o caminho Ê estreito e tortuoso edição 5 ano 1 2011
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golfe na favela
a comunidade onde prospera o esporte mais elitista do mundo
editorial
C
omo pode nascer, da mesma terra, a grama verde lustrosa e o capim seco? São dois Brasis, lado a lado, separados por um muro. Algumas histórias nos passam à frente dos olhos apenas uma vez. A tacada é uma só. Não se trata de perder os pés do chão: a realidade pesa uma tonelada e nos esmaga todos os dias com sua indelicadeza. Nos resta perceber o fascinante onde menos se espera. Ao findar de 2011, o Bastião contempla o inusitado como a salvação para os erros e tropeços, como o gozo que compensa a correria, os prazos, as contas a pagar, a rotina que insiste em castrar o lazer disfarçado de trabalho. Um campinho esburacado, renegado pela própria natureza torta, pode ser, por que não, o cenário de um desses lampejos que a vida proporciona. Podemos tentar explicar as anomalias que a sociedade produz com uma porção de teorias políticas e econômicas, porém, os números são menos importantes que as pessoas. Este poço de desigualdade, de água mal repartida, pode ser denunciado, também, pelo sorriso que não estanca, mesmo que a vida seja dura. Sabemos o preço de tudo e o valor de nada. Agora, o sorriso das crianças da favela está em pé de igualdade com as mensalidades do Porto Alegre Country Club. Essa história vale mais que qualquer troféu.
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André Lacasi é jornalista, desenhista, fotógrafo e um dos nossos. Tu já imaginou se a familiar Orquestra Matinal dos Passarinhos da tua janela tivesse outros integrantes? Ele já! www.flickr.com/photos/andrelacasi
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torre à vista! Redação Arthur Viana, Carlos Machado, Cíntia Warmling, Douglas Freitas, Gabriel Hoewell, Gilberto Sena, Luciano Viegas e Luiza Müller Projeto gráfico e editoração Ana Elizabeth Soares e Ramiro Simch Capa Gabriel Hoewell e Ramiro Simch Arte André Lacasi, João Filipe Padilha, Lucas Monteiro e Ramiro Simch Relacionamento Ana Paula Neri, Maurício Pflug e Samantha Diefenthaeler Colaboradores Cristian Pheula e Rafael Gobbo Web www.bastiao.net | www.twitter.com/revista_bastiao | www.facebook.com/revistabastiao Tiragem Mil e quinhentos exemplares Praça Júlio de Castilhos, 74/152 - Porto Alegre - RS - Brasil | (51) 3311.1025 | Dezembro de 2011
veja bem
entrevista Cíntia Warmling O uruguaiense Jairo de Andrade foi fundador e diretor de um dos maiores espaços culturais de Porto Alegre, o Teatro de Arena, de 1967 a 1980. Mais do que um teatro, esse espaço ficou conhecido como local de resistência à Ditadura Militar do Brasil durante toda a década de 70. Na conversa com o Bastião Jairo conta um pouco de sua própria história com o teatro e como ele vê essa arte hoje.
Cíntia Warmling
O LEÃO DA ARENA
Bastião - Quando tu veio para Porto Alegre? Jairo de Andrade - Foi quando eu terminei o científico, me preparei para fazer o vestibular para Jornalismo na UFRGS. Fiz vestibular e passei, mas era de dia a faculdade, e eu precisava trabalhar. Eu já dava assistência pros refrigeradores da marca Admiral lá em Uruguaiana, então eu vim trabalhar na assistência técnica aqui também. Só que eles me falaram: “Nós vamos criar um cargo pra ti porque tu faz faculdade - vai ser encontrar novos fornecedores”, e eu fiquei por dois anos e fiz muita coisa dentro da Admiral. Só que aí saiu uma greve do sindicato, e eu fiz um discurso lá. No outro dia não me deixaram entrar na fábrica. Me levaram direto pro departamento de pessoal e me mandaram embora. Aí eu saí de lá. Eu já tinha uma serigrafia, e comecei a fazer serigrafia aqui em Porto Alegre.
rante dois anos. Eu ia tirando notas bem baixas. Até que, no final do segundo ano, eles contrataram um diretor de São Paulo, o Emilio Fontana. Ele começou a conversar comigo, e disse tudo que eu podia interpretar em cima das minhas raízes. Eu comecei a encontrar, a descobrir o processo de interpretação. Aí nós alunos, achamos que devíamos sair dali já com o grupo formado, isso no finalzinho do curso. Era eu, a Alba Rosa, a Edwiga Faleg e a Araci Esteves. Formamos o GTI [Grupo de Teatro Independente] no final do curso. E onde vocês ensaiavam? De início nós ensaiamos A Farsa da Esposa Perfeita lá dentro mesmo [do Departamento de
Artes Dramáticas], uma peça de cunho social, gauchesca. Com uma peça gauchesca, eu disse: “Vamos fazer na Fronteira”. Então juntamos tudo e saímos de trem até a Fronteira pra fazer. Nós fizemos Uruguaiana, Itaqui, São Borja, Santiago, São Francisco de Assis e Alegrete. Depois de Alegrete tivemos que voltar. Chegamos aqui malitos, sem dinheiro. Até pensamos em parar, mas eu consegui aquela história do Arena. Resolvemos apresentar pro público o nosso projeto e nos deram uma noite no [Theatro] São Pedro. Nós apresentamos O Demorado Adeus, uma peça curta do Tenesse Williams. No final eu anunciei o Arena, porque eu já tava com a planta - tudo escondido, o pessoal não sabia.
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Quando tu decidiu fazer Teatro na UFRGS? Eu vivia envolvido com política, e eu sempre achava que se eu tivesse um jornal eu poderia me expressar através do jornal. Então eu me dei conta de que só se eu fosse dono de jornal pra poder dizer o que eu queria. Foi quando pintou a saída do teatro... Em primeiro lugar eu fui por necessidade. Eu precisava da carteirinha no RU pra comer mais barato. Então eu fiz a segunda chamada em Artes Dramáticas, e eu passei em oitavo lugar. Eram oito vagas. Os professores queriam saber por que um mecânico de refrigeração queria fazer teatro. Então eu disse pra eles: “Eu preciso da carteirinha pra comer mais barato, mas, em segundo lugar, eu quero tentar me comunicar pelo teatro. É mais barato ter um grupo de teatro do que um jornal.” Foi aí que eu comecei. Mas eu consegui ser o pior aluno du-
veja bem Como surgiu a ideia de montar o Teatro de Arena? Foi por casualidade. Um dia eu estava carregando o material lá do São Pedro, e eu vinha a pé pela Duque [de Caxias]. Quando eu cheguei em cima do viaduto senti um mau cheiro terrível, cheiro de coisa podre, e eu fui ver o que era. Camponês, né? Desci a escada e vi que vinha de dentro de um porão. Olhei pela janela e tava inundado por um esgoto. Aí eu vi aquele baita espaço e pensei: “Isso daria um teatro. Vou procurar o dono”, e aí cheguei ao Romano Tofoli Cullau. Falei com ele, um cara do PRP [Partido Republicano Progressista], direitão... Mas quando viu se entusiasmou. Aí nós pensamos: “O que fazer ali?”. A gente queria um palco italiano, só que mais baixinho. Aí eu fui a São Paulo, lá eu conheci o Augusto Boal. Eu disse a ele o que queria fazer, ele achou ruim e disse: “Por que não faz arena?”. Daí que saiu a ideia. Teve uma parceria com o Arena [de São Paulo] e com o Boal que foi muito importante pra nós. Qual era a importância política do Teatro de Arena naquela época? Bom, foi um ponto de reunião de toda a intelectualidade de esquerda e um ponto de resistência cultural. Eles me prendiam, botavam a polícia lá dentro. A censura marcava, porque ali funcionou toda a resistência. Fecharam o DCE da UFRGS, se fazia o DCE Livre funcionar dentro do Arena, o sindicato dos alfaiates se reunia lá. Vinha o pessoal todo se reunir. Vinha o Tarso Genro, advogado do sindicato. O Carlos Araújo, que era marido da Dilma, eles iam lá. Foi um núcleo de resistência cultural mesmo. Quais foram as principais dificuldades em manter o Teatro de Arena? Dinheiro. Dinheiro e a censura. Porque a verdade é a seguinte: o Governo sempre financiou o teatro. Historicamente, em tudo quanto é lugar, até na Alemanha Oriental, os melhores atores eram do núcleo de teatro, incentivavam os caras a fazer teatro. Não adianta, no mundo inteiro sempre foi assim. Aqui também davam, mas davam de favor,
por interesses políticos, e o Arena não tinha nada disso. Tanto que eu, em 16 anos só recebi 15 mil dólares do estado e da Prefeitura.
“O teatro tem que ter algo a mais. Além de ser diversão, é um instrumento de informação e de questionamento social” O que tu acha do teatro, das peças no Rio Grande do Sul hoje em dia? Ainda existe essa importância política e social como na época do Arena? É difícil falar. Vou muito pouco ao teatro. Eu me decepcionei muito com o que eu tenho visto. Porque eu já discutia muito a diferença do teatro e da televisão. O teatro tem que ter algo a mais. Além de ser diversão, é um instrumento de informação e de questionamento social. Historicamente sempre foi. Tu pega às vezes o teatro grego e o que falaram sobre a sociedade. Essa é a função básica e histórica do teatro. Nada pode ser maior que isso. E o pessoal começou a fazer concessões, fazer produções melhores, gastar, e sem se preocupar com o conteúdo. Eu fazia um teatro de esquerda. Essa foi a tônica que nós mantivemos. E nós conseguimos ter público. Nós fazíamos espetáculos de terça a domingo, hoje tu faz três vezes por semana. E eu sempre dizia: “Vamos pressionar o governo, eles têm que nos dar dinheiro, mas sem começar a fazer o que eles querem. Vamos nos consolidar, vamos criar uma estrutura nossa”. Quando começaram a liberar o dinheiro, o pessoal não tinha uma visão. Só que aí chegou um momento em que nós não tínhamos mais forças. Aí terminamos fechando o Arena. Essa questão de hoje não ter público, por que isso acontece?
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Eu só posso falar do meu tempo. Eu formava plateia. Eu não aceitava fazer espetáculo em lugar nenhum do estado sem fazer debate antes e depois do espetáculo. Aí começou a nos dar dinheiro, porque o público entendia de teatro. O Boal sempre dizia: “Se o povo brasileiro entendesse de teatro como entende de futebol, os espetáculos teriam que ser realizados em estádios.” Porque o teatro ficou um negócio elitizado. Um dos grupos mais importantes que tem em Porto Alegre, que é o Ói Nóis Aqui Traveiz, o espetáculo deles é tão bonito que concorre com qualquer espetáculo de televisão, embora também façam texto. Tá certo, porque não é vazio, mas eles embarcaram numa produção cara. Eu acho que teatro não é isso. Teatro é um texto bem dito, bem interpretado. Uma coisa que a gente fazia com a roupa da gente. Tá cheio de coisas sociais pra serem discutidas, por que tu não usa o teatro? Tu tens uma linguagem. E hoje tu não consegue mais montar uma peça se tu não tiver 50, 60 mil reais. Repara, hoje chegam a dar 60 mil dólares, 50 mil dólares (sic) pra montar um espetáculo. É uma forma de corromper. Como é que tu vai te meter com quem tá te dando a manutenção do teu espetáculo? Mas isso não é uma contradição? Porque o Teatro de Arena buscava o dinheiro público no começo, e agora o senhor diz que esse dinheiro público pode corromper. O dinheiro público é meu, é teu, é de nós todos. E não de quem tá dando dinheiro, não de quem tá no governo. Eles estão repassando. O dinheiro que se dá pro teatro é obrigação do governo, mas pega esse dinheiro e vai ver o que a sociedade tá querendo ouvir. Não a pequena burguesia nem os amantes de teatro. Em teatro tu não vê mais gurizada, porque eles não aprenderam a ter esse hábito. Tu tem que reinventar, descobrir uma forma de discutir com eles. Se eu fosse um cara que estivesse fazendo teatro hoje em dia, eu encontraria a linguagem deles pra poder me comunicar. Porque o teatro é a forma, e eu acho que quando a gente acredita, a gente encontra tribuna em qualquer lugar que tu possa imaginar.
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O PUB MAIS VELHO DA IRLANDA Berço de revoluções contra a Coroa Britânica, o Brazen Head foi, ao longo dos seus 813 anos, mais que um pub: foi cenário da história irlandesa texto Arthur Viana reportagem Arthur Viana e Rafael Gobbo Os escritores James Joyce, Brendan Behan e Jonathan Swift e os revolucionários Wolfe Tone e Daniel O’Connell – além dos já citados Robert Emmet e Michael Collins –, todos eles já pararam para uma pint de Guinness no pub mais antigo da Irlanda. Guinness que, como em todo bom pub irlandês, é mais vendida que todas as outras cervejas somadas, segundo o dono John Hoyne. Com apresentações de música tradicional diárias, o Brazen Head é, de fato, uma viagem no tempo. Ao entrar no pub, é contagiante a ideia de tramar ali o plano revolucionário que libertaria a Irlanda por inteiro – incluindo o Norte –, para que enfim o epitáfio de Robert Emmet seja lido e ele possa finalmente descansar em paz.
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suficientes para afastar Robert Emmet do Brazen Head, o pub mais antigo da Irlanda. Líder da fracassada revolta irlandesa contra a Coroa Britânica em 1803, capturado e condenado à morte, sentenciou momentos antes do seu enforcamento: “Que meu epitáfio não seja lido antes que meu país seja livre”. Enforcado e decapitado, como que a servir de exemplo e desanimar pensamentos revolucionários, Emmet escolheu, então, o Brazen Head para esperar a completa liberdade dos estados irlandeses – o mesmo local que, ainda em vida, fora escolhido por ele como sede para reuniões conspiratórias antibritânicas. Hoje, em uma das salas do pub, existe um caixão. Dado o fato de que ninguém reivindicou os restos mortais de Emmet, por medo da reação britânica, muitos acreditavam que o ataúde pertencia ao líder revolucionário. Mas John Hoyne, dono do Brazen Head, esclarece que o caixão não pertence à Emmet: “Há 30 anos, alguns irmãos vieram a Dublin do interior comprar um caixão para o recém falecido pai. Após a compra, pararam para umas pints aqui no pub e, muitas pints depois, foram embora sem o caixão. Hoje eu o deixo aí por superstição...”, diverte-se. O Brazen Head também foi frequentado, século mais tarde, por Michael Collins, membro do IRA (Irish Republican Army) e líder na criação de um estado independente irlandês em 1921. Segundo Hoyne, foi ali que Collins tomou sua última dose de uísque na vida: “Seis minutos depois ele estava morto, assassinado por uma facção do IRA que não aceitava o tratado que Collins estabelecera com a Inglaterra a fim de tornar a Irlanda independente”. Cenário – real ou imaginário – de muitos fatos de extrema importância na história irlandesa, o Brazen Head é hoje ponto turístico imperdível em Dublin. O pub data de 1198 – mais de
800 anos de história. John Hoyne tem 50 e é dono do estabelecimento desde 2003, quando o comprou por 5,5 milhões de euros. “Somos a sétima ou oitava família a possuir o Brazen Head. Isso me faz muito orgulhoso”, declara. O pub fica localizado na região central da capital irlandesa, próximo à Christ Church, um pouco afastada da região boêmia da cidade – a região do Temple Bar. A localização do pub se dá por ter sido construída ali a primeira ponte para travessia do Rio Liffey, o que transformava o local em ponto de encontro para os dublinenses, que se viam obrigados a passar por ali para transitarem entre as partes norte e sul da cidade. Ana Paula Neri
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UBLIN - A forca e a lâmina não foram
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Entre valas, tacos e cavalos A história da Vila Caddie, onde o golfe é o esporte do povo
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texto Gabriel Hoewell reportagem Cristian Pheula, Gabriel Hoewell e Gilberto Sena
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Gabriel Hoewell
caminho é estreito e tortuoso. Em alguns pontos a passagem não tem muito mais que um metro. O chão de terra batida é poluído por papéis de balas, sacos de pipoca, copos plásticos. Subindo a ladeira debaixo do sol do meio-dia, nos deparamos com contêineres transformados em casas. Pulamos pelo esgoto a céu aberto e desviamos de inúmeros viralatas. As crianças dançam ao som do funk que ressoa pela viela, nomeada oficialmente Avenida Frei Caneca. Onde contêiner é casa e um humilde beco é avenida, uma contradição chama ainda mais a atenção: o golfe da elite aqui é esporte do povo. Não são necessários mais que dez passos para se descobrir um golfista na vila. Encravada há mais de 20 anos no nobre bairro Boa Vista, em frente à Avenida Nilo Peçanha, em Porto Alegre, a Vila Caddie abriga grande parte dos trabalhadores do Porto Alegre Country Club, situado a poucos metros dali. “Quase todo mundo aqui trabalha como caddie lá”, nos relata as senhoras que mateavam na entrada da vila. Caddie é o encarregado de carregar os tacos para os golfistas. Tarefa árdua, conta Alex Muniz, o primeiro dos carregadores com quem conversamos. “Trabalho quatro horas por dia, quase todos os dias, carregando tacos pesados.” A recompensa também não é das mais interessantes: de R$ 30 a R$ 50 por dia de trabalho. A quantia varia de acordo com o golfista, já que os caddies não são funcionários do clube e recebem uma espécie de gorjeta. Os ganhos são o suficiente para alimentar a família. Mesmo
assim, o dinheiro só vem quando o tempo ajuda. Em dias de chuva, com o escasso movimento do Country Club, apenas alguns sortudos conseguem trabalho. “Se chove, a gente passa fome”, lamenta Alex. A mais interessante das recompensas vem nas segundas-feiras. É nesse dia que a grama verde e lisa de um dos mais nobres clubes de Porto Alegre não é pisada pelos endinheirados, mas sim pelos caddies. Os tacos, dados ou emprestados pelos golfistas que treinam no clube, saem da sacola e vão para as mãos de quem os carrega a semana inteira. Quem se destaca sobre a grama do clube é Douglas Pacheco. Enquanto con-
versávamos com Alex, Douglas descia a ladeira com dois tacos sobre os ombros e uma bolinha na mão – cena comum por aquelas bandas. Alex alerta: “Esse cara aí é um dos melhores por aqui”. As premiações não mentem: Douglas já ganhou R$ 300 em um torneio em Brasília e R$ 1000 em São Paulo, com viagens financiadas pelo próprio clube. Consequência de anos de treino não só na verde relva do Country Club, mas também no “campo” da Vila Caddie. Bem no meio do muro que separa a vila da área ao lado, um pequeno buraco nos permite enxergar um terreno irregular, repleto de pedras e mais uma quantidade impressionante de lixo.
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O grande lote pedregoso e esburacado em nada lembra o tapete do Country Club, mas parece ser o suficiente para a prática do esporte. Os moradores mais antigos já deixaram de lado o terreno pouco apropriado para o jogo. A experiência os fez temer as lesões. Nunca se sabe quando o taco pode acertar uma pedra no meio do campo. Alheios a isso e visivelmente apaixonados pelo esporte, crianças e jovens, de 5 a 16 anos, pulam o muro diariamente para dar suas tacadas. Alen “Pitbull” nos mostra sua habilidade. Era inevitável que, mesmo na vila do golfe, o futebol se mostrasse presente. Com o taco, Alen faz infinitas embaixadinhas sem que a pequena bola caia. Os outros garotos também demonstram saber o truque. Mais que isso, Bruno explica a diferença entre os diversos tacos que cada um dos meninos empunha: o driver para tacadas iniciais, fortes e longas; o iron para apenas rolar a bola em um tiro próximo ao buraco. Bruno calça as luvas, crava o tee na grama, segura o taco tal qual um profissional e, em um swing quase perfeito, gira sobre seus pés que vestem Havaianas, jogando a bolinha a perder de vista. O pequeno objeto sobrevoa valas cheias de água camufladas pela vegetação e encobre os cavalos pangarés que pastam após a manhã de trabalho. A bola para a poucos metros de um pedaço de pau com uma toalha vermelha pendurada, que simula a bandeirinha e indica que o buraco está próximo. Em fila indiana, os garotos repetem o movimento. Desta vez, as tacadas são curtas, dentro de um green (a área próxima ao buraco) imaginário. O campo irregular exige conhecimento. Só quem já passou por lá sabe das caídas do gramado e dos efeitos que a bolinha pode pegar até cair no buraco escavado. Balançando o taco que dominam com intimidade, os mais de dez meninos caminham pelo terreno baldio. Mais três ou quatro entram no campo. Eles chegam a tempo de ver Renan. O bico pendurado no pescoço bate na cintura do menino de 5 anos. Ele desencosta do taco no qual apoiava o queixo e se prepara para um swing po-
Gabriel Hoewell
especial
Gabriel Hoewell
tente que, em poucos segundos, impulsionava a bola para longe. Grande parte dos garotos que jogavam naquele final de manhã quente – após a aula e antes do almoço – começou como Renan. O mais velho, Odair, 16 anos, conta que já joga há tempos. Quando tiver idade suficiente, pretende seguir o trabalho do pai. Quer ser caddie: “É um dinheiro bom, né?!”. Por enquanto, eles apenas brincam, fazendo dos tacos armas que atiram as bolinhas em diversas direções, em um verdadeiro fogo cruzado. Onde a bola vai parar pouco importa, já que elas parecem brotar infinitamente dos bolsos dos casacos dos meninos. Na
verdade, elas são dadas pelos golfistas do clube e frequentemente encontradas no meio da rua que percorre a vila – resquícios de tacadas imprecisas vindas do Country Club. Elas se proliferam entre os garotos e caddies, que chegam a transformá-las em chaveiros. Bolas perdidas também são perigosas: Alex Muniz relembra as diversas vezes em que sua casa, desafortunadamente localizada atrás de um dos buracos do clube, foi acertada. Já é hora do almoço e as mães começam a chamar seus filhos para casa. Abandonamos o gramado pedregoso. Passamos por cima das tá-
buas que constituem o único acesso por terra entre a vila e o terreno baldio – o outro é por ar, pulando o muro -, atravessamos a casa que abre as portas para os meninos chegarem ao campo e estamos de volta à Avenida Frei Caneca. Seguimos nosso caminho, ainda impressionados com as hollywoodianas cenas que acabávamos de ver. Em pouco tempo, aquilo que há pouco presenciamos não se repetirá mais. A Vila Caddie está crescendo cada vez mais e o Departamento Municipal de Habitação já estuda transferi-la para outro local. Por enquanto, a bola segue voando sobre valas e cavalos.
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ONDE ATÉ O PAPAI NOEL SE RENDE AO JAZZ Uma noite no porão de Ivone Pacheco
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oite de segunda-feira. Somos recebidos pela pequena estátua branca que repousa, soberana, no pequeno terraço da casa. Sob os portões arregaçados, convidativos, a cerca elétrica está de folga, na calmaria da rua. Atravessamos o portão - ou portal? - e vamos descendo a ladeira em direção ao porão. No meio do caminho, vem subindo, em sentido contrário, as primeiras notas do jazz: um grato encontro. Logo mais, algumas pessoas conversam no entorno de uma mesa. Sobre ela, frutas se alcoolizam imersas em vinho branco. Espichando a cabeça para dentro da sala, é possível enxergar os músicos já correndo contra o suor, enquanto a primeira-dama do Take Five Club de Jazz, Ivone Pacheco, acompanha interessada a apresentação, sentada na poltrona mais imponente da sala. É novembro. Ainda assim, o Papai Noel já anuncia através das notas de seu trompete a noite feliz que se aproxima. Na verdade, crianças, o bom velhinho é apenas Ramiro Kersting, músico experiente que já chega intimando a anfitriã a assumir o piano e a acompanhá-lo com alguns acordes natalinos, no último encontro de 2011. Sobre o pequeno palco do Take Five, Ramiro - um dos primeiros frequentadores do clube - pode tocar o que quiser. Quando em serviço, costuma ser contratado para tocar uma ou duas músicas, para casais apaixonados, daqueles que ainda prezam por jantares à luz de velas. É daí que costuma vir o maior retorno financeiro. Certa vez, Ramiro tocou até música espanhola para entidade incorporada em cigana. A carreira de um músico profissional é árdua e, na maioria das vezes, mal remunerada. Grande parte deles toca nas noites. Nem sempre os músicos têm a liberda-
Gabriel Hoewell
texto e reportagem Cíntia Warmling, Gabriel Hoewell e Luciano Viegas
O bom velhinho Ramiro Kersting sempre é uma das atrações do palco do Take Five Club de Jazz
de de escolher o próprio repertório. Quando contratados para festas particulares, eles são transformados em um jukebox. Os anfitriões pagam e escolhem as músicas. É nesse contexto que os encontros como o do Club do Jazz soam como um oásis, um nirvana. Aquela segunda-feira tem algo de especial: é a celebração do dia do músico, com direito a Parabéns pra você no virar da meia-noite. No entanto, é apenas mais uma das incontáveis reuniões que o clube já recebeu. O Take Five se formou há quase 30 anos, quando a dama do jazz porto-alegrense, Ivone Pacheco, hoje com
praticamente 80 anos, despejou os ratos do porão de sua casa. Quem sugeriu foi o músico Marcos Ungaretti, que viu Ivone se apresentar em Tramandaí, num piano público para alunos da UFRGS. A esta altura, ela já tinha 50 anos, e só tocava informalmente. Manteve o descompromisso: pintou a parede do porão de sua casa de preto, mobiliou o local, desceu o piano para o andar de baixo e convidou alguns amigos. O gosto pelo jazz já vinha da paixão pela cultura norte-americana, dos filmes que assistia na infância. Não se enganem: apesar do McDonald's e da rosa de
Luciano VIegas
No porão de Ivone Pacheco, o Natal Luz chega mais cedo
que haja espaço para músicos de todas as idades – e, naquela noite, de todos os gêneros –, dos mais profissionais aos amadores da música. Após cada apresentação, passa a fazer sentido o nome do clube: take five, nas palavras de Ivone, “aguenta cinco minutos aí que vai trocar a banda”. E, a cada espetáculo que se segue, mais a plateia – que já se sente em casa, acomodada em confortáveis cadeiras de madeira e sofás –
se encanta. O improviso do jazz e o lamento que contrasta com a enfurecida gaita de boca, no blues que empolga a todos, deixam os espectadores com os olhos vidrados e os pés a bater no chão. A qualidade e a diversidade apaixonam. Naquele recanto da música cabem todos os prazeres, segundo a própria anfitriã: "O jazz é o arreto, o blues é o orgasmo e o rock é o ato em si. Em si bemol".
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Hiroshima, lá também nasceu Dave Brubeck, pianista e autor da música que dá nome ao clube. Nas paredes pretas do aconchegante porão estão pendurados vários quadros com referência a Nova Orleans, cidade polo deste estilo repleto de cabeças movidas a sopro, epifanias e heroína - como Miles Davis, John Coltrane e Chet Baker. A própria Ivone já tocou três vezes no berço do jazz. Por Nova York e Nova Jersey apresentou o som de seu acordeão em vagões de trem. As primeiras notas da dama do jazz foram tiradas do piano do hotel de seu pai, onde morava com a família, quando tinha apenas 4 anos. Aos 8, já começou as aulas de piano, porém, dez anos mais tarde, teve de abandonar os estudos. Veio o casamento, os filhos e a morte da mãe. Mas a vida revira e volta: hoje ela ainda toca, com as mãos marcadas pelo tempo, o ritmo que a encantou quando menina. O local em que Ivone e seus colegas tocam muitos sabem onde fica. No entanto, ninguém sai dizendo aos sete ventos. A localização do Clube de Jazz não é divulgada. No começo, os convites eram feitos por telefone. Desde que a organização foi transmitida à Rosa, filha de Ivone, tudo é resolvido por e-mail. Os frequentadores são, no máximo, amigos de convidados. O mistério em torno do clube tem motivos claros: uma senhora com 80 anos não pode receber um número exorbitante de pessoas em sua casa. Imagine quando são oferecidos quitutes e vinho branco à vontade. Além disso, o espaço no porão não é dos maiores. Mesmo com um número pequeno de convidados, alguns acabam ficando do lado de fora, fumando e bebendo – o que não agrada Ivone, já que os músicos ficam escanteados por aqueles que vão lá apenas para conversar e beber. Eis que um pequeno “pachequinho” surge e segue decidido até o piano da avó. Com as mãos pequenas, que mal alcançam as teclas, ele tenta a sorte. Nada muito melódico, porém, uma gracinha. Ela, já hipnotizada pelo pequenino, continua a dedilhar de um lado do piano. E logo alguém já anuncia a fatídica frase “vai seguir os passos da avó”. E por que não? Algumas músicas depois, Ivone sai de cena. Não é só a idade que não permite que seu show continue, mas o próprio “regulamento” do clube. Não é nada formal, mas todos estão cientes de que o palco é aberto e não permite longas apresentações. Os shows são curtos para
contracapa
O INCRÍVEL CASO DO JACARÉ LUMINOSO E OUTRAS HISTÓRIAS texto e reportagem Gabriel Hoewell e Ramiro Simch um ser fantasmagórico que ignora a presença humana enquanto a domina. A embriaguez de Lucas torna-se insignificante. Na verdade, agora ela parece ser sua condição natural, e aquela visão sim um exemplo real de consciência alterada. Ou um exemplo real de vida secreta. André Lacasi
É
quase meia-noite em Viamão e o amargor de Lucas é quase sólido, flutuando ao seu redor na quase rua. O luar é robusto, mas nada hoje conseguirá clarear seu estado de espírito. O rapaz, de 16 ou 18 anos, pisa com raiva na via nua como a mulher deitada com seu pai. Amaldiçoando o viúvo, que troca a memória da esposa por qualquer outra, ele arrasta os pés na terra e sorve um asqueroso vinho. Embora caminhe sozinho, Lucas não está só. Um companheiro gigante e silencioso o ladeia: Tarumã, lago com mais de um quilômetro e meio de perímetro, formado artificialmente nos anos 1930 a partir do aterramento dos banhados nativos. Integrante recente da vizinhança, Lucas desconhece o retrospecto da massa d’água. Logo, não a respeita. O adolescente, já parcialmente comprometido pelo consumo do álcool, sai do caminho e invade a faixa de capim ciliar. Acomoda-se às margens do lago, pensativo. Lucas vive sem alegrias desde a morte da mãe, um ano atrás. Sobrou-lhe apenas o genitor, contador aposentado, da velha escola, grosseirão. Há duas semanas mudaramse para Viamão, e o clima suburbano da cidade somente acentuou a melancolia. Bêbado, o garoto provoca o Tarumã com pedras. Os projéteis chocam-se sem ruído com a superfície, que se enruga de forma assustada. Lucas sorri, poderoso pela primeira vez na vida. Rapidamente o mundo encolhe-se àquilo: seu braço, a pedra, o colossal espelho à sua frente e a solidão momentaneamente tapeada. Só instantes mais tarde ele nota o surgimento próximo de dois pontos luminosos na tona do lago. Os focos reluzentes são de fato as extremidades de dois feixes de néon azulado, que cortam a noite partindo de um par de olhos à direita de Lucas. A luminosidade rapidamente contamina a cabeça e o corpo de um substancial jacaré, que repousa sobre a grama, solene – excessivos metros de malícia distribuídos perfeitamente do focinho à ponta da cauda. O bicho brilha no breu,
Enquanto isso, na vida real Nosso Lucas não existe. O jacaré luminoso provavelmente também não. É possível que seja apenas uma criação, uma história alimentada há várias décadas, de geração em geração, porém pouco difundida para além dos limites do município de Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre. Não há quem prove a existência da criatura do Lago Tarumã. A lenda parece não passar de uma grande brincadeira para a maioria da população. Para alguns, contudo, o assunto é coisa séria e digna de estudo. O jacaré luminoso está na lista dos animais pesquisados pela criptozoologia, área não reconhecida cientificamente e no limbo entre a ciência e o hobby. A disciplina se dedica a pesquisar os animais ignorados pela zoologia convencional. E, muitas vezes, as descobertas de quem não se prende à biologia tradicional são surpreendentes. O tão famoso gorila, por exemplo, já teve sua existência questionada pelos zoólogos. Foi somente no século XIX que um naturalista norteamericano descobriu que os homens grandes e peludos das florestas africanas eram, na verdade, animais. Além deles, ornitorrinco, guepardo, bisão e ocapi - uma mistura de girafa com zebra e símbolo desta (pseudo)ciência - são outros dos seres que até pouco tempo eram considerados meros embustes pela comunidade científica. É verdade, também, que outros seres – como o chupa-cabra, o monstro do Lago Ness e o pégrande - ainda estão longe de ter sua existência comprovada ou negada pelos criptozoólogos. O jacaré luminoso de Viamão, por exemplo, nunca foi fotografado nem filmado, e jamais foi
visto por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. A explicação científica para o surgimento da lenda faz sentido. O biólogo e criptozoólogo Paulo Aníbal Mesquita acredita que, antigamente, na macrorregião onde foi construído o lago artificial, existiam exemplares do jacaré de papo amarelo. Em uma noite de calor, a luz da lua cheia refletiria no couro molhado do réptil, justificando a luminosidade. A luminescência provocada por alguns gases, em determinadas condições de temperatura e umidade de um ambiente com alta atividade de decomposição, dariam ao jacaré um aspecto fantasmagórico. O tamanho demasiado do animal é perfeitamente plausível, explica Mesquita. Graças a alterações genéticas naturais, já foram encontrados jacarés de papo amarelo com quase 4 metros de comprimento. O fato é que a lenda se popularizou entre os moradores da região e acabou virando diversão. Os mais antigos viamonenses certamente já ouviram histórias de casais que esperavam a lua cheia para ir à beira do lago brincar de procurar o jacaré luminoso.