Revista Cásper #13

Page 1

´ casper Nº 13 – Setembro de 2014

de volta ao mundo

Programas deTV apostam na viagem como experiência

cremilda medina Pesquisa e ensino com afeto e consciência

imagens submersas A luta por alimento nos mares filipinos

o haiti é ali

A rotina dos imigrantes recém-chegados a SP



´ CASPER Fundação Cásper Líbero Presidente Paulo Camarda SUPERINTENDENTE GERAL Sérgio Felipe dos Santos

Faculdade Cásper Líbero diretora Tereza Cristina Vitali VICE-DIRETOR Welington Andrade

Revista Cásper Núcleo Editorial de Revistas Coordenador de Ensino de Jornalismo Carlos Costa Editor-chefe Sergio Vilas-Boas Editoras Ana Beatriz Rosa e Júlia Barbon Conselho Editorial Adalton Diniz, Carlos Costa, Roberto D’Ugo, Sergio Andreucci, Sergio Vilas-Boas, Walter Freoa e Welington Andrade Reportagem Ana Beatriz Rosa, Gabriela Boccaccio, Heloísa D’Angelo, Júlia Barbon e Nathalie Provoste EditorA de Arte e Fotografia Nathalie Provoste Diagramação Débora Stevaux eThaís Helena Reis Colaboradores Ariádiny Rinaldi, Diego Ciarlariello, Elisa Andrade Buzzo, Luciano Candisani, Raphaele Palaro, Welington Andrade, Yuri Andreoli Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874 E-mail: revistacasper.fcl@gmail.com Site: www.casperlibero.edu.br/revistacasper Capa Luciano Candisani errata Na reportagem “Uma ópera brasileira” (edição 12) faltou informar que O Menino e a Liberdade, que estreou em 2013, é a terceira ópera do compositor carioca Ronaldo Miranda.

VIAGENS

na tv

A

viagem é o viajante, mas, segundo o filósofo francês Michel Onfray, há uma significativa diferença entre o turista e o descobridor. Para ele, o primeiro compara e o segundo separa. “Um dos riscos da viagem é o viajante partir para verificar por si mesmo o quanto o lugar visitado corresponde à ideia que se faz dele. Não se deve utilizar instrumentos comparativos que imponham uma leitura de um lugar com os referenciais de outro. Melhor se deixar preencher pelo líquido local”, escreveu. O bom viajante, segundo Onfray, é aquele que tem a capacidade de registrar as menores variações; que é sensível aos detalhes; que capta informações microscópicas. A reportagem de capa desta edição #13 da Cásper lança um olhar arguto sobre como a viagem tem sido abordada e narrada pelos diversos programas de TV (aberta e paga) que se dedicam ao assunto. Do delicado Entre Fronteiras, do Canal Futura, ao ruidoso 50 por 1, da Rede Record, a vivência do apresentador é o centro das atenções. Ainda sobre TV, noutra reportagem buscamos um balanço das mudanças pelas quais vêm passando os talk shows, gênero criado pelos norte-americanos nos anos 1950 e difundido no Brasil a partir da estreia do Jô Soares Onze e Meia, em 1988, no SBT. Nos EUA, após a aposentadoria (ou a morte) de alguns apresentadores históricos, esse tipo de programa está tentando se reinventar. O mesmo ocorre no Brasil, onde âncoras na faixa dos 30 anos de idade estão criando sensações com o intuito de conquistar audiências jovens. Esse novo número da Cásper dedica ainda ótimas reportagens às áreas de Publicidade e Propaganda e Relações Públicas. “Sob outros holofotes” (p.20) mostra como foram planejadas algumas campanhas publicitárias bem-sucedidas que resgataram do ostracismo celebridades antes muito visíveis, como os cantores Sidney Magal e o ator Ricardo Macchi. Já “Evitando fissuras” (p.56) detalha os mecanismos empregados pelos departamentos de comunicação e marketing das empresas para lidar com a opinião pública em situações de crise. Boa leitura!

Tereza Cristina Vitali Diretora

Setembro de 2014 | Cásper

3


SUMÁRIO 06

12 06

Humor ou crítica?

24

uma vida iluminada

De olho no público jovem, talk shows rompem fronteiras entre informação e entretenimento

Cremilda Medina, professora e pesquisadora: jornalismo humanizado e ensino com afeto

12

30

o haiti é ali

de volta ao mundo

A recente imigração haitiana para a capital paulista desafia órgãos públicos, ONGs e voluntários

TVs apostam em programas sobre viagens nos quais os apresentadores são a chave da audiência

20

38

sob outros holofotes

Celebridades antes afastadas da mídia voltam ao sucesso em campanhas publicitárias ousadas

4

20

Cásper | Setembro de 2014

Fora da caixa

A cantora e compositora Karina Buhr conta como tem evitado os padrões do mercado de música


24

30

42 Marés do pacífico Extraordinário ensaio do fotógrafo Luciano Candisani sobre a busca de alimentos no mar

50

o meio escuro

Fatos e ficções em torno da deep web, a internet inacessível por navegadores convencionais

56

38 SeÇões 61 64 66

resenha notícias casperianas crônica

evitando fissuras

A capacidade de administrar crises é imprescindível para as empresas manterem suas reputações

Setembro de 2014 | Cásper

5


televisão

humor ou Em processo de transformação, talk shows brasileiros brigam pela audiência jovem e colocam em pauta os limites do entretenimento e da informação Por Ana Beatriz Rosa Ilustração Thaís Helena Reis

O

sofá e as poltronas são feitos de tecidos confortáveis. O painel ao fundo do estúdio recria as luzes e os prédios que compõem as grandes metrópoles durante a noite. Atrás da bancada, a figura é facilmente reconhecida pelo telespectador – é ele o protagonista, é ele o próprio show. Diante da atmosfera informal criada, o bate-papo com o entrevistado poderia acontecer facilmente também em uma mesa de bar. Mas o som da banda dá o tom ora de aprovação, ora de desaprovação da conversa. A caneca sobre a mesa ainda faz parte deste cenário e continua sendo símbolo do gênero televisivo queridinho dos americanos, importado

6

Cásper | Setembro de 2014

posteriormente pelos brasileiros. Em tempos de mudança, os talk shows disputam os pontos do Ibope e vêm dando o que falar na mídia nacional. O programa Jô Soares Onze e Meia, inaugurado em 1988 no SBT, ficou com a fama de pioneiro desse gênero televisivo no Brasil. No entanto, aquele foi apenas um momento de consolidação. Décadas antes, em 1958, Silveira Sampaio já era responsável pelo projeto que serviu de protótipo para esse estilo. A doutora em Comunicação e Cultura Contemporânea, Fernanda Mauricio, garante que foi Sampaio quem introduziu o elemento central dos talk shows em nossa grade televisiva: a entrevista com toques de humor. “Nas transmissões do Bate Papo Com Silveira Sampaio e do SS Show, ele já satirizava o campo político”, ela afirma.

A plateia acompanhava o apresentador que, sozinho diante de um telefone, simulava conversas com os políticos da época, sempre em tom jocoso, e, assim, transmitia seus comentários e opiniões sobre os assuntos do momento.

Forma e conteúdo

Jô Soares já trabalhava na equipe de Silveira naquele momento: a experiência acabou servindo de escola para o humorista que, tempos mais tarde, em 1973, estreou o programa Globo Gente, da Rede Globo, sua primeira tentativa no gênero. O apresentador só atingiria o seu auge, no entanto, com o Onze e Meia, que foi claramente espelhado nos modelos norte-americanos. Fernanda conta que Jô buscou exibir algo similar ao The Tonight Show, na época estrelado


crítica? pelo icônico Jhonny Carson. Apesar das constantes renovações, o perfil do apresentador é sempre determinante para o formato de um talk show. Hoje, depois de muitas reformas e em sua sétima versão, o programa conta com o protagonismo do jovem Jimmy Fallon. Se por um lado buscou-se copiar a forma, o conteúdo se manteve bem diferente na réplica brasileira: “Muito do formato foi inspirado nos produtos internacionais, mas os temas e as piadas vinham da trajetória do Jô como humorista aqui, e estavam relacionados ao contexto político do país”, analisa Fernanda. Durante a fase de redemocratização do Brasil, o público se viu representado pela figura de um apresentador que utilizou sua bagagem cultural e profissional para inovar na maneira de entrevistar. Jô

Soares tinha liberdade para questionar e fugia dos moldes do jornalismo tradicional. Assim, foi conquistando seu espaço. “Em 1992, pesquisas apontavam que ele era o principal entrevistador brasileiro. Os clássicos encontros com os ex-presidentes Lula e Collor foram grandes sucessos”, completa Fernanda. Para o sociólogo e jornalista Laurindo Leal Filho, conhecido como Lalo Leal, atualmente é impossível não notar as mudanças ocorridas durante a trajetória do programa: “Até meados dos anos 1990, ele trazia informações importantes por meio dos convidados. Tinha um público informado, que ansiava por qualidade”. Para Lalo, quem se arrisca a assisti-lo hoje, no entanto, se depara com uma conteúdo que participa do “esquema da autorreferência”: os entrevistados, em

sua maioria, são celebridades da própria Rede Globo, que protagonizam a nova novela ou que pretendem divulgar outros projetos, nada parecido com as personalidades de antes. O professor chega a classificar o atual programa como house organ da emissora. Fernanda também acredita que o aspecto político e social que dava ritmo ao Jô Soares Onze e Meia se perdeu. “Inclusive, ele foi cobrado pelos telespectadores para que retomasse essa característica, principalmente durante o período de investigação de escândalos na política em 2006”, acrescenta. Apesar do currículo de mais de treze mil entrevistas realizadas e cinco mil programas apresentados, a mais longeva figura dos talk shows do Brasil vem perdendo espaço para dois novos nomes: Rafinha Bastos e Danilo Gentili. OriginaSetembro de 2014 | Cásper

7


esses programas não buscam uma identidade fechada e preestabelecida. Procuram justamente o oposto: um espaço livre para as demandas dos jovens

dos do stand up comedy e popularizados pelo programa humorístico Custe o Que Custar (CQC), da Rede Bandeirantes, os comediantes aproximaram-se do público mais jovem e das expectativas desses novos telespectadores. Assim, apostaram em um tom ainda mais descontraído. “A gente sempre achou que o Jô deveria investir em algo mais próximo do que é feito lá fora, no sentido de variar os quadros. Mas ele se atém apenas às entrevistas. Então, notamos que existia esse espaço”, declara Marcelo Zaccariotto, diretor do The Noite, protagonizado por Danilo Gentili e transmitido pelo SBT.

De cara nova

No The Noite, a clássica banda de jazz deu espaço para a banda de rock Ultraje a Rigor, cujo cantor, Roger Moreira, também é um personagem ativo que faz intervenções polêmicas, mas sempre ajustadas à linha de pensamento do apresentador. 8

Cásper | Setembro de 2014

A sátira política é cada vez mais deixada de lado e o humor que predomina é o “humor ácido, escrachado, próprio da personalidade do Danilo”, como diz o diretor. Na sua visão, ele tem a coragem de falar o que não é dito em nenhum outro programa de televisão aberta: “Aqui, a vamos testando até onde conseguimos ir. Temos muita liberdade para isso, mas, caso dê errado, a responsabilidade das escolhas e do desempenho do programa também é toda nossa”. Se por um lado Gentili e Rafinha caíram nas graças da geração de jovens que, assim como eles, são ferrenhos consumidores das novas mídias sociais como Youtube e Twitter e ávidos por um novo modelo de comunicação; por outro, ganharam críticos que não hesitam em apontar falhas. “Não temos como comparar o Rafinha e o Danilo com os grandes apresentadores americanos, e nem mesmo com o Jô em seus primeiros

e melhores momentos”, afirma Lalo Leal, que acredita que os novos narradores têm assumido uma postura autoritária, em vez de sedutora e simpática: “Assisti à abertura do programa americano Late Show with David Letterman, e, na parte do monólogo inicial, me surpreendi com a autoironia da qual o apresentador fez uso. Não vejo isso aqui. Pelo contrário. Noto uma agressividade por parte do Gentili e do Rafinha, por exemplo”. O professor ainda questiona o “humor exagerado”, que tende a transformar preconceitos em piadas”. Para ele, o problema não está apenas no locutor, mas também em quem o contrata, característica que não é particular dos talk shows, e sim do próprio modelo da televisão comercial do país: “Muitas vezes esses rapazes são porta-vozes. Estão lá porque de alguma forma vocalizam e reverberam o que é interessante para os donos das empresas televisivas”.


Ricardo Martins

Apesar de o formato ser semelhante ao dos talk shows americanos, o Programa do Jô tem um conteúdo bastante particular

Nessa medida, o gênero talk show é visto por alguns estudiosos como o melhor exemplo do infotainment, mistura de informação com entretenimento. São inúmeras as polêmicas quando se trata dos limites do humor. Muitos comentários, como um de Gentili sobre o racionamento de energia no nordeste do país – em que ele afirma que a luz elétrica não fará falta, porque lá já não existe água nem comida –, tornam-se conteúdo viral na internet. “Ele se refere ao fato em um trecho de 40 segundos, no qual consegue mostrar toda a sua capacidade de discriminação”, observa Lalo. Para ele, além de expressarem a intolerância, essas declarações são ainda mais preocupantes por emitirem o oposto da informação: “São desinformações veiculadas como se fossem ‘a verdade’, só que de uma maneira engraçadinha”. Essa tendência encontra uma de suas maiores influências no antecessor Gordo a Go-Go, programa apresentado pela

figura de João Gordo. “A MTV Brasil queria romper com todos os padrões e, no início dos anos 2000, criou o projeto, que se tornou a principal concorrência de Jô Soares na época”, comenta Fernanda Mauricio. Os espectadores tinham, então, o “gordinho” de cabelos brancos e vestes sociais de um lado e o punk e polêmico comentador da cultura pop de outro. “Ele não tinha limites. Criou uma convenção que vem sendo copiada e aceita por uma mesma juventude. Acho que tem muito da expectativa de ruptura, de não querer um programa certinho”, acredita Fernanda.

Desafios do show

De fato, esses programas não estão em busca de uma identidade fechada e preestabelecida. Procuram justamente o oposto: uma abertura para o novo e um espaço livre para que as demandas dessa audiência jovem sejam contempladas. O Setembro de 2014 | Cásper

9


Roberto nemanis/sbt

Legendinha de jesus de um tombo foi-se ao chão acudiu três cavalheiros todos três chapéu na

telespectador Igor Liberato, de 20 anos, acrescenta: “Para mim, uma das coisas que fizeram o The Noite se destacar foi a forma como eles usam a internet. Tudo é postado no site e o canal no Youtube é superorganizado. Inclusive, eu só assisto por lá, onde posso selecionar os quadros que me interessam”. Igor não é o único: o canal soma mais de 400 mil assinaturas. Já os níveis do Ibope chegam a atingir seis pontos, número considerado alto de acordo com o horário em que o programa é veiculado. Fabio Lopes, que trabalha por trás das câmeras do atual Programa do Jô desde os seus 17 anos, quando ainda era transmitido pelo SBT, não tem dúvidas de que o maior desafio de colocar um talk show no ar nos dias de hoje é a constante preocupação na produção de conteúdo. “O trabalho nunca acaba, você tem que estar bem informado e trazer sempre uma novidade. Embora 10

Cásper | Setembro de 2014

o programa aparente ser o mesmo, todo dia ele se renova”, comenta. O assistente de produção acredita que todo tipo de comentário nas mídias sociais é bem-vindo, desde que ajude na publicidade. A preocupação em surpreender o telespectador continuamente, porém, não é apenas de Fabio, e muitas vezes leva equipes de produtores desse gênero a investir em recursos mais apelativos, como apologias sexuais e diversos tipos de “pegadinhas” que expõem o participante ao ridículo. Crítico do modelo comercial baseado na crença de que o público televisivo exige menos, é mal informado e se satisfaz com qualquer tipo de oferta, o professor Lalo discute o senso comum de que o melhor controle é o controle remoto: “Isso é uma bobagem, porque hoje, no nosso caso, você muda de canal e vê a mesma coisa”.

O programa Ver TV, do canal TV Brasil, realizou neste ano uma pesquisa com jovens estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a respeito dos talk shows. As falas dos entrevistados mostraram que este é um público que não espera uma comunicação jornalística tradicional e pronta. Fugindo dos padrões, querem consumir informação de maneiras diferentes. Esse gênero, portanto, assume um papel muito importante ao discutir de maneira leve questões sérias, sem precisar de grandes erudições. “O que não se pode é radicalizar essa leveza e transformá-la em galhofa”, diz Lalo.

Transformando padrões

A grande questão desses programas, portanto, é balancear a mistura de informação com entretenimento. Para aqueles que estudam o gênero, esse é o ponto que


Aqui, vamos testando até onde conseguimos ir. Temos muita liberdade para isso, mas, caso dê errado, a responsabilidade também é toda nossa

esconde uma enorme contradição entre o discurso sobre modelos idealizados e a prática do que assistimos como telespectadores. O que se faz é uma aproximação cada vez maior do entretenimento, enquanto o que se prega é justamente o distanciamento desse recurso, já que ele é visto como empobrecedor do jornalismo. A informação é deixada de lado tanto por programas nacionais ou norte-americanos. O conteúdo do bate-papo que acontece no sofá vermelho, mediado por uma personalidade que tenha a competência de fazer uma conversa fluir, porém, é apenas uma das questões debatidas. Para além do que está no ar, a discussão também envolve a atual condição do espaço da televisão brasileira – que deve ser ampliado e diversificado, oferecendo alternativas não apenas para os talk shows, mas para todos os outros estilos.

Marcelo Zaccariotto, diretor do programa The Noite

Todo gênero televisivo acompanha determinada sociedade e, se ele permanece indo ao ar na programação, é porque dialoga de alguma maneira com as pessoas. Para Lalo, existe uma enorme falta de interesse por parte das emissoras de abrir lugar para conversas que proponham um olhar mais crítico sobre o mundo: “O que pode resolver, nesse caso, é uma lei que organize melhor a área de veiculação, que sistematize democraticamente o espectro da TV”. Já Fernanda se preocupa com os critérios de relevância: “Quais são as instituições que vão pressionar para que alguma qualidade seja estabelecida?”, questiona. Para ambos, a mudança na maneira de se informar é perceptível, e segue as transformações sociais. E os talk shows? Resta acompanhar para dimensionar o protagonismo do gênero nessa renovação.

+ Artigos Apontamentos para uma História Cultural dos Talk Shows Brasileiros Fernanda Mauricio Na internet Programa Ver TV www.tvbrasil.ebc.com.br/vertv Maio de 2014 | Cásper

11


sociedade


o

haiti e

ali

Como são acolhidos os imigrantes que chegam a São Paulo em busca de trabalho e uma vida nova Por Ana Beatriz Rosa Imagens Raphaele Palaro

O

portão de ferro que divide ao meio o muro gradeado fica sempre aberto, convidando os transeuntes a entrar. Entre as barras, é possível observar o movimento constante no extenso pátio, onde algumas crianças jogam futebol. Ao fundo, a igreja imponente, feita de tijolos de cor marrom terroso, é herança dos primeiros missionários italianos que desembarcaram na rua do Glicério, no centro da capital paulista. O espaço é dividido entre três importantes

instituições: a Paróquia Nossa Senhora da Paz, o Centro de Estudos Migratórios (CEM) e o Centro Pastoral, que atende as necessidades pessoais dos imigrantes. Para quem não se atenta aos arredores, o cenário pode parecer apenas o de mais uma bela igreja, mas, na verdade, ali se abrigam muitas histórias desconhecidas. No entorno da construção, o português não é a língua que mais se escuta: o crioulo, um dos dialetos maternos do Haiti, divide espaço com o francês; e o idioma brasileiro carrega traços do espanhol. A visão também surpreende. Ao contrário de padres e batinas clássicas, me

deparei com homens e mulheres de uma pele negra intensa e de sorrisos brancos e largos, alguns vestidos formalmente, outros com roupas coloridas. Nas mãos, eles carregavam – aparentemente com bastante zelo – um envelope de papel. Apesar do conteúdo não revelado, ali sugeria estar algo de grande importância para aquelas pessoas, que aguardavam formando rodas de conversa e ocupando os lugares reservados aos carros no estacionamento. O relógio marcava nove horas da manhã, horário em que a secretaria de atendimento ao público é aberta. Uma mulher dá a notícia em voz alta e clara: Setembro de 2014 | Cásper

13


aqueles que possuem a carteira de trabalho devem formar filas para aguardar a identificação. É terça-feira, primeiro dia da semana em que acontece a mediação entre empresas e candidatos a vagas de emprego (o encontro acontece também às quartas e quintas-feiras, se a demanda for grande). Já se sabe, no entanto, que esses não são candidatos comuns. A ONG Missão da Paz – coordenada pela ordem religiosa dos Missionários Scalabrinianos e seus colaboradores – é responsável por acolher migrantes, imigrantes e refugiados para tentar integrá-los à sociedade. A Missão foi fundada na década de 40, inicialmente trabalhando com crianças órfãs, filhos de imigrantes italianos que moravam em São Paulo. A ação se estendeu, então, dos filhos para toda a família; depois, da Itália para a Europa inteira; e, por último, daquele continente para qualquer nacionalidade. Atualmente, a Missão abriga desde migrantes nordestinos até refugiados latino-americanos, africanos, libaneses e, sobretudo, haitianos.

Portas abertas

A ONG Missão da Paz tornou-se espaço de convivência entre os imigrantes

hoje, o haitiano consegue obter a carteira de trabalho com facilidade em apenas um dia Juliana Rodrigues, assistente social

14

Cásper | Setembro de 2014

Caminho para o ponto de encontro, em frente ao prédio do CEM, onde aguardam Vitor Garcea, Roberta de Souza e José Falleros. Eles conversam entre si e me perguntam se também quero “preencher vagas”. Os três trabalham em empresas de ramos diferentes: duas montadoras automobilísticas e uma indústria de alimentos; e deslocaram-se do interior do estado para participar da palestra que lhes apresentaria a Missão da Paz. Nenhum deles conhecia a organização antes de saber pela mídia que a disponibilidade de mão de obra haitiana havia aumentado em São Paulo – para onde os estrangeiros foram transferidos quando um abrigo de imigrantes no Acre foi fechado. Perguntei aos empresários quais eram as expectativas diante das necessidades das empresas e obtive respostas incertas, como a de Roberta: “Ainda é cedo, precisamos saber mais sobre essas pessoas”. Na apresentação, cerca de vinte interessados na contratação de profissionais em áreas como construção civil, serviço de limpeza e agronegócio ouviram a


assistente social Juliana Rodrigues, responsável pelo Eixo Trabalho da Missão, apresentar as tarefas desenvolvidas pela instituição, além de instruções e dicas para a admissão das empresas e as experiências anteriores com os haitianos. Mediação e conscientização foram as palavras-chave de um diálogo que durou quase três horas. Juliana descreveu a situação dos imigrantes, que, para ela, são extremamente comprometidos com o trabalho: as pessoas que buscam ajuda são recebidas no Centro Pastoral e na Casa do Migrante (local que serve de abrigo para até 120 pessoas) e, de lá, são encaminhadas para a realização de documentos. Ela explicou que, hoje, o haitiano consegue obter a carteira de trabalho com facilidade em apenas um dia, enquanto para outros estrangeiros o processo pode levar até quatro meses. Essa é uma conquista da qual a assistente social se orgulha: “É resultado da pressão que fizemos e do reconhecimento que tivemos depois que aparecemos na mídia. Como instituição católica, não damos conta de todas as necessidades dessas

pessoas, portanto precisamos de apoio do governo, que se moveu em relação a isso”. Para agilizar a contratação e atender a toda a demanda, a Superintendência do Ministério do Trabalho funciona em esquemas de mutirão. Se por um lado o boom dos haitianos nos jornais e canais de televisão em abril deste ano (após o intenso fluxo migratório para São Paulo) levou a realidade desses refugiados ao público e sensibilizou pessoas que passaram a colaborar com a Missão da Paz, por outro espalhou-se a visão de que os imigrantes são “pobres coitados”. “Convivendo com a questão da imigração diariamente, conhecemos o processo que essas pessoas enfrentaram, mas, agora, queremos focar sobretudo no caminho que elas ainda são capazes de construir”, projeta Juliana, que a todo momento procura incitar uma visão humanitária. Assim como ela, as pessoas ali presentes não pareciam interessadas apenas na contratação de mão de obra para uma determinada empresa. Estavam preocupadas também com a oferta de possibilidades àqueles que, como qual-

quer outro indivíduo, querem trabalhar e suprir as suas necessidades. No período da tarde, como de costume, o grupo foi encaminhado ao auditório do prédio, onde acontece o encontro entre as empresas e os profissionais em busca de emprego. O ambiente é simples: cadeiras de plástico espalhadas, olhares e ouvidos atentos, um microfone nas mãos de Juliana e uma intérprete, que auxilia na tradução para o francês. O movimento é repetitivo. Como em um leilão, cada um tem a sua vez. O empregador, na frente do salão cheio, anuncia a vaga, as condições de trabalho e o salário. Aqueles que se interessam acompanham os empregadores até uma mesa separada (ou a uma sala menor), onde são feitas a seleção e a contratação.

Processos e escolhas

Tudo ocorria normalmente, até que uma equipe televisiva entrou e ligou duas enormes câmeras de filmagem. Ao notar a presença dos jornalistas, boa parte dos haitianos que estavam concentrados no anúncio das vagas se levantou e deixou o local.

Refugiados participam de apresentação sobre vagas de trabalho e salários no Brasil

Setembro de 2014 | Cásper

15


Irritados, demonstraram insatisfação com a invasão e clara desconfiança em relação à mídia. Pediu-se, então, que se desligasse os equipamentos e o processo continuou. Optei por acompanhar o caso de uma empresa frigorífica do sul do país. Essa já era a segunda vez em que os responsáveis pela contratação daquela firma, que pediram para não ser identificados devido a políticas internas da corporação, buscavam profissionais haitianos. Para eles, a experiência está sendo muito proveitosa. “Temos um grande problema de mão de obra na região. Não temos gente que dê conta. Os que existem costumam ficar mudando muito de emprego, passam cerca de dois meses e logo saem”, compartilhou um deles. Na sala em que os empregadores e in-

teressados nas vagas estavam reunidos, o estranhamento inicial era nítido. A dificuldade em encontrar um idioma comum entre todos e a ansiedade das duas partes atrapalhavam a organização – de um lado, os brasileiros se enrolavam para apresentar suas condições de trabalho, do outro, os imigrantes perguntavam afobados pelas informações que queriam. A dupla encarregada pela empresa sulista tinha ainda uma carta na manga a seu favor: um funcionário haitiano que já trabalhava com eles, e falava um português básico, foi o intérprete da rodada. Durante a palestra do período da manhã, os empregadores foram aconselhados a explicar claramente todos os direitos e deveres de cada contratado, desde auxílios e benefícios até condições

de alojamento e transporte – e era isso que os três tentavam fazer. Apesar das dificuldades na comunicação, os dados principais acabavam chegando aos interessados. Uma das representantes do frigorífico teve que escrever o valor do salário líquido no quadro negro, por exemplo, deixando bem evidente qual seria o ganho da função.

Soma de anseios

Jean Renot, Zidorson Lawin, Sainrel Andres e Jeannot Pierre, na faixa de 25 e 30 anos, são alguns dos haitianos que estavam em busca de emprego. Renot havia deixado a capital Porto Príncipe e desembarcado no Brasil há apenas quinze dias. Para ele, a quantia mensal de 970 reais oferecida pela companhia era baixa, o que o fez desistir da vaga. Segundo Zidorson, um bom salário deveria começar, no mínimo, em 1 200 reais. Andres contou que perdeu muitos membros da sua família no terremoto que devastou o Haiti em 2010, que ainda tinha duas irmãs lá que dependiam dele e que, por

O abrigo oferece, além de moradia, um banho e três refeições diárias

Sainrilius Dieuson, 23 anos, demorou três semanas para chegar ao Brasil

16

Cásper | Setembro de 2014


Prefeitura de São Paulo presta assistência a cerca de 150 imigrantes

isso, precisava de uma boa remuneração. Pierre desejava encontrar, além do emprego, uma esposa brasileira. Tive receio de não compreender as palavras destes quatro homens durante todo o contato com eles. O bate-papo migrava constantemente do português para o espanhol, do inglês para o francês. Do pouco que conversamos, ficou claro o interesse deles em entender o porquê de eu estar ali acompanhando o processo. Queriam saber se eu era da mídia. Diziam que não podiam aparecer na televisão. Zidorson pediu que eu lesse as anotações que fiz, desconfiando do que seria produzido com as respostas, e apenas Jean Renot aceitou ser fotografado. Sobre a trajetória desses imigrantes, saí com mais dúvidas do que respostas. Reservados, o pouco que expuseram reforçou em mim a sensação de que são pessoas cheias de vontade de realizar seus sonhos. E, para quem está fora daquele contexto, como eu, são sonhos aparentemente simples: para uns, a possibilidade de construir uma vida no Brasil; para outros, sustentar ou trazer para cá a família deixada no Haiti. Ainda na rua do Glicério, outro portão de ferro chama a atenção. Desta vez, não há frestas que permitam uma espiada

dos curiosos, mas a porta continua aberta. O que atrai os olhares são as roupas coloridas, que transformam o muro da construção em varal. O dialeto crioulo domina a área. Entro sem bater e sou recebida no pátio por olhares desconfiados. Pergunto pelo responsável por aquele abrigo provisório, montado pela prefeitura em frente à Missão da Paz. Alguns respondem com um simples “não entende português”, mas um dos haitianos que já está mais adaptado ao idioma indica uma pequena sala movimentada. Avisto o Padre Cássio no meio de papeis, caixas, sacos de roupas e vários moradores, que se amontoam ao seu redor para listar, em francês, os materiais de que o abrigo precisa. Deixando o trabalho com outro funcionário, ele me acompanha num tour pelo local, que naquele dia acolhia cerca de 150 imigrantes recém-chegados. Primeiro, ele me leva ao galpão de dois andares que serve de dormitório aos homens. Os beliches são dispostos em filas. As camas estão arrumadas e as malas, organizadas. Uma sala similar, situada do outro lado do pátio, acomoda as mulheres e as poucas crianças que estão no local – naquele momento, havia apenas uma menina de cinco anos.

No espaço aberto e comum que separa os dois salões, uma pequena televisão transmite um dos jogos da Copa do Mundo, atraindo a atenção de parte dos estrangeiros. Alguns preferiam brincar com uma bola, outros se concentravam nas telas do celular. Padre Cássio conta como funciona a rotina do abrigo, que oferece, além de moradia, um banho e três refeições diárias. Ele diz que a frequência é bem rotativa, já que muitos acabam indo morar com conhecidos ou alugam apartamentos e quartos depois de arranjarem emprego: “Eles ficam aqui apenas enquanto procuram trabalho. Em geral, permanecem por no máximo vinte dias e depois vão embora”. Apesar de ser curto o período em que vivem juntos, os imigrantes constroem uma relação de confiança e respeito com os funcionários. “Eles me chamam de mon père, que significa ‘meu pai’, em francês, e sempre demonstram gratidão”, conta Padre Cássio.

Deslocamento

Sainrilus Dieuson era um dos que descansavam na área comum do abrigo. Ele havia chegado durante a noite anterior. Com apenas 23 anos, deixou a família no Setembro de 2014 | Cásper

17


O Haiti sofre com a ocupação estrangeira há 210 anos. a partir de 2004, a onu reforçou sua missão no país

Haiti e viajou de avião fazendo escalas em vários países como Peru e República Dominicana durante três semanas até chegar ao Brasil. Já havia tentado encontrar emprego na construção civil no Equador, mas disse que lá não havia muitas oportunidades, “apenas um trabalho que não era fixo e pagava dez dólares por dia”. Como muitos outros, desembarcou no Acre e foi de ônibus para a capital paulista. O deslocamento dura três dias e não é oferecida nenhuma alimentação. É comum eles optarem por guardar o dinheiro que têm para possíveis imprevistos em São Paulo e não gastarem com comida. Ou seja, muitos chegam ao abrigo fracos e com fome.

Fora dos portões

Para além dessa estrutura que recebe esses personagens em São Paulo, vale uma reflexão sobre o seu passado. Em 1804, foi decretada a independência da Ilha Hispaniola. Fruto da Revolução Francesa, a Revolução Haitiana culminou na primeira República do mundo liderada por negros. “O liberalismo se afirmava nos Estados Unidos, e a França passava por disputas políticas e ideológicas. O Haiti precisava, então, se afirmar num 18

Cásper | Setembro de 2014

mundo em que não cabia um Estado negro, soberano e independente”, explica Henrique Maffei, historiador e diretor do documentário Ninguém Sabe Onde Fica o Haiti. O país fazia parte do sistema colonial através das grandes plantações de cana-de-açúcar e da mão de obra escrava. Romper com essa dinâmica gerou, portanto, diversas e violentas disputas políticas, que se perpetuaram. O Haiti já sofre com a interferência e a sistemática ocupação estrangeira há 210 anos, mas, a partir de 2004, a tutela internacional foi reforçada. Em junho de 2014, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH, na sigla em francês), comandada pelo Brasil, completou uma década. Para o historiador, apesar de a organização ter conseguido “impor a paz” na região – jargão militar comumente utilizado pelos oficiais –, os avanços sociais foram limitados. Segundo ele, o aparelho representa um entrave à soberania e às decisões do governo local, uma vez que medidas que não estejam de acordo com os interesses dos países que ocupam a área podem ser facilmente desarticuladas pela sua presença armada. “Creio que o grande

desafio da Missão é, paulatinamente, deixar de ser militar e passar a ser técnica e civil, atendendo aos interesses do povo haitiano, e não as demandas externas”, critica o cineasta. O ideal seria que, ao invés de levar armas, o Brasil travasse uma cooperação comercial mais efetiva e estabelecesse uma troca maior de conhecimento técnico com o Haiti. No entanto, a situação mais recorrente é a utilização dos recursos do país sem o reinvestimento dos lucros na sua reconstrução e no seu desenvolvimento.

Tempo de recomeços

Em 12 de janeiro de 2010, um terremoto de sete pontos na escala Richter colocou o país no centro das atenções da mídia mundial. A tragédia, que matou mais de 300 mil pessoas e deixou mais de um milhão de desabrigados, rompeu bruscamente a história do Haiti. Em seu filme, Henrique Maffei optou por mostrar essa ruptura através do silêncio e da tela preta. Ele teve a oportunidade de ir ao país após o desastre. Em seu relato, compartilha a história de haitianos atingidos pela catástrofe. Estima-se que durante os quarenta segundos do terremoto, foi perdido o


equivalente a 130% do PIB do país. Para ele, foi muito chocante ver as cidades destruídas e os rastros de morte nos escombros. Mas o que mais lhe chamou a atenção foi o clima de esperança: “Você notava que a vontade de continuar seguindo em frente era maior do que tudo”. Retomo o olhar para as salas da rua do Glicério. Basta se aproximar um pouco para perceber que o povo haitiano se identifica muito com o Brasil. Isso se deve em grande parte ao futebol, como pude notar nas conversas, mas também à nossa imagem como um país de festividades e de forte presença da cultura afrodescendente. Força de vontade, alegria e solidariedade são adjetivos comumente associados a esses dois povos. Maffei acredita que qualquer um que visitar o Haiti verá a luta diária através da qual eles sobrevivem, mas também o orgulho e o patriotismo que transmitem ao falar sobre a sua terra. Para o historiador, se há um elemento que distancia o brasileiro do haitiano é a relação dos dois com a imigração. Para o Brasil, ela é uma questão mais individual. É uma oportunidade de enriquecimento e desenvolvimento pessoal. Para os hai-

tianos (um terço da população do país vive no exterior), não. Lembro-me de Jean Renot, Zidorson, Sainrel, Jeannot, Sainrilius e outros tantos personagens. Eles querem trabalhar e saem em busca de melhores condições de vida, por isso economizam ao máximo o que ganham aqui e enviam toda a quantidade possível para suas famílias, ajudando na reconstrução do país. “O Brasil é um país formado por imigrantes desde suas mais profundas raízes. Nós assumimos uma dívida histórica com o Haiti dez anos atrás, a partir do momento da ocupação. Agora temos que acolhê-los, mas me preocupam as condições que o Brasil oferece”, analisa Maffei. Deixo para trás o portão e as grades de ferro. A perspectiva de construção de uma nova realidade é o que move esses imigrantes. Relembro as palavras do diretor sobre o país caribenho: “É possível afirmar que sem apoio internacional o Haiti seria incapaz de reconstruir-se. Mas essa ajuda não pode desconsiderar a autonomia e a soberania do povo haitiano, que tem orgulho das suas origens, até mesmo estando distante do país”. O Haiti também é aqui.

Em época de Copa do Mundo, jogos foram uma forma de lazer

+

Livros Um Soldado Brasileiro no Haiti Tailon Ruppenthal Filmes Ninguém Sabe Onde Fica o Haiti (documentário) Dir.: Henrique Maffei Na internet Travessia - Revista do Migrante www.missaopaz.wix.com/cem


marketing

sob outros

holofotes De Joel Santana a Compadre Washington, por que celebridades afastadas da mídia estão fazendo sucesso em campanhas publicitárias? Texto e ilustrações Heloísa D’Angelo

E

m um dia radiante de sol, um casal se diverte com os filhos na piscina, sorrindo como de costume na perfeição dos comerciais de televisão. De repente, uma voz irritante e risonha corta o clima: “Que abundância! Sabe de nada, inocente!”. Quem grita é um micro system irracionalmente coroado pela cabeça de Compadre Washington, vocalista do grupo de axé É o Tchan!. A série de anúncios, intitulada “Personalidades”, é do site de classificados bomnegócio.com e tem sempre este formato: vídeos curtos, nos quais um personagem quase esquecido pelo público encarna um objeto a ser comercializado. As propagandas da série,

20

Cásper | Setembro de 2014

já protagonizadas por celebridades como a socialite Narcisa Tamborindeguy, o humorista Sérgio Mallandro, o cantor Supla e o ex-jogador Diego Maradona, tornaram-se virais na internet, chegando a alcançar, em conjunto, quase 40 milhões de visualizações no Youtube. A empresa, porém, não foi a única nem a primeira a apostar no que está fora de moda. No Brasil, a publicidade utiliza cada vez mais esse recurso e vem obtendo grandes resultados, principalmente nas redes sociais. Alguns exemplos são os comerciais da marca de xampu Head & Shoulders, com o ex-técnico de futebol Joel Santana; do Bradesco Seguros, com o cantor Byafra; da Amanco, com Sidney Magal; e da Fiat, com o ator Ricardo Macchi. Segundo o publicitário Paulo


André Bione, diretor acadêmico da Miami Ad School/ESPM (SP), a tendência é antiga: “Desde que as celebridades passaram a existir, este é um recurso bem-vindo. Não é novo, mas funciona”. Paulo ressalta que este tipo de trabalho não faz sucesso apenas no Brasil: “A Volvo chegou a ganhar o Grand Prix de Cannes esse ano por uma propaganda com o Jean-Claude Van Damme, um cara que já estava há anos fora da mídia, mas que ainda tem sua aura, sua lenda”. A série “Personalidades”, idealizada pela agência NBS, causou um grande impacto na imagem da bomnegócio.com. Segundo uma pesquisa do Datafolha divulgada em abril deste ano, a campanha alcançou um índice de 97% de aprovação do público – o que repercutiu nas redes

sociais através de diversas paródias e memes (adaptações em forma de imagem, vídeo ou frase bem-humorada propagadas através da internet) e resultou, de acordo com dados de fevereiro do Ibope, em cerca de 10,5 milhões de acessos ao site da empresa. Os comerciais também renderam à NBS o primeiro lugar no Prêmio Folha Uol de Mídia 2014. O que torna, então, esse tipo de publicidade, com personalidades esquecidas, tão popular e eficaz?

Dentro de cena

Para Marcello Noronha, diretor de criação da agência e idealizador da série, o sucesso não se deve somente aos personagens escolhidos, mas ao uso pertinente e preciso que se faz deles: “Não estamos usando pessoas que ‘bombam’, e sim

encaixando personalidades em papéis perfeitos para elas”. Eco Moliterno, head of digital da agência Africa, concorda. Responsável pela estratégia digital da série de comerciais da Head & Shoulders, protagonizada por Joel Santana, Moliterno conta que o ex-treinador foi escolhido para resolver um problema que tinham com o nome do produto: “Ninguém conseguia falar ‘Head & Shoulders’, e nós não podíamos traduzir. Por isso, buscamos o Joel, que ficou famoso na internet pela entrevista que deu na Copa das Confederações de 2009, com aquele inglês todo errado dele”. Noronha vê algumas vantagens no uso de personagens dessa categoria: “A pessoa que não está tão visada é mais tranquila para fazer comerciais. Ela não tem a Setembro de 2014 | Cásper

21


agenda muito cheia e, muitas vezes, acaba ganhando um cachê bem menor do que o de celebridades, digamos, globais”. Para Paulo André Bione, trabalhar com personalidades afastadas da mídia traz outros dois grandes trunfos: primeiro, a criação de um sentimento de nostalgia coletivo – tanto para os mais velhos, que realmente chegaram a interagir com “Compadres Washingtons e Sérgios Mallandros”, quanto para os mais jovens, que conhecem apenas a “lenda” por trás desses famosos. Em segundo lugar, o publicitário destaca a possibilidade de tornar o comercial mais engraçado através da autossátira, como é o caso das propagandas do bomnegócio.com. Noronha lembra que nenhum dos protagonistas escolhidos para a série teve problemas em tirar sarro de si mesmo: “Tem gente que, pelo contrário, liga na agência querendo participar”. Bione concorda: “As personalidades afasta22

Cásper | Setembro de 2014

das têm mais senso de humor, até porque, para elas, é uma volta à mídia. Isso é bom para a celebridade, que é revisitada, e é bom para a ideia publicitária, que pode ganhar ironia e ficar ainda mais engraçada”. De fato, depois do comercial, Compadre Washington e o É o Tchan! voltaram aos holofotes, lançando, em abril, a nova música Sabe de Nada, Inocente, que conquistou mais de 500 mil visualizações no Youtube e virou hit nas redes sociais.

Boas ideias

A internet – que, nas palavras de Bione, é um termômetro imediato da criação publicitária – também é um elemento fundamental para a seleção das personalidades que estão fora de foco, já que facilita a busca por pessoas mais cotadas nas mídias sociais. O bordão do ex-técnico na propaganda da Head & Shoulders – “you tá de brinqueichon uite me?”, algo como

“você está de brincadeira comigo?” –, por exemplo, espalhou-se rapidamente pelo Youtube: só o último comercial, “Joel’s Tálqui Show”, alcançou 20 milhões de visualizações e agradou o público. O “sabe de nada, inocente” de Compadre Washington também se tornou uma das hashtags mais utilizadas no Twitter, além de inspirar a criação de páginas humorísticas no Facebook (uma delas com mais de 600 mil curtidas) e a comercialização de produtos personalizados em lojas virtuais, como a Chico Rei, que vende camisetas estampadas com a frase. Já o “ai que badalo”, que Narcisa Tamborindeguy profere em seu comercial do bomnegócio.com, acabou ganhando uma versão funk que já tem 200 mil visualizações no Youtube. “Quando o publicitário erra na internet, é muito pior do que na televisão. Mas quando ele acerta, acaba ganhando um poder de viralização e uma exposição


usar personalidades fora de foco é tão arriscado quanto apostar nas celebridades do dia. tudo depende da ideia e se ela cativa ou não

orgânica muito maiores do que em qualquer outra mídia”, acredita Eco Moliterno. Segundo Paulo André Bione, o publicitário deve ter a consciência de que hoje é impossível separar a rede do cotidiano: os comerciais veiculados nessa mídia têm uma relação ainda mais íntima com o público, que é livre para compartilhá-los com os amigos, criar memes, espalhar hashtags e inventar as suas próprias versões da propaganda. Em outras palavras, o sucesso online da campanha depende da resposta direta do consumidor nas redes sociais. “Hoje, a internet é parte do êxito da ideia publicitária”, explica o diretor acadêmico. “Sempre que vejo paródias de algum comercial no Youtube, acho um elogio. Isso significa que alguém se preocupou em criar em cima daquele conceito e pensou em passá-lo adiante. Significa, portanto, que a proposta funcionou.” No caso das campanhas com celebri-

dades afastadas da mídia, o sucesso vem justamente das grandes sacadas, e não necessariamente da escolha de determinado artista. “Se o publicitário coloca a celebridade como elemento mais importante do que a própria ideia da propaganda, ele corre o risco de não acertar”, aponta Moliterno. Bione concorda: “Mesmo que não gostem daquela personalidade, podem gostar do comercial. São coisas diferentes. O risco é a ideia ser ruim, e não a celebridade causar rejeição.”

Medida certa

A possibilidade de o protagonista arruinar uma boa ideia só pelo fato de ter sido esquecido pelo público é muito pequena. No caso do comercial do bomnegócio. com com o cantor Compadre Washington, por exemplo, houve uma polêmica, mas ela não estava relacionada ao personagem em si: cerca de cinquenta pessoas

reclamaram ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), afirmando que a campanha era ofensiva às mulheres – no vídeo, o músico chama uma moça dizendo “vem, vem ordinária”. O vídeo foi tirado de circulação. Em poucos dias, voltou ao ar sem nenhuma modificação. “Algumas pessoas se incomodaram, mas sempre tem quem se incomode com alguma coisa; é natural do ser humano reclamar. Não teve nada a ver com o fato de o Compadre Washington ser um cara afastado da mídia”, defende Noronha. Por esse ponto de vista, usar personalidades que estejam fora de foco é tão arriscado quanto apostar nas celebridades do dia, como atores globais, modelos ou jogadores da Seleção – tudo depende da ideia, e se ela cativa ou não. Quando o protagonista do comercial está à margem da fama, pode ser até mais fácil ter uma boa sacada, como explica o diretor da Miami Ad School: “Se você usa a Gisele Bündchen, por exemplo, a campanha inteira fica com cara de Gisele. A ideia acaba competindo com a própria modelo, que tem uma imagem muito forte. Quando você resgata uma personalidade mais esquecida, no entanto, é o conceito que fica em primeiro lugar”. Segundo Paulo André Bione, existem dois tipos básicos de publicidade: um é o comercial eficaz; o outro é o comercial que, além de eficaz, é criativo e por isso acaba sendo recordado pelo público. O ponto central, portanto, não é a celebridade em si, mas todo o trabalho de inseri-la em uma propaganda que tenha a medida certa para ela. “Se você pega uma pessoa que não está na mídia, isso mostra que você teve o trabalho de buscar o famoso perfeito para aquele comercial”, comenta. “É fácil colocar a Bruna Marquezine, por exemplo, porque ela já está superexposta. Fazer uma pesquisa mais interessante, porém, tem reflexos na ideia. Significa que você não buscou o óbvio, que pensou fora da caixa.” Setembro de 2014 | Cásper

23


perfil

uma vida

iluminada Apaixonada pelo que faz, a veterana Cremilda Medina contesta as convenções da Academia e propõe um jornalismo mais humanizado Por Ariádiny Rinaldi

S

e você me perguntar como vivo hoje, eu te respondo: em absoluto estado de resistência, porque é impossível viver tranquilamente com o que está acontecendo à nossa volta. Eu não conheço outra vida a não ser essa”, declara Cremilda Medina, com firmeza, sentada no sofá de seu apartamento na Avenida Angélica, em São Paulo. Lá fora, a população também resiste, a seu modo: em junho, a greve dos metroviários engarrafava as principais vias da cidade, colocando trabalhadores e milhares de turistas atraídos pela Copa do Mundo em trânsitos monumentais. Aos 72 anos, Cremilda está mais

24

Cásper | Setembro de 2014

resistente do que nunca e, sorte a nossa, continua produzindo. Seu último livro, Atravessagem (2014), é uma espécie de autobiografia jornalística que reúne reportagens e ensaios relacionados à sua experiência como repórter e educadora, numa travessia que contabiliza cinco décadas. Primeira mestre em Ciências da Comunicação por uma universidade latino-americana, ela teve sua dissertação transformada em livro: Notícia, um Produto à Venda (1978) é imprescindível em todos os cursos de Jornalismo. Do título de doutora ao de livre-docente e ao de professora titular, publicou quinze livros e organizou mais de cinquenta coletâneas. Passou pela Editora Globo, foi editora do caderno de cultura e repórter especial do jornal Esta-

do de S. Paulo. Trabalhou também na TV Cultura e na Rede Bandeirantes. Desse percurso, guarda tantas histórias e afetos que não cabem nas paredes de seu apartamento, quase todas cobertas de recordações. Já no primeiro cômodo da casa, há quadros de artistas como Oswaldo Guayasamín, pintor e escultor que ela descobriu em visita ao Equador – cuja obra, mais tarde, ela ajudaria a divulgar no Brasil. Na estante da sala, junto às bonecas da infância, estão conservadas inúmeras lembrancinhas de orientandos. Um pouco à frente, mais de quarenta miniaturas de carros lotam uma grande prateleira, exibindo a coleção que começou por causa de sua fixação pelo modelo Karmann-Ghia. Dispostos em cima de


yuri andreoli

Setembro de 2014 | Cรกsper

25


uma mesa comprida em frente à janela, os cactos contrastam com o vermelho vivo das cortinas. No “cantinho alemão”, uma enorme foto em preto e branco tirada por Cremilda registra os filhos, Ana Flávia e Daniel, então crianças, brincando num jardim em Porto Alegre. Por fim, um retrato do dia de seu casamento com o jornalista e escritor Sinval Medina, além dos recortes de desenhos feitos pelo netinho Tomás dão ao ambiente da biblioteca um aspecto informal. Acolhedora, Cremilda me convida para tomar um café. De todos os lugares onde já morou, ela deseja que este, com vista para o Parque Buenos Aires, seja o último. “O Sinval quer se mudar para a Serra da Cantareira para ficar mais próximo do filho, mas eu sou uma pessoa totalmente urbana e tenho uma relação de paixão com São Paulo. Não consigo ficar nem trinta dias longe daqui”, comenta, com uma risada retumbante, enquanto despeja o pó na cafeteira.

Época épica

Na noite de 31 de março de 1964, Cremilda e mais sete alunos de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) souberam por meio de um paraninfo que tropas militares haviam saído de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro. Revoltados com a notícia, os estudantes organizaram, ali mesmo, na formatura, uma estratégia de defesa. “Na manhã seguinte, tomamos a rádio da universidade e fizemos resistência junto ao Leonel Brizola. À tarde, o exército fechou a rádio e nos mandou embora”, lembra. Os anos que sucederam o Golpe Militar também foram tempos difíceis, sobretudo o fim de 1974 e o início de 1975. Nessa época, Cremilda já estava com as raízes fincadas na capital paulista. Ela e o marido trabalhavam como professores na Universidade de São Paulo (USP), mas 26

Cásper | Setembro de 2014

ela influenciou o meu modo de ser professor. defendeu um jornalismo vibrante, ligado à cultura e às histórias de vida Dimas Künsch, coordenador da pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero

permaneciam em clima de guerra com a instituição. A dissertação de Sinval, que concluía a pós-graduação, havia sido reprovada sem possibilidade de reavaliação, coincidentemente após ele ser advertido por editar folhetos subversivos na gráfica da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Com a cassação de Sinval, Cremilda pediu demissão e, temendo alguma outra represália, chegaram a cogitar o autoexílio. “Havia uma sedução pela França ou Canadá, mas a gente bateu o pé e assumiu uma posição muito clara de ficar e agir, dentro das possibilidades. Não com a luta armada, mas com a luta desarmada, que era igualmente efetiva.” Nos dez anos seguintes, trabalhando como editora do caderno de Artes e Cultura do Estadão, Cremilda também teve de encontrar brechas para burlar a censura. Quando circulava na redação o boato de que a “casa” não queria dar espaço aos protestos de artistas, como Chico Buarque, ela corria ao gabinete de Júlio Mesquita Neto, dono do jornal. “Eu argumentava que uma empresa daquele porte não podia ter esse tipo de freio. Mi-

nhas idas à sala dele eram quase diárias, e sempre saí de lá com a bandeira hasteada. O pessoal inteiro vibrava. Época épica”, conta, erguendo o punho direito, em sinal de vitória. Depois de uma década no jornal, Cremilda pediu as contas – era a 13ª demissão por conta própria de seu currículo. Como repórter especial, ela havia escrito uma reportagem em que delineava as tendências nacionais das primeiras eleições para prefeitos após o período militar. No dia seguinte à publicação, viu que o conteúdo referente a São Paulo havia sido manipulado, apontando Jânio Quadros à frente de Fernando Henrique Cardoso. Para ela, foi a gota d’água. “O jornalismo não pode ser resumido aos que o praticam de maneira limitada e, naquele caso, uma determinada pessoa tomava atitudes de alta censura e de desvio ideológico, que eram incompatíveis com o rigor que o próprio jornal estimulava. O Estadão teve um papel muito importante durante a fase de redemocratização do país e certos profissionais não assumiram essa grandeza”, critica.


Acervo pessoal/Cremilda medina

Em 1961, no primeiro ano de faculdade, durante aula do professor Ernesto Corrêa

A professora chega à sala de aula para ensinar arte e identidade cultural e, em vez de ir até a lousa, pede para que os alunos abandonem as cadeiras e formem uma roda no chão. Distribui o trecho de um romance sobre a chegada dos portugueses no Brasil e coloca de fundo o disco Ihu, de Marlui Miranda, fruto de anos de pesquisas da compositora cearense sobre a musicalidade das tribos indígenas do país. Assim são as aulas de Cremilda: experimentais – ou, como ela prefere, “obras de arte”. “Nunca sigo programas, currículos, norma nenhuma. A aula é um projeto artístico. Nunca me conformei com aquelas cadeiras rigorosamente enfileiradas. A sala deveria estar em movimento, como um laboratório, e o laboratório fundamental para mim é a rua. Então, vamos para a rua!”

Pedagogia artística

Um desses grandes laboratórios que Cremilda comandou foi o projeto “São Paulo de Perfil”, que, a partir de 1987, resultou numa série de grandes reportagens produzidas pelos alunos da ECA. O projeto

unia teoria e prática e incitava os alunos a exercitar um diálogo mais humanizado com os entrevistados, encarando-os como sujeitos e não apenas como fontes de informação. A ideia era estabelecer, assim, um vínculo de compreensão com o outro e com as circunstâncias. Os textos renderam 27 livros, que exploram as múltiplas identidades da cidade paulistana: crises de habitação, violência, poluição do rio Tietê, espaços históricos, acesso à escolarização, rebeldia dos jovens e imigração foram alguns dos temas abordados. O que garantiu a longevidade do “São Paulo de Perfil” foi a persistência de Cremilda e de seus pupilos. “Organizávamos tudo sem recurso extra, desde a pauta até o evento de lançamento. Foi sempre na marra, na resistência. No início, em alguns momentos, tivemos patrocínio para a impressão do livro, mas a ECA nunca prestou assistência”, queixa-se. Por falta de apoio, o 27º volume, Andanças, empacou e não foi publicado. A edição era sobre a mobilidade urbana, tema que seria central tempos depois, nas manifestações de junho de 2013.

Iniciativas semelhantes ao projeto foram desenvolvidas no interior paulista, no Distrito Federal e na Bahia, porém não vingaram e acabaram logo depois da primeira edição. “A série ‘São Paulo de Perfil’ poderia ter gerado mais frutos. No início, a intenção era desenvolver, paralelamente à produção do livro, um documentário visual, em coordenação com a disciplina de Telejornalismo. Nunca conseguimos fazer isso. É muito difícil aceitarem a interpenetração de uma disciplina na outra”, lamenta. Quem teve oportunidade de ser aluno de Cremilda carrega seus ensinamentos para o resto da vida. “Ela influenciou muito o meu modo de ser professor. Desde sempre, defendeu um jornalismo vibrante, ligado à cultura e às histórias de vida. Um jornalismo que tenha uma aproximação amorosa, respeitosa e poética com o mundo”, diz Dimas Künsch, coordenador de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero.

Em família

Uma música ecoa baixinho pelo corredor Setembro de 2014 | Cásper

27


acervo pessoal / cremilda medina

O jornalismo não pode ser resumido aos que o praticam de maneira limitada Cremilda Medina

Casamento (1964) com Sinval Medina, que foi seu colega no curso de Jornalismo

do apartamento. “Ah, o Sinval deve ter acordado. Estava fazendo a sesta”, justifica Cremilda ao ouvir som de violinos no cômodo ao lado. “Eu não durmo depois do almoço. Não gosto de perder tempo”, acrescenta, com um ar blasé. Foi por intermédio da irmã de Sinval, colega de classe de Cremilda, que eles se conheceram. O companheirismo, iniciado nas aulas do cursinho pré-vestibular, perdura até hoje. “Tínhamos uma convivência de amizade, mas com grandes divergências: ele era bastante rígido no marxismo e eu era rebelde demais para me enquadrar dentro de uma cartilha, embora também acreditasse numa mudança de esquerda no Brasil”, lembra. 28

Cásper | Setembro de 2014

As diferenças, porém, foram atenuadas com o convívio. “Cremilda era espiritualista, enquanto eu me proclamava materialista dialético, ou seja, ateu. Minha crença na razão e no poder da ciência como solução para todos os problemas humanos e sociais contrastava com as posições dela, que privilegiavam a dúvida, a incerteza, o acaso. Com o tempo nossas posições se aproximaram. Passei a admitir que o mistério faz parte da existência humana. Também creio que a maturidade iluminou o lado racional, sem comprometer a força intuitiva e emocional da personalidade da Crê”, Sinval me escreveu, por e-mail, dias depois da minha visita.

Quando Cremilda viajava, era o marido quem cuidava das crianças: “Durante as ausências, sentíamos saudade. Ao dar retaguarda para as viagens da Crê, contribuí para o seu desenvolvimento profissional. De minha parte, sei que não teria persistido na carreira de escritor sem a confiança que ela (como minha primeira leitora) sempre depositou em meu trabalho”. Cremilda se arrepende de poucas coisas na vida. Uma delas é ter passado mais tempo nas redações do que com os filhos. “Eu tive muitas mumunhas na cabeça, trabalhando em jornal, chegando só de noite em casa. Mas, mesmo longe, estava sempre preocupada. Uma obsessão que me martirizava muito era acreditar que uma das crianças podia cair da janela. Tive remorsos por essa ausência e tentava aproveitar ao máximo a convivência no fim de semana. Mas, enfim, ainda bem que os filhos não me rejeitaram. Compenso agora mimando os netos”, desabafa aliviada. Mesmo aposentada, Cremilda continua com as atividades do Programa Latino-Americano de Pós-Graduação


alicia D’amico

Ao lado dos filhos, Flávia e Daniel, em uma das casas retratadas em seu livro de memórias

(Prolam). Apaixonada pela profissão, não se afasta das aulas nem durante as greves da USP. Assim como em outras paralisações da instituição, que no momento passa por uma polêmica crise financeira, a professora tem trazido seus alunos para dentro de seu apartamento, onde ministra as aulas. Em sua rotina, ela se divide entre as análises de dissertações dos alunos de Mestrado e Doutorado e as participações em palestras, muitas vezes fora do estado. Acompanha diariamente o jornal impresso, a televisão, o rádio e a internet. O resultado? Muita dor de cabeça. “Tenho pouca paciência diante da ignorância. Sempre encontro motivo para ficar irritada com esse jornalismo superficial”, reclama. Nos tempos livres, Cremilda costuma ir ao cinema, vício permanente desde a infância. Aprecia também a literatura. Seus autores favoritos são “Mario Vargas Llosa e esse escritor aqui de casa”, diz, com um sorriso, em referência ao marido, que já publicou diversos romances e poemas – como Tratado da Altura das Estrelas, pelo qual ganhou a primeira edição do Prêmio

Passo Fundo Zaffari & Bourdon de Literatura. Descendente distante do historiador e poeta português Alexandre Herculano, Cremilda desenvolveu a paixão pela leitura aos 14 anos, quando descobriu Tolstoi e Dostoievski. Mais tarde, trabalhando no ramo de editoração do Globo, em Porto Alegre, levantou bandeira para que a empresa publicasse as obras de Borges no Brasil. Na década de 80, chegou a viajar por vários países de língua portuguesa e a publicar três livros sobre escritores brasileiros, africanos e portugueses. Quando pergunto por que nunca se aventurou na ficção, ela abre um sorriso e diz que não sou a primeira pessoa a indagá-la sobre isso. A escritora Lygia Fagundes Teles, durante uma conversa em Coimbra, também resolveu sondá-la sobre a produção literária. Hoje, Cremilda mantém a resposta daquela noite lusitana: “Eu não preciso da ficção, o jornalismo me alimenta com as figuras reais”. Ariádiny Rinaldi é jornalista formada pela Unicesumar, de Maringá (PR) e aluna de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero.

+ Livros de Cremilda Medina Casas da Viagem – De Bem com a Vida, Afetos do Mundo (memórias)

Entrevista: O Diálogo Possível (ensaio)

Setembro de 2014 | Cásper

17


capa

de

volta ao mundo Cada vez mais variados, programas de TV sobre viagens reforçam a importância da experiência pessoal para a compreensão de outras culturas Por Gabriela Boccaccio e Júlia Barbon

30

Cásper | Setembro de 2014


acervo pessoal/Samir Abujamra

No programa Projeto Sumir, o cineasta Samir Abujamra documenta suas andanças sozinho pelo mundo

Q

uando ele põe o pé na estrada, obedece a uma força que lança-o no caminho, dando a ele impulso e abrindo-lhe o mundo como um fruto caro, exótico e raro. Desde o primeiro passo, realiza seu destino. Ele sabe o inevitável encontro com sua sombra – não tem escolha.” É assim que o pensador francês Michel Onfray descreve o espírito do viajante em seu livro Teoria da

Viagem: Poética da Geografia. Segundo o filósofo contemporâneo, coabitam, em cada um de nós, o nômade e o sedentário – tanto o amor pelo movimento quanto o apego às raízes, entre os quais oscilamos permanentemente. Com o progresso dos transportes, diz ele, ficou muito mais fácil e rápido atingir os lugares em outras épocas mais distantes, como “a Índia de Marcopolo e a África de René Caillié”. O Brasil, uma das nações que mais impulsiona o turismo mundial atualmente, parece estar

aproveitando as facilidades dos tempos modernos: segundo dados da Organização Mundial do Turismo (OMT), em 2012 os brasileiros desembolsaram 22 bilhões de dólares no exterior, subindo da 29ª posição, em 2005, para o 12º lugar no ranking das nacionalidades que mais gastaram no setor. Nesse contexto, surgem programas de televisão voltados para um público que cada vez mais direciona seu olhar para fora. Idealizados por amantes do deslocamento (como aqueles a que Setembro de 2014 | Cásper

31


acervo pessoal/camila pompeu

Para Camila Pompeu, produtora de O Mundo Segundo os Brasileiros, a fotografia é uma maneira de conhecer pessoas

Onfray se refere), esses relatos criam diferentes narrativas sobre o mundo, seja retratando grandes metrópoles ou cidades das quais quase ninguém ouviu falar. Cada viajante compartilha sua experiência com muitos dos que sonham ainda em conhecer o globo. O cineasta Samir Abujamra, por exemplo, decidiu deixar de lado sua face sedentária e, em 2011, pôs em prática o projeto pessoal de dar a volta ao mundo. Sua jornada de cerca de dois anos acabou se transformando no programa Projeto Sumir, transmitido pelo Canal Brasil. “Fiz uma consulta na numerologia e descobri que para ser feliz tinha que trocar uma letra do meu nome, o ‘a’ pelo ‘u’, e então resolvi sumir”, brinca. Através de um planejamento minucioso, ele buscou os lugares mais improváveis do mapa: comeu urso na Albânia, chegou às minúsculas Ilhas Cook, no meio do Pacífico, e terminou sua expedição na Porta do Não Retorno, 32

Cásper | Setembro de 2014

no Benin. Com uma câmera e um tripé em mãos, produziu, gravou e editou, ao todo, setenta episódios para a emissora. “Acho que o Canal Brasil é o único lugar do mundo onde você tem absolutamente toda a liberdade criativa e artística. Eles não sabiam nem onde eu estava. Eu só tinha que enviar um vídeo de 8 a 15 minutos por semana e ponto”, conta. Diferentemente de Samir, a apresentadora Didi Wagner optou por buscar o desconhecido e o inusitado na própria cidade em que morava. Idealizadora do Lugar Incomum, exibido pelo Multishow, ela começou retratando os microuniversos e as subculturas de Nova York. O projeto, no entanto, foi se adaptando: “Antes, o programa era só lá, então a gente tinha campo e tempo para experimentar as coisas mais curiosas”, explica o roteirista Nô Mello. “Agora, cada temporada acontece em uma cidade, às vezes mais. Ou seja, o programa ficou mais abrangente. O ‘in-

comum’, do título, passou a ser o próprio destino, em alguns casos.” Com uma estrutura maior do que a de projetos independentes, o Lugar Incomum conta com uma equipe responsável pela pesquisa e pela edição dos episódios; e Didi grava também acompanhada de produtores e de um cinegrafista.

Viagem compartihada

Em seu livro, Onfray defende que o melhor modo de viajar é a dois, já que sozinho o viajante estaria obrigado a conviver permanentemente consigo mesmo, enquanto em grupo ele seria privado de si: “Dois nos dispensa dos dissabores de um só e dos inconvenientes de muitos”, argumenta. No programa O Mundo Segundo os Brasileiros, da Rede Bandeirantes, é exatamente assim que funciona. Em cada episódio, uma produtora e um câmera são responsáveis por mostrar a vida de sete brasileiros que


pegamos a estrada movidos pelo desejo de partir em nossa própria busca Michel Onfray, filósofo

CC: alexandre lópez / flickr: alexlc

moram em determinada cidade do exterior. Eles acompanham cada imigrante durante um dia. O personagem vira uma espécie de apresentador e mostra pontos turísticos ou lugares que fazem parte do cotidiano da região. Segundo Camila Pompeu, uma das produtoras do programa, a equipe reduzida facilita a locomoção e deixa o entrevistado mais confortável diante da câmera: “Para esse formato meio reality show e meio documentário, que é a nossa proposta, uma equipe assim é o ideal”. Ela afirma, no entanto, que a rotatividade é fundamental para que as viagens profissionais a dois funcionem. “Por uma questão de sobrevivência, a dupla sempre muda. O diretor percebeu que esse rodízio é importante, porque são três semanas de convivência. No fim, ou vocês se amam ou já estão se batendo.” O jornalista Luís Nachbin, assim como Samir Abujamra, preferiu a solidão.

Em seus dois programas de viagem, o Passagem Para e o Entre Fronteiras, ambos do Canal Futura, o apresentador percorreu o mundo apenas na companhia de sua filmadora. Ele explica que os dois projetos são “primos”, mas que as principais diferenças entre eles estão na delimitação geográfica (o primeiro era gravado fora do país, enquanto o segundo só mostra as fronteiras do Brasil) e na abordagem (o Passagem Para retratava um cotidiano e o Entre Fronteiras parte da história de um personagem ou um grupo de pessoas). Para Nachbin, “uma das grandes belezas de viajar sozinho é que a interferência acaba sendo a mínima possível na história”. No entanto, mesmo contando com uma equipe de pré e pós-produção no Rio de Janeiro, ele afirma que às vezes o acúmulo de funções dificulta o trabalho. Além disso, a solidão pode pesar em alguns momentos: “De vez em quando me sinto isolado, gostaria de ter alguém

com quem eu pudesse dividir algumas questões e decisões. Depende muito da minha interação com as pessoas do lugar; quando é boa, em geral eu fluo bem, mas quando ela não acontece, se torna um pouco difícil para mim.” Samir relata ter descoberto a solidão apenas no segundo mês de viagem, durante uma caminhada em Roma, quando percebeu que estava falando sozinho pela primeira vez: “Eu me senti meio Tom Hanks, conversando com aquela bola de vôlei, o Wilson. Eu era o meu próprio Wilson”, brinca, referindo-se ao filme Náufrago. Nos episódios do Projeto Sumir, Samir dialoga com a câmera: “Comecei a gostar da solidão. Antes não gostava, mas hoje em dia eu sinto a serotonina em ebulição quando estou com uma mochila nas costas andando sozinho.”

Reflexos da experiência

A sós ou em grupo, viajar é sempre ir ao Setembro de 2014 | Cásper

33


divulgação multishow

Didi Wagner, apresentadora do Lugar Incomum, em Tóquio: em busca de experiências inusitadas

encontro de si. “Nós mesmos, eis a grande questão da viagem”, escreve Michel Onfray. “Certamente há muitos pretextos, ocasiões ou justificativas, mas em realidade só pegamos a estrada movidos pelo desejo de partir em nossa própria busca.” Segundo o filósofo, no final, é como se o viajante fosse colocado diante de um espelho que o convida a fazer um balanço de seu trajeto e se perguntar: o que aprendi de mim? O que posso saber com mais certeza do que antes da minha partida? Samir sentiu isso na pele: “Acho que os dois anos que passei viajando tiveram o peso dos 20 anos que fiz de análise”. Esses viajantes profissionais também se depararam com a necessidade do desapego – tanto material quanto emocional e intelectual. Se por um lado eles têm que abrir mão das compras baratas e das malas carregadas de produtos exóticos, por 34

Cásper | Setembro de 2014

outro têm que renunciar ao tempo com a família e muitas vezes à cultura a que estão acostumados. O roteirista Nô Mello, que normalmente visita os destinos antes das gravações do Lugar Incomum, ressalta a importância de se desprender do pensamento rotineiro da vida a que se está habituado e abrir os olhos para novos conhecimentos. Onfray completa: “Um dos riscos da viagem consiste em partir para verificar por si mesmo o quanto o país visitado corresponde à ideia que se faz dele. [Não se deve utilizar] instrumentos comparativos que imponham a leitura de um lugar com os referenciais de um outro, mas deixar-se preencher pelo líquido local”. Sobre o desapego material, a produtora Camila Pompeu lamenta o fato de ter que abdicar do consumo: “Você está gravando em uma feira incrível em

Bangcoc, onde vendem aquelas lâmpadas enormes e aqueles tapetes lindos. Esquece, você nem olha, você está lá profissionalmente e não tem como fazer as duas coisas ao mesmo tempo”. Para Samir, a situação era mais extrema. “Levei pouquíssima roupa. Comprava cueca de dois euros, usava durante três dias e jogava fora. Deixei um sobretudo maravilhoso no hotel de Pequim. A mala tinha que pesar 23 quilos e, só com o tripé, já pesava nove”, detalha. Com relação à vida pessoal, o apresentador Luís Nachbin confessa que, depois de 2008, quando se tornou pai pela primeira vez, ficou mais difícil passar longos períodos fora de casa. Para não prejudicar a relação com os dois filhos, hoje ele tenta aumentar a frequência das viagens e diminuir a sua duração. Camila, por sua vez, administra a saudade com


acervo pessoal/luÍs nachbin

vendo no projeto a possibilidade de resgatar lembranças de suas antigas viagens: “Meus dois diretores trouxeram a ideia de fazermos uma seleção das melhores situações que eu já havia vivenciado e, assim, escalamos cinquenta lugares”. Com mais de dois mil destinos, a série está indo para a sua sétima temporada.

Conduzindo sensações

Luís Nachbin em gravação na Colômbia do Passagem Para

conversas pelo Skype. Essa é a sua “maior crise”: “É muito difícil conseguir conciliar a esfera pessoal com tanta viagem. Você acaba ficando em segundo plano”.

Viajante x turista

Se cada pessoa vive a experiência de partir à sua maneira, a forma de retratar cada jornada também varia conforme o narrador. Michel Onfray, inicialmente, separa a postura do viajante do comportamento do turista. “O primeiro tem noção da vastidão do país do qual se colocou à disposição e sabe que é sempre impossível contemplá-lo por inteiro. Já o turista conheceu o destino quando viu os catálogos e os guias”, ele nos escreveu por e-mail. “O viajante se apaga e se abre ao mundo, olhando para ele; o turista o fotografa e o filma.” Nachbin complementa essa ideia ao comparar suas viagens de

trabalho com as de lazer e explica que, quando vai para fazer os programas, vive em função da história que quer construir e da interação com as pessoas que fazem parte dela; e quando está com a família pode passar dias sem se relacionar efetivamente com alguém do local. Nesse sentido, o olhar turístico e o olhar do viajante descritos por Onfray parecem existir em quantidades distintas em cada programa televisivo. Os modos de narrar de um e de outro se diferenciam pelas suas intenções: ou seja, a maneira como retratam a realidade dependem de qual enfoque querem dar aos episódios e de qual é o seu público alvo. Álvaro Garnero, por exemplo, apresentador do programa 50 por 1, da Rede Record, diz que pretende ser o “condutor das sensações de quem está em casa”. Assim, ele se coloca sempre no centro das ações,

Álvaro explica que as pautas do 50 por 1 se relacionam sempre com os sentidos – um sabor, um aroma, uma paisagem – e que são voltadas “para quem gosta de viajar”: “Na verdade, é um programa de experiências, que é no que o turismo vem se transformando ao longo dos anos. Mais do que estar em algum lugar, viajar é experimentar o que este lugar pode nos oferecer”. O apresentador menciona ainda que o projeto pretende dar uma contribuição cultural. Na última temporada, “Águas do Brasil”, eles optaram por visitar regiões que poucos conhecem. “Para mim, difundir esses cantos, as suas paisagens, a gastronomia e o povo local é sempre memorável”, diz. No caso do Mundo Segundo os Brasileiros, em que o locutor é o próprio morador do local, a intenção é balancear as informações turísticas. Por isso, é indicado quanto o imigrante gastou em cada refeição, por exemplo. São incluídas também curiosidades sobre o modo de vida de quem vive no exterior. Para a produtora Camila Pompeu, todo tipo de conhecimento agrega valor ao produto final. “O objetivo é mostrar outros países através de um olhar parecido com o do telespectador. Acho que o maior diferencial do programa é trazer essa visão muito particular e única de quem é daqui, mas mora lá”, observa. Segundo Nô Mello, o Lugar Incomum também trata de assuntos que turisticamente possam interessar ao público; e define o programa como “infotainment” Setembro de 2014 | Cásper

35


divulgação multishow

acervo pessoal/luís nachbin

Luís Nachbin em Acra, Gana

– informação que ao mesmo tempo entretém o espectador, sem exigir dele nada além de um “envolvimento voluntário”. Para o roteirista, o importante é conversar com um público que tenha o “espírito viajante”, “aquela pessoa que não só vai escolher um destino que seja um pouco fora do convencional como também vai fazer coisas que não sejam tradicionais”. Assim como Álvaro Garnero, Didi Wagner se insere bastante nas situações que relata, vivendo cada uma dessas experiências diretamente: “A ideia é explorar o lugar de uma maneira pessoal, com a apresentadora vivendo na pele o que o ambiente pode propiciar”, ele acrescenta. Para Luís Nachbin, que busca “informar, inspirar e gerar reflexões sobre a realidade”, a inclusão ou não do narrador em um relato de viagem depende tanto da história que se está contando quanto do formato do programa e do locutor em si. No Passagem Para e no Entre Fronteiras, 36

Cásper | Setembro de 2014

Didi Wagner em Roma

muitas vezes a sua inserção se dá através do seu olhar sobre os lugares com a câmera. Já Samir Abujamra, cujo trabalho autoral é essencialmente autorreferenciado, usou a sua vivência individual como elemento condutor do Projeto Sumir. Dois episódios, aliás, mostram a viagem que ele fez com sua família pela Europa. “Não é jornalismo. O programa é sobre a experiência pessoal de um cara que está andando pelo mundo. Não dou informação, o espectador que vá pesquisar. Estou contando o que aconteceu comigo”, revela em tom debochado. Um homem, uma filmadora e suas errâncias configuraram uma narrativa que, diferentemente dos outros programas televisivos de viagem, se afasta radicalmente do turismo. O formato foi evoluindo aos poucos, mas sempre respondendo à liberdade criativa do autor. Samir escolhia a linguagem que lhe parecia melhor em cada situação: na frente da câmera, descrevendo algum

acontecimento, ou com sua voz em off, explicando algo enquanto as paisagens desfilavam diante dos telespectadores.

Os protagonistas

Dependendo dos viajantes, os modos de narrar uma travessia podem ser completamente distintos, mas existem duas premissas sobre as quais todos os que amam o movimento (e que não assumem a postura egocêntrica do turista que Michel Onfray descreve) concordam. A primeira delas é que a pessoa que parte em direção a qualquer lugar deve estar aberta ao desconhecido, olhando-o com o máximo de neutralidade e sensibilidade. “Viajar supõe menos o espírito missionário, nacionalista, eurocêntrico e estreito do que a vontade etnológica, cosmopolita, descentrada e aberta”, argumenta o filósofo. Nô Mello complementa: “Cada cultura tem um tempo, um jeito de responder, um trâmite local, e


acervo pessoal/camila pompeu

acervo pessoal/samir abujamra

Samir Abujamra no Benim

cabe a nós nos encaixarmos e sabermos navegar por eles”. A segunda compreensão comum é de que as pessoas com quem se tem contato em uma viagem são mais essenciais do que qualquer lugar ou paisagem que se possa visitar. Para Camila Pompeu, por exemplo, que acabou fazendo muitos amigos pelo mundo, são as interações entre os brasileiros e a população local que dão um “gostinho especial” para o programa. Nachbin afirma que cenários bonitos são como uma espécie de bônus, e que o importante é o personagem e sua história serem marcantes. “Se você viajar para Piracicaba e para Paris existe a possibilidade de você gostar muito mais de Piracicaba, porque lá você conheceu muita gente incrível e em Paris você não conheceu ninguém”, completa Samir, que pensa em escrever um livro sobre as pessoas que conheceu durante os seus trajetos. De acordo com Onfray, se a viagem

Camila Pompeu na Tailândia

começa quando fechamos a porta de casa e deixamos para trás o nosso ponto de referência, ela também termina quando retornamos a esse marco. Apesar de todo o conhecimento que se adquire na estrada, é fundamental regressar ao chão de origem. “O reencontro com o domicílio dá um sentido ao nomadismo – e vice-versa”, sublinha. “Nenhum ser humano se move no planeta sem um ponto de referência fixo e capaz de ser reencontrado.” O amante do deslocamento, no entanto, jamais deixará o seu lado errante imergir: “Saber-se nômade uma vez é o que basta para nos convencer de que tornaremos a partir. A busca de si termina no momento do último suspiro”, analisa. “Viagem é o que me move. É como um motorzinho que me mantém viva”, define Camila. E Samir, apontando para sua tatuagem, diz: “Olha o que está escrito no meu braço: estrangeiro aqui como em toda parte. É como eu me sinto”.

+

Livro Teoria da Viagem: Poética da Geografia Michel Onfray

A Viagem: Caminho e Experiência Luiz Gonzaga Godoi Trigo

Setembro de 2014 | Cásper

37


entrevista


FORA DA Karina Buhr conta por que não é preciso seguir padrões para fazer arte Por Júlia Barbon Imagens Diego Ciarlariello

E

la é cantora, compositora, atriz, percussionista e ainda faz uns bicos como blogueira e desenhista. De sangue, é metade baiana; de alma, inteira Recife; mas desde 2001 habita a metrópole paulistana. Nascida no maracatu, mas conhecida também pelo punk, pelo rock, pelo reggae e às vezes pela balada romântica, Karina Buhr tira música até de pedra: ela diz que escreveu a canção “O pé”, de seu primeiro CD solo, Eu Menti pra Você (2010), inspirada por um buraco que viu na rua. Depois de participar, em Pernambuco, de bandas como Comadre Fulozinha, Eddie, Mestre Ambrósio e Estrela Brilhante, foi convidada por Zé Celso, ícone dos palcos brasileiros, para atuar no Teatro Oficina, em São Paulo. A cantora lançou o seu segundo disco independente em 2012. O DVD do Longe de Onde, com arranjos bem mais pesados e letras ainda mais centradas na sonoridade e na força das palavras, é o

seu próximo projeto. Famosa pela performance marcante em shows, ela acredita que seus CDs não dizem tudo. Em um café próximo à sua casa, na Vila Madalena, Karina não economizou tempo para falar sobre seu processo de criação, sua personalidade e sua relação com o palco. O que te inspira na hora de escrever uma música? Qualquer coisa. Sempre falo isso: às vezes uma coisa maravilhosa não dá vontade de escrever nada. E às vezes uma besteira te dá uma luz. A música “O pé”, que é do primeiro disco, eu escrevi por causa de um buraco que vi na rua. Sempre tem uma “faiscazinha” inicial. Na hora, você anota em um caderninho e deixa dentro da bolsa. Normalmente não escrevo pensando “vou escrever isso com tal intenção”, e sim sobre o que vem na minha cabeça, sobre o que estou sentindo das coisas. Também não componho pensando em ter mais público, faço do jeito que quero e fico torcendo para que muita gente curta. Aliás, os Setembro de 2014 | Cásper

39


trabalhos de que eu mais gosto são os que eu faço pensando em nada mesmo. Quando vou montar um disco, tento costurar e formar uma narrativa com todas as músicas, mas esse processo de direcionar acontece sempre depois. Tenho a impressão de que você é uma pessoa que não gosta muito de colocar as coisas em formatos engessados. É, não gosto mesmo. Até para falar do que eu faço fico agoniada, porque é tudo tão misturado que acho estranho separar. Eu não encho a boca para dizer “eu sou atriz”, por exemplo. Talvez eu diria, se eu só fizesse isso. Às vezes, queria ficar só tocando, mas aí aparece convite para ilustrar e não posso recusar. Se as coisas estão rolando é porque de alguma maneira você cavou aquilo, então não faz muito sentido desperdiçar essas oportunidades legais. No final, essa confusão acaba sendo até uma inspiração para mim. Mas tenho dificuldade de me definir. Na verdade, acho que não quero me definir, aí a dificuldade aumenta. Mesmo as minhas ilustrações. Em uma época eu desenho de um jeito e na outra eu desenho de outro. Não consigo me enquadrar. Também não entro em nenhum gênero específico: seria mais fácil se eu tocasse só reggae, só rap ou só românticas, mas minhas músicas são muito diferentes umas das outras. Você parece ter uma relação bastante íntima com Recife. De que forma a cidade influencia a sua música? Me influencia muito. Eu comecei a tocar por causa de Recife, pelas coisas que eu estava vivendo lá, naquela época, no começo dos anos 1990. Estava fazendo um som ali na bagunça do carnaval e, quando vi, aquilo tinha virado o meu trabalho. Nasci em Salvador, mas fui para Pernambuco pequena. Gosto muito de mudar de cidade e de bairro, já morei em uns oito ou nove lugares desde que vim para São Paulo, mas a minha casa, mesmo, o meu chão, é Recife. Então, por mais que eu fique longe de lá, tudo que fizer sempre vai ter alguma coisa a ver com a minha origem. Hoje, eu vou bastante para ver minha família, mas ainda vou menos do que gostaria. E nunca perdeu o sotaque nordestino. Não, porque é natural. Nunca fiz força para perder, apesar de ter pegado algumas gírias de São Paulo. Hoje em dia não é mais assim, mas, quando lancei o Eu Menti pra Você, via muita gente assustada com o meu sotaque. Achavam que eu estava forçando. Mesmo lá, em Recife, você liga a televisão e só ouve aquela pronúncia meio híbrida de Rio de Janeiro e São Paulo. Mesmo quando o ator é de lá. Aí, quando é para fazer papel de nordestino, eles mesmos já repetem aqueles estereótipos. Já treinaram tanto para falar de outro jeito que ficam fazendo clichês deles mesmos. Acho que para ator é assim, qualquer língua vai, mas não gosto dessa padronização. Muita gente diz que você é performática nos shows. O que acha desse tipo de comentário? Isso é outra coisa que foi natural. É engraçado ver as imagens do começo. Eu ficava bem quietinha no palco. Tem um vídeo 40

Cásper | Setembro de 2014

em que eu canto algumas músicas do primeiro disco para um programa e o primeiro comentário no Youtube é: “Manda essa menina tirar o Super Bonder da mão” (risos). Esse estilo foi vindo com o palco mesmo; assim como a música, foi ficando mais agressivo, mas não foi nada pensado. Às vezes eu até falo: “Nesse show eu não vou pular, não vou correr, não vou me jogar”. E quando vejo, já estou lá. Quando está no palco, o que você sente? Eu acho que é o momento mais sincero. É muito mais verdadeiro do que aqui, dando entrevista. Aqui, você pensa no que vai falar, no palco não tem muito como esconder as coisas. Estúdio é bom para gravar e deixar aquilo registrado, mas a melhor parte para mim é tocar, viajar para tocar e conhecer os lugares tocando. O show representa muito mais o meu trabalho do que o disco. Ouço o CD e não acho que ele diz tudo. No palco, cada vez as músicas mudam, eu vou falando e as letras ganham um sentido totalmente diferente, dependendo de onde estou e de quem está me assistindo. Eu sempre peço para não colocarem aquelas luzes em que você não vê o público, só vê uma névoa, porque senão você fica só no seu mundo.

tenho dificuldade de me definir. Na verdade, acho que não quero me definir, e isso aumenta a minha dificuldade de definição


O que a maquiagem representa para você? No dia a dia, quase não uso. Adoro sair sem maquiagem. Uso mais no show mesmo. Fui colocando e quando vi já tinha virado palhaça. Acho que é como ir para outro lugar. Ela divide, você sai do seu estado natural. É tipo óculos escuro ou copo de vinho. O palco para mim é um lugar de imaginação, outra dimensão, e acho que a maquiagem me ajuda nisso. Quando você coloca o figurino e se pinta, já sai um pouco dessa normalidade, já vai para uma coisa mais sonho do que sala de visitas. Qual é a sua opinião sobre a indústria musical hoje? Tem gente que fala que as gravadoras faliram. Acho que aquele esquema em que elas funcionavam pode até ter falido, mas agora elas trabalham de outro jeito. Antes eles tinham o monopólio de tudo, botavam muita grana e era só aquilo que tocava. Hoje, não. Com a internet, você pode mostrar a sua música sem alguém ter que querer mostrá-la para você. Então, eles estão diversificando mais também. A Banda Calypso, por exemplo. Eles sempre fizeram o próprio trabalho, bombadíssimos ali, no quintal deles. Depois é que veio a gravadora. Isso acontece muito. Até agora preferi fazer meus CDs independentemente. O Eu

Menti pra Você não tem nem distribuidora e o Longe de Onde teve só o patrocínio da Natura, que bancou apenas a gravação do disco e cinco shows. Mas, se aparecer alguma coisa que eu ache legal e que não me prenda, tudo bem também. Você também é conhecida por suas ideias feministas. Você se considera um símbolo desse pensamento? Acho que todo mundo que fala sobre isso diariamente acaba se tornando uma espécie de símbolo, mas isso não significa nada. Você pode conversar ali com a sua família ou até na mesa do bar, o importante é mostrar tanto para o homem quanto para a mulher que existem coisas que a gente repete e não sabe nem o porquê. Nós somos criadas para sermos sempre princesas, educadas, compreensivas. E os caras são criados para ir atrás de sucesso. O Kinder Ovo de menina tem maquiagem, e o de menino tem um brinquedo de ciência. Isso faz muita diferença. Foi uma coisa que me atrapalhou bastante durante toda a minha vida. Eu deixei de fazer muita coisa que eu queria por conta disso. Meu sonho era tocar percussão em candomblé, por exemplo, mas nunca pude porque, até hoje, na maioria dos terreiros, mulher não toca.

+

CDs de Karina Buhr Eu Menti pra Você (2010)

Longe de Onde (2012)


portf贸lio

42

C谩sper | Maio de 2012


Mares do

pacĂ­fico Por Luciano Candisani

Maio de 2014 | CĂĄsper

43


44

Cรกsper | Setembro de 2014


T

odos os dias, durante a maré baixa, as mulheres e crianças da ilhota superpovoada de Bilang-Bilangan, nas Filipinas, vão ao mar em busca de alimento. Coletam ovas de caramujo, ouriços e conchas num ambiente cuja beleza e bom estado de preservação contrastam com a precariedade das condições de moradia em terra. É um modo de vida sustentável, mas ameaçado pela mudança nos padrões de consumo da população local, que pode gerar um grande desequilíbrio ambiental. Documentei, ao lado de outros três fotógrafos da International League of Conservation Photographers (Liga Internacional de Fotógrafos Ambientais, em tradução livre), o cotidiano dessa e de muitas outras vilas localizadas ao longo da Danajon Banks, uma das principais barreiras de corais do mundo. Uma área tropical de natureza pujante onde 500 mil ilhéus, amontoados em inúmeras e exíguas porções de terra, estabelecem uma ligação visceral – mas nem sempre positiva – com o mar. Não muito longe de Bilang-Bilangan, por exemplo, prevalece a pesca com explosivos caseiros. Lançadas sobre cardumes nas águas rasas e cristalinas, essas bombas atordoam os peixes e facilitam a pesca, mas também matam os corais e outros organismos. A ampla reportagem fotográfica, fruto da nossa expedição visual para as barreiras Danajon, foi montada como exposição itinerante. A mostra abriu nos Estados Unidos e já passou por Londres e Singapura. Hoje, está no ocean park de Manila.

Luciano Candisani cresceu “entre o mar e o mato” e iniciou sua carreira registrando expedições científicas. Fotógrafo da revista mundial National Geographic, ganhou cinco prêmios Abril de Jornalismo e, em 2012, recebeu o Wildlife Photographer of the Year. É autor de sete livros fotográficos.

Setembro de 2014 | Cásper

45


Crianças misturam trabalho e diversão durante a atividade diária de coleta de organismos para alimentar a família

À noite, mergulhadores vasculham os recifes rasos em busca de cavalos marinhos. Os pescadores utilizam lampiões a querosene adaptados à proa das canoas, uma prática ancestral de captura submarina típica dessa área do Pacífico. Não há fiscalização

46

Cásper | Setembro de 2014


Cavalos marinhos secos ao sol aguardam a visita de um comprador. Símbolos da região, eles costumavam ser abundantes em Danajon. Hoje, as suas populações declinam drasticamente pela ação de traficantes de animais silvestres, abastecendo o comércio ilegal com outros países da Ásia Setembro de 2014 | Cásper

47


A população local fiscaliza os recifes rasos de onde tira o seu sustento. O embate entre necessidades urgentes de sobrevivência e a conservação desses recursos naturais não é restrita à ilha remota de Bilang-Bilangan. Cerca de 500 milhões de pessoas no mundo todo dependem das barreiras de coral para sobreviver. E estima-se que 30% delas já tenham sido destruídas 48

Cásper | Setembro de 2014


Setembro de 2014 | Cรกsper

49


tecnologia

O meio

es

Como funciona e o que existe na deep web, a internet que nรฃo conseguimos ver Por Nathalie Provoste

50

Cรกsper | Setembro de 2014


curo E

ngana-se quem pensa que todo o conteúdo da internet pode ser encontrado com um clique no Google. Fora do alcance dos navegadores convencionais, existem milhares de outros sites ocultos. Eles formam um conjunto conhecido como deep web, ou “web profunda”, que, ultimamente, vem ganhando cada vez mais atenção – e uma fama sombria. Ao contrário da rede habitual, a deep web não pode ser acessada através de um navegador comum, como o Google Chrome ou o Internet Explorer: é necessário que se use o Tor. Criado pelo laboratório de pesquisas da Marinha americana

para proteger as comunicações do governo dos Estados Unidos, o navegador se tornou uma importante ferramenta para serviços secretos. Isso porque nele qualquer usuário pode ser anônimo, ou seja, não ter o seu endereço IP (número que identifica cada computador) revelado. A deep web é, então, o espaço perfeito para sites que usam a tecnologia do SecureDrop, plataforma que permite uma comunicação segura entre jornalistas e pessoas com informações secretas sobre governos, por exemplo. Por outro lado, ela também se tornou um terreno fértil para vários tipos de crime – de pedofilia e tráfico de drogas a assassinato de aluguel e rituais de canibalismo. Na web comum, não faltam histórias

envolvendo a “rede obscura”, mas é difícil confirmar algumas delas. Há casos que já ocuparam até a mídia convencional, como o do site de mercado negro Silk Road, que foi tirado do ar recentemente por uma ação do FBI e virou notícia em grandes veículos como o The New York Times e o The Huffington Post. As compras de serviços ou de produtos ilegais são feitas por uma criptomoeda chamada bitcoin. Por ser independente de autoridades centrais e de outros intermediários, ela permite o pagamento direto entre vendedor e cliente, preservando a identidade das duas partes. Dessa forma, adquirir armas ilegais, drogas e até cédulas de dinheiro e documentos falsificados fica fácil e seguro. Setembro de 2014 | Cásper

51


martelo de tor Como o navegador Tor mantém seu usuário anônimo

Em um navegador convencional como o Google Chrome ou o Internet Explorer, o servidor conecta você (A) direto ao destino que você quer acessar

Com o Tor, um caminho alternativo é feito com várias conexões criptografadas até o destino

A

L

R

M

A

L

R

M

servidor 1

U

T

D

servidor 1

U

T

D

E

J

Z

E

J

Z

relay conexão não-criptografada

conexão criptografada

servidor 2

Muitos desses sites de vendas e serviços ilícitos estão escancarados na deep web, assim como fóruns e bancos de imagens de violência. Há, inclusive, um gênero para vídeos de brutalidade explícita (e real): são os chamados snuffs – que também podem existir na “superfície” da web. Agentes policiais costumam se infiltrar nessas páginas para tentar localizar criminosos e, por isso, muitos administradores de sites exigem uma senha de acesso, ou um pedido de entrada. A “reputação assustadora” da rede oculta, portanto, não é à toa.

Território obscuro

No meu primeiro mergulho na deep web, preferi ter a companhia de alguém que entendesse melhor do assunto. O desenvolvedor web e estudante de computação que se identifica na internet pelo nome Starkhus, foi quem aceitou ser meu guia. Expliquei a ele que tinha receio de fazer algo de errado na rede, como ter meu computador infectado por vírus, ao que 52

Cásper | Setembro de 2014

servidor 2

ele respondeu abrindo o navegador Tor em seu notebook: “Mas não precisa ser hacker para acessar a deep web”. Quando percebi que não tinha nenhuma ideia de qual site acessar, voltamos a um navegador comum para procurar, na “superfície” da internet, endereços de sites na deep web. E eles não poderiam ser mais difíceis de serem memorizados: o link da Hidden Wiki, página que lista vários outros endereços da rede oculta, é “zqktlwi4fecvo6ri. onion”, por exemplo. Depois de carregada a página, que tem design semelhante ao da Wikipedia, Starkhus diz: “Pronto, entramos na Matrix”. Na página inicial da Hidden Wiki, há uma amostra do conteúdo que se pode encontrar na deep web; que choca também pela maneira explícita como se apresenta: “Réplicas de alta qualidade de notas de euro”; “Assassinatos por crowdfunding anônimos, protegidos e seguros”; e “Mercado anônimo de drogas, armas e muito mais” são alguns dos anúncios. Starkhus observa que ainda existem muitos outros


A deep web não possui apenas um lado macabro: há também locais de ativismo político, pesquisas acadêmicas e serviços de e-mail

sites bem “escondidos”, como fóruns de máfias e sociedades secretas. O Tor, no entanto, não foi criado para oferecer um espaço seguro para criminosos. Na verdade, de acordo com o site do projeto, seu objetivo é a garantia de privacidade pessoal e a proteção contra a censura de governos e de grandes corporações aos seus usuários. Por isso, o navegador é muito admirado pelos que defendem uma “internet mais livre”. A deep web não carrega apenas um lado macabro: nela, há também locais de ativismo político, pesquisas acadêmicas e serviços de e-mail – além, claro, de documentos que denunciam más condutas de governos, como é possível encontrar no site WikiLeaks. Starkhus, porém, não vê muito sentido em criar uma dicotomia entre ativistas e criminosos na deep web. “Ela é neutra”, ele opina, sem manifestar espanto diante dos sites de vendas ilícitas que vemos listados no Hidden Wiki. No documentário Buying Guns and Drugs on the Deep Web, do canal Motherboard, um homem

que vende pistolas ilegais na Alemanha através de um site oculto avalia: “É claro que sei que criminosos existem [na deep web] e que crimes podem ser cometidos lá, mas você também pode fazer isso com qualquer arma do mercado negro, ou até com armas legais”. Na sua visão, trabalhar como fabricante de armas é apenas um hobbie, assim como seu gosto por atirar. Com tanto conteúdo ilícito e assustador disponível na rede obscura, blogs na internet convencional costumam desaconselhar os leitores a acessá-la. Fala-se do risco de vírus, da chance de crackers invadirem o computador ou até da possibilidade de o usuário acidentalmente encontrar algum conteúdo traumatizante. Starkhus não se impressiona com esses avisos: “Tenho o martelo de Tor para me proteger”, ele brinca. O navegador esconde tanto a localização dos sites quanto a dos internautas, preservando o transporte das informações e os endereços utilizados. O Tor funciona basicamente assim: se um

usuário está no ponto A e quer chegar ao ponto Z, ao invés de conectá-lo por um caminho que vá direto ao seu destino, ele faz um trajeto alternativo, passando por uma série de outros pontos aleatórios na rede. Primeiro, ele faz uma conexão criptografada ao ponto F, depois, uma nova conexão criptografada ao ponto K e assim por diante, até fazer uma nova conexão ao destino final, o ponto Z. Cada um desses pontos (que são conhecidos como relays) não reconhece, portanto, o caminho inteiro, mas apenas o ponto de onde recebeu a informação e o ponto para onde a enviou. Mesmo com todo esse sistema, descobrir a localização de algum computador que use o Tor não é impossível, embora a tarefa se torne muito mais difícil. Por isso os funcionários de governos que agem como informantes (whistleblowers) no WikiLeaks ou os traficantes que vendem drogas no site SilkRoad sentem-se tão seguros. Por outro lado, há um aviso no próprio site do Tor aconselhando o usuário a não abrir documentos baixados através do navegador enquanto o internauta estiver online – especialmente arquivos de texto –, porque eles podem revelar o endereço IP do computador. “Não farei o download de nada”, diz Starkhus, por via das dúvidas.

Autonomia e anonimato

Por mais macabros que alguns sites da deep web pareçam, em nenhum momento somos forçados a entrar neles: o Tor não redireciona o usuário automaticamente para nenhum link. Isso significa que, para acessar um site malicioso na rede oculta, a pessoa precisa procurá-lo. “Não é como se você abrisse o Tor e, de repente, aparecessem várias pop-ups de vírus e pornografia no seu computador”, Starkhus explica. Seth Schoen, tecnólogo sênior na Electronic Frontier Foundation – uma organização sem fins lucrativos baseada Setembro de 2014 | Cásper

53


na sombra Alguns dos serviços curiosos da rede oculta

em São Francisco que defende as liberdades civis no mundo digital –, também demonstra que a quantidade de sites existentes na deep web não é grande se comparada aos dados da internet habitual (onde estima-se que residam cerca de 1 bilhão de websites – considerando estes como nomes que, usando nomes de servidores, podem ser convertidos em endereços IP), como já apontaram estudos recentes das Universidades de Berkeley e de Luxemburgo. “Em 2013, foram computados algo entre 24 mil e 61 mil serviços escondidos, dependendo da metodologia do levantamento e da definição que se usa para ‘serviço escondido’ ou ‘site escondido’”, observa. “Mas também é importante destacar que muitos deles são sites privados, pessoais ou efêmeros, que não oferecem conteúdo para terceiros”. Outro argumento dos que querem desmistificar o “lado sombrio” da deep web é o fato de alguns sites ocultos também existirem na internet comum. É o caso do buscador DuckDuckGo, que pode ser encontrado simplesmente pelo endereço “duckduckgo.com” em um navegador convencional, mas que corresponde ao link “3g2upl4pq6kufc4m.onion” no Tor. Assim, o atalho com final “.onion” é apenas um outro jeito de acessar o site. “A diferença é que, na web normal, o usuário sabe – ou melhor, tem a opção de saber – o endereço IP do servidor, e por isso pode encontrar a empresa de hospedagem do site, por exemplo. Ao mesmo tempo, o servidor reconhece o endereço IP do usuário, e por isso tem o poder de determinar a localização dele”, explica Seth. “Já nos serviços escondidos, nem o servidor sabe o endereço IP do usuário, nem o usuário sabe o endereço IP do servidor, então ambos são anônimos”, completa. 54

Cásper | Setembro de 2014

Este site de ativismo hacker também existe na web “normal”, mas com um aviso: apenas acessando esta página na deep web é que o seu anonimato é garantido.

Para criar uma conta anônima neste serviço de e-mail, basta inserir nome, senha e um pin. Simples assim.

Há quem se refira aos sites “.onion” pelo termo darknet – o que não revela um uso muito cuidadoso da linguagem. A palavra foi criada em 2002 por engenheiros da Microsoft e está relacionada aos meios que as pessoas utilizam para compartilhar informações sem passar por um controle centralizado: seja por torrent, sites de hospedagem de arquivos ou até pen drives, no mundo físico.

Foco de luz

A expressão deep web também provoca confusões. Historicamente, o termo designava apenas os recursos da internet que não podiam ser encontrados pelos mecanismos de busca, não tendo nenhuma relação com o Tor: na prática, mesmo na web “de superfície” há muito conteúdo que pode ser acessado, mas que não pode ser localizado em buscadores. Há vários

sites que não são abertos ao público, como páginas internas corporativas e sites pessoais ou secretos, disponíveis só por convite. Existem na web normal, por exemplo, páginas que violam as leis de direitos autorais e que se protegem apenas com senhas exclusivas, não disponíveis aos demais usuários ou aos motores de busca – ou seja, ocultos por uma tecnologia nada complexa. Para Seth Schoen, a ideia de “uma web que não conhecemos” ou “outra versão da internet” serve mais para designar a internet de um país estrangeiro do que a deep web. Segundo ele, o que realmente produz essa sensação de desconhecimento é a diferença que se sente quando se experimenta os sites de nações e comunidades linguísticas distintas. “Há muito conteúdo na rede que, na prática, é quase invisível para quem não fala um idioma


Documentos e cédulas de dinheiro falsificados, armas e drogas: tudo isso pode ser encontrado neste mercado online. Os pagamentos são feitos apenas por bitcoins.

Em forma de índice, a Hidden Wiki reúne diversos sites em categorias: finanças, política, blogs, pornografia, bancos de imagens ou páginas em português.

“Um, dois, três, o demônio está vindo. Quatro, cinco, seis, melhor trancar a porta”, diz o aviso desta galeria de fotos . Porém, algumas das imagens parecem montagens.

Um símbolo da sociedade secreta Illuminati, um campo de login e outro de senha. Não há nenhuma outra informação na página inicial deste site.

específico ou para quem não mora em um determinado país”, aponta. “Muitos usuários praticamente não reconheceriam a internet se entrassem em contato com ela em outra língua ou se tivessem que utilizar os serviços que os cidadãos de outras regiões usam em seu dia a dia.” Em países onde a censura é mais generalizada, esse efeito é mais forte. Na China, por exemplo, existem serviços locais pouco conhecidos no resto do mundo: é o caso do Weibo, equivalente chinês para a rede social Twitter. Seth também acredita que a definição da deep web como uma outra internet sob a “superfície” que conhecemos, usada frequentemente para explicar o termo, é errada na prática. Isso porque, como já foi dito, os sites existentes na rede oculta são poucos e menos populares em comparação aos endereços da

web comum. “A parte escondida de um oceano é muito maior do que aquela que vemos, e não me parece assim com os serviços escondidos: eles estão apenas na casa dos milhares, e não têm muito conteúdo ainda. Não vamos encontrar outro gigante como o Facebook, o Google ou a Wikipedia pela deep web, pelo menos”, enfatiza o tecnólogo. De fato, a única rede social que encontrei durante a minha visita à internet oculta foi o Twitter Clone, cuja página tem o design semelhante ao Twitter que conhecemos. O site tem apenas 8 mil usuários (em comparação aos mais de 645 milhões no Twitter “original”) e, para ver os tweets, é necessário se registrar. As cinco hashtags mais utilizadas por lá, porém, são todas relacionadas à pornografia – uma delas à pedofilia, inclusive. Neste caso, preferi não me aventurar mais a fundo.

+ Na internet Tor Project: Anonimity Online www.torproject.org

Deep dive: in defense of a neutral net http://bit.ly/1p2mj4m

Setembro de 2014 | Cásper

55


relações públicas

evitando

fissuras A Muitas vezes esquecido pelas empresas, o gerenciamento de crises é crucial para prevenir fatalidades Por Gabriela Boccaccio

56

Cásper | Setembro de 2014

cem mil árvores na floresta amazônica. Se um satélite não capta o fato e ninguém fica sabendo, nada acontece. Mas se você corta uma árvore na porta da sua firma, pode gerar uma crise brutal”. Para evitar adversidades, a MVL insere a prevenção de crises nos planos de relacionamento com o cliente oferecidos às empresas, preocupando-se em analisar quais situações podem afetar cada organização, especificamente. Lopes exemplifica: “Quando uma companhia aérea é criada, sabe-se que a pior coisa que pode acontecer é a queda de um avião”. É necessário, então, estudar quais os procedimentos possíveis no campo da comunicação e qual a melhor maneira de lidar com os colaboradores, com a mídia e com as pessoas afetadas. A partir disso, um manual de gestão de crises é redigido – e a comunicação é apenas uma parte dele.

Estratégia preventiva

Lopes esclarece que não são todos os funcionários que recebem treinamento para atuar nesse tipo de contexto. Por mais

que a instituição passe por um momento difícil, o negócio tem que continuar funcionando. Sendo assim, poucos empregados ficam responsáveis por administrar o cenário desfavorável. Todos recebem instruções básicas de como redirecionar a imprensa para os porta-vozes, e normalmente são apenas estes que obtêm orientações específicas sobre como lidar com a mídia, depois de passar por um media training. João José Forni, que também ministra palestras e cursos sobre o assunto, explica que uma crise tem dois pilares: o operacional e o comunicacional. “Se você não cuidar da parte funcional, nem o melhor assessor pode resolver a situação”, diz. Em seu livro, são apontadas as principais origens dessas conjunturas nocivas: “danos à reputação, marca ou produtos; percepção de má gestão ou de comportamento inadequado dos executivos; e problemas causados por grupos de interesse ou ativistas”. Ele também comenta que, segundo pesquisas, as adversidades que recebem a atenção da mídia estão geralmente relacionadas a problemas com funcionários (independentemente

sxc.hu/GoFish

gestão de crises é a estrutura que impede que uma empresa desabe e restem apenas suas ruínas. Deixado de lado por muitas corporações, sejam elas públicas ou privadas, o gerenciamento de crises é lembrado apenas quando os pilares que sustentam o edifício já estão rachados. No entanto, as instituições que reforçam suas bases permanentemente sofrem menos com eventuais impactos e conseguirem se levantar da queda ainda mais fortes. Os motivos que levam uma companhia a uma crise são múltiplos, mas o que a define, segundo João José Forni, autor do livro Gestão de Crise e Comunicação, é uma “ruptura com a normalidade do negócio da organização”. Para Mauro Lopes, sócio-fundador da MVL Comunicação, ela “causa sempre um prejuízo a alguém e tem o potencial de causar danos à reputação da marca”. O jornalista ilustra esse argumento com uma imagem: “Você pode derrubar


do cargo ou posição) ou ex-funcionários. De acordo com Forni, um pequeno comitê deve ser formado: “Dez pessoas, no máximo. Profissionais competentes”. Os responsáveis pela comunicação devem manter um bom relacionamento com a cúpula da empresa, o que facilita o diálogo entre os dois suportes da organização. Além disso, o profissional deve conhecer a firma e entender sua dinâmica para adquirir a capacidade de analisar os mecanismos de prevenção. Por fim, Forni lembra que a autoridade é um traço necessário para esse funcionário, que deve saber se impor dentro do comitê, já que a reputação da empresa está em suas mãos.

Com o público

Mauro Lopes também estabelece algumas regras para lidar com a imprensa. Na sua visão, em entrevistas exclusivas pode-se perder em clareza, caso alguma informação não seja bem explicada pelo porta-voz da instituição ou plenamente entendida pelo entrevistador. Além disso, o diálogo é estabelecido apenas com um público específico, o que limita o alcan-

ce das declarações. Já com coletivas de imprensa, comunicados oficiais e manifestações nas redes sociais, atinge-se mais pessoas e normalmente comunica-se de maneira mais clara, sem deixar lacunas. Há casos em que as mídias sociais podem igualmente se transformar na própria origem das crises. Por isso, mesmo em épocas “calmas”, é necessário que o atendimento da instituição seja eficaz. O monitoramento é importante para acompanhar a reputação do negócio. Pensando nisso, Lopes desenvolveu com sua equipe um software capaz de monitorar o que é falado sobre seus clientes e responder às dúvidas dos consumidores. “Não existe espaço vazio na comunicação: se eu não falo de mim, outra pessoa falará”, afirma o jornalista, que atuou na crise da Gol em 2006, causada pela queda de um avião no dia 29 de setembro daquele ano. Na época, as redes sociais ainda não tinham a força de hoje e os planos de ação eram diferentes. Ele conta que, após o acidente com a aeronave, comunicados oficiais eram lançados a cada duas horas, atualizando as informa-

ções sobre o ocorrido. No dia seguinte, foi realizada uma coletiva de imprensa. Nenhuma entrevista exclusiva foi concedida. Antropólogos e psicólogos especializados em luto também orientaram os funcionários sobre como tratar do assunto com as famílias das vítimas. Mesmo antes do incidente, a Gol já havia criado um manual de gestão e costumava realizar simulados de seis em seis meses, procedimento padrão nas corporações que solicitam o serviço da MVL. Os responsáveis pelo setor de prevenção não são avisados previamente e só descobrem que se trata de um teste depois de algumas horas. Mauro Lopes justifica esse processo: “Não é o texto do manual que capacita a empresa, e sim a teoria executada na prática”. E cita uma frase de David Barioni, que liderou a sala de crise da Gol: “Só se joga aquilo que se treina”.

Antecipando o perigo

A preparação da companhia teve impacto positivo na sua reputação e nos seus resultados. Segundo dados do Escritório de Pesquisa Eugenia Paesani, as vendas Setembro de 2014 | Cásper

57


acervo mvl

Não existe espaço vazio na comunicação: se eu não falo de mim, outra pessoa falará

Mauro Lopes, sócio-fundador da MVL Comunicação

da organização aumentaram 15% seis dias úteis após o acidente, e o preço das ações subiu, passando de 75 reais no dia do desastre para pouco mais de 79 reais na semana seguinte. A agilidade na gestão da situação rendeu para a Gol, em 2007, o Prêmio Aberje Nacional e Regional de São Paulo. Para o especialista João José Forni, a crise econômica de 2008 fez com que as companhias se preocupassem com a criação de um planejamento caso algo acontecesse, mas ainda assim isto é negligenciado: a MVL oferece este serviço aos seus clientes, mas nem todos o aceitam. Há aqueles que, por uma questão de custo, o consideram desnecessário. “As instituições não acreditam que vão passar por um momento assim. Estão preocupadas com metas e não imaginam que algum problema possa afetar suas vendas.” Mauro Lopes completa essa teoria criticando a cultura empresarial brasileira, que crê se possível “se virar” nas situações de aperto. Quando uma empresa em um ramo 58

Cásper | Setembro de 2014

similar passa por uma situação de crise, as atenções das corporações também costumam se voltar mais para a possibilidade de dificuldades. O caso do incêndio na boate Kiss em Santa Maria (RS), por exemplo, alarmou as casas noturnas, que passaram a se preocupar fortemente com a segurança dos estabelecimentos. Forni, ao se lembrar deste efeito, lamenta que seja apenas temporário: “Passou e todo mundo esqueceu”. Muitas vezes, as instituições só procuram uma assessoria de comunicação quando a tensão já está acontecendo. Para o sócio-fundador da MVL, esse é o pior momento para a tomada de decisões, uma vez que o nervosismo e a pressão por parte da mídia e dos consumidores são grandes e, por isso, são exigidas respostas muito rápidas. Na era das redes sociais, em que uma opinião pública pode ser formada em instantes, a agilidade das empresas é ainda mais importante. A Coca-Cola, por exemplo, em 2013, foi abalada por um consumidor que afirmava ter sofrido danos irreparáveis à saú-

de depois de ingerir um refrigerante que continha um rato. Rapidamente, imagens satirizando a marca surgiram na internet e matérias sobre o caso se espalharam. A situação ganhou ampla visibilidade, mas a Coca-Cola respondeu de forma eficiente com vídeos institucionais que convidavam os consumidores a visitar a sua fábrica e procuravam mostrar a transparência da multinacional. As primeiras doze horas após o início de uma crise são cruciais e definem se o edifício cai ou permanece de pé. Antigamente, era desejável que a empresa se manifestasse em até uma hora, durante a chamada Golden Hour. Atualmente, quanto mais rápida a ação, menos impactos negativos. Minutos fazem toda a diferença. Para Forni, se a empresa perder o timing, “não está mais conduzindo as circunstâncias do ponto de vista da comunicação”, e isso pode significar muito em momentos realmente instáveis. Segundo Mauro Lopes, “em situações que envolvem mortes, o espaço vazio é preenchido por tristeza e revolta”.”.


Os quatro pecados capitais da gestão de crises Mecanismos de defesa usados erroneamente durante a administração de uma crise, segundo Mauro Lopes

Mentir

guerrear

Muito além de questão moral, é um recurso desleal do gestor para tentar se proteger. Ética e transparência são fundamentais.

Para não ter que se responsabilizar, a instituição vê o cliente prejudicado como um inimigo e questiona os seus direitos.

enrolar O departamento jurídico defende o financeiro para que o caixa da empresa não seja comprometido com indenizações.

Omitir fatos Para evitar outras crises, melhor permitir que eventuais informações comprometedoras tornem-se públicas.

Setembro de 2014 | Cásper

59


60

Cรกsper | Setembro de 2014


resenha

Entre o

corpo mundo eo

Que alterações significativas ocorreram no regime de percepção criado pela sociedade industrial? Por Welington Andrade Ilustrações Thaís Helena Reis

A

leitura de um título muito relevante de teoria crítica lançado no Brasil em 2013 convida à reflexão a respeito de como o mundo contemporâneo tem lidado com as categorias da percepção e da sensação, que levam inevitavelmente ao problema da subjetividade. Em Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna (volume que integra a coleção Cinema, Teatro e Modernidade, editada pela Cosac Naify), Jonathan Crary, professor de arte moderna e teoria da arte na Universidade de Columbia, trata das alterações significativas no regime de percepção criado pela

sociedade industrial do século XIX cujos impactos se estendem aos dias de hoje. Detendo-se sobre o fenômeno da urbanização acelerada vivido no Ottocento como uma conquista do capitalismo industrial, Crary estuda o problema da atenção e da subjetividade modernas a partir da relação que se dá entre percepção, sensibilidade, pesquisa científica e experiência estética. As ideias apresentadas pelo autor podem sair da esfera do século de Baudelaire e ser examinadas à luz dos dias atuais, nos quais a cultura do espetáculo tem caráter marcadamente disciplinador. “O que importa para o poder institucional, desde o final do século XIX”, afirma o autor, “é apenas que a percepção funcione de tal modo a garantir

que um sujeito seja produtivo, controlável e previsível, que seja adaptável e capaz de integrar-se socialmente”. O livro de Crary está dividido em quatro alentados capítulos que irão refazer o percurso histórico do olho moderno, que não apenas olha, como também observa, ajustando-se às imposições disciplinares do trabalho e às novas tecnologias presentes na vida urbana. O que rapidamente cria interesse no leitor é o fato de o autor associar, de forma tão atraente e original, suas observações sobre a obra de pintores como Manet, Seurat e Cézanne a uma rica e complexa rede de referências filosóficas, históricas e científicas, estendidas para o diálogo com autores como Walter Benjamin, Michel Setembro de 2014 | Cásper

61


Foucault, Gilles Deleuze e Guy Debord. No primeiro capítulo, “A modernidade e o problema da atenção”, Crary trata das formas assumidas pela atenção como um objeto relacionado à organização e ao controle concreto da educação e do trabalho, examinando os paradoxos implícitos em uma categoria recentemente modernizada. O capítulo seguinte, “1879: a visão que se desprende”, detém-se longamente sobre as telas O Balcão e na Estufa, de Edouard Manet, para abordar como as incertezas e a maleabilidade da atenção eram testadas no ano a que o capítulo faz alusão, quando outras organizações de unificação e síntese perceptiva tomavam forma. No terceiro capítulo – “1888: iluminações do desencantamento” –, a obra de Georges Seurat é tomada como uma “investigação sobre a visão subjetiva e suas consequências epistemológicas, mas também coincide com um modo de entender a percepção e a atenção como elementos inextrincáveis de um campo social de resposta coletiva”. Por fim, o quarto capítulo – “1900: reinventando a síntese” – volta-se ao estilo de Cézanne, entendido como uma tentativa de retratar a superação da percepção controlada da cultura do espetáculo, “que faria atenção atenta a tudo menos a si mesma”, segundo as palavras do próprio pesquisador. Ao terminar a leitura, o estudioso ou interessado no tema terá usufruído de uma série de reflexões que o ajudarão a pensar criticamente a respeito de como as inovações tecnológicas criam embates em nossa contemporânea sociedade do espetáculo, para a qual a percepção do tempo e do espaço se reveste de uma condição toda especial. As palavras “espetáculo” e “espectador” provêm da forma latina spectare, que significa “olhar, observar atentamente, contemplar”, derivada, por sua vez, da forma grega optiké, cujo sentido é “a arte de ver, a ciência da visão”. Uma vez que a própria palavra “teatro” em grego 62

Cásper | Setembro de 2014

implica a ideia de “lugar de onde se vê”, pode-se afirmar sem sombra de dúvida que as artes cênicas, ou artes do espetáculo, desde seu nascimento, elegeram o olho humano como sede da percepção do espectador. Olho que foi sendo estimulado a ler essa cena — não nos esqueçamos de que o étimo de “ler” aponta para a ideia de “colher com os olhos” — de muitos modos até concentrar sua atenção no ciclorama, a grande tela, geralmente semicircular, que cobre o fundo e os lados do chamado palco italiano, criando ilusões óticas (espaço aberto, distância, céu…) que nada mais são do que o exercício da visão de uma centralidade, dependente de um olhar fixo, monocular. Embora continue sendo o símbolo máximo da percepção intelectual, o olho humano também é capaz de franquear ao indivíduo o acesso a experiências eminentemente sensoriais e afetivas. Em sua função de recepção da luz, o órgão da visão, por exemplo, pode flagrar um alumbramento, um aparecimento, um prodígio — noções que fazem parte do campo semântico da palavra espetáculo e que se relacionam mais propriamente

com ocorrências percebidas não somente pela miríade de glóbulos oculares que há espalhados por todo o corpo humano como também pelo olho do coração. Entretanto, conforme aponta o estudo de Jonathan Crary, um novo regime de percepção parece estar em curso. A emergência das tecnologias digitais contemporâneas tem convidado artistas e intelectuais à reflexão a respeito de como o espectador observa e percebe os fenômenos óticos nos dias de hoje — levando os especialistas ao necessário estudo do problema da atenção e da subjetividade modernas a partir da relação que se dá entre percepção, sensibilidade e experiência estética. As áreas da cultura e da educação — todos sabem — passam por profundas transformações ligadas ao desenvolvimento de novos aparatos da visão. Nas salas de aula e nas casas de espetáculos mais variadas, não há dúvida alguma, há um novo tipo de observador cuja atenção não se dirige direta e integralmente ao professor ou ao artista que ele tem diante de seus olhos. Esse novo indivíduo que “observa” divide todo o tempo sua atenção entre uma presença viva, humana, e


Embora continue sendo o símbolo máximo da percepção intelectual, o olho humano também é capaz de franquear ao indivíduo o acesso a experiências eminentemente sensoriais e afetivas

um dispositivo tecnológico, uma máquina (como um celular ou um tablet, por exemplo), propondo-nos uma indagação: é possível ao homem concentrar-se exclusivamente sobre algum objeto, hoje, em plena era cibernética? Os dispositivos informacionais em profusão têm levado os indivíduos a um estado de excitação mental no qual “olhar” significa reconhecer rapidamente padrões e “observar” implica a ideia de ser um usuário de um sistema informacional em moto perpétuo. Desse modo, a interação homem/máquina começa a agir na plasticidade cerebral. Todos olhamos continuamente para telas de cristal líquido à espera de que algo aconteça, isto é, de que alguma nova informação nos seja transmitida celeremente. Na esfera da cultura do entretenimento, concebida hoje em escala industrial nos grandes centros urbanos, boa parte dos espetáculos não tem outra função senão a de disciplinar a atenção do espectador, submetendo-o a um estado de contemplação ou de fascinação por meio dos quais os produtos culturais contemporâneos procuram desconectar

os sujeitos de sua interioridade significativa, oferecendo-lhes em troca uma rede de sinais firmada somente nas malhas da comunicação fática e do consumo. Algo como, “faço parte de um mundo espetaculoso e sensacional, logo sou”. Nadando na corrente das dóceis percepções ou das sensações excitadas a que estão alternadamente submetidas as massas na cultura moderna, o homem moderno tem vivido em uma sociedade que de modo vertiginoso atualiza seu arsenal técnico e cria sub-repticiamente uma rede complexa de mecanismos tecnoinstitucionais que parecem tão inevitáveis quanto inofensivos. A leitura de Suspensões da Percepção: Atenção, Espetáculo e Cultura moderna convida o leitor a refletir criticamente sobre todo esse processo, levando-o a examinar não somente os fenômenos da consciência como também o problema da subjetividade emancipadora. Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio e em Letras pela Universidade de São Paulo. Também é professor da Faculdade Cásper Líbero.

Setembro de 2014 | Cásper

63


noticias Yuri Andreoli

casperianas

PP

Jornalismo

Jornalistas discutiram temas como trabalho coletivo e conexão em rede

Quem mexeu no meu jornalismo? “Quem mexeu no meu jornalismo?”, evento ocorrido em maio, abordou duas temáticas principais nas mesas de debates mediadas por Guilherme Alpendre, diretor-executivo da Abraji. A primeira buscou uma reflexão sobre as diferentes formas de financiamento no jornalismo. Questões como “É possível viver de jornalismo?” e “Como financiar a produção e circulação de notícias?” foram condutoras nas falas de André Deak (Casa da Cultura Digital), André Santoro

jornalismo. Os participantes Bob Fernandes (TV Gazeta), Elizabeth Saad (ECA -USP), Rafael Kenski (Editora Abril) e Renato Rovai (revista Fórum) dialogaram sobre o deslocamento da atividade jornalística em uma realidade pós-industrial. A pergunta “O jornalista morreu?” guiou as reflexões que abarcaram desde os conceitos como “jornalismo colaborativo” até a necessidade de democratização da mídia. O debate também pôde ser acompanhado por livestreaming.

traga um bom retorno para o cliente?” Esta questão pautou a segunda edição do Content Summit, evento realizado em julho. Publicitários, profissionais de mar-

keting e interessados na área discutiram o tema com a ajuda de personagens expoentes do mercado, especializados em mídia, conteúdo e estratégias de produto.

Content Summit “Como criar nas diversas plataformas um conteúdo interessante e engajador, que valorize o posicionamento da marca, aproxime os consumidores e, claro,

64

(Mackenzie), Natalia Viana (Agência Publica) e Leonardo Sakamoto (PUC-SP), que, por meio de experiências pessoais, compartilharam ideias e soluções alternativas para quem procura criar modelos de comunicações sustentáveis fora das redações tradicionais. A conexão em rede, o trabalho coletivo e o incentivo ao poder do repórter dentro e fora da redação foram aspectos enfatizados nas falas. A segunda mesa levantou interrogações sobre as formas narrativas dentro do

Cásper | Setembro de 2014


Relações Públicas Rádio e TV

8ª Semana do Audiovisual

No último mês de maio a Faculdade Cásper Líbero (FCL) foi sede do seminário em comemoração aos 50 anos de carreira do jornalista Ricardo Kotscho. Grandes nomes da imprensa como Eliane Brum, Clóvis Rossi, Audálio Dantas, Jorge Araújo, Hélio Campos de Mello e Maria-

A Comissão Casperito, formada por alunos do curso de Rádio, TV e Internet da Faculdade Cásper Líbero, promoveu entre os dias 11 e 15 de agosto a 8ª Semana do Audiovisual, com apoio da coordenadoria de RTVI. O evento proporcionou aos estudantes a troca

na Kotscho, filha do homenageado, relembraram a carreira do jornalista por meio de histórias surpreendentes que entrelaçam a experiência pessoal ao contexto da profissão no Brasil. Memórias do trabalho com os colegas em redação e marcantes coberturas históricas, como a morte de Vladmir

Herzog e a redemocratização do país foram compartilhadas. Kotscho agradeceu a homenagem e contou que não havia uma boa reportagem que ele ainda não fez. Para o jornalista a melhor reportagem é sempre a próxima - “Sou um chato e vou até o fim para conseguir a matéria”, complementou.

de ideias e experiências sobre aspectos pertinentes à área por meio de palestras, mostra de trabalhos e workshops. Diversos temas foram abordados, desde roteiro e criação até iniciação como Dj. Um dos pontos altos foi, sem dúvidas, a palestra do grande diretor de Tv Nilton

Travesso, que foi homenageado com um troféu simbólico pelos mais de cinquenta anos de produção audiovisual. Ainda, os futuros profissionais participaram de uma conversa com a equipe de produção executiva dos Canais Fox sobre o futuro da PayTV.

Ricardo Kotscho: 50 anos de carreira Também em maio a Faculdade Cásper Líbero foi sede do seminário em comemoração aos 50 anos de carreira do jornalista Ricardo Kotscho. Grandes nomes da imprensa, como Eliane Brum, Clóvis Rossi, Audálio Dantas, Jorge Araújo, Hélio Campos Mello e Mariana Kotscho, filha do homenageado, relembraram a carreira do jornalista por meio de histórias surpreendentes, que entrelaçaram a experiência pessoal ao contexto da profissão no Brasil. Foram compartilhadas as memórias de trabalho com os colegas em redação e as coberturas históricas marcantes, como a da morte de Vladmir Herzog e a da redemocratização do país. Eliane Brum enfatizou a ideia do Kotscho como a “lenda do jornalismo”- um profissional que inspirava os iniciantes na carreira e que “não se deixava corrompoer pelo ‘sim senhor’”. Já Audálio Dantas compartilha a fala que se tornou característica do homenageado: “Não se pode deixar acabar com os repórteres, estamos em uma batalha diária”. Perguntado se havia alguma reportagem que gostaria de ter feito, Kotscho respondeu: “A melhor reportagem é que ainda não fiz, ou seja, a próxima. Sou um chato. Vou até o fim para conseguir uma matéria”.

Yuri Andreoli

Jornalismo

3º PRATICOM

Kotscho recebeu convidados e relembrou suas reportagens

Setembro de 2014 | Cásper

65


crônica

Galhos AO

CÉU Por Elisa Andrade Buzzo

66

Cásper | Setembro de 2014

simos galhos que se ramificam em direção ao azul se tornam pequenas bocas contorcidas e enregeladas pela estação. A grama do retângulo já não verdeja, tendo secado em tons de amarelo. E assim estas árvores são a mata ciliar deste rio violento. Habituada com o caos e a feiura, acostumar-se com a beleza e a harmonia é fácil. Pois tudo aqui me chama a atenção, enquanto uma rua limpa com suas árvores já frondosas em simetria se instala em meus olhos como uma perspectiva límpida e sem reveses. Parece que a vida em situações-limite nos impõe uma casca mais grossa e fortificada, enquanto as avenidas corretas se distanciam, como todo sonho que são. Assim lançadas em ninho preparado, mas depois deixado à própria sorte, estas árvores mais parecem ter eclodido da cria de algum réptil, subitamente desaparecido, e lançadas ao relento e à sua própria sorte. Inúteis? Fraquejadas? Mas ainda talvez vida, alguma coisa que respira. E entre os exemplares plantados, em frente à minha janela um alto galho ramificado, longe do alcance das mãos, oferece suas folhas à cidade. Elisa Andrade Buzzo é jornalista e estreou na literatura com Se Lá no Sol. Seu último livro de poesias, Vário Som, foi finalista do Prêmio Jabuti 2013. Publicou também a antologia de crônicas Reforma na Paulista e um Coração Pisado.

sxc.hu/KatKelly

A

lgumas madrugadas se passaram até que todos os buracos foram abertos nas calçadas, superfícies retangulares em que ainda se podiam descobrir os cacos dispostos. Imaginava-se que se tratava de mais uma das inúmeras perfurações na cidade que, como um corpo em apuros e necessitado de aparos, precisasse de canos e cabos subterrâneos. Alguns dias mais e nada aconteceu. Talvez ninguém na cidade tivesse adivinhado aquelas aberturas rentes ao solo. Parece que estamos, assim, acostumados com descuidos na paisagem, com o lixo que se acumula na sarjeta, com o pôr do sol manchado de cinza. Uma manhã, abro a janela e me deparo com homens numa van branca, jogando terra boa e fresca nos novos canteiros. E noutra manhã qualquer, o bairro amanheceu com mudas novas e longilíneas. Tratava-se, então, de uma tentativa de arborizar. Agora os longos caules estão lá, aparados por três pedaços de madeira unidos. Alguns deles se lançam unitários, outros, tridentados, de onde se pode presumir alguns botões. A gelidez das noites de inverno parece não perturbá-los, solitariamente e sem alarde os vegetais travam uma luta interna por sua vida. Ao lado, a avenida segue seu curso com ferocidade, e aqueles brotos incapazes, decepados antes mesmo de se tornarem árvores, mais parecem tentativas infrutíferas de algo. Seus finís-


Revista Cásper

de volta ao mundo

Nº 13 – setembro de 2014



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.