Edição Nº 24 - Belém, 2014

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REVISTA BRASILEIRA DE

Literatura Comparada

Belém 2014


Diretoria

Abralic 2014-2015

Presidente

Germana Maria Araújo Sales (UFPA)

Vice-Presidente

Marlí Tereza Furtado (UFPA)

1° Secretária

Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja (UFPA)

2° Secretária

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1° Tesoureira 2° Tesoureiro

Maria de Fátima do Nascimento (UFPA) Fernando Maués (UFPA)

Conselho Deliberativo Membros Titulares

Marilene Weinhardt (UFPR) Luiz Carlos Santos Simon (UEL) Antônio de Pádua Dias da Silva(UEPB) Ana Cristina Marinho Lúcio(UFPB) Marisa Philbert Lajolo (Mackenzie) José Luís Jobim Salles Fonseca (UERJ) André Luís Gomes (UNB) Alisson Marcos Leã o da Silva (UEA)

Membros Suplentes

Diógenes André Vieira Maciel (UEPB) Humberto Hermenegildo de Araújo(UFRN)

Conselho Editorial

Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Maria Helena Bonita, Raul Antelo, Silvano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel. ABRALIC CNPJ 91.343.350/0001-06 Universidade Federal do Pará ( UFPA) Instituto de Letras e Comunicação (ILC) Rua Augusto Corrêa, 1 - Guamá Rua Augusto Corrêa, 1 - Guamá CEP: 66075-110 Belém PA E-mail: revista@abralic.org.br


REVISTA BRASILEIRA DE

Literatura Comparada

ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp.

BelĂŠm

n.24

p. 1-196

2014


2014 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão porescrito.

Editora Comissão editorial

Marlí Tereza Furtado, Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja Germana Maria Araújo Sales Marli Tereza Furtado Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja Mayara Ribeiro Guimarães Maria de Fátima do Nascimento

Revisão

Marli Tereza Furtado, Maria de Fátima do Nascimento

Editoração

Samantha Andrade de Araújo

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Belém: Abralic, 1991v.1, n.24, 2014 ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada. CDD 809.005 CDU 82.091 (05)


Sumário

Apresentação Márcio Seligmann-Silva

7

Artigos

Tradução poética xamanismo transversal: correspondência entre Llansol e Baudelaire Álvaro Faleiros

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Ecos do simbolismo- decadentismo no diário carioca o País (1890- 1892) Álvaro Santos Simões Junior

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Notas sobre a noção de "fronteira" de Boaventura de Sousa Santos e a trilogia Os filhos de Próspero, de Ruy Duarte de Carvalho. Anita Martins Rodrigues de Moraes

O chamado elemento servil nos Estados Unidos da América e no Brasil: dois momentos de representação literária Hugo Lenes Menezes

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Euclides da Cunha e banalidade do mal. Por uma literatura comparada às avessas João Cezar de Castro Rocha

Vita brevis sobre imagens e paisagens da Amazônia: a passagem do geográfico-político para o espaço imagético Luís Heleno Montoril del Castilo

78

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Literatura e tradução: descontinuidades na ficção do outro Mauricio Mendonça Cardozo

108

Traduzir o outro traduzindo a si próprio: Ana Cristina César e o exercício tradutório Mayara Ribeiro Guimarães

126

A História da Literatura pede passagem Regina Zilberman

142

Escritas da vida: narrativas culturais Rosani Úrsula Ketzer Umbach

159

“A hora e vez de Augusto Matraga”, entre a antropologia e a

literatura Sílvio Augusto de Oliveira Holanda

Normas da revista

172

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Revista Brasileira de Literatura Comparada Nº24 Fluxos e Correntes da Literatura Comparada Apresentação Márcio Seligmann-Silva Na proposta dos organizadores deste número da Revista Brasileira de Literatura Comparada no. 24, consta que os artigos aqui reunidos devem incluir os “desvios” do método e destacar “o movimento de investigação de novos fluxos de sentido e lugar, próprio da Literatura Comparada, que propicie o acesso a novos modos de organização do sensível a partir das relações entre a literatura e outros campos do saber”. A proposta não poderia ser mais bem-vinda, já que no Brasil, mesmo após quase três décadas da revolução ocorridas nas Humanidades com o nascimento dos Estudos Culturais, nossos departamentos de Letras ainda se encontram por demais grafocêntricos e submetidos ao cânone. A “virada imagética” (pictorial turn ) tampouco faz-se sentir de modo substancial em nossos cursos. Mas aqui e ali vemos pesquisas inter e transmidiáticas, surpreendemos trabalhos que lançam mão de métodos que entrecruzam autores e procedimentos que provêm de diferentes áreas, vemos a quebra do cânone e a abertura para outros discursos “marginais”, orais, imagéticos e escritos, fertilizando assim a Literatura Comparada com novas ideias e objetos. Esses estudos devem ser incentivados e essa proposta da Comissão Organizadora do XIV Congresso da ABRALIC é uma decorrência desse fato. Ela está atuando enfaticamente para expandir esses novos estudos. Os ensaios aqui reunidos são, como não poderia ser diferente, muito heterogêneos e apontam para diferentes estratégias de expansão e aprofundamento dos estudos na Literatura Comparada. Apresento aqui um resumo crítico de cada um deles, procurando destacar o lado positivo dos

textos e as suas potencialidades. Álvaro Faleiros, estudioso do em nosso contexto


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importantíssimo campo dos estudos da tradução, introduz o conceito de “xamanismo transversal”, do antropólogo Eduardo Viveiro de Castro, para estudar a especificidade das traduções que Maria Gabriela Llansol fez das Flores de Mal de Baudelaire. Essas traduções não se deixariam reduzir à conhecida dicotomia (lembremos de Jakobson) metonímia/metáfora, que Faleiros repagina com Viveiro de Castro na dicotomia sacrifício/totemismo. O “desequilíbrio perpétuo entre os sistemas de forças e sistemas de formas em que se articula”, que marca essas traduções, apontaria para a noção de “xamanismo transversal”, caracterizada, segundo Viveiro de Castro, pela “comunicação entre termos heterogêneos”. Essa proposta de leitura de Faleiros é muito promissora e valerá a penas enfrentar agora uma abordagem teórica especificamente voltada para confrontar essa proposta de interpretação das relações culturais na chave do xamanismo transversal com outras propostas de leitura da operação tradutória, como as de Walter Benjamin e de Haroldo de Campos (como se lê em outros ensaios desse número). Nesse caso, os dois também apostavam no desequilíbrio e na insuperável heterogeneidade entre os dois pontos cardinais da transformação tradutória. Já a contribuição da Álvaro Santos Simões Junior trata sobretudo dos artigos dos correspondentes do jornal carioca “O País”, como Pinheiro Chagas e Xavier de Carvalho, e mostra como o simbolismo e o decadentismo entraram no Brasil em parte devido a esses artigos no início dos anos 1890. O interesse no artigo, no contexto deste número, está em valorizar as abordagens mais filológicas que permitem sempre, com novos materiais levantados, rever a história da literatura. Não por acaso temos falado tanto de arquivos ultimamente, em uma cultura como a nossa na qual a memória e seus dispositivos de arquivamento vem sendo remodelados de modo vertiginoso. A leitura

triangular Portugal,

que o autor propõe, cruzando Brasil e França, é particularmente

interessante para se estabelecer o regime constante de trocas intercontinentais de ideias. Mais abaixo veremos que Regina Zilberman abordará também a necessidade de uma historiografia crítica da literatura, para além das leituras lineares e antropomórficas herdadas


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do romantismo. Anita Martins Rodrigues de Moraes propõe em seu artigo um enfrentamento crítico, eu diria urgente, da noção de “fronteira” desenvolvida pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos. A autora apresenta a construção desse conceito em Santos, associada nesse autor a uma crítica da razão imperialista ocidental. Santos deriva dessa crítica uma noção positiva de “fronteira”, que ele associa tanto ao que teria sido um tipo diverso de colonialismo praticado pelos portugueses, marcado por uma maior identificação e mistura com os colonizados, como também liga às culturas do sul. A partir de uma leitura da trilogia Os filhos de Próspero, do escritor angolano Ruy Duarte de Carvalho, na qual a noção de fronteira também desempenha um papel fundamental, Moraes leva a cabo uma importante crítica da tentativa da parte de Santos de edulcorar a violência do colonialismo português. Moraes mostra como os conceitos podem e devem ser constantemente revistos criticamente à luz de uma análise mais detida das obras literárias. O diálogo com a Sociologia mostra-se aqui como uma via de duas mãos: os Estudos Literários podem contribuir de modo fundamental para a revisão crítica de conceitos dessa disciplina. Hugo Lenes Menezes apresenta o que chama de “diálogo” da obra A escrava Isaura , de Bernardo Guimarães, com A cabana do pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe. Nessa conversa, vemos como cada obra a seu modo foi cúmplice dos preconceitos racistas de sua época, mesmo se a intenção panfletária abolicionista seja inegável em Guimarães. Digno de nota é a observação acerca do funcionamento do dispositivo identificatório na obra de Guimarães: ele produz compaixão para com a escrava branca, mas não para com a negra, a mucama Rosa. Assim se reproduziam de modo quase corpóreo e inconsciente os estereótipos raciais da época (que, em parte ainda, são reproduzidos até hoje por Hollywood...). No artigo de João Cezar de Castro Rocha lemos um enfático plaidoyer a favor de uma literatura comparada às avessas. Com essa expressão, Rocha indica a necessidade


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de aprendermos a ler não só, como temos feito há décadas, as ressonâncias, inspirações e ecos, das literaturas produzidas nas metrópoles, sobre a brasileira, mas também no sentido contrário. Afinal, também autores das metrópoles leram e “inspiraram” da nossa literatura. O ar circula globalmente, mesmo se o autor escreve em português e no hemisfério sul! No texto, o autor lembra vários casos de inspiração metropolitana a partir da obra Os sertões , de Euclides da Cunha. O importante também é que circular nessas leituras apropriadoras implica também ler com novos olhos esse clássico nacional. Trata-se do jogo especular de aprender a se ver a partir dos olhos e da posição do “outro”. Por exemplo, com a leitura de Ángel Rama percebemos, destaca Rocha, que “Euclides teria dado forma ao dilema estrutural da constituição das sociedades latino-americanas”. Já na leitura que o autor faz do romance de Sándor Marai, Veredicto em Canudos , Rocha desperta para o fato de que a guerra de Canudos em Euclides é uma verdadeira antecipação dos genocídios do século XX. Com razão ele vai a Hannah Arendt e recupera seu importante conceito de “banalidade do mal” para reler a obra euclidiana. Percebemos que toda a inscrição da violência na literatura do século XX deve ser lida de modo sistêmico, como parte de um movimento político globalizado, no qual elementos locais se somavam para determinar o desdobramento de uma violência genocida. Euclides da Cunha também é personagem central do artigo de Luís Heleno Montoril del Castilo. Esse trabalho propõe-se a enfrentar o trabalho fascinante, mas não menos árduo, dada a sua dimensão, de esquadrinhar o processo de construção de imagem da Amazônia. Ele visa apresentar a imagem sublime, e inapanhável , de uma Amazônia feita de sonhos, ficções, descrições (avant le regard e não avant la lettre ), medos e expectativas. O autor cita uma série de autores que compõe esse universo de inventores da Amazônia imaginária, espaço de projeções paradisíacas e infernais, como Jean Soublin, R. Osterweis, Renaud Berton, M. Viale, Jérôme Camut, Patrick Agot, Roger Chauveau, Oswald Ballarin, entre outros. Mas ele se dedica a apresentar duas obras: A jangada, de Júlio Verne e “JudasAhsverus”, de Euclides da Cunha. Deste último,


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destaco a citação que já anuncia o tema da imagologia antes mesmo de sua fundação: “A massa de águas é certo, sem par, capaz daquele ‘terror’ a que se refere Wallace; mas como todos nós desde mui cedo gizamos um Amazonas ideal, mercê das páginas singularmente líricas dos não sei quantos viajantes que desde Humboldt até hoje contemplaram a Hiléia prodigiosa, com um espanto quase religioso – sucede um caso vulgar de psicologia: ao defrontarmos o Amazonas real, vemo-lo inferior à imagem subjetiva há longo tempo prefigurada.” Nada mais a comentar!. O meu próprio trabalho, que apresentei após simpático convite dos organizadores desse número, está dedicado ao tema da fotografia em Walter Benjamin. Com ele pretendi mostrar a importância não apenas da reflexão, mais conhecida, do teórico berlinense sobre essa mídia, sua história e impacto na história das ideias (para Benjamin, com a fotografia teríamos simplesmente dado adeus à tradição!), mas também quis iluminar o caráter altamente teórico das metáforas fotográficas em sua obra. Esse trabalho é parte de uma pesquisa maior que tenho levado a cabo há alguns anos, dedicada à fotografia, em sua intersecção com a teoria literária, a teoria do trauma e a do testemunho. Ao propor no contexto deste Revista Brasileira de Literatura número da Comparada esse ensaio visei também incentivar os leitores desta revista a atentarem mais para essa frutífera área de estudos, a saber, a comparação entre a fotografia e a literatura. Mauricio Mendonça Cardozo aporta uma (auto) reflexão que poderíamos chamar, sem pestanejar, de filosofia da tradução. Extremamente lúcida. Ele enfrenta a questão do enigma da outridade que está no coração do ato tradutório. Essa outridade nasce e funda a ipseidade. Com Borges, comentador de Averróis, quem, por sua vez, comentou a Poética de Aristóteles, sem nunca ter visto uma tragédia ou uma comédia, ele desdobra o paradoxo citando o autor argentino: “Senti que Averróis, querendo imaginar o que é um drama sem ter suspeitado o que seja um teatro, não era mais absurdo que eu, querendo imaginar Averróis [...]”. Borges ficcionaliza fazendo um comentário, criando seu Averróis; Averróis comenta tendo que imaginar o inimaginável para ele, o


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o teatro; Cardozo imagina essa cena em mise en abyme , na qual cada comentador, Averróis, Borges e Cardozo (e eu agora neste momento – e o leitor me lendo e interpretando…) só existe na interface com o outro. Comentar, traduzir (e criticar) são gestos que exigem a ficção do “outro”, mas que resultam na construção (da ficção) de nós mesmos. São exercícios de construção do eu pelo desvio através do outro: outro impossível de se atingir, é verdade, mas, vale dizer, o Eu, tampouco se atinge: a não ser via esse diálogo com o outro. Analisando as Galáxias , de Haroldo de Campos, Cardozo nota que também essa obra é marcada pela impossibilidade, pela descontinuidade constitutiva: entre suas palavras, partes e entre o texto e o leitor. Poderíamos pensar também em uma intraduzibilidade performática, daquele poeta que sempre buscou os textos mais intraduzíveis para verter. (Mas Flusser e Anatol Rosenfeld, é sempre bom lembrar, traduziram de modo muito criativo algumas páginas das Galáxias .) A fragmentação performática de Galáxias seria uma performance do esfacelamento do eu. Como dizia Schlegel, em uma carta a seu irmão August, de 18.12.1797: “Eu não posso dar nenhuma outra amostra de mim, de todo o meu eu, senão um tal sistema de fragmentos, pois eu mesmo sou isso.” Nesse universo pulverizado, nessa nuvem de estrelas de galáxias, não cabe mais se pensar a tradução como reprodução, mas apenas como parte do ritmo de sístole e diástole do Universo em letras. E, com o poeta Rimbaud, devemos lembrar que “Je est un autre”, ou seja, o eu só se dá no diferimento de si mesmo e pela passagem pelo “outro”. Mendonça estabelece esse fato pela via da filosofia da tradução. Essa abordagem é fundamental para se desconstruir a noção de identidade (estanque) que assombra os estudos de Literatura Comparada. Também o texto de Mayara Guimarães busca refletir sobre as aproximações entre criação e tradução, desta feita a partir da poeta Ana Cristina Cesar. Guimarães está interessada em entender as continuidades entre tradução e criação poética. Ela quer observar como “o gesto tradutório, para Ana C., é uma continuação, ou um ponto de partida, da escrita poética, isto é, como as vozes estrangeiras traduzidas por Ana C. repercutiram em sua própria produção poética enquanto "intertexto".


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Aqui serve de guia também a visão haroldiana da tradução como ato canibal de incorporação: a imitação torna-se usurpação, “plagiotropia”, “semiose ilimitada”, escrevia Haroldo. Mas Clarice Lispector, em suas reflexões sobre a tradução, também dá pistas para Guimarães entender a poética de Ana C. Afinal, para Clarice, tradução é tanto um ato infinito (o que não deixa de remeter à visão de Proust, da recordação como ato infinito) como também remete ao jogo cênico de máscaras: o tradutor, como o escritor, deve saber e poder trocar suas máscaras. A tradução seria também, recordo a partir de Paul e Man falando da autobiografia, prosopopeia, ou seja, jogo de máscaras, processo de dar vida ao “outro”, falar por e através desse outro: ventriloquia, escrita visceral. Guimarães estuda o caso específico da tradução do conto “Bliss”, de Katherine Mansfield, realizada por Ana C. Aqui vemos como essa tradução mantém um delicado equilíbrio entre estrangeirização e apropriação. Analisando criticamente a margem oposta dessa comemoração do híbrido, a contribuição de Regina Zilberman parte de um interessante paradoxo da nossa cultura das Letras brasileira. Tematizando a história da literatura na sua tradição que remonta ao Iluminismo e sempre pagou dízimo ao nacionalismo, ela observa o seguinte: a posição que enfatiza a história literária “predomina em boa parte dos currículos de graduação, definindo-se pela nacionalidade do corpus literário que aborda. Mas perde espaço nos programas de pósgraduação, que privilegiam correntes associadas aos estudos comparados, culturais, pós-coloniais, de gênero ou de etnias, quando não são marcados por questionamentos vinculados à filosofia, à sociologia ou à psicanálise.” Essa esquizofrenia é, de fato, característica nossa. Ela reflete um conservadorismo e uma dificuldade de superar os paradigmas iluministas (repaginados pelo romantismo) e nacionalistas. A autora faz um exaustivo levantamento das histórias da literatura europeias e brasileiras e enfatiza a obra de Ferdinand Denis, Resumo de história literária de de Portugal, seguido do Resumo de história literária do Brasil , publicada em Paris em 1826. É interessante observar como muitas das ideias (pertencentes a uma visão mais romântica, tradicional, eminentemente nacionalista) da obra de Denis, até hoje podem ser detectados em abordagens da nossa literatura, como o tema da “cor local”


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na sua relação com o “caráter nacional”. Essas ideias já haviam sido enfatizadas na primeira recepção, romântica, de Denis, como o caso que Zilberman cita, de Joaquim Norberto, em “Modulações poéticas”, que, entre outras pérolas, arrola essa ontologia do próprio e da propriedade original pura: “Sim, M. Ferdinand Denis tinha predito – que o Brasil, que sentira a necessidade de adotar instituições diferentes das que lhe impusera a Europa, - que o Brasil conhecia também a necessidade de ir beber suas inspirações poéticas à fonte que lhe verdadeiramente pertence.” Essa ideia de pertencimento local, essa condenação ao que seria “próprio” até hoje é o mote de muitas leituras interpretativas da literatura brasileira e também de muito do que é escrito na chave da literatura neste país. O artigo de Rosani Ursula Ketzer Umbach analisa de modo detido o tema das escritas de vida. Na primeira metade do trabalho, ela faz um levantamento dos estudos sobre o tema, destacando a tensão entre a noção estruturalista de “morte do autor” e a volta do autor e da referencialidade, capitaneada pelos estudos de testemunho e dos demais relatos advindos de situações de violência. Podemos deduzir de suas palavras que dos estudos da escrita de vida surgiram os estudos da escrita da sobrevivência , lembrando que superstes é também a figura da testemunha sobrevivente: ela é a encarnação daquele que passou pela morte, que ao mesmo tempo necessita narrá-la e sucumbe diante desse desafio. A segunda parte do estudo se dedica ao tema dos famosos diários de Anne Frank. O impressionante nesse caso específico é justamente perceber como um diário, que é tratado por teóricos da autobiografia como Philippe Lejeune como o grau zero da escrita factográfica, e que Lejeune denomina de “antificção”, no caso do diário de Anne Frank tem sido envolvido em uma série de acusações de manipulação e de falsificação da realidade, quer pela autora, quer pelos editores, a começar pelo pai de Anne Frank. O importante,a partir desse caso, é notar como nos estudos de escritas de forte teor testemunhal o debate tradicional sobre a representação da história pode ser deslocado para a questão dos limites da representação do trauma. Nessa perspectiva, podemos ainda ler muitos aspectos desse diário ainda pouco iluminados.


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Por fim, temos a contribuição de Sílvio Augusto de Oliveira Holanda, que se debruça sobre a famosa narrativa de Sagarana , de Guimarães Rosa, “A hora e vez de Augusto Matraga”. Sua leitura nos leva a reler em “close reading” o texto roseano, destacando a questão da violência e as tensões do protagonista, que oscila entre a “salvação” e a tentação de se render à lógica da vingança. Os estudos roseanos têm recebido uma série de novas contribuições baseadas na introdução tanto de uma visão mais complexa do tema da violênica (que é abordada a partir de autores como Rene Girard, de Freud, de Agamben, entre outros), como também, no caso de Sílvio Augusto de Oliveira Holanda, de uma leitura antropológica do texto de Rosa, inspirada em Roberto Da Matta. Assim a leitura de Rosa consegue romper criticamente com a prisão teórica de horizonte curto do regionalismo. Creio que essa apresentação já indica a riqueza e abertura desta reunião de ensaios. De algum modo ela é um instantâneo que registra o “estado da arte” de nossa disciplina. Digno de nota é a forte presença dos estudos de tradução, area que tem se desenvolvido bastante na última década e meia e que tem aportado importantes contribuições para a Lieteratura Comparada de um modo geral.


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Tradução poética e xamanismo transversal: correspondências entre Llansol e Baudelaire Álvaro Faleiros*

RESUMO: O intuito deste artigo é discutir a possibilidade do desenvolvimento de uma poética do traduzir que se debruce sobre a complexidade de alguns projetos tradutórios como o das traduções de Baudelaire feitas por Maria Gabriela Llansol. Para situar a discussão no contexto brasileiro, partimos de impasses colocados pelas poéticas textuais hoje dominantes para, em seguida, por meio da noção de xamanismo transversal do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, propor instrumentos para interpretar essa complexidade em jogo. PALAVRAS-CHAVE: literatura comparada, antropologia, tradução, xamanismo, Baudelaire. RESUMÉ: Au long de cet article on entame une discussion visant à développer une poétique du traduire tournée vers la complexité de certains projets traductifs comme celui des traductions de Baudelaire faites par maria Gabriela Llansol. Pour situer la discussion, il a fallu d’abord considérer certains impasses des poétiques textuelles du traduire en vogue au Brésil pour, par la suite, partant de la notion de chamanisme transversale de l’anthropologue Eduardo Viveiros de Castro, proposer des instruments pour l’interprétation de cette complexité. MOTS-CLÉS: littérature comparée, anthropologie, traduction, chamanisme, Baudelaire.

*

Universidade de São Paulo (USP)

Como elaborar reflexão capaz de lidar com projetostradutórios nos quais os enunciados produzidos por aquele e por meio daquele que traduz criam uma complexa rede com as posições enunciativas que provêm do texto fonte? Para parte daqueles que se interessam por tradução, a questão acima pode simplesmente ser evitada pelo estabelecimento de uma fronteira em que a tradução se define por uma relação de identidade com o texto de partida. No caso, o parâmetro para avaliar e


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validar uma tradução é o seu grau de equivalência em relação ao texto de partida. A tradução com o “mesmo valor”, em geral, é aquela que teria o “mesmo conteúdo”, ou, quando se trata de textos poéticos (que nos interessam aqui), aqueles que por determinados critérios passariam a ter um grau maior de “aderência” ao texto de partida. Impasses da equivalência No Brasil, como apontamos em estudos anteriores (FALEIROS, 2012), há um conjunto importante de autores que desenvolvem abordagens nessa direção, como Mário Laranjeira, por meio do conceito de “significância”, Paulo Henriques Britto, por meio da noção de “correspondência”, ou Paulo Vizioli que, por sua vez, desenvolve o termo “re-criação”. Essas abordagens, cada qual a sua maneira, propõem um equilíbrio dinâmico entre a forma, o sentido e as características retóricas do texto literário e, desse modo, acabam apontando para a construção de uma identidade. Assim sendo, a presença de “vozes estranhas” ao texto fonte seria uma fonte de desequilíbrio, pois significam uma intromissão; e, em princípio, um distanciamento em relação às características formais, semânticas ou retóricas do texto de partida. Em seu artigo “A tradução de poesia em língua inglesa”, Paulo Vizioli ilustra essa postura ao declarar: ... é verdade que, às vezes, nos deparamos com traduções que, com justiça (dependendo, é claro, dos critérios adotados), são tidas pelos críticos como superiores aos próprios originais. E isso nos leva a concluir, numa contrapartida para a definição de Frost, que “poesia é também o que se ganha na tradução”. Podemos dizer até que, de certa maneira, é esse o conceito que muitos tradutores, – em geral, poetas eles mesmos, – parecem fazer do trabalho de versão. Para eles, o texto de partida é somente um estímulo para a própria inspiração; agem sobre ele com grande liberdade, atualizam-no, ajustam-no a seu mundo, amoldam-no à sua sensibilidade. O resultado, mais que uma tradução, é um poema original. Assim podemos considerar, por exemplo, as transposições que Salvatore Quasimodo fez dos líricos gregos, as famosas “adaptações” de Ezra Pound e, talvez, em nosso país, algumas das mais recentes tentativas de “transcriação” de Haroldo de Campos. (VIZIOLI, 1985, p.109-110).


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As hesitações de um discurso pautado pela busca de relações de identidade salta aos olhos nesse trecho de Vizioli. Primeiro, o autor começa chamando os resultados da reescrita em jogo de “traduções” e seus produtores de “tradutores”, para, na mesma frase, dizer que se trataria de “versões”. Em seguida, afirma que os “tradutores” “atualizam” o texto e o “ajustam a seu mundo”. Não consigo imaginar tradução que, em alguma medida, não o faça; a diferença residindo numa questão de “grau”, cujo “valor” é necessariamente marcado (historicamente, socialmente, ideologicamente, culturalmente, eticamente, esteticamente). Enfim, às ambíguas aspas que envolvem os termos “adaptações” e “transcriações” (e que não se encontram nas “transposições”), soma-se o curioso pronome indefinido “algumas” que acompanha “as mais “recentes tentativas”, isto é, outras das tentativas de “transcriação” seriam, de fato, traduções? Quais seriam elas? Aquelas que melhor respeitassem a métrica ou os eventuais esquemas rímicos? Aquelas que recuperassem as redes imagéticas ou as características retóricas do textos fonte? Vizioli (1985, p.113-115), em seu texto, destaca primeiro o “ritmo” dizendo que “não se pode aumentar arbitrariamente o número se sílabas”. Entretanto, como a língua inglesa possui um número muito maior de monossílabos, e o tradutor deve se preocupar também com o aspecto semântico, ele fica “nessa permanente necessidade de se escolher entre preservar o sentido em detrimento parcial do ritmo ou manter-se o ritmo, prejudicando um pouco o sentido”. Entra-se, assim, numa espécie de matemática poética que frequentemente se debate com outras questões retórico-formais. Por exemplo, em que medida, aumentar o número de sílabas distanciaria formalmente o texto de sua forma “equivalente” no português, em outras palavras, em que medida pode se dizer que um dodecassílabo em português pode ser equivalente a um decassílabo em inglês? Eis o tipo de impasse que uma abordagem pautada pela equivalência acaba produzindo. As margens entre o que seria uma versão, uma adaptação ou uma tradução são também um impasse insolúvel no interior de tal perspectiva. Se lemos a famosa


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famosa quadra que abre “Correspondances” de Baudelaire:

o

soneto

La Nature est un temple où des vivants piliers Laissent parfois sortir des confuses paroles; L’homme y passe à travers des forêts de symboles Qui l’observent avec des regards familiers

O que leio? Semanticamente, uma possibilidade é: A Natureza é um templo onde vivos pilares Deixam por vezes sair confusas palavras; Lá o homem passa através de florestas de símbolos Que o observam com olhares familiares.

Se retomamos a mais reeditada tradução do poema no Brasil, leio:

A Natureza é um templo onde vivos pilares Deixam filtrar não raro insólitos enredos; O homem o cruza em meio a um bosque de segredos Que ali o espreitam com seus olhos familiares. (BAUDELAIRE, 1985)

Na primeira tradução não há aparentemente nada, ou quase nada, da métrica e da rima do poema de Baudelaire, na segunda, a rima e a métrica são impecáveis. Mas, apesar do rigor formal, da equivalência metro-rímica, retomando Vizioli há pouco citado, não seria possível afirmar que, para Ivan Junqueira, “o texto de partida é somente um estímulo para a própria inspiração”? Que Junqueira “age sobre ele com grande liberdade, atualiza-o, ajusta-o a seu mundo, amolda-o à sua sensibilidade”? Não se trata de condenar o precioso trabalho de Junqueira, mas de apontar para o fato de que ele, ao traduzir Baudelaire, ou Vizioli ao, sistematicamente, transformar decassílabos ingleses em dodecassílabos, estão moldando o texto a sua sensibilidade, atribuindo-lhe valor; produzindo valências, não necessariamente equivalências. É, inevitavelmente, um complexo enunciativo que entra em jogo, no qual o tradutor necessariamente atribui valor, faz escolhas e se


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situa diante do texto traduzido, acrescentando camadas interpretativas em função do sistema de formas que adota. Esse breve exemplo ilustra a dificuldade de se estabelecer uma fronteira clara, quando se trata de reescrita poética, daquilo que seria tradução, adaptação ou imitação. Uma das dificuldades se deve ao fato de essas análises terem dificuldade de lidar com a complexidade enunciativa que uma rescrita poética implica, levando, na maioria das vezes, a uma redução dicotômica. Ou o tradutor consegue apagar-se e dar voz ao poema original, ou o tradutor se impõe, desviando-se do original. Paulo Henriques Britto (2012, p.33) destaca que na “problemática” distinção entre a tradução literária e a criação literária existe uma “extensa zona cinzenta”, uma vez que, “muitas vezes, o tradutor toma tantas liberdades em seu trabalho que a obra resultante pode e deve ser considerada um novo original”. Chama atenção o fato de, segundo o próprio Britto, essa “zona cinzenta” ser “extensa”. Ou seja, encontra-se nela uma gama de possibilidades que, no limite, poderiam ir de casos como o de Ivan Junqueira rescrevendo Baudelaire, até a imitação de Homero por Virgílio ou Joyce. Dentro desse amplo espectro, há casos interessantes, como, por exemplo, as traduções que a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol realizou de As Flores do Mal de Baudelaire. Nesse livro, publicado em edição bilíngue, nota-se que boa parte dos poemas guarda alguma correspondência visual com o texto de partida, com um mesmo número de estrofes e de versos, ainda que o metro e a rima sejam raramente correspondentes. Não é possível, aparentemente, depreender um projeto de tradução por parte de Llansol, pois, para cada texto baudelairiano, a poeta opta por um tipo de solução. Em artigo publicado sobre a autora (FALEIROS, 2010a), notei, por exemplo, que, dentre os poemas traduzidos por Llansol, quatro – Correspondances, l’Idéal, A une passante, Les litanies de Satan – foram apresentados pela própria autora em duas versões. No poema “Correspondances”, que é a primeira das "duplas traduções", lê-se, logo abaixo do título “[versão literal]”. A segunda tradução, por sua vez, é apresentada sem o título


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e, acima dela, lê-se “[outra versão]”. A primeira é uma tradução semântica e, a segunda, uma retradução cheia de deslocamentos (ver Anexo 01). Curioso é que, se partíssemos das definições, por exemplo, de Vizioli, nenhuma das duas corresponderia a uma tradução de fato. Numa entrevista concedida a Nóbrega e Giani (1988), ele defende que existem três tipos de tradução literária. Num dos extremos das três haveria a “tradução semântica”, isto é, a simples tradução do sentido das palavras. No outro extremos estaria a “adaptação literária”, atividade comum na Idade Média e no Renascimento como, por exemplo, as peças de Shakespeare ou as histórias de Chaucer. Vizioli observa que o resultado, muitas vezes de grande valor artístico, é um poema totalmente novo e assinala que este é também o caso das transcriações que Haroldo de Campos fez de Goethe. O caminho do meio seria o que chama de “re-criação”, quando o tradutor procura, ao mesmo tempo, transpor “o sentido global” do texto e “recriar as características sonoras do texto original”. Os impasses desse tipo de postura, como vimos, não dão conta da complexidade de uma proposta como a de Llansol. Em suas traduções, cada poema de Baudelaire implica uma, ou mais de uma, leitura, fazendo com que, por exemplo, o poema “A une Charogne”, traduzido por “Um Corpo que apodrece”, mimetize em sua forma a poética da decomposição ou com que o poema “A une passante” seja desmembrado em cenas, fazendo com que o leitor atente mais para cada detalhe que compõe o instantâneo. Há também momentos em que Llansol opta por uma postura bem mais ‘conservadora’, como no poema “Ao leitor”, que abre o livro, e que ela traduz conservando as rimas, como se pode ler:


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La sottise, l'erreur, le péché, la lésine, Occupent nos esprits et travaillent nos corps, Et nous alimentons nos aimables remords, Comme les mendiants nourrissent leur vermine.

A alma tomada por tolices e erros, não E pecados, que nos moldam os corpos, Alimentamos nossos queridos remorsos Como sem abrigos que estimam sua sujidão

Os alexandrinos perfeitos de Baudelaire são em parte desconstruídos, mas restam como ecos e a rima serve de armadura ao poema. Aparentemente, pois, tem-se a impressão de certa hesitação por parte da tradutora entre a adoção de um projeto em prosa e a manutenção das marcas formais. Ao me debruçar uma primeira vez sobre essa complexidade, afirmei, informado por uma poética da identidade, que havia ficado com a sensação de que faltava a Llansol um projeto claro, pois ela ficava a meio caminho entre um Baudelaire mais prosaico e um Baudelaire mais clássico (FALEIROS, 2010a, p.120-121). Ainda em 2010, arrisquei uma segunda interpretação para o trabalho de Llansol, dessa vez mobilizando o conceito de reimaginação de Haroldo de Campos, reinterpretando-o (FALEIROS, 2010b). Essa reflexão, mesmo que lançasse luz sobre o complexo semiótico em jogo nas reescritas de Llansol, não era capaz de acessar o imbricamento dos lugares de fala que seu projeto de reescrita produz. A saída para o impasse se deu, para mim, pela utilização de um aparato conceitual da antropologia. O xamanismo transversal No artigo “As flores de Llansol ou o poema contínuo” (FALEIROS, 2014), desloco a discussão ao utilizar a noção de ‘sacrifício’, interpretado como ‘sistema de forças’, conforme Eduardo Viveiro de Castro (2007). O ponto de partida foi a reinterpretação proposta pelo


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antropólogo dos conceitos de ‘sacrifício’ e de ‘totemismo’ em Lévi-Strauss. Utilizando o aparato da linguística, Viveiros de Castro (2007, p.89) comenta que o ‘sacrifício’ seria metonímico e o ‘totemismo’ seria ‘metafórico’, sendo o primeiro um “sistema técnico de operações”, o segundo um “sistema interpretativo de referências”, sendo assim, o primeiro da ordem da parole, o segundo, da langue. Ao desenvolver seus argumentos, Viveiros de Castro acrescenta que, diferentemente do totemismo, as transformações sacrificiais. … acionam relações intensivas que modificam a natureza dos próprios termos, pois ‘fazem passar’ algo entre eles: a transformação, aqui, é menos uma permutação do que uma transdução (para usarmos o vocabulário de Gilbert Simondon) — ela lança mão de uma energética do contínuo. Se o objetivo do totemismo é estabelecer uma semelhança entre duas séries de diferenças dadas cada qual por seu lado, o propósito do sacrifício é diferenciar internamente dois polos pressupostos como auto-semelhantes, ao induzir/transduzir uma zona ou momento de indiscernibilidade.

A passagem de Viveiros de Castro permitiu pensar (FALEIROS, 2014, p.137) o ato tradutório de Llansol a partir de outra chave conceitual. Ao invés de tratar o poema como totem, ou seja, para retomar o próprio Viveiros de Castro, como um “sistema de formas”, concebi-o como sacrifício, ou seja, “como um sistema de forças”. Assim, ao transduzir, ao ‘induzir’ e ‘diferenciar internamente dois polos’, produzindo zonas e momentos de ‘indiscernibilidade’, como os deslocamentos da “passante” e do “corpo que apodrece”, compreendi que Llansol operava em “continuidade metonímica”, por dentro do poema. O resultado, por sua vez, seria que a tradutora, em sua reescrita, para além da aparente descontinuidade, penetra nas entranhas do texto e, ondulatoriamente, “lança mão” de uma poderosa e concertante


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“energética do contínuo” que reinstaura o sistema de forças que habita asFlores do Mal . Nessa análise, contudo, não havia me dado conta do fato de que a dimensão sacrificial do ato não se contrapunha necessariamente à dimensão totêmica. Com efeito, a variação no modo de operar diante do texto faz com que Llansol ative o complexo envolvido na ação xamânica. Ou seja, ao analisar, nos estudos anteriores, por exemplo, o poema “A une passante”, concentrei-me nos processos envolvidos na reescrita cinematográfica da segunda versão do poema e esqueci do fato de que havia também outra versão mais ‘literal’, assim como do fato de que as duas estavam acompanhadas do original. O mesmo vale para as reescritas do poema “Correspondances”, sobre a qual nos debruçamos a seguir. Como comentamos acima, Llansol produz, na página dupla, uma triangulação entre o poema original e suas duas traduções. Na primeira delas, chamada de “tradução literal” pela própria autora, lê-se:


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La Nature est un temple où de vivants piliers Laissent parfois sortir de confuses paroles; L'homme y passe à travers des forêts de symboles Qui l'observent avec des regards familiers.

A Natureza é um templo de pilares vivos Que deixam, por vezes, sair palavras confusas, O homem por aí passa, através de florestas de símbolos Que o observam com olhares familiares.

Comme de longs échos qui de loin se confondent Dans une ténébreuse et profonde unité, Vaste comme la nuit et comme la clarté, Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Como longos ecos que, de longe, se confundem Numa tenebrosa e profunda unidade Vasta como a noite e como a claridade Os perfumes e as cores e os sons se respondem.

II est des parfums frais comme des chairs d'enfants, Doux comme les hautbois, verts comme les prairies, — Et d'autres, corrompus, riches et triomphants,

Ele há os perfumes frescos como pele de criança. Doces oboés e verdes como as pradarias ___ E outros corruptos, vivos e triunfantes.

Ayant l'expansion des choses infinies, Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens, Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.

Contendo em expansão quimeras infinitas Como o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso Que cantam o transporte do espírito e dos sentidos.

A ‘literaridade’ da tradução, de fato, pode ser verificada na maioria dos versos da tradução. Não há nada nela que se compare aos deslocamentos semânticos propostos por Ivan Junqueira, que transforma, por exemplo, as “palavras confusas” em “insólitos enredos”, ou ainda a “floresta de símbolos” em “bosque de segredos”. Entretanto, algumas escolhas já apontam para o processo de transformação em curso. No primeiro verso, uma simples inversão — “pilares vivos” ao invés de “vivos pilares” — evita uma rima, central na estruturação da estrofe de Baudelaire, com o verso conclusivo “olhares familiares”. Seu intuito seria deixar as palavras mais confusas? A confusão atinge, na tradução, a própria organização da primeira sentença, uma


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vez que, ao invés de optar por “A Natureza é um templo onde vivos pilares / Deixam por vezes sair palavras confusas;”, Llansol produz uma mudança na sintaxe — “A Natureza é um templo de pilares vivos / Que deixam, por vezes, sair palavras confusas” —; mudança que atinge também a pontuação, provocando no leitor, inclusive, um estranhamento visual pelo modo como, no primeiro terceto, desenha o travessão. Modo este que se multiplica na “outra versão” que comentaremos mais adiante. O primeiro terceto, aliás, na tradução, inicia-se como uma estrutura sintática bizarra — “Ele há”. A opção aqui é por uma estrutura agramatical para traduzir a fórmula impessoal de uso corrente “il est”, que ‘literalmente’ significa simplesmente “há. Nota-se, assim, a mobilização do que chamei acima de ‘sistema de forças’ contido na própria imagética do poema, isto é, ao torcer a sintaxe em sua reescrita, Llansol faz com que o próprio poema performe a “confusão das palavras”, potencializando a “confusão de ecos” e expandindo as “coisas infinitas” (choses infinies). Não parece acaso o fato de “choses” (coisas) ser o único substantivo em todo o poema a não corresponder ‘literalmente’ ao do poema de Baudelaire — ao transformar a “coisa” em “quimera” a tradutora radicaliza o caráter etéreo das imagens, dissipando no ar seus cheiros. Ao longo desse gradual processo de apropriação, Llansol, contudo, não perde de vista o poema baudelariano. Ela move-se por dentro dele, tencionando, em sua tradução, também a forma do poema, pois, mesmo que não ‘conserve’ métrica e rima, a mancha do texto na página remete claramente ao soneto, tendência formal que, aliás, se radicaliza na “outra versão”, como se pode notar:


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La Nature est un temple où de vivants piliers Laissent parfois sortir de confuses paroles; L'homme y passe à travers des forêts de symboles Qui l'observent avec des regards familiers. Comme de longs échos qui de loin se confondent Dans une ténébreuse et profonde unité, Vaste comme la nuit et comme la clarté, Les parfums, les couleurs et les sons se répondent. II est des parfums frais comme des chairs d'enfants, Doux comme les hautbois, verts comme les prairies, — Et d'autres, corrompus, riches et triomphants, Ayant l'expansion des choses infinies, Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens, Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.

A Paisagem é um Alpendre de colunas vivas Que soltam palavras confusas, mas nem sempre, Florestas de símbolos com olhos compacientes Observam o humano que por ali transita. Em ondas longas de ecos que se confundem À distância dum tenebroso e profundo Há___ Vasto como a noite de uma imensa claridade___ Sons cores odores mutuamente sintonizam. Os perfumes, por exemplo. Há-os inocentes Verde folha pele de menina com macios de oboé ___ E outros há, sabidos, triunfantes e perversos Contendo em expansão quimeras infinitas Que celebram o espírito transeunte dos sentidos, Como o âmbar, o incenso, o benjoim e outros ainda.

Essa segunda versão atua na lógica do contínuo, mas por meio de um complexo movimento. É possível, sim, identificar claramente que se trata de uma reescrita do poema “Correspondances” de Baudelaire. A própria forma soneto se impõe de modo mais evidente do que na versão anterior, ainda que as rimas e a métrica não equivalham formalmente ao poema de Baudelaire. O mesmo vale para um conjunto relevante de imagens — as colunas, as palavras confusas, a floresta de símbolos, a confusão dos ecos, as correspondências entre sons cores e odores, os perfumes, a pele das crianças, os oboés… E mesmo que a sintaxe opere de modo bastante distinto na tradução de Llansol, esse deslocamento retoma, em grande medida, as imagens centrais do poema.


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Algumas escolhas, contudo, produzem deslocamentos semânticos importantes — a “Natureza” torna-se “Paisagem”, assim como o “Templo” passa a ser “Alpendre”, num processo evidente de dessacralização do lugar, dando-lhe mais concretude. O que se verifica, pois, é a radicalização do processo iniciado na dita “versão literal”, uma vez que, por exemplo, as “coisas” seguiram sendo “quimeras”… O sonho em Llansol não é, contudo, devaneio ou evasão, ele adere ao mundo sensível, como se pode notar também no idiossincrático uso do verbo haver. Na tradução de “une ténébreuse et profonde unité” por “um tenebroso e profundo Há___”, o que se nota é que a observação da paisagem em Llansol, diferentemente observação da natureza em Baudelaire, não permite uma “profunda unidade”, mas uma “existência”, uma unidade que é da ordem da experiência, e não de algum conceito abstrato de unidade. A “outra versão” retoma, assim, tanto imagens centrais que organizam o discurso Baudelariano, quanto potencializa enérgicas latentes no texto que já haviam sido mobilizadas na “versão literal”, presentificando-as, e fazendo com que a leitura seja necessariamente “concertante”, articulando, no mínimo, os três textos. Uma análise isolada dessa “outra tradução”, acompanhada, por exemplo, de uma comparação com a tradução de Ivan Junqueira, poderia levar a crer que se trata de mais uma tradução do poema, cujo valor estético poderia ser medido por uma maior ou menor correspondência em relação ao número e sílabas, de recorrências rímicas etc. A análise até poderia se sofisticar e partir para a comparação do grau de alteração semântica entre as traduções e o original. Estaríamos diante de questões como: é mais grave transformar a “Natureza” em “Paisagem” ou a “Floresta de símbolos” em “Bosque de segredos”? Mergulharíamos, novamente, na lógica do sacrifício (das perdas), que em nada se confunde com a dinâmica sacrificial aqui exposta. Uma análise por meio do xamanismo transversal leva a outros caminhos que, em algum ponto, até podem retomar essa questão. Para embrenharmo-nos por essas sendas é importante esclarecer o que entendemos aqui por ação xamânica. Renato Sztutman (2005, p.154), por exemplo, lembra que o xamanismo “não pode ser reduzido a uma instituição


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propriamente dita, tampouco a faculdades de certos indivíduos excepcionais”, pois, prossegue Sztutman, “o xamanismo consiste mais num sistema de pensamento e ação, num sistema de comunicação e mediação”. Esse sistema de comunicação e de mediação produz uma série de ‘operações’ descritas por Viveiros de Castro (2007, p.102) da seguinte maneira: As operações xamânicas, se não se deixam reduzir a um jogo simbólico de classificações totêmicas, tampouco são da mesma espécie que o contínuo fusional perseguido pelas interserialidades imaginárias do sacrifício. Elas exemplificam uma terceira forma de relação, a comunicação entre termos heterogêneos…

A heterogeneidade dos termos faz com que o sistema esteja em “desequilíbrio perpétuo”. O que está, pois, em jogo, explica Viveiros de Castro (ibidem), é que “as diferenças de potencial transformativo entre os seres são a razão de ser do xamanismo”. O potencial transformativo produz, prossegue o antropólogo, uma “síntese disjuntiva”, daí a transversalidade, ou ainda, a produção de uma “conexão parcial”. As “Correspondências” provocadas pelas traduções de Llansol são dessa ordem. No caso específico desse poema, ela identifica claramente matrizes significantes da correspondência, a saber, a floresta de símbolos, as palavras confusas, o modo como ecoam, se respondem e se confundem perfumes, imagens e sons… Em seu projeto de reescrita, primeiramente, as “coisas” passam a operar na lógica do onírico (quimeras) para, em seguida, formular um outro patamar de correspondência, que é a interpretação da “Natureza” como “Paisagem" e do “Templo” como “Alpendre”. As implicações desse tipo de síntese disjuntiva são distintas da transformação da “floresta de símbolos” em “bosque de segredos”. No caso de Junqueira, as razões de suas transformações são evidentemente exteriores à imagética do poema de Baudelaire, uma vez que, ao invés de potencializar alguma energética do texto, produzem uma horizontalidade esvaziada, uma vez que o deslocamento do “símbolo” — imagem estruturante do poema — é projetado


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para a esfera do “segredo” aparentemente com o simples intuito de produzir uma singular rima perfeita. Enfim, em Llansol, a correspondência pode ser entendida como a própria razão de ser do desdobramento das traduções, sobretudo se levarmos em conta o fato de que este é um dos primeiros poemas do livro de Baudelaire, livro traduzido na íntegra por Llansol. Este é também um dos poemas-chave da própria poética baudelariana e um dos poemas centrais na construção da poética simbolista posterior. Desse modo, ao lançar mão da multiplicação das traduções num mesmo volume, escolhendo esse poema como o primeiro a multiplicar-se, Llansol produz uma forma de relação que se aparenta às operações xamânicas descritas por Viveiros de Castro por sua heterogeneidade e transversalidade; aqui entendidas como síntese disjuntiva em desequilíbrio perpétuo entre os sistemas de forças e sistemas de formas em que se articula. O resultado é essa ação que comunica e medeia uma relação, na qual a matriz, que é o próprio jogo das correspondências, é ativado, ecoando, em sintonia, distintas frequências.


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ANEXOS 01


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Referências BAUDELAIRE, Charles. As Flores do mal . Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. _______. As Flores do mal . Tradução Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio d’água, 2003. BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. FALEIROS, Álvaro. Maria Gabriela Llansol retradutora de Charles Baudelaire. Florianópolis, Cadernos de Tradução XXV , 2010a. _______. Na esfera da reimaginação. São Paulo, Cadernos de Literatura em Tradução 11 , 2010b. _______. Traduzir o poema . São Paulo: Ateliê, 2012. _______. As flores de Llansol ou o poema contínuo. In: Maria Carolina Fenati (org.). A partilha do incomum . Florianópolis: Edufsc, 2014. NÓBREGA, Thelma Médice et Giana GIANI. Haroldo de Campos, José Paulo Paes e Paulo Vizioli falam sobre tradução. Trabalhos de Lingüística Aplicada , 11, 1988. SZTUTMAN, Renato. "Sobre a ação xamânica". In: Dominique Tilkin Gallois. (Org.). Redes de relações nas Guianas . São Paulo: Humanitas/NHII, 2005. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Xamanismo transversal, Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica. In: Rubem Caixeta de Queiroz e Renarde Freire Nobre (org). Lévi-Strauss: leituras brasileiras . Belo Horizonte: UFMG, 2007. VIZIOLI, Paulo. A tradução de poesia em língua inglesa. Tradução & Comunicação , 2, p. 109-128, 1985.


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Ecos do simbolismo-decadentismo no diário carioca o País (1890-1892) Alvaro Santos Simões Junior 

RESUMO: A respeito da literatura europeia coetânea, os jornais brasileiros do final do século XIX traziam notícias e artigos diversos, assinados algumas vezes por correspondentes estabelecidos no Velho Continente, brasileiros ou estrangeiros. No jornal diário O País , destacavam-se as colaborações dos portugueses Pinheiro Chagas e Xavier de Carvalho, que em seus textos opinaram sobre o decadentismo-simbolismo português. A documentação recolhida na coleção do citado periódico, correspondente ao período de 1890 a 1892, permite vislumbrar como se deu no Brasil a divulgação e assimilação das novidades literárias europeias nos anos imediatamente anteriores à publicação de Missal e Broquéis , obras simbolistas de Cruz e Sousa, e possibilita também conhecer-se o choque geracional entre os novos , simpáticos ao decadentismo-simbolismo, e os carraças , escritores de reputação consolidada e próximos do naturalismo e/ou do parnasianismo. PALAVRAS-CHAVE: Decadentismo; simbolismo; crítica literária, periódicos, O País .

UNESP (Assis)/CNPq/ FAPESP

ABSTRACT: About the coeval European literature, there were in Brazilian newspapers at the end of the nineteenth century news and reviews, sometimes signed by Brazilian or foreign correspondents established in the Old Continent. In the daily newspaper O País , the collaboration of the Portuguese writers Pinheiro Chagas and Xavier de Carvalho had acquired great importance; they evaluated in his writings the Portuguese decadentism-symbolism. The documentation collected in the collection of the said journal, corresponding to the period from 1890 to 1892, provides a glimpse into what happened in dissemination and assimilation of European literary innovations in the years immediately preceding the publication of Missal and Broquéis , symbolist works of Cruz e Sousa. The same texts allows one to know the generational clash between the new , friendly to decadentism-symbolism, and the olds , that had established reputation as writers and were next of naturalism and Parnassianism. KEYWORDS: Decadentism; symbolism; literary criticism, periodicals, O País.


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Introdução Apresentam-se aqui resultados parciais de uma investigação a respeito da repercussão no Brasil do movimento decadentista-simbolista português, que, de 1890 a 1893, tornou-se assunto recorrente da imprensa periódica portuguesa.1 Pressupõe-se que jornais e revistas da cidade do Rio de Janeiro, principal centro cultural do Brasil no final do século XIX, habitado por uma numerosa e influente colônia lusitana, não ficaram indiferentes à novidade propalada, — positiva ou negativamente, — pela imprensa de Portugal. Justamente nesse período, Cruz e Sousa, primeiro simbolista brasileiro, preparava a publicação de Missal e Broquéis, obras que saíram à luz em 1893. Reveste-se, portanto, de algum interesse examinar o posicionamento dos periódicos brasileiros quanto ao decadentismo-simbolismo.Nestas poucas páginas, analisamse notícias, resenhas e crônicas literárias do matutino O País publicadas de 1890 a 1892. A Polêmica dos novos Na década de 1890, um dos primeiros indícios de esforços para a renovação da literatura brasileira foi a polêmica dos novos, que se reuniram nas redações dos jornais Folha Popular, Novidades e Cidade do Rio e passaram a desafiar os escritores consagrados. Em O País, o primeiro a pronunciar-se sobre o grupo foi o humorista Busca-Pé (pseudônimo de Oscar Guanabarino), que em 9 de outubro de 1890 se referiu aos novos como “uma plêiade de gênios que não têm nomes por modéstia, mas que meteram num chinelo Gonçalves Dias, Alencar e outros idiotas que escreviam, é verdade, mas que eram literatos que não sabiam escolher uma gravata nem deitar elegância pela rua do Ouvidor” (BUSCA-PÉ, 9 out. 1890,p.1). Oscar Rosas, um dos mais atuantes dos novos, suscitou muita indignação ao criticar a terceira parte de um longo artigo que Sílvio Romero vinha publicando na Gazeta de Notícias sobre “A poesia brasileira contemporânea”. O objetivo do consagrado historiador da literatura brasileira

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Com bolsa de pós-doutoramento da CAPES, realizou-se de setembro de 2010 a fevereiro de 2011 na Biblioteca Nacional, na Hemeroteca Municipal de Lisboa e outras instituições portuguesas grande levantamento acerca de notícias, resenhas, ensaios, caricaturas etc. acerca dos livros decadentistas simbolistas. 1


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seria o de “definir o novo lirismo”, então representado no Brasil por Luís Murat e Olavo Bilac. Antes de debruçar-se efetivamente sobre a obra desses poetas, Romero combateu em seu texto, publicado em 8 de outubro de 1890, a instrumentalização da arte, isto é, sua sujeição a teorias ou doutrinas políticas, religiosas ou filosóficas. Seguindo a tendência geral da arte, a “nova lírica nacional” não almejava “ser doutrinária, nem moralizante” (ROMERO, 8 out. 1890, p. 1). Na Cidade do Rio , dirigida por José do Patrocínio, Oscar Rosas publicou em 9 de outubro de 1890 o artigo “Velhos” em que classificou de “inutilidade crítica” o artigo de Romero”, a quem considerava ironicamente um “bom pai de família, metido a sebo de falar de arte” com uma “estética duvidosa, a Castilho, a Tobias Barreto”. Rebaixando de tal forma o seu antagonista, Oscar Rosas não iria eximir-se de zombar de uma flagrante tautologia encontrada no texto que examinava: “Como definição e arte, o Sr. Sílvio dá esta: Arte é a arte , o que é magnífico” (ROSAS, 9 out. 1890, p. 1). Sem deter-se longamente na análise dos argumentos de Romero, o colaborador da Cidade do Rio condenou peremptoriamente o trabalho divulgado pela Gazeta de Notícias : ... nunca, até hoje, produziu [Romero] artigo que tanto desacreditasse um diletante de letras, um bom professor honesto, como esse que, ontem, sem estilo, sem forma e sem cousa alguma de equilíbrio mental, injustamente, nos vem falar destas cousas. (ROSAS, 9 out. 1890, p. 1)

Em suas críticas ao medalhão , o novo Oscar Rosas atribuiu os supostos equívocos de Romero tanto a inconsciência , por ser este “vítima de leituras desencontradas” feitas “sem orientação”, quanto a má-fé : “o homem é ‘falsificado’, tanto em filosofia como em arte, cousa de que não entente, porque não a exerce e nunca provou conhecê-la” (ROSAS, 9 out. 1890, p. 1). A virulência de Oscar Rosas em suas críticas pode parecer ratuita, mas Romero tinha espalhado em seu texto da Gazeta de Notícias algumas carapuças que bem poderiam servir para o novo jornalista. O crítico sergipano havia


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mencionado os “mirmidões2 do Brasil, pobres medíocres de inteligência e de cultura, que só acreditam nos fatos e nas ideias quando se lhes atiram em cima palavras de escritores estrangeiros”, e também os “pacotilheiros de sensaborias” que poderiam julgar a poesia como essencialmente doutrinária e moralizante. Romero atribuía a estes as “sovadas ideias na parvoeira da prosa poética ou nas intrujices da poesia prosaica” (ROMERO, 8 out. 1890, p. 1). Sendo muitos dos novos admiradores fervorosos dos poetas e teóricos franceses daquele tempo (Mallarmé, Verlaine, Moréas, Gustave Khan, René Ghil etc.) e apreciadores ou mesmo cultivadores da prosa poética, uma das principais novidades introduzidas pelos decadentistas-simbolistas, a irreverência do historiador da literatura brasileira deve ter desagradado profundamente Oscar Rosas e alguns de seus amigos. Em O País, na edição de 11 de outubro, Busca-Pé (pseudônimo de Oscar Guanabarino), com ironia, deu razão ao panfletário da Cidade do Rio, subscrevendo suas críticas a Sílvio Romero: “não presta para nada, não sabe nada, não tem talento, não usa gravata chic, não tem elegância, não digere o que lê, não sabe o que diz, e não diz o que sabe”. Sabia-se de antemão que o humorista tinha o crítico sergipano em alta conta e, com sua ironia, apenas evidenciava o despropósito do novo ao criticá-lo. Não é casual, por isso, que Busca-Pé no mesmo texto questionasse Oscar Rosas a respeito do “catálogo das produções dos novos” (BUSCA-PÉ, 11 out. 1890, p. 1), pois estes nada de significativo haviam publicado até então, ao contrário do que ocorria com o prolífico historiador da literatura brasileira. Em uma decisão inusitada, Oscar Rosas deu continuidade às suas críticas ao artigo de Sílvio Romero em outro periódico, o vespertino Novidades. Tendo o crítico sergipano definido a arte como “uma planta que brota em um terreno diverso daquele em que frutificam a virtude e o vício, e planta que morre logo que querem mudá-la para outro sítio” (ROMERO, 8 out. 1890, p. 1), Rosas pôde dar-se o prazer de considerar tal definição “pura retórica melosa de paspalhice e toleima”. Treze anos mais novo do que o medalhão da crítica nacional, o cronista das Novidades julgou-se apto e no direito de dar conselhos ao seu antagonista, insinuando mais uma vez que este era estranho ao mundo da arte:

___________ 2 Ajudantes de cozinha.


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Olhe, um homem que é fiscal de bancos, professor, que tem de almoçar, jantar e ceiar, que pratica a higiene e mais algumas necessidades da civilização, que tem amigos a visitar, compras a fazer, etc., etc., perdoe-me Dr., não tem tempo de fazer arte, de cuidar dela e quem não faz isto não tem a sua amizade, não a entende. [...] o dr. Sílvio deve lançar a vaidade pela porta a fora [sic] e tratar de ser um bom fiscal, senão nem uma nem outra cousa. (ROSAS, 11 out. 1890, p. 2)

A irreverência de Oscar Rosas desagradou também a João Ribeiro, cronista semanal de O País , que afetou não dar importância às suas críticas: “Esse diabo de novo sem ortografia e sem as suas primeiras letras conscientemente estudadas é um dos melhores da legião, mas... nem mesmo entende o que lê” (RIBEIRO, 12 out. 1890, p. 1). Na sequência da crônica, Ribeiro apresentou argumentos que comprovariam sua asserção. A polêmica dos novos ainda iria suscitar muitos comentários e intervenções dos colaboradores dos periódicos cariocas. Nesse momento em que uma nova geração procurava afirmar-se contra os escritores consagrados, Valentim Magalhães emitiu em O País um “sinal de alarma” contra uma suposta decadência das letras nacionais: “Não surgem novos escritores e os antigos, isto é, os que já estavam , vão perdendo a força e o brilho, a própria voz”. Na opinião do crítico, Machado de Assis estava “quase mudo”, Olavo Bilac apenas passeava “a sua elegante nostalgia no boulevard ”, deixando fechado o seu “escrínio oriental”, e Aluísio Azevedo havia adormecido “no Cortiço ”. As causas, em sua opinião, seriam essencialmente duas: o aumento em número e formato dos jornais, que ocupavam “os raros e curtos lugares deixados pela struggle for life para leitura de volumes”, e o conturbado contexto do Encilhamento: “a febre do dinheiro, a carestia da vida, a despreocupação das coisas da arte e a preocupação das da bolsa por parte do público produziram a baixa na procura e, portanto, na produção”. Via-se logo que o crítico não julgava ser possível depositar esperanças de regeneração nos chamados novos, haja vista que, em sua opinião, jamais se vira “mort-nées mais lamentáveis”, gorados “nos


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respectivos ovos logo após as primeiras e atrevidas bicadas na casca”. Sendo assim, Magalhães convocava à reação “os chefes ilustres que a imprensa coroa[va], reverente e ofuscada, os gloriosos generais da nossa literatura” (MAGALHÃES, 25 jun. 1891, p. 1). Ou seja, contava com os carraças . O alarmismo de Valentim Magalhães não ficou sem resposta e, assim, em 2 de julho de 1891, o crítico voltou às páginas de O País , para justificar-se diante dos que contestaram os argumentos de seu artigo sobre a “Decadência literária”. A primeira contestação que rebateu dizia respeito à possibilidade de ser a imprensa periódica veículo legítimo e eficaz da literatura. Para Valentim Magalhães, porém, não haveria “literatura sem livros”, porque “não se escrevem obras de fôlego e valor para terem a duração de uma gazetilha”, para desaparecerem juntamente “com as folhas que as publicassem”. Em sua opinião, jornais e revistas seriam de “incômoda leitura” e não chegariam às “camadas populares”. No Brasil, com exceção de alguns contos e “raríssimos romances” e apesar da contribuição de jornais como O País , Gazeta de Notícias e Correio do Povo , a literatura veiculada por periódicos ficava reduzida a “ligeiros artiguetes escritos sobre a perna para as seções fixas das folhas”. O segundo argumento de seus contestadores, que diziam estar a caminho “uma deslumbrante inundação de obras-primas”, Magalhães destruiu com ironia, observando simplesmente que tal produção ainda estava nas “nebulosas regiões do incriado” e apenas poderia “entrar na ordem das possibilidades”. Para o crítico, essa crença em “promessas de obras-primas que nunca aparecem” e as “doces esperanças de escritores de gênio” estavam associadas a uma “ingenuidade cabocla”. Por fim, Magalhães acrescentou duas causas para a decadência literária não mencionadas no artigo anterior: “falta de educação do povo” e “carência de regulamentação dos direitos autorais” (MAGALHÃES, 2 jul. 1891, p. 2). Observe-se que os argumentos de Valentim Magalhães atingiam a maioria dos novos, que, ainda inéditos em volume, vinham publicando suas produções em periódicos.


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Xavier de Carvalho Papel importante na difusão das ideias e obras decadentistas-simbolistas foi exercido pelos diversos correspondentes estrangeiros dos periódicos cariocas, que procuravam colocar seus leitores brasileiros a par do que se passava na Europa. Para O País , Xavier de Carvalho enviava a sua “Carta parisiense”, onde sempre havia referências à literatura francesa e, eventualmente, à portuguesa. O cronista não primava pela modéstia e não escondia ser amigo de escritores decadentes e de Léon Vanier, que informava ser o editor “de todas as refinadas elegâncias da prosa e do verso moderno” (CARVALHO, 18 set. 1891, p. 2). Ao noticiar a iminente publicação, pela casa editora de Vanier, de Mes hôpitaux , de Paul Verlaine, Carvalho descreveu para seus leitores cariocas o hotel “meio borgne ” em que habitava o poeta francês e narrou-lhes em primeira mão anedotas que ouvira do próprio autor da Sagesse , com quem almoçara poucos dias antes e que lhe narrara episódios de sua existência picaresca (CARVALHO, 8 jul. 1891, p. 2). Ao tratar da “maior inundação”, nas livrarias parisienses, “de versos simbólicos e decadistas”, Xavier de Carvalho disse ao leitores de O País que costumava apreciar os novos livros, como um aperitivo, às “margens verdes” do Sena, de “papo para o ar”, acompanhando o movimento dos barcos (CARVALHO, 25 set. 1891, p. 2). A despeito desse seu evidente esnobismo, - ou justamente por causa dele, — o cronista português não deixava de noticiar a publicação de livros de “simbólicos” como Albert Saint Paul (CARVALHO, 25 jun. 1891, p. 2), de “romanos” como Chales Maurras (CARVALHO, 18 set. 1891, p. 2) e de “neocatólicos” como Laurent Tailhade, Luis le Cardonnel e Charles Morice (CARVALHO, 25 set. 1891, p. 2). Em 20 de julho de 1891, ao tratar dos “livros novos” no fragmento final de sua crônica, o correspondente estrangeiro noticiou a publicação das Poesias, de Alberto de Oliveira, cujo título trocou por Versos de Alberto de Oliveira, e entrou a dissertar sobre a literatura contemporânea de Portugal. Do livro, disse possuir


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“impressão magnífica” e conter duas “gravuras admiráveis”. Em sua opinião, em Paris “não se faria uma edição superior a esta”. As considerações de Xavier de Carvalho sobre os poemas propriamente ditos não foram além da generalidade de dizer que as “rimas tilinta[va]m numa guizalhada satânica, entre o explosir [sic] de mil auroras sob um céu de morango maduro”. Havia mais precisão em sua observação de que os “admiráveis versos” do livro seriam “de uma fatura toda moderna, como os versos de [Francis Vielé-]Griffin e de muitos dos novos decadistas” (CARVALHO, 20 jul. 1891, p. 2). Em sua crônica, Carvalho também destacou o fato de que a segunda parte do livro, “Pores de sol”, era dedicada a Antonio Nobre. Essa menção forneceu-lhe o pretexto para tratar da “nova geração de poetas e prosadores” surgida em Coimbra e no Porto, de cujos membros muitos haveriam de “vingar”, caso não se esterilizassem “no café Suíço e no Camanho, entre a intriguinha barata e o elogio mútuo”. Alberto de Oliveira estaria fadado ao sucesso e constituía com seu amigo Nobre e Alberto Osório de Castro, Agostinho de Campos, Oliveira Alvarenga, Eugénio de Castro, António de Oliveira Soares e Raul Brandão a “falange” que deveria triunfar sobre a “esterilidade do meio literário lisboeta”. Tal floração não era casual, pois fora “no norte que se robusteceram quase todos os grandes mestres da moderna literatura portuguesa” como, em sua opinião, Antero de Quental e Teófilo Braga (CARVALHO, 20 jul. 1891, p. 2). Em breve consideração formal sobre as Poesias , de Alberto de Oliveira, o corresponde estrangeiro notou queo jovem poeta português adotara os alexandrinos com cesuras na quarta e oitava sílabas poéticas, que eram então “muito usados pela moderníssima geração lírica francesa, sobretudo pelos poetas de Bruxelas”. Carvalho confessou que, em seus ouvidos acostumados ao alexandrino tradicional, composto de dois hemistíquios, os novos soavam “sem harmonia”. Reconheceu, no entanto, com boa vontade, que era apenas “questão de habituar o ouvido à nova cadência” (CARVALHO, 20 jul. 1891, p. 2). O minucioso e equilibrado relato sobre o decadentismosimbolismo português e a amizade com o editor Vanier e escritores modernos como Verlaine poderiam fazer supor


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que Xavier de Carvalho fosse admirador e defensor intransigente das novidades literárias europeias. No entanto, suas restrições a elas ficaram evidentes quando tratou de um suposto krack do livro, que a imprensa parisiense havia colocado na ordem do dia. Se havia tal crise, ela não podia, em sua opinião, ser atribuída ao “fastio” do público para com a “literatura demasiadamente doutrinária” ou à “liquidação do realismo”. Segundo Carvalho, um dos fatores poderia ser a concorrência dos gabinetes de leitura , que facilitavam e barateavam o acesso às publicações. Outro talvez fosse o excesso de oferta, pois “todos os rapazes de 20 a 25 anos, educados pela boêmia do bairro latino e pelos símbolos decadistas”, publicavam “um volume por ano”. Eram muitos escritores novos e muitos “imortais de pacotilha”:

Ele é o imortal Jean Moréas, hoje descrente do simbolismo e guindado a patriarca da escola romana; ele é o imortal René Ghil, o chefe dos instrumentistasevolutivos, descobridor do decadismo em Portugal; ele é o imortal Albert Saint-Pol-le-Magnifique, simbolista de quatro costados.

O grande público, porém, mantinha-se afastado deles, pois não os conhecia nem compreendia “deliquescências e nevroses”. Como Paul Bourget, Guy de Maupassant, Mirbeau e Mélévier vendiam bem e Zola continuava a desfrutar de uma popularidade extraordinária, krack, se havia, era o “das publicações decadistas, dos romances sem miolo, dos livros pessimistas” (CARVALHO, 22 out. 1891, p. 2). Pinheiro Chagas Um dos mais acatados correspondentes estrangeiros da imprensa carioca era certamente Pinheiro Chagas, exministro, deputado, literato e jornalista português. Para O País , escreveu dois artigos em que zombou dos dois principais representantes da nova geração de poetas


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portugueses, isto é, Eugénio de Castro e Antóno Nobre. O artigo em que tratou do autor de oaristos (1890) e Horas (1891) recebeu o título de “Os nefelibatas”, termo com que a imprensa portuguesa então se referia pejorativamente aos jovens poetas, embora houvesse figurado, como um cartel de desafio, no prefácio das Horas , no qual Castro se atribuíra um “nobre e altivo desdém de nefelibata” (CASTRO, 1891, p. VI). Pinheiro Chagas criticou-lhe as pretensões de fundar-se uma escola poética e imporem-se regras de composição (CHAGAS, 9 jan. 1892, p. 1). Quanto ao poeta do Só , ridicularizou sua artificiosa ingenuidade ou simplicidade, mas reconheceu seu talento e sua capacidade de forjar imagens belíssimas e originais (CHAGAS, 19 jul. 1892, p. 1). Ambos os artigos foram republicados com intervalos menores do que um mês noCorreio da Manhã , de Lisboa, periódico que era dirigido pelo próprio Pinheiro Chagas. Antes de ocorrerem essas publicações, os textos já haviam suscitado polêmica em Portugal graças a números do carioca O País que atravessaram o Atlântico e em virtude de transcrições parciais realizadas por outros periódicos portugueses. Pode-se presumir que a publicação integral dos artigos era aguardada com certa ansiedade pelo público de Portugal. Em O País , edição de 16 de agosto de 1892, Pinheiro Chagas também publicou sobre Os simples , de Guerra Junqueiro, um artigo que se compunha de uma transcrição de breve resenha já publicada anonimamente no citado diário lisboeta em 3 de junho e de novas considerações sobre o livro. Na primeira parte, divulgada previamente em Portugal, havia breves considerações sobre vários poemas do livro, mesclando-se elogios e reparos críticos. Embora reconhecesse que Os simples possuíam “páginas verdadeiramente admiráveis”, Chagas começava por observar que às vezes fatigava “um pouco” a “repetição quase incessante do mesmo ritmo”. Depois de dizer que se entusiasmara com o poema “Prelúdio”, afirmou que Junqueiro quis, com “A moleirinha”, provar que, ao “fazer nefelibatismo”, o fazia “melhor que todos os outros juntos”. Deste poema, cita versos em que se atribuem pensamentos a um burrico, para quem as estrelas eram


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“milho loiro” e a lua, “mó de jaspe”. O trecho suscita comentário sarcástico de Chagas:

O Sr. Eugénio de Castro fez da lua peneira, o Sr. António Nobre leiteira, o Sr. Guerra Junqueiro mó de moinho. A noite para o Sr. Eugénio de Castro é padeira, para o Sr. António Nobre dona de uma vacaria, para o Sr. Guerra Junqueiro moleira. / Pobre noite! E pobre lua! Caíram em boas mãos! (CHAGAS, 16 ag. 1892, p. 1)

Se para o correspondente estrangeiro do matutino carioca O País o poema “O cadáver” era “admirável”, “Ermidas”, “encantador”, e “O pastor”, uma “obra-prima”,o “Campo santo” não passava de uma “estopada”. Já “O cavador”, que considerava uma “poesia dilacerante de tom”, ficaria prejudicado pelo cansaço proporcionado pelo “dobre de sinos constante” do restante do livro. Para Chagas, o poema “Epílogo” seria “soberbíssimo”; dele transcreveu uma estrofe que o teria feito “correr as lágrimas de um modo irresistível” (CHAGAS, 16 ag. 1892, p. 1). Na continuação escrita apenas para seus leitores brasileiros, o cronista desenvolveu um pouco mais a comparação entre o “Prelúdio”, poema de abertura, e o “Epílogo”. Chagas condenou a solução alegórica adotada para o primeiro, empregando o seguinte argumento: ... quando um poeta de gabinete, um épico erudito, ainda que se chame Virgílio, começa a fazer esforços para criar alegorias, para transformar em entes que a sua fantasia laboriosamente fabrica os seres da vida real, os sentimentos da sua alma, nada há mais fatigador e mais fastidioso. (CHAGAS, 16 ag. 1892, p. 1

Após prever que Junqueiro ainda seria reconhecido como “um dos grandes poetas portugueses” do século XIX, que de A morte de D. João e A velhice do Padre Eterno sobreviveriam “largos trechos” do “naufrágio” do conjunto e que de A musa em férias e Os simples seria extraída uma “seleta” destinada a “encantar” os pósteros, Chagas acusou


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o poeta de escrever “A moleirinha” por não gostar de ser precedido por “inovadores de qualquer espécie”, por receio de ser considerado “fora de moda”, por temer que o público abandonasse Os simples para “se extasiar com as audácias do Só , de António Nobre”, e por não se conformar com “um passageiro eclipse da popularidade que o inebria[va]” (CHAGAS, 16 ag. 1892, p. 1). No fragmento final de seu texto, o cronista toma o poema “Cadáver” como indício de inflexão no espírito do poeta, que, invadido por um “sopro panteístico”, já não seria capaz de escrever o prometido livro A morte de Jeová, com o qual se encerraria sua trilogia satírica. Não era ainda, assegurava, a conversão completa do poeta ao catolicismo, mas indicação de que sua alma voltava-se, “compungida e anelante, para os ideais da crença, ainda vaga e indefinida” (CHAGAS, 16 ag. 1892, p. 1).

A Repercursão de Os simples Bem mais velho do que António Nobre e Eugénio de Castro, nascidos, respectivamente, em 1867 e 1869, Guerra Junqueiro, que contava 41 anos quando publicou sua obra lírica intitulada Os simples , conseguiu obter da imprensa carioca uma atenção que não foi dispensada aos citados nefelibatas . Com O País , não foi diferente. Além de Pinheiro Chagas, outros colaboradores escreveram a propósito do livro. No fragmento final de sua coluna “Reminiscências” de 27 de junho de 1892, José Fino (possivelmente pseudônimo de José Júlio da Silva Ramos) disse que a semana então conclusa fora “assinalada por um acontecimento literário”, o surgimento de nova obra do “revolucionário da poesia portuguesa”, isto é, Guerra Junqueiro. Segundo o cronista, haveria em Os simples “um lirismo encantador, uma suavidade bucólica, sem banalidades choramingas”. Tal fora a transformação do poeta, que seria difícil reconhecer nele “o agitador do protesto social na Morte de D. João ” (FINO, 27 jun. 1892, p. 1). Sob o conhecido pseudônimo de Caliban, Coelho Neto também dignou-se opinar sobre o novo livro de Guerra Junqueiro. Iniciou-se a crônica por considerações gerais sobre os críticos literários, que seriam incapazes de


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Em 14, 16 e 18 de setembro de 1892.

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expressarem-se com sinceridade e clareza “sem interferência dos mestres”. A crítica seria, assim, apenas “uma subsidiária de pensamento alheio”. Quando, adiante, Caliban disse não possuir a “ciência altíssima da crítica”, já se sabia que pretendera ser irônico e, na verdade, valorizar seu pretenso costume de formular suas opiniões “às escâncaras, desassombradamente, sem circunlóquios, sem arrebiques”. Para o cronista, o livro de Guerra Junqueiro seria “mais do que uma grande pastoral em que tomam parte promiscuamente seres e coisas” e deveria ser lido como a expressão alegórica da vida e dos sentimentos do poeta. Ao final da crônica, suspendendo suas considerações sobre Os simples , Caliban declarou ter pretendido apenas aguçar a curiosidade do leitor por aquela “bíblia que Teócrito não duvidaria assinar”. Nessa avaliação essencialmente positiva, as “estrofes maviosíssimas” (CALIBAN, 17 jul. 1892, p. 1) do livro não foram associadas ao nefelibatismo ou decadentismo , o que poderia comprometer a sua recepção pelo público. Cabe assinalar que a livraria Garnier publicou em O País pelo menos três anúncios do livro,3 que expunha à venda. em suas prateleiras. Poderiam os colaboradores do jornal exprimir uma avaliação que depreciasse Os simples? No início de 1893, sob as iniciais C. F., Crispiniano da Fonseca relatou em suas “Lérias” encontro que tivera um ano antes, no Porto, com o satírico de A velhice do Padre Eterno. Naquela ocasião, Junqueiro lhe confidenciara ter “enfim conseguido achar “uma revolução completa à estética contemporânea” (FONSECA, 13 jan. 1893, p. 1). Esse testemunho do jornalista português vinha reforçar a impressão de que Guerra Junqueiro nutria grandes expectativas em relação à repercussão de sua obra lírica. Como concluíra Pinheiro Chagas, o poeta de Os simples não suportava a ruidosa “concorrência” dos jovens nefelibatas, que ameaçavam ofuscar o seu brilho e negar o seu protagonismo.

Uma bela síntese Em longo e importante artigo publicado em O País no dia 29 de dezembro de 1892, o português imigrado


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Crispiniano da Fonseca4 tratou das tendências de renovação da literatura em França e também em Portugal. Começou por observar que ocorreu com os “decadistas” o que geralmente aconteceria com aqueles que rompem com a “tradição” apresentando um “trabalho original”: “os já consagrados [...] surgem a gritar contra os recémvindos”. Em França, colocou-se na liderança do movimento de renovação Verlaine, secundado por Tristan Corbière, Mallarmé, Moréas, Kahn e Rimbaud. Já em Portugal “rompeu à frente” Eugénio de Castro com os seus Oaristos, que levantaram “uma gritaria geral”. Se, em um primeiro momento, “ninguém compreendeu o poeta”, já então se fazia justiça aos nefelibatas, entre os quais se contavam António Nobre, “um dos maiores poetas portugueses”, e Alberto de Oliveira, “um dos melhores prosadores” (FONSECA, 29 dez. 1892, p. 1). Após esse preâmbulo, o crítico se empenhou em apresentar as principais características formais e temáticas do “decadismo”, lançando mão de exemplos franceses e, principalmente, portugueses. Sobre o propalado misticismo, reconheceu que este não seria, de fato, sincero, pois lhe faltaria “a base de crença”. Fonseca assim justificou sua opinião:

O poeta não crê, mas deseja crer e esse desejo, com o poder de sugestão que uma alma de poeta comporta, dá uma aparência de crença à ideia e reveste-a do caráter de ingenuidade que particularmente encanta. (FONSECA, 29 dez. 1892, p. 1)

Como resultado desse processo, a obra de arte adquiriria um “duplo aspecto místico e mistificante”. Em função dessa orientação nova, a “escola decadista” inclinou-se para “novas formas poéticas”: 1) aproveitamento de formas poéticas antigas como o rondel e a xácara; 2) a heterometria; 3) léxico arcaizante; 4) atribuição de função simbólica a aspectos materiais do poema (talvez se referisse ao uso de iniciais maiúsculas ou de tipos de tamanho e/ou feitio diferentes); 5) repetições de palavras e versos; 6) “falta de cesura” no alexandrino e 7) onomatopeias (aliterações).

________________ Nascido em Aveiro no ano de 1961, José Crispiniano da Fonseca formou-se em Engenharia Civil e pode, graças aos recursos da família, viajar por toda a Europa, tornando-se fluente em várias línguas. Chegou ao Brasil em julho de 1892 e pouco depois já integrava a redação do matutino O País, respondendo pela crítica literária e teatral. Durante a Revolta da Armada,enviou espontaneamente correspondência ao Século, de Lisboa, com o objetivo de combater uma suposta “campanha de difamação” contra o Brasil. Faleceu no dia 16 de fevereiro de 1894 por haver contraído febre amarela. 4


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O que torna o artigo de Crispiniano da Fonseca especialmente interessante é o fato de ter esse crítico apresentado para todos os casos exemplos dos portugueses Guerra Junqueiro, Eugénio de Castro e António Nobre. Quando se tratou de condenar o abuso da obscuridade, que levaria ao hermetismo, encontrou-se o exemplo probante em versos do francês Verlaine. No encerramento do seu artigo, Fonseca associou a “orientação da nova poesia” ao “estado de espírito da humanidade” no final do século XIX. Com o predomínio do “fatalismo científico” e do materialismo, teria ressurgido enfim a necessidade de “acreditar em uma existência outra”. Assim, o “decadismo” vinha ao encontro da “ânsia messiânica” da sociedade de então (FONSECA, 29 dez. 1892, p. 1).

CONCLUSÃO Assim como outros jornais, O País envolveu-se na polêmica dos novos , dos quais muitos seriam anos depois membros atuantes do grupo simbolista. No começo da década de 1890, os novos experimentavam suas armas contra medalhões como Sílvio Romero e eram alvos de manifestações de desprezo ou zombaria como as promovidas por Oscar Guanabarino, João Ribeiro e Valentim Magalhães. Graças aos seus correspondentes estrangeiros, O País permitiu aos seus leitores colocarem-se a par do decadentismo-simbolismo europeu. Nesse aspecto, papel fundamental desempenhou a “Carta parisiense”, de Xavier de Carvalho, que proporcionou aos seus leitores cariocas informações detalhadas sobre a vida literária francesa, divulgando as obras e as personalidades de Verlaine, Mallarmé, Jean Moréas etc., e promoveu, apesar de eventuais restrições, jovens escritores portugueses como Alberto de Oliveira e António Nobre. Até mesmo o conservador Pinheiro Chagas, que com seu sarcasmo combatia o artificialismo e a falta de sinceridade com que julgava comprometidos os novos e até mesmo o veterano Guerra Junqueiro, contribuía paradoxalmente para a divulgação no Brasil das obras dos


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nefelibatas portugueses. Os redatores e colaboradores brasileiros do matutino O País não deram grande atenção aos decadentistassimbolistas europeus no período de 1890 a 1892. Como exceção que confirma a regra, pode-se mencionar a recepção de Os simples , de Guerra Junqueiro, autor que contava com o apoio promocional da influente livraria Garnier e já conquistara uma sólida reputação no Brasil com suas obras satíricas: A morte de D. João (1874) e A velhice do Padre Eterno (1885). Coube a um português recentemente imigrado, Crispiniano da Fonseca, publicar em O País , no final de 1892, o melhor artigo sobre o decadentismosimbolismo europeu com informações precisas sobre autores, obras e, principalmente, a estética decadentistasimbolista, colocando ênfase na orientação místicoreligiosa, nas ousadias formais, na obscuridade muitas vezes voluntária e na correspondência com as tendências ascendentes do pensamento do final do século XIX. O levantamento realizado em O País confirma, portanto, o interesse de uma ampla investigação nos periódicos cariocas sobre a repercussão do decadentismosimbolismo português no começo da década de 1890. REFERÊNCIAS

BUSCA-PÉ [pseudônimo de Oscar Guanabarino]. Foguetes. O País , Rio de Janeiro, p. 1, 8. col., 9 out. 1890. ______. Foguetes. O País , Rio de Janeiro, p. 1, 4. col., 11 out. 1890. ALIBAN [pseudônimo de Coelho Neto]. Palestra. A propósito dos “Simples”. O País , Rio de Janeiro, p. 1, 1.-2. col., 17 jul. 1892. CARVALHO, Xavier de. Carta parisiense. O País , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 25 jun. 1891. ______. ______. O País , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 8 jul. 1891. ______. ______. O País , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 20 jul. 1891. ______. ______. O País , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 18 set. 1891.


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______. ______. O País , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 25 set. 1891. ______. ______. O País , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 22 out. 1891. ______. ______. O País , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 7 nov. 1891. ______. ______. O País , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 1. maio 1892. CASTRO, Eugénio de. Horas . Coimbra: Manuel d’Almeida Cabral, 1891. CHAGAS, Pinheiro. Os nefelibatas. O País , Rio de Janeiro, p. 1, 1.-2. col., 9 jan. 1892. ______. Simples. O País , Rio de Janeiro, p. 1, 1.-2. col., 16 ag. 1892. ______. Só. O País , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 19 jul. 1892. F., C. Lérias. Guerra Junqueiro. O País , Rio de Janeiro, p. 1, 6. col., 13 jan. 1893. FINO, José. Reminiscências. O País , Rio de Janeiro, p. 1, 1.-2. col., 27 jun. 1892.

_________________ 5

Embora se tenha, de uniforme, maneira procedido à atualização ortográfica dos nomes próprios, conservou-se a oscilação de formas para o nome do poeta mineiro, que, depois, acabou por adotar a solução arcaizante de Alphonsus de Guimaraens.

______. Reminiscências.O País , Rio de Janeiro, p. 1, 1.— 2. col., 3 jan. 1892. FONSECA, Crispiniano da. Decadismo. O País, Rio de Janeiro, p. 1, 1.-3. col., 29 dez. 1892. GUERRA Junqueiro... O País, Rio de Janeiro, p. 4, 6. col., 18 set. 1892. ______. O País, Rio de Janeiro, p. 5, 1. col., 14 set. 1892. ______. O País, Rio de Janeiro, p. 6, 2. col., 16 set. 1892. GUERRA, J. Humorismos. O País, Rio de Janeiro, p. 1, 7. col., 6 jul. 1891. GUIMARAENS, Affonso.5 Dos “Salmos”. O País, Rio de Janeiro, p. 2, 2. col., 11 set. 1892. ______. Radidja. O País, Rio de Janeiro, p. 1, 5. col., 17 out. 1892. ______. Impressões de leitura. O País, Rio de Janeiro, p. 2, 3-4. col., 13 dez. 1890. ______. Impressões de leitura. O País, Rio de Janeiro, p. 2, 5. col., 17 dez. 1890.


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______. Literatura sem livros. O País, Rio de Janeiro, p. 2, 4. col., 2 jul. 1891. ______. O País, Rio de Janeiro, p. 2, 1. col., 17 nov. 1891. R., J. [iniciais de João Ribeiro]. O País, Rio de Janeiro, p. 1, 1.-2. col., 12 out. 1890. ROMERO, Sílvio. A poesia brasileira contemporânea – III. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, p. 1, 5.-6. col., 8 out. 1890. ROSAS, Oscar. Janela do espírito. Novidades, Rio de Janeiro, p. 2, 1. col., 11 out. 1890. ______. Velhos. Cidade do Rio, Rio de Janeiro, p. 1, 5. col., 9 out. 1890. TESOURA [pseudônimo de Augusto Fábregas]. Aparas. O País, Rio de Janeiro, p. 1, 7. col., 12 ag. 1892. ______. ______. O País, Rio de Janeiro, p. 1, 8. col., 13 ag. 1892. ______. ______. O País, Rio de Janeiro, p. 1, 8. col., 17 ag. 1892. UM NEFELIBATA. O País, Rio de Janeiro, p. 2, 2. col., 2 dez. 1892. VERLAINE, Paul. Soneto decadente. O País, Rio de Janeiro, p. 1, 6. col., 5 out. 1892.


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Notas sobre a noção de "fronteira" de Boaventura de Sousa Santos e a trilogia Os filhos de Próspero, de Ruy Duarte de Carvalho. Anita Martins Rodrigues de Moraes

RESUMO: Neste trabalho, investigo convergências e divergências entre o projeto literário do escritor angolano Ruy Duarte de Carvalho, com foco na trilogia Os filhos de Próspero , e o que podemos alcunhar de projeto utópico de Boaventura de Sousa Santos. Na primeira parte do artigo, desenvolverei considerações sobre a noção de “fronteira” como delineada por Santos; na segunda parte, tratarei da produtividade de alguns aspectos desta noção para abordagem da obra de Ruy Duarte de Carvalho; já na terceira parte, apontarei a firme distância que a obra do escritor angolano mantém com relação a qualquer valorização do colonialismo português, gesto a que a noção de “fronteira”, como traço da “identidade portuguesa”, pode conduzir. PALAVRAS-CHAVE: identidade de fronteira, colonialismo português, ciência e literatura.

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Universidade Federal Fluminense (UFF) 

ABSTRACT: In this paper I will compare certain aspects of what one may call Santos’s “utopian project” with the literary work of Ruy Duarte de Carvalho, in particular the trilogy Os filhos de Próspero [The Prospero’s Sons]. In the first part of the article, I develop considerations on the notion of “fronteira ” as outlined by Santos; in the second part, I deal with the productivity of some aspects of this notion as an approach to the work of Ruy Duarte de Carvalho; while in the third part, I discuss the resolute distance that the Angolan writer’s maintains with respect attributing the slightest value to Portuguese colonialism, a gesture to which the notion of “fronteira” as a trait of “Portuguese identity”, advocated by Santos, may lead KEYWORD: frontier identity, Portuguese colonialism, science and literature.


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No ensaio “Modernidade, identidade e a cultura de fronteira”, incluído em Pela mão de Alice (1994), Boaventura de Sousa Santos sugere que Portugal teria configurado uma forma cultural específica e bastante positiva. A noção de “cultura de fronteira” surge como aspecto decisivo da identidade portuguesa, sugerindo-se que esta seria uma identidade fronteiriça. Boaventura de Sousa Santos entende que o Estado português nunca teria sido suficientemente forte para promover a supremacia do espaço nacional em detrimento do local e do transnacional (o que teria ocorrido nos países centrais da Europa, como Inglaterra e França, ao longo do XIX). Nessa indistinção com relação ao exterior, ganha destaque a proximidade com o colonizado: Portugal nunca teria sido suficientemente “semelhante às identificações culturais positivas que eram as culturas européias, nem suficientemente diferente de outras identificações negativas que eram, desde o século XV, os outros, os não europeus” (1994; p. 151). Boaventura de Sousa Santos fala em “matriz intermédia, semiperiférica, da cultura portuguesa” (1994; p. 151) associada ao fato de os “Portugueses terem sido, a partir do século XVII (...) o único povo europeu que, ao mesmo tempo que observava e considerava os povos das suas colônias como primitivos ou selvagens, era, ele próprio, observado e considerado, por viajantes da Europa do Norte, como primitivo e selvagem.” (1994; p. 152) Santos destaca, então, certas características bastante positivas da “cultura de fronteira”: a criatividade e subversão cultural (1994; p. 153), o cosmopolitismo (1994; p. 153), a carnavalização dos produtos culturais incorporados, “atitude mais lúdica que profilática, mais feita de consciência da inconsequência do que da consciência de superioridade” (1994; p. 154), carnavalização esta associada ao suposto “elemento barroco da cultura portuguesa” (1994; p. 153, nota 4). O autor se encaminha para a conclusão de seu ensaio sugerindo “que esta forma cultural tem igualmente vigência, ainda que de modo muito diferenciado, no Brasil, e de modo mais remoto, nos países africanos de língua oficial portuguesa”. (p. 154) Apesar de ponderar que é necessário lembrar a “assimetria matricial” entre o português e os casos brasileiro e africano, dada a " imposição violenta do primeiro”, ganha destaque a


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positividade da identidade fronteiriça, dotada de “riqueza e virtualidades”, riqueza que estaria “acima de tudo, na disponibilidade multicultural da zona fronteiriça”. (p.155). A noção de fronteira ressurge no ensaio “Não dispare sobre o utopista”, capítulo final de Crítica da razão indolente (2000). Neste ensaio, porém, a noção de fronteira apresenta-se dissociada da identidade cultural portuguesa. Trata-se de propor formas de subjetividade emancipatórias, dispostas a lutar por um novo paradigma civilizacional. Boaventura de Sousa Santos recorre, então, ao discurso utópico, imaginando quais subjetividades, pessoais e coletivas, estariam aptas a promover ou consolidar a mudança paradigmática que seu trabalho anuncia. Sua proposição central parece ser a de que vivemos um momento de crise paradigmática, ou seja, crise do paradigma da modernidade, havendo sinais de um paradigma emergente, alternativo. O autor leva adiante suas reflexões sobre a modernidade ocidental, retomando em vários aspectos Pela mão de Alice (1994) e Um Discurso sobre as ciências (1988). Acusa a hegemonia do conhecimento científico sobre outras formas de conhecimento, como também sua vinculação aos interesses de mercado. Tal movimento (hegemonia da ciência e submissão desta ao mercado) teria produzido desequilíbrio entre forças regulatórias e emancipatórias da modernidade, produzindo-se um excesso de regulação em detrimento da emancipação (especialmente a partir do século XVIII, com a associação entre ciência e desenvolvimento tecnológico, resultando no que chama de “automatismo da tecnologia”). O desafio presente seria escavar na modernidade potencialidades emancipatórias marginalizadas ou apagadas, como também procurar contribuições em outras tradições culturais, de maneira a se lutar por um novo paradigma (em Pela mão de Alice , alcunhado de “eco-socialista”), em que a emancipação não seja tragada pela regulação. Quais as subjetividades imaginadas pelo autor como capazes de lutar por tal projeto? A subjetividade de fronteira, a subjetividade barroca e a subjetividade do sul. Vejamos como o autor define a subjetividade barroca:


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Tal como aconteceu com o conceito de fronteira, utilizo o barroco enquanto metáfora cultural para designar o tipo de subjetividade e de sociabilidade capaz de explorar e de querer explorar as potencialidades emancipatórias da transição paradigmática. (…) Tanto o Brasil como os outros países latino-americanos foram colonizados por centros fracos, respectivamente Portugal e Espanha. (…) A partir do século XVII, as colônias ficaram mais ou menos entregues a si próprias, uma marginalização que possibilitou uma criatividade cultural e social específica, diversificadamente elaborada em múltiplas combinações, ora altamente codificada, ora caóticas, ora eruditas, ora populares, ora oficiais, ora ilegais.(…) Interesso-me por esta forma de barroco porque, enquanto manifestação de um exemplo extremo da fraqueza do centro, constitui um campo privilegiado para o desenvolvimento de uma imaginação centrífuga, subversiva e blasfema. Por se formar nas margens mais extremas, o barroco coaduna-se surpreendentemente bem com a fronteira. Se o barroco europeu é o Sul do Norte, é no Sul desse Sul que o barroco latino-americano se desenvolve. (SANTOS, 357-358)

Pode-se notar, nesta passagem, o deslizamento entre o uso do termo “barroco” enquanto uma metáfora e o uso da categoria “barroco” como adequada para descrever uma cultura específica – a produzida em Portugal, Espanha e América Latina no século XVII. 1 O autor interpreta esta produção cultural (aliás, bastante vasta) e seleciona traços supostamente seus para delinear certa forma de subjetividade que, contemporaneamente, estaria empenhada em “explorar criativamente” um período de transição paradigmática. Tal procedimento – partir de certa experiência história concreta para delinear metáfora útil na elaboração de uma “subjetividade emancipatória” – resulta no deslizamento de traços da subjetividade imaginada para a experiência histórica de partida (o barroco ibero-icano). Penso que, no que se refere à noção de fronteira”, Santos se vale do mesmo procedimento, de maneira que experiências históricas são investidas de positividade que, em princípio, seria própria da subjetividade emancipatória imaginada, utópica.

____________ Para uma leitura crítica do uso do conceito de “barroco” para descrição das práticas letradas seiscentistas na Espanha, Portugal e Brasil, ler João Adolfo Hansen (1989; 1994). 1


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Nota-se, ainda, que o trecho citado deixa clara a imbricação entre as noções de Barroco, Fronteira e e Sul no pensamento de Santos. Vemos também que as periferias são particularmente caras ao autor, que vê nas margens do poder (no Sul, nas fronteiras) espaços propícios para o desenvolvimento de modos de sociabilidade e de pensamento alternativos aos do centro. Trata-se, afinal, de um convite à luta contra os centros hegemônicos de poder e de saber: Só o extremismo das formas permite que a subjetividade barroca mantenha a turbulência e a excitação necessárias para continuar a luta pelas causas emancipatórias, num mundo onde a emancipação foi subjugada ou absorvida pela regulação. Falar de extremismo é falar de escavação arqueológica no magma regulatório a fim de recuperar a chama emancipatória, por muito enfraquecida que ela esteja. (SANTOS, p. 362)

Enfoco, neste estudo, o primeiro tipo de subjetividade proposto pelo autor, a subjetividade de fronteira, contudo, é importante destacar que o barroco é também, para Santos, atributo da cultura portuguesa (como vimos em Pela mão de Alice ), tanto quanto o caráter fronteiriço – e também o Sul, pois Portugal parece ser o Sul no Norte, ou o Sul na Europa. Os atributos positivos da cultura ou identidade portuguesa, sugeridos em Pela mão de Alice, são exatamente os mesmos que caracterizam as subjetividades emancipatórias delineadas pelo autor em Crítica da razão indolente (a fronteira, o barroco e o Sul). Para esboçar uma subjetividade fronteiriça, Boaventura de Sousa Santos recorre a estudos sobre comunidades de fronteira especialmente ocupados da cultura de fronteira norte-americana, implicada na conquista do oeste. Segundo o autor, sua abordagem não terá preocupação com exatidão histórica (2000; p. 347), pois o que busca é construir um tipo-ideal da sociabilidade de fronteira, para, então, traçar uma das formas de subjetividade dispostas a lutar pela consolidação de um paradigma emergente. É, porém, importante reter que, se no que tange aos estudos sobre a fronteira norte-americana não há preocupação do autor com exatidão histórica, quando dos estudos do


56 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.24, 2014 do colonialismo português a noção de fronteira surge como chave explicativa de uma dinâmica cultural desenvolvida ao longo de séculos de “contato” entre “semicolonizadores”portugueses e “semicolonizados” da África, da América e da Ásia (como vimos, este é o empenho do autor em Pela mão de Alice). A sociabilidade de fronteira teria algumas características especialmente caras a Santos: (...) uso muito seletivo e instrumental das tradições trazidas para a fronteira por pioneiros e emigrantes; invenção de novas formas de sociabilidade; hierarquias fracas; pluralidade de poderes e ordens jurídicas; fluidez das relações sociais; promiscuidade entre estranhos e íntimos; mistura de heranças e invenções. (2000, p. 347)

O trânsito (ou oscilação) entre a recuperação de aspectos de uma experiência histórica particular (as comunidades de fronteira decorrentes da expansão colonial inglesa) e a composição da fronteira como metáfora de uma forma de subjetividade que o autor considera positiva – trânsito este que caracteriza a construção argumentativa de Boaventura de Sousa Santos –, convida a múltiplas associações com o projeto literário de Ruy Duarte de Carvalho. Gostaria de sugerir, inicialmente, que a noção de fronteira, como delineada por Santos, contribui para que se iluminem certos aspectos do projeto literário de Ruy Duarte de Carvalho. Por um lado, este antropólogo-escritor dedicou parte relevante de sua produção a uma região de fronteira específica, o deserto do Namibe, no sul de Angola e norte da Namíbia; por outro, navegou entre diferentes modalidades de conhecimento, transitando entre antropologia e literatura. A cabotagem (navegar nos limites do espaço conhecido, ampliando esses próprios limites) e a hibridação, que surgem no argumento de Boaventura como estratégias próprias da fronteira (2000, p.354-356), parecem-me produtivas para pensarmos a produção de Ruy Duarte de Carvalho. Navegando entre literatura e antropologia, entre ficção e ciência, a trilogia Os filhos de Próspero abala e redefine os limites entre tais domínios. Configura, assim, um discurso híbrido, que


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não se inscreve completamente nos espaços da ficção, da autobiografia, do ensaio ou da antropologia, mesclando estas formas de conhecimento e representação. De certa forma, podemos dizer que a fronteira é tema da trilogia –como espaço geográfico e forma cultural – e está implicada em sua estrutura mesma, de caráter híbrido. Segundo Boaventura de Sousa Santos, estar na fronteira implica numa distância com relação aos centros de poder (a metrópole colonial) e de saber (o paradigma dominante, no caso da modernidade ocidental, científico). Ao sugerir que vivemos um tempo de transição paradigmática, relaciona o paradigma dominante a um centro, ou metrópole, e o emergente a sua margem, ou periferia – tornando-se, a fronteira, figura de nosso tempo presente, dos desafios epistemológicos com que nos deparamos num período de crise. Faz-se preciso saber navegar entre esses paradigmas (habitar a fronteira) e configurar alternativas (novas formas de conhecimento, híbridas). O autor explora, assim, a metáfora da fronteira, refletindo tanto sobre a possibilidade (ou necessidade) atual de se experimentarem relações sociais alternativas como novas formas de conhecimento (2000, p. 355). A associação do paradigma científico, dominante, aos centros de poder repõe a crítica à ciência moderna levada a cabo pelo autor especialmente em Um Discurso sobre as ciências (1988). Trata-se de acusar na dicotomia sujeito/objeto, estruturante do paradigma científico, uma relação desigual de poder. De outra maneira: conhecer teria se tornado, na modernidade ocidental, dominar, controlar, reduzir o que se pretende conhecer a objeto, a coisa a ser manipulada (no que Boaventura de Sousa Santos segue de perto, mesmo que não explicitamente, as proposições de Adorno e Horkheimer desenvolvidas na Dialética do esclarecimento). Ao propor uma subjetividade de fronteira como apta a lutar por um paradigma emergente, Boaventura de Sousa Santos aposta numa experiência de identidade que não se dê pela negação do outro (experiência colonial), mas que se permita transitar entre o próprio e o outro. Se a ciência moderna ampara-se na dicotomia entre sujeito e objeto, a subjetividade fronteiriça se esmeraria em borrá-la; se o colonialismo instaura a distinção radical entre o “mesmo” e o “outro”, entre “nós” e “eles”, a fronteira instauraria a ambigüidade, a “promiscuidade entre


58 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.24, 2014 estranhos e íntimos” (2000; p. 347). Na trilogia Os filhos de Próspero , tanto a ciência moderna como a experiência colonial são colocadas em perspectiva. Os três livros de Ruy Duarte de Carvalho se armam de maneira a sugerir a condição instável e precária das identidades e das formas de conhecimento. Sempre limitado a perspectivas singulares, o conhecimento possível não se assume imparcial, objetivo e universalmente válido. Ao contrário, a antropologia, a geografia, a geologia e a biologia surgem como disciplinas historicamente devedoras da empresa colonial, ligadas a interesses específicos. No primeiro romance da trilogia, Os papéis do inglês (2000), esta associação é, no que tange à antropologia, particularmente evidente. Interessa-me destacar que o recurso a duplicações e contaminações da figura do narrador-personagem (que, nos três livros, seria o próprio escritor) nos respectivos protagonistas (Perkings, Severo e Trindade) sugere a condição artefactual do “eu”, cuja existência parece depender de estratégias de ficcionalização. O narrador-personagem fala de outros para falar de si, transfigura-se para se conhecer e reconhecer, existindo para si e para os outros (e os outros para si) na medida desse processo de ficcionalização. Processo este que não se encerra, que se desdobra, duplica e ramifica de maneira potencialmente infinita – a própria constituição da trilogia encena esse movimento. O mesmo se pode dizer quanto ao conhecimento do real, ou melhor, a realidade surge implicada num processo de criação e recriação infinita. O leitor é levado a duvidar de que haja uma identidade estável, apta a apreender e revelar realidades objetivas, fixas e apreensíveis pelo sujeito que vê e fala – tanto o sujeito que conhece como o mundo a conhecer se inscrevem num processo dinâmico de invenção. Em As paisagens propícias (2005), segundo romance da trilogia, o narrador-escritor, comentando sua disposição a escrever “num desses famosos cadernos de capa preta” (p. 11), reflete sobre a condição do sujeito da escrita, sugerindo a existência de um narrador que não coincidiria com ele próprio (p. 12). Esta duplicação anunciada de início será repetida na relação do narrador-personagem com o protagonista, Severo, que será também por vezes narrador.2 Anuncia-se já sobre o que se vai contar:

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2 Para estudo de Severo

como um duplo do autor/narrador, conferir dissertação de mestrado de Sonia Miceli (pp. 46-58).


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(...) A estória verdadeira, neste caso a viagem, vivida como ficção. Em viagem, portanto, o narrador... Disponível para deixar-se repescar do caminho afundado e solitário que sempre há-de ser da escrita, pelas escritas que o mundo captado expressivo porque imprevisto e “novo”, lhe convida a inscrever como ficção na ficção da sua própria narrativa e na expectativa, sempre, de que daí resulte, aí se dissimule, qualquer coisa que exceda a intenção, o contexto e o labor da escrita, alguma parte daquilo que o comum do dia-a-dia impede de ver, a sobreposição lenta de camadas finas e transparentes da própria ficção do mundo. (2005; p. 13)

Este mundo em processo, sempre novo, é associado a ficção e escrita. Escrever faz-se captar essa dinâmica, de certa maneira imitá-la, revelando-a ao dela participar. Em A terceira metade (2009), o narrador partilha com o leitor sua conversa com Trindade em torno de considerações de Severo sobre a poesia: (...) ....... a realidade não podia ser a natureza criada e feita de uma vez para sempre...... a realidade é e acontece num devir que a inventa, acrescenta e ao mesmo tempo a persegue, porque ela sempre transcorre, com ou sem a participação de um qualquer sujeito...... a experiência poética assumindo assim o papel de co-autor do mundo..... a palavra que funda....... se a palavra é que funda há coisas a nomear, há coisas que a palavra tem a haver e que virão a aumentar ou alterar a totalidade já incomensurável do mundo..... o possível, você não o tem previamente, não o tem antes de ter criado....... chega pelo acontecimento, e não o inverso...... pelas palavras que através de elevação violenta e inesperada revelam a profundidade e a singularidade de uma experiência...... (2009; p. 323)

O caráter artefactual do mundo (em processo de invenção e reinvenção permanente) de que a poesia participaria (ampliando-o e alterando-o) parece corresponder ao caráter artefactual do “eu”, que também existe como devir e invenção, sempre inacabado, em processo. Perkings, Severo e Trindade são personagens que (além de se contaminar de traços do narrador) experimentam deslocamentos que implicam em auto-invenção. O caso de Severo é extremo: precisa se disfarçar de ajudante mudo


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do kimbanda para sobreviver no deserto, e de fato acaba por se tornar adivinho (ou por se passar por adivinho...). Trindade, mucuísso das pedras, desprezado tanto por brancos como por bantos, deve se inventar e reinventar constantemente, lidando com a necessidade de ocidentalização e bantuização. A reinvenção permanente de si é traço destacado por Boaventura de Sousa Santos como constitutivo da subjetividade fronteiriça e marca os sujeitos representados na trilogia Os filhos de Próspero .3 Tal traço implica em novas apostas epistemológicas e formas de representação, como ambos autores podem sugerir. Se há convergências possíveis entre o projeto literário do antropólogo e escritor angolano e o projeto utópico do pensador português, há divergências que merecem atenção. Retomando a associação entre identidade de fronteira e identidade portuguesa já proposta em Pela mão de Alice , Boaventura de Sousa Santos escreve um ensaio que teria bastante fortuna: “Entre Próspero e Caliban” (2002). Neste ensaio, a experiência colonial portuguesa é lida na chave da inter-identidade, recuperando-se e desenvolvendo-se a idéia de que a fraqueza do colonialismo português teria produzido uma experiência cultural e identitária específica, distinta do colonialismo pleno (que seria o colonialismo inglês). O português teria sido a um só tempo colonizador e colonizado, constituindo uma identidade fronteiriça. Como vimos já em Pela mão de Alice, Portugal seria, para Santos, uma espécie de Sul do Norte, no Norte. Se lembrarmos das associações produzidas no ensaio “Não dispare sobre o utopista” (de Crítica da razão indolente) em torno da metáfora do Sul, veremos que a agressão colonial é um traço do Norte:

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Não me parece à toa que tanto o narrador-personagem como os protagonistas estão permanentemente em viagem. Sobre a questão, ler “A desmedida de Ruy Duarte de Carvalho: a viagem como síntese e invenção”, de Rita Chaves (2012).


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Em Ecos do Atlântico Sul, Omar Ribeiro Thomaz investiga detidamente os discursos coloniais portugueses produzidos no período da ditadura de Salazar. Esta cuidadosa investigação das representações produzidas pelos portugueses a respeito de si e do outro (o colonizado) permite-nos acusar a parcialidade da estratégia de Santos, que privilegia as representações produzidas sobre os portugueses e não pelos mesmos (conferir, do trabalho de Thomaz, especialmente o capítulo “O saber colonial 5 O trabalho já mencionado de Thomaz evidencia que a ênfase dada à pobreza material do colono português e, em consequência, sua maior disponibilidade à “mistura”, tem antecedentes: “Não é estranho pois que, neste momento de afirmação do regime [de Salazar], Agostinho de Campos refira-se à tradição colonial portuguesa como profundamente cristã. Um cristianismo diferente, particular, cuja marca seria sobretudo a capacidade de ver no “outro”, o exótico, um ser humano; um cristianismo, segundo Campos, mais tranquilizador para o futuro da raça branca, pois não engendraria ódios ou rancores. (...) Como vemos, “tolerância” e “simpatia” faziam dos portugueses verdadeiros antropófagos no processo de atração e assimilação das populações nativas. A plasticidade lusa em meio à gentes tropicais – associada à antropofagia – fortalecia a ideia de que sem as populações exóticas a nação não poderia realizar-se plenamente. (...) O mesmo autor retrata o colono português na sua dura missão de expandir a Pátria e a fé. Sua situação de pobreza não lhe permitiria rechaçar o trabalho árduo e, ao contrário dos colonos de outros países europeus, o português trabalharia lado a lado com o nativo, reproduzindo, assim, o espírito da Pátria em outras latitudes, o que o aproximaria fisicamente de populações em estágios anteriores de desenvolvimento, facilitando portanto sua assimilação. A contrapartida da pobreza material do colono – e, como consequência, de Portugal – seria a riqueza de espírito.” (THOMAZ, p. 120-121)

Devido à sua dificuldade, a crítica da relação imperial deve proceder por fases. Em primeiro lugar, é preciso compreendê-la como imperial, o que nos países centrais significa reconhecer que se é agressor (aprender que existe um Sul). Depois, é preciso identificá-la como profundamente injusta, e como tendo efeito desumanizante, quer na vítima, quer no agressor, o que significa que deixar de ser o agressor é colocar-se do lado da vítima (aprender a ir para o Sul). (SANTOS, 2000; p. 269)

Se Portugal era já o Sul no Norte, não seria suavizada sua posição de agressor? Além disso: não seria, sua experiência histórica de Sul no Norte, útil para o caminho a ser trilhado em direção ao Sul pelo Norte? Afinal, este “caminho” teria sido já trilhado pelos portugueses, forjando-se, como vimos, uma identidade ou cultura de fronteira (SANTOS, 1994). A tese de Santos defendida em “Entre Próspero e Caliban” é justamente a de que os portugueses foram colonizadores e colonizados ao mesmo tempo, constituindo uma inter-identidade (2002; p. 54). A principal estratégia escolhida pelo autor para defender seu argumento consiste em investigar representações a respeito dos portugueses produzidas por outros europeus. Reunindo um conjunto vasto de exemplos, Santos defende que os portugueses foram vistos, especialmente por ingleses e franceses, como não-europeus ou não-brancos, não tendo reconhecida sua condição de Próspero (ou seja, imperial).4 Como consequência, os portugueses não puderam se identificar plenamente com os papéis do colonizador e do colonizado, existindo “entre” Próspero e Caliban.5 Em minha opinião, a positividade da subjetividade de fronteira, como delineada em Crítica da razão indolente, contamina a interpretação da história colonial portuguesa neste ensaio posterior. Como vimos já, também em “Modernidade, identidade e cultura de fronteira” (1994), Santos afirmava que os portugueses, através de sua experiência colonial, teriam desenvolvido uma positiva identidade fronteiriça. Santos celebrava, então, tal identidade, destacando sua “riqueza e virtualidades” e “disponibilidade multicultural” (1994; p. 155). Assim, podemos inferir que a experiência identitária portuguesa estaria na vanguarda da construção de uma “subjetividade


62 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.24, 2014 emancipatória” (esta, delineada em Crítica da razão indolente). O colonialismo português teria, então, produzido uma experiência cultural das mais preciosas, que se guarda também nas ex-colônias (1994; p. 154). ). Minha pergunta é: esta tese não seria mais uma, mesmo que muito sofisticada, versão do “bom colono português”, da ideia de que, em contraposição aos outros colonizadores, o pobre português levaria consigo a disposição para se integrar e construir uma grande nação multicultural?6 Podemos inclusive pensar, seguindo o raciocínio de Santos, ser a experiência identitária portuguesa recurso para a construção, na contemporaneidade, de “subjetividades” empenhadas em lutar contra a globalização hegemônica (esta, por sua vez, entendida como um legado do colonialismo britânico). Aqui, a obra de Ruy Duarte de Carvalho caminha, parece-me, noutra direção. O colonialismo português surge como responsável pela implementação de mecanismos de opressão e exploração de tal brutalidade que não haveria lugar para a suposição de diálogo, fluidez e disposição multicultural. A fronteira está à margem do colonialismo português, é sua margem, mas não o caracteriza (a pobreza relativa do colonizador não parece implicar em maior disponibilidade ou identificação com o colonizado, ao contrário). Aliás, a representação do colonialismo português na trilogia enfatiza seu caráter predatório e o empenho em marcar distâncias – raciais, sociais e econômicas. Nesse sentido, é de se destacar a recorrente menção ao massacre dos mucubais (kuvale) levado a cabo pelos colonizadores portugueses. Em A terceira metade, o narrador nos conta: .......sim, Paulino, esses povos todos à volta já eram povos submetidos à lei do imposto......mas os mucubais eram uma gente com muitos bois e bois melhores que os dos povos de cima da serra e, sobretudo, que não tinha nem queria ter agricultura nenhuma e organizava a vida conforme as necessidades do gado e não as do milho, a andavam portanto sempre em movimento, e não obedeciam nem a reis nem a sobas que os brancos dominassem e pudessem usar como agentes para controlar-lhes, e portanto conseguiam escapar de pagar imposto e de fornecer homens para o sistema de trabalho que os brancos tinham montado nas minas, nas pescarias, nas fazendas de sisal, de café, de

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Para conhecer perspectivas distintas da de Santos, conferir, além do já mencionado Ecos do Atlântico Sul , de Omar Ribeiro Thomaz, os seguintes ensaios de Arlindo Barbeitos: “Une perspective angolaise sur le lusotropicalisme”, In Lusotopie 1997, Paris: Karthala, 1997; “Oliveira Martins, Eça de Queiroz, a raça e o homem negro”, In

Actas da III Reunião Internacional de História de África: A África e a Instalação do Sistema Colonial (c. 1885-c. 1930). Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga do Instituto de Investigação Científica Tropical. Lisboa 2000


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cana..... as autoridades não sabiam nunca onde é que eles paravam para poder lhes controlar...... (....) E na cabeça de muitos foi medrando então também, com o correr dos anos e a sedimentação do poder dos brancos e da submissão dos negros, que a única forma de acabar de vez com a aberração de uma tal resistência, e ao mesmo tempo a maneira de deitar mão a tanto gado, seria mesmo acabar com eles...... (...) (CARVALHO, 2009; p. 40-41)

A guerra de extermínio dos mucubais (kuvale), conduzida em 1940, delata o caráter predatório e brutal do colonialismo português. A resistência kuvale à ocidentalização, a se tornar peça na engrenagem colonial, conduz as autoridades portuguesas a se engajar em seu extermínio. Entende-se que a suposta disposição à reinvenção de si na relação com a alteridade, que seria experimentada nos espaços do colonialismo português, pode não passar de estratégia de dominação, de incorporação do outro ao próprio, na condição de subalternizado. Quando há resistência à “mistura”, dá-se o extermínio do outro, revelando-se a inconsistência da suposta “disponibilidade multicultural” da “interidentidade portuguesa”. Lendo a trilogia Os filhos de Próspero pergunto-me o que os kuvale teriam a dizer sobre esta disposição multicultural da sociedade portuguesa (e mesmo da angolana) anunciada por Boaventura de Sousa Santos. Entendo que a obra de Ruy Duarte de Carvalho não permite, por sua vez, positivação da experiência colonial portuguesa, ao contrário. Torna-se necessário, pelo exposto, discernir, dentro da noção agregadora de “fronteira” delineada na obra de Boaventura Sousa Santos, seus diferentes momentos. Por exemplo: atribuir uma vocação especial (particular e positiva) à experiência colonial portuguesa não é o mesmo que entender a hegemonia do saber científico (ocidental) como implicada no gesto colonial em geral (que produziria margens, podendo ser desestabilizada por estas mesmas margens). Na construção argumentativa de Boaventura de Sousa Santos, ao longo dos três ensaios aqui investigados, estes aspectos estão, contudo, fortemente entrelaçados, de maneira que corremos o risco de, aderindo a uma faceta de seu argumento, tomar como acertado o conjunto de suas


64 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.24, 2014 proposições. Parece-me, portanto, ser necessária a revisão crítica da noção agregadora de “fronteira”, ou seja, sua análise e desconstrução. Aqui, procurei produzir esta análise crítica traçando convergências e divergências entre o projeto utópico de Boaventura de Sousa Santos e o projeto literário de Ruy Duarte de Carvalho. No que se refere à cabotagem entre modalidades discursivas e formas de conhecimento, como à necessidade de deslocamento do centro do saber/poder, propostas por Santos, encontramos forte sintonia com estratégias discursivas desenvolvidas por Ruy Duarte de Carvalho. Contudo, a associação que Santos propõe entre identidade de fronteira e a experiência colonial portuguesa me parece muito distante da representação do colonialismo português oferecida pelo escritor angolano. Torna-se, assim, importante evitar a simples adesão e aplicação do pensamento de Santos para a leitura de obras literárias africanas. Estas obras oferecem resistência, convidam à revisão crítica e à reavaliação de algumas das proposições do pensador português. Referências ADORNO, Theodor; Horkheimer, Max. A dialética do esclarecimento . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. BARBEITOS, Arlindo. Oliveira Martins, Eça de Queiroz, a raça e o homem negro. In Actas da III Reunião Internacional de História de África: A África e a Instalação do Sistema Colonial (c. 1885-c. 1930). Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga do Instituto de Investigação Científica Tropical. Lisboa,2000. CARVALHO, Ruy Duarte de. Os papéis do inglês . São Paulo: Companhia das Letras, 2007. _________. As paisagens propícias . Lisboa: Cotovia, 2005. _________. A terceira metade . Lisboa: Cotovia, 2009. CHAVES, Rita. A desmedida de Ruy Duarte de Carvalho: a viagem como síntese e invenção. In: OWEN, Hilary: CHAVES, Rita; APA, Livia: LEITE, Ana Mafalda. (Org.). Nação e narrativa pós-colonial I . Lisboa: Colibri, 2012 HANSEN, João Adolfo. Pós-moderno e Barroco. In ROCHA, João Cézar de Castro (Org.). Cadernos de mestrado. Departamento de Letras – UERJ – Rio de Janeiro: 1994, p.28-55.


Notas sobre a noção de "fronteira" de Boaventura de Sousa... 65

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O chamado elemento servil nos Estados Unidos da América e no Brasil: dois momentos de representação literária1 Hugo Lenes Menezes* RESUMO: Relacionando o antilusitanismo ao pensamento de Rousseau, que abomina os abusos do Estado social, o nosso nacionalismo apresenta, como um símbolo, o índio, na condição de mito, distante da realidade, porém equiparado aos heróis medievais europeus. Gonçalves Dias, embora nacionalista, não é lusofóbico. José de Alencar, dialogando com o norte-americano Fenimore Cooper, de O último dos moicanos (1826), dialoga também com o francês Chateaubriand e os seus índios da América do Norte. Com a escravidão negra, na região da América Portuguesa, repete-se a importação temática, pois é depois da publicação do romance A cabana do pai Tomás (1852), da ianque Harriet Beecher Stowe, que os brasileiros tematizam o africano escravizado, contradizendo a imagem do Brasil como nação una, dentro da noção daquilo que é o pátrio e o estrangeiro. Assim sendo, neste artigo, temos por objetivo empreender uma comparação entre a aludida narrativa de escravidão estadunidense e o romance brasileiro A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães. PALAVRAS-CHAVE: romance, escravidão, africano.

______________________________ 1

O presente texto é um recorte do nosso trabalho de estágio de Pós-Doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, realizado na Universidade de São Paulo (USP), sob a supervisão do Prof. Dr. Benjamin Abdala Junior. * Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI).

RESUMÉ: Reliant antilusitanismo à la pensée de Rousseau, qui a horreur de l'abus de l'État social, notre nationalisme présente, comme un symbole, l'Indien, à la condition du mythe, loin de la réalité, mais assimilé aux héros européens médiévaux. Gonçalves Dias, bien que nationaliste, n’est pas lusophobique. José de Alencar, dialoguant avec l'américain Fenimore Cooper, auteur de le livre Le dernier des Mohicans (1826), s'entretient aussi avec le romancier français Chateaubriand et ses Indiens d'Amérique du Nord. L'esclavage des noirs dans la région de l'Amérique du Portugais répète l'importation thématique car après la publication de le roman La case de l'oncle Tom (1852), de Harriet Beecher Stowe, les brésiliens tematizam africains réduits en esclavage, contredisant l'image du Brésil comme une nation séparée des autres. Par conséquent, dans cet article, nous avons l’intention d’entreprendre une comparaison entre le récit de l'esclavage aux États-Unis et le roman brésilien A escrava Isaura


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(1875), de Bernardo Guimarães. MOTS-CLÉS: romance, esclavage, africain

Introdução No século XIX, deu-se o surgimento dos estudos comparatistas, intimamente ligados à linha de pensamento cosmopolita, que caracterizou a referida centúria. Também no século XX e neste novo milênio, quando nos encontramos em um mundo globalizado, não devemos entender os fenômenos físicos, psicológicos, sociais e culturais (a exemplo das manifestações literárias: a crítica, a ficção narrativa e dramatúrgica, bem assim a poesia) isoladamente e sim de forma integrada, por serem sistêmicos, inter-relacionados e interdependentes. Os últimos decênios foram apontados como um período de crise, em que a visão mecanicista de mundo, de Descartes a Newton, e o sistema axiológico deste modelo tornaramse insuficientes para explicar a realidade circundante, embora, há quatrocentos anos, permanecessem na base da nossa cultura, que por eles se habituou a se organizar, sentir e raciocinar. Nos nossos tempos, mais precisamente, no início dos anos da década de 1980 do século XX, enquanto fase relativamente atual da evolução de semelhante pensamento mundialista, deparamos com a globalização. Processo condicionado pelo poder econômico, a globalização aprofundou, a um só tempo, a integração e a diversidade cultural dos povos, realçando aspectos étnicoreligiosos, regionais e a ideia de nação. Esta última, já clássica, veio revelando natureza planetária, ainda que cada região da Terra assumisse traços peculiares. Estendendo-se ao positivismo que embasou o realismo-naturalismo até alcançar a nossa era, a ideia em questão se consolidou durante o romantismo. Na contemporaneidade, em que o globo terrestre se reduziu a uma aldeia, achamo-nos diante de uma mudança de paradigma, de outra cosmovisão, uma nova ordem mundial, em cuja complexidade não encontramos local para o conhecimento fragmentado. Precisamos, então, adotar um modelo de análise orquestral e estabelecer relações entre os diversos aspectos do saber, observando os seus diálogos, para a realidade não se apresentar compartimentada, ou numa visão positivista de causa e


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mas sim numa interação entre as suas manifestações, sem deixarmos de considerar as suas diferenças. Com o novo marco conceitual e paradigmático supramencionado, a mentalidade cosmopolita conquistou o seu lugar nos meios acadêmicos, já que necessitamos, conforme os modernos pensadores da Universidade, encarar a Academia, na condição de universo de saberes, sempre como um espaço em sintonia com o mundo, não tendo assim como profissional egresso um sujeito fragmentado ou alienado da totalidade das coisas, visto ser uma missão da Universidade promover a humanização global entre as pessoas, as classes e os povos. O conhecimento humano sempre foi um só. Apenas por razões que dizemos ser didáticas, costumamos dividi-lo em nome de uma pretensa facilidade do aprendizado. Todavia, nos nossos tempos, a unidade do conhecimento, mais do que nunca, tornou-se um imperativo. Tal unidade revelou-se intimamente ligada, como disse Niels Bohr (1961), “à nossa busca de uma compreensão universal, destinada a elevar a cultura humana”. Em se tratando da área da nossa atuação (o campo das Letras), nos dias de hoje, marcados pela mundialização, retomamos a discussão do conceito de Weltliteratur , da questão da Literatura Comparada. Neste contexto, reconhecemos a extrema relevância do comparatismo entre as diversas formas de investigação literária por abarcar um amplo universo de pesquisa. Na verdade, o procedimento comparatista, enquanto instrumento de explicação articulada do fenômeno literário em observância ao seu contexto histórico-cultural, veio a constituir o novo organum dos estudos da arte da palavra. Tal se deveu ao fato de o comparatismo literário examinar tanto autores e obras (estas em sua forma e substância) pertencentes a um mesmo sistema literário nacional, quanto a relação entre duas ou mais literaturas de países diferentes, no que se refere à migração de temas, motivos, mitos, mentalidades, estruturação e fontes. Assim sendo, apresentamos o presente trabalho como um espaço de comparação entre os romances A cabana do pai Tomás (1851-1852), de Harriet Stowe, e A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães, salientado as suas proximidades ou convergências e os seus distanciamentos ou divergências, em nível dos elementos estruturais das obras de ficção (tema,


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personagem, ambiente...) e do universo semântico (ideologia, simbologia, mitologia...). Um paralelo possível Relacionando o antilusitanismo ao rousseaunismo, contrário aos abusos do Estado social, o nacionalismo brasileiro encontrou um símbolo no índio, enquanto mito, distante da realidade, porém equiparado aos heróis medievais europeus. Gonçalves Dias, embora nacionalista, não foi lusofóbico. José de Alencar, dialogando com o norte-americano Cooper, de O último dos moicanos (1826), dialogou também com o francês Chateaubriand e os seus índios da América do Norte. Com a escravidão negra, na América Portuguesa repetiu-se a importação temática, pois foi depois da publicação da narrativa A cabana do pai Tomás, também conhecida como A vida dos negros na América, ou A vida entre os humildes, da ianque Harriet Beecher Stowe, que, dentro da Diáspora Africana, os brasileiros tematizaram o negro escravizado. Tal narrativa foi primeiramente publicada de forma serial por um jornal antiescravagista de Washington e utilizada, igualmente à poesia de Castro Alves, contra o indianismo, visando colocar em destaque a escravatura. Entre a aludida história de escravidão estadunidense e o também mencionado romance do escritor brasileiro Bernardo Guimarães, A escrava Isaura, vimos que, logo após o lançamento do texto bernardiano, a edição de 29 de maio do Jornal do Comércio o comparou favoravelmente à produção norteamericana, quando declarou o seguinte: “A escrava Isaura pode bem rivalizar com a célebre Cabana do pai Tomás” (MAGALHÃES, 1926, p. 183). No contexto literário-abolicionista brasileiro, em meio àqueles intelectuais que se propunham a demonstrar, junto ao seu povo, a dignidade humana do grupo étnico proveniente da África, uma cumplicidade compreensível e até inevitável com os prejulgamentos arraigados na mentalidade da época, no pensamento dominante naquele período, refletia-se, com frequência, na representação em prosa e verso do chamado elemento servil, eufemismo para negro escravizado. A título de ilustração, apresentando a obra A escrava Isaura e reconhecendo existir, na critica especializada, a recorrência de um paralelo intertextual


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entre a referida narrativa brasileira e o romance A cabana do pai Tomás, Cavalcanti Proença frisou que:

O próprio Bernardo Guimarães que, em vários momentos, inclui digressões parentéticas antiescravagistas (...), não foge ao preconceito que inconscientemente recebe do ambiente. Ao comentar o caso do senhor devasso, libertino e cruel, que “tendo a seu favor a lei e a autoridade, o direito e a força”, vai retomar a escrava que fugira no assédio de sua libidinagem, conclui: “Assim, por uma estranha aberração, vemos a lei armando o vício e decepando o braço à virtude”. Entretanto, apesar desses belos e justos conceitos, censura (...) a presença de Isaura, uma escrava, no baile da alta sociedade do Recife. Preconceito inconsciente (PROENÇA, s.d., p. i-vii).

Na mesma direção da afirmativa supracitada, a primeira escritora a entrar para a Academia Brasileira de Letras (ABL), Rachel de Queiroz, tomando assento na Casa de Machado de Assis, à cadeira nº 5, que tinha sido ocupada também por Bernardo Guimarães, no seu Discurso de Posse, igualmente sublinhou, com relação ao autor de A escrava Isaura e a este romance em comparação ao texto A cabana do pai Tomás, certas contradições, as quais, por sua vez, remetiam aos próprios conflitos ideológicos da época, às inconsistências referentes ao modo de a sociedade brasileira oitocentista estruturar-se. Vejamos:

(...) Combatendo embora a vergonha do cativeiro, não ousou enfrentar os tabus da época; fazia restrições racistas, como, aliás, as faziam todos os outros adversários da escravidão piedosos, paternalistas, levados por sentimentos caritativos (...). Por exemplo, no seu mais famoso romance, A escrava Isaura, escrito como libelo veemente contra a escravidão (e indiscutivelmente bastante superior ao célebre e lacrimogêneo A cabana do pai Tomás, de Mrs. Beecher Stowe), Bernardo Guimarães não ousa apresentar na heroína uma moça negra, como seria razoável, talvez, mas inadmissível para o público de senhores e sinhás a que se dirigia. Isaura é branca, pelo menos, na aparência, a sua pinta de sangue negro é completamente disfarçada em sinais de beleza (QUEIROZ, 2008, p. 3).


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Percebemos que Isaura sempre mereceu a atenção do leitorado por ser (a despeito da sua condição de serva) aparentemente branca. Como apropriadamente realçou Alfredo Bosi: “Apesar de algumas palavras sinceras contra as distinções de cor (cap. XV), toda a beleza da escrava é posta no seu não parecer negra, mas nívea donzela, como vem descrito desde o primeiro capítulo” (1997, p. 159), enquanto a sua antagonista, a mucama Rosa, era mostrada com uma bela e típica mulata, o que provocou no público uma aversão por esta escrava afrodescendente e um sentimento de dó e solidariedade pela escrava Isaura, de cor branca. E no rumo da assertiva referida, Carlos Alberto Vechi também acentuou que: “As críticas que procuram invalidar ou fazer oscilar o libelo antiescravagista de Bernardo Guimarães se apoiam no fato de que Isaura é de sangue negro, mas não parece negra, apresentando todas as características físicas de uma branca” (1997, p. 162). Da sua parte, pai Tomás, pelo menos, era negro (e retinto). Mesmo assim, a obra A escrava Isaura foi considerada uma espécie de réplica brasileira da narrativa ianque, haja vista, entre outros aspectos, a história paralela da coprotagonista norte-americana, a escrava Elisa, a qual, assim como Isaura, era uma mestiça de pele alva e recebeu uma educação de moça branca, sendo ambas as produções literárias organizadas “de acordo com o modelo de romance posto em voga nas letras inglesas do século XVIII: simultaneidade de conflitos dramáticos em torno de um centro, procurando conciliar os episódios com o desenho das personagens num crescendo para um desenlace que não deixa margem ao prosseguimento da ação” (MOISÉS, 2001, p. 491). Neste âmbito, Wilson Martins (1992, p. 461) chegou a dizer que A cabana do pai Tomás, exatamente por ser um romance excessivamente sentimental, repleto de incidentes melodramáticos, coincidências inacreditáveis, conquistou (assim como A escrava Isaura) uma recepção estrondosa, consagrando-se como “o folhetim da escravidão”. Encontradiço no período estilístico do romantismo, o romance sentimental apresentava narrativas desoladoras com a finalidade de sensibilizar o público leitor. Rotulado de menor, este gênero, na contemporaneidade, passou a ser valorizado por determinadas correntes dos estudos


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literários, tendo evoluído para a crítica social e sendo assimilado pelos “folhetins da escravidão”, como A cabana do pai Tomás e A escrava Isaura, enquanto meio estratégico e persuasivo. Como observamos, a arte verbal não excluiu o negro, mas quando o colocava em ação, fazia-o geralmente reduzindo a sua configuração a um de dois tipos básicos, de acordo com a conveniência da ocasião e a conjuntura: de um lado, o tipo do negro escravizado dócil, passivo, infantilizado, com uma fidelidade canina para com o homem branco, capaz até do autossacrifício em favor do seu dono; de outro lado, o tipo do negro escravizado traiçoeiro, rebelde, feroz, vingativo e demonizado. Pai Tomás se revelou o estereótipo do cativo conformado com a sua situação social. Grande parte da ficção literária apresentando tal configuração do africano escravizado surgiu depois do romance A cabana do pai Tomás. No transcurso de todo o século XVIII e em parte do século XIX, o negro na literatura ora era bom, virtuoso e nobre, ora mau, cruel, depravado. Com o folhetim de Harriet Beecher Stowe, a exemplo do que tinha acontecido com o mito do bom selvagem de Rousseau, ascendeu o mito do negro dócil. Por isso, nos últimos tempos, caiu o conceito do espírito abolicionista daquela autora na América, visto que ela recebeu pesadas críticas quanto à composição do seu protagonista pai Tomás. Ativistas negros declararam ser tal personagem resignada e submissa demais, não constituindo, portanto, modelo de herói para eles. Inclusive, a leitura da narrativa em questão foi banida dos colégios por trazer o vocábulo “nigger”, termo para “negro” considerado pejorativo nos Estados Unidos, chegando a ser a maior afronta a um afrodescendente neste país a expressão pai Tomás , que se converteu em sinônimo de conformismo diante da condição inferior imposta pelo preconceito. Mas ainda no vizinho século XX, deparamos com semelhante concepção paternalista do africano escravizado em mais uma obra de ressonância mundial, enquanto bestseller sob a forma de romance, de autoria de outra estadunidense, Margaret Mitchell. Falamos de ...E o vento levou (1936), história protagonizada por Scarlatt O’Hara, moça de família escravocrata, empenhada em recuperar a propriedade em Tara, Geórgia, depois da Guerra da Secessão. Nesta narrativa, o cativo negro foi:


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Entre nós, no tocante ao autor de Atar-Gull, ou a implacável vingança de um escravo, além de ter inspirado, com o seu “Canto dos filhos de Agar”, o poema “Bandido negro”, de Castro Alves. Na bernardiana “Uma história de quilombolas” (1871), publicada em pleno ano da Lei do Ventre Livre e às vésperas da independência política do Brasil, a nosso ver Eugène Sue se fez ecoar, através da sua criação Atar-Gull, na figura de Joaquim Cassange, o Zambi, chamado de Zumbi por Raymond Sayers, para quem tal líder da comunidade de cativos refugiados constituiu o mais interessante dos caracteres de tal narrativa brasileira e foi pintado como: “Um negro colossal, com um semblante a um tempo sinistro e inteligente. Ele reponta na história como um hábil mas impiedoso chefe, justo para com os amigos e inimigos, mas inclemente para com os traidores. E a ele também não é atribuída nenhuma das qualidades que outros escritores associam aos negros – não é o africano sensual, nem o escravo fiel, nem o mulato trapaceiro” (SAYERS, 1958, p. 349-350). Muito semelhante a AtarGull mostrou-se a personagemtítulo do romance bernardiano O índio Afonso (1872-1873), um cafuzo de estatura colossal: “(...) herói de soberba compleição física, bandido sem banditismo, no sentido corso, porque fora da lei, depois de ter feito justiça por suas próprias mãos contra aquele que supunha ter causado a morte da sua irmã (...), o índio Afonso praticara justiça, mas com inominável ferocidade” (ALPHONSUS, 1952, p. 96). Do mesmo modo, no romance histórico centrado na Guerra dos Emboabas, Maurício, ou os paulistas em São João del rei (1877), continuado por O bandido do rio das Mortes (1905) e assentado nos inícios da exploração de minérios no Brasil, atividade em que muitos africanos escravizados 2

Descrito (...), pelas personagens e pelo narrador, como alguém muito bom e ingênuo que necessitaria sempre da figura de seus donos para ensiná-lo e guiá-lo na vida. O negro seria como filho e seus donos seriam seus pais (...). A narrativa mostra uma visão sulista da trajetória do negro (...). Antes da guerra, ele serve cegamente seus senhores, obedece a tudo. (...) Durante a guerra, o negro é mostrado servindo em batalhas por seus senhores, ou seja, o negro era obrigado a lutar contra o norte e, portanto, contra a própria abolição. Scarlett O’Hara encontra escravos seus lutando na guerra e eles se mostram muito honrados com isso. (...) Quando a guerra termina, acaba a escravidão, mas isso não impede muitos sulistas de continuarem a ter escravos. A própria Scarlett continua mantendo seus escravos mais próximos. No livro é afirmado, várias vezes, pelas personagens ou pelo próprio narrador, que bom negro era aquele que continuava a ser escravo depois da escravidão, que sabia ser agradável aos donos... (FONTES, 2009, p. 5)

Por outro lado, ainda antes do lançamento em livro de A cabana do pai Tomás (1832), obra que, como dissemos, fez multiplicar o retrato do negro servil, deste último o romancista parisiense Eugène Sue criou uma magnífica sátira em Atar-Gull, ou a implacável vingança de um escravo, romance marítimo publicado em 1831. Herói negro, dotado de um físico e de uma força excepcionais, inteligente, frio, rancoroso e dissimulado, Atar-Gull, que se vingou cruelmente de um ato hediondo praticado contra ele pelo seu senhor, reconhecemos como um verdadeiro anti-pai Tomá.2 No enredo de A escrava Isaura, Bernardo Guimarães ainda configurou a protagonista nos moldes da cativa subserviente, mas nem tão quanto o pai Tomás, já que ela, ao lado do seu progenitor, aceitou fugir, atitude que o escravo norte-americano jamais ousou tomar para si. Além disso, o escritor brasileiro também avançou quando não fez Isaura infantilizada, como Tomás, e muito menos imbecilizada, como tipos que verificamos, por exemplo, em ...E o vento levou, embora a formação discursiva científica de então não reconhecesse a perfeita cognição dos mestiços e negros.


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________________________ trabalharam no estado natal de Bernardo Guimarães, este apresentou, na oportuna observação de Raymond Sayers, um: “Escravo hercúleo que, apesar dos maus tratos do seu avarento senhor português, suporta tudo isso durante longo tempo. Quando, finalmente, o senhor o ultraja de maneira descomedida, ele o ataca, o mata e foge para organizar um bando de escravos foragidos, pondo-se ao lado dos desbravadores paulistas contra os portugueses” (1958, p. 348. O itálico é nosso).

mostrou-se a personagem-título do romance bernardiano O índio Afonso (1872-1873), um cafuzo

Além de transpostas para o cinema, as produções A cabana do pai Tomás e A escrava Isaura mereceram as atenções da teledramaturgia brasileira: o romance de Harriet Beecher Stowe originou uma adaptação, ou como modernamente devemos dizer, uma tradução intersemiótica, de autoria de Hedy Maia, Péricles Leal e Walter Negrão, sob a forma de folhetim eletrônico homônimo, telenovela ou ainda, conforme classificada nos Estados Unidos, uma série dramática, exibida pela Rede Globo de Televisão, entre julho de 1969 e março de 1970. O romance de Bernardo Guimarães, em 1976, também pela Rede Globo e numa adaptação de Gilberto Braga, veio a ser uma das telenovelas brasileiras de maior sucesso no exterior, conferindo notoriedade internacional a Bernardo Guimarães. Vinte e nove anos depois da primeira adaptação, A escrava Isaura foi objeto de outra bem sucedida transposição televisiva, realizada por Tiago Santiago na Rede Record. A respeito do grande sucesso de público de A cabana do pai Tomás e A escrava Isaura, cujos protagonistas se revelaram puros e íntegros, um comentário que Cavalcanti Proença fez sobre esta última história chamou a nossa atenção: “Os motivos que compõem o romance são filiados aos velhos e perenes topos da literatura popular...” (1974, p. 37). Entre semelhantes temas recorrentes, quando do delineamento do perfil da protagonista bernardiana, identificamos um tópico da tradição falada medieval. Referimo-nos ao motivo da donzela inexpugnável, que, conforme demonstrou o romance inglês Pamela, ou a virtude premiada (1740), de Samuel Richardson, não cedia, sob nenhuma hipótese, às investidas luxuriosas de qualquer pretendente, nem que ele fosse proprietário do corpo dela, a exemplo do que ocorreu com Isaura, a qual, juntamente com Álvaro, formava um apaixonado casal que nunca manifestou desejos sexuais, acontecendo o mesmo com o pai Tomás e a sua esposa, mãe Cloé, embora possuíssem uma prole. Tomás e a sua mulher, um casal de cor mais velho, dedicaram-se a criar com prazer as crianças da família dos seus donos. Na verdade, Tomás foi descrito quase como um eunuco. E ainda quanto a Álvaro, no capítulo XI de A escrava Isaura, que, igualmente ao romance A cabana do pai Tomás, articulou fervorosamente o discurso cristão, ficamos


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sabendo pelo narrador que o amado da protagonista bernardiana queria as mulheres “com certo platonismo delicado, certa pureza ideal” e que era: “Original e excêntrico como um rico lord inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de um quaker” (GUIMARÃES, 2003, p. 63). Devemos lembrar que os quakers, membros de um grupo religioso protestante fundado na Inglaterra do século XVII, foram grandes abolicionistas, como Álvaro, e no enredo de A cabana do pai Tomás deram contribuição decisiva para a libertação de negros e mestiços escravizados, como vimos na fuga de Elisa e seu filho, por meio da travessia de um rio, episódio sobre o qual o pesquisador norte-americano Raymond Sayers assim se manifestou:

A famosa fuga de Isaura, de Bernardo Guimarães, (conduzida por um capitão de navio negreiro de livre trânsito) de Campos de Goitacazes para o Recife, foi talvez sugerida pela fuga de Elisa, através dos gelos flutuantes de Ohio para a liberdade no Norte e por fim no Canadá. Houve escravos fugitivos no Brasil, mas o refúgio eram os quilombos, e não terras distantes, salvo nos últimos anos da escravidão. Sendo a potamografia brasileira e os meios de comunicação o que eram, difícil seria para Bernardo Guimarães encontrar inspiração para a fuga na realidade (1958, p. 317-318).

Já Norwood Andrews Junior, outro estudioso norteamericano, em ensaio no qual comparou os dois romances bernardianos de cenas de escravidão, A escrava Isaura e Rosaura, a enjeitada (1883), a certa altura, quando questionou uma apontada influência de A cabana do pai Tomás sobre a história da cativa branca brasileira, entendeu que:


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O julgamento de Sayers aqui bem pode está correto, mas a questão da influência tem apenas importância secundária. O maior propósito da viagem de Isaura, embora por mais irreal que pareça ser, é a oportunidade de introduzi-la em contextos onde ela seja completamente desconhecida e onde ela possa se misturar às damas da alta sociedade como suas iguais, sob o enfoque de A escrava Isaura enquanto panfleto político, documento social. Guimarães dificilmente teria alcançado o mesmo efeito se tivesse escolhido que Isaura fosse se refugiar num quilombo (ANDREWS JUNIOR 1966, p. 250-251).

Além de ser, para Norwood Andrews Junior, de somenos importância a possível “influência” do folhetim da escravidão A cabana do pai Tomás sobre a obra A escrava Isaura , em língua portuguesa, o primeiro romance-folhetim versando acerca do chamado regime servil, eufemismo para cativeiro, não localizamos no Brasil nesta publicação bernardiana, mas sim, sob a autoria de Pinheiro Guimarães, em O comendador (1856), que mereceu simpática apreciação de um amigo íntimo do criador de A escrava Isaura , Álvares de Azevedo, e foi dado à luz pelo Jornal do Comércio, na sede do Império, depois da extinção do tráfico de africanos. Por fim, julgamos que, no presente contexto, não deveríamos trabalhar com a ideia de influência, pressupondo a superioridade de uma personalidade literária em relação à outra, e sim com a ideia de o escritor brasileiro estar em diálogo com a autora estadunidense.

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Euclides da Cunha e banalidade do mal. Por uma literatura comparada às avessas João Cezar de Castro Rocha

RESUMO: Neste artigo, busco pensar Os Sertões, de Euclides da Cunha, como o exemplo mais notável de uma obra latinoamericana apropriada e reescrita por autores de latitudes as mais diversas. Em virtude do espaço disponível, apenas farei um breve comentário sobre as ressonâncias da obra de Euclides da Cunha no romance de Sándor Marai, O Veredicto em Canudos, e, de maneira inicial, sugerirei uma possível afinidade entre as perspectivas de Euclides da Cunha e Hannah Arendt. Surpreende que não se examine com cuidado esse aspecto da obra de Euclides. Compreende-se: não estamos preparados para identificar as ressonâncias de Euclides em autores estrangeiros porque, conscientemente ou não, todo nosso treino convida a gesto oposto. Por isso, com a alegria ressentida do eterno discípulo, elevamos a voz, estufamos o peito, e anotamos com grande diligência os “equívocos” de Euclides na leitura de autores europeus... Aposto num projeto adversário: o exercício da literatura comparada “às avessas”. PALAVRAS-CHAVE: Euclides da Cunha; Literatura Comparada; Ressonâncias

Professor de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Pesquisador do CNPq.

ABSTRACT: In this article, I envision Os Sertões, by Euclides da Cunha, as the most remarkable example of a Latin American work appropriated and rewritten by authors of several cultures. Due to the constraints of this piece, I will only remark briefly the resonances of Euclides da Cunha’s work on Sándor Marai’s novel The Verdict in Canudos. Therefore, I will present initial notes on a possible affinity between Euclides da Cunha and Hannah Arendt’s approaches. It is surprising that this feature of Euclides’s work has not yet been studied; after all, we are not ready to identify the resonances of Euclides’s work because, consciously or not, our academic training implies an opposite intellectual gesture. As a s result, and with the joy of the eternal pupil, we raise our voices and proudly reveal Euclides’s “mistakes” in his interpretation of European authors... Rather, I propose the project of “comparative literature overturned. KEYWORDS: Euclides da Cunha; Comparative Literature; Resonances


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Os Sertões e suas ressonâncias Talvez não seja despropositado pensar em Os Sertões , de Euclides da Cunha, como o exemplo mais notável de uma obra latino-americana apropriada e reescrita por autores de latitudes as mais diversas. Em si mesmo, não há, evidentemente, surpresa alguma nesse procedimento – e seria mera ingenuidade assinalá-lo como novidade. Ora, se nos limitarmos à tradição latino-americana, não seria uma tarefa difícil escrever sua história a partir das apropriações de The Tempest , de William Shakespeare. De Rubén Darío a Roberto Fernández Retamar e Darcy Ribeiro, de José Enrique Rodó a Álvares de Azevedo e Machado de Assis, os personagens-conceituais shakespearianos – Próspero, Ariel e Calibã – estimularam debates acalorados e favoreceram reflexões ainda hoje relevantes. Portanto, nada de novo. Mas nem tanto. Explico.

E começo por conceito proposto por Antonio Candido. O crítico destacou o fenômeno intertextual “que se pode chamar deressonância , concebida como o eco de um texto em outro. Sem pretensão conceitual, seria possível distinguir dois tipos principais de ressonância, que poderiam ser denominados inspiração e citação (CANDIDO, 2004, p. 43, destaques do autor)”. Ora, as ressonâncias de Os Sertões merecem um estudo detalhado. Porém, esclareço, que, neste artigo, em virtude do espaço disponível, apenas farei um breve comentário sobre as ressonâncias da obra de Euclides da Cunha no romance de Sándor Marai, O Veredicto em Canudos , e, de maneira inicial, sugerirei uma possível afinidade entre as perspectivas de Euclides da Cunha e Hannah Arendt. De qualquer modo, mencionarei outros exemplos. Em 1919, Robert B. Cunninghame Graham publicou O místico brasileiro , uma biografia de Antônio


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Conselheiro, Cujo texto-fonte é facilmente identificável, pois não apenas Graham lança mão de inúmeras passagens extraídas de Os Sertões , como também acompanha as principais interpretações de Euclides da Cunha. Eis uma passagem expressiva: Como outros gnósticos, [Antônio Conselheiro] sustentava que a virtude era supérflua, já que o fim do mundo aproximava-se veloz, considerando-a uma espécie de vaidade ou, por assim dizer, uma presunção de superioridade sobre o próximo (CUNNINGHAME GRAHAM, 2002, p. 120).

Embora sem citar o texto-fonte, o comentário é uma clara alusão a uma conhecida passagem de Os Sertões : Para Antônio Conselheiro — e neste ponto ele ainda copia velhos modelos históricos — a virtude era como que o reflexo superior da vaidade. Uma quase impiedade (CUNHA, 2002, p. 300). Aliás, trecho devidamente citado por Jorge Luis Borges em seu conto “Tres versiones de Judas”. Trata-se da segunda nota do texto: Euclydes da Cunha, en un libro ignorado por Runeberg, anota que para el heresiarca de Canudos, Antonio Conselheiro, la virtude ‘era una casi impiedad’ (BORGES, 1989, p. 516). Disse: segunda nota... Isto é, destaque-se a estratégica localização. A menção ao brasileiro encontra-se, literalmente, à margem do texto. Há mais, pois a sutileza da escrita borgiana ainda acrescenta: en un libro ignorado por Runeberg. (Claro! Como você sabe, a quem ocorreria ler livros escritos originalmente em português? A quem ocorreria aprender português para ler Euclides da Cunha? E mesmo traduzido, como superar a barreira do desinteresse costumeiro?) Esse exemplo permite compreender as formas de apropriação de Os Sertões sob uma perspectiva plural e nada associada a qualquer modo de ufanismo literário anacrônico e caricato. Trata-se antes de um problema teórico de grande interesse para a redefinição da literatura comparada.


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Vejamos, então, outras reescritas do texto euclidiano. Em 1952, o belga Lucien Marchal publicou o romance O Mago do Sertão e no prefácio esclarece a fonte de sua prosa: “a Campanha de Canudos (...) foi assunto de muitos estudos de geografia humana, e o mais notável é o de Euclides da Cunha, intitulado Os Sertões” (MARCHAL, 1952, p. III). Sándor Marai lançou O Veredicto em Canudos em 1970 – adiante, tratarei brevemente de seu romance. Inspirado no autor brasileiro, o escritor da Geórgia, Guram Dochanashvili escreveu sua obra mais popular, A primeira veste, cujo primeiro volume apareceu em 1975, e o quarto em 1990 – o segundo e o terceiro, respectivamente, em 1978 e 1980. Por enquanto, esse é único texto ao qual ainda não tive acesso. Por fim, em 1980, Mario Vargas Llosa lançou La Guerra del fin del mundo. Recentemente, passei um semestre em Princeton como pesquisador e professor visitante e, nessa ocasião, consultei, nos “Mario Vargas Llosa’s Papers”, o material referente às pesquisas realizadas sobre o conflito de Canudos, assim como comparei as diferentes versões dos manuscritos do seu romance. Deixarei, contudo, para outra oportunidade a discussão sobre os métodos de apropriação de Vargas Llosa; neste artigo, como disse, exploro sobretudo as afinidades entre Euclides da Cunha, Hannah Arendt e Sándor Marai. Por isso, tampouco mencionarei A Casca da Serpente, de José J. Veiga, aparecido em 1989; um exemplo pioneiro de ficção contrafactual na literatura brasileira. Também não discutirei outros textos de autores brasileiros, porque desejo destacar o caráter excepcional das ressonâncias provocada pela obra-prima de Euclides da Cunha. _______________________________

Literatura comparada às avessas? Reitero: em si mesmo, não há nada de excepcional nesse procedimento. No regime discursivo anterior ao advento do Romantismo essa era a dinâmica estabelecida pelas práticas da imitatio e da aemulatio; práticas intrinsecamente associadas à arte retórica. Naturalmente, ste artigo não é o espaço apropriado para discutir em profundidade o conceito de aemulatio e os desdobramentos possíveis de seu resgate anacrônico.1

1

Realizei essa discussão em Machado de Assis:

por uma emulação

poética

da

(Civilização Brasileira, 2013; Prêmio Ensaio e Crítica Literária da Academia Brasileira de Letras); este ano será publicado em inglês: Machado de

Assis: Toward a Poetics of Emulation (Michigan State University Press, 2015).


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Adianto, porém, que a prática da emulação implica uma ideia muito particular de sistema literário, privilegiando o ato de leitura como gesto eminentemente inventivo. Afinal, nesse horizonte, partindo-se sempre da incontornável imitação de um modelo considerado autoridade num determinado gênero, busca-se necessariamente emulá-lo, ou seja, produzir uma diferença em relação ao mesmo modelo. No entanto, em geral, a ressonância não é produzida por textos de línguas e culturas não hegemônicas, mas, pelo contrário, é neles identificável. Aliás, no sistema literário lusófono, no momento de sua primeira rusga transnacional de peso, tal circunstância veio à superfície na resposta dura de Eça de Queirós à crítica igualmente forte que Machado de Assis fez de O primo Basílio. Recorde-se a reação acre do autor português à acusação de imitação lançada pelo brasileiro:

Dos dois livros, a crítica decerto conheceu primeiro O crime do padre Amaro, e, quando um dia, por acaso, descobriu, anunciado num jornal francês, ou viu, numa vitrina de livreiros, a Faute de l’Abbé Mouret, estabeleceu imediatamente uma regra de três, concluindo que a Faute de l’Abbé Mouret devia estar para O crime do padre Amaro como a França está para Portugal. Assim achou sem esforço esta incógnita: PLAGIATO! (QUEIRÓS, 1929, p. 171) Eis a aritmética simples, porém brutal, das culturas

não hegemônicas. Em outro século, Oswald de Andrade confirmou o princípio da regra de três, cujo produto nunca nos é favorável: “O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional” (ANDRADE, 1994, p. 44). Ademais, como se sabe, os ponteiros da República das Letras obedecem a meridiano nada flexível. Daí, um pouco adiante, na réplica, somente publicada na íntegra após a sua morte, Eça referiu-se aos modelos francês, inglês e alemão, como sendo aqueles oriundos das “três grandes nações pensantes” (QUEIRÓS, 1929, p. 174).


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Eça tinha e, no fundo, continua tendo razão – como se vê, nem sempre o ressentimento é cego. Vejam-se os exemplos discutidos por Antonio Candido: as ressonâncias de Mendes Leal em Castro Alves e, acima de tudo, os ecos de Dante, Flaubert e Victor Hugo no próprio texto de Eça de Queirós. E, com a agudeza familiar, Candido desdobra o tópico, recuperando, embora sem explicitá-lo, o traço definidor da aemulatio : Seria ingenuidade pensar que Eça de Queirós tencionou passar matéria alheia como sua. Dante, Victor Hugo, Baudelaire eram escritores largamente familiares ao leitor culto do seu tempo, sendo que os dois últimos constituíam verdadeiras obsessões no universo cultural português a que pertencia. Por isso mesmo, o público informado poderia captar imediatamente a citação, aumentando o prazer da leitura pelo relacionamento com as fontes (CANDIDO, 2004, p. 50).

Eis, portanto, a excepcionalidade de Os Sertões: escrito em português, logo, numa língua não hegemônica, texto oriundo de uma cultura à margem dos centros de decisão, suas ressonâncias alcançam muito além das acanhadas fronteiras prometidas pelo seu horizonte de origem. Esclareça-se, aqui, a malícia do subtítulo deste artigo: literatura comparada às avessas . Ora, nos seus primórdios, no século XIX, em sua extração francesa,2 a disciplina estruturou-se, em boa medida, em torno de conceito de influência.3 Não apenas. No século do Estado-nação e do romance, no fundo, na pesquisa diligente do texto-fonte e da miríade de textos por ele influenciados, muitas vezes o que estava em jogo era tanto o exercício de uma erudição hoje perdida, quanto a edição, em outra esfera, da rivalidade que dominou boa parte da vida política oitocentista, com reflexos decisivos e desastrosos no século XX. Refiro-me ao conflito franco-prussiano.

_________________ 3 Veja-se o livro de Tânia

Carvalhal, Literatura Comparada (São Paulo: Ática, 1986). E também: Eduardo Coutinho & Tânia Carvalhal: Literatura Comparada: textos fundadores (Rio de Janeiro: Rocco, 1994). 3 Para uma discussão acerca dos conceitos estruturadores da disciplina, ver, Sandra Nitrini, Literatura Comparada: história, teoria e crítica (São Paulo: EdUSP, 1997).


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Isso na disputa simbólica entre as “grandes nações pensantes” – na verve desconfiada de Eça. Já no tocante à relação das literaturas oriundas de culturas hegemônicas com todas as outras, entre as quais a literatura brasileira, o sentido da pesquisa era evidente: tratava-se de mapear o alcance da influência das literaturas francesa, inglesa e alemã nas demais nações. A simples hipótese contrária pareceria um despropósito. Essa via de mão única dificultou a assimilação da própria disciplina literatura comparada em contextos periféricos, pois seu exercício, no âmbito de um Romantismo prolongado, implicava o questionamento constante da noção de literatura nacional; no mínimo, obrigava a uma incômoda relativização da ideia, então valorizada sob todas as outras, de autonomia cultural. No entanto, como um efeito inesperado, o constrangimento conduziu a um questionamento, ainda que incipiente, do primado da noção de influência. Consulte-se, por exemplo, o despretensioso manual Literatura comparada, de Tasso da Silveira. O livro apresenta uma história tradicional e muito bem-comportada da disciplina. No entanto, na última seção, “Um estudo de literatura comparada” (SILVEIRA, 1964, p. 114-135), o autor discute a influência de Antero de Quental em Cruz e Souza. Ainda que não desenvolva teoricamente o raciocínio, Silveira evita recorrer ao vocabulário dominante, pois, em lugar de influência, ele assinala:

Fora impossível não se reconhecer no soneto de Cruz e Souza a ressonância direta dessas três peças de Antero, muito embora o Poeta Negro as tenha fundido numa alta joia de lavor mais puro, a que imprimiu o acento de uma inspiração mais profunda, do que a do aedo luso (...). (IDEM, p. 123, meus itálicos).

Podemos recuar ainda mais no tempo. Em 1939, Álvaro Lins já havia enfrentado idêntico problema; na verdade, um desafio estrutural para se pensar a potência de um autor que escreve em português, e, por isso, não pode senão dialogar com as literaturas das “três


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grandes nações pensantes”. De fato, em sua biografia intelectual de Eça de Queirós, o crítico precisou dedicar um capítulo à delicada questão, “Um centro de influências” (LINS, 1939, p. 37-47), recorrendo a André Gide para virar o dilema pelo avesso. Assim, recordou Lins, “Gide (...) faz a apologia de todas as influências. E afirma que ninguém pode fugir delas. (...). O caso literário de Eça de Queirós parece feito de propósito para dar corpo às ideias de Gide” (IDEM, p. 37 e 39). A ironia, involuntária, é saborosa: para ser sempre mais Eça, o autor português precisou ser, em primeiro lugar, sempre mais Gide! Destaque-se o elemento-chave: não é fácil, para críticos e teóricos de culturas não hegemônicas, dedicar-se à literatura comparada sem questionar seus fundamentos, já que eles foram estabelecidos a partir da naturalização das assimetrias que constituem o sistema-mundo (WALLERSTEIN, 2004). Naturalmente, tal problema encontra-se ultrapassado – ultrapassadíssimo, diria José Dias, comparatista de plantão. Contudo, um pouco de malícia não faz mal. Na prática, no que se refere à circulação de teorias, a situação ainda não mudou significativamente. Edward Said, em célebre ensaio, tentou compreender como “ideias e teorias viajam” (SAID, 2000, p. 195). Pois, sem dúvida, viajam – e muito. Especialmente quando são escritas em inglês. Ou quando são traduzidas para o inglês. Portanto: literatura comparada às avessas: projeto urgente.

Conflito como forma Sándor Marai descreve seu encontro com a obra de Euclides da Cunha, lida na tradução para o inglês, feita por Samuel Putnam: A lembrança da leitura era inquietadora. (...) Como se, com a história de Canudos, Euclides da Cunha (morto há apenas sessenta anos) intentasse mais do que narrar os acontecimentos da explosão anárquica que se deu na orla da Região Nordeste no final do século passado. Porque a aventura selvagem de Canudos se repetiu meio século depois em outras paragens – sim, de repente a anarquia ‘entrou na moda” novamente (MARAI, 2011, p. 151-52).


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Esse modelo de apropriação é constante, sugerindo um possível motivo subjacente às reescritas de Os Sertões. Vale dizer, os autores estrangeiros que se apropriaram da obra de Euclides naturalmente se preocuparam menos com o sentido específico da Campanha de Canudos, intrinsecamente relacionado às vicissitudes da formação social brasileira, e se preocuparam mais com a capacidade da escrita euclidiana em fixar a forma de um conflito determinado. Por isso, uma estratégia similar costura seus textos. Cunninghame Graham assimilou a campanha de Canudos à estrutura típica dos conflitos de fronteira, oferecendo uma análise comparativa de grande interesse com os confrontos que ocorreram no Oeste norte-americano: como se Euclides fosse lido pelos olhos de Frederick Jackson Turner, o principal teórico da fronteira na cultura norteamericana. Ademais, em 1914, ano provável da concepção de Um místico brasileiro, começou o mais destruidor conflito de fronteiras até então havido: a Primeira Guerra Mundial. O paradoxo do caso brasileiro é que a divisão entre os homens do litoral e os sertanejos rasgava o próprio país, originando um característico conflito de fronteiras, embora no interior do mesmo território. A interpretação de Mario Vargas Llosa da campanha de Canudos conheceu uma transformação sensível a partir de sua releitura de Os Sertões, enquanto avançava em seus estudos sobre o tema. Num primeiro momento, o escritor peruano estava inclinado a ver no Arraial de Canudos uma explosão de fanatismo atávico, que ele parecia associar ao movimento guerrilheiro do Sendero Luminoso. Ángel Rama anotou o ponto: “Lo más evidente es su fascinación por las actitudes fanáticas que le atraen en la misma medida que le rechazan orgánicamente, y que no dejó de vincular a un comportamiento aún vigente entre los latinoamericanos” (RAMA, 2001, p, 125). Contudo, paulatinamente, o entendimento do autor peruano se transformou e ele finalmente viu no conflito a forma acabada do dilema intrinsecamente latinoamericano: a presença simultânea de linguagens irreconciliáveis, de visões do mundo excludentes e de temporalidades opostas. Em outras palavras, Euclides teria dado forma ao dilema estrutural da constituição das


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sociedades latino-americanas. Ángel Rama compreendeu tudo: (...) Mario Vargas Llosa se presentó en el Wilson Center, donde residirá por un año escribiendo su novela sobre el episodio de Canudos que dio origen a la novela de Da Cunha Os Sertões . (…) Pero también le atraía, en la historia de Canudos, la total incomprensión de las partes que hablaban dos lenguajes incomunicados: unos luchando contra una conspiración político anti-republicana y otros buscando el reino de Dios en la tierra (IDEM, p. 125).

Por sua vez, Sándor Marai descobriu na guerra de Canudos e, sobretudo, na escrita de Euclides da Cunha, um princípio formal que favoreceu uma projeção dupla e surpreendente. De um lado, a associação da destruição do arraial de Canudos com o maio de 68, especialmente na França. Nas palavras do autor húngaro: Um dos grafites que os alunos pintaram nas paredes da Sorbonne exigia: ‘Soyez raisonnable, demandez l’impossible’. Isso me tranquilizou, e animado continuei a escrever o livro. Da obra de Euclides da Cunha não emprestei mais que os dados topográficos e as datas. E os nomes de alguns personagens. Todo o resto é invenção (MARAI, 2011, p. 152).

De outro lado, o estabelecimento de um surpreendente elo entre Antônio Conselheiro e ninguém menos do que Che Guevara. Pelo menos, é o que parece estar em jogo nas palavras de uma das poucas sobreviventes do conflito ao transmitir ao Marechal Bittencourt um recado do próprio Conselheiro: Mandou dizer que está vivo. Não há nada que você possa fazer. É inútil ter canhões. Amanhã haverá dez Canudos no Brasil. E depois de amanhã, cem (Idem, p. 85). Exatamente como a multiplicação de Vietnans, preconizada pelo guerrilheiro argentino. Otto Maria Carpeaux seguiu caminho similar, buscando no conflito de


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___________________________ 4 Um único exemplo (há muitos): “Hegel delineou três categorias geográficas (...). Aos sertões do Norte, porém, (...) falta um lugar no quadro do pensador germânico” (CUNHA, 2002, p. 133-34). 5 Um único exemplo (não são poucos), na qual se refere a Gumplowicz: “O grande professor de Graz não a considerou sob esse aspecto. A verdade, porém, é que se todo o elemento étnico forte ‘tende a subordinar ao seu destino o elemento étnico mais fraco ante o qual se acha’, encontra na mestiçagem um caso perturbador” (IDEM, p. 202).

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Canudos possíveis lições para a guerrilha no Brasil durante a ditadura militar. A mesma referência retorna nas palavras da narradora dos momentos finais do arraial, uma aristocrata austríaca: “E ele vai fazer novas Canudos no Brasil. Não uma, cem...” (IDEM, p. 138). Eis como a estrangeira explica o fato de ter sido escolhida pelo Conselheiro para transmitir sua mensagem: “Porque era sabido que eu falava uma língua estrangeira. Ele disse que os senhores eram tão estranhos que talvez não compreendessem se alguém de Canudos lhes dirigisse a palavra. (...)” (IBIDEM). Essas apropriações e reescritas de Os Sertões possuem uma direção comum, sugerindo uma hipótese. Elaboro o que sugeri acima: Euclides da Cunha plasmou uma forma textual particular, a fim de lidar com o conflito-dilema tanto entre linguagens que não se entendem – e isso no mesmo idioma – quanto entre temporalidades excludentes – e isso no mesmo território. O gosto pelos oxímoros, a recorrência de metáforasparadoxo, o constante recurso a autoridades europeias que se veem rapidamente contestadas4, ou no mínimo relativizadas5, definem a forma-conflito do texto de Os Sertões. Daí, a caricatura involuntária de quem se dedica, com a largueza de visão de entomologista, e com a pachorra de ultrapassado mestre-escola, a dar “nota” à composição euclidiana, com base na “fidelidade” ou no “acerto” de sua leitura dos “mestres” europeus. Deixo a diplomacia de lado: trata-se de surpreendente ingenuidade teórica, como se um autor da talha de Euclides pudesse ser limitado ao papel pálido de discípulo disciplinado, leitor engravatado do alheio. Como se houvesse a interpretação unívoca de qualquer texto! (Sem comentários – você sabe muito bem.) Há mais. Como não achar divertido esse anacronismo nada deliberado, que esboça o retrato curioso de um Euclides da Cunha professor universitário, com dedicação exclusiva e bolsa de pesquisa do CNPq, placidamente acomodado em seu escritório, com um potente ar condicionado, claro está; caso contrário, como pensar nos trópicos? Ignorar tão olimpicamente a precariedade das condições objetivas da produção de Os Sertões conduz a uma mesquinhez analítica, que, por fim, impede que se imaginem paralelos


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paralelos instigantes. Penso, por exemplo, em Pedro Henríquez Ureña, cujas circunstâncias biográficas6, em seus exílios e deslocamentos constantes, estimula um estudo comparado com Euclides da Cunha. Mas ainda não é tudo. Esse constrangedor exercício de pique-esconde conceitual, cujo perdedor sempre é o autor brasileiro, revela uma inesperada e passiva sujeição à assimetria estruturadora das relações acadêmicas. Ao fim e ao cabo, não estamos preparados para identificar as ressonâncias de Euclides em autores estrangeiros porque, conscientemente ou não, todo nosso treino convida a gesto oposto. Por isso, com a alegria ressentida do eterno discípulo, elevamos a voz, estufamos o peito, e anotamos com grande diligência os “equívocos” de Euclides... Um livro-conflito Ora, tão conflituosa quanto a forma da escrita euclidiana é a estrutura de Os Sertões, e, na verdade, em primeiro lugar, a perspectiva do autor. Recupere-se a divergência entre três momentos da reflexão de Euclides da Cunha, um autor em permanente atrito consigo mesmo. Portanto, o conflito é o alfa e o ômega do autor mais heraclitiano da cultura brasileira. Em 1897, articulista de O Estado de S. Paulo, ainda sem ter viajado para o sertão baiano, Euclides publicou dois textos sobre o conflito. O sugestivo título, “A nossa Vendeia”, antecipou sua orientação. No primeiro artigo, após esboçar uma visão panorâmica da terra e do homem (numa miniatura anunciadora das seções do livro), Euclides comparou o “tabaréu fanático” com o “chouan fervorosamente crente” (CUNHA, 2000, p. 52). O canudense foi sumariamente definido como adepto do retorno à Monarquia. Logo, concluiu com a profecia: “A República sairá triunfante desta última prova” (IDEM, p. 52). No segundo artigo, o elogio do “Exército Nacional” confundiu-se com a fé no futuro do país. A campanha militar empolgou o articulista: “É uma página vibrante de abnegação e heroísmo” (IDEM, p. 59). Esses artigos criaram uma metáfora perigosa, justificadora do aniquilamento de Canudos; afinal, tratava-se da

___________________________ 6Ver, Sonia Henríquez Ureña de Hlito, Pedro Henríquez Ureña; apuntes para uma biografia (México: Siglo XXI Editores, 1993).


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escrita sobrevivência do próprio regime. E, contra o atavismo do Conselheiro, nada mais adequado do que a marcha acelerada do exército em direção ao futuro da República. No mesmo ano, contudo, Euclides embarcou para o teatro de operações. Correspondente de guerra, descreveu as duras circunstâncias do combate. Na reportagem de 18 de agosto, a adjetivação da marcha republicana conheceu ligeira alteração: “campanha crudelíssima” (IDEM, p. 105). Em Os Sertões , a acusação será direta: “E foi, na significação integral da palavra, um crime” (CUNHA, 2002, p. 67). E, muito embora os sertanejos sejam considerados selvagens e bárbaros, paulatinamente Euclides reconsiderou o juízo. Na última reportagem, redigida em 1 de outubro, abriu de vez a guarda. Sem deixar de glorificar a ação do exército, destacou o compromisso inabalável dos canudenses com seu ideal: “Sejamos justos – há alguma coisa de grande e solene nessa coragem estoica e incoercível, no heroísmo soberano e forte dos nossos rudes patrícios transviados e cada vez mais acredito que a mais bela vitória, a conquista real consistirá em incorporá-los, amanhã, em breve, à nossa existência política” (CUNHA, 2000, p. 208). Nas últimas páginas de Os Sertões tal inclusão revelouse utópica: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo” (CUNHA, 2002, p. 778). O extermínio dos canudenses não era o único crime a ser denunciado; embora parcialmente correta, tal leitura apenas arranha a superfície do texto. O pecado original era o calculado desprezo pelo outro – o sertanejo; estrangeiro no próprio país. Fórmula que se repetiria na obra de Euclides: “Naqueles lugares, o brasileiro salta: é estrangeiro: e está pisando terras brasileiras” (CUNHA, 1999, p. 7). O próprio autor cometeu idêntico delito; por isso, sua reflexão encena o atrito entre o articulista, o repórter e o autor: e à visão tríplice do autor corresponde a estrutura de tríptico do livro. Desse modo, a escrita de Os Sertões é a contramão da marcha do exército positivista, pois a destruição de Canudos transformou-se em permanente matéria da memória. Ora, se o exército republicano triunfou, a escrita de Os sertões significou a derrota parcial do articulista e do correspondente de guerra, pois


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seus juízos foram questionados pelo escritor. Derrota parcial, contudo, pois as três dimensões mantiveram-se em tensa convivência: imagem de um conflito sem resolução. A banalidade do mal Isto é, o conflito a que me refiro relaciona-se estruturalmente à atividade diversificada de Euclides como articulista, correspondente, e, por fim, autor. E tudo depende da capacidade de reavaliar os próprios pressupostos com base nessas diferentes circunstâncias. Ora, em alguma medida, Hannah Arendt passou por circunstância similar, em 1961, como correspondente do New Yorker, e, posteriormente, na escrita dos artigos para a revista, publicados em 1963, e ampliados para o livro saído no mesmo ano, Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal. A expressão consagrada no subtítulo é usada duas vezes no livro, já no seu final. A autora esclarece o sentido a ela atribuído: I also can well imagine that an authentic controversy might have arisen over the subtitle of the book; for when I speak of the banality of evil, I do so only on the strictly actual level, pointing to a phenomenon which stared one in the face at the trial. Eichmann was not lago and not Macbeth, and nothing would have been farther from his mind than to determine with Richard III “to prove a villain.” Except for an extraordinary diligence in looking out for his personal advancement, he had no motives at all (ARENDT, 1965, p. 283).

O tema implica dessas questões prenhe de questões que nos levariam longe – mas já é tempo de encerrar este artigo; guardarei para futuro desenvolvimento a possível afinidade eletiva das circunstâncias vividas por Euclides da Cunha e Hannah Arendt. Há mais, contudo. A hipótese sobre essa possível afinidade surgiu da leitura de Um veredicto em Canudos, pois, se na superfície do texto Marai menciona o maio de 68 e o eterno retorno de explosão anárquicas, o modelo que


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parece estruturar sua reflexão é precisamente a ideia da banalidade do mal. O Marechal Bittencourt e sobretudo os soldados do exército brasileiro aparecem como se fossem surpreendentes antecipações de um Eichmann nos tristes trópicos. O vocabulário que define o extermínio dos canudenses é contundente: limpeza do terreno, como se fosse uma espécie de Endlösung propriamente avant la lettre. Eis como se descreve o Marechal: “Quem era ele então? Um cidadão, um funcionário – um fenômeno social novo por aqueles lados” (MARAI, 2011, p. 39). Pouco adiante, descobre-se o efeito dessa novidade: “tudo o que era humano perdia a forma por trás dos números” (IDEM, p. 44). Nada falta para que a banalidade do mal domine o relato do extermínio final dos adeptos do Conselheiro. As palavras do Marechal Bittencourt foram assim definidas pelo narrador e, nessa definição, surpreende-se uma dicção muito próxima à reflexão de Arendt sobre o comportamento automatizado do funcionário Eichmann. Eis o texto de Marai: Tudo o que dizia se revelava uma prestação de contas judiciosa, e entre os ouvintes ninguém duvidava de que ele enunciava a verdade cristalina, imparcial – porém a um tempo tínhamos a consciência de que ouvíamos menos um relato histórico e mais o procedimento sensato de um funcionário que formalizava um documento diante de nós. Porque Canudos – e tudo o que lá acontecera nos meses anteriores –, para o ministro da Guerra não se tratava de uma explosão humana ou de um desmoronamento social: era um relatório cheio de números oficiais, mais nada (IDEM, p. 46).

Por que ainda não aprofundamos paralelos similares? Por que ainda não recuperamos as ressonâncias de Os Sertões ? Coda Sándor Marai, com sua agudeza usual, expôs a dificuldade sem meias palavras:


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Ouvi que poucos no mundo conhecem o nome de Euclides da Cunha. É curioso, pois na estante atrás de mim, junto dos volumes sobre a história, a geografia, as paisagens e a hidrologia do Brasil, encontram-se numa longa fileira as edições em português e as versões estrangeiras da obra de Euclides da Cunha. Ainda assim, não são muitos os que sabem deste livro em outras terras (IDEM, p. 11).

É bem isso: não basta ter o texto traduzido; decisivo é conquistar um espaço propriamente intelectual (ou estético) que não seja confinado às estantes que somente enfileiram volumes sobre a história, a geografia, as paisagens e a hidrologia do Brasil . (Insisto: literatura comparada às avessas : projeto urgente.)

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Amazônia: a passagem do geográfico-político para o espaço imagético.1 Luís Heleno Montoril del Castilo

RESUMO: O presente texto trata de imagem e paisagem da Amazônia como uma das entidades geográficas imaginadas. Recorta um campo específico entre Amazônia imaginada e documentada através dos textos A jangada, de Júlio Verne e “Judas-Ahsverus”, de Euclides da Cunha a fim de descrever a passagem do geográfico-político para o espaço imagético. PALAVRAS-CHAVE: Imagem. Paisagem. Literatura. Amazônia. ABSTRACT: This text is about image and the Amazon landscape as one of the imagined geographical entities. It cuts a specific field between imagined and documented through texts Eight Hundred Leagues on the Amazon, of Jules Verne and "Judas-Ahsverus", of Euclides da Cunha to describe the passage of geographic and political space for the imagery. KEYWORDS: Image. Landscape. Literature. Amazon.

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Este texto é parte de produto de pesquisa pósdoutoral CAPES BEX9596/11-9 realizado entre maio e dezembro de 2012.

Professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Pará; pesquisador e professor do Programa de Pósgraduação em Letras Estudos Literários da Universidade Federal do Pará.

Edward Said, ao falar sobre "Orientalismo", com referências a Michel Foucault e à filosofia de Vico, escreveu que discursos, textos, ficções e relatos são formas pelas quais a cultura europeia é capaz de produzir o Outro; e de como os homens produzem sua história a partir de suas realizações como entidades geográficas e culturais Edward Said (2007) escreveu que Oriente e Ocidente são criados pelo homem como exemplos dessas entidades. Da premissa de Said, é possível depreender uma questão relativa a uma das regiões relevantes do planeta, a Amazônia. A questão depreendida é a de que essa região seria uma das entidades geográficas e culturais criada. Obras como A selva, de Ferreira de Castro; A jangada, de Júlio Verne; e O mundo perdido, de A. Conan Doyle; além de crônicas e relatos de viajantes dos “descobrimentos” e naturalistas, servem de abertura para um mundo imaginário construído desde um olhar estrangeiro2 sobre a Amazônia. Tais exemplos fazem parte de um conjunto de textos produzidos sobre essa região a formar um certo conhecimento sobre ela através de imagens e paisagens textuais e discursivas.


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Em ficções mais recentes, pode-se constatar a permanência desse imaginário em obras como Histoire de la Amazonie, de Jean Soublin (2000); Santarém, de J. Guicharnaud et R. Osterweis (1959); Naori, Renaud Berton (2003); Pas de pub, merci!, de Marido Viale (2012); Le trait d’union du monde, de Jérôme Camut (2011). Nessas obras vê-se uma estratificação de uma literatura relativa à Amazônia, em que o exotismo proveniente das comunidades indígenas e/ou tradicionais da floresta - com viés preservacionista em algumas - está em conformidade com parte do imaginário europeu sobre a selva. Ou ainda a referência a obras como Contes de l'Amazonie (2013), Mythes et légendes de l'Amazonie (2013) e Conte de l'Amazonie: La Sagesse du Paresseux, cahier de lecture (2014), de Patrick Agot; em que os animais assumem a cena em uma fábula da selva amazônica ou tem-se uma recriação poética contemporânea sobre elementos da natureza como a chuva, o rio e a floresta cujo objetivo é revelar um ensinamento universal da Mãe Natureza. Em De la Beauce à l'Amazonie - Chemin de vie (2009), Roger Chauveau apresenta um relato pessoal sobre a descoberta de uma Amazônia circunscrita ao que ele observa sobre a vida dos índios Oyampi. Ou em Vie d'une indienne de l'Amazonie (1997), de Oswald Ballarin que segue o itinerário, já aberto, de uma Amazônia indígena. Esse também é o tema de Mythes de l'Amazonie - Une traversée de l'imaginaire shipibo, de Pierrette Bertrand-Ricoveri (2005). Em um traçado mais histórico-metaficcional, Amazonie mangeuse d'hommes (2012), Ricardo Uztarroz propaga um ambiente maravilhoso, de mistério e aventura contido desde a descoberta da Amazônia cuja maldição atinge aqueles que por ela se aventuram. Como é o caso de Francisco de Orellana, Charles Quint, Lope de Aguirre e Walter Raleigh, num passado mais remoto. E Percy Fawcett e Raymond Maufrais em época mais aproximada. Esse é o caso semelhante de Le Temps d'un Voyage (2009), em que Xavier Pivano escreve uma ficção policial em torno dos mistérios que rondam a morte de uma equipe de pesquisadores no coração da floresta amazônica após a descoberta dos poderes da planta alucinógena Ayahuasca.

______________ "Estrangeiro", ou ainda, "olhar estrangeiro" à Amazônia não está restrito ou limitado ao europeu, mas a brasileiros e mesmo habitantes da Amazônia, que, ainda que nascidos nela, repetem uma imagem e paisagem típicas, cristalizadas. O que leva a pensar que "quem vê melhor pode estar do lado de fora".

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Tais registros citados servem para indicar um um caminho possível a compor o mapa da literatura universal na Amazônia, aquele em que o imaginário sobre a região é confeccionado desde um olhar estrangeiro sobre ela. Tal caminho tem sido feito e trilhado há algum tempo: na Amazônia, empresa comercial e curiosidade da natureza produziram o imaginário sobre a região; promessa de tesouros e produtos fabulosos que desde o início dos descobrimentos da Amazônia, dominaram a fantasia dos aventureiros da América. Desde Juan Ponce de Léon e sua fonte da juventude; incluindo o espanhol Francisco Vasquez de Coronado e as sete cidades de Cíbola; e ainda os primeiros conquistadores da América Latina que se lançaram à procura da terra da canela, do Eldorado e do reino misterioso das Amazonas. A partir do século XVIII, as viagens dos naturalistas são o sinal de uma nova ordem planetária que substituiria a dominante de exploração do Novo Mundo como as conquistas, as missões, e as aventuras. Há o interesse científico imposto pelo projeto iluminista através de um método eminentemente descritivo do objeto visualizado, em que a fixação do quadro permitiria o congelamento da imagem e o estabelecimento dos seus limites. Uma fixação e um enquadramento que teve em território amazônico um de seus maiores desafios, seja pelos aspectos naturais, seja pelos seus aspectos culturais resultantes do cruzamento de “raças”. Seja pelo primeiro caminho dos descobrimentos, seja pelo segundo caminho naturalista, ou pelo da literatura de ficção referida anteriormente pelos registros das obras citadas, a paisagem amazônica projetada é a de um espaço e não a de um lugar. Como entender isso? David Harvey (1993), em A Condição pós-moderna, define lugar e espaço como elementos distintos. Lugar é o que é conhecido, delimitado. O lugar estabelece fronteiras que o levam ao isolamento. Essa é a relativa segurança proporcionada pela manutenção do que é familiar aos que habitam o lugar. Quanto ao espaço, este seria exterior, estranho ao lugar conhecido. Mistério, mito e imaginação estão contidos nele. À medida que o lugar se expande, o espaço se comprime. A compressão do espaço tem sua origem na Renascença. As viagens do descobrimento expandiram o


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expandiram o lugar, no sentido mesmo de expandir a legalização político-social do lugar original em direção a outros territórios antes desconhecidos. No processo expansionista, os descobridores da finitude do globo e da importância do saber geográfico, descobriram também que a dominação do espaço era o pressuposto básico para o acúmulo de riquezas. Na transição do feudalismo à Renascença, lugar e espaço passam a se movimentar. Enquanto no feudalismo lugar e espaço estavam separados pelo que era familiar e estranho, na Renascença, o espaço passa a existir como território abrangente em que diversos lugares estão em relação. Isso não quer dizer que o espaço se tornou mais próximo, ele continua distante daquele que o observa. Talvez seja possível dizer que o lugar é o território do vivido e o espaço sobrevive da representação e imagem projetadas. O espaço é visto em perspectiva, não é vivido. Geometrização e sistematização do espaço definem o espírito renascentista de organização com o fim de harmonizar o mundo conforme o universo organizado de Deus. O perspectivismo originado daí parece anteceder e prenunciar o advento iluminista de controle e organização do espaço sob o predomínio do visual. Tem-se de um lado a ciência da óptica e de outro a mitologia e a religião. Há nessa visualização do mundo o “olho que vê do indivíduo”. Individualismo e perspectivismo serão as bases do vindouro cartesianismo racionalista do projeto iluminista. O domínio da natureza através da organização racional do espaço e do tempo faz o homem ter autoconsciência de seu poder demiúrgico. Nesse sentido, distancia-se do pensamento mágico e mítico potencializando sua vontade de saber. O indivíduo que emerge do espírito renascentista vai culminar no princípio iluminista de dominação do futuro “por meio de poderes de previsão científica, da engenharia social e do planejamento racional e da institucionalização de sistemas racionais de regulação e controle social” (p. 227). Na Amazônia, pretendeu-se tornar o ambiente natural em um lugar familiar. Tornar o misterioso mundo em algo próximo do mensurável e conhecido mundo de origem europeia. Conhecer o objeto através de um olhar direto sobre ele, sem as mediações da linguagem figurada produzida pelo olhar oblíquo da imaginação ou da


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intuição. Sob esse ponto de vista, a área da grande floresta amazônica se apresentou – e ainda se apresenta – como o grande desafio de dominação da civilização da técnica sobre a natureza. Mas, em outro plano, essa mesma natureza tem sido o espaço aberto para a construção do mito e do imaginário sobre a região. Essa Amazônia exótica, como espaço imaginado, é um desdobramento dos processos de construção ficcional que faz levantar hipóteses sobre as representações literárias sobre a Amazônia: 1. a hipótese de que a Amazônia é enunciada desde um lugar mitopoético e imaginado; 2. a de que os processos modernizantes e globalizantes na Amazônia tem modificado seu tempo e espaço mas ainda não foram capazes de substituir as imagens e paisagens estratificadas sobre a região; 3. finalmente, a de que o imaginário produz a realidade amazônica: sua paisagem, fisionomia e imagem. Tais considerações revelam bem uma das dimensões do trabalho comparatista enfocado por Daniel-Henri Pageaux, em “Littérature Comparée et Comparaisons” (1998); a do estudo imagológico; em que as imagens do estrangeiro delimitam o outro da relação e também o estudo da dimensão estrangeira do texto, da obra e da literatura sob a lógica do imaginário. Desse comparatismo resulta o papel difícil de descrever a passagem do geográfico-político para o espaço imagético. Essa perspectiva em que os relatos ficcionais carregam de novos sentidos as paisagens, senão mesmo as reconstituem; também projeta um foco mais amplo sobre os processos civilizatórios do tempo-espaço americano e sobre o processo econômico desenvolvimentista. A construção do espaço amazônico está expressa nas imagens e paisagens que olhares diversos formaram ao longo do tempo; os mesmos podem situar melhor a relação do lugar amazônico em relação ao espaço internacional. O geógrafo Milton Santos definiu bem a epistemologia da paisagem ao chamar atenção para as formas resultantes de contextos históricos diversos: “A paisagem existe através de suas formas, criadas em momentos históricos diferentes, porém coexistindo no momento atual” (SANTOS. 1996, p. 104).


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A paisagem amazônica constante das referências apontadas anteriormente, certamente foi construída pelos processos históricos refinados pelo imaginário e ideologia estrangeira sobre a região, a "coexistir no momento atual". A esse respeito, vale a pena trazer ao primeiro plano desse artigo um micro-recorte sobre dois textos em que ficção, paisagem e realidade histórica imaginada confluem. Luiz Costa Lima, em seu livro O controle do imaginário , cita Jeremy Bentham para falar da “raiz do fictício”, de sua razão de ser e de sua origem, qual seja, a linguagem. A citação é a seguinte: “apenas à linguagem é que as entidades fictícias devem a sua impossível mas indispensável existência” (LIMA. 1989, p.48). Ao largo do pensamento utilitarista e racionalista, tal referência permite dizer que os estudos literários e históricos se inscrevem no campo das ciências humanas em que o modo de organização dos signos de representação do seu objeto resulta na forma diferenciada de sua expressão. O livro de Bentham é datado de 1814, sua citação por Costa Lima teve a intenção de compor a reflexão sobre a verdade contida num racionalismo previdente de uma realidade que se opunha a sua construção, da realidade, pela imaginação, pelo ficcional. Tal oposição ressoa em um artigo de Lloyd S. Kramer, intitulado “Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio literário de Hayden White e Dominick Lacapra”, constante do livro intitulado A nova história cultural, organizado por Lynn Hunt, em 1992. Nesse artigo, Kramer assinala que a crítica literária: “tem ensinado os historiadores a reconhecer o papel ativo da linguagem, dos textos e das estruturas narrativas na criação e descrição da realidade histórica” (p.131, 132). É verdade que de 1814 a 1992, variadas concepções da história e da literatura alternaram-se demarcando limites artificiais entre a escrita da história como expressão da verdade e o literário como representação do falso. Mas o que importa recortar para o escopo definido aqui é que o texto literário de ficção como escrita da história e o texto histórico como escrita de um certo tipo de ficção têm feito parte das preocupações metodológicas tanto de uma disciplina quanto de outra. O que significa dizer que esses campos disciplinares tendem a se cruzar quanto mais se aproximam de um estudo sobre a linguagem e o estado do signo.


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Na literatura da Amazônia, dois textos vão permitir trazer essa questão da ficção e realidade histórica imaginada e a articulação com a primeira parte, tratados no espaço desse artigo. São eles, A jangada, de Júlio Verne (ed. 2003) e o ensaio “Judas-Ahsverus”, de Euclides da Cunha, este último publicado em À margem da história (1975). No romance de Júlio Verne, publicado em 1811, temse uma ficção sobre a viagem de uma família pelo rio Amazonas numa jangada. Na verdade uma grande “casacidade flutuante”, construída com o objetivo de levar a família e os criados de um proprietário de terras na Amazônia peruana de Iquitos à Belém do Pará para a realização do casamento da filha desse mesmo proprietário com o estudante Manoel, amigo do irmão da noiva. Por trás dessa primeira intenção, há uma outra, a vontade de restabelecer a verdade dos fatos sobre um crime que acontecera 26 anos antes da época em que se passa a história, 1852. Joam Garral, o proprietário, fora condenado à morte por roubo de diamantes. Não era uma simples jangada, era a repetição exata dos vários espaços da propriedade de Garral. Depois da derrubada de cerca de oitocentos metros quadrados de floresta, os índios constroem a “casa-cidade flutuante” de Garral com as instalações exatas e completas: a casa do patrão, no fundo da jangada, com cinco quartos e espaçosa sala de jantar, tinha janelas e porta de entrada com direito a varanda e um frondoso jardim. Parte disso revelado pela fala da filha do proprietário, Minha, a não deixar dúvidas: “queremos que dê a impressão de que a casa da fazenda está viajando conosco” (p.93). Para além da trama do romance, a ficção de Júlio Verne se converte em alegoria do progresso da história e da ciência sobre as partes ensombradas da terra, alegoria do processo civilizatório sobre a Amazônia, processo esse universal, e europeu, de grande parte do século XIX. E ainda uma obra de ficção, verossímil, sobre a terra e o homem na Amazônia desde o imaginário estrangeiro sobre essa região revelado pelas palavras de seu narrador.


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É a lei do progresso. Os índios desaparecerão. Diante da raça anglo-saxã, australianos e tasmanianos desapareceram. Diante dos conquistadores do Extremo Oeste extinguiram-se os índios da América do Norte. Algum dia, provavelmente, os árabes serão dizimados diante da colonização francesa. (p.60) Não tinha nada a temer dos índios da América Central; longe ia o tempo em que era preciso precaver-se contra essas agressões. Os índios que habitavam as margens pertenciam a tribos pacíficas, e os mais ferozes já se haviam retirado com a chegada da civilização, que foi se espalhando ao longo do rio e de seus afluentes. (p.101)

Esse tipo de ficção impõe o veto ao ficcional de que fala Luiz Costa Lima (1989), em que o romance se presta a emoldurar a realidade traçando e pintando, com as cores da razão científica e a repetição do mesmo, todo o mundo. O que implica em dizer que nem toda obra de ficção diz ao modo ficcional, no sentido de dizer que o discurso ficcional não se presta à prova de verdade, ainda que a pronuncie, e mais, libera o signo para o jogo irônico da história. O outro texto, mencionado anteriormente, é o ensaio “Judas-Ahsverus”, de Euclides da Cunha, presente em À margem da história. Nele, Euclides da Cunha "informa" sobre a Amazônia. Com uma narrativa bíblica, que faz o leitor lembrar de Os sertões, “a Amazônia é construída na linguagem”, como bem disse Willi Bolle, em seu artigo “O Mediterrâneo da América Latina: a Amazônia na visão de Euclides da Cunha” (2005). Aqui está o ponto: o ensaio de Euclides da Cunha não é uma obra de ficção, mas diz ao modo ficcional, e ainda projeta, sob a sublimidade da cena descrita, uma imagem e paisagem do tempo e espaço amazônicos transfigurados em linguagem.


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No sábado da Aleluia os seringueiros do Alto Purus desforram-se de seus dias tristes. É um desafogo. Ante a concepção rudimentar da vida, santificamse-lhes, nesse dia, todas as maldades. Acreditam numa sanção litúrgica aos máximos deslizes. (p.75) Nas alturas, o Homem-Deus, sob o encanto da vinda do filho ressurreto e despeado das insídias humanas, sorri, complacentemente, à alegria feroz que arrebenta cá embaixo. E os seringueiros vingam-se, ruidosamente, dos seus dias tristes. (p.75)

Ao se ler com vagar o trecho citado, é possível recorrer ao que diz Luiz Costa Lima sobre “a inevitabilidade documental de tudo que o olhar humano atinge pela sua relação com o signo” (p.193). Mas para além do signo documental há uma organização das palavras que pretende mais do que informar, e sim trazer o ficcional, aquele elemento que transforma o olhar enrijecido do que se repete e recorre à mobilidade presente num outro discurso. O ensaio de Euclides da Cunha parece ser um caso de materialidade discursiva literária proveniente de uma realidade histórica da Amazônia que se apresenta semelhante ao que Hayden White diz: “A narrativa histórica não imagina as coisas que indica: ela traz à mente imagens das coisas que indica, tal como faz a metáfora”. (1994, p. 108) O ensaio em questão é exemplo de figuração de alcance universal, extraído de um fato de cultura de uma certa realidade da Amazônia, em lugar e tempo definidos, que está ligado à história de ocupação e exploração da natureza e do homem. Nesse ponto é preciso atentar que o sábado de Aleluia nos seringais da Amazônia está investido de uma repetição da história da civilização com as marcas da diferença deixadas às suas margens. Pelo texto de Euclides da Cunha, na Amazônia, é no intervalo temporal do processo civilizatório que é possível escrever o outro lado de sua história. É desse tempo vazio que salta da história a poderosa imagem a seguir, a valer a longa citação:


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O Judas faz-se como se fez sempre: um par de calças e uma camisa velha, grosseiramente cosido, cheios de palhiças e mulambos: braços horizontais, abertos, e pernas em ângulo, sem juntas, sem relevos, sem dobras, aprumando-se, espantadamente, empalado no centro do terreiro. Por cima uma bola desgraciosa representando a cabeça. É o manequim vulgar, que surge em toda a parte e satisfaz à maioria das gentes. Não basta ao seringueiro. É-lhe apenas o bloco de onde vai tirar a estátua, que é sua obra-prima, a criação espantosa de seu gênio rude longamente trabalhado de reveses, onde outros talvez distingam traços admiráveis de uma ironia sutilíssima, mas que é para ele apenas a expressão concreta de uma realidade dolorosa. E principia, às voltas com a figura disforme: salienta-lhe e afeiçoa-lhe o nariz; reprofunda-lhe as órbitas; esbate-lhe a fronte, acentua-lhe os zigomas; e aguça-lhe o queixo, numa massagem cuidadosa e lenta; pinta-lhes as sobrancelhas, e abre-lhe com dois riscos demorados, pacientemente, os olhos, em geral tristes e cheios de um olhar misterioso; desenha-lhe a boca, sombreada de um bigode ralo, de guias decaídas aos cantos. Veste-lhe, depois, umas calças e uma camisa de algodão, ainda servíveis; calça-lhe umas botas velhas, cambadas..Recua meia dúzia de passos. Contempla-a durante alguns minutos. Estudaa. Em torno a filharada, silenciosa agora, queda-se expectante, assistindo ao desdobrar da concepção, que maravilha.Volve ao seu homúnculo: retoca-lhe uma pálpebra; aviva um rictus expressivo na arqueadura do lábio; sombreia-lhe um pouco mais o rosto, cavando-o; ajeita-lhe melhor a cabeça; arqueia-lhe os braços; repuxa e retifica-lhe as vestes...Novo recuo, compassado, lento, remirando-o, para apanhar de um lance, numa vista de conjunto, a impressão exata, a síntese de todas aquelas linhas; e renovar a faina com uma pertinácia e uma tortura de artista incontestável. Novos retoques, mais delicados, mais cuidadosos, mais sérios: um tenuíssimo esbatido de sombra, um traço quase imperceptível na boca refegada, uma torção insignificante no pescoço engravatado de trapos...E o monstro, lento e lento, num transfigurar-se insensível, vai-se tornando em homem. Pelo menos a ilusão é empolgante... Repentinamente o bronco estatuário tem um gesto mais como vedor do que o parla! Ansiosíssimo de Miguel Ângelo; arranca seu próprio sombreiro; atira-o à cabeça do Judas; e os filinhos todos recuam, num grito, vendo retratar-se na figura desengonçada e sinistra o vulto do seu próprio pai. (...) Embaixo, adrede construída, desde a véspera, vê-se uma jangada de quatro paus boiantes, rijamente travejados. Aguarda o viajante macabro. Conduz-lo, prestes, para lá, arrastando-o em descida, pelo viés dos barrancos avergoados de enxurros. (p.75)


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A jangada de Júlio Verne, repetição de um modelo, imitatio da tríade Estado-família-propriedade, signo de uma história da civilização européia de foco único sobre a Amazônia, é cortada pela jangada fantasmática e fantástica de um realismo das margens dessa história, do ensaio de Euclides da Cunha. É esse corte transversal sobre a alegoria dessa história civilizacional que o discurso ficcional de Euclides da Cunha, pela linguagem, empreende. E não se trata de sentimento, emoção, razão, ou subjetivismo, porque esses também podem servir à via documental ou construir uma realidade que passa a servir de modelo a ser imitado. Euclides da Cunha teve a percepção disso.

Ao revés da admiração ou do entusiasmo, o que nos sobressalteia geralmente, diante do Amazonas, no desembocar do Dédalo do Tajapuru, aberto em cheio para o grande rio, é antes um desapontamento. A massa de águas é certo, sem par, capaz daquele “terror” a que se refere Wallace; mas como todos nós desde mui cedo gizamos um Amazonas ideal, mercê das páginas singularmente líricas dos não sei quantos viajantes que desde Humboldt até hoje contemplaram a Hiléia prodigiosa, com um espanto quase religioso – sucede um caso vulgar de psicologia: ao defrontarmos o Amazonas real, vemo-lo inferior à imagem subjetiva há longo tempo prefigurada. (1975, p. 25)

Amazonas ideal e real entram como forma de esclarecer que ideal não está colado ao ficcional, como o real não está colado ao documental. Trata de ratificar o que já foi dito. Está claro que a jangada de Verne participa dessa crescente auto-imagem europeia que constrói, pelo rumo da ficcção, esse espelho ilusório capaz de projetar unicamente seu desejo de si mesmo. O ensaio de Euclides da Cunha permite extrair da realidade localizada no interior da Amazônia, um outro olhar e escuta da história. Ao confeccionar o Judas, o seringueiro significa para si, pela tradução de Euclides, e significa para o outro o que está contido na repetição da história, com as marcas da diferença.


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Literatura e tradução: descontinuidades na ficção do outro Mauricio Mendonça Cardozo

RESUMO: A ideia de que a relação com o outro se dê como uma forma imediata de acesso ao outro é bastante disseminada. Nesse sentido, a efetivação da relação seria determinada pela figura da continuidade (de um outro em nós, de nós em um outro), assegurando-se, assim, uma acessibilidade a esse outro como uma identidade totalizável ou, simplesmente, como uma unidade identitária. Tendo por base uma reflexão mais ampla sobre questões do tempo da relação, com especial atenção à discussão de conceitos como duração e contemporaneidade, este trabalho tem por objetivo discutir preliminarmente as noções de unidade na obra literária e de continuidade na tradução, levando-se em consideração o pressuposto de que ambas se constroem como uma espécie de ficção de continuidade inscrita em uma condição de descontinuidade. PALAVRAS CHAVE: relação com o outro, tempo, descontinuidade, tradução, obra literária; ABSTRACT: The idea that the relation to the other happens as an immediate way to access otherness is quite widespread. In this sense, the accomplishment of the relation would be determined by the figure of the continuity (of another in us, of us in another), ensuring thus an accessibility to otherness as a totalizable identity or simply as an identity unit. Based on a broader reflection on time issues in the relation, with particular attention to the discussion of concepts such as duration and contemporaneity, this paper aims at discussing preliminarily the notions of both unity in the literary work and continuity in translation, taking into account the assumption that these notions are built up as a sort of fiction of continuity inscribed in a condition of discontinuity. KEYWORDS: relation to the other, time, discontinuity, translation, literary work

Universidade Federal do Paraná (UFPR)/CNPq


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Eu sei que este papel está aqui e que não haverá ninguém nenhum outro nunca nenhures em nenhuma outra parte ninguém para preenchê-lo em meu lugar e isto poderá ser o fim do jogo mas não haverá prelúdio nem interlúdio nem poslúdio neste jogo em que enfim estou a sós nada conta senão esta minha gana de cobrir este papel como se cobre um corpo e estou só e solto nato e morto nulo e outro neste afinal instante lance em que me entrego todo [...] quero dizer que tudo isto é uma tradução um traduzir para um modo sensível onde algo se encadeie e complete esta mão do jogo [...] Haroldo de Campos1. Lembrei-me de Averróis, que, encerrado no âmbito do Islã, nunca pôde saber o significado das palavras tragédia e comédia. Contei o caso; à medida que me adiantava, senti o que teve de sentir aquele deus mencionado por Burton, que pretendeu criar um touro e criou um búfalo. Senti que a obra zombava de mim. Senti que Averróis, querendo imaginar o que é um drama sem ter suspeitado o que seja um teatro, não era mais absurdo que eu, querendo imaginar Averróis, sem outro material além de alguns rudimentos de Renan, de Lane, e de Asín Palacios. Senti, na última página, que minha narrativa era um símbolo do homem que eu fui enquanto escrevia, e que, para escrever essa narrativa, fui obrigado a ser aquele homem e que, para ser aquele homem, tive de escrever essa narrativa, e assim até o infinito. (No instante em que eu deixo de acreditar nele, “Averróis” desaparece.) Jorge Luis Borges2

Ficções do outro: continuidades, descontinuidade Em A busca de Averróis, Borges nos coloca diante da figura de um comentador de Aristóteles. Conta-nos o narrador, que Averróis se propunha a ler e comentar o filósofo grego como liam e comentavam o Alcorão os ulemás, os eruditos islâmicos. Conta-nos o narrador, também, de uma dificuldade particular que Averróis encontrara na leitura e compreensão da Poética: o estudioso teria esbarrado nos termos tragédia e comédia, que lhe seriam opacos, uma vez que desconhecidos no mundo islâmico em que vivia. E ao referir-se às condições em que Averróis realizava sua prática de comentador, o narrador borgiano dá uma dimensão ainda mais ampla do contexto em que esta e outras dificuldades se inscreviam, com destaque para a não-contemporaneidade entre o comentador (Averróis) e o objeto comentado (a obra de

_______ 1 Campos, 2004, 36º fragmento. 2 Borges, 1992, p.78.


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Aristóteles), bem como para a natureza mediada dessa prática de comentário (fundada em traduções da obra do estagirita para o árabe): Poucas coisas mais belas e mais patéticas registrará a história além dessa consagração de um médico árabe aos pensamentos de um homem de quem o separavam catorze séculos; às dificuldades intrínsecas devemos acrescentar que Averróis, ignorando o grego e o siríaco, trabalhava sobre a tradução de uma tradução. (BORGES, 1992, p.72)

Assim caracterizada, a prática de Averróis ganha ainda uma figuração paralela na passagem final do conto (citada em epígrafe): o próprio narrador borgiano se aproxima do personagem central de sua narrativa, comparando, à condição de seu Averróis comentador, sua própria condição de narrador da história de Averróis. Essa aproximação entre as práticas do comentador e do narrador é articulada em torno da questão da imaginação do outro: “Senti que Averróis, querendo imaginar o que é um drama sem ter suspeitado o que seja um teatro, não era mais absurdo que eu, querendo imaginar Averróis [...]” (BORGES, 1992, p.78). Nessa passagem, Averróis figura como aquele que, para dar conta de seus comentários, precisa imaginar um Aristóteles e seu mundo, a despeito de todas as dificuldades que se lhe impõem. Do mesmo modo, o narrador borgiano surge como aquele que, apesar de todas as suas limitações, tem de dar conta de imaginar um Averróis em seu respectivo universo. Vale observar que, no conto, não se trata de reduzir as duas práticas à dimensão daquilo que elas manifestam como semelhante: no caso de Averróis, trata-se da prática do comentário filosófico, ou seja, da leitura, da glosa e da tradução (stricto sensu) colocadas a serviço da construção de um pensamento e da imagem do filósofo que o articula; no caso do narrador de Borges, trata-se de uma narrativa ficcional que encontra, na construção desse personagem Averróis, seu maior desafio. Borges aproxima as duas práticas, mas o faz a partir de um problema que é equacionado como sendo comum: imaginar o outro a ser comentado e imaginar o outro a ser narrado. E se − não perdendo de vista os limites e as possibilidades da condição de representação do outro e do mundo em qualquer prática


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discursiva − aceitarmos que imaginar o outro é sempre, em alguma medida, uma construção de ordem ficcional, então podemos pensar, a partir das questões que o conto de Borges levanta, que as dificuldades inerentes à prática do comentário e à prática da narrativa são fundamentalmente atravessadas pela questão da ficção do outro. Mas o conto de Borges ainda dá um passo adiante, já que, em seu último movimento, o narrador flagra, no resultado de sua construção ficcional (em seu Averróis), a imagem de si próprio. E ao fazer isso, a problemática da ficção do outro parece esboçar-se para além da suposta insuficiência de conhecimento e informação, não se deixando reduzir, portanto, à precariedade da mediação ou à impossibilidade de acesso ao outro − ou seja, o problema da ficção não parece residir apenas na possibilidade de totalização de um outro como o outro . Com esse movimento especular ao final da narrativa, a questão da ficção do outro se explicita como construção, como poiesis , uma vez que somos nós que imaginamos esse outro e, ao fazê-lo , nós nos construímos, também, como o sujeito dessa imaginação. Dito de outro modo: nesse movimento de construção da imagem do outro, há sempre um fazer , um fazer que é o nosso fazer, pois, no tempo desse gesto, não há como nos alienarmos daquilo que não cessa de nos constituir em nossa singularidade. Se aceitarmos, que, resguardadas suas especificidades, a tradução, entendida como uma prática de relação com o outro (uma obra, um texto, um autor), também é atravessada por essa mesma ordem de questões que determina a narrativa e o comentário, podemos dizer, então, que toda prática de tradução tem também um forte componente ficcional. Nesse sentido, traduzir o outro é também construir um outro da tradução. Acontece que, do ponto de vista da noção de tradução perpetuada pelo senso comum, ao tradutor não parece caber nada mais que transportar o outro traduzido para sua língua e cultura, para seu tempo e espaço. E como, na prática, esse outro da tradução não se apresenta − nem teria como se apresentar − como o outro de fato, a tradução, em geral, é considerada imperfeita, ruim, deformadora, inferior, menor. Essa expectativa frustrada do senso comum se alimenta de uma espécie de promessa ilusória de continuidade do outro na tradução. E como as evidências práticas insistem em nos mostrar a impossibilidade do cumprimento de tal


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promessa, estabelece-se um estatuto negativo para a prática tradutória: entendida nesses termos ideais, a tradução é condenada a frustrar as expectativas de todo leitor menos avisado. Mas ao contrário do que perpetua o senso comum, esse outro que traduzimos − assim como aquele que é objeto de um comentário, bem como aquele que surge nos contornos de uma narrativa − não é o outro, o outro de fato, mas, sim, um outro, aquilo que nos é dado imaginar, aquilo que nos é dado construir como imagem do outro. Na relação que tem lugar na tradução, operamos com o outro (a obra, o texto, o autor) a partir de um outro imaginado (uma obra, um texto, um autor que surge com a tradução, na tradução, a partir da tradução), um outro construído por nós mesmos; enfim, operamos com o outro a partir de um valor de outro, que tem − e, em geral, deve mesmo ter − muito a ver com o outro, mas nunca deixará de ser um produto de nossa própria imaginação. Assim, imaginar o outro é também traduzi-lo para o nosso mundo. E, na esteira do movimento que o conto de Borges propõe, traduzir o outro para o nosso mundo significa também traduzi-lo com o nosso mundo, nos termos do nosso mundo, do nosso idioma, ou seja: dentro dos limites e possibilidades que temos para imaginá-lo, para formar e construir uma ideia do outro. É interessante lembrar aqui que, apesar de serem práticas igualmente atravessadas pela problemática da ficção do outro, o comentário filosófico (em suas tantas variantes) e a ficção (nos diversos gêneros discursivos em que se manifesta) não sofrem de um estigma tão proverbial como é o caso da tradução. No entanto, essas práticas também são assombradas por aquela mesma ilusão de continuidade do outro. No comentário, isso pode se manifestar, por exemplo, quando seu estatuto de validade é naturalizado e alçado à condição de verdade absoluta − sintoma do esquecimento de que também esse estatuto é fruto de uma construção. Na ficção, isso pode ocorrer em episódios mais anedóticos, como, por exemplo, no caso das telenovelas: quando o ator é confundido com o personagem desempenhado por ele (como se, para certo expectador, o artista fosse o próprio personagem); mas há também nuances críticas, como no caso em que a obra se confunde com a vida do autor, e vice-versa. Tendo isso tudo em vista, podemos dizer que a narrativa de Borges oferece subsídios para reconsiderar os termos


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dessa ilusão de continuidade do outro. E o faz porque, ao aproximar a prática do comentarista e do narrador a partir da problemática da imaginação do outro, explicita uma descontinuidade no modo de entender a relação com o outro implicada nessas práticas: a descontinuidade entre Aristóteles e um Aristóteles imaginado por Averróis; a descontinuidade entre Averróis e um Averróis imaginado pelo narrador borgiano. A primeira epígrafe deste trabalho vem justamente cumprir o fim de dramatizar essa condição de descontinuidade, na medida em que coloca em cena um eu (escritor, narrador) no que talvez possa ser lido como o momento da experiência do abismo que o separa do outro: do leitor, do tradutor. Já no início desse fragmento de Galáxias, o tom confessional confirma sua condição de isolamento: “eu sei que este papel está aqui e que não haverá ninguém nenhum outro nunca nenhures em nenhuma outra parte ninguém para preenchê-lo em meu lugar e isto poderá ser o fim do jogo” (CAMPOS, 2004, 36º fragmento). Nessa dramatização, reverbera a solidão essencial de Blanchot, para quem: A obra é solitária: isso não significa que ela permaneça incomunicável, que careça de um leitor. Mas quem a lê reafirma a solidão da obra na mesma medida em que aquele que a escreve assume o risco dessa solidão . (BLANCHOT, 1955, p.15, tradução minha )

O fragmento de Galáxias, citado em epígrafe, confirma a dinâmica desse jogo blanchotiano num movimento que se distende de “não haverá prelúdio nem interlúdio nem poslúdio neste jogo em que enfim estou a sós” até “quero dizer que tudo isto é uma tradução um traduzir para um modo sensível onde algo se encadeie e complete esta mão do jogo”: pois, para que haja um jogo da escrita, não se pressupõe, aqui, uma resposta; o jogo (da ficção, da tradução) se dá como uma aposta, em que “nada conta senão esta minha gana de cobrir este papel como se cobre um corpo”. O jogo da escrita, o jogo da tradução, o jogo da ficção tem lugar, mas esses jogos não pressupõem necessariamente a reciprocidade, a continuidade, a contiguidade com o outro. O jogo, pensado nos termos desse fragmento de Galáxias, tem antes a descontinuidade como condição, uma


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vez que, apesar do abismo que separa o eu e o outro, apesar da consequente solidão que cada um habita, o jogo acontece. E nesse jogo, a solidão que separa é também aquilo que o eu e o outro mais têm em comum, aquilo que podem partilhar mais sinceramente: “estou só e solto nato e morto nulo e outro neste afinal instante lance em que me entrego todo”. As duas epígrafes que abrem este trabalho flertam, cada qual a seu modo, com a questão da descontinuidade. Esta, por sua vez, constitui um contraponto importante ao que chamamos, aqui, de uma ilusão de continuidade, força fundadora de um certo modo de pensar o outro na literatura e na tradução, força responsável por garantir a esse outro contornos de unidade e identidade. Mas não seria possível pensar numa circunscrição de unidade e identidade do outro também a partir de uma condição de descontinuidade? Unidade e descontinuidade: a questão da obra − a exemplo de Galáxias Na literatura, assim como na tradução literária, podemos dizer, genericamente, que a obra é uma das formas de dimensionamento do outro em questão: a obra é o outro que traduzimos, a obra é o outro que lemos, comentamos, criticamos, discutimos. Mas a discussão do conceito de obra também tem uma ampla tradição na teoria literária, em algumas vertentes da filosofia dita continental e na crítica contemporânea, remontando, modernamente, a um pensamento que costumamos identificar com a produção estética e filosófica da primeira geração do romantismo alemão − e, especialmente, às reflexões de autores como Friedrich Schlegel e Novalis. Nesse contexto específico, a discussão em torno da noção de fragmento, ora como conceito ou princípio, ora como prática crítica, poética e filosófica, acabaria se tornando um catalisador poderoso, colocando em causa pressupostos constitutivos da ideia mais corrente de obra, como os de totalidade, unidade e continuidade. Afinal, o próprio operador lógico da ideia de conjunto se vale fortemente desses pressupostos, ao menos enquanto entendermos que, na unidade do conjunto, a totalidade de elementos que o constitui encontra, no que cada elemento apresenta de


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de comum, uma continuidade de um no outro. Galáxias (CAMPOS, 2004) é um livro sui generis . Seu projeto original não previa nem mesmo a fixação de uma ordem, de uma sequência dos fragmentos – traço que se evidencia, na edição impressa, a partir da opção pela ausência de paginação. Cada fragmento é autônomo, não depende de um prelúdio, não faz interlúdio nem se apresenta como poslúdio de nada. A ausência de maiúsculas e de pontuação borra ainda mais toda ordem de limites e segmentações. Em Galáxias , é preciso decidir, no momento da leitura, onde inscrevemos os limites de cada sintagma, onde começa e termina cada fragmento ou fragmento de fragmento. Diante disso, como pensar seu estatuto deobra ?. "La ficction affleurera et se dissipera, vite, d’après la mobilité de l’écrit." (MALLARMÉ apud Campos, 2004, em epígrafe). Extraída do prefácio do poeta Stéphane Mallarmé a seu famoso poema Um lance de dados jamais abolirá o acaso, essa frase epigrafa o conjunto de 50 fragmentos que compõe as Galáxias, de Haroldo de Campos. Trata-se de uma obra no ocaso dos limites entre a prosa e a poesia; e como dirá o autor, livro caleidoscópico, atravessado pelo mote da viagem como livro e do livro como viagem. Em sua própria tradução do poema de Mallarmé e de seu respectivo prefácio, Haroldo de Campos traduzirá assim a frase epigráfica: “A ficção assomará e se dissipará, célere, conforme à mobilidade do escrito [...]”(MALLARMÉ, 2002, p.151). É notável como a dinâmica dessa ficção descrita na epígrafe mallarmaica ganha vida em Galáxias: torna-se fôlego, pulsão, pulsação no corpo da escrita do poeta, como se a obra de Haroldo de Campos respondesse programaticamente ao tom de promessa (ou aposta) que o futuro do presente (a ficção assomará e se dissipará) imprime na epígrafe. Nos limites físicos que a obra ganha em sua edição impressa, o primeiro e o último fragmento do livro (os únicos marcados em itálico), como dois momentos de uma longa distensão, traduzem bem a dinâmica dessa ficção; mas o fazem mais peloque mobilizam de ideias sobre a escrita, do que pela ordem em que aparecem publicados – vale lembrar, trata-se de um livro que põe em questão a própria ideia de livro e de ordem num livro. No primeiro fragmento lemos:


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E começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa não é a viagem mas o começo da por isso começo escrever mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso recomeço por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever é o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites milumapáginas ou uma

No último fragmento do livro, por sua vez, lemos: fecho encerro reverbero aqui me fino aqui me zero não canto não conto não quero anoiteço desprimavero me libro enfim neste livro neste voo me revoo mosca e aranha mina e minério corda acorde psaltério musa nãomaisnãomais que destempero joguei limpo joguei a sério nesta sede me desaltero me descomeço me encerro no fim do mundo o livro fina o fundo o fim o livro sina não fica traço nem sequela jogo de dama ou de amarela cabracega jogo da velha o livro acaba o mundo fina o amor despluma e tremulina a mão se move a mesa vira verdade é o mesmo que mentira ficção fiação tesoura e lira [...] (CAMPOS, 2004, último fragmento)

______________ Poderíamos arriscar, aqui, dizendo que se trata de uma obra, para a qual O tempo do kairós parece ser mais fundamental do que o tempo de chronos.

3

Num movimento que se distende entre o primeiro e último fragmento, assomos e dissipações, juntos, dão ocasião à obra, fazem a obra acontecer em seu tempo3. Mas Galáxias também é obra na medida em que, por assim dizer, sobrevive dessa dinâmica a cada fragmento, a cada frase, a cada sintagma, a cada corte. Galáxias acontece nesse movimento. Portanto, é menos como produto desse movimento (no horizonte teleológico de uma unidade) e mais como acontecimento nesse movimento rápido de assomo e dissipação da ficção que a obra tem lugar. A obra não resulta dessa ficção que assoma e se dissipa. A obra acontece, a obra se passa... nessa dinâmica em que ela se faz ficção. Mas que ficção é esta que engendra essa obra de Haroldo? Que ficção é esta que assoma e se dissipa e, nesse movimento, dá vazão, passagem à obra? Certamente não devemos esquecer de que Galáxias é um trabalho de escrita desenvolvido ao longo de mais de uma década e de que,


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nessa longa viagem, essa escrita poética se vale de uma série imensa de episódios de leituras e viagens, de lidas e de vidas. No entanto, nem as questões envolvidas na construção do chamado pacto ficcional, tampouco as relações complexas entre real e imaginário, verdadeiro e fictício parecem centralmente determinantes para a compreensão dessa noção de ficção que assume valor de princípio vital, de aposta e promessa na obra de Haroldo de Campos. Para pensar, aqui, essa ideia de ficção, caberia aproximar do campo semântico do verbo latino fingere (modelar, moldar e, num sentido figurado: criar, inventar), a que remonta etimologicamente o termo ficção, um de seus sinônimos gregos, o verbo poiein, a que remonta, por sua vez, a ideia de poiesis (fazer, produzir, construir, criar). E se, resguardadas suas nuances, essa associação por sinonímia for minimamente plausível, podemos arriscar uma compreensão da noção de ficção a partir do que ela tem em comum com a noção de poiesis, a saber, sua acepção como um fazer. Ou seja, caberia simplesmente lembrar que a noção de ficção, assim como a de poiesis, implica também um fazer – por certo que um fazer específico, da ordem da produção, da criação, da invenção, mas, ainda assim, um fazer. Em outras palavras: a noção de ficção, entendida nesses termos, não diria respeito estritamente ao estatuto dito ficcional (ou mesmo fictício) de uma obra; a noção de ficção, nesse sentido particular, evidenciaria também o modo como a obra acontece − diria respeito ao acontecimento da obra como um fazer4. Poderíamos, agora, voltar à epígrafe de Mallarmé e repensar esse movimento de assomo e dissipação da ficção como um fazer-se e desfazer-se da escrita, ou, para usar a formulação do próprio Haroldo, como fiação e tesoura, escrita e corte. Nesse sentido, na singularidade de sua sintaxe galáctica, mais marcada pelo corte que pela satisfação das transitividades, mais exuberante em seus excessos e transbordamentos que em seus repousos e resoluções, Galáxias aconteceria enquanto obra já a cada insinuação de sintagma, que, sem se fechar em unidade, é logo entrecortado por outro sintagma; e, nesse mesmo movimento, o conjunto de sintagmas, recortado contingencialmente pelos limites físicos da página, forma um fragmento que, na página seguinte, ao invés de ganhar

______________ 4 Reverbera nessa passagem o pensamento de Jean-Luc Nancy, especialmente aquele desenvolvido em seu ensaio Faire, la poésie (NANCY, 2004).


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continuação, desfaz-se e dá lugar a um novo fragmento, e assim por diante. Cabe lembrar, aqui, de uma distinção que Derrida faz em seu ensaio “A fita de máquina de escrever” (DERRIDA, 2004, em especial p.35-39): trata-se de uma distinção entre as figuras da máquina e do acontecimento, ligando a primeira a uma lógica da continuidade, na expressão ideal da repetição, e a segunda a uma lógica da descontinuidade, como expressão de singularidade. A máquina convencional estaria fadada à lógica da continuidade, à produção do mesmo – de um mesmo - mesmo–, enquanto o acontecimento se definiria justamente como uma forma de descontinuidade, como algo que é sempre singular, que é sempre outro. A noção de obra surgiria, nesse contexto, como um desafio paradoxal a essa lógica, uma vez que suporia “que uma lógica da máquina se [conciliasse], por mais inverossímil que isso pareça, com uma lógica do acontecimento” (idem, p.39). Em sua irredutibilidade, a obra surgiria, portanto, enquanto uma espécie de máquinaacontecimental, que conciliaria, numa mesma figura, o contínuo e o descontínuo. Se podemos dizer que em Galáxias, de Haroldo de Campos, é a continuidade de uma dinâmica da descontinuidade que dá corpo à obra, talvez possamos pensar essa obra nos termos da máquina-acontecimental derridiana. E, assim, na medida em que não se pressuponha tal projeto poético como malogrado, Galáxias se imporia tanto como caso evidente de escrita sob o signo da descontinuidade, quanto como crítica à generalização do pressuposto de que o estatuto de obra se fundaria, necessariamente, nos termos ideias de uma lógica da continuidade. Identidade e contemporaneidade

descontinuidade:

a

questão

da

A questão da identidade encontra uma tradição ainda mais longa de discussão no pensamento filosófico ocidental, a qual obviamente não caberia referir aqui diretamente. Mas vale lembrar, ao menos, das três ordens de questão que o Ricoeur (1988) de “L’identité narrative” vislumbra para a discussão da identidade: a identidade como questão de ordem qualitativa, centrada na noção


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de semelhança, que faria par opositivo com a noção de diferença; e a identidade como questão de ordem temporal, centrada na noção de continuidade, que faria par opositivo com a noção de descontinuidade. Ainda que a noção de identidade se adense justamente a partir da sobreposição dessas três ordens, para os fins desta discussão, restrinjamo-nos à identidade como questão de ordem temporal, em cujo contexto as noções de continuidade e descontinuidade são mais evidentes. Ora, se há uma noção que parece se valer fundamentalmente de uma noção de continuidade, esta é a de identidade. Aparentemente, dizer que eu sou eu, afirmarme como um eu parece pressupor alguma forma de continuidade deste eu a cada instante em que me afirmo como tal. O mesmo valeria no caso da identidade do outro para com ele mesmo. E, ainda, para uma construção nossa do outro como alteridade: reconheço o outro como o outro, se percebo, nele, uma continuidade do que, nele, eu já havia percebido anteriormente. No entanto, se levarmos em conta que essas construções identitárias tem lugar no tempo, seremos confrontados com o fato de que diferentes concepções de tempo dão expressão a diferentes concepções identitárias. Para abreviar violentamente o inabreviável de uma discussão sobre o tempo, lembremos, aqui, de uma frase intrigante de Bergson em seu Duração e Simultaneidade (BERGSON, 2006). Em meio a sua discussão da natureza do tempo e, nesse contexto, no movimento exato em que constrói sua compreensão do conceito de duração, o filósofo afirma: “O outro é duração”. (BERGSON, 2006, p.59) Ora, se assumirmos o tempo da duração como um continuum homogêneo e mensurável, a proposição acima torna-se exemplar de um pensamento fundado no pressuposto da continuidade do outro. No entanto, para Bergson, a duração não parece se dar nesses termos. Lembremos da comparação que o filósofo faz, na mesma passagem dessa obra, entre duração e melodia. Segundo o pensador, ao ouvirmos música, construímos uma ficção de continuidade, da qual nos valemos para perceber a melodia, a despeito de ela ser formada por uma série complexa e descontínua de notas e ausência de notas musicais a cada


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novo instante; notas que, por sua vez, em sua natureza acústica, também são formadas por um jogo intrincado e descontínuo de som e silêncio. De modo algo semelhante, também no cinema construímos uma ficção de continuidade, da qual nos valemos para perceber um plano-sequência, a despeito de ele ser formado por uma série complexa e descontínua de fotogramas e ausência de fotogramas projetados numa frequência regular; fotogramas que, por sua vez, também são formados por um jogo complexo e descontínuo de luz e sombra. Tomando por base esses exemplos, poderíamos assumir que construímos uma ficção de continuidade do eu ou do outro, da qual nos valemos para perceber sua identidade como um eu ou como um outro, a despeito da descontinuidade do eu em sua própria constituição enquanto um “eu”, bem como da inalienável e constrangedora tarefa de ser um “eu mesmo” a cada novo instante – constrangimento interno (digamos, da ordem do aparelho psíquico) e externo (da ordem das relações do eu com os outros e com o mundo). Nesses termos, não poderíamos assumir a identidade do eu, enquanto um eu mesmo, como homogênea e contínua; o eu habitaria, antes, uma condição fragmentada, que só existiria enquanto tal na projeção (durativa) de um movimento descontínuo e incessante de reiteração de si como um “eu mesmo” a cada novo instante, enfim: esse eu só existiria na ficção de duração de um eu enquanto eu. Em outras palavras, a percepção da identidade como continuidade seria um efeito dessa nossa construção – sem ignorar aqui, obviamente, o fato de que, apesar de se tratar de uma construção, esse efeito adquire uma série de valores reais, imaginários e simbólicos em nossa vida. Como consequência direta disso, não se poderia presumir simplesmente como dada (talvez, quando muito, apenas como possível) a coincidência no tempo, em dois instantes diferentes, entre um eu e um eu “mesmo”. Afinal, esse “mesmo” já seria resultado de uma construção, construindo-se (bergsonianamente) como duração e, portanto, só manteria seu estatuto de identidade na medida em que reiterado a cada instante. E não seria demais lembrar, aqui, que, na duração que estabelece o estatuto de identidade, trata-se de um movimento iterativo, da repetição como iteração, ou seja, de uma reinscrição


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sempre singular de si a cada instante Traduzir, traduzir-se: relação, tempo e descontinuidade Do que foi discutido até aqui, podemos tirar algumas consequências de ordem mais geral. Se já a continuidade, a coincidência, no tempo, entre um eu e um eu-mesmo não estaria dada como certa, mais incerto ainda seria pressupor a coincidência dos tempos de um eu e de um outro dispostos numa determinada relação. Talvez seja nesse sentido que Derrida (2006), retomando o Lévinas de Le temps et l'autre (LÉVINAS, 1979), nos lembre de não podermos pressupor a contemporaneidade entre o eu e o outro, já que não poderíamos fazê-lo nem mesmo quanto à contemporaneidade entre um eu e o eu-mesmo. Ou seja, para o eu, o outro é sempre intempestivo, surge sempre fora de nosso tempo, de modo inesperado, acidental. Ou ainda, para lembrar de um termo, cuja polissemia Derrida também soube explorar – para o eu, o outro tem lugar sempre como contratempo: como acidente, algo inesperado, em sua pulsão descontínua que se apresenta como ficção de continuidade identitária; mas, também, como parte de uma composição relacional, como contraparte de um jogo entre os tempos todos da relação entre o eu e o outro. Assim, talvez não fosse demais dizer que a forma desse contratempo seria a própria manifestação do tempo da e na relação. Diante disso, a questão da identidade (como ficção do eu ou do outro) coloca-se também como a questão da ficção de um tempo do eu, de um tempo do outro e de um tempo da relação, o que, por sua vez, significa admitir que não há uma continuidade entre esses tempos e que não poderíamos assumir como dada, em nenhuma relação, uma contemporaneidade entre o eu e o outro. Também a contemporaneidade entre eu e outro seria, portanto, da ordem da ficção. Dessa discussão, podemos tirar também algumas consequências mais particulares para se pensar o estatuto do eu e do outro no contexto específico da tradução. Se,Se, por um lado, para uma forma de relação presencial, como uma conversa entre dois amigos, pensar a não-contemporaneidade do eu e do outro pode ser um dado menos evidente e, nesse sentido, bastante revelador para se pensar os pressupostos dessa relação, por outro


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lado, para a relação que tem lugar na tradução, a nãocontemporaneidade do eu (tradutor) e do outro (autor, leitor) parece algo mais óbvio. Poderíamos dizer, mesmo, que a prática de tradução se funda na nãocontemporaneidade do outro, já que a tradução é sempre aquela que vem depois, já que ela é tradução, e não um original, justamente porque vem depois, a contratempo – mesmo que, na projeção ideal de sua tarefa de ser o outro de novo, dela seja sempre solicitada uma espécie de evocação de contemporaneidade. Nesse sentido, a tradução, como uma forma de poiesis da relação, evidenciaria, de modo paradigmático, a nãocontemporaneidade do eu e do outro de qualquer relação. Entretanto, quando mergulhados na atividade absorvente da prática de tradução ou leitura, raramente nos damos conta dessa não-contemporaneidade. Absorvidos no tempo de nossa tradução, nossa escrita torna-se símbolo do homem que somos enquanto escrevemos, sem percebermos que, para traduzir, fomos obrigados a ser aquele homem e que, para ser aquele homem, tivemos de traduzir, e assim até o infinito, num movimento incessante em que, ao construirmos o outro como ficção, construímos a ficção de nós mesmos − outra forma de dizer que traduzir o outro é um modo de transformação, que traduzir o outro é sempre um traduzir-se. Sob o manto de sua transitividade direta, o verbo traduzir parece insistir em habitar a condição ideal do dizível. Traduzir o outro é assumir a posição de querer dizê-lo e, portanto, presumir a possibilidade de dizê-lo num continuum de sua unidade enquanto outro, em sua presumível totalidade. É assumir a possibilidade de apreendê-lo como unidade contínua e finita. É dar ao outro um nome que o vista sob medida, sem admitir a possibilidade de que haja nele algo da ordem do indizível, algo que o nome, que a ele atribuímos, não possa vestir com justeza. Ocorre que é próprio dessa transitividade (outro nome para o desejo do contínuo) demandar um objeto cuja unidade, porém, não se pode apreender de modo ideal. Desejo traduzir o outro, mas não me é dado o acesso a ele, não como continuação minha nele, dele em mim. A relação aí implicada é, antes, de natureza partitiva: traduzo do outro, traduzo um algo dele; ou, metonimicamente, algo que nomeio como sendo dele e que passa a valer como o outro.


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A transitividade do verbo demanda um objeto. Traduzo do outro, pois o outro me falta. Em sua transitividade, a ação de traduzir persegue sempre um complemento. O desejo de suprir a falta é sua força natural e propulsora: instaura-se como tensão, que parte da ausência e se projeta numa direção que nomeia o outro. Essa tensão é justamente a potência que garante mobilidade à ação do verbo – é o que lhe dá algum sentido. No entanto, fazer desse desejo uma esperança de estancar de vez a falta; fazer desse desejo uma esperança de acessar o outro e de reduzi-lo à ficção de uma possibilidade de suprimir essa ausência, isso é o mesmo que embargar o princípio propulsor do próprio movimento. Pois diante da impossibilidade de alcançar um outro que me continue, que preencha plenamente essa lacuna, instala-se uma imobilidade do traduzir, inaugura-se uma forma de impossibilidade da tradução: decreta-se o intraduzível como embargo da relação com o outro. Esse desejo, assim formulado como esperança, separa-nos da própria possibilidade de realização da tradução: o tradutor torna-se então o criador de suas próprias impossibilidades. E na tradução, essa esperança é a primeira que mata! Sedento de palavra, de uma palavra capaz de dizer os silêncios do outro e de calar sua própria falta, o tradutor se aproxima do texto como de um leito de morte e, na esperança de ouvir os mais secretos sussurros do moribundo, não percebe que seu desejo o imobiliza, torna-se sua própria mortalha. Acontece que traduzir é também um movimento reflexivo, ainda que nem sempre se manifeste assim em seu uso mais corrente. Afinal, quem é de fato esse outro que digo traduzir? Ao traduzir, traduzo-me − assim como o narrador borgiano, que ao construir a imagem de Averróis, constrói também uma imagem de si próprio. Pois esse outro inalcançável não é senão parte distanciada de mim mesmo, metáfora do que em mim se descontinua. A cena do encontro com o outro é apenas a imagem que motiva uma abertura, uma projeção em sua direção; mas a realização do encontro se põe em xeque diante da constatação de nossa inexorável separação. A condição (poderíamos dizer “natural”) do homem é a de estarmos diante dos outros e do mundo como diante dum abismo − blanchotiano, lévinassiano, haroldiano −, tendo a solidão e a descontinuidade como regra. Mas é justamente diante disso que se impõe o desafio de ser humano, de habitar o mundo


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condição humana: como arco distendido entre carne e linguagem. Assim, a tradução não faz nada de mais. É apenas mais uma prática humana. Dentre estas, no entanto, é aquela que mais põe em evidência os limites relacionais da condição de descontinuidade que habitamos; é aquela que mais torna evidente as possibilidades e impossibilidades de nossas relações pessoais, linguísticas, culturais, sociais, ideológicas, econômicas. Traduzo, traduz-se, portanto, em traduzo do outro e em traduzo-me. E o verbo traduzir não se alimentará apenas de continuidades, não alcançará o outro simplesmente pelo toque, ou pela tangente. Traduzir realiza-se, antes, como uma assíntota: uma linha de força que, em projeção infinita, tende a aproximar-se do outro, busca e almeja sua continuidade, mas nunca o atinge em ponto algum. A tradução, enfim, aposta alto numa ficção de transitividade, que constrói o outro como unidade, como identidade; mas a tradução se impõe de modo inexoravelmente intransitivo. Traduzir é aceitar a condição de descontinuidade que nos funda e, a um só tempo, a continuidade como ficção, como o desafio de projetar-se indefinidamente em direção ao outro e, nisso, construir, para a relação, uma dimensão do possível: No instante em que eu deixo de acreditar nisso, a possibilidade desaparece.

Referências BERGSON, Henri. Duração e Simultaneidade: a propósito da teoria de Einstein, tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BLANCHOT, Maurice. La solitude essentielle. In: L'espace littéraire. Paris: Gallimard, 1955, p.11-32. BORGES, Jorge Luis. A busca de Averróis. In: O Aleph, tradução de Flávio José Cardozo, 8a. ed. São Paulo: Globo, 1992, p.71-78. CAMPOS, Haroldo de. Galáxias, 2a. ed; org. Trajano Vieira. São Paulo: Ed. 34, 2004. DERRIDA, Jacques. A fita de máquina de escrever. Limited Ink II. In: Papel-máquina, tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p.35-136. DERRIDA, Jacques; FERRARIS, Maurizio. O gosto do segredo, tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século, 2006.


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Traduzir o outro traduzindo a si próprio: Ana Cristina César e o exercício tradutório Mayara Ribeiro Guimarães

Spring… Too long… Gongula… Ezra Pound, “Papyrus” RESUMO: O presente ensaio discute a prática de tradução literária como exercício autônomo que converte o tradutor ao status de autor do texto traduzido a partir das proposições de Haroldo de Campos sobre transcriação e antropofagia para pensar em que medida o gesto tradutório, para Ana Cristina Cesar, é uma continuação ou um ponto de partida da escrita poética. A partir da análise de ensaios teóricos sobre tradução encontrados em seus Escritos da Inglaterra e de procedimentos tradutórios utilizados na tradução do conto “Bliss”, de Katherine Mansfield, realizada por Ana C., procuro desvendar a dialogicidade entre original e texto traduzido mantida pela tradutora brasileira na tradução do conto mansfieldiano e destacar o pensamento teórico de Ana C. sobre a natureza da tradução de prosa. PALAVRAS-CHAVE: Ana Cristina César, tradução literária, Haroldo de Campos

 Professora Adjunta de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Pará, doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email:mayribeiro@uol.com.br

ABSTRACT: This article discusses the translational process of literary translation as an independent task that gives the translator the same status as the author of the original. Considering the ideias on transcreational writing and anthropophagy conveyed by Haroldo de Campos in many of his essays, this article analyses to what extent translation is a continuous line of poetic creation as well as a starting point from which the creation process can grow, in the eyes of Ana Cristina Cesar. The analysis hereafter developed starts withthe study of theoretical essays on the nature of literary translation, registered by Ana C. in her Escritos da Inglaterra, and finishes with the translation strategies used in the translation of “Bliss”, by Katherine Mansfield. In between, I discuss the permanent dialogue enclosed by the original and the translation through the hands of Ana C. and her theoretical considerations on the nature of translating prose. KEYWORDS: Ana Cristina Cesar, literary translation, Haroldo de Campos


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Em 1916, Ezra Pound escreve o poema-ruína “Papyrus”, causando estranhamento e indignação na comunidade literária americana pela maneira como justapõe versos fragmentados, inacabados e quase insignificantes, não fosse o conteúdo enigmático acentuado pela desconhecida palavra Gongula… O efeito de dessacralização e rebaixamento poético disseminado pelo uso da colagem de versos que recusam a estrutura discursiva e promovem a instauração de uma estética do fragmentário, onde o elo semântico é reestabelecido pelo leitor, evoca em muito a experiência poética de Oswald de Andrade em sua poesía Pau-Brasil. O poema, publicado na coletânea intitulada Lustra , ensina Haroldo de Campos (CAMPOS: 2013, p. 28), lança o poeta em uma espiral talvez expiatória – como aponta o significado da palabra lustra, no latim – de sacrificiado incompreendido, uma vez que reencena um gesto de transposição poética que nos remete a práticas tão antigas quanto as apropriações e recriações de poetas do Siglo de Oro espanhol feitas por poetas portugueses e brasileiros. Este é o caso de Gregório de Matos, outro incompreendido, iniciador da prática antropófaga na literatura brasileira, como já apontaram Augusto de Campos, Haroldo e Lucia Helena. A teoria aristotélica da imitatio , incentivada como prática comum e mandatória entre poetas do século XVII, neste período, diferencia furto (associado a roubo e plágio) e imitação, por meio da noção de originalidade, vinculada à metáfora do lume. Essa metáfora é apresentada por Francisco Leitão Ferreira, no século XVII, e reconvocada por João Carlos Teixeira Gomes no livro Gregório de

Matos, O boca de brasa, um estudo de plágio e criação intertextual, à propósito da reflexão em torno da

noção de plágio no Barroco. Entende-se que a imitação é prática aceita e estimulada (enquanto “norma básica de boa autoria” p. 144) quando o poeta “toma a luz” de outro poeta para iluminar a própria obra, onde a obra original e a imitação, ainda que tendo algo em comum, se constituem como produções de autorias distintas. Em outras palavras, entra em cena um “espírito de emulação” que se configura pelo jogo de imitação em que um texto gera outro texto em intercâmbio intertextual (GOMES: 1985, p. 148). Uma das orientações da época


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para que a imitação se caracterizasse como original e criativa, e não como furto ou mera apropriação, era a recomendação de que se aumentasse ou diminuísse alguma coisa do original no objeto novo, afastandose do registro de simples reprodução para constituir-se como exercício de produção, excedendo o original. O que mais espanta, entretanto, é que se de um lado arrola-se a prática da imitação de modelos antigos, incentivada por textos de autores barrocos e neoclássicos como sendo de natureza “dinâmica e transfiguradora”, de outro associa-se aquilo que se caracterizou por roubo ou latrocinio à noção de tradução, nesse caso como “má tradução”. Cito o texto de Correia Garção (apud GOMES): Muitos, querendo imitar Virgílio, fazem má tradução desta ou daquela imagem de tão grande poeta; e escravos de suas palavrars não passam de tradutores. Não imitam, roubam e despedaçam obras alheias: desfiguram o que lhes agradou, como se tomassem por empresa fazer-nos aborrecer o que admiram. Disto acha-se que enfermam tantas quantas são as obras que todos os dias aparecem cheias de lugares dos poetas, não imitados, mas servilmente traduzidos. É tão forte a preocupação de que nascem tão lastimosas desordens que muitos com vaidade e com soberba apontam e mostram os pensamentos ou ideias que roubaram ou traduziram” (GOMES, 1985, p. 145).

Ainda que a noção de tradução veiculada possa se associar á de interpretação, ela também se vincula á de transposição, de onde se pode inferir que se existe uma “boa tradução”, ela se exprime pelo gesto de equivalência, eurocêntrico e homogêneo, e não pela diferença. Isto é, que a ideia de originalidade se enlaça à de inscrição da diferença no horizonte da equivalência, quando na verdade se poderia ver por trás deste gesto de imitação já uma prática canibalizadora, não do ponto de vista do “bom selvagem”, mas do “mau selvagem”, proposto por Oswald de Andrade.


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É neste sentido que opera a reflexão de Haroldo de Campos, propondo-se repensar a tradição da imitação aristotélica, “que marcou tão profundamente a poética do Ocidente” (CAMPOS: 2013, p. 205), em termos de uma prática de transcriação, ou de tradução criadora. “Repensá-la não como uma apassivadora teoria da cópia ou do reflexo, mas como um impulso usurpatório no sentido da produção dialética da diferença a partir do mesmo” (ídem). O proceso de “hibridização contínua”, contaminação criativa ou mestiçagem literária, presente portanto já desde o barroco de Gregório de Matos, constitui para Haroldo de Campos uma prática tradutória, também entendida como exercício dialógico do nacional com o universal, de dizer o outro dizendo a si mesmo. De volta a Gongula, a chave de leitura oferecida por Hugh Kenner e divulgada por Haroldo (CAMPOS: 2013, p. 27-36) recupera o passado da Grécia antiga pela figura de Safo e os pergaminhos onde se encontram seus poemas, em estado de impossível reconstituição e fragmentação absoluta, para explicar o poema de Pound. Para um amante das ruínas e dos inacabamentos, e também da antiguidade grega, como o foram Pound e Haroldo de Campos, a tradução do fragmento sáfico em novo poema poundiano configura-se como uma transcriação poética que o estado fragmentário dos pergaminhos propiciou. Para Haroldo, este estado naturalmente tornou a poesia sáfica suscetível de um efeito de modernização por meio de um efeito de inacabamento. A questão para Haroldo de Campos é sobretudo o modo como Pound, pela manutenção do efeito de ruína em seu poema, recupera a herança da antiguidade clásica / lírica grega, coloca-a em contato com a tradição dos haicais, redimensionando a noção de literatura universal a partir do momento em que reatualiza/reorganiza essa tradição à luz da modernidade do século XX. De 1979 a 1981, período em que viaja para a Inglaterra e se dedica ao Curso de Literatura – Teoria e Prática da Tradução Literária, na Universidade de Essex, Ana Cristina Cesar se empenha em uma exaustiva produção de poemas, ensaios e traduções que darão origem não só literária e os estudos de tradução como partes constitutivas


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A edição póstuma organizda por Armando Freitas Filho e traduzido por Maria Luiza Cesar contém não só a tese “O conto Bliss, anotado (Katherine Mansfield”), com a qual Ana C obteve o seu Master of Arts, na Universidade de Essex, que inclui conto no original, a tradução para o português, uma introdução e oitenta notas referents ao processo de tradução, mas também vários ensaios teóricocríticos, no estilo da tradução de “Bliss”, sobre tradução de prosa e de poesia, cartas e traduções de poemas de Emily Dickinson, Dylan Thomas, Anthony Barnett, Marianne Moore, Sylvia Plath e William Carlos Williams. Note-se que alguns dos poemas possuem mais de uma tradução, como é o caso de “Do not go gentle into that good night”, de Dylan Thomas e “Words”, de Sylvia Plath. O curso não se concretizou por conta do número insuficiente de inscritos, como aponta M. Riaudel. 2 O curso não se concretizou por conta do número insuficiente de inscritos, como aponta M. Riaudel. 3 A indicação se encontra no ensaio “O autor invisível. Tradução e criação na obra de Ana Cristina Cesar” e em sua tese de doutoramento intitulada Intertextualité et transferts (Brésil, États-Unis, Europe): reécritures de la modernité poétique dans l’oeuvre d’Ana Cristina Cesar (Rio de Janeiro, 1952-1983), Paris X – Nanterre, 2007

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de seu processo de criação literária. Os textos reunidos nos Escritos da Inglaterra2, o curso de Poesia Moderna Traduzida, organizado para ser oferecido no segundo semestre de 1983, na PUC do Rio de Janeiro 3, as traduções feitas por Ana C., o ensaio “Pensamentos sublimes sobre o ato de traduzir”, recolhido em Escritos no Rio, além da bibliografía lida e anotada para a preparação do curso e de suas traduções, cujas notas e marginália presentes na biblioteca pessoal de Ana C indicam um percurso formativo no campo da tradução, como sugere Michel Riaudel4, assinalam um tal caminho. E sendo o exercício da tradução em Ana C. realizado via Pound, a tradução literária redimensiona a escrita poética à maneira poundiana apresentada na primeira parte desse ensaio. Empenhado em decifrar os elementos constituintes desse imbricado jogo de relações e justaposições entre os métodos de criação poética e a prática tradutória realizados por Ana C., Riaudel lê a obra de Ana C. a partir de três pólos configuradores de produção: o da escrita transferencial, do autor invisível e da derivação metonímica (RIAUDEL: 2012, p. 114). Neste quadro, o ato da leitura se efetiva como gesto de devoração que já participa do processo de tradução e escrita porque os textos lidos se convertem em textos incorporados em sua poética, a partir da reapropriação, repetição e citação de vozes literárias que compõem sua própria voz. Assim como os barrocos, Ana C. presta homenagem aos seus pares, transformando a imitação em gesto de tradução criadora. A fidelidade, como explica Riaudel, em operação benjaminiana, é à vida (ou sobrevida) do texto devorado. Entretanto, o cenário se complica ainda mais, uma vez que Ana C. também tem o hábito de inserir fragmentos de correspondência, conversas, textos de autores brasileiros em seus poemas, o que faz com que Flora Süssekind se refira a um modo interpretativo da poética de Ana C. como arte da conversação. Nesse modelo, as vozes alheias são despersonalizadas, inseridas nos poemas e transformadas em modulações tonais da voz írica, promovendo um ambiente textual em que o sujeito se dissolve “em meio a uma profusão de enunciadores” (RIAUDEL: 2012, p. 119). O rercuso da


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metonímia como jogo ou mascarada teatral entre os outros e o eu enreda o texto em fingimentos e encenações que, apesar de criar ilusões e enganos, ainda assim se ancoram na realidade (RIAUDEL, idem). Nesse caminho, Riaudel, por sua vez, sugere o uso de procedimentos teatrais por parte de Ana C. pelos quais contamina sua voz com a de outros, entendendo a atuação do tradutor como ator, muito próximo daquilo que Clarice Lispector, outra tradutora canibal, deixa expresso no ensaio “Traduzir procurando não trair” (LISPECTOR, 2005). Para Lispector, traduzir é reescrever. Não somente porque para se chegar ao produto textual final é necessário um número incontável de revisões e alterações, mas sobretudo pelo que está contido nesse gesto de repetição, que é a reescritura. “Traduzir pode correr o risco de não parar nunca” (LISPECTOR: 2005, p. 115). Esse interminável ato de reescrita faz referência tanto ao ato de traduzir, quanto ao de escrever, o que nos leva a pensar que o exercício tradutório se aproxima muito, no caso da produção de Clarice-tradutora, de uma dinâmica própria daquela encontrada no drama cênico. Correr o risco de não parar nunca é também reencenar o gesto de tradução como um interminável tirar e por a máscara, como se o tradutor assumisse a cada novo exercício uma nova máscara dramática, seja no esforço de encontrar a melhor saída, seja na possibilidade de a cada tradução experimentar um papel distinto. No texto sobre o ato de traduzir, Clarice afirma que “todo escritor é um ator inato” (idem, p. 116) porque “representa profundamente porque “representa profundamente o papel de si mesmo” (ibidem) e sua obra apenas reflete, “como num espelho”, sua “própria fisionomia” (idem). Porque para Lispector, como assinala André Luis Gomes, a tradução “pressupõe o pensar o texto enquanto encenação” (GOMES: 2007, p. 78), possibilitando a teatralização dos agentes literários. Lilian Hirsch, citada por André Luis Gomes, vai afirmar que a tarefa de encenar a literatura, na adaptação de um texto literário em peça de teatro, está muito próxima da tarefa de tradução, uma vez que “a passagem da literatura para o teatro está muito


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próxima de uma ‘impossibilidade’ e que talvez ela só possa se realizar através da ‘transposição criativa’” (HIRSCH, apud Gomes: 2007, p. 163). Como visto anteriormente, para Haroldo de Campos, a impossibilidade da tradução engendra a possibilidade da recriação (CAMPOS: 2007, pp. 34-35), sua força ganha em intensidade de acordo com a crescente dificuldade proporcionada pelo texto original, isto é, quanto maior a distância entre o original e a tradução, mais originalidade, o que abre espaço para a livre encenação da linguagem, apagando os limites da autoria e permitindo a livre troca de papéis. Assim como Lispector, e não podia ser diferente, já que uma das vozes eleitas no diálogo poético de Ana C. é a própria Clarice, a atitude literária desenvolvida por Ana C. (e por Clarice) desenrola uma complexa rede de encenações onde a linguagem se destaca como protagonista, tanto na atuação poética/ficcional, quanto na produção de tradução, propiciando o tangenciamento entre o ato de traduzir e o ato de encenar, interferindo irreversivelmente nas bases da literariedade, da autoria e do fazer poético. Riaudel relembra que a crise do signo, da significação e do sujeito, tensionada pelo concretismo, remete a uma crise do referente, que confunde as vozes do sujeito lírico e de seus interlocutores. É Flora Süssekind quem narra o revelador episódio da carta-resenha escrita por Ana C. a Potiguara Mendes da Silveira Jr., e encontrada por sua mãe, Maria Luiza, dentro do exemplar que Ana C. conservava em sua biblioteca. No texto, a poeta desenvolve o questionamento, a propósito do libro de Silveira Jr., sobre a natureza do ato de traduzir, onde perguntas como “Que trabalho é esse o de traduzir? Sobretudo o de traduzir poesia, literatura, tarefa em principio condenada à impossibilidade? O que faço quando traduzo?” (SÜSSEKIND: 2007, pp. 47-49) remetem às mesma indagações feitas por Clarice Lispector em seu ensaio. Algumas das respostas, conclui Süssekind, aparecem indiretamente em seu modo de escrita em vozes múltiplas, sobretudo na análise dos cadernos de rascunho deixados por Ana C. Neles “evidencia-se o imbricamento das duas atividades. Às vezes, pela simples convivência, num mesmo caderno, do texto-em-tradução e do poema em proceso de composição. Às vezes pela interferência direta de imagens ou procedimentos estilísticos de algum


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texto que interessava traduzir.” (Idem, p. 49) As duas formas de exercício parecem assim se justapor e compor um único mosaico a ser decifrado pelo leitor . No ensaio “Bastidores da tradução”, Ana C. também opera formulações próximas a tais questionamentos a partir de um método crítico que busca refletir sobre a natureza da prática tradutória empenhada por Manuel Bandeira em seus Poemas traduzidos e por Augusto de Campos em Verso reverso controverso. As indagações feitas se dividem em dois segmentos e guiam toda a exegese: de um lado pergunta-se “o que as duas práticas revelam a respeito de uma atitude relacionada com os problemas da tradução de poesia” e, de outro, o que pensam os dois poetas sobre o ato de traduzir e “sobre a tradução de determinados textos em contexto social definido?” (CESAR: 1999, p. 399). Bandeira, em sua recolha, não apresenta nem unidade interna nem paratextos que possam explicar suas escolhas. O que confere unidade à coletânea é a sua própria assinatura ou voz autoral, uma vez que os temas evidenciados nas traduções atravessam a obra do próprio Bandeira, conduzindo a um desaparecimento das diferenças entre os autores. A prática de tradução e escolha realizadas pelo poetaabsorvem o texto original e reconfiguram um tema que revela o que há de próprio no outro, isto é, uma dicção pessoal que se consubstancia na própria subjetividade autoral de Bandeira. Vejo aí semelhanças com a prática poética e tradutória de Ana C., onde o que importa é a interlocução que permite o intertexto enquanto citação livre. Augusto de Campos, por sua vez, busca guiar o leitor, assumindo uma atitude política no gesto de escolha dos textos traduzidos, marcado por uma luta ideológica de oposição ao establishment por traduzir o que chama de “poesia revolucionária” voltada para um trabalho de revolução da linguagem que cause impacto na cultura brasileira. Projeto de tradução característico do concretismo: traduzir autores e textos pela irreverência temática, pelo que apresentam de tecnologia poética ou artesanato formal rigoroso, pela manipulação de um significado obscuro ou difícil que conduziria a uma poesia de cunho mais crítico e intelectual (CESAR: 1999, p.404-405).


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Ana C., nesse ensaio, apresenta-se como uma leitora atenta ao programa concretista de crítica, tradução e produção poética, corroborando a importância do papel da tradução no construto cultural e crítico do país. Afirma a poeta: “creio que a teoria concretista é mais interessante do que a sua prática. (...) Penso que as traduções feitas pelos poetas concretistas representam o ponto alto de todo o programa concretista. Aqui a relação se inverte: ao falarmos sobre suas traduções, torna-se impossível ignirar que a prática é muito mais vital do que a teoria” (Idem, p. 410) Assim, o que me motiva no estudo da prática tradutória de Ana C. é a reflexão sobre a relação que esta poeta, em especial, possui com a prática da tradução, em que medida por trás da tradução de vozes estrangeiras está também a reflexão sobre uma tradição literária, sobre uma dicção poética própria, pensando a tradução enquanto experiência de reflexão, nem impressão, nem metodologia, para falar com Antoine Berman, na qual o ato de reflexão sobre si mesma é inseparável do próprio exercício tradutório. Ou, ainda, em que medida o gesto tradutório, para Ana C., é uma continuação, ou um ponto de partida, da escrita poética, isto é, como as vozes estrangeiras traduzidas por Ana C. repercutiram em sua própria produção poética enquanto intertexto. Na tradução do conto “Bliss”, de Katherine Mansfield, Ana C. confere valor de “substância do texto” às notas de pé de página, convertidas em ensaio escrito em diálogo com o conto, ocupando assim o mesmo lugar privilegiado que a tradução. As notas, oitenta, constituem um texto mais extenso que a tradução, absorvem as preocupações da tradutora, e atuam como se fossem a mente e a voz do tradutor ao longo do processo. Nesse sentido falo a partir de e com Antoine Berman, para quem tradução e crítica, na modernidade literária, tornaram-se consubstanciais ao ato de escrever, de natureza “intersticial” (BERMAN: 2013, p. 31), conferindo à tradução uma experiência plural. Ao reavaliar suas anotações, em texto introdutório à tradução, a tradutora busca classificar a natureza de cada


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uma, agrupando-as em quatro tipos. Aquelas relacionadas a questões de interpretação e estudo do texto, que formam um bloco mais teórico, junto às notas sinalizadoras das “idiossincrasias estilísticas” (CESAR: 1999, p. 288) próprias da tradutora, onde inclui citações de pesquisas já realizadas sobre o texto de Mansfield, entre elas o ensaio de Marvin Magalaner sobre as imagens de comida, vinculadas ao ato de comer/beber, ou, como prefere Ana C., metáforas de prazer oral, centrais ao conto. Nestas notas pode-se observar também a gênese e o desenvolvimento do interesse pessoal de Ana C. pela obra e personalidade de Mansfield, sobretudo no modo como a ficcionista promove a fusão entre ficção e autobiografia, fusão premente também na constituição poética da própria Ana C., quando acusa a leitura do diário, cartas e biografia da autora neozelandesa paralelamente ao processo tradutório. Nesse ponto, observa-se que o interesse de Ana C. não é mera curiosidade. Ao afirmar que o tradutor “absorve” e “reproduz” em outra língua a “presença literária de um autor” (CESAR: 1999, p. 287) está Ana C. sinalizando a participação de um gesto canibalístico e apropriador inscrito em sua própria poesia? Presença esta que opera em mão dupla, em uma dialogicidade, uma vez que, como declara em depoimento realizado durante o curso Literatura de mulheres no Brasil5, a intertextualidade é uma rede, um rizoma, um entrecruzamento do estrangeiro e do próprio, nao apenas no processo de tradução, mas sobretudo na criação literária. O pertencimento ou a “consanguinidade” com um outro, ou muitos outros, de que fala Marcos Siscar (SISCAR, 2011). No exercício da apropriação, firma-se terreno para a encenação do sujeito poético, pois na tradução o sujeito finge ser outro, assume temporariamente a máscara, sem no entanto deixar de ser ele mesmo. O exercício promovido pela tradução, mas também pela leitura, afeta o poeta, que passa a intercalar sua voz à do outro, e vice-versa. A referência a Mansfield, e a muitos outros eus da literatura em língua inglesa e portuguesa, fica patente nos poemas em prosa de Lucas de pelica, sobretudo na fusão entre narrativa biográfica e diário, carta e prosa poética.

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5 O curso, ministrado por Beatriz Rezende, na Faculdade da Cidade, realizou-se no dia 6 de abril de 1983 e foi gravado e transcrito posteriormente. A trasncrição em texto pode ser encontrada na obra Ana Cristina Cesar. Crítica e tradução


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Porque para Ana C. o "ato de mistura", que passa pela "filtragem ou apropriação poética" de materiais e práticas heterogêneas, entre eles a tradução, é entendido enquanto gesto transgressor, que descentraliza, desierarquiza e dessacraliza as forças de domesticação para ganhar força política. Mas a marca não é apenas sobre sua escrita poética, ela também aparece na tradução de “Bliss”, onde a fusão dos processos de intervenção da voz autoral e pessoal, promovendo a rasura do outro e a inscrição idiossincrática de seu próprio estilo, ao lado do distanciamento do próprio na captura do registro original, aponta para uma escolha tradutória que tende ao equilíbrio na correspondência entre o estilo do original e o seu significado transposto para o texto traduzido. Equilíbrio impossível e inatingível entre as forças de domesticação e estrangeirização apontadas por Schleiermacher, mas que Ana C. brilhantemente encontra, na tradução do conto. As forças assinaladas pelo filósofo alemão sinalizam, de um lado, a estratégia de domesticação do original em clara preocupação com o leitor, preocupação expressa por Ana C. por exemplo nas notas 50 e 52, no esforço de "conduzir o leitor ao imaginário de Bertha Young" (CESAR: 1999, p. 346). De outro lado, a estratégia de estrangeirização, que valoriza o “tom” estilístico da narrativa mansfieldiana, a peculiaridade de sua prosa e entonação, mantidas na tradução. Essa preocupação aparecerá nas notas onde trata das séries de iterações próprias do texto mansfieldiano quando, ignorando o senso comum, faz escolhas pautadas por uma ética poética provocando uma fissura entre original e tradução, ou naquelas em que aparecem as imagens de prazer oral. Exemplo disso é o deslocamento provocado pelo sintagma "as though you'd suddenly swallowed a bright piece of the late afternoon sun", que obriga a tradutora a receber o impacto da imagem e transportá-lo para o verbo, onde "o resultado é uma hipérbole espantosa": "como se você tivesse de repente engolido o sol de fim de tarde" (CESAR: 1999, p. 327). Mas talvez o maior estranhamento recaia sobre a expressão "pear tree", sobre a qual se ergue a imagem mais sintomática do texto e o parágrafo chave do conto.


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O nome “pereira” encontraria perfeita correspondência na língua-meta, no entanto, não podemos dizer o mesmo se levarmos em conta a experiência poética que a expressão "pear tree" carrega no conto. Ana C. deseja privilegiar essa experiência e a ética que reside sobre a linguagem, naquele ponto em que o estranhamento do parágrafo conecta-se com o estranhamento provocado na e pela linguagem. E conclui: "por fim, (novamente) decidi optar pela generalização e usei a palavra árvore (uma palavra proparoxítona, forte e bonita por natureza). (...) além disso também se destacaria na ultima frase - a fundamental. Não me seria possível terminar a história com uma pereira, mesmo que estivesse coberta de flores" (CESAR: 1999, p. 339). Nas notas, voltadas para questões de interpretação do conto, observa-se também uma tentativa de teorização sobre o processo tradutório que não aparece nas notas sobre os problemas sintáticos. Detendo-se nas especificidades de um texto em prosa, apoiada nas proposições de Amado Alonso, no livro Materia y forma en poesia, sobretudo em suas distinções em relação à tradução de poesia, Ana C. reflete sobre as alterações de ritmo e sintaxe da prosa mansfieldiana que exigem um esforço de tradução por parte do tradutor, paralelamente às notas que dizem respeito a problemas referentes ao comportamento e padrão linguístico específicos de ambas as línguas, como por exemplo no caso de pronomes e expressões idiomáticas. Paulo Henriques Britto, em A tradução literária, observa que o desafio do tradutor de prosa reside especificamente nas "ousadias sintáticas" representativas do estilo autoral (BRITTO: 2012, p. 71), naqueles componentes da linguagem representativos da marca estilística de cada autor, e, ainda, na arte de escrever diálogos, ancorada nas marcas de oralidade (idem, p. 84). Na tradução de poesia, segundo o autor, o desafio passaria pela discussão em torno da possibilidade ou não de se traduzir poesia, com ou sem recriação/transcriação, uma vez que "uma tradução de um poema que não leve em conta as opções de forma tomadas pelo poeta pode nem sequer ser um poema" (idem, p. 120). Se a tarefa do tradutor de poesia centraliza-se sobre a forma, uma vez que a poeticidade do texto depende na maioria das vezes dos aspectos formais empregados pelo poeta, no caso da prosa, o que predomina é o aspecto semântico: a tradução dos elementos formais pode até falhar,


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comprometendo a qualidade da tradução, mas não o enredo (ibidem). No ensaio de Ana C. sobre as traduções de Machado de Assis para o inglês, intitulado "O ritmo e a tradução da prosa", a autora também discutirá as questões envolvendo tradução de prosa e poesia, e observa que o ritmo, elemento de um texto literário vinculado à estrutura formal, e central para a poesia, e portanto para a tradução de poesia, é compartilhado também na prosa. Ainda que a ênfase de um texto em prosa recaia sobre aspectos semânticos, existe o que chama de ritmo poético da prosa, aspecto ligado ao movimento vindo da estrutura formal ou estilística da frase, intrinsecamente conectado ao conteúdo. Na visão de Ana C., o tradutor de prosa tem a tendência de se preocupar menos com a reprodução de efeitos rítmicos do que o tradutor de poesia (CESAR: 1999, p. 365). Ainda que o ritmo na prosa não seja mensurável e evidente como na poesia e esteja preso à sintaxe e ao significado, é nele que reside a força de fluência da prosa. É pela pontuação, pelo movimento, pelo compasso e pela estrutura formal da frase (idem, p. 366) que se tecem os efeitos rítmicos da prosa, ainda que ela não obedeça a uma unidade de medida como o verso (ALONSO, apud CESAR, p. 366). No entanto, se o verso, em poesia, contém um gesto de violência inerente à sua natureza disruptiva e irritada, para falar com Mallarmé, não condicionada pelos limites do sentido ou da unidade sintática, ancorando-se na sua estrutura formal, essa potência disruptiva está vinculada à modulação rítmica da estrutura na prosa. Quando a prosa possui força e movimento rítmicos variados, o trabalho sobre a forma – estilístico - se sobrepõe à função domesticadora do sentido, e exalta a importância da tarefa das palavras, gesto conferido ao trabalho do informe no pensamento bataillano que envolve a linguagem. Assim, parece-me que a função do tradutor de prosa, para falar junto de Ana C., é dar conta de, através do deslocamento e estranhamento característicos do ato tradutório, permitir que esse dado de violência e deformação se faça vigente. É portanto nas obsessões rítmicas do ficcionista, naquela espécie de "encanto repetitivo" (CESAR: 1999, p. 368), que reside a força descentralizadora da prosa e a tarefa mais desafiadora da tradução de um texto em prosa.


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Em suas notas, Ana C. também expressará o que entende por tarefa do tradutor, que já de início aparece como dependente das variações estruturais do texto. No conto de Katherine Mansfield as variações se pautam por um elemento que atua diretamente sobre a forma, regulando seu ritmo, extensão, expressão – o tom. Para Ana C. não se trata de uma orientação medida pelo que chama de “fatores externos” do texto específico, tais como trama e tempo, mundo subjetivo e mundo objetivo, ou ainda entre o mostrar e o narrar, mas de um princípio articulador encontrado no texto original (a ficção mansfieldiana), interno à obra, e que Ana C. chama de tom . Esse tom vincula-se diretamente ao comportamento dramático do narrador do conto. A técnica do narrador refletorizado, característico do multiperspectivismo narrativo, onde o narrador empresta sua voz aos personagens, permite que o foco narrativo varie de modo que o leitor vivencie a experiência narrativa junto à voz textual, e não apenas receba a mensagem do personagem, como sugere Henry James em A arte da ficção (1995). Ana C. explica a questão a partir da referência a um gesto de dramatização “das percepções mentais da personagem”, que não são narradas, mas vivenciadas. A voz da personagem se infiltra na voz do narrador, mantendo uma tensão sobre a qual as ambiguidades narrativas se erguem (CESAR, 1999, p. 293). Para Ana C. é no problema de dicção e tom (idem, p. 288) que a intervenção idiossincrática do tradutor atua. Na escrita ficcional de Katherine Mansfield, a oposição entre poético e prosaico reside no significado profundo, representado pela dicção e tom usados pelo narrador. A preocupação da tradutora, portanto, está em traduzir não a correspondência exata, mas o tom do original. E o tom em “Bliss” é ditado pelo êxtase de Bertha Young, a protagonista. A preocupação de Ana C. então se desdobra sobre aquele ritmo da prosa modulado pela fala e pensamento de um personagem, isto é, em um aspecto da forma dessa prosa, que Ana C. chama de “sintomas do êxtase” de Bertha. A cadência da sintaxe é modificada de acordo com a mudança emocional de Bertha, que altera seu olhar sobre o real e, consequentemente, a narração. A tarefa do tradutor, portanto, na visão de Ana C., reside no reconhecimento da existência de uma tensão inerente à arquitetura textual que articula as vozes do autor,


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narrador, personagens e leitor, e, a partir dessa consciência, permite a vigência das ambiguidades decorrentes da escrita literária. A ideia de que o desafio de uma tradução literária e a felicidade de sua realização consistem na aceitação da perda de uma correspondência absoluta, a que o tradutor literário se rende, permite-lhe assumir um regime de escrita/tradução do conto de Mansfield regido pela busca de uma equivalência sem adequação no processo de passagem do texto de partida para o texto de chegada. Nesse caso, o horizonte da tradução incluiria a manutenção de uma dialogicidade do ato de traduzir, onde a manutenção do que lhe é próprio exigiria também a manutenção do que lhe é estrangeiro. Referências BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tubarão: Copiart; Florianópolis: PGET/UFSC, 2013. BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. CAMPOS, Haroldo de. “Da tradução como criação e como crítica”. In: ______ Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2010. _______ Transcriação. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2013. CESAR, Ana Cristina. (1999) Crítica e tradução. São Paulo: Ed. Ática/IMS. _______ Poética / Ana Cristina Cesar. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. GOMES, André Luís. Clarice em cena. As relações entre Clarice Lispector e o teatro. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. GOMES, João Carlos Teixeira. Gregório de Matos, o Boca de Brasa. Um estudo de plágio e criação intertextual. Petrópolis: Vozes, 1985 HELENA, Lucia. Uma literatura antropofágica. Rio de Janeiro: Cátedra, Brasília: INL, 1981. JAMES, Henry. A arte da ficção. (1995). São Paulo: Ed. Imaginário. LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.


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_______ Outros escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. MANSFIELD, Katherine. (1962) “Bliss”. In: The garden party. Penguin Books Ltd., Harmondsworth, Middlesex RIAUDEL, Michel. “O autor invisível. Tradução e criação na obra de Ana Cristina Cesar”. In: Estudios Portugueses y Brasileños. n° 11, Salamanca: Luso-Española Ediciones, 2012, pp. 105-120 _______ “Complicado como um Tintoretto: Ana Cristina Cesar, o corpo e suas traduções”. In: Silène Revue- http:// www.revue-silene.com/f/index.php? sp=colloque&colloque_id=8 SISCAR, Marcos. (2011) Ana Cristina César / Por Marcos Siscar. Rio de Janeiro: EDUERJ.


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A História da Literatura pede passagem Regina Zilberman RESUMO: Desde a emergência dos estudos estruturalistas e pósestruturalistas, nos anos 1960-1970, a História da Literatura perdeu espaço no campo literário. Hans Robert Jauss buscou, com a Estética da Recepção, resgatar a História da Literatura, considerando-a base da ciência da literatura. Examinando a contribuição de Ferdinand Denis, autor do Résumé de l'histoire

littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l'histoire littéraire du Brésil , verifica-se em que medida a História da Literatura constitui uma disciplina possível, sinalizando sua resiliência no campo literário. PALAVRAS-CHAVE: História da Literatura; Hans Robert Jauss; Ferdinand Denis ABSTRACT: Since the rise of structuralist and post-structuralist studies in the 1960/1970th, the History of Literature has lost ground in the literary field. Hans Robert Jauss sought, with the Aesthetics of Reception, to rescue the History of Literature, considering it the ground for a new and challenging Science of Literature. Examining the contribution of Ferdinand Denis, author of Résumé de l'histoire littéraire du Portugal, suivi de l'histoire du Résumé littéraire du Brésil , it is verifiable in what extent the History of Literature is a possible discipline, sinalisando its resilience in the literary field. KEYWORDS: History of Literature; Hans Robert Jauss; Ferdinand Denis.

História da Literatura como problema

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul ( UFRGS)

Em 1967, Hans Robert Jauss (1921-1997) abriu ano escolar da Universidade de Constança, com a conferência cujo título, emulado da questão “O que significa e com que propósito estuda-se a história universal?”, proposta em situação similar por Friedrich Schiller (1759-1805) na aula inaugural da Universidade de Jena em 1789, indagava: “O que é e com que se fim se estuda história da literatura?” (JAUSS, 1994, p. 9). Sua resposta visava resgatar a História da Literatura da situação de desprestígio a que fora relegada, abandonada pelas tendências teóricas e críticas então em voga nos Estudos Literários, dados o anacronismo e a estagnação identificadas no âmbito das pesquisas universitárias de seus pares.


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A conferência veio a constituir o marco inicial do que, na sequência, ficou conhecido como Estética da Recepção, vertente teórica e metodológica que estimulou o debate intelectual na Alemanha, politicamente ainda dividida entre a facção ocidental e a oriental, e em parte da Europa. Talvez o intuito original do projeto de Jauss não tenha sido alcançado, pois a História da Literatura não retomou a posição hegemônica que deteve por todo o século XIX. Porém, é inegável que foi acatada a reivindicação de que se entendesse o papel social da literatura desde o prisma do leitor1, ainda que esse conceito e os modos como se pesquisam as práticas de leitura na tradição ocidental e contemporânea nem sempre coincidam com as propostas sugeridas pelo professor da Universidade de Constança. A circunstância de a História da Literatura não mais deter a primazia dos Estudos Literários não significa, de outra parte, que ela tenha desaparecido. Além disso, experimenta, no Brasil, situação contraditória: predomina em boa parte dos currículos de graduação2, definindo-se pela nacionalidade do corpus literário que aborda. Mas perde espaço nos programas de pós-graduação, que privilegiam correntes associadas aos estudos comparados, culturais, pós-coloniais, de gênero ou de etnias, quando não são marcados por questionamentos vinculados à filosofia, à sociologia ou à psicanálise. A História da Literatura a que se refere Jauss corresponde, enquanto gênero, ao das grandes narrativas (LYOTARD, 1986), elegendo um início mítico – o da fundação – a que se segue um percurso cronológico necessariamente ascendente, desembocando em um momento culminante, o apogeu, que poderá ou não coincidir com a atualidade do historiador que a redige e do público visado, mas que, de todo modo, é um ponto de chegada elevado desde o qual, tal como a ilha de Tétis, em Os Lusíadas, o passado e o futuro são contemplados. Constituindo uma das expressões das grandes narrativas, a História da Literatura não tem lugar no âmbito da condição pós-moderna, postulada Jean-François Lyotard (1924-1998). Por sua vez, não mais vigora, nas ciências humanas, o paradigma historicista que a funda, sendo esse mais um motivo para sua exclusão das pesquisas de ponta.

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Cf. JAUSS, 1975.

Cf. as provas do Enade, aplicadas em 2014 e nos triênios anteriores em http://portal.inep.gov.br/enad e/provas-e-gabaritos-2014. Acesso em 29 de novembro de 2014


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__________ 3 Em 1997, foi publicada no país a História da literatura brasileira, de Luciana Stegagno Picchio (1920-2008),traduzida da primeira edição, de 1972 (PICCHIO, 1997, p. 13).

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Cabe arguir se é o caso de se desistir definitivamente da História da Literatura, área de conhecimento e de pesquisa que desempenhou papel formador na conformação de uma ciência brasileira da literatura, já que agregou considerável grupo de professores e intelectuais desde o século XIX [Silvio Romero (1851-1914), Araripe Junior (1848-1911)] até boa parte do século XX [José Verissimo (1857-1916), Afranio Coutinho (1911-2000), Antonio Candido (1918), Alfredo Bosi (1936)], entre outros, mas que, desde 1980, não apresenta formulação inovadora digna de nota.3 Também decisivo foi um segundo papel formador exercido pela História da Literatura: colaborou para a delimitação e definição da literatura brasileira, sobretudo naquilo que ela tem de expressão da identidade nacional, questão que atravessa sua trajetória, desde os fundadores [Gonçalves de Magalhães (1811-1882), Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820-1892), Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878)] até pesquisadores atuantes na universidade e na crítica brasileira na segunda metade do século XX. Poder-se-ia concluir que já não se fazem histórias da literatura como antigamente, e talvez nem seja mais o caso de fazê-las. Questões identitárias, literárias ou nacionais, tiveram razão de ser quando se tratava de construir o Estado nacional em distintos períodos do passado – por ocasião da separação de Portugal, da afirmação da monarquia centralizadora de Pedro II (1825-1891), da renovação política traduzida pela República, da modernização reflexa nos anos 1950 (RIBEIRO, 1970, p. 370) –, ocasiões em que emergiram as principais histórias brasileiras da literatura. Ainda que, políticamente, persista a concepção de uma nação brasileira, esse conceito, em nossos dias, não encontra idêntico respaldo entre intelectuais e pesquisadores que reconhecem o multiculturalismo e a inserção, ainda que dependente, do país no mundo globalizado. A história da literatura, por ocasião de sua emergência e expansão, correspondeu a um projeto político com o qual se solidarizavam os letrados, ao menos no Brasil. Os projetos que esses hoje eventualmente compartilham não mais se materializam na escrita de uma história da literatura.


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Além disso, não se sustentaria um projeto de elaborar uma história da literatura, mesmo que assumisse o multiculturalismo, a globalização, a contracultura, as diferentes linguagens que expressam o fazer literário, porque corresponderia a aceitar um conceito centralizador de literatura. Se essa não é homogêna, e os materiais com os quais contariam o(s) historiador(es) sugerem a pluralidade de manifestações, não há condições de unificála sob o teto de uma história niveladora. Por isso, a reação tem sido na direção contrária: as investigações com fontes primárias e arquivos, que hoje mobilizam grande parte dos pesquisadores, evidenciam que se trata de ampliar o escopo do que formaria o objeto de uma história, não mais de uma literatura, mas daquilo que pode responder por ela em épocas distintas, com ênfase nos sujeitos que a produziram, nos distintos produ-tos que resultaram dessa intenção, e nos consumidores com os quais ela se relacionou. Por sua vez, as histórias da literatura, modeladas segundo o princípio das grandes narrativas, acumularam-se no tempo, projetando sua sombra sobre os Estudos Literários. De sujeito, enquanto impulsionadoras de uma metodologia de conhecimento das obras do passado e do presente, converteram-se em objeto de uma reflexão metahistórica, no sentido que lhe confere Hayden White, quando propõe uma ciência habilitada a pensar a História não mais enquanto fato, e sim enquanto texto. (WHITE, 1986; 1992) Talvez sob esse ângulo a História da Literatura constitua uma disciplina possível, sinalisando sua resiliência no campo literário. A hipótese pode ser averiguada desde o exame do Resumo de história literária de Portugal, seguido da história literária do Brasil, de Ferdinand Denis (1798-1890), uma das obras fundadoras da tradição historiográfica focada nas literaturas de língua portuguesa. História da Literatura gênero literário Obras dedicadas a narrar a história de uma literatura nacional começaram a aparecer nas primeiras décadas do século XVIII. A Histoire littéraire de la France, iniciada em 1733 pelos beneditinos da Congrégation de Saint Maur, parece ter inaugurado o gênero, a que pertencem a Historia literaria de España, elaborada a partir de 1766 pelos frades


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Rafael (1725-1787) e Pedro Rodriguez Mohedano (1772-1773), a Storia della letteratura italiana, que Girolamo Tiraboschi (1731-1794) redigiu entre 1772 e 1782, a History of english poetry from the close of the eleventh to the commencement of the eighteenth century, de Thomas Warton (1728-1790), lançada entre 1774 e 1781, e o Compendium der Deutschen Literaturgeschichte von den Ältesten Zeiten bis auf das Jahr 1781, de Erduin Julius Koch (1764-1834), de 1790, o único exemplo até então de uma história literária contida em um único volume. Essas obras apresentam algumas características importantes para a fixação do gênero, que, antes do século XVIII, era praticamente desconhecido enquanto campo autônomo: — definem-se pela nacionalidade das literaturas com que lidam; — essas nacionalidades resultam do emprego de uma língua em comum, prescindindo, em alguns casos, do Estado-nação a que se associariam, como ocorre às histórias consagradas respectivamente às literaturas alemã e italiana; — organizam a matéria em termos cronológicos, escolhendo datas significativas da história local para identificar os períodos literários. Essas datas relacionamse à política, quando se tratar da gestão de reis e imperadores, ou aos séculos enquanto um recorte facilmente reconhecível; — procuram acompanhar a trajetória literária desde as origens – desde “den Ältesten Zeiten”, como indica o título da obra de Koch – até a atualidade, consoante um avanço ininterrupto. À época do aparecimento das primeiras histórias da literatura, dominavam os estudos literários a Gramática e a Retórica, hegemônicas desde a Antiguidade, que, na Idade Média, compuseram o trivium e contavam com a escola enquanto seu principal espaço de difusão. A Poética ressurgiu com as traduções de Aristóteles (384-322 a. C.) para as línguas vernáculas europeias, e alcançou o auge no século XVII graças ao impacto de L’Art Poétique, de Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711). Compêndios de gramática, retórica e poética incluíam textos literários na qualidade de exemplos a acatar, descartando o foco relativo a seu passado e transformações. Assim, as histórias da literatura começam a ser elaboradas sem ter atrás de si precedentes ou modelos, o que as


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configura como gênero original e independente. Seu aparecimento, por outro lado, não é espontâneo ou casual; pelo contrário, integra-se à chamada “long revolution ” (WILLIAMS, 1980), caracterizada pelas consolidação da economia capitalista, aumento das camadas urbanas e difusão do letramento, provocando ampliação do público leitor. Jürgen Habermas (HABERMAS, 1984) destaca a mudança estrutural da esfera pública, decorrente da maior participação das pessoas na vida política, ponto de partida dos movimentos emancipatórios de que advém a formulação de um projeto coletivo de partilha do poder do Estado. No campo do saber, reaparece o interesse pela História. Praticada desde a Antiguidade e reanimada, nos séculos XIV e XV da era cristã, por cronistas como Jean Froissart (c. 1337-c.1405) e Fernão Lopes (138?-146?), a História não era então considerada uma ciência. É o que Giambattista Vico (1668-1744) propõe na Ciência Nova, publicado originalmente em 1725 e, em edição revisada, em 1744. A ela, competia "o estudo da história, tendo como objeto o curso das modificações ocorridas nas mentes dos homens e como método a compreensão imaginativa.” (FIKER, 1994, p. 10. Grifo do A.) Vico adota igualmente uma teoria para o desenrolar da história da humanidade, de acordo com etapas ou fases, conforme resume Hayden White: “Vico caracteriza os estágios pelos quais todas as culturas devem passar como a idade dos deuses, a dos he-róis e a dos homens.” (WHITE, 1986, p. 200). As idades, por sua vez, associam-se ao desenvolvimento físico e intelectual do ser humano, sendo que a primeira “se caracteriza pelos tipos de relação que as crianças mantêm com os seus mundos”. (WHITE, 1986, p. 200) A segunda idade é a “dos heróis”, “porque nela os homens começaram a se identificar com as forças espirituais de que dotaram a natureza” (WHITE, 1986, p. 200) Por último, a terceira idade, a “dos homens”, “a idade da razão na história de uma cultura ou sociedade, uma idade muito mais de reflexão e conciliação que de poder e luta”, que, porém, “traz consigo as sementes de sua própria destruição"; por consequência, “a cultura mergulha espontaneamente na decadência (...) ou se torna presa de inimigos externos, (...) fornecendo assim as condições


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para o começo de um novo ciclo e um novo reciclo, um mundo sem fim.” (WHITE, 1986, p. 200-201) Na concepção emergente de história, reconhece-se a dívida para com a Querela dos Antigos e dos Modernos, desencadeada ao final do século XVII, que opôs, entre os membros da Academia Francesa, os admiradores da arte greco-romana, a ser perenemente imitada, como queria Boileau, e os favoráveis à inovação e à valorização do presente, conforme proclamava Charles Perrault (1628-1703), na esteira das ideias de Pierre Bayle (1647-1706). Jauss observa que os modernos, para justificar suas teses, fundamentam-se na “metáfora do crescimento e das idades da vida”, bem como no “caráter de ciclo completo apresentado pelo desenvolvimento de cada civilização” (JAUSS, 1973, p. 180). Jauss chama a atenção para a circunstância de a Querela promover um novo significado para a modernidade, com consequências no pensamento ilustrado, ao final do século XVIII: conforme o Iluminismo, “no horizonte aberto de uma crescente perfeição do futuro, e não na imagem ideal de um passado perfeito, reside doravante a norma segundo a qual há que julgar a história do presente e há que medir sua pretensão de modernidade” (JAUSS, 1965, p. 168). Jürgen Habermas, de certo modo, complementa a observação, ao afirmar que a noção de modernidade toma configuração particular, quando recusa modelos do passado e valoriza a si mesma enquanto critério de orientação: “A modernidade vê-se remetida para si própria sem que a isso possa fugir”; vale dizer, a modernidade “tem de criar em si própria as normas por que se rege.” (HABERMAS, 1998, p. 17. Grifos do A.) A emergência do conceito renovado de História e a ênfase na distinção entre antigos e modernos, com particular valorização conferida aos últimos, justificam a ascensão do segmento historiográfico dedicado à literatura. Estas dispunham, desde o início, de uma metodologia que auxiliava a organizar os fatos – a ordenação cronológica conforme a noção de ascensão e queda – e de um critério de valor, que privilegiava o moderno em detrimento do antigo. Esse havia sido o preferido dos retóricos, de modo que abandoná-lo colaborava para rejeitar a ciência tida por superada; além disso, facultava a aproximação entre o tempo do apogeu – ou um dos tempos de apogeu – com a época do historiador, justificando sua ação investigativa.


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Ser moderno significa, pois, não apenas criar uma arte desprovida dos valores e temas próprios aos antigos. É também produzir histórias da literatura, que tanto mais modernas se mostram, quanto mais se identificam às nacionalidades da matéria artística com que lidam. Não por acaso podem até se converter em projeto de governo, à época em que se consolidam os Estados nacionais. Da confluência entre vanguarda do pensamento filosófico, graças à adesão aos princípios da modernidade, e interesses políticos é sintomática a encomenda de Napoleão Bonaparte (1769-1821) a Pierre-Louis Ginguené (1748-1816) de que completasse a história literária da França, contribuindo com os volumes que apareceram em 1814, 1817 e 1820. Ao período, que se estende do final do setecentos ao princípio do oitocentos, pertencem ainda Dell'origine del progressi e dello stato attuale d'ogni letteratura (1782-1799), de Juan Andrés (1740-1817), em sete volumes, Geschichte der Neueren Poesie und Beredsamkeit (1801-1819), de Friedrich Bouterwek (1765-1828), e De la littérature du Midi de l’Europe (1813), de Simonde de Sismondi (1773-1842). Seus respectivos títulos sugerem histórias em princípios gerais ou universais (ainda que efetivamente europeias), mas que não contradizem o que então se fazia: no interior daquelas obras: as literaturas são divididas conforme suas respectivas nacionalidades linguísticas, alinham-se cronológica e continuamente ao longo dos séculos, e sua trajetória desdobra-se dos começos à atualidade. O Resumo de Ferdinand Denis As obras mencionadas ofereceram a Ferdinand Denis o padrão narrativo a que ele obedeceu, quando redigiu o Resumo de história literária de Portugal, seguido do Resumo de história literária do Brasil (doravante Resumo), publicado em Paris em 1826. Suas 625 páginas parecem contradizer a ideia de resumo, mas precederam-nas histórias literárias que somavam volumes. O título indica também que procura identificar seu objeto a partir de sua nacionalidade; e até vai mais longe, pois, ciente de que o português era a língua oficial de dois países independentes – Portugal e Brasil, este recentemente emancipado –, procura distinguir a matéria em dois resumos distintos.


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Até então, nenhum estudo historiográfico em forma de livro independente fora inteiramente dedicado às literaturas em língua portuguesa. Diogo Barbosa Machado (1682-1772) elaborara um dicionário bibliográfico, a Biblioteca Lusitana (1741-1759); Bouterwek e de Sismondi, em suas respectivas obras, reservaram alguns capítulos a Portugal; e registraramse, desde o começo do século XIX, estudos esparsos, como os de Alexandre-Marie Sané (c. 1773-1818) – “Introduction sur la littérature portugaise”, que precede o livro Poésie lyrique portugaise ou Choix des Odes de Francisco Manuel, de 1808, e “Coup d’oeil sur la littérature portugaise”, em duas partes, divulgado no Mercure Étranger, em 1813 – e de José Correia da Serra (1750-1823) – “De l’état des sciences et des lettres en Portugal, à la fin du dix-huitième siècle”, editado nos Archives Littéraires de l’Europe, em 1804. Almeida Garret (1799-1854), também em 1826 e também em Paris, redigira o “Bosquejo da história da poesia e língua portuguesa”, publicado como prólogo do Parnaso Lusitano, coletânea em seis volumes consagrada à poesia de sua terra natal. Exceto provavelmente o “Bosquejo” de Almeida Garrett, Ferdinand Denis conhecia esse material e cita-o com frequência, ao lado das menções às distintas Memórias produzidas pela Academia Real das Ciências de Lisboa, e a artigos provenientes de periódicos como Anais das Ciências, das Artes e das Letras, o Journal Étranger ou Les Soirées Littéraires, entre tantos outros (ZILBERMAN, 2013). Porém, a organização que confere ao material pesquisado não perde de vista as obras que estruturavam o campo intelectual da História da Literatura, sobretudo a a Histoire littéraire d'Italie, de Pierre-Louis Ginguené, cuja publicação, iniciada em 1811, chegou a catorze volumes, tendo sido os últimos volumes elaborados por Francesco Salfi (1759-1832) e revisados por Pierre Danou (1761-1840). Coerente com os balizamentos empregados por esses estudiosos, em suas historiografias, Ferdinand Denis adota seus principais critérios. De Pierre-Louis Ginguené, importa a noção de que a literatura acompanha os movimentos políticos (DENIS, 1826, p. VII). Importa dele também uma perspectiva recepcional, quando destaca a circunstância de a ação dos autores se expandir para além de seu tempo, processo que Jauss denominará efeito diacrônico (JAUSS, 1994): “[Ginguené] deu a entender como a influência dos


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grandes poetas se expande sobre seus séculos: seu admirável talento, seu espírito reto, sua perseverança fizeram com que se conhecesse a extensão destes gênios”. (DENIS, 1826, p. VII-VIII) Outros critérios, usuais no período e depois, são a divisão por nacionalidades e a opção pela ordenação do material conforme as datas de sua produção, de que decorre a distinção entre os conjuntos lusitano e brasileiro, organizados segundo cronologias que lhes seriam próprias (sem que as entrecruze ou compare), apresentadas em perspectiva crescente em consonância com o princípio historiográfica da ascensão, apogeu e decadência. O critério evolutivo é, pois, fundamental, pois a a literatura pode avançar – por exemplo, da “barbárie” dos séculos anteriores ao XVI, o “grande século”, classificação adotada pela literatura francesa, que confere esse atributo ao período de Luís XIV (1638–1715), e copiada por Denis – ou então decair, estando o declínio assinalado pela imitação dos vultos do passado, pela perda da autenticidade ou pela rejeição da língua materna. Sob esse aspecto, a produção do século XVII lusitano é modelar, pois proliferam os emuladores de Camões, bem como os escritores que redigem em castelhano. A perspectiva metodológica extraída de Ginguené permite ao autor relacionar produção literária e eventos políticos. Assim, o período de formação do Estado português, entre os séculos XIV e XV, será traduzido por uma literatura ainda primitiva, não plenamente realizada, mesmo porque não encontrou a língua em que se expressar, sendo o emprego do galego considerado sintoma da rudeza primeva. Quando Portugal torna-se uma das principais potências da Europa e ocupa posição de liderança no que diz respeito às conquistas ultramarinas, a literatura mostra-se pujante e original, servindo de inspiração para seus vizinhos geográficos, como Espanha e Itália. Quando Portugal perde a autonomia, passando a fazer parte do império filipino, a literatura decai, a língua portuguesa ocupa um segundo plano, prevalece a imitação.


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Ao lado dos critérios que facultaram a ordenação do material, Denis evidencia os preceitos que pautam suas avaliações, que decorrem da identificação do caráter nacional, da presença da cor local e da manifestação da emoção. A divisão das literaturas por recortes geográficos não constitui apenas um critério de arranjo do material; esse precisa expressar a nacionalidade. Assim, se produzidas no espaço português, a poesia, a prosa e a dramaturgia lusitanas devem corporificar o universo de onde provêm, traduzido especialmente pelo ambiente físico. Daqui emerge a cor local, exigência que atravessa o Resumo e que pode servir para valorizar positiva ou negativamente uma obra. A cor local atesta o caráter nacional, e a manifestação desse afiança a qualidade, mesmo quando falham os elementos composicionais. Assim, não apenas significa possibilidade de ajuizar, mas também de resgatar obras, incorporando-as às história da literatura, vale dizer, ao cânone, na terminologia contemporânea. Quando a cor local não pode ser identificada, resta uma última opção – a manifestação de autêntica emoção por parte de um criador. A comunicação de sentimentos espontâneos por parte dos escritores pode redimi-los de outros erros, e não são poucos os casos em que Denis recorre a essa alternativa. Sentimentos legítimos, por sua vez, são os de índole amorosa; como, segundo o historiador, os poetas são as pessoas mais propensas à paixão, nada melhor que uma literatura plena de experiências afetivas para se mostrar verdadeira, digna de crédito e elogiável. Por causa disso, a poesia assume perfil autobiográfico, e essa associação entre vida e criação literária é constante no Resumo, sendo a lírica de Luís de Camões a demonstração mais cabal das concepções de Ferdinand Denis. O legado Pode ser indicativa da falta de impacto do Resumo a circunstância de ele não ter passado da primeira edição. Também não foi traduzido para a língua portuguesa, exceção feita ao segmento dedicado à literatura brasileira, vertido por Guilhermino Cesar (1908-1993) em 1968, vale dizer, quase 150 anos depois de publicado o livro original (DENIS, 1968). Contudo, a


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falta de tradução não impediu sua leitura por parte da primeira geração dos românticos brasileiros, que se apropriaram de seus juízos, para afirmar a identidade da nascente literatura nacional. Joaquim Norberto, em “Modulações poéticas”, repete-o quase literalmente, citando não apenas suas palavras, mas, em rodapé, a edição consultada: Sim, M. Ferdinand Denis tinha predito - que o Brasil, que sentira a necessidade de adotar instituições diferentes das que lhe impusera a Europa, que o Brasil conhecia também a necessidade de ir beber suas inspirações poéticas à fonte que lhe verdadeiramente pertence; - que o Brasil coroado com o esplendor de sua nascente glória publicaria dentro em pouco tempo as primorosas obras desse primeiro entusiasmo que atesta a galhardia e mocidade de qualquer povo;4 sim, a profecia cumpria-se e essa época de glória literária vem raiando! (ZILBERMAN; MOREIRA, 1998, p. 135)

Silvio Romero, no capítulo de abertura de sua

História da literatura brasileira , nomeia os estrangeiros – Bouterwek, Sismondi e Denis – a quem “coube a tarefa de traçar as primeiras notícias de nossas letras”, consideradas “um apêndice” da literatura portuguesa. (ROMER0, 1902, p. 2) José Verissimo igualmente cita-o de modo breve, selando o doravante paulatino desaparecimento das menções a Ferdinand Denis nas histórias nacionais da literatura. É no segundo volume da Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, que Denis é objeto de consideração atenta enquanto um dos “alicerces” da crítica romântica (CANDIDO, 1964, p. 313). Tal esquecimento não significa, porém, que o principal procedimento adotado pelo pesquisador francês não migre para as subsequentes histórias da literatura, a saber, a separação entre as histórias da literaturas portuguesa e brasileira, iniciativa que tem sua assinatura, admitida mesmo quando seja para negar sua importância, como faz Gonçal-ves de Magalhães, no Discurso sobre a história da literatura do Brasil:

____________________ 4Indicado em

rodapé: Resumé de l'hist. litt. du Brésil, chap. I. p. 515.


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No Resumo da história literária de Portugal e do Brasil, por Ferdinand Denis, posto que separadas estejam elas, e porventura mais extenso desenvolvimento ofereça a a segunda, contudo basta um lance de olhos para ver-se que ainda está longe de ser completa, servindo apenas para dar uma ideia a estrangeiros. (MAGALHÃES, 1994, p. 25)

___________________ 5

No “Tableau historique, chronologique de la littérature portugaise e brésilienne depuis son origine jusqu'à nos jours”, publicado em 1831, como parte do Atlas historique des

littératures, des sciences et des beaux-arts, elaborado em parceria com Adrien Jarry de Mancy (1796-1862), Denis reconhece a presença árabe na literatura portuguesa, de modo que o período inicial de que fala aqui amplia-se “da invasão árabe até a morte de Vasco da Gama, 7111524”. (DENIS; MANCY, 1835, p. 5).

As diferenças entre os dois corpus literários, se se devem a razões políticas, não se limitam a isso. Importante é também uma conquista da literatura portuguesa do passado – a afirmação de sua nacionalidade, cujo ponto alto localiza-se no “grande século” –, que se apresenta, para os brasileiros enquanto meta a alcançar, conforme Denis proclama no capítulo de abertura do Resumo dedicado a nosso país e Norberto reconhece no trecho citado antes. Outros dois procedimentos metodológicos adotados por Denis permanecem nas histórias literárias subsequentes, ainda que não tenham sido exclusividade sua, pois vinham constituindo a marca do gênero nascente, tendo sido reproduzidas nas investigações dirigidas à literatura portuguesa pelos precursores Bouterwek e Sismondi: a) a identificação da origem da literatura portuguesa, situada por volta do século XV e representada por autores como Santiago Macias (?-1467/1484), Fernão Lopes (138?-146?) e Vasco de Lobeira (?-1403). Denis, portanto, vincula o começo da literatura de Portugal ao da nação lusitana, rejeitando a produção anterior à ação unificadora de Afonso Henriques e seus descendentes5. Ferdinand Denis conta com mais autonomia, quando examina a literatura brasileira, cujo início situa no no século XVII, porque, antes disso, “não há poetas que mereçam ser citados.” (DENIS, 1826, p. 529). Também nesse caso o recorte vem acompanhado de uma exclusão, pois refere-se à produção impressa em língua portuguesa, cujo percurso acompanha ao longo do século seguinte, privilegiando autores antes ou simultaneamente estudados por Bouterwek, Sismondi e Garrett, a que acrescenta a até então mais minuciosa pesquisa de nomes brasileiros. b) a ordenação cronológica, repartida em séculos, como vinha ocorrendo nas historiografias precedentes (Bouterwek e Sismondi) ou simultâneas, como a de Almeida Garrett, no “Bosquejo da história da poesia e


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língua portuguesa” (GARRETT, 1826).. Essa ordenação não sofreu alterações notáveis nas historiografias literárias subsequentes, embora os séculos tenham sido rebatizados com o nome das escolas ou estilos que predominaram à sua época. O Barroco substituiu o século XVII, o Arcadismo e o Neoclassicismo, o século XVIII, e assim sucessivamente. A perspectiva evolucionista não desapareceu, e, no que diz respeito, à literatura brasileira, recobriu-se com a busca, exitosa ou não, de expressão nacional, por intermédio de temas, recursos de linguagem ou poéticas próprias. Ferdinand Denis legou, pois, um padrão historiográfico, ainda que não seja seu único usuário. Ainda que não se mostre original, uma vez que acompanha o que parecia consensual a seu tempo, foi capaz de aplicá-lo às literaturas de língua portuguesa, confirmando as origens que eram atribuídas a elas, reproduzindo seu desenvolvimento e restringindo-se à produção impressa e letrada, considerada sinônimo da literatura. O fato de essa incluir, entre suas manifestações, expressões que transcendiam a poesia e a narrativa ficcional, aceitando a historiografia, os livros de viagem e mesmo a bibliografia científica, não significa que não fosse compreendida enquanto uma unidade, habilitada a se apresentar na qualidade de objeto detentor de uma trajetória nascida em tempos passados, a ser sistematizada pelo sujeito historiador. Situado entre os fundadores da aplicação desse padrão às literaturas de língua portuguesa, Denis projeta-se nos seus continuadores, que absorvem seu legado. Se esse, na sequência, é esquecido ou minimizado, não quer dizer que não deva ser pesquisado. Esse exame, por sua vez, explicita a distância histórica (JAUSS, 1994) que o separa de seus sucessores, sejam herdeiros ou adversários, assim como o aparta da atualidade. A distância histórica permite também radicá-lo em seu tempo, buscando compreender o leitor que ele foi à época em que redigiu o Resumo. Faculta, pois, desenhar o horizonte de possibilidades de leitura das literaturas de língua portuguesa em um período em que Portugal, saído da revolução constitucionalista do Porto, em 1820, procurava integrar-se à Europa moderna, e o Brasil, cuja independência política, proclamada em 1822, consolidara-


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___________________ 5

No “Tableau historique, chronologique de la littérature portugaise e brésilienne depuis son origine jusqu'à nos jours”, publicado em 1831, como parte do Atlas historique des

littératures, des sciences et des beaux-arts, elaborado em parceria com Adrien Jarry de Mancy (1796-1862), Denis reconhece a presença árabe na literatura portuguesa, de modo que o período inicial de que fala aqui amplia-se “da invasão árabe até a morte de Vasco da Gama, 7111524”. (DENIS; MANCY, 1835, p. 5).

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se em 1825, almejava afirmar a autonomia duramente alcançada. Sob esse aspecto , Denis não se configura enquanto um leitor idiossincrático ou privilegiado, mas se evidencia como um expoente do que o(s) sistema(s) literário(s) português e brasileiro poderia(m) oferecer a um letrado no tempo em que se alicerçavam suas respectivas identidades e diferenças. Hans Robert Jauss, no ensaio em que diagnostica o declínio da História da Literatura, propondo, na sequência, alternativas de ação, chama a atenção para a necessidade de resgatar as obras – literárias, no seu caso – das condicionantes temporais que neutralizam sua historicidade, recuperando sua atualidade. Consequência da operação de resgate é não apenas a revitalização delas, mas a identificação do teor emancipatório que necessariamente contêm, se foram renovadoras e significativas. O professor da Universidade de Constança não atribui a qualidade da emancipação às obras de historiografia literária, porque, a seu ver, são elas responsáveis pelo enrigecimento das expressões artísticas com que lidam. Não seria, porém, contraditório submetê-las a semelhante terapia: estabelecida a distância histórica que diferencia produções do passado e a perspectiva contemporânea, reabilita-se o diálogo que aquelas propuseram a seu tempo e que continuaram ou não a propor. O historiador da literatura não se apresenta então unicamente na qualidade de objeto da investigação e retoma suas possibilidades de falar. Se seu texto não foi originalmente liberador ou catártico, como pensou Jauss a propósito da experiência estética (JAUSS, 1978), ele talvez permita uma exploração que, sem desvinculá-lo de seu tempo de produção, faculte algum tipo de compreensão do presente. Sob esse ângulo, as obras de História da Literatura habilitam-se a provarem do próprio veneno, pois também passam pelo crivo da historicidade. Desprovidas da pretensão de deter a última palavra sobre o lugar ocupado por escritores e artistas em épocas passadas e sobre o valor de suas criações, elas se democratizam, descem ao nível da avenida e pedem passagem no campo intectual contemporâneo.


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Escritas da vida: narrativas culturais Rosani Úrsula Ketzer Umbach

RESUMO: O presente artigo tece considerações em torno da escrita (auto) biográfica, baseando-se em reflexões teóricas como as de Peter Alheit (2011), Jerome Bruner (1997), Ansgar Nünning (2004) e James Olney (1998). Tendo em vista perspectivas antropológicas e sociológicas, de acordo com as quais as escritas da vida constituem “uma nova forma social do conhecimento” (ALHEIT2011, p. 34), nota-se em O Diário de Anne Frank uma tentativa de resistir ao totalitarismo nazista ao mesmo tempo em que se evidencia a percepção de uma jovem sobre a perseguição aos judeus, os horrores da guerra e a necessidade de transmitir a experiência vivenciada por meio de seu diário. PALAVRAS-CHAVE: Diário; Testemunho; Resistência; Nazismo. ABSTRACT: This articlepresents considerations about (auto) biographicalwriting, based on theoretical studies as of Peter Alheit (2011), Jerome Bruner (1997), AnsgarNünning (2004) and James Olney (1998). In view of anthropological and sociological perspectives, according to which the writings of life constitute "a new social form of knowledge" (Alheit 2011, p. 34), it is noted in The Diary of Anne Frank an attempt to resist the Nazi totalitarianism while it shows the perception of a young woman about the persecution of Jews, the horrors of war and the need to convey the lived experience through its dairy. KEYWORDS: Diary; Testimony; Resistance; Nazism.

____________________ Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) 

A modernidade costuma ser associada ao estabelecimento da autonomia da razão a partir de René Descartes (1596-1650), filósofo que rompeu com a tradição e o pensamento medieval; consolidou-se com a Revolução Industrial e o desenvolvimento do capitalismo, abrindo as portas para a individualização. “Com o surgimento das sociedades modernas, somos como que socialmente obrigados a ser individuais e únicos”, afirma Peter Alheit (2011, p. 31), que vê a “biografização” como uma competência-chave que nos é imposta pelo processo da modernidade. Para Alheit, a partir desse período histórico, tomamos consciência de que podemos ser construtores, autores de nossa biografia:


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Tudo o que vivenciamos e experienciamos deve “passar através de nós”. O mundo no qual vivemos e somos capazes de agir é o mundo que nós construímos. Isso certamente não significa que nossas construções sejam aleatórias. Elas obviamente dependem de impulsos que nos pressionam de fora. Mas elas são, definitivamente, o nosso processamento do social, que nos molda. Biografização é então a capacidade de combinar esses processamentos internos com as condições externas de sociabilidade. (ALHEIT 2011, p. 31)

Se Alheit situa a descoberta da biografia na modernidade europeia, isso não quer dizer que em épocas históricas anteriores essa modalidade de escrita da vida não existisse. Como o próprio ensaísta expõe, a noção de que as pessoas têm uma biografia é bem mais antiga, mas “nessas descrições biográficas pré-modernas não está em primeiro plano o desenvolvimento de indivíduos concretos, nem o desdobramento da individualidade subjetiva”, de acordo com Alheit (2011, p. 33), “mas sim a apresentação de tipos característicos o mais ideais possível”. Nesse contexto inserem-se autobiografias de cunho religioso, como as que narram uma “história de conversão”, título em tradução livre da“Bekehrungsgeschichte” de August H. Franke, dos anos 1690-91 (NIGGL 1998, p. 368), ou as “Confissões” de Santo Agostinho, escritas entre os anos 397-398 e consideradas o primeiro grande documento do gênero (MISCH 1998, p. 52). Dentro dessa tradição devocional, as escritas da vida, moldadas por uma intenção pedagógica, podem ser vistas como resultado de uma interioridade religiosa caracterizada pela prática cristã da introspecção. A secularização das autobiografias pietistas ocorreu no final do século XVIII, de acordo com Niggl (1998, p. 384), quando ao lado da representação de santos se começou a observar um aumento da autoconsciência individual, que aos poucos levou à substituição dos temas de instrução e edificação pelos da autoapresentação e autoafirmação nessas narrativas. Essa mudança de perspectiva da biografia teria se evidenciado claramente nos artistas da Renascença italiana: “o interesse vital no individual, no curioso, o desejo de representação e autorrepresentação, a encenação,


Escritas da vida: narrativas culturais

_____________ 1

Tradução livre de: „die sprachliche Darstellung eines Geschehens, also einer zeitlich organisierten Abfolge von Ereignissen“, (…) „auf reale Begebenheiten, auf Wirklichkeit“. Salvo indicação em contrário, as demais citações neste texto são igualmente traduções livres das obras indicadas.

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também do pessoal e privado [...], mostram o embrião de uma nova visão do mundo” (ALHEIT 2011, p. 33). Nesse sentido, a biografia não deveria mais ser entendida “apenas como modelo externo do desenrolar de uma existência moderna cronologizada”, segundo Alheit (2011, p. 34), mas sim como “uma nova forma social do conhecimento”. Embora nossas experiências sejam realizadas por nós, isso não significaria que nossa biografia seja algo exclusivamente privado, uma vez que, na visão de Alheit (2011, p. 35) somos “forçados socialmente a ser individuais e únicos”, sendo que “[a]s condições externas - históricas e sociais - nos obrigam à reflexividade biográfica”. As reflexões antropológicas e sociológicas de Alheit encontram respaldo nas modernas teorias acerca das assim denominadas “narrativas do real" ( Wirklichkeitserzählun), conceituação elaborada por Christian Klein e Matías Martínez (2009, .6) para definir "a representação linguistica de um evento, ou seja de uma sequencia de eventos organizados temporalmente", com a pretensão referencial de remeter " a acontecimentos reais, á realidade1. Críticos do "panficionalismo" (Panfiktionalismus), postulado de acordo com o qual uma narração sempre é ficional, Klein e Martinez 2009, p.1) argumentam que, da mesma forma como a ficção, as “narrativas do real” também seriam construções, porém sua especificidade seria a pretensão de validade para representar situações reais. Entre o pressuposto de que toda narração é uma ficção, seja a narração de memórias, da história ou de uma vida, e o entendimento de que existem as “narrativas do real”, os teóricos da literatura tendem a desconfiar tanto de leituras imanentistas, que encontram nos jogos linguísticos todas as justificativas para o que acontece e tem lugar no texto, como também de leituras (auto) biográficas e/ou sociológicas, que remetem os acontecimentos e situações do texto aos fatos da vida e julgam ser possível discernir os limites de cada uma das instâncias. Dito de outra forma, o que se questiona é: seriam os narradores “seres de papel e tinta, embasados por elementos da realidade, que vivem em um mundo ficcional por excelência”, conforme a bela descrição de personagem de romance feita por Adriana de Assis e Cláudio Souza (1995, p. 64)?


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Nesse caso, caberia a indagação epistemológica: de qual “realidade” se trata? Estudos do campo da filosofia são necessários para examinar essa questão, que diz respeito às escritas de si, às memórias, enfim a todo o gênero (auto) biográfico. Por ser uma questão tão antiga como a própria literatura e gerar controvérsias até hoje, reflexões acerca do assunto são necessários, quando o foco central diz respeito às escritas da vida2 e seus elementos intrínsecos: a subjetividade e a autoria. Ao se referir às escritas da vida, James Olney (1998, p. xiv-xv) observa o que considera um verdadeiro emblema do nosso tempo: “uma angustiada busca de si por meio dos atos mutuamente reflexivos de rememorar e narrar, acompanhados do medo assombroso de que é impossível desde o princípio, mas também de que é impossível desistir”.3 Segundo a perspectiva histórica de Olney sobreo tema (1998, p. xv), ao longo dos últimos dezesseis séculos houve um deslocamento gradual na natureza da escrita autobiográfica, “movendo-se de um foco em ‘bios’, ou no decurso de uma vida, para se concentrar em ‘autos’, no eu escrevendo e sendo escrito4”. O sujeito passa, então, a desempenhar um papel de maior destaque nas escritas de si, trazendo ao campo da narrativa vários dilemas relacionados à constituição da subjetividade. Nesse contexto, devem ser consideradas as modernas filosofias do sujeito e os conhecimentos psicológicos e sociológicos que oportunizaram uma nova concepção de si, do Selbst, reconhecido a partir de então como “uma forma especial de estruturação de percepção e sentido do ser humano”, segundo formulação de Fauser (2004, p. 87s)5. Revogada a tese da autonomia do sujeito, outras teorias se incorporaram às discussões em torno da subjetividade, notadamente da área da filosofia social e da sociologia do conhecimento. Os sociólogos Peter Berger e Thomas Luckmann (1969), por exemplo, examinaram os mecanismos sociais que caracterizam a percepção dos indivíduos. Também houve contribuições importantes da área da psicologia narrativa, segundo a qual a identidade do eu se desenvolve e se reproduz por meio de processos sociais e somente ao lidar com eles. De acordo com as novas teorias, o eu não se localiza mais na consciência particular do indivíduo e sim em sua situação cultural e histórica. Para o psicólogo Jerome Bruner

_______________________

2 Tomo como referência a expressão life-writing, utilizada por James Olney em seu livro “Memory & narrative: the weave of life-writing” (1998). 3 “an agonized search for self, through the mutually reflexive acts of memory and narrative, accompanied by the haunting fear that it is impossible from the beginning but also impossible to give over”. 4 moving from a focus on ‘bios’, or the course of a life-time, to focus on ‘autos’, the self writing and being written”. 5 “eine besondere Weise der Sinnund Bedeutungsstrukturierung des Menschen”


Escritas da vida: narrativas culturais

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6 “kann also das Ich als

ein Produkt der Situationen gesehen werden, in denen es operiert”

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(1997, p. 118), “o eu pode ser visto como um produto das situações nas quais opera 6”. A identidade, portanto, é negociada e configurada; sua coerência é construída por meio da narração. A narração é uma prática cultural geralmente considerada natural, que implicitamente pressupõe a organização de uma série de acontecimentos, possibilitando que aquilo que é narrado pareça convincente. Isso vale não só para a literatura, cuja teoria trata dos elementos da narrativa, recursos estilísticos, formas de representação e descrição, mas também para outras manifestações culturais, que igualmente têm suas formas de representar experiências. Para Fauser (2004, p. 87), as narrações exteriores à literatura seriam modelos de comunicação cultural que, por definição, ao contrário de conceitos como discurso ou texto, implicariam uma ordem temporal linear e uma execução de ações, o que por si só levantaria a questão da relação entre o literário e o extraliterário, já que esses modelos são anteriores à narrativa, constituindo ações simbólicas e rituais. Considerando-se as escritas da vida igualmente como ações / construções simbólicas, entra em foco a questão da autoria. Contudo, não se trata de uma visão ingênua segundo a qual vida e obra de um autor estariam em uma relação estritamente causal, o que seria considerado um biografismo há muito superado. Desde que Roland Barthes declarou a morte do autor em seu conhecido texto de 1967-68, muito se discutiu sobre o tema, que vem recrudescendo em tempos de escrita coletiva na internet. No âmbito dos estudos literários, havia se estabelecido a ideia de que certos mecanismos de literarização, como ficcionalização, modelos narrativos e tradição literária, desenvolvem uma dinâmica própria que impede a dedução simples do significado de um texto a partir de dados empíricos, conforme Jannidis, Lauer, Martinez e Winko (2000, p. 11). E como se deve considerar o autor empírico no contexto das escritas da vida, que se configuram como narrativas híbridas entre atos literários e documentos culturais? Aqui, seria necessário revisar as definições tradicionais de autoria, a fim de tornar mais preciso o conceito. Outra questão de interesse relacionada ao tópico diz respeito aos possíveis traços de autorrepresentação


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do autor nas narrativas do eu. São importantes, ainda, reflexões sobre a relação entre subjetividade e autoria nas escritas da vida que se reportam a circunstâncias históricas de repressão e violência políticas, pois em situações de rupturas sociais e crises históricas resultantes de regimes repressores, devem ser consideradas as limitações a que a subjetividade está exposta. Em seu trabalho intitulado “Impacto da violência e constituição do sujeito: um problema de teoria da autobiografia”, Jaime Ginzburg (2009, p. 131) afirma: “Dentro de um quadro de violência constante e desrespeito aos direitos humanos, as condições de conhecimento de si podem estar abaladas pelo componente traumático da história”. A narração de experiências com a repressão também é um tema abordado por Georges Didi-Huberman em seu livro Sobrevivência dos vaga-lumes. Analisando o trabalho de coleta de sonhos realizado por Charlotte Beradt entre 1933 e 1939, durante a ascensão do nazismo na Alemanha, Didi-Huberman (2011, p. 135) observa que “uma experiência interior, por mais ‘subjetiva’, por mais ‘obscura’ que seja, pode aparecer como um lampejo para o outro, a partir do momento em que encontra a forma justa de sua construção, de sua narração, de sua transmissão 7”. Transmitir experiências por meio da rememoração e da narração envolve o tempo passado. E o passado também é uma construção, como exemplifica Rubén Chababo em um pertinente ensaio acerca da mitificação da memória e da história. Para Chababo (2012, p. 152), o passado “é um palimpsesto, uma soma sucessiva de capas sobrepostas que, uma vez chegadas ao presente, conformam a espessura nem sempre real daquilo que chamamos História 8”. O passado a ser considerado neste trabalho refere-se ao período histórico do século XX, no qual regimes violentamente repressores se impuseram em diversas partes do mundo, gerando processos de narração de sobrevivências que, por sua vez, enfatizaram a importância das escritas da vida. Relacionadas e esses períodos históricos, surgiram narrativas autobiográficas, memórias e testemunhos, o que exige da crítica voltada ao tema um trabalho transdisciplinar que leve em conta os problemas epistemológicos da subjetividade, da memória, como também da autoria e da escrita. Questões centrais que se

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Grifos do autor.

“El ayer es un palimpsesto, una suma sucesiva de capas superpuestas que, una vez llegadas al presente, conforman el espesor no siempre real de aquello que llamamos Historia.”


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que se colocam aqui são: como se manifestam a subjetividade e a autoria em obras autobiográficas, memorialistas e testemunhais? Quais são as concepções de subjetividade implicadas nessas escritas da vida? Levando em conta as considerações teóricas mencionadas, uma das características observadas em narrativas autobiográficas contemporâneas é a autorreflexividade, isto é, a presença de um narrador, profissional da escrita (jornalista, escritor, dramaturgo), que reflete sobre suas crises e dificuldades ao escrever sobre suas memórias e suas “experiências”. Configurar a própria vida na literatura por meio da tematização do passado - essa parece ser uma tendência de narrativas pós-ditatoriais. A estreita relação entre literatura, história e memória é reconhecida há muito tempo e vem sendo evidenciada em diversos estudos que procuram verificar a impossibilidade de segmentação entre essas áreas do conhecimento. Este campo de estudo interdisciplinar passa a ganhar um local de destaque dentro das atuais pesquisas das ciências humanas à medida que são publicadas e analisadas narrativas que relatam os massacres e guerras ocorridos ao longo do século XX. Nesse contexto, escritas de vida são encontradas em diferentes formas de registro, tais como autobiografias, memórias, testemunhos e entrevistas; destacam-se, também, os diários que não podem ser compreendidos apenas como cadernos de confidências, segundo Souza (1997, p. 127), mas também como um documento que “pode voltar-se para o exterior e registrar reflexões políticas, históricas, sociais, morais ou outras”. É entre esses diários que encontramos o da jovem Anne Frank. Mundialmente conhecidos, seus registros sobre a ocupação da Holanda pelo regime nazista e sua vida no esconderijo mostram as observações e preocupações de uma adolescente que acabou sendo vítima das atrocidades cometidas contra os judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Composto por 195 relatos escritos por Anne Frank no período compreendido entre 12 de junho de 1942 e 1º de agosto de agosto de 1944, seu diário apresenta as angústias e a vida cotidiana dos moradores do Anexo Secreto, o local onde ela e mais sete pessoas se esconderam para tentarem escapar da perseguição nazista.


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No início dos seus relatos, Anne Frank narra as dificuldades de escrever seu diário e os motivos que a levaram a escrevê-lo. Em algumas passagens, afirma que era vista como “tagarela” na escola onde estudava, mas o que a levou a escrever foi justamente o oposto, a solidão e a falta de amigos. No seu registro datado de 20 de junho de 1942, a menina comenta a falta de amigos íntimos e o compromisso estabelecido entre ela e seu diário: Agora voltei ao ponto que me levou a escrever um diário: não tenho um amigo. [...] aparentemente parece que eu tenho tudo, exceto um único amigo de verdade. [...] De qualquer modo, é assim que as coisas são, e não devem mudar, o que é uma pena. Foi por isso que comecei o diário. Para destacar em minha imaginação a imagem da amiga há muito tempo esperada [...] quero que o diário seja minha amiga, e vou chamar esta amiga de kitty . (FRANK, 2013, p. 19)

Depois de firmado o compromisso de escrever, ela passa a narrar cronologicamente seu dia a dia, embora por vezes haja acelerações narrativas do tipo elipse e sumário. Com a descrição dos sucessivos eventos da Segunda Guerra Mundial, seus escritos tornam-se uma fonte de informações sobre as ações realizadas pelo regime nazista. Ainda na parte inicial de seu diário, Anne menciona as várias restrições impostas aos judeus pelos comandos nazistas, que configuram um conjunto de leis segregacionistas, como pode ser observado no seguinte trecho: Nossa liberdade foi gravemente restringida com uma série de decretos antissemitas: os judeus deveriam usar uma estrela amarela; os judeus eram proibidos de andar nos bondes [...] de andar de carro [...] deveriam fazer suas compras entre três e cinco horas da tarde [...] só deveriam frequentar barbearias e salões de beleza de proprietários judeus [...] eram proibidos de frequentar teatros, cinemas ou ter qualquer outra forma de diversão [...] ‘Eu não ouso fazer mais nada, porque tenho medo de ser proibido’. (FRANK, 2013, p. 21)


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Nesse fragmento, podemos perceber a ênfase dada por Anne a todas as mudanças que a cercavam. Ao longo de seu diário, ela apresenta vários relatos sobre as fases do conflito ouvidos pelo rádio que sua família levou para o esconderijo e pelas informações de amigos. Neles, Anne escreve sobre o medo que sente durante os ataques aéreos, a obrigação imposta a todos os estudantes universitários alemães de defender a sua pátria e o avanço/retrocesso das tropas aliadas e do eixo. No seguinte excerto, podemos verificar seu relato de terça-feira, 27 de abril de 1943, sobre a destruição causada na cidade pelos constantes ataques aéreos ingleses: O Hotel Carlton foi destruído. Dois aviões ingleses carregados de bombas incendiárias caíram bem em cima do Clube dos Oficiais Alemães. Todo o quarteirão pegou fogo. O número de ataques aéreos sobre cidades alemãs cresce a cada dia. Não temos uma boa noite de descanso há séculos, e estou com olheiras profundas por falta de sono. (FRANK, 2013, p. 117)

Além da descrição dos bombardeios, Anne também registra as consequências para as vítimas, como no relato de segunda-feira, 19 de junho de 1943, no qual podemos verificar a sua preocupação com os mortos e sobreviventes, além de seu medo de novos ataques: Ruas inteiras estão em ruínas, e vai demorar um bocado para resgatarem todos os corpos. Até agora, houve duzentos mortos e incontáveis feridos; os hospitais estão lotados. Ficamos sabendo de crianças que procuram os pais entre as ruínas fumegantes. Ainda estremeço ao pensar no ronco surdo a distância, indicando a destruição que se aproximava. (Ibidem, p. 132)

Nota-se nesse excerto e em outras descrições de Anne a forte presença do medo da morte. Tal sentimento é intensificado com as notícias que chegavam ao Anexo sobre as ações da Gestapo, a polícia secreta nazista, e, principalmente, sobre os transportes em


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em massa de judeus para os campos de concentração, conforme mostra o fragmento abaixo, escrito na sextafeira, 9 de outubro de 1942, em que Anne menciona os campos: Hoje, só tenho notícias tristes e deprimentes. Nossos muitos amigos e conhecidos judeus estão sendo levados aos montes. A Gestapo está tratando eles muito mal e transportando-os em vagões de gado para Westerbork, o grande campo em Drenthe, para onde estão mandando todos os judeus [...] As pessoas não tem praticamente nada para comer e menos ainda para beber [...] Fugir é quase impossível (Ibidem, p. 70)

É também pelo rádio que Anne recebe informações sobre o “Dia D”, em que tropas aliadas desembarcam na região da Normandia, na França, e ocupam Paris, que estava sob controle alemão desde o início da guerra. O episódio marca o início do colapso e, consequentemente, da derrota do nazi-fascismo, como se pode verificar no seguinte excerto: ‘Este é o Dia D’, anunciou a BBC ao meio-dia. ‘Este é o dia’. A invasão começou! Hoje de manhã, às oito horas, os ingleses informaram sobre pesados bombardeios em Calais, Boulogne, Le Havre e Cherbourg, além de no Passo de Calais [...] Além disso, como medida de precaução para as pessoas dos territórios ocupados, todo mundo que mora num raio de 35 quilômetros da costa foi alertado a se preparar para os bombardeios.[...] Grande comoção no Anexo! Será que este é realmente o início da esperada libertação? [...] Ainda não sabemos, mas onde há esperança há vida. (FRANK, 2013, p. 343)

Embora Anne tenha esperado pela libertação, tendo presenciado e narrado várias fases da guerra, quase do início ao fim, seu anseio não se concretizou. Segundo o posfácio do livro, na manhã de 4 de agosto de 1944, o esconderijo foi descoberto e todos os ocupantes do local foram presos. Com exceção de seu pai, que conseguiu sobreviver, todos os refugiados morreram, inclusive Anne, que foi levada para Auschwitz e posteriormente para o


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o campo de concentração Bergen-Belsen, vindo a falecer pela epidemia de tifo. Ao analisarmos o diário, torna-se imprescindível estabelecer um diálogo com os estudos da memória diante dos genocídios do século XX. Ao mesmo tempo em que se trata de narrativas que se baseiam em uma memória individual, podemos pensar em como se dão suas relações com a história. Nesse contexto, as escritas da vida orbitam em torno da compreensão de literatura como fenômeno sociocultural de uma época. É o que enfatiza Theodor Adorno (1988, p. 207) ao afirmar o caráter duplo da literatura, o de ser autônoma e ao mesmo tempo “fato social”. Para o autor, as obras autênticas seriam aquelas “que se entregam sem reservas ao conteúdo material e histórico de sua época”. Diante das circunstâncias de violência que perpassam a contemporaneidade, frente a esse “estado de exceção” em que vivemos e que “é na verdade a regra geral”, conforme o enunciado de Walter Benjamin (1994, p. 226), os produtos culturais, entre os quais a literatura, assumem uma posição de destaque: o de um espaço privilegiado de reflexão. Podemos dizer que o diário de Anne Frank passou a fazer parte das narrativas culturais do nosso tempo, se levarmos em conta a concepção de cultura como “um processo de autointerpretação e construção de sentido mediado por meios simbólicos e textuais”, conforme descrito por Ansgar Nünning (2004, p. 370). Compreendida desta forma, a cultura pode ser definida como o “complexo geral das coletivas construções de sentido, formas de pensar, modos de sentir, valores e sentidos” que o ser humano produz e materializa em forma de sistemas de símbolos. Ainda segundo Nünning, a literatura “incorpora um aspecto central do lado material da cultura e das formas de expressão midiática por meio das quais a cultura [imaterial] pode ser observada”. Essa dimensão imaterial da cultura seria constituída pelas mentalidades: aquele conjunto de elementos que abrange as formas de pensar, sentimentos, crenças, ideias e formas de conhecimento da coletividade.


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“A hora e vez de Augusto Matraga”, entre a antropologia e a literatura Sílvio Augusto de Oliveira Holanda RESUMO: Com sua linguagem renovadora, a publicação de

Sagarana (1946), de Guimarães Rosa, abriu novas perspectivas para a prosa brasileira, no sentido de incorporação do mágico e do poético, exigindo da crítica novos conceitos e métodos de análise. A interpretação dessa obra exigiu que os críticos discutissem (ou rediscutissem) seus pressupostos hermenêuticos, o que levou alguns a perceber, por exemplo, que o regionalismo, a cuja tradição Sagarana estaria vinculada, não oferece todas as possibilidades para a compreensão e explicação da obra como um todo. Neste artigo, dar-se-á ênfase à narrativa “A hora e vez de Augusto Matraga”, quanto aos seus aspectos formais e temáticos, responsáveis pelo caráter inovador, em articulação com a reflexão antropológica de Roberto DaMatta de Carnavais, malandros e heróis (1981). Adotaremos, para o exame da organização formal do texto, a divisão proposta por Fábio Freixieiro no seu ensaio “O problema do gênero em Sagarana ”(FREIXIEIRO, 1971, p. 74-101). O autor divide o texto em três partes: 1) o primeiro Matraga; 2) a crise mística — a humilhação do protagonista; 3) encontro com seu Joãozinho Bem-Bem. Por fim, discutir-se-á a particularidade estética de que se reveste o banditismo em Sagarana , cuja leitura exige, assim, uma problematização de tipos humanos havidos como expressão e marca de uma região. PALAVRAS -CHAVE: Guimaraes Rosa; A hora e vez de

Augusto Matraga; antropologia

____________________ Universidade Federal do Pará (UFPA) 

RÉSUMÉ: Avec son langage innovatrice, l’édition Sagarana (1946), de Guimarães Rosa, a ouvert de nouvelles perspectives pour la prose brésilien, à l’incorporation du magique et du poétique, exigeant de nouveaux concepts et méthodes d’analyse critiques. L’interprétation de ce œuvre a exigé que les critiques discutent ses présupposés herméneutiques, ce qui a conduit certains à se rendre compte, par exemple, que le régionalisme, à qui Sagarana tradition serait liée, ne offre pas toutes les possibilités de compréhension et d’explication de l’œuvre dans son ensemble. Dans cet article, on discutera le récit “A hora e vez de Augusto Matraga”, quant à ses aspects formels et thématiques, responsables pour le caractère innovateur, en conjonction avec la réflexion anthropologique de Roberto Da Matta Carnavais, malandros e heróis (1981). Nous prendrons, pour étudier l’organisation formelle du texte, la division proposée par Fabio Freixieiro dans son essai “La question du genre dans Sagarana” (Freixieiro, 1971, p. 74-101). L’auteur a divisé le texte en trois parties: 1) le premier Matraga; 2) la crise mystique —


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l’humiliationde la protagoniste; 3) rencontre avec sonJoãozinho Bem-Bem. Enfin, on examinera la particularitéesthétique du thème dubanditisme dans Sagarana , dont la lecturenécessite doncune remise en causedes types humains considérés comme expression etmarque d’une région. MOTS-CLÉS: Guimares Rosa; A hora e vez de Augusto Matraga; anthropologie.

A estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. (ROSA, 1983, p. 10)

Adotaremos, para o estudo de “A hora e vez de Augusto Matraga”, narrativa pertencente a Sagarana (1946), de Guimarães Rosa, a divisão proposta por Fábio Freixieiro no seu ensaio “O problema do gênero em Sagarana ”(FREIXIEIRO, 1971, p. 74-101). O autor divide o texto em três partes: 1) o primeiro Matraga; 2) a crise mística — a humilhação do protagonista; 3) encontro com seu Joãozinho Bem-Bem. O primeiro Matraga A ação em “A hora e vez de Augusto Matraga” terá como espaço inicial o arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Muruci em dia de procissão e terá como protagonista Matraga, mas o que significa tal nome? “Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, das Pindaíbas e do Saco da Embira. Ou Nhô Augusto [...]” (ROSA, 1983, p. 281). Sabendo-se da importância do nomear antroponímico na obra rosiana, é de indagar por que Matraga não é Matraga e como, pela “transnomeação” (Augusto EstevesAugusto Matraga), o personagem ficou reduzido a não ser nada. Ele, que é filho de coronel e proprietário de terras, perde, por motivo ainda não revelado ao leitor, uma das marcas simbólicas de pertença a uma classe e a uma família (Esteves): o nome. Propondo uma leitura antropológica para a narrativa em questão, Roberto DaMatta tece as seguintes considerações a propósito do que nós chamamos de “transnomeação”:


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Só existe conflito e, consequentemente, drama, quando Augusto Esteves, esse portador de um nome neutro, dá lugar a Nhô Augusto. A novela começa com Nhô Augusto, que se transforma em Matraga apenas no final, podendo-se considerar a mensagem narrativa como o estudo desse processo de transformação de um nome em outro — de um homem em outro, já que tais designações são índices fortemente marcados de identidades sociais desempenhadas por seu portador. (DAMATTA, 1981, p. 245)

O Muruci está animado com a procissão dedicada à sua padroeira; há um leilão atrás da igreja onde se realiza uma novena. Quando após o leilão, as pessoas “direitas” vão retirando-se, cedendo lugar a uma “multidão encachaçada”, alguém, talvez exaltado pelo álcool, sugere que se leiloe Sariema, “mulher-à-toa”, que vem sendo admirada por um capiau romântico. Este fica atônito com a sugestão, mas o “povo encapetado” insiste na ideia, aos gritos. Contra os protestos do leiloeiro, que exige respeito ao povo, em nome da santidade do lugar, já se tinha feito uma proposta de cinco mil-réis, quando Nhô Augusto, cobrindo um lance baixo, interfere: Nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com os braços em tenso, angulando os cotovelos varou a frente da massa, se encarou com Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião: — Cinquenta mil-réis... (ROSA, 1983, p. 322).

Essa atitude de desrespeito à santidade (O primeiro Matraga) propicia ao leitor — que tematiza o par bem x mal — uma caracterização indireta na medida em que aquele, desrespeitando o caráter sagrado do espaço do leilão, se configura como agente do mal, do pecado e do sacrilégio. Uma voz religiosa faz-se mensageira desta tematização realizada pelo leitor: “— Me desprezo! me desprezo desse herege!... Vão coçar suas costas em parede!... Coisa de igreja tem castigo, não é brinquedo...” (ROSA, 1983, p. 322), sendo vaiada. Assim, não é difícil o leitor estabelecer, através do tema do mal, relações entre Nhô Augusto e Silvino (“O burrinho pedrês”), Targino (“Corpo fechado"), Agenor Soronho


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(“Conversa de bois”) e outros personagens de importância secundária. A intervenção de Nhô Augusto pôs fim à desordem e separou o capiau romântico de Sariema. A atitude violenta de Nhô Augusto, protegido por quatro guarda-costas, é reveladora de uma determinada estrutura política dominante que, através do exercício da força, permite a indivíduos como ele impor seu arbítrio a indefesos capiaus, que não podem reagir ao aparato que protege o coronel. Este é ainda aclamado pelo povo que assistiu ao episódio do leilão. Nhô Augusto, ainda não satisfeito, deu três pescoções no capiau, o que agitou ainda mais a multidão; o narrador resume o sofrimento da vítima: “Foi o capiauzinho apanhando, estapeado pelos quatro cacundeiros de Nhô Augusto, e empurrado para o denso do povo, que também queria estapear” (ROSA, 1983, p. 324). O sufixo zinho parece sugerir que o narrador, julgando a atitude do coronel incorreta, sente pena do agredido, não se referindo, porém, à estrutura de que Nhô Augusto é a imagem. No entanto, a instância da narração manifesta, por meio de um discurso valorativo, a condição do arbítrio e os desacertos do poder. Ele, ao lado da prostituta, mesmo tendo recebido um recado da esposa para que viesse ao encontro dela, avisa Dionóra de que não vai ao seu encontro e de que ela e a filha devem seguir sozinhas para o Morro Azul. Magoada com mais uma afronta do marido, ela dá-nos uma descrição que revela outros aspectos da personalidade de Nhô Augusto: E ela conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido, sem detença, como um bicho grande do mato. E, em casa, sempre fechado em si. Nem com a menina se importava. Dela, Dionóra, gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais, sempre com os capangas, com mulheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na fazenda — no Saco da Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul — ele tinha outros prazeres, outras mulheres, o jogo de truque e as caçadas. E sem efeito eram sempre as orações e promessas, com que ela o pretendera trazer, pelo menos, até meio caminho direito. Fora assim desde menino, uma meninice à louca e à larga, de filho único de pai pancrácio. E ela, Dionóra, tivera culpa, por haver contrariado e desafiado a família toda, para se casar. (ROSA, 1983, p. 326)


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Conclui-se, pela última afirmativa, que o narrador atribui também culpa a Dionóra. Tal atribuição de culpa reflete a moral familiar que Dionóra infligira. Além desses dissabores familiares, enfrenta “dívidas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando, as fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante” (ROSA, 1983, p. 326). Com o desgaste do casamento, ela acredita em poder transcendente à ação humana, para cumprir a sua sina: “Mas, quem sabe se não era melhor se entregar à sina, com proteção de Deus, se não fosse pecado... Fechar os olhos” (ROSA, 1983, p. 327). O tema do adultério e o da sina aparecem em outras narrativas de Sagarana, como “Duelo” e “Conversa de bois”. Sabe o leitor que o adultério feminino não é aceito, em nenhuma circunstância, pela sociedade patriarcal em que se situam as personagens; a “macheza” (“homência”) do coronel Nhô Augusto, embora aparentemente despreze a esposa, não toleraria tal afronta. Dionóra, entretanto, sonha com o outro — única maneira de escapar às humilhações de Nhô Augusto: E o outro era diferente! Gostava dela, muito... mais do que ele mesmo dizia, mais do que ele mesmo sabia, da maneira de que a gente deve gostar. E tinha uma força grande, de amor calado, e uma paciência quente, cantada, para chamar pelo seu nome. (ROSA, 1983, p. 327)

Vê-se, assim, que Dionóra oscila entre a ordem (o casamento oficial) que lhe limita a satisfação pessoal e a fuga à ordem (o amor “diferente” de Ovídio Moura), o que lhe traria a realização plena como mulher. Voltemos ao enredo. No dia seguinte ao leilão, Dionóra e a filha, Mimita, seguem para Morro Azul. A caminho deste retiro, depois de passar por Pau Alto, onde pernoitam e encontram um tio, passam pelo brechão do Bugre e encontram Ovídio Moura, o outro, que dá um ultimatum à amada: “— Dionóra, você vem comigo... Ou eu saio sozinho por esse mundo e nunca mais você há-de me ver!...” (ROSA, 1983, p. 328). Perplexa e consciente dos riscos que correria, ela aceita a ideia de fuga. Esta resultará na primeira perda simbólica de Nhô Augusto, que se verá, assim, ferido em sua honra e em seu sentimento de “propriedade”. É Quim Recadeiro o arauto da afronta à


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à arrogância do coronel: “[...] fala com seu patrão que Siá Dona Dionóra não quer viver mais com ele, e que ela de agora por diante vai viver comigo, com o querer dos meus parentes todos e com a benção de Deus!” (ROSA, 1983, p. 329). Informado do ocorrido por Quim Recadeiro, Nhô Augusto tenta reagir à perda que a fuga da esposa lhe impôs; percebe, no entanto, que, sem que ele soubesse, lhe foi imposta outra perda: ele não detém mais a força e a proteção que lhe proporcionavam seus capangas. Estes, contratados pelo Major Consilva, não aceitam mais as ordens dele. Quim Recadeiro explica-lhe o que aconteceu: — Mal em mim não veja, meu patrão Nhô Augusto, mas todos no lugar estão falando que o senhor não possui mais nada, que perdeu suas fazendas e riquezas, e que vai ficar pobre, no já-já... E estão conversando, o major mais outros grandes, querendo pegar o senhor à traição [...] estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê em de matar por obrigação. (ROSA, 1983, p. 330).

O Major Consilva assume, perante toda a sociedade ultrajada por Nhô Augusto, o papel de punidor; cabe-lhe mandar executar a pena que os atos do coronel exigem. Diante dessa situação, o narrador, como voz da prudência na tragédia grega, prevê o que o acusado deveria fazer: Assim, quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Esteves, naqueles dois contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas rodadas sem jogar, fazendo umas férias na vida. (ROSA, 1983, p. 331)

O narrador detém um saber que conhece as flutuações da sorte e da predestinação, propondo, porém, um projeto que o personagem, preso ainda aos valores da ordem que o rejeita, não pode ainda realizar. Nhô Augusto inclui, numa mesma ânsia de vingança pessoal, Ovídio e Dionóra, major Consilva e seus capangas. Ao chegar à chácara do major Consilva, percebe que a sorte virara contra si. Espancado por seus ex-capangas e pelo capiau humilhado por ele no episódio do leilão e subjugado, é levado para longe das


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das terras do Major para a suprema humilhação de ser marcado a ferro (Cf. GALVÃO, 1978, p. 41-74). Esse episódio encerra o primeiro momento da narrativa e, de certa forma, prepara o segundo. A crise mística / A humilhação do protagonista Nhô Augusto, em último esforço de libertação, já marcado, soltou-se de seus algozes e pulou no barranco, desaparecendo por entre as moitas. Acreditando ser inútil verificar se o coronel tinha morrido, os cacundeiros regressaram à chácara do major Consilva para anunciar a morte de Nhô Augusto. O coronel, porém, não havia morrido. Recolhido por um preto, é levado para um casebre. Tratado pelo casal, Nhô Augusto tem momentos de lucidez em que esbraveja contra seus adversários. “Este homem deve ser ruim feito cascavel barreada em buraco, porque está variando que faz e acontece, e só braveza de matar e sangrar...” (ROSA, 1983, p. 334), pensa a esposa. [...] o corpo todo lhe doía, com costelas também partidas, e mais um braço, e um sofrimento de machacaduras e cortes, e a queimadura da marca de ferro, como se o seu pobre corpo tivesse ficado imenso. Mesmo assim, com isso tudo, ele disse a si que era melhor viver. (ROSA, 1983, p. 335)

Mas como ele poderá viver daí em diante, sem nome e sem suas propriedades, desonrado? Dentro da temática que sustenta a narrativa, não é incoerente que o leitor focalize a tentativa de execução sofrida por Nhô Augusto como um castigo, uma purgação. Daí advém a punição do mal e de seus agentes por um poder transcendente à ação humana. Ele, refletindo sobre sua tristeza, sente muita tristeza, uma tristeza: mansa, com muita saudade da mulher e da filha, e com um dó imenso de si mesmo. Tudo perdido! O resto, ainda podia... Mas, ter a sua família, direito, outra vez, nunca. Nem a sua filha... Para sempre... E era como se tivesse caído num fundo de abismo, em outro mundo distante. (ROSA, 1983, p. 336).


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É chegada a hora da ponderação, que leva à introspecção, para o inquieto mandão, capaz agora de discernimento ético. O passado, relembrado a partir da situação atual, é visto como outro mundo, ao qual ele já não pertence, destituído que está dos poderes e da autoridade de coronel. Nhô Augusto compara o processo que o conduziu a tal situação a uma queda em abismo, termo impregnado de irrecusável sentido teológico. O leitor relacionará o emprego dessa palavra à temática já mencionada (bem x mal). Enfrentando todas as agruras do presente, o protagonista sente vontade de contar a sua desgraça, de desabafar, porém não consegue expressar, pela linguagem verbal (que sempre utilizou como forma de violência e autoritarismo), as angústias que o torturam. Imobilizado pelos ferimentos, Nhô Augusto passa meses deitado no enxergão que o casal amigo lhe ofereceu generosamente. Durante esse tempo, consciente dos pecados e aparentemente contrito, ele deseja ser absolvido: “— Se eu pudesse ao menos ter absolvição dos meus pecados!...” (ROSA, 1983, p. 336). O casal traz, então, ao casebre um padre com quem Nhô Augusto se confessa e de quem recebe conselhos no sentido da regeneração moral. O angustiado cristão indaga ao religioso: “— Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tanto pecado mortal?” (ROSA, 1983, p. 336). Um parêntesis: aqui falaremos de religiosidade, não como expressão autoral, reflexo do autor na obra, mas sim como elemento textual e ficcional que se projeta no imaginário do leitor. Entendemos a religiosidade configurada na narrativa como figura de relevância no sentido que lhe dá a teoria estéticorecepcional (dinâmica temática objetivada). O padre é um dos agentes dessa religiosidade; o seu discurso é a voz a apontar os meios e o caminho a ser seguido pelo cristão arrependido no sentido da redenção: — Eu acho boa essa ideia de se mudar para longe, meu filho. Você não deve pensar mais na mulher, nem nas vinganças. Entregue para Deus, e faça penitência. Sua vida foi entortada no verde, mas não fique triste, de modo nenhum, porque a tristeza é aboio de chamar o demônio eo Reino do Céu, que é o que vale, ninguém tira de sua algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito! [...] Você


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nunca trabalhou, não é? Pois, agora, por diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros sempre que puder. Modere esse mau gênio. (ROSA, 1983, p. 336-7)

Está, assim, traçado o caminho de Nhô Augusto: mansidão, humildade, trabalho, caridade e moderação. É de notar que a crítica do padre ao modo de vida de Nhô Augusto se estrutura em critérios exclusivamente morais e religiosos; não há, portanto, uma crítica social, que veria na figura do coronel aspectos típicos de uma determinada estrutura político-social. O fato de ele nunca ter trabalhado refere-se à ociosidade em que vive; não se tematiza a natureza do trabalho. O leitor, acostumado às denúncias veiculadas pelos escritores nordestinos de 1930, principalmente em relação à posse da terra, estranhará tal ausência, como estranharam certos críticos de Guimarães Rosa, que chegaram a considerá-lo conservador. É preciso rediscutir tal problema, buscando ir além dos simplismos redutores, que só empobreceriam a plurissignificação do texto rosiano (o relevo dado ao religioso é apressadamente tido como sintoma de alienação) e que tratam a obra como ré de um grande crime: o de não concordar com nossos valores. Veja-se que, para que Nhô Augusto se redima, não basta que reze, pedindo egoisticamente sua salvação a Deus; é preciso também que trabalhe. Ora, pelo trabalho, o coronel exerce uma atividade intramundana que não o aliena dos outros homens. Rezar e trabalhar — eis, segundo o padre, o caminho da redenção. Durante toda sua convalescença, Nhô Augusto é cuidado generosamente pelo casal que o acolheu. Pela generosidade e amor ao próximo, pode-se relacionar a uma versão da parábola do bom samaritano. Mas, como recomendou o padre, ele tem que afastar a tristeza e o consegue; com o tempo, vai adquirindo “uma nova espécie nova e mui serena de alegria” (ROSA, 1983, p. 338). Logo que pôde andar escorando-se em muletas, Nhô Augusto resolve pôr em prática as metas traçadas pelo padre e ir para longe a fim de refazer sua vida na companhia do casal que o acolheu. Já no meio da estrada, abriu os braços em cruz e jurou: “— Eu vou p’ro céu, vou mesmo, por bem ou por mal... E a minha vez há de chegar... P’ra o céu eu vou nem que seja a seja a porrete!...”


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(ROSA, 1983, p. 338). O juramento de Nhô Augusto parece paradoxal; o seu objetivo é salvar-se, ir para o céu; por outro lado, quer atingir tal meta por qualquer meio (bom ou mau). A expressão “a porrete” — herança do passado — revela que ele não titubeará em usar o recurso da violência (cujas conseqüências sentiu no próprio corpo), valendo-se de um meio que só considerava válido antes de sua conversão. Nhô Augusto e o casal amigo seguem em direção ao sertão, passando por diversas localidades, serras, morros e baixadas. Ao final dessas andanças, chegam ao povoado do Tombador, “onde, às vezes, pouco à vezes e somente quando transviados da boa rota, passavam uns bruaqueiros tangendo tropa” (ROSA, 1983, p. 339). A população do povoado, embora o achasse esquisito, gostou dele, porque “era meio doido e meio santo” (ROSA, 1983, p. 339). Nhô Augusto começa a nova fase de sua vida, voltado, asceticamente, para as orações e para o trabalho: Trabalhava que nem um afadigado por dinheiro, mas no feito, não tinha nenhuma ganância ajudar os outros. Capinava para si e para os vizinhos do seu fogo, no querer de repartir, dando de amor o que possuísse [...] de tardinha [aos domingos], fazendo parte com as velhas corocas que rezavam o terço ou os meses dos santos. Mas fugia às léguas de viola ou sanfona, ou de qualquer outra qualidade de música que escuma tristezas no coração. (ROSA, 1983, p. 339-40)

Sabendo que cada um tem a sua hora e a sua vez, Nhô Augusto segue essa norma de vida por seis anos ou seis anos e meio, sendo essa datação validada pela narrativa; trata-se, afinal, de “uma estória inventada, e não é um caso acontecido” (ROSA, 1983, p. 340). A verossimilhança de que se revestem as indicações temporais da narrativa é garantida pela ficcionalidade mesma que a caracteriza, não se prendendo a referências extratextuais. Durante esse tempo, Nhô Augusto “não tinha tentações, nada desejava, cansava o corpo no pesado e dava rezas para a sua alma, tudo isso sem esforço nenhum, como os cupins que levantam no pasto murundus vermelhos.” (ROSA, 1983, p. 340). A abolição do desejo configura um processo de ascese; não há tentações para Nhô Augusto em sua Tebaida do


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Tombador, todo entregue ao trabalho e às orações. Assim, o asceta “não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom-parecer das mulheres, não falava junto em discussão” (ROSA, 1983, p. 340). Ainda assim, Nhô Augusto ainda luta para esquecer a sua vergonha. Para piorar a situação, um conhecido dele, o Tião da Thereza, passa pelo Tombador e o informa de que dona Dionóra continuava amigada com seu Ovídio e de que Mimita, sua filha, desgraçadamente “caíra na vida”. Além disso, Nhô Augusto fica sabendo que o Major Consilva arrematara as suas duas fazendas. Como Tião da Thereza funciona como elo entre o presente ascético e o passado mundano que o coronel tenta superar, este pede àquele que não conte a ninguém que o vira, sentindo reavivada a sua desonra por meio das informações do velho desconhecido; renasce o ódio e contra este já não vale a jaculatória do coração manso e humilde, o que o impele a praticar “coisas mal-feitas”. Para praticar tais coisas, precisaria recuperar a sua força de homem (homência): “se bebesse e cigarrasse, e ficasse sem trabalhar nem rezar, haveria de recuperar sua força de homem e seu acerto de outro tempo” (ROSA, 1983, p. 342). Para o asceta Nhô Augusto, as lembranças avivadas por Tião funcionam como uma provação a testar a força moral do contrito cristão. O padre explica-lhe o sentido de prova que têm os sofrimentos mundanos: “— Você, em toda a sua vida, não tem feito senão pecados muito graves, e Deus mandou estes sofrimentos só para um pecador poder ter ideia do que o fogo do inferno é!...” (ROSA, 1983, p. 342). A tal sentido de provação somam-se a ideia de predestinação (“E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi” — ROSA, 1983, p. 342). Apesar dos conselhos do padre e de suas incertezas, Nhô Augusto não consegue mais ficar impotente diante dos acontecimentos, escondido, “encostado, que nem como se tivesse virado mulher!...” (ROSA, 1983, p. 343) e passa a achar exagerada a expiação de seus pecados, sentindo-se abandonado por Deus, o que assusta o casal que o acolheu. Percebe, assim, que o protagonista está dividido entre o céu (por que anseia) e a terra, entre a penitência (elo que o prende à vida anterior). Dividido, Nhô Augusto vai vivendo mais alguns meses sem encontrar alegria nas bondades que pratica até que,


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pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma coisa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo, sorrateira como a chegada do tempo das águas, que vinha paralelo [...] Nhô Augusto agora tinha muita fome e muito sono. O trabalho entusiasmava e era leve [...] Não pensava nada... (ROSA, 1983, p. 344).

Tomando consciência das mudanças que ocorreram, Nhô Augusto, agora com o corpo bem, sente-se lembrado por Deus, que, sem que ele saiba, desvia para o Tombador o bando de Joãozinho Bem-bem, preparando a hora da libertação para o filho de Afonsão Esteves. Dias antes de o bando chegar ao arraial, Nhô Augusto sente uma alegria inusitada e sem pecado: “enrolava a palha, com uma pressa medonha, como se não tivesse curtido tantos anos de abstenção. Tirou tragadas, soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar, dando na fraqueza.” (ROSA, 1983, p. 345) Encontro com seu Joãozinho Bem-Bem A chegada do bando do Joãozinho Bem-Bem ao Tombador — fato inusitado para o arraial — provocou tanta agitação que o povo não sabia como comportar-se: “O povo não se mexia, apavorado, com medo de fechar as portas, com medo de ficar na rua, com medo de falar e ficar calado, com medo de existir” (ROSA, 1983, p. 346). Tanto medo era causado principalmente pela figura do chefe do bando, em cuja descrição se demora o narrador: E o chefe — mais forte e o mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça — era o homem mais afamado dos sertões do rio: célebre do Jequitonhanha á serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do VerdeGrande, do rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu; maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-todo, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-rocha, o rompe-e-arrasa. (ROSA, 1983, p. 345-6)

O tema do banditismo (Cf. GALVÃO, 1972, p. 17 et seqs.), que reaparecerá em Grande sertão: veredas, é freqüente na literatura regionalista desde o Romantismo,


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haja vista O Cabeleira , de Frânklin Távora; aparece em outras narrativas de Sagarana e culmina em Grande sertão: veredas. Assim, Joãozinho Bem-Bem emerge de uma tradição literária e folclórica que deita raízes no Romantismo. Alguns escritores nordestinos de 1930 valeram-se do tipo do bandido para veicularem crítica sócio-política, denunciando as arbitrariedades do coronelismo de que dependia, sobretudo, o banditismo. O leitor, armado de todo esse conhecimento prévio, indagar-se-á sobre a particularidade estética de que se reveste o referido tipo em Sagarana, cuja leitura exige, assim, uma problematização desses tipos humanos havidos como expressão e marca de uma região. Ao contrário do restante da população, Nhô Augusto não foge do bando de Joãozinho Bem-Bem; procura-o e convida-o para se arranchar na casa dele, Nhô Augusto. O chefe do bando aceita o convite e simpatiza com a figura deste a quem trata de “mano velho”. Antes da farta refeição, Joãozinho Bem-Bem explica o motivo da viagem ao seu hospedeiro: “estava de passagem, com uma pequena parte do seu bando, para o sul, para o arraial das Taquaras, na nascença do Manduri, a chamado do seu amigo Nicolau Cardoso, atacado por um mandão fazendeiro, de injustiça” (ROSA, 1983, p. 347). Vê-se, pela explicação dada, que o bando de Joãozinho Bem-Bem, como costuma acontecer, desempenha um poder paralelo ao poder constituído a serviço de grandes proprietários de terra, o que não constitui nenhuma novidade no tratamento literário do jaguncismo, cabendo ao leitor procurar a originalidade de Guimarães Rosa em outro plano. Ainda quanto à discussão do referido tema, é interessante esta afirmação do chefe do bando: “Gente minha só mata as mortes que eu mando, e morte legal!” (ROSA, 1983, p. 348). Mesmo instituições à margem dos poderes constituídos, como os bandos armados, precisam ter uma hierarquia, uma voz poderosa de comando. Há uma lógica, percebida pelo líder e transmitida aos comandados, que justifica as mortes executadas pelo grupo. Discussões semelhantes ocorrerão também em Grande sertão: veredas no momento em que Riobaldo questiona a legitimidade de vários atos praticados por ele e pelos grupos armados de que faz parte, tal discussão evidencia que o tratamento dado por Guimarães Rosa ao tema do jaguncismo foge aos vários lugarescomuns que enquadram o bandido, o que faz fraturar o horizonte de expectativa do leitor de Sagarana. Estabelece-se entre Nhô Augusto e Joãozinho Bem-Bem um clima de simpatia e amizade; antes de mais nada, este representa para aquele todos os poderes da homência. A admiração de Nhô


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Augusto pela força masculina é tanta que ele não se envergonha de apalpar os braços de Epifânio, um dos homens de Joãozinho Bem-Bem, “mulato enorme, de musculatura embatumada, de bicipitalidade maciça” (ROSA, 1983, p. 350). Com a convivência com o bando, Nhô Augusto retoma uma fase de sua vida em que exercia poderes semelhantes aos membros do grupo liderado por Joãozinho Bem-Bem; chega mesmo a experimentar arma de fogo numa pitangueira, recebendo o seguinte comentário do chefe do bando: “— Mão mandona, mano velho. Errou o primeiro, mas acertou um em dois... Ferrugem em bom ferro!” (ROSA, 1983, p. 351). O comentário de Joãozinho Bem-Bem revela que este não acredita na aparente pacatez de Nhô Augusto; ao despedir-se dele, o chefe declara: — Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha... Não quero especular coisa de sua vida p’ra trás, nem se está se escondendo de algum crime. Mas, comigo é que o senhor havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto? (ROSA, 1983, p. 351-2)

Depois de anos de penitência e meditação, Nhô Augusto ainda sente a atração pelo mal (vingança) contra o qual lutara; o convite de Joãozinho BemBem, cuja aceitação lhe daria oportunidade de exercer novamente a sua força de coronel, é mais uma prova posta à sua resistência de asceta: “O convite de Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que era cachaça em copo grande! Ah, que vontade de aceitar e ir também...” (ROSA, 1983, p. 352). Nhô Augusto inveja os membros do referido bando, porque estes estavam no bom, porque não tinham de pensar em coisa nenhuma de salvação de alma e podiam andar no mundo, de cabeça em pé... Só ele, Nhô Augusto, era quem estava de todo desonrado, porque mesmo lá, na sua terra, se alguém se lembrava ainda do seu nome, havia de arrastá-lo pela rua-da-amargura... (ROSA, 1983, p. 352)


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mas recusa a proposta, vencendo a tentação pela consciência de que a oferta representaria a sua perdição completa, o que traria como conseqüência castigos mais duros: “— Agora que eu principiei e já andei um caminho tão grande, ninguém não me faz virar e nem andar defasto!” (ROSA, 1983, p. 353). O coronel Nhô Augusto, diferentemente de muitos coronéis que povoam a literatura regionalista, é capaz de pensar metafísica e teologicamente, à maneira de Riobaldo de Grande sertão: veredas: [...] ele soube de que jeito estava pegado à sua penitência, e entendeu que essa história de se navegar com religião, e de querer tirar sua alma da boca do demônio, era a mesma coisa que entrar num brejão, que, para a frente, para trás e para os lados, é sempre dificultoso e atola sempre mais. (ROSA, 1983, p. 353)

É o misticismo cristão, por outro lado, que diferencia Augusto Matraga de Manuel Fulô, típico valentão regional. Outra tentação vem juntar-se à da vingança: o desejo. Nhô Augusto sente saudades do corpo feminino, percebendo que “a força da vida nele latejava, em ondas largas, numa tensão confortante, que era um regresso e um ressurgimento” (ROSA, 1983, p. 353-4). A partir da tentação do convite de Joãozinho Bem-Bem, ele passa a ver a penitência de uma maneira diferente; a tentação, presente e atuante, é um estímulo à dominação do mal pelo homem: o Diabo é percebido, mas subjugado pela fé do coronel. Repare-se que, na narrativa, a existência do Diabo não é questionada, diferentemente do que se passa em Grande sertão: veredas. Apesar de ter o Diabo sob jugo, o convertido decide partir para encontrar a sua vez, já que intui que esta não ocorrerá no lugar em que se encontra: “Adeus, minha gente, que aqui é que mais não fico, porque a minha vez vai chegar, eu tenho de estar por ela em outras partes” (ROSA, 1983, p. 356). No caminho, Nhô Augusto retoma um costume há muito abandonado: o de cantar músicas profanas: “Cantar, só, não fazia mal, não era pecado” (ROSA, 1983, p. 356). A beleza física imanente ao mundo surge diante de seus olhos: “E ele achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas, nos caminhos do sertão [...] Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente” (ROSA, 1983, p. 356).


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Decidido a ir para onde o jegue o quisesse levar, Nhô Augusto vai percorrendo os caminhos acidentados e tortuosos do sertão. O animal que o leva, além de uma possível ressonância bíblica, deixa ver outro burrinho: Setede-Ouros, o animalzinho sábio de “O burrinho pedrês”, a conduzir o homem pelas linhas transversas do destino. O jegue passa a pouca distância do arraial Rala-Coco. Dentro da lógica providencialista (outra forma de destino) que sustenta a narrativa, o leitor não considerará mero acaso o fato de Joãozinho Bem-Bem e o seu bando se encontrarem aboletados bem no centro do arraial. Procurado por Nhô Augusto, o chefe do bando o recebe, fazendo-lhe todas as cortesias dignas de um velho amigo. Algo, porém, torna sombrio o rosto de Joãozinho Bem-Bem: Juruminho, um dos melhores comandados por ele, fora morto à traição. Em nome do código jagunço, Joãozinho exigirá uma reparação na base da pena de Talião; pretende que alguém da família do assassino pague, com a vida, pela morte de Juruminho. O líder reitera o pedido para que Nhô Augusto entre para o bando, agora para substituir o rapaz morto: — Não se ofenda, mano velho, deixe eu dizer: eu havia de gostar, se o senhor quisesse vir comigo, para o norte... Já lhe falei e torno a falar: é convite como nunca fiz a outro, e o senhor não vai se arrepender! Olha: as armas do Juruminho estão aí, querendo dono novo... (ROSA, 1983, p. 362)

Pelo que o leitor sabe do conflito íntimo em que se debate Nhô Augusto, não deve ter sido fácil a segunda recusa. Afinal, fazer parte do bando de Joãozinho BemBem era maior das tentações do ex-coronel. A conversa dos dois é interrompida com a chegada do velho, pai do assassino de Juruminho. Chorando e gemendo, ele implora ao líder do bando que não mate nenhum dos filhos dele (pai): — Ai, seu Joãozinho Bem-Bem, então lhe peço, pelo amor da senhora sua mãe, que o teve e lhe deu de mamar, eu lhe peço que dê ordem de matarem só este velho, que não presta para mais nada... Mas que não mande judiar com os pobrezinhos dos meus filhos e minhas filhas, que estão lá em casa sofrendo, adoecendo de medo, e que não têm culpa nenhuma do que fez o irmão. (ROSA, 1983, p. 363)


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O pedido está baseado no dever cristão do sacrifício, mas, se atendido, implicaria descumprimento à regra e traria, consequentemente, desrespeito para Joãozinho Bem-Bem. Por isso, este recusa o pedido feito, causando a ira do velho: “— Pois então, satanás, eu chamo a força de Deus p’ra ajudar a minha fraqueza no ferro da tua força maldita!...” (ROSA, 1983, p. 363). Embora admirando a homência desregrada de Joãozinho Bem-Bem, Nhô Augusto toma a defesa do pobre velho, opção essa orientada pela ética que abraçou após a conversão: — Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome do Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz! (ROSA, 1983, p. 364)

Nhô Augusto sabe, contudo, que não convencerá o amigo a mudar de ideia apenas com argumentos verbais; ele terá de usar a força, se quiser livrar, do perigo, a família do velho. A força, cujo uso arbitrário e mau marcou a primeira fase de Nhô Augusto, antes da conversão, será deslocada do mal para o bem (salvação de uma família). Ouve-se o grito do novo cruzado contra os homens de Joãozinho Bem-Bem e a casa “matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos tiros, com os cabras soltando e miando de maracajás, e Nhô” (ROSA, 1983, p. 364-5). Antonio Candido mostra o valor simbólico do jaguncismo em Nhô Augusto: No momento em que se faz jagunço, Nhô Augusto sobe em vez de cair, pois está adotando uma forma justa de comportamento, cujo resultado final é paradoxalmente, suprimir o jaguncismo, — como ocorrerá também em Grande sertão com o comportamento de Riobaldo. Ser jagunço tornase, além de uma condição normal no mundo-sertão [...], uma opção de comportamento [...].(CANDIDO, 1970, p. 153)

A narrativa da luta entre os homens de Joãozinho BemBem e Nhô Augusto ocupa as últimas páginas de “A hora e vez de Augusto Matraga”, enchendo-a de lances dramáticos, lembrando o duelo final entre Diadorim e Hermógenes em Grande sertão: veredas. Antes de matar o adversário, Nhô Augusto incita-o ao arrependimento: “— Se arrepende dos


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pecados, que senão vai sem contrição, e vai direitinho p’ra o inferno, meu parente seu Joãozinho BemBem!...” (ROSA, 1983, p. 365). Morto o jagunço, Nhô Augusto é aclamado pelo povo como salvador, mandado por Deus para salvar as famílias daquele arraial. O homem do jumento dá-se a conhecer àquele povo como Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas. E o narrador relata os últimos minutos do agora Augusto Esteves e suas palavras de perdão e contrição cristãs: Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, e de seu rosto subia um sagaz contentamento. Daí, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrando, sumido: — Põe a benção na minha filha... seja lá onde for que ela esteja... E Dionóra... Fala com a Dionóra que está tudo em ordem! Depois morreu. (ROSA, 1983, p. 367)

Uma palavra ainda sobre a narrativa em estudo. Encabeçam-na, como epígrafes, um trecho de uma cantiga de roda e um provérbio capiau: Eu sou pobre, pobre, pobre, vou-me embora, vou-me embora... ........................................... Eu sou rica, rica, rica, Vou-me embora, daqui!... (Cantiga antiga) Sapo não pula por boniteza mas porém por percisão. (provérbio capiau) (ROSA, 1983, p. 321)

Assumindo uma atitude perante o texto, o leitor procurará estabelecer as ligações temáticas que prendem as epígrafes à narrativa que se lhes segue. A cena final desta, que culmina com a morte de Nhô Augusto, torna oportuna uma discussão sobre o uso da força por esse personagem. Assim como o sapo do provérbio, Nhô Augusto, converso, só admite valer-se da força, a cujo uso renunciara, para salvar a família de um pobre velho, ameaçada por um bando de jagunços; há, assim, uma


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uma “percisão” no ato de Nhô Augusto, já que tal ato não é gratuito. Existe, por outro lado, entre o eu da cantiga de roda e o ex-coronel uma aproximação: ambos tiveram que deslocar-se no espaço para mudarem de vida. Adquirido, em um novo lugar, o bem pretendido, ambos tornam a partir. Nhô Augusto, depois dos anos de penitência no Tombador, parte para o Rala-Coco e aí encontra a sua hora e a sua vez. Referências FREIXIEIRO, Fábio. O problema do gênero emSagarana . Da razão à emoção II . Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, In: 1971. p. 74-101. CANDIDO, Antonio. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In: Vários escritos . São Paulo: Duas Cidades, 1970. p. 133-160. GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso . São Paulo: Perspectiva, 1972. 136 p. _________. Mitológica rosiana . São Paulo: Ática, 1978. 128 p. MATTA, Roberto da.Carnavais, malandros e heróis . 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 272 p. ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Universal, 1946. 344 p. _________. “A hora e vez de Augusto Matraga”. In:_____ Sagarana. 27. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. p. 321-367.


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Normas para apresentação de artigos • Só serão aceitos trabalhos enviados pela internet para o endereço: revista@abralic.org.br • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser produzidos em MSWord 2007 (ou versão superior), com uma folha de rosto onde constem os dados de identificação do autor: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo), título e temática escolhida. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas e, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. • Após a Após a folha de identificação, o trabalho deve obedecer à seguinte sequência: - Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos); - Nome(s) do(s) autor(es) – - Nome(s) do(s) autor(es) – à direita da página (sem negrito nem grifo), duas linhas abaixo do título, com maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla;


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- Resumo– a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10; - Palavras-chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave; - Abstract – mesmas observações sobre o Resumo; - Keywords – mesmas observações sobre as palavras chave; - Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver; - Parágrafos – usar adentramento 1 (um); - Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração; - Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor; - Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10. - Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico. - Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e pagina(s).


Normas da revista

As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé. - Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa, bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários. - Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada. ALGUNS EXEMPLOS DE CITAÇÕES

• Citação direta com três linhas ou menos [...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37) • Citação indireta [...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as consequências de certas linhas da poética drummoniana. • Citação de vários autores Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, Borges, 1998; Campos, 1969).

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• Citação de várias obras do mesmo autor As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992).

• Citação de citação e citação com mais de três linhas Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148).

ALGUNS EXEMPLOS DE REFERÊNCIAS • Livro PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

• Capítulo de livro BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33.

• Dissertação e tese PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.


Normas da revista

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• Artigo de periódico GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37- 57, 2004.

• Artigo de jornal TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4.

• Trabalho publicado em anais CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95.

• Publicação on-line – Internet FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6 fev. 2009.

OBSERVAÇÃO FINAL: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013


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