Revista Cásper #14

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´ casper

Nº 14 – Dezembro de 2014

o arco e o tempo Um território de índios guaranis a 50 km da Sé

dominique wolton As expansões e contrações da comunicação

web feminismo As novas formas de militância nas redes

ângulos de risco Fotojornalismo na linha de frente das guerras



´ CASPER Fundação Cásper Líbero Presidente Paulo Camarda

o próximo e

SUPERINTENDENTE GERAL Sérgio Felipe dos Santos

Faculdade Cásper Líbero diretora Tereza Cristina Vitali VICE-DIRETOR Welington Andrade

Revista Cásper Núcleo Editorial de Revistas Coordenador de Ensino de Jornalismo Carlos Costa Editor-chefe Sergio Vilas-Boas Editora Ana Beatriz Rosa Conselho Editorial Adalton Diniz, Carlos Costa, Roberto D’Ugo, Sergio Andreucci, Sergio Vilas-Boas, Walter Freoa e Welington Andrade Reportagem Ana Beatriz Rosa, Heloísa D’Angelo, João Hidalgo e Mariana Gonzalez EditorA de Arte e Fotografia Nathalie Provoste projeto gráfico Pedro Camargo Diagramação Débora Stevaux e Thaís Helena Reis Colaboradores Caio Pimenta, Carlos Costa, Isabela Yu, Juan Esteves, Rogério Christofoletti, Simonetta Persichetti e Welington Andrade Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874 E-mail: revistacasper.fcl@gmail.com Site: www.casperlibero.edu.br/revistacasper Capa Raphaele Palaro

o

local

Ao longo de quase todo o século XX, o jornalismo de reportagens narrativas se baseou na parceria repórter-fotógrafo, que, juntos, viajavam pelo mundo para, entre outras coisas, desvendar lugares e povos distantes, desconhecidos do grande público. O desenvolvimento do audiovisual a partir dos anos 1950, entretanto, alterou bastante o modo de produzir o jornalismo escrito. Some-se a isso o fato de que na nossa “cultura-mundo” (conceito criado pelo filósofo Gilles Lipovetsky para descrever a sociedade hipercapitalista, globalizada e tecnológica em que vivemos) predomina a crença de que “não há mais fronteiras”, como se o local e o global fossem culturalmente indistintos, e os ideais de pertencimento estivessem totalmente fora do horizonte de demandas. A reportagem de capa desta edição # 14 da Cásper oferece uma perspectiva diferente sobre tal assunto, tendo como foco a experiência de integração dos índios Guarani Mbya, da aldeia Tenondé Porã, que usam a assimilação de elementos urbanos como estratégia para se protegerem como etnia e como povo. A cópia dos costumes que os circundam é vista como uma forma de autopreservação, não como sinal de submissão. Os Guarani Mbya habitam uma área demarcada dentro do território da maior metrópole da América Latina, mais precisamente em Parelheiros, distrito ao sul da cidade São Paulo, a cerca de 50 km da Praça da Sé. “Sua localização é estratégica, em termos de mobilidade e comunicação. A facilidade de acesso à Serra do Mar é fator importante para a recepção temporária dos indígenas que se deslocam do interior para o litoral.” Outra matéria importante, e que tem relação direta com a da aldeia guarani, é o perfil de Dominique Wolton, pesquisador camaronês radicado na França. Ele se autodenomina um “obcecado pela globalização”, no sentido de que o nervo central de seu trabalho teórico é a percepção de que o mundo está cada vez menor. “Meu trabalho, no contexto da mundialização, da globalização, é refletir sobre as identidades culturais, mas não para matá-las.” As condições humanas e suas identidades estão refletidas também na reportagem “Web feminismo”, que aborda o espírito de luta de jovens mulheres em busca de revalorizar e difundir o feminismo por meio da arte.

Tereza Cristina Vitali Diretora

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SUMÁRIO 06

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dominique wolton

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o arco e o tempo

Pesquisador francês vê o reconhecimento das identidades culturais como um caminho para a paz

O equilíbrio entre tradição e modernidade na tribo guarani Tenondé Porã, a 50 km do centro de Sampa

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fotojornalismo

As experiências dos premiados fotojornalistas André Liohn e Alice Martins em situações de guerra

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o céu que nos protege

Uma visão tão particular quanto instigante sobre o controverso uso de drones no jornalismo

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faixas de risco

Produtores e músicos dispensam as gravadoras para criar selos colaborativos e de autoprodução

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entrevista

Ricardo Gandour, diretor de conteúdo do Grupo Estado, defende a inovação na gestão da informação

38 retratos autorais O belo chiaroscuro dos portraits de famosos criados por Juan Esteves com uma sensibilidade incomum


CAMINHOS DA ARTE

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resistência ao fim

Iniciativas pontuais têm contribuído para evitar a extinção total dos cinemas de rua Brasil afora

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web feminismo

A internet como propulsora da consciência jovem acerca do protagonismo da mulher contemporânea

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ANO 07 N0 80 • AGOSTO 2014 / YEAR 07 N0 80 • AUGUST 2014 • TAM.COM.BR

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SeÇões 60 63 66

resenha

56 MURAL O BEIJO, DO BRASILEIRO EDUARDO KOBRA, VISTO A PARTIR DO HIGH LINE THE KISS, A MURAL BY BRAZILIAN ARTIST EDUARDO KOBRA, VIEWED FROM THE HIGH LINE

notícias casperianas crônica

Conforme o cliente

Seja qual for o meio, os conteúdos customizados facilitam o diálogo das marcas com seus públicos

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perfil

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DOMINIQUE

WOLTON Para o pensador da comunicação, a visão da internet como “fator de emancipação” é tão utópica quanto ultrapassada Por Carlos Costa Fotos José Geraldo de Oliveira

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nsisto que é indispensável valorizar a atividade do jornalista. Quanto maior o volume de informação, mais necessidade teremos de profissionais para interpretar e criar essas narrativas. Hoje, o que o modelo econômico prega é justamente o contrário: basta dominar algumas técnicas e ferramentas digitais e está tudo feito. Eu me irrito muito com os colegas da academia que dizem essas besteiras. É falta de dignidade intelectual.” Com essas palavras, pronunciadas num francês acelerado e inflamado, o pesquisador Dominique Wolton resume sua posição de defesa da atuação crítica do jornalismo. Embora houvesse prome-

tido falar pausadamente, Wolton, nascido em Douala, na República de Camarões, filho de um inglês com uma francesa, se expressou com a velocidade de uma metralhadora. Emociona-se quando discorre sobre suas próprias ideias, e, nos momentos de maior entusiasmo, não é nada fácil acompanhar suas frases incisivas. De porte um tanto franzino, calvície reluzente, tem olhos risonhos e busca transmitir humor quando faz trocadilhos com o interlocutor. Nada a ver com a imagem tradicional de um pesquisador e escritor de renome. Bacharel em Direito e doutor em Sociologia pelo Institut D’Études Politiques de Paris, Wolton criou e dirige desde 2000 o Laboratório de

Informação, Comunicação e Implicações Científicas – minúscula parte do gigantesco e mundialmente renomado Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS), que contabiliza mais de 10 mil cientistas desenvolvendo projetos de energia, química fina e engenharia nuclear.

Ritmo francês

Com uma obra em que se destacam títulos como Elogio do Grande Público: Uma Teoria Crítica da Televisão (Ática, 1990); Pensar a Comunicação (UnB, 2004); Internet, e Depois? – Uma Teoria Crítica das Novas Mídias (Sulina, 2009), entre outros, Wolton criou e dirige a revista Hermès, uma das mais importantes publicações de Dezembro de 2014 | Cásper

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Para Wolton, a questão política do século XXI é a convivência entre as culturas

comunicação da atualidade. Mas quem espera seriedade e sisudez desse pesquisador ficará surpreso com suas “peraltices”. Em nossa conversa, prevista como uma entrevista para a revista Communicare, do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero (CIP), fui acompanhado do fotógrafo Geraldo Oliveira e do escritor francês François Chapel. Este, um defensor feroz da cultura francesa de pontualidade, marcou o encontro trinta minutos antes do horário combinado. “Nem se chega depois do horário combinado nem antes”, ensina Chapel. Mas quem chegou atrasado foi monsieur Wolton, destoando dos cânones franceses. Sua secretária, Anne-Marie Boua, nos ofereceu água e café e nos acomodou em uma sala. O acertado era que a conversa duraria pouco mais de meia hora, dada a agenda lotada do pesquisador. Descontando os quinze minutos de atraso, fiquei pensando que a pontualidade não deveria valer para o horário previsto para encerrar. Teríamos mais tempo no final? 8

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“Vamos lá, os senhores têm todas as perguntas alinhavadas?”, indagou Wolton, acomodando seu smartphone sobre a mesa. E logo emendou: “Bem, vocês têm as perguntas, mas o problema é que não tenho as respostas [risos]. Nem tenho tanto tempo [ainda em clima de brincadeira]. Podemos, então considerar a entrevista encerrada aqui? [risos]. Os senhores estão em São Paulo, não é?” Foi nesse ritmo que transcorreu a conversa. Wolton prometia dar a entrevista ainda este ano, quando viesse ao Brasil em setembro. Mas com uma ressalva: viria ao Rio, Brasília e Porto Alegre, mas não a São Paulo. “Não se chateie, mas o que me aborrece em São Paulo é o aeroporto. Estive lá no ano passado e foi o mesmo de sempre. Fila na imigração, interminável; fila para recolher a bagagem, ninguém merece [risos].” Mas muda o tom quando fala de seu amor ao país. “O Brasil é um país tão acolhedor, tão quente; ele é preto, é escuro, é claro, colorido, luminoso, uma experiência inenarrável. Até o pessoal das

empresas aéreas são agradáveis, melhores do que os atendentes aqui da França. ”

Mosaico identitário

Wolton se mudou ainda pequeno da República dos Camarões para a Costa do Marfim, onde fez os primeiros estudos. Com a morte do pai, acompanhou a mãe na volta à França. Tinha 9 anos. Sem nenhum toque de nostalgia, diz que a África foi muito importante na criação de suas referências e de sua identidade. “Tenho duas fontes, a de um imaginário livre e outra, um pouco louca. A África me doou essa coisa meio irracional e emotiva. Meu pai era inglês. Ele morreu quando eu era pequeno, mas conservei algo das raízes britânicas de um desejo de liberdade, liberdade de espírito... e tenho certeza de que meu lado anarquista, independente, vem desse tipo de filiação inconsciente entre a mistura da Inglaterra com a África, além das viagens... Adoro viajar, adoro a globalização, talvez por causa dessa mistura europeia e africana.”


O jornalista precisa de muita bagagem cultural para criar narrativas críticas da realidade Dominique Wolton

Ao definir-se como “um obcecado pela globalização”, Wolton quer dizer que o coração de seu trabalho teórico é a percepção de que o mundo é muito, muito pequeno. Graças à internet, ao rádio, à televisão, todo mundo vê todo mundo, e as diferenças serão cada vez maiores, na visão dele. “Ou a gente desacelera para ter o tempo necessário para se entender, ou acelera ainda mais com isso”, diz, apontando o smartphone. E adianta: os homens irão brigar ainda mais porque a visibilidade no mundo atual é ponto central. A gente tende a ver mais as diferenças do que as semelhanças. Por isso, o ódio ao outro ainda irá aumentar – e muito, segundo o pensador. “O homem detesta que o outro se pareça com ele, pois não gosta de quem lhe é espelho e semelhante. Daí que todo o meu trabalho, no contexto da mundialização, da globalização, é o de refletir sobre a questão das identidades culturais, mas não para matá-las. Minha hipótese é que se a identidade cultural e a diferença do outro forem re-

conhecidas – e este é um caminho longo, lento e complicado – haverá condições para a paz de amanhã”, complementa. Na globalização, diz ele, o reconhecimento da diversidade de culturas é um caminho para a paz; e a questão política do século XXI será a construção de uma coabitação, de uma convivência cultural. No decorrer dessa fala, fomos surpreendidos pelo espalhafatoso som de chamada do smartphone de Wolton. Uma soprano (seria Maria Callas?) num trecho de ária mixada, com toques eletrônicos. Ele se atrapalha um pouco, sai da sala, sussurrando em resposta ao chamado. Quando volta, percebe que perdera o fio da narrativa, sempre pontuada por enumerações (1, 2, 3 ou a, b, c). Pediu a François Chapel, que então anotava num caderno trechos da fala, para ajudá-lo a se localizar. Pedidos como esse ocorreram outras duas vezes ao longo da conversa. Viajante contumaz, Wolton diz que a diversidade cultural é o que o atrai. Países como o Brasil, diz ele, são exemplos

incríveis, porque: a) são complexos; b) há um excesso de desigualdades, econômicas e sociais; mas c) por enquanto ainda há uma coerência que não existe em muitos outros países. “Isso é inacreditável. Em 30 anos, a unidade brasileira se estabilizou. Ela agora existe, e isso é um exemplo positivo, pois é um país muito grande, com uma população numerosa. E é um país muito rico...”

Eterno estrangeiro

Quando voltou à França, aos 9 anos, Dominique se sentiu “fora de lugar”. Ele se surpreende ao usar essa expressão na conversa: “Nunca tinha pensado nisso antes, mas agora me veio, espontaneamente. E está certo. Eu era um inadequado, um fora de lugar, quando cheguei na França. Essa noção de se sentir estrangeiro, eu atribuo ao carinho que sinto por todos os imigrantes, por todos os que se sentem estrangeiros nesse mundo em que não conseguem encontrar suas identidades”. Diz que detesta a França, por sua Dezembro de 2014 | Cásper

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As revelações feitas por Edward Snowden mostram a que ponto a falta de regulação propicia abusos e espionagens Dominique Wolton

atitude frente aos imigrantes que hoje compõem a multicolorida nação de Asterix. “Claro que amo meu país, mas detesto essa atitude. Somos um povo multicultural. Há os cidadãos franceses do Ultramar; os habitantes vindos de países de fala francesa, majoritariamente africanos; os imigrantes do leste europeu e os que vieram dos países asiáticos. Passamos o tempo todo posando como se fôssemos apenas brancos. As cores da França são o branco, o preto, o amarelo, o mulato, o marrom, o mouro. Nós somos coloridos. Há, aqui, nessa rejeição do outro, uma espécie de loucura francesa, muito maior do que a dos ingleses. Em nossa loucura, não reconhecemos os ‘estranhos’. Considero isso muito grave, porque, ao mesmo tempo, nós, franceses, não paramos de dar lições ao mundo. Não paramos de falar em universalismo, em convivência, em integração, etc. E na verdade somos um país de comunidades que quase não se integram, não convivem, em que não há tolerância, sobretudo com os estrangeiros”. O tema do “estrangeiro”, aliás, é 10

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um dos grandes temas da globalização, para Wolton. Quando adolescente, ele faz questão de contar, viveu com a mãe numa pequena cidade nos arredores de Paris, chamada Montmorency. Por coincidência, ali se refugiara Jean-Jacques Rousseau, perseguido pela polícia do rei. Ele fugiu para lá e escreveu vários livros (Rousseau viveu de 1757 a 1762 nessa cidade, onde escreveu Emílio, ou da Educação, e Do Contrato Social). Essa referência ao refugiado famoso abre caminho para a conversa sobre influências que marcaram sua trajetória. E daí até falar sobre a formação do jornalista hoje foi um passo.

Caminho de sucesso

A receita para formar um jornalista nos tempos atuais, para Wolton, é ampla. De novo, ele vem com uma enumeração: 1) Grande ênfase em estudos gerais, história, política, cultura, antropologia, sociologia, teorias da comunicação, disciplinas obrigatórias, muitas, muitas; 2) O pensamento crítico. Crítico, mas radical no

sonho e, sobretudo, contra o “pesadelo” das novas tecnologias; 3) Pensamento econômico: quais os novos modos de negócio a criar para jornais, rádio, televisão e internet, pois não existe esse modelo econômico no momento atual; e 4) Sair, ver o mundo, ou seja, qual é o problema político que se impõe agora para os meios de comunicação no mundo atual? “Nunca houve tantos atalhos, nunca houve tanta técnica como agora, nunca houve tanto volume de informação e o campo da informação vai se abrindo cada vez mais [faz um gesto de alargamento com os braços] e ao mesmo tempo há o movimento contrário [gesto de contração]. Quer dizer, todo mundo diz as mesmas coisas.” Como tantos pesquisadores, ele confessa que imaginava há vinte anos que, quanto mais veículos existissem, maior diversidade teríamos, maior seria o leque de possibilidades. Mas constata que ocorreu justamente o contrário. “Quanto mais canais novos aparecem, menor a abrangência, mais restrito o que é noticiado. É sempre mais do


Autor versátil, seus estudos abordam diversas áreas da comunicação

mesmo [gesto de encolhimento]. Isso é o fracasso. É preciso que os jornalistas reajam contra isso.” Não por acaso, colocou “uma sólida base em cultura geral” em primeiro lugar na lista dos quesitos para a formação do comunicador. “O jornalista irá precisar muito dessa bagagem, para criar uma narrativa crítica sobre a realidade, para saber interpretar a complexidade de hoje. Por isso, insisto que é indispensável valorizar a atividade do comunicador. Vocês são indispensáveis na revolução da informação. Mais que nunca, são os soldados da democracia, o cimento da democracia. Se as pessoas não perderem a confiança nos jornalistas, tudo será possível.”

Na vanguarda da rede

Com entusiasmo renovado, refletiu sobre a visão utópica da internet como um fator de emancipação, um discurso que, ele garante, não é novo, reforçando que há mais de uma década escreveu sobre isso (Internet, e Depois?, lançado na França em 1999). “Pelo lado do problema,

penso que o digital enfrenta três desafios: a) maior volume de informações não é comunicação; b) como, quando e quem irá controlar o fluxo das informações? A proposta de controle, por pessoa ou grupo, não é boa, o que significa que haverá coisas boas e coisas muito ruins circulando; e c) o grande desafio é que, com o volume, a memória é enorme, gerando a possibilidade de controle político e social. Em resumo, há três desafios ou desvantagens para a internet, mas ninguém fala sobre isso... Pois há um respeito sacrossanto.” O controle da internet, na visão de Wolton, será um dos maiores problemas políticos do futuro. O que fazer diante de grupos hostis à democracia que usam a liberdade desse canal para se infiltrar, disseminar informações equivocadas, violando o processo democrático e sem correr grande risco pessoal? “Infelizmente, o homem progride por meio da experiência e ainda não houve catástrofes suficientes para que se diga ‘Pare aí!’ Os Estados Unidos, primeira potência mun-

dial, têm mais interesse, por enquanto, na desordem do que na ordem. Portanto, não há outra alternativa, infelizmente, a não ser esperar que falhas, desastres financeiros e econômicos, terrorismo, levem a que se tome uma atitude.” O pensador francês insiste que é preciso criar marcos regulatórios, embora o discurso anarquista diga que não deve haver lei alguma, porque uma lei desse tipo cercearia a liberdade. “Isso é uma bobagem. Já escrevi dois livros sobre a internet há coisa de 15 anos. E digo que não há liberdade de informação se não houver lei. Aí alguém me disse, ‘Wolton, você é reacionário!’ Não sou tão reacionário, sou um democrata. As revelações feitas por Edward Snowden mostram a que ponto a falta de regulação abre possibilidades para abusos de governos em casos de espionagem, como a exercida pelos norte-americanos.” Mas a consciência política, reforça o pensador, não despertou ainda para isso, por causa dos imensos interesses financeiros, que estão por trás de quase tudo. Dezembro de 2014 | Cásper

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fotografia

olhares sobre

conflitos Os fotógrafos André Liohn e Alice Martins, publicados no Brasil e no mundo, contam como posicionam suas câmeras em situações de guerra Por Simonetta Persichetti

Q

uando existem conflitos, as pessoas deixam de se comunicar e os argumentos se perdem. A fotografia se torna uma forma de interlocução entre o fato e sua divulgação.” É assim que o fotógrafo brasileiro André Liohn explica a importância do fotojornalismo nos dias de hoje e a necessidade da presença desse profissional no cenário dos acontecimentos – que podem ser uma

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guerra, uma manifestação ou mesmo uma situação cotidiana, mas que precisa de diferentes olhares para contar histórias que devem ser registradas. Liohn nasceu em Botucatu (SP). Atualmente, é fotógrafo freelancer. Iniciou sua carreira quase que por acaso, quando estava na Noruega, fotografando por conta própria pessoas viciadas em heroína. Naquela época, não via a fotografia como uma profissão. Em 2005, decidiu acompanhar um amigo jornalista durante uma cobertura na Somália e foi

na capital Mogadiscio que ele esteve pela primeira vez dentro de um conflito. Lá, percebeu o poder e a força de uma fotografia e sentiu a necessidade de se aprofundar no tema a ser fotografado. André conta que, a partir dali, sua vontade foi tentar entender e mostrar o que acontecia ao seu redor. Fotografou a Primavera Árabe, a fome e questões de saúde na África, além de cenas do conflito na Síria. Seus trabalhos são divulgados por publicações como Der Spigel, L’Esresso e Newsweek. São imagens fortes,


Alice martins

A proximidade com cenas de confrontos ativa as percepções dos fotojornalistas

contundentes, que apontam para o que ele acredita que deve ser visto. Liohn se aproxima, se faz presente, se coloca na imagem. Esta sua força visual resultou, em 2012, no Prêmio Robert Capa de Fotojornalismo, em que foi celebrado por sua cobertura dos conflitos na Líbia.

Aproximação

Ele foi o primeiro fotógrafo brasileiro em 57 anos a receber essa premiação, cujo nome homenageia aquele que é considerado o grande olhar do século

XX quando se trata de conflitos, mas também quando se fala em luta pela paz: Robert Capa (1913-1954). É do fotógrafo húngaro a famosa frase “se a sua fotografia não ficou boa, é porque você não chegou perto o suficiente”. Mas se a imagem pode ser criadora de um debate, o contrário também é verdadeiro: “A fotografia tem essa possibilidade, mas também pode perdê-la quando esquecemos a intenção narrativa e nos preocupamos apenas com a estética. Aí ela se torna apenas uma mancha”, afirma Liohn. Dezembro de 2014 | Cásper

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andré liohn

Liohn capturou os efeitos dos bombardeios que atingem a população civil na Síria

eu Sempre me interessei por pessoas, especialmente em situações extremas Alice Martins

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A fotógrafa brasileira Alice Martins compartilha destas ideias. Ela vem se interessando em cobrir conflitos internacionais há dois anos: “Além de documentar eventos importantes, o papel da fotografia de jornalismo é fazer com que pessoas que estão muito distantes daquela realidade sintam-se mais próximas. Especialmente em guerras, acho que o mais importante é mostrar o que ela é em vários aspectos, muito além do front”. Alice, que mora em Istambul, Turquia, é fotógrafa independente. Suas reportagens já saíram em revistas como National Geographic e Newsweek, além dos jornais Libération, Le Monde e El País. Sua curiosidade por fotos humanitárias surgiu quando ela ainda era adolescente. Nessa fase, começou a acompanhar crises armadas pela televisão. Sentiu vontade de estar presente e relatar por meio da fotografia o que estava acontecendo. “Em primeiro lugar, senti a necessidade de entender os conflitos por meio de quem vive nele. Sempre me interessei

por pessoas, especialmente em situações extremas”, revela. “É essencial conhecer quem está participando dos conflitos em todos os aspectos – não só quem luta, mas também quem está lá para ajudar os outros, ou mesmo aquelas que simplesmente não têm para onde ir.” Mas não foi apenas esse olhar curioso que a levou por esse caminho: “Acho importantíssimo documentar o que está acontecendo e mostrar para o mundo. Eu diria que, em primeiro lugar, há uma necessidade de compreender, de ver com os meus próprios olhos”. Entre 2004 e 2005, Alice viveu na África, onde realizou um documentário que enfoca projetos educacionais sobre o HIV na Namíbia. Curiosamente, no começo de 2012, foi para a Faixa de Gaza, mas, embora estivesse em uma área conflituosa, seu trabalho foi documentar um grupo de adolescentes palestinos que estava aprendendo a surfar. Sua vontade era entender como em uma área de guerra havia jovens surfando, sem demonstrar qualquer


Ricardo alice martins Martins

Retratar o dia a dia de quem vive em meio aos escombros é um dos objetivos por trás das lentes

tipo de medo disso. Ela, que já foi surfista, entrou no mar com as meninas palestinas e resolveu fazer uma matéria sobre aquela atmosfera. Há dois anos Alice tem acompanhado o conflito na Síria (daí a opção de morar em Istambul). Em suas imagens, além da batalha propriamente dita, procura relatar o cotidiano de mulheres e crianças vivendo sob os ataques.

Novos significados

As questões apontadas por Liohn e Alice têm acompanhado a fotografia na última década – desde os apocaliptícos, que anunciaram a morte do fotojornalismo, até aqueles que defendem a foto como a mais forte linguagem do século XXI. Porém, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O mito do fotojornalismo, criado pela revista Life, nos Estados Unidos, em 1936, e aprofundado pela lendária agência de fotografia Magnum (escola fundada em 1947 por Henri Cartier-Bresson, Robert Capa, David Seymour e George Rodger), já não faz mais sentido hoje. O mundo

mudou, assim como os conflitos e a nossa possibilidade de acesso a informações. Acrescente-se a isto as mútiplas possibilidades que tantos os jornais como as revistas, além da internet, nos permitem ter diferentes visões e coberturas para os mesmos fatos. Assim, é possível o diálogo entre narrativas visuais diferenciadas. Nunca se publicou tantas imagens ligadas ao jornalismo. As pessoas estão aprendendo muito sobre o mundo ao vê-las. Susie Linfield, professora de jornalismo da Universidade de Nova York (NYU), afirma em seu livro, Cruel Radiance, que ninguém pode se dizer ignorante depois da invenção da fotografia. O olhar fotográfico se transformou. A estética é outra. Não se trata mais de um profissional que colocava maior relevância no fato do que em seu próprio olhar (embora, é claro, o olhar do autor sempre estivesse presente). Agora, nós encontramos fotógrafos que assumem descaradamente sua posição frente a um assunto, como partidários de sua fotografia.

Ter a ideia clara de que a imparcialidade é díficil se torna um fator primordial para que possamos entender o fotojornalismo não como uma mimese do mundo real, mas como o ponto de vista de alguém ali presente, criando sua própria história. Daí a importância de um posicionamento claro. “Não faz sentido uma fotografia sem um ‘porquê’ ou a desconexão política do fotógrafo”, acredita Liohn. Mas é também necessário reconhecer que, em meio a essa defesa da imposição de um olhar particular, muitos profissionais se afastaram do jornalismo (do fotojornalismo em si), preocupando-se mais com um tipo de estética vazia do que com a responsabilidade social e política de informar, apontar, revelar. Fotojornalismo não é poesia. É jornalismo (com sua estética própria formadora de um discurso que é sempre ideológico e cheio de significados). “Minha fotografia é sempre um confronto comigo mesmo, sempre um desafio”, explica Liohn. “Não quero ser invisível. As Dezembro de 2014 | Cásper

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andré liohn

Entre 2010 e 2011, os protestos que derrubaram o presidente da Tunísia ficaram conhecidos como a Revolução de Jasmim

pessoas que estou retratando têm o direito de saber que estou lá fotografando, contando aquela história, aquele fato. A fotografia é impositiva.” Em relação a esse assunto, Alice é mais cautelosa: “Vejo meu trabalho como um documentário da vida que segue em meio ao conflito. Na Síria, por exemplo, é impossível negar que o governo é o grande opressor, mas, ainda assim, minhas imagens não procuram tomar um lado. Procuro registrar crimes que foram cometidos contra civis, pessoas presas entre a disputa e também aqueles que escolheram participar do conflito ativamente, lutando no front”. Alice relata suas experiências e sua posição como fotógrafa: “Na Síria, tive 16

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a oportunidade singular de fotografar os dois lados da batalha, entre soldados de grupos da oposição e militantes curdos. Sinto que o resultado não representa um lado ou o outro, mas procura compreender e mostrar por que cada um está lutando. Nunca conheci um soldado que estivesse atacando alguém – todos estão defendendo a si mesmos ou lutando por um ideal. Meu interesse no conflito é mais humano e menos político”.

Múltiplas abordagens

A raíz do fotojornalismo vai desde tragédias até momentos humanitários, que envolvem generosidades e encontros que transformam pessoas. Mas enten-

der o “fazer fotográfico” apenas por essa perspectiva significa reduzi-lo a uma leitura superficial e desatenta sobre as suas possibilidades e suas funções. Desde o seu surgimento, a linguagem fotográfica tem se renovado e se recriado de tempos em tempos, buscando sempre uma autonomia e uma capacidade narrativa visual sobre o mundo. Foi assim que, no final do século XIX, ela começou a ser desenhada. Quando o profissional por trás das câmeras percebeu que a máquina não era um mero registro, ele entendeu que existe uma intencionalidade no olhar por trás das lentes e que a fotografia pode ser usada como linguagem, como mediação de


Não faz sentido uma imagem sem um ‘porquê’ ou a desconexão política do fotógrafo. Meu trabalho é sempre um confronto comigo mesmo. sempre um desafio. Não quero ser invisível. As pessoas têm de saber que estou lá para retratá-las André Liohn

denúcia, como testemunho. Não existe uma data precisa para o início do fotojornalismo, mas alguns autores consideram que o seu primórdios pode ser localizado exatamente nas guerras. Imagens posadas na Guerra da Crimeia, em 1854, feitas pelo fotógrafo britânico Roger Fenton; imagens em que corpos aparecem na Guerra de Secessão, criadas em especial por Timothy O’Sullivan e Alexander Gardner, entre 1861 e 1863; e os registros das duas grandes guerras mundiais, da Guerra Civil Espanhola e da infindável cobertura da Guerra do Vietnã; Nova York e seus hippies, a fome na África, a queda do Muro de Berlim; as impactantes fotografias

dos profissionais do Clube do Bangue-Bangue, na África do Sul, durante os anos 1990, reunidas no livro homônimo escrito por Greg Marinovich e João Silva, integrantes do grupo; o impacto do Onze de Setembro, a volta da democracia no Brasil, manifestações como as das Diretas Já e o Fora Collor; as manifestações de junho de 2013, no Brasil, as ascensões e quedas de governantes; as tragédias naturais – de tsunamis e terremotos aos problemas de saúde, como a Aids e a falta de saneamento básico, e de educação; as migrações pelo mundo também têm sido bastante documentadas. Esses são apenas alguns dos inúmeros assuntos visitados pela fotografia. Gran-

des histórias ou micro-histórias, não importa: o que vale é que mundo tem sido visto e interpretado por múltiplos olhares. Mesmo assim, sobram narrativas e histórias à espera de um retrato. No século XXI, o fotojornalismo ainda é peça importante para nos ajudar a compreender quem somos, como lembra Susie Linfield: “As fotos jornalísticas não estão aí para dizer se algo aconteceu ou se foi assim, mas sim para nos alertar de que algo não pode acontecer ou não pode ser assim”. Simonetta Persichetti é jornalista, crítica de fotografia, professora do Programa de Mestrado da Cásper Líbero e pós-doutoranda em jornalismo pela ECA-USP.

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tecnologia

o

céu que nos

protege Uso de drones no jornalismo leva profissionais, autoridades e sociedade a discutir limites éticos e legais Por Rogério Christofoletti Ilustrações Thaís Helena Reis


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acanagem! Tô com criança aqui!”, exclamou um Otávio Mesquita nitidamente constrangido ao abrir a porta para a equipe de TV. Conhecido por “invadir” a privacidade dos famosos, o comunicador tinha acabado de provar desse gostinho ao flagrar um drone sobrevoando sua própria sala. O aparelho não só passou pelos muros da residência como perambulou pelo quintal e entrou em um dos cômodos. Em nenhum momento, a câmera do veículo aéreo não-tripulado parou de gravar e o telespectador pôde ver imagens da intimidade do comunicador. Não se tratava de uma vingança das celebridades, mas de um quadro do programa Pânico na Band. Os humoristas queriam mostrar as possibilidades daquela tecnologia e decidiram testar com a concorrência. Habituado a brincadeiras televisivas, Mesquita riu da própria situação, tentando dissimular o mal-estar. “Acho que vocês chutaram o balde!” O episódio aconteceu em agosto de 2013 e pode ser colocado ao lado de vários outros quando o assunto é o uso de drones pela mídia. Como foi um caso humorístico, não houve qualquer repercussão importante. Mas quando se trata do uso do recurso por motivos jornalísticos, a situação muda. Não é à toa que jornalistas, pesquisadores, especialistas em tecnologia, advogados e legisladores têm discutido o impacto da novidade na

vida social. Em bom português: querem impor limites éticos e jurídicos para quem faz desses aviõezinhos máquinas de xeretar a vida alheia. Criados com fins militares, os drones são veículos aéreos não-tripulados, que podem servir para capturar imagens, fazer entregas, executar resgates e perseguir alvos. São muito parecidos com os velhos aeromodelos, que têm menor autonomia de voo e servem basicamente para recreação. Tecnicamente, são aeronaves controladas a distância, com câmeras de alta definição, movidas a baterias e orientadas por sistemas de posicionamento global (GPS). O peso varia, mas geralmente são muito leves (em torno de 600 gramas), e podem voar a um raio de 300 metros de seu operador. Já existem muitos modelos no mercado (inclusive brasileiro), com preços variados, mas a expectativa é de que a

procura crescente derrube os custos. São máquinas com capacidade para alcançar centenas de metros de altura, mas a maior vantagem é justamente o contrário: voar baixo, algo perigoso e até impossível para helicópteros. Com isso, drones podem ser usados para a cobertura de manifestações públicas, com tomadas de lugares inacessíveis e arriscados. Junte a isso outros dois pontos positivos: são ágeis e silenciosos.

Do sonho à realidade

Com todas essas qualidades e muito parecidos com um brinquedo para adultos, os drones fascinam por sua tecnologia e pela possibilidade de satisfazer um antigo sonho humano: voar como um pássaro. O zumbido das hélices, os movimentos aéreos sinuosos e a capacidade de acompanhar visualmente o voo reforçam o apelido recebido por eles: em inglês, “drone” quer dizer “zangão”. Dezembro de 2014 | Cásper

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O que é mais importante: preservar a intimidade ou permitir que as pessoas saibam de algo?

A imaginação voa alto, mas o questionamento sobre esses veículos também é crescente. Nos Estados Unidos, a temperatura está subindo. O uso de drones já provocou demissão de jornalistas e processo por impedimento do trabalho da imprensa. A autoridade aeroviária (Federal Aviation Administration, FAA) proíbe o uso comercial desses aparelhos, mas o Congresso já pediu revisão da norma. Por baixo do pano, veículos de mídia colhem imagens com os drones, explorando o recurso com algum cuidado. Universidades mais avançadinhas chegam a oferecer disciplinas que os entusiasmados chamam de “jornalismo-drone”. Em Nova York, já existe até uma associação que reúne usuários amadores e profissionais, dispostos a estabelecerem regras e a organizar o mercado. Há menos frenesi na Inglaterra, mas não menos preocupação. Em julho de 2013, o Reuters Institute for the Study of Journalism, ligado à Universidade de Oxford, divulgou um relatório sobre oportunidades e desafios do uso dos aparelhos. A publicação reconhece que 20

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usar drones é mais barato do que recorrer a helicópteros, com uma vantagem adicional: não arrisca a vida de tripulantes. Concluiu ainda que leis aéreas específicas devem ser criadas e que elas vão se converter em uma especialidade a mais para advogados da mídia. Políticas de uso restritivas também devem ser formuladas pelos veículos de forma a orientar seus empregados. Dependendo do modelo, drones podem ser pilotados por fotógrafos e cinegrafistas ou até por profissionais com outras expertises, em casos mais complexos. Quando obtido de terceiros, o material deve ter cuidados éticos compatíveis com os níveis da mídia responsável, adverte o documento.

Moderação aérea

Bastante cuidadosos com a intervenção do Estado, os ingleses afirmam que o objetivo principal de uma regulação do uso deve ser a segurança, o que os distancia dos norte-americanos, mais preocupados com a tensão entre privacidade e liberdade de expressão. Mesmo assim, na terra da rainha nada está completamente decidi-

do, já que a novidade nos céus é também uma história a se desenrolar. A cada dia, fabricantes colocam no mercado equipamentos com maior autonomia e mais tecnologia, mais leves e baratos, o que pode levar a uma rápida popularização. Também perambulam pelos céus brasileiros esses modernos zangões. Além dos humoristas do Pânico na Band, jornalistas e engenheiros da Globo, SBT, Rede TV! e Record também fazem testes com equipamentos do tipo, com expectativas de uso em coberturas policiais, esportivas e de trânsito. A utilização ainda é moderada porque as emissoras se sentem inseguras com o vácuo jurídico no setor. A Folha de S.Paulo alardeia que foi a pioneira a cobrir os protestos de junho de 2013 com drones. O jornal também recorreu às aeronaves em outras situações, como na crise de abastecimento de água no estado com a captura de imagens dos reservatórios do Sistema Cantareira. Para a mídia operar drones profissionalmente, será necessário ter licenças de voo, aparelhos homologados e atender outras exigências. Essas regras ainda não


existem no país, e atualmente são permitidos apenas circulações experimentais. A expectativa é de que em breve a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) defina as normas específicas. Outro órgão regulador, o das Telecomunicações (Anatel) terá também que adotar padrões, pois os drones operam por radiofrequência e não poderão invadir as faixas de celulares e emissoras de rádio e TV, por exemplo. De forma paralela, outros regramentos devem surgir. Em Curitiba, por exemplo, o uso do espaço aéreo por pequenas aeronaves será incluído como tema nos debates para o Plano Diretor, e uma lei específica para drones poderia surgir em 2015.

Respostas imprevisíveis

Se a situação é incerta do ponto de vista jurídico, imagine pelo aspecto ético. De imediato, os veículos aéreos não-tripulados contrapõem dois valores: a privacidade e a liberdade de informação. O que é mais importante: preservar a intimidade ou permitir que as pessoas saibam de algo? Jornalistas podem usar um drone para bisbilhotar a vida privada de um político acusado de corrupção? Estariam amparados eticamente para invadir a propriedade desse personagem com seu equipamento para flagrá-lo em novos delitos? E se não houvesse invasão física do perímetro e o repórter usasse o zoom da câmera-drone para capturar os movimentos do suspeito? Seria legítimo? Os drones são úteis ao jornalismo e podem contribuir muito para qualificar certas apurações. “Chegar” a lugares antes inacessíveis e sem risco de vida são duas

grandes vantagens para as redações, mas como separar voyeurismo de verificação? Captar cenas de um protesto nas ruas pode ajudar a definir seu tamanho, mas também permite que se identifiquem os manifestantes, o que pode gerar perseguições políticas e outros riscos. O jornalismo-drone se apoia em vigilância e assédio? Para ir mais longe: com o barateamento desses equipamentos, vamos ter congestionamento deles nos céus do Brasil? E se um desses cair em alguém? Poderemos responsabilizar a Lei da Gravidade? Amadores também poderão sobrevoar as cidades, recolhendo imagens de todos os cantos? E se milicianos, narcotraficantes e criminosos de outros naipes tiverem sua própria frota? Se os jornalistas estabelecerem padrões éticos para o uso de drones, usuários não-profissionais adotarão os mesmos cuidados? Estamos diante de mais um modismo tecnológico? Precisamos dos drones para fazer um jornalismo melhor? Podemos viver sem eles? As perguntas não param, e isso é muito bom. Enquanto estivermos refle-

tindo sobre a apropriação e o impacto das tecnologias em nossas sociedades, estaremos também debatendo eticamente os limites de nossas ações. Antes de baixar leis, deveríamos buscar parâmetros comuns de conduta. Do contrário, distorções acontecem, como a criticada pela diretora de redação da Columbia Journalism Review, Elizabeth Spayd. Para ela, há algo errado quando o órgão que controla o céu nos Estados Unidos arbitra sobre liberdade de expressão. Diante da complexidade do tema e da crescente controvérsia, o sétimo céu não é o dos anjos e dos deuses. O que vai garantir novas (e boas) regras para o uso de drones pelo jornalismo e pela sociedade é a nossa capacidade de discutir, pensar e formular acordos de conduta. Paradoxalmente, o céu que nos protege é o horizonte da nossa razão e envolvimento neste tema. Rogério Christofoletti é professor do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina e um dos pesquisadores do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS).

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música

FAIXAS DE

RISCO Dispostos a enfrentar a massificação, produtores e músicos independentes se unem em torno de selos de qualidade Texto por Isabela Yu e Mariana Gonzalez Imagens Marcelo Fontana

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esponsáveis por escolher e produzir a música que chega aos ouvidos do grande público, as gravadoras se consolidaram na metade do século XX e, sem elas, movimentos culturais como a Bossa Nova e o Tropicalismo não teriam sido possíveis. A partir da década de 70, esta indústria viveu uma grande profissionalização e, dez anos depois, atingiu seu ápice com o surgimento de grandes nomes do pop rock nacional. Atualmente, segundo uma lista divulgada pela Billboard norte-americana, há mais de 2 mil gravadoras em funcionamento – de microempresas a grandes corporações internacionais. Os anos 1990 são marcados por uma

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desaceleração do setor: o modelo de negócio que transformou produtoras em empresas multimilionárias foi, aos poucos, perdendo força. Com a expansão tecnológica, qualquer pessoa pode gravar, mixar e divulgar seu próprio conteúdo usando uma só máquina, o que democratizou o fazer musical, pelo menos. “Cresceu o número de produções e as gravadoras não dão conta de incorporar tudo. Nesse contexto, houve um aumento da quantidade de selos musicais paralelos à produção das grandes gravadoras”, explica o jornalista e crítico musical Marcelo Costa. Este modelo nasce de forma independente em relação à grande indústria e sua atuação se diferencia dela tanto em termos de produção quanto de divulgação e distribuição. Em proporções menores, os selos são estruturados como

gravadoras, mas têm maior liberdade artística e não têm grandes pretensões comerciais. Os grupos optam por produzir em conjunto, com um contínuo diálogo entre as bandas. Para Gui Jesus Toledo, produtor musical, a partir do momento em que um selo é criado, uma concepção estética é estabelecida, e isso “vai além da simples união de bandas”. A existência de uma curadoria (seleção por qualidade) é outra característica: “Se um artista é lançado por um selo, o consumidor sabe que os outros músicos desse grupo fazem um som coerente, e com uma estética similar”, explica Marcelo. Assim funcionam tais coletivos: oferecendo outras boas opções para o ouvinte a partir daquela que se tornou a mais conhecida. Sob o guarda-chuva do selo há um grupo de artistas unidos pela maneira


A união de bandas promove a troca de referências culturais

que enxergam o “fazer musical”. Nesse sentido, Gui Toledo acredita que unir bandas em um só conjunto é essencial para gerar uma contínua troca de cultura e referências. “Sinceramente, desconheço produções boas e diferenciadas em nosso país”, diz Guilherme Silva, baixista da banda paulistana Inky e um dos fundadores do selo Uivo. “Nosso foco é fazer um som que não seja o estereótipo da música brasileira”, ele completa.

Jogo de cenas

A inserção de artistas autônomos no mercado resultou na criação de selos internos também por parte das gravadoras – curadorias responsáveis por mapear novos nomes que ainda estão fora do circuito comercial. “O capitalismo tem essa coisa de pegar

os movimentos e torná-los lucrativos”, ironiza Marcelo. Desde 2007, a gravadora Som Livre é responsável por uma das mais efetivas investidas nesses “subselos”. O resultado dessa ação é a popularização de cantores da chamada “neo-MPB”, como Tiago Iorc, Marcelo Jeneci e Maria Gadú. O cenário da última virada de século deixou como herança um mercado dividido: de um lado, os músicos bancados e popularizados pelas gravadoras; de outro, os músicos independentes (em processo de autoprodução). “A grande massa é totalmente refém de alguém que a guie”, reconhece Marcelo, lembrando que, tradicionalmente, uma das funções das emissoras de rádio é exatamente “guiar” o ouvinte. No entanto, as emissoras continuam reproduzindo majoritariamente

artistas já consolidados. “Mesmo tendo boa repercussão, é muito difícil um músico independente tocar em rádio”, enfatiza Guilherme Giraldi, compositor e baixista da banda Charlie & Os Marretas. A tentativa do músico em driblar essa lógica resultou no coletivo e selo Risco. Ele, junto com o produtor Gui Toledo, uniu formalmente oito bandas paulistanas que já caminhavam juntas há algum tempo, entre elas O Terno e Memórias de um Caramujo. Percebendo o crescimento desses grupos de artistas algumas empresas que, em princípio, nada tinham a ver com música, decidiram investir no que acreditavam ser “possíveis sucessos”. A fabricante de cervejas Skol, por exemplo, promove festivais e criou a plataforma Skol Music para abrigar três selos. Dezembro de 2014 | Cásper

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Apesar da crescente visibilidade e do apoio de marcas consolidadas, como a Skol, a Natura e a Red Bull, o cenário independente ainda tem dificuldades de competir com as bandas financiadas por gravadoras. A iniciativa dos selos de contrariar o modelo instituído pela grande indústria fonográfica e reverter o mercado criado por ela é acompanhada da ideia de que as tais empresas mercadológicas não vão ceder espaço facilmente. “Em qualquer área, as corporações com mais dinheiro e poder mandam em tudo”, lamenta Giraldi. Mas essa cultura tende a se inverter, segundo o baixista: “Cada vez mais, a indústria vai se diluir e ficar menos dependente das gravadoras tradicionais”. No Brasil, a atmosfera dos selos não se resume às fronteiras paulistas. Em Brasília, a Agência de Música

Independente Circula reúne cerca de quarenta artistas locais e explora quatro diretrizes: atendimento, comunicação, pesquisa e produção. A tarefa é dirigida por 25 profissionais e foi idealizada por Fabio Pedroza e Fabrício Ofuji, integrantes da banda Móveis Coloniais de Acaju em parceria com André Noblat, da banda Trampa. No Rio de Janeiro, o selo independente 40% Foda/Maneiríssimo se especializou em lançamentos no formato de fita cassete e CD.

O ponto certo

Os produtores cariocas Gabriel Guerra e Lucas Paiva chamaram a atenção de portais internacionais, como o The Washington Post e o site da revista especializada em música Spin, com o lançamento do

DJ, produtor e baterista Fernando Seixlack. Nos países do Hemisfério Norte a fragmentação da indústria fonográfica já é mais palpável do que aqui, no Brasil. O selo independente americano Third Men Records, idealizado pelo músico e produtor Jack White, atingiu a marca de 60 mil cópias vendidas do disco Lazarreto, último trabalho solo de White. Detalhe: cópias em vinil. Em solo nacional, os “bolachões” nunca deixaram de existir, mas foram ofuscados pela venda de CDs a partir da década de 90. A fórmula é uma velha conhecida: produção mais barata, manutenção e transporte mais fáceis. Diante da novidade da versão compacta, só restou uma única fábrica que produz vinis em território nacional. “O vinil é o único suporte capaz de transportar para o

A banda Inky, que faz parte do Selo Uivo, é um dos destaques no cenário alternativo da música paulistana 24

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ouvinte toda a dedicação e o carinho que os músicos tiveram ao produzir o álbum”, explica Guilherme Giraldi. E Gui Toledo acrescenta que utilizar a vitrola é um ato ritualístico: “Com o vinil, existe todo um cuidado. Tem que manusear um objeto grande, sensível, colocar em um toca-discos e encontrar o ponto certo da música; não se trata apenas de ligar o shuffle”.

Rede aliada

Enquanto apostam em uma antiga forma de consumir música, os artistas independentes contam com uma ferramenta bem atual como aliada: a internet. Com os altos custos para produzir e distribuir discos (sejam eles compactos ou de vinil), músicos autônomos costumam lançar seus álbuns online, produzindo uma pequena quantidade de CDs que, nesse

caso, têm como única função divulgar o trabalho no próprio meio artístico. Apesar de entenderem de formas diferentes a questão das musicas em formatos digitais, produtores concordam que o download, pago ou gratuito, gera dados que ajudam os artistas a compreender seus públicos. “O download direto do nosso site é uma maneira de ter o feedback de quem nos ouve. Assim, sabemos quantas pessoas estão baixando nossas músicas e qual faixa agradou mais”, observa Gui Toledo. Para o selo Risco, o artista que não disponibiliza seu material na internet bate de frente com a tecnologia, o que não parece ser uma vantagem. Toledo vai além: “Nós sabemos que o público vai acessar as faixas via Youtube ou Soundcloud (plataformas de reprodução online) e repassá-las para outras pessoas em uma

qualidade não tão boa quanto a original”. Já Guilherme Silva defende que cobrar pelas faixas, mesmo tratando-se de um valor monetário relativamente baixo, é uma forma de valorizar o trabalho do artista. À simples distância de uma tela, o público que experimenta cada vez mais os ambientes digitais possui praticamente todos os conteúdos que lhes interessam. “Hoje, muitos artistas podem ser lançados através das várias mídias”, avalia o produtor Evandro Fióti, do selo Laboratório Fantasma. Com essa aliada, a pluralização dos selos é mais fácil. “Não importa se as grandes gravadoras vão lançar os próximos sucessos de venda. O fato é que os grandes artistas independentes vão continuar produzindo conteúdos de qualidade, que podem ser descobertos com apenas um clique”, afirma Marcelo.

com a expansão tecnológica, qualquer pessoa pode gravar, mixar e divulgar seu próprio conteúdo usando uma só máquina, democratizando a produção musical

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capa

raphaele palaro

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arco eo tempo A 50 km da Praça da Sé, os índios Guarani Mbya, da triboTenondé Porã, mantêm vivas as suas tradições Por João Hidalgo

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raphaele palaro

A formação da aldeia levou em conta algumas características arquitetônicas ancestrais

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T

rezentos metros de uma estrada de terra mal iluminada me conduzem até a entrada da aldeia indígena Tenondé Porã. Aqui, língua, cultura e etnia sobrevivem às influências externas e preservam as singularidades do povo Guarani Mbya. Apenas 50 km separam a Praça da Sé, centro da capital paulista, do bairro da Barragem, no distrito de Parelheiros. Este é o cenário que abriga a maior tribo (em termos demográficos e territoriais) da cidade de São Paulo. Nela, um coletivo étnico convive com as pressões culturais oriundas do centro urbano. Para conhecer os Mbya da região, ultrapasso a placa enferrujada da Fundação Nacional do Índio (Funai), que indica o começo da área homologada, e adentro o povoado. Em Tenondé Porã, a imagem mistificada do índio próprio da mata, incapaz de se adaptar às grandes megalópoles, é “reconfigurada”. Para “estarem” paulistanos, os Mbya tendem a equilibrar os traços culturais às novidades urbanas. O meu olhar é direcionado a uma antiga edificação abandonada da Rádio Tupã, e sou encaminhado para a área onde residem os núcleos familiares. O que vejo não são ocas, mas casas de alvenaria em formato redondo construídas pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), órgão do governo estadual. A escassez de matéria-prima na região dificulta a construção das moradias nos formatos originais dos Guaranis. As obras foram realizadas sob a supervisão dos indígenas e refletem a preocupação em pelo menos manter algum aspecto tradicional da arquitetura ancestral. De acordo com a pesquisa desenvol-

vida pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e expressa em seu artigo “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”, há três condições que situam e justificam a presença de comunidades indígenas no Brasil atual. A primeira delas é a “condição histórica”, que relaciona a ideia de formação de aldeias nos mesmos parâmetros daquelas dos seus antepassados. A segunda se refere à “dimensão cultural”, que reverbera os costumes herdados, com os quais os índios mantêm uma estreita relação de identificação, apesar da passagem do tempo. Já a terceira diz respeito ao âmbito sociopolítico, que remete à decisão do grupo em se constituir como um corpo social (indígena) diferenciado. Qualquer uma dessas dimensões é independente, válida e, no caso de Tenondé Porã, marcante. Os Guarani se reconhecem, pois preocupam-se em manter ao menos a essência dos aspectos habituais do território, da cultura e das dinâmicas internas da aldeia. O convívio com a sociedade civil branca de São Paulo não deslegitima em nada a indianidade do povo daqui. Para além dos Mbya, outros grupos guaranis habitam o Brasil. Os Kaiová e os Nhadeva estão espalhados em estados como Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Segundo a antropóloga Maria Inês Ladeira, pesquisadora do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), a divisão deles é feita conforme as diferenças dialetais, os costumes e os rituais. Na mesma região de Tenondé Porã estão as aldeias Guarani Krukutu e Kalipety. Sua localização é estratégica em relação à mobilidade e à perpetuação da cultura Mbya. A facilida-

de de acesso à Serra do Mar é um fator importante para a recepção temporária de indígenas que vêm do interior para o litoral. Além disso, estar próximo ao mar significa a busca pela “terra sem mal” (yvi-maraey) e o “caminho do paraíso” (yviju-mirí) na religiosidade deste grupo. Durante todo o período da noite em que ingresso na aldeia sou acompanhado por Antonio Passaty, responsável por mediar os meus primeiros contatos com os guaranis. Auxiliar administrativo do Diretório Regional de Educação Campo Limpo, ele já trabalhou em projetos na aldeia e há dez anos costuma participar de atividades no local. Não é uma noite qualquer. Já percebo a atmosfera religiosa criada pelos índios. A aldeia está tomada por um clima de renovação, pois é o dia da cerimônia ka’a nhemongarai (significa “batismo da erva-mate”), que celebra a virada de ano no calendário Mbya. Somos guiados por um grupo de jovens que nos acompanham até a Opy Guaxu (Casa de Reza). Na porta, um dos xondaros, os guardiões da aldeia, é responsável por cuidar de quem entra na casa. O meu medo de não ser bem recebido é logo tranquilizado por Passaty.

Erva-mate

A cerimônia já havia começado. Cantos, danças e fumaças de cachimbo atiçam todos os sentidos. Há mais crianças do que adultos, e mais adultos do que idosos – estes, conhecidos como xeramoi (homens) e xejaryi (mulheres). Os mais velhos, respeitados por todos, são referências espirituais. Às vezes, tomam as palavras para si. De pés descalços sobre o chão de terra batida, os guaranis seguem em uma dança ritmada. O lugar é iluminado por apenas três lâmpadas. Dezembro de 2014 | Cásper

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João Hidalgo

ser Índio não implica usar cocar de pena, urucum e flecha. é uma questão de ‘estado de espírito’, não de aparências Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo

Juscelino Peralta se orgulha de criar sua filha em Tenondé Porã

Os índios músicos orquestram os passos com o batuque dos tambores (angu’apu), os acordes do violão (mbaraka) e a fluidez da rabeca (rave’i). Quando a música termina, todos estendem os braços em movimento de saudação. No fundo, uma pequena fogueira é usada por uma senhora que prepara o mate. O líquido alimenta uma chaleira característica, responsável por preencher um balde maior. Cada um com sua caneca, os Mbya se servem da bebida sacra. Quando o mate é batizado, os homens se intercalam para ficar em frente à parede, fumando e soltando a fumaça na erva e nos instrumentos da Casa de Reza. Nesse momento, eles ingerem água quente para aliviar a sensação do fumo – às vezes regurgitando-a. A planta batizada só será consumida no dia seguinte. Dirceu Gonçalves Vilharve, ou Tupã Mirim em guarani mbya, coordenador cultural do Centro Educacional de Cultura Indígena 30

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(CECI) da aldeia, explica a importância do batismo: “Deus deixa a semente de uma forma pura, só que outros espíritos da natureza modificam essa pureza. Por isso, a gente tem que fazer a cerimônia, a reza, e batizar o alimento”.

Ritual e celebração

Impressionante observar crianças fumando o cachimbo completo de fumo de corda. A tosse e o cuspe após a inalação da fumaça (que não é tragada) são recorrentes. “É um símbolo de religiosidade. A gente fuma porque a gente sabe que o fumo tem o poder de nos distanciar de um ser maligno. Quando a gente vê uma criança fumando, ficamos até contentes, porque ali se está mantendo a tradição, que, para os homens brancos, já é vista com olhar de crítica”, detalha Dirceu. Apesar de estar na posição de espectador, não sou o único branco. Os meus “semelhantes” presentes na cerimônia,

chamados pelos Guaranis de jurua (“boca com cabelo”), são membros do Programa Aldeias, uma parceria com a Secretaria de Cultura do município. Esse projeto visa fortalecer cultural e politicamente as comunidades guaranis da cidade de São Paulo. Vinicius Toro faz parte da equipe. Ele é responsável pelo registro audiovisual na aldeia e acabou de ganhar seu nome na língua dos Mbya, um símbolo de confiança que Tenondé está lhe conferindo, mas ele não se gaba disso. “Nunca fui atrás de ser batizado. Tem gente que pede para ser batizado só para falar disso na baladinha da Vila Madalena”, ironiza. Vinicius conta que a coletividade é um elemento importante no modo de vida Guarani: “Existem líderes, mas não pessoas superiores”. As lideranças plurais são conhecidas como huvixa-kuery. Elas têm a função de dialogar com o cacique, posto ocupado atualmente por Elias Honório dos Santos, quem analisa os


Vinicius toro

O ritual dos xondaros expressa o vigor físico dos homens Guarani Mbya

projetos e decisões da comunidade. Elias foi escolhido pelos membros de Tenondé Porã para o seu cargo atual, além de já ser um xamã (pajé), posição que varia em outras aldeias, pois o cacique não precisa necessariamente ser um líder espiritual. Além de purificar a erva-mate, a cerimônia ka’anhemongarai funciona como um momento em que as crianças (a partir de um ano de idade, em média) são nomeadas em guarani mbya. Todos os índios possuem dois nomes e sobrenomes: um em português, para registro em cartório, e um na língua-mãe – este último pode mudar ao longo da vida. O primeiro dia de nomeação se restringe ao gênero masculino. Uma cadeira no centro da Casa de Reza é ocupada pela mãe, com a criança no colo, para um ritual de cura dos males terrenos. Os gritos e cantos dão lugar a um momento de introspecção e espiritualidade. Recolho a câmera fotográfica e me

sento no chão para presenciar a hora em que os mentores espirituais vão purificar os pequenos guaranis, que já conseguem ficar em pé – um sinal que o espírito (nhe’e) está se assentando no corpo e o batismo pode acontecer. O cacique Elias Honório fuma ao redor do assento: traga o quanto pode e, em um instante, passa a fumaça para a boca da criança, que chora imediatamente. Sobre o significado desse ritual, Dirceu Vilharve vai direto ao ponto: “Não posso comentar, porque é extremamente sagrado. A nomeação já é diretamente com Deus”. Por se tratar de uma tradição que se diferencia dos meus costumes, encaro tudo com mais dúvidas que respostas. Para um observador leigo, o evento é de uma subjetividade e sensibilidade imensas. Acho que minha presença não incomodou. Apesar de eu estar interessado em provar do fumo e do mate e dançar como os outros jurua, sou considerado um estranho. O ambiente da Casa de

Reza me envolve num misto de curiosidade e harmonia interior. É como se eu meditasse com a cultura milenar que sobrevive diante de mim, essa não parece ser uma reação individual. Olho para o lado e percebo Antonio Passaty também emocionado com a experiência.

Saídas e retornos

Passamos a noite no local e somos hospedados pelo índio Juscelino Peralta. De manhã, acordo com a notícia de que a esposa de nosso anfitrião está preparando o rora (comida típica guarani à base de fubá, que foi servida, no dia, acompanhada de salsicha). A culinária Mbya tem como ingrediente central o milho. Outros alimentos tradicionais são o mbyta (bolo) e beiju. Juscelino Peralta nasceu na aldeia Boa Vista, em Ubatuba, litoral norte de São Paulo. Seu pai (branco) conheceu sua mãe (Guarani) enquanto ela vendia Dezembro de 2014 | Cásper

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A assimilação de elementos urbanos se tornou uma espécie de estratégia para os Guarani Mbya, que procuram se proteger como povo e etnia

artesanato na cidade, mas a relação não deu certo. Em sua infância, Juscelino ficou divido entre Tenondé Porã, lugar para onde sua progenitora migrou, e o Rio de Janeiro, onde morou oito anos com o pai. Ele conta que não gostava da vida no Rio. Estudava em escola particular e morava perto de Ipanema, mas tinha poucos amigos: “Me sentia mal lá. Decidi que tinha que voltar”. As migrações são uma realidade entre as aldeias dos Mbya. Maria Inês Ladeira afirma que os indígenas vivem em um contínuo processo de reorganização social. A vontade de se fixar em um lugar em que seja mais fácil o acesso à “terra sem mal”, que é um objetivo espiritual, se transforma em uma espécie de norteamento para a movimentação. Embora os movimentos migratórios possam estar relacionados a fatores de parentesco, não devem ser confundidos com mobilidade entre aldeias – que são basicamente visitas motivadas por encontros entre parentes ou por datas especiais. Quinze dias após vivenciar a cerimônia de batismo, retorno à Tenondé. É 32

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um dia de domingo e o clima está muito mais descontraído. Na entrada, já é possível ouvir o som do forró, que vem das casas. No campo de futebol, a distração com caráter de competição separa o time amarelo (guaranis) dos de verde (moradores não índios da região). É um amistoso. Quem vencer, leva um troféu.

Encaixes culturais

Encontro Dirceu Vilharve em frente ao Centro Educacional de Cultura Indígena (CECI). A principal intenção da nossa conversa é entender melhor a atual luta do povo Mbya: os guaranis da cidade de São Paulo, incluindo a Terra Indígena Jaraguá, na Zona Norte da cidade, estão em uma intensa campanha de resistência para que ocorra a demarcação de suas terras. O objetivo da campanha é a assinatura do documento que amplia a Terra Indígena Tenondé Porã (que compreende as três aldeias da região) para cerca de 16 milhões de m². O espaço ajudará a preservar costumes como a caça e a agricultura de subsistência, por exemplo, mas tudo depende da assinatura oficial

do ministro da Justiça, Eduardo Cardozo. Atualmente, a população de Tenondé Porã é de, aproximadamente, 850 habitantes distribuídos em um território de 263 mil m². Aspecto que se destoa muito do padrão Mbya, caracterizado por núcleos familiares mais afastados e por uma menor concentração demográfica. O movimento em prol da demarcação das terras parte da necessidade de os índios viverem segundo o nhadereko (modo de vida tradicional). Apesar disso, o modelo de ensino que existe em Tenondé Porã vai um pouco contra tal concepção, já que aqui há uma escola estadual nomeada Guyra Pepo, que significa “asa de pássaro”. Pedro Arneiro, professor de geografia, me fala das dificuldades de lecionar nela: “O material disponibilizado pelo Estado, principalmente de geografia, está o tempo todo voltado para uma visão eurocêntrica. Quando você pensa em uma escola pública estadual indígena, isso é contraditório. Eu fujo da apostila e não a uso, apesar de ser muito mais trabalhoso”. Na rotina da aldeia, eletrodomésticos, alimentos industrializados e auto-


Segundo Maria Inês Ladeira, o método de manter um relacionamento amistoso com o branco não é recente. A cópia dos costumes das culturas que os circundam deveria ser vista como uma tentativa de autopreservação, e não como uma prova de submissão aos jurua. “O histórico de perseguições a eles justifica essa prática. Sob o traje que encobre diferenças profundas, os Guarani tentaram, embora nunca renegando sua condição de índios, com tolerância e intencional opacidade, resguardar-se de novas feridas”, analisa Ladeira. Os Guarani Mbya são mais uma prova da diversidade da cidade de São Paulo. Há mais de 1 500 anos esses índios habitam a terra na qual nós, juruas, estamos há apenas 514 anos. Até aqui, a luta deles pela afirmação de suas identidades e preservação de sua cultura tem sido árdua. Carros, computadores, rádios e celulares foram absorvidos, inevitavelmente. Porém, pelo que vi, isso não impede que a esperança de conservação da tradição se renove a cada criança que nasce. Em Tenondé Porã, que significa “belo futuro”, o pertencimento é uma questão de autoafirmação.

Vinicius toro

móveis dividem espaço com as habituais rezas, pequenas hortas e trilhas que desembocam em comunidades do litoral. Por conta da apropriação de alguns elementos da cultura branca é comum os índios relatarem que viveram experiências de preconceito por parte dos não-índios. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro aponta para a complexidade de adotar interpretações singulares, mesmo provenientes de pesquisadores, sobre o que caracteriza ser ou não ser índio. Sua análise é contemporânea e está embasada historicamente na crítica à tentativa falha do Estado, durante o regime militar brasileiro, de categorizar o povo indígena em um estereótipo que facilitasse as empreitadas do progresso: “Índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de ‘estado de espírito’. Um modo de ser, não um modo de aparecer”. O fato é que a assimilação de elementos urbanos se tornou uma espécie de estratégia para os Guarani Mbya, que procuram se proteger como povo e etnia.

Durante a cerimônia de batismo, mulheres se separam dos homens

+ Livro Aldeias Guarani Mbya na Cidade de São Paulo Rosa Gauditano (org.) Maio de 2014 | Cásper

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entrevista

contra

a dispersão Ricardo Gandour, diretor de conteúdo do Grupo Estado, acredita em um novo modelo de jornalismo Por João Hidalgo

N

atural de Nova Granada, Ricardo Gandour, que não perdeu o sotaque do interior paulista, cursou Engenharia Civil na USP de São Carlos (SP), primeiramente. Em seguida, já com um diploma, mudou-se para a capital motivado a estudar a fundo o tema que o acompanhava em casa desde pequeno. O seu pai foi dono de um periódico na cidade natal durante 42 anos. Ainda jovem, aos 14 de idade, Gandour era o responsável pela edição da publicação. Ingressou na Faculdade Cásper Líbero, primeiro como aluno, depois como professor, e acabou consolidando uma carreira jornalística. Adepto da ideia de que o jornalismo é a busca pela “melhor versão possível da verdade”, ele fala do atual momento do jornal impresso, do futuro da profissão e das mudanças no Estadão.

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Os críticos comparam as redações dos grandes jornais às antigas linhas de produção industrial. Qual a sua opinião sobre comentários como esse? Acho essa crítica procedente. Isso acontece em maior ou menor grau, dependendo da redação e da formação do profissional. A gente tem que tomar essa crítica com muita humildade, até para evitar que a tecnologia torne o nosso trabalho uma coisa autômata e nos impeça de refletir, analisar, observar, aplicar. As redações estão cada vez mais enxutas. O papel dos colunistas e colaboradores freelancers seria uma alternativa para reduzir custos ou uma estratégia para manter a qualidade? Não, não é por ai. O equacionamento de custos tem de levar em conta as novas demandas que estão surgindo. Hoje, a redação de um grande jornal tem videomaker, produtor de áudio,


ricardo n贸brega

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Fabiano Cerchiari / Instituto Palavra Aberta

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infografista, especialista em programação de computadores... As redações estão mais enxutas, sim, mas porque o processo está mudando muito, e apenas porque houve demissões. O colunismo e os blogueiros são um complemento à atividade informativa. Colunismo, aliás, não é de hoje. O equacionamento de custos precisa ser feito até para preservar a independência financeira e editorial.

Qual é o papel do leitor em tempos de mídias sociais? O leitor perde um pouco a percepção do que é conteúdo informativo, opinativo, editorial, de reportagem, etc. Receio que, nessa aparente homogeneização, tudo pareça igual. Cabe a ele ter uma “educação midiáticao” também para o consumo de informações. O tal do “eu li na internet” é muito recorrente. Mas qual é a fonte? Ficou fácil obter informações. Isso é um perigo.

Qual a função do jornalista em meio ao atual “tsunami” de informações inerente à modernidade? Estamos em um momento de grande dispersão. Até “ontem”, eu via e revia o meu bloquinho de anotações. Só conversando, eu já conseguia umas três pautas, sem contar as que surgiam enquanto eu olhava pela janela. Hoje, não se olha mais pela janela. Hoje, o repórter volta da reportagem teclando o celular. Eu não sou contra a tecnologia. Mas, acho que o jornalismo é um trabalho artesanal, e hoje o tempo que temos para pensar está muito comprimido.

Como você vê o jornalismo multimídia? Interligar mídias é uma ótima forma de levar informação às pessoas. A gente ainda usa as possibilidades multimídias como um enfeite, talvez para oferecer uma “distração” extra. Não devia ser assim. A narrativa multimídia deveria servir para aperfeiçoar a reportagem, esclarecer mais, elucidar melhor.

Cásper | Dezembro de 2014

O Estadão (jornal) foi repaginado e houve uma reorganização física da redação... Primeiro, a reorganização do impresso está relacionada à per-


Se fosse listar ‘profissões do futuro’, certamente incluiria a de Jornalista, que Hoje tem duas funções cruciais: curador da informação e mantenedor da liberdade de expressão

cepção de que durante a semana as pessoas têm menos tempo para ler. Então, a gente procurou enxugar o número de cadernos durante a semana, sem perder as características principais. Focamos no fim de semana e na evolução das plataformas digitais. Para isso, tivemos que mudar os processos internos. Estamos concluindo a reforma física da redação. Por exemplo, alteramos o lugar onde as pessoas se sentam para que os responsáveis pelos conteúdos fiquem mais próximos. É outra disposição arquitetônica e outra dinâmica de trabalho. Nas manifestações de junho de 2013 o Estadão teve que rever suas posições. Como vê isso hoje? O jornal é diário e acompanha a dinâmica social. Começamos a observar alguns atos de vandalismo, mas, depois enxergamos que, em meio ao vandalismo, havia também uma manifestação legítima. O jornal procurou, então, separar o que era manifestação legítima do que era vandalismo gratuito. Essa separação é resultado de apuração, reportagem, e edição.

Porém, a linha editorial não mudou. A gente foi observando, relatando e interpretando. A função do jornalista mudou? Se eu fosse listar “profissões do futuro”, eu certamente incluiria a de jornalista. O jornalista tem hoje duas funções cruciais: curador da informação e mantenedor da liberdade de expressão. Os jornais impressos estão conseguindo se reencontrar? Os jornais nunca foram tão lidos. No Estadão, há mais de três milhões de assinaturas digitais, que passarão a ser cobradas. Na minha opinião, o que vai salvar o jornalismo impresso é o modelo de conteúdo pago. Vejo o impresso resistindo por muito tempo ainda, até porque, além do hábito de muitas pessoas lerem no papel, há a questão da hierarquia que o jornal faz das informações, historicamente. A disposição das informações, aliás, define a posição do veículo. No digital, não. Tudo tem o mesmo peso. Dezembro de 2014 | Cásper

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portf贸lio

retratos

autorais Por Juan Esteves

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C谩sper | Maio de 2012


Maio de 2014 | Cรกsper

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Era 1992 e o Eric Hobsbawm [1917-2012] não me parecia exatamente um sujeito que saía bem em fotos. Tive sorte nesta: tecido cinza como plano de fundo, luz natural e a sala de estar do apartamento. Este retrato me introduziu em várias editoras no exterior, como a Autrement Rizzoli, Editorial Critica, Random House e Yale University Press, para as quais passei a colaborar com frequência. Depois do clique, ainda consegui dele um autógrafo em minha edição de História Social do Jazz

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r

etratos (portraits) surgiram com muita naturalidade para mim. Desde a minha infância, eu vivi rodeado por eles, seja através das pinturas na minha casa ou na de meus avós, cuja coleção era até mesmo exagerada. Sorte ou destino, ao começar no fotojornalismo, em 1985, o retrato era algo secundário nas publicações. Fotografar um escritor? Um cineasta? Um coreógrafo? Um músico? Parecia impensável no jornalismo hard news. Abracei então as pautas de cultura na primeira chance que tive e sem muito esforço, pois naquele tempo, um repórter fotográfico considerado bom capturava cenas de guerra, morte e sangue. Pessoalmente, era um prazer enorme ouvir por horas esses artistas durante entrevistas. Retratar é para mim como uma troca, uma conversa. Eu sempre andei na contramão do fotojornalismo tradicional e consegui desenvolver um trabalho documental, com predileção pelo chiaroscuro das luzes, essencialmente autoral, e que, felizmente, em muitas ocasiões foi requisitado pelo próprio retratado. Meus trabalhos estão em grandes museus, como o MASP, o MAM-SP, a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Musée d’Elisée (Suíça), entre outros. Ao todo, participei de 180 exposições em espaços públicos e privados de vários países: Brasil, Estados Unidos, Japão, França, Alemanha e Holanda.

Juan Esteves nasceu em Santos (SP). Tem 25 anos de profissão. Além da atividade de fotógrafo, trabalhou como editor, curador e jornalista. É autor de dois livros: 55 Portraits (D’Lippi) e Presença (Terceiro Nome). Suas imagens já foram publicadas no The New York Times, na Newsweek, no Clarín e no Le Monde.

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Fiz este em 1993, quando FHC era ministro das relações exteriores. Também o conhecia de fora da política. O futuro presidente do Brasil tinha uma casa de campo próxima à da minha família, no interior de São Paulo

Era a segunda vez que fotografava Fidel castro – este, que parece posado, foi, na verdade, provocado. Passei o dia com ele e, quando senti que não teria a chance de uma foto exclusiva, apelei. Gritei bem alto: “Comandante!”. ele direcionou seu olhar para mim, pedindo silêncio. Daí foi só disparar a câmera 42

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Durante a sessão fotográfica com Oscar niemeyer [1907-2012], conversamos sobre o Memorial da América Latina. Falei do calor que era aquele concreto todo sem árvores e ele, com seu forte sotaque carioca, me respondeu: “As árvores não importam. O que importa ali são os prédios, e somente eles” Dezembro de 2014 | Cásper

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Desde o período em que trabalhei como fotojornalista da Folha, quis retratar Ariano Suassuna [1927-2014]. Fui visitá-lo no hotel. Ele me recebeu com muito carinho para um café. A foto fez parte de uma exposição no Cultura Artística e é uma das poucas que sobreviveu ao incêndio que destruiu aquele teatro

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fotografei josé saramago [19222010] com uma hasselblad em 1994, durante o breve intervalo de sua palestra no masp

Sempre admirei o Drauzio. Éramos vizinhos no bairro de Higienópolis, em São Paulo, há anos. Esta (1998) foi feita em seu próprio consultório Dezembro de 2014 | Cásper

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cinema

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antonio lima / a crítica

A fachada do Éden, em Manaus, é quase a mesma, mas o cinema fechou as portas


resistência ao fim

Enquanto perdem espaço com uma série de fechamentos, cinemas de rua Brasil afora ainda se mantêm por meio de iniciativas pontuais Por Caio Pimenta

A

venida São João, 1462, Centro de São Paulo. Esse foi o endereço de um dos principais cinemas da capital paulista: o Cine Comodoro. Aberto no dia 14 de agosto de 1959, o espaço trouxe a tecnologia Cinerama para o Brasil– imagens projetadas em widescreen a partir de três projetores de 35mm rodados simultaneamente. A cortina vermelha abria-se sempre no início das sessões, revelando uma tela curva com vinte metros de comprimento e sete metros de altura. A sala de exibição, com capacidade para 1 400 lugares, trazia uma experiência de aproximar o público do filme, semelhante ao efeito proporcionado pelo 3D nos dias atuais. A história do Comodoro, entretanto, terminou no dia 23 de março de 1997. A especulação imobiliária, o crescimento

do mercado de DVD e VHS, além da fuga dos espectadores para salas de exibição de shopping centers, com programações mais voltadas para os lançamentos de Hollywood, marcou o fim do espaço. Um incêndio causado por problemas nas instalações elétricas, ocorrido em agosto de 2000, acabou de vez com a possibilidade de reabertura (toda a estrutura então presente foi danificada). O triste fim do Comodoro não foi muito diferente do que aconteceu com outros diversos cinemas de rua do Brasil: Gemini, Cine Joia (São Paulo), Cine Amazonas, Cine Pathé (Belo Horizonte), Cine Astor e Cine Teatro Presidente (Porto Alegre), Cine Excelsior (Salvador), Renato Aragão e Chaplin (Manaus) deixaram de ser abrigo da Sétima Arte para se tornarem estabelecimentos comerciais, prédios, igrejas e estacionamentos. O Rio de Janeiro aumentou ainda mais a lista em junho de 2014 com o

anúncio do fechamento das salas do grupo Severiano Ribeiro no Leblon, além da manutenção por tempo indeterminado do Cine Odeon, na Cinelândia. Balanço divulgado este ano pela Agência Nacional de Nacional (Ancine) confirma o cenário de crise: redução de 15,8% dos cinemas de rua entre os anos de 2009 e 2013. São apenas 335 salas por todo o país. Por outro lado, a quantidade de espaços de exibição dentro de shoppings cresceu 87,5% e totaliza 2 343 locais no Brasil. Para efeito de comparação, o país tinha 3 276 salas na década de 70, sendo a maior parte delas presentes nas ruas.

São Paulo resiste

O cenário de crise para esse tipo de cinema, entretanto, não impede que surjam iniciativas e tentativas de resistência. Em São Paulo, o Espaço Itaú de Cinema, na Rua Augusta, é um dos mais populares empreendimentos desse segmento, com Dezembro de 2014 | Cásper

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divulgação / a crítica

O Cine Chaplin, em Manaus, foi fechado no ano de 2000

uma média de público estimada em algo entre 400 a 500 mil espectadores por ano. Aberto em 1947 com o nome de Cine Majestic, o local ficou sob o controle do Banco Nacional e do Unibanco nos anos 1990 até se tornar do Itaú, já em 2008. Gestor do espaço há mais de duas décadas, o empresário Adhemar Oliveira acredita que o equilíbrio entre o comercial e a paixão pelo cinema permite o sucesso do empreendimento. “Se você passa da linha e começa a exibir obras demais, sem tanto apelo do público, acaba falindo. Por outro lado, não é possível pensar apenas no dinheiro e esquecer a qualidade da programação, porque, assim, corre o risco de perdermos os nossos consumidores”, declara. Criador do conceito “arteplex” no Brasil – conjunto de salas em um determinado espaço voltado apenas para a exibição de filmes do circuito alternativo – Adhemar considera essencial a presença de grandes empresas para manter os cinemas de rua ainda vivos: “Essa ques48

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tão dos naming rights permite segurança operacional para o negócio. Por exemplo, durante o período das grandes manifestações de junho de 2013, o Espaço de Cinema sofreu grande queda de público. As pessoas evitavam a área com medo dos conflitos na Avenida Paulista. Um parceiro forte como o Banco Itaú ajuda a estancar esses momentos de crise e segurar o prejuízo. Além disso, facilita a exibição de filmes importantes, que não seriam apresentados se apenas o lucro imediato fosse pensado.” A presença de grandes empresas na gestão dos cinemas de rua se confirma nos cinco estabelecimentos do ramo ainda em funcionamento na capital paulista: Cine Sabesp (Rua Fradique Coutinho), CineSesc e Espaço Itaú de Cinema (Rua Augusta), Playarte Marabá (Avenida Ipiranga), e Reserva Cultural (Avenida Paulista). A lista cresceu com a reinauguração do Cine Belas Artes. Localizado na esquina da Rua da Consolação com a Avenida Paulista, o espaço fechou as

atividades no dia 17 de março de 2011 após término do patrocínio do HSBC e o dono do prédio requisitar o imóvel para a construção de um centro comercial. A história iniciada em 1943 com o Cine Ritz encontrava o derradeiro “The End”. Os protestos feitos por clientes não surtiram efeito imediato, mas o abaixo-assinado feito para reabrir o cinema atingiu a marca de 100 mil pessoas, pressionando o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo (Condephaat) a aprovar o tombamento da fachada do Belas Artes. Um acordo entre a prefeitura paulistana e a Caixa Econômica Federal permitiu a reativação do local em agosto de 2014. O jornalista Fábio Ornelas aproveitou a mobilização pelo cinema para fazer um documentário sobre o fechamento do espaço. Intitulado Belas Artes – A Esquina do Cinema, o filme mostra as últimas sessões do espaço com depoimentos de funcionários e clientes sobre a importân-


O cinema da fundação [recife] ficou pequeno, pois estamos com o máximo da ocupação. Para ter esse público, foi preciso muita persistência, já que decidimos colocar filmes que não agradam apenas pelo simples entretenimento

Luiz Joaquim, gestor cultural

cia do local. “Durante a época da ditadura militar, por exemplo, muitos filmes censurados eram exibidos lá de forma clandestina em sessões promovidas pelos amigos da Cinemateca Brasileira. Isso ajudou a formar uma geração de cineastas e cinéfilos brasileiros. Acredito que as pessoas precisam prestigiar sempre bons espaços culturais e de convivência pública. O cinema é um ótimo local para isso”, declara.

Jurando Vingar

O Nordeste do Brasil traz também iniciativas estimulantes para o cinema de rua. Com público médio estimado em 62 mil pessoas por ano, o Cinema da Fundação se tornou referência como espaço para filmes de arte em Recife. Originado a partir do Cineclube Jurando Vingar, nos anos 1980, o local conta com o apoio da Fundação Joaquim Nabuco, órgão ligado ao Ministério da Educação do Governo Federal. “Nosso cinema ficou pequeno, pois estamos com o máximo da ocupação anual. Para construir esse público foi

preciso muita persistência, uma vez que decidimos colocar filmes que não agradam pela facilidade do simples entretenimento em nossa programação. Em 1998, já chegamos a fazer sessão para apenas um espectador. Hoje, temos sessões em que cerca de 100 pessoas simplesmente não conseguem entrar. Aqui, o critério principal é trazer filmes que nunca seriam exibidos no circuito do Recife, privilegiando os longas que ofereçam algo de proveitoso ao espectador não apenas pelo idioma, mas também por aspectos sociais, psicológicos, éticos, morais”, afirma o atual gestor do negócio, Luiz Joaquim. Se Pernambuco trouxe algumas das melhores produções brasileiras dos últimos anos (O Som ao Redor, Tatuagem, Eles Voltam, Febre do Rato, Amarelo Manga), o Cinema da Fundação pode ser visto, segundo Luiz Joaquim, como um campo importante para o debate e a formação dessa geração de cineastas e cinéfilos. “O espaço é uma casa aberta para lançar curtas e longas locais, além de

promover debates em torno deles. Com os cursos, seminários, discussões que promovemos por diversas vezes ao ano, a população da cidade enrique seu repertório e evolui na sua capacidade de produzir bons filmes”. O sucesso em Recife motivou a Fundação Joaquim Nabuco a investir nas salas do Dragão do Mar em Fortaleza, no Ceará. Desde setembro de 2013, as duas salas do Dragão já levaram um público estimado pelos gestores em 40 mil pessoas. Já na Região Norte, o Pará ainda mantém o mais antigo cinema de rua do Brasil: o Cine Olympia. Inaugurado no dia 24 de abril de 1912, o espaço chegou a ser fechado em 2006 por decisão do proprietário do imóvel. Após uma série de reivindicações da classe artística e da população de Belém, o Olympia foi reaberto e mantém uma programação focada em filmes fora do circuito comercial tradicional. Manaus perdeu os últimos cinemas de rua no início dos anos 2000 com o fechamento do Cine Chaplin e Renato AraDezembro de 2014 | Cásper

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Com a comodidade oferecida pelos shoppings, aliada à disponibilidade do estacionamento para carros e motos, o público opta por onde fica mais tranquilo e confortável Franthiesco Ballerini, jornalista

gão, no centro da cidade. Por outro lado, a capital amazonense soma 49 salas dentro de seis shoppings. As empresas exibidoras (Cinépolis, Cinemark, Kinoplex Severiano Ribeiro e Playarte) destacam os principais blockbusters de Hollywood e as comédias populares da Globo Filmes, sobrando pouco espaço para os filmes de artes ou com pouco apelo. Motivados pela falta de exibição ou demora no lançamento de filmes importantes como Azul é a Cor Mais Quente, Vidas ao Vento e 12 Anos de Escravidão, um grupo de cinéfilos e produtores audiovisuais da cidade se reuniu para a criação de duas iniciativas nas redes sociais: “Por uma Sala de Cinema de Arte em Manaus” e “Campanha por Filmes Alternativos em Manaus”. Cada página atingiu mais de mil seguidores em pouco mais de quatro meses no ar. 50

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Diretor vencedor do Amazonas Film Festival pelo curta Perdido e integrante do movimento nas redes sociais, Zeudi Souza considera que a necessidade da criação do cinema de rua vai muito além de apenas se assistir aos filmes. “Ter essas salas pode retomar um ponto de encontro para o público discutir os aspectos sociais e políticos de uma obra muito além do mero entretenimento”, declara, salientando que a iniciativa concentrada no Facebook atraiu a atenção da Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult) e vereadores da Câmara Municipal de Manaus para a discussão de projetos para viabilizar a ideia. Jornalista e coordenador de curso da Academia de Cinema de São Paulo, Franthiesco Ballerini considera o fim dos cinemas de rua irreversível. Para ele, esses espaços devem ficar cada vez mais restri-

tos nas grandes cidades brasileiras. “A falta de segurança afastou o público desses lugares. Com a comodidade oferecida pelos shoppings, aliada à disponibilidade do estacionamento para carros e motos, o público opta por onde fica mais tranquilo e confortável. Além disso, a especulação imobiliária encareceu os preços dos terrenos e dificulta a permanência desses empreendimentos”, analisa.

Ocupação

Mesmo considerando haver certa nostalgia quanto à importância cultural dos cinemas de rua, Ballerini teme a desertificação dos espaços públicos sem esse tipo de empreendimento. “Não podemos deixar que nos tornemos uma Los Angeles, onde somente se circula de carro e o hábito de caminhar nas calçadas se perdeu. Essas salas localizadas nas ruas das cidades


divulgação / belas artes

A reinauguração do Belas Artes, em São Paulo, resultou em modernização do cinema e prestígio junto ao público

ajudam nesse processo de circulação de pessoas por determinadas áreas.” O sucesso do Espaço de Cinema Itaú faz com que Adhemar Oliveira seja mais esperançoso na racionalização dos investimentos. “Quando o Banco Nacional comprou o Cine Majestic, a Rua Augusta era escura e com pouca movimentação de pessoas. O cinema acabou sendo o vetor de desenvolvimento da área, permitindo a aparição de bares, mercados, restaurantes, além de valorizar os imóveis. Precisa-se, na verdade, é mudar a mentalidade desse capitalismo burro. Isso significa que não se pode esgotar todos os recursos de uma área e depois deixá-la, estimulando a cultura do abandono”, afirma o empresário, citando o caso da Praça da República como uma região que precisa ser revitalizada. Já Zeudi Souza acredita na falta de

políticas públicas como uma das responsáveis pelo desaparecimento dos tradicionais cinemas de rua. “Aqui em Manaus, por exemplo, há imóveis públicos abandonados ou com pouca utilização capazes de abrigar esse tipo de empreendimento. Em uma cidade com 2 milhões de habitantes e uma produção audiovisual em crescimento, haveria público para dar o retorno necessário para o investimento”, diz. O setor de comunicação da Agência Nacional do Cinema (Ancine) informou que o projeto de fomento para a ampliação e digitalização do parque exibidor já liberou mais de R$ 130 milhões em 250 salas por todo Brasil. Intitulado Cinema Para Você, o programa conta com parceria do BNDES e da Caixa Econômica Federal e foca na abertura de complexos em cidades de porte médio e bairros populares nas grandes cidades.

Mesmo com esse tipo de incentivo, porém, o órgão admite dificuldades na manutenção das salas de cinema de rua. A Ancine aponta como principal fator para a decadência a mudança no modelo de negócio do setor com a predominância dos grandes exibidores nacionais e internacionais voltados para a construção de espaços dentro de shoppings. Questões relativas aos altos custos de operação, as empresas de menor porte com dificuldades para se manter, além de um consumidor mais exigente quanto a segurança e comodidade agravam ainda mais o cenário. Caio Pimenta nasceu em Manaus, mas reside em São Paulo, onde estuda pós-graduação em jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Atualmente, exerce a função de editor-chefe do portal Cine Set.

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sociedade

web feminismo Jovens artistas usam as redes sociais para provocar discussões sobre a condição da mulher contemporânea Texto por Heloísa D’Angelo

U

ma pequena casa se destaca em meio a tantas outras na Vila Madalena, em São Paulo. Nela, há um grafite enorme e colorido, que ocupa quase todo o seu muro lateral: é o rosto estilizado de uma mulher negra de cabelos azuis encarando os visitantes. A Casa de Lua, como é chamada, é um espaço criado em 2013 “para as meninas se conhecerem e conhecerem o feminismo”, explica a autora do grafite, Evelyn Queiróz. Negra, de cabelos curtos, tatuagens enfeitam todo o corpo – e nada de sutiã –, Evelyn é também a criadora da Negahamburguer, uma personagem dedicada ao questionamento do padrão de beleza atual — a mulher impecável e magérrima. A “Nega” e a Casa de Lua são apenas dois exemplos de iniciativas ligadas a um movimento antigo, mas que vem crescendo tanto no mundo virtual quanto no offline: o feminismo. 52

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Nas redes sociais, há vários grupos de debate, eventos e páginas feministas que surgiram (e vingaram) nos últimos anos. A Negahamburguer, por exemplo, criada em 2013, conta atualmente com quase 100 mil curtidas, no total, e uma média de mil curtidas por ilustração. Tão difundidas quanto Evelyn são a cearense Sirlanney Nogueira, criadora da página “Magra de Ruim” (50 mil curtidas), e a brasiliense conhecida na internet como lovelove6 (ela preferiu não revelar seu nome), idealizadora da HQ “Garota Siririca”, que trata de masturbação feminina. A designer gráfica mineira Carol Rossetti, cuja página no Facebook já ultrapassa os 160 mil likes, também entra nessa categoria. Suas ilustrações questionam o ideal de beleza feminino, incentivando as mulheres a agirem livremente em relação ao próprio corpo. Os desenhos, que se popularizaram esse ano, já tiveram as legendas traduzidas para diversas línguas – do inglês ao árabe. O “neoativismo” feminista jovem

transcende a rede. O Zine XXX, criado pela carioca Beatriz Lopes — com a participação de lovelove6, Sirlanney e outras artistas — é uma revista temática independente, viabilizada por meio do Catarse em crowdfunding e feita apenas por “minas iradas”, como define o subtítulo da publicação.

A hora delas

O Zine foi publicado em fevereiro e teve 489 apoiadores que, juntos, doaram cerca de 10 mil reais. A arte, entretanto, não é o único canal de divulgação e debate para o feminismo atual. Em abril deste ano, a jornalista brasiliense Nana Queiroz criou no Facebook a campanha “Eu não mereço ser estuprada”, da qual cerca de 50 mil mulheres participaram. Cobertas por cartazes com essa frase, elas se fotografaram nuas e compartilharam as imagens na rede em protesto contra o dado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), segundo o qual 65,1% dos brasileiros concordariam, total


HELOÍSA D’ANGELO

ou parcialmente, que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Dias depois, o Ipea corrigiu o dado para 26%, mas todos os olhares haviam se voltado para a causa feminista. Por que agora? Para a professora Ana Maria Colling, especialista em história da mulher e autora de Tempos Diferentes, Discursos Iguais: A Construção Histórica do Corpo Feminino, as redes sociais criam uma possibilidade de transmissão que o feminismo nunca teve antes. Colling lembra que o movimento no Brasil está “atrasado” em relação ao americano e europeu: “A Ditadura Militar interrompeu diversas lutas. As mulheres apagavam a própria sexualidade para igualarem-se, politicamente, aos companheiros homens”. A história do feminismo é a história da transgressão, e vem sendo contada “em ondas”: “Como uma onda, o feminismo avança, se espalha e recua”, explica Lenina Vernucci, socióloga e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro.

Há divergências em relação às ondas feministas, mas uma das visões mais aceitas divide o movimento em três picos e dois recuos: a primeira onda, que balançou o mundo, foi o Sufragismo, mobilização pelo voto feminino iniciada no século XIX e finalizada nos anos 1920. O recuo coincidiu com as duas guerras mundiais. O segundo pico só viria nos anos 1960, tempos de queima de sutiãs, de invenção da pílula anticoncepcional e do otimismo que declinaria nos anos 1980, conhecido como “a década perdida (quando houve o recuo da segunda onda). O terceiro ápice teria começado nos anos 1990 e seguiria até os dias de hoje, embora alguns historiadores considerem que, com a internet, o movimento tenha ganhado uma quarta onda. Ana Maria Colling frisa que o feminismo está diretamente ligado à construção histórica da mulher: “Antes de tudo, é preciso descolonizar a mente e o corpo femininos. É aí que está o trabalho das militantes feministas: na cultura”. Nas redes

Sirlanney, Evelyn e lovelove6 (ela usa este pseudônimo): ilustrações e consciência

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de Beauvoir: é muito mais simples, além de bonito”, justifica Evelyn.

Vínculo e objetivo

Apropriar-se do campo artístico, na visão de Carol Rossetti, já configura uma forma de transgressão, pois “as artes, principalmente os quadrinhos, sempre foram um campo machista”. Lovelove6, por sua vez, considera que a arte confere um tom impessoal à produção feminista, fazendo com que a obra possa ser usada em diferentes si-

lovelovee6

sociais, a frente de luta das ativistas é exatamente esta: “A gente tenta criar uma cultura para ajudar as ‘minas’ que estão na linha de frente do feminismo”, diz lovelove6. Por que a contracultura feminista estaria tão relacionada à arte? Segundo Colling isso acontece, primeiro, porque a arte é a maneira humana de expressar a angústia da opressão. Segundo, porque a imagem atrai a atenção de quem vê, mesmo em rede: “Um desenho, às vezes, faz refletir mais do que um livro da Simone

tuações: “Se eu faço um quadrinho, o leitor não se relaciona diretamente comigo, e fica livre para absorver o que quiser”. Seja por meio das páginas, seja pelo Zine XXX, seja por campanhas antimachismo, é nas redes sociais que muitas meninas estão conhecendo o feminismo — incluindo Evelyn e Carol. “Até há pouco tempo, a gente ouvia falar de feminismo como uma coisa antiga, tipo aquelas lutas dos anos 1960 nas quais as mulheres queimavam sutiãs”, recorda a grafiteira, que começou seu trabalho sem saber que ele se encaixava na categoria “feminista”. A criação de um vínculo a partir de um objetivo comum (a chamada “sororidade”) pode ser um ponto positivo para as redes. Em grupos, as meninas têm a possibilidade de discutir temas como aborto, abuso sexual e estupro, com a vantagem do anonimato, caso sintam-se ameaçadas por discursos machistas. Para Sirlanney, o movimento feminista cresceu no Facebook também porque a liberdade da rede deixa a opressão contra a mulher mais visível: “Você encontra páginas e páginas sobre o tema. Isso incomoda. E o incômodo gera arte”. Carol Rossetti, porém, lembra que a própria administração das redes pode ser um problema. O Facebook, em tese, não aceita postagens com discursos de ódio. Entretanto, a moderação desses conteúdos é arbitrária. Uma página de revengeporn (compartilhamento de imagens íntimas de meninas, em geral por vingança), por exemplo, pode se manter online, enquanto uma com ilustrações feministas de mulheres nuas é bloqueada. “Faltam consequências para essa suposta liberdade de expressão”, critica Carol.

Ação gradual

Os quadrinhos Garota Siririca quebram tabus sobre masturbação 54

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Outro problema é a falsa sensação de atingir um público enorme. Lenina Vernucci enfatiza que nem todas as mulheres têm acesso à internet no Brasil e, entre as que têm, poucas realmente acompanham as páginas feministas. Lovelove6 que o diga: “Às vezes, eu


Evelyn queiróz

Um desenho, às vezes, faz refletir mais do que um livro da Simone de Beauvoir: é muito mais simples, além de bonito Evelyn Queiróz, criadora da Negahamburguer

A página Negahamburguer explora as diferentes formas da beleza feminina

posto um desenho que a galera curte, mas nem comenta. Não tem retorno”. No entanto, o movimento não é coeso. Mesmo entre as meninas que acompanham o “web feminismo”, pode haver desentendimentos causados pelas múltiplas interpretações que a liberdade nas redes possibilita. Como o fluxo de informações é grande, muitas militantes acabam se contentando com informações superficiais e não estudam o movimento com mais profundidade. Uma das maiores preocupações para Evelyn é que a atual “onda” feminista não passe de uma tendência efêmera: “Muitas meninas se dizem feministas, e é claro que não cabe a mim dizer se são ou não, mas só até certo ponto. Quando entorna o caldo, elas dão um passo atrás”. Para lovelove6, é perigoso falar

em “moda feminista”. Qualquer crítica pesada, segundo a criadora do “Garota Siririca”, pode ferir o movimento: “Muita gente fica o dia inteiro no Facebook cultivando o ódio, mas se as meninas querem praticar um feminismo superficial, que façam isso, pois é melhor do que nada”. Ana Maria Colling concorda, lembrando que as divergências são positivas: “Eu prefiro que os conceitos do feminismo sejam passados para alguns de forma errada do que não serem passados”. Para a historiadora, o maior problema continua sendo a violência contra a mulher, e não cisões menores dentro do feminismo: “O importante é que a luta está em pauta. Alguns temas tabus precisam começar a ser enfrentados, e, nesse sentido, as redes sociais são maravilhosas”.

+

Livros Tempos Diferentes, Discursos Iguais Ana Maria Colling Na internet Zine XXX www.facebook.com/pages/ZineXXX/


marketing divulgação / editora trip

divulgação / new content

conforme o

cliente

Revistas customizadas extrapolam a esfera de atuação da marca e cada vez mais funcionam como “cartão de visitas” Por Ana Beatriz Rosa

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divulgação / editora trip

divulgação / editora trip

N

o mundo todo, o consumidor não é mais passivo; ele é coautor da ampla conversa social não linear – altamente visual, que acontece ao redor dos conteúdos distribuídos pelo modelo tradicional. Quem consome também acaba produzindo em uma cultura participativa e hiperconectada, vendo e interagindo com os acontecimentos e conteúdos, simultaneamente e em tempo real.” Esta fala de Patrícia Weiss, fundadora do Branded Content Marketing Association South America (BCMA), reflete a preocupação das marcas no atual contexto cultural ao redor do mundo. As empresas, hoje, estão tentando reinventar formas de conexão com o consumidor e de significação no mercado. Nesse sentido, o branded

content (“conteúdo de marca”) ganha cada vez mais força no mundo corporativo. A comunicação – feita por meio de veículos próprios, seja TV, rádio, revista ou outros – mantém um relacionamento com os clientes (ou potenciais clientes) através da oferta de conteúdos de qualidade. Hoje, segundo especialistas, as marcas não têm apenas algo a vender. Elas também têm do que falar, e o fazem por canais variados. A revista é um deles. Nos Estados Unidos e na Europa, as revistas customizadas (custom publishing) ocupam posição de destaque. De acordo com o Custom Content Council (CCC), que reúne as maiores editoras desse segmento nos EUA, no ano de 2013 foram produzidas 116 mil customizadas, movimentando 1,5 bilhão de dólares. Sara Duarte, jornalista e autora do livro Revistas de Luxo: O Fascinante Mundo da Mídia AAA, considera esse

tipo de revista “objeto de companhia”: “São publicações colecionáveis. Conhecidas pelos americanos como coffee table mags, principalmente pelas reportagens que abordam estilo de vida e comportamento, próprias para serem lidas em momentos de descanso, mas também por seu design caprichado.”

Modelo alternativo

Essas publicações se diferenciam das institucionais por terem um conteúdo mais amplo, com assuntos não necessariamente relacionados à organização, mas alinhados aos interesses dos clientes. A excelente qualidade gráfica é outro diferencial, que valoriza imagens assinadas por fotógrafos renomados e cria efeitos atraentes. Quanto maior a sofisticação, melhor a impressão causada, pois essas revistas funcionam um pouco como um cartão de visitas. Dezembro de 2014 | Cásper

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No Brasil, o mercado de customizadas é incipiente. “A demanda das pessoas por informação e conteúdo cresceu, mas o modelo que sustenta isso nas empresas jornalísticas tradicionais entrou em crise. Criou-se, então, um cenário oportuno para as pessoas fazerem um conteúdo que atendesse às marcas”, observa Artur Louback, jornalista e diretor de conteúdo da plataforma TAM nas Nuvens, produzida pela Agência New Content. Desde as clássicas empresas jornalísticas nacionais, como a Editora Abril e a Editora Globo, até as menores, como a Trip, a Custom e a New Content, todas foram afetadas pelo aumento do investimento das organizações na criação de mídias próprias. Parte da verba – ou, em muitos casos, toda a verba – antes destinada à publicidade foi redirecionada ao branded content. Entretanto, observa Artur, os jornalistas que se arriscam a exercer a profissão nessa área ainda sofrem preconceitos: “É difícil encontrar um profissional que se encaixe nas customizadas. Acredito que existe um ‘ranço’ histórico entre a publicidade e o jornalismo”. Outro fator que dificulta é a carência de discussão acadêmica sobre esse setor crescente. “Quem atua no mercado deveria se abrir para entender melhor a motivação das empresas, tendo em mente que é possível produzir um conteúdo muito bom, relevante e socialmente responsável dentro das customizadas, sem perda do olhar crítico.”

Estética singular

Décio Galina, diretor de redação da Audi Magazine e Revista Personnalité, editadas pela Trip Editora, acredita que, neste exercício, é muito importante uma análise profunda do público: “Uma vez delineado o perfil do cliente, entra o pensamento jornalístico de qual matéria pode ser legal para falar de valores específicos da marca. Falar não de uma forma direta, mas por meio de um conteúdo atraente”. 58

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as revistas customizadas são diferentes das institucionais por terem um conteúdo mais amplo, com assuntos não necessariamente relacionados à organização, mas alinhados aos interesses dos clientes O projeto gráfico é um componente essencial. Os profissionais responsáveis pela publicação enfrentam o desafio de criar algo em que o cliente se reconheça, mas de modo a perceber também aquilo que pode se tornar o seu diferencial no mercado. No caso da Personnalité, a equipe apostou no uso da cor dourada nas páginas e nos tipos de letras, dando um “quê” de luxo à publicação e dinamizando a leitura. Já a Audi trouxe a ideia da “confraria”: um jantar é oferecido a convidados especiais para que eles discutam assuntos variados – uma espécie de brainstorm informal. Do resultado dessa conversa surgem ideias para pautas. As reportagens principais contam com o plus de um vídeo do making of da produção ou da continuação do tema, disponível para quem acessa a versão digital (essas duas publicações estão disponíveis para tablets). O processo de produção de uma revista customizada não é tão diferente se comparado ao de uma revista de nicho. Uma vez estipulada a periodicidade, os prazos e cronogramas de fechamento são seguidos

à risca, como em qualquer outra publicação comercial. A maioria dos títulos é bimestral ou trimestral, porém existem alguns mensais, como o TAM nas Nuvens. Artur Louback acredita que, dentro do processo de produção das reportagens, “o ideal” ocorre quando a TAM, por meio de seus setores estratégicos, comunica quais destinos são interessantes em cada época do ano: “Assim, nos reunimos e equilibramos as ideias. Se consigo encaixar isso e encontro uma sinergia entre ambos, é o melhor dos mundos”. Para Artur, a plataforma desenvolvida, que conta com TV de bordo, revista digital e impressa, não serve apenas para a construção da marca da companhia aérea. “Ela serve também para informar o leitor e plantar nele o ‘sonho da viagem’. E, além de uma forma de distração durante os voos, é um canal de publicidade para as passagens aéreas. Não tenho nenhuma meta de aumentar o número das vendas da companhia, mas isso acaba sendo uma preocupação nossa. A gente acredita que, quanto mais relevantes nós


divulgação / editora trip

divulgação / editora trip

Excelência na qualidade gráfica é um dos diferenciais das publicações

formos nas diferentes esferas da empresa, mais seremos necessários.”

Cenário favorável

A ideia é elevar a publicação customizada do nível de “interessante” para o nível de “necessária”, e daí para “obrigatória”. As expectativas de ampliação desse setor configuram um cenário favorável para os envolvidos. O BCMA é um exemplo: “A gente quer reunir essas pessoas dispostas a fazer o branded content crescer e discutir as melhores formas de tornar isso possível”, diz Viviane Donnamaria, do BCMA. O grupo, que surgiu na Inglaterra em 2003 e se internacionalizou, é composto por líderes de marcas, videomakers, agências de comunicação, publishers, produtores musicais e de games. A versatilidade dos componentes encontra um ponto em comum: promover, regular e incentivar uma cartilha de “boas práticas” que colaborem na produção do conteúdo. Segundo Viviane, o mercado brasileiro está em expansão e é estratégico: “Estamos mediando o diálogo entre

empresas e produtores de conteúdo customizado a fim de catalisar cada vez mais os investimentos na área”. Décio Galina e Artur Louback enfatizam a necessidade de o profissional produtor de conteúdo transitar por todas as mídias, mas apostando no vídeo como um canal que deverá se popularizar cada vez mais. “Nesse trabalho, a gente nunca vai derrubar um governo ou criar polêmica. Para isto, continuam valendo os canais existentes. Mas as customizadas devem crescer não só em formato de revista, mas também em vídeo e no ambiente digital”, afirma Décio. Para Sara Duarte, é imprescindível que o conteúdo jornalístico e o publieditorial sejam separados de forma clara para o leitor, em qualquer plataforma: “Quem recebe a revista ou assiste a um vídeo deve reconhecer os princípios da publicação. Se o leitor percebe que está consumindo um conteúdo enganoso, do tipo que foi pago para estar ali sem a verificação da sua veracidade, toda e qualquer credibilidade é perdida”.

Para onde esse setor está indo? Para a gestão de conteúdo, acredita Artur: “É o que faz, por exemplo, o Netflix, que promove o conteúdo não diretamente por meio de marcas. Você se conecta e assiste a um filme produzido pela Warner ou pela Universal. Assim, conseguem, através de algoritmos, entender tão bem o cliente e customizar o conteúdo de tal forma que ele se torna obrigatório na rotina das pessoas”. Especialistas que analisam o mercado apostam no branded content como força propulsora no século XXI. “No caso do impresso, precisamos reconhecer que o leitor jovem quase não vai às bancas de revista. Quando ela chega até o consumidor por meio de um conteúdo que valoriza e promove a fidelidade entre a marca e o cliente, ele quebra essa inércia”, acredita Sara Duarte, para quem o desafio representado por essas mídias próprias está em fazer as marcas serem compreendidas em sua essência, com experiências que valorizem as sensações em detrimento do simples consumismo. Dezembro de 2014 | Cásper

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resenha

exercicio

de admir

Livro de Sergio Vilas-Boas valoriza um gênero jornalístico muito divulgado e pouco compreendido Texto por Welington Andrade

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aos olhos do grande público, retratadas em Perfis: o mundo dos outros, que chega agora a sua terceira edição, revista e ampliada. Autor de onze livros, entre eles Biografismo: reflexões sobre as escritas da vida e Os estrangeiros do trem N (vencedor do Prêmio Jabuti em 1998), Vilas-Boas é também jornalista e professor universitário, tendo realizado tanto sua pesquisa de mestrado quanto a de doutorado sobre um tema bastante caro ao universo do jornalismo – as narrativas biográficas –, ambas apresentadas à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Publicados de modo esparso, entre 1999 e 2004, em jornais, revistas e livros, os perfis biográficos reunidos nessa nova edição exploram, com uma perspicácia e uma sensibilidade cada vez mais raras no jornalismo atual, algumas singulares ocorrências que cercam a vida dos poetas, prosadores, intelectuais, esportistas e homens de negócio a quem o autor se propôs retratar. Embora se trate de personagens cujas trajetórias de vida são tão diferentes entre si, todos aqui parecem ter algo em comum, irmanados que estão

pela técnica incisiva e cortante por meio da qual Vilas-Boas concebe seus retratos. Os textos primam pela concisão. Não aquela ligada à brevidade do vazio e da superficialidade tão em voga em tempos de abundância de informação e escassez de experiências narrativas. Os breves retratos de figuras tão complexas que o autor sugere (o poder de sugestão é, sim, um grande antídoto contra o racionalismo espúrio do qual a sociedade informacional vem se orgulhando cada vez mais) em seus textos estão a serviço da investigação biográfica discreta, diligente, delicada, que não necessita mergulhar fundo nas misérias e grandezas do homem. Antes, tal investigação constitui um exercício de modalização subjetiva, voltado à observação sensível do efêmero, do banal, do acessório. Como se, por meio de tais elementos, pudéssemos privar um pouco da essencialidade dos seres biografados. Alguns perfis revelam personagens fascinantes desconhecidos do leitor médio. O escritor Francisco Dantas é um deles. No perfil “Domador de veredas”, sobressai a intenção de Vilas-Boas de destacar a atividade literária de Dantas,

sxc.hu/WhitneyTucker

oando de Campo Grande à fazenda Santa Cruz, no Pantanal mato-grossense, em um Cessna Centurion II, ao lado de Manoel de Barros, o poeta que se dedica a descobrir as insignificâncias do mundo e das pessoas. Tomando café e discutindo futebol com Tostão em Belo Horizonte, onde mora o craque da bola e das crônicas esportivas. Acompanhando Mara Salles, uma chef de cozinha que, há trinta anos, “nem sabia cozinhar direito e hoje é uma das principais embaixadoras da gastronomia brasileira”. Toureando o tédio de João Ubaldo Ribeiro, no escritório do autor de Viva o Povo Brasileiro, no Leblon, Rio de Janeiro, e testando ao mesmo tempo a paciência, que andava por um fio, do escritor: “Olhe, meu amigo, preciso trabalhar; estou cada vez mais sem saco para entrevistas”. Essas são algumas das ações executadas por Sergio Vilas-Boas em companhia de um expressivo número de personalidades, sejam elas célebres ou anônimas


chapéu

ação Perfis – O Mundo dos Outros Sergio Vilas-Boas Editora Manole, 288 páginas

mas as coisas ínfimas, vividas ao rés-do-chão, que cercam a fazenda onde mora o personagem também não escapam à sua observação sensível: “Desde que eu havia aparecido ali, na fazenda Lajes Velha, em Itabaianinha (SE), prestei atenção no coaxar tresloucado dos sapos no açude; nos galos que saudaram o amanhecer; no berro abafado das dóceis cabras Saanem; nos olhos silenciosos dos bois Tabapuã-Chianina; nos trinados dos grilos ouriçados com as lâmpadas da varanda; nos bufos da burra Medalha”. Outra figura igualmente cativante é a do escritor Cristóvão Tezza. Em “Alma de relojoeiro”, Vilas-Boas vai em busca do passado do personagem, que viveu, como muitos jovens, os sonhos e as utopias da década de 60. Mas em vez de o perfil ficar preso a esse tempo nostálgico e inerte, o texto trata habilmente de ligar o “que veio antes” ao “aqui e agora”, encerrando-se com uma metáfora bastante poderosa: “O que vem depois da batida das horas? Nessa casa, aparentemente imune ao pulsar às vezes escravizante do calendário convencionado, mora um escritor com alma de relojoeiro. Meticulo-

so, tolerante, disciplinado, ele maneja as horas como Curitiba maneja o presente”. No último texto do livro, o ensaio intitulado “A arte do perfil”, Vilas-Boas recupera a história do gênero que é considerado hoje em dia uma espécie de oásis de invenção e criatividade em meio à aridez da atividade jornalística produzida em escala industrial. (Impossível não pensar no trabalho de ourivesaria e artesanato representado pelos deliciosos perfis publicados na revista Piauí). Nesse texto de fechamento, não somente o estudante de jornalismo como também o interessado em geral pelas narrativas biográficas irão encontrar a descrição precisa, o argumento envolvente, a reflexão apurada sobre esse gênero nobre do jornalismo literário que envolve processos criativos multidimensionais em que se combinam a memória, o conhecimento, a fantasia, a síntese e os sentimentos. Sobre “A arte do perfil” declara o próprio autor: “Compilei nesse ensaio os meus estudos e as minhas experiências nos últimos vinte anos como escritor e professor... Nem sempre é possível realizar tudo o que está indicado no ensaio, porque

tanto o personagem quanto o processo de retratá-lo são irrepetíveis – aliás, criatividade e maleabilidade são fundamentais na construção de perfis jornalísticos”. Ao final da leitura, provavelmente o leitor mais atento poderá perceber o quanto do universo do próprio autor está relacionado a esse “mundo dos outros”, uma vez que o retrato, segundo o escritor francês Charles Augustin Sainte-Beuve (1804-1869), é uma forma utilizada “para produzir nossos próprios sentimentos sobre o mundo e sobre a vida, para exalar com subterfúgio uma certa poesia oculta”. Em seu livro, Sergio Vilas-Boas faz do interesse por 22 pessoas um belo e denso exercício de admiração – linguística, jornalística e humana – pelo outro, convertendo tais indivíduos em personagens cujas trajetórias tão diferentes das nossas estão plenas de significação muito próxima de nós. Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio e doutor em Letras pela USP. É também professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e crítico de teatro da revista Cult.

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noticias

Jornalismo de dados O evento “Quem mexeu no meu jornalismo de dados?” agitou a manhã do dia 21 de outubro no Teatro Cásper Líbero. Visando a constante atualização dos alunos na profissão, o debate contou com dois nomes de importância nas pesquisas sobre dados e redes. Um deles foi Alexander Howard, jornalista norte-americano trazido ao Brasil com o auxílio do Consulado Geral dos Estados Unidos. Howard, que já trabalhou na Columbia Journalism School, traçou um

parâmetro geral a respeito da aplicação de dados no fazer jornalístico, enfatizando a importância do profissional capaz de “transformar informações robóticas em algo humano e contextualizado”. O representante brasileiro foi o professor Fábio Malini, coordenador do Labic (Laboratório de Pesquisa sobre Internet e Cultura), que apresentou trabalhos de relevância sobre redes de ação coletiva. Malini prezou a contribuição do jornalista para a ciência de dados: “O início de

qualquer projeto com dados necessita de boas questões formuladas, e os jornalistas são quem chega com elas, geralmente”. Os dois pesquisadores responderam perguntas da plateia e dos entrevistadores (Leonardo Sakamoto, Beth Saad, Liraucio Girardi Júnior e Rafael Fonseca). O evento também contou com o apoio da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e foi mediado pela professora de Jornalismo Digital da ECA-USP, Daniela Osvald Ramos.

Yuri Andreoli

Tecnologia

casperianas

Um dos temas discutidos foi como transformar informações robóticas em algo humano e contextualizado

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ricardo nóbrega

Estágio

Convergência de saberes

Semiótica

Mediação alunos-empresas

Pesquisa

Alunos avaliam oportunidades de estágio na feira anual promovida pela Faculdade

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A Feira do Dia do Estágio é um evento anual. Em 2014 ela aconteceu no dia 10 setembro, quando quinze empresas montaram seus stands no prédio da Fundação Cásper Líbero. Entre elas, marcas com ótimas referências no mercado, como Bloomberg, Burson-Marsteller e Gi Group, e agentes de integração reco-

Quatro encontros envolvendo os Grupos de Pesquisa Comunicação e Cultura do Ouvir (Cásper Líbero), Mídia e Imaginário (UNIP) e CISC – Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (PUC-SP) tiveram lugar na Cásper entre setembro e outubro. A proposta era integrar a comunidade acadêmica e discutir os estudos de Vicente

nhecidas como Nube e CIEE. A Feira serviu para o recrutamento de talentos, divulgação institucional e distribuição de brindes. Foi uma oportunidade para quem está pensando em começar a estagiar. Alunos de todos os cursos da Cásper, no período de 8h às 12h e 18h às 21h, puderam conhecer as instituições.

Eduardo Dieb, professor responsável pela supervisão de estágios, foi quem articulou o evento com a equipe da Central de Estágios. Segundo ele, a feira é um mediador entre os alunos e as empresas: “O aluno é fisicamente colocado em contato com os agentes de integração, a fim de se estreitarem as relações”.

Romano, filósofo espanhol especializado em comunicação, falecido este ano. Com foco no conceito de “ecologia da comunicação”, docentes e discentes discutiram “Espaço e Tempo em Romano”. O evento valorizou o intercâmbio de conhecimentos. O professor José Eugênio de Menezes, coordenador do GP Comunicação e Cultura do Ouvir, participou

ativamente: “A localização da Cásper permite contato fácil com instituições vizinhas. Esses grupos de pesquisa já têm uma parceria histórica. A ideia aqui não é ter um mestre que orienta, mas sim que cada pessoa com mais ou menos experiência possa verbalizar e estudar a comunicação com profundidade e sem respostas prontas”.

chiri (da pós-graduação) da Cásper foi quem organizou a ida dos casperianos ao evento. Roberto ressaltou a importância da participação em congressos ao redor do mundo: “É um momento em que a gente leva o nome da nossa instituição para fora. Um momento de trocas de saberes, quando a gente percebe que já não estamos mais sentados no banco de trás”.

O Brasil é uma referência internacional em semiótica peirceana (que é voltada ao estudo dos fenômenos). Devido a isto, na abertura do congresso, o pensador Umberto Eco fez menção aos brasileiros presentes, ressaltando o avanço nesse tipo de pesquisa, que está entre as principais tendências internacionais, principalmente na Europa.

Congresso na Bulgária Onze representantes casperianos – alunos e professoras da graduação e da pós-graduação – apresentaram trabalhos no 12º Congresso Internacional de Semiótica na cidade de Sófia, capital da Bulgária, entre 16 e 20 de setembro. A maior delegação foi a brasileira, reunindo pesquisadores de diferentes universidades do país. O professor Roberto Chia-

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Seminário

Teorias da Comunicação

Multinacional

Diversidade segundo John Lewis

Jornalismo

Cinco dias de debate

A Cásper Líbero foi palco do 5º Seminário Teorias da Comunicação: Quinta Essencial – Pensadores da Comunicação. Ao longo de três dias, participaram os professores Ciro Marcondes Filho (USP), José Luiz Braga (Unisinos), Muniz Sodré (UFRJ) e Norval Baitello

A noite do dia 28 de outubro foi marcada pelo encontro com o diretor global de diversidade da Coca-Cola, John Lewis, para discutir “Diversidade e comunicação em grandes corporações”. Além de enfatizar o papel do jornalista como um contador de histórias, Lewis compartilhou a narrativa de luta de seus antepassados escravos até a situação

que o fez ser um advogado negro bem sucedido, ressaltando o quão raro isso é nos EUA. Na Coca-Cola Company, seu papel é levar todas as estratégias de diversidade, inclusão e equidade no local de trabalho pelos mais de 200 países onde a empresa atua. A partir da noção de que é preciso criar desconforto para gerar mudança, o diretor global de diversidade

boas possibilidades para novos modos de enxergar as Teorias da Comunicação. Com a polidez e o rigor crítico necessários, os professores, além de formularem hipóteses, mostraram aos participantes o quanto ainda há para ser estudado na área da comunicação.

destacou que questões de difícil resposta o levaram para o cargo que ocupa hoje. “Diversidade para mim é questão de interesse profissional, mas também passional”, afirmou. Na conclusão, ele instigou o público majoritariamente branco da Faculdade Cásper Líbero: “Eu não acho que você precise ser afrodescendente para defender a causa negra”.

Yuri Andreoli

Há 22 anos ocorria a primeira Semana de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Assim como o mercado se modificou no decorrer desse tempo, as mesas e os debates também se transformaram. O interesse dos alunos (e dos convidados) confirma que sempre existirão assuntos relevantes para o aperfeiçoamento da profissão de jornalista. Neste ano, a organização discente da faculdade, junto com a Coordenadoria de Jornalismo, se esforçou para elaborar um evento em que todos os alunos se sentissem representados. Os temas das mesas contemplaram todas as mídias com assuntos que foram do acadêmico ao gastronômico, da ética à moda, da iniciação à consolidação. Uma das mesas mais concorridas, a de Jornalismo nas Eleições, contou com a presença de Vera Guimarães, da Folha, Cristiano Navarro, do Le Monde Diplomatique, Cynara Menezes, da Carta Capital, Jorge Machado, da TV Alesp, e os professores João Batista Natali e Cilene Victor. Ao todo, foram cinco dias de debates, divididos em 18 paineis. A 22ª Semana de Jornalismo da Cásper Líbero mostrou, assim, a sua vitalidade como fórum da área.

(PUC-SP); e a professora Lucrécia D’Alessio Ferrara (PUC-SP). O formato do evento foi inovador: nele, a reflexão epistemológica foi fomentada pelas interlocuções de todos integrantes da mesa sobre algumas produções individuais dos cientistas presentes. Os diálogos criaram

As eleições foram um dos temas da 22ª Semana de Jornalismo

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crônica

VEJA

bem Por Guilherme Tauil

Imagem Débora Stevaux

“I

magine, são seus olhos”, disse a moça envergonhada, em resposta ao meu elogio. Meus olhos? Mas qual o problema deles, além de tantos graus de miopia e mais um bocado de astigmatismo? Nunca antes acusados de nada, meus olhos seguiam orbitando em paz, ainda que incapazes de me revelar o mundo sem a ajudinha de umas lentes. Venho de uma linhagem de gente que enxerga mal, não posso fazer nada. Meu antepassado morreu na primeira caçada porque errou a flecha no lobo, que não perdoou. Depois, foi linha de frente na Batalha de Azaz, onde não conseguiu desviar da lança porque viu a arma desfocada, duplicando-se de repente. Mais tarde, atrasou em algumas horas o descobrimento do Brasil por não distinguir um borrão da terra à vista. De míope em míope, os genes da vista turva driblaram a seleção natural, cruzaram o oceano quando ainda se via tudo em sépia e vieram se manifestar em mim, embaçando minha visão de mundo em pleno século vinte e um, já distorcido por mérito próprio. Devo a essa dificuldade de refração o meu modo de enxergar a vida – literalmente. Bem como a fama de esnobe, já que

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frequentemente não cumprimento os do outro lado da rua, e também esse tique de ajeitar os óculos a toda hora, mesmo que já estejam em ordem. Arrumar os óculos é, muitas vezes, o melhor gesto para disfarçar a solidão. Do mesmo modo que o fumante acende um cigarro, dá três tragadas e o apaga no poste para justificar estar ali, parado e sozinho, o míope põe os óculos contra a luz, identifica as áreas engorduradas e esfrega a blusa, repetindo o processo até se sentir confiante para assumir-se solitário. Depois, sem a armadura, pode se sentar tranquilo diante do mundo, à espera do encontro marcado com a mulher que, envergonhada, responderá a um elogio dizendo “imagine, são seus olhos”. Eu fiquei sem saber se ela quis dizer que os meus olhos viram de mais ou de menos. Mas isso não importa, veja bem: não eram os meus olhos. Guilherme Tauil é cronista da Gazeta de Taubaté e do site Posfácio e estuda literatura na Universidade de São Paulo.




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