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nº 01, março de 2017
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POESIA
Arturo Carrera 35 Demétrio Panarotto 63 Aníbal Cristobo 57 Bernardo de França 72 Alberto Pucheu 83
ENSAIO PESSOAL
I. G. 49
ENSAIO
Araripe Jr. 76
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ARTES VISUAIS Gabriela Rudnick 42 VEJAM 08
FICÇÃO Paulo Pappen 09
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FICÇÃO A revolta da pizza PAULO PAPPEN
VEJAM Rua Professora Maria Flora Pausewang. Muro do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina.
Capítulo do começo
Daí, quando todo mundo já não tinha mais esperança de que um dia iam finalmente liberar as drogas, resolveram proibir também a pizza. Botaram a maior invenção da humanidade na mesma lista da maconha da cocaína do crack do cigarro e da cola, e de uma hora pra outra qualquer pãozinho com molho e queijo por cima passou a ser altamente suspeito. Quem fosse pego fazendo, comendo ou com pizza no bolso era condenado a prisão perpétua, mais os espancamentos. Da noite pro dia, noventa e sete por cento da população italiana foi pra cadeia. Como não tinha penitenciária suficiente pra toda essa gente, tiveram que alugar celas de cadeia na Holanda, o único país do mundo a não entrar na onda de proibição e, portanto, o único lugar com vagas disponíveis no sistema carcerário. Em Amsterdam, rapidamente se criou um Distrito Amarelo, onde (tendo dinheiro) tu podia comer pizza sem medo de ser feliz. A resistência no Brasil não foi das maiores, mas foi o suficiente pra eu me sentir convocado à luta. Pus a mão na massa logo que saiu o decreto e chamei uns amigos pra comer pizza lá em casa. Cada um levou um pouco de queijo e tomate, e levaram também a notícia de que, nos supermercados, parecia o apocalipse: todo mundo enchendo os carrinhos de coisas pra colocar na pizza. Porque, acredite se conseguir, todo mundo achava que ia poder fazer pizza pelo menos na própria casa, escondido. Mas já naquela primeira noite a polícia levou uma caralhada de gente pra cadeia, invadindo residências onde o cheiro de manjericão tava muito forte.
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Lá em casa não aconteceu nada de horrível, pelo contrário: a gente tava animado. Quem tava lá: o Augustavo, a Flamínea e a Lasanha. Parece nome falso né, mas não é. Acontece que eu sempre escolhi meus amigos pelo nome deles. – Como tu te chama? – João. – Desculpa então não posso ser teu amigo. A Flamínea até que tinha esse nome meio normal, mas alguém precisava ser normal nesse mundo né. Naquela noite a gente até cogitou a ideia de mudar de nome. Tipo guerrilheiro mesmo, codinomes simbólicos pra reforçar a resistência e dificultar a vida dos ome. Mas é muito difícil escolher um nome, não sei se tu já fez isso. Soa sempre meio ridículo: o Augustavo, por exemplo, pensou em se chamar Alho e óleo. Só que ele é paraleiro (paraguaio de pai, brasileiro de mãe) e não consegue falar o ó. Daí ele diz: aioioio, alioiolio. Algo assim. Não funciona: imagina tu tentando falar sério os ome chegando e o cara dizendo no walkie talkie “aqui alioiolio alêrta vermelho cámbio”. Tu cai na risada e os ome te fodem por tu tá feliz. A Flamínea queria ser chamada de Foccacia, porque ela fazia umas foccacias realmente boas. Mas falando sério: existe nome melhor pruma guerrilheira do que Flamínea? Rosa Luxemburgo, Espertirina Martins, Olga Benario e Flamínea. Desculpa não sei o sobrenome dela. A Lasanha já tinha nome de comida e era muito difícil pensar nela com outro sabor. Digamos Napoletana. Não combina. Napoletana tem que ter no mínimo os cabelos pretos. Se fosse uma insurreição contra a proibição da massa, quem sabe, daí a gente podia pensar em chamar ela de Arrabiata, acho que cairia bem. E a Lasanha eu secretamente já chamava de Capricciosa desde muito antes do golpe. Mas ela foi a primeira a dizer: – Mudar nome é um detalhe, eu não tô pra brincadeira. Quem tiver comigo dale! Quem não tá não me pentelha. Ficou então decidido que nada ficaria decidido. Éramos uma organização plural, horizontal, cada um por si e todo mundo junto. – Mas eu acho que pelo menos um nome pro coletivo eu acho válido – disse
a Flamínea. E ela argumentou que isso poderia ser encorajador pro movimento global de resistência. Se ficassem sabendo que uma tal Flamínea Foccacia era contra a proibição da pizza lá no sul do Brasil isso podia não ser grande coisa, mas imagina a simbologia de um Coletivo Unificado Pela Libertação da Pizza? Algo amplo e impactante. Fizemos uma tempestade de cérebro, como definiu o Augustavo, e assim surgiram nomes como Movimento Pizza Livre, Partido Pizzaiolo, Aliança Pizzaiola Nacional e Ocupa Pizzaria (ou o potencialmente polêmico Ocupizza, ainda mais quando pronunciado pelo Augustavo, que dizia o z com som de s). Só não conseguimos montar um acróstico com as letras P I Z Z A. Tipo: Pizza Independente... Esses dois zz aí nos matavam a criatividade. Enquanto o nome ideal não aparecia, a gente se lambuzava com a mozzarela de búfala, talvez a última pizza de mozzarela de búfala que comeríamos na vida. O nome do coletivo podia ser “Amigos da pizza”, sugeri. Ou só “Pizza”, bem minimalista. – Sem acrôstico? – perguntou o Augustavo, decepcionado. Aí a Lasanha acendeu um cigarro pra demonstrar que ela tava nessa vida de subversão há muito mais tempo e por favor não vamo perder tempo com bobagem. Mas bem que o nosso lema podia ser “que tudo acabe em pizza”, tentei de novo, apelando pro fraco dos meus amigos, que eram as piadas ruins. Só o Augustavo riu. Sinal de que a situação era mais grave do que eu imaginava (ou de que só ele era meu amigo de verdade). – Gente, eu acho que não podemos perder o foco – disse a Flamínea – Quais são as pautas: eu acho que liberdade de fazer, comer e pensar em pizza, ok. E qual a nossa estratégia? Luta pacífica? Luta armada? – Primeiro temos que tentar conversar comos inimigos – ponderou o Augustavo. A Lasanha acendeu outro cigarro. Eu voto em ocupar uma pizzaria abandonada, falei. E tinha inclusive uma lá na esquina, a pizzaria Mangiare. Se fôssemos logo, era capaz de ainda ter alguma rúcula fresca, algum palmito em conserva, al-
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VEJAM Av. ProfÂŞ Maria Flora Pausewang Muro do Hospital UniversitĂĄrio da Univeridade Federal de Santa Catarina. Ilha de Santa Catarina/SC. 2017
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gum salmão – era uma pizzaria gourmet, ninguém de nós nunca tinha entrado lá vamo lá galera é a nossa chance! – Espera, eu acho que isso tem que ser melhor pensado – Flamínea, a social democrata – Vamo primeiro fazer um ato no centro? Eu acho uma boa maneira de conhecer pessoas e daí sim a gente ocupa a pizzaria. Só se for agora, falei, calculando que, se o protesto durasse umas duas horas, ainda chegaríamos a tempo de encontrar cogumelos frescos na pizzaria abandonada da esquina. Mal terminei de falar, a Lasanha já tava na rua acendendo um cigarro e o Augustavo tava enchendo os bolsos com as últimas fatias da pizza de mozzarela de búfala. A Flamínea me olhou como se dissesse – quer dizer, eu li isso no olhar dela, mas ela pode ter pensado totalmente outra coisa (e que ela me corrija se eu tiver errado) – ela olhou dizendo “eu acho que finalmente temos um sentido pra viver”. E eu toquei no ombro dela como quem diz – isso sim eu tenho certeza – eu disse no meu gesto “podecre companhera”, e fui escolher uma roupa legal pensando que podia ser a última roupa da minha vida. Mas, quando fui me trocar, pensei melhor: por ter recém feito pizza, eu tava todo enfarinhado e com manchas de molho na camisa, na bermuda e inclusive no chinelo. A perfeita farda do pizzaiolo libertário.
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Capítulo do protesto
A Flamínea organizou o protesto no caminho, enquanto a gente caminhava pra praça do centro. Chamou um monte de gente que ela conhecia e que, segundo ela, seriam excelentes reforços pra revolução. O Augustavo chegou do meu lado e disse: – Ô cara, tu escreveu os nossos nomes e agora a polícia pôde nos prender a qualquer momento. Te presenta aí também pra nos ir preso xunto. Achei justo, então lá vai: meu nome é Último. Imagina agora se eu posso me dar o luxo de andar com pessoas de nome normal.
Foi escolha da minha nonna, que tava bem velhinha quando minha mãe engravidou e que disse: – Questo è l’ultimo. O último bebê que a nonna ia ver, tadinha, que morreu logo depois que eu nasci. Eu na verdade era o primeiro filho que a minha mãe tava tendo, mas entre Primeiro e Último a decisão recaiu sobre o segundo por razões de proparoxitonosofia. A hipótese de me batizar como Daniel, Paulo, Maicon ou mesmo Josinelson não passou pela cabeça de ninguém. O Augustavo achou interessante a história e resolveu contar a dele: – Meu pai preferia Augusto e minha mai Gustavo. Democráticos. A Flamínea gostou da brincadeira e quis participar: – Eu acho que todo mundo devia ter o direito de escolher o seu próprio nome. Podia ser: até os dezoito anos tu era chamado por qualquer coisa, sei lá, um apelido – não é assim já? Eu era a Mana, até sair de casa todo mundo me chamava de Mana. Meus irmão meus amigo até na escola as profe. Eu acho que a gente só se torna mesmo o nosso nome quando a gente sai de casa, então eu acho que seria justo que cada um escolhesse quando sai de casa. E a Lasanha: – É uma bela duma idéia, dá pra tentar aplicar. Se eu não tiver muito véia quando esse mundo mudar. Falando em mudar o mundo (e já que a Lasanha não quis contar a história do nome dela, que eu suponho tenha algo a ver com o fato de a mãe e o pai dela gostarem muito de lasanha), a gente tava ali caminhando pra isso, isto é, mudar o mundo. Volta e meia passávamos por alguma pizzaria abandonada, algumas já ocupadas por ratos e baratas, o que me dava uma pontada no estômago (aqueles tomates secos que nos esperavam) e uma paranoia bem desagradável: eu de certa forma torcia pra que ninguém fosse no protesto e a gente pudesse começar logo a guerrilha. A cidade naquela noite tava sim mais vazia do que o normal? Não sei. Na hora nem me veio essa pergunta, senão eu poderia ter feito pro pessoal. Acho que não tava muito diferente do de sempre. Ainda mais na nossa cidade: aquela ilha que um dia se chamou Desterro e depois Florianópolis e por fim Jesusópolis, no estado que um dia foi Santa Catarina e depois passou a ser Chagas de Cristo. Era o
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VEJAM Av. Mauro Ramos Em frente ao Instituto Federal de Santa Catarina. Ilha de Santa Catarina/SC. 2017
tradicional retrato urbano brasileiro: pessoas tentando dormir no chão enquanto outras tentavam correr, tanto correr por exercício quanto correr pra não ser assaltado, correr pra não ser estuprada e pra que ninguém puxasse assunto. Lâmpadas, muitas lâmpadas terrivelmente brancas, tanto que me arrependi de ter esquecido os óculos escuros. As luzes se refletiam nas fachadas espelhadas dos prédios e também nas paredes – brancas! – dos prédios que não eram espelhados. Dizem que uma vez há muitos anos as ruas tinham luzes mais calmas, luzes amareladas, e que os prédios podiam ser pintados com cores vivas, vermelho azul verde laranja, imagina, inclusive laranja. E parece que naquele tempo as pessoas costumavam ficar de noite em estabelecimentos nas calçadas denominados “bares”, que serviam álcool e às vezes música. Mas isso foi bem antes da Ressurreição Evangélica, que salvou nosso país da ditadura gayzista dos vegetarianos Jesus vai voltar e implementar carros voadores, essa esperança que era muito funcionante naquela época. Não sei se vocês estudaram um pouco de história. Recomendo. É uma boa maneira de prever o futuro. Conforme a gente ia chegando mais perto do centro, iam aparecendo algumas pessoas que também tavam indo pro protesto. Algumas delas eram fáceis de reconhecer, porque elas tavam com roupas enfarinhadas e manchadas de molho, que nem eu. Daí a gente se olhava assim meio satisfeito e meio envergonhado por ter tido a mesma ideia. E a polícia. Quanto mais próximo do centro a gente tava, mais ome ia surgindo. Por enquanto, eles só observavam. Foram se formando pequenos blocos que desembocaram num bloco maior. Não sei dizer quantas pessoas tavam nesse primeiro ato – a sensação era de duzentas e quarenta milhões mas no fundo devia ser umas cinquenta e três. Tava bom já. Calculei que cinquenta e três pessoas ia entupir a pizzaria da esquina e que seria preciso ocupar outras pizzarias na cidade. A Flamínea, que conhecia várias das pessoas reunidas ali,
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começou logo a “organizar o ato”. Esse vocabulário eu aprendi a partir daquela noite: ato, pauta, desconstruir, demanda, articulação, questão de ordem, lugar de fala, o que te move e o que te comove. Termos antigos que o pessoal tava trazendo de volta à baila porque, segundo consta, algumas coisas ainda não tinham sido resolvidas pelas revoltas anteriores. O que te move e o que te comove é o meu preferido: descobrir o que era que me comovia e movia se tornou uma questão existencial, a questão mais importante de todas: afinal de contas, quem era eu e de onde eu vinha e qual era meu sabor de pizza favorito? E acho que todo mundo tava pensando mais ou menos por aí naquele período. E talvez todo mundo ainda teja pensando nessas coisas, porque fala sério: existe resposta final pra questões existenciais? E por que deveria ter uma resposta final? O chato é ter que ir atrás de dinheiro em vez de poder ficar de boa pensando no que importa. Calma, preciso respirar. To escrevendo muito rápido que tá até me doendo os dedo já. Nem tinham começado ainda os discursos quando a polícia chegou em massa. Chegaram de caminhão mesmo, de ônibus, de cavalo, de helicóptero, uns seis ome armado pra cada meio manifestante de chinelo e bermuda. Quase que no susto, então, começaram os discursos, primeiro no grito mas logo alguém muito articulado apareceu com um megafone. E a Flamínea foi uma das primeiras: – Boa noite companheiras e companheiros. Eu acho que todo mundo sabe bem claramente... – Claramente não – alguém da multidão corrigiu. – É verdade – disse outra pessoa – Por que não “escuramente”? Evidentemente, nitidamente, obviamente... – eram sugestões pra substituir o “claramente” e tudo que fizesse menção à ideia de que “claro” é algo bom enquanto que “escuro” seria algo ruim. – Tem razão, desculpa – a Flamínea retomou – Eu acho que, evidentemente, todo mundo que tá aqui não concorda com essa lei absurda de proibir a pizza. A pizza que era o nosso último refúgio, o único prazer que tinha restado pra muita gente desde que o conservadorismo dominou o mundo. Enquanto ela falava, as pessoas iam botando o nome na lista pra falar também. Fui calculando... A gente não sairia dali tão cedo. O jeito era eu me inscrever pra falar também e propor ir logo pro vamovê. Se é que a polícia não ia acabar com a reunião cedo demais, porque a Flamínea
não tinha nem acabado a introdução do discurso dela que já tinha lá um polícia pedindo pra acabar com aquela palhaçada. – Isso aqui é democrático! – disse uma guria que tava usando uma touquinha de pizzaiola. O polícia falou algo que ninguém entendeu, mas que queria dizer “vão embora antes que a gente desça a porrada em todo mundo”. E daí todo mundo começou a gritar “resistência resistência” enquanto os ome atiravam as primeiras bombas de gás. Aí foi aquela correria, bombas e balas de borracha que miravam nucas e olhos. Eu vi pelo menos três pessoas ficarem cegas ali na hora e umas quinze tropeçarem. Essas que caíam eram logo cobertas de cacetada e arrastadas pro camburão. De repente todo mundo parecia que tava com molho de tomate nas caras e nas roupas e até as poças no chão eram de molho de tomate. Quem era preso era condenado como satânico terrorista e fim de papo. Por enquanto, os “pizzeiros” ganhavam uma prisão perpétua básica, mas logo logo a gente imaginava que a pena de morte ia deixar de ser apenas pros gays e daí os terroristas iam entrar no topo da lista pro assassinato de estado. Eu só comecei a correr quando consegui me certificar de que a Lasanha também tava correndo junto. Não teria graça continuar em liberdade se ela fosse presa. Isso não é amor, eu pensei, isso é egoísmo, a não ser que o amor seja um troço egoísta. Amor, sei lá, isso era tesão e ciúme. Imaginar o que fariam com ela na cadeia me dava sangue nozóio e eu corria pensando essas bobagens. Só me dei conta de que eu tinha perdido o chinelo quando cheguei perto da pizzaria Mangiare. Tavam comigo: a Lasanha, que se atirou na calçada toda ofegante e acendeu um cigarro, uma pessoa de turbante e unhas compridas, com um vestido colorido e carregando os saltos na mão, uma mina de black power e coturno, outras pessoas que eu não consegui ver direito porque quando eu parei o sangue nozóio ficou mais concentrado. Quando voltei a enxergar melhor deu pra ver que o Augustavo vinha caminhando, suado mas sereno, e calculei que a gente tava num número razoável pra ocupar a pizzaria.
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Capítulo que a gente ocupou a pizzaria Mangiare A rúcula e o manjericão já tinham estragado (temperatura média de 42 graus né pessoal), mas as conservas de palmito e tomate seco ainda tavam boas. Ninguém de nós tinha muita experiência em ocupar prédios abandonados, mas não havia nenhum mistério nisso: bastava que cada um se responsabilizasse por limpar o que sujou. Mijar sentado ajuda bastante nesse aspecto, o que vale tanto pra meninos quanto pra meninas. Além do mais, a vantagem de ser uma insurreição pela liberação da pizza favorecia a presença, na ocupação, de pessoas com certo senso culinário. Quer dizer que tinha ali várias pessoas capazes de cozinhar: eu, por exemplo, nem esperei que isso fosse decidido pelo coletivo em assembleia: logo me pus a fazer umas margherita pra acalmar os nervos pós-pancadaria policial. O povo foi chegando: quando as margherita ficaram prontas devia ter umas trinta e sete pessoas na pizzaria. Primeiro comemos, bonitinho, todo mundo parecia entender que não ia dar pra repetir o prato. Daí apareceu a Flamínea com aquela guria da touca de pizzaiola e deram a ideia de montar comissões: uma comissão de infraestrutura (encarregada da limpeza e da comida), uma comissão de segurança (encarregada de formar barricadas e estruturar uma defesa de território), uma comissão de articulação (encarregada de fazer contatos com outros grupos da resistência, fortalecer as bases e buscar uma instrumentação legal para não sermos imediatamente enquadrados na lei antiterrorismo – e foi essa comissão que me ensinou a usar esse vocabulário aí), uma comissão de comunicação (encarregada de criar uma imagem positiva pra tentar convencer as pessoas de modo geral que a gente era do bem) e por fim uma comissão de arte (encarregada de organizar situações culturais porque ninguém aguenta ficar só se cagando de medo de que a polícia chegue – é preciso tocar um violãozinho e dançar de vez em quando). Eu não fiquei em comissão nenhuma porque eu queria ficar em todas. Esperei todo mundo escolher a sua e informei que eu seria um líbero, alguém que joga em todas as posições, conforme a necessidade do coletivo. Ninguém reclamou. O bom é que podendo ficar um pouco aqui e um pouco ali acabou servindo pra eu ver um pouco de tudo e poder depois relatar essa história de modo mais completo. A Lasanha ficou na comissão de segurança, decisão meio que tácita, porque em vez de participar da assembleia ela ficou fumando cigarro na porta. O Augustavo ficou na comissão de comunicação porque, além de falar espanhol (o que nos permitiria trocar informações com o resto do mundo), ele era um dos únicos ali que ainda realmente acred-
itava no diálogo acima de tudo. E a Flamínea ficou na comissão de articulação, evidentemente. Já naquela primeira assembleia algumas pessoas começaram a se destacar. A mina de black power e coturno, que se chamava Jezebel, nos explicou a importância de todo mundo jogar fora os aparelhos eletrônicos, pra impedir que a polícia ouvisse facilmente as nossas conversas e, sobretudo, evitar que a gente fosse filmado lá dentro. Então fizemos uma fila pra arrancar o chip de todo mundo com aquelas belas facas afiadas que encontramos na cozinha. Depois outra fila pra costurar os buracos que todo mundo ficou na testa. Tivemos que tirar também todas as câmeras da parede, porque era uma pizzaria gourmet e tinha uma decoração meio retrô: câmeras, computadores, celulares, tinha até duas televisões lá, verdadeiras raridades. No dia seguinte vendemos todas essas coisas num antiquário, o que nos rendeu um bom dinheiro pra comprar terra e mudinhas de manjericão no mercado ilegal. Aliás, falando em mercado ilegal, junto com maconha, cocaína, cerveja, vela sete dias, revista pornô e cigarro, já tavam vendendo os ingredientes pra pizza e inclusive pizzas prontas nas bocas de tráfico. Muito triste ver aquela piazada de seis sete anos oferecendo tomate nos becos da periferia. Mas em breve eles encontrariam Jesus e seriam arrebanhados pelos pastores pra formar novas tropas do grande Exército da Salvação. Outra pessoa que se destacou desde o primeiro dia foi aquela que usava turbante, vestido e salto alto: Muriel, que difundiu a ideia do cafuné, fundamental pra que a gente conseguisse relaxar e dormir. Nem todo mundo, logicamente. Alguém tinha que ficar acordado a noite toda cuidando das portas: a da frente e a dos fundos. Não era o meu caso, mas convenhamos: em trinta e seis pessoas, seria muito normal que pelo menos umas onze considerassem tranquilo poder passar a madrugada acordadas. Pela primeira vez na vida de muita gente ali, havia essa possibilidade de escolha. Daí, como a pizzaria tinha dois andares, a parte de cima era o dormitório principal, coletivaço. Nos dias seguintes a gente arranjaria um espaço pra possibilitar intimidades, mas na primeira noite foi aquela coisa: todo mundo deitado com a cabeça na barriga do outro como se fosse um travesseiro. E cada um fazendo cafuné na cabeça que lhe correspondia. Eu deitei na barriga de um cara que roncava (a barriga, não ele). E a minha barriga serviu de travesseiro pra ela. – Tu é tão magrinho, Último! Vamo ter que dar um jeito. Prum guerrilheiro tão útil, engordar é um direito. Útil! Ela me chamou de útil! 21
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Daqui pra frente é um capítulo só até o fim
Mas não vai pensar que a gente não tomava banho. Na pizzaria tinha até um vestiário, rapaziada, com dois chuveiros e um tanque. Então dava também pra lavar roupa. No depósito tinha uns aventais de garçom, que passamos a usar como vestimenta ocasionalmente, quando a roupa normal tava suja ou secando, por exemplo. Aí sempre tinha alguém com a bunda de fora pra lá e pra cá. Mas tu logo te acostuma. A bunda que eu mais queria ver era a da Lasanha, e consegui (e com essa bunda eu não fazia questão de me acostumar, mas sim de ver sempre como a primeira vez). Foi simples. Numa tarde daquelas eu tava sozinho na porta dos fundos e ela apareceu. Aí eu tive a chance de falar aquilo que eu tava ensaiando há muito tempo: Lasanha, fica comigo? Na verdade, meu texto era pra ser “Lasanha, deixa eu ser teu parmesão”, mas pensei rápido na hora e me dei conta que ela já devia ter ouvido essa cantada mil oitocentas e quarenta e uma vezes, e que talvez fosse sexista, com certeza. Então simplifiquei. E ela disse: – Ué, sim, fico, vamo lá. Vou já reservar o quartinho. Ou tu prefere adiar? Por mim seria tranquilo. Já adiei a vida toda, respondi logo pra loca. Antes que o mundo exploda, quero já beijar tua boca. E foi bem legal. Sei todos os detalhes mas não revelo por razões de vocês não têm nada que ver com isso. O quartinho era um apêndice do vestiário, com uma janelinha de vitral que deixava uma luz azul espetáculo entrar e pousar, ai que bobo isso, no corpo da gente. A única coisa proibida de fazer ali era ir sozinho. As necessidades (xixi cocô masturbação) deviam ser feitas nos banheiros. Bastava avisar: “Vou ali dar uma mijadinha” ou “Vou ali dar uma gozadinha” e pronto, ninguém ia lá te incomodar. A não ser que quisessem te dar uma mão, sim, daí sim vocês iam pro quartinho e pá. Era a primeira vez que muitas das pessoas ali tavam vivendo num lugar em que os preconceitos mais idiotas não se sustentavam. Então, se nos primeiros dias ainda tinha quem arregalava os olhos ao ver um homem massageando os pés de uma mulher, uma trans dividindo um pedaço de pizza com um seminarista ou uma mulher espremendo os cravos das costas de outra, isso foi sendo aliviado rapidamente com o tempo.
Às vezes eu olhava pro lado e tinha alguns jogando dominó, outros na oficina de cafuné oferecida por Muriel e ainda um pessoal lendo. Porque a gente lia, tá pensando o que? Dava inclusive pra fazer uma antologia com os livros que circulavam por lá: Aos nossos amigos, do Comitê invisível O alquimista, do Paulo Coelho Velhas receitas para jovens empreendedores, de Andrea Martini e Sandra Smith As doze maravilhas do mundo cristão, do pastor Romualdo História da infâmia, do Borges, que não se sabe se foi uma pessoa só ou se foram várias pessoas que escreveram e que ficaram pra nós com esse nome “Borges” Quarto de despejo, da Maria Carolina de Jesus Questão de ordem – Diário de uma ocupação, do Andrezera Moreira Como estar em dois lugares ao mesmo tempo, da Yoko Hiroshi (tradução da Juliana Lopes dos Santos Neves Couto) Esse aí de como estar em dois lugares ao mesmo tempo era o que eu mais queria ler e até dei uma olhada nele no banheiro algumas vezes. Mas a verdade é que eu não conseguia me concentrar. Parecia que tinha duas mil quatrocentas e doze coisas acontecendo o tempo todo, pena que eu tenho preguiça de contar tudo que eu vi e vivi. Mais do que estar em dois lugares ao mesmo tempo, eu precisava aprender a estar em quatrocentos mil e trezentos e noventa e dois. Eram coisas que talvez não fossem assim intelectualizáveis. O pessoal da performance lá da comissão de arte que tinha essa visão: a inteligência do corpo, a memória do corpo, nada simples de colocar em palavra. O esquema é dançar, performar, ou sei lá, caminhar – e daí na maneira que as pernas se erguerem do chão e virarem passos vai dar pra notar a história de tudo que eu vi e vivi. Me vejam caminhar, venham aqui. Mas isso não é desculpa pra não escrever, apenas não vale a pena perder tempo tentando escrever o que eu não sei em palavras mas sei com os olhos. ;) Eu passava o dia entre a cozinha e a segurança da porta dos fundos. A tensão maior não era nem a possibilidade de vir a polícia, mas de vir o Exército da Salvação. – Você aceita a palavra do senhor? – eles diziam. Não dava pra responder, senão não acabava mais. – Não aceito senhor nenhum – tinha sempre alguém que respondia. – Você sabe que só existe um caminho pra salvação, não sabe?
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– O caminho da rua! Vaza loco. Era tudo que os Soldados de Cristo queriam. – Calma, irmão, nós viemos em paz... – Então vai embora em paz também. – ...e você já está agindo com grosseria, inclusive na frente de costelas... – Costela é meu grelo duro! – dizia a Ester. – Esse lugar precisa dum descarrego. Vamos voltar amanhã com um mandado de exorcismo. E voltavam mesmo, sempre com esse papinho de querer arrastar pras igrejas deles pelo menos as “costelas”, e daí a gente se trancava dentro até eles cansarem de orar lá fora e irem embora. Até que o pessoal da comissão de arte começou a ajudar na segurança: tinha um cara lá chamado Josías que fazia uma performance de possuído capaz de assustar e botar pra correr inclusive pastores mais experientes. A gente evitava ao máximo entrar em conflito físico contra o Exército da Salvação. Só reagiríamos se eles atacassem primeiro. Mas tudo indicava que, em breve, alguma atitude mais forte acabaria sendo tomada. Muriel, por exemplo, a gente tinha que segurar firme pra não sair dando voadora nos Soldados de Cristo. Não havia exatamente uma rotina, mas cito aqui algumas coisas que aconteciam na ocupação. Além de reuniões básicas pra organizar a vida lá dentro, tínhamos sempre que fazer pizza, cuidar da hortinha e limpar o espaço. Ao mesmo tempo, tava sempre acontecendo alguma oficina: a arte do cafuné era a mais procurada, mas tinha oficina de violão, pandeiro, astrologia e, naturalmente, culinária. Além disso a gente conversava bastante sobre política, afinal de contas estávamos fazendo uma experiência de imersão nisso. Às vezes eu me pegava em conversas como essa: – Pra que que tem que durar pra sempre uai? Pra que que tem que ser pra todo mundo? Algumas pessoas gostam de brócoli e outras de borda recheada e daí? – e outras gostam de brócolis COM borda recheada. – Exato, e daí? – e tem gente que gosta de milho. Outro debate que acontecia dentro da ocupação era aquele sobre as organizações políticas. É que, ali dentro, havia tanto pessoas independentes quanto pessoas militantes de movimentos sociais (por exemplo o Movimento Negro e também os movimentos que lutavam contra a discriminação e criminalização de pessoas gays, lésbicas, trans e muito mais), e
tinha também gente filiada a partidos políticos (o Partido Comunista, por exemplo, que eu nem sabia que existia ainda) e pessoas ligadas às religiões católica, luterana, islâmica, hebraica, espírita, umbanda, quimbanda e candomblé. Essa variedade gerava um pouco de desconfiança entre nós, às vezes, porque algumas pessoas temiam que certas organizações (sobretudo aquelas relacionadas a partidos eleitorais) tentassem fazer com que o movimento de resistência à proibição da pizza se tornasse uma arma pra disputar eleições e destronar os neopentencostais que estavam no governo. Pessoas como a Flamínea, por exemplo, que (descobri na ocupação) era militante duma organização ligada a um partido, passaram a ser ouvidas sempre com um pé atrás. Quando ela dizia algo como “eu acho que temos que focar na nossa pauta”, era impossível não pensar que ela tava em contato com pessoas que viam nessa mobilização popular contra a pizza uma chance de voltar a governar o Brasil. Daí, quando a Flamínea falava que “eu acho que devemos fazer uma nova manifestação na rua, pra chamar atenção das mídias”, tinha sempre alguém disposto a retrucar: – Ok mas desde que nao tenha nenhum politico profissional la cagando regra no megafone. E ja que a gente conseguiu reunir tanta gente agora sera que nao eh o momento de reivindicar algo mais do que soh a liberacao da pizza? – Mas cara, eu acho – respondia a Flamínea – É pela pizza que as pessoas se reuniram. Eu acho que se você colocar outras pautas o movimento vai dispersar. – E qual eh o problema do movimento dispersar? Ata eh que isso não eh bom pro teu partido na proxima eleicao. Aí a guria que usava touca de pizzaiola, chamada Ester, tentava mostrar o meio-termo: – Gente calma! Sem as organizações políticas a gente não ia ter juntado gente pra ocupar picsaria nenhuma! E sem a paixão dos anarquistas a gente não ia ter ideias tão boas!! – “Paixão dos anarquistas” – dizia a Jezebel, afundando as mãos no seu black power – Tipo assim: os anarquistas têm paixão, os comunistas têm razão, então vamos ouvir a voz da razão galerinha... – Eu não sou comunista! – respondia a Ester – Eu sou socialista! – Ai meu Deus – suspirava algum católico presente. Eu me divertia muito vendo essas discussões e me sentia representado principalmente pelas pessoas que achavam que era pouco reivindicar apenas a liberação da pizza. Pra mim era uma questão de vida ou morte e eu já tava sentindo necessidade de tomar alguma
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atitude mais incisiva. Até porque iam chegando informações: além da nossa ocupação na Pizzaria Mangiare, tinham ocupado também a Pizzaria Sole Mio na nossa cidade, e em toda a República Evangélica do Brasil eram mais de cem mil e onze pizzarias ocupadas. Em contrapartida, além das já banais notícias de gente que era presa por ter fumado um cigarro, bebido cerveja, assistido um filme pirata ou visto pornografia, agora ficávamos sabendo também de gente que tinha sido não só presa mas inclusive assassinada por ter comido um pedaço de pizza. Uma prática de tortura era costurar a boca de um “pizzeiro” e deixar ele morrer de fome. A não ser, evidentemente, que ele se convertesse imediatamente ao Poder do Senhor. Chegavam notícias estrangeiras também, anunciando que os Estados Santos da América tavam ameaçando invadir o Marrocos, onde os rebeldes a favor da pizza tinham realizado um atentado com homens-bomba. Na República Maradoniana da Argentina, a Santa Igreja de Maradona tava usando estratégias de treinamento futebolístico pra punir comedores de pizza, condenados a correr em campos de futebol e fazerem abdominais até perderem o peso conquistado com a ingestão de pizzas. E na Itália, com quase toda a população encarcerada, parece que tudo tava virando um grande resort em que eram servidos hambúrgueres pra turistas anti-pizza e finalmente iam pôr em prática o projeto de implodir o Coliseu pra fazer um estacionamento. Dava pra dividir as pessoas em alguns grupos: aquelas que achavam que estávamos numa guerra mundial, aquelas que achavam que o importante era fortalecer as bases pra tirar os neopentencostais do poder e aquelas que tavam ali só pra comer pizza. – Eu tô aqui por meus amigos – ponderou o Augustavo. E a Lasanha: – Eu por mim queria tudo: comer pizza livremente, um governo diferente e também mudar o mundo. – Eu acho que temos que manter o foco – dizia sempre a Flamínea, até que um dia eu tomei coragem e falei pra ela, em particular, Flami, eu acho que tu usa muito “eu acho”. Se um dia tu for candidata a vereadora, algo assim, vai pegar mal. Ela arregalou os olhos e abriu a boca como se tivesse se ofendido, mas pensou rápido e disse: – Eu acho que tu... Quer dizer, você tem razão. Os eleitores percebem logo esses vícios de fala. Vou te chamar, perdão, vou chamar você pra ser meu assessor de imprensa, que tal?
As primeiras pessoas a desertarem foram as que tinham alguma religião cristã: os católicos e os luteranos. – Nossa luta é contra o capitalismo que se tornou a teologia universal dos homens; vamos continuar em outro lugar. Alguém disse: – Tudo bem pode ir ninguem taqui por obrigacao. E a Jezebel completou: – Mas vê se aprendem a parar de usar “homens” no sentido de “pessoa” tá? Mas tinha também romances leves que nasciam lá dentro: – Vamo fazer uma assembleia pra deliberar quando tu vai ocupar meu coração? – Teu coração não quero ocupar não. Mas o resto do teu corpo... O tempo passa diferente dentro de um lugar ocupado, seja ele uma pizzaria, uma escola, uma igreja ou um corpinho. Cada dia era como uma semana e cada semana era como um mês. Um mês era igual a um ano. Era natural que os ânimos oscilassem e foi preciso criar uma comissão de saúde (ideia de Muriel) pra tratar sobretudo psicologicamente das pessoas. Teve pelo menos uma vez em que eu saí da ocupação e fui prum lugar absolutamente perdido pra ficar sozinho em silêncio sem ver ninguém e principalmente sem ser visto. Porque ninguém aguenta ficar o tempo todo exposto aos olhares do mundo, mesmo que sejam olhares amigáveis. É como dormir. Sumir é como dormir depois de passar muitas horas acordado. Aí de vez em quando eu via alguém chorando, pra além dos momentos de cortar cebola. Eu mesmo chorava de emoção, quando alguém começava a tocar violão no meio da tarde ou quando duas pessoas começavam a fazer um repente (uma payada, como dizia o Augustavo). Tipo essa: CANTOR 1 A mozzarela pode ser de búfala Ou pode ser de vaca, sem problema E o brócoli, que seja de estufa! Comendo pizza a luta vale a pena
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CANTOR 2 Pensando no combate eu aconselho Que todos comam pizza de alho e óleo Co bafo que dá foge até o espelho! E resolvemos logo esse imbróglio CANTOR 1 Opa! Se é pra falar de luta armada Eu tenho uma receita pros mais jovem Pepino, milho e carne acebolada Com ovo dá um perfeito molhotov CANTOR 2 Por que então não ampliar a luta Levando em conta as causas animais? A búfala e a vaca não têm culpa Da gente ser irracional demais Como se pode ver, naquela época ainda era comum as pessoas comerem vaca galinha peixe cavalo porco. Era um assunto delicado porque 1) era difícil imaginar pizza sem queijo e 2) os alimentos mais baratos eram mesmo esses feitos com restos de boi, restos de galinha, restos de cachorro e por aí vai. Já tinha começado a rarear bastante o número de vegetais e frutas, porque plantações de soja e milho eram as prioridades mundiais. – De que adianta não comer carne se tu sendo vegano sustenta os latifúndios de soja que destruíram a Amazônia? – Ôxe a gente é contra a soja também! Existem alternativas, é preciso descentralizar a produção de alimentos e variar o que se planta. Muriel também tinha o seu ponto: pramimcomerbichoéquenemcomergente.Oesquemadeexploraçãoanimalémuitoparecidocomoesquemadeexploraçãohumana.Doshumanosquerodizer.Vocêsmeentenderam. Pior que não era todo mundo que entendia Muriel não. – Não tá claro.
– CLARO NÃO! – já dizíamos em coro – Evidente, nítido, patente... – Gente, eu acho que não podemos perder o foco – dizia adivinha quem. – Mas isso tudo eh o foco! – alguém respondia por mim. Pizzas pra quem não comia carne ou derivados de animais: marinara, que levava molho de tomate e alho fritinho por cima, pizza com queijo de mandioca, pizza de legumes e use a criatividade. Mas era fato: logo que acabou a carne lá dentro, fizemos uma votação pra decidir se procuraríamos mais ou não, e a maioria votou por não. Isso provocou uma nova debandada: umas nove pessoas saíram. Outras ficaram e, clandestinamente, trouxeram linguiças, o que gerou um grande debate não apenas questionando o carnismo X veganismo/vegetarianismo, mas questionando a atitude de passar por cima de uma decisão coletiva. Afinal de contas, era justo ou não tu poder comer o que tu queria? Será que não estávamos também nós sendo repressores ao proibir carnistas de comerem animais mortos? Por outro lado, como conviver num espaço tão pequeno com pessoas que sentavam do teu lado mastigando um pedaço gorduroso de um ser que foi criado amarrado e no qual injetaram hormônios pra que ele inchasse logo e fosse possível esquartejar ele e vender por um preço quatrocentas e doze vezes maior do que o que era gasto com a produção de mil aipins? Fizemos nova votação e foi decidido que, novamente, não se podia trazer carne pra dentro da ocupação. E evidentemente teve gente que continuou trazendo. Ah, e a inescapável polêmica do orégano! Tinha um cara lá particularmente revoltado com isso. – Por que diabos há-que-se pôr orégano em tudo? Eu, de minha parte, considerava desprezível, no período anterior à proibição, o fato de irmos a uma pizzaria e virem aquelas pizzas todas assemelhadas, cobertas por orégano. Não importava se comias carne ou não: eram todas pizzas de orégano. Passávamos, então, uma semana a arrotar orégano. A minha pauta principal não é relativa à liberação da pizza; antes, eu gostaria de liberar a pizza do orégano que a oprime. Na ocupação, então, a gente decidiu em assembleia que cada pessoa botaria orégano a gosto. E quem fizesse questão de que o orégano fosse assado junto com as pizzas, devia solicitar isso antecipadamente. Mas mesmo assim dava confusão, e mais de uma vez o carinha que não gostava de orégano acabou ganhando sem querer um pedaço cheio de orégano (não sei o nome dele, mas a gente chamava ele de Orégano).
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É evidente que as pessoas ali cometiam outras subversões além de comer pizza. Uma delas era o tabaco e a maconha, outra era o vinho e a cerveja. Pra muita gente, era impossível conceber uma refeição que não começasse com um baseado e uma cerveja, passasse pela pizza com vinho e terminasse num cigarro (sem falar no chocolate). A Lasanha, por exemplo, ameaçava ir embora quando alguém dizia que fumar cigarro só aumentava o risco de que fôssemos incriminados. E completava: – Tu vai ser incriminado não importa o que tu faça. O importante é tá ligado e não delatar a raça. E por que a polícia não atacava? Deviam tá esperando que a gente cansasse. Ou que a gente fizesse alguma cagada. – Tipo fumar na janela! É, Ester, talvez fumar na janela ou nas portas fosse algo que parecesse uma provocação desnecessária. A vizinhança sabia que a pizzaria tava ocupada (algumas pessoas, que pediam pra não ser identificadas, inclusive iam lá de vez em quando comer umas pizzas com a gente) e certamente a maioria não era a favor da nossa rebelião, mas nada de grave acontecia. A impressão era de que podíamos passar o resto da vida lá sem maiores problemas, vivendo de doações, talvez entrando pro tráfico de pizza, sei lá, mas ao mesmo tempo havia também a impressão de que a polícia podia bater lá e matar todo mundo de repente. Paranoias não faltavam. Conforme algumas pessoas foram indo embora (das trinta e oito iniciais tinham restado umas quinze no fim do mês), algumas teorias foram ganhando força. Uma delas dizia que a polícia não atacava porque tava esperando que a gente entrasse em conflito com o Exército da Salvação, e daí os próprios pastores resolveriam a questão com a gente. Outra teoria dizia que a polícia não atacava porque simplesmente não era necessário: eles tavam nos monitorando com micro drones, os computadores tavam anotando tudo e, quando fosse o momento, seria acionada alguma bomba pra explodir o prédio. Essa teoria se relacionava diretamente com aquela da geladeira: nos países mais ricos os eletrodomésticos já funcionavam há muitos anos como aparelhos de monitoramento das pessoas, filmando, gravando e se acionando automaticamente pra matar elas quando elas incomodavam demais. Então por que isso não poderia acontecer ali também na pizzaria? O fato da nossa geladeira e o nosso forno serem meio retrô não significava nada. Essa teoria assustou bastante e teve gente que não quis mais entrar na cozinha depois de saber disso. Fizemos votação: os eletrodomésticos ficavam ou não? Ganhou o “fica”, obviamente, que sem geladeira forno e fogão não fazia nenhum sentido ficar naquela piz-
zaria. Mas a teoria mais forte derivava de um fato real, trazido pelo Augustavo, que tinha entrado em contato com uma ocupação do México. Na Cidade de Jesus (antiga Cidade do México), trezentas e sete pessoas morreram dentro de uma pizzaria ocupada após comer alguma coisa envenenada. O medo de que isso acontecesse com a gente se articulava com a suspeita de que tivesse um infiltrado entre nós. Um policial? Um pastor? Um hamburguês? Um policial pastor hamburguês? O fato é que, depois que começamos a falar meio que sério sobre a existência de infiltrados entre nós, caiu a luz. O suficiente pra aumentar as paranoias, mas também foi importante pra gente pensar em sair dali e partir pra outras estratégias. A Flamínea achava que o primeiro passo era uma manifestação nacional massiva. Alguém não posso dizer quem falou em pegar em armas. O Augustavo queria conversar com os cara da luz e, se não desse resultado, ele mesmo tentaria reativar a eletricidade pra nós. Eu votei por continuarmos ali, aprender a fazer fogo com pauzinhos, montar um forno de barro e incrementar a horta pra não precisar mais de geladeira. Fazer da ocupação uma verdadeira comuna. Mas a Lasanha e a maioria das pessoas apoiou a ideia do protesto antes de mais nada. E lá fomos nós a pé até o centro, se preparando pra ser logo escorraçados pela polícia novamente. Mas chegamos lá e tinha pelo menos umas seiscentas e quatro mil pessoas. Tinha inclusive carro de som e helicópteros que, em vez de atirar bombas, atiravam bandeirinhas do Brasil com as mensagens Ocupa Pizzaria, Pizza Para Todos e Vem Pra Pizzaria. E tinha inclusive famílias com velhos e crianças e cartazes dizendo Quero Minha Pizza do Mickey. A polícia tava presente também, mas assistindo e tirando fotos com os fãs. E jornalistas tavam fazendo suas transmissões ao vivo, enaltecendo a força de mobilização do povo brasileiro. No carro de som, o líder do sindicato dos donos de pizzaria afirmou que era uma questão de minutos pra lei cair e tudo voltar ao normal graças ao sangue de Jesus que tem poder. Por fim ele chamou a líder da ocupação na Pizzaria Mangiare, que fez um discurso mais ou menos assim: – Eu acho que, independentemente de a lei cair logo ou não, isso aqui, nessa noite, esse ato cheio de gente já é uma vitória. Eu olhava pro pessoal da ocupação e a Ester tava fazendo que sim! com a cabeça, a
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Lasanha e o Orégano tavam fumando alguma coisa (provavelmente não orégano), o Josías tava fazendo uma performance de pastor exorcizando o demonho de alguém, a Jezebel devia tá atirando pedra em algum banco e Muriel tava respirando fundo pra não sair dando voadora nos Soldados de Cristo. – Impressao minha o tem alguma coisa estranha? – disse o Augustavo. Sim que tinha. A gente na verdade devia tá se considerando contemplado por aquela multidão. Quando saiu a notícia de que a pizza tinha voltado a ser permitida no mundo todo, a gente devia ter comemorado né? Então por que essa sensação de que tínhamos no fundo perdido? Nossas demandas tinham sido ouvidas, recebemos o apoio da maioria da população, tínhamos feito o sistema voltar atrás num decreto... E agora, o que fazer? Eu voto por ocupar um bar, falei pro Augustavo, vendo que a Lasanha tava entretida com o Orégano e a Flamínea tava indo comer pizza com um pessoal do sindicato dos donos de pizzaria. Falei em ocupar um bar até porque ninguém sabia o que era um bar. Mas dizem que, antigamente, quando as pessoas não sabiam o que pensar da vida, elas iam pro bar. Mostrei o que eu tinha escrito pro Augustavo e ele disse: – Eu acho interessante esse ecxercício de escrever como se tu tivêsse no futuro. Mas tu nao te incomôda cara com o risco de as pessoas se ofender? Tipo a Flamínea, e eu mesmo nao sei se gostei da imaxem que tu me criou. Nao sei, tu não considerou a idêia de fazer um diário? Daí depois com mais calma tu poderia criar literatura em cima. Hum... fiquei pensando. Mas não dá pra pensar muito porque agora tá na hora da assembleia e vamos decidir se todas as pizzas vão ser feitas com massa integral ou se vamos usar também farinha refinada.
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POESIA JUGUETES ARTURO CARRERA
“Quién hubiera pensado, antaño, que un día nos avergonzaríamos de las palabras, que por nombrar las cosas que son podríamos sentirnos culpables,
VEJAM Av. Mauro Ramos Em um vidro espelhado de um condomínio de classe média qualquer. Ilha de Santa Catarina/SC. 2017
que por decir, incluso “niñito”, uno podría sentirse culpable.” Yves Bonnefoy I ¿Cuál, de todos estos lápices elegirías para la alegría, para el triunfo de unas vocecitas sobre otras que no conocés y que no hacen más que llamarte y llevarte hacia esa casa de sombra colmada de juguetes? Sin embargo, bastaría un instante para que la inteligencia de los besos impidiera hablarnos —¡pero no hablamos todavía!
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una emoción violenta, mínima pero fugaz, hace que otra memoria súbita se vuelva duradera. Yo escuchaba tu voz, pero no alcanzaba las palabras que decías; lo que querían decir —no que no te atendiera sino en otro balbuceo— adentro de otra burbuja que se henchía de otro límite, de otra memoria, de otro instante, ¿cuál? ¿de eso estamos hechos?, Había otro ritmo que ínfimo auguraba una repetición que nos desconocía. Y allí estuve, en esa vía. Diciendo sin decir, hablando sin hablar ¿iba? Con ese balbuceo yo creo, insisto, ser real. Yo creo adelantarme a tu ternura y no sé nada de tu amor que se adelanta al mío. Entre esas casi palabras si no sílabas todos los abecedarios fracasan y fracasarían cabeceando en nosotros cuando te decimos cualquier frase que alude al sueño de este mundo todavía.
¿Cuántas nociones elegimos para confundirte, para atraerte, para embaucarte? Sin saber que somos nosotros los embaucados. ¿Quién conocía los mapas insolubles de Plotino, las manos regordetas con pocitos en el mármol, la voz de una niñita de la cantoría?; pero no queríamos nombrarte, niños fajados en los tondos de los Inocentes nos llamaban… Gritaste, ¡como una cantante! Porque de no decir, cantabas, imitabas ¿a qué? ¿a quién? ¿a cuánto?
VEJAM Av. Mauro Ramos Numa dessas casas antigas. Ilha de Santa Catarina/SC. 2017
Y otra vez, con la partícula de un grito de un mandato sereno iniciás tu paseo con pasitos que van… hacia ninguna parte, hacia el olvido del ¿qué busco? ¿qué hago? ¿a quién llamo? ¿a quién respondo? ¿qué? ¿Cuánto “falta” para que un juguete “no hable”? Un presente reclama otro tiempo para que tu presencia no sea más que “esplendor”
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II Te llamé “abejita” porque llevabas de un lugar a otro el polen de unas flores invisibles, el silencio de unas sombras brillantes que te miraban. Y hasta un pájaro, el del libro de los Upanishads, se asomaba para verte, para sentir tu paso muy dentro del fruto que él jamás probaría. Nombro cada uno de tus juguetes. Los bautizo sin miedo. Me llevan a despertarte, a conocerte, a sonreir de alegría ante la imitación del movimiento. ¿Quién vuelve de ahí? Después de todo será recuerdo todo el rumor que queda cuando te vas, polvillo de luces sin nombre y rachas de una oscuridad veloz entre órbitas tan mínimas como fugitivas. Pero ¿puedo acercarme? …caja de zapatos de niña adonde guardás un sapo de terciopelo. Y ese muñeco que se sienta y bebe de un vaso parecido a un chopp.
¿Cuánta cerveza tiene esa luz? ¿Y estas dos latas de polvo de hornear unidas con un hilo sisal que era nuestro teléfono? ¿Y esa vaca que al girarle la cola daba leche? ¿Y esas ranas de lata a cuerda que saltan junto a las gallinas que picotean un círculo de madera verde con granos amarillos? ¿Y los pibecitos Jugal que se besan incansablemente? ¿Y el burro azul que se hamaca en silencio, despacito… …tu preferido? Sin nombrarte ¿podré decir cuál otro? ¿Para que alguno de nosotros quepa en esa dimensión? ¿O para que seamos expulsados todos menos yo, como cuando tu sonrisita me incluye?
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III Un artesano soy y sin embargo, no sé evocar la precisión en que han de encajarse cada una de tus pequeñas piezas. ¿Y no es como dice el sabio, que si no hubiese juguetes nos criaríamos repitiendo encuentros con gente de verdad? …y eran tus deditos lo que veíamos. Una pulserita de plástico con tu nombre y la hora de tu nacimiento —como si la dicha nos agendara. Cuánta sorpresa o cuánto deber porque no quisimos ser abuelos de la nada —saltamos en el desconcierto, cantando, agitando un trapo, una tela de ceniza, y el silencioso sonajero de la vida que colma.
VEJAM Av. Profª Maria Flora Pausewang Próximo à curva que vem da Av. Beiramar. Ilha de Santa Catarina/SC. 2017
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ENSAIO VISUAL Gabriela Rudnick Sou do interior, minha infância foi no mato, na rua, na terra preta em que cresci. As fotos foram feitas no começo de 2017 no interior do Paraná, numa leve tentativa de me reconectar com a minha terra. São mulheres que cresceram na lavoura, não puderam escolher o seu tipo de cultura - foram simplesmente destinadas a plantar tabaco. Se protegem ao máximo, contra os venenos, contra o sol, contra as pragas. E trabalham o ano inteiro em função disso - algumas são donas de suas terras, algumas dão todo o dinheiro para xs filhxs, algumas foram esquecidas, algumas não irão conseguir se aposentar tão cedo;
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ENSAIO PESSOAL SUJEITORRUA I.G.
Moro em uma rua sem saída. É o que diz a placa amarela de fontes pretas, fincada na calçada próxima à esquina que se dobra em sua entrada. Seu limite aquilo que a define como “sem saída” - é imposto por um morro, ocupado por árvores de diferentes aspectos. Da sacada que sai da sala da casa onde moro, é possível visualizar esse morro-limite. Gosto de me sentar no degrau da sala, que dá acesso à sacada, e ficar olhando esse amontoado de árvores que pintam o morro. A outra esquina – a que fica oposta àquela em que a placa de “Rua Sem Saída” dá o aviso -, é ocupada por uma creche pública, municipal, de muretas laranjas, e que até há poucos dias tinha colados em suas paredes diversos cartazes que diziam “Estamos em GREVE!”, e um único que dizia “ESSA CRISE NÃO É NOSSA! TODO APOIO A LUTA PELA EDUCAÇÃO!”. Quando a creche não está em GREVE, ela emite sons primitivos de vozes infantis em algazarra que muitas vezes são os primeiros sons que ouço quando desperto pela manhã. As muretas laranja da creche são baixas. Acima delas, desenhando os limites do terreno, se erguem grades como aquelas que separam a torcida dos campos de futebol. Essa arquitetura permite uma certa porosidade entre o mundo lá dentro e o mundo aqui fora. As crianças conseguem ver o que se passa na rua, e a rua o que se passa no parque da creche. O que, se notarmos bem, suspende essa falsa dicotomia de “mundo lá dentro e mundo aqui fora”. A extensão da rua tem entre 100-150m de cumprimento, da esquina, até o morro. Sem prédios. Casas baixas e portões abertos. Gente na rua. Esse é o ponto mais VEJAM Av. Mauro Ramos Frente à ladeira do Morro da Caixa. Ilha de Santa Catarina/SC. 2017
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agradável da rua. Ela não serve apenas de passagem: é também um ponto de encontro. As crianças ocupam a rua ao longo do dia – e de parte da noite também. Rodando de bicicleta; batendo bola; correndo; gritando; brigando; inventando. A simbiose com a rua vai além da sua utilidade de via. Pra essas crianças, a rua, além de via logística, é um espaço habitado, um território com diversas potencialidades. Sua ocupação cria vínculos e percepções na/com a rua. Noite dessas, sentado na sacada da casa onde moro, tomando uma cerveja, fumando um baseado e ouvindo o som das crianças brincando na rua, passei a revirar o cesto de memórias que remetiam àquele bairro em que ocupei as ruas - como fazem as crianças da rua onde moro. Me dei conta do poder de atração que a rua tinha sobre mim. À revelia dos receios de minha tia – o bairro não era dos mais amistosos, mas tampouco um matadouro- , a minha vontade era de ficar na rua até o limite: que era quando todas as outras crianças iam para as suas casas. Porque no final das contas, era isso: a rua só tinha sentido pra mim quando era ponto de encontro. Por mais que, em alguns episódios, eu voltasse pra casa chorando – seja por alguma briga, seja pelas ofensas e humilhações que sofria daqueles moleques mais dados ao sadismo -, o prazer do encontro era intenso e vital, ao ponto de obliterar o ressentimento resultante desses episódios menos felizes – se não completamente, ao menos em um nível em
que fosse possível resistir naquele espaço. A rua tinha o seu tempo. Em determinadas épocas do ano, sabíamos os horários em que ela seria ocupada por determinados amigos. Por isso, acabávamos sabendo, de cor, se o Denis estudava de manhã e que horas o André estaria na rua – de tarde não, porque ele tinha que cuida da sua irmã mais nova. Já eu – que não tinha irmã mais nova - cuidava ansioso do relógio, esperando apontar a hora de ir pra rua. Era o meu compromisso. Um compromisso que não possuía contrato ou cartão de ponto. Eu cuidava o momento de ir pra rua. Seria pra jogar futebol descalso na ladeira? Seria pra brincar de polícia e ladrão? Seria pra ficar sentado n’aulguma calçada vadiando? Seria pra entrar na casa de algum amigo – um mundo todo novo – pra jogar video game ou tabuleiro? Eu não sabia. O compromisso era com a rua e com o encontro. A atividade fim era, dentro de um certo repertório, indefinida. Evidente, existia o rou de possibilidades, mas nunca era certa a brincadeira que me esperava na rua. Muitas vezes, saí de casa “fora do horário”, sem saber se realmente haveria qualquer encontro – não tínhamos Facebook ou Whatsapp. Ia assim mesmo: à mercê da contingência, do acaso. Algumas vezes só encontrava o vazio – a rua sem ninguém – e voltava pra casa, carregando esse vazio no peito: não queria mais jogar vídeo game, tinha “enjoado”, e já terminara de desenhar o Goku super saiajin. Penso em como, para muitos pais, imagi-
nar seus filhos perambulando por uma rua, à noite, no extremo sul da zona sul de São Paulo, pode parecer aterrador. De onde vem esse terror? Qual a imagem que esses pais criam? Seus filhos sequestrados? Assassinados? Estuprados? Ou então fazendo amizades que os conduzam à uma vida marginal? – com todo aquele peso que a classe média dá àquilo que é marginal. Analisando a coisa do meu ponto de vista, isso tudo me soa estranho. Ou ainda, ingênuo, na verdade. Privar a experiência existencial da interação pessoa/rua, é, bem dizer, privar a superação da dicotomia pessoa/rua. É manter viva e latente a doente ontologia estrutural sujeito/objeto. Afirma-se essa ficção e destitui toda a potência cotida na interação dinâmica do devir constante que forma o hibridismo entre as categorias pessoarrua – assim, sem a barra que os divida. Toda a minha subjetividade é impregnada desse hibridismo. Desde minha postura diante das opressões as quais fui/sou submetido, até a manutenção das relações cultivadas a partir dos encontros fortuitos. A existência e a resistência que vivenciei ocupando o espaço rua moldaram grande parte da forma como experiencio as relações interpessoais que estão presentes hoje na minha vida. A percepção desvolvida na rua, sobre a rua, por aqueles que se permitem – e que são permitidos -, é outra: diferente da percepção que deriva do uso pragmático e logísitco desse espaço. A esses, que se limitam somente a transitar, têm a rua como via. A rua
como via carrega significados que se distanciam muito da rua como ponto de encontro. A via é o espaço da passagem rápida, que deve ser pensada, planejada, construída e mantida para que o deslocamento seja eficaz, rentável e ágil. Transitar pela via a partir desse tripé, impede a contemplação. Não é possível deitar um olhar demorado, capaz de exercitar a compreensão das contradições e das relações que são e se dão na rua. Quando transito veloz por uma via, cansado, a caminho do trabalho, e vejo um monumento pixado, com letras esquisitas, parcialmente incompreensíveis, tenho um impulso de repulsa. E na mesma velocidade do veículo que me desloca, busco, na minha gaveta de preconceitos e reflexões rasas, qualquer explicação pr’aquele fenômeno, com a finalidade de dar ordem e sentido de novo à paisagem. No entanto, se meu deslocamento é da mesma natureza que a passagem pela rua, como quando eu era moleque, o significado que posso dar àquela manifestação pode ser outro. As vivências e convivências na rua têm a potência de acumular percepções que se somam a reflexão sobre aquilo que se vê nas ruas. Tomando novamente o exemplo da pixação: o movimento da contemplação desapressada cria um outro produto, conduz a uma outra dinâmica do pensamento. Se não justica o ato da pixação, ao menos impulsiona a busca pela compreensão e pela análise das motivações e dos afetos que levaram a outra pessoa a se comunicar daquela forma. Quais as relações
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e tensões por trás do ato de pixar? O que o pixador tá querendo dizer. Antes: ela tá querendo dizer algo? Por que dessa forma? Por que se arriscando? Porque, obviamente, há riscos. A experiência da/na rua, permite que se desenvolva uma noção de/do espaço afinada o batante para perceber que, ao pixar, o cara está se arriscando de diversas formas: desde levar borrachada dos home, a uma ou outra fratura ou contusão devido a qualquer acidente possível - e provável resultante dos malabarismos necessários para que se alcance determinados pontos de pixo. Se apenas se utiliza a rua como via logísitca para que as engrenagens continuem girando, é compreensível o império do pragmatismo– “acelera São Paulo <”. A internet é um dos dispositivos de maior potência e abrangência na contemporaneidade. Nos levantes populares da ultima década, do Egito ao Chile, as redes sociais são apontadas por muitos como fundamentais na mobilização dos sujeitos. Um dos ocupantes de Maidan, a praça ucraniana localizada na capital Kiev, disse que estava no Facebook quando recebeu o convite do evento de ocupação, compartilhado via rede social. Fechou seu notebook e se dirigiu à praça. Foi abri-lo novamente 90 dias depois. Por mais que se empregue às redes sociais o êxito do encontro de milhares de pessoas, o grande evento se dá no campo do encontro face-a-face, corpo-a-corpo: na rua. É inegável que as redes sociais vêm se tornando
cada vez mais a mídia pela qual grande parte da população encaminha as mobilizações que vão culminar no corpo-a-corpo – muitas vezes “corpo-a-bala-de-borracha-e-gás-lacrimogêneo”. Mas, ao menos até agora, é na rua que a afirmação de existência e a luta por pautas específicas se dá de forma mais pungente. A sub-subjetividade pessoarrua incomoda muito mais do que a pessoaGoogle. Ninguém vai negar a potência que existe no ciberativismo – sobretudo hacker: o estrago que o vazamento de dados pode causar a instituições, públicas e privadas, ou a personalidades políticas específicas. As núvens são também um espaço, um território; e são uma extensão do espaço físico. Por isso estão também em disputa. As recentes denúncias de influência de hackers nos resultados das eleições que definiram Donald Trump como presidente dos EUA evidenciam a abrangência da guerra cibernética. Entretanto, assim como a via área não extinguiu o conflito pelo solo ou via marítima/fluvial, o espaço da web não substitui a ocupação das ruas, praças, avenidas e rodovias. A logística se dá em todos esses terrenos. Se ilude quem se limita a tentar mudar o mundo do sofá da sala. Assim como se ilude quem pensa que a rua é somente uma via logística. Ela é também uma via logísitca – e por isso mesmo a tática de manifestação por excelência é justamente o seu bloqueio. De via logísitca, a rua se torna espaço de disputa política. E é nesse ponto que as passeatas dominicais dos movimentos pró-impeach-
ment, em 2016 no Brasil, se distanciam das insurreições populares que enxergam a rua como um ponto de disputa - e o seu bloqueio, como uma estratégia de luta. Um sujeito habituado a existir na rua, naquele hibridismo pessoarrua, carrega essa percepção familiar. Existir na rua e resistir na rua são categorias siamesas. Enquanto o chão ainda for o limite, até que a regra dos arranha-céus colossais, rodeados por veículos flutuantes, seja possível apenas nos filmes de ficção-científica, é na rua que a pluralidade da vida se manifesta: e é nela que a resitência popular se dá de forma mais potente e abrangente. “A agricultura urbana, que se instala por cima dos tetos dos edifícios ou nos vazios industriais – seguindo o exemplo das 1300 hortas comunitárias de Detroit – poderia ter outras ambições que não de participar da retomada econômica ou na ‘resiliência das zonas devastadas’”, diz um trecho de um texto escrito em várias mãos, sem autoria específica, e que tem diversos pontos nevrálgicos com este texto aqui. A potência do encontro – sobretudo o encontro entre as margens das calçadas, que é pra onde mira essa reflexão – é evidenciado em exemplos como esse, das hortas em Detroit. Mas a finalidade, ou melhor, a imagem que imagina o encontro desenhar, é fundamental no direcionamento dessa potência. Muitas vezes, quando sentia aquela vontade compulsiva de ir pra rua, naquela vila que habitava quando moleque, uma tensão interna, re-
flexiva, se instaurava em mim: por que quero tanto fugir da minha casa pra rua? Pra além da culpa e da má consciência que essa reflexão tenderia a resultar, hoje, sentado na escrivaninha da minha sala, penso que a ida pra rua proporcionava a possibilidade de invenção de um novo dia - diferente da previsibilidade rotineira que imperava entre as parades de casa. Não faria sentido se o encontro que a rua me proporcionava, imitasse as experiências que eu tinha com a família. E por mais confortável, tranquilo e familiar que pudesse ser a rotina dentro de casa, eram as potencialidades lúdicas, catárticas e criativas que existiam na contingência da vida na rua, os elementos que compunham o poder magnético emanado pelo encontro. ;
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VEJAM Agronômica Frente à Casa do Governador. Ilha de Santa Catarina/SC. 2017
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POESIA PSIQUIÁTRICAS ANÍBAL CRISTOBO
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VEJAM Av. Prof Flora Pausewang. Ex-parede laranja do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina. Ilha de Santa Catarina/SC. 2017
Me hago acordar a un tipo que no soporto, a uno que conocí en Estambul durante la transmisión de un despegue espacial, y a uno que podía interferir las frecuencias, especialmente cuando estaba dormido y se ahogaba. Los tres se me parecen, dependiendo del día y la medicación. A veces uno dice “ ¿me dejás tu chaqueta?”, o “¿me gusta tu chaqueta; me la dejás?” y no estoy seguro si es uno de ellos tres, o soy yo; o es otra persona, que nos habla desde un lugar cercano, pero que no se ve.
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2. A veces me hago acordar a un tipo que ahora no se ve: uno que iba en el asiento trasero de un coche, junto con otros dos, que no se pueden ver, y que van adelante. De pronto el coche gira, y se pierde de vista. Dice el conductor: “no antes de que hayamos desmantelado completamente el campamento.” Y dice el acompañante: “todo eso sería mucho más fácil si pudiéramos avanzar paralelos al límite del tiempo, es decir, al límite del distrito”. El de atrás sigue sin decir nada; se queda mirando las tres chaquetas. 3.
4. Lo que se puede ver: una mujer filipina pasa en camisón, despacio, frente al ventanal -como si sucediera en segundo plano y la acción principal permaneciera ausente. 5.
Una mujer filipina Después de atravesar el límite del distrito, la idea vistiendo un camisón blanco se parece al viejo de gafas negras, de desmantelar sentado en el sofá el campamento comienza a angustiarlo. Dice: en que ninguno de ellos me conoce; y puedo es“¿Ustedes me conocen?”. Sí. tar mirándolos Dice: “¿De dónde me conocen?”. De aquí, del un rato largo asiento trasero. Dice: “Pero si no se puede ver; ¿cómo es que me cono- sin que me hagan acordar a mí. cen?”. Desde el otro distrito, cuando se podía ver. Dice: “Claro que me conocen.” Y me mira.
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6. Entre las cosas que más me angustiaban al llegar, estaba Homer Simpson; y después O.J. Simpson, y luego la relación que podía haber entre ellos. Esa podría haber sido una preocupación mayor, porque incluía las dos cosas que más me inquietaban. De la lista que me pidieron que componga, el ítem 41 era el miedo de enfermarme y tener que recurrir a la hipocresía para ser ayudado; el 39 el programa conmemorativo del aniversario de la Unión Soviética; el 7, el vértigo de destrucción frente a todo lo que fuera más débil que yo mismo; el 4 el temor a ser confundido con otro y nunca darme cuenta.
En los televisores del Kimçla la maniobra del acople espacial parece repetirse infinitamente cada vez con más detenimiento y con más precisión. La mayoría de los que están allí aplauden, y cantan hasta confundirse en un abrazo. Parece como si hubieran desmantelado el campamento con éxito, absolutamente en primer plano. Uno de ellos me pide que intente levantarme, permanecer de pie. A mi lado alguien dice: “cada vez que te despertabas, me preguntabas cómo me había enterado”; y después no se ve. 8. De pronto una interferencia en la frecuencia de transmisión me hace pensar especialmente que duermo y que me estoy ahogando. 9. En segundo plano, muy lentamente la mujer filipina ha llegado hasta la sala de fumadores.
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Sentado en el asiento trasero de un coche el camarada Kimçla discute los lineamientos del programa conmemorativo del aniversario de la Unión Soviética: “Y digo yo: ¿alguno de ustedes tiene un cigarrillo? ¿Alguno me podría dejar la chaqueta?” El coche gira, y se pierde de vista. “Antes de más nada, debemos dejar en claro nuestra posición respecto a la ampliación de los perímetros.” El coche sigue sin verse; pero de todos modos se plantean interrogantes; y éstos dan lugar a soluciones posibles.
Cuando el coche -completamente fuera de los límites del distrito- se detiene una multitud aplaude, y canta se confunde en un abrazo; se arroja sobre él hasta que no se ve más nada en primer plano una mancha negra se parece a mí; a despertarme ahogado.-
12. Durante todo el interrogatorio a O. J. Simpson el conductor nos recordó que los encendedores no estaban permitidos: podríamos permanecer fuera del perímetro del campamento, siempre que no se viera. “Si consiguen suceder en segundo plano, sin parecerse a nadie, y dan lugar a soluciones posibles.”
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POESIA
LOTAÇÃO DEMÉTRIO PANAROTTO
há um homem chorando no lotação latão lotado luto lá menor prostrado em um dos bancos da parte de trás carrega mais do que supõe suporta supérfluo superstição não as engrenagens derretem os arquivos as forças descarnaram [não consegue mais impedir que isso aconteça] se a mente dá sinais de reação conexão não há o corpo sem copa cozido assopra as rugas do tempo amostra grátis o ônibus é asilo VEJAM Av. Mauro Ramos, Ilha de Santa Catarina/ SC. 2017
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mãos parecem brotar assoa o nariz alho grota gruta groove grunhido puxam balança balança balança az vezes apenas seguram puxam apertam há um limite cadavérico estabelecido compactuado submundomersoverso o cadáver pita paieiro repita a vida a transgressão é um fio um fiote talvez não saiba mais nunca soube o que é isso o homem sovado peça ambulante com o cu decalcado na cadeira se locomove puxado o quadro é leito lombo arcado papada de galo corpo carpido olhar vidrado bola de gude
quem és tu? para alçar novos voos precisaria de outras imitações fábulas as desconhece saiu do prumo sem sumo some o mundo não é mais o seu mesmo sem querer é consumido por um tempo que lhe parecia interessante que não mais o é era pois ele o entediava entendia nada além disso nem mais ou menos nada importa
há um homem chorando no lotação sua idade torvelinho somente isso semente insônia olheiras cavam covas orelhas murchas parecem maiores do que são bochechas maracujá pelos brotam oleosos se misturam numa coisa só cabelo pouco escorrido dividido pelas linhas de gordura entre os fios fritos fraseados as pernas aspargos finas moles futucadas dentro das calças jeans Lee que apanharam da vida junto os braços tremem as mãos o corpo o rosto a alma
a única sensação de retomada de realidade se dá quando ele funga produz um fungo alto ruído que destrona o ritmo de novo sol bem longe há temporal relâmpagos em espécie trovoadas na medida o ruído é desagradável nem nada mais o ruído é desagradável retrato de um velho vinagre alguém poderia dizer de desleixo outros nada diriam a maioria não o sente muito sinto há um homem chorando no lotação no one cries for him fígado repeat no one cries for him fígado repeat
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sequestraram a trema de sequestro e agora? felhadaputa não sei se o que teme se pode chamar de dor de cor décor oração carrega no peito uma farpa felpa lâmina enterrada na base a dor sublinha a gordura do coração nem o acaso de um lance ele absurdo absorve há um homem chorando no lotação há junto uma linha tênue entre e o silêncio é um choro um surdo sem balbucio sem lágrimas sem rosto sem força senza volere se o som não brita brota bruto ruge há excesso de algo que o coração não consegue decapitar
a falta de expressão facial denotam o limbo lambe-lambe o mal assumiu as rédeas talvez sempre desgovernos desgovernos desgovernos há um homem chorando no lotação as lembranças daquilo que não conseguiu fazer são sempre mais fortes o que conseguiu tem gosto gasto gusto amargo não não não e não as conseguiu como imaginava e o tempo o jogou no precipício no lotação as desculpas de uma moça que acabou de esbarrar em sua perna parecem uma freada um fricote um fluído sporca sporca sporca
a dor permanece intacta embalando formol estátua estúpida mente gelada um monumento de carne vencida tirem ela do expositor a luz não descansa mais n’ ele nem ao menos reflete há um homem chorando no lotação e o assento é um soneto ossos árcades ar cada dentes cariados academia dos poetas de ônibus o carro já foi até o ponto final e regressou para o terminal [mais que uma vez] o cobrador já lhe perguntou [várias vezes] onde é que tu vai descer?
o choro a face as tremedeiras que não demonstra ter permanecem quando o ônibus para tudo imutável é imolado o olhar que mira a paisagem é o mesmo que mura as placas o trocador ou qualquer outra coisa qualquer apenas miragem outra nada mais qualquer coisa há um homem chorando no lotação a seu lado há uma senhora carnuda [entrou no último ponto e vai descer em breve]
a resposta posta tu poste próstata
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que sua soa muito pinga pinga pinga reclama do calor abana um leque improvisado in loco loque luva destoa e ninguém se nota tom timbre clave de solstícios e equinócios a partitura desceu prima cançoneta na terceira saída do terminal um outro homem levanta discursa por condições melhores de vida precisa de um pouco de amor para comprar leite pro filho menor que nunca roubou que não gostaria de fazer isto agora uma imagem turva e ruidosa se monta entre o homem sentado e o que se manifesta
com o pedido rola uma pressão junto uma mágoa cimentada na pele e a químio é borra as pessoas escondem a cabeça dentro do corpo na crença de que ele desista dum ato pior dum medo maior dum furo no corpo dum dum dum e comemoram o silêncio há um homem chorando no lotação talvez seja a primeira vez que chora quem sabe será a última o carro funerário buzina ao lado deve estar vazio não deu pra ver nos assentos na fileira lado contrário duas garotas comem salgadinhos elma chips tomam coca-cola falam alto gírias muitas grasnam gírias muitas que talvez ele não as conheça um salgadinho caiu a menina sorriu revelou os restos de fandangos entre o aparelho dos dentes resto de coca-cola não deu pra ver
há um homem chorando duas senhoras discutem falta de gentileza do mundo uma sentada a outra baixinha em pé [sem ter onde sentar] segura o guarda-chuva o enlaça no puta-merda se balança junto com o ônibus sorri pra não cair dança tansa banza aquilo que escorre do rosto do homem é mais escuro do que lágrima é mais denso do que lágrima petróleo não é certeza mais uma vez certeza ninguém percebe nada betume na face pó de xerox a certeza se foi desceu na estação do medo
há um homem chorando no lotação na sétima viagem o ônibus desatina e silencia com o solavanco último curva breque brusco todos se assustam se acentua o tardio e os confusos se alteram descem palpites conversas conversos desconexos ditirambos ora mais narrativos ora soluços soluços soluços outro carro chega para rebocá-lo outro para saboreá-lo amassa que dá o trauma fornicado várias vezes segue para a garagem da empresa
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o homem não desceu acho que não sentiu o solavanco nem os soluços muito menos o ônibus quebrado isso é o de menos o ônibus segue o homem corda a vida também aperta frouxa um pouco aperta frouxa de novo aperta tem horas que o soluço quer pular pra fora da boca e não consegue aperta há um homem ali bem ali e bem aqui não há alternativa do ladinho talvez apenas talvez os asilos seguem determinados pelo surto do dia o moço da empresa chamou a polícia para retirá-lo [precisa fazer a manutenção]
a polícia não veio o jornal também não ufa ufa ufa várias vezes ufa o padre junto com a ONG não não há reclame nem propaganda a engrenagem enferrujou a vida desidratou o corpo o simbólico o mantém respirando ou mantém as sinuosidades intactas há um homem chorando no lotação que não tem mais conserto aproveitaram o óbvio no novo ferro velho da cidade o mundo ali fundo bem no fundo dali não tem mais concerto fino fútil delgado ninguém se afina mais bem nem mas ali os calos calam há um homem morando no lotação.
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ENSAIO A PROPRIEDADE ARARIPE JR.
Disseminado pela primeira vez nas páginas no jornal Gazeta de Notícias, em 11 de setembro de 1900. Para tal função de amanuense, foi utilizada como tronco principal o volume Obra crítica de Araripe Jr. volume III 1895-1900 (Rio de Janeiro, Casa Rui Barbosa, 1963, dirigida por Afrânio Coutinho)
A muita gente parecerá estranho dizer que José de Alencar o publicista conservador das Cartas de Erasmo, pensava, no que entende particularmente com a propriedade, quase como um anarquista. Pois é verdade. O fino idealista da Iracema e do Guarani, tendo um dia se proposto estudar a história dos institutos de direito civil, tais impressões recebeu das suas leituras que saiu profundamente abalado e convicto das iniquidades acumuladas em torno desse monstro chamado propriedade. Na sua imaginação avolumou logo um fato: tudo tem progredido, todas as instituições humanas têm melhorado – o direito público, o criminal, o comercial, o administrativo; mas desgraçadamente o direito civil estacionou petrificado nas formas elaboradas em Roma, com uma ou outra interpolação de leis extravagantes oriundos do feudalismo. “A constituição da sociedade civil ainda não recebeu o influxo poderoso, que a civilização moderna já tem inoculado em todo os ramos da ciência e da legislação”. Isto escrevia ela em 1870, quando entre nós não eram conhecidos os trabalhos de Ihering, nem ainda haviam sido vulgarizados os de Hermann Post e os dos civilistas italianos. Pressentiu-os a inteligência iluminada de quem nos deixou as páginas literárias mais cheias de lirismo que se têm escrito no Brasil; e a lógica, determinada pelos arroubos de uma imaginação vívida, encarregou-se dos complementos da doutrina. Justamente impressionado pelo quid apporiet do direito público romano, José de Alencar não trepidou em fulminá-lo em suas deduções práticas.
A propriedade – diz ele – se manifesta logo sob a forma de uma tirania. Ela tem o poder de infundir no cidadão livre, no civis romanus, uma entidade escrava e possuível. O homem politicamente independente é servo na vida privada. É ela ainda essa tirania da propriedade que no seio mísero da democracia transforma o santuário das afeições domésticas em uma servidão e o poder marital e o paterno numa autocracia despótica.
princípio que conservamos ainda hoje a personalidade humana assim mutilada, o que constitui um atentado, uma usurpação, sem nome, uma monstruosidade orgânica, que por ter sido gerada em Roma foi imposta pelas circunstâncias aos povos bárbaros de que descendemos.
Propondo-se descarnar esse “aleijão jurídico” no livro A propriedade José de Alencar inspira.se na Revolução e no Comovido diante dessa hipertrofia da pro- ódio ao feudalismo. A lógica faz o resto. priedade, que nas suas primitivas manifestações, chegou brutalmente a absorver em si a própria Estudando a concepção do direito real o auliberdade do homem, reduzindo-o a coisa, e es- tor não custa descobrir que a propriedade, “ a cravizando-o, o jesuíta pergunta se já não é tem- faculdade por excelência, o direito suserano, enpo de considerar todas as faculdades jurídicas che quase todo o âmbito dos códigos”. A coisa é como instrumento de progresso, incluindo nelas tudo, a pessoa quase nada. “Sob o primeiro asas relações de que se trata. Pois não é para hor- pecto a propriedade recebe o nome significativo rorizar que, quando se pensa em código civil, de domínio, único direito real, de que os outras não se tenha em mente outra coisa senão rique- não são mais do que porções ou fragmentos. Sob za, os interesses materiais, e que a mesma família o segundo aspecto, a propriedade é considerada figure aí apenas como um anexo à proprie- apenas como um meio de adquirir o domínio e dade dela derivada e inteiramente dependente? forma a máxima parte do direito pessoal. Resta pois um canto do direito pessoal para o qual são A esta pergunta responde o escrito com atiradas a esmo as outras faculdades, vassalas da a teoria da unidade do direito, invetiva acer- propriedade. Encontram-se de feito nos códigos bamente a constituição dessa prática situa- civis algumas das disposições relativas à existênda no espólio e na herança, e fulmina leis ain- cia e à liberdade: mas se conhece que elas não da hoje conservada no intuito único de garantir entraram no santuário pelo seu próprio merecio dote da mulher e tutelar a fortuna dos órfãos. mento e importância, senão pela necessidade de completar o regime patrimonial. A existência aí E o homem? Ah! o homem é o servo da é apenas o modo de ser do proprietário, não do propriedade: aquele que a ela não está entendi- homem, a liberdade é instrumento e nada mais, do, o que nada possui, não precisa dessa legis- para transferência ou ataque à propriedade.” lação civil “ falsa e hipócrita como ela mesmo”. Entretando, observa José de Alencar, “o direito Fustel de Coulanges, na Cité antique, obra é o homem”, e é por se ter desconhecido este que o escritor brasileiro não podia conhecer,
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porque, ao tempo que ele compôs o seu livro, aquela não tinha sido ainda vulgarizada, explicou esse fenômeno pela eliminação do indivíduo em proveito da religião doméstica, cujas força consistia em inibir toda expansão pessoal ligando a família inteira ao altar, à terra, e aos produtos destinados à manutenção do custo transmitido com todo os seus aparelhos, de pais a filhos. A diuturnidade dos tempos e as revoluções políticas modificaram profundamente as formas derivadas desse modo de conceber o direito; mas a superstição ficou; e o sentimento, pelos menos religioso da propriedade com base da personalidade, ainda trabalha poderosamente nos recessos da consciência jurídica dos legisladores. Dissipar esta superstição, libertar a pessoa desse casulo, inverter os papéis, de maneira que a propriedade passe ao papel de instrumento ao serviço daquela, eis a aspiração dos povos, que sentem quanto o regime patrimonial, com esse aspecto hierático, tem dificultado a solução da felicidade coletiva.
isto é, têm gato a sua dialética em realizar os mesmos tours de force que os gramáticos em empregaram submetendo à regência proposições introduzidas viciosamente na linguagem pelo uso popular. No que entende com a concepção do domínio José de Alencar, frisando a controvérsia antigaa dos Proculianos e dos Sabinianos, procurou deslocá-la dos seus fundamentos, como dizia ele, materialista, para firmá-la nos princípio do trabalho, na expansão do vitalidade humana. É pena que o escritor não tivesse tido tempo de desenvolver tão interessante monografia; e é bem provável que, se vivesse, entrasse na corrente evolucionista; então, modificados os seus extremos de nacionalista, evitaria os perigos da lógica, dessa lógica que fatalmente o ia conduzindo ao dogmatismo individualista dos anarquistas, que suprimem a ação da história, esquecidos do conselho de Gaia no Fr. 1º D, de origine juris: Istoe proefationes et libentius nos ad lectionem propositoe materice producunt, et cum ibi venerimus, evidenliorem proestante intellectum.
Desse um passo mais no sentido das ideias que emitiu, e José de Alencar, levado pela conveniência de dar á propriedade mobilidade igual a que é compatível com a do indivíduo, não tardaria em subscrever a crítica que Kropotkine fez da atual organização social da Coqète de pain.
Passando á análise do regime hipotecário, o jurista vai mais longe ainda na aplicação do seu individualismo revolucionário de racionalista. Nunca contra a hipoteca escreveu-se tão violentos libelo. Na sua opinião esse intuito, tal qual o encontramos na legislação moderna, é um aparelho de infâmias e iniquidades:
Não é possível aqui acompanhar o autor do livro na exegese da técnica jurídica dos civilistas, que pela maior parte têm despendido tempo e paciência em procurar meios e modos de reconciliar a boa razão com as ficções absurdas do direito romano,
A inutilizada de semelhante contrato – diz ele, – salta aos olhos a hipoteca não é mais do que um corolário do mútuo, sujeito à vontade das partes. Mas esse luxo de fórmulas, essa filigrana de palavras, não é nada à vista das ter-
ríveis consequências que se desenvolveram Onde, porém, José de Alencar se manifesta com desse germe funesto. Foi o vírus de um cancro audácia pouco vulgar é na teoria da posse. De que se inoculou no corpo da lei civil, e que até um golpe suprime os interditos possessórios: hoje ainda não houve escalpelo que o extirpasse. Atribuir à posse, – diz ele – isto é, ao fato, Em primeiro lugar, José de Alencar mostra o poder de regular o direito, é dessas blasfêmias o erro dos que consideram a hipoteca um direito que só se encontram no direito civil. Consenreal na coisa alheia (jura in re alinea) quando é tis que a propriedade se mova, que os direitcerto que em substância ela não é senão um in- os se entrelacem, que a sociedade viva enfim terdito parcial lançado sobre a pessoa do deve- à sombra da lei, e de repente a surpreendeis, dor, ao qual, ao mesmo tempo que não se permite como o salteador de emboscada, no momenalienar o bem, consente-se fluí-lo, abusar dele e to em que se separa de sua propriedade, para até destruí-lo, sem cometer furto contra o credo. dizer-lhe escarnecendo – A posse vale título! Este erro, porém, de ordem metafísica é o menos grave na crítica das leis da propriedade. O crítico procura vê-las sob o aspecto social; e neste ponto a hipoteca não constinuaria a ser senão um ataque è liberdade, um prolapso da interdição dos loucos e menores, que nada garante na prática, nem o crédito, nem a ordem social, nem a felicidade individual, – mas uma máquina de tiranias e usurpações, um ardil ou um aparelho de perversidade, criado em benefício dos fortes, dos usurários, e destinado a fazer passar para as mãos destes as pequenas fortunas imprevidentes, os haveres dos descuidados e o trabalho dos minúsculos sociais. A servidão e a aquisição incorrem nas mesmas censuras, oriundas do ponto de vista personalíssimo do autor. Em tudo a ficção do romantismo ocultando a realidade dos fatos, isto é, – a captura da vontade humana e a sua subordinação irracional ao conceito materialista da propriedade.
José de Alencar, portanto, não distingue o direito de posse do de domínio. Segundo o seu conceito a posse é o corpo de que o domínio é a alma; não se separam, nem podem conceber-se desunidos. A ocupação material é um fato e nada mais. Convertê-la em instituto aparelhado para a resistência legal é o mesmo que justificar o crime por meio de uma anistia forense inadmissível em face dos verdadeiros princípios de justiça. E tanto é assim que os juristas não se têm poupado a retratações. Elas são inúmeras. A legislação criminal não submete a propriedade á posse; o direito ao fato material. Os códigos não concedem interditos possessórios aos estelionatários, ao contrário disto punem-os com penas severíssimas. As “fraturas desse sistema vicioso” encontram-se na própria jurisprudência. Que significa a posse imaterial nos objetos incorpóreos, a quase possessio do direito romano? “Uma posse que não é posse; uma apreensão corpórea de uma coisa espiritual; uma excentricidade metafísica”. Para que esse sofisma da posse simbólica, da posse fita, da
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clausula constituti? Tudo isto, no parecer do autor da Propriedade, só indica a incoerência da doutrina dos civilistas. Não podendo reagir contra o materialismo brutal das suas concepções, eles acabam transigindo com a realidade dos fatos e dando-se por satisfeitos diante de duas palavras cabalísticas.
tuída por uma fala e hipócrita equidade, deduzida da natureza da dívida Privilegio nom ex tempore aestimantur sed ex causa. L. 32, D., e reb auct. jud. E acrescenta que seguramente o legislador, quando isto escrevia, olvidava “que ele havia derivado a propriedade do direito do primeiro ocupante!”
A posse não é pois senão um direito conexo à propriedade, como o é o uso e o usufruto. “A exploração desse direito nada tem de especial; é os sujeito à mesma regra que a espoliação de todo e qualquer direito... O erro da jurisprudência está em confundi-lo com o simples fato material, a detenção.”
As regiões por onde enveredava o espírito impávido do autor do Guarani eram vulcânicas; e ele não teve tempo talvez de medir toda profundidade do abismo revolto das reivindicações sociais, limítrofes das estrumeiras do direito civil, que o jurista não receou revolver com o gancho de uma crítica impiedosa.
E, o que dizer do privilégio? Direito bastardo, eis o nome que lhe cabe. Sentimentalismo ridículo da lei civil, que aliás tem por efeito ao seu epicurismo humanitário suprimir sofrimentos que não existem, em benefício único da astúcia e do jogo. Que coisa indecente é essa chamada concurso de credores! Não seria melhor dar-lhe o título de tapète de lasquenet? Hoc craditorum labyrinthum já o havia denominado o comendador Voet, ad Pandect. L. 20, Tit. 4 n- 17. Na realidade não passa de caixa de Pandora, de onde podem sair as maiores surpresas. Os privilégios reais e os pessoais digladiam-se, entrechocam-se, dão-se mútuos assaltos, e não há critério que chegue para iluminá-los.
Rio, 10-9-1900
O axioma de direito, – pondera José de Alencar – consagrado pelo próprio direito romano, qui prior in têmpore potior in jure, é sem dúvida alguma o critério único da legitimidade do direito na concorrência de atos jurídicos capazes de transferir a propriedade... A propriedade foi, porém, substi-
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VEJAM Muro do condomĂnio de frente para o TITRI. Ilha de Santa Catarina/SC. 2017
POESIA DE CAPA
INCAPTURÁVEIS ALBERTO PUCHEU
Desde criança, no Socavão, alguns dos sons que mais me impressionam são os dos bugios no alto das árvores das montanhas. Dizem que eles emitem esses sons reverberantemente graves quando se aproximam para encontrar água, quando a água falta nas distâncias em que vivem. Não sei se é isso mesmo. Sei, entretanto, que, apesar de frequentar o vale desde que nasci, nunca os vi, que, mesmo que já os tenha escutado em bando muito de perto quando, uma tarde, caminhava pela mata, eles jamais se ofereceram ao meu olhar demasiadamente humano para eles. Talvez eles estejam me ensinando um outro modo de conviver com eles desde o ponto de vista deles: que eu os ouça, mas não os veja. É mais provável, entretanto, que eles não estejam me ensinando nada, que eles apenas estejam lá, vivendo a vida deles, resguardando o afastamento necessário para suas sobrevivências em modos minimamente possíveis, pacíficos, incapturáveis. É mais provável ainda que, incapturáveis, não seja nada disso do que digo o que ocorra com eles enquanto, mais uma vez, escuto seus urros sobrepostos zoando pela floresta dentro de mim.
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