Revista Cásper #11

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´ casper

Nº 11 – Dezembro de 2013

Mara Salles

Gastronomia brasileira com requintes

Crowdfunding

Um modo de viabilizar ideias

Dramaturgia

Nascem novos e jovens autores

Espionagem na rede Os ideais de liberdade em xeque



CÁSPER Fundação Cásper Líbero Presidente Paulo Camarda Superintendente Geral Sérgio Felipe dos Santos

Faculdade Cásper Líbero Diretora Tereza Cristina Vitali Vice-Diretor Welington Andrade

Revista Cásper Núcleo Editorial de Revistas Coordenador de Ensino de Jornalismo Carlos Costa Editor-chefe Sergio Vilas-Boas Editor Leandro Saioneti Conselho Editorial Adalton Diniz, Carlos Costa, Roberto D’Ugo, Sergio Andreucci, Sergio Vilas-Boas, Walter Freoa e Welington Andrade Reportagem Gabriela Boccaccio, Isabela Moreira, Leandro Saioneti, Patrícia Homsi e Thaís Helena Reis Editora de Arte e Fotografia Rafaela Malvezi Diagramação Luíza Fazio, Nathalie Provoste, Pedro Camargo, Rafaela Malvezi e Thaís Helena Reis Colaboradores André Silva, Carolina de Souza Luiz, Fernanda Coppedê, Francisco Nunes, Gabriel Kwak, Guilherme Burgos, Luiz Thunderbird, Mariana Marinho e Sergio Vilas-Boas Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874 E-mail: revistacasper@casperlibero.edu.br Site: http://www.casperlibero.edu.br Capa Fernanda Coppedê, Nathalie Provoste e Thaís Helena Reis

Liberdades

e culturas

Em seu romance 1984, George Orwell anteviu uma sociedade controlada por olhos e ouvidos onipresentes. Na casa de Winston, o protagonista, uma “teletela” recebia e transmitia simultaneamente: “Era possível inclusive que ela controlasse todo mundo o tempo todo”. A atual “sociedade das telas” (expressão usada pelo filósofo Gilles Lipovetsky) nos remete agora à tão genial quanto perturbadora ficção criada por Orwell 65 anos atrás, antes mesmo da popularização da TV. As recentes denúncias do ex-técnico da CIA Edward Snowden sobre a espionagem praticada pelos Estados Unidos na internet revelaram a existência de “controles invisíveis”, colocaram em xeque os ideais de segurança e privacidade e criaram um clima de paranoia. A ótima reportagem “A liberdade vigiada” é exatamente um painel de discussões sobre tópicos essenciais ao tema, como a neutralidade das redes, a privacidade dos usuários e a liberdade de expressão. Complementa essa matéria a história do veterano jornalista Patrick Denaud, que durante anos levou vida dupla como correspondente de guerra e espião dos serviços secretos franceses. Embora as contemporaneidades sejam centrais na linha editorial da Cásper, esta edição # 11 não perde de vista as temáticas culturais (mas vemos a cultura em uma dimensão ampla, e não apenas como “artes & espetáculos”). Antes de tudo, o perfil de Mara Salles, chef e proprietária do reputado restaurante Tordesilhas. Especialista em culinária brasileira, ela se tornou uma espécie de embaixadora da nossa comida mundo afora. E “Os brasis de Mara Salles” contêm um ponto de vista “de dentro” (de dentro da cozinha dela, claro). Já a oportuna “Poder do público” enfoca a evidente relação entre tecnologia, comportamento e economia no sistema de financiamento coletivo conhecido como crowdfunding, que ganha cada vez mais adeptos no Brasil, viabilizando projetos independentes e estreitando as relações entre os autores e o mercado. Ah, e aqueles assuntos classicamente artísticos como teatro, dança e literatura também estão contemplados aqui, como não poderia deixar de ser. “Dramaturgos em cena” aborda a tendência de revalorização da autoria no teatro paulistano; “De corpo e sonho” mostra os obstáculos à carreira de bailarinos e bailarinas, que têm de enfrentar uma formação longa e ensaios extenuantes; e “Criações editoriais” atenta para os cuidadosos projetos de livros, audiolivros e e-books das pequenas editoras. Tudo isto já não seria pouco, mas, para nós, da Cásper, a comunicação é tudo. Então, não perca “Ideias no ar”, sobre a versatilidade dos profissionais de rádio na busca por conteúdos educativos e formatos inovadores. E um 2014 excepcional a todos vocês.

Tereza Cristina Vitali Diretora Dezembro de 2013 | Cásper

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CHAPÉU

Sumário

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Os brasis de Mara Salles

Um perfil da chef e proprietária do restaurante Tordesilhas, especializada em culinária brasileira

26 Faces de um repórter

A dupla vida de Patrick Denaud, que durante oito anos foi correspondente e também espião

12 Um novo aliado

30 Criações editoriais

15 De corpo e sonho

34 O humano e a terra

20 A liberdade vigiada

42 Dramaturgos em cena

Em tempos de novas mídias, os quadrinhos estão se tornando um veículo para a narração de histórias reais

Além de movimentos, a formação de bailarinos inclui conhecimentos de anatomia, fisiologia e cinesiologia

As denúncias de espionagem parecem ter ferido a ilusão de que a internet é um espaço civil livre

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Pequenas editoras apostam em produções artesanais e novas formas de leitura

A Chapada Diamantina vista pelas lentes do fotógrafo Guilherme Burgos

A revalorização da autoria no predominantemente coletivo ambiente teatral paulistano


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48 48 Poder do público

O crowdfunding (financiamento coletivo) aproxima pessoas e viabiliza projetos independentes

52 Ideias no ar

Entre a tradição e a digitalização, rádios com programação educativa e cultural buscam um meio-termo

52 SEÇÕES 62 Resenha 64 Notícias Casperianas 66 crônica

56 A minha MTV Brasil

Luís Thunderbird lembra as influências da emissora que revolucionou o modo de ouvir música

58 Inovar para renovar

Num bate-bola rápido, Washington Olivetto diz que a criação publicitária se baseia na “arte de viver”

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PERFIL PAPARAZZI

“Fico sonhando em fazer comida como Tom Jobim fazia música”

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os brasis de

Mara Salles Há décadas a chef e proprietária do Tordesilhas divulga e eleva a gastronomia brasileira mundo afora Por Sergio Vilas-Boas Imagens Gabriela Boccaccio

C

ozinha de restaurante profissional é uma zona perturbadora para intrusos desajeitados. Há calores variáveis, objetos cortantes e uma confusão de ruídos (exaustores, coifas, frituras, cozimentos, grelhas, lavagens...). Os aromas se misturam em ondas, como sons na música. As pressões de tempo e espaço são inevitáveis e o silêncio é valioso. “Concentração é tudo. Gritaria e caos em cozinha é coisa de cinema e TV. A gente tem de se entender pela sintonia um com o outro, como os músicos de uma orquestra”, diz Mara Salles, uma chef que trinta anos atrás nem sabia cozinhar direito e hoje é uma das principais embaixadoras da gastronomia brasileira, pesquisando concepções e repaginando tradições. Ao longo de três horas de nossa fragmentária conversa em pleno rush, os membros de sua equipe não disseram mais que dez palavras cada um, se tanto. Alguns simplesmente não vocalizaram nada que me fosse audível. Pareciam ter perdido a conexão com o mundo exterior. “Cozinha é marcha, andamento, constância.” As cozinhas se dividem em praças, que, classicamente, levam nomes franceses, como rotisserie (assados e grelhados) e garde manger (comidas

frias, principalmente saladas). No momento em que entrei naquele centro de emanações, o Gabriel preparava saladas de folhas miúdas com gomos de laranja bahia e molho de taperebá. Essa parte da cozinha, onde os pratos são finalizados, foi uma construção calculada nos mínimos detalhes (em maio, o Tordesilhas se mudou da rua Bela Cintra para cá, Alameda Tietê). Embora haja pouco espaço vago, os cozinheiros não batiam os cotovelos uns nos outros naquela noite de sexta-feira: “Domingo é que é puxado. Atendemos três vezes mais pedidos que a média semanal”.

Questão de motivação Ao alcance de suas mãos, sob o passa-pratos, havia quatro farofas. Duas “farofas d’água”, ambas feitas de uma farinha grumosa, rústica e ácida, muito apreciada na região amazônica. Elas são adicionadas ao pato no tucupi ou às casquinhas de siri; a “farofa de alho” é para os pratos com carnes do sertão (jabá e carne de sol, e a “farofa de dendê”, para o bobó. As panelas e cumbucas vêm de Goiabeiras, um bairro de Vitória (ES). Essas panelas de barro, ideais para moquecas (porque conservam a tem-

peratura), são produzidas há séculos. No Dossiê das Paneleiras de Goiabeiras, do Iphan, o naturalista Saint-Hilaire descreveu-as assim: “caldeira de terracota, de orla muito baixa e fundo muito raso”. Com seu aguçado senso de detalhe, Mara elevou a comida brasileira a um patamar superior. De tempos em tempos, ela vai aos brasis profundos para conhecer os saberes e fazeres intrínsecos das nossas gentes. “Fico sonhando em fazer comida brasileira como o Tom Jobim fazia música. Quá!”, ela escreveu em seu livro Ambiências – Histórias e Receitas do Brasil (editora DBA, 2011). Não estava usando aquele chapéu típico de chef aquele dia, e sim uma espécie de lenço artesanal, tecido à mão, comprado numa de suas passagens por Goiás; e relógio, e brincos de argola, e óculos de lentes retangulares, e umas botas tão delicadas quanto macias. Garante que hoje em dia nada em seu restaurante depende exclusivamente dela. “Numa cozinha, a hierarquia é uma questão de motivação, não de poder. Construí uma equipe ótima. Isso é a conquista das conquistas. Muitos restaurantes recebem altos investimentos, têm equipamentos Dezembro de 2013 | Cásper

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de última geração, decoração refinadíssima, mas naufragam por falta de harmonia das equipes em todas as etapas de produção.” Dentro da sua rotina. joga em todas as posições: escritório, preparo, finalização, passa-pratos, eventos externos, palestras, aulas... Um restaurante não vive somente de sua boa reputação, muito menos numa cidade como São Paulo, com tantas opções. Na era das celebridades (com ou sem uma obra relevante), até os restauran-

tes precisam de um rosto humano. “Então, você tem que aparecer sem se desgastar. Até porque não sou marqueteira (aliás, nem gosto dessa palavra). Se eu tivesse total liberdade de escolha, só ficaria dentro da minha cozinha e, de vez em quando, criaria alguns almoços ou jantares em eventos específicos, fora daqui, desde que a experiência pudesse me ensinar algo novo também.” Dias antes do nosso primeiro encontro, ela havia participado do

No Tordesilhas, Mara “joga em todas as posições”

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Savour Stratford Perth County Culinary, em Stratford, perto de Toronto; e depois esticou até Chicago para conhecer mercados e restaurantes, como o Avec. “Gosto de achar objetos e utensílios que, por incrível que pareça, você não encontra facilmente no Brasil, como essa minicolher – não é uma beleza? –, perfeita para pingar molho de pimenta.”

Na fazenda A atividade de chef é contemplativa: “A transformação do açúcar em uma calda, por exemplo, é fascinante. Um espetáculo”. Falando em espetáculo, ela acha que não tem queda para apresentar programas de TV sobre comida. “Além de perigoso (te expõe demais), é chato, toma tempo e não te permite ser o que você é...”, diz, examinando minuciosamente uma cocada com calda de tamarindo. Bobó, barreado, pirarucu, torresmos, queijo coalho, tacacá, espaguete de abobrinha, creme de pequi, suspiros de jatobá... O Tordesilhas tem várias amostras do Brasil. Enquanto o tempo não trouxer teu abacate, amanhecerá tomate e anoitecerá mamão, como já disse Gilberto Gil. Mara não acredita que “uma pessoa nasce pra cozinha”, mas reverencia seu passado rural. “Na fazenda, nunca me senti obrigada a cozinhar. Cozinhava porque a minha mãe cozinhava. Na cultura rural daquela época, filhos e filhas eram assistentes gerais. Com cinco, seis anos eu já negociava com a minha mãe a hora de brincar. Havia muito, muito trabalho em casa, e a gente tinha que ajudar não apenas na cozinha, mas em quase tudo.” Nasceu em Penápolis (SP), a 500 quilômetros da capital. Sua mãe, Encarnação Simon Salles, 83 anos, conhecida como Dona Dega, deu à luz nove vezes (Mara é a segunda). Glaucia, uma das irmãs, é advogada, “mas cozinha divinamente”, segundo a Mara. “Meu pai [Adriano Salles] era muito exigente com comida. Foi assim até seus últimos dias de vida.


Dona Dega, mãe de Mara, ensinou muito sobre cozinha às filhas

E tinha uma cultura impressionante.” A fazenda de 170 alqueires onde viveu a menina Mara ficava entre Penápolis e Promissão. “Tínhamos gado de leite e o porco era a principal carne (conservada na gordura!). Plantávamos café, arroz, feijão, hortaliças, amendoim e frutas, inclusive frutas silvestres. O feijão que comíamos era claro, denso, colhido ali mesmo, e secado no terreirão.” Na época das colheitas, sr. Adriano contratava três ou quatro famílias de colonos, que ocupavam casas de tábuas dentro da propriedade, já reservadas para eles. “Casas de arquitetura cabocla clássica.” Quando os colonos voltavam para suas origens, Mara e a criançada ocupavam uma daquelas casas e nela brincavam de “casinha de verdade”. “Tudo funcionava como na casa da gente e esse fazer de conta de verdade fazia toda a diferença”, ela escreveu em seu livro. “Era tanta criança que, em 1960, apenas as que estavam em idade de iniciação escolar somavam catorze. Meu pai, cabo-

clo aguerrido, articulou com muito esforço a fundação de uma escolinha municipal exclusivamente pros filhos, sobrinhos e filhos de colonos.” A carne de porco não era apenas uma tradição clássica na cozinha rural brasileira. Do porco aproveitavase quase tudo: “Sabe que até hoje eu não sei fazer frango caipira sem usar banha? Na fazenda da infância, orelhas e pés eram salgados e engrossavam o feijão. “Em curto espaço de tempo, a carne de porco quase desapareceu dos cardápios e de boa parte das casas brasileiras”, lamenta.

Os ingredientes Dona Dega, que está com Mara no negócio desde o início (1986), trabalha no Tordesilhas durante o dia, nos preparos. “Volto ao aconchego de minha mãe pra dizer que foi com ela que aprendi as sutilezas no trato com ingredientes simples como o almeirão, o maxixe, a cambuquira, a galinha e outras coisas da roça; sutilezas que venho aplicando amiúde em minha cozinha ao longo dos

anos, onde passei a dividir com ela as bocas do fogão.” Naquela época, na fazenda, os caldos resultantes do cozimento de legumes, carnes e aves eram reservados e, com eles, Dona Dega orquestrava várias receitas. “Se, ao fritar a bistequinha, ela ficasse seca, lá ia um tiquinho do caldo de legumes pra deixá-la brilhante; ou pra dar umidade ao mexidinho. A água em que o milho verde era cozido, nunca se jogava fora.” “Dona Dega”, Mara escreveu, “nunca soube o que é mirepoix, nunca ouviu falar em fundos nem em sabor umami; e, se sua abobrinha fosse cortada em julienne, o sabor seria anosluz inferior àquela batidinha com uma faca tosca e sem uniformidade de corte”. Quanto ao sr. Adriano, ele foi lavrador, dono de terra, administrador de fazenda, comerciante de café e de produtos agrícolas. A quebra da Bolsa de Nova York em 1929 gerou um efeito dominó na economia mundial. Mara estava com 18 anos quando o pai faliu. Na época, ele não era mais fazendeiro. Morava Dezembro de 2013 | Cásper

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Em suas viagens pelo Brasil, Mara descobriu muitas comidas e técnicas

já com a família em Penápolis e negociava café em grão. “Migramos para a capital com uma mão na frente e a outra atrás. Mas adorei. Eu desejava muito morar em uma cidade grande.” Na capital, sr. Adriano foi trabalhar no comércio, e Dona Dega preparava marmitas para engordar o orçamento da família. Mara, por sua vez, estudava Turismo no hoje chamado Centro Universitário IberoAmericano (Unibero). No final dos anos 1980, ela e a mãe abriram o Roça Nova, um restaurante de comida caseira na rua Iperoig, no bairro das Perdizes. Mara havida saído do emprego de secretária executiva no Banco Itaú. “Confesso que montei o Roça Nova confiando na experiência da minha mãe. Daí fui aprendendo com ela. Eu 10

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não teria conseguido bolar os cardápios atuais se eu não tivesse começado com a cozinha brasileira básica, na fazenda do meu pai, conhecendo desde os ciclos das plantações até as técnicas mais básicas.”

Carnes e sertões Sempre nutriu um desejo antigo de ganhar chão e ir em busca dos brasis que ela ouviu dizer nas primeiras aulas de história e geografia no primário. “Todo o saber concebido dentro daquela escola rústica ganhava uma dimensão fabulosa: a escuridão do Rio Negro, o assovio do minuano, as histórias de Lampião, as tropas e os tapuias, as chalanas, as senzalas...”. E, ao longo do tempo, suas viagens pelas profundezas do país resultaram em descobertas tão va-

riadas quanto surpreendentes, como cocos e coquinhos de polpas amanteigadas, tucumã, pupunha, licuri, farinhas (secas, pubadas, gomadas, grumosas, finíssimas); pimentas frescas de todos os cheiros e matizes; e frutos como o cajuzinho do cerrado, a jurubeba e a guariroba. A gente se encontrou no Tordesilhas noutra sexta, à luz do dia, logo depois que ela retornou de Goiânia, onde ajudara a organizar um festival de comidas regionais. Quando cheguei, ela fazia o que mais gosta: cortar/porcionar jabá. Mergulhada em sua própria (e espessa) gordura, essa carne rústica, “mas deliciosa”, remete aos tempos imemoriais do Brasil Colônia. E por falar em carnes e sertões, ela se recorda de uma de suas andanças.


“Não pense que não sou vaidosa. Minha vaidade aparece quando vejo que meu trabalho está sendo reconhecido à altura do que estou fazendo”

Ela e o marido Ivo Ribeiro, seu sócio no Tordesilhas, foram até Belo Jardim (PE) buscar conhecimentos sobre o plantio e o uso do milho na culinária festiva local. “Eles plantam o milho no São José [19/3] e colhem na véspera do São João, para a festa”, conta. “Os homens vão cedinho colher e as mulheres preparam. Esses intercâmbios sempre resultam, direta ou indiretamente, em alguma inspiração.” “Nessas viagens, a Mara vai atrás das cozinheiras saber como um ingrediente ou tempero foi utilizado. Conversa de igual pra igual, seja com quem for. Não é de botar banca. E tem uma deferência toda especial pra deixar o outro à vontade pra revelar o que faz e como faz. Admiro sua disposição e simplicidade”, diz o mineiro Luiz Magalhães, professor de filosofia e amigo do casal. Todo restaurante reputado se preocupa com os ciclo dos alimentos que emprega. Ciente disso, Mara criou o projeto “Tem Mas Tá Acabando”, que resgata e contextualiza ingredientes raros, de comercialização difícil e valiosos do ponto de vista gastronômico. “O mangarito, por exemplo, tem mas tá acabando. Então, numa das edições desse nosso festival, montei um cardápio usando esse insumo.” E passamos a falar sobre o Programa Ação Família, da Fundação Tide Setúbal, em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, onde ela é voluntária. “O que faço lá é ensinar (na verdade, ajudar as pessoas a serem criativas dentro do que elas pretendem). A gente precisa ser generoso:

devolver à sociedade um pouco do conhecimento que conquistamos.” Participou também de ações para a atual gestão da Prefeitura de São Paulo, em parceria com a Fundação Nestlé. Além de cinco workshops presenciais em escolas de regiões diversas da capital, ela protagonizou o primeiro de uma série de vídeos sobre merenda escolar. O “Comida de Escola” integra o Programa Nestlé Nutrir Crianças Saudáveis. “A merenda do município é muito rica do ponto de vista dos insumos e do preparo. As merendeiras e nutricionistas das escolas sabem o que fazem, mas, de modo geral, elas não veem a alimentação como uma forma de educação. Então, uma das minhas preocupações foi tornar o refeitório um espaço de convívio, de entendimento da comida, que deve ser servida de maneira carinhosa, afetiva.”

Famas e vaidades Mara, que já foi professora durante mais de uma década nos cursos de Gastronomia da Universidade Anhembi Morumbi, ainda encontra tempo para dar aulas algumas vezes por ano na tradicional (“e elitizada”) Escola Wilma Kövesi de Cozinha. “Quando entrei na Anhembi Morumbi [2000], eu era a única com formação e conhecimento em cozinha brasileira. E a cozinha brasileira ainda era considerada ‘menor’.” No nosso segundo encontro, a Dona Dega, que tinha acabado de renovar os arranjos de flores naturais do salão do Tordesilhas, apareceu na cozinha. O caldinho de feijão (cerca

de 15 litros por semana) e a feijoada dos sábados é responsabilidade desta vovó vigorosa e delicada. Apesar da boa saúde, o papel dela vem sendo reduzido. “Ela não é mais uma moça. E o trabalho em cozinha é pesado”, Mara comenta, protetora. A maioria dos funcionários do Tordesilhas tem mais de dez anos de casa. O Preto (Wilton Francisco da Cruz), por exemplo, está com Mara desde o Roça Nova. No salão, todos se envolvem com degustações (de vinhos, de cachaças, etc). “Legal ver a ascensão da Mara – de uma coisa caseira para uma outra linguagem. Eu tinha 17 anos quando comecei. Minha vida particular se mistura com a do restaurante”, diz Preto. E tem o Zé Lima, conhecedor de pimentas como poucos neste mundo. “Nenhum restaurante no Brasil tem um mestre pimenteiro”, Mara se orgulha, na presença dele. As pimentas do Zé Lima se harmonizam com a composição do cardápio do Tordesilhas. Dependendo do prato que o cliente escolher, ele recomenda um tipo específico de pimenta (ou umas das combinações com pimentas que ele cria). “Se fama é medida pelo reconhecimento das pessoas, sou famosa, sim. Agora, não sou celebridade. Nem pretendo ser. Nem tenho vocação para isso. Ser igual é bem legal. Mas não pense que não sou vaidosa. Sou, sim. Minha vaidade aparece quando eu vejo que meu trabalho está sendo reconhecido à altura do que estou fazendo. Acho que todo chef adora receber elogios. Eu adoro.” Dezembro de 2013 | Cásper

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QUADRINHOS

O NOVO

ALIADO Além dos enredos de super-heróis e monstros, os quadrinhos são hoje um meio para a narração jornalística

Por Leandro Saioneti Colaboração Luíza Fazio

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ilustração: Divulgação Editora Conrad

Palestina, obra de Joe Sacco, foi um dos precursores do gênero

uitas são as palavras usadas para caracterizar o jornalismo atual: coragem, polêmica, saturação, digitalização, onipresença, etc. Embora muitas sejam empregadas sob um véu ideológico e preconceituoso, ou por simples amor à profissão, há uma característica difícil de negar: adaptabilidade. Em revista, rádio, TV, internet, cinema ou livro, o jornalismo se faz presente pela sua capacidade de se adaptar às circunstâncias e de ajustar suas linguagens. A informação, antes restrita a nichos letrados, foi disseminada para todas as idades e classes, e a globalização da notícia virou realidade. Mas haveria uma mídia incompatível com a reportagem jornalística? Ainda não se sabe. Entende-se, porém, que hoje em tempos de “novas mídias” e de ampla necessidade de “reinvenção” de formatos, os quadrinhos se tornaram um meio importante para a narração de histórias reais. Sem a pretensão de inovar, mas, sim, possibilitar outras formas de imersão do público no mundo dos acontecimentos contemporâneos, já


Em suas obras, Augusto Paim retrata os problemas sociais das grandes cidades

é possível falar em “jornalismo em quadrinhos”. E autores de renome no gênero, como o maltês Joe Sacco, têm encontrado adeptos no Brasil – pessoas que praticam ou estudam o assunto. A ideia de que “todo jornalista é um pouco herói”, tão proferida pelo senso comum, sob exaltações e ironias, nunca foi tão apropriada.

ilustração: Divulgação Augusto Paim

Formas e regras “O jornalismo em quadrinhos pode ser uma forma de chegar a outro nível de profundidade num determinado assunto. Os quadrinhos podem dar a um tema um caminho de compreensão objetiva e emocional que outras formas de reportagem não conseguem”, acredita Augusto Paim, jornalista graduado pela Universidade de Santa Maria (UFSM). Augusto é também curador e organizador do Encontro Internacional de Jornalismo em Quadrinhos, que ocorre em Porto Alegre. Segundo ele, as obras produzidas atualmente tendem a dialogar melhor com pautas que possuam um apelo visual forte, além de servir bem à abordagem de temas memorialísticos – um viés,

aliás, muito presente nas principais obras do gênero. O trabalho realizado segue os mesmos preceitos jornalísticos das reportagens narrativas e dos documentários audiovisuais. “Uma reportagem em quadrinhos precisa, fundamentalmente, das mesmas coisas que uma matéria jornalística: um bom tema, uma abordagem pertinente e uma boa apuração”, comenta o professor Aristides Corrêa Dutra, pesquisador e precursor no debate sobre a relação jornalismo-quadrinhos. Segundo ele, o diferencial é a busca pelo maior detalhamento das cenas que se quer narrar, justamente para que o quadrinho seja fiel à realidade retratada. Histórias em quadrinhos não precisam, necessariamente, ser publicadas em revistas. As demais mídias físicas e até mesmo digitais são opções viáveis, diz ele. Porém, o modo como as obras com viés jornalístico são publicadas é influenciada pela dimensão do trabalho, devido às questões de pesquisa e apuração dos fatos, além do tempo dedicado aos desenhos. “Joe Sacco publicou a obra Palestina como uma

minissérie, em revista. As vendas em comic shops foram pequenas. Mas, quando ele a republicou compilada em livro, o sucesso de público e crítica foi enorme”, lembra Aristides.

Pergunta-clichê “Mas os quadrinhos não são coisa de criança?” Esse tipo de questionamento ainda é muito comum e inevitavelmente limita a importância do quadrinho. Para Augusto Paim, essa questão, no âmbito do jornalismo, é uma via de mão dupla: “O fato de remeter à infância até ajuda a divulgar o gênero, mas ao mesmo tempo é uma forma de negar a qualidade. Outro preconceito é a ideia de que quadrinho é uma coisa fácil de fazer”. Apesar das semelhanças com o jornalismo em quadrinhos, o surgimento de graphic novels como O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, e Watchmen, de Alan Moore, claramente voltados ao público adulto e com forte carga política, econômica e social, conseguiram reduzir o estereótipo. Na visão de Augusto, a força das graphic novels no país não determina o sucesso do formato Dezembro de 2013 | Cásper

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“Os quadrinhos podem dar uma compreensão objetiva e emocional que outras formas de reportagem não conseguem”

Augusto Paim, organizador do Encontro de Jornalismo em Quadrinhos

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mas, sim, uma possibilidade a mais”, diz Érico Assis, jornalista, publicitário e tradutor de obras literárias.

Uma possibilidade Érico lança uma luz sobre esse complexo gênero que ainda gera dúvida tanto para os jornalistas quanto para os quadrinistas. Sem dúvida, as obras de Sacco, que narram suas experiências no Oriente Médio e na Europa Oriental, influenciaram o meio cultural brasileiro na arte de fazer jornalismo em quadrinhos, e o reconhecimento não tardou a vir. Morro da Favela, de André Diniz, que narra a vida do fotógrafo Maurício Hora e sua história no Morro da Providência (RJ), ganhou o Prêmio HQ Mix – principal premiação de quadrinhos no país – de Melhor Edição Especial Nacional em 2012. Para Aristides, produção e visibilidade são os elementos fundamen-

Foto: dida moraes

jornalístico: “Havia espaço nas editoras, mas elas agora publicam apenas livros que podem ser vendidos para o MEC como adaptações literárias. O mercado está restrito a publicações bastante comerciais”. Não é necessário voltar muito no tempo para confirmar a ideia de Augusto: as editoras Conrad, responsável por trazer parte dos trabalhos de Joe Sacco para o Brasil, foi vendida em 2009, e mudou o seu foco de lançamentos; e a editora Barba Negra, que publicou a HQ Morro da Favela, um dos destaques nacionais do gênero, encerrou suas atividades em 2012, após o cancelamento do contrato com a editora portuguesa Leya. Atualmente, a Companhia das Letras e a revista Fórum têm experimentado o gênero. “Felizmente, pelo menos já se viu que é mais uma ferramenta que se pode usar. Não é para substituir o jornalismo tradicional,

tais para o estímulo desse gênero no Brasil: “A questão é que a visibilidade depende da boa produção. As reportagens em quadrinhos têm se tornado progressivamente mais frequentes no Brasil e no mundo. Mas, em território nacional, ainda predominam as obras breves, de poucas páginas”. Tímido, mas com um espaço bem definido, o jornalismo em quadrinhos está tentando consolidar seu objetivo de unir dois universos que, nas décadas de 1970 e 1980, pareciam não ter uma correlação. Obras como Maus, do sueco Art Spielgman, primeiro quadrinho a conquistar um Pulitzer, e American Splendor, do americano Harvey Pekar, não foram encaradas como jornalismo, na época. “Hoje, não vejo oposição a essa união. Ao contrário. Muitas pessoas estão fazendo experimentos”, diz Érico. Colorido ou preto e branco, com traçado leve ou rebuscado, o jornalismo ganhou mais um aliado em sua missão de informar, interpretar e narrar, desde que os próprios autores continuem produzindo trabalhos marcantes, unindo tanto os fãs das HQ’s tradicionais quanto o público que nunca leu uma história do Hulk. “A reportagem em quadrinhos precisa dizer a que veio. E isso vai acontecer com o surgimento de obras realmente marcantes”, diz Aristides.


DANÇA CHAPÉU

de corpo e

sonho Das primeiras aulas às apresentações em palco, bailarinos têm de enfrentar uma formação longa e ensaios extenuantes

foto: Paul kolnik

Por Gabriela Boccaccio

A dançarina Linda Celeste Sims, do Alvin Ailey American Dance Theater, no espetáculo Four Corners, de Ronald K. Brown

Maio de 2012 Dezembro de 2013 | Cásper | Cásper

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A Escola de Teatro Bolshoi usa o método russo para a formação de seus bailarinos

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Enquanto o músico possui um instrumento, o dançarino tem como fonte de trabalho e inspiração o seu próprio corpo. Todo cuidado é pouco quando os ensaios se estendem por várias horas em um mesmo dia. Para Glenn, “comer bem, descansar e cuidar de seu corpo” é essencial para manter a consistência e a disciplina na carreira de bailarino.

Instrumento humano Há ainda a prevenção médica para evitar ferimentos. Betina Zacharias, fundadora da escola de dança Fama, formou-se em educação física pela USP e já foi bailarina profissional. Seu olhar atento às aulas a ajuda a corrigir eventuais problemas posturais e ortopédicos de alunos, principalmente crianças, para que no futuro elas não desenvolvam nenhum tipo de lesão. A Alvin Ailey também preza pela saúde física de seus bailarinos. Uma fisioterapeuta os acompanha em to-

das as turnês. Hope Boikin, bailarina da companhia, vê esse cuidado como algo médico e preventivo. Para ela, a tecnologia é benéfica para que o dançarino possa ter consciência do que ele está sujeito e compreender quais cuidados são necessários em relação à sua saúde. Os corpos malhados transformam os artistas em atletas. Além disso, o estudo de educação física pode ser uma alternativa complementar à formação profissional. André Pires, b-boy especializado em danças urbanas, procurou a faculdade por pressão dos pais e por ser ex-jogador de futebol. Ao entrar no mundo do desporto, descobriu as inúmeras possibilidades da dança. Anatomia, fisiologia e cinesiologia são três pilares importantes para a compreensão do corpo, na visão de André e Betina. Eles usam princípios da educação física com seus alunos. Esse tipo de conhecimento enrique-

FOTO: DIVULGAÇÃO BOLSHOI/ nilson bastian

s luzes do teatro se apagam e entram em cena os turbantes roxos e os vestidos rodados dos integrantes da Alvin Ailey American Dance Theater. Os movimentos grandiosos da coreografia Four Corners, de Ronald K. Brown, agora preenchem os vazios do palco. Sete horas de ensaios diários e longos períodos de dedicação e estudo resultaram nesse constante movimento. Os dançarinos se aventuram por ritmos africanos e incendeiam o teatro, como se a dança fosse a manifestação da alma através do corpo. Porém, a realidade por trás das coxias é outra. O suor que brilha na testa vem de anos de estudo. Glenn Allen Sims ingressou na dança aos 9 anos e integra a Alvin Ailey há 17. Formou-se em dança pela Juilliard School. Estuda pilates para poder entender as necessidades do corpo – a consciência corporal passa também pela compreensão do movimento.


ce, mas, para um dançarino, cursar educação física não é absolutamente necessário. Apenas ajuda a ampliar a visão sobre o corpo e sobre a dança. Betina Zacharias encontrou na faculdade as ferramentas para enriquecer sua consciência corporal. O estudo trouxe para ela um olhar clínico sobre o corpo, que vai além do artístico. A parte esportiva não pode se dissociar da dança, que faz do corpo sua fonte de trabalho. Karine de Matos, bailarina profissional da Cia. Jovem Bolshoi Brasil, percebe essa linha muitas vezes tênue entre arte e esporte: “O bailarino antes de ter um físico, precisa se expressar no palco. O treinamento físico faz parte. Por isso, muitas vezes somos chamados de atletas cênicos”. Faculdades de dança ainda são pouco difundidas, mas a importação de métodos estrangeiros solidifica o ensino de dança no Brasil. A Escola de Teatro Bolshoi é a única filial da es-

cola russa no mundo. Extremamente conceituada, seus alunos de balé são selecionados e passam por uma formação de oito anos. Além de uma instrução profissional, o Bolshoi propõe uma educação humana. “Nossa missão é formar artistas cidadãos, promovendo e difundindo a arteeducação. Queremos que as crianças sejam formadoras de opinião”, afirma a professora Germana Saraiva.

Arte na prática O método “Vaganova” (nome cunhado no século passado pela bailarina Agrippina Vaganova) é usado pela escola russa na formação de seus bailarinos. Esse método valoriza a plasticidade e a expressividade dos movimentos, usando todas as partes do corpo. A grade curricular da escola tem aulas práticas, como ginástica acrobática, e também matérias teóricas, como história da dança e folclore brasileiro. O currículo é repartido

diariamente em seis horas, das quais duas são dedicadas aos ensaios para os espetáculos. O método da Royal Academy of Dance, também conhecido como “inglês”, é um meio para transmitir a técnica clássica. Betina Zacharias optou por ele na Fama, sua escola. Dividido por níveis que acompanham a idade, o aluno vai, gradativamente, aprimorando sua base. Não há uma seleção de alunos. Todos têm potencial para dançar, desde que haja vontade e paixão. Nos primeiros anos, a criança começa a entender seu corpo e conquista uma grande capacidade de movimento. Com 12 anos o aluno pode optar por uma especialização: vocacional ou grade. O vocacional treina o bailarino para ser solista, grande profissional; o grade é indicado para quem procura técnicas de dança moderna e free movement. São oito anos de formação até o Dezembro de 2013 | Cásper

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“A dança se baseia principalmente no comprometimento: 70% de dedicação e 30% de talento”

diploma da Royal Academy. Os professores certificados precisam passar por um treinamento de dois anos e fazer anualmente um curso de reciclagem para se manter atualizados. Betina também acrescentou toques teóricos para o curso de formação em dança clássica. No sétimo ano, seus alunos redigem um trabalho sobre repertórios clássicos do balé e fazem um mapeamento da dança nacional. No oitavo ano, há uma pesquisa sobre anatomia, “para saberem que músculo é usado quando se faz um arabesque”, e um trabalho sobre história geral da dança. A formação precisa ir além da prática. É necessário entender o cenário e a história da dança de um ponto de vista nacional e internacional.

Amador ou profissional? O DRT (Delegacia Regional do Trabalho) é um carimbo na carteira de trabalho que prova a profissionalização como bailarino ou dançarino. Uma banca analisa um solo ou pas de deux de até três minutos e avalia o currículo. Há controvérsias em relação à veracidade desse documento. “Não é preciso ter um nível técnico excelente para tirar o DRT. O profissional é diferente do amador, com a proposta em que ele se coloca”, diz Betina. Um dançarino que paga para dançar em um grupo é considerado um amador. A pessoa que ganha para isso é considerada profissional. O b-boy e dançarino profissional André Pires percebe que os especialistas 18

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em danças urbanas não compõem o júri para o DRT. Um especialista em dança clássica terá dificuldades para avaliar, por exemplo, uma coreografia de hip hop. “A procura é muito grande. Muitos profissionais de danças urbanas têm de tirar o certificado. E lá não tem gente qualificada à altura para fazer essa avaliação”, diz André. Nos Estados-Unidos, as faculdades de dança formam os profissionais (é o caso de Glenn Allen Sims). O ensino e o incentivo à dança são muito mais difundidos que no Brasil. Quase toda grande cidade tem sua companhia de dança, ainda que pequena. Hope Boikin cursou psicologia, mas desistiu dessa área para tornarse bailarina. Embora nunca tenha se formado, estudou seis anos na Alvin Ailey School até ingressar na companhia e receber o status de profissional. A devoção à dança pode ser a verdadeira diferença entre profissional e amador, segundo Betina. “A dança se baseia principalmente no comprometimento: 70% de dedicação e 30% de talento fazem o 100% na dança.” A rotina em uma companhia de dança pode ser muito puxada. Na Alvin Ailey American Dance Theater os ensaios chegam a sete horas por dia e há turnês internacionais. Robert Battle, diretor da companhia, acredita que os ensaios sejam proveitosos. Devido à formação que seus dançarinos recebem, “parece que eles não fazem esforços, que é natural”. Um novato ensaia durante cerca de um mês e meio para poder se apresentar.

No Brasil, os bailarinos recebem uma boa formação, mas tendem a procurar companhias no exterior. Viver de dança é algo muito difícil atualmente, segundo Betina Zacharias. “Para sobreviver, você tem que ralar muito e dar aulas. Não basta fazer parte de uma companhia.” Ainda assim, professores de dança não costumam ser registrados, e as companhias não conseguem grande estabilidade. Betina conta o caso de sua aluna, Mima de Freitas, que foi dançar no Ballet Nacional de Chicago, na qual tinha aposentadoria e “era respeitada”. Obteve assistência médica, mesmo sendo estrangeira, ao sofrer uma queimadura. Betina compara isso à sua situação no Brasil, no qual pas-


O balé Dom Quixote apresentado pelos alunos do Bolshoi evidencia o rigor das aulas

sou por quatro grandes companhias e foi registrada apenas no Balé da Cidade, onde trabalhou por um ano.

FOTO: DIVULGAÇÃO BOLSHOI/ nilson bastian

Arte cultivada A Escola de Teatro Bolshoi conseguiu criar a Companhia Jovem Bolshoi Brasil para dar ao bailarino uma primeira oportunidade de emprego. Segundo a professora Germana Saraiva, 64% dos bailarinos formados pela escola russa estão presentes em grandes companhias mundiais, como o American Ballet Theater e o Teatro Bolshoi de Moscou. “Já temos boas companhias nacionais, mas o cenário ainda está em desenvolvimento. Precisamos de companhias que valorizem o bailarino, para que

os talentos queiram trabalhar aqui, no Brasil”, analisa Germana. Como qualquer outra profissão, a dança tem suas dificuldades. Para Karine de Matos, da Cia. Jovem Bolshoi, é preciso paciência: “O resultado do seu trabalho vem ao longo do tempo”. E esse tempo está mais elástico. As possibilidades de prevenção de lesões têm prolongado a carreira dos bailarinos. Além disso, a própria estrutura física é um fator decisivo. Para Betina, um pé alinhado e um joelho favorável influenciam na duração da carreira. O programa da Royal Academy aceita alunos a partir de dois anos e meio. Segundo esse método russo, o bailarino que pretende se tornar

profissional deve iniciar aulas entre 9 e 10 anos, porque a dança é uma arte desenvolvida cedo. Assim como um jogador de futebol, o dançarino inicia seus treinamentos antes mesmo de o corpo se consolidar. A dança é uma arte cultivada desde cedo, e que vai aos palcos para emocionar as plateias. Enquanto Billy Elliot sentia eletricidade quando dançava, Glenn e Hope, da Alvin Ailey, demonstram paz interior quando se apresentam. Na coxia, esperando tomar conta do palco, o nervosismo está sempre presente. Glenn acredita que dançar é um ato sagrado e merece ser dividido com o público: “Ficar nervoso antes do espetáculo é uma maneira de mostrar humildade”. Dezembro de 2013 | Cásper

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PRIVACIDADE 20

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a liberdade

vigiada

Espionagem na internet reacende a discussão sobre a segurança das informações e a falta de privacidade dos usuários Por Patrícia Homsi Ilustrações Nathalie Provoste

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m 1948, o autor britânico George Orwell terminava de escrever 1984, obra que retrata uma sociedade totalmente controlada pelos universais olhos do Grande Irmão. No contexto do livro, um aparelho similar à televisão se destacava na casa de Winston, o protagonista: “A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Todo o som produzido por Winston que ultrapassasse o nível de um sussurro muito discreto seria captado por ela; mais: enquanto Winston permanecesse no campo de visão enquadrado pela placa de metal, além de ouvido também poderia ser visto. [...] Era possível inclusive que ela controlasse todo mundo o tempo todo”. As recentes denúncias de Edward Snowden, ex-técnico da Agência de Inteligência Central (Central Intelligence Agency - CIA), sobre a espionagem da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (Na-

tional Security Agency – NSA) por meio do sistema de internet mundial revelou que o esquema de controle ditado pelo Grande Irmão de Orwell se tornou realidade no mundo atual. Os olhos e ouvidos do gigantesco controle invisível norte-americano estão voltados, inclusive, para o Brasil. O motivo, segundo Sérgio Amadeu, membro do Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI), seria a investigação da “posição econômica estratégica do Brasil, que controla as ações da Petrobras, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), entre outros gigantes da nossa economia”. A confirmação da espionagem norte-americana sobre o governo brasileiro revelou que a NSA possuía dados como a história e a movimentação da presidente Dilma Rousseff dentro do país. A descoberta forçou uma tomada de posição da presidente

e uma agitação em favor de projetos brasileiros relativos à governança na internet. O discurso de Dilma na 68ª Assembleia Geral das Nações Unidas abordou o âmbito mundial da transgressão dos Estados Unidos e a necessidade de se garantir a neutralidade da rede. “Sem privacidade, não há efetiva democracia”, declarou a presidente.

Bisbilhotagem Para o secretário municipal de cultura de São Paulo, Juca Ferreira, “não há atividade humana hoje que não esteja perpassada pela internet”. A recente destruição norte-americana da ideia de que a internet é um espaço livre e gerido por civis, e não pela polícia ou por outros órgãos de controle, fez com que os usuários dessa rede mundial de repente ficassem apreensivos. Julian Assange, fundador do site de vazamento de dados WikiLeaks, disse (via Skype) no seminário LiberDezembro de 2013 | Cásper

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dade, Privacidade e o Futuro da Internet, em setembro deste ano, que a liberdade desse ambiente virtual inacabado, onde protocolos e leis estão em constante evolução e mudança, está sendo ameaçada pela soberania norte-americana, “um superpoder que intercepta informações de 8 bilhões de pessoas e cada vez estende mais seus tentáculos”. Porém, para os envolvidos no tema, a espionagem e a utilização de dados sem autorização não são situações novas na agenda da internet, e muito menos no cronograma norteamericano. Essa “bisbilhotagem” do governo dos Estados Unidos remonta ao controle por soft power exercido pelo país na época da Guerra Fria. O soft power consiste na imposição da soberania de uma nação basicamente por meios culturais e de atração, em vez da utilização de força militar e opressão. Na Guerra Fria, a disseminação do american way of life, 22

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maior expoente do soft power norteamericano, e que resgatava a ideia de superioridade do capitalismo, era reforçada pelo acordo UKUSA (The United Kingdom - United States of America Agreement): os Estados Unidos, juntamente com Reino Unido, Canadá, Nova Zelândia e Austrália, formavam o Five Eyes (cinco olhos), um grande sistema de vigilância possível graças a um acordo firmado entre os cinco países. As denúncias de Snowden indicam que a operação Five Eyes perdura. Ainda hoje, 50 bilhões de dólares por ano são investidos na NSA, que, após um longo período teoricamente inativa, voltou a investigar possíveis ameaças aos Estados Unidos após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Além de agências, o governo norte-americano mantém intacta a lei da espionagem, proveniente do período da Segunda Guerra Mundial. Com relação a isso, Ju-

lian Assange analisa: “Barack Obama perseguiu mais jornalistas sob a lei da espionagem do que qualquer outro presidente dos Estados Unidos”.

As atitudes Mais perigosa ainda é a falta de jurisdição, de designação de fronteiras na internet. Foi revelado que empresas como Google, Facebook, Windows, Apple, Yahoo e Verizon fornecem os dados de seus usuários à NSA. “Está nos termos de uso do software. Não é necessário ter uma grande agência de espionagem para descobrir isso”, diz Pedro Ekman, coordenador do Coletivo Intervozes, que trata do direito à comunicação em geral. Segundo Pedro, os termos de usos abusivos dão a essas e outras empresas o direito de “pegar todo o conteúdo da comunicação de quem trabalha com os softwares proprietários delas para fazer com eles o que bem entenderem”. “Não é novidade que, quando você liga o com-


“A verdade é que há muito pouca regulamentação sobre acesso, manutenção e comercialização de dados pessoais, lá fora ou aqui no Brasil”

putador, eles entram na sua máquina”, afirma Sérgio Amadeu. Preocupados com a mediação norte-americana envolvida em suas ações online, os membros do CGI, o Coletivo Intervozes e alguns brasileiros interessados na regulamentação da internet se reuniram em ação popular pela criação do Marco Civil Regulatório, uma atitude mundial inédita, já que apenas países como Holanda e Chile haviam se mobilizado com relação ao assunto e instaurado diretivas de neutralidade da rede. “A verdade é que há muito pouca regulamentação sobre acesso, manutenção e comercialização de dados pessoais, lá fora ou aqui no Brasil”, diz Capi Etheriel, hacker e designer de games ativista pela causa dos softwares livres e dados abertos. De acordo com Pedro Ekman, “o próximo passo é aprovar um texto que garanta os três pilares na internet: a neutralidade das redes, a privacidade do usuário e a liberdade de expressão”. O Comitê Gestor da Internet, que idealizou a iniciativa, é multissetorial, sendo composto por membros do governo, de entidades empresariais, da academia e, principalmente, da sociedade civil. Segundo Sérgio Amadeu, o fato de o modelo brasileiro de governança da internet ser moldado pela participação direta de civis faz com que o país se posicione na vanguarda do pensamento mundial das redes. Embora a presidente Dilma Rousseff tenha decretado o caráter emergencial da votação do texto do Marco Civil Regulatório na Câmara dos Deputados, o projeto ainda não

havia sido votado até a data de fechamento desta edição. Para Pedro Ekman, “o foco é a aprovação do Marco Civil com um texto que não se volte aos modelos de negociação das grandes corporações e garanta os direitos e princípios dos cidadãos na internet”. Capi Etheriel tem ressalvas quanto ao Marco, que, segundo ele, deve abarcar ações polêmicas, como o direito patrimonial sobre obras digitalizáveis e a proteção de meios de comunicação online contra processos judiciais que visem a retirada de conteúdo. “Mas ter o Marco Civil Regulatório é melhor do que não têlo”, acredita Capi.

Os perigos Essa ação brasileira deve evoluir para um acordo firmado globalmente, ou esta seria a ideia do CGI. “Há dois modos de governança mundial em pauta hoje: um diz respeito ao controle das empresas de telecomunicação e o outro, à Organização das Nações Unidas (ONU). O problema é que, no caso da ONU, por exemplo, poderia ocorrer um veto de países como a China em leis fundamentais de garantia à liberdade”, analisa Sérgio. As empresas de telecomunicação, por sua vez, são contra o acordo de neutralidade da rede, que impede a mudança no tempo de carregamento de um site em detrimento de outro. Esta ação possui um mediador parcial e influencia a escolha de sites pelo usuário. Segundo o texto do Marco Civil, essa mediação seria proibida. Tereza Cristina Carvalho, livredocente em Engenharia Elétrica na

USP e pesquisadora do Laboratório de Arquitetura de Redes de Computadores (Larc) percebe duas questões fundamentais na discussão de privacidade e segurança na rede: o acesso mediante autorização do usuário e a captura de dados entre a conexão. Esses quesitos se cruzam quando se discute a segurança das informações do usuário e o envolvimento das empresas de telecomunicações na movimentação destes dados. A apropriação da NSA das informações de usuários de empresas desenvolvedoras de softwares, que possibilitam o redirecionamento e a configuração de dados a partir de instruções e códigos, levou ao entendimento (mundial) de que a informação se tornou uma mercadoria. De acordo com Capi Etheriel, é importante que, no caso de chefes de estado, exista um sistema de dados abertos à intervenção do cidadão, já que a máquina pública deve estar a serviço das pessoas. Porém, com base na vigilância internacional, a utilização de softwares proprietários por líderes de governo equivale à entrega de informações nacionais sigilosas, cuja mera revelação aos detentores da tecnologia pode render a perda de bilhões de dólares. Mesmo utilizando softwares livres, desenvolvidos fora das grandes corporações, ainda existe a ameaça de invasões com mecanismos mais sofisticados. A comercialização dessas mercadorias, porém, afeta não somente as grandes nações e empresas, mas também os leigos em computação, que, supostamente, não têm nada a esconder. Dezembro de 2013 | Cásper

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O fato é que, além da NSA, não se imagina o número e a qualidade de empresas que possuem acesso às informações civis. Planos de saúde, por exemplo, podem visualizar o conteúdo de exames pessoais enviados online. Negociações podem ser descobertas antes da hora. O que gera a paranoia é, exatamente, não haver o conhecimento de quem possui o quê sobre o usuário de softwares proprietários de grandes empresas. “Descrevemos nossa rotina com regozijo no Facebook. Entregamos todos os dados necessários a quem quiser ver”, observa Sérgio Amadeu. “Sabendo dos riscos, o que fazemos na internet passa a ser decisão nossa”, sublinha Tereza Cristina. “Por um lado, essa mudança também deve ser cultural. Ainda estamos acostumados a responder a questionários nas ruas ou por telefone, por exemplo”, pondera Capi Etheriel. Silvio Rhatto, pesquisador de tecnologias, que também esteve no seminário Liberdade, Privacidade e o Futuro da Internet, considera os sistemas de segurança na internet “inse24

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guros”: “Segurança e privacidade não eram prioridade na criação desses sistemas”. No entanto, há maneiras de se proteger da especulação informativa. A criptografia é uma delas. Esse método de tornar o conteúdo de uma mensagem ininteligível para mediadores mal intencionados funciona como uma fechadura dos dados de uma conversa. Somente quem possui a chave certa pode abri-la. Ou, como explica a professora Tereza Cristina, o processo funcionaria como a língua do P, código infantil mais básico com o qual é possível embaralhar uma mensagem. PÉ PcoPmo PesPconPder Pum PsePgrePdo Pdo PaPmiPguiPnho Pda PesPcoPla. Para alguns gigantes da comunicação, a língua do P pode ter a mesma efetividade. A NSA desenvolve as chaves criptográficas e as controla no âmbito do uso individual. É permitida, de acordo com lei norte-americana, a utilização de um algoritmo de proteção equivalente a 2 elevado a 64 bits. O problema é que este é facilmente identificado e combatido pelas cha-

ves de reconhecimento da NSA, de cujo poder nenhum software proprietário escapa.

Chave própria Sendo assim, proteger-se por meio de criptografia, de fato, necessita do desenvolvimento de uma “chave” própria. Hoje, isso ainda parece distante, mas, segundo Silvio Rhatto, “se um número suficiente de pessoas quiser usar tecnologias de privacidade, isso pode ser viabilizado”. O primeiro passo para a segurança de dados digitais seria o desligamento de softwares proprietários e a utilização de softwares livres, sem backdoors, ou seja, sem possibilidades de entrada de mediadores ilegais e desconhecidos na navegação. Na opinião de Capi Etheriel, ativista da causa, o desenvolvimento de tecnologias livres para a web e a viabilidade técnica desses projetos são maneiras de participar do processo de tomada da governança da internet, ocupando espaços virtuais com softwares livres. Mesmo assim, ainda há meios de


desbloquear ou rastrear as informações. Outro método mais acessível é a opção por trocas de mensagens por provedores alternativos, como o riseup.net. “É algo que pode ser feito por pessoas que não querem aceitar o fato de que a Google seja a dona de todos os seus dados, mas também não é o bastante. Não resolve ainda”, acredita Pedro Ekman, do Coletivo Intervozes. Atualmente, o anonimato absoluto na rede traz consequências inviáveis. “Se você quiser ter suas informações online totalmente preservadas, deve usar uma série de mecanismos que vão deixar sua operação na rede muito mais lenta. É uma tarefa que só um hacker conseguiria realizar”, afirma Pedro. Ainda que o usuário se proteja digitalmente, existe a possibilidade de sua máquina manter um dispositivo com o qual seja possível ter acesso às suas informações em tempo real. A Communications Assistance For Law Enforcement Act (Assistência Comunicacional pelo cumprimento da lei - CALEA), lei norte-americana

proveniente do governo de Bill Clinton, permitiria que houvesse a modificação estrutural de equipamentos tecnológicos, com vigilância e “proteção” garantidas pelos Estados Unidos no ambiente de rede.

Os controles Segundo Sérgio Amadeu, “precisamos garantir que nosso rastro digital não possa ser armazenado e processado sem o nosso consentimento”. Para isso, é necessário, primeiramente, admitir e nominar os autores que estão tornando a internet uma rede de comunicação e controle. O membro do CGI sugere até mesmo uma comparação com a sociedade do controle retomada por Gilles Deleuze e pesquisada por Michel Foucault: “A sociedade das câmeras sofria com a vigilância. A sociedade da internet, porém, é a sociedade do controle”, reflete. A sensação de insegurança proveniente do possível controle de mensagens de e-mail, fotos, publicações no Facebook e metadados (as informações básicas, mas muito re-

levantes, que desvendam o emissor e o receptor de uma mensagem) não pode significar uma parada total de utilização de meios digitais de rede. Para Silvio Rhatto, o ideal é simplesmente possuir uma “desconfiança que o leve à ação”. Mesmo com toda a paranoia em torno da comercialização e do uso de dados pessoais, os benefícios propiciados pela rede são reconhecidos. “A internet é valiosa demais e com frequência é preciso criar um compromisso das nossas seguranças em troca das riquezas que a rede oferece”, diz Capi Etheriel. Justamente no seminário sobre privacidade e segurança, por exemplo, o ultravigiado Julian Assange comunicou-se com os brasileiros via Skype, empresa parceira da NSA. Apesar de as denúncias apontarem para um sistema subjugado aos interesses de quem detém o poder tecnológico, nas palavras de Julian Assange, “essas interconexões entre todos nós dizem-nos quão próximos estamos uns dos outros. Elas são nossa estrutura como comunidade”. Dezembro de 2013 | Cásper

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ENTREVISTA

O jornalista na Rue de Rennes, local do atentado terrorista que o levou a se tornar um espiรฃo

FOTO: Franรงois chapel

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faces de um

repórter Patrick Denaud, que foi correspondente de guerra e espião do serviço secreto francês, conta como exerceu essas duas atividades simultaneamente Por Gabriela Boccaccio

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orrespondente de guerra internacional, espião e fotógrafo. Estas são apenas algumas das profissões que Patrick Denaud exerceu. Em seu livro de memórias Le Silence Vous Gardera (O Silêncio te Guardará, em tradução livre) lançado na França em 2013, a palavra investigação ganha outros significados. Durante oito anos, ele coletou dados como espião dos serviços secretos franceses – a DGSE (Direção Geral de Segurança Externa). Significa, entre outras coisas, que durante aqueles oito anos Denaud viveu duas vidas (ou duas batalhas): uma em que lutava para manter seus relacionamentos e outra em que lutava contra o terrorismo. O ano de 1986 foi um período sangrento em Paris. Uma série de 13 atentados do Hezbollah mataram 13 pessoas. Como jornalista, Patrick cobriu o último deles, no dia 17 de setembro, na Rue de Rennes. 7 mortos e uma consciência pesada o fizeram mudar de posição em 1992, quando enviou uma carta para a DGSE, com a esperança de uma resposta, ou até mesmo de uma contratação. Entre 1994 e 2002, participou de diversas missões, que resultaram em livros como FIS: Sa Direction Parle (1997, FIS:

Sua Direção Fala, em tradução livre), sobre um movimento argelino islâmico; e Kosovo: Naissance D’Une Lutte Armée UCK (1998, Kosovo: Nascimento De Uma Luta Armada), em que relata a independência do Kosovo. O que o levou a servir à DGSE? Em um caso como o do atentado da Rue de Rennes, de 1986, o que você normalmente faz como jornalista? Conta o número de vítimas. O fato era que as coisas que vi no Iraque e no Paquistão estavam acontecendo em Paris. Naquele momento, percebi que o terrorismo era a coisa mais detestável que existia e esse foi um dos fatores que me fez entrar em contato com os serviços secretos. Além de ter um conhecimento sólido do mundo muçulmano, eu já tinha passado bastante tempo ao lado dos talibãs e podia usar minhas competências para ir além da simples contagem de mortos. Ou seja, começar a agir mesmo. Porque, como jornalista, confesso que me sentia um charlatão, desses que se aproveitam da miséria do mundo e das pessoas para ganhar o seu dinheiro. Eu questionava mesmo essa “bipolaridade”. De um lado, houve Dezembro de 2013 | Cásper

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esse atentado, que me chocou e me fez perceber o que era o terrorismo; de outro, havia a profissão de jornalista, que não me levava a nada. Você passou por um estágio de formação para tornar-se espião. Em que consistia essa etapa? Fui contratado por já ter experiência em zonas de conflito. Eu já era bem formado no mundo da guerra. Quando fiz o estágio na DGSE, eles sabiam muito bem que eu podia até lhes ensinar coisas. O estágio era mais para mostrar as medidas de segurança e como funcionavam os serviços secretos; ser capaz de perceber se estou sendo seguido, se microfones estão implantados no meu quarto, etc. Um serviço secreto deve colocar em prática o maior número de procedimentos de segurança. Por exemplo, toda vez que eu voltava de alguma missão importante, de Londres ou de Bruxelas, onde eu havia conversado com integrantes da FIS (Frente Islâmica de Salvação), eu me reunia com Jacques, meu intermediário, e montava um esquema de segurança para o caso de alguém estar me seguindo. Essas medidas parecem inúteis em 99% dos casos, mas é dentro do 1% que elas podem salvar sua vida. Você precisa ignorar esses 99% e pensar somente na sua segurança. Ao longo de sua carreira na espionagem você escreveu vários livros, como FIS e Kosovo. Neles, você teve liberdade para incluir o que quisesse? Não, de jeito nenhum. E quando decidi mergulhar na espionagem eu não era mais jornalista. Apenas usava o disfarce, mas, na verdade, eu era um espião a serviço dos serviços secretos franceses. Toda vez que eu escrevia um livro, tinha que omitir certas coisas, claro. Quando você é um agente secreto, a dificuldade é que você nunca sabe exatamente o motivo de se eliminarem certos dados. Nunca tive nenhuma informação sobre esse procedimento, aliás. Nunca sabia qual seria o uso das informações que eu coletava. Eu ficava disfarçado de correspondente de guerra, mas agia para a DGSE, e os livros eram sempre encaminhados para lá antes da publicação. Era ela quem determinava o que podia ser usado e o que devia ser omitido. Um agente secreto é na verdade um bom soldado; e, quando você é um bom soldado, você obedece. Para escrever esses livros, você teve que se infiltrar em ambientes perigosos. Psicologicamente, como se sentia? Em um dado momento, não sabia mais o que eu era, porque, no fundo, ainda me sentia um pouco jornalista. Então, publiquei livros que precisavam ser consistentes para conseguir sustentar o meu disfarce. Aconteceu com o movimento argelino da FIS, por exemplo. Os serviços 28

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secretos pediram que eu me infiltrasse no movimento e recuperasse o maior número possível de informações. A única maneira de fazer isso era estando em contato com eles enquanto produzia o livro. Tive de convencê-los a aceitar. Às vezes me sentia traindo os jornalistas, meus amigos. Era desconcertante. Nessas horas, o Jacques intervinha. Por isso recebemos o acompanhamento de um psiquiatra, com quem nos encontramos para conversar e colocar as ideias no lugar. Em um desses encontros com um psiquiatra você foi diagnosticado com Síndrome de Lima, em que a pessoa cria uma relação de compaixão com suas vítimas. Como isso se manifestava nas suas missões? Eu convivia com pessoas difíceis frequentemente. Não posso dizer que eu desenvolvia uma relação de amizade com as minhas fontes, mas criava vínculos fortes. Mesmo ciente das orientações que os especialistas me davam, era difícil aceitar que os laços criados às vezes tinham de ser cortados abruptamente. Mas, de novo, Jacques intervinha, aconselhava, dizia que tudo aquilo era por uma boa causa: a luta contra o terrorismo, contra o radicalismo político islâmico, contra a morte. Você ficou satisfeito com sua contribuição? Minha vida de agente secreto começa e termina com um atentado. Entre esses dois eventos muitas outras coisas aconteceram. Acredito que participei ativamente. As informações que eu trazia impediram pelo menos um atentado. Além do mais, os dados que obtive ajudaram o governo francês. A gente se torna espião também por patriotismo... Sua carreira se encerrou abruptamente com o atentado de Karachi, no Paquistão, em maio de 2002. Como foi isso? Em março daquele mesmo ano eu já estava em Karachi. Ao entrevistar um sujeito chamado Ahmed, do Tanze(e) mul Party, um partido proibido e próximo ao Al-Qaeda, entendi que muitos interesses franceses estavam em risco. Voltei para a França, fiz um relatório detalhado e comuniquei à minha “intermediária”, que, naquela época, não era mais o Jacques, mas a Véronique, uma mulher jovem. Eu disse que era preciso tomar cuidado, pois os interesses franceses corriam perigo. E no dia 8 de maio sofremos o atentado. Fiquei sem rumo, me perguntando: por que não protegeram os cidadãos que estavam lá? Não sei se havia alguma questão política por trás, mas o fato é que eu havia passado oito anos da minha vida em perigo e, de repente, eu estava fora (ele foi demitido justamente por ter reclamado sobre a falta de vigilância). Embora seja esta a regra do jogo, não consegui lidar muito bem com isso, na época.


Em suas memórias, Denaud detalha os oito anos dedicados à DGSE

FOTO: acervo pessoal/ patrick denaud

Juntamente com Jacques, seu primeiro “intermediário”, você chegou a montar o projeto de uma agência de notícias para os serviços secretos. Por que a ideia não vingou? Nunca soube por que não deu certo. Eu tinha sido presidente do Sindicato Nacional das Agências de Notícias. Tive vários encontros. Seis meses de trabalho foram por água abaixo. Qual o verdadeiro motivo? Ignoro, não sei. Pensei muito a respeito. Não era fácil para mim fundar uma agência que, no fim das contas, era para os serviços secretos franceses. Até mesmo pelo fato de eu ter sido presidente do Sindicato. O objetivo era a luta contra o terrorismo. Não era uma coisa qualquer. Como é a imagem de um espião na França? É um tabu na imprensa francesa. Por exemplo, Albert Londres, um grande jornalista francês, um dos maiores do país. O prêmio que leva seu nome é almejado por jovens jornalistas. Ele tinha muito talento e também trabalhou nos serviços secretos, assim como muitos outros jornalistas (talvez não da mesma forma que eu, mas tinham contatos e forneciam informações). Quando você é jornalista, coleta informações e as publica; quando você é espião, as informações têm outros destinos. Jornalista, voluntário, geólogo... Não existem muitos disfarces para ser espião em zonas de conflito. Você pretendia mudar essa visão sobre os serviços

secretos com a publicação de seu livro de memórias? Precisava mostrar para as pessoas que o trabalho de um espião não é como o do 007, com armas. É um trabalho difícil. Queria desmistificar a imagem do espião. É a primeira vez que falamos abertamente disso. Outros agentes secretos escreveram livros, mas a DGSE sempre estava por trás e eles não podiam narrar suas histórias com sinceridade. Eu precisava contar tudo sobre o período que absorveu oito anos da minha vida. Antes de se tornar espião, você foi correspondente, mas sua formação é em cinema e psicologia. Por que o jornalismo de guerra? Acho que ser correspondente de guerra é uma experiência muito peculiar, mas não sei ao certo o que me fascinou. Eu pensava que filmar a guerra podia ajudar a erradicála, o que era completamente utópico. Além disso, havia o fator da aventura: atravessar o Afeganistão a pé, por exemplo. Isso marcou minha vida. Toda experiência era nova, e as pessoas eram simplesmente surpreendentes. Quando comecei a trabalhar com jornalismo de guerra, eu gostava das figuras que encontrava. Personagens sinceros, que colocavam tudo a perder, e muito autênticos. Os correspondentes de guerra, os mais famosos e os que conheci, eram loucos em pequena escala (risos). Eu não sei se eu era atípico, mas as pessoas que encontrei eram. Quando criança, adorava Tintin. Acho que foi ele que me levou a ser a pessoa que sou hoje. Dezembro de 2013 | Cásper

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LIVROS

CRIAÇõES

EDITORIAIS Em um mercado dominado por gigantes, as pequenas editoras apostam em produções artesanais e novas possibilidades de leitura Por Thaís Helena Reis

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las disputam espaço com as grandes editoras de livros e apostam em publicações nas áreas de humanidades e arte, mas também em assuntos bem específicos, às vezes sem uma grande expectativa de rentabilidade. Elas quase sempre são de pequeno porte e, por funcionarem de maneira diferente, muitas são descobridoras de talentos. A diversidade das chamadas “editoras independentes” contribui de forma significativa para o mercado editorial brasileiro e sua cultura. A maioria delas trabalha com publicações para nichos específicos: a editora Estação Liberdade possui publicações japonesas e a Companhia de Freud publica livros de autores psicanalistas. Algumas possuem técnicas de encadernação manual e artesanal; outras investem em audiolivros e e-books. Os projetos são cuidadosamente pensados, e as tiragens, pequenas. 30

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A Editora Maco, criada em 1986, é especializada em livros para crianças. Suas obras seriam completamente normais, com histórias e ilustrações como em qualquer livro infantil convencional, exceto por um detalhe: todas são feitas de pano. A ideia surgiu originalmente quando Irles Carvalho, a fundadora, teve seu primeiro filho. Na época, havia livros de pano para comprar, mas eles eram importados de Portugal. Quando criança, Irles teve acesso a livros de tecido, e não hesitou em comprá-los para seu primogênito.

Grandes ideias Esse tipo de livro, com o tempo, desapareceu. Incomodada com isso (e pensando em seu segundo filho também), ela resolveu produzi-los. Em 1982, aliás, já costurava os próprios livros de pano para ele. Seu trabalho logo chamou atenção e as várias encomendas que recebeu

a incentivaram a abrir a Maco. “A gente adquire o tecido, eu crio as histórias e os ilustradores fazem os desenhos. Depois disso, os tecidos são recortados e costurados, dando forma a uma história sem papel. Por utilizarmos pedaços de pano, as possibilidades de criação dos livros são maiores do que se eles fossem feitos com o material tradicional”, detalha. Segundo Irles, isso é possível porque o pano é um material mais resistente que o papel. Pode-se fazer com ele coisas que em papel seriam impossíveis: “Nós podemos cortar em várias partes a página de pano do livro, mas os pequenos pedaços não rasgam, permanecem intactos. Dessa forma, é possível dobrar, costurar e fazer as atividades propostas sem uma preocupação excessiva com resistência e durabilidade”. Assim, fica mais fácil as crianças se lembrarem dos livros, diz Irles: “Elas estão familiarizadas com o


ILUstração: sxc.hu/ BILLY ALEXANDER

pano desde que nasceram. Têm a memória do toque no tecido. Além disso, o pano torna o produto bem diferente”. A criança está naturalmente acostumada a desenhar e escrever no papel, mas, quando tem a oportunidade de fazer isso no pano, conquista uma experiência nova. Um dos maiores sucessos da Maco é O Livro do Canguru, indicado para crianças na faixa dos três anos de idade, quando começam a desenvolver a “coordenação motora fina”. No livro, estão costurados zíperes, botões, fivelas e colchetes. O objetivo é, a partir da leitura e da interação, ajudar a criança a aprender a se vestir. Não há limites para a inovação nessas editoras independentes. A Livro Falante, de Sandra Silvério, fundada em 2006, é especializada em audiolivros. Na época, ela não dispunha de um estúdio de gravação próprio e, durante um tempo, precisou terceirizar essa parte do trabalho.

Mas o resultado nem sempre saía como ela queria. “Eu pagava caro e não tinha qualidade: os donos de estúdios normalmente lidam com música, não com palavras.” Contratou então um projetista e construiu um estúdio próprio dentro da editora.

Equilíbrio e igualdade Em seu catálogo há obras de literatura adulta e infanto-juvenil. A cada novo projeto ela estima o número de locutores de que vai precisar para compor o áudio: “No geral, faço com um narrador só, ou seja, uma única pessoa lê em voz alta a obra inteira. Em alguns casos, porém, foi necessário mais de um locutor”. Para o projeto de um romance em audiolivro no qual os personagens diziam coisas difíceis de diferenciar, trinta atores participaram das gravações. A Livro Falante se dedica também a obras espíritas – um de seus maiores mercados – e de História. O potencial

do audiolivro em relação ao livro em papel é grande. História da Ópera, por exemplo, é um compilado de informações sobre esse gênero musical em diferentes épocas. Trechos das canções foram postos junto de suas respectivas explicações, para que o ouvinte possa comparar cada um dos áudios com as informações contidas. Setenta trechos são mostrados. “É diferente de você ler um livro que fala das ‘características da ópera’. No áudio, os trechos de óperas entram na sequência da característica apontada.” A Livro Falante não tem a pretensão de crescer, assim como outras editoras vinculadas à Liga Brasileira de Editoras (Libre, fundada em 2002). O surgimento da Libre, atualmente com mais de 100 associadas, deveuse a um evento que contava com a participação de diversas editoras independentes que, na cidade do Rio de Janeiro, reuniram-se para criar a Primavera dos Livros, com exclusiva Dezembro de 2013 | Cásper

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“A diversidade de livros está constantemente ameaçada pelo imenso espaço físico e mercadológico ocupado pelas grandes editoras e seus best-sellers” participação de pequenas editoras. Aproveitando o sucesso do evento, as editoras resolveram se organizar em torno de ideais e objetivos afins. A Libre hoje é “uma entidade específica de organização das independentes”, segundo Haroldo Sereza, presidente da Libre e sócio da Alameda Casa Editorial. “Estávamos defendendo

uma bandeira que já começava a ser formulada internacionalmente, que é a Bibliodiversidade”, lembra. O termo é uma espécie de “equilíbrio ecológico de livros”. Segundo Haroldo, a diversidade de livros está constantemente ameaçada pelo imenso espaço físico e mercadológico ocupado pelas empresas de gran-

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foto: vitor vogel

Primavera dos Livros, evento associado à Liga Brasileira de Editoras (Libre)

de porte. “O mercado de livros hoje tende a afugentar essa diferença, por uma série de questões de organização da lógica do capital e de venda de espaços em livrarias, uma lógica que afasta as editoras pequenas e os livros feitos por elas.” Combatendo a venda de espaços nas livrarias para exposição de obras, as pequenas evitariam que uma grande parcela do mercado fosse ocupada apenas por lançamentos de grandes editoras. A ideia era que todos os livros disponíveis tivessem uma igual – ou parecida – possibilidade de serem vistos, pesquisados e comprados. “É preciso criar mecanismos para que toda essa diversidade, qualidade e especificidade da produção literária brasileira esteja visível ao público e não se perca”, explica Sereza. Outra medida de proteção do livro defendida pela Libre é a fixação de preços. Segundo Sereza, o chamado Preço Único do Livro consiste em estabelecer um determinado preço de modo que, durante certo período, ele não possa ser vendido com muito mais de 5% de desconto nas livrarias. Isso evitaria grandes promoções e permitiria uma concorrência mais leal. Haroldo diz que um best-seller tem “proporção insignificante” em relação aos demais títulos: “Mas a pressão que ele faz no mercado em termos de ocupação de espaço físico, aliada a seu baixo preço, faz com que os outros livros tenham mais dificuldade de circular e por isso ficam com preço igual ou superior ao que já possuíam”. Embora a política do Preço Único ainda gere controvérsias, Haroldo acredita que, pelo fato de não haver grandes promoções, a circulação literária aumentaria e a concorrência levaria à redução do


Foto: Divulgação Studio Trend

Rafael Cortez na gravação do audiolivro O Meu Pé de Laranja Lima

preço de todos os livros, e não exclusivamente de uns poucos. O mais famoso evento associado à Libre é a Primavera dos Livros, que segue a lógica de grandes feiras, como as bienais internacionais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Desde seu início, a lógica da feira foi pensada e organizada por 54 editoras. Em um grande evento, como uma Bienal, as editoras independentes podem simplesmente desaparecer em meio aos estandes das grandes. Na Primavera, o espaçamento é planejado para que haja uma interação entre empresas de portes diferentes. O catálogo da edição de 2012 traz a informação de que todos os estandes “são iguais, elegantes e sem exageros, permitindo o foco do visitante no livro”. Cada editora participante da Primavera dos Livros tem direito a, no máximo, dois estandes. Significa que uma editora só pode conseguir um espaço duas vezes

maior que a da concorrência. “Assim, a gente cria uma condição de igualdade, mas também de competição, na prática”, acredita Haroldo. “Além disso, a feira tem uma programação cultural muito bacana.” Haroldo vê na Primavera uma possibilidade de redescoberta da livraria.

Surpresa e diversidade E, na visão dele, o público já reconheceu a Primavera como um lugar onde se pode escolher os livros que se quer comprar, sem a indução dos mecanismos de marketing que “as livrarias usam de modo excessivo”. “A livraria deixou de ser um lugar de observação e descobertas. A Primavera, então, resgatou essa ideia de diversidade, de surpresa do livro, o que é muito importante para o próprio produto.” Sandra Silvério acredita que a Primavera, por estar vinculada à Libre, tem importante papel para as

editoras independentes. Além disso, Sandra defende que a Primavera é “importante para o público experimentar a bibliodiversidade”. O evento ocorre todos os anos no Rio de Janeiro e em São Paulo. A consolidação no Rio foi mais ágil, já que desde o início existia a colaboração e o interesse da prefeitura em apoiar. “A do Rio certamente é maior”, explica Haroldo, “porque a feira de São Paulo ainda é muito pouco tradicional. Já no Rio, o evento virou a ‘grande feira do livro’ depois da Bienal. Em São Paulo, já é diferente. Aqui a coisa é um pouco mais errática”. Esse ano, o evento máximo da bibliodiversidade foi organizado na Praça Dom José Gaspar, localizada no centro de São Paulo, em novembro. “As pessoas são apaixonadas por isso”, diz Sandra. “Os donos das pequenas editoras estão tendo lá suas dificuldades, mas continuam produzindo e identificando talentos.” Dezembro de 2013 | Cásper

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PORTIFร LIO 34

terra O humano e a

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Além dos cartões postais da Chapada Diamantina, o jornalista e fotógrafo Guilherme Burgos apresenta o Assentamento Baixão, local que se confunde com a natureza bruta e a simplicidade de seus habitantes Por Leandro Saioneti Imagens Guilherme Burgos

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A Cachoeira Encantada, de 230 metros de altura, chega a ficar sem água em épocas de seca

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Adevandro de Almeida: o olhar sobre o sertão infinito

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m seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), o fotógrafo e ex-estudante de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero Guilherme Burgos apresentou um fotolivro sobre o Assentamento Baixão, propriedade próxima ao Parque Nacional da Chapada Diamantina e lar de diversas famílias de baixa renda. Com duração de dois anos, o trabalho de Burgos “procurou mostrar que lugar é esse e quem são as pessoas que dormem ao lado do paraíso”. Nas viagens ao Estado da Bahia, sua terra natal, Burgos mostra a Chapada Diamantina por um ângulo diferente, de dentro. Ele foi até uma comunidade semterra, que, embora sobreviva da agricultura familiar de subsistência, deseja que o turismo funcione na região como fonte de renda promissora. O contraste chama a atenção: a Chapada é um dos principais destinos turísticos na Bahia, mas muitas pessoas ficam à margem dessa atividade; gente que não está nem nas revistas nem nos cartões postais. As imagens mostram essa diversidade,

permitindo que as pessoas se vejam e se reconheçam como integrantes daquele patrimônio natural. Guimarães Rosa escreveu em Grande Sertão: Veredas: “O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas estão sempre mudando”. E o homem do Baixão segue o ensinamento do escritor-mestre. Transforma-se, entre o chão batido e o céu azulado, em sua busca por uma vida melhor e um espaço para chamar de seu. E a paisagem, estática, revela um cenário sem preconceitos. Simplesmente puro, bruto. As imagens que compõem este portfólio nos afastam da realidade cotidiana das grandes cidades; expõem as rotinas e o sonho da conquista. Guilherme Burgos, com uma visão apurada, constrói uma obra sem a pretensão do status de “artística” ou algo do gênero. Apenas arquitetou um perfil. Sem palavras, ideias ou frases soltas. Um perfil do ser humano em sua terra – o Assentamento Baixão.

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O espaço comum é o chão de terra batida, do campo de futebol aos quintais das casas

A água vem direto da serra, pura, e o sinal de TV é o contato com o mundo

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Detalhe do vale da Cachoeira Encantada, a oito quil么metros do Assentamento

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Como se estivessem sempre Ă espera de alguĂŠm, os bancos e cadeiras se misturam a fachada das casas

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Rosa Martins, entre a fé e a paisagem estática do Baixão

“Com este trabalho, percebi como é delicado tratar da vida de alguém, a pobreza sem ser dramática, a dificuldade a ser vencida, a alegria pela esperança” Guilherme Burgos

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TEATRO

cena dramaturgos em

O meio teatral paulistano, predominantemente coletivo, vive um processo de valorização de jovens autores Por Mariana Marinho

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um café na esquina da avenida Paulista com a alameda Joaquim Eugênio de Lima, Alexandre Dal Farra tentava abrir uma garrafa d’água com os dentes. “Com um filho de seis meses você nunca tem as duas mãos livres”, brinca. A cabeleira castanha desgrenhada e a farta barba quase escondiam os olhos verdes que, por trás dos óculos, ora observavam o frenético movimento dos carros, ora focavam, reflexivos, em pontos além do horizonte. Formado em Música pela Faculdade Santa Marcelina e em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Dal Farra deixou, há cerca de oito anos, o baixo e o trabalho de diretor musical para escrever as peças do Tablado de

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Arruar, grupo formado em 2001 com o objetivo inicial de trabalhar com teatro de rua. “Quando eu escrevi um texto e uma atriz o leu na rua, no mesmo dia, e uma galera se juntou para ouvi-lo, achei incrível. Muito mais comunicativo, muito mais possível. Descobri que sou melhor escritor do que músico. Eu sabia que tinha alguma coisa para dizer, mas eu estava num lugar meio errado”, relembra. Aos 32 anos, Dal Farra pertence à geração de novos dramaturgos paulistanos cujos textos têm se destacado na cena teatral da cidade. Em 2012, partindo de referências a Bartleby, o Escriturário, de Herman Melville, e Crime e Castigo, de Dostoiévski, Dal Fara criou a trama de Mateus, 10,

sua sexta peça, que, com mais de 45 apresentações em três temporadas, lhe rendeu o Prêmio Shell de Melhor Autor 2012. Num pequeno espaço com poucos elementos cênicos, se desenrola a crise do pastor Otávio. Obcecado pelo texto bíblico Mateus, 10, Otávio passa a pregar uma nova doutrina e leva sua obsessão a níveis extremos, levantando questões como a culpa, a alienação e a fé.

Autor, eu? Como? Pode soar estranho para ouvidos menos acostumados ao teatro, mas Nelson Rodrigues (1912-1980) e Plínio Marcos (1935-1999) não foram os únicos – tampouco os últimos – a escreverem para teatro no Brasil. Entretan-


FOTO: divulgação/o silêncio depois da chuva

Atores na peça O Silêncio Depois da Chuva, de Gustavo Colombini

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Agruras - Ensaio sobre o desamparo, de Rudinei Borges, aborda a ausência paterna

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com aulas ministradas pelo dramaturgo e diretor Roberto Alvim.

Diversidade e desafio Para o dramaturgo Gustavo Colombini, 23 anos, a criação de escolas de dramaturgia é uma forma de revalorização do texto dramático. Porém, pondera que todo autor teatral deve levar em conta suas experiências e sua formação pessoal. “Uma espécie de faça você mesmo”, diz. “De qualquer forma, acho que esse olhar para a dramaturgia é inédito. Estamos formando muitos dramaturgos e as pessoas estão se interessando por nós.” Integrante da terceira turma do Sesi-British Council, Colombini teve seu texto O Silêncio Depois da Chuva escolhido entre as peças de outros

FOTO: chritiane forcinito

to, nos últimos anos o “dramaturgo de gabinete” praticamente não encontra um lugar de expressão. A maioria dos projetos estava focada no trabalho de diretores, companhias e grupos, e na captação de verba por meio de leis de fomento e editais públicos. Além do predomínio do teatro coletivo, outros fatores foram responsáveis por obscurecer um pouco o típico autor de teatro. Entre eles, está a ausência de bons cursos de dramaturgia. Na capital paulista, porém, a mudança começou a ocorrer há cerca de seis anos com a criação do Núcleo de Dramaturgia Sesi-British Council, em 2007; da SP Escola de Teatro, em 2009; do curso de dramaturgia do grupo Os Satyros, também em 2009; e do O Club Noir, no ano seguinte,

doze jovens autores para ser montado, em 2011, pelo diretor e também dramaturgo Leonardo Moreira, da cia. hiato. Por meio de fragmentos, o espetáculo coloca em cena o drama de uma família cujo pai está escondido num porão. “Parti dos registros da minha própria família e de elementos encontrados na dramaturgia de Michel Vinaver [dramaturgo francês]. É um drama que não se apresenta em sua completude. Ele está esburacado e cabe ao público completar as lacunas que se formaram”, diz, antes de reparar no frio e tornar a encher os copos de cerveja. “Está ventando gelado, hein?” Mesmo entendendo que as escolas de dramaturgia desempenham um papel importante no surgimento de novos dramaturgos, Rudinei Borges, 30 anos, acredita que o teatro é a melhor escola. “As escolas acabam por criar características estéticas muito parecidas. A dramaturgia precisa ser tomada de diversidade, de desafio e de ousadia. O dramaturgo tem que ler outros dramaturgos, mesmo que ele os imite no começo, para buscar sua própria voz. É preciso estabelecer uma relação profunda com o teatro”, opina. Nascido em Itaituba, interior do Pará, Borges construiu sua relação com o teatro a partir da vivência com o coletivo, com o rústico e com a literatura – ele também é poeta. “Aquela coisa de tecido de algodão, de criança vestida de anjo com asa de isopor e peninha”, ilustra. Em 2013, aliando cultura popular e imaginário, nasceu a peça Dentro é Lugar Longe, escrita a partir da história oral dos artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima, que durante um ano desenvolveu uma pesquisa em torno do projeto “Plantar no ferro frio do ônibus o ninho”. A encenação, ocorrida num ônibus em movimento pelo centro de São Paulo, surgiu como forma de potencializar a ideia de partida, que, ao mesmo tempo, é chegada. Agora, Borges se dedica a


Agruras – Ensaio Sobre o Desamparo, espetáculo do Núcleo Macabéia, que ficou em cartaz no Teatro Heleny Guariba, na Praça Roosevelt. Apesar de a cena teatral paulistana se mostrar pulsante, com jovens autores dispostos a experimentar diferentes linguagens e elementos dramáticos diversos, ela ainda enfrenta um problema de formação de público e de captação de recursos, dois velhos conhecidos da história do teatro brasileiro. Alexandre Dal Farra acredita que o Programa de Fomento ao Teatro – estabelecido em 2002 pela Lei 13.279, com o objetivo de apoiar a criação de projetos continuados de pesquisa e produção de grupos teatrais –, poderá criar possibilidades reais de elaboração de espetáculos. “Não acho uma lei restrita. Acho que é o que de mais democrático dá para ter. E a democracia tem limites. Agora, acho ruim que ela exija a formação de um grupo, porque engessa os projetos. Às vezes, um projeto de

continuidade é de uma pessoa e não de uma companhia”, reflete. Com relação à dificuldade de formação de plateia, uma pesquisa Datafolha divulgada em julho de 2013 mostrou que, embora o teatro receba públicos de diferentes faixas etárias, quem mais o frequenta, em São Paulo, têm entre 16 e 40 anos de idade. O número de pessoas que não assiste a espetáculos teatrais na cidade é alto em todas as idades: 47% das pessoas entre 16 e 25 anos não vão ao teatro; e, entre 26 e 40 anos, 60% não frequentam.

Arte do momento “Em 2002, havia o programa Formação de Público, mas, infelizmente, acabou. Fazemos peças incríveis, temos um fomento de 600 mil reais para trabalhar com a peça durante dois anos e fazer o que quiser no palco. Mas fazemos o que queremos mesmo. Porque ninguém está vendo. Você pode cagar na estátua do Lula, se for contra ele, pode metralhar o

Sarney, no palco, e ninguém verá. Isso, para o teatro, é muito triste, porque ele é uma arte que ocorre no momento em que é feito”, observa Dal Farra, recentemente aclamado pelo livro Manual da Destruição, lançado no início de 2013. Ele acredita ser necessário um esforço por parte do Estado para propor projetos que insiram o teatro na vida das pessoas: “Mateus, 10 ganhou o prêmio Shell, mas não ‘bombou’. A peça é difícil, trash. Um público de teatro não precisa ser culto, mas precisa ter experiência com teatro para aguentar a porrada e estar ali com certo sentido de pertencimento. Isso não se faz com Vale Cultura, mas com programas mais propositivos, como se apresentar em escolas e incentivar cursos de teatro. Nesse aspecto, sou conservador. Porque, querendo ou não, gostar de teatro tem relação com ter feito um pouco. É como futebol: ir ao jogo tem a ver com ter jogado futebol na rua e entender as regras”, analisa.

FOTO: otávio dantas

Mateus, 10 rendeu a Alexandre Dal Farra o Prêmio Shell de Melhor Autor 2012

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Em Os Adultos Estão na Sala, de Michelle Ferreira, três mulheres misturam suas neuroses

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forma, com o “umbiguismo” que o rodeia. “Não há nada pior do que um teatro ruim, que não se preocupa com o público, que faz egotrip em cena. A pessoa não volta mais, mesmo. O teatro merece um lugar popular, de democracia, no qual um maior número de pessoas consiga estabelecer um contato com o que está sendo apresentado. Cada um estabelece o contato que lhe é possível, com o repertório que tem”, afirma, entre um cigarro e outro, no camarim do Teatro Tusp momentos antes da penúltima apresentação da peça Os Adultos Estão na Sala, primeira montagem da Má Companhia Provoca. Em cena, três mulheres circulam por um apartamento e misturam suas neuroses pessoais às inquietações contemporâneas.

Indo além dos dois problemas clássicos enfrentados pelo meio teatral brasileiro, o dramaturgo Alexandre Dal Farra aponta outras questões, ou melhor, outras “patas do ornitorrinco”, que precisam ser “desatrofiadas”. “O teatro em São Paulo é como um ornitorrinco que tem uma pata gigante e carnuda que funciona muito bem, chamada produção. A criação é realmente algo incrível. Porém, as outras patas do ornitorrinco não existem: não há incentivo para a criação de público e não há fomento para divulgação no sentido de crítica teatral. Mal há espaço nas publicações. Ou seja, o teatro paulistano é um bicho gordo que se arrasta com uma pata só. É um bicho gordo, mas bonito”, ri.

FOTO: Ligiane braga

“Tenho medo de achar que a classe teatral faz teatro para ela própria, porque isso seria horroroso e não teria um propósito”, Colombini contrapõe. Ele enxerga que há uma clara divisão entre teatro independente e teatro comercial. “O musical A Madrinha Embriagada, por exemplo, custou cerca de 12 milhões e está sempre lotado. O mesmo acontece com os espetáculos musicais do Teatro Bradesco. Existe, realmente, um problema de formação de público, mas para um outro teatro”, argumenta. Para a dramaturga Michelle Ferreira, 31 anos, autora das peças Tem Alguém Que Nos Odeia e Os adultos Estão na Sala, ambas em cartaz no segundo semestre de 2013, a marginalização do teatro está relacionada, de certa



CULTURA

Ilustração de Marcelo Braga, que integrou o livro Ícone dos Quadrinhos, viabilizado através de crowdfunding

ilustração: marcelo braga

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Poder do

PÚBLICO

O sistema de financiamento coletivo ganha adeptos no Brasil e viabiliza projetos independentes, estreitando as relações entre os autores e o mercado Por Leandro Saioneti

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maginação e criatividade. Desde as primeiras pinturas nas cavernas e a descoberta do fogo, esses dois componentes subjetivos têm-se mostrado importantes ferramentas naturais na formação da cultura humana. O quadro As Meninas, de Velázquez, a Nona Sinfonia, de Beethoven, os versos de Paulo Leminski e as canções do “poetinha” Vinícius de Moraes são apenas alguns exemplos. O processo de criação, independentemente da área e da extensão, parece não encontrar limites. Da produção de um cordel para crianças a uma roda de samba no Rio de Janeiro, passando por uma websérie sobre um apocalipse zumbi, o ato de criar vive uma época de expansão na qual a “liberdade de pensamento” é algo palpável. Mas, infelizmente, tanto a imaginação quanto a criatividade perdem força frente a um obstáculo dos tempos modernos: a burocracia do capital. A maioria dos projetos independentes – muitos deles originais – de literatura, dança e cinema, por exemplo, tem pouco ou nenhum auxílio financeiro, seja por parte do setor privado, seja por parte do Estado. Muitas vezes, os próprios autores têm de aplicar o recurso para que os trabalhos cheguem ao grande pú-

blico – e este, por sua vez, sempre afogado por produtos da indústria de massa, acaba desconhecendo uma enorme variedade de obras de bom conteúdo. Mas já existe um caminho alternativo para tentar minimizar esse problema: o crowdfunding.

A alma do negócio Referido no Brasil como financiamento coletivo, o crowdfunding é um sistema que permite que autores postem em determinados sites os seus projetos (majoritariamente independentes), que, assim, tornam-se visíveis para os usuários da rede. Se a ideia parecer interessante, as pessoas podem dar uma contribuição em dinheiro para ajudar o autor. “O que fazemos, de fato, é cobrir as lacunas, falhas e vícios dos sistemas clássicos de financiamento. Entramos onde falta agilidade e sobra burocracia”, diz Felipe Caruso, coordenador de comunicação do Catarse, um dos principais portais de financiamento coletivo que atuam em território brasileiro. O formato pode ser compreendido como uma adaptação do sistema que hoje movimenta ações filantrópicas - por exemplo, Teleton e Criança Esperança -, nos quais as pessoas doam quantias até que a meta seja

atingida. No crowdfunding cada valor doado pelo usuário equivale a um respectivo “prêmio” – da simples inclusão do nome do apoiador na lista de agradecimentos até uma participação direta do indivíduo no projeto. A proposta, no entanto, tem de estar bem elaborada. “Além de interessante, a ideia deve ser formulada claramente e com um orçamento bem pensado. Um vídeo de apresentação convidativo também é importantíssimo, assim como informar as possíveis ‘recompensas criativas’ para os apoiadores”, sugere Caio Ciampolini, um dos fundadores do Startando. Inaugurado este ano, o site é o responsável pelo financiamento da festa Holi Festival das Cores, um dos principais projetos de crowdfunding já realizado no país. E o Catarse, criado há três anos, já ajudou a financiar até setembro último 690 ideias, o que representa 54% do total de projetos postados no portal. Um fator positivo, segundo especialistas, é a ausência de terceiros na elaboração da obra. Sem capital institucional ou do Estado, há uma maior liberdade de inspiração para o autor, como relata Stephanie Belot, diretora da Onírica Studios, uma das produtoras do curta-metragem Quando Parei de Me Preocupar com Canalhas, viabilizado pelo Dezembro de 2013 | Cásper

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Produtores do curta Quando Parei de Me Preocupar com Canalhas; e capas da revista J’adore

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Arte inteligente O crowdfunding é um braço da chamada economia criativa (expressão cunhada em 2001 pelo inglês John Howkins no livro The Creative Economy). O professor de economia da Faculdade Cásper Líbero, Adalton Diniz, define a economia criativa como “uma atividade que se utiliza da imaginação como principal fator de produção”. E no sistema crowdfunding, quanto mais imaginativo e inovador o projeto exposto, maiores as chances de haver ajuda e uma alta arrecadação por parte dos usuários. Para o professor Adalton Diniz, é um equívoco pensar o financiamento coletivo apenas como uma espécie de efeito colateral da economia criativa: “Esses sites especializados não facilitam o financiamento apenas de atividades ligadas à ideia, mas sim, são uma ponte entre elas e o público. Na verdade, qualquer tipo de projeto pode ser divulgado no crowdfunding. A economia criativa ainda é mais

visível (por seu caráter inovador, sua rentabilidade e pela pouca necessidade de investimento financeiro por parte do autor)”. Navegando pelos portais de crowdfunding, encontra-se uma revista sobre arte: J’adore. Idealizada pela publicitária gaúcha Pamela Morrison e financiada por indivíduos, essa revista tem o objetivo de influenciar as pessoas, e, na visão Pamela, o projeto se relaciona plenamente com o conceito de economia criativa: “A ideia da J’adore é essa: fazer as pessoas criarem, exercitarem a imaginação, se inspirarem”. Sem a burocracia que diariamente dificulta a produção de projetos independentes, os autores podem focar suas atenções exclusivamente na produção. Pamela resume assim o princípio geral que ampara o financiamento coletivo: “No fim das contas, o que a gente quer é se divertir e ser feliz. Isso é o que importa”. A websérie sobre o apocalipse

Fotos: Thaís helena reis; Divulgação j’adore

sistema: “Isso te possibilita produzir o trabalho artístico no modo como foi pensado originalmente, sem a intervenção de meios publicitários e sem manipulação do conteúdo”. O curta foi baseado no quadrinho homônimo do cartunista Caco Galhardo, que, coincidentemente, faz uma crítica ao poder público e ao financiamento de artistas pelo Estado. Com o auxílio de 213 usuários da rede, o curta arrecadou 34.260 reais e está em fase de produção. Outro ponto do sistema visto como positivo é a redução do preço do produto final, em comparação com o esquema tradicional. O livro Ícone dos Quadrinhos, por exemplo – autografado, numerado e acompanhado de uma slipcase. Caso o projeto fosse bem sucedido, o livro poderia ser obtido no Catarse por 60 reais. O sucesso foi enorme. Tanto que que a obra passou a ser comercializada em comic shops tradicionais pelo dobro do preço.


zumbi – Nerd of the Dead – conta a história de dois amigos que unem forças para combater os mortosvivos que assolam a cidade onde moram. Com quatro episódios, a websérie teve seu último capítulo viabilizado por crowdfunding devido aos altos custos de produção que aquele trecho da história exigia.

De grão em grão “Os apoiadores ganharam prêmios por apoiar e ainda ajudaram a desenvolver a cultura do país, que ainda sofre preconceitos em relação à qualidade dos trabalhos financiados coletivamente”, diz Pedro Carvalho, um dos protagonistas e produtores da websérie. O prêmio não foi pequeno: os apoiadores de Nerd of the Dead puderam integrar a figuração (travestidos como os próprios zumbis do enredo). Não há meio termo quando o assunto é “inovar para arrecadar”. Ícone dos Quadrinhos, do paulistano Ivan Freitas da Costa, compilou as

artes de cem artistas nacionais e internacionais que retrataram seus super-heróis preferidos e foram expostos no Festival Internacional de Quadrinhos em Belo Horizonte (FIQ 2013). “Nos Estados Unidos já há uma cultura [de crowdfunding] desenvolvida. Lá, um projeto de quadrinhos pode obter 100 mil dólares”, observa Ivan, que também é curador do festival. Para o coordenador Felipe Caruso, o financiamento coletivo ultrapassa o cenário artístico: “Áreas diversas como jornalismo, ciência e urbanismo estão descobrindo essa alternativa de financiamento. Além disso, o próprio setor financeiro poderia usufruir desse sistema. É o caso de serviços bancários, seguros e fundos de investimentos”. O público apoiador de projetos via crowdfunding é ávido por novidades. O financiamento coletivo, na visão tanto de produtores quanto de doadores, surge como um novo ca-

minho na busca por uma cultura que contemple mais trabalhos autorais nacionais, permitindo que o próprio consumidor se torne peça ativa (não passiva) da produção de uma obra – obras artísticas, principalmente. “Não sei se o crowdfunding é a solução para a produção de trabalhos independentes, mas deveria ser, porque eu acho complicado uma pessoa captar dinheiro público para realizar um trabalho autoral, porque você terá um compromisso com o financiador, e não poderá fazer o que você entende como o melhor a fazer”, opina Tiago Vieira, diretor do curta Quando Parei de me Preocupar com Canalhas. Muitos projetos culturais sobrevivem graças a editais e leis de incentivo à cultura, pelos quais se pode captar mais e atrair um grande número de interessados. O valor de apoio para cada proposta selecionada no edital Longa DOC 2013, por exemplo – da Secretaria de Audiovisual do Ministério da Cultura –, destinado à produção de documentários, pode chegar a até 450 mil reais. Caio Ciampolini deseja que o financiamento coletivo continue crescendo no mundo e principalmente no Brasil. “As pessoas aqui são muitos criativas, mas elas muitas vezes não sabem onde buscar suporte e recursos para realizar seus projetos”, analisa Caio. Com o sucesso de Ícone dos Quadrinhos, Ivan Freitas da Costa entende que o crowdfunding se sofisticará com o tempo, e a sua própria dinâmica revelará naturalmente os bons projetos. As perspectivas do crowdfunding no Brasil ainda são incertas, porém. Talvez seja passageiro, apenas como mais um fenômeno; ou ganhe a posição de uma alternativa concreta para projetos cada vez mais diferentes e originais. O fato é que o financiamento coletivo deu à expressão “poder público” um sentido mais literal. “De grão em grão, a galinha enche o papo”, brinca Pamela Morisson. Dezembro de 2013 | Cásper

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RáDIO

ideias

NO AR Por Isabela Moreira

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Cásper | Dezembro de 2013

Foto: Thaís Helena Reis

Apesar da “massificação do gosto”, profissionais continuam produzindo no Brasil conteúdos culturais e educativos em formatos inovadores

N

as proximidades do Instituto de Física, na Cidade Universitária, encontra-se uma construção que, devido a sua estrutura arejada e ao seu posicionamento ao lado do Parque Esporte Para Todos, pode ser facilmente confundida com uma grande casa de campo. O local, no entanto, é sede de uma das principais radiodifusoras do Brasil: a Rádio USP, que segue a tradição das rádios educativas e busca experiências novas na programação, evitando os moldes impostos pelos veículos comerciais. Para as rádios, digamos, culturais, a convivência com as emissoras convencionais, que possuem grades esquemáticas, patrocínios abundantes e variedade de promoções, é complicada. “No Brasil, se acredita muito no ‘quanto pior, melhor’”, afirma Marcello Bittencourt, produtor da Rádio USP. “Do ponto de vista intelectual, não se acredita na possibilidade de


propostas ousadas e inteligentes.” Colocar essas proposições em prática e conquistar um público cada vez mais voltado para a internet não são tarefas fáceis. “Não temos como competir com essas emissoras. Então, lutamos como podemos.” Marcello não está sozinho, porém: há um bom time de mediadores em rádios brasileiras que tem conseguido produzir conteúdo cultural em formatos originais.

Conversas poéticas Allan da Rosa é um deles. Historiador e mestre em Cultura e Educação pela USP, ele é um romântico no que se refere a rádio. Com o fim de seu programa Nas Ruas da Literatura – sobre poesia, prosa e escritores, que era veiculado pela Rádio USP –, Allan e sua equipe sentiram a necessidade de criar uma nova atração, em outro formato, mas sem perder de vista a diversidade da produção literária brasileira e internacional.

“Criado pelo rádio”, é como Allan se autodefine. Conta que adquiriu um interesse particular por programas de entrevistas, mas sentia que esse gênero parecia fadado à superficialidade. O historiador e seu time, então, esboçaram o À Beira da Palavra, um programa semanal de entrevistas com uma abordagem fora de padrão. O projeto deu certo e, a cada edição, o programa traz um convidado da área de literatura para falar de seu dia a dia, bem como de suas obras e da complexidade delas. As conversas são conduzidas por Allan em um clima descontraído. No entanto, as entrevistas não se atêm apenas ao mais evidente: o objetivo é ir ao encontro das dúvidas e das contradições. O À Beira da Palavra já recebeu convidados como Muniz Sodré e Paulo Lins, assim como autores latino-americanos e de cordel. Ao abordar representações de diversas linhagens literárias, o programa não busca

agradar, mas sim, debater e aprender com os convidados. “Não é para gabinete, para quem quer ser louvado, mas para quem quer ser entendido e questionado”, explica Allan. O trabalho desenvolvido pelo produtor Julio de Paula e pelo músico Arrigo Barnabé na rádio Cultura FM também é voltado para entrevistas, mas com foco na investigação musical, primordialmente. Há cerca de uma década, a direção da emissora mostrou-se interessada em trabalhar com Arrigo, ícone da vanguarda paulista dos anos 1980. E ele não hesitou em aceitar. Na época, os aspectos socioculturais que mais intrigavam Arrigo eram os fatores que condicionavam o gosto pessoal dos ouvintes. A partir dessa questão, Arrigo criou o projeto de um programa no qual uma entrevista de estúdio e uma enquete sobre um estilo musical seguiriam paralelamente e se completariam ao final. Para Dezembro de 2013 | Cásper

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“No Brasil, o rádio na internet é apenas reprodução do sistema tradicional”

Marcello Bittencourt, da Rádio USP, acredita em propostas ousadas

auxiliar o músico na nova atração, batizada de Supertônica, foi chamado o produtor Julio de Paula, que já havia tido uma experiência na Cultura FM.

Tradições auditivas

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Foto: Thaís Helena Reis

Os dois se deram muito bem. Juntos, desenvolveram o formato do programa, que tem como base a justaposição e a montagem cinematográfica. São criados universos de escuta de acordo com o convidado ou tema. As passagens musicais dialogam com os assuntos discutidos durante a entrevista, para que o ouvinte tenha referências sobre o que está acontecendo. Além das entrevistas e dos formatos, há também a preocupação de inovar na maneira de interagir com

o público. No Supertônica, o quadro “Investigações” realiza enquetes com diferentes grupos de ouvintes em determinados lugares da cidade de São Paulo. Quando abordados, os participantes colocam fones de ouvido, através dos quais podem apreciar o estilo musical em questão. Em seus dez anos de história, o programa já abordou mais de duzentos grupos específicos, como jogadores de xadrez, jóqueis, ourives, monges e lutadores de luta livre. Além das enquetes, o programa de Arrigo realizou intervenções sonoras fora do estúdio também. Em 2009, para homenagear os 50 anos da morte de Heitor Villa-Lobos, a produção tocou composições do maestro brasileiro

nas caixas de som da estação Luz. Diferentemente do quadro “Investigações”, nesse caso as pessoas eram surpreendidas pela obra de VillaLobos ecoando pela estação. Esse tipo de iniciativa, segundo os produtores, possibilita a criação de novos vínculos e a identificação dos ouvintes com o programa. “A inclusão do público na grade das emissoras não deveria ocorrer somente pela reprodução de suas músicas preferidas, como nas rádios comerciais, ‘que tocam tudo’”, pondera Allan da Rosa. E foi pensando exatamente em mudar esse cenário que o crítico musical Zuza Homem de Mello idealizou o programa Mergulho no Escuro, que resgata importantes tradições da rádio brasileira. Diante do interesse do Itaú Cultural em desenvolver um projeto musical, Zuza trouxe à tona a ideia de fazer um programa diferente, durante o qual a plateia não só estaria presente como participaria. A audiência teria a oportunidade de trazer de casa suas gravações e colocá-las numa caixa; e Zuza, sem conhecer previamente os volumes, escolheria algumas músicas para tocar e comentar ao vivo. Apesar de sua vasta experiência em rádio – seu Programa do Zuza, na Jovem Pan, ficou 11 anos no ar –, nunca havia apresentado um programa com o público presente. Mas assumiu o risco. Os resultados, segundo ele, superaram as expectativas


Arrigo Barnabé, apresentador do Supertônica, na Cultura FM

O apresentador às vezes dá a chance de o dono do disco escolhido falar sobre o álbum e sobre os motivos de tê-lo levado ao programa. “Isso permite uma série de esclarecimentos importantíssimos. Formações vêm à tona. Estes são os pontos mais fortes do programa”, acredita Zuza. Já aconteceu de o compositor da canção escolhida estar presente na plateia; e de gravações raras no Brasil chegarem às mãos do crítico, como aconteceu com a música Outra vez, de João Gilberto, que ganhou muita repercussão na época.

Foto: Gal oppido

Conectando-se O Mergulho no Escuro é gravado toda primeira terça-feira de cada mês, à noite, na Sala Vermelha, do Itaú Cultural, e transmitido em tempo real pelo site da instituição, no qual ficam disponíveis também a íntegra das edições anteriores. A possibilidade de utilizar novas mídias tornouse, para Zuza, um dos principais atrativos do Mergulho no Escuro. Ele acredita que a internet traz consigo

um novo tipo de ouvinte, mais acostumado com a escuta móvel do que com a tradicional. No que diz respeito ao modo de fazer rádio na internet, o Brasil ainda não possui padrões estabelecidos: culturas como a dos podcasts (programas de áudio sobre assuntos específicos feitos pela internet para acesso na própria rede), por exemplo, que estão se enraizando nas sociedades norte-americana e britânica, não pegaram no Brasil. Aqui, o que se vê é apenas a disponibilização na internet dos programas tradicionais, caso do Supertônica e do À Beira da Palavra. Marcello Bittencourt, mestre pela Escola de Comunicação e Artes (ECA), da USP, atua na Rádio USP há quase 30 anos. Passou por diversas funções. Atualmente, é produtor, e está vivendo o que ele chama de “uma relação de amor e ódio” com a emissora. Para ele, a maior mudança provocada pela internet é o fim da espera por um horário específico de audição. “Agora, você pode ouvir o programa que quiser, quando quiser,

com um simples clique. Não dá mais para pensar na ‘audiência de São Paulo’, por exemplo. Com a internet, temos ouvintes no mundo”, diz. O também produtor Julio de Paula caracteriza o momento atual da rádio brasileira como “indefinido”. Uma transição tecnológica ainda está em curso no país. Apesar de uma crescente parcela da população utilizar dispositivos móveis para ouvir rádio, ainda há uma parcela considerável que prefere o sistema convencional. “A transmissão radiofônica tradicional vai continuar coexistindo com as novas possibilidades tecnológicas”, acredita Julio. E Marcello é da mesma opinião. Acrescenta ainda que o público de rádio é “acumulativo” e a audiência dificilmente será vasta: “Mas isso dá aos programadores a oportunidade de participar da vida das pessoas, o que já é uma grande recompensa. Fazer é mais gostoso do que qualquer outra coisa. É uma diversão. Para quem gosta e está envolvido com cultura, participar desse mundo é um privilégio”. Dezembro de 2013 | Cásper

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TELEVISÃO

A minha MTV Brasil A emissora, que encerrou suas atividades na TV aberta em setembro, revolucionou o modo de ouvir música e, durante 23 anos, influenciou gerações Por Luís Thunderbird

F

oi no ano de 1989 que os primeiros movimentos para fundar a MTV Brasil começaram. Pelo menos, no que me diz respeito. Eu havia desistido da Odontologia há 2 anos, determinado a fazer parte do “maravilhoso mundo do rock”. Estava trabalhando em uma agência de publicidade, como redator, fazendo com que as pessoas comprassem aquilo que nunca imaginavam ser essencial para suas vidas.

Os videoclipes A publicidade foi de grande ajuda, pois meu salário bancava minhas aventuras com minha banda, os Devotos de Nossa Senhora Aparecida, fundada em 1986. E a banda ia muito bem, ganhando destaque no underground, apresentando-se na TV, chamando a atenção de algumas pessoas. Uma delas foi o Dodi, di56

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retor de comerciais de TV, que me escalou em boas peças publicitárias. Quando a Abril começou a procurar por candidatos à VJ, eles já sabiam da minha existência. Foram disfarçados num show dos Devotos no Espaço Retrô e me viram no TV da Tribo, programa de Tadeu Jungle na Band. Eles me convidaram para todos os testes, que foram por mim ignorados. Até o dia em que, de surpresa, fiz um teste de vídeo e eles me levaram numa sala e me mostraram um contrato com meu nome nele. Assinei sem ler, confiei que seria divertido e interessante. E foi, muito! Desde o início, acreditei que fazia parte de algo especial. Os ensaios de vídeo, a novidade dos clipes, o universo daquela emissora mágica, que fazia com que as pessoas não conseguissem desligar a TV ou mudar de canal. Lembro que saía com

os amigos e, nos bares, restaurantes, sempre tinha a MTV ligada. E foi uma novidade que mexeu com todos. Os videoclipes, o estilo dos VJs, a estética, a liberdade com que a gente trabalhava e se expressava na tela.

Os acústicos A música ganhou muito com a chegada da emissora. Os clipes mostravam os artistas, lançavam os novos discos, muita gente boa começou com a MTV. Lembro de alguns fenômenos com os quais tive o prazer de estar envolvido. A chegada ao Brasil do Grunge, a descoberta do Manguebeat, o aparecimento dos Raimundos, tudo muito rápido e intenso. As rádios ficavam de olho nos lançamentos e, imediatamente, acompanhavam as novidades. Nossas peças promocionais espetaculares seduziam o mercado televisivo e


ilustração: heloísa d’angelo

publicitário. Vem desde essa época a frase “…isso é bem MTV, né?”. Em pouco tempo, a MTV fazia parte do cardápio nacional. Já em 1993, a Rede Globo reverenciava a MTV com o personagem Thunderdog, um cachorro VJ que estrelava na TV Colosso. A Globo começou a assediar os VJs e levou alguns pra dar uma voltinha. Maria Paula (1993), eu (94), Casé (2000). Vieram os VMBs (Video Music Brasil), a grande premiação musical, disputada por grandes estrelas, que acabou revelando grandes novidades. Sempre! As festas do VMB sempre foram objeto de desejo, afinal, nelas encontrávamos gente bacana, artistas, bebida e loucura da melhor qualidade! Os Acústicos MTV deram novo impulso a uma série de bandas. Titãs, Ira!, Barão, Cássia Eller. Chegou um momento

que todos queriam gravar um Acústico MTV: Rita Lee, Zeca Pagodinho, Legião Urbana, Charlie Brown. Apresentei alguns deles, inclusive o do Rei Roberto Carlos!

O legado E a MTV continuou inovando, desafiando a caretice televisiva com campanhas incríveis, provocando, tirando sarro de si mesma. Tive quatro passagens pela MTV e, até essa última (2011-2013), me diverti muito trabalhando ali. Nos últimos meses, estávamos quase acreditando que aquilo nunca iria acabar. E, no último dia 30 de setembro de 2013, fui pra rua Alfonso Bovero, 52, Sumaré, São Paulo, para assistir aos últimos momentos com os funcionários que restaram. Não eram muitos, mas todos muito apaixonados por aquilo tudo. A gente

se abraçou, chorou, comemorou a história bonita que fizemos juntos. A MTV deixou, sim, um legado. Foi ali que eu aprendi a fazer televisão, foi ali que muita gente aprendeu a fazer televisão. Gente que está, nesse momento, em outras emissoras, levando um pouco do DNA da MTV. É só prestar um pouco de atenção e ver que “aquele programa é bem MTV”. Que aquela apresentadora começou lá. Que aquele sujeito que você gosta tanto também passou por lá. Tanta gente bacana, que está por aí, fazendo outras coisas, que, tenho certeza, nunca vai esquecer as coisas que realizou na MTV. Nós fizemos uma televisão incrível. Com toda certeza, fizemos história! E eu tenho o maior orgulho de ter feito parte dessa trajetória. Obrigado, MTV Brasil! Dezembro de 2013 | Cásper

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PUBLICIDADE 58

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renovar para

inovar Para Washington Olivetto, a criação em publicidade depende de uma observação permanente das mudanças “da vida” Por Carolina de Souza Luiz Imagens Leandro Saioneti

O

publicitário Washington Olivetto é responsável por algumas das campanhas publicitárias mais importantes da propaganda brasileira. Alguns ainda vivem na memória da população, como a campanha com Carlos Moreno, o antigo garoto propaganda da Bombril, que durou 16 anos, e os filmes Primeiro Sutiã (1988), para a Valisère, e Hitler (1989), para a Folha de S.Paulo – únicos comerciais brasileiros que fazem parte da lista mundial dos 100 Maiores Comerciais de Todos os Tempos. Sua carreira é sólida e extensa. Passou por agências como Harding-Jiménez, Lince, Casabranca e DPZ (onde, em 1974, ganhou o primeiro Leão de Ouro da publicidade brasileira no Festival de Cannes, premiação internacional). Ao lado de Gabriel Zellmeister e Javier Llussá Ciuret, assumiu o controle total da antiga GGK, que tornou-se W/Brasil, uma das agências de publicidade mais premiadas do mundo, abrindo filiais nos EUA, Portugal e Espanha, sob os olhares de Olivetto. Em 2010, a W/ de Washington Olivetto uniu-se à McCann, gerando a W/ McCann, uma das cinco maiores agências do Brasil. Considerado o “pai da publicidade brasileira”, Olivetto representa as ideias de várias gerações, mostrando estar sempre atualizado com as tendências mundiais da publicidade e inovando. Em novembro, foi homenageado pela Faculdade Cásper Líbero, com o prêmio O Que Eu Quero Ser Quando Crescer, entregue aos principais nomes da Publicidade. Na entrevista a seguir, ele fala dos rumos e desafios da propaganda.

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Washington Olivetto, durante a entrega do prĂŞmio O Que Eu Quero Ser Quando Crescer

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Atualmente, há uma forte tendência de os anunciantes prezarem mais o lucro e os rumos dos negócios do que a criatividade e a qualidade na elaboração das campanhas. As agências estão preparadas para trabalhar dessa maneira? Não é uma questão de as agências estarem preparadas para trabalhar dessa maneira. Acredito que os anunciantes que estão fazendo isso vão se arrepender em muito pouco tempo. Por quê? Porque é exatamente essa obsessão pelos números em detrimento do trabalho criativo que no médio e longo prazo poderá piorar os resultados. A maneira de fazer propaganda muda com o advento da quinta tela (mídia digital que se estabelece fora do âmbito privado)? Não. Se não houver uma grande ideia, seja qual for a tela, seja qual for o veículo, seja qual for a tecnologia, não acontece absolutamente nada. O live marketing – ação de marketing promocional potencializada pelas novas mídias – já se consolidou dentro da propaganda ou ele ainda busca um espaço na comunicação? O live marketing é um novo nome para uma atividade que existe há muitos anos e que sempre teve que lutar pelo seu espaço. Mas, em alguns casos de comunicação, é uma atividade fundamental. Hoje em dia, conglomerados de comunicação frequentemente se tornam detentores de grupos de agências de publicidade. De algum modo isso afeta a atividade do publicitário? Pode afetar se as preocupações desses conglomerados forem maiores com a situação do conglomerado na bolsa de valores do que com a qualidade criativa de cada uma de suas agências. Então, isso precisa ser bem pilotado, caso a caso, com muito cuidado. A mídia impressa está tendo que se “reinventar” na comunicação brasileira para sobreviver no cenário das novas mídias. O impresso ainda possui espaço ou se tornou obsoleto? O impresso possui espaço, certamente, mas precisa recuperar a sua autoestima. Como recuperar essa “autoestima”? Investindo em qualidade e gerando, principalmente, redações mais bem remuneradas e profissionais mais valorizados no mercado.

A sua contribuição para a publicidade brasileira sempre foi muito reconhecida. De que maneira você se mantém atualizado com as tendências de mercado para continuar inovando na área? O que me faz inovar não é única e exclusivamente a informação sobre publicidade, mas, principalmente, a informação sobre a vida. O que se renova é a vida. Quando você está atento às mudanças que a vida sofre, você fatalmente pode renovar a publicidade. Você optou por juntar-se à multinacional McCann, que originou a agência W/McCann. Quais os prós e os contras dessa união? Eu optei pela fusão da W/ com a McCann exatamente pela postura de imortalização da marca “W” e porque os prós (para a antiga W) estão nos investimentos, particularmente nas áreas de pesquisa e planejamento. Para a McCann, os prós foram, sem dúvida nenhuma, nas áreas de criação, e, claro, pelo nosso conhecimento da cultura popular brasileira, que gerou muitas conquistas de compra. Então, eu diria que, ao final, só há prós. A W/ McCann é uma agência muito bem-sucedida. Segundo pesquisas dos institutos Data Popular e Patrícia Galvão, a publicidade brasileira mantém a mulher como objeto sexual. Como você vê essa conduta das agências responsáveis por essas campanhas? Não é de hoje que vemos essas pesquisas. Já era assim em 1978, quando criei a campanha da Bombril, que fez grande sucesso. Por quê? Porque ela tratava a mulher com respeito. O desrespeito com a mulher, além de mal-educado, é um mal negócio. É uma propaganda que funciona pouco. E há alguma forma de inovar a divulgação de produtos voltados ao público masculino? Para o público masculino, há muito que se inovar, muito em que mexer. Boa parte da propaganda dirigida ao homem é muito antiquada, pouco contemporânea. Há muita coisa para se fazer nesse segmento. No seu entendimento, o que é a ética na propaganda? Ética é fundamental na vida. Portanto, ela é fundamental na propaganda também. Mas como é essa ética? O que é ético e o que não é ético na arte de fazer propaganda, na arte de trabalhar com publicidade? Basicamente, a comunicação tem a obrigação de ser honesta, verdadeira e pertinente. Dezembro de 2013 | Cásper

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RESENHA

A complexidade de uma

revolta Historiadora lança luzes sobre os estudos do Brasil Contemporâneo através da Revolta da Sabinada Por Francisco Nunes

É

comum ouvir que a história, na maioria das vezes, é contada na perspectiva da elite. Com a publicação do livro Identidades Políticas e Raciais na Sabinada (Bahia, 1837-1838), da historiadora Juliana Serzedello Crespim Lopes, pode-se examinar a participação dos setores médios da população de Salvador na Sabinada. A autora descreve o caleidoscópio de fatores que envolveram esse movimento tão importante. A Sabinada foi uma das principais manifestações de insatisfação com as condições sociais, econômicas e políticas durante o Período Regencial. No dia 7 de novembro de 1837, um grupo político toma o poder em Salvador. O principal articulador é Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, médico, professor e publicista. Sabino publicava o jornal Novo Diário da Bahia, através do qual construía suas ideias políticas. É o período da chamada “Bahia Rebelde”, marcado por diversas revoltas, dentre elas a 62

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Revolta dos Malês, que havia impactado a Bahia dois anos antes. Conforme Juliana Serzedello descreve, a crise na província da Bahia é consequência da redução na exportação de açúcar; das epidemias no gado; das secas que aumentaram os preços da alimentação básica; da especulação que provocou uma onda inflacionária; das moedas falsas que circulavam em grande quantidade, deteriorando as relações comerciais. Os mais penalizados foram os negros escravizados, porque eram mais exigidos na sua já cansativa jornada de trabalho. A autora faz uma cuidadosa revisão bibliográfica do tema e apresenta um amplo panorama historiográfico. Passando pelos documentos do Arquivo Público do Estado da Bahia até chegar aos estudos mais recentes sobre a Sabinada. Mas a contribuição deste trabalho está no enfrentamento da complexidade da revolta. O movimento liderado por Francisco Sabino vive uma série de

paradoxos, tais como: apresenta-se como “separatista”, mas alguns dias depois da tomada do poder retifica a declaração e diz que, quando Dom Pedro II atingir a maioridade, retornará ao jugo do Imperador; formado por setores médios da sociedade, o movimento recusa a participação da “elite”, mas não consegue se consolidar no meio popular; promete abolir a escravidão, mas recua e contempla apenas os negros nascidos no Brasil (os crioulos); defendem ideias liberais, mas não se posicionam como republicanos ou federalistas. O leitor vai encontrar um panorama sobre os jornais da época; uma descrição sobre a “categoria raça” sob o ponto de vista de diversos teóricos; e um painel dos conflitos entre os diversos projetos políticos em disputa nesse período. Além disso, o tema das identidades raciais é abordado detalhadamente, seja do ponto de vista teórico, bem como nas suas manifestações ao longo dos séculos XIX e XX.


Foto: divulgação editora alameda; Leandro saioneti

Sabemos que o conceito de raça é uma construção social. Juliana Serzedello diz que uma hipótese sobre a prática do racismo vem do Antigo Regime até o século XVIII, para distinguir a nobreza e sua linhagem. Para Hannah Arendt as ideias e práticas racistas atingem seu ponto máximo em meados do século XX com os regimes totalitários europeus. Na compreensão de Michel Foucault, o racismo moderno representa uma disputa de poder no interior das nações em formação. E, para Louis Dumont, o racismo na sociedade moderna aparentemente igualitária possibilita a retomada do modelo de sociedade excludente e hierárquica. No caso do Brasil, Lilia Schwarcz ressalta a contradição entre o pensamento racista e o pensamento iluminista; e afirma que o termo raça é um conceito negociado. A Bahia do século XIX é marcadamente miscigenada, e os negros predominavam. As tensões baseadas na cor da pele eram muitas, mas não se circunscreviam ao binômio “branco e negro”. Dava-se um tratamento distinto aos negros nascidos no Brasil, os crioulos, em oposição aos negros nascidos no continente africano. Com os tipos miscigenados, aumentava a complexidade dos conflitos. O historiador João José Reis amplia a variedade de classificações ao mostrar que havia “diferentes cores entre os nascidos no Brasil”, que, por sua vez, eram tratados de maneiras distintas: o negro era chamado de crioulo; o mestiço de mulato com crioulo era chamado de “mulato” ou de “pardo”; havia o branco brasileiro e o branco europeu, na maioria das

vezes o português. Entre os africanos, as diferenças eram marcadas pelas etnias, chamadas de “nações”. O termo “raça” está explícito no texto fundamental da Sabinada, o “Plano de Revolução”, onde se lê: “Não é de certo por defeito de raças [que o Brasil se mantém politicamente atrasado em relação aos demais países da América], como alguns escritores pretendem, porque a raça brasileira é das mais vivas e talentosas”. Nas fileiras das tropas rebeldes havia o Major Santa Eufrásia, negro nascido no Brasil, que se destacou por liderar os batalhões rebeldes, considerado um “crioulo de muito valor”. Após a derrota da Sabinada pelas forças legalistas, começa a “restauração”, num clima de terror e revanchismo. Os negros são as maiores vítimas da repressão.

Identidades Políticas e Raciais na Sabinada (Bahia, 1837-1838) Juliana Serzedello Crespim Lopes Editora Alameda, 233 págs, R$ 40

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notícias CASPERIANAS

RTV E PP

CAVH

CULTURA GERAL

Projeto Criar, Semana de Jornalismo e Mostra de Comunicação estão entre os eventos que marcaram o semestre

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Iº Colóquio de Cultura Geral O I° Colóquio de Cultura Geral ocorreu em outubro, na sala Aloysio Biondi, explorou a interação entre os cursos da Faculdade e seus professores. A interdisciplinaridade foi um dos pontos altos. Ela possibilitou discussões sobre temas afins às áreas da comunicação. As mesas debateram temas, como música e imagem e cinema e literatura. Professores convidados também marcaram presença. A professora Maura Martins, da UniBrasil, de Curitiba, participou do painel “jornalismo e linguagem”, mediado pelo professor Sergio Vilas-Boas. A repercussão dessa primeira edição do evento foi tão positiva que o professor Adalton Diniz, coordenador de Cultura Geral, pretende organizar outro no segundo semestre de 2014.

As professoras Ivoneti Ramadan e Nanami Sato durante o Colóquio

Centro Acadêmico­promove festival de bandas Punk rock, soul e indie se misturaram no dia 19 de outubro, na primeira edição do Rock’n Cásper, um festival de bandas. A organização ficou por conta do Centro Acadêmico Vladimir Herzog (CAVH), que tinha esse

festival como um dos planos para a gestão. “Há muito tempo tínhamos o desejo de unir os músicos da Cásper, e foi muito concorrido: 30 bandas se inscreveram para apenas 5 vagas”, conta Marina Garcia, representante

do CAVH. O evento ocorreu no espaço Elevate, na Rua da Consolação. Entre as atrações, as bandas Cachimbongfire, Choir, Filadelfia Bacamartes, Numes e Volume 12. E com direito a discotecagem nos intervalos.

Walter Freoa, coordenador de PP, Magaly Prado, professora de rádio, e Ninho Moraes, da produção de TV, foram os responsáveis pelo projeto. Ao longo de 2013, os alunos do segundo ano de Propaganda e Publicidade elaboraram um produto e

uma campanha publicitária. Os alunos de RTV atuaram na parte prática da propaganda, como na filmagem e edição do vídeo. Os diversos grupos se uniram em torno de uma experiência semelhante à que existe no mercado de trabalho.

Projeto Criar 2013 De 11 a 14 de novembro, o Projeto Criar uniu estudantes de Rádio e Televisão e de Publicidade e Propaganda. O Teatro da Faculdade acolheu os grupos, que apresentaram seus projetos. Os professores Genilda Alves de Souza, da Cultura Geral,

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RELAÇõES PúBLICAS PÓS-GRADUÇÃO JORNALISMO Fotos: Vitor Leite

Mostra de Comunicação RP Entre os dias 4 e 8 de novembro a Mostra de Comunicação, organizada pela coordenadoria geral de Relações Públicas, realizou troca de aprendizagem e valorização do trabalho acadêmico. O evento foi dividido em duas partes. Primeiro, os alunos do segundo ano do curso apresentaram suas propostas de comunicação,

que desenvolveram ao longo do ano letivo. Os estudantes montaram planos de comunicação para empresas, focados no terceiro setor (iniciativas privadas de utilidade pública). Pais e amigos dos universitários foram convidados a prestigiar o evento no Teatro da Faculdade e, paralelamente, o espaço da sala

Aloysio Biondi foi inteiramente dedicado a palestras para alunos do terceiro e quarto anos do curso de Relações Públicas. Ex-alunos e profissionais da área compareceram para explicar o processo de funcionamento do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e as possibilidades que a carreira oferece após a graduação.

Net-ativismo e opinião pública Para explicar o fenômeno do net-ativismo, o Consulado Geral da França em São Paulo e a Fundação Cásper Líbero realizaram, em 29 de agosto, palestras com os pesquisadores Marta Severo e Massimo di Felice, na Sala Aloysio Biondi. Segundo Massimo di Felice, os grupos que praticam o net-ativismo são apartidários, não buscam tomar o poder e

não possuem hierarquia formal. Não se dividem em esquerda ou direita e a sua principal característica é a invisibilidade, pois se perdem “na massa”. “Todos os movimentos nascem na rede e, em alguns momentos, ganham a rua, permanecendo conectados.” Ele ressalta a necessidade de novos olhares e tecnologias para estudar o ativismo online.

Já Marta Severo revelou que o ideal seria a construção de uma ferramenta de captação de mídias única, mas isso traria problemas de adaptação aos diversos idiomas utilizados mundo afora. Os estudos de Marta tentam compreender esse fenômeno que, segundo ela, “não tem lugar específico, mas se faz presente sempre que necessário”.

versos assuntos ligados à área, como jornalismo esportivo, jornalismo e periferia, segmentação e o futuro do profissional graduado. Rafael Vilela, do coletivo Ninja, Ivan Padilha, redator-chefe da revista GQ, e Fernando Borges, diretor do documentário Aconteceu, Virou Manchete, que rea-

liza um histórico da extinta TV Manchete, foram alguns dos convidados. Destaque para as mesas simultâneas que ocorreram nas salas do 5º andar, que discutiram a dinâmica das revistas masculinas e femininas e o contexto das mulheres negras e do feminismo na mídia.

21ª Semana de Jornalismo A Semana de Jornalismo 2013, de 30 de setembro e 4 de outubro, enfocou o “O futuro e as Perspectivas do Jornalismo”. Os debates foram no Teatro Cásper Líbero, e atraíram jovens do curso e estudantes das demais graduações. Ao todo, 12 painéis pautaram di-

A Ditadura Analógica, a Democracia Digital em debate

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CRÔNICA

Bibliolibido Por Gabriel Kwak

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Cásper | Dezembro de 2013

cio”: “Não vou a casas que não tenham livros: são casas de gente sem caráter.” O entretenimento fácil, a propaganda e a teledramaturgia subtraem potenciais leitores. Mas entre tantas notícias embebidas em fel, vinagre e óleo de rícino, podemos erguer um brinde a uma adorável ocorrência: o falecido Paulo Leminski desbancou a descartável trilogia 50 Tons de Cinza no ranking dos livros mais vendidos da Livraria Cultura. Podemos suspirar aliviados por alguns minutos... Impossível ir a uma livraria (ò parque de diversões ideal!) e não se gostar de nada. Comparo uma delas a uma praça de alimentação (que eu já batizei de “praça de mastigação”). Ou a um tabuleiro da baiana. Tem opção para todos os gostos. Livros teimam em invadir todas as dependências dos nossos apartamentos cada vez mais projetados pelos arquitetos para não admitirem a insolência intrometida dos nossos “mestres-mudos”. Os volumes, as brochuras – ganhas, compradas ou até mesmo roubadas de algum incauto – multiplicam-se como cogumelos, exasperam nossas(os) cônjuges menos tolerantes com a bibliofilia espaçosa... Saudades dos imóveis de pé direito alto! Sobram livros até para – quem sabe? – violar nossa privacidade no exílio de nossos water closets, muitas vezes nossos casulos filosóficos... Gabriel Kwak é jornalista formado pela Cásper Líbero, membro da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), membro da Academia de Letras de Campos do Jordão (SP) e revisor do Portal R7.

sxc.hu/Ove Tøpfer

rre, como ando monotemático, me pego maçante: nesse eterno retorno, retomo uma surrada história que principia com os papiros, passa pelos pergaminhos em direção ao códice. Mas fazer o quê se uma das raras certezas que cultivo na vida é de que a leitura deve ser imperiosa como a comunhão diária católica? Um dia à beira da cama me metamorfoseio numa traça daquelas bem xeretas... Para Gregor Samsa nenhum botar defeito e migro para uma apetitosa e desprotegida encadernação de percalina. Declaro meu latifúndio entre sua costura e a lombada, não sem antes um rolê pelo colofão e pela página de rosto. Mediante uma espiada na biblioteca alheia conhecese muito da personalidade de cada um. Não resisto a saber o que os outros estão lendo... Daí porque publiquei neste ano Os Livros de Cabeceira: 65 intelectuais do Brasil e seus livros preferidos (Editora Multifoco), a partir de depoimentos que me foram prestados por respeitáveis intelectuais. Aprontar essa compilação me deu um prazer poucas vezes experimentado. Sorry, periferia. Que me perdoem as companhias tão adoráveis – e eu sou um gregário festeiro, com alto coeficiente de sociabilidade –, mas é pela leitura que me reconheço no mundo. Os livros assanham a nossa imaginação, abastecem a nossa consciência crítica, nos tornam melhores. Sempre ganho o dia quando flagro um concidadão sobraçando um exemplar, ainda que seja de literatura de má extração (esoterismo barato, subliteratura envolvendo vampiros, lobisomens, alguma mal-ajambrada literatura espírita...). O venenoso Agrippino Grieco ia a extremos no seu “ví-



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