o cotidiano é excludente edição 7 ano 1 2012
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a luta lgbt
nas brechas da lei para exercer cidadania
marcelo branco hackear é preciso expatriados do mundo comunista ao brasil
editorial
T
oda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” diz o artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Todo ser humano tem direito de existir, com todas as suas complexidades e individualidades. Tanto para questões de nascimento, como etnia, quanto para questões de escolha, como religião, todos têm o direito de se expressar, de viver, de amar, e não precisam de permissão para tais atos. Por que, então, deveria ser diferente com homossexuais? Por que é preciso um aval da sociedade? Nascemos e somos criados em um país regido pela heteronormatividade, que mantém o “padrão” comportamental e social no topo de uma pirâmide e sujeitos “estranhos” na base, na periferia. Quem foge à regra acaba sofrendo, e os exemplos estão todos aí, com uma crescente onda de atos de violência para os que fogem das normas em busca do direito de ser feliz. Declarações de religiosos como a de que o casamento homossexual “ameaça o futuro da humanidade” só demonstram o quanto estamos cegos e atrasados. Permitir o casamento de pessoas do mesmo sexo ou criminalizar a homofobia não deveria ser uma questão urgente, deveria ser uma questão já resolvida. Porque enquanto tratamos desse assunto, a falta de educação, de alimento, a violência, o aquecimento global, algumas das verdadeiras ameaças à humanidade, ainda estão todas aí.
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torre à vista! Redação André Lacasi, Arthur Viana, Carlos Machado, Cíntia Warmling, Douglas Freitas, Gabriel Hoewell, Gilberto Sena e Luiza Müller Projeto gráfico e editoração Ana Elizabeth Soares e Ramiro Simch | Revisão Lisiane Danieli Capa André Lacasi | Arte André Lacasi, João Filipe Padilha, Lucas Monteiro, Paulo Lange e Ramiro Simch Relacionamento Ana Paula Neri, Maurício Pflug e Samantha Diefenthaeler Colaboradores Ariel Santos, Anelise Ennes, Maitê Felistossa, Marcel Hartmann, Priscila Daniel, Rodrigo Steiner e Vitório Beretta Web www.bastiao.net | www.twitter.com/revista_bastiao | www.facebook.com/revistabastiao Tiragem Mil e quinhentos exemplares Praça Júlio de Castilhos, 74/152 - Porto Alegre - RS - Brasil | (51) 3311.1025 | Fevereiro de 2012
veja bem
MARCELO BRANCO, O MILITANTE DIGITAL entrevista Douglas Freitas e Gabriel Hoewell
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omos responsabilizados pela Dilma não ter ganhado a eleição no primeiro turno”, revela, incrédulo, o coordenador de mídias sociais da campanha da presidenta Dilma Rousseff, em 2010, quando fala do fogo amigo que recebeu naquele momento. Marcelo D’Elia Branco participou da formação do Partido dos Trabalhadores (PT), nos anos de 1980, e hoje diz ser um militante “lado B” do PT. Mas, antes de político, ele é um ativista digital. Por três anos, liderou a direção do Campus Party Brasil. Hoje, é um dos coordenadores do projeto Software Livre e, recentemente, em Porto Alegre, organizou o evento mais inovador dentro do Fórum Social Temático 2012, o Conexões Globais 2.0. Marcelo Branco trabalha com tecnologia da informação desde sempre – ou pelo menos desde que se formou no curso técnico de Eletrônica da Escola Parobé, em fins da década de 1970. Com fala rápida, na ânsia de quem está sempre conectado, o ativista digital conversou com o Bastião durante pouco mais de uma hora em um café do bairro Bom Fim. Na entrevista, ele expõe os bastidores da campanha de 2010, critica o retrocesso político do Ministério da Cultura e se entusiasma ao comparar a cultura digital com movimentos fundamentais na história brasileira.
E como ocorreram os ataques desse fogo amigo durante a campanha? Saíam notícias a todo o momento n’O Globo: “Segundo a coordenação de campanha, Branco vai cair por gafes”. A foto da Norma Bengell, que foi uma das acusações de erro nosso, foi obra do
publicitário João Santana, em um site da Blue State Digital, que era coordenado pela assessora de imprensa da campanha, Helena Chagas. Quem colocou a foto não fomos nós, mas caiu na nossa conta. O mesmo para o programa de rádio, muito mal feito – diga-se – Fala, Dilma, que era dirigido pelo Rui Falcão e pela Helena Chagas. Entre o primeiro e o segundo turno foi ainda pior. Saíram notícias em que eu fui responsabilizado por Dilma não ter vencido direto no primeiro turno. Vários jornalistas amigos meus
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Bastião - Como foi o trabalho na campanha da presidenta Dilma? Marcelo Branco - Primeiro, nós demos a volta duas vezes ao Brasil com a Caravana Digital, que trabalhava com jovens militantes ligados às mídias digitais. Isso foi importantíssimo para conhecermos quem eram esses militantes do PT e, principalmente, porque esse projeto trouxe para a campanha da Dilma pessoas que não eram ligadas ao partido anteriormente, que não eram militantes políticos, mas sim militantes da cul-
Gabriel Hoewell
tura colaborativa. Para mim, foi fundamental conhecer essa militância dentro do partido, onde ainda há essa vertente revolucionária, inovadora, que não se deixou ser consumida pela burocracia que cada vez mais toma conta do PT. Foi uma experiência rica, mas com contradições. Nós fomos combatidos na campanha por fogo amigo durante todo o tempo. O difícil não foi enfrentar os tucanos e a direita. O mais complicado, para mim, foi enfrentar o fogo interno que vinha da campanha. Então – com nosso trabalho nas redes –, fomos combatidos por agências de publicidade clássicas, que até então dominavam o cenário das campanhas políticas e nos viram como alguém que estava roubando parte do seu mercado. E, de certa forma, sofremos também repressão do poder político do PT. Nos momentos iniciais, a campanha digital mobilizou o Brasil inteiro e isso causou problemas com quem manda no partido, que é a cúpula de São Paulo. N’A Privataria Tucana, de Amaury Jr., ele cita, no penúltimo capítulo, exatamente isso. Não sei se quem ele acusa no livro, o Rui Falcão, é realmente a pessoa responsável por tudo. Mas o que o Amaury fala é apenas um grão de areia.
veja bem me confirmaram que essas informações eram passadas por pessoas de dentro da coordenação de campanha. Nos jornais, responsabilizavamnos por não termos percebido os boatos religiosos e contra o aborto que vinham nas correntes de e-mails. Pelo contrário, nós percebemos isso através do nosso monitoramento das redes e avisamos a coordenação de campanha. O retorno que recebemos foi para manter a pauta positiva sem citar esse assunto. Sendo que quem tinha as ferramentas e a responsabilidade de monitorar essas correntes de e-mails e responder era a assessoria de imprensa oficial – coordenada, de novo, pela Helena Chagas e pelo Rui Falcão –, Pepper Comunicação e a Blue State Digital, que trabalhou na campanha do Obama. Então, essas foram algumas das partes desagradáveis durante a campanha de 2010. Pensando no sistema de campanha em si, tu acha que as agências de publicidade tradicionais tendem a ter um olhar mais atento para as mídias sociais nas próximas eleições? Acho que sim, as agências tradicionais devem se modificar. A publicidade enfrenta um desafio hoje: como se relacionar com o que é feito na rede, que é diferente da publicidade feita em massa, com a qual todos estavam acostumados até então. Eu sinto não ter trabalhado com uma agência de publicidade 2.0 na campanha. Eu esperava que o PT nos oferecesse uma empresa especialista em mídias digitais. Construímos – de forma colaborativa e com a experiência que eu tinha até então nas mídias sociais – metodologias, ferramentas de monitoramento, tudo o que deveriam nos oferecer. Agora, a publicidade, como o jornalismo, vive uma crise de compreender o que era a comunicação de massa. Disponibilizar conteúdo broadcast e qualidade esperando o retorno, hoje não é mais assim. A construção colaborativa, não só de conteúdo, mas também das marcas, é o grande desafio da publicidade hoje. A marca só vai ter sucesso nas mídias sociais se for construída com os consumidores. O desafio da agência é justamente envolver o con-
sumidor nesse processo. E não foi para isso que foram formados a maioria dos profissionais que hoje estão no mercado. Eles se trancam no escuro esperando o insight de uma peça publicitária genial. Na mass media até funcionava, mas na internet não tem funcionado. Os vídeos produzidos pelas agências na campanha da Dilma não foram os mais vistos. Os mais divulgados foram produzidos por apoiadores.
“Se há uma novidade em movimento cultural no Brasil hoje, como foi a Tropicália, a Bossa Nova, é o movimento de cultura digital” Como funcionou essa política de colaborações durante a campanha? A eleição da Dilma rompeu um paradigma no Brasil e talvez no mundo. Pela primeira vez uma campanha foi transmitida em tempo real por streaming. Mais de um milhão e meio de pessoas assistiram aos comícios do PT pela internet. Nós tínhamos, por exemplo, em Juiz de Fora, 20 mil pessoas presentes no evento e 30 mil pessoas assistindo pela web. O streaming não está aí para concorrer com a audiência da televisão, do rádio e do jornal, que ainda é muito maior. A transmissão ao vivo pela internet amplia a capacidade de colaboração. Sobre a Dilma, tudo era postado por apoiadores muito antes dos portais, da TV e do jornal de papel. Quando chegava ao portal, tinha três horas de atraso. Na TV, doze horas. E no jornal a informação já estava defasada um dia. Alguns teóricos questionam a cobertura colaborativa por ser uma valorização do amador. Como tu vê isso? Nesse momento, esses teóricos têm que refazer sua teoria. A qualidade da cobertura hoje está relacionada com a capacidade de dialogar com o público. A internet colocou, pela primeira vez,
leitor e editor na mesma plataforma de mídia. Mudou a natureza da comunicação, os portais de notícias são da era 1.0, em que as grandes empresas, como The New York Times e BBC, dominavam o cenário. Hoje, eles caíram para 5º, 6º em audiência. Os sites mais vistos atualmente são os portais de cobertura colaborativa. Então, é claro que a notícia, deve ser construída mediada pelo público. Cada um dá o seu significado para a informação, até hierarquizando novamente. Muitas vezes, uma notícia secundária ou que não está em nenhum portal passa a ser a notícia mais comentada do dia na internet. Essa democratização da produção de informação colabora com a democratização política da sociedade? Acho que sim. Quando vemos as manifestações que se espalharam pelo mundo em 2011,o papel das mídias sociais, o “eu sou uma mídia”, foi fundamental. Isso tem pressionado enormemente a construção de uma nova democracia. Os jovens das ocupações não eram contra a democracia, mas eles estavam questionando, com suas ferramentas multimídia, os limites da democracia representativa, que, na verdade, é um ritual. Não estou dizendo que o parlamento já era; os jovens reivindicavam mais democracia direta, mais participação interativa. É óbvio que os governos, atualmente, não têm respostas para isso tudo, mas alguns, como o brasileiro, tentam pelo menos se preocupar com essas dinâmicas sociais que pressionam a democracia offline, que é insuficiente para a comunidade em rede. Os jovens se relacionam de modo diferente. Para combinar uma festa, para compartilhar música, para tudo eles usam as ferramentas digitais. Então por que não usar essas ferramentas na democracia institucional? As novas mídias têm ajudado muito na busca por uma política de maior qualidade. Vimos isso na campanha da Dilma. Os apoiadores, militantes na web, formaram um terceiro bloco de opinião. Até então quem se comunicava eram os candidatos (partidos políticos) e a mass media com sua cobertura. Não existia outra
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André Lacasi
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forma de a opinião pública ser formada. Pela primeira vez, em 2010, cada indivíduo poderia se manifestar. Houve mais posts de militantes políticos que de portais mass media e que da própria coordenação de campanha Rodrigo Steiner
da Dilma. Cada eleitor fazia a sua militância: isso influi muito não só nos rumos da eleição como no próprio sistema de campanha do partido. Isso incomodou a quem sempre fez uma campanha de cima para baixo, quem sempre deu a linha do que seria dito. Então, realmente colabora para uma abertura das possibilidades.
A liberdade na Internet realmente corre perigo com projetos que defendem a propriedade intelectual e o direito autoral, como SOPA, PIPA, ACTA, Lei Azeredo? Corre, e a gente hackeia (risos). Sempre vai haver a iniciativa de driblar essa tentativa de controle e censura. Mas existe, sim, ameaça dentro de três pilares na internet: no que diz respeito à nossa privacidade, com o uso das nossas informações
Como tu vê a atuação política de coletivos livre como o Fora do Eixo, o Software Livre, por exemplo? O papel dos movimentos sociais é pressionar de fora para dentro, com uma visão de ocupar os espaços. Hackear é isso! Quem quer se manter só criticando e não aproveitando o bom momento político que vivemos no Brasil não entendeu nossa atual realidade. Mesmo com retrocessos pontuais, nós vivemos um momento de conquista. Então temos que fazer aliança com o poder público, sim, desde que se mantenha a autonomia e independência dos movimentos sociais. Vou dar um exemplo: o 15 de Outubro, que foi um dia de mobilização global, aconteceu no Brasil também. Em vários estados do país, como Rio de Janeiro e São Paulo, a presença de militantes de partidos políticos foi escorraçada. Em Porto Alegre, nós convocamos os militantes de esquerda para estarem juntos, tivemos 21 mil pessoas na manifestação e transmitimos pela internet com 30 mil acessos, e foi o maior 15O do Brasil. Aqui no país é importante reconhecer o papel e a vitalidade que os militantes partidários ainda têm. Então não dá para negar a importância dessas alianças, como as que aconteceram aqui em Porto Alegre através do Conexões Globais, onde conectamos os novos movimentos e novos ativistas com debatedores com prática em dinâmicas partidárias.
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Como tu analisa o trabalho da ministra da Cultura, Ana Buarque de Hollanda? Não dá para colocar na pessoa da Ana de Hollanda o retrocesso político que vive o Ministério da Cultura. O PT, que assumiu com a Ana pela primeira vez o MinC, tem uma responsabilidade bem grande por tudo que está acontecendo. Não há dúvida nenhuma de que o ministério vive um regresso, uma reação conservadora a tudo que foi construído nos oito anos do governo Lula. A Lei do Direito Autoral é uma delas. A galera que está no MinC apoia o PIPA e o SOPA. Aliás, na reforma do direito autoral há um item que é a retirada do conteúdo sem direito autoral. Basta alguém reclamar de um conteúdo que o provedor vai ter que tirar esse do ar sem mandado judicial, provando que aquilo realmente é ilegal. Veja bem, esse provedor passa a ter o papel de polícia para vigiar o que é veiculado. Mas não é só isso. O Gilberto Gil, com o Lula e com o Juca [Ferreira, ex-ministro da Cultura], inverteu as prioridades no MinC, brincou, financiou e tentou construir uma cultura popular. Para onde tinham que ir os recursos? Para o Bumba-meu-boi, para o Mestre Felipe do Tambor de Crioula, para a cultura popular do grupo Odomodê, aqui de Porto Alegre. O foco estava no público, em quem tem que ser usuário da cultura. Claro que o Chico Buarque, a Maria Bethânia têm o seu valor, mas a
cultura no Brasil sempre foi feita para os consagrados; no governo do Collor, do FHC foi assim. O MinC não é sindicato de artista, não é para fazer políticas para os artistas, é para fazer políticas culturais para o conjunto da população. Se há uma novidade em movimento cultural no Brasil hoje, como foi a Tropicália antigamente, Bossa Nova e tantos outros movimentos fortes que tivemos no país, é o movimento de cultura digital, que tenta trabalhar a internet como uma realidade. A internet acabou com o monopólio de gravadoras, de editoras, de intermediar burocraticamente o conteúdo entre artista e consumidor. Constituiu-se no Brasil, nos últimos oito, nove anos, uma discussão de como construir uma nova indústria cultural tendo a internet como base, que pudesse beneficiar o cenário artístico. Ainda não temos um resultado sobre isso. Mas está mudando. Então, eu torço para que essa tendência conservadora no Ministério da Cultura seja revertida, não só da Ana, mas de todo o núcleo.
por grupos jovens como Facebook, Google, para fins políticos e comerciais; as empresas de telecomunicações, que querem quebrar a neutralidade na rede para controlar o fluxo dos pacotes na web; e a indústria cultural, com projetos de leis como o SOPA, PIPA, ACTA, defendendo a propriedade intelectual. O ACTA é uma grande ameaça, pois trata de falsificação além da internet. Se for aprovado, por exemplo, os medicamentos genéricos passam a ser crimes.
NAS BRECHAS DA LEI reportagem e texto André Lacasi e Luiza Müller
André Lacasi
“Para os LGBTs, o cotidiano é excludente. Por isso, é necessário que se amplie alguns direitos, acentue-se algumas diferenças, para aí sim trazer todos a um patamar de igualdade”, explica Bernardo Dall´Olmo de Amorim, advogado da ONG porto-alegrense SOMOS, que trabalha com questões envolvendo sexualidades e comunicação. Acentuar diferenças para gerar igualdade pode soar um tanto contraditório. Contudo, para o movimento LGBT, ações como o Projeto de Lei 122, que pretende criminalizar a homofobia, além de leis específicas que determinem o casamento homossexual igualitário e o registro do nome social de transexuais e travestis, por exemplo, são essenciais para que gays possam exercer seus direitos de cidadão tão plenamente como qualquer heterossexual.
Sopa de letrinhas LGBT é o termo utilizado atualmente para designar o movimento de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros. Essa sopa de letrinhas substituiu a antiga sigla GLS, abarcando especificidades antes disfarçadas na letra S, de simpatizantes. Pois, diferentemente de gays, lésbicas e bissexuais que expressam sua orientação sexual na atração pelo mesmo sexo, ou por ambos os sexos, travestis, transexuais e transgêneros vivem a questão da identidade de gênero. Nessa realidade, o indivíduo possui a mentalidade de mulher, os sentimentos e anseios femininos, contudo presos em um corpo masculino, ou vice-versa. Marina Reidel, professora de Artes e mestranda em Educação, explica que compreender sua transexualidade foi um processo complexo. “Eu venho de uma cidade do interior. Lá eu não recebia muita informação sobre o assunto. Na adolescência o que diziam era que eu era gay, mas a situação não era essa e eu só fui entender isso muito mais tarde, já adulta, quando comecei minha transformação”, conta Marina, que hoje é coordenadora da ANTRA (Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Brasil). Já Marcelly Malta, presidenta da Igualdade RS (Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul), relata ter-se descoberto muito cedo, com apenas oito anos. Já aos 15 foi para Porto Alegre, onde começou a “batalhar”. “Na época era batalha que a gente falava, não falava prostituição ou profissional do sexo”, explica com orgulho. Contudo, a vida na noite não era fácil. Do alto de seus 62 anos de experiência, Marcelly conta que era presa com frequência pela lei da vadiagem, que era usada como desculpa para poder prender travestis. “Era muito difícil ser travesti, te assumir como travesti e te ver 24 horas como travesti. Foi uma luta muito lenta até saber o que eram os direitos humanos”, relembra Marcelly. Niamei Nabarro, estudante de relações públicas, 22 anos, representa a geração mais nova.
Acolhido pela família, o estudante encontrou em casa a força necessária para assumir-se gay e peitar a realidade. “Hoje, eu acho que o mais difícil com certeza é a batalha que tu trava contigo mesmo. Por isso ter o apoio da família é tão importante. Depois de ser aceito em casa, tive muito mais segurança de assumir minha homossexualidade para mim mesmo e para o mundo”, reflete Niamei. Como educadora, Marina Reidel avalia a geração de Niamei como mais livre de preconceitos do que a sua. “O importante é trabalhar essas questões com os jovens. A escola é um ambiente no qual me sinto muito à vontade, por exemplo. Fiz minha transformação enquanto inserida no ambiente escolar e fui muito bem aceita e tratada pelos alunos”, conta. Já Dayana Brunetto, 36 anos, que também é professora, diz que a relação com estudantes se constrói de forma mais tranquila do que com professores, embora, existam alguns jovens que foram criados como fundamentalistas religiosos, o que dificulta a convivência. “Os padrões permanecem hegemônicos e, por mais que eu seja uma lésbica feminina, estou longe do padrão de feminilidade aprovado pela sociedade”, relata. Dayana e Leo Ribas, 39 anos, assinaram o primeiro contrato de união estável entre lésbicas no Brasil, uma conquista de toda a classe homossexual reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em 2011. Tal decisão do STF criou um precedente para ser seguido por outras instâncias da Justiça e da administração pública.
Amor – o processo legal Entretanto, precedentes como a união de Leo e Dayana são conquistas parciais. A união entre pessoas do mesmo sexo não está expressa na lei, o que obriga casais a batalhar para fazer da exceção a regra. Por meio das brechas da lei, “o que não é proibido é permitido”, e foi através dessa lógica que outro casal de lésbicas pode oficializar sua união como casamento, na cidade de Bagé, em dezembro de 2011. Contudo, o advogado Bernardo ressalta: “O casamento homossexual
no Brasil não está legalizado, muita gente vai ouvir ‘não’, vai ter que procurar o judiciário e vai ouvir ‘não’ no judiciário também. Enquanto não houver uma lei que deixe isso claro, os casais gays estarão sujeitos à interpretação dos julgadores”. Essa interpretação apresenta-se como o fator mais limitante para LGBTs que desejam oficializar sua relação. Entretanto, o reconhecimento da união estável enquanto família já foi conquistado. Anteriormente, a discussão patrimonial de um relacionamento homossexual era tratada na vara cível. “Era como dizer que um relacionamento de afeto não era para homossexuais, que uma união homossexual era apenas uma parceria com direitos obrigacionais”, pondera Bernardo. Nesse contexto, a questão da herança também se apresenta como uma grande batalha vencida. “Antigamente tu via um relacionamento durar anos e as pessoas constituírem patrimônio juntas... Mas como não é possível colocar um patrimônio no nome de duas pessoas, apenas uma obtinha a posse legal dos bens. Aí morria a bendita pessoa que era proprietária do bem e o companheiro ou a companheira ficava a ver navios”, afirma o advogado Amorin.
Ódio – a defesa Analisando sua trajetória, Marcelly Malta reconhece que as coisas mudaram desde o tempo em que começou a se travestir e ressalta que hoje a própria mídia é uma aliada. “A violência hoje está na mídia, anos atrás isso não acontecia. Antigamente, se matava uma travesti e não aparecia na TV, porque não interessava pra sociedade”. Ela salienta também a importância das redes sociais, que permitem que no mesmo dia se saiba quando uma travesti é morta ou espancada em qualquer lugar do país, e logo as instituições começam a se articular e exigir respostas. “São crimes fúteis. Matei um ‘viado’. Matei uma travesti. Por quê? Quando alguém quer matar uma pessoa dá um tiro, dois, não 40 tiros, 40 facadas. É uma transfobia tão grande que as mortes são sempre brutais. São crimes de puro ódio”.
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Somos todos iguais perante a lei? Segundo o advogado Bernardo Amorim, há dois tipos de igualdade: a igualdade formal e a igualdade material. A formal se expressa na famigerada afirmação: “todos são iguais perante a lei”. Já a material é a que se dá através de medidas adotadas com o intuito de ampliar os direitos de determinado seguimento da sociedade, ou seja, deixar as pessoas diferentes, para que, a partir dessa diferença, atinja-se um nível de igualdade. Ainda segundo Amorim, todas as minorias acabam tendo de agir dessa forma. “Muitos podem afirmar que dessa maneira, os benefi-
ciados por esse direito estão em vantagem. Mas ao contrário, é dessa maneira que todos ficam em pé de igualdade”, completa o advogado. É nesse contexto que entra a aprovação do PL 122, projeto de lei que tramita no senado e tem como principal objetivo criminalizar a homofobia. De acordo com o Movimento LGBT, a questão é mais que urgente no Brasil, visto que o país detém o recorde mundial de assassinato de gays. Em 2010, foram 260 mortes. Dentre os assassinatos, 140 gays (54%), 110 travestis (42%) e 10 lésbicas (4%), segundo dados do Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais, realizado pelo Grupo Gay Bahia. Atualmente, os LGBTs utilizam-se das brechas da lei para exercer os seus direitos. Além disso, beneficiam-se do fato de o judiciário não ser influenciado por disputas de poder político. No legislativo, o PL 122 gerou inúmeras polêmicas e trouxe a oposição das bancadas religiosas e conservadoras. O texto chegou a ser reformulado de forma a não ferir entidades religiosas, porém, começou a desagradar os setores LGBT. Nesse impasse, a votação permanece adiada. Contudo, o Senador Paulo Paim, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, afirmou recentemente que isso deverá acontecer
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ainda esse ano. Marcelly Malta,com a sabedoria de uma veterana na luta pela igualdade, diz que esse é apenas mais um passo. Para ela, as lutas não vão parar apenas com a criminalização da homofobia. Haverá sempre novos objetivos pelos quais lutar até que a classe LGBT consiga exercer sua plena cidadania.
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Segundo ela, a questão só começou a melhorar nos anos 1990, quando as travestis finalmente começaram a ser incluídas em questões de cidadania e direitos humanos. Hoje, Marcelly, que foi parar inúmeras vezes na cadeia, é chamada pela Susepe para trabalhar em um projeto no presídio central que busca a reabilitação de travestis que estão presas, garantindo-lhes direitos e segurança. Marcelly ainda explica que atualmente a polícia respeita as travestis dentro do sistema de segurança pública, e que, muitas vezes, são as travestis que não têm coragem de ir sozinhas na delegacia. “Na minha época a gente era amordaçada. Parecia que a gente que estava errada e eles que estavam certos. Hoje a gente tem respostas”, observa. Entretanto, Bernardo Dall´Olmo de Amorim destaca que, mesmo com todas as conquistas, a pessoa que hoje for agredida por motivo de ódio devido à orientação sexual ou identidade de gênero está desprotegida. Trabalho comunitário, cestas básicas e, talvez, alguma multa é o máximo de punição que ganha um agressor. Também vítima do preconceito, Leo Ribas conta que chegou a levar jato de extintor de incêndio e sofrer agressões sérias, como socos e chutes. “Nossa sociedade se construiu pela heteronormatividade e todos os sujeitos que tem a coragem de desafiar as normas de gênero e sexualidade em nome da felicidade, tornam-se alvo de violências” diz a companheira dela, Dayana.
06/03 20h30 Espaço Cultural 512 João Alfredo, 512
O ensaio fotográfico que ilustra essa reportagem foi inspirado no cantor Ney Matogrosso e protagonizado por modelos que apoiam a causa LGBT. Confira o ensaio na íntegra em nosso site!
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RELATOS DE DOIS MUNDOS Quatro expatriados que viveram em países comunistas e hoje estão no Brasil contam as diferenças entre as duas realidades reportagem Ana Elizabeth Soares, Douglas Freitas, Gabriel Hoewell, Marcel Hartmann, Priscila Daniel e Ramiro Simch texto Gabriel Hoewell, Marcel Hartmann e Priscila Daniel
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ma névoa parece tomar conta de uma polarização entre esquerda e direita. Em um cenário como este, conversamos com quatro expatriados de regimes socialistas - pessoas que residem em Porto Alegre, mas foram criados em uma realidade com culturas e valores distintos. Hoje brasileiros, eles ganham voz para relatar o que se mostra diferente na transição entre as duas realidades. “Cheguei ao Brasil com vinte dólares no bolso”, conta Anna Savitskaia, 47 anos, nascida na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Em busca de um lar que a protegesse da desintegração do regime, foi no Brasil que, ao lado do mari-
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Anna e Oleg em Marí, no Turquemenistão, quando a Ucrânia possuia presença militar no país
do Oleg Savitskii, encontrou abrigo. Aqui, a disparidade social, a ostentação da riqueza e o risco de fome desnortearam o casal acostumado à certeza de emprego, saúde e educação. Anna nasceu em pleno regime socialista, em Donetsk, atual Ucrânia. Até hoje se lembra do frio rigoroso e do bege e cinza da cidade quase monocromática. Era pouca a diversidade de cores, de mercadorias e de maneiras de expressar a individualidade. O alinhamento ideológico de cada indivíduo era requisito para subir na carreira. Na URSS, até a repressão sexual era prática estatal - diferentemente do Brasil, onde a entidade formadora de valores no assunto era a Igreja. “A sexualidade explora a diferença e se relaciona com a individualidade e o querer”. Daí surgiria o capitalismo, segundo Anna. Após a abertura econômica, o regime soviético começou a ruir e, em 1991, se desmantelou. Essa transição, comenta Anna, beneficiou os burocratas, que acumularam riquezas estatais. Com a queda do regime, as chances de um bom emprego em meio à crise econômica eram poucas. Juntando os dólares recebidos por Oleg em missão militar à Angola, o casal veio ao Brasil em 1992. Abrigados por parentes distantes, a vida do casal de expatriados foi árdua por muito tempo: além das dificuldades financeiras e das saudades da família, Anna mal se comunicava em português. Nas cartas enviadas pela mãe, a mensagem era clara: “Tentem não voltar por enquanto. A situação piorou muito”. Não voltaram, mesmo sofrendo com a burocracia e com os diferentes hábitos de uma nova sociedade. Ao revisar o passado, a refugiada exprime arrependimento por ter ficado no Brasil. “Eu deveria ter voltado nos primeiros quatro meses para não deixar minhas raízes e reconstruir uma alma
ucraniana”, afirma com voz grave. Porém, hoje, após 19 anos de permanência no Brasil, afirma que não retornaria. “Quando tu sabe que não tem para onde ir...”, diz virando o olhar para se perder em pensamentos. “Olha para mim hoje! Acho que fiz a coisa certa...”, divaga sorridente. Fechadas as cicatrizes da experiência, ela conclui que a Anna de hoje é muito diferente daquela que saiu da Ucrânia: mais madura e tolerante com as diferenças.
Da terra de Fidel O primeiro choque de Mario Algeciras, quando chegou ao Brasil, foi ver crianças na rua. Crianças são para ir à escola e brincar, não para pedir esmola, pensava o turista. Na sua Cuba, onde vivera até aquele ano de 1993, não estava acostumado com tal imagem. Mario viera a Porto Alegre acompanhar a esposa brasileira, Ana Maliuk, com quem morava na terra de Fidel. A situação da ilha caribenha não estava das mais fáceis. “Era um período especial”, logo após a queda da URSS, principal parceira comercial de Cuba. A pressão da família de Ana e o incentivo do governo para que a população saísse da ilha durante a crise foram fatais. A viagem que era de turismo virou definitiva, e por isso agora conversamos no bar Sierra Maestra, administrado pelo casal em Porto Alegre. Mesmo com os quase vinte anos de Brasil, a distância entre as duas realidades ainda incomoda. “No socialismo, se educa buscando um bem-estar coletivo e não o individualismo”, crê Mario. Nas festas no condomínio, lembra Ana, todos os moradores eram convidados. Zeladores e faxineiras não existiam: os condôminos se revezavam nas tarefas. A mais lamentada das diferenças se refere ao código penal e a sua aplicação. Mario vê a Le-
Arquivo pessoal
ço para discussão do governo em Cuba, Mario não pensa duas vezes: “Si, lo hay”. É essa, para ele, “a diferença entre as duas democracias”. Em Porto Alegre, ele diz, é possível ir à Esquina Democrática protestar, mas a voz do povo não chegará aos governantes. Na outra via, organizações em massa e sindicatos cubanos se reúnem periodicamente para discutir, por exemplo, onde o governo deve investir. A experiência de Ana Maliuk no mundo socialista não se restringe ao Caribe. Ela atravessou o mundo rumo a URSS 15 anos após a II Guerra Mundial. Os impactos dos conflitos ainda eram sentidos na exStalingrado, aonde Ana chegou. Foi, no entanto, um período de reconstrução, que foi superado. Em 1975, quando Ana deixou a URSS para morar em Cuba, o local já estava bem mais desenvolvido. O socialismo soviético, compara, era muito mais adiantado que o cubano, devido à grande variedade de riquezas naturais e ao estágio evoluído da revolução. Se Cuba vive um momento de abertura, é porque “existem questões em que não se pode avançar Em Havana, antes de vir ao Brasil, Mario já mostrava o orgulho conforme os princípios marxistasde ser cubano leninistas. Hoje, Cuba introduz um gislação cubana baseada no indivíduo, não na pouco do capitalismo dentro do socialismo, perclasse social, como afirma ser no Brasil. “Lá o mitindo pequenas empresas, pois isso é necestítulo não vale para se defender de uma condesário para salvar a nação, sem que se perca os nação.” Nas eleições Cuba também se distingue: princípios socialistas”, acredita Ana. Mesmo que ninguém se candidata a cargos; o povo é quem reconheça a necessidade de abertura do regime, candidata alguém. Após eleito, o representante o casal ainda sente falta da vida no país de oricontinua trabalhando com seu emprego e salário gem. “Nós não estávamos acostumados a sentir originais. tanta dificuldade para conseguir as coisas... Aqui, Desde 2008, com o bloqueio do blog de Yoani tudo é dinheiro”, lamentam. No Brasil, Mario Sanchéz, que criticava o governo cubano, a libersente o peso da violência e da incerteza de futudade de expressão na ilha vem sendo questionaro no emprego. O consolo para ele é saber que da. Mas quando perguntado a respeito do espanunca saiu da ilha caribenha: “Eu sempre estarei
em Cuba e Cuba estará em mim.”
Passando a Muralha da China Há 30 anos, Américo era Hon Wen Lin. Antes de vir para o Brasil e adotar um nome mais pronunciável, morava em Taiwan. Lá, viveu de perto a realidade socialista chinesa, ainda que sua ilha – ainda não independente – fosse, já naquela época, mais aberta. Américo é do signo de Dragão, porque nasceu em 1964, quando se juntou aos mais de um bilhão de chineses que já abundavam. Só o fato de vir de um país com uma realidade demográfica e cultural distante da nossa, já se impunha como obstáculo para Lin no Brasil. O fechado regime socialista chinês foi, no entanto, o causador dos maiores choques para Américo, hoje cozinheiro do restaurante Muralha da China. Lá, “se um morador quer se mudar para outro bairro, precisa pedir autorização e informar o seu objetivo, para que depois se investigue os reais motivos”. Aos poucos, com as influências ocidentais, os estudantes cada vez mais buscam liberdade - ideal distante, atrás da barreira imposta pelo Partido Comunista, que desde a II Guerra Mundial comanda o país. Greves e protestos nas ruas são raros e reprimidos violentamente com prisões e mortes, relata. Mesmo na economia, o controle ainda persiste. É claro que a abertura econômica já é considerável hoje. Porém, há uma repressão mesmo às grandes empresas, que são questionadas quando realizam movimentações de grandes valores. Refere-se a isso o principal contraste percebido por Lin quando se mudou para o sistema capitalista: já na década de 1980, quando chegou ao Brasil, a liberdade para investimento aqui era muito maior que na China. Qual das duas vidas é melhor, afinal? Anna divaga: “Cabe aos jovens responder”. Américo também tem dúvidas. Para ele, a menor pressão que sente no Brasil é positiva. O principal defeito brasileiro é o mesmo que Ana Maliuk, Mario e Anna – coincidência ou não – também identificaram. Para quem viveu em uma pátria socialista, a indisciplina tupiniquim parece incomodar bastante. décima primeira nona página página
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Paulo H. Lange