como vão as coisas, charles? edição 9 ano 1 2012
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anjo loiro
a lenda que atormentou o regime militar
cachola o rapper louco da cabeça jorge machado um grão-vizir do futebol cores fluorescentes para bikes fotopsicodelia
editorial
H
oje, mais do que nunca, o Brasil tenta conhecer sua história. A Comissão da Verdade, que o atual governo tenta instituir, não terá o poder de rever a Lei da Anistia, de punir torturadores ou de indenizar famílias. Contudo, poderá revelar quase meio século de mentiras contadas e recontadas. Um pequeno, porém importante, passo para um país que patrolou os direitos humanos e briga entre disputas de poder para conseguir desvendar esse capítulo obscuro das páginas de sua política. Mais do que nunca, esse movimento é legitimado pela juventude que, apesar de não ter vivido a opressão violenta da época, hoje luta para que a imagem da “Ditabranda” seja desmantelada e os mesmos erros não sejam cometidos. Exemplos como o do Levante Popular da Juventude e seu “Levante contra a tortura” -que, na contramão do governo, quer dar nomes aos bois e expor os cruéis algozes cujos nomes ilustram honrosos monumentos e batizam avenidas-, demostram que o mesmo espírito de liberdade dos que um dia deram “a ideia de uma nova consciência e juventude” ainda vive tantas gerações depois. E, além disso, os jovens da atualidade estão dispostos a lutar (atualmente sem a necessidade das armas) pela memória e pelos valores daqueles que hoje estão “em casa, guardados por Deus, contando vil metal”, em cemitérios ou esquecidos em valas.
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“Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões. Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer nada.” Italo Calvino. As Cidades Invisíveis. www.facebook.com/rodrigosteiner
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torre à vista! Redação André Lacasi, Arthur Viana, Carlos Machado, Cíntia Warmling, Douglas Freitas, Gabriel Hoewell, Gilberto Sena e Luiza Müller Projeto gráfico e editoração Ana Elizabeth Soares e Ramiro Simch | Revisão Lisiane Danieli Capa Ramiro Simch | Arte André Lacasi, João Filipe Padilha, Lucas Monteiro, Paulo H. Lange e Ramiro Simch Relacionamento Ana Paula Neri e Samantha Diefenthaeler | Fotografia Maurício Pflug Colaboradores Eduardo Simch, Mario Arruda e Ricardo Giacomoni Web www.bastiao.net | www.twitter.com/revista_bastiao | www.facebook.com/revistabastiao Tiragem Mil e quinhentos exemplares Praça Júlio de Castilhos, 74/152 - Porto Alegre - RS - Brasil | (51) 3311.1025 | Abril de 2012
veja bem
RESENHANDO COM JORGE MACHADO Um dos donos do mercado futebolístico brasileiro conversa com o Bastião
E
m 1996, Rivaldo foi vendido ao Deportivo La Coruña na maior negociação de um jogador brasileiro até então. Quem estava por trás do negócio milionário era o empresário Jorge Machado. De lá para cá, Machado já vendeu dois atletas por mais de R$ 30 milhões. Hoje, o destino de promessas como Fernando e Mário Fernandes [jogadores do Grêmio e da Seleção Brasileira] está nas mãos desse homem. De certa forma, boa parte do futuro do futebol brasileiro depende de suas tratativas. São mais de 400 jogadores vinculados a ele. Jorge Machado tem 46 anos, 24 deles de uma carreira bemsucedida como empresário. Antes disso, saiu de Erechim para jogar em times como Grêmio, Internacional e Fluminense. Posição? Teimoso, segundo ele. Não passou de um fraco jogador, mas acumula diversas vitórias nos bastidores do futebol. Ele figura na lista dos 50 empresários mais importantes do mundo. Entre 40 e 50 profissionais, incluindo olheiros e advogados, trabalham em sua equipe. Machado vive entre São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis e Porto Alegre, quando não está vendendo alguém pela Europa. Naquela manhã, estava sentado em um sofá, ao fundo do hall do estrelado Hotel Sheraton, em Porto Alegre, esperando o Bastião ao lado de seu incessante celular.
futebol. Na época eu criei uma amizade muito grande com o Raí, o Dunga, o Branco. Aí, quando eu resolvi parar de jogar e ir para essa função de empresário, me tornei empresário de vários jogadores que já estavam em âmbito nacional e mundial que me ajudaram muito na carreira. Quando tu começou, a profissão de empresário não era tão desenvolvida como é hoje. Como era essa relação entre empresário, clube e jogador? Eu costumo dizer que eu nasci profissionalmente junto com a lei do futebol; eu acompanhei todas
essas fases. A função do empresário era muito mais amadora, mas era tão importante quanto hoje, ou até mais. Isso porque o jogador era menos orientado, era enganado, era muito ludibriado. O jogador vivia situações que tinha pouca proteção. A lei não protegia, era mais voltada aos clubes. Eu não concordei com muitas coisas no início porque eu acho que tem que ser balanceado, tanto o clube tem que ter força quanto o atleta. Hoje está chegando nesse meio termo, o que me deixa bem mais tranquilo pelo fato de os jogadores serem hoje melhores orientados, terem acesso jurídico. Atualmente, um empresário
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Bastião - Como foi teu começo como empresário? Já tinha alguma relação com o futebol? Jorge Machado - Comecei jogando futebol em Erechim, com 14 anos vim para os juniores do Grêmio. Depois passei pelo Internacional, indo para o Fluminense em seguida, onde fiquei dois ou três anos no profissional. Na época era eu, o Branco, o Leomir e o Tato. Depois do Fluminense, rodei muito pelo interior de São Paulo. Lá que comecei a me preparar para esta carreira em que atuo hoje. Não imaginava que eu seria empresário, mas foi sem querer, fui me especializando, tendo relações com as pessoas dentro do
Carlos Machado
entrevista Carlos Machado, Douglas Freitas, Gabriel Rizzo Hoewell e Gilberto Sena
veja bem de porte pode dar toda a estrutura para os seus atletas. A relação clube X atleta é bem mais fácil hoje. No início da minha carreira era bem mais “manual do que tecnológico”, digamos. Hoje, tu trabalha com quantos jogadores? Não tenho ideia, mas são muitos. Se incluir os clubes que eu participo como gestor, como o caso do Caxias do Sul, e todos os jogadores que eu tenho no Brasil, passam de 400. [Machado atende pela primeira vez o telefone.] Qual é o papel do empresário no amparo ao jogador? É total. Tem jogadores que eu começo a trabalhar, a maioria com 11, 12 anos, que tu talha, você blinda ele, manipula, constrói toda a carreira dele. No âmbito familiar também. Você pega ele desde novo, orienta em todos os aspectos, escolar, financeiro... você acaba sendo um CEO [traduzindo livremente, diretor executivo] da vida de várias pessoas. O empresário trabalha em cima de todo tipo de orientação, tanto profissional quanto dentro de campo. O fato de eu ter jogado, de ter sido profissional, me ajuda muito também no aspecto emocional. Quando o jogador precisa, está lesionado, por exemplo, ou até mesmo quando está feliz, é preciso alguém ali para equilibrar, para ele não se empolgar muito. O dinheiro vem, a fama vem, as mulheres vêm, as festas vêm, os amigos oportunistas vêm. Então, a gente tem que estar preparado para direcionar o jogador nesse sentido.
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Como funciona a escolha por esses meninos de 11, 12 anos? Uma semana atrás eu fiz uma peneira em Santa Cruz, faço no Brasil inteiro; hoje estou fazendo uma peneira em São José do Rio Preto, onde todos os meus olheiros estão. É feito uma seleção durante três dias, selecionamos alguns que trazemos para testes em grandes clubes que temos parceria. Garimpo jogadores no Brasil inteiro. Na peneira em Santa Cruz, deu 300, 400 moleques [inscritos] num final de semana. Claro, você não consegue selecionar os melhores, tem coisas que
você não consegue ver, existem injustiças nisso. Tem garotos que não conseguem, estão nervosos em um dia, não estão bem de saúde, não dormiram bem. Enfim, não conseguem mostrar a capacidade e nós acabamos não notando. Tem uma margem de acerto, que é muito pequena, mas que conseguimos desenvolver com algumas estratégias. Trabalhamos com moleques de 11, 12 anos, mas também agimos no aspecto que você pode comprar jogadores mais velhos. Investimos em jogadores de 16, 17 anos. No entanto, a maioria dos acertos vem do garimpo dessas peneiras que são feitas no interior.
“Nós somos exportadores e não importadores. Não me iludo com isso e não esqueço o mercado europeu, mesmo com a crise que está lá, ele vai ser sempre nosso mercado consumidor” Esse investimento pode não dar certo, investir em um jogador e ele se lesionar... Atualmente, a lesão não é tanto um problema porque a medicina desportiva é muito adiantada. Agora, a margem de investimento errado é de 90%. No futebol, se você tem 100 jogadores pode ter certeza que dois ou três vão ser bons, sete são mais ou menos e o resto não vinga. A margem de erro no futebol é muito grande. Mas a margem de acerto compensa muito. Claro, senão eu não estaria aqui te respondendo essas perguntas. Se ser empresário não fosse um bom negócio, eu não estaria nisso. O futebol é muito rentável, pois essa margem de acerto que você tem é pequena, como eu falei, mas ela compensa tudo.
O teu primeiro caso de sucesso foi com o Rivaldo? Se nós formos falar em âmbito mundial de venda, podemos dizer que sim. O Rivaldo foi vendido por 32 milhões de euros. Na época, foi o melhor negócio do futebol brasileiro. Depois eu tive negociações maiores, o Carlos Eduardo para Rússia [o telefone toca novamente], entre vários outros. Eu estou há 24 anos no mercado, então isso me facilita bastante nessas transações. Tu falou que teu último grande negócio foi com o Carlos Eduardo para Rússia; esse mercado do leste europeu tem crescido bastante. Muito! Já fiz várias transações de jogadores para a Rússia, por exemplo. Intermediei o retorno de alguns agora, caso do Alex para o Corinthians [vindo do Spartak Moscou], caso do Ibson [também do Spartak Moscou] para o Santos. Ainda é segredo, mas nesse momento estou vendendo um jogador do Brasil para um grande clube da Rússia. Nos próximos dias vocês vão ficar sabendo [até o fechamento desta edição, Mário Fernandes estava em tratativas finais para se transferir do Grêmio para o CSKA, de Moscou]. O leste europeu é um mercado que hoje está muito forte financeiramente e tem buscado muitos jogadores. Hoje, a Rússia não é mais mercado emergente, o país até se adequou ao calendário europeu, então ela está integrada num contexto não só de logística, mas financeiro. Tu trouxe o Ibson e o Alex de volta do exterior, isso está acontecendo bastante. Os jogadores estão voltando para o Brasil ainda na ativa, não para encerrar a carreira. Isso se deve ao aspecto financeiro. Atualmente, os clubes no Brasil estão muito fortes, pela economia do país. O reflexo da nação é o futebol, ainda mais aqui. Você pode ver que o Uruguai é um país que ficou estagnado no futebol porque a economia enfraqueceu, a Argentina caiu também. Já o Brasil, cresceu. Aí começa a migrar de volta grandes jogadores com valores exorbitantes. Eu citei dois [Alex e Ibson], mas nessa última janela eu trouxe para o Brasil o [Rafael] Sóbis, o
Carlos Machado
Marcelo Moreno, o Renteria. Eu negociei o retorno de jogadores com altos salários, ganhando igual ou mais do que ganhavam lá fora. Isso só é possível pela economia do Brasil, que cresceu muito. [Machado atende mais uma vez o telefone.] É uma tendência o fortalecimento dos clubes brasileiros, que estão conseguindo segurar os craques por mais tempo e trazer jogadores do exterior? Eu gostaria muito que isso continuasse acontecendo, mas não acredito. Tem clube gastando o que não pode, é uma empolgação por causa da Copa do Mundo. Já aconteceu isso há uns sete, oito anos: eu trouxe o Raí de volta para o São Paulo, o Adílson Batista, o Christian, o Leandro Machado, o Carlos Miguel. Os clubes gastaram e dois anos depois estavam devendo. Tem jogadores que até hoje estão na justiça contra esses clubes. O Brasil é um mercado vendedor, e os clubes de futebol ainda precisam se profissionalizar muito para chegar ao nível de clubes europeus. Então, na sua opinião, a tendência é que os clubes comecem a enfrentar problemas financeiros? Dou de dois a três anos para começarem as dificuldades. Essa empolgação vai terminar, estão pagando salários que aqui no Brasil não tem a mínima condição de serem honrados. Eu sei porque eu participo disso, faço isso, é meu trabalho,
e estou vendo que a coisa está muito pesada. Existe muita irresponsabilidade em alguns contratos que estão sendo feitos aqui. Com essa mudança na busca de jogadores pelos clubes por causa da Copa, o que muda para o empresário? Eu trouxe de volta para o Brasil no mínimo sete jogadores de alto nível, então me beneficiei com isso. Mas não estou muito tranquilo porque eu defendo que os clubes brasileiros devem ser fortes. Nós somos vendedores, nós somos exportadores e não importadores. Não me iludo com isso e não esqueço o mercado europeu, mesmo com a crise que está lá, ele vai ser sempre nosso mercado consumidor. [O empresário volta ao telefone.] Como tu vê os treinadores que têm participação em passe de jogadores? Não existe isso. Existe é muita especulação. Eu estou no meio e não me empolgo com jornais, com sensacionalismo; posso te garantir que isso não existe. Tem muitas pessoas criticando a realização da Copa do Mundo no Brasil. Tu, que está envolvido há tanto tempo no futebol, como imagina que será a Copa de 2014? Vai ser um sucesso. No Brasil tudo dá certo. Vai ser aquela confusão no início, depois acaba dando tudo certo. É uma visibilidade, uma situação
muito boa para mostrar nosso país de novo para o mundo. Eu que viajo o mundo sei as coisas que são faladas do Brasil, é um país muito pouco divulgado lá fora. Quanto às obras, corrupção, nisso eu não me envolvo. Tu acredita que a Seleção tem qualidade para fazer uma boa Copa? É muito cedo para falar de Seleção Brasileira. O Brasil forma uma seleção todo ano. Os olheiros gringos que vêm para cá todo o ano falam que isso aqui é incrível, que jogador de futebol dá em árvore. Faltam dois anos para Copa, daqui a pouco o Neymar pode não ser mais o nosso astro, pode nascer um astro amanhã. No Brasil, é prematuro você falar sobre time de futebol e seleção. Amanhã pode surgir um novo craque e o nosso treinador nem ser o mesmo. O futebol muda muito, ninguém tem segurança de nada. [Pela última vez naquela uma hora, Machado atende o telefone.] Olhando para trás, esse ramo de empresário deu mais certo do que ser jogador de futebol? Eu não olho para trás, vou olhar no meu retrovisor. Como jogador de futebol, eu era um jogador comum. Tinha mais relações com as pessoas, eu era mais amigo e observador. Só joguei em time pequeno, então isso me ajudou muito como empresário. Fui um jogador fraco, mas hoje, por ter passado por algumas dificuldades, sei auxiliar meus craques.
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especial
O Anjo que desafiou a ditadura texto Carlos Machado, Gabriel Rizzo Hoewell e Ramiro Simch reportagem Carlos Machado e Gabriel Rizzo Hoewell
No portão de sua aconchegante casa, Avelino Capitani confessa que se sente incomodado em falar do seu passado. É doloroso relembrar que sua vida “se resumiu nas prisões, na clandestinidade e no exílio”. Capitani já foi chamado de Anjo Loiro, Charles Anjo 45, Lauro e outros nomes que nem ele mesmo lembra. Hoje não é mais Charles nem Lauro, os codinomes foram abandonados. Hoje não é mais loiro, porque o tempo quis assim. Hoje, a pistola calibre 45 já foi deixada de lado. A vida agora é tranquila e pacata ao lado da esposa Teresa, com quem mora na Zona Norte de Porto Alegre. Seu passado, no entanto, é a própria história de um dos períodos mais turbulentos e obscuros do Brasil. Por ter consciência disso e desejar que esse momento se mantenha vivo na memória de todos, supera a dor e relembra com incrível lucidez o que viveu nas décadas de 1960, 1970 e 1980.
Avelino Capitani e Antônio Geraldo da Costa – o Neguinho – se mostram calmos para o julgamento. Todo o plano já está traçado em suas cabeças. Os dois logo serão julgados por serem chefes da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, considerada uma organização subversiva pelos militares que acabavam de chegar ao poder do país através de um golpe. Mais que isso, Avelino é classificado como agitador internacional. Uma grande responsabilidade dada a alguém que recém passara dos 20 anos. Por essas razões, não escaparam da expulsão da Marinha e da tortura. Do júri, no entanto, eles escapariam. No dia do julgamento, os dois se misturam em meio aos marinheiros que lá estão. Conversam naturalmente e de maneira discreta partem para a porta da frente do presídio. Quando se percebe, já é tarde e os fugitivos estão longe do Rio de Janeiro. Os documentos, confeccionados dentro da cadeia de maneira artesanal, e até grosseira, dão aos companheiros novas identidades. Ficou para trás o Avelino, que com 14 anos deixou o interior de Lajeado para tentar a vida na capital gaúcha. Pelo caminho também ficou o Avelino que, aos 18, saiu de Porto Alegre rumo ao Rio de Janeiro com a perspectiva de encontrar na Marinha a possibilidade de conhecimento, estudos e viagens inesquecíveis. Na realidade, o que ele encontrou nas Forças Armadas foram as contradições do mundo. Então, fundou a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais para protestar por melhores condições de vida e de trabalho. Agora, ele pagava por suas decisões e pelo sistema da época, e entrava em um ônibus para o Uruguai, onde passaria um ano escondido. O menino ingênuo da roça dera lugar a um revolucionário que causará dor de cabeça aos golpistas de 1964.
De Sierra Maestra a Caparaó Durante o período na República Oriental, Avelino acompanha um debate político que cresce. Chega à conclusão de que é quase impossível enfrentar a ditadura pelo voto, e a solução é a luta armada.
Ele viaja, então, a Cuba para realizar um treinamento de guerrilha. É um período duro, mas rico em sua vida. Sete meses aprendendo estratégias, táticas e manuseio de armas. Depois, mais três meses no meio do mato, na encosta da Sierra Maestra, o berço da Revolução Cubana. Ao lado de outros guerrilheiros, segue os ensinamentos de Ernesto Che Guevara. É um curso completo, que transforma aquele soldado brasileiro em um defensor da “grande pátria latino-americana de Bolívar”. O que se aprende com Che é trazido para o Brasil. O plano consiste em implementar vários focos guerrilheiros dentro do país. Só muito tempo depois Avelino percebe que aí mora a raiz do fracasso de muitas guerrilhas. A “teoria do foco”, que acredita em vários pequenos motores para girar um maior, comete uma grave falha ao priorizar a questão técnica em vez do aspecto político e social. Avelino e seu grupo instalam-se na Serra do Caparaó, em Minas Gerais, no meio de uma natureza exuberante e de difícil acesso para o Exército. O local tecnicamente é perfeito, mas o apoio popular não existe. Bastava pedir comida a uma camponesa para ser denunciado. Em pouco tempo os guerrilheiros são presos pela polícia mineira, e Capitani é mandado para o presídio de Juiz de Fora.
Estratégias de fuga – Parte 2 De Juiz de Fora, o elemento é transferido, em 1968, para uma segura prisão modelo: Lemos de Brito, no Rio de Janeiro. Lá, os homens que foram expulsos da Marinha misturam-se aos presos comuns. Os 35 marinheiros, no entanto, se impõem e conseguem o respeito dos outros apenados. Eles iniciam um grande estudo do local e se articulam para comandar o presídio. É preciso saber os detalhes da área: a função que cada guarda exerce, o horário exato em que cada movimento acontece. Começa, então, a surgir o MAR (Movimento de Ação Revolucionária). Uma organização estruturada dentro da cadeia e com um forte bra-
André Lacasi
Estratégias de fuga – Parte 1
ço do lado de fora. São dois anos aprendendo, se infiltrando e recrutando pessoas insatisfeitas com o regime militar. Com bom papo e comportamento, os ex-marinheiros conseguem lugares para trabalhar e conquistam a confiança dos chefes da prisão. Na cadeia, Capitani trabalha junto a algumas estagiárias de Serviço Social, e é das moças mais assanhadas que ganha o apelido de Anjo Loiro. A rede está criada e o plano arquitetado. Tão ousado quanto a primeira fuga, agora eles sairão pela mais imprevisível das saídas. Afinal, quem teria a ousadia de fugir pela porta da frente do presídio? Em um ataque surpresa, rendem os guardas da entrada. Apontando as armas para a cabeça dos reféns, trancam-nos em um banheiro. Já do lado de fora do presídio, Avelino e os companheiros saltam sobre os policiais que fazem a vigia de um portão ainda maior. A abertura das duas entradas libera a passagem dos outros 30 colegas que vêm atrás. Os prisioneiros entram em carros que já os esperavam.
Histórias de Avelino No período em que o Anjo Loiro ficou preso,
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especial
Estratégias de fuga – Parte 3
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Durante ações em bancos, os guerrilheiros mais experientes apenas participam da parte estratégica e fazem a segurança. É o caso de Charles, codinome de Avelino na época. Naquele dia, um ano após fugir pela segunda vez da cadeia, o Anjo Loiro é o encarregado de transferir os armamentos de um carro de placa fria falsa, para um de placa quente. É no momento da troca que um carro de polícia chega. De cara, os policiais desconfiam dos rapazes. Avelino percebe e entra rapidamente no Fusca pedindo para que seu colega arrancasse. Logo atrás vem os policiais. O motorista entra em pânico e mal consegue dirigir. “Vão nos matar”, pensa Capitani. Ele saca sua arma e pede para que seu colega diminua a velo-
vando e a sede é terrível, mas somente no anoitecer do dia seguinte Avelino pode sair do esconderijo, quando ouviu as camionetes partindo com policiais inconformados: “Esse cara não ‘tá’ mais aqui, senão tínhamos achado.” E essa tese pegou. Exceto para aqueles que se espantaram com o extenso rastro de sangue deixado pelo caminho e acreditaram que ele estaria morto.
Do luto à vida
cidade. O objetivo é acertar nos pneus do carro da polícia. Acertaria, se o motorista não estivesse completamente perdido. Em um instante o Fusca se esborracha contra um ônibus. Avelino bate a cabeça e desmaia. Quando volta a si, vê o companheiro de braços erguidos se rendendo. Para quem já cansou de ser torturado e preso, entregar-se não parece a melhor atitude. Capitani não aceita: puxa a arma de volta e vai para cima dos policiais. Quando se prepara para o tiro, uma rajada de metralhadora atinge seu braço. Com a outra mão, ele segue atirando. Surpresos com a atitude, os policiais se atrapalham. Há tempo para Avelino fugir. Sangrando pelas ruas do Rio de Janeiro, com uma arma na mão e outra na cintura, o Anjo Loiro corre sem parar. Sobe o primeiro morro que encontra, deixando uma trilha de sangue pelo caminho. A noite se aproxima; Charles acha no morro um lugar estratégico. Com as unhas, começa a cavar no chão. Percebe, então, que a polícia se aproxima e enterra-se com terra e capim. Uma meia dúzia de cabritos salta por cima dele. É a prova de que está seguro, ninguém o enxergará. A febre provocada pelo ferimento vai se agra-
A mãe de Avelino, ao saber que o filho “estava morto”, usou preto por um longo tempo. Durante todo o período que lutou, exilou-se e viveu escondido, o Anjo Loiro mal manteve contato com a família. Ele sabia que o primeiro lugar que os militares o procurariam seria em casa. A vida de Avelino Capitani é cheia de histórias. Se os gregos criavam a mitologia para narrar o inexplicável, o Anjo Loiro é o próprio mito brasileiro. Segundo ele, uma música retrata a sua história: Charles, Anjo 45, composta por Jorge Ben. O cantor não admite de onde veio a inspiração para sua música – na verdade, já negou, voltou atrás e negou de novo. Mas o fato é que Capitani sobreviveu ao improvável. Depois de se enterrar vivo para fugir, partiu para um longo tempo no exterior. Passou pelo Chile, por Cuba e por vários países da Europa. Voltou ao Brasil em 1975, clandestinamente. Só conseguiu a anistia em 1980, quando, finalmente, após quase cinco anos de relacionamento, pôde dizer a sua mulher Teresa que seu nome não era Lauro, mas, sim, Avelino. Hoje ele vive da pensão de anistiado em uma casa simples na Zona Norte de Porto Alegre. Avelino espera pela instalação da Comissão da Verdade. Não quer regalias; quer apenas que a verdadeira história venha à tona, para que os erros do passado não se repitam. “Não guardo rancor dessa época, já perdoei meus torturadores. Levei 10 anos pra isso, até que um dia consegui. Me libertei do rancor, senão eu ia morrer abraçado nele.”
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barca
conheceu os membros de outras organizações clandestinas que lutavam contra o regime militar. De dentro da cadeia, ouvia falar de importantes líderes da luta armada – como Dilma Rousseff e seus feitos na VAR-Palmares. De dentro do movimento também viu sair traidores, como o conhecido Cabo Anselmo, que entregou companheiros de luta aos militares. Avelino ainda lembra o período em que esteve exilado no Chile e recebeu uma ligação do Cabo para se encontrarem. Na memória, veio à tona a notícia de que Anselmo tinha sido preso algum tempo antes. “Como ele poderia estar lá no Chile se ‘tava’ preso? Quando se era preso tu tinha duas possibilidades: ou morria ou trabalhava pra eles.” Avelino nunca foi ao encontro, mas tinha certeza de que era uma armadilha. Ao contrário do que muitos pensam, Capitani nunca foi membro do Partido Comunista Brasileiro. Participou de algumas reuniões do “Partidão” e compartilhava das ideias, mas achava que apenas a política não era suficiente para derrotar a ditadura que assolava as ideias de liberdade e justiça.
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O FABRICADOR DE TETOS Cachola, o jovem rapper respeitado nacionalmente e autodeclarado louco da cabeça
texto e reportagem Gabriel Rizzo Hoewell e Ramiro Simch que surgiam em nível nacional, como Projota e Simpson, Cachola sucumbiu diante de Maomé, habilidoso integrante do grupo ConeCrewDiretoria. De lá pra cá passaram-se alguns anos, período no qual o som do rapper gaúcho amadureceu. O improviso já não toma seu tempo como antes, dando lugar a um trabalho mais centrado, de composição e gravação. Mesmo assim, ele se orgulha ao apontar as batalhas como um dos fatores responsáveis por manter o hip hop brasileiro respirando durante os momentos de retração dos anos 2000 e impulsionar o movimento novamente. A música que cresceu ouvindo nos toca-discos do pai, aficionado colecionador, Cachola dilui – conscientemente ou não – nas batidas do rap. Os beats que produz aceitam de tudo: jazz, MPB, tango. Sua levada rouca, carregada de personalidade, bebe bastante do ragga jamaicano. O processo criativo é minucioso e demorado; é por isso que até o momento só duas faixas foram oficialmente lançadas (Fumaça e Louco da Cabeça). A demora em escrever deve-se à reflexão exigida. Cachola fala da realidade. “Hoje tem muita gente representando personagens por aí. Não adianta cantar ‘Jah! Rastafari! Kaya! Babylon!’, chegar em casa e ter roupa passada e banho quente”, brinca. “Antigamente eu compunha todo dia, em qualquer folha de rascunho que via, mas só um ou dois versos prestavam. Hoje eu penso toda a minha música antes de gravar, trabalho em cada linha. Às vezes demoro um ano até lançar. Por isso sou contra essa coisa muito comercial de lançar música atrás de música.” Gabriel Rizzo Hoewell
Q
Atualmente, o rimador dedica-se à finalização de seu álbum de estreia, Entre o Chão e o Teto, previsto para o segundo semestre de 2012 ou para o ano que vem. Cuidadosamente elaborada, a obra trará sete faixas, com temas que vão do cotidiano e atmosfera das ruas à filosofia e espiritualidade – incluindo aí a sua particular “religião cachólica”. Liberdade é, em suma, o que Cachola procura. O rapaz integra o Této Preto, coletivo “resina braba”, que inclui amigos músicos, tatuadores e outros loucos da cabeça. “Me prendo cada vez menos a barreiras dentro da arte. Quero fazer tudo que me agrada. Hoje não sou mais um ‘MC de freestyle’, sou um ‘fabricador de tetos’.”
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uando o pequeno Lucas Silveira caiu de cima de uma árvore no bairro Vila Nova, Zona Sul de Porto Alegre, ganhou alguns pontos na cabeça e o apelido de Cachola. Hoje, além da cicatriz, o magrelo carrega sempre debaixo do boné um cérebro incessante e incansável, capaz de metralhar milhares de palavras de maneira alucinante. O apelido não poderia ser mais apropriado para um rapaz que, com apenas 21 anos, encontra crescente respeito no cenário do rap nacional. A louca cabeça improvisa rima atrás de rima. Com 14 anos, Cachola participou da sua primeira batalha de rimas. Foi incentivado pelos amigos maiores, que já viam nele o talento e a coragem de enfrentar adversários mais velhos e destruí-los com as palavras. Três anos depois, ficou sabendo da etapa gaúcha da Liga dos MC’s, um dos maiores torneios de freestyle do Brasil. Só lhe faltavam os R$ 15 para se inscrever na competição. Em frente ao bar onde se realizariam as disputas seletivas para a Liga, vendeu seu boné e subiu ao palco. A noite não foi das melhores e o menino de 17 anos saiu decepcionado com a desclassificação. A salvação viria pouco tempo depois. Nitro Di, um dos mais célebres rappers porto-alegrenses, apreciou o desempenho do novato e o convocou para preencher uma vaga que permanecera em aberto. Azar dos outros, que saíram tontos e desconcertados após cada flechada verbal de Cachola, o vencedor da noite. Desta forma, o adolescente tornou-se o primeiro representante do Rio Grande do Sul nas finais do campeonato nacional de improviso, qualificando-se entre os oito melhores MCs do Brasil. Durante o período em que passou no Rio de Janeiro para participar da Liga dos MC’s nacional, em 2007, Cachola aprendeu muito. Lá, teve contato com esquemas profissionais de organização e divulgação, e também com o que era produzido musicalmente nos outros estados – o rap pesado de raiz paulista, as influências do repente nas rimas pernambucanas e a malandragem do som fluminense. Entre os grandes nomes
dĂŠcima pĂĄgina
contracapa
Paulo H. Lange