimento de desgosto com relação a formas de entretenimento que sejam meramente uma reprodução de uma perfomance original.” Mas julga que esse público é diferente da “grande massa”, que “podia arcar com o substituto”, isto é, com uma reprodução do original, e se daria por satisfeita. Na sequência, o artigo pondera que, se é verdade que há ideias de autores e compositores que só fazem efeito numa perfomance ao vivo, outras “podem ser perfeitamente traduzidas por meio de reprodução mecânica”. E termina com a crença de que a angústia dos músicos teria fim quando a novidade deixasse de ser tão nova, porque o cinema com som não tiraria a popularidade da orquestra ao vivo (Fresh music and canned, 1929, p.26). Apesar de acalmar os ânimos, o artigo usa várias metáforas que exaltam a música ao vivo e depreciam a música mecanizada: a oposição do título “Fresh music and canned” é o maior desses exemplos. 5 Os profissionais da música Na batalha que envolve músicos e indústria cultural (não só cinematográfica), Lobato não se refere às discussões acerca do direito autoral dos músicos e compositores. Em 1928, o New York Times tratou de forma mais extensa do assunto por meio do texto “Mechanical music has not yet won a victory”, assinado por Diana Rice (1928, p.106). O artigo trata de vários aspectos do tema: o ensino de música, música no rádio, venda de instrumentos musicais, de discos, de rádios e de fonógrafos, quantidades de cópias de discos vendidos, etc. Trata também da fundação de uma associação de proteção dos direitos autorais dos músicos — Music Publisher’s Protective Association. Esse artigo apresenta importantes mudanças decorrentes da mecanização da música. Uma delas é a ampliação significativa do ensino de música nas escolas. O rádio e o fonógrafo — tomados por alguns como inimigos dos músicos por colocarem em risco o pagamento de direitos autorais e o emprego de músicos, que seriam substituídos por reprodução mecânica de música — também são vistos como importantes instrumentos educativos. Ao lado disso, o artigo também apresenta a preocupação de que a nova era da música enlatada produziria uma outra forma de apreciação musical: já que não era mais necessário conhecer música e aprender a tocar um instrumento para apreciá-la, crescia significativamente o número de apreciadores de boa música — mas, salientavam os temerosos, esses são apreciadores


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passivos. O artigo apresenta, portanto, opiniões favoráveis e contrárias à mecanização da arte musical e conclui sem se posicionar peremptoriamente, apresentando a encruzilhada diante da qual “o país” se encontrava: “Se a América se tornará, como os pessimistas temem, uma nação de ouvintes passivos, ou se um renascimento da participação individual [na criação musical] está prestes a acontecer — isso logo deve se tornar claro.” (idem) Trata-se, portanto, de um momento histórico em que uma inovação tecnológica colocou problemas para os mais variados profissionais ligados a atividades musicais, desde professores, instrumentistas e compositores, até vendedores de discos e instrumentos musicais. A discussão que Lobato representa ficcionalmente — a música enlatada no cinema e as reações dos músicos filiados à Federação Americana de Músicos — alude, portanto, a uma pequena parte de uma ampla discussão de membros da indústria cultural em torno da profissionalização do músico (fosse ele um compositor, professor, intérprete ou outro profissional). Mr. Slang apresenta nestes termos a reação dos músicos: — O surto do cinema falado [...] mostrou o olho da rua para milhares de homens até então empregados na arte de produzir vibrações sonoras – os músicos. Estão eles hoje em crise, a berrar, a declamar, a insistir pela volta atrás — marcha a ré contra todas as leis da avançada humana. Esses velhos sopradores de canudos de metal amarelo, esfregadores de cordas de tripa, bochechadores de flautas, marteladores de teclados, só tinham uma coisa a fazer, se não fossem lerdos de mentalidade: — compreender os tempos e adaptarem-se às novas condições. Já não há mais lugar para eles nos cinemas, onde modulavam nos seus velhíssimos instrumentos músicas dolentes, enquanto os personagens mudos na tela fingiam falar (LOBATO, 1948, p.69).

A opinião de Mr. Slang traz aos leitores brasileiros de América uma informação sobre o estado das discussões sobre o tema (da mecanização da música no cinema) na mídia americana e uma opinião de um personagem ousado, polêmico, sem vínculos com os EUA nem com o Brasil, e que por isso mesmo se dá ao luxo ou ao desplante de apresentar ideias diferentes das do senso comum. Esta pesquisa em fontes primárias permite perceber também que as opiniões de Mr. Slang e do narrador não são individuais, particulares, nem tampouco soam no vazio; por meio do diálogo ficcional, os personagens de América reproduzem e discutem ideias de personalidades americanas


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divulgadas pela imprensa daquele país. Construído como um mosaico de ideias alheias, ou como uma colcha de retalhos estrangeiros cosida com linha brasileira, América configura-se como um importante documento da recepção de ideias norteamericanas no Brasil. Como um livro de viagens atípico, não perfeitamente enquadrado no gênero, América permite um certo conhecimento dos Estados Unidos; não de sua geografia, mas de suas ideias, como o escritor as conheceu por meio de livros e de jornais. Referências BIGNOTTO, C. C. Novas perspectivas sobre as práticas editoriais de Monteiro Lobato (1918-1925). 2007. Tese (Doutorado). Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2005. CANED music for pictures. The New York Times, New York, 02 mai. 1926, p.X3. FRESH music and canned. The New York Times , New York, 22 out.1929, p.26. HOBSBAWN, E. Era dos extremos : o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Tradução: Marcos Santarrita. LOBATO, M. “O imposto único”. In. Cidades mortas. São Paulo: Edição da “Revista do Brasil ”, 1919. pp.125-139. LOBATO, M. América: Os Estados Unidos de 1929. Obras Completas de Monteiro Lobato, 1ª série, Vol. 9. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1948. LOBATO, M. Urupês. Obras Completas de Monteiro Lobato , 1ª série, Vol.1. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1948a MARTINS, M. R. Quem conta um conto... aumenta, diminui, modifica: o processo de escrita do conto lobatiano . Dissertação (Mestrado). Instituto de Estudos da Linguagem,Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 1998. MARTINS, M. R. Lobato edita Lobato: historia das edições dos contos lobatianos. 2003. Tese (Doutorado). Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2003. RICE, D. Mechanical music has not yet won a victory. The New York Times , New York, 01 jul.1928, p.106. SAYS talk movie won’t affect music. The New York Times, New York, 15 ago.1928, p.28.


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THE AMERICAN FEDERATION OF MUSICIANS. The robot as an entertainer. The New York Times, New York, 21 out.1929, p.29. _________.Canned music magnate. The New York Times , New York, 28 abr.1930a, p.27. _________. Is art to have a tyrant? The New York Times, New York, 01 set.1930b, p.30. __________. O fairest flower! No sooner blown but blasted! The New York Times, New York, 10 nov.1930c, p.16. _________. The robot at the helm. The New York Times, New York, 09 mar.1931a, p.24. ________. Rivals. The New York Times, New York, 10 ago.1931b, p.12.


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Do romance histórico à ficcionalização da cultura popular em As Minas de Prata: a prosa de caráter histórico mais verdadeira que a História? From the historical novel to the fictionalization of popular culture in As Minas de Prata: the historical-fictional prose truer than History?

Rafaela Mendes Mano Sanches  RESUMO: Este estudo analisa o romance As Minas de Prata, de José de Alencar, a partir da recepção crítica do romance histórico junto aos letrados e romancistas dos oitocentos, atentando-se sobretudo a questões relativas à incorporação da cultura popular nesse gênero. Investigaremos, pois, a perspectiva de Alencar sobre a obra histórico-ficcional e os elementos que compõem a estrutura da sua narrativa, em contato com as discussões entre história, ficção e tradição popular que marca o período estudado. PALAVRAS-CHAVE: romance histórico; recepção; circulação; verossimilhança; tradição popular. ABSTRACT: This study analyzes the novel As Minas de Prata (The Silver Mines), by José de Alencar, from the critical reception of the historical novel by scholars and novelists of the nineteenth century, mainly considering the incorporation of popular culture into this genre. We will therefore investigate Alencar’s perspective on the historical-fictional work and the elements that make up the structure of its narrative, taking into account the discussions among history, fiction and the popular tradition that marks such a period. KEYWORDS: Historical novel; reception; circulation; verisimilitude; popular tradition.

Introdução

_____________________________ * Doutora em Teoria eHistória Literária, na áreade Concentração emHistória e Historiografialiterária do Instituto de Estudos da Linguagem daUniversidade Estadual deCampinas .

O romance As Minas de Prata, de José de Alencar, foi publicado pela Biblioteca Brasileira de Quintino Bocaiúva em 1862, com dezenove capítulos iniciais e com o título As Minas de Prata : continuação do Guarani . Somente em 1865, José de Alencar retoma sua obra e a publica em seis volumes, pela editora B. L. Garnier, fazendo algumas modificações na primeira versão: retira notas, altera o próprio título e acrescenta outros capítulos. A mudança no título, relacionada à exclusão das notas, sugere outro viés de leitura, que ressemantiza a trama romanesca e desvincula-a de O guarani. Assim, se em 1862 Alencar sugeria uma chave de leitura para aquele romance, seja pelo título que o atrelava ao O Guaran i, grande sucesso na época, seja pela


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citação de suas fontes, em 1865 ele jogava o leitor no seu labirinto textual e o deixava construir os caminhos da própria rede narrativa. O fio condutor da trama enfoca as lutas e aventuras pela posse do roteiro das minas de prata, feito pelo personagem Robério Dias, a partir das informações dadas por seu pai, Moribeca, o primeiro a encontrar o local. Robério procura não despertar suspeitas na sua exploração da gruta, porém, os rumores sobre este local espalham-se e o minerador decide revelar o seu segredo ao rei da Espanha. Neste momento, o mapa do explorador é roubado, de modo que Robério é obrigado a retornar ao sertão, acompanhado do representante de El-Rei, D. Francisco de Sousa, para mostrar o seu achado e comprovar sua inocência. Nesse percurso, o minerador morre e, por conseguinte, seus bens são confiscados, o que deixa o filho do aventureiro, Estácio, na mais extrema pobreza. Vivendo sob a sombra de seu passado, Estácio busca sua identidade, desvendando o mistério que cerca as minas e passando por várias peripécias na luta pelo roteiro, ora contra o governador D. Francisco de Sousa, ora contra o padre Molina, personagem que vem da Espanha a fim de descobrir o paradeiro do pergaminho. Sendo assim, o mapa das pedras preciosas toca a imaginação dos colonos com o seu conto, que enraizado na mente das pessoas, torna-se objeto de boatos e de buscas. Ninguém conhece a sua verdadeira história, visto que, passando de boca em boca, torna-se um forte elemento da cultura oral popular, trazendo a oralidade como elemento de extração folclórica, como aponta Cavalcanti Proença (1965, p. 3-41). Nessa perspectiva, o romance realiza um plano simbólico e lendário, formulando a construção do passado brasileiro. A narrativa implanta na mente do leitor a seguinte dúvida: As minas realmente existem? Ou são produtos da imaginação popular? - Sei dela o que me tem ensinado a tradição popular; contam que meu pai conhecia o segredo das grandes minas de prata, que recusou a descobrir por lhe haver El-Rei negado a recompensa que pedia. [Estácio] - A tradição mente, filho: Robério era incapaz de uma tal vilania; depois de haver prometido, cumpria. [Caminha] - Mas então porque ainda hoje é desconhecido o segredo? (ALENCAR, 1958, p. 454; grifo nosso).


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A matéria lendária que escreve o El dorado brasileiro vincula-se ao projeto estético-literário de Alencar que objetiva confeccionar as origens da nação através da ficcionalização de um povo, suas tradições, lendas e mitos. Esse empenho por nacionalizar a literatura via representação popular inserese num debate mais amplo, promovido em diferentes espaços, cujas discussões tocam na estética do romance histórico e no papel da cultura popular na composição desse gênero, que está imbricado com os princípios que demarcam o horizonte identitário do Brasil nos oitocentos. Sensível à literatura de sua época, Alencar apreende o espírito de um povo, e incorre num campo de disputa com a História. Nossa proposta é estudar a recepção do romance histórico na imprensa, em diálogo com o interesse pela tradição popular nos oitocentos, analisando seus pontos de contato com a narrativa alencariana. 1 Recepção e leitura crítica do romance histórico nos oitocentos Entre as representações discursivas e imagéticas das narrativas historiográficas e outras narrativas entre as décadas de 1830-60 que escrevem e elaboram a memória e o passado da nação, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro destaca-se nesta atuação, ao coligir e publicar textos. A Revista do IHGB, no decorrer dos oitocentos, fornece um modelo metodológico no estudo do passado, pautado pela projeção de aspectos nacionais e de reminiscências patrióticas e marcado por um discurso contínuo entre passado e presente. A proposta de confeccionar um passado único e coerente que servisse aos ideais do Estado pertence ao projeto dos letrados desse círculo que “[...] desencravaria dos estratos do passado, da espessura histórica de instituições, eventos e personagens, os fatos necessários para recompor, no contínuo homogêneo do tempo, a História da Nação”. (FERREIRA, 2002, p. 20). A discussão de maneiras de se narrar o passado não se limita ao espaço protegido por D. Pedro II, pois a imprensa periódica, além de divulgar textos e documentos do Instituto, constrói uma rede permeada por posições ora discordantes ora convergentes em torno da formação da brasilidade. Diante das dificuldades do trabalho de escrita da história, a criação da pátria nas manifestações artísticas é tarefa convergente com a do IHGB, à medida que se busca um referencial identitário e a produção cultural trilha sua


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especificidade nessa empreitada. Entre o discurso histórico e o ficcional, a disputa pela esfera mais representativa ocupa a preocupação dos letrados e a imprensa serve de arena para os embates e controvérsias. Ambos os discursos marcariam a emancipação políticoliterária do Brasil e seriam pensados a partir de problemas temáticos provenientes da representação da História do Brasil e, sobretudo, do seu povo, elemento que conferiria o caráter popular ao romance: Mil vezes o historiador traça a seu jeito os fatos, dá-lhe outra aparência, orna-os de outras molduras; enquanto que o romancista, parecendo entregue todo à imaginação, descreve fielmente os costumes da época, e apresenta em seus quadros as virtudes e vícios do seu tempo e povo; e deleitando, mais propende à verdade do que a chamada história. A história como todos os fumos de antiga aristocrata, apenas demora suas vistas soberanas sobre altos casos, os reis, suas vitórias, desastres e política, o romance menos altivo, democrata moderno, compraz-se com poucas coisas, abraça a multidão, identifica-se com o povo, e modesto segue a índole e caráter nacional. No momento o romance não parece interessar mais que oferecendo sob véu diáfano e alegórico a pintura dos homens e das coisas. Esta pintura porém é de muita preciosidade para o conhecedor que a sabe aproveitar: o observador que atente com cuidado os romances dos diversos povos e idades, tirará muitas vantagens para o conhecimento dos costumes [...] O historiógrafo, todo ocupado com reis, mortes, incêndios e batalhas, apenas tempo tem de marcar-nos algumas datas para certos acontecimentos políticos, enquanto que o romancista encarando menos vezes o senhor, e lidando sempre com o súdito assenhora-se melhor da fisionomia da nação, entranhase mais profundamente em suas querelas, lança melhor luz sobre a matéria, e desta arte nos mostra claramente o que se passa no tempo. Assim suas pinturas são mais vivas, suas relações mais esmiuçadas e verdadeiras, seus traços mais animados, e suas produções respiram atividade, força e vida; este estuda o homem em sua fisiologia, e garboso no-lo mostra em ação; aquele porém enfadonho e monótono, sob honorífico nome de história, apresenta-nos sem graça um esqueleto, cujos ossos truncados, ligados à vontade oferecem as saliências que o autor quis, e não as marcas da inserção dos músculos, trajeto de vasos, e outras que verdadeiras são e realmente existem (A Borboleta, 05/09/1844, v. 1, n. 3, p. 36 e 37; grifo nosso).


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Segundo esse texto, o romance se distingue da História por “abraçar seu povo”, e identificar-se com a multidão, e, nessa representatividade, consegue apreender o material e a pintura local mais profundamente, concedendo vivacidade ao passado da pátria e mimetizando os seus costumes, conflitos e querelas de um determinado momento. Esta narrativa conseguiria compor personagens e cenários de época, recorrendo a fatos históricos e à imaginação e seduzindo seu leitor pelos expedientes ficcionais, ao mesmo tempo em que o instrui. Macedo Soares, no texto “Considerações sobre a atualidade da nossa literatura”, analisa a literatura de seu tempo, julgando-a de acordo com os índices reconhecidos como nacionalizantes, e, nesse ponto, exprime aspectos de determinados gêneros literários, dimensionados pela expressão de um povo e suas tradições. Os modelos estéticos-literários são repensados e atualizados de acordo com a sensibilidade desse momento e, neste ponto, o romance histórico desponta por sua composição híbrida, ora se aproximando de narrativas documentadas ora de ingredientes inventivos e, em diferente teor, suscita distintas intenções ficcionais. As tarefas atribuídas a essa narrativa histórico-literária, bem como seu estilo, descrições e, sobretudo, sua acepção de historicidade tematizam as discussões e reflexões dos letrados, que tentam compreender a nova estética e suas qualidades inovadoras: O romancista histórico vai desenterrar velhas crônicas, e antigualhas para oferecê-las à meditação da geração presente: espelha todos os tempos que fugiram à imensidade com todos os seus usos e caracteres particulares, embebe-se e enleva-se com a contemplação de carcomidos arcabouços, penetra essas vastas abóbodas de antigos castelos, defendidos por suas altas torres, com suas pontes elevadiças, com seus muros e palissadas: evoca as ruínas, consulta os epitáfios das lousas, as inscrições tumulares, e daí tira os objetos para suas descrições. Sua pena é talhada para ostentar à geração presente sua vida e seus usos, e para refletir em um quadro bem colorido o passado com suas tradições e legendas. Colocado na época em que viveu sua personagem o romancista representa os hábitos e costumes, que dominavam nesses tempos com a fidelidade do observador imparcial, e os examina com a crítica austera e razoável, que só gera o conhecimento da causa, que analisa (Gazeta Offical do Império do Brasil, 22/01/1848, p. 2; grifo nosso).


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Esse trecho, ainda que discuta um material histórico referente à Europa, descreve detalhadamente os expedientes e traços específicos da nova forma. De acordo com suas colocações, o romancista histórico não deveria apenas se referir ao passado, mas investigar um determinado momento da pátria e narrar os hábitos, costumes, tradições e lendas do período escolhido, permitindo refletir no presente sobre os fatos passados da nação. Sob essa égide, esse molde assimila e aprofunda o caráter de um povo, cujo processo de literarização é formulado por expedientes literários, apropriados do gênero romance. Essa prosa e, em particular, o romance histórico propõe possíveis maneiras de compreender o passado, tornando os ingredientes históricos acessíveis ao leitor, e apaziguando os efeitos da ficcionalização. Nessa preceptiva, os letrados conceituam a ideia de “verdade” que reveste a narrativa e dá o princípio de totalidade do romance. Para tanto, a pesquisa e a observação do autor são elementos indispensáveis na ficcionalização dos componentes referencias. No empenho de definir as relações da prosa de natureza histórica com os traços da nacionalidade, os homens de letras atribuiriam, em alguns momentos, as mesmas funções, componentes e estilos específicos reconhecidos no discurso histórico a esse gênero, enveredando-se pelos confrontos entre as esferas da historicidade e da literariedade. Não por acaso, os literatos da primeira geração romântica passam a elogiar os romancistas que se dedicam ao romance histórico, e aqui já encontramos alguns nomes significativos, como Walter Scott, Alexandre Herculano e Fenimore Cooper. João Manuel Pereira da Silva (1837) no seu artigo “Os romances modernos e sua influência”, publicado no Jornal dos Debates, afirma seu deslumbramento pelos romances de Walter Scott, afirmando que o autor escocês havia mudado completamente esta forma, “imprimindo-lhe certo espírito histórico, certos tipos do belo ideal”. Nessa direção, se lamenta pelo fato de as mulheres não haverem lido as obras desse estrangeiro, pois, para Pereira da Silva, elas poderiam instruir-se. Sob essa visão, esse modelo de prosa engendra um viés moralizante, elemento tão discutido em torno das finalidades atribuídas ao romance. Essa preferência de Pereira da Silva encontra-se longe de ser casual. Seguindo a mesma opinião de Pereira da Silva, Dutra e Mello eleva autores como Walter Scott, Alexandre


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Herculano e Victor Hugo. Ele deseja ainda que se manifeste no Brasil uma ficção de natureza semelhante, lamentando-se pela ausência de romancistas que se lancem nessa produção e se equiparem àquela produção estrangeira, pois, até a década de 1840, tem-se a impressão de que nada havia sido produzido. Todavia, já aparecem algumas tentativas de romances históricos feitos por Pereira da Silva, como O Aniversário de Dom Miguel em 1828, e Jerônimo Corte Real : Chronica Portuguesa do Século XVI . Contudo, como as narrativas se passam em Portugal, não são apreciadas por Dutra e Mello. Por sua vez, este crítico também promove outras considerações sobre a prosa referida, que se inserem na discussão em voga no século XIX. É o caso da finalidade do romance histórico, que, a seu ver, poderia tornar-se moralizador: E contudo o romance histórico pode achar voga entre nós; tem uma atualidade que não deve desprezar. As investigações históricas a que deve proceder quiçá trarão luz sobre alguns pontos obscuros que homens devotados à história do país buscam hoje elucidar; pode tornar-se de envolta moralizador e poético se bem cair no preceito – Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci. (DUTRA E MELLO, 1844, p. 747; grifo nosso).

O prestígio do viés moralizador acalenta a recepção desse gênero, que poderia exprimir a junção do “útil e agradável”: [...] da literatura não olvidem nunca que a moralidade é o primeiro elemento de toda a obra de imaginação, e que um romance tem por objeto instruir deleitando, conduzir à virtude, fazê-la amar, desviar os homens do vício [...] Sigam as pisadas e belos exemplos que tem deixado Bernadino de Saint Pierre, Fielding, Chateaubriand, Walter-Scott, dizemos, cujo nome simbolista por si só todas as qualidades que constituem o verdadeiro novelista, elevadas a um grau sublime de perfeição, raiando quase a par da epopeia e ligados com o mais profundo conhecimento do coração humano, com o mais animado e vivificante talento descritivo e com a mais assombrosa fecundidade na invenção histórica (A Nova Minerva, julho de 1846, n. 32, p. 121; grifo nosso).


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Esse último trecho estreita as fronteiras entre romance e epopeia, e transpõe funções, temas e estilos da poesia épica para o romance histórico. Nessa chave de leitura, a narrativa de teor histórico reacomoda princípios estilísticos e temáticos da natureza épica, revigorando a principal função desta estrutura: “cantar a gênese da nação”. No aproveitamento de ingredientes estéticos, o romance histórico aponta seu aspecto inovador, seja nos detalhes de descrições de época, seja na construção de conflitos do passado que desaguam no presente, e nessa fonte de inovações, Walter Scott desponta como o “pai do romance histórico”: “O romance histórico nos tem dado primores e muitas penas se criaram reputações continentais nesse gênero, e à frente delas Walter Scott” (Minerva Brasiliense, 1844, p. 747); “Sir. Walter Scott pensando que nem um romance era semelhante ao romance histórico constituiu-se chefe dessa escola romântica” (Gazeta Offical do Império do Brasil , 10/04/1848, p. 2); “Teria o Sr. Alexandre Herculano concebido o seu Monge de Cister com aquela majestosa e imponente fábrica se Walter Scott não nos houvesse dado o modelo do romance histórico” (Correio Mercantil , 31/03/1852, p.1.); “Walter Scott populariza os mais desconhecidos episódios dos anais pátrios e dá nascimento ao romance histórico” (Correio Mercantil , 15/12/1857, p. 1). O reconhecimento de Scott legitima o sucesso que a prosa histórica faz nesse momento1. O escritor escocês passa a ser referência para os autores brasileiros que escrevem obras de caráter histórico-literária, pois, encarado como modelo estético de releituras, adaptações, interpretações, muitos escritores, sejam nacionais ou estrangeiros, partem dele para mostrarem os pontos de contatos, empréstimos, e, sobretudo, divergências entre as prosas nacionais.2 Na circulação dessa natureza de ficção, não só Walter Scott é admirado e prestigiado pelos letrados no Brasil, mas também outros romancistas ganham repercussão e uma recepção calorosa nos periódicos brasileiros. O escritor português Alexandre Herculano e o francês Alexandre Dumas, da mesma forma que os brasileiros, também apreciam a prosa de Scott. Herculano e Dumas3 possuem forte influência, circulação e publicação no território brasileiro. Sobretudo, as conceituações de Herculano em torno do romance histórico servem como paradigmas aos literatos brasileiros,

____________________ 1 Vale constatar a ampla circulação do romancista no Brasil. Segundo Sandra Vasconcelos, “[...] um exame da coleção de romances de Scott ainda disponíveis no acervo do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro (inaugurado em 1837) não só confirma a presença expressiva do romancista escocês na capital do Império no século XIX, como revela também alguns dados muito interessantes, que vale anotar: das edições da década de 1820, constam apenas dois títulos; a entrada mais volumosa de títulos ocorreu na década de 1840 [...]” VASCONCELOS, S. G. T. Cruzando o Atlântico: notas sobre a recepção de Walter Scott. Cruzando o atlântico: notas sobre a recepção de Walter Scott. In: ABREU, M. (org.). Trajetórias do romance: circulação, leitura e escrita nos séculos XVIII e XIX. Campinas: Mercado de Letras, 2008. p. 351-374. p.364; grifo nosso. 2 “A comparação quase inevitável entre Herculano, Garret, ou outros, e Scott torna-se quase obrigatória, uma vez que durante o século passado a sua influência foi de tal forma importante que [...] existe uma transferência dos modelos scottianos para os problemas locais de cada povo.” MARINHO, M. F. O romance histórico em Portugal. Porto: Campo das Letras, 1999, p. 19. 3 Sobre a circulação de Alexandre

Dumas, Ilana Heineberg, no seu estudo sobre o romance-folhetim, aponta um total de 35 romances de Dumas publicados entre os anos de 1839-1870, o que indica a popularidade e o interesse despertados pelos romances de Dumas do leitor fluminense. HEINEBERG, I. La suite au prochain numéro: formation du roman-feuilleton brésilien à partir des quotidiens Jornal do Commercio, Diário do Rio de Janeiro et Correio Mercantil (1839-1870). Tese (Doutorado), Paris: Université de la Sorbonne Nouvelle-Paris III, 2004.


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_____________________ 4 “[...] o romance histórico para Alencar, à semelhança de Garrett ou Herculano, é espelho do presente, lugar para onde se transportam frustrações e desilusões, esperanças e vontade de mudança do mundo contemporâneo do autor e dos leitores.” PAOLINELLI, L. M. A. O romance histórico e José de Alencar. Tese (Doutorado), Universidade da Madeira, 2004. p. 129 e 131. 5 Vou abandoná-lo com todas as suas características duvidosas, suas cavernas e seus castelos, suas antiguidades modernas e suas modernidades antiquadas; sua confusão de tempos, maneiras e circunstâncias; suas propriedades; como atores que falam de cenários e de vestimentas, de todos os seus expedientes extenuantes, aos tolos que, com eles, optam por lidar [...] Vou construir meu alicerce sobre bases fortes, e não sobre a areia movediça; vou elevar minha estrutura com melhores materiais, e não com papelões coloridos; em uma palavra, eu vou fazer HISTÓRIA! 6 Quando escrevo um romance, ou quando concebo um drama, submeto-me, naturalmente, às exigências do século no qual meu tema está ambientado. Os lugares, os homens, os acontecimentos me são impostos pela inexorável pontualidade da topografia, da genealogia, das datas. É necessário que a linguagem, os costumes e mesmo a expressão das minhas personagens estejam em harmonia com as ideias correntes na época que tento retratar. Minha imaginação, às voltas com a realidade, tal qual um homem que visita as ruínas de um monumento destruído, é forçada a passar por cima dos escombros, a seguir os corredores, a curvar-se sob as passagens secretas, para reencontrar – ou quase – a planta do edifício na época em que a vida o habitava, em que a alegria o invadia de cantos e de risos, onde a dor reclamava um eco para os soluços e para as gargalhadas.

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principalmente, no caso de José de Alencar4. Quanto à composição estética da obra histórico-literária, os textos do autor português discutem questões relevantes de sua época, como a tensão entre literatura e história; verdade e verossimilhança; história e lenda. Herculano explora esses tópicos em vários de seus escritos; aliás, a relação entre verdade e verossimilhança é uma preocupação recorrente de sua produção literária, estabelecendo pontos de contato com a dos letrados brasileiros. Essa dialética instaura um problema comum enfrentado pelos romancistas. Antes mesmo de Herculano, Walter Scott já tinha polemizado em 1824, na “Introdução” de seu romance The Betrothed: I will leave you and your whole hacked stock in trade – your caverns and your castles – your modern antiques and your antiquated moderns – your confusion of times, manners, and circumstances – your properties, as playerfolk say of scenery and dresses – the whole of your exhausted expedients, to the fools who choose to deal with them […] I will lay my foundations better than on quicksands – I will rear my structure of better materials than painted cards; in a word, I will write HISTORY!5 (SCOTT, 1887. p 16; grifo nosso).

Alexandre Dumas também ocupa lugar nessa dimensão auto-reflexiva, marcada pela consciência ficcional. Após ter escrito vários romances históricos, pensa ter ensinado à França “mais História do que qualquer historiador [pois] a diversão para nós foi apenas uma máscara para a instrução”: uand j'écris un roman, ou quand je bâtis un drame, je subis tout naturellement les exigences du siècle dans lequel mon sujet s'accomplit; les lieux, les homme, les événements me sont imposés par l'inexorable ponctualité de la topographie, de la généalogie et des dates; il faut que le langage, le costume, l'allure même de mes personnages soient em harmonie avec les idées qu'on s'est faites de l'époque que j´ essaie de peindre. Mon imagination, aux prises avec la réalité, pareille à un homme qui visite les ruines d'un monument détruit, est forcée d'enjamber par dessus les décombres, de suivre les corridors, de se courber sous les poternes, pour retrouver, ou à peu près le plan de l'édifice, à l'époque où la vie l'habitait, où la joie l'emplissait de chants et de rires, où la douleur y demandait un écho pour ses sanglots et pour ses cris (DUMAS, 1849, p. 240).6


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O olhar desses literatos toca nos aspectos estéticos da nova prosa.7, concernente ao seu caráter híbrido. Essas reflexões alimentariam a visão de José de Alencar, sendo que os componentes do romance histórico – a tensão entre verdadeiro e verossímil, entre literatura e história - ocupa constantemente as preocupações do projeto literário do autor, revelando sua intenção ficcional. Na ficção, o efeito de verdade é o que lhe interessa. Nos seus romances, ele se manifesta através de um elemento exterior (nota de rodapé informativa) para criar uma ilusão de veracidade. Semelhantemente a Herculano e próximo dos seus conterrâneos, José de Alencar tenta dar “ar de verdade” aos seus textos, ao mesmo tempo em que mostra a diferença entre seu discurso literário e os dados históricos. Assume a verossimilhança do campo ficcional, e também aponta que a literatura pode ser mais verdadeira que a própria história. Em seus romances e prosas, Alencar, em diferentes momentos, tensiona seu próprio discurso, atravessado por ideias chaves que marcam seu fazer literário: Os edifícios em ruína ainda tinham gravados nos seus muros os vestígios do incêndio que em 1631 os holandeses lançaram à cidade. [...] Quantas vezes não sondei esses destroços de alvenaria, essas paredes nuas, procurando, nem sei o que, uma memória, um nome, uma inscrição, uma frase que me revelasse algum mistério, que me dissesse o epílogo de alguma lenda que a imaginação completaria.8 (ALENCAR, 1872. p. 126; grifo nosso).

No seu pensar, a literatura deve trazer o passado da nação, sendo fiel às suas fontes, mas recusando o papel de mera reprodução e, para tanto, recorrendo à imaginação e à poeticidade, numa intensa dialética entre história e ficção, verossimilhança e verdade. Sobretudo, a reconstituição de lendas e mitos toma parte de sua escrita e de sua consciência ficcional. Assim interpretada, a narrativa histórico-literária capta o “gênio do povo”, e por conceder mais força à dimensão narrativa, é mais “viva” que a História. Tanto José de Alencar quanto outros romancistas assumem serem tão ou mais aptos do que os historiadores para revelar “a história e suas verdades”, bem como para recontar a história íntima. Percebemos que os autores estudados, brasileiros ou estrangeiros, pensam a história como um discurso objetivo,

______________________________ 7 Segundo Hugo Lenes Menezes, “[...] Herculano entende que a verdade histórica é condição para a "verdade" da obra de ficção: considerada a verdade histórica, isto é, objetiva, o romance possibilita a fixação de características íntimas, subjetivas, de um tempo, da sensibilidade e pensamento de outras eras através da apreensão do espírito do povo, do Volksgeist, que o ficcionista atualiza no contexto dado pela historiografia objetiva. [...] Assim, Alexandre Herculano, ao mesmo tempo que afirma a verdade interiorista de uma época e de um povo, reconhece a relatividade que envolve a veracidade dos textos, sejam históricos, sejam ficcionais, e, por conseguinte, reconhece também a dialética entre o verdadeiro e o verossímil.” MENEZES, H. L. Literatura, história e metalinguagem. Um olhar sobre a ficção de Alexandre Herculano. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária), Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 1997. p. 19. 8 Id., Alfarrábios: crônicas dos tempos coloniais. Rio de Janeiro: Garnier, 1872. p. 126; grifo nosso.


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menos tragável, em detrimento do discurso “vivo” da literatura, que consegue expressar seu povo à luz da história. De maneira geral, os romancistas defendem que a prosa ficcional pode revelar mais “verdade” que o discurso histórico, pois, para eles, a literatura enquanto expressão do seu povo, de suas tradições e seu espírito, captaria uma “verdade” mais profunda. Seguindo essa premissa, o caráter pedagógico e nacionalista da prosa alencariana instaura-se na projeção do espírito de um povo, suas lendas, mitos e tradições: Enchia então o mundo a notícia das inesgotáveis minas do Potosi; e a imaginação humana, que jamais se deixa vencer da realidade, esparzira imediatamente sobre toda esta região americana, situada entre o Amazonas e o Paraná, serras de ouro e prata, cidades de esmeralda e pórfido, sítios encantados. Aquele guerreiro era um valente roteador dos sertões: o gentio o chamava de Moribeca - o caçador de gente. Embalado por tais contos de fadas e guiado por informações do gentio, o guerreiro se partira do seio da família, na esperança de descobrir outras minas de prata mais abundantes que as do Peru; e depois de cerca de um ano de longas excursões pelas cabeceiras do rio de S. Francisco chegara afinal à serra do Sincorá. (ALENCAR, 1958, p.1127; grifo nosso). O popular enchia a taberna, e o fluxo e refluxo dos que entravam e saiam agitavam a multidão. [...] (ALENCAR, p. 542; grifo nosso). [...] ele [o povo] venera as tradições da pátria e da cidade; deleita-se com as relíquias e antigualhas, que lhe são como recordarções da infância, e lhe retraçam o berço onde se embalou a sombra da fé rude de seus antepassados. Por isso não ha mais puro santuário da história, do que seja o povo. Viver na voz dos povos, não é isso que tantos ambicionam?...(ALENCAR, 1872, p. 177). Entretanto o povo, passada a primeira impressão, indagara entre si do autor dessa lembrança; e não faltava quem atribuisse o inesperado e misterioso aparecimento do retábulo à intervenção do poderoso S. Sebastião que ahi se representava para assim comunicar sua vontade aos moradores da cidade. Esse encanto do maravilhoso é irresistível para a imaginação popular (ALENCAR, 1872, p. 189).


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Em busca dos aspectos populares, José de Alencar envereda-se por um movimento mais amplo, o fenômeno da “descoberta do povo”: Esse interesse por diversos tipos de literatura tradicional era, ele mesmo, parte de um movimento ainda mais amplo, que se pode chamar a descoberta do povo. Houve a descoberta da religião popular. Arnim, aristocrata prussiano, escreveu: "para mim, a religião do povo é algo extremamente digno de respeito". Já o aristocrata francês Chateaubriand, em seu famoso livro sobre o "gênio da cristandade", incluiu uma discussão sobre as dévotions populaires, a religião não oficial do povo, que via como uma expressão da harmonia entre religião e natureza. Houve ainda a descoberta das festas populares. Herder, que nos anos 1760 morava em Riga, ficou impressionado com a festa de verão da noite de são João. Goethe ficou entusiasmado com o Carnaval romano, que presenciou em 1788 e interpretou como uma festa "que o povo dá a si mesmo". [...] Houve a descoberta da música popular. [...] Houve tentativas de se escrever a história do povo, ao invés da história do governo [...] (BURKE, 2010, p. 30).

Dentre essas tentativas, Alexandre Herculano faz uma coletânea de lendas literárias, em Lendas e Narrativas, e ocupa-se essencialmente do aspecto verossímil da tradição oral popular, tensionando os limites de veracidade, pois, o autor refuta a fundamentação histórica dessa obra: A história é verdadeira, a tradição verossímil; e o verossímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria. (HERCULANO, 1859, p. 58). Quando o caráter dos indivíduos ou das nações é suficientemente conhecido, quando os monumentos e as tradições, e as crônicas desenharam esse caráter com pincel firme, o noveleiro pode ser mais verídico que o historiador; porque está mais habituado a recompor o coração do que é morto pelo do que vive, o gênio do povo que passou pelo povo que passa (HERCULANO, 1840, p. 243).

Próximo de Herculano, Francisco Adolfo Varnhagen reflete sobre os diferentes discursos, o da tradição e o da História, no seu texto “O Caramuru perante a história” (1848) publicado pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com o objetivo de discutir o


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assunto proposto pelo próprio Instituto: a viagem do Caramuru à França. Para tanto, o historiador parte da importância da tradição popular e mostra que os fatos trazidos à luz das crenças e dos mitos sempre têm um fundo de verdade, afinal, ao passarem de geração a geração, e serem poetizados, guardam algo de verídico. A seu ver, a tradição se constrói nas diferentes versões e ramificações de um dado, o que ocorre com o Caramuru. O filão da imaginação popular, comentado por Varnhagen em contraponto à História, é explorado por Alencar em seu romance pelo viés da oralidade em torno das minas de prata. O próprio título As Minas de Prata evoca a fábula do El Dorado, que sofre ressignificações, alterando-se continuamente em diferentes sistemas e combinações, no decorrer do processo exploratório. Alencar escolhe a forma desse mito: as representações da América Portuguesa como progenitora do ouro e da prata traçam os diálogos transnacionais proporcionados pelas minas de Robério Dias. Citando o historiador português Rocha Pitta nas notas de 1862, Alencar extrai o material do seu El dorado. A partir desse dado, o autor recria as origens lendárias da pátria, afrouxando e esfumaçando as fronteiras históricas da obra de Rocha Pitta nas transformações operadas pela cultura popular. 2 As Minas de Prata e o caráter de um povo: suas tradições, mitos, lendas e fabulações No seu romance, Alencar recria um sistema de crenças populares, interpretado pela mescla dos elementos do cristianismo com as tradições e superstições de um povo, formulando o ideário de um território. Entre os dogmas da Igreja Católica e as superstições e narrativas maravilhosas, a lenda do El Dorado transita por diferentes culturas, a letrada, representada pelos alfarrábios dos jesuítas, e a popular, e absorve os pontos de contatos culturais, bem como questiona a verdade dos registros históricos dos loiolanos: A obra do P. Soares tinha o cunho da maior exatidão; ele a bebera na fonte da história, onda sonora que desliza mansamente através das idades; na voz dos séculos, que vulgarmente chamam tradição oral, não impura e toldada, como muitas vezes aparece a tona da publicidade, mas límpida e pura, filtrada pela consciência religiosa no confessionário (ALENCAR, 1958, p.1033; grifo nosso).


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.26, 2015 Foi no confessionário que o Padre Soares, durante anos de inquérito, apanhou os fragmentos esparsos com que chegou laboriosamente a construir o seu edifício. Quase toda a gente contemporânea de Moribeca veiu por sua vez dizer quanto sabia; assim de elo com elo, por essa cadeia de indivíduos, atingira ele ao ponto a que visava: descobrira um dos acostados que haviam acompanhado Robério Dias na jornada de descoberta (ALENCAR, 1958, p.1033 e 1034; grifo nosso).

O narrador questiona o conceito de veracidade dos escritos jesuítico, em confronto com os debates promovidos pelo IHGB, que divulgam os documentos dos loiolanos como fontes de época, pois, a grosso modo, os sócios do Instituto consideram que “os jesuítas escreviam histórias”. Na obra ficcional, o registro dos inacianos estariam impregnados pela imaginação dos colonos, e, portanto, não estariam sob um olhar investigativo. Ao refletir sobre esses escritos, o narrador desdobra seu discurso para a discussão emblemática do romance no século XIX, entre ficção e o conceito de veracidade, e entre diferentes narrativas e níveis de veracidade. Na prosa, a prática epistolar da Companhia seria regida por conta do que se ouvia no confessionário, de modo que este espaço se perfaz como o mediador entre duas culturas distintas. Alencar explora na sua produção romanesca a presença de alfarrábios e a figura de padres cronistas, cujas referências fornecem os documentos de época, que articulam, de forma fragmentada, as fontes históricas, bem como a própria confecção da obra. Ao mesmo tempo em que os padres trocam cartas e escrevem alfarrábios, o romance se circunscreve nas mais variadas formas, trazendo as possíveis versões das minas. O espaço subterrâneo e os mistérios que o cercam possibilitam versões distintas e, ao mesmo tempo, aproximadas: a de Caminha (amigo de Robério Dias), a do Padre Soares (jesuítas), e a do povo. Nesse ponto, o povo passa a ser simbolizado pelos mexericos e boatos que gravitam em torno das pedras preciosas, aliás, a figura do povo poderia ser representada pelo personagem de Ramón, que veio da Espanha seguindo os rumores: Muitas vezes, tentado dos contos fabulosos que faziam os aventureiros e marujos, pensara Ramón em passar-se à colônia à busca de riquezas, com que supunha poder comprar para sua filha uma felicidade, em troca da outra, para sempre e sem remissão perdida (ALENCAR, 1958, p. 674; grifo nosso).


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O episódio de Robério Dias, envolvendo sua descoberta e as peripécias em torno do seu achado, transformou-se no próprio “conto das minas”, fornecendo uma narrativa mítica da figura do El Dorado brasileiro. A colônia não somente seria lembrada por esbanjar ouro, prata e diamante, mas, principalmente, pelo “conto”, no qual Robério se torna o protagonista. Assim, tal episódio é retomado no navio Galeão, onde se reuniriam personagens do Brasil e da Europa, sendo que tal espaço pode ser visto como símbolo da conexão Brasil-Europa, e, neste sentido, a trama simbolizaria seu leva-e-traz, seus rumores nos países aquém-mar. Alencar explora os efeitos que os rumores podem gerar, e confecciona as qualidades lendárias pelo aspecto da oralidade do povo. Se as minas de prata constituem o principal elemento definidor do mito e do caráter popular de uma nação, ao trazer referências do El Dorado, outros ingredientes também contribuem para definir a pátria no quadro particular de sua história. O festejo popular de recepção do governador, a taberna de Brás e as fabulações criadas pelo povo sobre o nascimento da personagem Joana e sobre a bruxa Zana dão contornos à imagem da população baiana e de seu caráter supersticioso. A narrativa dá força ao quadro oral e às fabulações representativas do espírito da época. A prosa reapropria-se de formas e convenções da cultura popular, como o espetáculo e o teatro de dança, redimensionados pelos espaços considerados coletivos, como a taberna, a praça, e a igreja. Esses cenários são importantes conforme possibilitam o trânsito cultural, sendo que a igreja e a taberna se apresentam como pontos articuladores entre o alto e o baixo. Na igreja, os personagens nobres e aristocráticos reunem-se com os de origem humilde, para exercerem práticas religiosas. Nesse local, conversam, cantam e oram. A taberna, lugar de ampla circulação, possibilita o encontro entre personagens honestos e ambiciosos, aliás, nesse estabelecimento comercial, o taberneiro conspira contra a pátria e trama roubos. Os ambientes explorados pela narrativa possuem aspectos similares aos de seus modelos literários. Em Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, e nos romances O Bobo, Eurico o Presbítero, e O Monge de Cister, de Alexandre


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Herculano, a taberna é retratada como espaço do povo, mediadora do alto e do baixo, e em O Monge de Cister , em particular, ela promove o contato entre diferentes religiões. Sobre esta prosa, Herculano explora a procissão de Corpus, parte do culto religioso popular, que, para determinados personagens, termina na taberna. Em As Minas, a tradição religiosa popular é referenciada pelas missas, procissões e, sobretudo, pela festa de Santos Reis, que conta ironicamente com a participação do taberneiro. Em Notre Dame de Paris, a catedral orbita em torno do popular e da mistura entre as categorias do grotesco e sublime, promovendo o contato e a mescla entre distintos personagens, que incorporam e harmonizam os contrários, qualidades nobres e inescrupulosos; belas e feias, teorizadas pelo autor no prefácio de Cromwell. No romance, a invasão do espaço religioso pelo povo nas últimas cenas traduz o espírito da época e o apelo popular do texto. Relativo a esse aproveitamento, a organização da festividade da corte tem características assemelhadas com os festejos de recepção do governador em As Minas de Prata , conforme ambos os romance apreendem os traços populares, um no ambiente da corte, outro no ambiente aristocrático, assim como encenam as danças em praças. Na prosa alencariana, as danças registram a participação de “tipos brasileiros” que figuravam na representação, principalmente, na de Joanina, uma mulata de pais desconhecidos, vendedora de confeitos, que seria a própria princesa moura. O narrador readapta as características da mulata aos trajes da peça, amenizando os seus traços negros e acentuando sua sensualidade, indiciado pelo sorriso lascivo, requebro lânguido e sensual, porte sedutor, que lhe aproxima da natureza americana e miscigenada, assim como a personagem Isabel de O Guarani. O tipo brasileiro representa a síntese dos outros personagens que também estão presente na reconstituição dos siescentos, como os negros, os descendentes de espanhóis, de índios, e de portugueses. Assim, tanto a mulata como o próprio personagem Estácio trazem o cruzamento de “raças”, bem como concedem “ares” populares á festa, por serem personagens considerados menos nobres; Estácio busca resgatar seu passado, e Joaninha não conhece o seu. Isso nutria o pensamento do povo: “É a sorte dos enjeitados darem tema às fábulas fantasiadas pela imaginação popular,


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sempre disposta a acreditar no maravilhosoâ€? (ALENCAR, 1958, p.538 e 539). A incorporação da superstição ĂŠ ficcionaliza por Victo Hugo, que a enfeixa sobre manifestaçþes do grotesco. Ao contrĂĄrio dos personagem de Notre Dame de Paris , que conferem um tom de rebaixamentos aos seus boatos e rumores, Alencar confere dignidade a crenças de seus personagens. Na prosa alencariana, a participação do povo tambĂŠm aparece na prĂłpria rua: “Diferentes danças e mascaradas começaram entĂŁo a percorrer as ruas, armadas de uma extremidade Ă outra com arcos de luminĂĄrias e alamedas de coqueiros, de cujas palmas pendiam lampiĂľes de vĂĄrias coresâ€? (ALENCAR, 1958, p. 522). A construção das imagens da população impregna a festa do governador, contudo, a festa no palĂĄcio teria um carĂĄter menos aberto: A festa popular estava terminada; mas uma branda lufada do vento trouxe uns alegres tangeres de mĂşsica, como para dizer a Elvira que o sarau ainda durava e com ele seu tormento [...] (ALENCAR, 1958, p. 566).

Assim, se a cultura letrada poderia participar do popular, contrårio não acontecia, pois, a cultura erudita, apreendida pelos espaços DULVWRFUiWLFRV H SHOR &ROpJLR GRV -HVXtWDV p UHVWULWD DR SRYR $V GXDV FXOWXUDV VmR PRGLILFDGDV RX WUDQVIRUPDGDV QXP SURFHVVR GH FRQIURQWR H GH LQWHUDomR HQWUH VL $V PLQDV IRUPXODP R IROFORUH SRSXODU H VXD OHQGD FRQIHFFLRQD DV RULJHQV PtWLFDV GR SDtV 2 LQJUHGLHQWH PtWLFR HVWi SUHVHQWH SHOR FDUiWHU DOHJyULFR GDV PLQDV Mi TXH D JUXWD UHSUHVHQWD DV LPDJHQV GR (O 'RUDGR GLIXQGLGDV GHVGH DV SULPHLUDV FRORQL]Do}HV $V VXDV YHUV}HV ID]HP SDUWH GR UHSHUWyULR FROHWLYR SRLV R SRYR SDUWLFLSD GD WUDQVIRUPDomR FXOWXUDO FRQIRUPH VHOHFLRQD VHX SUySULR UHSHUWyULR GH OHQGDV H VHXV HOHPHQWRV IROFOyULFRV FXMRV WUDoRV FRQVWURHP RV DVSHFWRV TXH GmR H[SUHVVLYLGDGH D XPD QDomR $VVLP buscando construir os rastros do que poderia ser reconhecido como literatura nacional, a noção de nação e påtria Ê construída H GHILQLGD HP UHODomR DR VHX SRYR caracterizado pelos elementos locais da cidade de Salvador, suas festas, torneios, encenação, lugares coletivos e, sobretudo SHOD SUySULD WUDPD GDV PLQDV GH SUDWD


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Considerações finais

As Minas de Prata, estruturada pelo misto de estilos, entre baixo e alto; por simbologias religiosas e históricas, mesclou ingredientes de uma tradição literária, revista e recontextualizada nos oitocentos, com a valorização da transmissão de lendas e tradições e a composição do povo e sua cultura popular no romance histórico. A narrativa explorou mais profundamente os aspectos da civilização, com as imagens da capital baiana e ecos da cultura popular, constituída pelo culto às crenças e tradições, também fruto dos diálogos transatlânticos. Sob esse prisma, o autor transfigurou a história na atmosfera do mito e lenda. Mais do que a importância dada aos episódios históricos, o narrador colocou em relevo a transmissão de lendas e tradições, mediada por uma certa realidade, na formulação da pátria e de suas raízes. Ou seja, a atmosfera histórica e mítica compôs a engrenagem mítica e épica. A apreensão do espírito de um povo buscou nacionalizar a literatura e conferir dignidade à população brasileira dos oitocentos e, nesse ponto, o romance tentou instruir seus leitores e ser mais verdadeiro do que a História. Referências ALENCAR, J .Alfarrábios: crônicas dos tempos coloniais. Rio de Janeiro: Garnier, 1872. ______. As minas de Prata. In: ___. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958. v. 2 BURKE, P. Cultura popular na Idade Moderna . Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. DUMAS, A. Le Mois: Revue Historique et Politique, par Alexandre Dumas, 01/10/1849, p. 240. DUTRA E MELLO. A moreninha. Minerva Brasiliense . Rio de Janeiro, v. 2, n. 24, p. 746-751, 1844.


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formação do leitor infantil e juvenil em Mato Grosso Press and literature: the case of journals in the formation of children and young player in Mato Grosso Renata Beatriz Brandespin Rolon* RESUMO: Este artigo focaliza a formação do campo literário em Mato Grosso e perfaz o caminho que revela a História da literatura infantojuvenil no Estado, a partir dos primeiros textos literários direcionados a crianças e jovens. Os periódicos como A Juventude (1916 a 1917), ou em jornais escolares como O Pequeno Mensageiro (1920) e O Liceu (1930), foram responsáveis por ações e pela representação da criança dentro desse universo da escrita. Para chegarmos a uma análise mais pertinente foram verificadas as tendências estéticas, os temas, as formas e os recursos visuais que moldaram o periódico A Juventude. A conjunção da História e da Crítica literária, embasada nas análises de alguns números do periódico selecionado é a força motriz deste estudo. PALAVRAS-CHAVE: Literatura infantojuvenil mato-grossense. Periódicos juvenis. Formação do campo. Leitores. ABSTRACT: This paper focuses on the formation of the literary field aimed at children and young people in Mato Grosso and makes up the path that reveals the history of children and youth literature in the state, from the first literary texts aimed at this audience. Journals as Juventude (1916-1917), or in scholarly journals such as O Pequeno Mensageiro e (1920) and O Liceu (1930) were responsible for actions and representation of child within this universe of writing. To achieve a more meaningful analysis, the aesthetic trends, themes, shapes and visual resources that have shaped the journal Juventude were verified. The combination of History and literary criticism, based on the analysis of some numbers of the selected journal, is the driving force of this study. KEYWORDS: Mato-grossense children and youth literature. Youth journals. Field of formation. Readers. __________________ * Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo -SP

Introdução

Contar a história da literatura infantil e juvenil produzida em Mato Grosso é tarefa árdua. Traçar um panorama dessa literatura requer incluir questões inerentes à História do Brasil, que envolvem a expansão territorial do país, seus diferentes tipos humanos, suas diferentes culturas, modos, arte, além de seu processo de desenvolvimento econômico e educacional. É também considerar que a memória


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individual e coletiva determinam os rumos desses caminhos tecidos por um fio condutor que apresenta e representa uma individualidade. Diante da complexidade dos textos que estruturam a literatura infantil, em tempos de memória fugidia, a arte literária torna-se um instrumento útil. Tanto a narrativa oral quanto a escrita são ferramentas capazes de potencializar o fluxo das lembranças e da criação. Na literatura, encontramos caminhos que indicam como o homem pode depreender, por intermédio da linguagem inventiva e dinâmica, o passado e suas intermitências. Atentamos que na lembrança está o mote para que o homem teça suas narrativas e refaça sua história. É oportuno frisar que lembrar o passado significa buscar múltiplas vozes, evocar imagens que revelam mais do que fatos. Essas imagens desvelam valores, crenças... desvelam vidas. Nessa perspectiva, rastreamos a gênese e o desenvolvimento da literatura infanto-juvenil produzida em Mato Grosso sem perder de vista os dados históricoculturais que, direta ou indiretamente, atuam ou atuaram na criação literária local. Na certeza de que o Brasil possui uma história cultural múltipla, diversa e conflituosa, tornase oportuno mostrarmos como ocorreu a prática de leitura nesse espaço geográfico. 1- Por uma imprensa em Mato Grosso: a formação do leitor infanto-juvenil O encontro entre literatura e imprensa, na virada do século XIX para o XX, é fator primordial para o processo de formação e desenvolvimento da literatura e, em especial, da literatura infantil e juvenil brasileira. A produção literária adulta e infantil, que se publicava na imprensa consagra autores, além de servir como mediação para exposição de princípios, formação cultural e questões relativas ao aprendizado escolar. Essa produção exerceu um papel de suma importância para a divulgação de ideias, ideologias, além de contribuir para formação dos hábitos, gostos e atitudes. Devido a sua popularidade, a imprensa gradativamente tornou-se mais especializada, atendendo às necessidades comunicativas e aos interesses específicos de diversos grupos sociais.


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Muitos autores divulgavam suas obras literárias por intermédio de jornais e revistas, uma vez que, através desses veículos, conseguiam atingir um público maior do que aquele alcançado com a publicação de livros. Situação semelhante ocorre em determinado período histórico de Mato Grosso. Referimo-nos ao momento em que jornais e revistas com conteúdos infantis e juvenis passam a contribuir para a formação de uma produção literária destinada a esse público. Coube a imprensa o papel de moderadora entre o texto jornalístico, o literário e o texto que servia a interesses mais pedagógico-cívicos. Analisando a formação da literatura infantil brasileira, Arroyo (2011, p. 179) informa: Para a formação das coordenadas da literatura infantil brasileira, a criação de um campo propício à sua evolução – sem nunca esquecer aqui a importância fundamental do desenvolvimento da educação e do ensino – para sua base, se assim podemos exprimir, foi a imprensa para crianças e jovens, imprensa não só na forma de jornal, como na forma de revista.

As análises de jornais e revistas ajuda-nos a rastrear a gênese da produção infantil em Mato Grosso. A caracterização de movimentos culturais, como o teatro e literatura, começa a ter um direcionamento o que nos possibilita redefinir concepções no que dizem respeito à literatura e aos aspectos históricos. No espaço-tempo das letras impressas é indiscutível o caráter civilizatório mediado pela imprensa que “entreteve, informou, educou, criou hábitos de leitura, formou autores, refinou costumes, ditou regras sociais, morais e religiosas, e fortaleceu a identidade regional” (NADAF, 2002, p. 208). Em face da relevância que os jornais tiveram na vida social mato-grossense do século XX, propomos estudar a imprensa escolar infantil e juvenil, mais especificamente jornais, que trazem em seu conteúdo uma temática voltada para esse público. Na literatura do mundo ocidental, a Espanha foi um dos primeiros países a possuir esse tipo de publicação. Em 1798, na cidade de Madri, surgiu o primeiro periódico infantil, Gazeta de los Niños. Este, como os demais que circularam no país até os primeiros anos do século XX, servia aos interesses da escola. Munidos de intenções pedagógicas e preceitos eruditos, a arte literária ficava em segundo plano, fator determinante para fortalecer a relação da literatura infantil com a pedagogia. Segundo Arroyo (2011), essa característica se estende à imprensa escolar infantil surgida em toda a


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Europa, de quem o Brasil recebe os primeiros ensinamentos. No Brasil, a imprensa infantil e juvenil escolar surge na Bahia, na primeira metade do século XIX. A partir do título do jornal já era possível perceber essa inferência. Trata-se, por exemplo, do jornal O Adolescente (1831), que teve 46 números publicados. Contudo, segundo Arroyo (2011), em julho de 1937, em Salvador, circula um jornal que continha em seu conteúdo o direcionamento específico: O Recompilador ou Livraria dos Meninos. Nessa trajetória, registra-se o aparecimento dos primeiros jornais, O Juvenil, no Rio de Janeiro; no Maranhão, Jornal de Instrução e de Recreio; em Pernambuco, A Saudade e em São Paulo, Kaleidoscopio, todos com objetivos pedagógicos. Arroyo (2011) faz um levantamento de materiais como livros, revistas além de jornais, impressos em escolas brasileiras ou apenas direcionados à área escolar durante o século XIX e início do XX. Nesse levantamento, o crítico opta por citar os de caráter infantil e juvenil em cidades do interior de São Paulo, como também nas capitais do Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Em meio a um grande número de material, o autor revela que há os utilizados na intenção do aprendizado, das obrigações escolares e os que intencionam o divertimento. É importante frisarmos que a imprensa escolar infantil e juvenil em Mato Grosso não faz parte da pesquisa de Arroyo. As experiências locais, veiculadas a essa produção não são citadas pelo crítico, que promove um estudo pioneiro sobre a história da literatura infantojuvenil brasileira. Mesmo afirmando que os jornais, quer nas escolas primárias quer nas secundárias, promoviam a circulação das manifestações literárias de intelectuais, escritores e poetas que, em muitos casos, se salientariam nas letras literárias brasileiras, o crítico deixa à parte as importantes contribuições que a imprensa escolar em Mato Grosso traça para o levantamento dessa história. No que tange a imprensa em terras matogrossenses, encontramos registrado que em 30 de junho de 1902 chegou à oficina de tipografia do Liceu Salesiano a máquina Marinoni, montada no antigo refeitório dos padres. Em 1903, os salesianos de Cuiabá lançam o jornal


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Matto-Grosso, que circulou durante um ano e depois foi transformado na Revista Matto-Grosso, editada pelo padre Helvécio Gomes de Oliveira (JUCÁ, 2009). Grande parte dos números traz assuntos relacionados à igreja católica e à congregação salesiana. Algumas edições, como as de número 01, 08, 10 e 12, tratavam de fatos importantes locais e nacionais, como a eleição do novo presidente do Estado. Na primeira edição, como era de costume dessa publicação, havia um editorial sobre as aspirações para o ano que se iniciava. No corpo da Revista constam poemas, contos, crônicas e artigos. Um desses, publicado em 1907, intitula-se “Casamento e união livre”. O título evidencia a promoção dos valores e dogmas católicos. Na seção História, encontramos um discurso que intenciona “resgatar” a história de Mato Grosso, com relatos sobre datas importantes e estórias dos desbravadores da Província. Ainda, nos números analisados, há colunas especiais publicadas durante os meses de setembro e dezembro, sobre a Proclamação da Independência e registros de viagens de oficiais no período da guerra entre o Brasil e o Paraguai. Outra seção bem interessante é a seção “Notícia”. Nesta eram feitos todos os tipos de relatos: aniversariantes do mês, descobertas recentes, acontecimentos regionais como festas ou mortes de pessoas ilustres. Dentre eles, registramos as comunicações do colégio ou da missão salesiana como, por exemplo, as aprovações e doações à missão de catequese indígena, com nome e valores doados. Observamos que as notícias sobre acontecimentos religiosos, sobre a missão salesiana junto aos índios e as notícias sobre o trabalho dos padres à frente dos colégios recebiam maior destaque no corpo do Periódico. A Revisão faz circular importantes manifestações literárias de professores e intelectuais. Partindo de uma concepção didática, privilegiando temas de interesses locais, alguns autores/professores, num trabalho pioneiro, irão estabelecer os rumos da produção artística, trazendo em seu bojo índices de valoração, fortalecimento e particularidades. Esse imbricamento reflete, posteriormente a fisionomia dos textos e mostram-nos fatos novos, talvez antes considerados menos importantes, quando lidamos diretamente com a linguagem que nasce na antiga província. Todas esses fatores implicam no engendramento da tradição, da


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tradição, da memória e de herança cultural. Forma-se um jogo de forças que se estende a uma escrita que, obviamente, atendia aos interesses pedagógicos da comunidade religiosa salesiana. Entendemos que, munida de uma tradição utilitária, as manifestações artísticas surgidas nas escolas em Mato Grosso servem-se do ritual do encantamento, das súplicas e dos louvores para declarar o bem-estar humano. Por acreditar na aprendizagem pelo exemplo, no ensinar e salvar, também coube à escola da época promover o desenvolvimento intelectual e cultural do Estado. Compenetrados numa missão educativa e didática, os salesianos produziam peças teatrais, jornais e revistas ressaltando a manutenção de valores, atitudes e ensinamentos. Essa era a possibilidade de iniciar a criança e o jovem no conhecimento da realidade, de mostrar a eles os modos de vivência e de comportamentos. Por isso, na tentativa de “educar” o público local, a cultura escrita é tomada como a principal formadora do sistema literário. Nesse sentido, cumpre dizer que toda a elaboração inicial desse sistema baseia-se, necessariamente, na amostragem da cultura da sociedade mato-grossense e na valorização de elementos locais e nacionais. Esses elementos se entrelaçam e se materializam no plano temático e também no da linguagem. Com essas articulações em solo mato-grossense, a imprensa mantém seu direcionamento atendendo as necessidades comunicativas do público juvenil que se formava. Uma pesquisa no NDIHR1 nos proporcionou uma visão do movimento desses periódicos. No acervo do Núcleo de Documentação e Informação, encontramos três importantes periódicos: A Juventude, O Liceu e O Pequeno Mensageiro. A respeito da relevante influência da imprensa na evolução cultural do Estado, citamos os estudos de Póvoas (1994, p. 59). O historiador, em tom entusiasmado e contagiante, afirma que nos jornais “daquela fase áurea da nossa evolução cultural, - os anos que ficaram entre a Guerra do Paraguai e a Revolução de 1930 -, veremos o alto nível daquela imprensa”. Para ele, há nesses periódicos “artigos muito bem lançados, focalizando assuntos versados com extraordinária precisão e lógica de argumentação e, sobretudo, numa linguagem castiça, num português corretíssimo” (PÓVOAS, 1994, p. 59-60).

__________________ 1 O Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional possui um expressivo acervo constituído de reproduções em microformas, digitais, referências virtuais, imagéticas, orais e acervo impresso bibliográfico de obras raras, com cerca de aproximadamente 2.000 volumes e um considerável acervo de periódicos. O NDIHR foi criado pela Resolução CD. 66/1976 - Fundação Universidade Federal de Mato Grosso.


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As manifestações literárias presentes nesses periódicos exemplificam as relações existentes entre os textos publicados, a linha discursiva adotada pelos periódicos e a relevância dessa fomentação literária cultural precursora da literatura infantil juvenil em Mato Grosso. Dos periódicos analisados por nós, destacamos, neste estudo, o A Juventude: O jornal A Juventude, “periodico literario, critico sportivo e noticioso”, foi publicado de 1916 a 1917, totalizando 42 números. Nas nossas pesquisas, encontramos disponíveis os números 1-7, referentes a novembro e 28 de dezembro e no ano II, de 04 de janeiro a 01 de fevereiro os números 8 a 42. Impresso em Cuiabá, o periódico contém em seu título uma indicação clara do seu direcionamento, todavia isso não impediu que o periódico trouxesse em seu editorial assuntos de interesse variado.

Fig. 1: Primeira página do jornal A Juventude.

Os textos literários possuem grande recorrência. Encontramos poemas e textos em prosa, denominados por Nadaf (1993) como prosa literária curta. Quanto aos dois gêneros citados, encontramos poemas com temas que tentam envolver o público juvenil. Dos vários números do periódico analisados por nós (A Juventude, Cuiabá, 19/04, 17/05, 28/06 e 01/10 de 1917), destacamos os poemas “Innocencia”, de autoria não informada e “A Escola”, de


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de José Raul Vilá, escrito em 1915 e publicado em 1917: Trata-se de um poema com três estrofes de oito versos, todos rimados. Com uma linguagem infantilizada, parece se dirigir a leitores necessitados de facilitadores: “as crianças”. As comparações utilizadas são puramente referência direta ao objeto ao qual se compara: “Eu sou assim bonitinha / Como esta mimosa flor” (A Juventude , 17/05/1917). Desde o título, constrói-se a imagem de um ser angelical, puro e imaculado, referências explícitas de uma idealização do ser mulher, própria do período romântico: “Em mim aninhase o amor / Mas um amor puro e santo / Que só possue a inocência / Tão doce que eu amo tanto / Pois é dos Anjos a essência” (A Juventude , 17/05/1917). O poeta revela um eu no seu cotidiano familiar. Tudo é descrito na medida, com moderação. Num espaço-tempo em que se caracteriza a menina moça, a quem o poema é dedicado, ditam-se, implicitamente, normas rígidas de comportamento e se proclama a manutenção da obediência aos valores instituídos. No ritmo do poema está imposta a aprendizagem passiva das regras para a vida em sociedade no mundo dos adultos. Desse modo, essa menina moça deveria aprender, desde já, a ser mulher, namorada, esposa, mãe, filha etc. Importante citarmos que essa mesma visão da criança, ou seja, aquele ser que precisa ser ensinado e condicionado, está em textos narrativos e poéticos criados no primeiro momento da literatura infantil brasileira, que se estendeu de 1880 a 1920. É a literatura de caráter utilitário, recurso que se coloca acima da natureza artística do objeto. Na terceira estrofe do poema, os versos revelam que o eu poético é o ser ainda em formação. Ele é preparado pelo adulto e, por isso, aparece apenas na posição de receptor passivo desses valores. No primeiro e no segundo versos, lemos: “Meus paes as vezes me ralham/Vendo me assim folgoza...”. A obediência aos mais velhos é ponto predominante nessa literatura que começa a se formar. Nela, ouvimos a voz de uma criança proclamando o que pregavam os adultos: “Dos voos, das esperanças...Deus, lá da corte selecta / Dá penas de ouro às creanças”. É a imagem do que seja uma criança comportada, servindo de modelo às ações dos leitores em formação.


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Na produção poética que se materializa como possibilidade de leitura para os mais novos, encontramos também o poema “A Escola”, de José Raul Vilá, publicado no periódico A juventude, de 28/06/1917. Inspirado na nobreza da instituição e na figura do aluno, o poema narrativo, constituído de 11quadras, todas rimadas, tem como grandes personagens a escola e a criança. Manifestando-se em português castiço o eu poético externa seus sentimentos e valores interiorizados. Logo na primeira quadra é anunciado: “Salve, berço de paz e esperança / De justiça, virtude e amor Que, embalando a innocente creança / Vertes raios de ethereo fulgor” (A Juventude , 28/06/1917). Mais uma vez nos deparamos com exemplos do cultivo da poesia de feição pedagógica que reflete a ideologia predominante na literatura, cujo tema intencionava ter como público a criança. Era uma poesia voltada para a orientação e manutenção de preceitos de ordem moral, cívica e cristã. A voz do eu declara: “Como a luz que nos brados amenos/Melros jovens ensina trinar/Tu tambem, nobre Escola, não menos/Fazes sempre as creanças cantar”. Símbolo do tradicionalismo cultural, a escola é imortalizada nas letras de José Raul Vilá, de onde se materializam exemplos, experiências, avisos, sugestões e ensinamentos. Todo esse universo consagrado e esplendoroso está representado pelo ritmo monótono e pela métrica dos versos. As comparações anunciadas mantêm a forte relação entre a criança e a escola. À medida que se aproxima o final fica evidente que a criança necessita receber os valores que a consagrada instituição oferece: “Como as flores precisam fragancia/Luz, orvalho e aragem subtil/Tambem isto e com muita abundancia/ Quer o garrulo mundo infantil” (A Juventude , 28/06/1917). Notamos a valorização do estudo na vida dos que estão em formação, ideia recorrente no Brasil que buscava sua modernização. Nesse contexto, as campanhas de difusão patriótica, escolar e familiar apresentavam-se como única possibilidade, “no discurso otimista da classe dominante”, esclarecem Lajolo e Zilberman (1985, p. 38). Seguindo a tendência conservadora nas letras do Estado, a função artística, nessa produção destinada à criança e ao jovem, fica em menor escala para realçar o objetivo de formar o caráter e reforçar valores morais caros


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aos adultos. Nessa produção não há espaço para o deleite, tampouco para o questionamento. No tom ufanista e exaltado do poema “A Escola”, visualizamos a imagem que se faz da criança através dos tempos: “Salve, Escola, tu só docemente/Sabes luz e rocio espartir/Sobre a turba infantil, inocente/Trescalante jardim a florir” (A Juventude, 28/06/1917). De modo geral, na leitura do periódico A Juventude, verificamos que os assuntos estão distribuídos entre política, história do Brasil e do Estado, avisos de utilidade pública, colunas que traziam datas de aniversários de filhos de pessoas influentes da sociedade, perfil das “mademoiselle da nossa melhor sociedade”, paródias, charadas, anúncios das peças de teatro encenadas na capital, propagandas de lojas que vendiam desde gêneros alimentícios até livros vindos da Europa e, ainda, notícias de clubes esportivos. Merece destaque a “Secção infantil”, com concurso de perguntas e respostas. No primeiro ano de vida do jornal, encontramos a seguinte informação: “Em todos os números do nosso jornalsinho publicaremos questões a fim de serem resolvidas” (A Juventude, 12/11/1916).

Fig. 2: Página do jornal A juventude. Destaque para “Seccão infantil”.


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Da leitura dessa secção, extraímos: “A capital de um Estado do Brasil, sem a última letra, torna-se em parte do leite (2 syllabas)”, “Qual é o animal que se acrescentarmos uma letra transforma-se em sobrenome? (2 syllaba)” (A Juventude, 01/10/1917). Essa linha editorial do jornal segue o mesmo padrão encontrado em periódicos juvenis editados em São Paulo e em outros Estados brasileiros no final do século XIX. Com grande aceitação, esses jornais destinavam algumas colunas para o divertimento e recreação trazendo charadas, adivinhas, concursos, poesias e contos. Voltando à análise do periódico A Juventude, a secção “Anjinhos” também nos chama a atenção. Nela, o redator relata o falecimento de filhos de personalidades da capital, Cuiabá. Com uma linguagem infantilizada, a temática da morte é concebida na visão transcendental da condição humana. Com um discurso pomposo, carregado de metáforas, comparações e perífrases, a morte de crianças e jovens é motivo de destaque: “Evolou para a mansão dos juntos, a 27 do expirante a innocente Maria Oscarlina afilhada do nosso distincto amigo Capm. João Pedro de Figueiredo, a quem enviamos os nossos sentidos pezames”; “Entregou a alma ao creador, o inocente anjinho Joaquim […] (A Juventude, 01/11/1917).

Fig. 3: Página interna do jornal A Juventude. Destaque para as colunas “Anjinhos” e “Charadas novíssimas


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Dando sequência às observações de A Juventude , ressaltamos a publicação datada de 19/04/1916. Nela, encontramos a presença de temas cívicos na imprensa infantojuvenil de Mato Grosso. Há publicação de poemas e outros textos em forma de ensaio, conferência e discurso proclamando que a população da antiga província demonstrasse o seu patriotismo. O redator chama atenção dos leitores para o momento político que vivia o país. Verificamos que se valendo de um estilo discursivo sério e ufanista, o jornal utiliza exemplos de personalidades, deixando clara a intenção de formar a opinião dos leitores, através de um tom didático e moralizante, de caráter patriótico. Com esses dados, reafirmamos a continuidade de uma acentuada educação cívica e moral, uma postura conservadora, cujo lastro já se encontrava presente nas letras brasileiras direcionadas a crianças e jovens do século XIX. Uma prova da presença de discursos e ensaios com temas cívicos e heroicos em impressos do século XX, com esse direcionamento, localiza-se também em A Juventude , datado de 28/06/1917. Utilizando-se do título “Retomada de Corumbá”, o editorial conta a história de um importante capítulo da Guerra da Tríplice Aliança e da participação de tropas mato-grossenses nas sangrentas batalhas para a retirada do inimigo. Em face do aniversário do heroico acontecimento, em tom eufórico e ufanista, o editor relembra que, em janeiro de 1865, Corumbá e o forte de Coimbra foram militarmente tomados por tropas paraguaias e, em 1867, o presidente da província de Mato Grosso, Couto Magalhães, pretendeu a Retomada iniciando os preparativos militares e as estratégias da operação. Consta que no dia 15 de maio de 1867 teve início a ação militar com a partida das tropas do Porto de Cuiabá. Em 13 de junho teria ocorrido a retomada da vila de Corumbá, fato que resgata a moral do povo matogrossense e dá início à expulsão definitiva das tropas paraguaias. Os relatos históricos são então mantidos pelos editores para divulgar a história oficial. Através de uma linguagem carregada de ênfase e ostentação poética, percebemos a intenção de se cultivar determinados valores e padrões a serem respeitados e incorporados pelos leitores, principalmente os mais novos. Vide discurso publicado:


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[…] Foi bello esse dia! Por um sol de ameno Junho, aqueles que iam affrontar a ira da propria ferocidade, marchavam calados, mas contentes. As cores translucidas batiam de cheio em suas faces e, dos lábios corados pelo sol tão quente, desabotoavam sorrisos de alegria. [...] Trocaram-se as cores do céo, as estrellas rebrilhavam tremulante em nuvens espaçosas, mais agglomeradas para o poente. E ficaste livre oh! Corumbá! (A Juventude, 28/06/1917).

Empenhados em campanhas que objetivavam manter a ordem e a moral em favor da classe dominante, os redatores e colaboradores se voltam para o passado em busca do retomar o orgulho regional e nacional. Enaltecer feitos heroicos de vultos do passado torna-se estratégia para esconder os prejuízos decorrentes do isolamento que a região sofria. A esse respeito Nadaf (2002, p. 208), ao analisar os textos de autores nos folhetins de Mato Grosso, esclarece: “Os dirigentes dos jornais e autores locais pertenciam aos órgãos governamentais, políticos e religiosos, onde ocupavam funções variadas de destaque [...]”. Sob esse efeito, podemos visualizar a prática escrita dentro de uma rede de relações visíveis ou invisíveis, que definem a posição dos autores, quer seja social, quer esteticamente. Importante pensarmos as relações que podem estar visíveis nas formas de coexistência entre autoria e posição no campo cultural e literário, em um momento específico da história das letras em Mato Grosso. Nesse momento, dever e amor à pátria são lições a serem aprendidas, assim como a prática das virtudes e noções de obediência. Nesse espaço-tempo de sua trajetória, o periódico A Juventude parece cumprir a função de contagiar e doutrinar seus jovens leitores. O tom moralizador almejava coibir, reprovar e punir, todo comportamento social que fosse julgado inadequado para os seus alunos e leitores, como também para os adultos. Consideramos que, mesmo não tendo promovido rupturas na série literária brasileira, ou não tendo apresentado inovações significativas, as manifestações artísticas literárias publicadas nas páginas de A Juventude, foram um importante veículo de divulgação cultural, pois expressaram sentimentos, angústias e modos de perceber a realidade em que viviam os cidadãos daquele tempo. Notamos, portanto, um importante campo, lugar de onde se materializa a representação da criança e do jovem no Estado de Mato Grosso.


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Fig. 4: Página interna do jornal A Juventude. Em destaque os editoriais sobre fatos históricos regionais e nacionais.

Os textos publicados no periódico, ainda que não apresentassem qualidade estética elevada, adquirem importância como fonte histórica. O acervo consultado possibilitou-nos revisitar o passado. Lá encontramos marcas de constituição da criança e do jovem na sociedade matogrossense do início do século XX. Lá estão as coordenadas da produção direcionadas a crianças e adolescentes no Estado. Considerações finais Foram nos jornais do início do século XX, em solo mato-grossense, que a imprensa publicou os primeiros textos literários direcionados ao público juvenil que ora se formava. No periódico A Juventude, publicado entre 1916 a 1917, nos números analisados, encontramos poemas e textos em prosa (prosa literária curta). Na “Secção infantil” do jornal, textos literários dividiam espaço com paródias, charadas e concurso de perguntas e respostas. Predominava a visão de que a criança era um ser que precisava ser


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ensinado e condicionado. Esta mesma visão esteve nos primeiros momentos da literatura infantil brasileira, que se estendeu de 1880 a 1920. É a literatura de caráter utilitário, recurso que se coloca acima da natureza artística do objeto. No Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR) descobrimos a imprensa escolar atuando no Estado. Com base nas pesquisadas de Arroyo (2011), que fundamentam a importância dessa imprensa para a formação das coordenadas da literatura infantil brasileira e posterior evolução desse gênero, confirmamos que em Mato Grosso a imprensa escolar cumpriu o mesmo legado. Nos jornais enfatizou-se a tônica dos assuntos, das ações e da representação da criança dentro desse universo da escrita. Nas páginas dos impressos recuperados pelo NDIHR, microfilmados, confirmamos o foco de interesse para temas específicos como modos e regras, religião, recreação, instrução, esporte, literatura (pequenos contos e narrativas de viagens), fotos, calendário das datas festivas religiosas e demais notícias. Nossa hipótese caminhou para uma confirmação: estavam nos jornais e na imprensa escolar (formada por revistas e pequenos periódicos) assim como no teatro praticado nas escolas salesianas a pré-história da literatura infanto-juvenil produzida em Mato Grosso. O tom moralizador que servira aos propósitos da linha discursiva dos textos cênicos de Padre Pombo e dos periódicos A Juventude , O Pequeno Mensageiro e O Liceu determinariam o direcionamento do teatro e dessa imprensa. De modo geral, almejavam coibir, reprovar e punir todo comportamento social que fosse julgado inadequado para os seus espectadores e leitores, prevalecendo assim uma forte tendência educacional que buscava a consolidação de valores herdados. Referências A Juventude , periódico literário, crítico, esportivo e noticioso, de 19 de março de 1917, Cuiabá, Mato Grosso. NDIHR, Caixa 024, p. 01-A. Jornais Diversos, Envelope: A Juventude – Cuyabá – 1916-1917.


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_______, periódico literário, crítico, esportivo e noticioso, de 17 de maio de 1917, Cuiabá, Mato Grosso. NDIHR, Caixa 024. Jornais Diversos, Envelope: A Juventude ________, periódico literário, crítico, esportivo e noticioso, de 28 de junho de 1917, Cuiabá, Mato Grosso. NDIHR, Caixa 024. Jornais Diversos, Envelope: A Juventude – Cuyabá – 1916-1917. ________, periódico literário, crítico, esportivo e noticioso, de 01 de outubro de 1917, Cuiabá, Mato Grosso. NDIHR, Caixa 024. Jornais Diversos, Envelope: A Juventude – Cuyabá – 1916-1917. ________, periódico literário, crítico, esportivo e noticioso, de 01 de novembro de 1917, Cuiabá, Mato Grosso. NDIHR, Caixa 024. Jornais Diversos, Envelope: A Juventude – Cuyabá – 1916-1917. REVISTA Mato Grosso. Ano II, nº 3, Revista Mensal de Sciencias, letras, Artes e variedades, Cuiabá, 1905. BCBMFR/MT. _________. Ano IX, Junho/Julho, nº 6/7. Cuiabá, Escolas Profissionais Salesianas, 1907. BCBM-FR/MT. JUCÁ, Pedro Rocha. Imprensa Oficial de Mato Grosso: 170 anos de história, 2009, Cuiabá. LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira: história e histórias. São Paulo: Ática, 1985. NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé das miscelâneas – o folhetim nos jornais de Mato Grosso (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7 letras, 2002. PÓVOAS, Lenine. História da Cultura matogrossense. 2 ed. São Paulo: Editora Resenha, 1994.


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Normas da revista

Normas para apresentação de artigos • Só serão aceitos trabalhos enviados pela internet para o endereço: revista@abralic.org.br • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser produzidos em MSWord 2007 (ou versão superior), com uma folha de rosto onde constem os dados de identificação do autor: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo), título e temática escolhida. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas e, no máximo, 20 espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. Após a folha de identificação, o trabalho deve obedecer à seguintes sequências: – Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos); – Nome(s) do(s) autor(es) – Nome(s) do(s) autor(es) – à direita da página (sem negrito nem grifo), duas linhas abaixo do título, com maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla;


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.26, 2015

– Resumo– a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10; – Palavras-chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave; – Abstract – mesmas observações sobre o Resumo; – Keywords – mesmas observações sobre as palavras chave; – Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver; – Parágrafos – usar adentramento 1 (um); – Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração; – Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor; – Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10. – Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico. – Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e pagina(s).


Normas da revista

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As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé. – Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa, bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários. – Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada. – ALGUNS EXEMPLOS DE CITAÇÕES

• Citação direta com três linhas ou menos [...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)

• Citação indireta [...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as consequências de certas linhas da poética drummodiana.

• Citação de vários autores Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, Borges, 1998; Campos, 1969).


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.26, 2014

• Citação de várias obras do mesmo autor As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidos cópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992).

• Citação de citação e citação com mais de três linhas Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148).

ALGUNS EXEMPLOS DE REFERÊNCIAS • Livro FURTADO, Marlí Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. Campinas: Mercado de Letras, 2010.

• Capítulo de livro QUEIROZ, Juliana Maia de. Romances que cruzaram o atlântico na segunda metade do século XIX. In: Ángel Marcos de Dios (Org.). La Lengua Portuguesa – Estudios sobre Literatura y cultura de Expressión Portuguesa. 1 ed. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2014, v.1, p.877-883.

• Dissertação e tese SALES, Germana Maria Araújo. Palavra e Sedução: uma leitura dos prefácios oitocentistas (1826-1881). Campinas, SP, 2003. 387p. Tese (Doutorado) – Instituto de Estudos da Linguagem (IEL),Universidade de Campinas.


Normas da revista

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• Artigo de periódico SARMENTO–PANTOJA, Tânia Maria Pereira. Cinema e Literatura: Resistência política e representações do herói guerrilheiro em "Pessach, a travessia" e 'Cabra Cega'. Nonada: Letras em Revista, Porto Alegre, v.1, p.1/22–22, 2015

• Artigo de jornal TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4.

• Trabalho publicado em anais CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95.

• Publicação on-line – Internet FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6 fev. 2009.

OBSERVAÇÃO FINAL: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).


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