UMA PUBLICAÇÃO DA FEDERAÇÃO DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO DE MATO GROSSO DO SUL
EDIÇÃO 09 | MARÇO 2014
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EXPEDIENTE
WWW.FETEMS.ORG.BR Rua 26 de Agosto, 2.296, Bairro Amambaí. Campo Grande - MS CEP 79005-030. Fone: (67) 3382.0036. E-mail: fetems@fetems.org.br
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Redação e Produção Íris Comunicação Integrada Rua Chafica Fatuche Abussafi, 200 Parque dos Poderes - 79036-112 Campo Grande/MS + 55 67 3025.6466 Diretora de criação: Nanci Silva Diretor de arte: Ivan Cardeal Nunes Jornalista responsável e editora: Laura Samudio Chudecki (DRT-MS 242) Revisão: Vanda Escalante (DRT-MS 159) e Greice Maciel Colaboraram nesta edição Vanda Escalante Dani Reis Fotos Wilson Jr. Dani Reis Betinho Escalante
Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, a opinião da revista.
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DESTAQUES
Política ....................................................................................................................................................7 A FETEMS e seus sindicatos afiliados estão engajados na campanha do Plebiscito Popular por uma Assembleia Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político
Capa ......................................................................................................................................................10 Fruto da luta e da perseverança de quem sempre acreditou na educação, a FETEMS comemora 35 anos num cenário de boas histórias e grandes conquistas
Escola Pantaneira .............................................................................................................................36 Por meio de várias ações, o Acaia Pantanal conjuga educação, proteção e desenvolvimento ambiental nas comunidades ribeirinhas de Corumbá
Mulher
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Mesmo com a Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher continua aumentando. Autoridades afirmam que a maior arma nesse combate é a informação
Cultura ..................................................................................................................................................46 Ícone da cultura sul-mato-grossense, a cantora Delinha, aos 77 anos, ainda embala gerações de fãs
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EDITORIAL
Tempo de comemorar, hora de refletir A Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul (FETEMS) completa 35 anos de existência. É uma história de lutas e desafios, de vitórias e conquistas, de muito aprendizado. Ao longo da caminhada, encontramos muitos companheiros e companheiras de valor, que ousaram acreditar numa educação melhor, para construir uma sociedade melhor. Muitos permanecem conosco, outros já se foram. A todos eles, nossa gratidão e nossa homenagem. Ao longo desse tempo, também encontramos vários desafios e, sem medo, conseguimos superar a maioria deles, transformando os obstáculos do caminho em oportunidades de melhora e crescimento. Agregamos forças, aprendemos que a organização é a melhor estratégia para alcançar objetivos comuns, entendemos que a ação política é parte necessária e essencial à vida sindical. Crescemos em número de filiados, ampliamos a base, articulamos entendimentos, ganhamos respeito, conquistamos reconhecimento e valorização profissional. No entanto, e apesar de tantas importantes vitórias, a Educação Pública ainda tem grandes problemas a superar, e nós, educadores, a cada dia temos novos desafios nessa luta incansável pela educação de qualidade, uma educação cidadã e igualitária. Ao comemorar os 35 anos da FETEMS, ao olhar para trás e ver o quanto já avançamos, devemos também centrar foco nos desafios do presente, para continuar aprimorando nosso fazer de educadores, nosso interminável ensinar e aprender. A realidade nos impõe novas questões, que precisam de posicionamento e reflexão, não apenas na relação com os estudantes, os pais e a comunidade, mas também nas relações de trabalho, com os colegas de escola, com os companheiros e companheiras da luta sindical, com os representantes do poder público. Nesta edição comemorativa, a revista Atuação traz, mais uma vez, grandes temas para debate e reflexão, como a crescente violência contra a mulher, os desafios de manter uma escola no meio do Pantanal, as transformações no tradicional modelo escolar retratadas no cotidiano do Educandário Getúlio Vargas, em Campo Grande, e também traços importantes da cultura sulmato-grossense, como as histórias da cantora Delinha, que, inclusive, está virando personagem de cinema. Nossa revista, assim como a própria FETEMS, é feita para você, com a sua participação. Colabore, mande sua sugestão ou opinião. E aproveite a leitura.
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Roberto Magno Botareli Cesar Presidente da Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul
POLÍTICA
Movimentos sociais vêm se articulando para realizar plebiscito por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político Revista ATUAÇÃO | Março 2014 |
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Plebiscito Diante do caos, entidades, movimentos sociais e a própria presidente Dilma Rousseff propuseram um Plebiscito Popular, por uma Assembleia Cons8 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
tituinte, com poder soberano para mudar o Sistema Político Brasileiro e exclusivamente eleita para esse fim. Somente com a mudança do Sistema Político será possível atender as reivindicações exaltadas durante as manifestações de 2013. É importante esclarecer que, no Brasil, apenas o Congresso Nacional pode convocar um plebiscito, que é uma consulta na qual os cidadãos e as cidadãs votam para aprovar ou não uma questão. Como o Congresso não deve “abrir seus ouvidos” à voz das ruas, a alternativa é a organização de um Plebiscito Popular para saber se a população está de acordo com a formação ou não de uma Assembleia Constituinte Exclusiva. Em setembro de 2013, a Plenária Nacional dos Movimentos Sociais se reuniu e aprovou a realização do Plebiscito Popular pela Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político. A Plenária também definiu que a pergunta será única: “Você é a favor de uma constituinte exclusiva e soberana sobre o sistema político?” Até lá, há muito trabalho pela frente. Uma luta que contribuirá decisivamente para a democratização do Brasil. Expectativa A expectativa é de que a Assembleia Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político sirva para melhorar a vida da população brasileira. Com um novo sistema político, mais participativo, será possível buscar mudanças que no passado não foram feitas, como as reformas agrária, urbana, tributária e outras, que assegurem a igualdade de direitos econômicos, sociais e civis. Para que a Assembleia Constituinte Exclusiva aconteça é preciso que a sociedade brasi-
Assembleia Nacional Constituinte Assembleia Nacional Constituinte é a realização de uma assembleia de representantes eleitos pelo povo para modificar a economia e a política do país e definir as regras, instituições e o funcionamento das instituições de um Estado, como o Governo, o Congresso e o Judiciário. Suas decisões resultam em uma Constituição. A Constituição brasileira atual é de 1988.
DIFERENTES TIPOS
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o mês de junho de 2013, o Brasil, internacionalmente conhecido pela grandiosidade do Carnaval, pelo drible do futebol, praias paradisíacas, sol, calor, e por ser habitado por um povo brando e pacífico, ganhou as manchetes dos principais jornais estrangeiros. O motivo: os brasileiros resolveram tomar as ruas, movidos pela insatisfação com os rumos e resultados em setores essenciais, como educação, saúde, transporte, moradia e segurança. A capa do New York Times, do dia 19 de junho, trazia o título “Protestos crescem enquanto brasileiros culpam seus líderes”. A reportagem, que começava na primeira página do jornal americano, exibia uma foto de um flagrante de abuso policial ocorrido na cidade do Rio de Janeiro. Um policial militar lançava, de uma distância mínima, spray de pimenta no rosto de uma manifestante. E assim, mundo afora, os meios de comunicação transmitiam a confusão. O estopim que deu vazão à onda de protestos foi o aumento das tarifas de transportes públicos em diversas capitais brasileiras. Os milhões que saíram às ruas contestaram os preços das tarifas e reivindicaram melhores condições na saúde, educação de qualidade, transparência na gestão pública, reforma agrária e urbana, combate à corrupção etc.. A situação revelou um abismo entre o povo e os poderes que regem o país. Executivo, Legislativo e Judiciário ficaram com a imagem profundamente abalada.
leira esteja mobilizada e informada sobre a importância de uma reforma política no país. Para isso, movimentos e entidades sociais vêm se articulando para esclarecer a população a respeito da realização desses dois processos (plebiscito e constituinte).
DE CONSTITUINTE
FETEMS
Assembleia Constituinte Exclusiva Na proposta de uma Constituinte Exclusiva, os representantes eleitos exercerão exclusivamente o poder soberano de definir politicamente o Estado brasileiro, consultando de forma criativa a cidadania, e retornarão à vida de cidadãos e cidadãs, iguais aos demais, ao término desse processo.
A Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul (FETEMS), maior entidade sindical do estado, esteve presente nas manifestações de 2013. No dia 11 de julho, a FETEMS e demais entidades marcharam em defesa da classe trabalhadora e reivindicaram o fim do fator previdenciário; reajuste digno para os aposentados; jornada de 40 horas semanais, sem redução salarial; transporte público de qualidade, fim do Projeto de Lei nº 4.330, que amplia a terceirização; reforma agrária; fim dos leilões do petróleo; mais recursos para educação e saúde; piso salarial nacional e carreira; plano nacional de educação; profissionalização dos funcionários da educação. Agora, a FETEMS está engajada na campanha do Plebiscito Popular por uma Assembleia Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político. Por meio dos sindicatos afiliados, está também coletando assinaturas em prol da realização do plebiscito. No final de janeiro, a FETEMS e os demais movimentos sociais e sin-
dicais estiveram reunidos para o lançamento da campanha. Segundo o secretário de finanças da Federação, Jaime Teixeira, o Plebiscito Popular permite que os brasileiros expressem suas reais necessidades e pressionem o poder público para atendê-los. “Queremos um sistema político participativo que, de fato, atenda o povo”, comenta. Atiliana Brunetto, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST/MS), que também integra a organização do Plebiscito Popular no estado, compartilha dessa opinião. Para ela, o Brasil só será efetivamente democrático quando o sistema político mudar. “Somente através da mudança será possível resolver os problemas que afligem o país”, afirma.
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CAPA
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“Quando o movimento começou, nós não tínhamos nada. Só tínhamos a cara e a coragem de fazer acontecer. Éramos muito jovens. Mas, acho que tinha que ser assim mesmo, sem medo e com muita ousadia. A gente era até mal visto, ninguém queria nos receber. Professor e ainda sindicalista não tinha crédito em lugar nenhum” Ademir Cerri, secretário de comunicação da FETEMS 12 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
a década de 1970, nasce, junto com Mato Grosso do Sul, um movimento sindical de vanguarda, organizado pelos professores que lecionavam na rede pública de ensino do novo estado. Era o princípio de um ideal, que se transformou em lutas, que se transformaram em direitos e conquistas. A Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul (FETEMS) é fruto da ousadia e da perseverança de homens e mulheres que acreditaram que a educação é capaz de transformar a sociedade. “Quando o movimento começou, nós não tínhamos nada. Só tínhamos a cara e a coragem de fazer acontecer. Éramos muito jovens. Mas, acho que tinha que ser assim mesmo, sem medo e com muita ousadia. A gente era até mal visto, ninguém queria nos receber. Professor, e ainda sindicalista, não tinha crédito em lugar nenhum”, conta o professor e atual secretário de comunicação da FETEMS, Ademir Cerri, que participa do movimento da Educação no estado desde o começo. As primeiras reuniões sindicais tinham que ser discretas, pois o país ainda sentia a repressão da ditadura militar. Na década de 1980, havia muito a fazer. O tempo era de mudanças e desafios, e a categoria da Educação lutava em defesa dos interesses dos trabalhadores. A Educação era precária em todos os sentidos, não havia condições estruturais, faltavam escolas, não existia concurso público, não havia uma carreira estabelecida. Na pauta de reivindicações, junto com as questões salariais, sempre esteve a luta por uma educação de qualidade, bem como pela valorização profissional da categoria, tanto professores quanto administrativos.
Diante das dificuldades, o jeito era ir à luta e tentar mudar as coisas. Foi o que fizeram os jovens que compunham o movimento sindical da Educação de Mato Grosso do Sul. A mobilização dos trabalhadores em Educação era feita boca a boca, de cidade em cidade. Tudo era longe, as estradas eram ruins. Mesmo assim, as reuniões aconteciam. O resultado do esforço coletivo foi a fundação da Federação dos Professores de Mato Grosso do Sul (FEPROSUL), em 3 de março de 1979. A Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul (FETEMS) veio dez anos depois, em 1989, quando a entidade se filiou à Central Única dos Trabalhadores (CUT) durante o Congresso Estadual realizado no município de Amambai. Naquele momento aconteceu também a unificação da carreira: professores e funcionários administrativos de escolas passaram a ser reconhecidos como tralhadores em Educação, e as associações passaram a ser chamadas de sindicatos. “Participei do momento mais difícil do movimento sindical no estado, em que os governos não reconheciam o direito de associação e o sindicato. Eles não aceitavam nossa organização. Tratar do Piso Salarial e de melhorias na vida profissional era tabu. A sociedade, em sua maioria elitizada, era contrária às reivindicações dos trabalhadores e das trabalhadoras”, lembra o deputado federal Antônio Carlos Biffi (PT), que foi presidente da FETEMS por três mandatos. Para Ademir Cerri, que já vive três décadas e meia militando no movimento sindical, o sentimento é de satisfação: “Não me arrependo de nada, faria tudo novamente. Entrei no movimento para nunca mais sair. O que nós conquistamos, o que nós
vivemos, isso não tem preço. Quem vê a FETEMS hoje, não sabe o que passamos para chegar até aqui.” O professor François de Oliveira Vasconcelos, que também foi presidente da FETEMS, entre os anos de 1993 e 1995, lembra que a principal reivindicação da categoria era manter os salários em dia. “Nós ficávamos meses sem receber. Em 1990 estávamos com os salários atrasados e, por conta disso, fizemos uma greve e invadimos a sede da governadoria. Ficamos acampados na governadoria por 40 dias, até conseguirmos negociar os salários e garantir a eleição para diretores nas escolas. A primeira eleição para diretor aconteceu em junho de 1991”, conta. Ao longo do tempo e somando avanços, o movimento sindical foi passando por grandes transformações e hoje já não exige tanto uma postura de enfrentamento, mas sim de manutenção das conquistas e renovação das bandeiras de luta. Missão Desde sua fundação, a FETEMS tem procurado desempenhar um papel transformador da realidade, a partir da educação. Junto com os sindicatos municipais, tem sido um dos principais instrumentos da categoria na luta pela conquista de uma sociedade em que haja distribuição da renda socialmente produzida, os direitos sociais sejam respeitados, e haja valorização do ser humano com autonomia e liberdade. A FETEMS é, hoje, a maior entidade sindical de Mato Grosso do Sul, reunindo 72 sindicatos municipais filiados, mais de 25 mil trabalhadores na base, representando mais de 50% do funcionalismo público do Estado. Depois de 35 anos de luta, a FETEMS, ao lado de seus traba-
“À frente da FEPROSUL, hoje FETEMS, por três gestões, fui membro fundador da Federação, onde iniciei a vida de luta sindical em defesa dos trabalhadores e trabalhadoras em Educação de Mato Grosso do Sul. Luta essa que faço atualmente na Câmara dos Deputados e no dia a dia no Estado. Participei do momento mais difícil do movimento sindical no estado, em que os governos não reconheciam o direito de associação e do sindicato. Eles não aceitavam nossa organização. Tratar do Piso Salarial e de melhorias na vida profissional era tabu. A sociedade, em sua maioria elitizada, era contrária às reivindicações dos trabalhadores e trabalhadoras. Tenho orgulho de fazer parte da história do movimento sindical dessa entidade, ao lado de companheiros guerreiros que marcaram a luta dos trabalhadores e trabalhadoras de Mato Grosso do Sul, responsáveis pela primeira greve no estado e diversos enfrentamentos para garantirmos boas conquistas aos educadores” Antônio Carlos Biffi, deputado federal (PT/MS), ex-presidente da FETEMS (1983 a 1984, 1985 a 1986, 1990 a 1992) Revista ATUAÇÃO | Março 2014 |
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“No final do ano de 1990, estávamos com os salários atrasados e, por conta disso, fizemos uma greve e invadimos a sede da governadoria. Ficamos acampados na governadoria por 40 dias, até conseguirmos negociar os salários e garantir a eleição para diretores nas escolas. A primeira eleição para diretor aconteceu em junho de 1991” Francois de Oliveira Vasconcelos, ex-presidente da FETEMS (1993 a 1995) 14 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
lhadores e trabalhadoras, conseguiu garantir vários direitos. A categoria conta atualmente com concurso público e plano de cargos e carreiras, e os dois últimos anos, 2012 e 2013, foram marco de grandes vitórias para a FETEMS. Em 2012, a categoria conseguiu garantir a unificação da carreira de administrativos e professores, acrescentando oito mil profissionais ao Estatuto da Educação Básica, ampliando a promoção funcional, bem como a regulamentação e implantação de 1/3 da hora-atividade. A unificação da carreira era uma reivindicação que vinha sendo debatida por mais de 20 anos. Outros pontos conquistados são a política salarial do magistério, contemplando a política salarial nacional, a progressão funcional dos administrativos da Educação, a realização do concurso de remoção do magistério, e a realização do concurso público para o magistério e para os administrativos da Educação, que aconteceu no primeiro semestre de 2013. Piso por 20 horas A FETEMS fechou o ano de 2013 com chave de ouro, garantindo a implantação do Piso Nacional por 20 horas semanais. Mato Grosso do Sul é o primeiro estado do país a pagar o piso salarial para os professores com base em jornada de 20 horas. O acordo entre a categoria e o Governo do Estado prevê quatro anos para a implantação da medida. A Lei nº 11.738 diz que o piso pode ser pago para uma jornada de até 40 horas. Assim, ao invés de receber R$ 1.698 por 40 horas, os professores da rede estadual vão receber esse valor por 20 horas, em uma correção que vai levar quatro anos para ser finalizada. O índice de reajuste para o
magistério da Rede Estadual de Ensino, para 2014, foi estabelecido em 8,5%, com a incorporação de 20% da regência no vencimento base, o que significa que, em quatro anos, o professor terá 100% de aumento. Ao comemorar os 35 anos de fundação neste mês de março, a FETEMS reconhece que ainda existe muita luta pela frente, mas se pauta nas conquistas obtidas para continuar a batalha pela Educação Pública de qualidade, uma educação que seja mais justa, humana e igualitária.
Comunicação e cidadania A defesa da Educação Pública de qualidade, com valorização profissional dos trabalhadores e trabalhadoras, implica também o reconhecimento e a integração com a sociedade de modo geral. Ao longo do tempo, a FETEMS implementou e utilizou diversos instrumentos de interação e comunicação que permitem o constante fortalecimento do movimento sindical, ao passo em que legitimam as lutas e as vitórias da categoria como conquistas sociais. O projeto Aula da Cidadania
é um exemplo. O projeto foi desenvolvido durante 15 anos, entre 1997 e 2012. De início, a Aula da Cidadania foi concebida como mais uma estratégia de luta, uma forma diferente para envolver alunos e comunidade no debate sobre os problemas da Educação. Material impresso em formato de jornal, com notícias e informações, além de propostas de atividades, temas e provocações para reflexão era o principal subsídio nos encontros, envolvendo professores, pais e alunos. Com o tempo, e com a crescente aceitação da proposta, até mesmo a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) adotou a Aula da Cidadania como ferramenta que, pela amplitude que alcançou, passou a abranger a discussão de outros temas, como as questões étnicas, de gênero e de política. Assim, datas como o 8 de Março (Dia Internacional da Mulher) e o 20 de Novembro (Dia da Consciência Negra) ganharam edições especiais da Aula da Cidadania. Em 2011, a FETEMS organizou, no dia 11 de maio, um debate ao vivo, com uma hora de duração, por uma televisão aberta para 74 municípios sul-mato-grossenses. O programa recebeu o nome de “A Educação no centro do debate” e foi transmitido pela TV Campo Grande e pela internet, por meio da página da FETEMS. Há mais de 30 anos, a FETEMS edita o periódico Quadro Verde, que, junto com as várias ferramentas do site – como a TV FETEMS – e, mais recentemente, com as redes sociais, constitui um canal de comunicação direta com os educadores, via SIMTEDs e escolas, em todos os 72 municípios que compõem a base da Federação. E a Revista Atuação chega à 9ª edição como importante veículo para o debate e para a luta pela Educação Pública de qualidade.
“Começamos do zero e na labuta. Hoje, me sinto feliz por ter contribuído com a formação da maior entidade sindical do estado” Eusébio Garcia Barrio, ex-presidente da FETEMS (1979 a 1980 e 1981 a 1982) Revista ATUAÇÃO | Março 2014 |
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• Nasce, junto com o estado de Mato Grosso do Sul, um movimento sindical de vanguarda, organizado pelos professores que lecionavam na rede pública de ensino.
• Fundação da Federação dos Professores de Mato Grosso do Sul (FEPROSUL), em 3 de março de 1979, tendo como primeiro presidente o professor Eusébio Garcia Barrio. As primeiras reuniões da FEPROSUL foram feitas em uma casa cedida pela ex-prefeita de Campo Grande, Nelly Bacha. A casa ficava no bairro Amambaí, nas proximidades da Rua Engenheiro Roberto Mange, em Campo Grande. • Primeiro Congresso Estadual realizado pela FEPROSUL (SAMPROSUL), na Câmara dos Vereadores, em Campo Grande.
• Lei Complementar Nº 4, de 12 janeiro de 1981, dispõe sobre o primeiro Estatuto do Magistério do Estado de Mato Grosso do Sul. • Realização do primeiro concurso público para professores.
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• Com pagamento do salário em atraso, professores realizam a primeira greve no estado. O lema da greve é: “Vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer” (música de Geraldo Vandré).
• Conquista da licença sindical. Os presidentes das entidades sindicais passam a ter direito a 22 horas-aula para trabalhar em prol da categoria. • Realização do segundo concurso público para professores, no mês de agosto.
• Lei Complementar nº 35, que substitui a Lei Complementar nº 4 e atualiza o Estatuto do Magistério do Estado de Mato Grosso do Sul. • Aquisição da sede da FEPROSUL, na rua 26 de Agosto, no bairro Amambaí. A compra da casa só foi possível com a organização de uma rifa, que tinha como premiação um veículo fusca. A rifa foi vendida no estado inteiro. O ganhador residia no município de Ponta Porã.
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• Paralisação das atividades na Rede Pública de Ensino por 30 dias, com a participação de 15 mil professores. Na pauta de negociações: eleição para diretor, Estatuto do Magistério e Piso Salarial de quatro salários mínimos. • Conquista do Piso de três salários mínimos. Publicada no Diário Oficial em 17 de dezembro de 1987, a Lei Complementar nº 807, de 16 de dezembro de 1987, fixa o Piso Salarial do Grupo do Magistério e dá outras providências. Art. 1º - O piso salarial do Professor com carga horária de 22 horas semanais é fixado em: I - 2.80 do salário mínimo, a partir de 1º de fevereiro de 1.988; II 3.00 do salário mínimo, a partir de 1º de março de 1.988. O valor real do salário não se manteve por muito tempo, em decorrência da instabilidade econômica do período.
• No mês de outubro, o Governo do Estado suspende a licença sindical.
• 16º Congresso Estadual realizado pela FEPROSUL no município de Amambai. É neste Congresso que a entidade se filia à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e, com isso, professores e administrativos passam a ser reconhecidos como trabalhadores em Educação. Durante o Congresso, foi aprovada a mudança do nome da entidade para Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul (FETEMS). Com isso, as associações municipais passam a ser sindicatos. • No final do Governo Marcelo Miranda, a categoria conquistou um aumento de 104%, mas o Governo do Estado não conseguiu efetuar o pagamento, e os trabalhadores ficaram sem receber o salário.
A década de 1990 foi marcada por greves, paralisações e manifestações.
• Greve por falta de pagamento dos salários. Integrantes do movimento sindical ficaram 40 dias acampados na sede da governadoria, em Campo Grande. • Consolidação da Lei nº 1.102, que dispõe sobre o Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado de Mato Grosso do Sul, e dá outras providências. O artigo 156 garante a licença sindical.
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• No mês de maio, a contribuição sindical passa de 1% para 2%. • No mês de junho, acontece a eleição para diretores e colegiado escolar nas escolas estaduais.
• Mais um ano com greve, que dura 47 dias. No dia 17 de março, a categoria reúne 20 mil pessoas, entre trabalhadores em Educação e pais de alunos, num protesto que percorreu o centro de Campo Grande.
Tempo de conquistas e efetivação de direitos.
• Vigência da Lei Complementar nº 87, que substitui a Lei Complementar nº 35 e atualiza o Estatuto dos Profissionais da Educação Básica do Estado de Mato Grosso do Sul. Com a Lei Complementar nº 87, os trabalhadores em Educação passaram a ter um novo Plano de Cargos e Carreira. • Participação ativa da FETEMS na formação da Caixa de Assistência aos Servidores do Estado de Mato Grosso do Sul (Cassems), primeiro plano de saúde de autogestão sindical do Brasil.
• No mês de junho, a FETEMS realiza o Encontro Estadual de Funcionários Administrativos da Educação, que teve como tema central a profissionalização desse segmento.
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• Implantação do Projeto Pé de Cedro, voltado para a profissionalização dos funcionários administrativos da Educação.
• Lei 11.738 (Lei do Piso) institui o Piso Salarial Profissional Nacional para os profissionais do magistério público da Educação Básica.
• Inauguração da Casa do Trabalhador Elson Lot Rigo.
• A política permanente de reajuste salarial estabelecida pela FETEMS nos últimos dois anos do governo Zeca do PT, em 2005 e 2006, e no governo André Puccinelli, entre 2007 e 2010, elaborada e defendida pela direção da FETEMS, resultou em um reajuste de 91,78%, enquanto a inflação no período de cinco anos foi de 25,36%. Portanto, o ganho real conquistado pela política salarial implementada pela diretoria da FETEMS foi de 52,78%.
• No dia 16 de março, paralisação em todo o Estado e Audiência Pública na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Após paralisação e Audiência, a FETEMS se reúne com o governador para iniciar um processo de negociação em torno da política salarial, realização de concurso público e garantia das eleições diretas para diretor no prazo determinado pela lei.
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• Derrubada da Adin (Ação de Inconstitucionalidade). O governador André Puccinelli manifestou formalmente, perante o STF e os demais Estados signatários da Adin nº 4.848, seu desinteresse na apreciação e procedência da referida ação. A Adin n° 4848 contestava o artigo 5º da Lei do Piso Salarial Nacional (Lei n° 11.738), que trata da atualização monetária anual do Piso Nacional do magistério. • A categoria conseguiu, ainda, garantir a unificação da carreira de administrativos e professores, acrescentando oito mil profissionais ao Estatuto da Educação Básica, ampliando a promoção funcional, bem como a regulamentação e a implantação de 1/3 da hora-atividade.
• Por meio de acordo entre FETEMS e Governo do Estado, ficou estabelecido o cronograma de pagamento do Piso por 20 horas semanais. Mato Grosso do Sul é o primeiro estado do país a garantir o piso salarial para os professores com base em jornada de 20 horas. O índice de reajuste para o magistério da Rede Estadual de Ensino, para 2014, foi estabelecido em 8,5%, com a incorporação de 20% da regência no vencimento base, o que significa que, em quatro anos, o professor terá mais de 100% de aumento.
Cumprimento de 1/3 da hora-atividade.
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“A FETEMS faz um trabalho exemplar em defesa dos interesses dos trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul. As conquistas obtidas ao longo dos 35 anos de história falam por si. Vitórias como as obtidas em 2013, entre elas o estabelecimento do Piso para a carga horária de 20 horas, o reajuste salarial com índices superiores ao da inflação, a incorporação de 20% do adicional de regência de classe e a garantia aos professores da rede estadual do direito de reservar 1/3 de sua carga horária para o planejamento escolar, são provas disso. Parabéns, FETEMS! Parabéns a todos os trabalhadores em Educação!” Delcídio do Amaral, senador (PT-MS) 22 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
“Eu defendo muito a organização sindical através do sistema federativo e a FETEMS é um exemplo de que esse sistema dá certo e é o melhor caminho para a luta pelos direitos da categoria, tanto na mobilização, quanto na força de atuação sindical que exerce nacionalmente. Quero parabenizar a entidade e os seus filiados pelos 35 anos de história, muitas lutas e conquistas, pois só haverá revolução se efetivamente investirmos na Educação, mas numa Educação libertária, que permitirá a construção de um país mais justo e humano” Vagner Freitas, presidente da CUT Nacional
“A FETEMS é um grande instrumento de luta, que defende os trabalhadores em Educação do estado, as lutas do movimento social e sindical cutista, nas ruas e nos protestos, participando ativamente da construção da história de Mato Grosso do Sul. A Central Única dos Trabalhadores parabeniza a Federação pelos 35 anos de luta, e desejamos muitas vitórias e conquistas para sua direção e seus filiados” Genilson Duarte, presidente da CUT-MS
“A FEPROSUL mudou a história do movimento sindical sul-mato-grossense. É muito gratificante ver os resultados de uma história que teve início há décadas” Elza Maria Jorge, ex-presidente da FETEMS (1987 a 1989) Revista ATUAÇÃO | Março 2014 |
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“O período em que estive à frente da FETEMS foi uma época de muita efervescência política, marcada por mobilizações e protestos. O cenário era de salários atrasados, carreiras desrespeitadas, corrupção e total desgovernança. Era preciso ter garra e nós tínhamos. Fomos protagonistas da nossa história e conseguimos mudar para melhor o cenário da educação. Foi uma honra fazer parte desta construção, ao lado de mulheres e homens que seguem defendendo a Educação Pública e valorização dos seus profissionais. Seguimos com nossos sonhos e nossas utopias” Fátima Aparecida da Silva Atual secretária de Relações Internacionais da CNTE, vice-presidente da IEAL e ex-presidente da FETEMS 1996 a 1998 e 1999 a 2002 24 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
“Quando a FETEMS ampliou os interesses, passando a atender todos os trabalhadores da Educação, foi uma evolução, uma posição de vanguarda. Hoje, nosso maior desafio está na modernização das escolas, na universalização do acesso à Educação Infantil e na aprovação do Plano Nacional de Educação” Jaime Teixeira, atual tesoureiro e ex-presidente da FETEMS (2005 a 2008, 2009 a 2012)
“Reconheço que a história dessa entidade passa por momentos únicos, como a construção da nossa CASSEMS, que nasceu praticamente dentro do dia a dia dessa Federação, que sempre extrapolou os muros da batalha pela valorização dos profissionais da Educação e por um ensino público de qualidade, indo além, na luta por um mundo melhor” Ricardo Ayache Presidente da CASSEMS
“Nestes 35 anos, a FETEMS tem sido um exemplo do que é um sindicalismo que não é apenas corporativo, mas que discute os grandes temas deste país. Defensora intransigente da escola pública e do direito dos trabalhadores em Educação, a FETEMS tem se engajado na luta pela reforma agrária e, mais recentemente, tem se envolvido, muito fortemente, na luta em defesa das terras indígenas. É um sindicalismo que deve ser referência e que mostra que nós, trabalhadores em Educação, temos interesses gerais no nosso país e defendemos uma mudança de qualidade na sociedade brasileira. Parabéns, FETEMS. Continue nessa caminhada, luta daqueles que sonham por um país melhor para todos” Roberto Leão, presidente da CNTE
“Queremos uma escola que interaja com a comunidade, que seja participativa, onde, de fato, possamos formar cidadãos com condições de defender seus direitos. Ao meu ver, a FETEMS tem cumprido muito bem esse papel de lutar por uma Educação melhor nestes 35 anos de sua existência. Também destaco que, quando a Federação sai de sua área de atuação específica e vai para a luta mais ampla, quando os direitos da sociedade estão envolvidos, em defesa do povo, cumpre um papel social fundamental. O trabalho da atual gestão merece ser destacado” Atiliana Brunetto, dirigente do MST/MS Revista ATUAÇÃO | Março 2014 |
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ENTREVISTA
Desafios e superação no comando da maior entidade sindical de MS Roberto Botarelli fala da realidade sindical e aponta as possibilidades da Educação Pública com relação à valorização dos trabalhadores e à qualidade do ensino
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nos de luta, dificuldades de organização, vitórias, avanços e conquistas compõem a história da FETEMS ao longo de seus 35 anos de existência. À frente da entidade responsável por representar uma categoria composta por mais de 25 mil trabalhadores, o presidente da Federação avalia a trajetória do movimento e avisa: precisamos de pessoas e governantes que acreditem no poder transformador da Educação. Confira a entrevista: Revista Atuação – Como é estar à frente da maior entidade sindical do estado? Roberto – Com certeza é emocionante, motivo de muito orgulho e satisfação. Nunca pensei que chegaria até aqui. Em 1984, mudei para Mato Grosso do Sul para lecionar. Em 1993, em Aquidauana, entrei para o movimento sindical. Já tinha uma admiração pelo movimento no estado, era organizado e atuante. Hoje, a FETEMS, que é o resultado da perseverança, organização e 26 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
união dos trabalhadores em Educação, completa 35 anos em defesa da Educação Pública e da valorização profissional. Além de me sentir orgulhoso, sinto-me responsável por representar mais de 25 mil filiados. São trabalhadores e trabalhadoras que depositam confiança em nosso trabalho. Acreditam na nossa disposição e na nossa força para lutar em defesa e pela garantia dos nossos direitos. Enquanto estiver à frente da FETEMS, vou continuar trabalhando ao lado dos meus colegas de sindicato, por uma Educação Pública de qualidade, por respeito, cidadania e igualdade. Quero agradecer a todos e a todas que se dispuseram a caminhar ao meu lado e acreditam no potencial que a Educação tem para melhorar o mundo. Revista Atuação – A organização e a luta já renderam grandes conquistas aos trabalhadores da Educação. Do início da FETEMS para hoje, quais os principais marcos? Roberto – Lembro que a
gente trabalhava sem saber quando o pagamento ia sair e como pagaríamos nossas contas. Nos pátios das escolas, tinha um amontoado de bicicletas, que era o meio de transporte dos professores e dos demais funcionários de escola. Professor não tinha crédito em lugar nenhum. Hoje, em virtude das lutas da categoria, a realidade dos trabalhadores em Educação é outra. Recebemos nossos salários em dia e temos um plano de cargos e carreiras. A Lei Complementar nº 87, sancionada no governo Zeca do PT, foi uma das maiores conquistas da nossa categoria. A partir daí, podemos dizer que os trabalhadores passaram a ter uma perspectiva melhor de vida. Já é possível ter um carro, uma casa e, acima de tudo, temos dignidade. Mais recentemente, conquistamos o Piso Salarial, 1/3 da hora-atividade, a unificação da carreira e o pagamento do Piso Salarial por uma jornada de 20 horas semanais. São direitos que beneficiam a Educação como um todo, os trabalhadores têm mais valori-
zação profissional, e os alunos têm mais qualidade no ensino. E assim, aos poucos, com muita luta e perseverança vamos mudando a “cara” da Educação Pública para melhor. Revista Atuação – Entre as conquistas mais recentes e marcantes está o pagamento do Piso Nacional para jornada de 20 horas. Como o senhor avalia essa vitória? Roberto – Essa vitória é única na trajetória da FETEMS. Somos o primeiro estado brasileiro a conseguir implantar o Piso Salarial para os professores com base em jornada de 20 horas. A implantação é gradativa e vai acontecer em quatro anos. No final de quatro dos anos, o professor terá 100% de aumento. A conquista do Piso para 20 horas, assim como outros direitos que já efetivamos ao logo da nossa trajetória de 35 anos, demonstra a força da nossa categoria e da nossa entidade. É preciso ressaltar que só chegamos até aqui porque acreditamos que era possível mudar. O Piso Salarial não é apenas uma conquista dos trabalhadores em Educação, é uma conquista de toda a sociedade. Revista Atuação – Ao longo do tempo, e também em decorrência das próprias conquistas e das mudanças de conjuntura, as bandeiras de luta, os desafios vão se transformando. Atualmente, qual a prioridade na agenda sindical da educação? Roberto – Penso que a agenda sindical de hoje deve ultrapassar os limites das questões trabalhistas. Isso não quer dizer que devemos deixar o nosso foco de lado, que é a qualidade do ensino público e a valoriza-
ção dos profissionais. Contudo, a educação está inserida num contexto muito amplo, que envolve diferenças e diversidades sociais, econômicas, religiosas, étnicas, sexuais, etc. Como vamos debater qualidade na educação se não estivermos atentos a essas questões? Sendo assim, é preciso que a nossa pauta priorize também a formação de uma escola inclusiva, preparada para atender o perfil do aluno do século XXI e as demandas da sociedade globalizada. É preciso, acima de tudo, que a escola seja um local atrativo e interessante para os estudantes.
anos de muita persistência e luta. Muitos homens e mulheres doaram suas vidas em prol de um ideal, em prol da educação e em prol de uma sociedade melhor, sem diferenças, e com mais oportunidades. Isso não pode ser esquecido. É preciso esclarecer que sempre haverá muito a ser feito pelos trabalhadores e pela sociedade.
Revista Atuação – Em sua opinião, qual a maior dificuldade para a organização interna da categoria?
Roberto – Nesse sentido, nada é unânime. Temos representantes sérios, batalhadores, dedicados e comprometidos com as questões sindicais. E, por outro lado, temos representantes que se beneficiam do status sindical. E isso acontece em todos os setores da sociedade, vivemos ao lado de pessoas boas e outras nem tão boas assim. Mas minha referência são os líderes sérios e comprometidos. Temos companheiros brilhantes, que só agregam valores ao nosso trabalho. Prova disso é o Fórum dos Movimentos Sindicais Cutistas e Sociais de Mato Grosso do Sul, que se reúne a cada 15 dias para debater pautas da classe trabalhadora do campo e da cidade. O Fórum já realizou diversas ações, como a Marcha da Classe Trabalhadora, que aconteceu em julho do ano passado, levando às ruas de Campo Grande mais de 35 mil pessoas. Sempre vou acreditar nessas pessoas que lutam e seguem firmes no propósito da ética.
Roberto – Apesar de a nossa entidade ter um grande potencial de mobilização, com 72 sindicatos espalhados pelo estado e mais de 25 mil trabalhadores filiados, percebemos, ao longo dos anos, um certo desinteresse da categoria pelas questões sindicais. Vem diminuindo o número de filiados e a participação deles nos sindicatos. Isso ocorre justamente pelas mudanças de conjuntura. Antes, quando a pauta era o bolso do trabalhador, as questões salariais, era mais fácil mobilizar. O trabalhador era ativo no sindicato e brigava por seus direitos. Hoje, com a carreira mais estabilizada os trabalhadores estão mais distantes das suas entidades representativas. Isso não é uma característica apenas do movimento da educação, mas, sim, do movimento sindical brasileiro. O que precisamos mostrar para os novos trabalhadores e para os que estão desacreditados, é que tudo o que conquistamos é fruto de
Revista Atuação – As lideranças sindicais de Mato Grosso do Sul têm consciência do papel que exercem perante a categoria e na sociedade de uma forma geral?
Revista Atuação – Como o senhor avalia as transformações políticas em Mato Grosso Revista ATUAÇÃO | Março 2014 |
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do Sul, nos últimos anos? Roberto – Nós vivemos em um estado historicamente latifundiário e coronelista, que passou anos na mão de uma oligarquia de direita, que pensava muito mais no capital do que no social. Com o governo Zeca do PT, Mato Grosso do Sul teve um avanço significativo no que tange às políticas sociais, populares e inclusivas. Organizamos a pauta dos trabalhadores, que tiveram vários avanços, como salários em dia e uma ampliação significativa de seus direitos. Depois, entrou o atual governo, que possui suas características de direita, mas não ficou estagnado. Fomos para as ruas várias vezes e conseguimos nosso espaço para negociar. Com isso, conseguimos garantir direitos que entram para a história da FETEMS, como a unificação da carreira, a implantação de 1/3 de hora-atividade e a política do Piso Salarial para jornada de 20 horas. Contudo, não podemos deixar de destacar que existem muitas questões a serem tratadas, como a reforma agrária e a demarcação de terras indígenas. São pautas que precisam ser discutidas com urgência e não podem ser ignoradas pelo poder público e nem pela população. Revista Atuação – Quais as perspectivas para a educação neste ano de eleições? Roberto – Que seja prioridade para os nossos candidatos, que não seja apenas uma “promessa” de campanha. Queremos que a Educação Pública inclusiva, laica e de qualidade seja a pauta principal no desenvolvimento desse país. Não queremos mais passar anos lutando pela manutenção de uma lei, como a Lei do Piso Salarial Nacional, que 28 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
foi regulamentada em 2008 e, até hoje, sofre “ameaças” dos nossos governantes, que se recusam a cumprir a legislação na íntegra. Esperamos, ainda, que a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) esteja na lista de prioridades dos nossos candidatos. O PNE foi construído na Conferência Nacional de Educação (CONAE) e enviado pelo governo federal ao Congresso em 15 de dezembro de 2010. Era para estar vigorando desde 2011 e até agora os nossos parlamentares não conseguiram entrar em um consenso para a sua aprovação. Queremos a educação no topo das prioridades. Queremos sair das promessas e ir para a ação concreta. Revista Atuação – Qual a sua avaliação do governo Dilma? Roberto – Ao longo dos últimos anos, o Brasil passou por enormes transformações. O país foi palco de profundas mudanças desde que elegeu o Partido dos Trabalhadores. Compreender e refletir esse legado tornou-se uma tarefa incontornável para pensar os rumos do país. Nesses últimos anos, o Brasil combateu a ditadura política clássica neoliberal, democratizou os direitos sociais, mas, para avançar, precisa acabar com as ditaduras do dinheiro, da terra e da palavra, além de aprimorar o sistema eleitoral. Lula deixou um grande legado a Dilma. Um governo é continuidade do outro, uma espécie de reflexo, com suas diferenças de atuação. Penso que a presidenta avançou em questões significativas, como o ensino técnico profissionalizante, o programa Mais Médicos, as políticas sociais, de relação internacional,
enfim, questões de extrema importância. Mas ainda temos gargalos sociais, que passam pelo transporte público, por políticas de juventude, pelas reformas políticas, judiciais e de comunicação, pelos conflitos de terra, enfim, questões que precisam ser solucionadas com políticas públicas sérias e emergenciais. Revista Atuação – O que falta para que o país tenha uma Educação Pública de qualidade? Roberto – Faltam pessoas que acreditem que a educação é transformadora, que por meio dela é que vamos construir um mundo melhor. Precisamos de governantes que acreditem em uma escola gratuita, capaz de trabalhar um currículo significativo, preparada para que o ensino e a aprendizagem de fato se efetivem, em que a proposta político-pedagógica esteja alicerçada a uma metodologia crítica, capaz de desafiar o educando a pensar criticamente a realidade social, política e histórica. Costumo citar Paulo Freire, que expressa que a escola deve ser um lugar de trabalho, de ensino, de aprendizagem. Um lugar em que a convivência permita estar continuamente se superando, porque a escola é o espaço privilegiado para pensar e agir. Com isso, fica claro que o que falta em nosso país é mais investimento em uma educação para formar seres críticos, escolas com suas portas abertas para a comunidade, inclusiva, respeitando as diferenças. Falta-nos também profissionais valorizados, com condições dignas e justas de trabalho. Unindo valorização e qualidade, sem dúvida, teremos o Ensino Público que sonhamos para o nosso país.
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TRADIÇÃO
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Educandário Getúlio Vargas comemora 70 anos dedicados à missão de prevenir, promover e proteger
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M
aria Neuma Porfírio de Moura passa o dia bordando. Aprendeu o ofício ainda menina, no Educandário Getúlio Vargas, local que conhece como lar desde que os pais a deixaram lá, na companhia de mais seis irmãos. Segundo ela, a família era do interior de Mato Grosso do Sul. Gente pobre, sem recursos para educar tantos filhos. A solução encontrada pelos pais foi deixar os pequenos no Educandário, em Campo Grande, para que pudessem estudar e, quem sabe, prosperar na vida. E assim foi. Maria e seus irmãos passaram parte da vida dentro de uma casa imensa, cheia de quartos, com um quintal enorme, na companhia de muitas outras crianças que ali chegavam. Histórias que se misturavam e formavam uma grande família. Ali estudaram, cresceram, aprenderam profissões e seguiram na vida. Com frequência, voltam para visitar o lar da infância. Outros, como Maria, já com 42 anos, decidiram ficar e ajudar a receber as novas gerações que chegavam. Há pouco menos de uma década, essas instituições eram conhecidas como orfanatos ou internatos. Em decorrência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e demais legislações vigentes, os orfanatos foram ex-
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tintos, mudaram o perfil e a nomenclatura. Com as novas diretrizes, as entidades de amparo tiveram que se readaptar para atender crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Em 2006, a instituição suspendeu o programa de internato e passou a oferecer a Educação Infantil, em período integral e o Apoio Socioeducativo, em meio período. Atualmente, o Educandário atende 284 crianças e adolescentes. História A Sociedade Eunice Weaver de Campo Grande, mantenedora do Educandário Getúlio Vargas, completou 70 anos em 31 de outubro de 2013, mantendo a missão de “prevenção, promoção e proteção da criança e do adolescente, qualificando suas vidas para futuros cidadãos conscientes e dignos”. É uma entidade beneficente, sem fins lucrativos. Foi fundada com o objetivo inicial de abrigar os filhos sadios de pais que sofriam com o “Mal de Hansen”. O tratamento da doença, popularmente conhecida como lepra, era feito no Hospital São Julião e em outras entidades de apoio aos portadores de hanseníase, como a Sociedade de Integração e Reabilitação da
Pessoa Humana (SIRFHA). Com a doença praticamente erradicada, o Educandário passou a receber crianças carentes, vindas de comunidade rurais, vítimas de abandono e também vindas de outros estados. A assistente social da entidade, Daniela Maria Rolim, fez um levantamento nos registros e constatou que mais de 1.300 crianças viveram na instituição, no período de internato. Contudo, Daniela acredita que o número exato, ao longo de sete décadas, seja bem maior. “Eles chegavam aqui ainda bebês, outros maiores e ficavam até completar 18 anos. Hoje, na instituição, temos mais de 10 funcionários que foram internos e agora trabalham aqui. Muitos ex-internos fizeram o casamento deles aqui. Aqui é a casa deles. É aqui que eles vêm visitar. O programa de internato era uma atividade muito bonita, que beneficiou várias pessoas”, comenta. É importante ressaltar que muitas crianças matriculadas na instituição na época do regime de internato tinham família e, regularmente, recebiam visitas dos pais. Nem todas se encontravam em situação de abandono, mas eram de famílias carentes, que não dispunham de condições financeiras para educar seus filhos e viam o Educandário como uma
esperança de um futuro melhor. Presidente da entidade há mais de 40 anos, Nelly Maksoud Rahe lamenta o fim do internato e comenta: “O Educandário sempre foi uma entidade respeitada. Nós fizemos um trabalho importante de integração dessas crianças com a sociedade. Quando assumimos a direção, as crianças que aqui moravam eram arredias. Quando recebíamos visitas, elas se escondiam, tínhamos que subir aos quartos e pedir que elas descessem e recebessem os visitantes. Com o tempo, isso foi acabando. Elas passaram a ser mais sociáveis e ajudavam a organizar os nossos eventos, como a festa de São João. Nossa educação sempre foi baseada nos sentimentos de amor, carinho e no respeito ao próximo. Eram todos nossos filhos. Inclusive, eduquei meus filhos aqui dentro, eles participavam de todas as atividades. Hoje, a educação mudou, o mundo de uma forma geral mudou”. De acordo com Nelly, a disciplina exigida no Educandário resultou em bons frutos: “Nós achávamos que éramos rígidos, mas o resultado que tivemos com os nossos alunos foi muito bom. Sempre recebemos homenagens dos nossos ex-alunos, eles são gratos pela oportunidade de vida que receberam aqui”. Antes de assumir a direção do Educandário, Dona Nelly já era voluntária na instituição, que, na época, era administrada pelo Rotary Club. “Assumi para ficar apenas seis meses, fui ficando e ficando, até que tudo isso se tornou minha vida. Não me arrependo de nada e faria tudo novamente se fosse necessário”, afirma. Tempo integral
recursos O Educandário Getúlio Vargas conta com aproximadamente 30 trabalhadores voluntários e mais de 40 funcionários. A instituição é mantida com recursos próprios, vindos da venda de artesanatos, biscoitos, bazares, doações e promoções de eventos beneficentes. Além disso, o Educandário conta com alguns convênios municipais. Música “En Canto” é o nome do coral que há duas décadas encanta o público. Mais de 50 crianças e adolescentes compõem o grupo, que realiza diversas apresentações ao longo do ano. As aulas de música trabalham a autoestima e o desenvolvimento artístico-cultural. A oficina de violão, que teve início em 2012, tem incentivado novos talentos.
assistência Os alunos do Educandário recebem atendimento médico, odontológico, psicológico e fonoaudiológico. A entidade também conta, diariamente, com uma técnica de enfermagem.
cursos Os jovens têm acesso a cursos profissionalizantes, como as oficinas de informática, padaria, balas e biscoitos, bordado e embelezamento.
O Getúlio Vargas é uma das poucas instituições educacionais que oferecem a Educação Infantil Revista ATUAÇÃO | Março 2014 |
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“Assumi para ficar apenas seis meses, fui ficando e ficando, até que tudo isso se tornou minha vida. Não me arrependo de nada e faria tudo novamente se fosse necessário” Nelly Maksoud Rahe, presidente do Educandário há 40 anos
“Antes de entrar aqui, eu ficava em casa, sem fazer nada. Quando vim para cá, aos 15 anos, vi a oportunidade na minha frente e aproveitei tudo” Paulo Fernando da Silva Nogueira, 19 anos, ex-aluno Educandário 34 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
em tempo integral para crianças com até 6 anos de idade. Com as novas diretrizes educacionais, o período integral nas escolas públicas agora é ofertado apenas para crianças com até 3 anos e 11 meses. Para a assistente social Daniela, isso foi extremamente prejudicial para a população de baixa renda que não dispõe de recursos para pagar um escola particular de tempo integral. “Os pais precisam trabalhar e essas crianças ficam onde? É preciso rever essa política. Aqui nós recebemos pais angustiados atrás de vagas para seus filhos. Infelizmente, não temos estrutura para atender a todos. Geralmente, as crianças matriculadas aqui podem ficar até completarem 18 anos. Então, quase não abrimos novas vagas. Novo tempo Mesmo não trabalhando mais com o programa de internato, o Educandário continua atendendo crianças e jovens carentes. Na Educação Infantil, a instituição atende crianças com idade entre 18 meses e 6 anos. O Apoio Socioeducativo é voltado a crianças e jovens entre 7 e 17 anos. As duas modalidades de ensino estão associadas a uma série de projetos que enriquecem o currículo escolar do aluno e contribuem para o desenvolvimento saudável. “Os esportes, como o karatê e a capoeira, trabalham a disciplina e o respeito com os colegas. Para todos os alunos e para todos os setores da instituição, a regra é sempre a mesma: disciplina e respeito”, explica a diretora Nelly. Além das aulas de karatê e capoeira, a instituição também oferece aulas de Educação Física, que acontecem em parceria com o curso de Educação Física da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB).
Os jovens têm também acesso a cursos profissionalizantes, como as oficinas de informática, padaria, balas e biscoitos, bordado e embelezamento. Além disso, duas vezes na semana, a biblioteca da instituição é o ponto de encontro da meninada. Com o apoio de duas voluntárias, são desenvolvidas atividades que estimulam o gosto pela leitura. O ensino no Educandário é tradicional. As meninas têm aulas de boas maneiras, aprendem a se arrumar e a se maquiar de acordo com a idade e também aprendem a se portar em uma entrevista de trabalho. De acordo com a diretora Nelly, o objetivo é que os alunos sejam independentes: “Os cursos profissionalizantes que nós oferecemos garantem uma autonomia financeira aos jovens. Desta forma, eles podem se garantir profissionalmente e se organizar para cursar o Ensino Superior.” Foi no Educandário que Paulo Fernando da Silva Nogueira, 19 anos, aprendeu a profissão de padeiro e, logo em seguida, conseguiu um emprego em uma padaria de renome na cidade. Paulo foi aluno do programa Socioeducativo. Estudava num período e
no outro ia para o Educandário. Para o rapaz de família humilde, o primeiro emprego foi uma verdadeira conquista. “Antes de entrar aqui, eu ficava em casa, sem fazer nada. Quando vim para cá, aos 15 anos, vi a oportunidade na minha frente e aproveitei tudo”, diz. Paulo não perdeu tempo. Além do curso de padaria, fez todos os demais cursos oferecidos pela instituição. Atualmente, está cumprindo o serviço militar, no 3º Batalhão de Aviação do Exército, pretende seguir carreira e, em breve, fazer uma faculdade. Biscoitos e bordados A direção do Educandário sempre precisou ser criativa para manter as portas abertas. Despesa alta e receita suada, vinda de donativos, algumas parcerias e muito trabalho. Nelly conta que quando a entidade atendia os filhos dos portadores de hanseníase, as doações eram maiores. “As pessoas se sensibilizam mais com a questão da saúde”, avalia. Diante das dificuldades, o jeito foi inovar. A fabricação de biscoitos passou de amadora para profissional, sem perder as ca-
racterísticas de um bom biscoito caseiro. As alunas aprendiam as receitas e passavam para as demais. A produção começou e ser vendida para ajudar nas despesas do internato. Hoje, os biscoitos do Educandário são tradição e já completaram 33 anos adoçando paladares. Todas as funcionárias que trabalham no setor de produção de biscoitos são ex-alunas da entidade e continuam a passar as receitas adiante por meio dos cursos profissionalizantes. Da mesma forma seguiu a confecção de bordados. Pontos ricos em detalhes, que transformam peças de cama, mesa e banho em glamorosos presentes. Maria Neuma, a personagem do início da reportagem, chegou ao Educandário quando tinha 10 anos e, de lá para cá, não parou mais de bordar. É funcionária da instituição e não pretende deixar o local nem a profissão. “O primeiro ponto que aprendi a fazer foi o ponto Paris, depois eu aprendi o ponto Cruz,” relembra. Os biscoitos e os bordados estão à venda na butique Açúcar e Afeto, na Rua Rio Grande do Sul, 387, Jardim dos Estados, em Campo Grande.
“Hoje, na instituição, temos mais de 10 funcionários que foram internos e agora trabalham aqui. Muitos ex-internos fizeram o casamento deles aqui. Aqui é a casa deles. É aqui que eles vêm visitar. O programa de internato era uma atividade muito bonita, que beneficiou várias pessoas” Daniela Maria Rolim, assistente social do Educandário
“O primeiro ponto que aprendi a fazer foi o ponto Paris, depois eu aprendi o ponto Cruz” Maria Neuma Porfírio de Moura, 42 anos, ex-interna do Educandário e funcionária da instituição
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ESCOLA PANTANEIRA
Ensinando a preservar e preservando o ensinar Com forte viés ambiental, sustentado na educação e na proteção social dos ribeirinhos, a Acaia Pantanal leva uma moderna proposta pedagógica a uma das regiões mais isoladas do mundo
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té onde a parceria entre poder público e terceiro setor pode ir pela educação? Com uma administração municipal disposta a priorizar o ensino e uma instituição imbuída de uma moderna proposta pedagógica, essa parceria tem ido bem longe em Corumbá (MS), município na fronteira com a Bolívia. No Pantanal sul-mato-grossense, onde só se chega de barco ou avião, a educação acontece e favorece uma população que vive geograficamente isolada. As famílias ribeirinhas não vivem em vilas ou agrupamentos, mas separadas umas das outras, entre campos, salinas, cordilheiras, capões, corixos e vazantes, 36 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
à beira do rio, mediante condições naturais que impedem a construção de estradas e dificultam a instalação de infraestrutura elétrica e de telefonia. Por viver em uma região de constantes cheias, na maior planície alagável de que se tem registro, essa população fica sem acesso a serviços essenciais como educação e saúde. A economia é de subsistência, baseada na pesca artesanal e na coleta de iscas. Em 2006, buscando ampliar sua atuação ambiental, o Instituto Acaia, sediado em São Paulo, vislumbrou no Pantanal a possibilidade de contribuir com a preservação de um dos maiores biomas do planeta, considerado patrimônio natural da humanidade pela Unesco. Os pesquisadores constataram ali um inexpressivo índice de desenvolvimento humano e social, que incluía baixa escolaridade, alto índice de analfabetismo, prática de atividades ilícitas e mazelas, como o alcoolismo, a exploração sexual e a gravidez precoce.
Acaia Pantanal Após dois anos de entrevistas, levantamentos e pesquisas socioambientais, nasceu, em 2008, o Acaia Pantanal. Uma organização social sem fins lucrativos, que tem como objetivo conjugar educação e proteção social aos ribeirinhos e assegurar o desenvolvimento ambiental da região. “Embora tenhamos um viés ambiental muito forte, acreditamos que o homem e o meio em que vive tem de estar unidos. E o homem só atuará em prol do ambiente se tiver instrução. Por isso, a educação para nós é a ferramenta e a base de tudo”, resume Sylvia Helena Bourroul, diretora do Acaia Pantanal. Em 2009, nas instalações da Fazenda Jatobazinho, uma antiga pousada a 90 quilômetros rio abaixo da zona urbana de Corumbá, foi implantada a tão esperada sede da Acaia Pantanal e o núcleo de Ensino Fundamental. O local passou a funcionar como base de quatro programas desenvolvidos pela ONG
na região: Jatobazinho (ensino fundamental); Relações com a Comunidade; Educação para o Trabalho; e Rede de Proteção e Conservação da Serra do Amolar (RPCSA). Escola Itinerante A primeira ação social do Acaia Pantanal foi batizada de Projeto Escola Itinerante. Parte integrante do programa Rede de Proteção e Conservação da Serra do Amolar, essa ação consiste basicamente em um educador percorrendo de barco semanalmente as moradias das famílias ribeirinhas e levando curso de alfabetização a jovens e adultos, orientação pré-escolar às crianças e familiares, biblioteca e brinquedoteca circulantes. Em 2013, os alunos se agruparam em cinco núcleos de trabalho estrategicamente escolhidos em locais que permitem o deslocamento e a participação do maior número possível de pessoas, além do maior tempo de visita. As aulas são semanais, e parte dos livros didáticos de alfabetização é doada pela Prefeitura de Corumbá. Há dois anos nessa função, o educador Hamilton Álvaro Brandão cita os principais desafios
de trabalhar a alfabetização junto à população ribeirinha: “Quase todos os adultos, ou cerca de 90% deles, são analfabetos. As aulas acontecem apenas uma vez por semana em cada núcleo e muitos alunos ainda faltam por priorizar o trabalho para a subsistência da família. Isso atrasa bastante o processo de ensino. Muitos até querem estudar, mas nem sempre podem”, lamenta. As oportunidades de geração de renda das famílias são poucas, sobrevivem basicamente da pesca artesanal e da coleta de iscas, como a tuvira, o caranguejo e o cascudo. É o caso de Romildo, que coletava iscas no Porto Santa Catarina e só aos 30 anos aprendeu a ler e escrever. “O sonho dele era conseguir ler um livro inteiro”, lembra o professor, que se emocionou ao ver o aluno lendo sozinho pela primeira vez. “Com a Escola Itinerante, Romildo realizou seu velho desejo. Agora quer ir além, ler algo maior, com menos figuras e mais textos,” acrescenta o professor. Mais do que permitir o acesso aos livros, a alfabetização tem ajudado os ribeirinhos nas tarefas mais básicas do dia a dia, como ler a bula de um remédio ou a embalagem de um produto, enviar uma carta ou assinar
um documento. “Já vi casos de gente com dor de cabeça tomando anticoncepcional”, relata Hamilton, que faz esse trabalho há dois anos e atende 29 ribeirinhos. “É uma questão de autoestima, de não morrer de vergonha sempre que tem de assinar um papel com a impressão digital e, pior, ser manipulado por pessoas mal-intencionadas por não saber ler um contrato, ou coisa do tipo”, diz. Relações com a Comunidade O programa Relações com a Comunidade tem como objetivo contribuir para o aumento da qualidade de vida da população do entorno da Fazenda Jatobazinho, incluindo alunos e funcionários, por meio de ações de saúde, cidadania e educação. As atividades são realizadas em quatro linhas de ação: Acompanhamento de Ex-Alunos, que garante a continuidade do estudo formal de alunos do Jatobazinho; Saúde e Cidadania, que, por meio de parceria com a Rede Pública de Saúde e com a Marinha do Brasil, promove periodicamente o cadastro no SUS de todos os alunos e atendimento médico, odontológico e sanitário às crianças, educadores e funcionários; Fortalecimento de
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Políticas Públicas, com ações no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA/Corumbá); e Educação e Cultura, com atividades de estudo do meio que apresentam aos alunos de outras unidades do Instituto Acaia a fauna e a flora do local e o contexto social dos ribeirinhos, além do apoio à Orquestra Corumbaense de Viola Caipira. Educação para o Trabalho Segundo a diretora Sylvia Bourroul, vários fatores motivaram a criação do programa Educação para o Trabalho. Um deles foi o desenvolvimento da autoestima das mulheres ribeirinhas a partir de um novo olhar para objetos do cotidiano. Surgiram daí as aulas de pintura, artesanato e bordado, sempre utilizando elementos fartos na região, como o couro de peixe, o urucum e o capim de taboa. O outro fator foi a baixa escolaridade e a falta de capacitação para o trabalho dos jovens que, acostumados à vida isolada da região pantaneira, acabavam se envolvendo em ocupações predatórias ao meio ambiente. Nasceu, então, da parceria com a Fazenda Cai38 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
man, também no Pantanal, o curso técnico de Peão Pantaneiro. “Percebemos que a maioria dos adolescentes e jovens ribeirinhos não almejava trabalhar em São Paulo ou algum outro grande centro, mas sonhava ser veterinário e ter uma criação no rio ou ser peão de boiadeiro. Por isso, a parceria para viabilizar esse curso e, de quebra, resgatar um modo de vida histórico e cultural da região, em harmonia com a natureza”, diz Sylvia. Para ilustrar, ela cita o caso do jovem Benedito, que, aos 14 anos, chegou analfabeto à Fazenda Jatobazinho, mas, com apoio psicológico e pedagógico específico, aprendeu a ler e escrever e concluiu o primeiro ciclo do Ensino Fundamental aos 18 anos. “Após encerrar essa etapa, ele optou por realizar outro sonho, que era o de ser peão de boiadeiro e largar a atividade insalubre de coleta de iscas, que ele praticava antes de ingressar na escola”, lembra a diretora. “Ele não só se formou no curso de peão de boiadeiro, como já foi contratado pela Fazenda Caiman e, agora, além de alfabetizado, tem uma profissão e carteira assinada”, comemora. “A pe-
dido dos ribeirinhos, estamos analisando agora a oferta de cursos de piloteiro e de mecânico de barcos”, acrescenta a diretora. Jatobazinho Às margens do rio Paraguai, as amplas e modernas instalações da Fazenda Jatobazinho contrastam com as acanhadas e humildes residências ribeirinhas avistadas ao longo das duas horas e meia de viagem de voadeira, de Corumbá até o local. São salas de aula amplas, dormitórios confortáveis, biblioteca, filmoteca, laboratório de informática e área de lazer com churrasqueira, piscina e playground, além de uma antena de telecomunicações com link de satélite e uma estação de tratamento de água. Além de polo central de todas as atividades, a Fazenda Jatobazinho funciona como sede do programa de educação curricular da Acaia Pantanal, que oferece o Ensino Fundamental I gratuito a 47 crianças da região do Paraguai Mirim. Fruto de uma parceria com a Prefeitura de Corumbá, por meio da Secretaria de Educação, a Escola Jatobazinho é
integral e atende os alunos em regime de semi-internato. O sistema de ensino é justificado pelo isolamento geográfico, dificuldades financeiras e de locomoção dos ribeirinhos. O material didático e a assessoria pedagógica ficam por conta da Fundação Bradesco, por meio do programa Educa+Ação. A Prefeitura contribui com a cedência e o salário dos professores, além de transporte escolar e combustível, pagamento de piloteiros e complementação da merenda escolar. “A Acaia Pantanal é de suma importância para Corumbá, pois é um exemplo de como o terceiro setor e o poder público, juntos, podem oferecer uma educação de excelência a uma comunidade tão carente”, elogia a secretária municipal de Educação de Corumbá, Roseane Limoeiro. Cerca de 15 funcionários (sendo cinco educadores) trabalham no Jatobazinho, que oferece aos alunos educação curricular durante as manhãs e atividades socioeducativas no período da tarde. “Trabalhamos com horta, artesanato em oficina de barro, expressão corporal, para desinibi-los e es-
timulá-los. Enfim, é a educação holística, no conceito global, que educa, orienta e alavanca o ser humano a partir do próprio conhecimento do espaço e de si mesmo”, explica a psicóloga Dilma Castro Costa, coordenadora administrativa do Acaia Pantanal. Segundo ela — responsável também pela supervisão das rotinas e demais atividades diárias do local —, em um sistema de educação integral e de semi-internato, as crianças aprendem desde a hora em que se levantam até o momento em que vão se deitar. Aprendem, por exemplo, a ter mais cuidado com a higiene pessoal e até a comer educadamente. “Muitas crianças chegam aqui sem saber o que é um vaso sanitário, sem conseguir segurar um garfo e faca, pois comiam com as mãos em suas casas. Aqui aprendem tudo isso e muito mais”, acrescenta ela, que cita as aulas de massa de modelar como uma das atividades lúdicas ministradas na escola para trabalhar a motricidade fina dos alunos de primeira série e o correto manejo com os talheres.
Em busca de desafios, e atraída pela proposta de trabalho da Acaia, a pedagoga Fabiana França Catarino veio de longe, da capital paulista, para o Pantanal, lecionar às crianças ribeirinhas. “É muito interessante trabalhar em um lugar onde o contexto social e regional dos alunos tem um peso tão grande no conteúdo das aulas. Aqui passo atividades educativas sobre o rio, pássaros, barcos, animais, árvores, enfim, tudo o que for relacionado ao mundo deles. Ensino e aprendo o tempo todo”, diz. Segundo Sylvia Bourroul, um trabalho diferenciado como esse nem sempre é compreendido por todos e, às vezes, desperta sentimentos diversos e interpretações equivocadas. “Uma minoria nos acusa de tentar ‘globalizar’ as crianças e adolescentes, como se quiséssemos que elas almejassem outra vida”, diz ela. “Mas nossa ideia é justamente que se apropriem de conhecimentos que ajudem a elas e suas famílias. Não queremos que saiam do rio, mas que voltem com outro instrumental, para uma nova condição de vida”, acrescenta.
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MULHER
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“Existe apenas uma verdade universal, aplicável a todos os países, culturas e comunidades: a violência contra as mulheres nunca é aceitável, nunca é perdoável, nunca é tolerável.” (Ban Ki-Moon, secretário-geral da ONU)
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eja na campanha desenvolvida pelo secretário-geral da ONU, seja em grandes metrópoles, cidades pequenas ou aldeias de países distantes, o tema da violência contra a mulher tem ganhado cada vez mais visibilidade. Ao deixar o espaço da vida privada para se tornar tema de discussão, objeto de políticas e até um problema de saúde pública, a questão mostra sua verdadeira natureza: um fenômeno social que desconhece limites e fronteiras e que existe desde que se estabeleceram as regras do patriarcado e do machismo. Em Mato Grosso do Sul, os primeiros dias de 2014 foram de
Rosely Molina, Titular da DEAM 42 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
noticiários repletos de casos de violência contra a mulher. Violência física, agressão e morte. Vindo num crescente, a média de ocorrências registradas pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) de Campo Grande chegou a cem por dia. Em 2013, a média era de 70 boletins de ocorrência por dia. No ano anterior, 2012, foram registrados 5.550 boletins, com 2.805 inquéritos relatados e 80 estupros. De acordo com a titular da DEAM, Rosely Molina, foram registrados 5.640 boletins de ocorrência em 2013. Do total, 3.022 inquéritos foram relatados e encaminhados ao Ministério Público Estadual (MPE). “Nossa média continua sendo de 70 atendimentos por dia. Mas tivemos dia de atender 112 pessoas”, comenta a delegada. Em 2013, as defensorias especializadas nos direitos da mulher realizaram um total de 6.801 atendimentos em Campo Grande. Com média de 26 casos por dia útil. Em geral, dirige-se ao serviço, que funciona anexo ao Fórum, quem tem vergonha ou medo de levar a denúncia para a delegacia. Ainda no ano passado, 312 homens foram presos em Campo Grande por crimes contra a mulher, como estupro, violência doméstica, lesão corporal e homicídio. É quase uma prisão por dia. Em 2013, a delegacia registrou 72 estupros e seis homicídios. O Brasil tem uma das leis consideradas de excelência para o enfrentamento à violência doméstica. Conhecida como Lei Maria da Penha, a Lei nº 11.340, de agosto de 2006, trata especificamente da questão, tipifica as modalidades da violência contra a mulher (física, psicológica, sexual, moral e patromônial) prevê penas mais severas e também amplia as possibilidades de combate à violência, na medida em que possibilita, por exemplo, a denúncia anônima.
A delegada conta que, com a Lei Maria da Penha, o efeito imediato foi o aumento do número de denúncias. “Antes da lei, em 2004, 2005, nós registrávamos 1.600, 1.700 ocorrências. Quando a lei entrou em vigor, esse número pulou para 4 mil. Significa que as mulheres se sentiram mais amparadas, mais seguras para denunciar. Então, a violência aumentou? Aumentou, como aumentou toda a violência, que hoje é algo alarmante, mas não só a violência contra a mulher, a violência de um modo geral. A violência contra a mulher é algo construído, é um processo muito longo. As conquistas femininas vêm sendo realizadas aos poucos, de pouco tempo para cá. No Brasil, só em 1988, a Constituição deu garantias de direitos para as mulheres. Daí para a frente é que a gente pode considerar que houve avanços realmente. Antes disso, eram coisas pontuais”, avalia. A delegada relata também que, apesar dos avanços, a mulher vítima de violência ainda tem vergonha e medo de denunciar. “Não só por ter que ir a uma delegacia, mas ela tem vergonha porque, primeiro, ela pensa assim: meu Deus, eu errei. É difícil para ela admitir que aquela pessoa que ela amou, que ela ama, que é o companheiro dela, que é o pai dos filhos dela, é que é o agressor. Ela pensa que ‘escolheu errado’. E não é isso, não é ela que tem problema, é a pessoa violenta que tem problema. Tem o lado financeiro, tem o lado do ‘o que as pessoas vão dizer se eu me separar’, além do medo. Porque o medo do próprio companheiro é uma coisa muito forte. Equivocadamente, ela tem medo de denunciar e ele se tornar ainda mais violento; ela acha que, se denunciar, ele vai ficar pior, vai agravar a prática da violência. E não é. Se ela denunciar, a violência vai cessar”, afirma.
Para Rosely Molina, a maior arma para combater a violência doméstica é a informação. “As pessoas têm que ter conhecimento da lei, dos mecanismos que existem dentro da lei, do aparato que o Estado tem para defender e ajudar essas mulheres. E não é só a delegacia. Nós temos uma rede de atendimento que funciona, mas é preciso que as pessoas cheguem até nós para buscar ajuda”, avalia. A delegada afirma também que o ciúme é um elemento recorrente nas histórias das mulheres vítimas da violência doméstica. “Se não for minha, não vai ser de mais ninguém!” De acordo com Rosely Molina, essa é a frase que mais se ouve dentro das delegacias, nos relatos feitos pelas vítimas. “Elas frequentemente contam que os homens dizem isso. Mas aí, é preciso traduzir o que é esse ciúme. O ciúme é posse. O homem fala ‘é minha’, porque ele acha que é dono da mulher, que pode dispor do corpo e da vida dela da maneira que lhe convier. E isso se dá por conta do machismo, de uma coisa que já está incorporada no senso comum”, diz. Informação e reflexão A professora Ana Maria Gomes, doutora em Sociologia, é professora aposentada da Universidade Federal de Mato Groso do Sul (UFMS) e há muito trabalha com as questões de gênero. Para ela, a mudança necessária passa, sim, pela informação, mas requer um entendimento mais profundo das causas da violência. “A gente trabalha com relações sociais. E essas relações sociais são imbuídas de poder, são desiguais, não são igualitárias. E na relação social que existe entre homens e mulheres, nas chamadas relações de gênero, as mulheres têm uma condição de subalternidade em relação aos
homens. Dá para perceber isso em coisas assim bem simples, como quando é o marido que diz o tamanho da saia que ela vai usar, se ela pode cortar o cabelo ou não. Enfim, a gente sabe — e pode ver no dia a dia — que um homem, um marido, também se sente muito à vontade e está legitimado para depreciar a sua mulher ou para gritar com ela em público. Nessas relações desiguais, o homem se sente legitimado em relação à mulher e em relação à própria sociedade para ser violento”, diz Ana Maria. A professora concorda que, apesar dos avanços, as mulheres ainda têm dificuldade para denunciar e convida a uma reflexão: “Por um lado, existem muitas ações de falar para a mulher que procure a delegacia, que procure centro de atendimento, mas ainda não existe um trabalho de mostrar para as mulheres por que é que isso ocorre. Em geral, elas pensam ‘bom, dessa vez vai dar certo’; elas acham que ele vai mudar, mas a gente sabe que, daqui a pouco, tudo começa de novo. E isso, dentro de uma perspectiva de análise sociológica, tem a ver com o próprio lugar que a mulher e o homem têm na sociedade. Então essa relação de poder não é só o homem dizer para a mulher o que ela vai fazer, se ela pode ou não pode, mas é o conjunto da sociedade ser preparado para dar à mulher esse lugar de subalternidade e esse lugar de poder para o homem.” Para a professora, o caminho é educar principalmente as mulheres, “porque são elas que vão sair dessa situação de violência”: “Nessa relação social, de marido e mulher, ela precisa entrar já se fazendo respeitar, já tendo consciência de que ela é uma cidadã com direitos, que tem direito à igualdade. E as pessoas confundem um pouco achando que as mulheres querem ser iguais aos homens, mas não se trata disso.
ESTRUTURA DA DELEGACIA A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) de Campo Grande conta atualmente com: • 3 delegadas • 5 escrivãs • 10 investigadores • 1 psicóloga • 2 assistentes sociais Além de estagiários, em número variável, de vários setores.
DENUNCIE A VIOLÊNCIA Os casos de violência contra a mulher podem ser denunciados, inclusive anonimamente, por qualquer pessoa. Para denunciar, ligue: • 180 Disque-denúncia nacional • 3384-1149 / 3384-2946 DEAM Campo Grande
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chega a tocar, a fazer com que as pessoas reconheçam no seu cotidiano as relações desiguais.” Pesquisa mostra visão da sociedade sobre violência contra a mulher
Ana Maria Gomes, doutora em Sociologia
Somos biologicamente e anatomicamente diferentes, mas essa diferença não justifica a desigualdade. Nós somos diferentes, não desiguais. Mas as próprias mulheres não têm isso claro. Essas relações sociais não ocorrem só de uma direção para outra. Elas implicam duas pessoas, grupos, não são construídas apenas pelos homens, mas pelas pessoas que compõem a sociedade. E a sociedade é composta por homens e mulheres.” Quanto ao papel da educação na transformação dessa realidade, Ana Maria também faz um alerta: “A educação só vai funcionar aí se trabalhar bem essas questões, que ainda são trabalhadas de maneira muito precária. As próprias mulheres professoras ainda têm um comportamento dentro dos valores da desigualdade. O que precisa ser feito é um trabalho em profundidade. E o que a gente vê é pontual: palestra, oficina de dois dias... e nada vai mudar só com isso. Eu sou muito crítica com relação a algumas coisas governamentais, seja em que nível for, sobre o verdadeiro impacto disso. Sou muito crítica, porque não 44 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
Uma pesquisa de opinião realizada ano passado pelo Data Popular e pelo Instituto Patrícia Galvão revelou que 7 em cada 10 entrevistados consideram que as brasileiras sofrem mais violência dentro de casa do que em espaços públicos, sendo que metade avalia ainda que as mulheres se sentem de fato mais inseguras dentro da própria casa. Os dados revelam também que o problema está presente no cotidiano da maior parte dos brasileiros: entre os entrevistados, de ambos os sexos e todas as classes sociais, 54% conhecem uma mulher que já foi agredida por um parceiro e 56% conhecem um homem que já agrediu uma parceira. E 69% afirmaram acreditar que a violência contra a mulher não ocorre apenas em famílias pobres. Vergonha e medo de ser assassinada são percebidas como as principais razões para a mulher não se separar do agressor. A pesquisa aponta ainda que a maioria dos homens concorda que bater na parceira deve ser crime. “Aí temos um dado positivo: 84% dos homens acham que não devem bater na parceira; isso é uma explicitação de que bater na parceira é, no mínimo, errado. E certamente muitos desses homens batem na parceira, e aí existe a conhecida distância entre o que se diz e o que se faz. De alguma maneira, em função da grande divulgação e da grande aceitabilidade da Lei Maria da Penha, o politicamente correto é dizer que não se deve bater na parceira. Já a mudança cultural é um processo mais longo; é difícil imaginar que em seis
ou sete anos da lei o machismo acabaria”, comenta a advogada Leila Linhares Barsted, da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia). A pesquisa completa está disponível em www.agenciapatriciagalvao.org.br. Número de assassinatos não diminuiu Em setembro passado, o Instituto de Políticas Econômicas Aplicadas (IPEA) divulgou os resultados de uma pesquisa sobre o feminicídio no Brasil, mostrando que, entre 2001 e 2011, a cada uma hora e meia, uma mulher morreu de forma violenta no Brasil. Foram 5.664 mortes por ano, 472 por mês, 15 por dia. Cerca de 40% de todos os assassinatos de mulheres foram cometidos por um parceiro íntimo. O termo feminicídio refere-se ao assassinato de mulheres em decorrência de elas serem simplesmente… mulheres! Trata-se de uma violência extrema que acontece dentro de um contexto de relações sociais de gênero, em que o homem — geralmente atual ou ex-companheiro — entende que tem legitimidade para tirar a vida de alguém porque esta pessoa seria sua propriedade ou um “ser inferior” a ele. Tramita no Congresso Nacional uma proposta para alterar o Código Penal, inserindo o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, “como uma forma extrema de violência de gênero contra as mulheres”. No período analisado pela pesquisa IPEA, estima-se que tenham ocorrido mais de 50 mil feminicídios. Outra conclusão é que a Lei Maria da Penha não contribuiu para reduzir o número de assassinatos de mulheres. Segundo o relatório, as taxas de mortalidade por 100 mil mulheres foram 5,28 no período 2001-2006 (antes da
PELO MUNDO “A violência contra as mulheres não está confinada a uma cultura, uma região ou um país específicos, nem a grupos de mulheres em particular dentro de uma sociedade. As raízes da violência contra as mulheres decorrem da discriminação persistente contra as mulheres”, informa a ONU, na página da campanha UNA-SE pelo fim da violência contra a mulher (http://www.onu.org.br/unase/). Estima-se que cerca de 70% das mulheres sofram algum tipo de violência no decorrer da vida. E, de acordo com dados do Banco Mundial, as mulheres de 15 a 44 anos correm mais risco de sofrer estupro e violência doméstica do que de morrer de câncer, acidentes de carro, guerra e malária.
A forma mais comum de violência experimentada pelas mulheres em todo o mundo é a violência física praticada por um parceiro íntimo, em que as mulheres são surradas, forçadas a manter relações sexuais ou abusadas de outro modo. Diversas pesquisas mundiais apontam que metade das mulheres vítimas de homicídio é morta pelo marido ou parceiro, atual ou anterior. Na Austrália, no Canadá, em Israel, na África do Sul e nos Estados Unidos, 40% a 70% das mulheres vítimas de homicídio foram mortas pelos parceiros, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. Na Colômbia, a cada seis dias uma mulher é morta pelo parceiro ou ex-parceiro.
lei) e 5,22 em 2007-2011 (depois). Houve apenas um pequeno decréscimo da taxa em 2007, imediatamente após a vigência da lei, quando, possivelmente, a campanha para divulgá-la foi mais intensa. Veja alguns outros resultados da pesquisa IPEA sobre assassinato de mulheres no Brasil: • Os estados com maiores taxas foram: Espírito Santo (11,24), Bahia (9,08), Alagoas (8,84), Roraima (8,51) e Pernambuco (7,81). Por sua vez, taxas mais baixas foram observadas no Piauí (2,71), Santa Catarina (3,28) e São Paulo (3,74). • Mulheres jovens foram as principais vítimas: 31% estavam
na faixa etária de 20 a 29 anos e 23% de 30 a 39 anos. Mais da metade dos óbitos (54%) foram de mulheres de 20 a 39 anos. • No Brasil, 61% dos óbitos foram de mulheres negras, que foram as principais vítimas em todas as regiões, à exceção da região Sul. Merece destaque a elevada proporção de óbitos de mulheres negras nas regiões Nordeste (87%), Norte (83%) e Centro-Oeste (68%). • A maior parte das vítimas tinha baixa escolaridade, 48% daquelas com 15 ou mais anos de idade tinham até 8 anos de estudo. • No Brasil, 50% dos feminicídios envolveram o uso de armas de
fogo e 34%, de instrumento perfurante, cortante ou contundente. Enforcamento ou sufocação foi registrado em 6% dos óbitos. Maus-tratos — incluindo agressão por meio de força corporal, força física, violência sexual, negligência, abandono e outras síndromes de maus tratos (abuso sexual, crueldade mental e tortura) — foram registrados em 3% dos óbitos. • 29% dos feminicídios ocorreram no domicílio, 31% em via pública e 25% em hospital ou outro estabelecimento de saúde. • 36% ocorreram aos finais de semana. Os domingos concentraram 19% das mortes. (Com informações do Blog Território de Maíra, no site Carta Capital)
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CULTURA
Aos 77 anos, a “dama do rasqueado” ainda canta na noite de Campo Grande e mora na mesma “casinha velha” Por Laura Samudio Chudecki
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ifícil escrever sobre Delinha e não deixar transparecer a admiração de fã. Desde a infância, escuto sucessos como Malvada, Prazer de Fazendeiro, O Sol e a Lua, Por Onde Andei e tantas outras canções que embalam, ao ritmo do rasqueado, um público que agrega gerações. Délio e Delinha passaram décadas cantando e compondo músicas que se tornaram clássicos da cultura sul-mato-grossense. Ainda hoje, em meio à onda do sertanejo universitário, a Dama do Rasqueado, aos 77 anos, mantém um público fiel, apresentando-se na noite campo-grandense e nos municípios do interior do estado. A idade e as dificuldades que a vida lhe impôs não foram capazes de ofuscar o intenso brilho de seu olhar. Carrega no semblante as linhas da sua história, repleta de altos e baixos, alegrias e tristezas, e uma coleção de amigos, fãs e admiradores que mantêm vivo o sorriso de uma das maiores intérpretes da música de raiz. Foi na casinha de tábua da rua Paissandu, bairro Amambaí, que a senhora Delanira nos re46 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
cebeu para uma prosa. Simples como as letras de suas canções, encantadora e fascinante como a lua, Delinha falou sobre a vida e sobre sua paixão pela música. Infância “Moro nesta casa desde os meus 8 anos. A música Casinha Velha é uma homenagem a esta casa. Aqui, nesta região, só tinha mato e vários pés de guavira”, conta Delinha. Delanira Pereira Gonçalves nasceu em Vista Alegre, distrito de Maracaju, no dia 7 de setembro de 1936. Desde pequena, já demonstrava vocação para a música. A mãe de Delinha sonhava ver a menina cantando no coral da igreja. “Eu era pequena e cantava aquela música... oh, jardineira por que estás tão triste”, [Jardineira, Orlando Silva]. A infância de Delinha foi pobre. O pai, Avelardo Alves Gonçalves, era tocador de gado e a mãe, Jerônima Pereira Gonçalves (Chiruca), lavava e passava roupas para fora. Embora Delinha fosse filha única, passava longe de ser uma menina mimada, cheia de regalias. Quando não estava na escola, ajudava no orçamento familiar, vendendo leite e outros produtos que o
pai trazia das chácaras nos arredores da cidade para revender. Assim Delinha cresceu, na simplicidade. Estudou no Colégio Estadual até os oito anos de idade. Depois, Dona Chiruca foi pedir ao padre a isenção da mensalidade para que a menina pudesse estudar no Colégio das Irmãs Vicentinas. O pedido foi atendido, não pagavam a mensalidade, mas Delinha tinha que varrer duas galerias de salas de aulas e lavar 10 vasos sanitários. Estudando no Colégio das Irmãs, o sonho da mãe pôde ser realizado: conseguiu entrar para o coral da igreja. Delinha só conseguiu estudar até o equivalente, hoje, ao oitavo ano do Ensino Fundamental. As dificuldades eram muitas. Não era possível manter as despesas com livros e tudo mais que a escola exigia. Naquela época, estudar era um privilégio que estava bem distante da realidade da menina de família pobre. Juventude Já moça, Delinha começou a trabalhar numa loja de roupas e depois foi recepcionista no consultório do médico Cláudio Fragelli. Ficou noiva do primo Délio,
que era conhecido como Zezinho, sobrinho de sua mãe. Os jovens começaram a cantar por brincadeira e passatempo. Délio ensinou Delinha a tocar violão e assim foram. Com o tempo passaram a se apresentar nas emissoras de rádio locais. A primeira apresentação de Delinha foi na Emissora de Rádio PRI7, que ficava na galeria São José. A vida dos jovens não era fácil, viver da música era algo impossível, apenas um sonho. Então, o negócio era trabalhar e trabalhar. Délio aprendeu a profissão de tintureiro e Delinha e sua mãe o ajudavam no ofício. O sonho de Délio era tentar a vida em São Paulo e conseguir uma oportunidade para cantar nas grandes emissoras de rádio. A visita do compositor Zacarias Mourão a Campo Grande aguçou os planos de Délio, de tentar a fama na cidade grande. Zacarias pediu que Délio o procurasse na Emissora Bandeirantes quando fosse à capital paulista. Assim, os noivos Délio e Delinha, com a ajuda de familiares, conseguiram casar e juntar al-
gum dinheiro para a viagem até São Paulo. O casamento aconteceu no dia 22 de fevereiro de 1958, em Vista Alegre. São Paulo Viagem longa e recepção com choque de realidade. A vida em São Paulo foi dura. Os jovens cantaram durante cinco anos na Rádio Bandeirantes, mas dinheiro que é bom, nada! Com o tempo, foram aparecendo oportunidades para cantar em shows, circos e eventos. Enquanto o dinheiro da música não vinha, precisavam sobreviver de outra forma. Délio trabalhava em uma empresa no Vale do Anhangabaú e Delinha trabalhava como empregada doméstica. Depois de muito sacrifício, cantando nos mais diversos e distantes lugares, a dupla Délio e Delinha — que também ficou conhecida como ‘O Casal de Onças do Pantanal’, apelido dado pelo Capitão Barduíno, apresentador de vários programas na Rádio Bandeirantes — conseguiu gravar seu primeiro disco de 78 rota-
“A música é minha vida... A música a gente tem que cantar aqui de dentro, a gente tem que sentir para poder passar para as pessoas” ções, em 26 de março de 1959. As músicas gravadas foram Malvada e Cidades Irmãs. Delinha conta que o disco foi mais uma frustração: “De lá para cá, mudou muita coisa no mundo da música. Antes, você não gravava se não tivesse voz, ritmo e tudo mais. Eu ainda tocava violão e o Délio também. Do nosso primeiro disco, vendemos 230 cópias em três meses. O pessoal gravava e achava que ia ficar rico. O Délio ficou bravo e disse: Vou voltar para Mato Grosso e plantar mandioca! Ele pediu rescisão do contrato com a gravadora, que era a Califórnia. Nesse tempo, o Zacarias Mourão veio para cá e estava
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tocando nas emissoras a música Malvada. Bom, ele voltou para São Paulo e pediu para o Délio autorização para regravar a música Malvada com sua própria dupla. O Délio não quis, ele achava que se a música não tinha feito sucesso na nossa voz, não ia fazer sucesso com outras pessoas. Nisso tudo, o dono da gravadora Califórnia voltou a falar com o Délio e pediu para ele regravar a música. Acabamos gravando novamente.” Depois de tanta luta, e mais de 20 anos morando em São Paulo, a dupla conseguiu um espaço no mercado da música e gravou 14 discos de 78 rotações e 19 LPs. A saudade da família falou mais alto e Délio e Delinha decidiram voltar para Campo Grande. A dupla ganhava a vida se apresentando pelos rincões mato-grossenses e ia a São Paulo apenas para gravar novas músicas. Música “A música é minha vida. Eu canto desde criança. Antes de casar com o Délio, eu cantava no coral da igreja. Depois que casei com ele, aos 19 anos, passei a vida cantando.” “Cada época é uma época. Outro dia me perguntaram se eu gosto de Luan Santana. Eu gosto daquela música dele, Meteoro. Também gosto do Michel Teló. Cada um tem um estilo. Acho que a nova geração não tem muito aquele romantismo. A
“Com tanto carinho que eu recebo do meu público, não tem como não ser feliz. Sou muito feliz” 48 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
música, a gente tem que cantar aqui de dentro, a gente tem que sentir para poder passar para as pessoas. Mas, mesmo assim, eles fazem sucesso, as pessoas gostam. São estilos diferentes. Eu gosto mesmo é do rasqueado, bolero, fado, tango...” Vida Ainda hoje, beirando oito décadas de vida, o ritmo de Delinha é acelerado. Continua trabalhando, lutando para vencer os percalços do caminho. O dinheiro da música não veio até hoje, mas, segundo ela, Deus sempre foi generoso e lhe ofereceu uma vida de sorte. A Dama do Rasqueado vive modestamente, não tem luxo, sua vaidade se limita a unhas bem feitas, um batom e o cabelo arrumado. “Antes, eu vivia arrumada, mas, agora, já não tenho o mesmo ânimo”, diz ela. Acorda cedo para arrumar e limpar a velha casinha, cheias de lembranças e histórias. “Não dá para parar, eu não fiquei rica! Tenho que fazer hoje para comer amanhã. Enquanto Deus estiver me dando voz, eu vou continuar cantando. Minha vida é sempre uma coisa só, eu nunca tive empregada, sempre fiz todo o serviço da casa, lavo, passo e cozinho. Eu só tive uma pessoa para me ajudar quando João Paulo era pequeno e quando uma tia já de idade morou aqui”, conta. Delinha só teve um filho. João Paulo Pompeu é filho do coração. Delinha o adotou ainda bebê, no ano de 1969. Délio e Delinha se separaram em 1978. O motivo, segundo ela, foi a “incompatibilidade de gênios”. Delinha conheceu outra pessoa, o Jairo, que foi seu companheiro durante 32 anos. Jairo Ferreira Barbosa morreu em setembro de 2012. O fim do casamento de Délio e Delinha não colocou fim na
parceria da música. Algum tempo depois de separados, a dupla voltou a gravar e se apresentar em shows e eventos. Délio morreu em fevereiro de 2010, aos 84 anos de idade. Felicidade e fama Delinha nunca foi contagiada pela fama, considera-se uma mulher feliz e não faz ideia de que é um ícone da cultura sul-mato-grossense. “Com tanto carinho que eu recebo do meu público, não tem como não ser feliz. Sou muito feliz. Costumo dizer que meu único inimigo é a doença. Fiquei muito ruim esses dias atrás, fiquei baixo astral, ia cantar e não conseguia, minha voz é alta, mas estava precisando baixar o tom. A música O Sol e a Lua, já não estava conseguindo cantar mais. Agora estou começando a melhorar. Eu tenho que cantar, eu tenho que sobreviver”, afirma. “Se eu tivesse noção do que sou, daquelas coisas todas que falam, já não ia prestar. Não quero saber nunca o que sou, o que
“Se eu tivesse noção do que sou, daquelas coisas todas que falam, já não ia prestar. Não quero saber nunca o que sou, o que represento. Quero apenas fazer jus ao carinho que as pessoas me dão. Isso me dá força, apoio” represento. Quero apenas fazer jus ao carinho que as pessoas me dão. Isso me dá força, apoio. Não sou de ter o nariz pra cima, eu vivo aqui, nesta casa simples. As pessoas acham que eu moro num palácio, que tenho muito dinheiro... Sou uma pessoa simples. E o que eu represento ou não, deixa pra lá.”
Telas e páginas Está previsto ainda para o primeiro semestre de 2014, o lançamento de um vídeo documentário sobre a vida de Delinha. O documentário A Dama do Rasqueado terá 52 minutos de duração. O projeto é coordenado pela cineasta Marinete Pinheiro e conta com recursos do Fundo de Investimentos Culturais de Mato Grosso do Sul (FIC). A biografia de Delinha também está retratada no livro Por Onde Andei, de Wilson Werner Koller, que foi importante fonte para a elaboração deste texto. Contém episódios importantes da vida da cantora, impossíveis de resumir em poucas páginas. É uma agradável opção de leitura: Por Onde Andei – Uma biografia de Delinha Wilson Werner Koller Editora Mart, 126 páginas À venda pela internet: www.martmusic.com.br Revista ATUAÇÃO | Março 2014 |
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CINEMA
Mato Grosso do Sul nas lentes cinematográficas Entre bois, pastos e lavouras, Marinete Pinheiro faz o cinema acontecer
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um estado de raízes agropecuárias, onde o incentivo à cultura e às artes é um dos últimos na lista das políticas públicas, uma jovem cineasta, de 32 anos, voltou seu olhar às paragens onde se vê apenas bois, pastos e lavouras e descobriu um universo rico, ideal para histórias de cinema. Marinete Pinheiro é a dona de toda a ousadia, e tem como proposta inicial a produção de um vídeo documentário com lançamento previsto para acontecer ainda no primeiro semestre de 2014. Antes de ingressar na Escuela Internacional de Cinema y Televisión de San Antonio de Los Baños, em Cuba, Marinete estudou jornalismo em Campo Grande. É natural de Aral Moreira, mas vive na capital sul-mato-grossense desde a primeira infância. Inscreveu-se no processo de seleção da escola cubana sem nenhuma pretensão. “Vai que dá”, pensou. Segundo ela, o que a favoreceu foi sua história de vida e o livro Salas de Sonhos – Histórias dos Cinemas de Campo Grande, que produziu como projeto de conclusão de curso, na faculdade. O segundo volume, Salas de Sonhos – Memórias dos Cinemas de Mato Grosso do Sul, estava em produção quando recebeu o comunicado que havia sido aprovada para estudar em Cuba. A personagem escolhida para o documentário em produção é a cantora Delinha, que durante décadas compôs a dupla Délio e Delinha. Em suas músicas, a dupla sempre retratou o jeito simples de quem vive no campo 50 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
e descreveu com harmonia as paisagens que compõem Mato Grosso do Sul. Veja a entrevista: Por que você decidiu fazer cinema? A maioria das pessoas que querem fazer cinema são apaixonadas por cinema. No meu caso, não. Acho que a vida me levou a fazer cinema. Na verdade, a minha vontade era escrever um livro, e o livro acabou abrindo as portas para que eu fizesse cinema. Quando apareceu a oportunidade de fazer a prova para a faculdade de Cuba, eu pensei: Ah, vou fazer, vai que dá! Eu sempre aproveitei todas as oportunidades, quando se abre uma porta eu entro para saber qual é. Fiz a prova, mas eu não achava que ia ser chamada. Acabei sendo a primeira a ser chamada. O meu primeiro livro me ajudou. A prova para a faculdade de Cuba avalia a sua história de vida, é subjetiva. Você tem que contar em uma lauda, um episódio de sua vida que acha que serviria para o roteiro de um filme. São conhecimentos que a escola julga válidos para o cinema. Quando recebi a carta de Cuba, dizendo que havia sido contemplada, estava dando início ao meu segundo livro. Fiz uma viagem de 45 dias por todo o estado, levantei todo o material possível e terminei de escrever lá em Cuba. E a experiência de viver em Cuba? Cuba é rodeada de lendas e mitos. É um país fantástico. Foi
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a melhor experiência de vida que tive. Eu morava na escola, que fica a sete quilômetros do povoado mais próximo e a 40 quilômetros de Havana. Então, ficava dentro desse ambiente do cinema, respirava cinema, uma imersão muito grande. São selecionados 40 alunos por ano, de todos os lugares do mundo. Então, não é só uma experiência de aprender cinema. Essa escola já foi considerada a melhor escola de cinema do mundo. Hoje ela é a quarta melhor, e a classificação atual se dá por conta da crise econômica do país. Cuba enfrenta muitos problemas políticos, especialmente com os Estados Unidos. Contudo, é um país que investe no aspecto social. A economia fica em segundo plano. Existe um grande investimento em saúde, educação e cultura. O básico tem, o excedente não tem. O luxo, o supérfluo, não existem. Uma das coisas que aprendi lá foi o desapego, viver com pouco. Ao invés de investir o potencial econômico no consumo, eles investem na vida, no conhecimento. A Escola de Cinema de Cuba foi criada com o propósito de oferecer a oportunidade aos que nunca poderiam estudar cinema. Por exemplo, no meu caso, se não fosse essa oportunidade, eu provavelmente não teria condições para estudar em outro lugar. Foram os melhores anos da minha vida! E é muito difícil voltar. Como você se manteve lá? O custo para estudar lá é de 5 mil euros por ano. Mas os brasileiros têm uma bolsa mantida pelo governo federal, ou seja, nós não pagamos esse valor. Só os europeus pagam o valor. Não tínhamos despesa com nada, alimentação e mo52 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
radia é tudo por conta da escola. Minha única despesa era com passagens. Nesse período, eu vim quatro vezes ao Brasil. Quando fui para Cuba, eu vendi tudo o que eu tinha. Por que escolheu a Delinha para o documentário? Penso que temos que retratar as pessoas enquanto elas estão vivas. E a Delinha já está com 77 anos. Outra coisa: ela é mulher e é uma referência da música. A Delinha fala que a música dela não é música sertaneja, é uma música de raiz, uma música folclórica. É um registro de um personagem fundamental para a música do estado. Ela e o Délio compuseram inúmeras canções, que identificam a nossa cultura. É tão difícil viver da música e ela vive há 55 anos. A Delinha, por si só, é um personagem, não tem como não se apaixonar por ela. Qual sua avaliação do cinema nacional? Nós temos muita produção de qualidade. Mas precisamos de mais janelas, como o Festival de Cinema, que é uma janela para a produção independente. Acho que o Brasil vive a melhor fase do cinema, pela qualidade da produção. Também temos que considerar que o Brasil quase não tem escolas de cinema, não tem investimento, não tem política de fomento e, mesmo assim, estamos produzindo. A política de fomento ainda é muito fraca. Falta, ainda, incentivo para formação intelectual e cultural. Por que o cinema argentino é tão bom? Porque tem incentivo, formação cultural. O Festival de Cinema, como o FestCine Vídeo América do Sul, além de um espaço para formação de público, deve ser um espaço onde o mercado do
cinema possa se encontrar. Não acha muita ousadia fazer cinema em Mato Grosso do Sul? Por que os europeus vão para a América e para a África filmar? Porque o olhar está para a região periférica do mundo. Por exemplo: São Paulo, que é o nosso grande centro, é um lugar comum. Aqui não. Essa é justamente a minha expectativa: filmar em uma região periférica, que nunca foi explorada antes. Aqui é uma região fantástica. Joel Pizzini, que, para mim, é o maior cineasta brasileiro, também tem essa perspectiva de filmar o fantástico. Filmar é algo que tenho que aprender muito. E isso a gente só aprende fazendo.
Através da Vidraça da Escola - Formando Novos Leitores Ilan Brenman Editora Aletria 2ª Edição 166 Páginas
Quando lemos em voz alta, retomamos a experiência do compartilhar; lemos para um grupo de crianças, e elas, no decorrer da leitura, podem se sentir fazendo parte de uma unidade. Quantas vezes já presenciamos grupos inteiros de ouvintes se encostando e se “protegendo” das histórias de terror que estávamos lendo? Os grupos que ouvem histórias possivelmente saem mais unidos, seus participantes, mais cúmplices uns dos outros. A percepção é clara: a leitura dessas histórias realmente acalma, instaura um novo clima na sala de aula, silencia os ruídos infantis, entre outros muitos efeitos benéficos observados e invisíveis. Sabemos que as crianças amam as histórias, que poucas outras atividades de sua vida despertam tanto interesse; então, por que ainda se insiste em usá-las somente como meio de barganha? Por que não as tornamos o centro do ensino da leitura? As crianças, desde a mais tenra idade, deveriam saber que a leitura é capaz de abrir um mundo repleto de experiências e possibilidades. O desvelar dos mistérios do mundo e da própria vida interior deveria ser o objetivo principal da aprendizagem da leitura. A ânsia pela vida e a curiosidade estonteante das crianças encontram refúgio na leitura de livros de literatura.
Dicas para uma boa leitura
Para os filhos dos filhos dos nossos filhos José Pacheco Papirus Editora 3ª Edição 128 Páginas
“Pedagogia é arte. Em todas as gerações, há seres avisados, que não se deixam corroer pelos ácidos de tempos sombrios, seres que arejam instituições, abrindo janelas por onde penetram ventos de mudança. Nas apáticas escolas que ainda vamos tendo (e merecendo?), a ‘Idade da Educação’ já acontece, em espaços intersticiais, apenas acessíveis a olhares que se não deixaram corromper. Todos os dias me chegam notícias de discretos prodígios. No segredo das suas salas, há professores que não esperam, que recriam. Ser esperançoso também é isto: escrever para os netos com a serena segurança de que eles serão os nossos olhos e as nossas mãos, quando os filhos deles forem, finalmente, as crianças felizes e sábias que desejaríamos todas as crianças fossem.” O educador português propõe, por meio de histórias contadas ao seu neto Marcos, uma nova pedagogia, e questiona determinados padrões da escola atual. Pacheco é mestre pela Universidade do Porto, professor do ensino fundamental na Escola da Ponte, e do ensino superior.
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ARTIGO
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Sobre diversidades e inteirezas: os (des)aprenderes que caminham também pela escola
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stou pensando cá com minhas inquietudes sobre por que gosto de documentários que falam de povos, grupos e situações que não conheço e com os quais não irei conviver. Talvez eu goste das histórias diferentes do meu cotidiano porque posso só assistir sem que me exijam nenhum posicionamento, nem sobre mim e nem sobre eles. Quando o documentário da vida é ali, no meu espaço de vida... ah, esse, sim, exige de mim. O diferente, quando está distante, já sabemos que é diferente e por isso olho com olhos de mim e até admiro a diferença... difícil mesmo é quando o diferente fica perto, convive, me olha nos olhos... e não me deixa desviar. Esse sim, me confunde. Já não tenho mais uma receita pronta para as respostas e, pior, exige também modificar-me. A aventura do novo precisa do abandono da certeza, ganho e perda, numa dialética que me requer tomar posição – o exercício da adultez. Esse cotidiano que me forma todos os dias, na maioria das vezes, é separado da lida educadora. Mas, nós que vivemos no chão da educação, vamos compondo nosso conhecimento e nosso viver, manifestado na ética e na estética, com tudo que aprendemos aqui e acolá. Minha vizinha, com seu neto, ainda menina, me disse: “esse menino é brabo, não sei prá quem puxô, mas se você olhá firme e com bondade nos olhos dele, ele amolece e lhe escuta”. Ou o Seu Mário que, diante da notícia
da televisão de que o filho já tinha passado mais de 10 vezes pela polícia falou: “lá na escola, ele falou que fica só na diferença, que ninguém entende que ele quer pichar, que quer ser artista, e eu falei prá ele: então, você vai levando até encontrar um lugar que lhe entenda e, na escola, vai lá passar de ano. Mas evita falar que mora num terreiro, senão a coisa fica pior prá você! ” Eles me ensinaram que a dificuldade do ensinar não estava nos meninos, mas em nós, que, na pressa das metas, não tínhamos criado o vácuo entre os valores da escola e os meninos e suas famílias, na perspectiva de construir relações educadoras, coletivos de aprendizagem. Em ambos os casos foi na conversa de corredor que encontramos saída. A diversidade como vivência ainda não chegou como deve ser na sala dos professores, na cantina, na secretaria escolar. A formação que recebemos ainda é para tratar caso a caso, como se fossem exceções, ou seja, sem fazer política, que é, como diria Arendt (2012), uma relação que avança em busca de coletivos visando superar as problemáticas que não são deste ou daquele. Ainda pautamos os “casos” das diversidades como sendo de responsabilidade ou vulnerabilidade individual e até mesmo atribuímos culpa ao sujeito pelos problemas vivenciados. A busca por compreender o contexto produtor de desigualdades e de gentes que se expressam diferentemente no viver, visando fugir das discriminações, ainda é pouco exercitada, pois exige pensar, politicar, tomar posição. Somos seres sociais em (des)construção permanente e fomos educados para nos dividir entre trabalho, família, re-
ligião, amizades, ou seja, para viver em pedaços, ou, doloridamente, para comportarmo-nos em cada lugar de um jeito. Isso não é saudável. Freire (2012), ao responder os eternos questionamentos sobre a sua amorosidade em todos os lugares e papéis que tinha, anunciou: “Eu sou uma inteireza e não uma dicotomia”, pois lhe questionavam sobre a paixão com que vivia no ambiente escolar ou nas atividades com os movimentos sociais e a maneira como se relacionava com os amigos e a família. Da mesma forma de ser social integral, escrevia e produzia ciência: “a paixão com que conheço e com que falo ou escrevo não diminui em nada o compromisso com que denuncio ou anuncio” (Freire, 2012:28). Não somos vários seres e, se queremos ser, sofremos enormemente. É por isso que separar o trabalho na educação do restante do nosso viver é tão ruim e pernicioso para nós mesmos e para as pessoas com as quais trabalhamos, e também para os educandos. É preciso regrar o horário em que cada universo – trabalho, lazer, cultura, amigos e família – é a principal atividade, mas separá-los sem que se influenciem e se componham, é impossível. No entanto, as regras de cada grupo social de que participamos, muitas vezes, nos impedem de ser o que somos, pois podem estar tão fechados em valores autoritários diante das diversidades, que estas não podem aparecer, como as sexualidades, as religiões, as preferências culturais, as ideologias. Quando a visibilidade corajosa da diversidade aparece, o nosso relacionamento chega, ao máximo, à consideração da aceitação ao “exótico”, “diferente”, sem que se abale ou nos questione.
As escolas têm o desafio de ser o lugar do convívio com a diversidade, pois é ali um dos territórios de possibilidades. Não um território onde os educadores constroem uma educação libertária para os estudantes, mas onde eles próprios podem viver o processo libertário de ser educadores. Novamente chamando Freire (2012), significa que a escola não é o lugar só dos estudantes, mas pode ser o lugar das relações libertárias. A coerência dos educadores é o fundamento para isso, pois, se convivem em diversidades também entre os trabalhadores, com os estudantes vivenciarão coerências aprendidas, ou seja, terão a autoridade sobre o exercício de aprender/desaprender diversidades: “A força do educador democrata está na sua coerência exemplar. É sua coerência que segura sua autoridade. O educador incoerente, que diz uma coisa e faz outra, eticamente inconsistente, irresponsável, não é só ineficaz, é prejudicial. Desserve mais do que o autoritário coerente” (Freire, 2012:118). Por isso, os projetos que objetivam escolas democráticas e não violentas, ou seja, educadoras, com diversidades étnico-raciais, de orientação sexual e identidade de gênero, de geração, religiosa, cognitiva e de necessidades específicas, precisam que, no seu corpo de trabalhadores, estas marcas estejam presentes, conviventes, questionadoras e tensionadoras do certo e o errado, do bonito e do feio. É urgente ir em busca de um jeito de educar, em que os marcadores das diversidades não sejam discriminatórios, mas motivos de alegria, em que os documentários do nosso viver nos impulsionem a coletivos de aprendizagem apaixonantes.
Estela Márcia Rondina Scandola
Educadora, doutoranda em Serviço Social, pelo ISCTE-Lisboa / UFPE-Brasil
Referências ARENDT, Hannah. O que é política? Organização: Úrsula Ludz. Traduzido por Reinaldo Guarany. 10ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. 10ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
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CRÔNICA
O poder transformador da educação Seja na sala de aula de uma escola convencional, seja na cela de uma penitenciária, a educação é capaz de transformar realidades e motivar novas histórias, como é o caso de Rosalina Ferreira
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a edição de novembro de 2013, a revista Atuação abordou, na reportagem de capa, o ensino dentro das unidades prisionais de Mato Grosso do Sul, estado pioneiro na regulamentação de uma escola pública para atender a população carcerária. Mostramos como a educação pode melhorar a vida de quem está atrás das grades, além de oportunizar condições mais dignas e equânimes no retorno à liberdade. Recebemos vários e-mails parabenizando nossa reportagem, bem como as demais matérias da revista. E, para nós, é sempre uma grande satisfação receber o feedback dos nossos leitores e entrevistados. Exemplares da revista foram distribuídos nas penitenciárias, por meio da direção da Escola Estadual Prof.ª Regina Lúcia Anffe Nunes Betine, que atende a população de presos. E agora, faltando poucos dias para o fechamento desta edição, recebemos uma correspondência do Estabelecimento Penal Feminino do 56 | Revista ATUAÇÃO | Março 2014
município de Rio Brilhante (MS). A remetente, interna do estabelecimento, diz na carta que leu várias vezes a reportagem sobre o ensino penitenciário, até que criou coragem para nos escrever e narrar sua história. Rosalina Ferreira nasceu na cidade de Maracaju, tem 38 anos, foi condenada por furto em 2010 e processada por roubo em 2012. É também ex-dependente química. Segundo ela, ainda está em processo de recuperação: “Me encontro limpa há dois anos e três meses, cada amanhecer é uma vitória, me considero uma guerreira. Mato um leão por dia, como diz o ditado popular, pois a droga é traiçoeira. Por isso, me considero uma vigilante de mim mesma...”, escreveu. De acordo com a Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (Agepen/MS), mais de 90% das prisões de mulheres são decorrentes do tráfico ou uso de entorpecentes. Em breve, Rosalina deve passar a cumprir a pena em regime semiaberto e diz que está disposta a lutar pelo
sonho de ser escritora. Na carta, pede oportunidade para publicar uma de suas crônicas. Os textos da presidiária tratam do mundo das drogas, “lugar” que ela conhece bem, mas para onde não quer mais voltar. Rosalina diz que está quitando seu débito com a sociedade e, depois, vai começar uma nova história. Em Rio Brilhante, em 2011, a interna foi aluna de uma das extensões da Escola Estadual Prof.ª Regina Lúcia Anffe Nunes Betine. Na prisão, além de estudar, fez vários cursos profissionalizantes. “Não vejo este lugar como um presídio, mas sim como uma escola disciplinar. Aqui aprendi muitas coisas boas”, afirma. Diante da solicitação de Rosalina, a FETEMS e o conselho editorial da revista Atuação acharam por bem publicar uma das crônicas, reafirmando o poder transformador da educação, seja na sala de aula de uma escola convencional, seja na cela de uma penitenciária. Esperamos que aprecie a leitura.
Fama! Rosalina Ferreira Já fiz minha fama, sou famoso, sou herói. No mundo eu fiz minha fama, sou aplaudido de pé. Meu nome todos sabem, sou lindo, sou loiro, minha pele é branquinha, sou magro. Minhas roupas, meus fãs é que escolhem. Eu faço todo mundo rir, tremer, ficar ansioso. Eu sou poderoso. Se eu quiser, faço você morrer de medo, te faço ter delírios. Você nunca vai se esconder de mim, pois estou em qualquer lugar. Se eu não vou até você, é você que vem até mim, pois estou em qualquer lugar. Eu tenho mais força que você e sempre vou ter, nem adianta tentar se livrar de mim. Mas tem um porém: quando você não me quiser mais, eu me adianto e te mato. Onde eu estiver, você vai fazer de tudo para marcar um encontro comigo. Eu sei que você é louco por mim, mas vou me adiantando: eu não posso ser só seu, eu sou de todos que me querem, que me amam. Se eu te pedir... pedir, não! Se eu mandar, você rouba e mata por mim. Você está sob o meu comando, eu mando e você obedece. E o que eu faço por você? NADA! Nada, não! Eu te destruo! Primeiro faço você perder o respeito por si mesmo. Segundo passo: tiro o amor da sua família. E o respeito que eles têm por você, faço você perder. Terceiro passo: afasto seus melhores amigos até eles te esquecerem. Adoro te ver na solidão, se sentindo sozinho, tirado. Amo te ver magoado, triste e infeliz, pois sua infelicidade é minha maior alegria. Eu adoro ver você correndo atrás de mim, não dos seus familiares. Quando você não consegue me ter, até chora. Eu gosto mesmo de te ver se humi-
lhando por mim, essa é a minha alegria! Você, pra mim, é uma marionete, que me trata bem, me esconde para não me dividir com ninguém. Por mim, você mente, implora, e é por isso que eu gosto de brincar com você. O mestre manda, o burro obedece. Mas, é lógico, o mestre sou eu, por mais que você cuide bem de mim. Me esconde dos outros, me veste com várias cores de roupas, azuis, brancas, amarelas, pretas, prateadas e até transparentes. Você me veste do jeito que você quer, não se cansa de me querer. Não sou cantor, mas te levo à loucura. Não sou ator, mas você faz tudo para estar comigo. Não sou astro de Hollywood, mas tenho domínio sobre você. Mas mesmo sabendo disso, você me ama e me obedece. Quem me conhece, quem me experimenta, larga tudo para estar comigo. Enquanto isso, eu só quero te usar, te deixar delirando. Na verdade, otário, aos poucos eu vou te matar. Depois de te contar tudo o que eu posso fazer com você, eu te faço um convite: vem comigo, pois eu gostaria e vou matar você. Vem ou não? Só me fala uma coisa: sou ou não sou um herói? Posso ou não posso me considerar o “todo poderoso”? Vou lhe contar meu nome. Tenho vários, mas sou o mesmo. Pode me chamar “o senhor Crack”! Sobrenome: Pasta-Base. Vulgo: Pedra. Uns me chamam de Oxi! Mas também tenho um irmão chamado Cocaína, também conhecido como Pó, que é tão avassalador quanto eu, que também destrói e até mata. Somos uma família de distribuidores de fracos e otários, mas você nos procura sem se cansar! Ha ha ha ha ha ha! Venha conosco, otário! Te daremos um caixão de presente... Revista ATUAÇÃO | Março 2014 |
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SER CIDADÃO
Ser cidadão é saber que há na lei igualdade para todos. Igualdade, essa, que não é respeitada, valorizada, mas dizimada. Alguns chegam até a pensar... “– Quem pode, pode! Quem não pode, não pode”! Outros interrogam: “– Até quando viveremos assim?” Será que em outras vidas isso também existirá? Perguntas como estas, muitas pessoas estão a fazer. Mas poucas são as que têm coragem de responder. Eis aqui algumas opiniões para quem quer aprender a ser cidadão. Ser cidadão... Não é aquele que deixa o irmão levar, sozinho, a cruz. Mas aquele que o ajuda nos momentos mais difíceis da caminhada. Não é aquele que reparte somente tristezas e agonias, Mas é o que ajuda o necessitado com um pedaço de pão. Ações de solidariedade são pregadas, mas não vividas. Vidas, para serem realmente vividas, têm que ter consciência. Para dizer não à humilhação! Humilhação que faz crianças morrerem de fome e exclusão. Exclusão social, política, partidária e até de religião. Ser cidadão é procurar seguir os passos de um rei que pouco aqui viveu. Mas exemplos de cidadania nos deu. Um deles diz: “lança seu pão sobre as águas...” Lançar o pão não é...
Dar com uma mão e correr, contar e querer aparecer; Não é... Fazer por fazer; Não é... Vangloriar-se perante os menos favorecidos; Não é... Fazer política usando inocentes; Não é... Não é... Não é... Ser cidadão, então, é ter consciência de que igualdade, dignidade, fraternidade... Dependem de cada ser humano da nação. Sem olhar cor, conhecimento, fé ou religião. É, acima de tudo, saber que fazemos parte de uma nação. E somos todos irmãos!
Elisabete da Silva Schroeder Professora da Rede Municipal de Ensino de Ponta Porã - MS
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