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.Cabra .CABRA é uma publicação independente, com fins nada lucrativos, publicada mensalmente. nº 02, junho de 2017 Mais informações e publicação do conteúdo: http://revista-cabra.pe.hu facebook.com/revista.cabra vimeo.com/user63794199 Contato para envio de conteúdo: revista.cabra@gmail.com

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CARTA (...) é servir de armazém ao arsenal produzido pelo(s) quem(s) e para o(s) quem(s) unidos numa imensa roda espiralada. Porque a luta é armada. Quem tem consciência para ter coragem. Nem profetas do real, nem o niilismo do “tudo é ficção”. Viver a ficção a partir do ponto de vista, viver sem esperar o - (su)posto - real: de fora, fora desse regime de verdade. Quem tem a força de saber que existe. De forma múltipla, da perspectiva de mundos que já são, ou melhor, estão; que circulam, movimento no espaço, paralelamente nunca voltando ao mesmo lugar - não há mais bisontes nas planícies. Narrativa espiralada, o eu no tempo, repetição e diferença, improviso, devir, identidade descontínua ou indefinida - quem vai dizer o momento exato da transposição? E no centro da própria engrenagem: o que é possível, dizível ou visível, sem vontade de solução - quem quer salvar a lavoura incipiente? -, mas de ser afetado, abrir caminhos para isso, soltar as rédeas dos olhos, lavrar a terra vermelha dos afetos. O que é potência e o que é poética, narrar como réplica à ruminação inconclusiva sobre o(s) tempo(s), memórias, ilhas de edição, conflitos, quebrar a lógica circular e teleológica - quebrar a lógica(ponto) -, romper numa só lufada a ciranda da ordem familiar, que não se sustenta sem restos, sem ombros ulcerados; não sustenta o caráter contingencial da existência: não dança. O quê, então? O corpo põe-se em pronto: o corpo afeta e é afetado; o corpo tem mil capacidades feixe de perspectivas -, espirala em si mesmo e inventa, ou melhor, investe, quer dizer, inventa contra a mola que resiste;

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POESIA Luisa Meurer Tavares 06 Evelyn Blaut-Fernandes 10

ARTES VISUAIS Élisa Guilbert 07

ENSAIO Sergio L. Barboza 12

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POESIA PROJETO Luisa Meurer Tavares

Ao chão o levante do eu! Sujeito é um plano de implante, estranho a si mesmo: isto; o que: só pode dizer do agora; seu: é o que toca e afeta; sente: san-ti-fica sozinho, foge; e volta e vive, o tanto que aguenta e some. Sem nem ter ou querer um lugar ou nome.

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PRÁTICA D’ESCAPE Luisa Meurer Tavares

Parto do princípio do vazio do precipício do pretérito da parte que não me cabe do parque que não diverte e da porta que não se fecha, parto da pira nem-errada-nem-certa; parto pra perto do que me enrola e me prende, e pago pelo perigo que já virou meta.

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Parto do princípio, vazio da origem profunda de causas e razões perdidas, da pressão de parecer perfeito da ilusão de se sentir inteiro, do preciso perfume que me persegue e me permite; parto do sem-limite, e pago com tudo em mim que grite. Parto do medo do vazio da busca pelo que protege, do porto que nunca chega ou se chega, nunca fica, se perde, parto de toda volta e toda briga, pirateio minhas promessas e pago com o pouco que de todo tenho, penhorando o que me é caro como quem foge: sem rumo, e com pressa.

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estou marcando uma reunião terça-feira onze e quarenta e cinco só resisto porque vocês resistem junto comigo leve todos os seus recibos e contas tenho que comprar comida e pagar sete meses de condomínio ou perco a casa não é desconfiança temos que analisar suas dívidas só preciso de uma ajuda você precisa de uma solução definitiva posso contar com vocês? alugue sua casa e vá morar com aquela sua madrinha não podemos perder a esperança te indico na urbe assim que o crivella assumir a solução é pagarem meu salário atrasado se é escrever que você quer você pode escrever processos para juízes

Evelyn Blaut-Fernandes

AS PERUCAS


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como reduzir alimento e luz? nós não somos ricos não pega bem você pedir dinheiro você deve estar passando por algo parecido como aposentada do Estado não posso falar com você meu marido fala com você só quero continuar meu trabalho cai na real o Estado não paga nem os funcionários só pedi uma grana emprestada vou devolver não dá mais para chegar a esse ponto algo tem que ser feito reduza seus gastos vai tudo ser desativado a realidade é dura e a realidade é essa não se iluda mais com o mundo acadêmico policiais invadiram uma igreja no centro e atiraram com bala de borracha em servidores que se manifestavam em frente à alerj não fui porque não tinha dinheiro de passagem ok reze um abraço


ENSAIO UMA MORTE CHEIA DE SOM E FÚRIA COMO AFRONTA AO PATRIARCADO DECADENTE Sergio L. Barboza “A vida é uma história... Antes de falar qualquer coisa sobre a segunda parte do livro O Som e a Fúria de William Faulkner, o conhecido monólogo desesperado e fragmentado de Quentin Compson no dia de seu suicídio, não há como se furtar a algumas palavras sobre o próprio suicídio e também sobre o incesto. Duas palavras que encerram nelas outras palavras carregadas de peso como proibição e vergonha. O suicídio e o incesto são duas formas de afrontar a lei da tribo, ir contra a lei do pai, são dois dos mais antigos tabus da humanidade. Não matar (-se) e não manter relações incestuosas. Como dizem (com suas respectivas variantes) quase todos os livros sagrados das religiões ao redor do mundo: Não matarás. Serão-vos interditas vossas mães, vossas irmãs. Salvo raríssimas exceções, o suicídio e o incesto não são vistos como algo normal, e como deixou claro Levis-Strauss, mesmo em sociedades onde era permitido o incesto ~12~


(Antigo Egito, por exemplo) algumas regras deviam ser seguidas, como a restrição de nunca ser consumado com a irmã mais nova, por exemplo. Suicídio e incesto fazem parte da instância das proibições, dos tabus, dos interditos. Do que não se deve falar em voz alta. Dois tabus que são as duas grandes proibições fundadoras da sociedade humana. Freud diz que são dois desejos primordiais da criança e sinaliza que se algo é interdito é por que é desejado. O que pode fazer eco às palavras de Deleuze-Guattari que todo desejo é revolucionário. A sociedade só proíbe o que suscita e tudo isso, claro, leva a Édipo. Mas o que é edipiano não é a infância, e sim, a abjeta recordação da infância. Que em Quentin é confusamente dolorosa. Memórias de um improvável incesto, raiva ao discurso e no discurso do pai, ideias suicidas, tudo flui no seu monólogo como resultado de um liquidificador esquizofrênico que o tornará as palavras do pai: O pai disse que o homem é somatório de suas desgraças, mas um dia as desgraças se cansam e aí é o tempo que é sua desgraça. Uma gaivota presa num fio invisível o espaço cruzou. Você leva o símbolo de sua frustração para a eternidade. Então as asas são maiores disse o pai só quem sabe tocar harpa. Desde o início da humanidade organizada em sociedade o suicídio é tratado como algo contrário à natureza. Na Grécia Antiga você até poderia se suicidar, mas precisava antes convencer o Senado de que sua vida era ruim o bastante para não merecer ser vivida. Com o cristianismo ele foi sumariamente proibido e classificado como um crime tão horrível quanto o ~13~


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homicídio. Com o passar do tempo a carga pesada de crime que detinha o suicídio diminuiu, mas se legalmente o suicídio deixou de ser punido, continuou sendo veementemente reprovado pela moral e pela religião. De crime passou a pecado, de pecado a doença e loucura. Hipótese que Durkheim nega no seu trabalho. Ele separa a loucura da morte voluntária. Dante, na Divina Comédia coloca os suicidas no 7° círculo do inferno onde são condenados a serem árvores que se você as fere, como o fez Dante, da ferida escorrem sangue e palavras. Os judeus sepultam os suicidas fora dos muros do cemitério e era proibido que se professassem orações fúnebres para os que se matavam. No islamismo o suicídio é considerado um crime mais grave que o homicídio. Costumava-se isolar o corpo do suicida para que este não exercesse influência maligna sobre os vivos. Ainda hoje nossos televisores mostram sem medo notícias sobre homicídios mas preferem calar sobre os suicídios. O mesmo vale para o incesto. Quentin tenta salvar a qualquer custo a honra de sua irmã grávida e solteira na virada do século passado e encontra pela frente as palavras do pai que escudam a sociedade daquela época. Tenta salvá-la com um incesto. Para apagar um erro convoca um pecado mais grave que se choca com as palavras do pai e isso o leva até uma ponte. Onde termina tudo com mais um “pecado.” ... contada por um idiota... Partindo do extenso estudo de Emile Durkheim que tomava o suicídio como fenômeno social, temos sua concepção de suicídio: ~16~


Chama-se suicídio todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela própria vítima e que ela sabia que produziria esse resultado. A tentativa é o ato assim definido, mas interrompido antes que dele resulte a morte. Outro estudioso do assunto, o sociólogo francês Jean Baechler, tem uma definição também muito pertinente: ...pode-se interpretar o suicídio como uma resposta a uma situação: todos os suicídios resultariam do fato de que o suicida deixou-se prender numa armadilha. O suicídio, portanto, deve ser interpretado como uma solução estratégica dada pelo indivíduo a problemas existenciais. Para Durkheim todo suicídio tinha como origem o egoísmo. O discurso de Quentin dá conta dessa individualização. O monólogo poético-raivoso do personagem, desolado com a perda da irmã para a vida, da impossibilidade de ter a irmã, a raiva contra o niilismo do pai, a nostalgia imensamente culpável do passado glorioso escravocrata, é seu bilhete de suicídio, o testemunho de um peso ao qual Quentin não pôde suportar. No já citado Anti-Édipo, Deleuze trata do inconsciente como um delírio que não pode ser aprisionado numa estrutura. São delirantes também os pensamentos de Quentin. E que não cabem mais na estrutura dos pensamentos racionais e patriarcais de seu genitor. Seguindo a classificação de Durkheim separa-se os suicidas em três grupos: os egoístas, os altruístas e os anômicos. No suicídio egoísta encontramos apatia e melancolia; no altruísta, ~17~


energia passional e sentimento do dever; e no anômico, irritação, desgosto e queixas contra a vida. Há ainda a combinação de mais de um tipo em um mesmo indivíduo. Que é o nosso caso. Quentin seria colocado no grupo dos anômicos com algo dos egoístas. E quem sabe até dos altruístas como veremos ao fim. É o indivíduo que não aceitou a sociedade como se configura aos seus olhos e também não consegue lidar com o amor pela irmã, fato que o deixa profundamente triste. Nas três formas de suicídio propostas, o ato seria provocado pela relação que o indivíduo possui com as normas de uma comunidade doente. Diz o autor sobre o tema: “Ora, o suicídio, na situação que se encontra hoje, é justamente uma das formas pelas quais se traduz a doença coletiva de que sofremos; por isso ele nos ajudará a compreendê-la”. Tanto Marx quanto Durkheim e Freud nos textos que dedicaram ao suicídio, tratam-no como sintoma de uma sociedade enferma. Tratam o assunto como um fenômeno social. Expressão individual de um fenômeno coletivo. O arquivista policial Jacques Peuchet afirma que “a classificação das diferentes causas do suicídio deveria ser a classificação dos próprios defeitos de nossa sociedade”. Mauss & Hubert vão mais longe e dizem que o sacrifício e o suicídio têm uma função social. E a sociedade sulista norte-americana após a perda da guerra com o norte era mais que uma comunidade doente e racista, era também, e acima de tudo, uma sociedade moribunda, causa da nostalgia e conseqüente culpa carregada por Quentin. Seu suicídio também é resultado da ruína e desintegração de sua comunidade. E Durkheim diz que essas transformações também são causas de suicídios: “O resultado é que eles não se ajustam à condição ~18~


que lhes cabe e que sua própria perspectiva lhe é insuportável...”. O personagem parece juntar em si outros dois personagens literários suicidas, o Werther de Goethe, e Kirilov de Dostoievski. A morte romântica e a morte niilista. A morte por razões amorosas, por alguém que não te quer ou não pode te querer, e a morte por uma ideia, o desprezo com a lei, enfrentá-la e ser mais que a divindade, mais que o pai. Quentin funde em si o Goethe romântico e o Dostoievski mais pessimista. Durkheim atenta no seu estudo de 1897 o número maior de suicidas nas classes mais instruídas. Uma das razões que levariam o instruído a se matar seria porque a sociedade de que é membro perdeu a coesão para ele. Não aceita mais as palavras do patriarca. Não crê mais na sociedade onde o pai fracassou. As leis e o discurso do pai não satisfazem porque nada podem frente à lei do desejo. Porque nada puderam fazer frente aos instintos e ações de sua irmã Caddy, não deram linearidade à história, não deram ordem ao mundo, não impediram seu desejo incestuoso. Só os que desejam o contrário à correnteza ousam levantar a voz contra o rio. Onde o pai não opera, onde o pai falha surge o golpe aos outros ou a si mesmo. A morte acontece em O Som e Fúria como insubordinação também. Freud em Luto e Melancolia diz que o suicídio pode ser um ato de vingança contra alguém que não o próprio suicida. O ato esconderia um desejo de morte contra outra pessoa: De há muito, é verdade, sabemos que nenhum neurótico abriga pensamentos de suicídio que não consistam em impulsos assassinos contra outros, que ele volta contra si mesmo, mas jamais ~19~


fomos capazes de explicar que forças interagem para levar a cabo esse propósito. Quentin quer atingir seu pai. Detém-se todo tempo e fraciona sua morte, vai morrendo aos poucos já que se considera morto sem Caddy, sem futuro, sem um novo tempo, apenas a herança escravocrata, o niilismo do pai, a paixão pela irmã, o medo do fracasso inevitável. Ele não consegue escapar do discurso pessimista de seu pai. Não consegue escapar do tempo, desse tempo. O suicídio é a fuga do tempo, quebrar o relógio, lutar contra as regras familiares. É tentar uma desesperada negação do valor da palavra PAI. Elisabeth Roudinesco afirma que o pai é também pai pelo discurso que carrega de pai, o discurso que deve afastar os filhos do pecado, afastar da mãe, afastar de tudo que é feminino. Quentin não tem o afeto da mãe ele mesmo diz que não tem mãe “se eu tivesse mãe para poder dizer Mãe Mãe”. Mas acaba por transferir para a irmã os valores maternais. E aí tudo desmorona. Porque a irmã também não é perfeita. Não existe perfeição. Disso tudo o pai tenta afastá-lo. ... e o pai disse é porque você é virgem: entendeu? As mulheres nunca são virgens. A pureza é um estado negativo e portanto contrário à natureza. É a natureza que está fazendo mal a você e não Caddy e eu disse isso são só palavras e ele disse a virgindade também e eu disse o senhor não sabe... A batalha com o pai nas palavras é constante no seu discurso. E é desde cedo uma batalha perdida:

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... e eu o senhor não acredita que eu estou falando sério e ele acho que você é tão sério que nem é preciso eu me preocupar senão você não teria sido levado ao expediente de me dizer que havia cometido incesto e eu eu não estava mentindo eu não estava mentindo e ele você queria sublimar uma bobagem humana natural transformando-a num horror e então exorcizá-la com a verdade... Os sermões do pai também são responsáveis por desmamar o filho. Diferente do pai de Lavoura Arcaica de Raduan Nassar, onde vagueia outro incestuoso da literatura, o pai em O Som e a Fúria parece não ter tanta importância. Ele não é tão rígido e autoritário. Mas talvez seja ele o grande protagonista do livro determinando de certa forma com suas frases o destino trágico de toda família: Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo o seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse. Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios. A frase do pai dita no passado acontece no presente, misturando os tempos, é como uma carta de tarô onde você tira a sua sorte para o futuro, mas que já está sendo, decifra-se e acontece no presente. É uma das chaves para se entender o suicídio de Quentin, a maldição jogada pelo pai, herdada da família, en~21~


quanto o pai foge da realidade através do álcool, a mãe pela autopiedade e remédios, e o mundo como era nunca mais será. Quentin inculpa-se de incesto, que foi ele que tirou a virgindade da irmã, por orgulho do passado da família e não pela honra da irmã. Ele está sempre correndo do tempo real assombrado pelas diversas vozes que interferem no seu fluxo de consciência desesperado. Todas as pessoas que passaram na sua vida são fantasmas agora, dando voz a sua consciência estilhaçada, indo a um tempo mítico onde possa amar sua irmã, onde eles possam se amar mesmo que seja no inferno, onde a lei do pai não os alcance e o incesto e o suicídio não sejam um tabu, os negros ainda sejam escravos, e as coisas voltem a fazer sentido na sua cabeça conservadora. Porque apesar de ir contra o pai, Quentin é no fundo um conservador. É um homem que sente falta do tempo em que honra era uma palavra cara a todos os homens, do tempo em que as irmãs não eram motivo de vergonha para os seus irmãos e seus pais. Sente falta principalmente do tempo em que se as irmãs fossem motivo de vergonha seus pais resolveriam isso de forma rigorosa. ...cheia de som e fúria... Para Durkheim a sexualidade proibida/interdita é a principal causa do suicídio egoísta-melancólico. Entretanto, como já enfatizei, mais do que desejar a irmã, Quentin se suicida para se livrar dos sermões niilistas do pai a toda hora intrometendo-se na sua consciência. A fantasia edípica não é só o incesto, é acima de tudo o parricídio. Todo suicídio carrega vários motivos, não há como precisar. Durkheim inicia seu estudo sobre o sui~22~


cídio justamente com isso. As multideterminações dos suicidas. Resta seguir as pegadas e sinais dos que tiram a própria vida, como vemos no discurso fragmentado de Quentin: “Se ao menos houvesse um inferno depois: a chama limpa nós dois mais que mortos. Então você terá só a mim então só a mim então nós dois em meio a reprovação e o horror...”. É seu último dia na terra e ele sabe disso. A vida toda é uma mistura de passado e presente, sem futuro. No primeiro capítulo da série americana Carnivale, uma das personagens que é cartomante tira a sorte de alguém e lhe pergunta antes de jogar: Passado, Presente, ou Futuro? A qual ela responde com melancolia: Qual é a diferença? Para quem está em meio ao desespero, o passado é presente. Como Sartre bem colocou, 2 de junho de 1910 é o último dia dele na terra e não há nenhuma chance de não ser. O desespero está em pensar o tempo todo isto não pode mais durar. Perseguido pelos relógios, pelo amor proibido e pela sua própria sombra Quentin segue as leis de seu desespero, segue a pureza da irmã em desespero, o cheiro da irmã onde já se afoga em delírio, e há uma beleza trágica nesse ato que ele quer obter para a eternidade: o amor que não vingou, derrotando o pessimismo do pai. Com o suicídio ele mata o pai e leva a irmã junto. Na sua cabeça ele imagina que com sua morte ela não aguente e se suicide também. Quentin não quer acreditar na lei do pai, na lei desesperançada e destituída de toda glória do pai ausente. Mas sua ausência é pesada e sentida pelo filho. A lei continua. É ainda a voz do pai que guia seus passos. Uma das obsessões de Quentin é a pureza do corpo da irmã, que precisa ser salva para salvar a família, para dar redenção à ~23~


família, ao povo, a humanidade. Quer salvar sua irmã como um tipo de Messias gótico de um sul norte-americano que já não existe, da qual sente falta e culpa ao mesmo tempo. Quer salvar a irmã do pai, da lei do amargurado e arruinado sul dos Estados Unidos. E contra a lei do pai também aponta o suicídio, mesmo que nele, Quentin realize as palavras de maldição do seu patriarca: todo homem é o somatório de suas desgraças. Quer salvar, mas falha. Bate de frente com as palavras carregadas de inesperança do pai. Mas são essas mesmas palavras, esse discurso, que fazem-no andar. Ele é o pai agora, tendo de cuidar da reputação da irmã-mãe, ele que é o pai agora, se matando porque era o pai que deveria se matar. O tempo (onipresente e responsável por interferências na consciência dos personagens) e o espaço (o sul decadente e racista dos EUA no início do século passado) têm uma função nuclear na narrativa de Faulkner. E nós vamos com Quentin e a menina que o leva pela mão, a morte e a culpa, vamos com eles em busca de uma ponte. As maldições endêmicas assombram-nos como fantasmas, chamados Incesto e Suicídio. Com sua sintaxe que mira ao passado sabendo que sem o passado o presente é ainda mais incompreensível, Quentin caminha de costas para o seu futuro, como Sartre afirmou. Um romântico numa terra onde eles não podiam existir. Quentin não compreende seu destino, ele o vive. Na sua cabeça há uma Guerra da Secessão pós Guerra da Secessão, a psicologia feminina das paixões versus as regras inexoráveis e inflexíveis do patriarcado. Enfim, Quentin se mata não só por razões amorosas e culpa do provável incesto, e sim para ir contra o pai, contra o tempo. De sua parte, sua família aristocrática e decadente, os Compsons, e ~24~


talvez (trazendo conceitos do existencialismo Sartreano) toda a humanidade acabem com seu gesto, no seu gesto. São Tomás de Aquino já no século XIII afirmava que uma das razões para o homem não se suicidar é que ele faz parte de uma comunidade e assim ele lesaria esta comunidade. Justamente o que Quentin intenta com seu gesto. Liquidar uma sociedade moribunda. Mas o destino trágico dos personagens de O Som e a Fúria não é linear e com ligações geométricas dos instantes. É barroca sua sina, é barroca a arquitetura do suicídio de Quentin. Várias coisas amontoadas na sua cabeça. Comparando com outro autor a quem o tempo é caro, temos Proust. E em Proust (que, para registro, Faulkner leu), o tempo também é importante, mas não opressor como em o Som e a Fúria. Em Proust o tempo leva ao conhecimento que leva ao sentimento. Em Faulkner o tempo é sentimento que leva ao conhecimento. É peso e desordem. Porque a vida é peso e desordem. Jean Pouillon, um dos leitores maiores de Faulkner, resume assim a questão: Um dos objetivos da aparente desordem da narrativa é mostrar que esse peso não é um artifício de narração continuada, que ele nunca deixa de existir, de modo que, ao sugerí-lo, o romancista está sendo fiel à natureza das coisas. ...sem significado nenhum.” Em O Mito De Sísifo Albert Camus propõe que a única questão filosófica é o suicídio. Que só existe um problema filosófico sério e que esse seria o suicídio. Ou seja, importa seguir vivendo sabendo-se do fim? Quem se mata confessa que foi ul~25~


trapassado pela vida e que não conseguiu compreendê-la. Esse dilema complexo, mereço continuar vivendo apesar de? angustia Quentin a ponto de ele desistir da vida fazendo com que se atire no rio Charles. O que foi pesa sobre o que é e o futuro não existe. O passado em Faulkner é o real porque está sempre presente, o homem é o que o passado fez dele. Em Proust temos a cronologia e os três tempos bem definidos, já em Faulkner eles se misturam e se interferem. O futuro é negado para Quentin. E se Faulkner amputa o futuro do sul escravocrata é com o suicídio de Quentin que isso fica sacramentado, a culpa de saber que você sente nostalgia do tempo em que era aristocrático e de que isso tudo era alicerçado com sangue e suor negro. O filho herda do pai a decadência e seu ato de rebeldia é suicidar-se. Revolta contra um patriarca mutilado, para usar a expressão de Roudinesco. O pai que acredita numa sociedade onde a mulher não existe, uma sociedade fálica e patriarcal que Quentin faz parte e quer se livrar e se limpar. Sociedade que com o fim da guerra civil entrou em irreparável derrocada. Quer se livrar do pai com que ele fala diversas vezes e que nada faz em relação a gravidez de Caddy. Ao tornar a tragédia da irmã a sua tragédia, ao afogar-se no cheiro de madressilva de sua irmã e depois no rio Charles de certa forma ele limpa os pecados da família. Um anti-Édipo e Jesus Cristo suicida. O discurso niilista do pai só serve para afirmar ainda mais a degradação da família. Quentin é o atormentado, Benjy é o retardado, Caddy a menina que se “perdeu” e Jason o racista que incrivelmente é a razão da família. O que o pai diz o tempo todo são palavras que só querem é expor e admitir a decadência de toda a sociedade do sul dos Estados Unidos. Então ~26~


Quentin adentra o rio sem esperar por Caronte, e poderia usar as palavras do profeta Elias no Velho Testamento cansado da perseguição de seus inimigos: “Basta, Senhor, tirai-me a vida, porque não sou melhor do que meus pais.” No seu suicídio há afinal uma vitória de si sobre si, que não passa de derrota travestida. Uma história sempre fala de nossos demônios, da nossa luta em domesticá-los respeitando os desígnios do destino. Quentin não aceita os sermões do pai, mas é a realização plena desses mesmos sermões. Ele falha na domesticação de seus demônios. Poderia tranquilamente repetir a fala de Macbeth no ato V cena V da famosa peça e pareceria que Shakespeare a tinha escrito especialmente para ele:

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