REVISTA BRASILEIRA DE
Belém 2014
Diretoria
Abralic 2014-2015
Presidente
Germana Maria Araújo Sales (UFPA)
Vice-Presidente
Marlí Tereza Furtado (UFPA)
1° Secretária
Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja (UFPA)
2° Secretária
Mayara Ribeiro Guimarães (UFPA)
1° Tesoureira
Maria de Fátima do Nascimento (UFPA
2° Tesoureiro
Fernando Maués (UFPA)
Conselho Deliberativo
Membro Titulares
Marilene Weinhardt (UFPR) Luiz Carlos Santos Simon (UEL) Antônio de Pádua Dias da Silva (UEPB) Ana Cristina Marinho Lúcio (UFPB) Marisa Philbert Lajolo (Mackenzie) José Luís Jobim Salles Fonseca (UERJ) Allison Marcos Leão da Silva (UEA)
Membros Suplentes
Diógenes André Vieira Maciel (UEPB) Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN)
Conselho Editorial
Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Maria Helena Bonito, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel ABRALIC CNPJ 91.343.350/0001-06 Universidade Federal do Pará (UFPA) Instituto de Letras e Comunicação (ILC) Rua Augusto Corrêa, 1 – Guamá CEP: 66075-110 Belém - PA E-mail: revista@abralic.org.br
REVISTA BRASILEIRA DE
Literatura Comparada
ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp.
Belém
n.25
p. 1-152
2014
2014 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN-0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.
Editora Comissão editorial
Mayara Ribeiro Guimarães Germana Maria Araújo Sales Marlí Tereza Furtado Tânia Maria P. Sarmento-Pantoja Mayara Ribeiro Guimarães Maria de Fátima do Nascimento
Revisão
Mayara Ribeiro Guimarães
Editoração Samantha Andrade de Araújo
Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Belém: Abralic, 1991v.1, n.25, 2014 ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada. CDD 809.005 CDU 82.091 (05)
Sumário
Apresentação Allison Leão
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Artigos
Tituba y Kehinde: la lengua, la escucha, la mirada ética Ana Pizarro
Arte inespecífica e mundos em comum Florencia Garramuño
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Paisajes existenciales latinoamericanos: intertextualidades entre literatura y fotografía en Chile Gonzalo Leiva Quijada
Ramón Gómez de la Serna ou o descobridor da América Livia Grotto
A literatura e a crítica latino-americana: ruptura, representação e trangressão Mariluci Guberman
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Abguar Bastos e Dalcídio Jurandir: vozes modernas na Amazônia brasileira Marlí Tereza Furtado
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Literatura brasileira no contexto latino-americano: ser ou não ser Suzi Frankl Sperber
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Benedicto Monteiro e Pablo Armando Fernández: por uma poética da cor Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja 130
Normas da revista
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Revista Brasileira de Literatura Comparada N° 25 Caminhos da Literatura na América Latina Apresentação Allison Leão Com o tema “Caminhos da Literatura na América Latina”, o número 25 da Revista Brasileira de Literatura Comparada propõe o debate de uma questão a que podemos chamar renovadamente atual: os elementos, as possibilidades e os limites da existência de um discurso latinoamericano e suas expressões no universo artístico, sobretudo literário. Embora a sistematização desse debate tenha se iniciado, enfaticamente, em meados do século XX, suas origens já estariam dadas na experiência comum da violência colonial e, com novas nuances, nos processos libertários que levaram à constituição dos Estados no continente, predominantemente no século XIX – momento de crise e transição. Não será coincidência, portanto, que a discussão tenha conhecido seu primeiro momento de vigor organizado nas décadas imediatamente posteriores à Segunda Guerra, quando novos impulsos colonialistas avançaram sobre os países latinoamericanos. Os discursos insurgentes que responderam a tais influxos estão marcados em nossa história, seja no plano político, como a Revolução Cubana, seja no campo literário, como o boom da literatura latinoamericana. Se o estado de crise e a sensação de ainda estarmos em transição não nos abandonaram, há contudo uma série de novos elementos, antes inexistentes ou até pouco tempo invisíveis, que têm o potencial de ampliar e aprofundar a discussão. É dessa complexa paisagem histórica, cultural, política e estética que se ocupam os textos reunidos na revista. Alinhados com as discussões temáticas e abordagens propostas nas últimas duas décadas pela Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) – cujos congressos revezaram–se entre a problematização política e cultural da literatura e a busca pelo entendimento das novas possibilidades e experiências da linguagem literária, até uma recente dialetização entre esses eixos – os estudos veiculados neste volume concentram–se ora numa
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perspectiva histórica e política, ora num viés estético do problema latinoamericano, sem jamais excluir uma mirada em favor da outra. Atenta a essa dupla demanda, Ana Pizarro reflete sobre os dispositivos narrativos presentes em duas obras de autoria feminina: Moi, Tituba sorcière, da caribenha Maryse Condé, e Um defeito de cor, da brasileira Ana Maria Gonçalves. Para a ensaísta, essas narrativas, embora baseadas em circunstâncias históricas bem delineáveis, operam a infiltração de mecanismos que deixam em crise a exigência de objetividade do relato histórico de caráter oficial. Dessa forma, têm–se narrativas que, para além de seu conteúdo potencialmente crítico – as vidas de duas mulheres escravas –, lançam mão de recursos como a língua (uma língua própria, anticolonial, vestígio e exercício de liberdade), a escuta e o olhar, elementos simultaneamente corporais e subjetivos, mas também culturais e históricos. Ao elaborar suas considerações sobre os dois livros, Pizarro está, no limite, apontando para uma possibilidade de se reconhecerem, por dentro da experiência histórica de violência que atravessa a América Latina, os recursos vestigiais que as culturas subalternizadas nos podem ter legado: modos de ver, ouvir e dizer que questionam e reinventam o narrar, a história e a vida. Entre essas possibilidades, ainda muito pouco exploradas pelos estudos literários, estão as narrativas ameríndias. Essa é a matéria do artigo de Lúcia Sá, que, em constante diálogo com Eduardo Viveiros de Castro e o perspectivismo, elabora uma rica análise das narrativas que compõem De Roraima ao Orinoco, coletadas por Theodor Kock-Grünberg no início do século XX, e Antes o mundo não existia, de Umusĩ Pãrõkumu e Tõrãmũ Kẽhíri – obra marcante para tais estudos, uma vez que se trata da primeira de autoria indígena, do ponto de vista editorial, somente surgida no início da década de 1980. Desenvolvidas por povos ancestrais da Amazônia, as narrativas em questão revelam maneiras distintas de se pensar a realidade – distintas do pensamento ocidental. Lúcia Sá busca expor como essas narrativas, fundamentalmente conectadas ao mito, instauram ao mesmo tempo maneiras de ver e se relacionar com o mundo além do humano, invertendo da objetificação para a subjetivação das coisas (em comparação com o modelo cartesiano) o modo como essas culturas e suas narrativas se posicionam no universo.
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De alguma forma, o potencial subvertedor das culturas tradicionais da América Latina foi recurso programado ou intuído por intelectuais do continente, que, dando passo em outra direção e explorando os efeitos do contato conflituoso entre os paradigmas das culturas tradicionais e dos movimentos colonialistas, desenvolveram experiências das mais profícuas na arte e literatura latinoamericanas, como o são a antopofagia e a mestiçagem. É o que nos mostra Mariluci Guberman em seu artigo. A autora ainda discorre sobre variadas relações entre movimentos desse caráter ocorridos no Brasil e em outros países da América Latina. Remotamente, como mostra Guberman, o Barroco latinoamericano teria sido uma das primeiras práticas deslocadoras dos ideais estéticos europeus. Desde então, nossas artes e pensamento revelaram impulsos canibalistas (e “calibanistas”) que, no conjunto, mostram um sistema de pensamento diferente e crítico em relação àquele que conhecemos como eurocêntrico. Desdobrando a questão da dinâmica local x não-local, Livia Grotto elabora uma reflexão a respeito das complexas relações presentes no periodismo argentino do início do século XX, especialmente nas revistas Proa e Martín Fierro. Marcantes nesse processo são as figuras de Jorge Luis Borges e do espanhol Ramón Gómez de la Serna. É interssante notar, seguindo as considerações de Grotto, que se, de um lado, as querelas suscitadas nos periódicos demonstram um desejo de autonomia histórica e intelectual dos artistas portenhos, de outro, frequentemente deslizam para o reverso negativo dessa energia, qual seja, o nacionalismo tão conhecido por nós latinoamericanos – não poucas vezes radical e excludente. No entanto, para além desse problema, o foco do texto é mostrar como, processualmente, os intelectuais latinoamericanos (argentinos no caso) estavam ainda a tatear a compreensão do que afinal os afirmava como sujeitos de uma outra história, mesmo tendo assimilado irreversivelmente traços culturais que a colonização lhes havia legado. Talvez em contextos diferentes, em que se sobressaem propostas mais radicais, ao menos no campo do uso das linguagens estéticas, certos artistas arriscaram caminhos mais experimentais, nos quais os limites a serem cruzados eram menos nacionais que semióticos. Assim ocorre com o diálogo entre fotografia e literatura, analisado por Gonzalo Leiva Quijada a partir da obra do escritor e pintor Adolfo Couve
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e seu amigo, o fotógrafo Sergio Larraín Echeñique, ambos chilenos. O texto de Quijada acaba por nos mostrar que a questão latinoamericana tem dimensões importantes, que, porém, muitas vezes, são consideradas de segundo plano; entre estas, ele destaca o complexo existencial que envolve estética e subjetividade (ou mesmo afetividade). Tal desprendimento, ou curiosidade em relação ao outro, ou generosidade e disposição para a troca, o aprendizado e o cruzamento de fronteiras, que talvez nos caracterizem, podem favorecer o surgimento de gestos artísticos de caráter plural, não denomináveis por categorias tradicionais da teoria. Florencia Garramuño as trata, de maneira não delimitadora, como “arte inepecífica”. É muito interessante notar que o desafio e a prática que certos artistas empreendem – artistas como Rosangela Rennó, Nuno Ramos, Diamela Eltit, Paz Errázuriz, Paloma Vidal, Tamara Kamenszain, João Gilberto Noll, Fernando Vallejo e Alan Pauls –, ao tempo em que retiram suas obras do paradigma do próprio, ou da propriedade, como defende Garramuño, abrem-na para o conhecimento do que há de comum entre mundos outrora definidos como estranhos entre si. Esses mundos em comum são de ordem estética, a princípio, mas desembocam num conhecimento do comum da cultura, da política e dos afetos. Trata-se, pois, de uma postura eminentemente comparatista – dos artistas e da ensaísta –, que nos compele a nós, “comparatistas teóricos”, àquilo que o comparatismo pode ter de mais vanguardista no universo dos estudos literários: deslocar a própria teoria para o inespecífico, descobrindo mundos (ainda não) comuns. Explorando outros eixos de comparação entre escritores latinoamericanos, Tânia SarmentoPantoja e Marlí Tereza Furtado respectivamente exploram similitudes entre o paraense Benedicto Monteiro e o cubano Pablo Armando Fernández, e Dalcídio Jurandir e Abguar Bastos, ambos também do estado do Pará. A primeira autora desenvolve uma interessante percepção sobre a presença da cor como um mecanismo que, ao instilar um caráter pictórico, físico e imagético à narrativa, de certo modo propõe também a infiltração de um paradigma cultural renovador na tradição literária ligada à ordem da palavra–deia, em favor da palavra–imagem e da imagem–cor. Um desdobramento importante do texto de Tânia SarmentoPantoja é revelar as conexões que filiam a
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obra de Benedicto Monteiro ao movimento do boom, extrapolando as linhas de interação latinoamericanas mais conhecidas. Por seu turno, Marlí Tereza Furtado discute uma perspectiva do modernismo brasileiro, especialmente seu desdobramento a partir da década de 1930, tendo como ponto de vista a produção de dois importantes autores de origem amazônica – Abguar Bastos e Dalcídio Jurandir. Investigações como esta, sobre os efeitos do pensamento de vanguarda nas regiões mais periféricas da América Latina, têm o potencial de, primeiramente, revelar de maneira mais dramática os procesos de transculturação e suas tensões em contextos de culturas relativamente mais tradicionais; além disso, podem nos lembrar que, sob uma expressão de tamanha amplitude como “América Latina”, abrigam-se (ou não se abrigam) regiões culturais para as quais uma associação como essa parece, se não inviável, ao menos bastante problemática e relativa. Dentre os textos da revista, um discute diretamente a questão do pertencimento latinoamericano, questão que fica mais evidentemente tensa quando os envolvidos são os brasileiros; trata-se da reflexão de Suzi Frankl Sperber, que traz provocações como a de levantar o dado de que, quando, no Brasil, fala–se em “literatura latinoamericana”, normalmente elencam–se apenas escritores de língua castelhana. Além disso, a autora lembra muito bem a indagação de Ricardo Piglia, de que deveríamos, antes de nos acomodarmos a uma noção de literatura latinoamericana, ponderar acerca as regiões culturais do continente, que frequentemente transpõem os limites dos países – como ocorre com a Amazônia, os Llanos, os Andes. Sperber mostra, por fim, que há modos muito próprios na propositura de questões em obras de autores como Paulo Lins, Bernardo Carvalho e Luiz Ruffato. Porém, as questões em si não são exclusivas ao contexto brasileiro e se verificam na produção de diversos autores de outros países do continente. Sobretudo, haveria na América Latina uma tendência (uma vontade) e suas derivações poéticas para se afirmar o discurso como um outro em relação ao que se enuncia nos demais continentes.
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Respeitando, pois, a dialética entre diferença e identificação no universo latino–americano, os textos presentes na revista têm o valor extra de prismatizar o problema, pondo o leitor a par do processo histórico de formação e crítica de um pensamento desse continente cultural, mas também atualizando a questão, agora que novos elementos e maneiras novas de encarar antigos dilemas têm se afirmado. A leitura deste conjunto nos mostra que, antes de uma resposta a respeito de um possível discurso latino–americano, o que nos tem dado um horizonte de identificação, até agora, é a própria dúvida.
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Tituba y Kehinde: la lengua, la escucha, la mirada Ana Pizarro*
RESUMEN: El artículo tiene como objetivo central el estudio de la novela contemporánea con el propósito de deslindar aspectos que la componen, el lenguaje, el manejo de la lengua, y más especialmente las dimensiones de la escucha y sus relaciones con la mirada. Novelas producidas por dos escritoras, Ana María Gonçalves, de Brasil, y Maryse Condé, de Guadalupe, serán objeto de nuestro análisis. PALABRAS-CLABES: novela contemporánea, lenguaje, mirada RESUMO: O artigo tem como objetivo central o estudo do romance contemporâneo com o propósito de deslindar aspectos que a compõem, tais como a linguagem, o uso da língua e, mais especialmente, as dimensões da escuta e suas relações com o olhar. Romances produzidos por duas escritoras, Ana Maria Gonçalves, do Brasil, e Mayse Condé, de Guadalupe, serão objetos de nossa análise. PALAVRAS-CHAVE: romance contemporâneo, linguagem, olhar
________________ * Professora da Universidade de Santiago do Chile
A partir de una reflexión sobre algunas de nuestras vías de interlocución con el mundo voy a entrar en el universo de dos novelas contemporáneas para intentar deslindarelementos de su carácter. Por esto me quiero referir, en términos muy generales, al lenguaje y su concreción en la lengua, a la escucha, y a la mirada, en tanto formas centrales de esta interlocución. A través de ellas intentaré una entrada en textos literarios. La llevaré a cabo sobre dos escritoras actuales de nuestro continente: Ana Maria Gonçalves, de Brasil, y Maryse Condé, de Guadalupe. Me voy a permitir una pequeña digresión introductoria para luego entrar en los textos. Hay el oír y hay el escuchar. “Oír es un fenómeno fisiológico, escuchar es un acto psicológico. Es posible describir las condiciones físicas de la audición (sus mecanismos), recurriendo a la acústica y a la fisiología del oído, pero la escucha no puede definirse sino por su objeto, por su punto de mira”, dicen Roland Barthes y Roland Havas (2002, p. 345). El primer movimiento de escucha es el de los indicios, un ruido, un silbido, un soplo. El segundo es el del desciframiento: se trata ahora de captar los signos, de
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interpretarlos, ya lo propio del ser humano. Luego el tercero es el que crea el espacio intersubjetivo, el de “yo escucho", que es, al mismo tiempo, "escúchame". Es cuando entramos, siempre siguiendo a Barthes y Havas, al juego de la transferencia. Cito a estos autores: Del mismo modo como la primera escucha transforma el ruido en indicio, esta segunda escucha metamorfosea al hombre en sujeto dual: la interpelación conduce a una interlocución, en la cual el silencio del que escucha será tan activo como la palabra del locutor: podríamos decir la escucha habla: es en este estadio (o histórico o estructural) que interviene la escucha psicoanalítica (BARTHES & HAVAS, 2002, p. 345)
En este camino de reconocimiento, de interpretación del mundo, en donde surge el otro, hay evidentemente una evolución que tiene que ver con la historia y el camino de la técnica, que redefine las jerarquías porque también se redefinen los elementos que sitúan el medio y sus relaciones: cuando a comienzos del siglo veinte surge el arte vanguardista en Europa y en América Latina, cuando aparecen Las Señoritas de Aviñón y más tarde el Retrato de Dora Maar de Picasso, con sus espacios dislocados y los ojos en un mismo perfil, es porque aprendemos a mirar, porque nos aproximamos a la realidad con ojos nuevos y esto hace que esta realidad sea diferente. El cambio histórico, la revolución de las comunicaciones que significan el aeroplano, la bicicleta, la telegrafía nos hacen leer de otro modo el espacio, como lo hizo ayer la televisión y hoy la cibernética. La escucha, que es una apropiación del espacio en el reconocimiento de la realidad, ha visto transformarse el paisaje sonoro: el desplazamiento del campo a la ciudad ha significado la transformación de este paisaje desde los ruidos del viento, los pájaros, los animales, al espacio sonoro de las pisadas, de los tacos, de las bocinas, de la máquina. No es un azar que una de las principales revistas del Modernismo en Brasil lleve el nombre de Klaxon en la década del veinte. La modernización entonces es eso: la máquina, el automóvil, percibidos como cambio de sonido, en el ruido del que interpretamos los signos, como lo describieron los futuristas, que no profetizaron el futuro sino que hicieron la apología del presente. Es la transformación en la escucha, que significa al
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mismo tiempo una transformación del ser humano en su interlocución con el mundo, una nueva forma de identificación. Al hablar de la escucha ya nos hemos referido a la mirada. ¿Podemos aislar, de hecho, nuestro diálogo con el mundo? ¿No es que nuestro asedio necesita de múltiples vías para lograr apenas una entrada incipiente en él? Cuando pensamos la mirada como un efecto unidireccional estamos reduciendo el fenómeno. Barthes nos recuerda que Lacan sitúa a la intersubjetividad como una estructura con tres términos. El primero: yo veo al otro. El segundo: yo lo veo verme. El tercero: él sabe que yo lo veo. La relación con el mundo es más plural de lo que pareciera. Hay el cuento maravilloso de Joaquim Machado de Assis sobre un muchacho al que han nombrado alférez y todo el mundo alaba. Pero cuando no hay nadie y se mira al espejo, no logra verse. El es la imagen que le entrega la relación con el otro, marcada por la máscara del uniforme. Máscara es persona. El juego del joven, el espejo y la identidade se adelanta, así en un siglo y medio al que proprone Lacan a fines del siglo veinte. Los escritores, tal vez como nadie, tienen conciencia de que la lengua no se agota en el mensaje. Un título como el del relato Abrapalabra , del venezolano Luis Britto García, nos pone de entrada en la evidencia de la importancia de la función enunciativa. Allí juegan la mirada y la escucha y ambas nos permiten la interlocución. En la estética literaria, la oposición es clara: hay relatos que conducen y con maestría muchas veces hacia una resolución final del conflicto, que nos impulsan a seguir el trayecto con rapidez hasta terminar. Hay otros de los que muchas veces ya conocemos “la muerte anunciada”, pero cuya magnificencia está en la construcción de la enunciación, en lentitud, en espesor. No nos importa llegar al final, nos importa vivir intensamente esa construcción. Son dos lenguajes literarios diferentes, pero son también dos modos diferentes de relacionarse con el mundo. Para el escritor como para el hombre más cercano a la naturaleza, la palabra no es un utensilio, ella no se usa, ella se habita . La lengua tiene para él lo que se ha llamado un valor de uso, no la lejanía ni el desgaste del valor de cambio. Más allá de los juegos de poder con el orden del discurso y también a través de éste, el lenguaje nos
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identifica con el mundo y nos identifica a nosotros mismos frente a él. En relación a esto, recuerdo el relato de un lingüista, José Ribamar Bessa Freire (2009). Lo hizo oral e informalmente, pero aparece en algunas crónicas suyas. Cuenta de unos investigadores que iban a entrevistar al último hablante de su lengua, entre las centenas que desaparecen en Amazonas. Este vive con una familia de otro grupo étnico que le ha acogido. Les previenen que no está bien de su cabeza. Al llegar encuentran al último hablante de su lengua y ven en qué consiste su locura: vive hablando frente a un espejo. He querido detenerme en esta reflexión para situar puntos de entrada a los textos. La lengua, la escucha, la mirada son vehículos de relación con el mundo del escritor y de sus lectores - auditores espectadores cuando se trata de oralidad - y al mismo tiempo son formas de construir el mundo dentro de nosotros. Dentro de estas líneas de observación he querido abordar dos novelas actuales escritas por mujeres. Se trata de Moi, Tituba sorcière … (1986), de la caribeña Maryse Condé, y de Um defeito de cor (2006), de la brasileña Ana Maria Gonçalves. Las he elegido porque ambas refieren un tema común como es el de la vida de una esclava y generan un impacto estético importante en el lector. No porque sean relatos experimentales, que no lo son, sino por la transmisión de un modo de percibir la vida en un relato histórico. Sabemos que la escritura tradicional de la historia pretende no incorporarla subjetividad, el relato del menudeo militar o político pretende ser objetivo. Sabemos, por otra parte, que las discusiones sobre la escritura de la historia y su apertura a puntos de vista diversos han significado también un cambio en la escritura ficcional. Se trata, en el caso de las narrativas a que nos referimos, de lo que se ha llamado “nueva novela histórica”, trabajada como género, entre otros, por los clásicos Fernando Aínsa (1996) y Seymour Menton (1993). Ellos sitúan al género fundamentalmente como propuesta de ficción que deslegitima el saber histórico canónico através de una serie de recursos. Un nuevo aparato crítico ha surgido actualmente sobre él, en respuesta a la cantidad de textos de esta especie que han visto la luz desde fines de los años setenta del siglo pasado. La lectura de estas dos novelas me ha producido un efecto de atracción, y me ha estimulado la indagación
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sobre el carácter de su enunciación. Voy a insistir, en este momento, en las recurrencias de ambas, más que en las diferencias, para lo cual necessitaría trabajar ampliamente la situación contextual de cada una, lo que no es el caso aquí. Ambas narraciones tienen un tema común: el desarrollo de la vida de uns esclava y su inserción en la historia que le es contemporãnea. Esto es, en el caso de Gonçalves, el tráfico negrero – la trata atlántica – y su punto de partida en África, en Dahomé (Benin), y luego la narración de acontecimientos importantes de las sublevaciones de esclavos y de la historia de Salvador de Bahía a fines del siglo XVIII y comienzos del XIX. En el caso de Maryse Condé, se trata del acontecimiento clásico de quema de brujas por parte de los puritanos en lo que serán los Estados Unidos, en el episodio conocido como “las brujas de Salem” con el juicio que las lleva a la condena, tomando en parte de los documentos históricos de la história de Massachusetts de fines del siglo XVII y comienzos del XVIII. Para entrar en estos relatos tomaré los tres caminos que he apuntado al comienzo, en un intento comparatista, que me lheva, en primer lugar a aproximarme a la figura del narrador: “Abéna, ma mère, un marin anglais la viola sur le pont du Christ the King, un jour de 16… alors que le navire faisait voile vers la Barbade. C’est de cette agression que je suis née. De cet acte de haine et de mépris” (CONDÉ, 1986, p.13).¿Quién es esta narradora que nos lanza con agresividad su identidad y su orgigen? Es Tituba, la protagonista de Maryse Condé, mujer negra esclava, que será enjuicida por la sociedad puritana y encarcelada por brujeria cuando ejerce la medicina tradicional de su cultura y funciona de acuerdo a las creencias de ésta. Me interessa sobre todo el gesto que inicia la novela. En la estructura de la enuncíacíon el domínio de la lengua llevará a lo largo del relato un segundo discurso detrás de la peripecia. Me interesa poner a éste en evidencia. En el caso de esta novela, es este gesto inicial que lo identifica. Puede observarse aqui la instancia secundaria del nacimiento de quien será la narradora y protagonista, en una existencia relatada como el producto de una violación, que es la primeira y violenta información. Es esta construcción del lenguaje narrativo se sitúa, pues, primeiro la violencia y luego la existencia de la protagonista. Este desplazamiento de la información, que no es simplemente "Yo nasci de", marca desde el comienzo la
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construcción sutil y compleja a la vez del lenguaje en el relato. Tomamos más adelante un pequeño episodio, al parecer clásico en la relación amo-esclavo. Se trata ahora de Tituba frente a la sociedad blanca: Quand, vacillant d’épuisement, la robe souillée et trempée je redescendis, Susanna Endicott prenait le thé avec ses amies, une demi–douzaine de femmes, pareilles à elle-même, la peau couleur de lait suri, les cheveux tirés en arrière et les pointes du châle nouées a la hauteur de la ceinture. Elles me fixèrent avec effarement de leurs yeux multicolores: –D’où sort-elle? (CONDÉ, 1986, p. 43)
El episodio tiene su dramatismo: la esclava, agotada por el trabajo, sucia, físicamente deslegitimada, se enfrenta al grupo que completa el sentido de humillación con la expresión “¿De dónde sale ésta?”, una expresión más de la distancia y el frente a frente de dos mundos, dos culturas, dos formas de ver y experimentar la vida. Esta vez es la mirada: las mujeres iguales a la Endicott miran, Tituba las mira al mismo tiempo. Es un diálogo de miradas imposible, sólo es posible en este relato la instancia jerárquica que ignora la presencia de ese cuerpo que está allí delant. “J’étais un non-être” (CONDÉ, 1986, p. 44), apunta la lengua de la narradora. Sólo es posible la vuelta a su choza, agobiada. Lo interesante aquí es que en el relato de este encuentro e, incluso, en la peripecia de las miradas, lo que sucede de hecho es lo predecible: en el encuentro se le humilla, ella se retira. Sin embargo, hay otro lenguaje en la mirada de la protagonista, que está en la descripción del grupo que ella mira y cuya apreciación es “la peau couleur de lait suri ”, que imprime a toda la descripción un tono de desautorización del grupo de mujeres, de desprecio que incluso recae en los “ojos multicolores” que no tendrían por qué percibirse así, pero se nos aparecen inexpresivos y atravesados por la fealdad. Juegos del lenguaje, sentido de la mirada. Ahora es la escucha la que transforma la situación y la vuelve ambigua, es la narradora y la escucha. En el siguiente párrafo estamos aprestándonos para el juicio y los guardiãs vienen a buscar a las “brujas” a la prisión:
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Nous étions en février, le mois le plus froid d’une année qui s’avérait sans grâce. La foule s’amassa le long de la rue principale de Salem pour nous voir partir, les hommes de police allant en tête montés sur leurs chevaux et nous, pataugeant dans la neige mêlée de boue des chemins. Au milieu de toute cette désolation, s’élevait, surprenant, le chant des oiseaux se poursuivant de branche en branche dans l’air couleur de glace (CONDÉ, 1985, p. 147; destacado mío).
Es notable como el segundo discurso marca su función a través del oído: esa hora el paisaje sonoro, los pájaros están haciendo un juego de primavera en medio del invierno, cantan y se persiguen. Ella los escucha a pesar de su situación. Recordamos que “el que escucha habla”. Es decir, del mismo modo como en el texto anterior el segundo discurso está en la mirada, la mirada despectiva que la esclava expresa en la valoración de la piel “couleur de lait suri” del grupo de mujeres que tienen el poder en ese momento, mujeres que no se destacan unas de otras, sino que son homogéneas, iguales a Endicott, aquí, el segundo discurso está en la escucha. Son esos pájaros que juguetean y que ella percibe dentro del horror de caminar amarrada por la nieve barrosa. Es la voz, la vigencia de la vida. Hay, detrás de los acontecimientos, un discurso de afirmación, de disfrute, como ella disfruta del sexo con John Indien o, incluso, como lo disfruta más allá de la muerte, como disfruta los olores de los árboles, de la comida, como la memoria de Barbados es el lugar ameno del disfrute. Es decir la estructura de la enunciación maneja a lo largo de todo el relato dos discursos. El primero, el de los acontecimientos, nos pone enfrente del dolor que es lo propio de su situación, en cuyo clímax la protagonista experimenta regresiones y vuelve al vientre de la madre: “Je fracturai en hurlant la porte du ventre de ma mère. Je défonçait de mon poing rageur et désespéré la poche de ses eaux. Je haletais et suffoquai dans ce noir liquide. Je voulus m’y noyer” (CONDÉ, 1986, p. 174). El segundo discurso es el de afirmación de la otredad de su cultura, el del sentido del disfrute, del despliegue sensorial, de conciencia de la validez de su forma de sentir la vida, de libertad interior que llegaba a transmitírsenos en agresión:
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Je me livrai désormais a des expériences de mon cru, arpentant la champagne environnante, armée d’un petit couteau avec lequel je déracinaisles plantes et d’une vaste macoute dans laquelle je les recueillais. De même je m’entretenais a tenir un nouveau dialogue avec l’eau des rivières, ou le souffle du vent, afin de découvrir leurs secrets. (CONDÉ, 1986, p. 228).
Es dualidad está funcionando en el relato desde el primer párrafo: la protagonista nos relata que nació de una violación, pero su actitud no es de victima, no es la esclava – la subalterna–que acude a la victimización, sino que comienza lanzando el hecho al lector, a nosotros, con un gesto de violencia. Ese segundo discurso luego se transforma en el discurso central durante el juicio en donde ahora, empoderada, ella agrede a muerte con la palabra, delatando, en esa sociedad blacna, a quienes no son culpables al ser acusadas de brujeria, pero tampoco son inocentes frente a la esclavitud. Adentrémonos en el segundo texto que me interesa. Se trata, como decia, de la novela Un defeito de cor, de la nove, de la brasileña Ana Maria Gonçalves. Del mismo modo que el anterior, ele relato de Gonçalves tiene, a lo largo de casi mil páginas, una andadura ágil que sumerge al lector con pasión en la historia de Salvador de Bahia con toda su efervescencia. Asi, como en Condé, este relato pone en funcionamiento un amplio espacio de interlocución entre la vida y la muerte, que se acompañan mutuamente. Como en el texto anterior, también es interessante el adentramiento en la historia, primeramente a partir de una voz femenina, pero además de una voz doblemente subalterna, como puede ser la de una esclava: "Eu nasci em Savalu, reino de Daomé, África, no ano de um mil oitocentos e dez. Portanto tinha seis anos, quase sete, quado esta história começou” (GONÇALVES, 2010, p. 19). Con un narrador en primera persona, entramos, como antes, en la otra mirada de la historia, que en su caso y tal vez con mayor énfasis atraviesa la vida de la protagonista, Kehinde, en múltiples espacios de su ámbito emocional. El lenguaje se articula en permanencia en un
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juego entre el minimalismo de la vida cotidiana de la esclava y la historia en su dimensión mayor – la trata, la rebelión, los juegos del poder –, ejercicio llevado con una finura extrema, en donde el lector casi no percibe los tránsitos. El lenguaje construye un relato más cercano de una “ nueva crónica de Indias” (PIZARRO CORTÉS, 2010) que de una novela histórica, por cuanto la presencia de lo cotidiano, de lo visto, de lo oído tienen papel importante en él. En este caso, la estructura no apunta a un segundo discurso siempre, sino que la lengua literaria se abre a la incorporacíon explícita de la actitud que se espera de la esclava y pone a la vez en evidencia el rostro opuesto, el de la rebeldia. Hay, se diria, un juego permanente entre ele “ tiotomismo" aparente y el cimarronaje. Sin embargo, el segundo discurso tiene, como veremos, otra forma de existencia. En el siguiente fragmento, el ama tiene una relación de celos con Kehinde por un esclavo joven llamado Francisco. El racconto es de la narradora protagonista: A situação ficou insustentável dentro de casa, com a sinhá criticando tudo que eu fazia, me obrigando a cozinhar pratos de que não gostava para depois jogar a comida toda em cima de mim, dizendo aquilo era lavagem e que lavagem se dava aos porcos (...) para me vingar dela, cuspia em todos os pratos que a Esméria ou Maria das Graças preparavam, e não perdia uma única oportunidade de provocar o Francisco na frente dela (GONÇALVES, 2010, p. 240).
Lo importante, en este caso, es la construcción de Kehiinde desde la situación de negación de si misma por la esclavitud al estado de persona, de la que va adquiriendo conciencia. O, como ella apunta "estava conseguindo fazer minha vida", la evidencia de un inicial empoderamiento de si misma. Esta lucha va a adquirir dimensiones mucho más dramáticas con el robo de su hijo, un abiku, un ser destinado a la muerte temprana y toda su existencia se vuelca a la búsqueda de él. El relato entero toma el cariz de una narrativa de movimiento incesante, sin pausa. En ella, el dolor tiene su contrapartida en el placer de los olores, las comidas, los colores, el goce. En el texto siguiente se observa en este sentido la percepcíón por la mirada el oído, el cuerpo de la niña esclava, luego de la travesia atlántica, al llegar a América:
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.25, 2014 Eu me senti quase feliz ao avistar a Ilha dos Frades. Uma felicidade que talvez pudesse ter sido chamada de alívio, como aconteceria várias outras vezes em minha vida. Por causa da beleza da ilha, fiquei impressionada com as cores, com o ar, com as novas sensações, com a esperança de tudo não ser tão ruim assim. Ao subir as escadas do porão e ver primeiro o céu azul, depois a luz do sol quase me cegando, fazendo com que ficassem mais atentos os outros sentidos. Tive vontade de nascer de novo naquele lugar e ter comigo os amigos de Uidá. Havia um murmúrio do mar, um cantaréu de passarinhos, homens gritando numa língua estranha e melodiosa. Nascer de novo e deixar na vida passada o riozinho de sangue do Kokumo e da minha mãe, os meus olhos nos olhos cegos da Taiwo, o sono da minha avó. O mar era azul e nos levava tranqüilos até uma ilha que, de longe e de cima do navio, não parecia ter nada além de árvores e da pequena faixa de areia branca. Algumas pessoas festejaram, deslumbradas, esquecendo-se que iam virar carneiros, mesmo que fossem carneiros do paraíso. (GONÇALVES, 2010, p. 62)
Es una ficción mucho más inserta en la cultura y en la religión africanas en el nuevo mundo, que forman parte de la trama, y donde la lengua de origen se inserta en el portugués como se inserta la relación con el mundo de los muertos o el ritual. Todo este complejo le entrega densidad a la protagonista, que necesita estar jugando entre las dos culturas blanca/negra, las dos situaciones jerárquicas dominador/dominado permanentemente. Éste es su poder. El mundo del amo desprecia la cultura afroamericana y no la conoce: la desconoce y le teme. En cambio Kehinde, como esclava, va adquiriendo la solidez, la habilidad, la sabiduría necesaria para manejar las coordenadas de las dos culturas, lo cual le otorga un grado más de poder. Ella sabe que éste tiene limitantes, que ella respeta y también teme. Dentro de ella, es la mirada la que le habla del futuro: " O babalaô não gostou do que viu no opelê — anota cuando va a consultar por su destino — "mas disse que não era para eu me preocupar porque tudo já estava destinado. Eram mudanças necessárias para que minha vida seguisse o caminho certo" (GONÇALVES, 2010, p. 440). En su crónica, pareciera que el relato de Gonçalves (2006) es una narración tradicional de la historia, a no ser por un indicio: “O meu nome é Kehinde porque sou uma ibêji e nasci por último” (GONÇALVES, 2010, p. 19). Allí se sitúa
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la primera transgresión del texto: el narrador es nuevamente una mujer. Es ella la que nos transmitirá esta historia. Tradicionalmente, la escritura de la historia ha sido, como sabemos, patrimonio de los hombres y del poder. La narradora ha comenzado situándose como subalterna, incluso porque es una ibêji, (una de dos gemelas, que tienen, por serlo, signos positivos y negativos) que explica: “nasci por último”. Su lugar de subalternidad va quedando situado desde el nacimiento y el episodio que consigna este lugar está prontamente delineado con la violación y muerte de la madre y el hermano. En toda la primera parte, la de la infancia, que, como vemos, no corresponde en ella a las vivencias normales de una niña, la narración lleva una forma de doble discurso que apunta a su mayor dramatismo. La memoria de la narradora relata lo que ve. Esa mirada acude a una voz regresiva que interpreta el mundo infantilmente. Entonces, en la violación de la madre y la muerte del hermano pequeño, focaliza la narración en la sangre que surge de sus cuerpos, en su forma de río y su color. Estas imágenes, de allí en adelante, serán un ver permanente en la memoria. Este relato de los acontecimientos tiene un segundo discurso, desde luego, que el lector percibe de inmediato: es el del horror de la violación en donde, como el mecanismo de las “bienséances ” en el teatro clásico, la violencia es narrada y no vista y por esto mismo produce un efecto doblemente dramático. Pero la complejidad de la voz que narra no termina allí. Hay en ella el efecto que también observó Mijaíl Bajtín (1997) en Fedor Dostoievsky y en sus reflexiones en general sobre la novela como género y su asiento en el lenguaje que es expresión de la diversidad social, ya que todo nuestro discurso está conformado por palabras ajenas em diferente grado de alteridad. Observemos en el texto de Gonçalves: "Ibêjis dão boa sorte e riqueza para as famílias em que nasceu e era por isso que a minha mãe podia dançar no mercado de Savalu e ganhar dinheiro" (GONÇALVES, 2010, p. 21). Se trata, pues, de una voz infantil que incorpora un saber que no es suyo, un saber popular referente a los ibêjis, junto a la interpretación ingenua del trabajo de la madre y el dinero. Así como en este fragmento hay un permanente dialogismo en el texto que incorpora saberes y voces, informaciones moduladas por el habla popular: “Ela dizia que esta é uma historia muito antiga, do tempo em que os homens
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ainda respeitavam as árvores” (GONÇALVES, 2010, p. 20). Aquí se hace eco del tiempo indeterminado del relato popular tradicional, una especie de coro que se infiltra en la textura del discurso. El “Érase una vez”, como en “enquanto os meninos diziam que eram corajosos...”. Es la indeterminación temporal. Ahora es la lengua y la escucha: “Ela se sentou ao meu lado e me chamou de sua menina, puxou minha cabeça de encontro ao gente do peito dela e me embalou com cantigas da África”. A veces escucha y mirada convergen em una sinestesia que contradice el sentido de la peripecia, ahondando nuevamente en su dramatismo. En el momento en que van a ser secuestradas ella y Taiwo, su gemela, el episodio se abre de la manera siguiente: “tocavam uma música que eu me lembro de ter achado quase tão bonita quanto o mar, que tinha a cor mais bonita que o pano de Iemanjá. Sei que é difícil comparar sons e cores, mas, aos meus olhos e ouvidos, eram apenas duas belezas, só isso, uma quase tão bonita quanto a outra” (GONÇALVES, 2010, p. 37). En este espacio textual acontece el secuestro que determinará su vida. De pronto en el texto, el efecto de la mirada es también funesto. Ana Felipa, la mujer del señor del ingenio, arranca los ojos de Verenciana, una esclava que está grávida de su marido. Es un fragmento que funciona como una especie de tragedia del ver : Antes eu tivesse obedecido [a Esmeria], pois teria sido poupada de ver o que vi. A Verenciana estava de pé, altiva, presa pelos braços, não falava nada mas também não desviava os olhos dos olhos da sinhá (...). A sinhá disse que sabia que a criança não tinha culpa e que apenas comentara que a mãe nunca veria o filho e era isso o que ia acontecer (GONÇALVES, 2010, p. 106).
La historia de Kehinde, entonces, es un discurso cuyo espesor y complejidad se relaciona con su lector como un director de orquestra lo haria, yendo de adagios a tuttis, impulsándolo a leer detrás del acontecimiento y en el como curso de éste todos los discursos del discurso que llevan a construir un personaje sólido con perfiles contradictorios que se erige a si mismo. Como Tituba, ella está apoyada por sua cultura en donde siempmre es posible el más allá del dolor, siempre está la existencia del placer,
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dado por los frutos, los colores, los olores, los sonidos, el canto, la pareja, la amistad, el diálogo con los suyos, vivos y muertos, la memoria. Estos relatos son discursos de la memoria colectiva que se actualizan en discursos de la subjetividad, a través de las dos narradoras protagonistas, Tituba y Kehinde, diluídas, sobre todo en el caso de esta última, en la marea de una historia de mil caras, compleja, confusa, que revela no sólo el cotidiano de la trata en el middle passage, la travesia atlântica, sino también la corrupción del poder en África y sus representantes en Uidá, centro importante de la trata en ese continente. Así se vinculan al mundo estos relatos: en la palabra, la escucha y la mirada, en la lengua mayor de su narración. En esta vinculación logran presentizar, esto es, hacer presente y transmitirnos más allá de la información histórica que implica una interpretación nueva y diferente de ella, una relación con el mundo que, frente al dolor histórico, pone en evidencia uma enorme capacidad de disfrute, el valor de los sentidos, uma ausência de la noción de pecado que las hace libres, una alegría sólo por el hecho de estar vivas. De allí que ellas expresan permanentemente la importancia de la sobrevivencia. Este trastrocamiento de la situación propia de la esclavitud en el período colonial que venimos mostrando tiene una enorme importancia política. Sobrevivir en su caso es una forma de resistencia frente al poder colonial. Es un poder que no las destruye porque ellas se arman internamente y en esto están apoyadas por los valores de su cultura. Esta les habla un lenguaje diferente de aquel del colono: una lengua que habla con los muertos, una lengua que dialoga con los árboles, que transmite la escucha del canto de los pájaros, una lengua que no trepida en expresar el estremecimiento del placer, que no esconde, sino que disfruta de la belleza de los cuerpos. Que, sobre todo, los ve. Porque lo que hacen estas dos narraciones es darles existencia a esos cuerpos, frente a una degradación que los invisibiliza o los anula. Este privilegio, este patrimonio que les entrega su cultura es lo que da sentido a su existir y, en el colmo de la negación, es lo que conduce a su soberbia. En este sentido, estando sometidas a un régimen de subalternidad extrema como es el de la esclavitud – a una doble subalternidad, por ser esclavas y mujeres —, las narradoras que protagonizan estos relatos logran constuir
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frente a esto su alteridad recurriendo al patrimonio inmaterial de su cultura, diseminado en sus modos de decir, de ver, de escuchar, que les abre un espacio propio de existencia. En éste, entonces, lugar de la esclavitud y el de la colonialidad son subvertidos a través de la lengua, la escucha y la mirada. He querido observar comparativamente estas dos narrativas en la línea de sus similitudes porque creo que la comprensión de las literaturas, tanto las ilustradas como las indígenas y las populares (habrá que hablar en algún momento también de las mediáticas), en América Latina, necesita establecer las articulaciones que hay entre ellas, más allá de las lenguas nacionales. Uno de los nexos que las articula es justamente el problema de la colonización y la colonialidad cuyos mecanismos son posibles de evidenciar en su funcionamiento en la cultura. Referências AÍNSA, Fernando. Nueva Novela Histórica y la relavitizacíon del saber histórico . La Habana: Casa de las Américas, 1996. BARTHES, Roland & HAVAS, Roland. “Écoute”. In: BARTHES, Roland. Oeuvres complètes Vol. V. Livres, textes, entretiens. 1977–1980. Paris: Seuil. 340–352, 2002. BAJTÍN, Mijaíl. Hacia una filosofía del acto ético , Barcelona: Anthropos, 1997. CONDÉ, Maryse. Moi, Tituba, sorciere… Paris: Folio Mercure de France, 1986. FREIRE, José Ribamar Bessa."Tikuein, o homem que falava com o espelho”, Diário do Amazonas, (3/5/2009) 2009. GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor, 6ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la América Latina, 1979–1992. Madrid: FCE, 1993. PIZARRO CORTÉS, Carolina. “Tipos discursivos, intertextualidad, carnaval, tiempo y espacio: cuatro líneas transversales en la nueva crónica de Indias”, Alpha, n°31,215-230, 2010.
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Arte inespecífica e mundos em comum Florencia Garramuño*
RESUMO: O artigo tenta pensar certas condições da estética contemporânea a partir de uma arte inespecífica na qual o questionamento da especificidade é também – e sobretudo – um questionamento do próprio, da propriedade, do enquanto tal não só de cada uma das disciplinas, mas principalmente da noção do próprio e da propriedade sobre a qual se funda tanto a diferença entre espécies, quanto a definição de uma espécie mesma enquanto tal. Para além do discurso do próprio que define o pertencimento a uma espécie, o questionamento do próprio e do pertencimento enquanto tal põe a nu a falha do discurso da espécie, coarctando a produção de diferenças como base para uma distinção excludente. A exposição dessa falha é, pois, uma reflexão sobre o comum. PALAVRAS-CHAVE: Inespecificidade, comum, estética contemporâ nea
ABSTRACT: The article seeks to think certain conditions of contemporary aesthetics from a non-specific art in which the questioning of specificity is also - and above all - a questioning of the proper and property, not only of each of the disciplines, but especially of the notion of the proper and property on which the difference among species is based. Beyond the very discourse that defines belonging to a species, the questioning of the proper and of belonging lays bare the failure of the discourse of species, curtailing the production of differences as the basis for a differentiation. The exhibition of this failure is therefore a reflection on the common. KEYWORDS: Inespecificity, common, contemporary aesthetics
____________ *Universidade de Buenos Aires
Começo por descrever algumas obras latino – americanas contemporâneas. Penso em explorações literárias que combinam ficção e fotografia (Diamela Eltit e Paz Errázuriz, El infarto del alma), memórias e autobiografia (Paloma Vidal, Mais ao Sul), ou em ensaios e textos documentais (Teixeira Coelho História Natural da Ditadura), ou em textos poéticos e narrativos nos quais a distinção entre gêneros e dicções se faz difícil, como nos textos de Tamara Kamenszain, João Gilberto Noll, Fernando Vallejo, Alan Pauls ou Diamela Eltit. Ao lado
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desta expansão da literatura, muitas dessas novas práticas estabelecem conexões originais entre diferentes campos da estética, como as passagens entre instalação e literatura ou linguagem nas obras de Nuno Ramos ou Rosângela Rennó. Poderia, também, me referir a outras obras de outras tradições, porque se trata de um problema contemporâneo que transcende as fronteiras regionais, mas nesse caso, estaria me referindo a outras inscrições da arte inespecífica que teriam abrevado em outras tradições, se inscreveriam em outros contextos e teriam, por tanto, outros significados, efeitos e sentidos. Eu, aqui, hoje, vou me referir só a algumas obras contemporâneas latinoamericanas. Algumas, quer dizer, nunca todas: não falo de uma horizonte, mas de uma imagem. A horizonte –melhor dizendo, uma das horizontes possíveis- é, num certo sentido, a arte inespecífica. Mas a imagem que quero aqui desenvolver é a que lampeja na relação da arte inespecífica com a inspiração que ela traz para a invenção de mundos em comum. Para ser mais exata: no modo em que alguns exemplos da arte inespecífica contemporânea propiciam imagens de mundos em comum. A partir da década de 1960, diversas explorações artísticas procuraram expandir as disciplinas: enquanto a literatura abriu-se ao banal e ao cotidiano e perfurou as fronteiras de seus gêneros para incorporar novas definições do poético e do narrativo, nas artes visuais, a pintura se estendeu para o espaço e a escultura para "a arte ambiental", assim como o cinema ingressou numa decidida expansão de seu médio (Garramuño, 2009; Giunta, 2011; Walley, 2011). Todos esses processos conheceram largas pré-histórias dentro da modernidade – nunca sucessivas e muitas vezes contraditórias -, como tem apontado Terry Smith (2012, 21).1 Mais, para além da utilização de diferentes médios e suportes numa mesma obra, muitas das práticas contemporâneas que me interessa discutir aqui se comprometeram – e acho que isto é o mais importante nessa paisagem– numa exploração da sensibilidade na qual noções de pertencimento, especificidade e individualidade resultaram intensamente questionadas.
_________________ 1 Aponta Smith sobre esses
processos: “Su configuración contemporánea fue esboazada en los años cincuenta (en particular, en el arte que supo priorizar distintos tipos de inmediatez), hizo erupción durante los años sesenta, resulta evidente para la mayoría desde 1989 y se volvió inequívoca para todos en 2001” (Smith, 21) . Ver também Andrea Giunta 2014, 9-13.
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Na descrição que Jacques Ranciére fez da atualidade da arte contemporânea, onde “todas las competencias artísticas específicas tiendem a salir de su proprio dominio y a intercambiar sus lugares y sus poderes" (RANCIÉRE, 2010, p.27), o pensador francês viu três maneiras diferentes de compreender e praticar essa mistura de gêneros, linguagens ou suportes artísticos. Diz Rancière: Esta la que reactualiza la forma de la obra de arte total. Se suponía que esta era la apoteosis del arte convertido en vida. Hoy tiende a ser más bien la de algunos egos artísticos sobredimensionados o una forma de hiperactivismo consumista, cuando no ambas a la vez. Luego está la ideia de una hibridación de los medios del arte, apropiada a la realidad posmoderna del intercambio incesante de los roles y las identidades, de lo real y de lo virtual, de lo orgánico y las prótesis mecánicas e informáticas. Esta segunda ideia no se distingue gran cosa de la primera en sus consecuencias. A menudo conduce a otra forma de embrutecimieto, que utiliza el borramiento de las fronteras y la confusión de roles para acrescentar el efecto de la performance sin cuestionar sus princípios. Queda una tercera manera que ya no apunta a la amplificación de los efectos sino al cuestionamiento de la relación causa – efecto en sí y al juego de los presupuestos que sostienen la lógica del embrutecimiento”, proponiendo “en suma, una nueva escena de la igualdad en la que se traducen, unas a otras, perfomances heterogéneas. (RANCIÈRE, 2010, p. 27-28).
Minha descrição, sustentada nas imagens latino– americanas que me proporcionam as práticas artísticas que analiso neste artigo, que propor mais uma outra possibilidade aberta por essa condição da estética contemporânea. Trata–se de se pensar uma arte inespecífica na qual o questionamento da especificidade é também – e sobretudo – um questionamento do próprio, da propriedade, do enquanto tal não só de cada uma das disciplinas, mas principalmente da noção do próprio e da propriedade sobre a qual se funda tanto a diferença entre espécies, quanto a definição de uma espécie mesma enquanto tal. Para além do discurso do próprio que define
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possibilidade aberta por essa condição da estética contemporânea. Trata-se de se pensar uma arte inespecífica na qual o questionamento da especificidade é também – e sobretudo – um questionamento do próprio, da propriedade, do enquanto tal não só de cada uma das disciplinas, mas principalmente da noção do próprio e da propriedade sobre a qual se funda tanto a diferença entre espécies, quanto a definição de uma espécie mesma enquanto tal. Para além do discurso do próprio que define o pertencimento a uma espécie, o questionamento do próprio e do pertencimento enquanto tal põe a nu a falha do discurso da espécie, coarctando a produção de diferenças como base para uma distinção excludente. A exposição dessa falha é, pois, uma reflexão sobre o comum. A crise da especificidade do meio não foi, durante estas últimas décadas, o único modo como a arte contemporânea foi definido uma ideia de inespecificidade e de não pertencimento. Também no interior de uma mesma linguagem ou suporte literário ou artístico, o mesmo movimento de questionamento do pertencimento e da especificidade encontra outras maneiras de manifestar-se. Se o entrecruzamento de meios e suportes é a face mais evidente desse questionamento da especificidade, o fato é que essa aposta no inespecífico se aninha também no interior do que poderíamos considerar uma mesma linguagem, desnudando-a em sua radicalidade mais extrema. Porque é na implosão da especificidade no interior de um mesmo material ou suporte que aparece o problema mais instigante dessa aposta no inespecífico, explicando, aliás, a proliferação efetivamente cada vez mais insistente desses entrecruzamentos de suportes e materiais como uma condição de possibilidade da produção de práticas artísticas contemporâneas. Essa aposta no inespecífico seria um modo de elaborar uma linguagem do comum que propiciasse modos diversos do não pertencimento. Não pertencimento à especificidade de uma arte em particular, mas também, e sobretudo, não pertencimento a uma ideia de arte como específica. O que aparece nessa implosão do específico no interior de uma mesma linguagem estética, é o modo como esses
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entrecruzamentos de fronteiras e essa aposta no inespecífico podem ser pensadas como práticas do não pertencimento que propiciam imagens de comunidades expandidas. É dessa arte inespecífica que quero me referir aqui, com a ajuda de dois exemplos: uma obra de Rosangela Rennó titulada Espelho diário e um texto do escritor mexicano Mario Bellatin, Lecciones para una liebre muerta, lembrando, sempre, que as imagens, com diria Didi Huberman, são vagalumes.2 Espelho diário, de Rosângela Rennó.
___________________________ 2 No belo ensaio Sobrevivência dos vagalumes, Georges DidiHuberman faz uma distinção que acho fundamental entre imagem e horizonte, ou entre vagalumes e “grande luz”. Diz ele: “Ahora bien: imagen no es horizonte. La imagen nos oferece algunos resplendores próximos (lucciole), el horizonte nos promete la gran y lejana luz (luce). (...) La imagen se caracteriza por su intermitencia, su fragilidade, su latir de apariciones, desaparicones, reapari ciones y redesapariciones incessan tes (...) La imagen es poca cosa: resto o fisura. Un accidente del tiempo que lo hace momentânea mente visible o legible. El horizon te, en cambio, nos promete el todo, constantemente oculto tras su gran “línea” huidiza. (DidiHuberman, 66-67).
Uma insistente pulsão arquivista e colecionadora esteve sempre presente na arte de Rosângela Rennó, que começou a realizar instalações com fotografias recuperadas de aquivos oficiais ou familiares. Em Espelho diário y Arquivo Universal, imagem e palavra perdem cada uma sua especificidade para se encontrar no espaço equívoco de um arquivo no qual toda distinção de marca pessoal e de identidade acabam por se apagar, para criar um banco comum de imagens. “A fotógrafa que não fotografa” – como tem sido chamada-, Rennó trabalha desde cedo com um conceito de imagem que, ao mesmo tempo em que já não se sustenta num só suporte ou mídia específica, faz emergir a imagem tal como ela é sugerida pela palavra e pela linguagem escrita. Em Espelho diário , uma videoinstalação composta por duas telas encontradas em ângulo ou de forma paralela – dependendo do momento – exibe a artista filmada na performance que ela mesma faz das histórias de várias Rosângelas. Inspiradas em notícias de jornais, essas estórias foram convertidas em relatos escritos pela escritora e amiga de Rennó, Alícia Duarte Pena. Trata-se de 133 monólogos escritos a partir de notícias coletadas entre 1992 e 2000. Os 133 monólogos erigem um diário íntimo de oito anos de vida de uma personagem chamada, em plural, Rosângelas, que se constrói com fragmentos de vida dessas Rosângelas sumamente diferentes. Por exemplo: a presidente do afoxé Filhas de Oxum, a ex funcionária do clube, a testemunha sequestrada. A própria artista se inclui como personagem de um dos dias do Espelho diário.
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A imagem da própria autora encarnando as diferentes Rosângelas duplicadas como em um espelho nas duas telas provoca no espectador um olhar que também deve se desdobrar e se esforçar para captar simultaneamente a diferença e a semelhança entre as histórias que se desenvolvem na sua frente. A instalação, por sua vez, continua e se transmuta em um livro, também intitulado Espelho Diário, publicado em 2008, onde algumas fotografias do making off do vídeo, e o diálogo entre a artista e a escritora durante o processo de elaboração do roteiro pode ser lido pelo leitor, explicitando a relação entre imagem e fotografia de mútua duplicação e inespecifidade que pela sua vez se sustenta na invenção desse substrato comum no qual as Rosângelas de texto e imagem vão construindo uma perfuração do próprio e do individual. Cito um fragmento do texto: Rosângelas nasceu por muitos e muitos dias. Não que sua mãe fossem várias. – Mãe é uma só, diziam aquelas já crescidas, já um tanto melancólicas quanto à sua condição. Sequer seu pai eram muitos; ao contrário, era um único na vida de sua única mãe. Somente elas era umas: Rosângelas, este conjunto unitário, esta dízimaperiódica, este singular plural. (RENNÓ e PENNA, 2008, sem página).
Entre fotografia e imagem, entre texto e historia, os arquivos de Rennó esvaziam o pertencimento identificador de fotografia e texto para fazer da condição inespecífica da arte contemporânea um dispositivo de invenção do comum. Numa entrevista, referindo-se a Arquivo Universal – que, pela sua vez contém, entre outras notícias de jornais, as que conformam também Espelho diário – a autora diz: A idéia de eliminar de um texto quaisquer referências que apontem para uma imagem específica e torná-lo ambíguo ou suficiente para você imaginar que se refere a várias pessoas, situações, países ou épocas, é para aproximá-lo do efeito que uma fotografia provoca em você. A fotografia não tem nome e não tem data a não ser que você fotografe algum dado que te localize no tempo e no espaço. A ideia era jogar com essa
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possibilidade de projetar no texto o personagem que YRFr TXLVHU ( HVVD DOWHULGDGH SRGH VHU YRFr PHVPR 9RFr SRGH SURMHWDU D YRFr SUySULR $/=8*$5$< S
Ao minimizar a distância entre eu e o outro sem, no entanto, apagar as diferenças, a videoinstalação e o texto que reconfigura a performance exibem um solo comum â&#x20AC;&#x201C; coletivo â&#x20AC;&#x201C; no qual as diversas experiĂŞncias se sustentam. Na passagem entre narrativa, videoinstalação e fotografia, Espelho diĂĄrio propicia modos de pensar o comum. Lecciones para una liebre muerta, Mario Bellatin
____________________________ 3 Gostaria de sublinhar dois pontos dessa referencia a Beuys Lecciones: por um lado, a referencia a um dos autores que tem sido considerado â&#x20AC;&#x201C; junto com Andy Warhol e Marcel Duchamp â&#x20AC;&#x201C; como fundamentais para entender o estado atual da arte. Por outro lado, entre a multiplicidade de prĂĄticas artĂsticas contraditĂłrias levadas a cabo por Beuys, a perfor mance a que faz referencia leccion es dver ser incluida entre suas accoes â&#x20AC;&#x201C; como o prĂłprio artista as chamou â&#x20AC;&#x201C; mais semelhantes Ă performance Sobre Beuys, ver Claudia Mesch, Viola Michely, Arthur Danto, Joseph Beuys: The Reader
Alguns dos textos mais radicais da literatura contemporânea podem ser iluminados pelos conceitos de instalação e performance que, em sua emergĂŞncia histĂłrica e suas mĂşltiplas conotaçþes e comoçþes, transformaram, em muitos sentidos, o panorama das artes visuais: sua produção, sua crĂtica, sua circulação, e â&#x20AC;&#x201C; sem dĂşvida â&#x20AC;&#x201C; tambĂŠm sua relação com o mercado. Em alguns desses textos, pensados como textosâ&#x20AC;&#x201C;instalaçþes ou textosâ&#x20AC;&#x201C;performance, a referĂŞncia ao mundo das artes visuais ĂŠ explĂcita. El Gran Vidrio e Lecciones para un Liebre muerta, de Mario Bellatin, referem de um modo muito direto a algumas das obras inaugurais das perfomances, CĂłmo explicar cuadros a una liebre muerta, realizada em DĂźsseldorf em novembro de 1965 por Joseph Beuys, um dos primeiros artistas em questionar a ideia de que uma arte autĂ´noma e em construir instalaçþes que, a partir da ideia da arte conceitual com o seu intuito de intervir na realidade puseram fortemente em questĂŁo a ideia dos limites da arte.3 Como na arte da instalação e da performance, o livro de Bellatin constrĂłi um artefato verbal no qual se conjugam fragmentos de mundo. Os livros de Bellatin se integram, aliĂĄs, a outra serie de açþes e prĂĄticas que se organizam como instalaçþes e performance, muito embora todas elas tenham a literatura â&#x20AC;&#x201C; ou a escritura â&#x20AC;&#x201C; como seu ponto de referencia. Numa de suas intervençþes no mundo das artes visuais,
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Bellatin foi convidado a participar da Documenta Kassel 2012, para a qual desenhou uma instalação intitulada The One Thousand Books of Mario Bellatin, que por sua vez foi documenta em um dos “notebooks” da Documenta. Do projeto, finalmente a Documenta só publicou o livro. Mas como o livro não se diferencia – no fato de eles serem uma reunião de fragmentos dispersos – dos outros livros de Bellatin, The Onde Hunded Books of Mario Bellatin, refere simultaneamente ao projeto da instalação – que finalmente não foi produzida em Kassel – e aos livros anteriores de Bellatin. Se essas instalações se inserem nos espaços tradicionais das visuais – galeria, feira de arte – o fato é que eles também involucram uma expansão da literatura e uma transgressão de seus limites, incorporando outras linguagens que não se colocam, no entanto, como separados ou diversos da literatura e do literário. Nua viagem de ida e de volta, a literatura se expande para performance e a performance devém literatura. Se nas performances e instalações de Bellatin está sempre presente a literatura, também nos seus textos emergem outras formas de arte, como se literatura não se diferenciasse especialmente dessas outras formas que convoca e nas quais ela se inspira.
Lecciones para uns libere muerta consta exatamente de duzentos e quarenta e três fragmentos de várias histórias entrelaçadas. Não se trata de um quebra–cabeças que peça ser armado,mas de uma sorte de caleidoscópio de pequenas histórias que vão se articulando de modo aleatório e interrompido. A relação esquisita que esses fragmentos estabelecem com outros textos de Bellatin, com outros artistas, com a vida pessoa de Bellatin e com alguns acontecimentos reais fazem com que o texto construa historias independentes e autônomas que, por sua vez, desenham linhas de fuga que se conectam com outras zonas: em primeiro lugar, com outros livros do próprio Bellatin, mas também – e de modo insistente – com acontecimentos da vida real de Bellatin e de outros escritores amigos de Bellatin. A referência em primeira pessoa a diferentes episódios da vida de Mario Bellatin, junto com a referência, agora em terceira pessoa, a episódios do “escritor Mario Bellatin”,
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instaura um tipo de circuito entre realidade,obra e realidade que, sem negar a autonomia de cada um desses mundo, parece sempre esboçar pontos de contato e porosidades, entre os diversos campos. Como se o livro fosse efetivamente uma instalação, isto é: uma disposição de fragmentos diversos da realidade e do mundo da arte que convivem num espaço real, no qual se incorpora, por sua vez, o espectador, as “plataformas” de Bellatin persistem numa perfuração constante da diferença entre literatura e outras artes, por um lado, e literatura e realidade, por outro. Mas Lecciones para una liebre muerte também deve ser considerado um texto-performance, no sentido que Paloma Vidal dá a esse conceito. Isto é: aquelas narrativas nas quais O escritor se arrisca como performer ao construir a obra com o próprio corpo, expondo-o, expondo-se, numa indefinição das fronteiras entre arte e vida. Herdeira das vanguardas, um dos traços da performance é questionar os limites da arte e, nesse gesto, aproximá-la da vida. Quando o performer faz do próprio corpo seu material de trabalho, está deliberadamente questionando o distanciamento que funda a idéia de obra e apostando na possibilidade de que ela seja uma experimentação subjetiva e, quem sabe até, com novas formas de subjetividade. Não se trata necessariamente de uma inflação narcísica, embora esse seja um risco a ser calculado.” (VIDAL, 2007)
Entre a instalação e a performance, Lecciones para una liebre muerta conduz eficazmente para o território da literatura o espírito crítico e questionador da transgressão dos limites disciplinares e das especificidades artísticas que instalação e performance descobriram para a estética contemporânea. Mundos em comum Como as obras de Rennó e de Bellatin, algumas práticas contemporâneas muito heterogêneas e diversas entre si permitem discutir a crise da especificidade para
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além de um questionamento do “meio específico”. Em todas elas, trata se de questionar também a especificidade do sujeito, do lugar, da nação e até da língua, explorando modos de fazer valer com um sentido comum – comum, porque é impróprio, no sentido que Roberto Esposito dá a essa palavra – uma situação, um afeto ou um momento que, ainda que possa ser muito pessoal, nunca acaba por definir-se através da individualização de uma marca de pertencimento. Assinala Esposito: Não é o próprio, mas o impróprio – ou, mais drasticamente, o outro – o que caracteriza o comum. Um esvaziamento parcial ou integral da propriedade em seu contrário. Uma desapropriação que investe e descentra o sujeito proprietário, e o impele a sair de si mesmo. A se alterar. Na comunidade, os sujeitos não acham um princípio de identificação, nem um recinto asséptico no interior do qual se estabelece uma comunicação transparente ou quando menos o conteúdo a comunicar. Não encontra senão esse vazio, essa distância, esse estranhamento que os faz ausentes de si mesmos. [...] um circuito de doação recíproca cuja peculiaridade reside justamente na sua obliquidade a respeito da relação sujeitoobjeto, e por comparação com a plenitude ontológica da pessoa. (ESPOSITO, 2013, p. 22).
Uma desapropriação da especificidade, portanto, caracterizaria essas práticas do não pertencimento. Se propuser que se caracterizasse o efeito dessa aposta no inespecífico como a elaboração de práticas de não pertencimento mais do que como novos modos do pertencimento, é porque me parece que nesse movimento de invenção do comum como inespecífico e impessoal – ainda que único – elas nos estão propondo outros modos de organizar nossos relatos, e, por que não?, também nossas comunidades. Nesses cruzamentos de fronteiras, a arte inespecífica oferece figuras e formas do não pertencimento que propiciam imagens de comunidades expandidas que não se sustentam numa essência ou identidade ontológica compartilhada. Que essa comunidade se conjugue numa
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radical desconstrução do próprio e da propriedade em que se funda o pertencimento – o mesmo que, baseado nessas propriedades, funda o discurso da espécie – não é gratuito. Em sua crítica à noção de comunidade de JeanLuc Nancy e sua dificuldade para articular uma comunidade política, Roberto Esposito assinalou o curtocircuito conceitual que a noção de comunidade contém entre o comum e seu contrário, o próprio. Assinala Esposito:
É como se o absoluto privilégio assignado à figura da relação, da comunicação, acabasse por cancelar o conteúdo mais relevante – o objeto mesmo do intercâmbio recíproco – e portanto, com ele, também o seu significado potencialmente político. (ESPOSITO, 2013, p. 3)
Só a desconstrução do próprio e do pertencimento poderia fundar, acrescenta Esposito, um processo de construção da comunidade como “progressiva abertura ao outro de si” (Idem, p. 3). Só o impróprio, acrescenta em outro texto, “o mais drasticamente, o outro” –, caracteriza o comum (Ibidem, p. 31). Para além de uma essência produzida coletivamente, para além da identificação homogênea que funda o pertencimento, a grande aposta da arte inespecífica se propõe como uma invenção do comum sustentada num radical deslocamento da propriedade e do pertencimento. A progressiva indiferenciação de meios e a desespecificação da arte contemporânea, “não significa a supressão da arte em um mundo de energia coletiva que carrega o telos da tecnologia. Pelo contrário, implica uma neutralização que autoriza transferências entre fins, médios e materiais das diferentes artes, a criação de um médio específico da experiência que não é determinado nem pelos fins da arte nem pelos da tecnologia, mas que está organizado Segundo novas intersecções entre arte e o que não é arte. (RANCIÈRE, 2010). Deveríamos contar essa renovação dos poderes da arte para intervir naquilo que não é arte como um dos resultados mais evidentes – e promissores – dessa arte inespecífica. Práticas do não pertencimento, como as obras aqui descritas, fazem de uma área importante da arte
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contemporãnea um laboratório de ideias e de inspirações para pensaros e imaginarmos, como dizia o últio Barthes, como viver juntos.
Referências ALZUGARAY, Paula. “Rosângela Rennó: o artista como narrador”. São Paulo: Paço das Artes, 2004. Folder de exposição [exhibition folder]. BELLATIN, Mario. Lecciones para una liebre muerta. Barcelona, Anagrama: 2005. _______. Disecado, México: Sexto Piso, 2011. _______.The Hundred Thousand Books of Mario Bellatin Kassel: Documenta und Museum Fridericianum, 2012. DIDI–HUBERMAN, Georges. Supervivencia de las luciérnagas. Madrir: Abada, 2012. ESPOSITO, Roberto. Communitas: Origen y destino de la comunidad Buenos Aires: Amorrortu, 2007. _______.“Comunidad, inmunidad, biopolítica”, In: e–misférica, vol. 10, núm. 1, invierno, 2013. GIUNTA, Andrea. “La era del gran escenario”, In:Escribir las imágenes , Buenos Aires: Siglo XXI, 2011. _______. 2014 ¿Cuándo comienza el arte contemporáneo? Buenos Aires: Fundación arteBA, 2014. MESCH, Claudia, Arthur Danto, Joseph Beuys: The Reader. The MIT Press: Cambridge, MA, 2007. VIDAL, Paloma, “Performance e homoafetividade em dois romances de João Gilberto Noll”, In: e–misférica, vol. 4, num. 1, junho, 2007. RANCIÈRE, Jacques. El espectador emancipado. Buenos Aires: Manantial, 2010. RENNÓ, Rosângela, PENNA, Alicia Duarte. Espelho diário. Belo Horizonte: EdUFMG; São Paulo: Edusp/ Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, s.p. SMITH, Terry. ¿Qué es el arte contemporáneo?, Buenos Aires, Siglo XXI, 2012. WALLEY, Jonathan, “Identity Crisis. Experimental Fill and Artistic Expansion”, en October, núm. 137, pp. 23–50, 2010
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Paisajes existenciales latinoamericanos: intertextualidades entre literatura y fotografía en Chile Dr. Gonzalo Leiva Quijada*
“Valparaíso, tan pequeña como una camiseta desvalida, colgando en tus ventanas harapientas meciéndose en el viento del océano, impregnándose de todos los dolores de tu suelo…” (Pablo Neruda; "Oda a Valparaíso")
RESUMEN: El artículo busca establecer categorías estéticas desde el complejo intertextual de la sensibilidad y la creación artística. En efecto es un trabajo que investiga sobre dos personalidades originales del Chile de mediado de los años 50: la figura de Sergio Larraín Echeñique y de su amigo Adolfo Couve. El primero fotógrafo reconocido en el medio mundial, único latinoamericano de la Agencia Magnum, el segundo un creador nato en todos los terrenos posibles de la creación literaria y plástica. Nos interesa recabar sobre las aperturas del sentido en la obra literaria y sus diálogos con la fotografía. Por lo mismo, la investigación reconoce el fondo psicológico y la importancia de la ciudad de Valparaíso para pensar la liberación psíquica desde dos autores que dan nuevas alas creativas a la literatura y la imagen latinoamericana. PALABRAS–CLAVES: Creación artística, intertextualidad, fotografía, literatura, fondo psicológico.
* Instituto de Estética, PUC de Chile
RESUMO: O artigo procura estabelecer categorias estéticas a partir do complexo intertextual da sensibilidade e da criação artística. Na verdade, é um trabalho que pesquisa duas personalidades originais do Chile de meados dos anos 50: a figura de Sergio Larraín Echeñique e seu amigo Adolfo Couve. O primeiro, fotógrafo mundialmente reconhecido, único latino-americano da Agência Magnum; o segundo, um criador nato em todos os campos possíveis da criação literária e das artes plásticas. Interessa-nos explorar as aberturas de sentido na obra literária e seus diálogos com a
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a fotografia. Por isso, a pesquisa reconhece o fundo psicológico e a importância da cidade de Valparaíso para pensar a libertação psíquica desde dois autores que dão novas asas criativas à literatura e à imagem da América Latina. PALAVRAS–CHAVE: Criação artística, intertextualidade, fotografia, literatura, fundo psicológico.
Introducción El presente ensayo busca escarbar en categorías estéticas las aperturas de sentido en la obra literaria y sus diálogos con la fotografía. En concreto, desde un diálogo intertextual entre el escritor Adolfo Couve y su amigo el fotógrafo Sergio Larraín Echeñique, buscaremos adentrarnos en fragmentos escriturales, pictóricos, fotográficos para desentrañar algunas constantes en la producción autónoma de los creadores: ambos difíciles de clasificar, reacios a los academicismos, escapando del exitismo fácil de la fatua y efímera gloria. Los creadores, Adolfo Couve y Sergio Larrin, se instalan en un paraninfo de secretos pasillos, representando los estertores de un modelo romántico tan frugal como anacrônico. Sus vivencias conectadas con una familia aristocrática numerosa, con una temprana producción imaginativa y por sobre todo co una capacidad de sintetizar vivencias y recuerdos en la escases del significante, instantâneas resistentes, fragmentos deshilachados como sus obras pictóricas y fotográficas que fueron dejando grandes zonas de tela espurias, de preguntas sin respuestas. Sus escrituras meándricas y altisionantes mezclan la alta cultura con el relato nimiode la cotidianeidad, alcanzando un destacado sello cronista. De igual forma en ambos autores se destaca una evidente fragilidad vivencial, que se presenta por pequeñas heridas de sus personajes descritos y retratados, en general seres maltrechos existencialmente, náufragos impedidos de alcanzar lo deseado.
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Es en este contexto productivo que los une generacionalmente durante los años cincuenta y sesenta en Santiago en la escuela de Bellas Artes. Así conocemos de la amistad de Larraín y Couve, el nexo común será el maestro de ambos: Pablo Burchard. Burchard, profesor de taller de pintura y paisaje, autor apasionado que trabaja sosteniendo una pincelada liviana, ágil y poética, aunando los cantos, estudios descriptivos y primorosos de las cosas sencillas que por la creación alcanzan una densidad ontológica. En Couve y Larraín pervive la acción decisiva de transformase en verdaderos y auténticos artistas, potencia que parece ser la iniciativa principal inculcada por el maestro Burchard, cuyo influencia sobre los jóvenes pintores era hipnotizante. Burchard les hablaba como un ser mítico y legendario (ROMERA, 1975, p. 146), su muerte en 1964 los deja con la hendidura del dolor, pero sobre todo los impulsa con una clara misión: la plenitud plástica. El maestro Burchard es el nexo de una amistad que continua con la síntesis pictórica que Couve logra, Larraín establece los ejes de su perspectiva estética a partir de estos lineamientos. Una amistad a base de la solidaridad y la admiración, pues ambos en sus proyectos artísticos se transformaron en portento enunciativo de una nueva estética basado en lo sencillo, lo mágico y transformador. Couve por medio de sus textos, collages y pinturas y Larraín por sus fotografías, pinturas y textos. 1 –Tono existencial y naturaleza en Adolfo Couve Hace tiempo que hemos llegado a darnos cuenta de que el arte no se produce en un espacio vacío, siempre es una emergencia de sentidos, en una suerte de diálogos con sus predecesores y modelos. La zona específica del trabajo visual de Couve tiene una parte atada a sus maestros Georges de la Tour, Pablo Burchard, Aguiluz, en la pintura así como Dante, Proust y Pound en la conformación poética escritural. No obstante, su vivir apasionado, demostraba el ruido inconmovible de las mareas y los cambios en el sócalo de sus propuestas plásticas y poéticas, constantemente asimilaba nuevos referentes. Ambas confianzas los referentes fundantes y las novedades eran posibles pues emergían de
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una existencia dialógica con su tiempo, pero también con la naturaleza y las cosas simples. Así el espíritu romántico de Adolfo Couve pervivía con los sedimentos que eran revocados por una naturaleza agreste y ascética. Sus paisajes pictóricos tenían en la niebla un aliado, “esfumando los contornos, dejando que las formas floten”, para configurar en el espectador "un intenso vibrar de sensaciones” (ROMERA, 1976, p. 201). La multiplicidad de sensaciones era el umbral a la reflexión y al intimismo, tanto de las cosas como de su supervivencia. De igual forma, el peso existencial lo entendía Couve como la escritura, un ejercicio de memorias. En estos intersticios surgía de manera efectiva lo inquietante, lo grotesco (VALDÉS, 2003, p. 9) y muchas veces también lo siniestro. Profusamente repertoriadas la representaciones habituales en Couve, tanto literarias como pictóricas, fueron construyendo seres sensibles que acumulaban agonías en su estilo de vida ensimismada, eran héroes sin sentido temporal. Pues curiosamente sus personajes, muchos de ellos relatados en primera persona, muestran una estimulada conciencia de un presente (COMPAGNO, 1990), pero también del pasado perdido (PROUST, 2002). Así fueron tejiendo sus vidas en la tensión de los tiempos, ardua itinerancia entre dos polos descompensadores. El auto nos recuerda que es la belleza la que rescata de los abismos temporales, “esa belleza colosal que habla de la muerte, de lo transitorio de nuestra condición” (COUVE, 2000, p. 29). Por esto y parafraseando al filósofo Vatimmo, diríamos que los aspectos que se busca encontrar en esta estética de Couve tiene ejes del ideario de belleza temporal portado por el romanticismo lunar, que veía en la noche y la luna las simbologías de una soterrada regeneración. Pues las producciones pictóricas de Couve, por su parte, que es el otro camino de expresión plástico, conllevan aspectos tanto de la verdad de la experiencia existencial vivenciada por sus personajes esbozados que remarcados en las manchas acuosas y diluidas van dibujando y esbozando en el minimalismo, y en la vacuidad, las metáforas del fin de su propia vida (VATIMMO, 1986). Todavia en sus momentos de mayor pesadumbre existencial, el artista
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Adolfo Couve buscaba la belleza para iluminarse. Del mismo modo, hurgueteaba en los oscuros pasillos de los excesos donde la belleza no solo alumbra sino que también explicita lo inacabado de la desgracia de vivir. La vida, su existencia, “la desazón que provoca la desgracia y la esperanza de la belleza no son garantía de nada” (COUVE, 2000, p. 33). La autodeterminación declarativa de Couve es una acción comunicativa tanto en obra visual como escritural. De tal modo, de ir definiendo estéticamente cierta experiencia estremecidamente existencialista que dispone de una visión ética (GIANNINI, 2007, p. 27), lo que el filósofo ha designado como “eticidad de la vida”. En este contexto de la obra de Couve, las disciplinas prácticas de la filosofía, es decir ética y estética, se confunden en el ejercicio creativo y en las fases que remueven la interacción y valores de una producción en busca de la belleza perdida. Así, la obra total de Couve deja la sensación valórica de un inacabado sentido del perquirir, la insondable búsqueda de la certeza, en particular sus pinturas de la playa y el mar, presentan una esfumada belleza que la misma obra en su recepción tautológicamente provoca (JAUSS, 1992). El universo convocado por Couve presenta los resabios de un constructo imaginal que denominaremos "latencias existenciales", es decir una ampliación de las percepciones freudianas, no solo desde una íntensificación represiva y desarrollo sublimnal ( LAPLANCHE, 1996, p. 209), sino una transformación del ser íntimo en capas múltiples. Las latencias son expresadas en su obra productiva, asi cada creación de Couve va develando múltiples categorias que surgen desde un desconcierto y desesperación existencial cada vez más exasperante. La obra de Couve es su vida de silencios y desmesuras con borraduras, aperturas, renovaciones. Así esta distinción se ve fuertemente sintetizada con la naturaleza que tiende a abrazar el todo de su vida personal e intima y su producción artística. En Couve el latido del corazón es un telón de fondo, compañía fantasmagórica pregnante en mucha de sus obras,
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presencia metafórica y dinámica de una naturaleza como la suya, humana demasiado humana, siempre vibrante y alborotada.
2 – Sergio Larraín, la estética de los mundos comunicantes Sergio Larraín en los sesenta era un renombrado fotógrafo de la Magnum, donde residían los más notables fotógrafos de la época. Era el único latinoamericano, pero al mismo tiempo el más tímido, el más frágil. Un camino largo pero meritorio lo situaron en la fama mediática. Es en este contexto que Julio Cortázar refiere desde un cuento (CORTÁZAR, 1994) la historia ficcionada protagonizada por un personaje literario llamado Michael, traductor y fotógrafo franco chileno que está inspirado en la figura de Larraín y en una fotografía suya. Efectivamente, el fotógrafo chileno en esos momentos vivía en Paris y era amigo de Cortázar, cuenta al escritor argentino una anécdota, que al estar sacando imágenes en la l’Ile-Saint-Louis, tomando como ángulo el ábside de la catedral de Notre Dame, capturó imágenes que al ampliarse mostraban actos ilícitos, sólo fue consciente de este hecho una vez revelado el negativo. Pero este cuento, “Las babas del Diablo”, que apareció en el libro “Las Armas secretas”, publicado en 1959, sienta un precedente al sospechar sobre la creación visual y sus límites. Su derrotero ficcional nos permite indagar sobre el propio imaginario fotográfico fuente de la comprensión de la propia vida de Larraín. Amplificando este cuento de Cortázar, un maestro del cine como Michelangelo Antonioni, transforma el episodio fortuito en una pequeña tragedia, donde la fotografía constituye testimonio del delito. Las sucesivas ampliaciones del negativo van mostrando los mundos que, no estando en la intención original de la mirada fotográfica, sin embargo participan de este imprevisto corte espacio temporal. Si bien el fotógrafo que inspira la cinta “Blow-Up” es David Bailey, fotógrafo de moda, la ronda perspicaz de la anécdota de Larraín es un detonante sobre la ambigüedad del encuadre y la integridad de las representaciones. Ahora, el cuento de Cortázar, “Las Babas del diablo”, es un cuento clave para situar la delgada línea que separa
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dicotomías como vida/muerte, espacio público/privado, racionalidade/indeterminaciones, que finalmente son el leitmotiv central en la obra de Larraín. Nuevamente el fotógrafo, Sergio Larraín, que vivía un pequeño drama familiar se conecta por medio de la ficción en un cuento que trabaja con la percepción visual, en una ciudad de Paris abastecida de clichés, por eso concentra su mirada en un no lugar, una plaza frente al Sena. El simple paseo fotográfico tiene otra intención más metafísica, pues reflexiona el hablante lírico, que “entre las muchas maneras de combatir la nada, una de las mejores es sacar fotografías” (CORTÁZAR, 1994, p. 208), por lo tanto explicita que la actividad fotográfica llena de sentido existencial y práctico la vida. Cortázar establece una reflexión atingente al formular que cada fotografía es la permutación de una manera de ver el mundo desde las limitaciones y encuadres que la cámara impone, por lo tanto es siempre una transacción entre la visión personal y el medio técnico. Pues bien, el personaje, Michel, al intentar sacar una fotografía en un rincón intimo su atención se concentra en una pareja hablando, ella una mujer rubia madura y él un joven adolescente, nada común, asimétrica pareja. El fotógrafo como una voz en off, construye un soliloquio: levanté la cámara, fingí estudiar un enfoque que no los incluía y me quedé al acecho, seguro de que atraparía el gesto por fin el gesto revelador, la expresión que todo lo resume, la vida que el movimiento acompasa pero que una imagen rígida destruye al seccionar el tiempo, si no elegimos la imperceptible fracción esencial (CORTÁZAR, 1994, p. 212).
La cámara fotográfica captura tres principios sintéticos: espacialidad, temporalidad y gesto vital. Las fotos analógicas una vez reveladas, fueron ampliadas, en particular la de esta banal escena amorosa en laplaza. Michael se quedó mirando estas ampliciones, "operación comparativa y melancólica del recuerdo frente a la perdida realidad, recuerdo petrificado, como toda foto, donde nada faltaba, ni siqueira y sobre todo la nada, verdadera fiadora de la escena" (Idem, p.213). El lente rigido de la cámara registra, no interviene, pero el acto perentorio del registro era el momento de la liberación del chico que huía con este gesto de lo siniestro, la baba un engño que lo cernia,
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los hilos de la Virgen convertidas en las babas del diablo, lo ominoso que remite a lo mortuorio dejando estelas misteriosas sobre este hecho pues la nada acechaba en la vida cotidiana. En efecto, hay un acto predatorio al registrar una imagen (SONTAG, 1994), la fotografía como acto elegiaco donde se plasma un momento mori, una participación en la vulnerabilidad de la carne, de las crespusculares energías de la libido que, repartida entre vida y muerte, dispensa sus reservorio sacrificial. El acto fotográfico para Larraín y su alter ego Cortázar se conforma de mundos comunicantes, el mundo enmarcado en una ampliación fotográfica. (HAHN, 1981, p. 335). La estética reseñada por el corpus de la obra de Sergio Larraín tiene en los mundos comunicantes su sello de partida. El mundo real se amplía por los encuadres de la fotografía. Incluso la capacidad eminentemente indagatoria de sus reportajes busca reafirmar ciertas certezas visuales, enmarcándose en otro relato. Lo prendado en la acción fotográfica son los mundos reales de los referentes capturados y su correlato lo constituye los espejos que los deforman, reubican, los ponen en la profundidad de campo. Entre ambos mundos hay un constante transitar, como lo es en el cuento, el propio Larraín se va constituyendo por su acción comunicante por medio de la fotografía en una relación pasional que ejecuta una dimensión poética de su propia vida. El descubrimiento de lo nimio por la ampliación es la constatación que la atención se focaliza sobre la tensión existencial. El regreso a Chile de Larraín y su búsqueda mística existencial de los sesenta es el símbolo de sus propios procesos de ampliación y definición emocional. 3 –Valparaíso y el mar: las posibilidades del psiquismo hidratante En ambos autores, Couve y Larraín, la ciudad de Valparaíso constituyó fuente de inspiración, de retorno y proyección. Para ambos, la ciudad puerto y su mar instauraron instancias de recogimiento de sus obras más psicológicas y personales. Oriundo de Valparaíso, en sus escritos, Couve señala: “levanto la vista y descubro el mar. Es infinitamente más poderoso que el jinete. Sonrío. Lo veo protestar en el
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roncar de las olas” (COUVE, 2003, p. 27). El mar se personifica como una naturaleza humanizada que impone la vista por la horizontalidad del azul, que demuestra con su fuerza una gran hostilidad. El mar, tropo reiterativo donde se unen las fuerzas psíquicas del consciente y del inconsciente en Couve. Es una fascinación su cercanía, pero al mismo tiempo se percibe como una constante amenaza. El mar como provocación en Couve está presente en su historia personal desde su origen en el puerto enmarañado de Valparaíso. Pero de un modo curioso no es el puerto la atracción sino la bahía, su sensibilidad se ve calmada o crispada de acuerdo a las fuerzas o delicadezas que el mar despide. La mirada de Couve es siempre a la rada, visión exteriorizada hacia el horizonte infinito que despide el mar. En efecto, el magma acuoso y sensible del mar, movimiento del oleaje como tejido aditivo y complejo, fuertemente revoltoso y apasionado, horadando costas, amenazando con su estruendo las certezas y la apasible vida de la provincia, del balneario, del discurrir vital. En definitiva, el mar en la obra de Couve es vital como elemento simbólico pues en su transitoriedad establece las posibilidades de la metamorfosis, las puertas de huida de los determinismos y convenciones, una real posibilidad de libertad humana. Si realizamos una visión global en la obra de Adolfo Couve, llama la atención sus propuestas plásticas, que urgen nuevas perspectivas e identificaciones, pudiendo colegir que uno de los ejes centrales es la constitución de una renovada visualidad, una búsqueda desde los impulsos creativos (GREGORY, 1970). En fin, la recreación de un universo privado que desde la inmanencia va dando a conocer el recurso de las olas como energías ineludibles, de un no olvido, un estar presente en medio de las mareas como cuando el mundo se retira, los pliegues de la cortina cerrada son arenas y el azul de sus contornos se me vuelve mar anterior a mi locura. Sólo así puedo volver al tiempo de mi primera seriedad y entonces, olvidando con quienes, reconozco los sitios; juego a redescubrir el eterno abrazo del mar y las arenas y como escancia el esmeralda a raudales (COUVE, 2003, p. 34)
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Couve hace un traslado poético desde el mar de Valparaíso de su infancia hacia el mar de Cartagena, su patria final de adopción y muerte. Contrariamente no es el mar lo que atrae a Larraín de Valparaíso, es la urbanidad constructiva y su topografía. El propio Sergio Larraín es quien en la contratapa de su libro fundamental, llamado justamente como la ciudad “Valparaíso”, plantea: “Es en Valparaíso que yo comencé a fotografiar caminando por las colinas día y noche”, es decir es la ciudad iniciática para el autor, el comienzo de su aventura fotográfica. Ahora, sobre la fotografía plantea: “una buena imagen nace de un estado de gracia. La gracia se manifiesta luego que se libera de las convenciones, libre como un niño en su primer descubrimiento de la realidad” (LARRAÍN, 1963, Contratapa). El niño es el que recorre maravillado la ciudad de Valparaíso para desplegar desde ella las múltiples posibilidades de encontrar la libertad como promesa, frente o de espalda al mar. El mar para la mirada del niño es una promesa y una afirmación, el quiere conformarse en la ciudad, su inquietud lo lleva a encontrar los secretos guardados, los prosaicos y los sagrados. La experiencia epistemológica realizada por la fotografia de Larraín en Valparaíso es radical, una investigación artística que germinalmente busca construir una nueva categoria simulácrica, un recurso donde la fotografia abandonado el trasfondo mimético, buscando instaurar un nuevo orden visual desde un trasfondo emocional y perceptivo. En efecto, la búsqueda visual escarba “por debajo de las diferencias denominadas y previstas cotidianamente (...) los parentescos ocultos de las cosas, sus similitudes dispersas" (FOUCAULT, 1966,p.58), el escenario elegido es justamente una ciudad de un imaginario de rincones, rellanos y puertas. Valparaíso, la ciudad laberíntica que va develando desdde un recorrido azaroso un gesto descontructivo de la mirada yel montaje de una imagineria visual como denominación poética, es decir como unidad de sentido y valor comunicativo (MUKAROVSKY, 2000). El mar es una masa de potencialidades que se ven como emergencia de emociones encontradas. En definitiva, las referencialidades al mar y la línea costera pero también a la ciudad de Valparaíso como espacio y extensión del conocimiento marino, componen prácticas
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experimentales centrales del romanticismo tardío que, como “diferencia sensible”, Adolfo Couve y Sergio Larraín construyen. El mar se funde, se rinde tributo como un ritual intrapsiquico, la necesaria oblación frente a la necesidad de recuperación integral. Pues para sobreponerse a la bravura del océano que nada tiene de Pacífico se hace necesario maquillar la muerte ante los ojos. El mar es el preludio y el enunciante de lo inevitable, la desilusión humana ante la presencia y representación de la muerte, resultados que demuestram fuerzas compositivas pugnando desde una narrativa visual y literaria (ARNHEIM, 2002). Pues los niveles semánticos del mar y de Valparaíso, entregan la posibilidad de redención, asoman posibilidades en el horizonte infinito, en los niveles de sugerencia a nivel de presencias, ausencias y no lugar (AUGÉ, 1992), dejan abiertas las posibilidades para el ansiado equilibrio que el psiquismo hidratante de estos creadores requieren. 4 – Couve y Larraín: amigos en la libertad En la novela de Couve “La lección de pintura”, el niño Augusto es un bastardo que simbólicamente nunca habla durante todo el desarrollo de la novela. Es un niño que vive con la deshonra de no tener padre reconocido. Enfundado en el silencio, es también el niño de la latencia y del imbunche cultural. El huacho de la propuesta central desarrollada en un pueblo cerrado del valle central, habla del mal nacer, una condición que resiente como “mal del siglo o malestar epocal”, tanto Couve como Larraín. Ambos hijos de una elite dorada que no los considera productivos, exitosos. En este sentido comparten una rebeldía común, son callados y tímidos como el niño de la lección de pintura, pero como el protagonista de esta novela son deseosos y cuestionadores de cambios sensibles en la conformación de clases, en la consideración y misericordia frente al otro. Sus medios son las creaciones que buscan con sofisticación transmitir la poesía de su libertad. La realidad secreta para comprender el mundo es su producción, potente poder de Adolfo Couve y Sergio Larraín para constituir su espacio de proyección propia. La obra de Couve eludió recetas exitosas, en el despoblado campo de la intuición, recreó y solidificó un estilo propio, donde la capacidad clásica, pero siempre
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alarmante y deconstructora, indicaba el juego de una estética transgresora, que denominaremos “la inquietante inocencia”. Ahora en Larraín, el uso testimonial y referencial, opaca la acción fotográfica, en particular en momentos del desarrollo del periodismo ilustrado, donde las fotografías eran vitales para resumir visualmente los elementos de las narrativas periodísticas o los cronistas contratados. En este contexto, el trabajo de Larraín cumple con este primer cometido, pero amplía las posibilidades de la fotografía al cuestionar desde una tensión reforzada intuitivamente sobre la restricción documental. La fotografía nunca es testimonio veraz de los que ocurrió, es un punto de vista sobre la realidad, pues es también la expresión de una poética autoral que destaca aquellas zonas de dolor donde el autor es ojo solidario. Las coincidencias significativas, simbólica mayor se establece entre los mundos paralelos configurados, son patrimonio de los creadores Couve y Larraín, que dejando de ser menos reproductores de objetividades se transforman en autores autónomos profundamente comprometidos con la libertad de la pobreza, el desmerecimiento, el desprecio y sus contornos como límites representacionales. Para ambos artistas, Couve y Larrain, las zonas sociales escondidas de Chile son los ejes de sus preocupaciones estéticas: los excluidos y los invisibilizados, niños, pobres, mujeres, esforzados. Ya que no basta sólo incluirlos como protagonistas a estos grupos subalternos, instalan una serie de preocupaciones estéticas en su representación, auténticas paradojas que cuestionan nuestras aparentes certezas. En este contexto, Couve y Larraín, no quieren las posibilidades de la libertad para sí, quieren realizar por medio de su creación un espacio de liberación de la mediocridad y de la apertura de mente para que la bondad prime sobre los prejuicios. Esta es otra de sus batallas libertarias, para que los excluidos sean parte de la patria. Estos actos poéticos refundadores son muestras de su humanismo solidario.
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Por esto, las obras literarias de Adolfo Couve, sus pinturas, así como los reportajes y fotografías de Sergio Larraín a propósito de los universos comunicantes, formulan capacidades simuladoras. Pues las imágenes propuestas por los autores nos hacen creer que es una mirada normalizada, literal, cuando la acción subversiva que realizan es hacernos conjeturar sobre una parcela de realidad tratada, fracturada, escogida. La simulación nos sumerge en un continuum, pero es dable establecer la diferencia entre una imagen para los ojos y otra para el entendimiento con una compleja trama de símbolos convocados. Sin duda que la fractura y la herida asoma de modo continuo. De un modo evidente, la configuración de la estética de Larraín en su primer momento está regulada por un sistema formalista, que el autor había explicitado en 1963 en su libro El rectángulo en la mano, al respecto la formulación: “La realidad visible es la base del proceso fotográfico, y también es el juego de organizar el rectángulo: geometría, con el rectángulo en la mano (la cámara), yo busco. Fotografía: ello (el sujeto) dado por la geometría” (LARRAÍN, 1963, p. 9). La organización del rectángulo se dirigirá a ver los niños de la calle, del rio Mapocho, de Valparaíso, de los sitios apartados de Chile. Niños sin rostros, ni rizas, ni voz. Conclusiones La amistad y admiración entre Sergio Larraín y Adolfo Couve es un momento axial de la cultura chilena de la mitad de siglo, no sólo porque constituyen dos creadores que han dejado una huella visible en la cultura nacional, sino que además sus obras son referencias para las nuevas generaciones. En ambos creadores, la libertad es el eje argumental, una libertad entendida como una liberación de las cargas familiares y culturales entre las cuales nacieron. Ambos creadores claramente no eran de pensamiento convencional, sino buscadores de los secretos arcanos del universo. Eran sensibilidades sofisticadas, ideadoras de mensajes autónomos y cercanos a las realidades contingentes.
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La libertad se entendía de distinto modo, mientras que el pensamiento creativo de Couve se proyectaba a nuevos lugares y posibilidades exteriores, en el caso de Larraín tenía un trasfondo más psíquico. Por esto, sus travesías por la ciudad de Valparaíso son asuntos de dos trazados diversos, mientras la creatividad de Couve desde la ventana buscaba el más allá en el borde marino como posibilidad, en el caso de Larraín el trazado era de la calle por los laberintos de callejuelas y pasajes hacia las casa, la conciencia simbólica. Valparaíso es el universo común, la ciudad mítica de los orígenes, el eje fundante del universo artístico y mítico creado. Es la ciudad real, pero por sobre todo es la ciudad imaginada como el parnaso de la existencia poética. Lo fotográfico, como lo pictórico y lo literario, implican operaciones de petrificar la escena. Son actos performáticos, una acción que se hace y ejecuta al mismo tiempo. Pero en estas acciones, no sólo se instauran mundos, sino que además se reflejan los mundos interiores de los autores: rebeldes, inconformes, inquietos, buscadores. Adolfo Couve muere, su influencia se deja sentir hasta el final de sus días para Sergio Larraín. Cada domingo hasta su propia muerte ritualiza en su taller de Ovalle interior una clase de pintura, como el maestro de ambos, Burchard, como Couve, sentidos homenajes desde el silencio creativo para continuar por su creación dándole sentido a la vida, a la vida trasformadora: instauradora de nuevos mundos existenciales. Referências ARNHEIM, Rudolf. Arte y percepción visual: Piscología del ojo creador. Madrid: Edit. Alianza, 2002. AUGÉ, Marc. Non-Lieux, introduction à une anthropologie de la surmodernité, Paris: Le Seuil, 1992. COUVE, Adolfo. Narrativa Completa. Santiago: Seix Barral, 2002. _______. Escritos de arte . Santiago: Ediciones Universidad Diego Portales, 2000. CORTÁZAR, Julio. Los relatos 3, pasajes. Madrid: Alianza Editorial, 1994. COMPAGNON, Antoine. Les Cinq Paradoxes de la modernité, Paris: Maison d’Edition Seuil, 1990.
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Ramón Gómez de la Serna ou o descobridor da América Livia Grotto
RESUMO: Segundo Jorge Luís Borges, o escritos espanhol Ramón de la Serna seria o "descobridor da América" no sentido de que a desvelaria cultural e esteticamente para os próprios americanos. O artigo situa o contexto desta afirmação através das revistas da vanguarda argentina Inicial, Proa e, principalmente, Martin Fierro, mostrando um período no qual o jovem Borges reavalia as vanguardas e a sua própria inclusão entre vanguardistas. Percorrem–se, nesse sentido, as opiniões e a homenagem de Martín Fierro ao escritor Gómez de la Serna, tido como uma das figuras centrais para as vanguardas hispanoamericanas da década de 1920. Sob essa perspectiva também se retomam os posicionamentos de Borges diante de duas importantes polêmicas que ocuparam as páginas de Martín Fierro e serviram-se do nome de Ramón: a de Boedo versus Florida e a do Meridiano intelectual da América. PALAVRAS–CHAVE: Jorge Luis Borges, Ramón Gómez de la Serna, vanguarda martinfierrista
Universidade Estadual de Campina (Unicamp)
RESUMEN: Según Jorge Luis Borges, el escritor español Ramón Gómez de la Serna sería el "descubridor de América" en el sentido de que la desvelaría cultural y estéticamente para los propios americanos. El artículo sitúa el contexto de tal afirmación através de las revistas de la vanguardia argentina Inicial , Proa y, sobre todo, Martín Fierro , dando a conocer un período en el cual el joven Borges revalúa las vanguardias y su propia inclusión entre vanguardistas. En ese sentido, se revisan las opiniones y el homenaje de Martín Fierro al escritor Gómez de la Serna, que estaba considerado una de las figuras centrales para las vanguardias hispanoamericanas de la década de 1920. Bajo esta perspectiva también se retoman los posicionamientos de Borges frente dos importantes polémicas que ocuparon las páginas de Martín Fierro y se han servido del nombre de Ramón: la de boedo versus Florida y la polémica del Meridiano intelectual de América. PALABRAS –CLAVE: Jorge Luis Borges, Ramón Gómez de la Serna, vanguardia martinfierrista
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Antes de mudar-se para a Argentina, Ramón já colaborava com os jornais e revistas do país. Para Martín Fierro, periódico quincenal de arte y crítica libre, dirigido por Evar Méndez, enviou textos divulgados a partir de julho de 19251. Antes disso, contudo, seu nome já aparecera em algumas oportunidades, sobretudo na polêmica entre os grupos de Boedo e de Florida, talvez sobreestimada pelo gesto típico da vanguarda de "institucionalizar o escândalo" (SARLO, 1997, p. 225) com o objetivo de atrair o interesse do maior número de espectadores e leitores. Graças à presença e ao financiamento de Martín Fierro por parte de Oliverio Girondo, essa revista guardava um caráter bem diferente do de sua contemporânea Proa. Era transgressora, moderna e muito irreverente. Provas disso encontravam–se na própria polêmica entre Boedo e Florida, no uso do "vos" no lugar do "tú", nos epitáfios em forma de quadras dedicados a escritores vivos e aos próprios colaboradores, também no humor dos "Membretes" de Girondo, de estrutura e estilo semelhantes aos das greguerías ramonianas. O estopim da polêmica Boedo versus Florida foi o próprio manifesto da revista, redigido por Girondo e publicado anonimamente no número 4, de 15 de maio de 1924. Depois dele, Conrado Nalé Roxlo se afasta do grupo, mas entram outros colaboradores, decisivos para a revista, como os irmãos Borges e González Tuñón, Ricardo Güiraldes, José Pedroni, Norah Lange, Xul Solar, Francisco Luis Bernárdez, Eduardo Mallea e Macedonio Fernández. Diferentemente das declarações da vanguarda ultraísta espanhola, esse era um manifesto em sentido estrito, não só porque definia uma postura estética, mas devido à intenção de chocar, ao tom crítico e agressivo (GELADO, 2006). "Frente a la impermeabilidad hipopotámica del 'honorable público'", começava o texto que, desde o início, selecionava um público leitor minoritário, heterodoxo e afeito às novidades (à "NUEVA sensibilidad", à "NUEVA comprensión"). Um público culto e bem-nascido, além disso, a meio caminho entre a América e a Europa, e que apesar do influxo estrangeiro na literatura nacional, nas modas e nas mercadorias, sabia-se argentino: " 'MARTÍN FIERRO' tiene fe en nuestra fonética, en nuestra visión, en nuestros modales, en nuestro oído, en nuestra capacidad digestiva y de asimilación" (GIRONDO, 1924).
1 Girondo foi co–diretor da revista com Evar Méndez, Eduardo Bullrich, Alberto Prebisch e Sergio Piñero entre os números 17 e 36. Antes e depois desse período, a direção era só de Méndez.
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2 A revista repetia o nome de outros periódicos: o do suplemento literário de La Protesta, dirigido pelo poeta anarquista Alberto Ghiraldo entre março de 1904 e fevereiro de 1905. Depois Martín Fierro, com três números, dirigidos por Evar Méndez e publicados entre março e abril de 1919. 3 No mesmo número do manifesto da revista, n. 4, 15/05/1924, perguntava–se: "1. Cree Ud. en la existencia de una sensibilidad, de una mentalidad argentina, ¿cuáles son sus características?".
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A questão nacionalista, de fato um distintivo da vanguarda argentina em relação ao ultraísmo espanhol, já estava presente no título da revista, em homenagem à obra de José Hernández, considerada desde a "Generación del Centenario" de 1910 como o poema épico que inaugurara a tradição literária nacional.2 No primeiro número de Martín Fierro, seu diretor, Evar Méndez, tinha escolhido uma única estrofe do segundo volume do poema de José Hernández – La vuelta de Martín Fierro – para representar a proposta independente da revista: "De naides sigo el ejemplo/ naide a dirigirme viene/ yo digo cuanto conviene". No número duplo 5–6, de junho de 1924, Martín Fierro respondia à primeira enquete da revista, proposta no número anterior, sobre o "ser nacional", a "sensibilidade" e a "mentalidade argentina" 3 Essa ênfase nacionalista instou uma reação do grupo de Boedo, de origem majoritariamente imigrante, com posições ideológicas de esquerda e uma defesa da literatura como forma de engajamento político. A vanguarda argentina dividiu–se em alguns subgrupos, mas a partição entre Florida (rua do centro de Buenos Aires, sede da revista Martín Fierro) e Boedo (rua da grande Buenos Aires, situada num bairro operário e imigrante, sede das revistas Los Pensadores, Claridad, Extrema Izquierda etc.) foi a cisão que tornou-se mais conhecida. A oposição refletia, igualmente, dois públicos leitores. De um lado, os cultos e atualizados sobre o que se passava na Europa; de outro, o novo público leitor, proveniente do forte processo educacional, em marcha desde o princípio do século XX. Roberto Mariani foi quem deu início à polêmica. Em nota do número 7 de Martín Fierro, de julho de 1924, critica a "direita literária", representada no seu entender por La Nación e El Hogar, a "esquerda socialista", cujo órgão seria Renovación, e o centro, representado por Martín Fierro. Ele, que faria parte da "extrema esquerda" (colaborava, de fato, com um periódico homônimo), diz-se sem lugar. Além disso, para Mariani, a revista Martín Fierro, com ares europeus, não evocava o poema de Hernández que lhe dava título, tampouco tinha voz própria, senão ecos estrangeiros. É nesse contexto que Mariani cita Gómez de la Serna. Ele seria a prova de que os redatores do periódico negavam a sensibilidade nacional: "los redactores de MARTIN FIERRO
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se alejan de nuestra sensibilidad (¡comienzan por negarla!) y adhieren a mediocres brillantes como Paul Morand, francés, y Ramón Gómez de la Serna, español [...]" (MARIANI, 1924). A provocação, no número seguinte, é violentamente contestada pela redação, ponto por ponto. As críticas de Mariani são, nessa circunstância, qualificadas como assertivas e confusas. Como estariam fundadas na declaração de princípios da revista, para contestá-las não era o caso de escrever uma nota secundária, mas de acrescentar um "Suplemento explicativo de nuestro 'Manifiesto'". Nele, Ramón seria uma das "sugestões do momento", capaz de sensibilizar aqueles "argentinos sem esforço", "jovens", segundo a redação, "com verdadeira vocação artística": Todos tenemos una sensibilidad lo suficiente refinada como para responder a las sugestiones del momento y comprender y amar a escritores como Paul Morand y Ramón Gómez de la Serna y otros a quienes nuestro crítico moteja de 'mediocres brillantes', confundiéndolos en un solo gesto de olímpico desdén" (SUPLEMENTO..., 1924).
A polêmica contaria com páginas mais aguerridas em outras revistas, como Los pensadores, espaço reclamado por Mariani e recém fundado para os escritores da extrema esquerda. De tempos em tempos, nela aparecerão ataques ao artificialismo, ao cerebralismo e à falta de compromisso social dos "martinfierristas–ultraístas", cujo herói espanhol seria Gómez de la Serna.4 Martín Fierro revidaria pouco a pouco. Em outubro/novembro de 1924, através de Sergio Piñero, que publica suas "Greguerías criollas". Alguns meses depois, elas seriam reprovadas nas páginas da revista La Campana de Palo por Luis Emilio Soto (1925), indignado com a incrível penetração do gênero ramoniano na Argentina e com a falta de originalidade dos que o imitavam. Mesmo assim, no número 16, Martín Fierro retoma a bandeira ramoniana ao anunciar com grandes letras na parte inferior da primeira página: "Próximamente: Una 'PROCLAMA', a la juventud intelectual argentina, por RAMON GOMEZ de la SERNA". Finalmente, o número
___________________________ 4 Sarlo (1997) caracteriza Ramón como um "herói moderado" da vanguarda, ao lado de Carriego. Para o combate contra Florida e Ramón, ler, p. e., sempre em Los pensadores: [Redacción], "Los capuchinómanos o la culminación de la imbecilidad", n. 112, jul. 1925, p. 1; Juan L. Cendoya, "La nueva generación", n. 113, ag. 1925, p. 7–8 ou [Redacción], "Aviso Fúnebre por la muerte de Martín Fierro", n. 119, mar. 1926, p. 22. Excertos desses artigos foram compilados por Bastos (1974).
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________________________ 5 Gropp (2002), lembra que com exceção de Macedonio, a homenagem não comenta nem apresenta a obra de Ramón. Ela representaria, desse modo, mais manifesto e balanço do que acercamento crítico.
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19 da revista rivalizaria com Boedo ao homenagear o escritor que resumia as propostas "del arte nuevo". Assim, em julho de 1925, uma edição especial lhe é dedicada. Antes, entretanto, de a homenagem ser publicada, a redação recebe um telegrama informando que a viagem que Ramón havia programado tinha sido postergada. O "banquete em movimento" que vinha sendo preparado para recebê-lo – um caminhão-restaurante passeando pelas ruas de Buenos Aires, com direito a paradas para a leitura de discursos – é cancelado, mas o número especial não deixa de vir à luz. A "frustrada bienvenida", pois segundo as palavras anônimas da revista "Ramón era el episodio más urgente que precisaba la ciudad", incluía texto e desenho de Girondo, um artigo de Güiraldes. No ensaio do arquiteto Alberto Prebisch, Ramón seria mesmo comparado com Picasso, pois teria mudado a sensibilidade literária argentina, de modo semelhante ao que o pintor havia feito nas artes plásticas. "Mirando los cafetines saturados de humo y de tango de la calle Corrientes" – imaginava Prebisch – "Ramón sabrá decirnos mejor que Don Ricardo Rojas, el rumbo de nuestros destinos". Também fizeram parte da homenagem novas greguerías de Sergio Piñero e um poema de Alberto Hidalgo. Entre as "Cinco jácaras pombianas" de Francisco Luis Bernárdez estava a seguinte: "Las gafas de Borges y mis gafas robaron azogue en los espejos de Pombo y ahora comienzan a refractar la luz de la vida". A última jácara prescrevia que Ramón seria o responsável pela terceira e definitiva fundação de Buenos Aires. A homenagem ainda continha desenhos anônimos como o intitulado "Ramón, conferenciante, en el circo" ou o que o ilustrava durante uma palestra sobre os faróis. Reuniam–se fotos do escritor lendo para a sua boneca de cera em tamanho natural e de seu quarto. Ainda havia artigos de Brandán Caraffa e de Macedonio Fernández 5, além de "Gringuerías..." à maneira de Gómez de la Serna, elaboradas por Arturo Cancela. Na "Balada de los cretinos", o diretor Evar Méndez servia-se de Ramón para criticar o grupo de Boedo. No "Parnaso satírico", os versos do "Epitafio a Ramón", assinados com as iniciais do mesmo Evar Méndez, tinham objetivos semelhantes: "La muerte que desencuaderna/ Te ha tornado un Gómez más/ Sin "RAMÓN", ni "de la Serna".../ Pero alégrate: aquí estás,
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[…] / Más nunca descansarás,/ Pues tu enorme cráneo roto/ Han de hurgar todos los días./ Para formar alboroto/O encontrarles porquerías./ Mariani. Barletta y Soto". O próprio Gómez de la Serna (1925) enviaria uma saudação para Martín Fierro. Nela, descreve quem encontraria naquela cidade que teria marcado a sua perspectiva e que sempre quis conhecer (um desejo, a propósito, expresso desde 1924, numa resenha sobre Fervor de Buenos Aires). Cita, em primeiro lugar, Borges. Depois estariam Güiraldes e, mais à frente, Girondo e Hidalgo. Borges também colabora na homenagem com o texto "Para el advenimiento de Ramón". Advento misterioso, que não excluiria a conotação religiosa, nem a distância entre o autor da crítica e o seu objeto de análise, pois Gómez de la Serna é descrito com enaltecimento excessivo. As primeiras linhas são estrondosamente elogiosas e se tornam levemente ambíguas na transição para o 12 de outubro, data do descobrimento da América que seria transferida para agosto de 1925 com a chegada de Ramón: De cierto genovés (que para congraciarse con Paco Luis, nació a medias en la Coruña) dicen que descubrió el continente [Cristóbal Colón]. Se ha exagerado mucho en la cosa. Carriego descubrió los conventillos, Bartolomé Galíndez el Rosedal, yo las esquinas de Palermo con instalación de puesta de sol, Lanuza cualquier pájaro. De Luís María Jordán se afirma que es el inventor de la siesta. La entereza de América, sin embargo, está por descubrir y el descubridor ya es Ramón y el doce de octubre de veras caerá este año en agosto. (BORGES, 1925d)
Tal como assinalamos antes, Prebisch afirmava que o escritor espanhol ditava a sensibilidade argentina e Bernárdez, numa de suas jácaras, aludia à terceira fundação de Buenos Aires, que seria implementada por Ramón. Borges vai mais longe: ao referir–se à fundação do continente, conclui que seria desmesurada a crença de que Colón/Colombo era o seu descobridor, pois Ramón o desvelaria em sua integridade. Essa grandeza tinha certo tom de disparate, como os elaborados por Ramón, sobretudo se comparada com as miudezas reveladas por Carriego, por Galíndez, Lanuza ou Jordán, também pelo próprio Borges, caminhante solitário do bairro de sua infância.
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_________________________ 6 O elogio a Rosas não deve ser dissociado da admiração por Hipólito Yrigoyen, citado em "Para el advenimiento...". Os dois são cotejados em "Queja de todo criollo" (BORGES, 2004, p. 142–5). Borges era descendente do general Rosas, embora também tivesse antepassados que lutaram contra o ditador, cf. Pereira Lahitte, 1981. 7 Versos de 1923. Mais tarde, o escritor será anti-rosista. Para mais detalhe sobre a posição de Borges nos anos 20 e a fabricação de sua história familiar, cf. Miceli, 2007.
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O corpo do pequeno ensaio, redigido com as enumerações que um dia fariam famoso a Borges, lista tudo aquilo que seria revelado por Ramón. O fim do texto compara-o com o controverso ditador Juan Manuel de Rosas. Essa conclusão pareceria um passo atrás se nessa época Borges não realizasse uma reapreciação paralela de figuras históricas, como a de Estanislao del Campo, escritor e militar, e a do próprio Rosas: "Todo eso y mucho más ha de revelarnos Ramón, el hombre de los ojos radiográficos y tiránicos, sólo asemejables a los que tuvo ese otro debelador de esta América: don Juan Manuel de Rosas" (BORGES, 1925d). Nesse período criollista de Borges, Rosas representava o emblema de uma Argentina profunda e de uma realidade primordial, em oposição às pretensões civilizatórias de Domingo Faustino Sarmiento. Sua derrota em 1852 teria acelerado o processo de destruição do mundo criollo. No ensaio "El tamaño de mi esperanza", Borges (1995, p. 15) concluiria: "Nuestro mayor varón sigue siendo don Juan Manuel: gran ejemplo de fortaleza del individuo, gran certidumbre de saberse vivir, pero incapaz de erigir algo espiritual, y tiranizado al fin más que nadie por su propia tiranía y su oficinismo" 6. No poema "Rosas", incluído na primeira edição de Fervor de Buenos Aires, o autor já tinha absolvido as mortes perpetradas por aquele nome "familiarmente horrendo": "Famosamente infame/ese nombre fue desolación en las casas,/ idolátrico amor entre el gauchaje/ y horror de puñaladas en la historia./ Hoy el olvido borra su censo de muertes,/ pues que son parciales los crímenes/ si los cotejamos con la fechoría del Tiempo […]" (BORGES, 2009, p. 88) .7 Nas boas–vindas de Borges ao escritor espanhol, a comparação com Rosas é, portanto, positiva. Os "olhos radiográficos" de Ramón – lugar comum cristalizado pela vanguarda e sem sombra de dúvidas elogioso – são equiparados aos do ditador argentino. Mesmo assim, Borges realiza um desvio sutil ao emprestar a Rosas a parcela positiva que encontra em Ramón. Ao tirânico associa o radiográfico; ao ditador, o escritor. A partir desse texto, além disso, o "descobridor" das facetas insuspeitas da arte, autêntico e até então singular, tem uma imagem com a
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qual pode ser confrontado. Diante do parâmetro, Ramón é igualmente "debelador", com a carga de domínio bélico que esse termo conserva. Apesar de reconhecer seu mérito, Borges parece incomodado com o lugar ocupado pelo "maestro". Era novo o exame de Borges a respeito de Ramón, levemente irônico, embora pudesse ser pressentido na própria Martín Fierro, em número anterior à homenagem, quando resenhou o livro de poemas de Girondo, Calcomanías. Suas observações, apesar de afáveis, terminavam de modo ambíguo, ao pretender fixar em Girondo a influência de Ramón, quase como uma imputação mal colocada, mas obrigatória de acordo com os costumes críticos: "Es achaque de críticos el prescribirles una genealogía a los escritores de que hablan. Cumpliendo con esta costumbre, voy a trazar el nombre, infalible aquí, de Ramón Gómez de la Serna […]" (BORGES, 1925b)8. Pouco tempo depois, em 1926, a sugestão do final dessa resenha ganharia mais clareza em um dos prefácios do Índice de la nueva poesía americana. Hidalgo expunha, então, que Girondo ficara excluído da antologia por ser um imitador de Ramón. Em 1941, o próprio Ramón, num retrato elogioso dedicado a Girondo, reverteria a crítica de Borges – e indiretamente, a de Hidalgo – ao reproduzir quase todo o artigo de Martín Fierro/ Inquisiciones sobre Calcomanías, sem a transcrição de alguns versos e sem a parte final, citada acima, onde ele próprio fora mencionado. Dessa forma, Ramón limava as palavras incômodas de Borges, conservando, segundo sua própria expressão, somente a parte de "crítica entusiasta" (GÓMEZ DE LA SERNA, 2004, p. 107 e ss.) 9. A ação de excluir um trecho de um texto borgeano da década de 1920 e mudar a sua valoração era razoavelmente simples devido aos vai–e–vens do autor, para os quais alertou Néstor Ibarra (1930, p. 43–4), no primeiro estudo crítico que lhe foi dedicado. Segundo Ibarra, os poemas e a prosa daquela época, incoerentes, altamente especializados e repletos de mudanças de tom, condenavam–no a ser um escritor de minorias.
_________________ 8 Em conversas privadas Borges sustentará, ao longo de toda a vida, a superioridade criativa e de recursos de Ramón frente a Girondo. Cf., p. e., Bioy Casares, 2006, p. 208, 1239, 1326.
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Os vai–e–vens não se circunscreviam às unidades textuais, mas caracterizariam, outrossim, o conjunto de textos divulgados naquele período. As idas e vindas não se restringiam a Ramón ou Girondo, mas abrangiam o papel das imagens e das metáforas, assim como a sua própria inclusão na vanguarda e entre vanguardistas. Proa e Martín Fierro, apesar de representarem duas das mais importantes revistas da vanguarda argentina, coincidem com um momento em que Borges, fervorosamente ultraísta na Espanha, começa a hesitar, mesmo que pouco tempo antes e, contraditoriamente, tenha emprestado ao movimento argentino uma faceta mais clara e programática do que a desenhada pelo movimento espanhol. No ensaio "Después de las imágenes", por exemplo, publicado em Proa em dezembro de 1924, no mesmo número em que constava a carta que Ramón lhe havia endereçado anunciando a visita a Buenos Aires, Borges reavalia a função das metáforas e das imagens, indicando que elas já não eram o bastante em poesia. Reavaliações
9 No ano anterior, Ramón tinha dedicado suas Greguerías (Buenos Aires, Espasa–Calpe) a Oliverio Girondo. Todas as edições subsequentes conservariam a mesma dedicatória.
Borges sublinha um desengano com relação à vanguarda em "La traducción de un incidente", ensaio publicado na revista Inicial em maio de 1924 e incluído em Inquisiciones no ano seguinte. Recordando as disputas entre os dois mestres espanhóis, suas críticas eram dirigidas aos seguidores tanto de Cansinos Assens, quanto de Ramón. Nesse ensaio, além disso, já se podia entrever o incômodo que sentia pelo fato de Ramón ter triunfado sobre Cansinos – as "travessuras leves" sobre as "austeras lamentações"; a greguería sobre o salmo. Situavase, além disso, entre os marginalizados da arte e se autorretratava como o único frequentador do café Colonial, do qual, no entanto, também se afastaria por causa da distância entre a Argentina e a Espanha:
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Las travesuras leves abaten las austeras lamentaciones; la greguería ha quebrantado el salmo y los paladeadores de apasionadas imágenes que fervorizaban antaño junto a la sombra luminosa de Cansinos Assens, hoy aventuran chascarillos en Pombo. A las veladas y a la orientación de Cansinos – ya de hombres graves que el desengaño hizo ribereños del arte – no acuden otros jóvenes que yo, regresado eventual a quienes esconderán mañana las leguas.
O balanço negativo em relação ao ultraísmo direcionava– se, em "La traducción de un incidente", para um balanço negativo sobre as vanguardas em geral. A partir desse momento, Borges estaria mais centrado no seu projeto criollista, logo aprovado por seus companheiros martinfierristas. Primeiro por Sergio Piñero (1925), a essa altura co– diretor da revista Martín Fierro, em nota crítica sobre Inquisiciones: "Creo que no es necesario referirse al lazo, al rodeo, ni a los potros para ver manifestar el alma gaucha". Depois, por Leopoldo Marechal (1925), em nota sobre o segundo livro de poemas do autor, Luna de enfrente: "un criollismo nuevo y personal, un modo de sentir que ya estaba en nosotros y que nadie había tratado". Finalmente, uma nota de Francisco Luis Bernárdez (1926), discorrendo sobre El tamaño de mi esperanza: "para radicarse definitivamente en su patria, que es la nuestra, en su esperanza, que es la de todos los criollos de hoy, y en su ambición, que también compartimos los que formamos su generación". No ensaio "La traducción de un incidente", Borges aprofunda, portanto, a crítica ao ultraísmo, invertendo lugares comuns. Reconhece o trágico em Ramón e as "sospechas de juego" em Cansinos. Mostra, assim, que não eram personagens opostos, mas focaliza o que a juventude via em ambos: figuras apartadas pela inimizade e pelas disputas, porque representariam dois tipos de estética, duas famílias literárias. É justamente nesse senso comum construído sobre eles que Borges encontra o seu problema. O "incidente" que traduzia não era isolado e ocorria, segundo ele, em todas as partes onde a vanguarda perdia substância por deter-se "em algazarras inúteis". Os leitores, bem avisados, nem precisavam ser advertidos sobre a alusão indireta à polêmica entre Boedo e Florida.
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_____________________ 10 "Lugonería" refere-se de forma irônica à obra de Leopoldo Lugones.
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Poucos meses depois, Borges escreve outro ensaio – "Sobre um verso de Apollinaire" – no qual a vanguarda sofre novo revés. Como se quisesse clausurar o ciclo aberto com as proposições do ensaio–manifesto "Ultraísmo", publicado em Nosotros em 1921, esse texto de março de 1924 é igualmente publicado em Nosotros. Nele, Borges recorre à dialética com que Apollinaire havia construído o poema "La Jolie Rousse" de Calligrammes: a tradição e a ordem contrapostas à invenção e à aventura. Retoma, também dessa forma, a previsão que em 1921 Ortega y Gasset fizera diante dos convivas de Pombo e dos jovens ultraístas, anunciando o fim daqueles tempos, prontamente superados por novas revoluções e novas ordens. Refuta, então, o novo como valor, chegando a atribuir certo oportunismo aos movimentos do começo do século XX, uma vez que a ruptura promovida por eles contaria com uma necessidade intrínseca do tempo, "simpático de antemão". Destaca, além disso, que o ultraísmo incorrera numa retórica, objetável como qualquer outra: "El ultraísmo, que lo fió todo a las metáforas y rechazó las comparaciones visuales y el despacible rimar que aún dan horror a la vigente lugonería, no fue un desorden, fue la voluntad de otra ley" (1995, p. 77)10. Seu incômodo principal era, nesse sentido, o fato de os escritores de vanguarda estarem irmanados por uma lei que reduziria o projeto pessoal de cada um deles. A vanguarda surge, pois, como uma prisão que seria anulada, não obstante, pelas faculdades do tempo que, cedo ou tarde, faz tabula rasa dos "tateadores", dos "precursores" e da "gente promissora", deixando em relevo somente aqueles que acrescentaram alguma "aventura" verdadeiramente individual ao exercício do "belo" (1995, p. 77). É dessa forma que Borges se adianta à renovação constante trazida pelo tempo, tempo esse que, previsivelmente, encontraria noutra geração o começo de novos valores e hierarquias. Se no futuro o belo seria percebido sem causalidades e a boa arte, sem precedentes, nada melhor do que enveredar pelo caminho feito só à sua imagem. Apesar de seu criollismo convocar a tradição nacionalista argentina, a faceta cosmopolita e, ao mesmo tempo, rio–platense, parecia suficientemente inovadora para que fosse trilhada sem influências.
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Se a vanguarda era atacada por propor mestres e precursores, parecia óbvio, assim, que Ramón também o fosse. O que se verifica, entretanto, é uma defasagem entre as críticas destinadas à vanguarda e o distanciamento com relação a Gómez de la Serna, provavelmente devido à notoriedade deste último, difícil de ser contestada. "Para el advenimiento de Ramón", o texto entre elogioso e ambíguo que Borges publicara na homenagem de Martín Fierro, semeava dúvidas o bastante para que não fosse conclusivo. Outros vai–e–vens: Ramón, segundo Borges Na revista Martín Fierro de janeiro de 1925, Borges havia escrito uma resenha laudatória do livro La Sagrada Cripta de Pombo. Tratava Ramón como o maior dos três "grandes Ramones", retomando o elogio de Jarnés publicado em Proa. Comparava as enumerações ramonianas com as de La Celestina, Rabelais, Burton e Whitman, aludindo ao "sentido da tarefa de Ramón" como equivalente ao signo da rosa dos ventos. Nada de tirânico ou debelador, senão adjetivos que Borges mais tarde perceberia como adequados para si: inventariante do mundo e "ouro nativo". Ramón seria o que chega à plenitude e à integridade a partir de relâmpagos: "puntales atisbos"/clarões pontuais" (BORGES, 1925d). Nesse momento, Borges utilizaria, além das palavraschave do sistema literário que construiria para si – "atlas", "cosmorama", "inventário" – "este concepto que daría el título a su famosísima narración de 1949", "El aleph" (VIDELA RIVERO, 1999, p. 251). Não esqueceria nem mesmo a "Enciclopédia" e o "Livro", registrados com maiúsculas: "La sagrada cripta de Pombo es el más reciente volumen de la verídica Enciclopedia o Libro de todas las cosas y otras muchas más que Ramón va escribiendo". Em suas páginas "preclaras" – continuava Borges – estariam Diego Rivera, Ortega y Gasset, Gutiérrez Solana, Julio Antonio, Alberto Guillén. Também um "ya perdido Jorge Luis Borges lleno de reticencias y cavilaciones posibles".
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O tempo de distanciamento, apesar de previsto, ainda não havia chegado. Há hesitações com relação à atitude a assumir perante a figura de Ramón. Borges, afinal, pareceria demasiado inconveniente ao divergir das opiniões que o cercavam. Diante das duas resenhas para Martín Fierro – a de janeiro, elogiosa, e a de julho, levemente irônica – opta por incluir a primeira no livro cujo título, apesar dos julgamentos favoráveis em relação a Ramón, sugere os combates estéticos sustentados naquele ano de 1925: Inquisiciones. No mesmo período, um extrato da revista Nosotros e outro de Proa ainda testemunhariam a sua admiração por Ramón. Assim, em abril de 1925, rechaça o Lunario sentimental de Lugones dizendo: Yo quiero agradecerle a Lugones el habitual deleite que El Solterón y la Quimera Lunar y alguna estrofa suelta […] siempre me regalaron; pero ni sufro sus rimas ni me acuerdo del tétrico enlutado ni pretendo que sus imágenes, divagadoras siempre y nunca ayudadoras del pensar, puedan equipararse a las figuras orgánicas que muestra Gómez de la Serna y Rafael Cansinos Assens. (BORGES, 1997, p. 208)
Em Proa , ao comentar o Ulysses de James Joyce, não apenas elogia a percepção que Ramón tem das coisas, mas confessa–se um leitor assíduo. Mais de uma década depois, Borges voltaria a escrever sobre Joyce em pelo menos quatro oportunidades, duas na revista Sur , duas em El Hogar . Embora repetisse alguns gracejos – como o de que nunca chegou a ler todo o Ulysses – esquece-se de Ramón. Por enquanto, em 1925 e em Proa , sua avaliação é a seguinte: La dualidad de la existencia está en él [Ulises]: esa inquietación ontológica que no se asombra meramente de ser, sino de ser en este mundo preciso, donde hay zaguanes y palabras y naipes y escrituras eléctricas en la limpidez de las noches. En libro alguno – fuera de los compuestos por Ramón – atestiguamos la presencia actual de las cosas con tan convincente firmeza. Todas están latentes y la dicción de cualquier voz es hábil para que surjan y nos pierdan en su brusca avenida. (Borges, 1925a)
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Quatro meses depois, Guillermo de Torre (1925) traça um balanço do ultraísmo em Proa. Juan Ramón Jiménez, Cansinos e Ramón são os objetos de sua reflexão. No número seguinte da revista, um retrato de Ramón feito por Vázquez Díaz é acompanhado pelo texto do poeta argentino José Soler Darás (1925), que repete, diante do autor complexo e que suscita múltiplas perspectivas, "¿cómo hacer y por dónde empezar para hablar de Gómez de la Serna?". Um dos diretores da revista, Brandán Caraffa (1925), imagina a vinda de Ramón pelo mar, também pelo rio Amazonas, tão latino-americano 11. Deslocado em relação a seus companheiros, em dezembro de 1925, Borges analisa dois versos de El Quijote. Verifica exclamativo a expressão "El dulce sueño" e aponta Cervantes como "greguerizador antiquísimo" (BORGES, 1925). A admiração vinha a propósito de Cervantes, pois com alguma discrição, era a este que atribuía a prerrogativa do gênero "greguería", requerido por Ramón e que, assim, era ironizado pela falta de originalidade e pela suposta repetição de procedimentos do Século de Ouro. Finalmente, em janeiro de 1926, Borges assume que o projeto de unir os jovens numa única frente de batalha tinha terminado. Divulga, assim, uma carta em que agradece a empreitada de Proa, quando eram "diez, veinte, treinta creencias en la posibilidá del arte y la amistá". Entre essas "crenças" estava Ramón, para quem dá as boas-vindas dizendo, com ares de Macedonio Fernández e dez anos antes da mudança definitiva do escritor espanhol para a Argentina, "Ramón, el Recienquedado y Siemprevenido" (BORGES, 1926). O meridiano intelectual Apesar de Ramón não ter conseguido multiplicar a sua presença em Martín Fierro como chegou a almejar (RAMÓN..., 1926), foi objeto de comentários nos números 42 e 44–45, de junho de 1927 em diante, quando as páginas da revista reagem à polêmica originada pelo editorial anônimo da revista espanhola La Gaceta Literaria. Hoje sabe–se que o texto era de Guillermo de Torre, secretário da revista até meados de 1927. O título, "Madrid, meridiano
_________________________ 11 Nos ns. 14–15, de janeiro de 1925, Raúl González Tuñón dedica a Soler Darás um dos "Epitafios" da revista: "Aquí está Soler Darás/ greguerizando en un nicho;/ Dios al verlo le habrá dicho:/ Soler, de qué te las das?".
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meridiano intelectual de Hispanoamerica", resumia o desconforto dos martinfierristas que eram confrontados com interesses editoriais segundo os quais a "América de língua espanhola" deveria se mostrar aberta à produção da Península. O olhar dos intelectuais, artistas e estudantes – afirmava o editorial de La Gaceta –voltava-se para a Itália, a Inglaterra, os Estados Unidos e sobretudo para Paris, quando deveria ser atraído por Madri, o verdadeiro meridiano entre a América e a Europa. Os territórios "hispanoparlantes", afinal, sempre teriam sido considerados uma "prolongación del area española". Nada mais natural que Madri fosse, portanto, a sua "geografía espiritual", "punto convergente del hispanoamericanismo equilibrado, no limitador, no coactivo, generoso y europeo"; cidade da "comprensión leal" e da "fraternidad desinteresada" (DE TORRE, 1927, p. 1). O episódio do meridiano assinala de uma vez por todas um conflito antigo, avaliado por vários escritores argentinos do século XIX e, ainda assim, latente em diversos textos do Borges desse período, assim como em várias páginas da revista Martín Fierro: o dos temas, formas e gostos estrangeiros que se interpunham aos nacionais-argentinos. A partir desse momento, finalmente, o ultraísmo argentino já não podia identificar-se com o ultraísmo espanhol. Essa consciência do próprio em relação ao alheio também reforçaria a ideia de um idioma literário que fosse unicamente argentino, exposta por Borges na conferência "Sobre el idioma de los argentinos", proferida no Instituto Popular de Conferencias em setembro de 1927, reproduzida em La Prensa, nos Anales del Instituto Popular de Conferencias, no livro El idioma de los argentinos e, como não podia deixar de ser, também em La Gaceta Literaria de Madri (n. 38, 15/07/1928). Não parece exagerado observar, nesse sentido, que um eco da polêmica do meridiano poderia ser ouvido em frases muito posteriores do autor, como na conferência da década de 1950 incluída na segunda edição de Discusión, "El escritor argentino y la tradición": "la historia argentina puede definirse sin equivocación como un querer apartarse de España" (BORGES, 2009).
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Se a posição de Guillermo de Torre em La Gaceta Literaria não distava muito daquela expressada na "Carta abierta a Evar Méndez", publicada em duas partes na própria Martín Fierro (números 18 e 19, de junho e julho de 1925) e para a qual não houve reação, desta vez os integrantes da revista pareciam mais seguros e tinham algo a esclarecer sobre o lugar ocupado pela nacionalidade e pela cultura argentina. Para alguns martinfierristas, além disso, era a hora de se posicionar frente à nova vanguarda espanhola que passava a ter um bom lugar de representação nas páginas de La Gaceta Literaria. Não se tratava dos "velhos" ultraístas – companheiros de Borges – mas do grupo que muito mais tarde se convencionou chamar de "Generación del 27". No número 42 de Martín Fierro opinaram, entre outros, Pablo Rojas Paz, Ricardo Molinari, Pereda Valdés, Santiago Ganduglia, Scalabrini Ortíz e Lisardo Zia, todos eles agrupados pela enquete "Un llamado a la realidad". Nicolás Olivari (1927), particularmente, encontraria no percurso de Borges uma saída para a influência arvorada por de Torre: "Jorge Luis Borges después de haberse pasado al cuarto a todos los españoles por su saber hispano y por su valer hispano, se ha juntado con nosotros y enarbola nuestro criollismo, robusto y contundente, como un golpe de furca". O Borges criollo, desse ponto de vista, descenderia do ibérico por seu "saber" e "valor", mas superaria o hispânico por desobedecer à tradição de partida. O argentino seria, portanto, o resultado de uma ruptura. No mesmo número, o próprio Borges oferece uma resposta cortante e depreciativa para a contenda. Finalmente a polêmica do meridiano seria o último impulso de que necessitava para posicionar-se de uma vez por todas contra Ramón. Ataca, pois, o modelo que antes era venerado por Martín Fierro graças à sua própria intervenção e propaganda. Em linhas gerais, seu artigo registra que a "nova geração" que convidava a Argentina a estabelecer em Madri o meridiano intelectual seguiria de forma acrítica e filial a anterior, cujo baluarte seria Ramón, acompanhado de Ortega e de ValleInclán. O pleito daqueles poetas sem criatividade não seria novo, mas ditado:
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El destino de esa nueva generación española es cosa de asombro. Juventud honesta y filial, el argumento permanente de su inquietud es la generación anterior. ¡Qué alegría verla vivir! ¡Qué altruismo para festejar el coche de Ortega y la estilográfica de Ramón y el otro brazo que plagia, de Valle-Inclán! Ese cuartelazo del meridiano intelectual, ¿quién se le habrá dictado?
Em seguida, Borges desfia a lista das incompatibilidades entre espanhóis e argentinos. Dentre elas, sublinha o absurdo de um país que vive sob uma ditadura (Primo de Rivera, 1923–1930), diferentemente da Argentina, presidida por Hipólito Yrigoyen. Ataca o oficialismo e academicismo que predominariam em Madri, o purismo castiço dos "galicismos" e a baixa "elaboração intelectual" das greguerías. Finalmente, a ambiguidade que vinha se desenhando no ensaio "Para el advenimiento de Ramón" dá lugar ao desprezo. Ramón, autor de romances, novelas, ensaios, contos e de uma infinidade de gêneros novos, mas cuja produção de greguerías o fez famoso e popular, fica reduzido a elas. Operação semelhante é aplicada à cidade de Madri: Madrid no nos entiende. Una ciudad cuyas orquestas no pueden intentar un tango sin desalmarlo; una ciudad cuyos estómagos no pueden asumir una caña brasileña sin enfermarse; una ciudad sin otra elaboración intelectual que las greguerías; una ciudad cuyo Irigoyen es Primo de Rivera; una ciudad cuyos actores no distinguen a un mejicano de un oriental; una ciudad cuya sola invención es el galicismo – a lo menos, en ninguna otra parte hablan tanto de él –; una ciudad cuyo humorismo está en el retruécano; una ciudad que dice "envidiable" para elogiar ¿de dónde va a entendernos, qué va a saber de la terrible esperanza que los americanos vivimos? (BORGES, 1927)
Neste mesmo número de Martín Fierro, republica-se uma nota burlesca que já havia sido impressa em La Gaceta Literaria. Escrita por Borges e Carlos Mastronardi e assinada com o pseudônimo jocoso "Ortelli y Gasset", ridicularizava a discussão do meridiano com o recurso ao texto que caricatura os tons da fala portenha e do lunfardo: "Aquí le patiamo el nido a la hispanidá y la escupimo el asao a la donosura y le arruinamo la fachada a los garbanzelís".
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Gómez de la Serna, membro da redação de La Gaceta Literaria, tenta pacificar a discussão em setembro de 1927. Mas o clima era exaltado, apesar de a revista espanhola conservar o humor, tal como atesta a longa manchete esportiva dedicada à enquete: "Un debate apasionado. Campeonato para un meridiano intelectual. La selección argentina Martín Fierro (Buenos Aires) reta a la española Gaceta Literaria (Madrid). Gaceta Literaria no acepta por golpes sucios de Martín Fierro que lo descalifican. Opiniones y arbitrajes". Ramón procura retirar a importância do debate: "No creo que merezca ningún cuidado esa actitud de algunos jóvenes argentinos". Discorda que na Argentina pudesse existir um idioma que fosse incompreensível para os espanhóis. Seria, na verdade, "inconsciencia de algunos espíritus confusos" querer se afastar não só da Espanha, mas de todo o resto da América que fala espanhol. Diz, finalmente, querer ser respeitoso, sem agravar a questão, pois escreve de bom grado em Martín Fierro, editada no país cuja "luz meridional [...] entiende con comprensión milagrosa y extensa" a língua na qual ele próprio nascera12. Para Nicolás Gropp (2002), a duração de Martín Fierro teria marcado a "emergência e queda" do "totem" Ramón Gómez de la Serna, devido, principalmente, à sua resposta à questão do meridiano, caracterizada pelo estudioso como o "único incidente" com a vanguarda martinfierrista. Isso apesar de Ramón ter se manifestado quase sem se posicionar, dividido que estava entre as solicitações de Madri e as contribuições para Martín Fierro. Segundo Beatriz Sarlo (1981, 1997), a construção formal de Ramón era uma das linhas de confluência da estética borgeana da década de 1920, ao lado do populismo urbano do poeta argentino Evaristo Carriego. A partir do meridiano, efetivamente, Borges passaria a desconstruir esse totem, embora seguisse enviando algumas cartas ao antigo mestre13.
___________________________ 12 La Gaceta Literaria, n. 17, 01/09/1927, p. 3, 6. Nas páginas de La Gaceta, a polêmica se estende até o n. 34, de 15/05/1928. A repercussão americana se deu em Crítica, El Hogar e Nosotros de Buenos Aires, La Pluma e Cruz del Sur de Montevidéu, assim como em Orto, de Manzanillo, Cuba. A respeito do debate, assim como para um aprofundamento da oposição terminológica suscitada por de Torre entre "Hispanoamérica" e "Latinoamérica", consultar González Boixo (1988).
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A literatura e a crítica latino-americana: ruptura, representação e transgressão Mariluci Guberman *
RESUMO: A modernidade na América Latina e a crítica à importação e à devoração cultural e econômica. O “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade. Os intelectuais e a preocupação em afirmar as protocélulas originais da cultura latino–americana: o índio, o europeu e o negro. A ruptura com a tradição devoradora dos canibais, marca da cultura indígena, e a adoção dos padrões dos “civilizados”, das máscaras: representação simbólica da cultura europeia e transgressão da cultura indígena ancestral. O olhar crítico de Mário de Andrade sobre o mestiço, fusão das três matrizes étnicas formadoras do povo latino–americano e componentes primordiais da diversidade desse povo. PALAVRAS-CHAVE: modernidade e antropofagia, mestiçagem, ruptura, representação, transgressão.
ABSTRACT: Modernity in Latin America and the critical import and cultural and economic devouring. The "Manifesto Antropófago" of Oswald de Andrade. Intellectuals and the concern to affirm the original protocells of Latin American culture: the Indian, the European and the black. The break with the tradition of devouring cannibals, brand of indigenous culture, and the adoption of the standards of "civilized", masks: symbolic representation of European culture and transgression of traditional indigenous culture. The Mário de Andrade critical eye on the mestizo, merger of the three forming ethnic headquarters of Latin American people and key components of the diversity of people. KEYWORDS: modernity and cannibalism, miscegenation, break, representation, transgression
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* Professora do Programa de Pós–Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A modernidade começa como uma crítica da religião, da filosofia, da moral e da história, conforme Octavio Paz: "En el siglo XVIII la razón hizo la crítica del mundo y de sí misma" e, assim, "renunció a las construcciones grandiosas que la identificaban con el Ser, el Bien y la Verdad” (PAZ, 1990, p. 32-33). De acordo com o filósofo francês Michel Foucault, a modernidade foi inaugurada por Kant, em seu
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ensaio O que é o Iluminismo? (1784), o qual se apóia na filosofia como discurso da modernidade. As ideias sobre a vida moderna, no século XIX, apoiavam–se na expressão “derreter os sólidos” do Manifesto comunista, como se verificam, no século XX, nos estudos básicos, do nova–iorquino Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade, e do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, Modernidade líquida. De acordo com Bauman (2001, p. 9), se a intenção de “derreter os sólidos”, de certa maneira, clamava pela profanação do sagrado; de outra, clamava pelo repúdio e destronamento do passado, da tradição. Essa modernidade, iniciada no século XIX com as máquinas e os meios de comunicação, acelerou o desenvolvimento da sociedade capitalista, conforme Berman (1986, p. 19), ...a primeira coisa que observaremos será a nova paisagem, altamente desenvolvida, diferenciada e dinâmica, na qual tem lugar a experiência moderna. Trata-se de uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias, amplas novas zonas industriais; prolíficas cidades que cresceram do dia para a noite, quase sempre com aterradoras conseqüências para o ser humano; jornais diários, telégrafos, telefones e outros instrumentos de media, que se comunicam em escala cada vez maior; [...]. (BERMAN, 1986, p. 19)
O movimento, a máquina, a velocidade não permitiram aos artistas deterem–se no passado. Ao se derreter o que havia se solidificado, novos mecanismos de poder"1 surgiram, como afirma Bauman: "a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação, a efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial" (BAUMAN, 2001, p.18). Este último foi denominado "dissolução das fronteiras" pela autora deste artigo (GUBERMAN, 1995). Também a invenção da fotografia e do cinema no século XIX foi determinante para a busca de novas expressões artísticas.
1 Empregou–se, neste artigo, o termo na acepção de Michel Foucault.
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Durante muito tempo, foram sensíveis aos olhos dos poetas diversos temas, realidades e sentimentos. Embora a linguagem tivesse sido rigorosamente trabalhada pelos artistas barrocos, somente como o escritor francês Stéphane Mallarmé é que a linguagem se voltou sobre si mesma. O surgimento do poema crítico rompeu com a ideia de arte como reduplicadora da natureza ou dos modelos da antiguidade. A esse passado, opôs—se a modernidade com a ideia da criação original e única. O poema crítico, conforme Octavio Paz, “contém sua própria negação e faz dessa negação o ponto de partida do canto, em igual distância da afirmação e da negação” (PAZ, 1976, p. 111). A concepção de antigo e moderno está relacionada com a ideia de tempo. Desse modo, ao se espelhar nos antigos, criava—se uma sucessão temporal, degenerativa de um tempo primordial e perfeito. Logo, um mundo finito com o de Dante que limitava inferno, purgatório e paraíso. Os homens estavam destinados a viver séculos e séculos e, além do Juízo Final, sem qualquer possibilidade de mudança. Em oposição a essa continuidade, surge, no século XIX, a modernidade, na qual o presente é único, não pretendendo repetir o passado e revelando um mundo infinito, fadado a desaparecer para sempre. Essa ideia apocalíptica do século XIX se revelou, nas Artes, com o decadentismo, um estilo e um espírito de época que, assim sendo, pode voltar toda vez que houver a sensação de vazio ou a possibilidade de desaparecimento da humanidade, o espírito finissecular. Nessa condição trágica do homem, a arte assume o papel de liberadora das tensões, transgride os padrões morais vigentes e reflete essa ruptura. Os fragmentos dos poemas, outrora ligados por uma cadeia verbal, passam a ser unir por "silêncios, afinidades, cores" (PAZ, 1990,p.27), e os escritores justificam em suas próprias obras e revelação do mundo. Os temas do mal e da morte são abundantes e o sadismo, enquanto destruição do corpo, se reflete na profunda violação da alma, um das abordagens da obra de Dostoievski.
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Embora renomados artistas registrassem, em suas obras, o povo latino–americano, que atravessava, na modernidade, um processo de transformação e, inclusive de aculturalção, José Martí (1853–1895), em seu manifesto "Nuestra América" (1891), realizou uma forte crítica à barbárie e à importação cultural: Éramos uma visão, com peito de atleta, mãos de janota e rosto de criança. Éramos uma máscara, com os calções da Inglaterra, colete parisiense, jaqueta norte-americana e barrete da Espanha. O índio, mudo, andava ao nosso redor e ia para a montanha, para o pico da montanha, batizar seus filhos. O negro, vigiado, cantava de noite a música de seu coração, sozinho e desconhecido, entre as ondas e as feras. (MARTÍ, 1985, p. 164)
Na América Hispânica, durante o movimento literário modernista (1888), o interesse em afirmar e consagrar uma cultura autêntica latino–americana foi relevante: inicia–se com a crítica á importação cultural, de José Martí e, por meio do escritor nicaraguense Rubén Darío, em "El triunfo de Calibán" (1898), estende–se á crítica devoradora econômica e cultural, ou seja, dos habitantes dos Estados Unidos, denominados "Calibanes" pelo autor, como se lê a seguir: "Colorados, pesados, groseros, van por sus calles empujándose y rozándose animalmente, a la caza del dólar. El ideal de esos calibanes está circunscrito a la bolsa y a la fábrica" (DARÍO, 1898). Rubén Darío, além de empregar simbolicamente o vocábulo "calibanes", inverte a questão do outro: o canibal já não é o selvagem que os espanhóis encontraram na América, mas aquele que anda pelas ruas dos Estados Unidos buscando dólares. Desta maneira, o canibal parece entrar em decadência; no entanto, a imagem elaborada pelo escritor nicaraguense convida á reflexão sobre as diversas conotações que o canibalismo pode adquirir. O tema do canibalismo tem sido tratado, simbolicamente, como a busca da identidade cultural dos povos latino–americanos, pois, o “novo” canibal, ao devorar e digerir outras culturas se assemelha ao canibal
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primitivo, que devorava o guerreiro inimigo e capturado para adquirir a coragem desse guerreiro. Ao final do século XIX e meados do XX, têm–se três propostas simbólicas, representadas por Ariel, Macunaíma e Calibán personagens das obras dos respectivos escritores: José Enrique Rodó, Mário de Andrade e Roberto Fernández Retamar. O foco principal da obra de Rodó se volta para Ariel. Em 1900, o intelectual uruguaio José Enrique Rodó (1871–1917) publicou seu ensaio Ariel, uma alusão ao personagem de Shakespeare e uma tese sobre o espírito próprio de nossa civilização: "Ariel es este sublime instinto de perfectibilidad, por cuya virtud se magnifica y convierte en centro de las cosas, la arcílla humana a la que vive vinculada su luz [...]" (RODÓ, 1947, p.154). Ainda que os dois personagens sejam antagônicos — Ariel é a elegância do espírito, o bem; Calibán é o espírito em seu estado mais primitivo, o mal —, tanto Ariel quanto Calibán estão a serviço do mago Próspero, conforme Rodó: [Ariel] vencido una y mil veces por la indomable rebelión de Caliban, proscrito por la barbarie vencedora, asfixiado en el humo de las batallas, [...], Ariel resurge inmortalmente, Ariel recobra su juventud y su hermosura, y acude ágil, como al mandato de Próspero, al llamado de cuantos le aman e invocan en la realidad. [...]. Él dirige a menudo las fuerzas ciegas del mal y la barbarie para que concurran, como las otras, a la obra del bien. (RODÓ, 1947, p. 155-156)
Rodó se inspirou na imagem doce e serena de Ariel— gênio do ar, que representa na obra de Shakespeare, "la parte noble y alada del espiritu" (Idem, 1947, p.42)— para que ele, como um baluarte, se lançasse à conquista das almas, transformando-se em estátua-símbolo da América: “Yo suelo embriagarme con el sueño del día en que las cosas reales harán pensar que la Cordillera que yergue sobre el suelo de América ha sido tallada para ser el pedestal definitivo de esta estatua, para ser el ara inmutable de su veneración!” (RODÓ, 1947, p. 157).
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A unidade continental da América, no plano geográfico, é indiscutível, mas sua estrutura social e política não correspondem a essa unificação, pois de acordo com Darcy Ribeiro: "Toda a vastidão continental se rompe em nacionalidades singulares, algumas delas bem pouco viáveis como um quadro dentro do qual um novo possa realizar suas potencialidades” (RIBEIRO, 1996, p.11). Se a diversidade latino–americana é uma realidade, é difícil encontrar um símbolo que represente esta variedade de culturas e literaturas, as que Antonio Cornejo Polar (1994) denominou “literaturas heterogêneas”. Entretanto, Ribeiro aponta para uma matriz genética comum a esses integrantes da América: “Todos estes povos têm no aborígene uma de suas matrizes genéticas e culturais [...]” (Idem, 1986, p. 13). Não se pode partir da ideia de que somente a civilização greco–romana (via povos ibéricos) foi a base da cultura latino –americana; antes da chegada dos europeus ao continente americano já existiam aqui grandes civilizações. E de que modo temos estudado essas civilizações? Quase sempre por meio do olhar europeu, o olhar de fora. Entretanto, em 1910, um fato importante na história da América Latina, a Revolução mexicana, marca expressivamente o primeiro olhar de dentro, pois conforme o pesquisador e ensaísta cubano José Antonio Portuondo, a revolução, ...removió profunda y ampliamente la existencia política, social y cultural latino–americana [...]. El frívolo cosmpolitismo formalista en que degenera el Modernismo fue sustituido por el ahondamiento en los problemas de la propia circunstancia americana: la explotación del hombre por el hombre, la situación de las masas indígenas y del proletariado urbano, el problema de la tierra... (PORTUONDO, 1975, p. 157)
A prosa da Revolução mexicana transformou o tom apologético do fato histórico em um to crítico e questionador, no qual se revelaram Mariano Azuela (1873– 1952), Martí Luís Guzmán (1887–1976), José Rubén Romero (1890–1952) e Juan Rulfo (1918–1986), este já na década de 50. De acordo com Carlos Fuentes (1976, p.15),
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autores como Azuela, Guzmán e Muñoz, introduzem a ambiguidade crítica no romance hispano–americano, o idealismo romântico se converte em dialética irônica. O romance da Revolução mexicana, para José Antonio Portuondo, se projetará mais além do México, pois ...despertará ecos en todo el continente y traerá a primer plano la tierra y los hombres desgarrados por la violencia de una lucha sin cuartel engendrada por el imperialismo que mantiene una estructura económica y social preñada de antagonismos insalvables, a no ser por la revolución. (PORTUONDO, 1975, p.157)
Os primeiros ecos da revolução brotam na prosa regionalista, desde os contos de cunho social do escritor uruguaio Horacio Quiroga até os romances da terra ou de preocupação social, como por exemplo: La vorágine (1926), do colombiano José Eustasio Rivera; Don Segundo Sombra (1926), do argentino Ricardo Güiraldes e Doña Bárbara (1929), do venezuelano Rómulo Gallegos; bem como, os artigos do peruano José María Arguedas, publicados em La Prensa (Buenos Aires; 1939–1944). A partir da década de 20, além dos Seis ensayos en busca de nuestra expresión (1928), de Pedro Henríquez Ureña, surgiram produções que despertaram o mundo para o passado indígena latino–americano, como a revista Amauta (1926), fundada pelo pensador peruano José Carlos Mariátegui, e o livro dos maias, Popol–Vuh o Libro del Consejo de los Indios Quichés (1927), traduzido pelos escritores Miguel Ángel Asturias e J. M. González de Mendoza. Merece ser observado o negro de origem africana, que veio inicialmente para trabalhar na mineração e na plantação da cana de açúcar, mas aqui se amalgamou e foi outro componente da matriz formadora do povo brasileiro, de acordo com o antropólogo Darcy Ribeiro (1995, p. 114),
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A contribuição cultural do negro foi pouco relevante na formação daquela protocélula original da cultura brasileira. Aliciado para incrementar a produção açucareira, comporia o contingente fundamental da mão-de-obra. Apesar do seu papel como agente cultural ter sido mais passivo que ativo, o negro teve uma importância crucial, tanto por sua presença como a massa trabalhadora que produziu quase tudo que aqui se fez, como por sua introdução sorrateira mas tenaz e continuada, que remarcou o amálgama racial e cultural brasileiro com suas cores mais fortes. (RIBEIRO, 1995, p.114)
Nas primeiras décadas do século XX, na América de língua espanhola, surgem vozes que cantam o negro em seu cotidiano, às quais os críticos e os próprios poetas denominaram de poesia negra, afro–americana, afro–caribenha, negrismo e negritude. Em 1921, juntamente com José I. de Diego Padró, o poeta Luis Palés Matos criou, o primeiro movimento de vanguarda no Caribe, o diepalismo (die, de Diego; pal, de Palés), estilo poético que concedia voz ao negro e mais importância à eufonia que ao significado. Desta forma, as onomatopéias e as aliterações, produzidas em tom irônico e brincalhão, eram figuras constantes no diepalismo, já que um de seus objetivos consistia em apresentar formas ligeiras e elementares, semelhantes ao ritmo do tambor, às cadeiras das mulatas, aos sons da natureza e da mitologia de origem africana, ou ainda, do falar inculto dos negros, rompendo assim com a retórica acadêmica. Na época colonial da América Latina, a metrópole teve projetos e objetivos explícitos, conforme Darcy Ribeiro: "subjugar a sociedade preexistente, paralisar a cultura original e converter a população em uma força de trabalho submissa” (RIBEIRO, 1986, p. 19). Tanto o índio quanto o negro foram desgarrados de suas matrizes em grande quantidade por uma pequena classe dominante. Continua o antropólogo brasileiro:
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Ao desgarrá-los de suas matrizes, para cruzá–los racialmente e transfigurá-los culturalmente, o que se estava fazendo era gestar a nós brasileiros tal qual fomos e somos em essência. Una classe dominante de caráter consular-gerencial, socialmente irresponsável, frente a um povo-masa tratado como escravaria, que produz o que não consome e só se exerce culturalmente como uma marginália, fora da civilização letrada em que está imersa.
2 Pintores: Anita Malfatti, Emiliano Di Cavalcanti, Zina Aita, Vicente do Rego Monteiro, J. F. de Almeida Prado, John Graz, Ferrignac e Martins Ribeiro. Escultores: Victor Brecheret e Wilhem Haarberg.
Se por um lado, na América de língua espanhola, surgem, na década de 20, vários movimentos literários; por outro lado, no Brasil, surge, em 1922, a polêmica Semana de Arte Moderna, realizada em 13, 15 e 17 de fevereiro no Teatro Municipal de São Paulo com a presença de inúmeros artistas: escritores, pintores, músicos e escultores. No saguão do teatro foram expostas2 diversas pinturas, como as de Anita Malfatii e Emiliao Di Cavalcanti, e esculturas, que provocaram no público uma reação de repúdio, principalmente, as do escultor Victor Brecheret e as da pintora Anita Malfatti. A repercussão no meio artístico da exposição de pinturas de Anita Malfatti (1889–1964), em 1917, permitiu a formação de um grupo, em que sobressaíram os jovens escritores Mario de Andrade e Oswald de Andrade. Em 1922, Anita Malfatti apresenta Tarsila do Amaral (1886– 1973), recém–chegada de Paris, a Oswald de Andrade (1890–1954), Menotti del Picchia (1892–1988) e Mario de Andrade (1893–1945). Essas cinco ilustres figuras foram os pilares do modernismo brasileiro. Em 1923, Tarsila Amaral pinta o quadro A Negra, captando, conforme Nádia Batella Gotlib (2000, p. 83), “com vigor audacioso a negra presa às raízes da terra, sugerindo um significado que se amplia até as margens do mito”. Nessa obra, vê-se uma negra com seios, mãos e pés enormes, como uma figura estereotipada da negra que amamenta, que segura o cabo da enxada e anda descalça. Os seios grandes, símbolo de fertilidade, se referem às mulheres negras que amamentaram os filhos dos senhores escravocratas. As mãos ampliadas simbolizam a força de trabalho da negra durante quatro séculos aproximadamente. Os pés, em primeiro plano, representam a importância do espaço que ela ocupa, bem como seu vínculo com a terra, já que um número significativo de mulheres negras trabalhava na lavoura.
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Ainda em relação à tela A Negra , de acordo com a pesquisadora Lisbeth Rebollo Gonçalves,
...pela primeira vez após o acontecimento da Semana de Arte Moderna (fevereiro de 1922), apareceram, com clareza e bem identificáveis, os ideais do modernismo e a estratégia de estruturação de sua linguagem. Visualiza-se a vontade de atualização e construção da consciência artística nacional, assim como se vêem pré-anunciados os princípios da antropofagia. (GONÇALVES, 1999, p. 34-35)
Em 1924, Oswald de Andrade escreve, no Jornal Correio da Manhã, o "Manifesto da poesia Pau–Brasil" e inaugura o primitivismo nativo, que também se encontra resumindo no poema "Falação", de seu livro Pau–Brasil: "[...] O Carnaval. O Sertão e a Favela. Pau–Brasil. Bárbaro e nosso./ A formação étnica rica. A riqueza vegetal. O minério. A cozinha./ O vatapá, o ouro e a dança [..]" (ANDRADE, 1990, p.65). A poesia Pau–Brasil, carnavalizada, subverte o retrato oficial da sociedade brasileira. O “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” revela claramente seus objetivos: “Uma única luta — a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.” (ANDRADE, O., 1978, p. 7). Se por um lado tem-se a poesia cópia; por outro, impera a nova poesia, a Pau-Brasil, que por meio de uma nova linguagem afirma as riquezas e os valores brasileiros, rejeitando o que é importado. Em 1928, Tarsila do Amaral oferece a seu marido, o escritor Oswald de Andrade (1890-1954), um quadro pintado por ela: uma figura com pés e mãos enormes e uma cabeça muito pequena. Oswald de Andrade e Raul Bopp (1898-1984) consideraram estranha esta obra e perguntaram a Tarsila o que era. Para Oswald de Andrade, a figura gigantesca poderia ter o nome de um selvagem. A pintora, então, se pôs a buscar, em um dicionário de termos tupis, um nome para o quadro, e encontrou os vocábulos Aba (homem) e Poru (o que come carne humana). A partir desse momento, o denominaram Abaporu (1928), que significa antropófago. Neste mesmo ano, Oswald de Andrade escreve o “Manifesto Antropófago”, e o ilustra com o Abaporu. O
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manifesto e sua ilustração forma publicadas no primeiro número da Revista de Antropofagia3. Através desse manifesto (ANDRADE, 1978, p.13–19), o escritor inverte a ordem do discurso dominante: antes, o outro era o bárbaro, o da civilização primitive; a partir desta obra, a ordem estabelecida se volta, simbolicamente, contra o europeu, agora, o outro : ...Contra todos os importadores de consciência enlatada [...]. Queremos a revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. [...]. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. [...]. Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas [...]. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados do catecismo–a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos. [...].
___________________________ 3 Esta revista teve duas fases: a primeira tem dez números (1928– 1929); a segunda surge, no periódico Diário de S. Paulo, com dezesseis números. 4 Uma alusão ao escritor romântico José de Alencar.
Com a paródia de Oswald de Andrade, entra em discussão, na cultura brasileira, o lema “Tupy, or not tupy that is de question”, a afirmação da identidade cultural do Brasil. Oswald de Andrade valoriza o indígena brasileiro anterior à Conquista e, simultaneamente, ressalta seu caráter selvagem, capaz de devorar o europeu e digerir a cultura do colonizador, além de outras culturas, em um processo inverso á colonização. A carnavalização de Oswald logra a transfiguração do discurso histórico: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar4 cheio de bons sentimentos portugueses”. Trata–se de um manifesto revolucionário, que propõe a transformação do homem brasileiro não só no que se refere ao histórico e ao social, mas também ao erótico, para libertálo de seus tabus. Com este fim, Oswald de Andrade se apóia no psicanalista Sigmund Freud 5 (1999):
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O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa. ...só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. ...Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.
A valorização do indígena brasileiro anterior à Conquista, de acordo com Nádia Battella Gotlib (2000, p.149–150), em perfeita comunhão com a natureza, experimentando o totem, também enlaça a opção pela liberação da repressão em nome da civilização ou do tabu, além dos equívocos do mundo capitalista e devorador. Em troca, o movimento de antropofagia propõe uma revolução, baseando-se na sociedade comunal caraíba. O movimento antropofágico revelou as raízes mais primitivas do Brasil, das quais faz parte o universo cultural da Amazônia, não só em Macunaíma (1928), de Mario de Andrade, mas também no poema épico Cobra Norato (1928), de Raul Bopp, que trata de um herói humanizado em oposição à Cobra Grande (Sucuri), mito amazônico. A Cobra Grande cresce de forma gigantesca, abandona a floresta e passa a habitar as profundezas dos rios. Seus rastros pela terra firme formam sulcos que se transformam em igarapés. O mito da Cobra Grande foi retratado também no quadro O Ovo (Urutu), de Tarsila do Amaral: a Grande Cobra Urutu sai de um ovo olhando para trás, em direção a sua origem. A antropofagia cultural proposta por Oswald de Andrade, de acordo com a pesquisadora brasileira Leyla Perrone-Moisés (1990, p. 95), “é antes de tudo o desejo do Outro, a abertura e a receptividade para o alheio, desembocando na devoração e na absorção da alteridade”. Porém, se escolhe a quem devorar, em consonância com suas qualidades; portanto, “a devoração antropofágica”, conforme Perrone–Moisés, “se compara aos processos da intertextualidade”, nos quais se absorvem e se transformam outros textos.
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_____________________ 5 Sigmund Freud já publicara sua obra Totem e Tabu em 1912. In: FREUD (1999). 6 Mario de Andrade escreveu sua obra em seis dias, mas não foi um ato irresponsável, pelo contrário, a soma de múltiplas investigações, estudos e viagens, na qual ele buscou o folclore e os ritos, as músicas, lendas e tradições do Brasil. Dentre as viagens de Mário de Andrade, destaca-se a que realizou, desejando conhecer a realidade do povo brasileiro, para a Amazônia em 1927. Essa viagem está relatada em seu livro O turista aprendiz (1946). 7 A origem do nome Macunaíma provém das lendas recolhidas pelo investigador Koch-Grünberg, publicadas em Von Roraima Zum Orinoco (1916). Para um estudo aprofundado de Macunaíma, destacam-se as obras críticas de Gilda de Mello e Souza e a de Telê Porto Ancona.
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Se por um lado, os intelectuais se preocupavam com o passado indígena ou africano, por outro lado, pensadores e escritores se dedicavam ao estudo do mestiço; por exemplo, o escritor brasileiro Mário de Andrade, ao publicar sua obra Macunaíma6, em 1928, representou simbolicamente, no personagem principal, a fusão das três matrizes étnicas formadoras do povo brasileiro, conforme Darcy Ribeiro: o português colonizador, o índio e o negro africano, ou seja, os “brasilíndios” (RIBEIRO, 1995, p. 110). Porém, Macunaíma não simboliza a América Latina em sua totalidade, já que, em muitos países desse continente, a presença do branco ou do negro e suas respectivas culturas são pouco representativas, como ocorre na Guatemala, no Paraguai ou nos países andinos, nos quais os indígenas são maioria. O personagem Macunaíma, que dá nome ao romance7, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter , é um ser que se expressa de forma ambígua, ora muito pessimista ora muito otimista. Encontra-se também esta ambigüidade em outros personagens da obra, de acordo com Gilda de Mello e Souza (1979, p. 40-41), como por exemplo: Ci, ora Cobra Negra ora Capei, a Lua; Venceslau Pietro Pietra, cujo sobrenome assinala inicialmente sua origem italiana, enquanto “Gigante Piaimã”, como é denominado, remete ao imaginário brasileiro. Mário de Andrade classificou Macunaíma como uma rapsódia, pois poderia ser originária dos rapsodos , os cantadores populares. Conforme Gilda de Mello e Souza (1979, p. 15-16), a obra se compõe de elementos híbridos, como traços indígenas, narrativas e cerimônias de origem africana, canções de roda ibéricas, tradições portuguesas, contos já tipicamente brasileiros, […], processos mnemônicos populares, como associações de ideias e de imagens, ou de processos retóricos, como as enumerações exaustivas que, segundo o próprio autor tinham a finalidade apenas poética de realizar “sonoridades curiosas” ou “mesmo cômicas”. Mario de Andrade já se detinha na diversidade cultural do povo brasileiro, tomando como base a cidade de São Paulo, síntese do país, na qual convergem as contradições brasileiras: o velho e o novo, a tradição e a modernidade, o rico e o pobre... É uma metrópole que abriga povos e culturas diversas, como por exemplo: indígena, africano, ibérico, árabe e italiano.
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No romance de Mario de Andrade (1984, p. 9), Macunaíma surge como um indígena que nasce “preto retinto e filho do medo da noite”. Como perde seu talismã, uma pedra sagrada dos indígenas, a muiraquitã, Macunaíma parte do alto Amazonas até o sul do Brasil para buscá–la: “Então Macunaíma contou o paradeiro da muiraquitã e disse pros manos que estava disposto a ir em São Paulo procurar esse tal Venceslau Pietro Pietra e retomar o tembetá roubado” (IDEM, 1984, p. 28). Em suas andanças, o herói vive em diferentes tempos até chegar a São Paulo. A mestiçagem, na concepção de José Lezama Lima, “o lo que hemos llamado la era americana de la imagen tiene como sus mejores signos de expresión los nuevos sentidos del cronista de Indias, el señorio barroco y la rebelión del romanticismo” (LEZAMA LIMA, 1979, p.484). A nova imagem, que os europeus vislumbraram ao “descobrir” a América, foi registrada nas crônicas historiográficas. Depois, a imagem mestiça, que se teceu durante a colonização, imprimiu um novo sentido aos habitantes dessas terras e se expressou por meio da arte barroca. São exemplos as obras do índio Kondori8 e as do Aleijandinho9, que representam, respectivamente,“la rebelión incaica” e “la rebelión artística del negro” (Idem, 2001, p. 104–106). A partir das independências políticas das colônias, o sentimento nativista e a consciência mestiça se intensificaram e se refletiram no romantismo, atingindo o auge a partir da Revolução mexicana e do movimento modernista, respectivamente, na América de língua espanhola e no Brasil. A década de 30 na América de língua espanhola volta, ainda, o foco para o indígena. Miguel Ángel Asturias publica a coletânea de lendas maias, Leyendas de Guatemala (1930). Paul Rivet, ao publicar pela primeira vez os manuscritos e desenhos de Nueva crónica y buen gobierno (1936), de Felipe Guaman Poma de Ayala, pelo Museu do Homem em Paris, revela ao mundo a importância desse índio peruano, que registrara, em sua extensa crônica, a opulência do império incaico e as atrocidades praticadas pelos conquistadores espanhóis, na América, no século XVII. Nessa época, em relação ao império asteca, foram relevantes as traduções dos registros em glifos da língua dessa civilização, o náhuatl, para
____________________ 8 O índio ou mestiço Kondori nasceu no vice-reinado do Peru e parece ser originário de Mojos (Bolívia). A belíssima fachada da Catedral de San Lorenzo de Potosí foi atribuída a ele. 9 Dentre as obras mais conhecidas do Aleijadinho, destacam-se a arquitetura e o portal em relevo da Igreja de São Francisco de Assis (Ouro Preto) e o Pátio dos Profetas (Congonhas do Campo), esculturas dos doze profetas em blocos verticais de pedra sabão. Também se incluem Os Passos (Congonhas do Campo), capelas com esculturas do autor, que retratam a Via Crucis de Jesus.
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o espanhol, efetuadas por Ángel María Garibay, além da análise aprofundada do ser mexicano e sua cultura por Samuel Ramos, em Perfil del Hombre y la cultura en México (1934). No Brasil, nessa mesma década, destacam–se romances e ensaios, que delineiam o perfil mestiço deste país, como Menino de engenho (1932), de José Lins do Rego; Casa–grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda... A Segunda Grande Guerra mundial trouxe o caos: nações poderosas se uniram para defender suas nacionalidades. Enquanto isso, na América Latina, adveio uma preocupação constante: revelar e valorizar a identidade do próprio continente. Como definir o povo latinoamericano? Como pensa esse povo? E como se expressa? Surgem, então, ensaios como Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (1940), sobre a cultura afro- americana, de Fernando Ortiz; En torno a una filosofía americana (1942), sobre o processo de formação das ideias na América, de Leopoldo Zea; De la Conquista a la Independencia. Tres siglos de Historia Cultural Hispanoamericana (1944), sobre a história e a cultura latino-americanas, de Mariano Picón– Salas; El laberinto de la soledad (1950), sobre o povo e a história do México, de Octavio Paz, e La expresión americana (1957), identificação e valorização da expressão americana, de José Lezama Lima. Também sobressaem os artigos de Ángel Rama iniciados no semanário Marcha (Montevidéu, 1958). Se, por um lado, intelectuais como Octavio Paz, José Lezama Lima, Ángel Rama e outros, buscavam traçar o perfil e a cultura do homem latino-americano, por outro lado, o continente, a partir dos anos 50, era assolado, conforme Darcy Ribeiro, pelas ...elites autocráticas de extração militar, oriundas da guerra fria, que assumem o poder em situações de profunda crise política em sociedades cujas classes dominantes, sentindo– se ameaçadas, apelam para as forças armadas como única maneira de conservar sua hegemonia. (RIBEIRO, 1986, p. 42)
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Nesse período, que se estende até a década de 70, inúmeras ditaduras surgiram na América Latina. Com elas surgiram tiranos e atos autoritários, acompanhados de violência, tortura e silêncio. Na literatura dessa época, durante os regimes de exceção na América Latina, muitos tiranos foram satirizados ou, até mesmo, carnavalizados por escritores, como Miguel Ángel Asturias, El Señor Presidente (1946), Alejo Carpentier, El reino de este mundo (1949), Augusto Roa Bastos, Yo el Supremo (1974), Gabriel García Márquez, El otoño del Patriarca (1975), e outros. Em seus romances, tanto um personagem mítico ou um herói do universo indígena, africano ou mestiço, quanto o sofrimento e o silêncio do povo latino– americano, ou ainda um tirano simbólico, revelaram a face oculta da História. Essa literatura, ainda que ficcional, possibilitou a retirada da máscara que encobria o rosto dos poderes na América Latina. Não havia mais espaço para atos de exceção, silêncio ou tirania; havia espaço, sim, para soltar o grito, viver a liberdade, sem a exploração desmedida do que existia nesse continente. A inserção de fatos históricos da realidade na literatura justifica–se por meio da concepção de Roland Barthes, ao afirmar que a literatura é “absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso”. (BARTHES, s.d., p. 18) Em 1971, o poeta e ensaísta cubano Roberto Fernández Retamar — ao sentir a ausência do personagem shakespeareano Caliban, integrante da tríade formada por este, Próspero e Ariel — afirmou, em seu ensaio “Calibán”, que o símbolo da identidade cultural latino-americana “no es pues Ariel, como pensó Rodó, sino Calibán” (RETAMAR, 2004, p. 33). Ainda que Fernández Retamar assegure que Calibán não é totalmente nosso, também é uma elaboração estrangeira, o ensaísta se questiona: “¿qué es nuestra historia, qué es nuestra cultura, sino la historia, sino la cultura de Calibán?” (Idem, 2004, p. 34). Este ser selvagem aqui encontrado foi “devorado” pela cultura européia. Para o escritor cubano, assumir nossa condição de Calibán implica repensar sobre a história da América Latina. Com este fim, Fernández Retamar, em sua
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publicação Todo Calibán, desenvolve um pensamento que se inicia com o mito fundacional do canibal, atravessa quinhentos anos e chega á atualidade. Destacam–se, nessa travessia, os ensaios de José Martí, “Nuestra América” (1891) e “Mi raza” (1893), e de José Carlos Mariátegui (1895–1930) siete ensayos de interpretación de la realidad peruana (1928), sobre os quais Roberto Fernández Retamar se apoiou para afirmar Calibán como símbolo da América Latina. Conclui–se que os canibais se transformaram e assimilaram os padrões dos “civilizados”, adotando máscaras. Em seguida ganharam outros perfis, identificando–se, na América Hispânica, ora com o índio ora com o negro e adquirindo outra conotação a partir da paródia de Rubén Dario. No Brasil, através da ironia e da sátira, verifica–se, na obra de Oswald de Andrade ou na de Mário de Andrade, como o canibalismo pode ser carnavalizador. O processo da devoração antropofágica se assemelha ao da mestiçagem, pois ambos têm em comum a ruptura, a representação e a transgressão. Os canibais romperam com a tradição devoradora, uma marca da cultura índigena, presentaram as culturas europeia e africana, transgredindo sua cultura ancestral e tornando–se mestiços componentes primordiais da diversidade latino–americana. Referências ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. 20ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL, 1984. ______. O Turista Aprendiz. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. ANDRADE, Oswald de. Do Pau–Brasil à antropofagia e às utopias. Obras completas. Introd. Benedito Nunes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. ______. Pau–Brasil. Obras completas. SP: Globo; Secretaria de Estado da Cultura,1990. BARTHES, Roland. Aula. Trad. e Posfácio Leyla Perrone– Moisés. SP: CULTRIX, s.d. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. RJ: Jorge Zahar, 2001. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moisés; Ana Maria L. Ioriatti. 2ª ed. SP: Companhia das Letras, 1986.
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Abguar Bastos e Dalcídio Jurandir: Vozes Modernas na Amazônia Brasileira Marlí Tereza Furtado* RESUMO: O trabalho objetiva demonstrar que os paraenses Abguar Bastos (1902/1995) e Dalcídio Jurandir (1909/1979), alinham–se aos autores renovadores na figuração da Amazônia em suas obras. O primeiro, embora tenha cedido ao signo da terra, ícone de muitos romances datados sobre a região, ao se propor a escrever um romance como um experimento, aplicando–lhe um manifesto literário, destitui-se de técnicas desgastadas, embora ideologicamente acabe por um retrato “mítico” das três raças, conforme Da Matta. O segundo autor, criador da saga Extremo Norte, escrita entre o final dos anos trinta até 1978, ratifica as experimentações técnicas de seu predecessor e avança na questão ideológica, principalmente no retrato do negro em seus romances. Ambos, os autores, no entanto, distanciam-se da chamada “novela de la tierra” que demarcou a romanesca latino–americana, sobretudo até os anos de 1930. PALAVRAS-CHAVE: Abguar Bastos, Romance Brasileiro Moderno, Amazônia.
*Professora da Faculdade de Letras e do curso de PósGraduação em Letras, área de Estudos Literários, da universidade Federal do Pará.
Dalcídio
Jurandir,
ABSTRACT: The work aims to demonstrate that the authors Abguar Bastos (1902–1995) and Dalcídio Jurandir (1909–1979), borned in Pará, align to authors on Amazon figuration renovators in his works. The first, although it has ceded to the Earth sign, icon of many novels dating back about the region, to propose writing a novel as an experiment, applying a literary manifesto, it deprives worn techniques, though ideologically ultimately a portrait "mythical" of the three races, as Da Matta. The second author, creator of the saga far North, written between the late thirties until 1978, ratifies the technical trials of its predecessor and advances in ideological issue, mainly in black's portrait in her novels. Both authors, however, get distance of the called "novela de la tierra" which demarcated the Latin American Romanesque, especially until the years 1930. KEY-WORDS: Abguar Bastos, Dalcídio Jurandir, Modern Brasilian Novels, Amazon.
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Introdução Ao estudar a obra do paraense Dalcídio Jurandir (1909/1979) para o desenvolvimento de um projeto de doutorado, terminado em abril de 2002 1, construí, como de praxe, um trajeto de leituras do contexto do autor, principalmente aquelas que recriavam o espaço amazônico brasileiro e/ou paraense. Nesse trajeto, encontrei-me com a obra do também paraense Abguar Bastos (1902/1995), um dos articuladores do Modernismo no Pará, colaborador da revista Belém Nova, então divulgadora das novas propostas, onde ele publicou, em 1927, o Manifesto Flami–n’–assu, resposta amazônica ao Manifesto da poesia Pau–Brasil, de Oswald de Andrade. De sua obra ficcional, apontei o terceiro romance, Safra, de 1937, como predecessor do que considerei quebra da tradição no retrato tradicional da Amazônia brasileira, realizada por Dalcídio Jurandir a partir de 1940, década em que abriu a publicação de seu ciclo romanesco Extremo Norte, de dez romances. Continuei estudando a obra de Abguar Bastos pari passu aos estudos da obra de Dalcídio Jurandir, mas hoje, no redimensionamento de minhas leituras, penso que não só convém indagar sobre o caminho aberto pelo primeiro ao segundo autor, como também refletir sobre os caminhos que ambos traçaram no amadurecimento do romance latino–americano. A “novela de la tierra” Indagado sobre questões relativas à literatura latino– americana, Davi Arrigucci Jr. assinala “a revolução profunda na técnica de construção a partir da década de 1940” (1979, p.119) por que passou a narrativa hispano-americana. São palavras dele:
____________________________________ 1 Do qual resultou a tese Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. Campinas: IEL/ UNICAMP,2002. Publicada, com o mesmo título, pela editora Mercado de Letras, Campinas, em 2010.
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A questão se torna mais importante, quando se considera essa renovação como responsável, em grande parte, pela própria superação do regionalismo naturalista que caracterizou, em linhas gerais, a ficção hispano-americana anterior, frequentemente se reduzindo ao documento folclórico ou ao panfleto de denúncia social. Discutir, portanto, a superação da chamada novela de la tierra pela renovação técnica é discutir a própria validez da nova narrativa hispano-americana. (ARRIGUCCI JR., 1979, p. 119)
Ao alinhar meu raciocínio ao do crítico, tenho a considerar que Abguar Bastos escreveu três de suas quatro obras ficcionais na década de 1930, enquanto Dalcídio Jurandir reelaborou seus dois primeiros romances (Chove nos campos de Cachoeira e Marajó) no final da década, foi premiado pelo primeiro deles em 1940 e foi publicado em 1941, estendendo a publicação de seu ciclo romanesco até 1978, um ano antes de sua morte. Destacarei, primeiramente, a trajetória dos dois autores para, em seguida, verificar em que aspectos suas obras confluem e se distanciam ou não dessa “novela” da terra. Abguar Bastos nasceu em 1902, em Belém, e faleceu em 1995, em São Paulo, onde passou a residir a partir de 1935. De espírito inquieto, atuou nas letras e também na política, além de exercer o jornalismo em Belém, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Iniciou-se na literatura como poeta e em seguida atuou como romancista, ensaísta e historiador (BARREIROS, 1989). Em 1927, elaborou o famoso Manifesto Flaminaçu que lançou o Movimento Modernista de 1922, na Amazônia. Deixou inúmeros títulos publicados. De sua obra literária, a produção em versos ficou, a princípio, espraiada em jornais e revistas de Belém e de Manaus. Em 1931, lançou o romance A Amazônia que ninguém sabe, publicado em 2.ª edição pela Andersen Editores, do Rio de Janeiro, em 1934, com o nome Terra de Icamiaba. Em 1935, publicou Certos Caminhos do mundo, e, em 1937, lançou seu terceiro romance, Safra, que também foi publicado na Argentina, dois anos depois. Por último publicou Somanlu – o viajante da estrela, em 1953, uma tentativa para o público juvenil. Questionado sobre sua preferência entre os romances que escreveu, Abguar apontou Safra, e é interessante o que disse na ocasião: “Gosto mais de Safra. Terra de Icamiaba é o romance do homem e a floresta. Certos Caminhos do Mundo é o do
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homem e o rio, e Safra é o do homem e a economia extrativista, não mais da borracha, mas a da castanha”2. Os predicativos sobre suas obras “romances do homem e...” nortearam projetos de publicação das editoras, o que lhes permitiu agregar os três romances numa série livros como: “romance da floresta, romance do rio e romance da Vila”. O fato de ter publicado seu primeiro romance, na segunda edição, com o nome mudado de A Amazônia que ninguém sabe para Terra de Icamiaba, levou a certas confusões da crítica3 em apontar romances não publicados e datas que não conferem sobre sua obra. Em se falando em crítica, apesar de o autor ter sido conhecido e reconhecido em seu contexto, poucos historiadores da literatura citam–no em suas obras. Destaco, por isso, Afrânio Coutinho que localiza Abguar Bastos e sua obra em nosso panorama literário: Almas, costumes, tipos e panoramas são as contribuições que, sem trair a verdade, seus romances nos oferecem em tom simbólico, na síntese de um estilo alegórico. Mas os fatos, estes são, nos seus romances, como ele mesmo confessa, apenas uma síntese de duas realidades. No seu primeiro livro coloca-nos ele diante de um drama simbólico: o do homem perdido na selva com os olhos num ideal. O segundo romance de Abguar Bastos é a história do homem da castanha, o terceiro é a história do homem no Acre; no quarto transcreve a vida da selva, dolorosa e triste. Apesar do seu estilo algo danunziano, palpita-lhe na obra um sopro comovido de humanidade, diante do drama social do homem da Amazônia, cujos soluços ele soube escutar. (COUTINHO, 1969, p. 231)
Ressalto do excerto as palavras finais, que dão relevo à sensibilidade de Abguar Bastos em perceber o drama social do homem da Amazônia, e o que Coutinho diz de Terra de Icamiaba : “o drama simbólico do homem perdido na selva com os olhos num ideal”. Entretanto, reservadas as diferenças entre eles, podemos dizer que os três romances transcrevem a história do homem e o extrativismo amazônico.
__________________________ 2 Entrevista a Lima Barreiros. Diário do Pará, 30 de abril de 1987. 3 Elaborei um quadro desse aspecto no artigo Abguar Bastos e a série Os dramas da Amazônia, ou: um romancista em construção publicado em NUNES, Paulo (Org.) Diversidade cultural: diálogos literários. Belém: Unama, 2008.
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Utilizei a segunda edição, da Andersen Editores: Rio de Janeiro, 1934.
5 Consultar sobre o assunto da cidade Manoa e do Lago Dourado GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994
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Gostaria, contudo, de refletir um pouco sobre o que o próprio autor chamou de aplicação flaminaçu á sua obra, Terra de Icamiaba, a qual nos faz entender muito do estilo dessa primeira incursão de Abguar Bastos no gênero romance. O tom da obra é manifestadamente de Manifesto, havendo, inclusive, uma parada para um grande manifesto em determinada parte (páginas 156, 157, 158, 159 e 160)4 ; a linguagem aparece bastante entrecortada, composta de períodos curtos, sobrepostos uns aos outros; não há grande preocupação com a sequência lógica dos tópicos frasais. Ao lado desses aspectos formais que bem demonstram a modernidade de Terra de Icamiaba , há outros, semânticos, que atestam tanto sua inovação, quanto o diálogo com a tradição do reporte sobre a Amazônia. Arrostando uma forte xenofobia (“a sucurijú do alto Amazonas é o imigrante”, BASTOS, 1934, p. 91), em contraponto a um ferrenho nacionalismo, que o transporta para a vizinhança do Manifesto da Anta , naquele contexto do Modernismo brasileiro, o enredo confirma-lhe o tom, daí podermos chamá-lo de romance-manifesto. O enredo de Terra de Icamiaba centra-se no protagonista Bepe e em sua trajetória de herói messiânico, que, insurreto contra a ordem espoliadora dominante, vinga-se dos opressores (três estrangeiros: um judeu, um holandês, um marroquino; e um brasileiro, filho de português), e se retira com seus iguais mais para o centro da selva, em busca da cidade manoa 5. O perfil de Bepe é traçado já no primeiro capítulo, cuja abertura se dá via descrição da terra, ou melhor, da terra nas cercanias do rio Badajoz, que surge imponente e imperioso nas primeiras linhas. Essa entrada não deixa de ressumar a Euclides da Cunha, na demanda determinista de retratar, em Os Sertões, a terra, depois o homem, que travará uma luta significativa naquela terra. Note-se o texto de Abguar: “Em todas as regiões há um indivíduo que se destaca. É o gênio do lugar. O de Badajoz é altaneiro, compacto e brônzeo. Novo e possante Aniaoba desafia, com o peito ferido e nu, a valentia das raças” (BASTOS, 1934, p.8). Filho do imigrante nordestino Lucas e neto materno de uma guarani, de quem “herdara o sangue altivo”, Bepe sai do Badajoz para estudar no Seminário, em Belém, onde se
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revela temível por se insurgir contra os “dogmas poluídos” da Igreja. De volta à região, após a morte dos pais, afronta os poderosos da terra ao proteger humilhados e ofendidos, atraindo a si a ofensa: tentam expulsá-lo da terra, sua por direito, mas da qual não tem escritura. Alia-se a Major Telésforo, personagem traçada como filho de nortistas genuínos, interiorano, liberal e bom, em contraste com coronel Epifânio, governista e mau, filho de pai português e de mãe maranhense. Vitorioso na revolta, Bepe impinge o sacrifício aos estrangeiros, por meio de ardiloso estratagema. Abandona-os em um castanhal, durante uma forte tempestade de janeiro. A natureza se encarrega de massacrar os réus, bombardeados com os ouriços de castanhas que despencam sobre eles, com a força da chuva e do vento, em cenas dantescas, épicas e grotescas. Ao final, Bepe segue com os revoltosos mata adentro, até chegar às chapadas de ouro e aos picos cintilantes. Presenteado com uma muiraquitã, conta aos seguidores a história das Icamiabas e a simbologia da pedra e batiza o lugar com o nome de Terra de Icamiaba, o qual explica o título do romance. Não deixa de haver algo de ingênuo e até de temeroso nas propostas do romance–manifesto, assim como a xenofobia acentuada não responde a certas questões. Afinal, o autóctone, mesmo que também movido pela ambição, é, naturalmente, melhor que o estrangeiro? Há nisso algo do bom selvagem de Rousseau? Indagações à parte, sobre o que encobre o nacionalismo exacerbado tanto de Flaminaçu manifesto, quanto do romance-flaminaçu, no qual a grande chama seria Bepe, marchando, selvas a dentro, conforme prega o manifesto (“E, assim FLAMIN’ASSU’ marchará, selvas a dentro, montanhas acima, conservadora, patriótica, verde-amarela.6), há um dado que não pode ser esquecido nas discussões sobre o assunto: a conformação das três raças que formam o povo brasileiro. Veja–se: 6 Diário do Pará, 30 de abril, de 1987.
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“O Brasil precisa começar de novo”... Bepe medita: não precisa. O homem atual não é mais a ilusão do europeu, a mentira do africano, o ódio do tupi despejado. Não é mais a vitória sem orgulho, o ardil sem salvação, a resistência sem domínio. É o conjunto superior que se destaca da combustão etnológica e plasma a unidade, quer sejam partes um mulato, um curiboca ou um cafuz. (BASTOS, 1934, p. 132).
Roberto Da Matta (1987, p.58–85) denomina essa conformação como a “fábula das três raças”, o que seria um racismo à brasileira. Segundo ele, embora provinda de fontes eruditas e europeias do século XVIII, essa fábula é importante porque permite juntar as pontas do popular e do elaborado (ou erudito) de nossa cultura. O autor considera que a “fábula das três raças” se constitui na mais poderosa força cultural do Brasil, permitindo pensar o país, integrar idealmente sua sociedade e individualizar sua cultura, a ponto de ter adquirido a força e o estatuto de uma ideologia dominante : um sistema totalizado de ideias que interpenetra a maioria dos domínios explicativos da cultura. Para Da Matta, os racismos americano e europeu, que partem de uma realidade social mais igualitária, temem a miscigenação porque com ela podem colocar em dúvida sua homogeneidade social e política, segundo a antiga noção de que a ideia de um povo contém em si o postulado básico da identidade e homogeneidade física. Entre nós, o racismo europeu e americano é transformado por meio de um cenário hierarquizado e anti–igualitário. Aqui ele se orienta para os interstícios do sistema, local onde vivem e convivem muitas categorias sociais intermediárias, perfazendo uma totalidade triangulada. Por outro lado, essa integração permitia, até os anos oitenta, discutir e perceber a acentuada miséria dos “negros” e “índios”, sem perceber suas diferenciações específicas e, sobretudo, sem colocar em risco a posição de superioridade política e social dos “brancos”.
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Da Matta traça um esquema dessa situação demonstrando que o branco está sempre unido e em cima, enquanto o negro e o índio formam as duas pernas da nossa sociedade, estando sempre embaixo e sendo sistematicamente abrangidos (ou emoldurados) pelo branco. O próprio triângulo sugere suas interações, nesta teoria brasileira que reduz as diferenças concretas (sociais, políticas e econômicas) em descontinuidades abstratas em raças com uma definição semi biológica. Por isso, o autor alerta que o triângulo inicial pode gerar outros, agora constituído de tipos intermediários, os resultados das misturas raciais dos tipos puros. Voltando ao romance-manifesto de Abguar Bastos, nota-se como o triângulo base, formado por branco, índio e negro é entrecortado pelas intermediações apontadas por Da Matta. Vejamos. Bepe, conforme já exposto, é mistura de branco com índio, portanto mameluco, mas culturalmente é branco, considerando-se principalmente aquele contexto em que poucos chegavam ao grau de escolaridade que conseguiu. Ele, associado a Telésforo, filho de nortistas genuínos (como caracterizar o nortista genuíno? De branco? De mestiço?), conduzem um povo caboclo, posseiro antigo da terra, lavrador e castanheiro, à revolução, contra brancos imigrantes estrangeiros. Note-se a importância, nesse mapeamento, da hierarquização via propriedade. Esse grupo de brancos inimigos é o de grandes proprietários, contra pequenos “proprietários”. Aparecem na obra o índio e o negro, tal como descritos por Da Matta, como base do triângulo racial e da pirâmide social. São eles Columbu, filho de muras domesticadas, e Catulé, negro idoso, legado a Telésforo pelo pai. Mas os dois apenas figura secundariamente no enredo, aparecendo mais como figuras exóticas e subservientes no cenário da revolta. Para que possa discutir melhor a representação das personagens de Terra de Icamiaba e a representatividade da própria obra, é interessante comentar o procedimento narrativo de Abguar Bastos. A narrativa é conduzida por um narrador externo, em terceira pessoa, que traça as personagens sempre de fora, utilizando–se ou do discurso
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direto ou do indireto, nunca do indireto livre, razão por que seus personagens não ganham profundidade psicológica. Esse narrador, em alguns momentos, articula teses, em outros explica ao leitor aquilo que ele considera não familiar a esse leitor. Observem–se os exemplos: “ A fatalidade do caboclo é grande como a alama da boíúna” (BASTOS, 1934, p.11): “– Então? Todos têm a sua sexta–feira era o mesmo que ter a sua amigação fora de casa” (Idem, 1934, p.123). No capítulo cinco ele contesta as visões etnocêntricas dos pensadores estrangeiros: Brasileiros idiotas batem palmas às sandices de Buckle, depois a Bryce. Dizem que o nativo é desbriado e vadio, que não o aguenta a terra, que é necessário o braço emprestado para enriquecer o país. Mentirosos! Venham ver, de perto, a luta do indígena com as florestas tenebrosas. E com as águas que tumultuam nas cordilheiras (...) (BASTOS, 1934, p. 60).
Entretanto, é curioso como esse narrador se trai. Ele valoriza o nativo, mas retrata Columbu, o índio, carregando nas tintas para traçar sua força, sua sabedoria natural, assim como sua ingenuidade (quer bem a Bepe porque este lhe dera uma tarrafa) e sua fidelidade. Columbu é mais um cão de guarda do mestiço Bepe que, como herói messiânico, tem traços de mito, do que um sujeito que pode fazer a história de seu país. Convém ressaltar a representação alegórica da obra. Ao mesmo tempo que aponta panfletariamente para a saída dos brasileiros amazônidas frente à exploração, exercida sempre pelo estrangeiro, ela se investe de tom lendário porque se enforma como um possível desdobramento da lenda da cidade Manoa del Dorado, agora não marcada pela busca da riqueza material, mas da riqueza de uma civilização baseada na paz, na socialização do trabalho e dos produtos gerados pelo trabalho.
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Apesar da alegoria e do nacionalismo da obra, ela não deixa de apontar para o pensamento de classe dominante de seu autor, Abguar Bastos, que, ao refletir sobre o amazônida, centrou-se, enquanto autor, no vértice do triângulo racial brasileiro que se opõe à base formada pelo negro e pelo índio, ou seja, como intelectual branco, e repetiu a ideologia dominante da fábula das três raças. Este é o diferencial entre ele e seu conterrâneo Dalcídio Jurandir, nascido em Ponta de Pedras, Marajó, em 1929 e falecido no Rio de Janeiro, em 1979, autor de obras de ficção, mas também de inúmeros textos publicados em revistas e jornais, artigos que vão da crítica literária a análises de fatos ou tentativas historiográficas. No que tange ao ficcional, criou o extenso cicloExtremo Norte (1939/1978), que engloba dez dos onze romances ue escreveu7. O que fica fora do ciclo é Linha do Parque (1959), escrito sob a instigação do Partido Comunista Brasileiro, ao qual era filiado, ao uso do realismo socialista. Extremo Norte narra a saga de Alfredo, menino marajoara, de Cachoeira do Arari, que, acossado por um espírito cosmopolita, sonha com os estudos em Belém e persegue esse sonho nos enredos dos primeiros romances do ciclo. No quarto volume, chega a Belém e inicia seus estudos, ao mesmo tempo em que principia um processo de conquista da cidade, mas também de sua perda. De romance em romance, a crise aumenta, até que abandona os estudos no segundo ano ginasial. No último volume do ciclo, já é um rapaz e aparece repetindo a profissão do pai, secretário de intendência, até a revolução de 30, quando retorna a Belém e volta a procurar um rumo. Já analisei Alfredo como “herói problemático”8, que cumpre uma trajetória dentro de um universo derruído, à procura de valores autênticos (GOLDMANN, 1976). Na ocasião, ressaltei a experimentação dalcidiana e o aprimoramento de técnicas inovadoras de obra para obra, fazendo evoluir o que inicia no romanceembrião, o primeiro do ciclo, Chove nos campos de Cachoeira (1939/1941)9, para o que considero o esfacelamento, tal a intensidade da fragmentação.
____________________ 7 São eles: Chove nos campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem dos inocentes (1963), Primeira manhã (1967), Ponte do Galo (1971), Os habitantes (1976), Chão dos Lobos (1976), Ribanceira (1978).
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O que poderia apontar para uma retomada da tradição realista em Dalcídio Jurandir, ou naturalista, conforme indica Flora Sussekind (1984) que houve em dois momentos importantes do romance brasileiro, os anos 30, quando Dalcídio estreou como romancista, e os 70, quando encerrou seu trajeto, resvala dessa fórmula graças ao extenso uso do discurso indireto livre e da quebra de linearidade temporal das narrativas do ciclo, que culmina no referido esfacelamento. Desse modo, os dez romances da série são entrecortados por diferentes vozes que se juntam às vezes à de um narrador em terceira pessoa, ou a ela se sobrepõem (as personagens tomam a palavra para narrar um fato de modo extra ou autodiegético). Nas vozes que se sobrepõem, são exemplares as figuras das narradoras, na verdade as contadoras de histórias, como Nhá Fé e dona Sensata. Vem daí o largo acervo de narrativas retiradas do imaginário social e popular da região, presente nas obras, sem que o ciclo ressoe a simples folclore ou a documento. Gostaria de me deter um pouco na sexta obra do ciclo, intitulada Primeira manhã e publicada em 1967. Nesse enredo, Alfredo já terminou o primário e deve iniciar seus estudos ginasianos. Por isso segue, com atraso de oito dias, para sua primeira manhã no colégio. Sentindo–se mal colocado dentro do uniforme apertado, sua sensação se redimensiona para a de um fora de lugar, quando se dá cota que assistiu ás primeiras aulas em sala errada, com o terceiro ano. Pior se torna a situação, quando os estudantes, descobrindo o calouro, querem lhe aplicar o trote. Alfredo foge do colégio e perambula pela cidade, iniciando o que para mim se configura nas perambulações de um ginasiano culpado, isto é, nesse enredo ele se distanciará mais e mais do colégio em divagações, enquanto percorre Belém. Isso persistirá nos enredos de três dos quatro romances que sucedem Primeira manhã . O livro é composto de 248 páginas, dividido em duas partes, a primeira da página 9 à 182, e a segunda da página 183 à 248. Os números nos ajudam a visibilizar a composição posto que, na primeira parte, o enredo se atém a poucas ações da personagem central: ida ao colégio, aula em sala errada, fuga ao trote, perambulações pela cidade, almoço no casarão em que morava de favor, saída para novas perambulações. Na segunda parte, já ao final do
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livro sabemos da continuidade da sensação de deslocamento de Alfredo na escola e na casa em que mora, mas não temos proporção de quanto tempo se passou. A ação principal reforça o perambular da personagem. No entanto, temos um ir e vir de lembranças da personagem central ou de outras com quem ela se encontra, assim como várias personagens assumem a voz narrativa e contam ou o que lhes sucedeu ou o que sucedeu a outros. Assim, Alfredo descobre, pela voz de duas senhoras, a quem faz companhia em determinado trajeto, que o casarão do cel. interiorano Belarmino Boaventura, onde ele mora de favor, aos cuidados da sobrinha do cel., a costureira pobre, d. Dudu, foi construído sobre a ruína da casa dos Juruemas. A alegoria da ruína, segundo minha análise anterior do ciclo romanesco dalcidiano (FURTADO, 2002) nos leva ao deslocamento da personagem central que perfaz um trajeto de consciência social e de classe, enquanto elabora internamente outros ‘dramas’, um ligado à questão racial, Alfredo é filho de pai branco e de mãe negra, e outro ligado ao universo cultural desses polos, o universo erudito e o popular. No romance em foco, Alfredo já se aceitou mestiço, mas agora se divide na escolha do universo de trabalho: não sabe se seguirá o lugar dado aos negros na sociedade, o do trabalho braçal, ou se seguirá seu lado branco e erudito, do trabalho intelectual. Note–se que Dalcídio Jurandir não seguiu a “fábula das três raças”, pois retratou o mestiço mulato não apenas sob a perspectiva biológica racial, mas sob a perspectiva cultural, social e também de consciência ideológica. Na obra as dicotomias dão lugar a fórmulas mais complexas. Por exemplo, Alfredo mestiço é filho de major Alberto, branco, mas pobre, ainda que erudito e ainda que participe do estamento em sua sociedade, por seu trabalho intelectual como secretário de intendência. Alfredo se aceitou mestiço, e nessa expressão quero enfatizar que ser mestiço representou um conflito para ele, mas agora se questiona sobre a aquisição do “saber” e o lugar que esse “saber” lhe dará na sociedade. Veja–se a reflexão que faz:
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(...) Odaléa, o sol bem no rosto, na boca o grude de mangaba, parecia adivinhar-lhe as perguntas. E assim com palavras sem palavras, longo longamente conversavam. Lá no peitoril. Odaléa não fazia diferença entre sua pele e a do primo cá, em baixo, o pé nas cascas de fruta. Alfredo, por estudar, sabia ou não subia um degrau, branqueava a pele? (JURANDIR, 1967, p. 76)
Alfredo vai adquirindo consciência da complexidade da sociedade em que se insere, das hierarquizações que essa sociedade estabelece, e se sente sempre propenso a seguir ao lado dos que estão na linha de baixo, indiferentemente da questão racial. Por isso, na obra, procura incessantemente por Luciana, a filha estigmatizada do cel. Boaventura, que, segundo lhe contam, sonhava, como ele, em estudar em Belém. Por rixas familiares e preconceitos foi expulsa de casa, fadada ao estigma de ‘filha perdida’ e de todo o peso social que a expressão carrega. O drama de um entre lugar, vivido por Alfredo, como já anunciei, não termina nesta obra e nem na última, do final do ciclo, demonstração de que Dalcídio Jurandir não pretendeu o manifesto, tampouco o didatismo. Não há fórmulas, nem caminhos a seguir. O que importa em sua arte é ser arte, embora não se desapegue dos homens e esses homens sejam considerados sujeitos históricos. Gostaria, nesse rastro da arte, de refletir sobre um dado instigante nesse romance do ciclo Extremo Norte : a colagem que Dalcídio Jurandir elaborou de um trecho do conto O voluntário , de Inglês de Sousa, do livro Contos amazônicos, de 1893. Eis o texto, em itálico no romance de Dalcídio:
___________________ 10 No texto de origem, está na página 06, da edição da Martins Fontes: São Paulo, 2005
É naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Face a face toda a vida com a natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e distante da agitação social, concentra-se a alma num apático recolhimento, que se traduz externamente pela tristeza do semblante e pela gravidade do gesto. O caboclo não ri, sorri apenas: e a sua natureza contemplativa revela-se no olhar fixo e vago...(JURANDIR, 1967, p. 69)10.
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O Texto é colocado em Primeira manhã num momento em que, suas andanças, Alfredo se lembra de que Manaus está na mão dos revoltosos (atente–se que o enrendo deve localizar–se aproximadamente no ano de 1926, no contexto dos conflitos que antecederam 1930) e pensa no levante do forte de Óbidos e nos habitantes ribeirinhos a passarem silencioso e apressados pela noite escura. A colagem contrasta fortemente com a narração que se enuncia no momento. O texto inserto, racionalmente ordenado como o são os textos do Realismo, segue a linha da explicação elaborada por um narrador extradiegético que, de cima, focaliza suas personagens. A enunciação de Primeira manhã desconstrói esse tipo de narração, a ponto de dificultar ao leitor o acompanhamento do foco narrativo. É brusca ou tênue a passagem da voz de um narrador externo para a voz interna da personagem, emanando daí a quebra na temporalidade e no espaço da narrativa. Por isso, depreendemos dessa atitude do narrador dalcidiano a recusa de narrar conforme a fórmula realista tradicional. Afinal ela existe e já cumpriu sua função, assim como pode ser usada a qualquer momento, como o faz esse narrados apenas em um flash, não no todo da obra. Também é visível a consciência estética de Dalcídio Jurandir. Ao se apropriar do texto de Inglês de Sousa, apropria-se da tradição literária amazônica, mas ao enformá– la em uma narrativa bastante diferenciada tecnicamente, amplia–a, demonstrando que a dimensão social anterior não se apagou, mas o retrato objetivo e de cima já não é instrumento para a representação do real. Para mim não deixa de soar irônico esse momento da obra de Dalcídio e ilustra o que ele disse em entrevista: “não faço concessão a enredos fáceis”, ao que eu acrescento: e a técnicas já desgastadas. Nesse ponto, é hora de voltar à questão do afastamento não dos autores aqui retratados da denominada “novela da terra”. Ambos os autores dialogam com a tradição no retrato social da Amazônia, mas estabelecem distância de muitos antecessores e de alguns coetâneos em suas técnicas romanescas. Após a avalanche de narrativas regionalistas, em que a paisagem se sobrepunha ao homem e, sobretudo no Brasil, após a onda dos romances da borracha, em sua
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maioria de tração naturalista, os dois autores se revelam renovadores no que se pode chamar de sistema literário latino-americano (RAMA, 1960). Abguar Bastos, que cedeu ao ícone “terra” colocando-o como signo no título da segunda edição de sua primeira obra (Terra de Icamiaba ), conseguiu-o pela técnica, embora tenha se traído pela questão de classe social ao reproduzir a ideologia dominante da fábula das três raças. Já Dalcídio Jurandir, que construiu o ciclo ao longo de quarenta anos, conseguiu complementar as conquistas de seu antecessor, ao laborar uma obra que, mesmo colando a tradição, consegue suplantá-la porque se distancia da posição ideológica de classe dos antecessores e consegue retratar o mestiço de perto de seus dramas, os quais ultrapassam a questão racial. Referências
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_______."Abguar Bastos e a série Os dramas da Amazônia, ou: um romancista em construção”. In: NUNES, Paulo (org.) Diversidade cultural: diálogos literários. Belém: Unama, 2008. GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. Rio: Paz e Terra, 1976. GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994. JURANDIR, Dalcídio. Chove nos campos de Cachoeira . Rio de Janeiro: Ed. Vecchi, 1941. ________. Primeira manhã. São Paulo: Martins, 1967. SOUSA, Inglês de. Contos amazônicos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Uma ideologia estética e sua história: o naturalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984. RAMA, Ángel: " Meio século de Narrativa latino–americana (1922–1972)". In: AGUIAR, Flávio e VASCONCELOS, Sandra T. Vasconcelos (orgs). Ángel Rama. Literatura e Cultura na América Latina. São Paulo: Edusp, 2001.
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Literatura brasileira no contexto latino–americano: ser ou nãoser Suzi Frankl Sperber* RESUMO: Partindo do paradoxo levantado por Antonio Candido, citando Rubem Fonseca e Roberto Drummond, por um lado, não existe literatura latino–americana, e, por outro, ela é tão marcante que dita direções. Constata-se que obras do fim do séc. XX e começo do XXI se caracterizam por sua autossuficiência e mergulho nos problemas nacionais ou locais – e por propostas estéticas próprias. Retoma-se o realismo feroz, (cf. Antonio Candido), e se observa em obras do fim do século e começo do presente nonsense, ironia, fragmentação lírica, fluxo de consciência, divagações cínicas e rancorosas, algumas brutais. Esta é uma literatura que tende à falta de esperança. Obras da literatura marginal e periférica – mesmo sendo duras – apontam para a esperança. Diante desta radicalidade de visões e posturas, coloca-se a pergunta sobre se a visão dupla que observamos repetidamente corresponde à revelação da ambivalência do discurso colonial e se ela subverte a autoridade desse mesmo discurso. PALAVRAS–CHAVE: dupla injunção, dilema, narrativa em abismo.
___________________ *Docente no Instituto de Estudos da linguagem ( departamento de Teoria Literaria) e no Instituto de Artes (Departamento de Artes Cênicas) da Unicamp.
ABSTRACT: Based on the paradox raised by Antonio Candido, citing Rubem Fonseca and Roberto Drummond, on one hand, there is no Latin American literature, but on the other, it is so striking that it dictates directions. It is observable that works of the end of the 20th and early 21st centuries are characterized by self-sufficiency, diving into national or local issues, and by their own aesthetic proposals. Ferocious realism is being retaken (Antonio Candido), and in works of the end of last century and the beginning of the present one it is possible to observe nonsense, irony, lyrical fragmentation, stream of consciousness, cynical and spiteful, even some brutal rambling. This is a literature which tends to hopelessness. Woks of marginal and periphery literature, instead, even being hard, point a way of hope. In face of this radical views and stances, arises the question of whether the double vision that we see repeatedly corresponds to the revelation of the ambivalence of colonial discourse and subverts the ambivalence of that same discourse. KEY–WORDS: double injunction, dilemma, narrative in mise enabyme.
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Em “Nova Narrativa”, Antonio Candido cita dois autores e duas concepções diferentes de literatura latino– americana: 1: Existe uma literatura latino-americana? Não me faça rir. Não existe nem mesmo uma literatura brasileira, como semelhança de estrutura, estilo, caracterização, ou lá o que seja. Existem pessoas escrevendo na mesma língua, em português, o que já é muito e tudo. Eu nada tenho com Guimarães Rosa, estou escrevendo sobre pessoas empilhadas na cidade enquanto os tecnocratas afiam o arame farpado. (FONSECA. Intestino grosso) 2: Acho que nós, de cultura latino-americana, não temos que ser sucursal de um movimento de Nova Iorque ou de Londres. Nós temos condições de ditar. É o que a literatura latino-americana tá fazendo, pois hoje você encontra americano imitando Borges. (Roberto Drummond, numa entrevista com o editor Granville Ponce)
As duas posturas levantam aspectos relevantes até hoje, já entrados no séc. XXI, sobretudo para a literatura brasileira, mais preocupada em definir-se nacional, a saber, brasileira, antes mesmo de discutir a pertença latinoamericana. Como ao longo do séc. XX despontaram alguns autores de dimensão excepcional, manifesta-se hoje, no Brasil, o desejo de se distanciar deles, mormente da obra de João Guimarães Rosa – quem sabe o maior destes autores. Ao mesmo tempo existe aproveitamento de achados estilísticos, de alguma referência pontual da obra do mesmo Rosa por parte de autores que não Rubem Fonseca. E existe a produção de uma obra que não se preocupa com relações mais diretas com Europa ou Estados Unidos, o que se manifesta por autossuficiência e mergulho nos problemas nacionaisou locais – e em propostas estéticas próprias, mesmo que os diferentes autores tenham escolhido ficcionistas ou filósofos, ou outras referências à busca de respostas e ao mesmo tempo estímulos para as suas criações. Uma produção local da primeira metade do séc.
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XX – avançando pela década seguinte - em Belém do Pará (Benedicto Monteiro e Dalcídio Jurandir), em Goiânia (Manoel de Barros), em Salvador-Bahia (Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro), e uma produção posterior (João Guimarães Rosa, Adélia Prado e diversos outros autores de Minas Gerais; Dalton Trevisan-Paraná; Érico Veríssimo, Moacyr Scliar-Porto Alegre) e Milton Hatoum (Manaus), Raduan Nassar e Hilda Hilst (São Paulo), Ariano Suassuna (nascido em João Pessoa mas que viveu no Recife) asseguraram a produção de uma literatura com traços locais, cada um com caráter que pode ser considerado universal. Existe uma literatura latino–americana? Quando se fala, no Brasil, em literatura latinoamericana, é quase certo que serão mencionados autores da América Hispânica, sem uma única menção a autor brasileiro. É o que lemos no artigo “Dez obras da literatura latino-americana”, de Marília Almeida, que reúne contos de dez autores hispânicos, dos quais nenhum poeta, nenhum autor posterior à década de 80 e nenhum brasileiro. Afora esta tendência, há outras com relação à noção de literatura latino-americana. Existe certo temos de que a literatura latino–americana abrangente corresponda ao perigo de uma tendência homogeneizante que apagaria as peculiaridades de cada nação, achatando o panorama literário geral e sufocando as literaturas "menores" dentro do próprio continente. Ricardo Piglia defende a tese de que, antes de falar em termos continentais, seria preciso pensar em termos regionais. Ele propõe que se fale em literatura caribenha, andina, rioplatense, por exemplo, como suas formas, interesses e tradições próprias (PIGLIA, 2001, p.22–23). Em 1981, em um Encontro Hispano–americano realizado no Instituto de Estudo da Linguagem da UNICAMP, proposto e organizado por Antonio Candido e com a presença de Ángel Rama, Antonio Candido, Antonio Cornejo Polar, Norman Potter, Roberto Schwarz e outros (dentre os quais a autora deste artigo) ficou claro, nos debates, que não se poderia sequer falar em uma literatura
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brasileira, em vista da diversidade cultural, educacional, histórica, geográfica e econômica do Norte, Nordeste, Sul, Oeste e Centro–oeste do Brasil. Radicalizando, o costarriquense Carlos Cortés publicou um artigo em 1999, cujo título foi então um desafio: “La literatura latinoamericana (ya) no existe”. Poucos anos depois Jorge Volpi, mexicano, radicalizou de vez e asseverou a inexistência de uma literatura latino–americana, retirando os parênteses do título do artigo de Carlos Cortés e afirmando que “La literatura latinoamericanaya no existe”. Volpi recorreu a um crítico apócrifo que teria escrito o artigo “Cincuenta años de literatura hispánica; 2005-2055: un Canon imposible”), para imaginar um futuro provável. O artigo teria sido escrito por certo Ignatius H. Berry, professor da Universidade Federal de Dakota do Norte. Seja como for, ainda falamos em uma Literatura Brasileira e também em uma Literatura de cada uma das nações latino-americanas… E definir se somos ou não sucursais de literaturas dos países que continuam sendo os dominadores, cujas obras são traduzidas e facilmente chegam às listas dos mais vendidos, vem sendo tarefa dos escritores que publicam no Brasil. Há perto de 30 anos Ángel Rama avaliou que o ‘boom’ da literatura latino–americana encerrava um paradoxo inquietante. O contexto mercadológico mudara muito em todos os países da América Latina por conta da mídia, de encontros internacionais promovidos na Europa, sobretudo, projetando o nome de autores para além das próprias fronteiras. Com isto, foi atribuído um peso, a cada um deles, que não tinham adquirido em suas terras natais (como foi o caso de Gabriel García Márquez). Ángel Rama comenta que, apesar disto Nunca me han parecido más solos los escritores latino– americanos que en esta hora de vastas audiencias. Pertenecen a todos, pero no pertenecen a nadie (RAMA, 110).
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Rama desejava que a intelectualidade fosse majoritariamente de esquerda e fosse capaz de construir um discurso orgânico que permitisse que eles se situassem na vanguarda de setores com claras reivindicações sociais. Se hoje temos dificuldade em definir o que é propriamente esquerda porque há discursos que se julgam de esquerda, arejados, desprovidos de preconceitos, mas que, como a personagem narrador de Reprodução, romance de Bernardo Carvalho publicado em 2013, explicita sem consciência disto seus preconceitos, seu auto-centramento, então o paradoxo e a tendência ao beco sem saída são marcas da atual literatura – brasileira e talvez latino–americana. Por que é necessário indagar quem são os leitores desta literatura? Como pensam estes leitores? Como modelam estes autores os seus leitores? Como os editores lançam livros de literatura e outros das mais variadas dicções e tendências? Como este mercado garante os seus ganhos com uma diversidade que não deixa de lado obras de literatura trivial, de autoajuda, e tantas modalidades, a pluralidade soterra o que seja a literatura brasileira e latino-americana – que não deixam de estar aí. E os leitores terão que garimpar as obras que mereçam ser chamadas de literatura como agulhas no palheiro. A narrativa brasileira a partir da década de noventa Levarei em conta a narrativa brasileira a partir da década de 90, partindo porém de considerações de Antonio Candido para uma produção de período anterior. Em “Nova Narrativa”, ao analisar a narrativa brasileira até o fim da década de 70, Antonio Candido pontua, sobre a produção dessa década, que É possível enquadrar nesta ordem de ideias o que denominei "realismo feroz", se lembrarmos que além disso ele corresponde à era de violência urbana em todos os níveis do comportamento. Guerrilha, criminalidade solta, superpopulação, migração para as cidades, quebra do ritmo estabelecido de vida, marginalidade econômica e social — tudo abala a consciência do escritor e cria novas necessidades no leitor, em ritmo acelerado. Um teste interessante é a evolução da censura, que em vinte anos foi .
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obrigada a se abrir cada vez mais à descrição crua da vida sexual, ao palavrão, à crueldade, à obscenidade — no cinema, no teatro, no livro, no jornal —, apesar do arrocho do regime militar. Talvez este tipo de feroz realismo se perfaça melhor na narrativa em primeira pessoa, dominante na ficção brasileira atual, em parte, como ficou sugerido, pela provável influência de Guimarães Rosa. A brutalidade da situação é transmitida pela brutalidade do seu agente (personagem), ao qual se identifica a voz narrativa, que assim descarta qualquer interrupção ou contraste crítico entre narrador e matéria narrada. (CANDIDO, 1989, p. 211–12)
Hoje não temos guerrilha (ou será que os movimentos populares agressivos não corresponderão a uma guerrilha estimulada por “forças ocultas” – contra o poder constituído democraticamente?). Temos até mais criminalidade solta, superpopulação dos grandes centros urbanos, ainda alguma migração para as grandes cidades, além de outras migrações internas, em cada cidade, correspondendo à mobilidade urbana – e temos também algumas levas de imigrantes vindos de países vizinhos da América Hispânica e do Haiti. Temos quebra do ritmo estabelecido de vida, nas comunidades que acolhem voluntariamente ou não estes estranhos, e marginalidade econômica e social. Daí que é recorrente o realismo feroz como estilo – e uma linguagem e-ou narrador que aproveitam ligeiramente sugestões das obras de Guimarães Rosa, negando a referência. A primeira pessoa pontua a realidade observada, vivida, questionando-a, utilizando o recurso do interlocutor mudo. Partirei de considerações sobre livro que Nelson Oliveira publicou em 2001 (Boitempo). Trata–se de Geração 90: manuscritos de computador – os melhores contistas brasileiros surgidos no final do século XX – em que Nelson Oliveira reuniu contistas que representariam a década referida. Destes, alguns têm maior penetração até hoje, metade da segunda década do séc. XXI: Fernando Bonassi, Luiz Ruffato, Marçal Aquino, Marcelo Mirisola, Marcelino Freire. Claro que autores vivos do séc. XX continuam a produzir suas obras, como Bernardo Carvalho, Rubem Fonseca e outros. Encontramos
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características destes contos também em uma produção posterior, dos mesmos ou de outros autores. É que ao procurar apanhar suas características in totum, estas passam a ser genéricas e, pois, aplicáveis a outros textos também. Os autores em questão se empenham em reverter normas como cronologia, ordem dos acontecimentos, normas de sintaxe e regras ortográficas, e é bastante frequente a criação de neologismos. Luiz Ruffato usa também alguns recursos gráficos, que ecoam recursos gráficos empregados por Osman Lins em Avalovara, na década de 70. Interessa, nos contos da antologia, o momento presente, penetrado pelo insólito tratado como normal, que desnuda chagas sociais brasileiras. É uma tomada de posição que corresponde claramente a momento posterior à consciência do subdesenvolvimento, caracterizada por uma apresentação negativa de Brasil. A situação política e social vem mudando. Na década de 90 desponta uma esperança de mudança. As narrativas da antologia citada manifestam nonsense, ironia, fragmentação lírica, fluxo de consciência, divagações cínicas e rancorosas, até brutais. Estas narrativas não manifestam esperança... O leitor participa do que é narrado, mas não propriamente do que acontece, porque a subjetividade do narrador encaminha a narrativa frequentemente através da primeira pessoa mergulhada em floreios da memória. A primeira pessoa é capaz de criar monólogos (como em Reprodução, de Bernardo Carvalho, ainda que sejam monólogos de diferentes vozes narrativas) e estes ecoam de longe, como já mencionado, Grande Sertão: Veredas. É criado um distanciamento entre a ação, o narrador e o leitor, que com dificuldade acompanhará o fio da ação. O narrador tende a ser abrupto, ansioso, usando em princípio a linguagem do cotidiano, de forte oralidade. Esta nele cola para assim ter maior impacto com a crueza que o narrador se permite ao narrar, como se estivesse sozinho, como se não pretendesse dar conta do contexto no qual está imerso. Ou como se a rudeza correspondesse a este contexto. O mundo apresentado é feito de ações que seriam ilícitas e imorais, apresentado por um narrador urbano, solitário, anônimo no papel assumido diante da sociedade. O narrador pode não ter nome – como em Reprodução. Sua inserção social é tão imediata, que a visão mais ampla do indivíduo em seu contexto socioeconômico parece desaparecer. A descrição de características da narrativa
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da década de noventa – e que se estende para o século XXI – lembra de perto comentário de Antonio Candido sobre outro momento da literatura brasileira: Pelo dito, vê-se que estamos ante uma literatura do contra. Contra a escrita elegante, antigo ideal castiço do País; contra a convenção realista, baseada na verossimilhança e o seu pressuposto de uma escolha dirigida pela convenção cultural; contra a lógica narrativa, isto é, a concatenação graduada das partes pela técnica da dosagem dos efeitos; finalmente, contra a ordem social, sem que com isso os textos manifestem uma posição política determinada (embora o autor possa tê-la). Talvez esteja aí mais um traço dessa literatura recente: a negação implícita sem afirmação explícita da ideologia.
Isto também é verdade em outras obras quer do fim do século XX, quer do início do presente século, até hoje. Em um autor como Luiz Ruffato, a preocupação social existe, mas não fica clara a ideologia, a não ser que o desejo seja o de apresentar um mundo cão, cruel, em que os machos continuam machistas e as ações arbitrárias se validam enquanto defendem interesses muito pessoais. Talvez como resposta feroz às utopias do séc. XX e, sobretudo à esperança que marcou a literatura brasileira desprovida de consciência de país subdesenvolvido, a obra de Ruffato é marcada pela negatividade. Afirma-se que Ruffato “transita num universo marcado pela diversidade das mazelas brasileiras, pela exclusão social, por remorsos e rancores, além da falta de perspectivas de uma vida melhor”. Ainda que Ruffato assevere “que, se não acreditasse em mudanças, nem escreveria”, sabemos que optou por mergulhar na provisoriedade do inferno cotidiano para traçar os caminhos e os descaminhos de suas personagens nas últimas cinco décadas. Nenhuma delas tem perspectivas de mudança, nem esperança, nem luta. Todas são dominadas pela amargura e são vítimas de uma sociedade radicalmente injusta e desigual. Como suas narrativas apresentam ciclos de vida, vemos que os ascendentes das personagens das narrativas de Ruffato são caracterizados como não tendo, na sua origem, nem utopia, nem energia para a luta (como patenteado na
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na família italiana de Zélia Gattai, por exemplo, que em outro artigo comparei a Ruffato). E mais: as personagens aparentemente viram em valores patriarcais da primeira metade do séc. XX, típicos de país colonizado, do país ainda muito desigual dos latifúndios, características semelhantes àquelas do país e da região de onde provinham (Sicília). Dessa forma, acentua-se, nas personagens de Ruffato, tanto o autoritarismo, o arbítrio, como a desigualdade social – nas quais ecoa o machismo–e mesmo a desigualdade social existentes também na sua terra de origem. A violência parece, então, vir também da violência e do arbítrio de antanho e de outro território. O tema e os efeitos da violência têm frequentado a literatura brasileira desde a década de 70, mas acirrando-se mais a fins do séc. XX e começo do XXI. O dado novo é a droga, provocadora da violência, alimento da ambição, tanto em Ruffato como em outros autores. Caberia perguntar se continua sendo válida uma consideração de Antonio Candido sobre a “nova narrativa”: Talvez, por isso, caiba refletir, para argumentar, sobre os limites da inovação que vai se tornando rotineira e resiste menos ao tempo. Aliás, a duração parece não importar à nova literatura, cuja natureza é frequentemente a de uma montagem provisória em era de leitura apressada, requerendo publicações ajustadas ao espaço curto de cada dia. Dentro desta luta contra a pressa e o esquecimento rápido, exageram-se os recursos, e eles acabam virando clichês aguados nas mãos da maioria, que apenas segue e transmite a moda. (Candido, 1989, p. 213).
Comentário duro, que pode ferir a muitos, somos levados a pensar que dentre a avalanche de novos autores, diversos inovadores poderão ser esquecidos, como, aliás, acontece em todas e cada geração. Nelson Oliveira, em entrevista, respondeu à pergunta sobre como a ficção brasileira estaria enfrentando transformações históricas como o panorama político brasileiro desde a era Lula ou a era Obama. Há mudanças políticas que se dão no mundo, como as intifadas, o terrorismo de diferentes facções no Oriente Médio, a globalização:
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Os poetas e prosadores brasileiros contemporâneos, os de 25 anos e também os de 90, olham mais para o passado do que para o presente ou para o futuro. Pela primeira vez na História, o ser humano está modificando fisicamente o ser humano, por meio de drogas, próteses e órgãos artificiais, e essa revolução ainda não está aparecendo explicitamente em nossa literatura. A crise criativa atual não é de forma, é de conteúdo. (OLIVEIRA, 2011, Pernambuco)
A reação rápida às mudanças é bem difícil, ainda que justamente quando Volpi nega a existência de uma literatura latino-americana ele afirma que as marcas da globalização são responsáveis por este achatamento, por esta perda de características próprias. Bernardo Carvalho trabalhou alguns temas contemporâneos como a difusão e a ambiguidade dos discursos em tempos de interação online, em que qualquer absurdo e agressão pode ser dita e difundida de maneira invisível e sem rostos aparentes, muitas vezes sob pseudônimos, portanto em anonimato, e onde todo mundo tem uma opinião definitiva e contundente sobre qualquer coisa. O uso da palavra como eufemismo para a ação – ou diretamente a palavra usada no lugar da ação, mas com virulência semelhante e intenção igual, têm–se mostrado na realidade concreta de nosso dia a dia. Portanto a palavra tem servido de arma para amedrontar e intimidar mais que nunca. Fora da literatura. Um exemplo desses discursos difusos é comentado por Bernardo Carvalho. Em recente entrevista, Carvalho falou sobre a dificuldade que temos atualmente de definir e classificar os discursos políticos. O fenômeno começou com a queda do muro de Berlim e a dissolução da União Soviética. Até aquele momento, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, fora relativamente fácil definir uma esquerda e uma direita, situar o lugar de um Hitler e de um Mussolini, ou de um Stalin e de seus adeptos. Durante a ditadura militar, no Brasil, também parecia ser mais fácil discernir as posições políticas e ideológicas das pessoas. A partir de 1990 ficou mais difícil ter uma linha clara e definida de pensamento e de escrita, correspondendo ela, generalizando, a uma literatura do contra, como observado por Candido.
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Conflitos, dúvidas, incertezas Os escritores procuram uma dicção que corresponda aos conflitos, dúvidas, incertezas, inseguranças, agressões, traumas do momento presente. Existe a solidão e um mundo competitivo; a ganância e o desejo do enriquecimento rápido – através das drogas mais visivelmente para os mais pobres. A positividade entra pouco na literatura contemporânea. Curiosamente, ou quem sabe não seja tão curioso assim, a esperança, a Os escritores procuram uma dicção que corresponda aos conflitos, dúvidas, incertezas, inseguranças, agressões, traumas do momento presente. Existe a solidão e um mundo competitivo; a ganância e o desejo do enriquecimento rápido – através das drogas mais visivelmente para os mais pobres. A positividade entra pouco na literatura contemporânea. Curiosamente, ou quem sabe não seja tão curioso assim, a esperança, a positividade vêm sendo implantadas por autores da periferia, em uma literatura da periferia. Para estes autores (penso no grupo de autores que se congregam em torno e a partir dos impulsos proporcionados por Sérgio Vaz e pela ação da Cooperifa, na periferia de São Paulo), mesmo denunciando a desigualdade, a injustiça, a fome, o preconceito e suas consequências, interessa estimular a criação de mais autores, interessa mudar a realidade. Interessa estimular a leitura e a ampliação de ações que levem ao acolhimento social de cada um, ao desenvolvimento de consciências críticas e á proliferação de ações culturais. Constrói-se uma notável esperança, fundada na solidariedade e na consciência social. Exatamente aqueles que provêm (ou provieram) das classes C e D manifestam verdadeiras ganas de transformação da sociedade. Diferentemente de alguns que provêm das classes A e B, estes acreditam no poder da palavra, do sorriso e da luta. Vale frisar que muitos dos periféricos são negros. A voz do negro começou a ser ouvida como de escritor apenas mais recentemente, quando ela passou a gritar situações de violência que não poderiam ser ignoradas. É inevitável e mesmo necessário que cada vez mais estas vozes denunciem as injustiças sociais, que atingem mais forte e decididamente o negro, no Brasil. É tarefa cidadã, ofício de batalhadores. Um exemplo foi o romance de Paulo Lins:
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Cidade de Deus . O livro é forte. Escrito inicialmente com mais de 500 páginas, o próprio autor o reduziu para que a sua comercialização fosse mais fácil. O livro foi filmado e o filme levou o mesmo título. A sequência feroz de crueldades é chocante, tanto no livro, como no filme. Não há esperança. O arbítrio e a violência se retroalimentam. No filme tem-se a impressão da estetização do crime e da violência. Surpreendeu-me um fenômeno, que notei no livro, assim como em livro muito anterior. Dupla injunção Ao ler O Quinze, de Rachel de Queiroz, que trata de discriminação racial e de gênero em um contexto regional, notei que o maior incômodo não era racial, nem social, mas a situação da mulher, tanto mais difícil quanto menos se adaptava perfeitamente ao perfil previsto e exigido pela sociedade patriarcal. Era criado um impasse construído pelo contraponto entre esta sociedade com sua marca religiosa, cristã, e um pensamento racional, quase positivista. Fruto de movimentos internos contrários, a personagem principal – Conceição – não ousava dizer que existia uma discrepância entre o que via (e vivia) e o que pensava. Como a narrativa comunica apenas o que ela sente, a incompatibilidade reside em uma característica da escrita. Acreditei localizar algo de natureza paralela em Cidade de Deus, de Paulo Lins. Aí conflitam o pensamento de esquerda socialista ou comunista de quem acredita na revolução possível das massas trabalhadoras e algo que talvez possa ser descrito como a marca do malandro, que considera legítimo receber benesses, fugir ao trabalho, considerando-o escandaloso por ser coisa de otário. Encontrei um conceito que me serviu para definir a divergência narrativa. Chamei a este fenômeno de discursividade narrativa divergente, contraditória, de double bind, i.e., dupla injunção, aproveitando a definição de Gregory Bateson: […] the essence of a double bind is two conflicting demands, each on a different logical level , neither of which can be ignored or escaped. This leaves the victim torn both ways, so that whichever demand they try to meet, the other demand cannot be met.2 (BATESON, 1999)
____________ 1Queiroz, 1957: 119.
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____________________________ 2 http:://en.wikipedia.org/wiki/ Double_bind.Ver: Bateson, Gregory. "Toward a Theory of Schizophrenia," in Part III, Steps to an Ecology of Mind: Collected Essays in Anthropology, Psychiatry, Evolution, and Epistemology. University of Chicago Press, 1999, originally published, San Francisco: Chandler Pub. Co., 1972. E: Bateson, Gregory (1972). Steps to an Ecology of Mind: Collected Essays in Anthropology, Psychiatry, Evolution, and Epistemology. University Of Chicago Press.
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Seria uma “ambiguidade” rica, isto é, fruto de dialogismo, fruto de contraponto? Ou, eventualmente, permaneciam pontos de vista residuais, contradizendo o tema tratado e as linguagens recorrentes em uma obra, com misturas de linguagens sociais, ideológicas opostas, e que não correspondem às intenções explícitas do emissor – do narrador explícito? Ou seriam ainda enunciados cujas mais subconscientes intenções estariam dissociadas de seu discurso, levando tanto seu discurso, como o das personagens, como seu receptor, a oscilarem entre posições receptivas que reforçam exatamente a ideologia e a ética indesejáveis, os preconceitos, como foi o caso da ficção do abolicionista José do Patrocínio, cujo discurso é racista, ou como o que notei – e que talvez seja mais insidioso – em Cidade de Deus, mas também em Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz? O que poderia ser confusão, contraponto, contradição refere-se, nestes casos, à “traição das imagens”, afetando a representação geradora de imagens criadas por artistas – imagens figuradas – que outros têm de nós e nós dos outros, assim como aquelas que construímos através das palavras. Chamo a atenção para o fato de que não há apenas ambiguidade proposital na criação, como também de interpretação, decorrente de pluralidade fenomenológica. Estas últimas decorreriam do desejo do artista de chamar a atenção para a dificuldade de representar. O que o autor apreende, suas ideias, seu pensamento prévio – seu pré-conceito – não corresponde exatamente à representação. Uma ambiguidade proposital seria um sofisma bem engendrado, que partiria de premissas verdadeiras, ou tidas como verdadeiras, e que chegaria a uma conclusão inadmissível? O sofisma, propriamente, em princípio não pode enganar ninguém, apesar de se apresentar como resultante das regras formais do raciocínio. Mas há construções de argumentos tão hábeis que induzem à aceitação do raciocínio. Também há sofismas verbais que trabalham com a indeterminação do sentido, próprio ou contextual, das palavras utilizadas, levando a equívocos. Estas construções verbais podem se apresentar como ambíguas. Portanto, a ambiguidade pode ser uma estratégia de engodo – tanto voluntária, como involuntária. Não percamos de vista o que diz Antonio Candido sobre uma
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uma obra distante em séculos, mas que apresenta algo paralelo ao verificado por mim neste século XXI: Uma obra pode ter mais de um eixo de ordenação e frequentemente extrair disso a sua riqueza. Mas neste caso (de O Uraguai) a dualidade, mesmo que tenha sido deliberada, foi nociva, resultando em poema cuja harmonia é perturbada pela má integração do material, a hesitação de propósitos e, portanto, a falta de coerência. Noutras palavras, a possibilidade de duas leituras nada tem de mau em si, pois é frequentemente, no plano da estrutura, manifestação da polivalência da expressão literária. É, todavia, negativa quando representa desconexão e uma leitura atrapalha a outra, como pode acontecer n’O Uraguai. (CANDIDO, 1970, p. 176)
A dupla injunção corresponde à introdução de mais de um eixo de ordenação, em que uma leitura compromete a outra. Fenômeno desta natureza existe em Cidade de Deus, que coloca o leitor em uma encruzilhada, não podendo senão aceitar e mesmo acolher a violência crua como única saída diante dos impasses da desigualdade e da injustiça sociais, caracterizadas com ambiguidade. Desta forma, a cada passo não se coloca a noção mais abrangente de desigualdade e injustiça social, mas uma cena de embate entre dois pontos de vista, em que a escolha do leitor o leva a um beco sem saída. Em romance de Ricardo Piglia – Alvo noturno (Blanco nocturno) – existe um dilema jurídico construído com dupla injunção. Parecia sufocado. Fosse qual fosse a decisão que viesse a tomar, estava perdido. Teria de aceitar que um inocente fosse para a prisão se quisesse receber o dinheiro, ou teria de dizer a verdade e perder a fábrica. (PIGLIA, 2011 p. 238)
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Esta dupla injunção constitui o eixo da ação neste romance. Em outro romance de Piglia, Respiração artificial (2010) ( espiración artificial) , que trabalha com o que Homi R Bhabha refere como “a angústia do deslocamento cultural e movimentação diaspórica”, a situação é vivida com certo paralelismo pela personagem Tardewski. Tardewski conta como sua vida apresentara a cada passo alternativas, e a realidade passo a passo cortou uma das vias, levando a personagem a um beco sem saída – do qual ela escapa com dificuldade. O brilhantismo do futuro esboçado para Tardewski no começo de sua vida é reduzido à memória do passado. O passado se apresenta como o lugar da realização, da moral, da humanidade, da esperança e confiança – negadas, impossíveis. Teriam os narradores latino– americanos perdido toda esperança? A dupla injunção, que encontrei em outras produções culturais, parece apresentar-se como a resposta aos impasses e dúvidas do presente – e em circunstâncias em que os mais graves conflitos entre a moral e a manutenção de algum bem convergem para escolhas sem saída. É significativo apresentar–se o double bind, a saber, o paradoxo, ou a ambiguidade sem solução, como a traição das ideias no presente literário. Pareceria ser o caso do romance de Bernardo Carvalho, já mencionado. Bernado Carvalho dividiu sua narrativa (Reprodução) em três partes, nomeadas de “A língua do futuro”, “A língua do passado” e a “A língua do presente”. Na primeira parte encontramos um homem nascido em 1960, separado da mulher (uma atriz), que resolveu estudar chinês, porque ele imagina que os chineses tomarão conto do mundo, e ele precisa estar pronto para recebê–los– e ganhar dinheiro com seus conhecimentos. Este “estudante de chinês” está em fila de check in prestes a tomar um avião para a China, é preso e passa por interrogatório. Seu discurso, é uma espécie de reprodução de informações variadas, cujos temas são tratados com preconceitos. Ele fala de racismo, pedofilia, homossexualidade, religião, questões culturais e linguísticas (e outras variações temáticas) tudo expresso em uma fala
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contínua, vertiginosa e acuada, já que dirigida a um delegado (cuja voz não é ouvida–lida) que parece inquirir o preso, mas sem que o leitor o ouça. Este monólogo, ou falso monólogo, ecoa o de Riobaldo, personagem de Grande Sertão : Veredas . Com uma diferença fundamental: em Grande Sertão: Veredas quem comanda o fluxo da narrativa é Riobaldo velho, cuja voz–palavra corresponde à narrativa, modulada pela memória incerta e superior ao ouvinte-leitor. Em Reprodução, a voz–palavra ouvida–lida, é a do estudante de chinês, mas, como ele se sente acossado pelo delegado, é o delegado, cuja voz–palavra não é ouvida–lida, quem encaminha a narrativa. Pelo menos até a segunda parte, o medo e o desejo de escapar de punições decorrente de mal–entendidos dirige a narrativa. Na segunda parte de Reprodução passamos a ouvir o monólogo de uma delegada, inquieta, perturbada ou histérica, numa conversa com o delegado seu colega (que indicara para o posto de delegado alguém que tirou da fila de check in uma chinesa e uma menina) – cuja voz só ouviremos, rapidamente, no final do capítulo. Esse monólogo é ouvido pelo estudante de chinês, com a orelha colada na “divisória ordinária” que separa as salas. O monólogo da delegada é interrompido pelo narrador, por colchetes e itálicos, dando conta do que se passa na cabeça do estudante. Essa parte do romance faz uma crítica irônica da polícia, e também da sociedade brasileira, passando por uma confusão de informações, com relatórios que existem e não existem, dados que estão e não estão num relatório mencionado e negado... O capítulo procura dar uma ordem ao narrado anteriormente: quem era o agente que tirou a chinesa do aeroporto (um protegido do delegado?), por que a chinesa teria sido retida (tráfico de drogas?), quem era a menina de 5 anos? E agrega a história da delegada, superior ao delegado na hierarquia da polícia. É uma história de mimetismo que passa pela marcha por Jesus pela salvação do Brasil, por clubes de encontros, casos de humilhação e masoquismo, corrupção da polícia e troca de favores, o nascimento de um neto de um cantor sertanejo e o relato de uma língua indígena que se perdeu (a “língua do passado”, a “única capaz de nomear Deus”). Na medida em que a voz e fala da segunda parte ecoa de outra forma a fala da primeira parte, ela se apresenta como
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narrativa em abismo. A segunda parte é um contexto expandido da primeira parte. É uma expansão possível, da narrativa, que clama pela competência do leitor em ouvir a expressão de consciências acossadas. Estas consciências – seja o estudante de chinês, seja a delegada de polícia – recorrem ao repertório fornecido pelos noticiários – mídia jornalística televisiva ou de outro meio – e os “segredos profissionais” da polícia. No terceiro e último capítulo, tudo o que foi narrado é colocado em dúvida novamente. O estudante de chinês continua seu depoimento cansativo, impertinente, e fala sobre o que ouviu pela divisória, mas o delegado nega a existência da tal delegada e da conversa. Nesta segunda narrativa em abismo despontam as dúvidas maiores que põem o real em questão (a saber, a primeira e a segunda parte). A delegada existe ou não existe? Todos os detalhes do relato são fruto da imaginação doentia do estudante de chinês? Ou do leitor? Ou da delegada que existiria, mas que fantasia o real? A própria matéria do livro fala sobre a proliferação maníaca da informação – que se afirma e desafirma a cada minuto. O real é posto em dúvida porque se apresenta incompatível com o campo dos desejos, ou serão os desejos que criam realidades incompatíveis com o mundo? O recurso ao narrador em primeira pessoa permite que os acontecimentos narrados sejam filtrados a partir desse olhar subjetivo que cola, em maior ou menor medida, à historia nacional, ou melhor, a uma versão particular da história local, com irradiações para a história nacional. A oscilação entre realidade e irrealidade, entre caminhos desencontrados entre bem e mal, entre o que interessa ao sujeito e o que destrói o outro, entre memória e apagamento da memória, parece corresponder ao que marca a literatura não periférica do presente. É uma literatura de dupla injunção, decorrente da hesitação permanente entre pontos de vista contrários e mesmo contraditórios. Qual a projeção disto para o futuro nacional e latino-americano? A projeção dependerá do tempo, do momento, do território e, nestes, de qual lado terá maior penetração e força. Será o lado negativista, ou o lado que aponta para a positividade, conforme o desejo e empenho na transformação do mundo e em abrir caminhos para os excluídos? Acredito
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que o impasse persistirá, que haverá expressões paradoxais de dupla injunção, porém abrindo uma brecha maior para a positividade, já que a periferia tende a crescer e a fazer ouvir sua voz. A voz clama pela inclusão, em uma literatura que usará recursos literários eventualmente semelhantes aos conhecidos e praticados ao longo das últimas décadas. Os autores aproveitarão sugestões de obras caras a eles, ou serão estimulados por obras com postura ideológica que variará, tendendo para o registro da injustiça, da dor, da crueldade, da violência – mas abrindo-se para a esperança. É importante levar em conta que a tendência, em todos os países da América Latina neste início do séc. XXI, é a da independência com relação às obras propostas em outros continentes. Esta independência fica mais facilmente assegurada pela convergência de algumas ferramentas globalizadas como a mídia, a internet, as redes sociais; e a economia, gerida por grandes conglomerados, que levaram à confirmação de certos conceitos que foram sendo gestados a partir da década de 20 do séc. XX: “a antropofagia”, que equivaleu à “transculturação” e “o hibridismo”; a “marginalização”, a “hierarquização”, as “minorias excluídas” que sublinharam a “alteridade” (conce itos discutidos por Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Silviano Santiago, Eduardo Galeano, Octávio Paz, Darcy Ribeiro, Antonio Candido, Paulo Freire, Celso Furtado, Roberto Schwarz e outros, em diferentes épocas, por diferentes vieses e através de matizes contrastantes, cf. proposto por Thomas Bonnici). Corresponderia a dupla injunção observada por mim à “visão dupla, à revelação da ambivalência do discurso colonial” que “subverte a autoridade desse mesmo discurso”? (BHABHA, 1998: 88). O duplo observado na narrativa em abismo de Carvalho ecoaria a ideia de “quase-identidade do sujeito colonial com o sujeito dominante” (descrito por Bhabha como “quase o mesmo, mas não é branco”)? Neste caso, a cultura que sublinha esta duplicidade imperfeita, o reconhecimento dos becos sem saída de tramas diversas teria força subversiva. Caberia aguardar os efeitos dessa força, tanto na literatura como na realidade.
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Benedicto Monteiro e Pablo Armando Fernández: por uma poética da cor Tânia Sarmento-Pantoja
RESUMO: No romance Los ñinos se despiden (1968), do cubano Pablo Armando Fernández, e nos romances do brasileiro Benedicto Monteiro – Verde vagomundo (1972), O Minossauro (1975), A terceira margem (1983) e Aquele Um (1985) – é possível perceber a presença de uma poética da cor, capaz de estender a significação dos nomes. Fredric Jameson (1994) demonstra que o manuseio da cor está ligado ao realismo mágico. Além de apresentar características do realismo mágico, o romance de Fernández também pertence ao cânone do romance do boom. Sem perder de vista esses aspectos o presente estudo busca estabelecer um diálogo entre o romance do boom e a produção do escritor brasileiro, favorecendo a presença dessa poética da cor. PALAVRAS–CHAVES: Romance. Cor. Benedicto Monteiro. Pablo Armando Fernández RESUMEN: En la novela Los ñinos se despiden (1968) del cubano Pablo Armando Fernández y en las novelas del brasileño Benedicto Monteiro – Verde vagamundo (1972), o Minossauro (1975), A terceira margem (1983) e Aquele Um (1985)– es possible notar la presencia de una poética del color, capaz de ampliar el significado de los nombres. Fredric Jamenson (1994) muestra que ele manejo del color está vinculado al realismo mágico. Además de presentar las características del realismo mágico la novela de Fernández también pertence al canon de la novela del boom. Sin perder de vista estos aspectos, ele presente estudio pretende estabelecer un diálogo entre ele romance del boom y la producción de escritor brasileño, favoreciendo la presencia de esta poetica del color. PALABRAS–CLAVE: Novela, Color, Benedicto Monteiro, Pablo Armando Fernández Universidade Federal do Pará ( UFPA)
131 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.25, 2014 Contra a uniformização da arte e a favor de uma utopia renovadora Benedicto Monteiro é autor de uma tetralogia composta pelos romances Verde vagomundo, O Minossauro, A terceira margem e Aquele Um. A tetralogia narra a história de Miguel dos Santos Prazeres, também conhecido pelas alcunhas de Cabra–da–Peste ou Afilhado do Diabo, contada por ele mesmo a quatro diferentes interlocutores: a um Major em Verde vagomundo(1972)1, a um Geólogo em O Minossauro (1975), a um Geógrafo em A terceira margem (1983)2 e ao autor em Aquele um (1985)3. O último livro da série, Aquele um, compreende, com algumas alterações, a síntese do relato do ribeirinho, que consta dos outros romances. Em razão dessa constituição o conjunto pode ser compreendido verdadeiramente como trilogia e não como uma tetralogia. Há inúmeros elementos próprios da cultura amazônica presentes no conjunto dos romances monterianos. Tal condição evoca a inscrição do maravilhoso com base em referências que dialogam diretamente com a matéria lendária e mítica, bem como indicam relações com as religiões de origem afrodescendente, ou mesmo, a outras manifestações místicas pagãs que ainda subsistem na Amazônia, como a pajelança4, considerando que para fugir à perseguição de uma Companhia Militar recém chegada à cidade de Alenquer e que presume ser o ribeirinho um subversivo, Miguel dos Santos Prazeres desaparece e esse sumiço sem vestígios é compreendido pela população da cidade como resultado de um encante. O encante tal como referido na trilogia, tem relação com as chamadas encantarias visíveis e as encantarias invisíveis (CASTRO, 1997, p.84–85). As primeiras relacionam-se a objetos – geralmente ocorrências geográficas – de existência material, mas considerados mágicos, enquanto as segundas compreendem objetos, seres humanos ou ocorrências geográficas, cuja existência restringe–se ao relato de um mito. Na gramática dessa forma de encantaria, a possibilidade que melhor se aproxima dos elementos aludidos em A terceira margem é aquela em que, antes de se transformar em um
__________________ 1 A edição de Verde vagomundo aqui utilizada é a de 1991. 2 A edição de O Minossauro aqui utilizada é a de 1990. 3 A edição de Aquele Um aqui utilizada é a de 1995. 4 Refiro–me especialmente a umbanda, em que é comum a existência de famílias encantadas. Na pajelança, o encantamento de animais e mesmo de seres humanos constitui–se em uma das bases de sua teologia.
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_______________________ 5 Ilustrativo dessa possibilidade é o processo de encantamento do rei português D. Sebastião, provavelmente morto durante a Batalha de Alcácer– Quibir e passando para a História como o “Encoberto”; o fato do corpo do soberano nunca ter sido encontrado, uma vez associado a outros fatores de ordem cultural e histórica, levou–o a ser transformado em um encantado, dando origem não só ao movimento milenarista conhecido como sebastianismo, mas também a apreensão do relato de sua existência - já metamorfoseado em mito por segmentos religiosos afro-brasileiros, especialmente nas linhas de umbanda mina e nagô, difundidas no Pará e no Maranhão. 6 Em O Minossauro há pistas mais concretas do possível encantamento de Miguel, especialmente quando o ribeirinho assimila qualidades tidas como mágicas, de determinados elementos da natureza na Amazônia, como é o caso do boto.
encantado, o objeto do encantamento comumente usufrui uma primeira existência concreta, com o processo do “encante” ou de “encobertamento” se realizando após o mesmo ser enredado em eventos ligados a uma experiência violenta, em que o suporte físico do objeto desaparece de maneira imprecisa e/ou incompreensível5. O apagamento do corpo que se verifica numa situação como essa, sem dúvida, implica uma transcendência em relação à vida material, à História e à morte, a partir da assunção de um estado em que o humano cede espaço ao supra–humano. Na constituição de Miguel há tanto o evento violento – um incêndio seguido da perseguição por parte de uma Companhia Militar – quanto o sumiço enigmático para outra margem da existência. Antes de continuar, devo esclarecer que o destino do ribeirinho é, de certa maneira, revelado em O Minossauro, mas na perspectiva das personagens de A terceira margem, pouco se sabe a respeito. Essa aura de mistério que transita no entrecho entre uma narrativa e outra é o que define e fundamenta a sugestão do encantamento 6. Vejo esses elementos como referenciais de uma proposta poética, em que certas matérias historiográficas trazidas até a ficção não se constituem apenas de um conjunto de depoimentos, documentação de época ou da hermenêutica dos fatos – a rigor, igualmente bem representados no romance – mas margeada pelos aspectos culturais, especialmente quanto à matéria provenientes do imaginário popular e no qual, sem dúvida, há repercussões de estratos religiosos ou de natureza mítica e lendária. Com isso, a narrativa tende a valorizar elementos que permanecem à margem da cultura dominante. E mais: do mesmo modo, o encante funciona como solução estética para registrar a existência de Miguel não só à margem de todos os elementos que moldam a modernidade tal qual a vivida no interior das sociedades capitalistas, mas igualmente, a modernidade aplicada a um território marcado pela espoliação e a violência, essa muitas vezes promovida pelo Estado autoritário, a partir de seu braço militarizado – e representado nos romances pela face panóptica e pelas ações violentas da Companhia Militar
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que invade Alencar. Nesse sentido o desaparecimento de Miguel vem colar–se também à experiência da clandestini dade, tão comum aos que lutaram contra os regimes autoritários que assolaram a América Latina no período em os primeiros romances de Monteiro são publicados. Realidade histórica e realidade maravilhosa se interpolam formando o tecido ficcional. Desse modo, o processo de encante sofrido por Miguel pode ser visto também por seus traços estritamente literários e considerando a forma como se manifesta em A terceira margem, não se pode desjungi-lo do tema da viagem fantástica. Com vistas a essa correlação, importa observar que há outras características no ribeirinho que reforçam tal perspectiva de leitura. Uma delas é uma postura malandra de quem vive e pensa com certa gratuidade, segundo princípios próprios, e não conforme aqueles rigidamente convencionados. Além disso, depois de sumir nas labaredas do incêndio que provoca em Alenquer, como mostra a narrativa do primeiro romance, Miguel abandona a cidade se tornando um “ubíquo rioandante” (MONTEIRO, 1983, p.85) que se recusa a escrever seu nome e a receber um número que o identifique burocraticamente, como portador de documentos. Tal postura singular valoriza o nomadismo, não como meio, mas como modo de vida. Nessa perspectiva, compreende–se o seu nomadismo como modulação de uma espécie de errância que abre o indivíduo não apenas à pluralidade mas, sobretudo, às formas de domesticação, algo que, no relato de Miguel, é representado pelo mundo que deixa “de ser todo na mesmíssima linha” e passa a ser narrado “por viagens” (MONTEIRO, 1983, p. 33). Essa condição faz desse protagonista sem dúvida um viajante, um derivante, um flaneur, a transitar não pelas ruas das metrópoles modernas, mas pelo labirinto dos rios, tornando–se entre tantas outras possibilidades o Minossauro: ser híbrido, anômalo, monstruoso, criminoso. Um bandido no sentido corrente no recente pensamento italiano – bandito/ banditismo – mobilizador de ações contrárias as autoridades constituídas, ao avançar de algum modo contra pessoas, contra valores instituídos e estandardizados ou a propriedade.
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Essa vida feita por viagens, em última instância, me faz pensar que a condição de viajante aventureiro a qual o ribeirinho se entrega liga–se igualmente à lógica da viagem fantástica, aqui definida como “sucessão de eventos fantásticos ou maravilhosos, ocorridos dentro de uma progressão no tempo e no espaço, e testemunhados por personagens que tendem a se manter, de um evento a outro” (CAUSO, 2003, p. 77). Finalmente, não se deve esquecer que a idéia pós– modernista da “viagem sem destino”, que exprime a “vastidão do espaço e a inutilidade do esforço humano, tornando o uso da palavra diferente do seu uso modernista” (FOKKEMA, s/e, p.77), insere-se em A terceira margem. Aqui, além de a narrativa inscrever-se em viagem como maneira de abarcar a reflexão sobre o percurso da escritura e/ou leitura, o tema da viagem enxerta um viés hedonista, na medida em que é o gozo que a constitui: prazer pelo gozo sexual e prazer erótico em “gozar tudo o que tem na natureza”, de acordo com as palavras de Miguel (MONTEIRO, 1983, p. 127), prazer esse nascido de uma relação com a territorialidade que se faz especialmente pela visão, e mediado por uma especial percepção das cores, conforme se verifica mais adiante. Esse hedonismo reserva ao ribeirinho um mundo à parte, a “praia branca” em que ele finalmente aporta após passar por uma espécie de morte mítica, a partir da imagem epifânica finalizadora do romance. Essas são linhas de força presentes no romance monteiriano, que em regime de intertextualidade, especialmen te pela via do pastiche realiza apropriações voltadas às dimensões culturais, consumando desse modo um interessante diálogo com outras produções, nesse caso a ficção de João Guimarães Rosa, em quem Monteiro vai buscar especialmente a composição do homem derivante, tal como pode ser visto nas andanças da jagunçagem no romance Grande Sertão:Veredas e na figura insofismável do pai rio-andante no conto A terceira margem do rio. Vale dizer que o pastiche tal como manuseado por Monteiro não se restringe à simples ornamentação ou homenagem pela imitação do outro. É pastiche como suplemento ao outro e, portanto, repetição com diferença. Monteiro se apropria, retoma, até mesmo repete figuras caras à produção de Guimarães Rosa e as recoloca em outro universo cultural, antropológico e histórico, o amazônico. Faz desse modo uma espécie de dobra da língua, de dobra da escrita e assim reelabora essas figuras.
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Desse modo, penso, como base em Deleuze em seu ensaio sobre a “literatura menor” que Monteiro reelabora as máquinas expressivas presentes em Rosa e no boom, assim como elementos da experiência pessoal do escritor voltadas as suas atividades políticas7, bem como aspectos oriundos das vastas matérias historiográficas sobre a Amazônia, em particular aquelas em que ganham destaque o autoritarismo e a espoliação, representados pela grilagem, pela exploração, pela presença de sicários de toda ordem, empoderados, em detrimento dos indivíduos invisibilizados: indígenas, ribeirinhos, quilombolas, campo neses, mestiços. Ao considerar esses aspectos o principal argumento a ser defendido neste estudo é o de que a série também estabelece diálogos com o romance do boom latinoamericano, não somente porque os primeiros romances da trilogia são contemporâneos do boom, mas, sobretudo pela presença de vários parâmetros caros a esse movimento. Para dar conta desse argumento considero, entre outros aspectos, a dimensão utópica presente no ideário do boom, além da surpreendente semelhança entre a série de romances de Monteiro e o romance do cubano Pablo Armando Fernández, intitulado Los ñinos se despiden (1968), tanto pelo uso comum de artifícios formais, quanto por certas dimensões culturais trazidas à escrita, como procuro mostrar adiante. A título de provocação analítica essa semelhança servirá para privilegiar algumas observações acerca da presença de uma poética da cor nos romances de ambos. Contra a uniformização das cores e a favor de um homem novo O boom desenvolveu–se entre os anos 60 e 70 e se concentrou em destacar dimensões políticas e sociais em consonância com circunstâncias históricas presentes em quase toda a América Latina, relacionadas à instauração de regimes de exceção. Para Felipe de Paula Góis Vieira (2001) o boom precipita os escritores latino–americanos na condição de intelectuais particularmente sensibilizados pela revolução cubana, pelo menos nos momentos imediatamente posteriores à revolução. Os acontecimentos em Cuba reforçavam nesses escritores a possibilidade de
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que a exploração do homem pelo homem fosse interrompida. Essas condições certamente consolidaram no projeto ético e estético do boom uma dimensão utópica expressa especialmente pela crítica aos mecanismos de exploração do homem e pelas repercussões de uma paisagem que clamava por ser narrada, porém, não mais pelas formas convencionais de captura e reelaboração da realidade. Nesse percurso, o boom acolheu uma forma diferenciada de tratamento da realidade, como “resposta ao realismo e ao naturalismo de finais do século XIX e começos do XX, dando prioridade ao uso de elementos mágicos e fantásticos na narrativa" (GIRALDO,2007, p.188) e pela disposição em ver a partir de outros prismas estéticos o trabalho (e o manuseio) da máquina sensorial ligada à percepção. Ao analisar a atuação de Julio Cortazar diz Vieira: Para Cortázar, assim como para os outros expoentes do boom hispano–americano, o papel revolucionário da literatura estaria no enriquecimento do real. O texto literário seria responsável por criar uma sensibilização popular, uma conscientização cada vez maior diante do contexto histórico latino-americano. O escritor deixa claro que seu discurso é significativo para a sociedade e que sua missão, ou a missão de todos os intelectuais latinoamericanos, seria a de alimentar o espírito revolucionário na sociedade da América Latina. (VIEIRA, 2001, p.11)
Para dar vazão ao meu argumento a respeito do diálogo entre aspectos encontrados no boom e a produção monteiriana, cito igualmente Marina Leiva Waquil: O boom não foi um movimento consciente, uma reunião de escritores pensada e organizada para gerar os resultados que gerou. Foi, sim, um momento, foi obras de destaque publicadas em uma mesma época, foi uma aproximação através de um ponto de vista político em comum, foi a literatura latino-americana chamando a atenção. (WAQUIL, 2014, p. 55)
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Ressalto ainda que as suas repercussões em todo o território latino-americano e as filiações que se seguiram se devem, sobretudo, em função da reorganização do campo literário nesse território e pelo estímulo às traduções. É pela tradução que o boom ganha o mundo (WAQUIL, 2014, p.56), inclusive no interior da América Latina não falante do espanhol, particularmente no Brasil. De fato, nas décadas de 60 e 70, os anos do boom, ainda há um predomínio da circulação de traduções de romances de língua inglesa no Brasil, mas já temos notícias de fortalecidas inserções hispano–americanas em território vernáculo, em especial Borges – traduzido por Carlos Nejar. Nesse percurso é imprescindível uma chamada de atenção relativa ao trabalho tradutório desenvolvido por Haroldo de Campos, que traduziu, a partir de 1968, Lezama Lima, Severo Sarduy, Julio Cortázar e Octavio Paz, numa constelação de hispano–americanos 8. Essas traduções de Campos foram primeiramente publicadas em periódicos e posteriormente em livros, com exceção dos poemas de Paz. E se deram “graças ao contato que Haroldo teve com editores, os quais sempre confiaram em seu conhecimento permanentemente atualizado e em sua apreciação certeira e antecipadora da literatura estrangeira” (ANDRADE, 2010, p. 43). Para Gênese Andrade as aproximações com os hispano-americanos foram preponderantes na constituição das vertentes criativas de Haroldo de Campos, com base em uma convergência de pensamentos – os dele com os dos hispano-americanos em tela – nucleanizados, de acordo ainda com Gênese Andrade, em torno de uma linhagem mallarmeana. Se por um lado, a dimensão utópica própria do ideário do boom se faz cintilar no projeto estético de Benedicto Monteiro, por outro, as semelhanças entre a série de romances de Monteiro e o romance de Pablo Armando Fernández, Los ñinos se despiden, se estabelecem em função de ambas as produções constituírem um diálogo intenso com as culturas de onde emanam e por privilegiarem o uso comum de artifícios formais, em particular, o manuseio de uma espécie de poética da cor, correspondente à percepção do espaço geográfico e cultural. Essa proximidade sugere o
_________________ 8 Segundo Gênese Andrade foram 12 o total de escritores hispano-americanos traduzidos por Campos.
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diálogo de Monteiro com vários aspectos presentes no boom. Dentre os quais destaco o aporte em uma linguagem baseada no indiciário e na sobreposição e a fusão de elementos vocabulares, com o claro interesse de expandir o signo e a sintaxe valendo-se da suplementação. Processo que se faz presente justamente pela via dessa poética da cor, como ocorre no seguinte fragmento do romance O Minossauro: Eu na minha égua branca levando meu terçado 128, era um rei. Começamos enfrentando as cores mais bravias. As armas do meu padrinho nada podiam contra as cores que medravam. Eu, com meu terçado 128, ainda podia dividir os galhos. Cortava folhas enormes, cipós movente e terríveis raízes flutuantes. Fazia atalhos. Conforme as cores, meu terçado Luzia e reluzia ao vento. E cortava espaço e tempo. Atalhava as sombras antes de se transformarem em cores vivas. Os verdes dessa batalha tomavam as formas mais horríveis.Verde–ficando–negro; verde–ficando–roxo; verde– ficando–vivo–como–sangue; verde–ficando–sombra–como– amorte;verde–queimando–como–fofo–entrando–pelosolhos O verde–febre, febre alta, não é como o verde–folha, o verde–água, o verde–terra, o verde–sombra, o verde–mata, é verde–quente–em–ar–tremeluzente,verde–corrente–de– corrente–elétrica, verde–relâmpago–de–raio,verde–fervura– passando–pelo–músculo,verde–queimando–como–fogo– ardente,verde–ardentecomo–luz–queimante–entrando–pelos –olhos–; verde–vidro–refletindo–sol–em–brasa,verde–em– água–fervente–passando–pra–fumaça; verde–duro–e– liso–como–limo–e–aço;verde–enchendo–todo–espaço;verde –frio–como–pedra–negra, verde–frio–como–febre–alta;verde –como–carga–elétrica–passando–pelos–nervos;verde–cortante –como–carga–e–raio; verde–sombra–envolvendo–tudo,verde –negro–como–dor–nos–ossos. (MONTEIRO, 1990,p.24)
E também em A terceira margem: Depois que eu vi que a água, a noite e o céu estavam por todos os lados, compreendi que as duas margens, nessas horas, deviam de estar pra muito além dos horizontes. Não havia lua nem estrelas nessa noite que me dessem o rumo da intensidade. A água também estava lisa, parada, verdenegra, verde-prata, verde-cinza, verde-noite, negra e branca espelhante (MONTEIRO, 1983, p. 188).
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Nesses dois fragmentos as cores exercem a função de dizer o indizível, em uma tentativa de apanhar o indizível e de fazê–lo significar. Trata–se de um devir– cor com efeito absolutamente nonsense para a linguagem. Esse processo implica o desvelamento dos vestígios que estariam habitando as coisas enquanto fósseis. Nesse sentido, o verde não é apenas o verde, mas um verde habitado por outros matizes, por outras sensações (indescritíveis) e até mesmo afetos, capazes de serem vistos no verde. O desdobramento da palavra – e do signo – também se realiza com precipitações entre a palavra “verde” (cor) e “verde” (ato de ver na forma do infinitivo pessoal) e assim estabelece uma espécie de clorofilia da existência. O signo primário, “verde”, sofre mutações na sua significação e igualmente altera os signos que vem se colar a ele, provocando uma espécie de transe na linguagem estabelecida. A seguir apresento mais um fragmento de O Minossauro em que é evidente o jogo com as cores como artifício literário – agora com cor amarela, relacionado a uma forma de dar a ver o mundo: amarelo–laranja, amarelo–ouro, amarelo–sol, amarelo– fogo, amarelo–luz, amarelo–água, amarelo–água–barrenta, amarelo–flor, amarelo–flor–de–pau–d'arco, amarelo–pau, amarelo–palha, amarelo–palma, amarelo–palha–em–leque, amarelo–terra–aberta, amarelo–barro–úmido, amarelo– pasto–seco, amarelo–flor–de–mata–pasto, amarelo–onça, amarelo–papo–de–rifle–quarenta–e–quatro,amarelo–cobra amarelo–febre, amarelo–fresta,–amarelo–papo–de–jacaré, amarelo–papo–de–jacaré–açu, amarelo–cor–de–jacaretinga amarelo–papo–de–curica, amarelo–bico–de–curiaca, amarelo–bico–de–tucano, amarelo–pé–de–pássaro–preto, amarelo–canário, amarelo–japin,amarelo–passarinho–gito, amarelo–canário–verde, amarelo–verde (MONTEIRO, 1990, p. 45).
Sem dúvida, uma experiência como essa, baseada no voyeurismo, se encontra distante da opção por um realismo realista, no sentido mais lato da palavra realismo, aquela da “realidade” da experiência comum e se encaminha para um realismo antimimético voltado à mimesis não mais da realidade, mas da linguagem e constituída pela voz. Vale ressaltar que ao contrário da linguagem do indizível, também recorrente no século
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_________________________ 9 Opto aqui por manter a formatação presente na edição brasileira do ensaio de Jameson. 10 Na tradução de Ana Lúcia Almeida Gazolla: “[Sabanas era considerada a região mais cultivada e ilustre do país. Seuscampos tinham sido planejados de acordo com as estações, de intempestiva regularidade, e segundo as cores do solo, de ampla e variada gama, passando do branco mais puro ao preto carvão.Entre esses extremos podiam ser encontrados inúmeros tons e matizes de marron, rosa, púrpura, amarelo, verde, cinza, vermelho e azul. As pessoas se referiam ao cinza “fraco” ou “morto”, ao cinza “lânguido” ou “rico”, ao vermelho brilhante, vermelho tijolo, vermelho carne, vermelho púrpura, vermelho amarelado, vermelho pardo, vermelho açafrão,vermelhofogo,vermelho carmim, vermelho carmesin, vermelho escarlate, vermelho queimado,vermelho sangue e vermelho crepúsculo, e diferenciavam entre cores “salpicadas” e cores “jaspeadas”, entre “manchadas” e “marmóreas”, e a cada uma delas atribuíam específicas qualidades para certos tipos de colheita.]”
XX, calcada no choque, na fratura e no vazio, nos romances de Monteiro essa experiência se volta a uma busca de transformação e de plenitude para o ser, cujo fundamento está na forma como este ser se relaciona com seu entorno, com a paisagem que o envolve. Justamente nesse anseio reside uma das forças políticas do romance de Monteiro, na medida em que mescla uma estratégia artística que estimula o olhar emancipador direcionado à paisagem com outros ardis ficcionais – por exemplo, a integração da forma epistolar à narrativa do romance – que mobilizam referências historiográficas à presença do estado de exceção e de outras representações autoritárias no território amazônico. Avalio que estas experiências artísticas presentes na produção ficcional de Benedicto Monteiro são capazes de trazer para a arte uma dimensão política que transcende o engajamento, o que promove uma aproximação efetiva com as abordagens – formais e éticas – do boom. Com vistas a uma visitação mais rigorosa a essa possibilidade de leitura tomo um ensaio de Fredric Jameson, mais particularmente a citação que faz do romance Los ñinos se despiden, considerado por Jameson um grande representante do romance realista mágico, mas também localizado no cânone do boom. Ei–lo9: Considerábase a Sabanas como la región más culta e ilustrada del país 10. Por país entendíase a todo el territorio de Sabanas y a la serie de tierras circundantes, cuya extensión nadie e atrevía a conjeturar, pero que se extinguía al precipitarse en el mar. La siembra se planificó de acuerdo con las estaciones, de intempestiva regularidad, y según los colores del suelo, de amplia y variada gama, extendiéndose desde el blanco casi puro hasta el negro azabache. Entre estos extremos, se encontraban numerosos tonos y matices del pardo, rosado, púrpura, amarillo, verde, gris, rojo y azul. Se hablaba del gris “débil” o “muerto” y del gris “lánguido” o “rico”, del rojo brilhante, rojo ladrillo, rojo encarnado, rojo purpúreo, rojo amarillento, rojo pardusco, rojo gualda, rojo fuego, rojo carmín, rojo carmesí rojo escarlata, rojo quemado, rojo sangre y rojo atardecer, y se distinguían los colores “moteados” de los “veteados”, y los “manchados” de los “jaspeados”, y a cada uno de ellos se le atribuían cualidades específicas para ciertos cultivos.
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Jameson (1995, p. 159) ressalta que o trecho em questão “constitui o núcleo do momento em que Lila, um novo demiurgo, recria o mundo a partir do nada”. Esse ato de criação é essencialmente realizado a partir do manuseio da linguagem. É, sobretudo, a linguagem que se transforma e se expande pela criação de novas possibilidades relativamente à constituição das palavras, promovendo grande impacto sobre a percepção. No centro desse procedimento encontra– se a cor como núcleo de um processo tradutório. Sobre isso, vale à pena voltar à análise de Jameson: Tal texto verbal demonstra mais intensamente do que qualquer visual como a invenção passo a passo da cor diferente (e de seu nome) corresponde não somente a um despertar geral do próprio olho em relação à gama diferenciada do espectro como um todo, mas sim como se fosse uma chamada à vida de inúmeros e diferentes sentidos desvinculados, cada um dos quais é estimulado e despertado pela matriz específica do vermelho em questão. (JAMESON, 1995, p. 159)
Da mesma forma que nos romances de Monteiro Los ñinos se despiden também apresenta uma narrativa híbrida, autorreflexiva, rica em referências intertextuais, com uma estrutura de jogo com diferentes códigos e linguagens, com multiplicidade de vozes. Além de que, as dimensões do mito e a questão da identidade, considerados nucleares em Los ñinos se despiden são aspectos muito presentes na trilogia de Monteiro, especialmente em O Minossauro e A terceira margem. Constituída com base no paradigma da memória coletiva as recordações se apresentam em Los ñinos se despiden de acordo com o fluxo das coisas ao redor dos personagens: cores e formas, com predominância das primeiras. É, especialmente, essa jogata sinestésica com as cores o que procura transcender categorias genéricas, como, por exemplo, o “vermelho”, tal como acontece com o “verde” e o “amarelo” nos romances de Benedicto Monteiro. Para Jameson (1995, p.159) “alguma coisa dessa multiplicidade nova e imperfeitamente explorada de poderes perceptuais volta-se agora para as próprias palavras conferindo a cada uma delas um poder mágico incomum, no isolamento enfeitiçante de cada ato distinto de fala”.
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Ver KADOTA (2006).
É preciso salientar que para além de certos recursos formais Benedicto Monteiro também parece ter abraçado vários aspectos caros ao regime estético e ético do boom, em particular a premissa relacionada à necessidade de fazer confrontar as estandardizações, as prescrições de todo tipo, as palavras–slogans. Conforme o próprio escritor revela em entrevista (MONTEIRO Apud RICCIARDI, 1992) as palavras–slogans chegam “impressas e irradiadas, mas com suficiente violência para mutilar as formas e sugar a seiva das coisas vivas”. Para resistir a essa violência, segundo ainda o escritor, é necessário criar e reiventar novas palavras e novas formas de escrita. Essa posição de Benedicto Monteiro vem colar–se ao que pensava, por exemplo, Julio Cortazar, um dos maiores expoentes do boom. Em entrevista a Omar Prego, inserida no livro O fascínio das palavras, diz Cortazar: “É preciso destruir os moldes, os lugares comuns, os preconceitos mentais”11.Portanto, contra a uniformização da arte e a favor de uma utopia renovadora cujo núcleo ideológico apontava para a possibilidade de um homem novo, capaz de transformar a si e ao seu universo. Nesse percurso, a cor, nessa produção deixa de ser apenas tributária das artes pictóricas. Deixa de ser igualmente mera excentricidade criativa, na medida em que se encontra agregada ao projeto ético dos romances, sem perder de vista as implicações estéticas quanto ao uso da cor. De acordo com Lilian Ried Miller Barros, autora de A cor no processo criativo o maior obstáculo para a constituição de um conhecimento mais efetivo sobre a cor diz respeito à efemeridade, uma vez que a cor não pode ser: “considerada matéria (pigmento), já que depende da luz e dos nossos olhos para existir” (BARROS, 2009, p. 16). A cor seria mistura de matizes e sujeita à formação de círculos cromáticos. Essa compreensão esteve bem delineada, por exemplo, nos projetos dos integrantes da Bauhaus, movimento surgido na Alemanha em 1919 e proscrito em 1933 pelo governo nazista. A percepção de que a cor também pode ser pensada no interior de um processo comunicativo é o que leva a Bauhaus a inseri-la no centro de uma síntese estética que a compreende, sobretudo, como eixo de “integração de todos os gêneros artísticos numa linguagem sem fronteiras”
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(Barros, 2009, p.29). Com base nesse eixo a Bauhaus construiu a sua maneira uma utopia do novo em que a ordem social estava baseada na ideia de harmonia, capaz de transformar a humanidade. O imaginário artístico conforme refletido na Bauhaus é o que leva, por exemplo, Paul Klee a avançar na transformação da cor enquanto técnica artística. Wassily Kandinsky procede de modo semelhante ao pensar que a cor poderia proporcionar a “expressão de uma realidade interior, através da evocação das emoções, traduzindo–se numa linguagem universal que relaciona movimentos, temperatura e sons musicais” (Barros, 2009, p. 20). Em outras palavras seria possível narrar através das cores, não somente as cores em si, mas uma gama infinita de sensações, mesmo as supostamente inomeáveis ou intraduzíveis em palavras. As convicções oriundas da Bauhaus acerca dos manuseios da cor não ficariam restritas ao movimento. De fato, se expandiriam para outras práticas e circunstâncias históricas, para além do período entreguerras. Parece ser o que acontece com Los ñinos se despiden, que Frederic Jameson cita como exemplo do trabalho diferenciado com a cor em literatura, como consequencia de uma abordagem diferenciada do real. Narrativas que apresentam esse tipo de realismo revelam segundo Jameson uma “superposição articulada de camadas inteiras do passado dentro do presente”. Mas a realidade deslocada para essas narrativas não confluí para “uma descrição de “como as coisas são realmente””, mas é, sobretudo, um “discurso particular “sobre o que é” e “como deveria ser” (Barreto, 2014, p.35). Em razão desses aspectos, a percepção das cores, presentes em romances como os de Benedicto Monteiro e Pablo Armando Fernández ultrapassa a técnica do manuseio da cor como artefato artístico, resvalando para uma forma de ver a cor como possibilidade de representação de um conteúdo utópico ligado às formas como o território é percebido e por quem dele faz parte: liberdade para transcender, para fundar um novo homem, livre de qualquer forma de domesticação. Em Los ñinos se despiden, como bem demonstra Jameson, essa dimensão re–criativa compete à Lila. Monteiro busca igualmente essa possibilidade, na medida em que o protagonista de sua trilogia, Miguel dos Santos Prazeres, vai constituindo um devir baseado em uma experiência puramente viandante e nesse processo a
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percepção da paisagem ao redor de si torna-se um poderoso instrumento de autonomia e de emancipação. Para Roland Walter (2013, p. 25), no caso de Monteiro, esses elementos estão ligados a uma “memória biótica” que buscada na territorialidade termina por projetar no romance o mapeamento cartográfico, o sistema semiótico da linguagem e as respectivas imagens articuladas que permeiam essa cartografia. Desse modo, o verde abundante na floresta amazônica deve permitir a Miguel dos Santos Prazeres passar por uma espécie de renascimento fundado no prazer da percepção. Só com o gozo das coisas afetivamente experimentado pelo olho – e pelo olhar – Miguel deriva novas significações para esse verde e para outras cores, como se fosse o demiurgo do romance de Pablo Armando Fernández ao também manusear o vermelho ao redor de si. Ao derivar uma nova linguagem para as coisas Miguel dos Santos Prazeres experimenta na linguagem e pela linguagem a liberdade desejada para a existência. Essa experiência de um olhar errante é que o leva a outra margem. Lembro que para Maffesoli errância: "Em seu sentido mais estrito é um ‘êxtase’ que permite escapar simultaneamente ao fechamento de um tempo individual, ao princípio de identidade e à obrigação de uma residência social e profissional" (MAFFESOLIA, 2001, p.113). Nos romances de Monteiro, o domínio e o gozo da palavra são tão importantes para a ideia de liberdade quanto a errância. Miguel se torna um errante não apenas porque está sendo caçado por um Comando Militar, sobretudo, porque abriu mão de uma vida domesticada, regida pelo controle e pela expiação. Nesse sentido, a travessia da existência não se resume apenas à locomoção entre lugares e paisagens, é, de maneira especial, uma travessia na e pela língua: travessia que o ribeirinho faz na condição de desbravador que ilumina as coisas, no jogo com as palavras. No jogo com as cores que as coisas apresentam. Desse modo, para Fernandez, e mais ainda para Monteiro, a luz perpassa pela palavra. A palavra é luz, por isso a palavra é ser. São, portanto, por essas peripécias do olhar que Miguel constrói uma nova razão de viver. Miguel torna-se um novo homem porque passa a ver o mundo ao seu redor de uma perspectiva também diferenciada. Nesse sentido a expansão vocabular alcançada pelo romance realiza também um ato demiúrgico, com base na cor das coisas, voltado à transfiguração da existência.
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Benedicto Monteiro e Pablo Armando Fernández por uma...
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Normas da revista
Normaspara apresentação de artigos • Só serão aceitos trabalhos enviados pela internet para o endereço: revista@abralic.org.br • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser produzidos em MSWord 2007 (ou versão superior), com uma folha de rosto onde constem os dados de identificação do autor: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo), título e temática escolhida. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas e, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. • Após a Após a folha de identificação, o trabalho deve obedecer à seguinte sequência: –Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos); –Nome(s) do(s) autor(es) – Nome(s) do(s) autor(es) – à direita da página (sem negrito nem grifo), duas linhas abaixo do título, com maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla;
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- Resumo– a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10; – –Palavras–chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave; - Abstract – mesmas observações sobre o Resumo; - Keywords – mesmas observações sobre as palavras chave; –Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver; - Parágrafos – usar adentramento 1 (um); - Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração; –Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor; - Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10. –Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico. –Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e pagina(s).
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As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé. - Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa, bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda–se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários. - Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada.
ALGUNS EXEMPLOS DE CITAÇÕES
• Citação direta com três linhas ou menos [...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram–se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)
• Citação indireta [...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as consequências de certas linhas da poética drummoniana.
• Citação de vários autores Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, Borges, 1998; Campos, 1969).
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• Citação de várias obras do mesmo autor As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992).
• Citação de citação e citação com mais de três linhas Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148).
ALGUNS EXEMPLOS DE REFERÊNCIAS • Livro PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
• Capítulo de livro BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33.
• Dissertação e tese PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
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• Artigo de periódico GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37- 57, 2004.
• Artigo de jornal TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4.
• Trabalho publicado em anais CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95.
• Publicação on-line – Internet FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6 fev. 2009.
OBSERVAÇÃO FINAL: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).