Bastião #13

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ela falou que eu era louca

bastiao.net

edição 13 ano 2 2012

grades da loucura a vida no instituto psiquiátrico forense

jéferson assumção

analfabetismo cultural

repúblicas do rock

o underground nos anos 2000

ilha do presídio

história em meio às águas


N

ão é fácil, amigos, estar aqui todos os meses, mas, ainda assim, aqui estamos de novo – e com prazer. Há um ano vivo, o Bastião segue tentando fazer um jornalismo diferente, mais justo e honesto, solto das amarras que nos sufocariam em qualquer meio de comunicação já estabelecido. E em 12 meses de existência, a nossa realidade extrapolou as páginas da revista. Hoje o Bastião é mais: somos um organismo que, unido a tantos outros, defende os interesses do cidadão de Porto Alegre, promovendo a cultura e espalhando boas histórias pela cidade. Temos plena liberdade para fazer o que bem entendermos, sem rabo preso, censuras ou interesses velados. Tamanha liberdade pode às vezes assustar, e a única solução para esse receio é fechar os olhos e ir adiante, pra mais um, dois, dez anos. Sabe-se lá quando esse delírio de grandeza vai acabar. Que não acabe tão cedo. A simples intenção de se fazer algo melhor já é meio caminho andado para que realmente façamos algo de qualidade superior. É tênue a linha entre o genial e o ridículo, mas antes soar ridículo do que sequer tentar. E o Bastião segue tentando. Não foi fácil chegar aqui. Ainda assim, aqui estamos.

Precursor do grafite brasileiro, o trabalho de Luis Flavio Trampo é reconhecido internacionalmente nas ruas, nas oficinas sociais e nas galerias de arte. De aniversário, ele nos presenteou com esta “Poética da Desconstrução”. Máximo respeito! facebook.com/luisflavio.trampo

Redação André Lacasi, Arthur Viana, Carlos Machado, Cíntia Warmling, Douglas Freitas, Gabriel Rizzo Hoewell, Gilberto Sena, Luiza Müller e Sérgio Trentini Projeto gráfico e editoração Ana Elizabeth Soares e Ramiro Simch Revisão Lisiane Danieli e Bruna Galego Wilmsen,

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Avenida Vicente Monteggia, 2021 - Porto Alegre - RS - Brasil / (51) 3250-6781 / Setembro de 2012

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Tiragem Mil e quinhentos exemplares Comercial (51) 8480.1360 / bastiao@bastiao.net

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Colaboradores Luis Felipe Abreu e Rodrigo Steiner

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Relacionamento Ana Paula Neri e Samantha Diefenthaeler Fotografia André Lacasi e Maurício Pflug

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Capa André Lacasi e Ramiro Simch Arte André Lacasi, Dante Roman, Paulo H. Lange e Ramiro Simch

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veja bem

A CULTURA VEM DA RUA Jéferson Assumção, ex-camelô e hoje secretário-adjunto de Cultura do Rio Grande do Sul, analisa os vícios da cultura brasileira e o nosso analfabetismo cultural

André Lacasi

entrevista Arthur Viana e Sérgio Trentini

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ogo percebemos que estava à nossa frente um homem inteligente. Da cabeça de cabelos ralos de Jéferson Assumção, secretário-adjunto de Cultura do Rio Grande do Sul, a clara ideia da necessidade de políticas que incentivem a leitura para que, dessa forma, a sociedade brasileira consiga, enfim, democratizar a cultura em todos os seus vieses, explorando positivamente nossa diversidade e criatividade. Se a cultura é às vezes mal distribuída, é, ao mesmo tempo, quase sempre mal compreendida. “O Brasil tem um déficit grande no campo de alfabetização, mas maior ainda no campo da leitura cultural”, explica Jéferson. Seus olhos profundos, aumentados pela grossa lente dos óculos de armação redonda, não alcançam a profundidade do discurso do homem que, anos atrás, era camelô nas ruas de Canoas. Talvez seja exatamente daí que venha a complexidade intelectual do hoje secretário-adjunto de Cultura do estado – afinal, nenhum professor ensina mais do que a vivência da rua.


Bastião – A tua trajetória se iniciou nas ruas. Como foi esse começo? Jéferson Assumção – Eu fui camelô por oito anos, a partir dos meus 13. Aproveitei muito bem aquele período lendo bastante, eu lia o tempo todo. Em função disso, me tornei um ser um pouco folclórico: o camelô que manjava de Tchecov. Quando tinha alguma efeméride ligada à leitura, os caras iam lá me entrevistar, então eu já tinha essa certa relação com o mundo do jornalismo. Com o tempo veio uma oportunidade de entrar para um jornal, o Radar de Canoas, onde fiquei dos 22 até os 29 anos. Depois passei a trabalhar no jornalismo sindical. Ali tive contato com o Fórum Social Mundial. Me incluí muito nessa discussão, participei de três anos; eu fazia a biblioteca do fórum. A partir daí, comecei a ter bastante ação nesse campo da relação do livro com a cultura. Em 2000, publiquei um livro chamado Máquina de destruir leitores, sobre a escola. É um pouco de reflexão sobre a política de livro e leitura e como a escola é mais um espaço que afasta a relação cultural com a leitura do que aproxima. Uma teorização leiga sobre o tema, mas que abriu portas importantes. Depois eu fui convidado para trabalhar em Brasília. Comecei no INEP [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira], importantíssimo para quem se interessa pela sociologia da leitura, é um espaço riquíssimo nesse aspecto. Logo que estava lá fui convidado pelo Juca Ferreira, secretário-executivo na época do Gilberto Gil, para o Ministério da Cultura, em que fui assessor e coordenador-geral de livro e leitura. Em determinado momento, eu percebi que tinha saído de uma banca de camelô para coordenar a política de livro e leitura do País inteiro. O povo brasileiro lê pouco? O Brasil lê muito pouco. A origem disso é sociológica, histórica, antropológica, econômica, educacional... Hoje, nós temos um índice de analfabetismo absoluto no Brasil de 10%, que repercute em todos outros tipos de analfabetismo – funcional e até no chamado analfabetismo cultural, que é aquele de quem domina a tecnologia mas não faz um uso cultural daquilo. O Brasil tem um déficit grande no campo de alfabetização, mas maior ainda no campo da leitura cultural. Por exemplo: em 2003, dos 5.500 municípios brasileiros, 1.170 não tinham bibliotecas. No século XIX, a Argentina já tinha, em todos os seus municípios, pelo menos uma biblioteca. Os sistemas de bibliotecas no Chile, na Colômbia e na Argentina são muito eficientes, muito bons. São bibliotecas-centros culturais. No Brasil, era proibido fazer livro até 1808. A indústria do livro no Brasil começou no século XX, com a expansão da rede escolar e o início do MEC (Ministério da Educação e Cultura). Basicamente, o povo brasileiro é formado pela população indígena, ágrafa; pela população negra, que veio do escravismo, também ágrafa; e pelos portugueses, que tinham o pior índice de alfabetização na Europa. Então não fica muito favorável o ambiente para a educação. É diferente da Colômbia, que tem universidade desde 1537.

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Como solucionar esse nosso analfabetismo cultural? Toda biblioteca tem que se transformar em um pequeno centro cultural. Nós temos 534 bibliotecas públicas municipais no Estado, e temos que transformá-las em centros culturais. Tem que ter música, teatro, artes visuais... Tem que chamar a atenção de todo mundo. A biblioteca é o principal instrumento na formação da lei-

“Cultura é um elemento qualificador de todas outras áreas. Saúde sem cultura é remediação; segurança sem cultura é repressão; desenvolvimento social sem cultura é assistencialismo”

tura cultural. Tem que ter, também, uma escola que saiba formar leitores. Isso é uma coisa difícil, mas tem que cada vez mais formar o leitor por dentro da escola. Além disso, tem que existir famílias de leitores. Temos que ter ações nesse sentido. Vamos começar a implementar os “agentes da leitura”. São 220 agentes que vão nas famílias para estimular o hábito da leitura nas casas. Temos, também, dois elementos quantitativos, que são o acesso ao livro – um número suficiente de bibliotecas, bibliotecas realmente impactantes do ponto de vista cultural – e o preço do livro. O preço, na verdade, é um dos fatores, mas ele não pode ser visto como o único fator. Ele não explica tudo – às vezes, inclusive, decorre do resto. E tem que fazer isso tudo ao mesmo tempo. Qualquer resposta simplista dá um resultado simplista também. Tem um monte de coisas acontecendo ao mesmo tempo para gerar um ambiente favorável ao estímulo de leitura cultural. A gente tem que encontrar soluções. Quando fizemos o Plano Nacional do Livro e Leitura, eu pensei muito sobre esse tema e tinha que encontrar uma solução para a riqueza do Brasil. A gente não pode pensar cultura no Brasil como pobreza. O Brasil é um país riquíssimo. Na tua opinião, como se forma o leitor? Como tu te tornou um leitor? Eu não sou exemplo porque foi uma coisa muito espontânea. É uma relação pessoal, de curiosidade. Nós temos que ter um trabalho mais sistemático, principalmente dentro da escola. Nos primeiros contatos das crianças com o mundo da educação, o livro tem que ser instrumento de destaque. O Brasil, em relação com a literatura, é quase sempre instrumental. Lê para passar conteúdo, para ampliar repertório, para passar elementos da língua, enquanto a leitura tem que ser vista como um momento de interação simbólica, de relação estética com o que está sendo dito por outros. O Brasil tem muita dificuldade de ter acesso à literatura universal. Não entra na escola Kafka, não entra Dostoiévski, não entra nada que faz a cabeça do leitor no mundo todo. É um recorte instrumental: tu tens que ler isso porque vai cair no vestibular. Mas isso está mudando. Tem que ter uma rede de bibliotecas, isso é uma coisa fundamental também. Na Colômbia e no Chile, eles dizem que querem “biblioteca para competir com shopping-center”. Então são grandes bibliotecas, bonitas, onde dá para se fazer tudo que se pode fazer em um shopping – só que tudo de graça –, e o jovem vai sair de lá com um livro. Se não for no primeiro dia, é no segundo; se não for no segundo, é no terceiro. Pode ser até no terceiro mês, e isso qualquer pesquisa mostra: mesmo aqueles que não têm o menor hábito de ler vão pegar um livro. Pode ser um menino de rua: ele passa pelos videogames, passa pelos filmes, passa pelo computador e já está com o livro. O mundo é muito estimulante fora, então tu tens que fazer uma transição até esse mundo em que tu decodifica letras e faz imagens. Aos poucos vai aproximando. Dada a importância da escola, a Secretaria de Cultura trabalha junto com a de Educação? Existem projetos conjuntos? A gente trabalha algumas coisas pontuais que são importantes. Tem o projeto “Autor presente”, por exemplo, que é um projeto que coloca os escritores em contato com os estudantes. É um projeto muito antigo que a gente transformou em algo bem central da política da secretaria. Esse ano temos 140 encontros de escritores,


E nessa questão de democratização da informação e da cultura: qual a importância que tu vê em meios alternativos e independentes nesse cenário? A diversidade de olhares precisa da diversidade de meios. A diversidade e a democratização na comunicação é um elemento fundamental para a desconstrução de estereótipos. Se tu tem um ou dois meios de comunicação, tu tem também uma ou duas versões da diversidade cultural do Estado, que acaba sendo só uma identidade ou um estereótipo. A ampliação de pontos de vista faz tu ter uma riqueza maior nessa diversidade cultural. Até que ponto tu está preso a uma certa ideia de sociedade? Se tu tem um determinado financiamento, esse financiamento condiciona um pouco – ou muito – a tua ideia de sociedade. Então os meios independentes e alternativos, tendo uma outra fonte de sobrevivência, também têm menos compromisso com certas estruturas que são, no meu entendimento, prejudiciais para o desenvolvimento da sociedade do ponto de vista mais cidadão, mais justo e diversificado. O diverso, do ponto de vista da cultura, é sempre um tom importante para nós. Os meios de comunicação financiados pela lógica do mercado reproduzem a lógica do mercado para continuar vivendo. Os meios

fonte: Detran-RS

No teu blog (O Diagonalista), tu comenta muito sobre o mundo da internet. Quais são os prós e contras desse amplo e praticamente irrestrito acesso à informação? Eu comecei a me interessar pelo mundo do livro-leitura-literatura e foquei muito nisso, na organização de bibliotecas, na ampliação da rede de bibliotecas; criei os pontos de leitura. Trabalhei nesse campo no país inteiro, que era a perspectiva do Ministério da Cultura. Aí fui convidado a ser secretário de Cultura de Canoas. Ali passei a enxergar outras coisas que, embora tivessem sido vivenciadas por mim no Ministério da Cultura, não eram uma prática cotidiana minha. Eu tive que ampliar meu repertório em termos de política cultural, e a área da cultura digital é, no meu entendimento, uma atualização – um F5 – do tema do livro e da leitura. Existe uma possibilidade muito grande de ampliação dos repertórios via cultura digital de descentralização do monólogo da indústria cultural tradicional para outra perspectiva pessoa-pessoa descentralizada. Sempre gostei muito do copyright não restritivo, da ação cidadã em rede e da cultura colaborativa se estabelecer de uma maneira muito mais efetiva. O Brasil tem uma utilização muito progressista da internet, e tem uma periferia se apropriando disso. Muita gurizada está fazendo o uso cultural da internet, por isso a internet tem a força que tem no Brasil. Assim, tem uma capacidade grande de gerar uma democracia mais real. Cultura digital, democracia real. Há novas possibilidades das pessoas se relacionarem com a comunicação e com os produtos culturais que não seja de uma maneira centralizada. O que temos que conseguir fazer é que não saia da pré-modernidade para a pós-modernidade: o livro é um instrumento fundamental para dar sentido, inclusive, para essa cultura digital. Sem conceituar, sem conseguir ter um instrumental de conceitos, sem conseguir enxergar a potencialidade de autonomia, tu pode virar só um consumidor também. A internet não é boa nem nada, ela é o Exu Monumental. O Exu não é bom nem mau, é só o mensageiro. Podem ser mensagens boas ou más, mas o uso disso é a pessoa que tem que fazer... Isso me interessa muito, inclusive estou lançando um livro mês que vem sobre o conceito de homem-massa. Qual é a capacidade da cultura digital de gerar um pós-homem-massa? Vai depender muito do uso cultural da internet. Esse tema, eu acho, é o tema do nosso tempo.

independentes cumprem papel arejador, de desconstituir uma visão única sobre a sociedade, sobre os fatos. Comunicação é fulcral para a cultura. Se tu é um militante na área da cultura, que é o meu caso, tu tem que ter sempre o tom da diversidade cultural e dos instrumentos que façam essa diversidade cultural aflorar. A cultura digital é importantíssima também por causa disso. É a cultura digital que destampa a diversidade cultural do país. No Brasil isso está acontecendo com muita força.

André Lacasi

que é um recorde. Nós temos também a formação da perspectiva da leitura cultural junto aos professores, porque sem professorleitor fica muito difícil gerar um ambiente favorável à leitura. Educação sem cultura é ensino. Cultura é um elemento qualificador de todas outras áreas. Saúde sem cultura é remediação; segurança sem cultura é repressão; desenvolvimento social sem cultura é assistencialismo. Cultura é um elemento crítico, ampliador, que ultrapassa o funcional.

Como tu vê a ação de coletivos que têm surgido pela cidade? O Estado reconhece essa forma de inclusão de cultura? Eu sou muito fã dessa cultura colaborativa, coletiva, comum. O mercado tem sua forma de se organizar; as empresas, os seus interesses; o Estado tem sua forma de organizar seu conjunto de leis e uma atuação em termos de política pública; e tem o comum, que é o colaborativo, é o que se articula, às vezes paralelamente, sem relação com o mercado nem o Estado. É o caso de coletivos, que tem uma relação entre cultura e economia solidária muito forte. São esses conceitos: ação cidadã em rede, economia solidária, diversidade cultural e uma comunicação compartilhada, com uma ideia mais ponto a ponto de produção e distribuição de conhecimento. Então os coletivos são fundamentais, eles têm o papel de pressionar tanto o Estado quanto o mercado para pautas mais importantes. Vejo muito esse movimento acontecendo: o mercado tendo que ouvir o que os coletivos estão dizendo e tendo que se transformar em alguma coisa um pouco mais justa – e o Estado também. O que tu acha desse processo de fechamento dos bares em Porto Alegre? Não acha que isso afeta a cultura do povo? O bar é um ponto de cultura e não deveria ser fechado. Lá tu também aprende sobre música, sobre literatura, aprende sobre a convivência em sociedade, amplia tua dimensão de mundo. Onde tem bar vivo, tem a juventude trocando suas referências, intercambiando, colaborando, pensando junto. O ex-ministro da Cultura Gilberto Gil achava que bar devia ser ponto de cultura que deveria ser licitado. Concordo integralmente com ele. Esse par entre bar e boemia é muito necessário, pois a cultura é adquirida por meio dessa relação entre as pessoas.


especial

O INSTITUTO PSIQUIÁTRICO FORENSE

André Lacasi

texto e reportagem Arthur Viana e Gilberto Sena

Garceu*, 55 anos, está há mais de três décadas preso em um sistema falho. Mal consegue lembrar os motivos que o levaram à detenção. O olhar fora de foco e a voz embargada talvez sejam efeitos dos remédios – há pouco havia passado a hora da medicação – ou talvez sejam os longos anos internado no Instituto Psiquiátrico Forense Doutor Maurício Cardoso (IPF), na avenida Bento Gonçalves, em Porto Alegre, cobrando a conta. Sem família e sem perspectiva, Garceu não sabe quando se verá livre de novo: “Estou preocupado com meu futuro. Procuro desvendá-lo no meu próprio eu. Tento alimentar meu ego, me incentivar. É o que me dá alento”. O cheiro do local é de abandono. Os corredores são escuros. Os muros são muito mais altos que os fisicamente erguidos à entrada do instituto. A diretora-geral do IPF, Maria Palma Wolf, admite uma situação “estranha” do ponto de vista jurídico: “As pessoas que estão aqui terminam cumprindo um tempo de internação maior do que o previsto para o máximo da pena. Por exemplo: se o delito de furto tem pena máxima de oito anos, tem algumas pessoas que estão aqui há 15, 20 anos”.


André Lacasi

O Não há superlotação, e uma nova unidade de triagem será construída, agilizando o processo de entrada do paciente no IPF.

Instituto Psiquiátrico Forense é um hospital de tratamento e custódia. Lá, são internadas pessoas que cometeram algum crime ou delito, independente da gravidade, e são portadores de alguma doença mental. A equipe médica do IPF é a responsável, em todo o estado do Rio Grande do Sul, pelas avaliações das pessoas que possam ter alguma relação entre o delito cometido e a doença mental. Os oito médicos do instituto responsáveis pelas perícias realizam mais de 2 mil avaliações por ano, mas, conforme a diretora-geral, Maria Palma, apenas 10% das perícias realizadas indicam a internação do paciente no IPF: “Não temos problemas de superlotação, trabalhamos para que só venham para cá pessoas que realmente precisem da internação”, explica. “O principal problema é para onde enviar o paciente que recebe alta e não tem para onde ir. Faltam residenciais terapêuticos. Existem clínicas particulares, mas o paciente acaba saindo daqui para uma estrutura pior e ainda tem que pagar por isso”, alega Maria Palma. “E tem a questão do preconceito com a doença mental por parte da sociedade e da família. Temos muitos casos de famílias que abandonam o paciente”, completa. Entre tantos desafios impostos ao IPF, dar continuidade ao tratamento do paciente fora do instituto parece um dos maiores. O preconceito é tão grande que devolver os pacientes à sociedade se torna um obstáculo quase insuperável. A terapeuta ocupacional Elaine Brasil Ruschel trabalha há dois anos no local e atesta: “Além de loucos, são considerados criminosos. Então são dois estigmas, fica complicado. Mas estamos aqui para trabalhar essas questões, poder reinserir eles na sociedade, poder resgatar valores que se perdem. É esse o nosso trabalho. O problema é que lá fora tem o preconceito”. Outros

seis terapeutas ocupacionais trabalham no IPF, onde desenvolvem oficinas terapêuticas – expressão, grafite, desenho –, além de atividades corporais e oficinas culinárias junto aos pacientes. “O dia dos pacientes é preenchido com oficinas e rotinas, como grupos de limpeza, servir refeições, lavar louça”, diz Elaine. Jalma Rosane Silveira, agente penitenciária com oito anos de casa, cuida da ala feminina do instituto. “Nós tentamos que elas acordem todos os dias nem tão cedo nem tão tarde, que tomem café, façam higiene, que limpem o lugar que estão, que almocem, tomem a medicação, que façam alguma atividade, retornem, jantem, que durmam em um determinado horário... O agente penitenciário cuida para que exista uma rotina na vida do paciente. É como se fosse uma grande casa”. Jalma garante que as mulheres dão muito mais trabalho que os homens: “Se a mulher normal já dá trabalho, imagina a doente...”. Mas o vínculo criado entre pacientes e trabalhadores ultrapassa o meramente profissional; há afeto de ambas as partes. “Nós sentimos que, para eles, somos a janela para o mundo”, relata Jalma. Alguns internos têm permissão para passeios pela cidade. Garceu, por exemplo, vai todos os dias tomar um cafezinho na PUC. A alta progressiva, mecanismo que permite ao paciente “retornar à realidade” de forma gradual, também colabora para a reinserção social. “Se a equipe constata que o paciente tem condições, ele passa um período de 30 dias em casa. Após esse período, ele volta para avaliação no IPF”, explica a terapeuta Elaine, acrescentando que esses pacientes em alta progressiva devem estar vinculados a algum Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que são residenciais terapêuticos. “Os pacientes precisam de supervisão, de alguém que controle alimentação e medicação. Então, para sair daqui, eles pre-

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André Lacasi

As instalações do instituto são precárias, dificultando o dia a dia dos internos.

cisam de algum vínculo com o sistema de saúde”, diz a diretora Maria Palma. Mantidos pelo Ministério da Saúde e gerenciados pelas prefeituras, esses centros são uma forma de descentralizar o tratamento de pacientes com problemas psíquicos. No Rio Grande do Sul existem quatro residenciais terapêuticos, sendo dois deles em Porto Alegre. “Estes locais seriam o destino também dos pacientes que recebem alta do IPF mas não têm para onde ir”, acrescenta Maria. Os CAPS também têm o poder de demonstrar a vontade do IPF de, mesmo que mantido pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), se vincular cada vez mais à área da saúde, e não à área criminal. Ali estão pacientes, não bandidos. Segundo Maria Palma, “tem a questão jurídica e penal, mas o que rege o trabalho aqui é a referência da doença”.

Na roda de mate, o futuro Aproveitando a tarde ensolarada, uma roda de mate no pátio do IPF é compartilhada por João*, o Gaúcho, por Rosana* e pela paraguaia Marina*. A rotina do Gaúcho, que encaixa perfeitamente bem no estereótipo de gaúcho bonachão, além do mate diário, também envolve apostas em carteados e partidas de futebol – afinal, “nem relógio trabalha de graça”, diz ele, divertindo-se. Internado há quatro anos no IPF, quer ir para a Argentina quando for liberado. Lá vai reencontrar o filho e a castelhana com quem o teve. Única estrangeira no local, Marina é reticente ao explicar como foi parar ali. Diz que veio conhecer o Brasil de ônibus e ficou sem dinheiro para voltar. Com um sorriso escondido, é só o que ela diz, em um portunhol de difícil compreensão. Ainda pede para que o Gaúcho feche um cigarro de palha para ela – e ele não hesita em atender o pedido. Com o cigarro na boca, mais nenhuma palavra. O que fica claro é que, sem família aqui, Marina quer voltar o

quanto antes para o Paraguai. Rosana também quer sair logo do instituto: “O meu caso não é grave. Eu não roubei, não matei, não uso drogas, não fumo, não tenho vício nenhum. A única coisa que eu fiz foi brigar com uma psicóloga. Brigamos de boca, foi uma discussão, e eu estou há um ano e três meses aqui. Ela falou que eu era louca, que não tinha condições de andar no meio da sociedade, mas eu estou mantendo a calma porque sei que vou sair pela mesma porta que entrei”. O processo para sair do IPF foi facilitado a partir da implementação da lei da reforma psiquiátrica de 2001 e com a consequente criação dos CAPS, mas o processo ainda comete injustiças. Entre a população carcerária de 479 pessoas, estão ali agrupados indivíduos responsáveis por cometer crimes hediondos e outros que cometeram pequenos delitos, como furto em supermercado. Das seis alas existentes no IPF, duas são fechadas, onde ficam os pacientes menos preparados para o convívio social. As vagas são para 441 pessoas, mas, como muitos estão em processo de alta progressiva, não há superlotação. Alguns prédios receberam reformas e uma nova ala será construída. O intuito de fugir da área criminal e se aproximar da saúde já traz melhorias, mas ainda há muito a se fazer. Garceu – e tantos outros em situação semelhante –, que vaga pelos corredores sombrios do IPF há mais de 30 anos, é a comprovação dos vícios de uma estrutura quase em colapso: foi abandonado pela família e pelo sistema. Ele tem razão em se preocupar com o futuro. Desde que seu irmão parou de visitá-lo, há alguns anos, declara-se “um solitário”. Porém, o trabalho desenvolvido pelos profissionais do Instituto Psiquiátrico Forense nos últimos anos está aí para mostrar que, na batalha pela reinserção social, Garceu está tudo, menos sozinho. *Nomes fictícios, para preservação da imagem dos pacientes


o mundo é bão

A CASA DOS LOUCOS Sexo, drogas e rock’n’roll. Muito sexo, muitas drogas e muito rock’n’roll. E mais um pouco disso tudo. Essa era a receita de algumas casas porto-alegrenses para agitar a cena rock da cidade no princípio do século XXI

O

despertador toca e a cabeça explode. Náusea. Um copo ainda cheio com os últimos goles de cerveja reflete a hora: sete da manhã. Bitucas de cigarro espalhadas por todo o chão, grudento pela bebida derramada na noite anterior, deixam um leve fedor de nicotina no ar, mas o nariz, acostumado com odores bem piores, já nem percebe. A caminhada até o banheiro é exaustiva. Lá, o espelho quebrado mostra um rosto cansado, com pele pálida, olheiras e cabelo desarrumado. A vida de excessos é desgastante. Mas a verdade é que o abatimento físico das manhãs seguintes pouco importava para uma juventude que vivia o agora – e somente o agora. Porém, para o jornalista Marcos Kligman, infelizmente, o agora era ir trabalhar. “Na época eu trabalhava na prefeitura de Viamão, então eu tinha que levantar cedo. Eu saía e a galera tava de pé ainda, virada, ouvindo um vinil.” Conhecido pela participação no seriado VidAnormal, da TVCOM, Marcos morou na Casa dos Artistas, um apartamento térreo na rua Barros Cassal, no bairro Bom Fim, e dividiu o teto com nomes como Beto Bruno, da banda Cachorro Grande, e o músico Flávio Basso, o Júpiter Maçã. De acordo com Kligman, ali se viveu um dos auges da cena underground porto-alegrense, no que ele diz ter sido “um período de formação de personalidade”. Casas-repúblicas que reuniam músicos e artistas diversos se multiplicaram no início dos anos 2000. Além da Casa dos Artistas, existiram as repúblicas roqueiras Fun House – a precursora –, a Casamarela e a Casa Rosa, entre outras. A Fun House surgiu em 1999, uma época em que a única alternativa para quem buscasse o rock era o Garagem Hermética. Gabriel Boizinho, baterista da Cachorro Grande, fundador, gerente e morador da Fun House, conta que, quando fecharam o Garagem por excesso de barulho (depois de um show da Cachorro Grande e da Pata de Elefante), a Fun House se tornou célebre por ser o único refúgio do underground em Porto Alegre. A casa funcionava como estúdio e uma vez por mês produzia uma grande festa, para ajudar a pagar o aluguel. O sucesso foi grande, e logo em seguida surgiram as outras casas no embalo, gerando uma fervura nunca registrada na cena rock de Porto Alegre. Mas a rotina não era só de festas. O grande diferencial dessa junção de loucos sob o mesmo teto era o que ali se criava: “Como se tinha muita liberdade nessas repúblicas, se criava muito”, relata Kligman. Gabriel Boizinho conta que o segundo disco da Cachorro Grande, As próximas horas serão muito boas, foi todo produzido na Fun House, e pode se sentir muito do espírito da época nas gravações. Outra semelhança destacada entre as casas foi a efemeridade delas: a Casa Rosa, na esquina da rua Garibaldi com a avenida Cristóvão Colombo, por exemplo, durou apenas um ano. Pedro Marini, músico, produtor, morador e responsável por esse local, explica: “Era o tempo do contrato, não tinha como renovar”. Marcos Kligman relata o fim de forma mais poética: “Era um consumo de energia muito grande. Tudo que podia se consumir se consumia intensamente. E o que é bom tem que acabar, para que não fique decadente”. Sobre o enfraquecimento do movimento rock em Porto Alegre, Kligman critica a nova geração e diz que falta inovação e ousadia: “Os no-

Rodrigo Steiner

texto e reportagem Arthur Viana

vos estão querendo a manutenção, estão indo no que já existia. Vão no Bambus porque todo mundo vai no Bambus. Não se cria mais nada. A gente é conservador mesmo na nossa rebeldia”. Kligman alega uma suposta “bunda-molisse” dos jovens, que, segundo ele, terão como maior feito para contar às próximas gerações um post compartilhado muitas vezes no Facebook. Gabriel Boizinho também vê uma falta de “pau-durecência” nos membros do underground hoje: “Tem que ter atitude. As bandas têm que fazer o próprio caminho. As pessoas querem viver o rock’n’roll, mas para isso elas têm que fazer o rock’n’roll”. Já Pedro Marini ataca o poder público: “Os bares que têm cerveja barata, que não têm todos os alvarás que inventam, que não pagam por fora para a fiscalização, esses bares estão acabando. O que fica são os bares elitizados. Sempre que eu vejo uma placa de ‘aluga-se’ numa casa velha, penso: ‘De repente aqui...’. Mas faz anos que eu desisti. Perdi o tesão. É tudo muito difícil nessa pequena província”. As casas duraram até 2005, umas um pouco mais, outras um pouco menos. Foram anos de livre e intensa criação, em que se originaram fortes vínculos de amizade e ótimas lembranças de uma época vivida intensamente. A melancolia e o tom nostálgico são palpáveis quando se fala no fim das repúblicas: “Antes de entregar a Casa dos Artistas eu fiquei 15 dias sem banho, sozinho na casa, nu”, conta Kligman sobre seu período de depressão quando soube que teria que entregar o imóvel na rua Barros Cassal. Gabriel Boizinho joga com a possibilidade de uma última festa na Fun House: “Estão retirando os móveis. Quando ficar vazia de repente dê para organizar algo... Mas foi uma época que passou. Foi divertido”. Em tom desgostoso, lamentando o fim da época áurea do underground porto-alegrense, Pedro Marini reconhece que “hoje em dia tem bandas, tem público, tem movimento. O que não tem mesmo é espaço”. Então, que fiquem as boas recordações – as que o álcool não apagou – e o mau exemplo, para que qualquer dia os próximos loucos se inspirem e ressuscitem o submundo do rock’n’roll de Porto Alegre.


cartola

HISTÓRIA À DERIVA – A ILHA DAS PEDRAS BRANCAS texto e reportagem Luis Felipe Abreu

Mari Lopes

Q

uem chega à Ilha das Pedras Brancas e, do barco, avista as imensas rochas de granito pálido que lhe dão nome e adornam sua costa, não consegue imaginar a história que se esconde por trás delas. Essa pequena ilha, de 100 metros de extensão e 60 metros de largura, que fica na exata metade do caminho entre Guaíba e Porto Alegre, tem uma longa história bélica. Ela começa na Revolução Farroupilha, quando o lugar servia de entreposto militar e ponto estratégico para os Farrapos. Logo após o fim da Revolução, o exército constrói ali a Quarta Casa da Pólvora, um forte para o estoque de munição, mas a umidade do local estraga os materiais e, nos anos 1930, o lugar é abandonado. No começo da década de 1950, as intalações são usadas como laboratório de pesquisa sobre a gripe suína. No fim dos 1950, o prédio é adaptado para tornar-se uma prisão. Assim como a Ilha de Alcatraz, a Ilha D'If (que inspirou o livro Conde de Monte Cristo) e a Ilha do Diabo (que originou o livro-filme Papillon), a Ilha das Pedras Brancas foi escolhida como sede de uma prisão por seu caráter insular, isolada pelas águas revoltosas que a cercam. Não bastava trancar os homens, era preciso afastá-los da sociedade. Assim foi feito, e o lugar conhecido por suas pedras, esculpidas pela natureza, passou a ser famoso pela casa de detenção. Nascia a Ilha do Presídio. Por uns tempos, eram transferidos para o local alguns poucos presos, vindos de penitenciárias comuns do estado. Mas aí veio 1964. Após o golpe, os militares viram na ilha e seu presídio um lugar perfeito para calar vozes contrárias à ditadura. No começo eram poucos os presos políticos, mas com o AI-5 (Ato Institucional número 5), em 1968, a ilha começou a receber cada vez mais militantes e opositores ao regime. A natureza de seus presos tornava a prisão um tanto diferente das outras. Havia órgão interno, organizado pelos detentos, chamado de Coletivo. O Coletivo organizava

o dia a dia da cadeia e tinha até um regimento, com normas escritas e decididas democraticamente. Uma delas proibia a colocação de fotos de mulheres nas paredes das celas – prática comum em qualquer outra penintenciária. Ou melhor, permitia fotos de apenas duas: a militante Inês Maria Serpa, a Martinha, na época presa no Madre Pelletier, e a atriz americana e defensora dos direitos humanos Jane Fonda. No começo dos anos 1970, eram mais de quarenta os homens presos ali por motivos políticos, sofrendo na mão dos guardas e lutando contra o isolamento. Entre eles, organizavam aulas de Filosofia, História e Literatura. No presídio que nomeava a ilha, o tempo não passava – expandia-se, estendia-se, era maior que tudo. Esse tempo imenso os encarcerados tentavam gastar lendo e assustando os guardas com histórias de fantasmas e vultos. Alguns desses apenados eram o atual deputado estadual Raul Pont, o atual presidente do PT Rui Falcão, o ex-deputado federal Carlos Araujo (cuja mulher na época, Dilma Rousseff, ia lhe visitar no local) e, entre esses homens, o jornalista e advogado Índio Vargas.

Sobrevivente “Ontem, em São Paulo, ocorreu um fato inexplicável e inusitado. Foi efetuada uma prisão em massa de estudantes reunidos para um congresso: mil e cem estudantes. Se nós estamos prendendo mais de mil estudantes, em pouco tempo todo o Brasil estará preso pela ditadura militar que se instaurou no país.” Foi essa a declaração que levou Índio Vargas à prisão. Então candidato a vereador, o jornalista do Diário de Notícias bradou o protesto durante o programa eleitoral de 1968. Alertado pelo câmera do perigo de seu ato, Índio se viu obrigado a fugir pelos fundos do estúdio e a ficar escondido. Mesmo assim, foi eleito em outubro daquele ano. Mas dezembro traria a implantação do AI-5 – que cassaria seu


O legado Hoje, o que resta dessa história está mais nas lembranças de quem por lá passou. O prédio do presídio vem ruindo, pouco a pouco, desde seu abandono, em 1983. Restam poucas estruturas de pé, todas elas muito frágeis. Em certos pontos, as paredes caem, o teto cede. De pé estão ainda duas guaritas onde os oficiais ficavam de vigília – agora vazias, mas ainda observadoras. Tudo coberto de sujeira, pichações, abandono. A memória da ilha vem sendo resgatada, aos poucos, nos últimos anos. Em 2006, a prefeitura de Guaíba conseguiu os direitos de exploração turística do lugar e atualmente promove, um domingo por mês, passeios de barco até o lugar, com visitas guiadas pelo local. No começo de 2012, foi realizada a primeira cerimônia de homenagem aos presos políticos da ilha. O evento fez parte das

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Morgana Mazzon

mandato em janeiro de 1969 e, pior, depois o levaria para o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) para ser interrogado. E encarcerado. Passa dois meses no DOPS, preso por “atentar contra a segurança nacional”. Adoece e passa dois meses no Hospital Militar. Recuperado, seu caminho é a Ilha das Pedras Brancas. “Toda a cadeia está permanentemente envolta numa penumbra, sendo as pessoas e as coisas vistas de forma difusa”, diz Índio em A Guerrilheira, livro que escreveu sobre a experiência na prisão “de aspecto lúgubre”. O lugar, planejado para ser um depósito de munição, era insalubre e inadequado para o encarceramento. Não havia janelas – a circulação de ar dependia de pequenos oríficios na parede, próximos ao teto, cinco metros acima do chão. As paredes de pedra grossa (mais de 1m de espessura) acumulavam o calor recebido do sol durante todo o dia e transformavam as celas em fornos. Quando vinha o inverno, a umidade do lugar multiplicava o frio. Quando Índio e outros presos políticos – mais de quarenta deles – chegaram ao local, em circunstâncias semelhantes, no começo dos anos 1970, encontraram os presos comuns sendo removidos do local, com destino ao Presídio Central. Todos já devorados pelo ambiente. “Esquálidos, rostos encovados, a pele parecia que ia ser furada pelos ossos descarnados”, assim Índio os descreve. “Só vendo para acreditar que alguém pudesse chegar àquele estado vivo”. Esses homens de “cor de cobre esverdeado” deixavam a ilha, enquanto os presos políticos chegavam para tomar seu lugar. Começava sua rotina de agonia e torturas – que incluíam o “caldo”, onde os guardas da prisão prendiam as mãos do preso às costas e mantinham sua cabeça submersa no rio por minutos. Dizem que assim morreu o sargento Manoel Raimundo Soares, cujo corpo apareceu boiando no Rio Jacuí em 1966, no que ficou conhecido como o “Caso das Mãos Amarradas”. Índio ficou na Ilha até 1973, quando o presídio foi desativado (voltaria a funcionar de 1980 a 1983, como presídio comum). Só então, após ter passado mais de um ano encarcerado, foi julgado. Condenado pela Lei de Segurança Nacional, saiu do julgamento já algemado para o Presídio Central. Mas já havia cumprido, antecipadamente, sua pena, e conseguiu ser posto em liberdade. Livre das grades, mas nunca da experiência. Ao fim da entrevista, após falar sobre datas e dados, repassando e condensando as histórias de uma vida, a boca falando de coisas de quase 30 anos atrás, Índio suspira. “Mas isso é muito técnico. A vida da gente não é assim. A vida da gente se destrói. Eu tinha 30 anos. Eu já não era o que era.”

atividades do 5º Encontro Latino-americano “Memória, Verdade e Justiça - Cumprir com a Verdade”, promovido pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, em parceria com o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH). O MJDH pediu ao Ministério Público o tombamento da ilha como patrimônio histórico. O presidente do movimento, Jair Krischke, afirma que o plano é colocar um totem no local, com o nome de todos presos ali, para relembrar o fato. “Andamos por avenidas Castelo Branco, ou escolas Costa e Silva. É justo que marquemos os locais em que esses senhores fizeram a ditadura militar.” A ilha, sendo um dos locais do Estado que mais representam essa parte pesada de nosso passado, merece atenção especial. O filósofo Walter Benjamin, em seu ensaio Sobre o conceito de história, fala da figura do “anjo da história”, a partir de um quadro de Paul Klee. O “anjo da história” de Benjamin tem o rosto voltado para o passado. Ele “gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído”, mas um vento que sopra forte lhe impede de parar, sempre o impelindo para o futuro. Esse vento é o progresso. Somos carregados pelo mesmo vento, enquanto a ilha, pedaço de história viva, flutua no Guaíba. Desde antes de nós e, quem sabe, até depois.

O Urban Exorcism é um projeto independente, premiado pela Funarte, que pretende reativar os antilugares urbanos (localidades esquecidas, depredadas e/ou inabitadas de uma cidade) através de um ato poético. Isso ocorre pelo "exorcismo" feito a partir de fotografia e vídeo. O projeto tem apenas uma regra: sempre registrar a presença de uma ou mais pessoas usando qualquer tipo de máscara. Esse ritual é a marca autoral do Urban Exorcism e garante sua unidade estética. Além da função imagética, o exorcismo pressupõe a contação de histórias e revelação de memórias. Por isso, a plataforma do projeto pede que seja manifestado o motivo que levou o anti-lugar a ser exorcizado – uma forma textual de resgatar a percepção dos espaços urbanos esquecidos. Mais informações: urbanexorcism.com



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