Revista Cásper #8

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´ CASPER

Nº 8 – Dezembro de 2012

Bienal

entrevista com o curador Pérez-Oramas

Jornalismo gastronômico em tempo de blogs

Quadrinhos as graphic novels em alta

Lígia Cortez

O teatro educa, aprofunda a reflexão e traz autoconhecimento



´ CASPER Fundação Cásper Líbero Presidente Paulo Camarda Superintende Geral Sérgio Felipe dos Santos

Faculdade Cásper Líbero Diretora Tereza Cristina Vitali Vice-Diretor Welington Andrade

Revista Cásper Núcleo Editorial de Publicações Coordenador de Ensino de Jornalismo Daniela Osvald Ramos Editor-chefe Carlos Costa Editora Caroline Mendes Conselho Editorial Adalton Diniz, Carlos Costa, Elisa Marconi, Daniela Osvald Ramos, Luiz Alberto de Farias, Rodney Nascimento e Welington Andrade Reportagem Amanda Massuela, Caroline Mendes, Luíza Fazio, Mariana Marinho, Mariana Oliveira, Patrícia Homsi e Victor Bonini Editora de Arte e Fotografia Mariana Oliveira Diagramação Luíza Fazio, Mariana Oliveira e Rafaela Malvezi Colaboradores Fábio Fujita, José Geraldo Oliveira e Yishi Teuziu Redação Avenida Paulista, 900 — 5º andar 01310-940 — São Paulo — SP Tel.: (11) 3170-5874 E-mail: revistacasper@casperlibero.edu.br Site: http://www.casperlibero.edu.br Capa Mariana Oliveira

A comunicação em benefício

das artes

Com este número a revista Cásper chega a sua oitava edição, mantendo como foco o debate de alguns dos principais temas da comunicação por meio do diálogo com profissionais da área e com os leitores em seu sentido mais amplo. Se nos números anteriores os destaques foram a publicidade, as relações públicas, o radialismo e o jornalismo, elegemos agora uma aproximação com as artes – cênicas, gráficas e plásticas. Assim, abrimos a revista com um perfil da atriz Lígia Cortez, diretora do Célia Helena Teatro-Escola, escrito pela jovem repórter Mariana Marinho. Lígia, filha de um casal de atores que marcou o teatro paulistano – Célia Helena e Raul Cortez – fala sobre a infância, o relacionamento com os pais, o envolvimento com o teatro, o cinema e a televisão e o trabalho de formação à frente da escola criada pela mãe. E problematiza questões como a validade da existência de uma escola de nível superior para atores e o papel do teatro como arte coletiva, de troca, autoconhecimento e reflexão. O curador da bienal deste ano, Luiz Pérez-Orama, discorre na entrevista concedida à editora Caroline Mendes sobre o papel da arte no mundo contemporâneo, tanto para quem a produz quanto para quem usufrui dela. Ele explica a temática da bienal deste ano e esclarece algumas polêmicas. No campo das artes gráficas, uma das boas novidades é o fato de diversas casas editorias investirem nas graphic novels, o que favorece o mercado de novos quadrinistas brasileiros. As repórteres Caroline Mendes e Luíza Fazio contam como o gênero surgiu e chegou ao Brasil, atraindo leitores não habituados às tradicionais HQs. Novos talentos das artes gráficas brasileiras são apresentados a seguir. São quatro perfis muito bem ilustrados, aliás. A internet instaurou um tempo novo e impõe outras dinâmicas. Frente às novas formas de produção e consumo de música inauguradas por ela, o que faz a indústria fonográfica para se adaptar à realidade dos compartilhamentos, streamings e downloads que fizeram ruir a tradicional lógica de funcionamento do mercado musical? Como ela mantém seu terreno frente ao sucesso dos artistas independentes? A repórter Amanda Massuela vai em busca das respostas para essas e outras questões em sua reportagem. No mercado editorial brasileiro, os holofotes se dirigem para a chegada de duas gigantes internacionais, a Kobo e a Amazon, cuja presença entre nós certamente trará conseqüências marcantes. O portfólio desse número registra o trabalho do premiado fotógrafo tibetano Yishitenzin, que encara a fotografia como uma poderosa ferramenta de comunicação: “Minhas fotos podem fazer com que mais pessoas compartilhem da beleza, da alegria e da felicidade de meu povo”, garante o artista. O portfólio é seguido por uma entrevista com Fabiano Maisonnave, correspondente da Folha de S.Paulo na China. Após viver momentos tensos como a posse de Evo Morales na Bolívia, o golpe contra Manuel Zelaya em Honduras e o terremoto no Haiti, Maisonnave acompanha agora as mudanças políticas e econômicas da China. Como o leitor pode perceber, há muito para conferir nas páginas desta Cásper. Boa leitura!

Tereza Cristina Vitali Diretora Dezembro de 2012 | CÁSPER

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Sumário

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20 6 Teatro é criação coletiva

Lígia Cortez, atriz e diretora do Célia Helena Teatro-Escola conta sua trajetória e fala sobre a função educativa das artes cênicas

14 Bienal: intuitiva, intrigante e onírica Para Luis Pérez-Oramas, curador da 30ª Bienal de São Paulo, a arte contemporânea é uma forma de exploração das questões humanas

20 Quadrinhos para gente grande Não só de histórias infantis vive o mercado de quadrinhos. Conheça as graphic novels, HQs mais bem trabalhadas

24 O que há de novo nas HQs?

Cásper escolheu cinco talentos da nova geração de quadrinistas brasileiros

28 Hit parade 2.0

Em tempos de downloads e streaming ao alcance de um clique, a indústria fonográfica se reinventa para não perder espaço

32 Nova potência editorial

O Brasil ganha cada vez mais leitores e chama a atenção do mundo para a nossa produção literária

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38 Tibete: o teto do mundo 38 O premiado trabalho do fotógrafo tibetano Yishitenzin ao retratar sua terra

O homem da Folha na China 46

Fabiano Maisonnave, correspondente da Folha de S.Paulo em Pequim, conta sua experiência na cobertura de eventos políticos na América Latina

Jornalismo de forno e fogão 52 Em meio a um boom de blogs que falam sobre comida, como fica a tradicional crítica gastronômica?

Mamãe, eu quero! 58

A publicidade está presente não só na vida dos adultos, mas também na das crianças. O desafio dos pais é saber contorná-la

Notícias Casperianas 62

Os principais eventos da Faculdade nesse segundo semestre

Crônica 66

Pela leitura analógica, por Fábio Fujita

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PERFIL

A serviço da

CRIAÇÃO

coletiva Para Lígia Cortez, diretora do Célia Helena Teatro-Escola, a arte cênica é um trabalho em grupo que funciona como ferramenta para a reflexão e o autoconhecimento

MARIANA OLIVEIRA

Por Mariana Marinho



O

encontro estava marcado para as 11h30 de uma terçafeira bastante quente. “Very strange”, disse alternando o olhar entre o ar condicionado e o controle de temperatura. “Meu Deus, como está calor aqui, não?” É, estava – e o ar condicionado parecia não querer colaborar. Passada a luta contra o ambiente abafado, lá se foi ela corredor afora se maquiar. “Ufa, bem melhor”, disse voltando para sala e sentandose. Mas foi por pouco tempo. Logo se levantou da cadeira oferecendo água, café e buscando as xícaras. Sentou-se. Dali a pouco já estava em pé arrumando a persiana. Sentou-se. Dessa vez, permaneceu assim. Dona de olhos expressivos e de uma personalidade que oscila entre a timidez e a agitação, Lígia Cortez não para. “Tenho muita energia para o trabalho. Venho de uma família em que o respeito e o valor do trabalho sempre foram importantes. Fico ma-

luca, mas é uma maluquice boa.” Ela é diretora artística e professora de Interpretação do Célia Helena TeatroEscola, que desde 1977 oferece curso de teatro para jovens. Além de estar à frente da escola, Lígia é atriz há mais de 35 anos, leciona Direção de Atores na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/ USP) como professora convidada do Departamento de Audiovisual, coordena a Casa do Teatro e ainda encontra tempo para estudar psicanálise por conta própria e se dedicar ao marido, o cenógrafo e artista plástico Ulisses Cohn, e às duas filhas. Por ser filha de dois grandes atores brasileiros, Célia Helena e Raul Cortez, é de se imaginar que sonhasse com o glamour da profissão dos pais. Porém, tudo o que Lígia queria era distância dos holofotes do palco. “Nunca me deixei deslumbrar nem pela fama, nem pelo sucesso, nem pela glória. Ao contrário, tudo isso sempre pareceu ARQUIVO PESSOAL

“Meus pais foram pessoas incríveis, atores fantásticos e artistas raros”. Acima, Lígia posa ao lado do pai, Raul Cortez

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incômodo para mim, porque eu gosto de privacidade, de ficar quieta no meu canto.” A atriz e diretora achava, ainda, a vida de ator muito dura: “Eu via meus pais trabalhando nos finais de semana, eu tinha que dividir com o teatro a convivência com eles”. Mas não teve jeito. “Como eu era muito tímida e introvertida, minha mãe considerava importante que eu fizesse teatro. E ela tinha razão.” Mesmo convivendo desde pequena com o ambiente teatral, apenas aos 15 anos Lígia subiu pela primeira vez ao palco. A peça, que contava a história de um grupo de jovens que resolvia falar de questões familiares, era criação da primeira turma do Célia Helena TeatroEscola, da qual fazia parte também o diretor teatral Antunes Filho. “Fui percebendo que o teatro era para o outro. Então comecei a tomar gosto.” Os cursos de Biologia e de Psicologia, iniciados em 1979 e 1980, respectivamente, tiveram de ficar para trás. Aos poucos, a aluna do Colégio Bandeirantes, disposta a ir para a área acadêmica, cedeu espaço para a atriz, preocupada em fazer do teatro um espaço de reflexão profunda. “O teatro pode, sim, ser uma arte que induz o narcisismo, mas isso acontece com os maus atores. Os bons trabalham em coletivo e têm noção de suas responsabilidades em cena. Logo que comecei a atuar, quis o enfoque do pensamento, do trabalho coletivo, da transformação de si mesmo e do mundo.” Para Lígia, longe de ser um ato narcisista, o teatro é uma ferramenta de autoconhecimento e crescimento. Desprendida de possíveis comparações com a fama e a carreira dos pais, Lígia traçou uma trajetória diferente daquela tomada por eles. “Levo o que aprendi com os dois: foram pessoas incríveis atores fantásticos e artistas raros. Lamento a pouca convivência que minhas filhas tiveram com esses avós. Foram embora muito cedo.”


BOB SOUZA

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Com a mãe, a atriz Célia Helena. “Lembro-me das pessoas saírem das peças da minha mãe chorando, querendo abraçá-la. Ela era muito forte como atriz”

Célia e Raul se separaram quando Lígia era muito pequena. “O divórcio nunca me afetou além da conta. Tínhamos uma boa relação, eles se davam muito bem, foram muito maduros e éticos.” Como na época eram poucos os casais divorciados, a atriz se sentia um tanto diferente das outras crianças, mas da experiência tirou como aprendizado “a difícil condição da mulher brasileira para batalhar a sua autonomia num país masculino”. Assim como os pais, Lígia deixou as filhas livres para escolherem seus rumos profissionais, mas, uma vez mais, não teve jeito. A mais velha, Victória, 25 anos, estuda literatura francesa, tem um grupo de performance em dança e teatro e dá aulas para crianças. Clara, de 13 anos, compõe músicas, faz teatro e artes plásticas. “Elas têm o foco do autodesenvolvimento, do que o teatro pode trazer para as suas vidas enquanto crescimento de experiência criativa.”

Em cena “Ou você pensa ‘Se eu não fizer te10

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atro, morro’ – ou seja, preciso dele para colocar reflexões e angústias do ser humano –, ou então é melhor partir para outra coisa.” Foi com esse propósito que trinta atores do Grupo Macunaíma partiram em turnê pela Europa com a peça homônima, adaptada da obra de Mário de Andrade e dirigida por Antunes Filho. O ano era 1981 e, entre eles, compondo o segundo elenco da montagem, estava Lígia Cortez. “Percebi que tínhamos uma missão maior do que apenas fazer a peça. Quem nos assistia estava quase descobrindo o Brasil com Macunaíma”, relembra. Da simplicidade dos materiais nascia a riqueza visual da peça: jornais e panos formavam o cenário. “Para a época, isso era muito inovador.” Durante os quatro anos de Macunaíma, Lígia encenou, entre outras, Romeu e Julieta, de Shakespeare, e Nelson 2 Rodrigues, de Nelson Rodrigues, ambas sob direção de Antunes. Quase vinte anos após a estreia de Macunaíma, Lígia, fez parte de um dos espetáculos que mais a marcou. Cacilda!, de 1998 e com direção de

ARQUIVO PESSOAL

José Celso Martinez Correa, conta a história da atriz brasileira Cacilda Becker, primeira atriz do Teatro Brasileiro de Comédia (TCB). Na montagem de Zé Celso, a vida pessoal e artística de Cacilda se entrelaçam às tantas personagens que representou – como Estragon em Esperando Godot, de Samuel Beckett. Lígia dividiu o palco com Bete Coelho, Iara Jamra, Mika Lins e mais 23 atores, entre eles o próprio Zé Celso. “Cacilda tinha um pulmão só, falava com frases muito curtas. Isso modificou totalmente a nossa interpretação. O Zé fez um trabalho muito lindo e louco, do jeito dele. Ele coloca uma situação em que você deixa o seu imaginário te levar. Ele tem uma coisa de que as pessoas não são pessoas, mas sim representações. Então, Cacilda! era a representação de um teatro, de uma época, de uma voz, de um desejo, do caráter de uma mulher.” Recentemente, a atriz se deparou com outro desafio nos palcos. Em 2009, Lígia viveu a rainha Elizabeth I em Maria Stuart, dirigida por Anto-


“Ou você pensa ‘Se eu não fizer teatro, morro’ – ou seja, preciso dele para colocar reflexões e angústias do ser humano –, ou então é melhor partir para outra coisa” de Menina (2003), viveu Tia Iaiá sob a direção de Helena Solberg. Baseado no diário da jovem Helena Morley, o longa se passa em Diamantina, Minas Gerais, após a abolição da escravidão. “Ficamos na cidade trabalhando por várias semanas. Foi quase como um laboratório. O filme era de uma delicadeza muito grande.” Em Um Céu de Estrelas (1996), Lígia fez para a cineasta Tata Amaral a direção dos atores Paulo Vespúcio e Leona Cavalli. “Era um filme polêmico por causa das cenas de nudez, mas os atores foram incríveis. A Tata tinha uma verba pequena, então ela precisou ensaiar muito antes de entrar no cenário, além de ter de gravar direto, do começo ao fim. Isso ajudou os atores a terem uma carga da dimensão emocional muito forte”, explica.

Faculdade para artista? “Lembro-me das pessoas saírem das peças da minha mãe chorando, que-

rendo abraçá-la. Ela era muito forte como atriz e em algum momento largou a quantidade de tempo que destinava ao palco para dividir com os alunos na sala de aula”, relembra Lígia, que começou a trabalhar como professora de voz e interpretação do Célia Helena Teatro-Escola. Com a morte da mãe, assumiu a direção. “Numa escola, você não tem escolha: tem que continuar o projeto. Uma vez alicerçada, a escola valoriza também o diploma de quem já estudou. Essa sempre foi uma grande responsabilidade para mim, assim como o trabalho de formação ética.” Há quatro anos, a instituição Célia Helena fundou a Escola Superior de Artes Célia Helena (ESCH), com o curso de Bacharelado em Teatro. “É muito louco pensar que existe uma faculdade para ator, para artista. Somos a única escola com esse formato no Brasil”, comenta. Desde que o ensino superior em artes foi

JOÃO CALDAS

nio Gilberto, em que Julia Lemmertz interpretou o papel-título. A peça, que narra o encontro fictício entre as primas rivais, foi baseada na tradução de Manuel Bandeira da obra do escritor Friedrich Schiller, em que o tratamento se dá na terceira pessoa e a linguagem é poética. “O espetáculo tinha três horas e, por causa do formato não habitual, pensei ‘Meu Deus, as pessoas vão embora, não vão aguentar’. Nos apresentamos no SESC Anchieta e, na primeira semana, os ingressos de toda a temporada já estavam esgotados”, conta. Para interpretar uma das personagens mais difíceis da dramaturgia clássica, Lígia teve que estudar dobrado: “Fiz o que aprendi com Antunes: li obras literárias e poesias que tinham a ver com o entorno da época para entender quais eram os valores. Eu adorei fazer a Elizabeth. Foi uma lição como atriz e como pessoa, por ter conhecido quem foi essa rainha, essa mulher que tornou a Inglaterra uma potência”. Além de um extenso currículo como atriz teatral, em que trabalhou com diretores como Antunes – de quem também foi assistente de direção –, Zé Celso, Fauzi Arap e Flávio Rangel, Lígia se aventurou no cinema e na televisão. Participou da telenovela Ana Raio e Zé Trovão, de 1990, na extinta TV Manchete, além de atuar nas produções da Rede Globo, como Esperança, de Benedito Ruy Barbosa; Páginas da Vida, de Manoel Carlos; e Sete Pecados, de Walcyr Carrasco, sempre com papéis pontuais. Já os trabalhos para cinema apareceram mais cedo em sua carreira. “Quando comecei, era muito difícil fazer cinema no Brasil, praticamente só havia curtas. Mas as coisas melhoraram, fiz longas-metragens.” No filme Vida

legenda Na Casa legenda do Teatro, legenda Lígia trabalha legendacom nda crianças legenda valorizando legenda legenda suas legenda produções artísticas

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LENISE PINHEIRO

Na página ao lado, Lígia em cena da peça Cacilda!, de Zé Celso. À direita, ao lado da atriz Ludmila Meyer, como tia Iaiá, no longa-metragem Vida de Menina

difundido, a questão da formação superior do artista tem sido bastante discutida. “Até que ponto um artista pode contar apenas com os seus próprios recursos para ser um ator atuante e influente? Até que ponto ele se basta?”, questiona. No entanto, por mais que acredite que o DRT e a graduação sejam importantes para o reconhecimento profissional do ator, Lígia entende que apenas isso não basta. “É necessário que ele tenha responsabilidade ética: em alguns momentos ele é artista, em outro está a serviço de uma arte coletiva e de um diretor. Aprender com o outro é uma questão ideológica importante. Partindo disso e da formação cultural e técnica do artista, passamos a vida inteira aprendendo.” Se antes a maioria dos alunos procurava a escola visando se estabelecer como atores televisivos, hoje Lígia percebe que eles têm uma visão bem mais ampla a respeito da profissão. “Os alunos estão muito mais comprometidos com o estudo. Procuramos fazer com que eles saiam da escola sabendo que precisam continuar pesquisando. Na graduação, muitos nos procuram porque querem fazer pesquisas acadêmicas e estudar o fazer teatral”, conta. Já a Casa do Teatro, fundada por ela em 1983, é destinada à formação

ARQUIVO PESSOAL

artística de crianças a partir dos 4 anos de idade. “Valorizar a produção artística de uma criança é uma das coisas mais importantes para que ela se sinta reconhecida e venha a se tornar um adulto bem resolvido com relação ao que pensa”, expõe Lígia, que sempre quis realizar um trabalho profundo com crianças. A escola, além do ensino de teatro, oferece aulas de artes plásticas, dança, circo e música. “É bonito ver como as crianças têm opinião sobre o que as cerca. É preciso apenas estimular e ouvi-las. Podemos aprender muito com elas.” Os empecilhos por trás da direção de uma escola para atores são muitos – “esse assunto daria uma entrevista por si só” –, porém, a seu ver, o maior desafio é levar a cada aluno a consciência da responsabilidade coletiva e ética que eles têm. “A arte fala por todos os poros e a crítica que ela pode trazer é muito grande e, por isso, muito importante de ser conscientizada.”

Menos lugar comum Entre dirigir, atuar e lecionar, Lígia fica com os três. “Às vezes, eu me realizo mais dirigindo, pois é um trabalho de conceito que necessita de reflexão e posicionamento. Por outro lado, atuar me transmite uma energia de vida, uma vontade de expressar meu amor pelo ser humano e por suas questões.

Amo dar aulas também. É maravilhoso ver um jovem ator descobrir seus mistérios emocionais e emprestá-los aos personagens. Sou apaixonada pelo teatro e tudo o que a ele se refere.” Com relação ao teatro, Lígia Cortez acredita que hoje ele está muito mais aberto a possibilidades, tem vários tons. “Temos um panorama diversificado de linguagens e grupos. Desde o teatro de entretenimento, com os musicais – que são muito bem feitos, geram emprego e cumprem com a sua proposta artística –, até grupos de experimentação”, exemplifica. No entanto, a atriz e diretora sente falta de “um teatro que coloque em cena para uma plateia de profissionais liberais e amantes da arte teatral, textos mais interessantes e repletos de novidades”. Um teatro que seja menos lugar comum e que seja capaz de tocar mais fundo. “Lembro-me de ver o olhar de gratidão e admiração que meus pais recebiam ao sair do teatro. Dezenas de pessoas os esperavam na saída e diziam que não seriam mais as mesmas depois de haver assistido àquela peça”, relembra. “Isso porque o teatro pode trazer para o espectador a trajetória para dentro de si mesmo, para seus próprios sentimentos, quando assistem a uma peça, quando veem um ator inserido no palco de maneira inteligente e inédita. É inesquecível.” Dezembro de 2012 | CÁSPER

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BIENAL

Onírica,

contraditória, intuitiva O curador da trigésima Bienal de São Paulo, Luis Pérez-Oramas, fala à Cásper sobre as mil faces da arte contemporânea Por Caroline Mendes Imagens Divulgação 14

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uma ampla sala de paredes brancas, chinelos e sandálias de couro e borracha se empilham numa confusão de marrons sobre uma sapateira improvisada. Pratos de alumínio, latas vazias, cartazes, fotos, garrafas plásticas, canecas, embalagens de remédio, pedras, tudo pende do teto como um móbile, ou se distribui pelos tablados, perdido num emaranhado de fios coloridos e arames. Um manto majestoso feito à mão, excessivamente adornado por cordas, bordados e franjas, é o traje perfeito para se encontrar com Deus, no dia da morte. No desespero por se preparar e catalogar tudo conhecido no mundo, para que, quando se fosse, pudesse mostrar a Deus as coisas da Terra, Arthur Bispo do Rosário consumiu 50 anos de sua vida, enquanto viveu recluso em um hospital psiquiátrico. “A pretensão de ser normal é um mito – ninguém é normal. Nós todos somos esquizofrênicos, paranoicos, histéricos integrados!”, diz Luis Pérez-Oramas, curador da trigésima Bienal de São Paulo, realizada neste ano. Ao escolher a obra de Bispo do Rosário como o eixo reorganizador de todo o sentimento de arte como expressão

pura, sistêmica e intuitiva que norteia esta edição da bienal, Oramas marcou um belo tento. O pavilhão Ciccillo Matarazzo, localizado no parque do Ibirapuera, foi pintado de branco e dividido em salas, para que cada um dos 111 artistas participantes dessa edição tivesse o seu espaço. Oramas explica que a experiência sensorial frente a alguma obra deve ser plena, sem interferências, para que seja apreendido o máximo antes que uma nova experiência comece, em outra sala branca. O emblemático título A Iminência das Poéticas nada mais é do que uma provocação. “Se a bienal se anunciasse logo no título, não haveria necessidade de ir senti-la para compreendê-la”. Simples. Escritor, poeta e especialista em história da arte, Luis Pérez-Oramas é venezuelano, mas já correu o mundo e hoje vive em Nova York, onde atua como curador do Museum of the Modern Art, o MoMA. Nesta entrevista, ele explica como concebeu a bienal deste ano, questiona o papel da tecnologia com relação à arte contemporânea e esclarece os problemas financeiros superados pela instituição. Dezembro de 2012 | CÁSPER

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O título dessa trigésima bienal é intrigante, não sugere uma ideia, um sentido completo que o público possa associar diretamente. O que quer dizer A Iminência das Poéticas? Nossa intenção era produzir uma bienal que não se anunciasse no título – que preferimos chamar de motivo –, mas sim que soasse como uma frase aberta, intrigante mesmo, quase como uma pergunta. Com isso, queríamos criar uma disjunção entre exposição e título para que a experiência da bienal fosse obrigatória para compreendê-la, para que não restasse alternativa a quem se deparasse com esse título. Por isso demos o motivo A Iminência das Poéticas, que não foi escolhido apenas por esse tom hermético. A iminência está colocada tanto no sentido do tempo iminencial do mundo contemporâneo – cada vez mais imprevisível e indecifrável pelos grandes sistemas teóricos e analíticos – quanto no sentido da iminência das artes. Uma obra de arte existe em estado constante de iminência, ela está a ponto de acontecer a qualquer momento. E a cada vez que alguém se coloca diante dela, ela acontece novamente. Já a questão das poéticas não está relacionada à poesia propriamente dita, mas às estratégias expressivas e de comunicação. As artes contemporâneas tendem a ser cada vez mais discursivas e de comentário do mundo e da realidade, estabelecendo relações com as linguagens administrativas, políticas e das ciências sociais. Nesse sentido, a arte contemporânea se diferencia da arte moderna, que se pretendia ser uma linguagem excepcional.

E o que as Constelações significam? A Trigésima foi concebida a partir da seguinte convicção: as formas artísticas e simbólicas funcionam como a linguagem escrita e falada, que sempre estabelece relações. As palavras não produzem sentido sozinhas, mas somente quando se vinculam, se relacionam com outras palavras. Os signos, os símbolos, as formas expressivas também não produzem significado apenas por sua existência absoluta, mas na medida em que se diferenciam ou se relacionam com outras formas simbólicas, outros elementos de linguagem. Então, a ideia da constelação parte dessa problemática. Nós não queríamos uma bienal repleta de obras únicas, mas que estabelecesse relações entre obras, onde o público pudesse viver, ao mesmo tempo, a experiência de uma imersão frente à obra de um artista – e por isso cada artista tem a sua sala – e a possibilidade de relacionar esse artista e sua criação com outros criadores e criaturas. Para isso, os espaços foram planejados para serem suficientemente abertos e as justaposições de salas suficientemente claras para poder sugerir essas relações, esses vínculos que formassem potencialidades constelares... Como se as obras de cada artista fossem uma pequena constelação que, somada a outras, formassem um universo? Exatamente! A arte sempre foi assim, de se relacionar, mas há um pensamento antigo que prevê a existência romântica do gênio artístico. As artes modernas e con-

Uma das obras intituladas Situations do islandês Sigurdur Gudmundsson, que explora as relações e os embates entre equilibrio, natureza, homem e cultura.

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“Até que ponto a arte muda fundamentalmente por causa das tecnologias digitais e numéricas, eu não sei. Vai mudar, certamente. Mas apesar de depender da técnica, a arte deve ir além dela” e na dinâmica social de uma megalópole. Isso faz uma grande diferença. Então nós quisemos apostar na inserção da bienal também dentro do tecido urbano da cidade e por isso fizemos parcerias com museus e acervos – como o MASP, a FAAP e o Instituto Tomie Ohtake. Além disso, com obras inseridas em espaços públicos, como o trabalho do brasileiro Alexandre Moreira na Avenida Paulista e da alemã Charlotte Posenenske, no Parque da Luz.

temporâneas têm desmontado este mito, no entanto. O pessoal do mundo das artes continua a pensá-la em termos geniais, o que é um erro. A arte não funciona em termos geniais, mas sim em termos sistêmicos. Qual o objetivo de levar as constelações da Bienal para fora do pavilhão, para museus e espaços urbanos da cidade, como a Avenida Paulista e a Luz? Não é a primeira vez que a bienal sai de dentro do pavilhão. Nós sabemos que o fundamental da Bienal é estar instalada no prédio emblemático de Niemeyer, neste pavilhão Ciccillo Matarazzo, mas não podemos ignorar o fato de que a Bienal de São Paulo é a única do mundo que acontece na trama de uma cidade de tamanha complexidade. O fato de virem milhares de crianças em excursões escolares para o parque Ibirapuera, que é o mais emblemático e maior da cidade, e da Bienal ser gratuita faz com que ela seja a única do mundo que acontece na textura LUÍZA FAZIO

Além de curador da bienal deste ano, Luis Pérez-Oramas é curador do MoMA, de Nova York

Arthur Bispo do Rosário produziu durante os 50 anos em que esteve internado num manicômio. Hoje sua obra é aclamada e influencia muitos artistas. Qual o limite entre arte e loucura? Existe o mito de que obra e loucura se excluem. O próprio Michael Foucault falava que a loucura é a ausência de obra, mas isso não é verdade. A pretensão de ser normal também é um mito – ninguém é normal. Todos somos esquizofrênicos, paranoicos, histéricos integrados! A loucura, provavelmente, não é mais do que uma exacerbação da inteligência, que está fortemente associada à intuição. Grandes gênios modernos passaram por recurso psiquiátrico. O criador dessa ideia de constelações artísticas e, portanto, inspirador dessa bienal, viveu em um hospital psiquiátrico e foi considerado incurável por Sigmund Freud. Essa questão da loucura e da sanidade é delicada, mas também muito banal. A sociedade cria e estigmatiza a figura do louco para se defender da sua própria loucura. Bispo do Rosário sofreu um pouco isso. O importante é que sua obra não está aqui porque ele foi louco, mas sim porque foi um grande artista, um dos melhores brasileiros do século XX e certamente um dos maiores da América Latina. Bispo do Rosário funciona nessa bienal como um eixo reorganizador da curadoria, que tem a ver com a construção da imagem como o tecido entre as palavras e as coisas, com linguagem, com atlas, com sistemas de repetições, elementos chaves para essa bienal. A arte contemporânea se diferencia das artes modernas por diversos fatores, entre eles uma aparente ausência de hierarquias e de fórmulas definidas. Para se afirmar como tal, ela deve, então, ter uma face puramente intuitiva? A intuição é uma forma legítima de conhecimento, é inteligência, é um registro intelectual que nos permite apreender um fragmento do mundo. A arte é sempre intuitiva e inteligente porque é prática, se manifesta em momentos Dezembro de 2012 | CÁSPER

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À esquerda, obra de David Moreno, que explora as relações entre imagem e som. À direita, outra obra de David Moreno e do brasileiro Nino Cais, que faz uso do próprio corpo em seu trabalho

oportunos, toma decisões discretas e faz uso do habitus, da naturalidade prática, fática e construtiva, ainda que seja arte conceitual e teórica. Arte contemporânea não é mais nem menos intuitiva do que as demais. Ninguém pode falar o que a arte contemporânea deve ser. Essa bienal foi construída com a certeza de que ninguém tem autoridade para decidir se a arte contemporânea deve ser assim ou assado, pois ela é tão complexa como a realidade – que nunca é de uma forma ou outra. Simplesmente é. Tanto realidade quanto arte são complexas, contraditórias, multidimensionais, anacrônicas, progressivas, regressivas, oníricas, conscientes. Mas a arte contemporânea está se tornando disciplina e os artistas estão virando experts. E então eu me pergunto: “Experts em quê? Qual a expertise da arte contemporânea?”. Considero a prática artística um exercício de inteligência que permite colocar nossa atenção nas zonas obscuras, intermediárias, ainda indefinidas e não nomeadas da existência humana. Se a arte contemporânea se mune cada vez mais de uma 18

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expertise, fica cada vez mais longe dessas zonas noturnas da existência humana. É importante que os artistas sejam inteligências, que sejam grandes e ousem, tenham coragem de se localizar nas areias movediças, nos pântanos humanos e não nas zonas já definidas, certinhas, onde já estão as artes modernas, por exemplo. Essa bienal está muito focada no audiovisual, muito performática. A tecnologia vem, então, influenciando os processos criativos e de produção das artes? Aí também existe uma questão muito mítica, uma ilusão. A arte sempre foi técnica, as tecnologias fazem parte da arte desde o seu primeiro dia. Eu não acredito muito nessa ideia de arte tecnológica. A pintura a óleo foi uma grande tecnologia – quadros do Leonardo da Vinci pintados há 600 anos continuam fresquinhos. O vídeo também foi uma grande tecnologia, mas um pouco mais fraco por não durar por muito tempo – vários vídeos dos anos 1980 estão perdidos, por exemplo. Então, é óbvio que a criação artís-


tica depende da implementação de soluções por meio da técnica – seja essa técnica tradicional ou nova. Você pode me perguntar se a técnica influencia a arte e eu te respondo que, mais do que isso, a arte depende da técnica, sempre dependeu. Tékhne significa técnica e era a palavra usada pelos gregos para falar sobre arte. Agora, até que ponto a arte muda fundamentalmente por causa das tecnologias digitais e numéricas, eu não sei. Vai mudar, certamente. Mas apesar de depender da técnica, a arte deve ir além dela. Nós estamos vivendo um tempo e um mundo que passa pela produção permanente de gadgets, de commodities técnicos e arte não deveria – e aqui eu estou me contradizendo ao dizer o que a arte deve ou não deve fazer – se confundir com gadgets, mas sim, como eu disse, explorar as zonas incertas da existência humana. Não sabemos até que ponto a cultura digital não é mais que uma exacerbação da escritura que coloca a maior distância da memória viva. Me chama a atenção que num mundo contemporâneo, quando nossas tecnologias e arquivos alcançaram um nível absolutamente

inédito na sofisticação e na capacidade de armazenamento de memória artificial, a humanidade esteja sofrendo uma epidemia da memória natural. A mídia deu espaço destacado para a crise que a Bienal passou com a inadimplência junto ao Ministério da Cultura. Falou-se, por exemplo, que o MAM acabou tomando a frente da Trigésima. Isso é verdade? Não, isso não aconteceu de jeito nenhum. Nós superamos a crise de fechamento de contas da Bienal por situação de inadimplência, algo pelo que muitas outras instituições passam – inclusive a Prefeitura de São Paulo, mas as contas dela ninguém fecha. Enfim, é importante saber que entramos com um recurso jurídico e ganhamos a causa. As contas da Bienal foram abertas sem que nenhuma instituição, nem o MAM nem qualquer outra se colocasse à frente. É claro que a crise afetou a nossa captação de recursos, mas alcançamos nosso objetivo inicial que era amealhar 22,4 milhões de reais, o orçamento da bienal deste ano. Dezembro de 2012 | CÁSPER

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GRAPHIC NOVEL

QUADRINHOS

para gente grande

Os gibis marcaram e ainda marcam a infância, mas não é só de histórias infantis que vive o mercado de quadrinhos. As HQs mais adultas, complexas, bem elaboradas têm nome: graphic novels Por Caroline Rezende e Luiza Fazío Imagens Divulgação

O

termo é estranho para alguns, mas está longe de ser novidade. A ideia de aliar sequências de imagens a textos para dar, não somente às crianças, mas aos adultos uma experiência de leitura mais visual, data de décadas atrás. Principalmente na Europa, as graphic novels – ou álbuns, como são chamadas por lá – existem desde a metade do século XX: as histórias do gaulês Asterix, de Albert Uderzo e René Goscinny, saíam no formato de álbuns. Entretanto, a legitimação do gênero veio do quadrinista norte-americano Will Eisner, pela necessidade de definir seu trabalho Um contrato com Deus (Editora Brasiliense, 1988), lançado em 1978 nos Estados Unidos. “Eisner achou que tinha nas mãos algo que ia além do entretenimento e constatou que os quadrinhos poderiam ser um produto reconhecido como arte e vendido em livrarias, dividindo espaço com a literatura. Por isso o nome ‘romance gráfico’”, esclarece Gonçalo Júnior, pesquisador de quadrinhos e 20

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autor do livro A guerra dos gibis (Companhia das Letras, 2004). Para Sidney Gusman, editor do site Universo HQ e da Mauricio de Souza Produções, “quando Will Eisner criou o termo, padronizou-se que toda história fechada, que começasse e acabasse em apenas um volume, um único livro, e que tivesse um tratamento mais esmerado de arte seria chamado graphic novel”. Logo essa denominação foi adotada pelas grandes editoras norte-americanas, como a Marvel Comics e a DC Comics, que não apostavam em nada parecido. Conhecidas pelas numerosas e sequenciais revistinhas de super-heróis, elas passaram a investir nas longas e mais bem trabalhadas histórias em quadrinhos, que dialogavam muito bem com o até então pouco explorado público adulto. Com o passar do tempo, as graphic novels foram se apropriando de temáticas cada vez mais livres e hoje vão desde o drama até o terror, passando por aventura, ficção científica, hu-

mor, biografia e envolvendo inclusive super-heróis de gibis, como é o caso do clássico Watchmen (Editora Abril, 1989), lançada nos Estados Unidos em 1985. O que diferencia e dá um alto nível intelectual ao roteiro de Alan Moore e à arte de Dave Gibbons é o desdobramento dos corriqueiros enfrentamentos entre vilões e superheróis em críticas sociais e complexas relações humanas – isso sem contar a qualidade das ilustrações.

Adulto, um público a explorar Quando as primeiras graphic novels começaram a desembarcar em território nacional, no final da década de 1980, gibis como os do Pato Donald, dos X-Men ou da Turma da Mônica já eram velhos conhecidos das crianças e jovens. Desde o início, o objetivo das editoras era conquistar um público adulto e as apostas eram os álbuns internacionais. A Editora Brasiliense trouxe Um contrato com Deus (1988), de Will Eisner; a Martins Fontes editou os trabalhos do quadrinista radicado


Direcionado a um público mais adulto, Watchmen explora críticas sociais e as relações humanas

na França Enki Bilal; e a Abril criou o selo Graphic Novel, com edições especiais estrangeiras. “No começo, havia uma confusão das editoras com relação ao uso do termo. Quando a Abril inaugurou seu selo de álbuns e o batizou de Graphic Novel, a Editora Globo, para não ficar para trás, lançou o Graphic Globo, ou seja, como se graphic novel fosse criação da Abril e não um tipo de quadrinhos”, explica Sidney Gusman. Em comparação aos Estados Unidos e países da Europa, os álbuns começaram a aparecer nas bancas brasileiras com décadas de atraso e, naturalmente, bem de mansinho. “O meu começo foi muito difícil”, conta Lourenço Mutarelli, um dos primeiros brasileiros a publicar graphic novels. “As primeiras histórias que levei para as editoras não eram de humor e o Brasil tinha uma tradição muito forte nesse segmento. Foi difícil conseguir espaço.” Seu álbum de estreia, Transubstanciação (Editora Dealer, 1991), tratava de crises exis-

tenciais. A partir dele e da passagem dos anos, Mutarelli encontrou outras editoras que publicaram diversos de seus álbuns até se tornar um ícone do gênero em âmbito nacional. Mais recentemente, o grande lançamento que promete popularizar as graphic novels por aqui é o selo Graphic MSP, da Mauricio de Souza Produções. Com essa novidade, o pai da Mônica pretende cativar o público adulto que não lê, necessariamente, os gibis da Turma da Mônica e as revistinhas em estilo mangá da Turma da Mônica Jovem. “O Mauricio já é dono do mercado infantil e infantojuvenil de quadrinhos há anos, mas sempre houve um público inexplorado: o adulto. Quando me dei conta disso, sugeri a criação de um selo para lançar trimestralmente álbuns com os personagens do Mauricio”, explica Sidney Gusman. A primeiríssima graphic novel do selo deu as caras em meados de outubro, no festival de quadrinhos Fest Comix, em São Paulo. De autoria do

quadrinista Danilo Beyruth, Astronauta Magnetar é uma releitura do Astronauta, o aventureiro intergaláctico dos gibis da Mônica. O roteiro é simples: o Astronauta é enviado para o espaço em uma missão, mas acaba sofrendo um acidente que o deixa preso dentro de uma estrela de nêutrons. A mensagem por trás da história, entretanto, mexe com um medo muito comum no ser humano: o da solidão. “Eu sou de uma geração de quadrinistas e de leitores que se formou e cresceu com base em personagens retrabalhados – o Cavaleiro das Trevas é uma releitura do Batman, o Demolidor é baseado em um quadrinho muito antigo. O Astronauta foi uma oportunidade de fazer isso. Pegar uma historia infantil e transformá-la em um suspense com aventura, em coisa mais séria. Foi muito legal”, conta Danilo. Os próximos lançamentos do selo serão adaptações da tradicional Turma da Mônica – a gorduchinha, Magali, Cascão e Cebolinha –, do Chico Bento e do Piteco, todos previstos para 2013. Dezembro de 2012 | CÁSPER

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Coisa de criança? As graphic novels da Turma da Mônica provam que quadrinhos podem agradar e dialogar com crianças e adultos. Muitos dos pequeninos que crescem lendo HQs migram para os álbuns ou incluem o gênero na rotina de leitura entre um gibi e outro, quando se tornam adultos. Entretanto, muitas pessoas que nunca se aventuraram para além das fronteiras da literatura tradicional acabam se interessando pelas graphic novels. Em meio a tantas opções de gêneros e estilos de desenho, é quase impossível não encontrar algo do nosso gosto. “Aquelas que fogem das histórias de super-heróis e lidam com assuntos do cotidiano vêm conquistando pessoas que antes não liam quadrinhos. São obras como Retalhos, Cicatrizes, Habibi, O Fotógrafo, pensadas para um público mais amplo e que agradam muito”, afirma Sidney Gusman. Douglas Reis, publisher da Devir Editora, concorda e acrescenta: “As graphic novels mais vendidas são aquelas que conseguem apelar para a sensibilidade artística de quem lê romances. Quando colocamos nossos produtos numa livraria, queremos cativar amantes de literatura, não leitores de quadrinhos, porque estes nós já temos”. Assim como o cinema passou de mero entretenimento para consagrada forma de expressão artística, os quadrinhos visam o mesmo. Desde 1992, quando o quadrinista Art Spiegelman venceu o Pulitzer por sua graphic novel Maus (Companhia das Letras, 2005), que conta a história de seu pai judeu sobrevivente do holocausto, os quadrinhos dividem O Cavaleiro das Trevas e o Demolidor são releituras

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“Achar que histórias ilustradas são ‘coisa de criança’ é um preconceito do brasileiro por desconhecimento do que é produzido”

opiniões. O objetivo de autores e editoras é eliminar a ideia de que quadrinhos são apenas divertimento infantil e consolidá-las como arte e literatura, principalmente em países em que o mercado ainda é novo, como o nosso. “Achar que histórias ilustradas em geral são ‘coisa de criança’ é um preconceito do brasileiro por desconhecimento do que é produzido. Em países como o Japão ou a França, onde são lançados em torno de 3 mil álbuns por ano, existe reconhecimento. Lá, é coisa séria”, complementa Douglas Reis.

Era de ouro Assim como fez a Mauricio de Souza Produções ao notar o gradativo aumento na demanda e na produção de graphic novels, grandes editoras criaram selos para publicar especificamente o gênero. A Companhia das Letras é uma delas, com Quadrinhos na Cia., e também a editora portuguesa Leya, que lançou aqui o selo Barba Negra, especializado em quadrinhos independentes. O surgimento de pequenas e médias editoras a partir dos anos 2000 é também um reflexo do sucesso do mercado. Vivemos, então, uma Era de Ouro dos quadrinhos? “Não dá para dizer que essa é a era de ouro, mas é uma delas”, diz Douglas Reis, editor da Devir. Nos anos 1960, tivemos um bom momento: naquela época, as crianças liam quase uma dúzia de gibis da Disney e da Marvel por dia. Entre 1970 e 1980, houve outro bom momento, quando artistas como Laerte e Angeli se consolidaram. Nunca se vendeu tanto. A década de

90, contudo, foi marcada pelo declínio. Pode-se dizer que a indústria de quadrinhos quase chegou ao seu fim, tamanha a crise. Para quem viveu a época, há explicações. “Acredito que houve uma grande competição com outros meios de entretenimento, como a televisão e o vídeo game”, afirma Lourenço Mutarelli. Agora, nos anos 2000, assistimos a um renascimento. Novos talentos, novas ideias e o estímulo tanto para quem produz quanto para quem consome. Essa retomada proporciona oportunidades. Além do crescente número de editoras, há editais do Programa de Ação Cultural (ProAC), que apoia e patrocina o desenvolvimento de graphic novels. Mas não é só isso: o Ministério da Educação passou a reconhecer que os quadrinhos podem ser, sim, ferramentas de cultura e aprendizado, passando a comprar elevadas tiragens para bibliotecas públicas. “O brasileiro tem uma tendência a gostar mais daquilo que vem de fora. Até porque os estrangeiros já fazem praticamente tudo há mais tempo, com melhores condições. Mas eu acho que isso tem mudado tanto com relação aos quadrinhos quanto ao cinema nacional”, argumenta Lourenço Mutarelli. Para Dionisius Amêndola, gestor de importação da Livraria Cultura, os artistas nacionais têm uma vantagem: “São menos pretenciosos. Caras como Alan Moore, Frank Miller e Neil Gaiman colocaram os quadrinhos num nível altíssimo, então outros autores tentam chegar aos seus pés produzindo graphic novels ‘cabeça’, mas que na verdade são ruins, vazias. O brasi-

leiro, por trabalhar muito tempo no ‘subterrâneo’, com pouca evidência, acaba sendo mais despretensioso e detendo grande liberdade artística”. Entre as histórias estrangeiras, as que mais vendem aqui são as norteamericanas. Maurício Muniz, editor da Gal Editora, explica que essa não é apenas uma questão cultural, mas também mercadológica. Segundo ele, na França – um dos melhores exemplos de mercado de graphic novels bem sucedido que temos –, o número de vendas de quadrinhos é exorbitante se comparado ao Brasil, então eles não veem vantagem em licenciar as publicações para cá. “Quando você entra em contato com eles e comenta que nossas tiragens são de 5 mil exemplares para serem vendidos em 5 anos, eles respondem ‘mas isso eu vendo em uma semana!’. Para eles é muito pouco, então cobram caro.” Por outro lado, as editoras dos Estados Unidos sabem que as publicações autorais demoram para se esgotar por aqui e fazem um preço mais compatível com a realidade brasileira. Ainda estamos longe de alcançar a proporção do mercado de quadrinhos europeu ou norte-americano. O gosto e o costume por esse tipo de leitura é algo cultural, que leva tempo para se enraizar. Além disso, é essencial que os artistas nacionais possam competir com o que vem de fora. “Precisamos desenvolver não apenas o mercado consumidor, mas também o produtor. É necessário publicar brasileiros para que nossa própria qualidade melhore”, afirma Douglas Reis. O caminho pode ser árduo e lento, mas os talentos estão aqui e estão florescendo.

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PERFIS

O que há de

novo?

A produção de quadrinhos no Brasil só faz crescer, tanto em qualidade quanto em quantidade. Dentre dezenas de artistas responsáveis por esse boom, conheça cinco talentos de diferentes estilos e futuro promissor Por Caroline Mendes e Luíza Fazio

DANILO BEYRUTH Depois de mais de 150 dias perdido no universo numa nave espacial, ele tem certeza de que não está mais só. Alarma-se ao mínimo ruído, jura que quem o colocou naquela situação desgraçada foi o intruso. Por que não fazer uma armadilha para capturá-lo? Bingo! Mas no dia seguinte, ele próprio cai em sua arapuca. E se desespera. Esse é o clímax de Astronauta Magnetar, recém-lançado trabalho de Danilo Beyruth, um dos talentos da nova geração de quadrinistas brasileiros. “É um cara a ser observado. Sou suspeito porque ele fez o Astronauta conosco, mas todos os trabalhos dele são excelentes”, afirma Sidney Gusman, editor da Mauricio de Souza Produções. Quando decidiu fazer quadrinhos, há pouco mais de cinco anos, trabalhava com criação publicitária e passou a botar a mão na massa no tempo livre. A primeira criação foi um salva-vidas, ou melhor, salvamortes que ajudava os recém-passados dessa para melhor a encaminhar suas almas. “Queria um personagem que viajasse no tempo, então surgiu ‘Crononauta’, algo assim. Mas percebi que viagem no tempo ia dar um 24

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puta trabalho de pesquisa histórica e desisti. Fiquei com ‘Nauta’ e, de repende, surgiu Necronauta.” Mais tarde veio Bando de Dois, contemplada pelo Programa de Ação Cultural (ProAC) e vencedora de diversos prêmios HQMix – nosso Oscar dos quadrinhos. As aventuras de dois cangaceiros em busca das cabeças decapitadas de seus companheiros dariam, de acordo com Sidney Gusman, um belo filme faroeste. “Quadrinhos não são como livros, que tudo acontece na imaginação, nem como o cinema, que entrega tudo na nossa frente. A magia não está nos quadros, mas entre eles, naquelas bordinhas brancas”, explica Danilo, que se prepara para desenhar sua próxima graphic novel, São Jorge. Não, não tem nada a ver com a novela da Globo. “Quando lancei Bando de Dois, a Globo estreou uma novela de cangaceiros, também. Deve ter alguém por lá que vê e pensa como eu [risos].” Aos 39 anos, ele planeja lançar uma graphic novel por ano e seguir com a publicidade. “Concilio bem as duas coisas. Faço meus quadrinhos quando tenho tempo. Funciona para mim.”


CHIQUINHA Nos seus quadrinhos não há pudor. Seja enquanto passeia pelas ruas de Porto Alegre – onde nasceu, cresceu e vive até hoje – ou deitada no sofá de casa com seus dois gatos, Fabiane Langona, a Chiquinha, mantém papel e caneta sempre por perto para anotar as ideias muitas vezes escatológicas que lhe vêm à cabeça. Seu traço é forte e arredondado, e sua paradoxal meiguice leva ao leitor diversas histórias sobre o cotidiano: censurados detalhes sexuais, banalidades de uma ida ao banheiro ou questões íntimas da existência feminina. O gosto pelas HQs e pelas “detestáveis coisas da vida” veio de sua irmã mais velha, que vivia a rebeldia adolescente enquanto ensinava a pequena Chiquinha a ler quadrinhos, ouvir o punk dos Garotos Podres e desenhar os integrantes da banda de rock Kiss. Na adolescência, seu particular desrespeito pelas regras lhe garantiu a oportunidade de conhecer o círculo de quadrinistas gaúchos. Enquanto trabalhava na Feira do Livro de Porto Alegre, a jovem vandalizou um muro com seus desenhos. Em vez de uma represália, Chiquinha recebeu do cartunista Moacir Knorr Gutterres, o Moa, um convite para participar de uma reunião dos Grafistas Associados do Rio Grande do Sul (Grafar). Isso só fez aumentar em Chiquinha a vonta-

de de fazer seus próprios quadrinhos. Dosando delicadeza e escracho, ela cunhou, ao longo dos anos, estilo e humor ousados a partir da influência de seus ídolos Allan Sieber, Angeli e Adão Iturrusgarai. “Quando comecei nos quadrinhos, achavam que eu era o Allan de saias. Cresci lendo esses autores e nunca parei para pensar se quadrinho era coisa de homem ou de mulher. Esse tipo de questionamento limita o trabalho. Faço o que eu quero.” Enquanto cursava Jornalismo, os quadrinhos se firmaram como profissão. Uma de suas tirinhas foi parar nas mãos de Ota, então editor da revista MAD, e a semelhança entre seus estilos fez com que Chiquinha fosse contratada. Nessa época, em 2005, publicou pela primeira vez na grande imprensa, no Jornal do Brasil. Os convites foram surgindo e Chiquinha se tornou um nome recorrente no mercado brasileiro de quadrinhos. Do desejo de falar sobre o universo feminino surgiu a Elefoa Cor-de-Rosa, personagem principal do primeiro livro, Uma patada com carinho, lançado em 2011. Nele, Chiquinha abusa do humor para descrever uma temida sessão de depilação, por exemplo, enquanto trava uma discussão sobre a ditadura da beleza imposta sobre as mulheres. Ao citar

trechos de músicas e criar títulos e diálogos inspirados em filmes e livros de que gosta, Chiquinha dá a sua cara ao trabalho. Aos 28 anos, é colaboradora do portal de entretenimento do Uol, publica mensalmente na revista de entretenimento Kzuka e já teve seus traços publicados em veículos como Folha de S.Paulo, Le Monde Diplomatique, Tpm, Mundo Estranho e Bravo! – tudo isso sem perder o toque feminino e o seu humor escatológico.

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VITOR E LU CAFAGGI Esses irmãos são um doce. Com sotaque mineiro gostoso de quem nasceu e foi criado em Belo Horizonte, Vitor e Lu Cafaggi falam sobre suas vidas e seu trabalho como se contassem um causo de criança. Os traços leves e arredondados dão vida a personagens que não enfrentam vilões nem salvam mocinhas, mas que vivenciam simplicidades do cotidiano: o friozinho na barriga de um primeiro encontro, uma sessão de cinema com os amigos ou a companhia do cãozinho de estimação. Vitor, 34 anos, quando criança vivia em meio aos quadrinhos da Turma da Mônica, da Luluzinha e da Disney que o irmão mais velho comprava semanalmente. “Eu nem sabia ler, mas brincava com as revistinhas dele.

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Cresci assistindo aos super-heróis na TV e lendo quadrinhos.” Formado em Design Gráfico pela Universidade do Estado de Minas Gerais, ele decidiu desenhar quadrinhos há cerca de cinco anos, quando criou o Puny Parker. “Na época, deixei um dos meus empregos e passei a me dedicar aos desenhos. O Puny Parker surgiu nesse contexto de experimentação, era apenas um meio para eu treinar, quase que uma brincadeira.” O sucesso dos quadrinhos que contam a infância de Peter Parker, o verdadeiro nome do Homem-Aranha, abriu portas para que Vitor passasse a desenhar profissionalmente. Convidado por Sidney Gusman, editor da Mauricio de Souza Produções, Vitor participou do álbum MSP 50, lançado em 2009 em comemoração aos 50 anos de carreira do pai da Mônica. “Cada artista teve cinco páginas para criar com qualquer personagem. Escolhi o Chico Bento, mandei os quadrinhos para o Sidney e ele disse que o Maurício se apaixonou tanto que queria se casar com a minha história [risos].” Depois do MSP 50, veio outro convite. “Recebi um e-mail do jornal O Globo perguntando se eu tinha outro personagem além do Puny Parker. Eu não tinha nada, mas disse

que criaria algo para eles. Tive menos de uma semana de prazo, então me debrucei sobre uma história que eu já conhecia: a minha.” Assim, Vitor deu à luz seu personagem autobiográfico Valente, um cachorrinho que vive todos os domingos n’O Globo dilemas da adolescência, como amor e amizade. Além das tirinhas que publica no site punyparker.blogspot.com.br e no dominical d’O Globo, o quadrinista tem trabalhos independente: dois compilados com histórias do Valente e um álbum chamado Duo.tone, sobre aventuras de duas crianças. Em Belo Horizonte, dá aulas na Casa dos Quadrinhos, e leciona, em Nova Lima, na Casa Aristides. Já a meiga irmã caçula Lu Cafaggi, 24 anos, desde o começo vive os quadrinhos livremente, como vive todas as outras expressões artísticas a que se dedica: música, dança e teatro. “A Lu é muito talentosa para todos os tipos de arte. Eu só sei desenhar”, compara Vitor. Para compartilhar seus desenhos com familiares e amigos, ela criou o blog lospantozelos.blogspot.com. br, onde começou a postar pequenas histórias de uma menina gordinha e seu cachorrinho de estimação, Maricas, na medida em que os produzia, despretensiosamente. “O nome Los


Pantozelos veio de uma brincadeira que eu tinha com um amigo de infância a respeito de uma professora nossa de pernas bem gordinhas, tão gordinhas que a panturrilha se unia ao tornozelo, formando um pantozelo. Como eu sempre gostei de desenhar garotas gordinhas, inventei uma personagem assim e batizei com esse nome.” Para criar, Lu pega seu caderninho de anotações e rabisca enquanto espera as ideias aparecerem. “Nem eu mesma conheço o meu processo de criação. Acho que faço tudo aos poucos, sem pressa, sem saber

no que vai dar.” Abusando de giz pastel, grafite e de materiais inusitados como maquiagem e esmalte, a mineirinha desenha tudo à mão e deixa o Photoshop só para apagar uma sujeirinha aqui outra ali. No ano passado, lançou a minicomic Mixtape de forma independente, trazendo historinhas sobre quatro mulheres e suas relações com a música. “Depois de entregar a minha história para o MSP 50, conheci o Sidney e o Maurício pessoalmente e eles disseram que trabalharíamos juntos de novo”, relembra Vitor. E

assim aconteceu. Em novembro do ano passado, Sidney voltou a fazer contato com o quadrinista e, desta vez, o convidou para produzir, junto com sua irmã Lu, uma graphic novel sobre a Mônica e seus inseparáveis amigos Cebolinha, Magali e Cascão. O álbum deve ser lançado em fevereiro e, sem dúvida, é um grande passo na carreira desses irmãos. “Fazer uma história com a Turma é um sonho! Parece que estamos fazendo algo nosso, porque tem nossa sensibilidade, nossos valores. Está ficando tão linda...”

logo viu que aquilo não era para ela. “Mesmo assim, decidi me formar.” A decisão de se tornar quadrinista veio em meio à busca do que a fazia feliz de fato. Nessa época, conheceu Allan Sieber, animador e quadrinista gaúcho, que a incentivou a investir nos seus traços simples, mas precisos. Logo conseguiu um emprego no estúdio de Sieber, o Toscographics, onde atua até hoje com desenho, roteiro e direção de arte. Seu trabalho gira em torno de produções independentes, como a revista Bananas, fruto da parceria de Cynthia e Chiquinha. Já o fanzine Golden Shower é famoso por seu humor pesado, com forte cunho sexual, e reúne histórias de diversos colaboradores, entre eles alguns ídolos de Cynthia: Angeli, Laerte, André Dahmer e o próprio Sieber. Ser mulher e produzir histórias picantes e irônicas sobre sexo são coisas geralmente antagônicas, principalmente no Brasil. “Eu não sabia que existe tanto machismo por aqui. Os homens podem falar sobre masturbação, mas nós, mulheres, mal podemos falar sobre menstruação. Isso é ridículo.” Atualmente, Cynthia B., 26 anos, atua por trás das câmeras no programa Tosco TV, do Canal Brasil,

e está produzindo um curta com Sieber chamado Até onde você iria?, que questiona o limite da integridade humana quando o assunto é dinheiro. Para os aspirantes a quadrinista, ela aconselha: “Vivemos uma boa época para fazer quadrinhos, a cada dia surge uma editora nova. Se o seu trabalho for bom, será publicado”.

CYNTHIA B. Formação: Medicina. Profissão: Quadrinista. Numa improvável guinada de destino, Cynthia B. abriu mão da carreira de médica para se aventurar no humor – e, com ele, pagar as contas. Os quadrinhos sempre ocuparam a cabeça de Cynthia Bonacossa da Rocha Neves, muito antes da anatomia – antes de sequer aprender a ler. Quando ainda era bebê de pouco mais de um ano, foi levada pela família de sua cidade natal, o Rio de Janeiro, para Hong Kong por causa de uma transferência de trabalho do pai. A pequena folheava histórias de Calvin e Hobbes, Mafalda e O Mundo de Lily Wong, presentes frequentes do pai. Mas foi com os gibis da Turma da Mônica, enviados pelo avô pelo correio, que ela aprendeu a ler em português. Aos 8 anos, voltou para o Brasil. Já mais velha, os desenhos fluíam naturalmente das mãos de Cynthia, sem necessidade de aulas. A maioria era desenhos soltos, personagens cujas vidas duravam apenas uma folha de papel, nada que pudesse lhe render um futuro promissor, como a carreira médica apontava. “Eu gostava de biologia e me sentia desafiada a passar no vestibular para medicina, que era e ainda é o curso mais difícil de ingressar.” Prestou, passou, mas

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MÚSICA

Hit

parade

2.0 GUILHERME BURGOS

Como a indústria fonográfica se reinventa e se adapta aos novos tempos de quebra de paradigma provocada pela internet no consumo de música Por Amanda Massuela

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A

ntes a música tinha poucos caminhos para chegar a nossos ouvidos. Na era das ondas do rádio, dos discos de vinil e depois do CD, os processos de produção, distribuição e divulgação das canções seguiam a linearidade conduzida, sobretudo, pelas grandes gravadoras – as chamadas majors. Os avanços tecnológicos ocorridos nas últimas duas décadas provocaram alterações profundas na maneira de ouvir, produzir e pensar a música ao redor do mundo. E a internet é a protagonista dessa história. Principal agente da revolução comunicacional que permeia hoje a sociedade, ela se apresenta como um ambiente livre por meio do qual a música é capaz de ultrapassar barreiras materiais e de relacionamentos, consolidando novos formatos de consumo e forçando a indústria fonográfica a se reinventar. “A indústria musical, como sempre conhecemos, é algo que já não existe. A chamada

revolução digital afetou a sociedade como um todo, desde a maneira de comprar um carro ao modo de se comunicar com outras pessoas, criando novas possibilidades e novos hábitos”, comenta João Marcello Bôscoli, produtor musical e fundador do selo Trama. “O anormal seria se a indústria da música ficasse como um universo a parte, isolada de todas as mudanças que vivenciamos nos últimos quinze anos”, completa. Os números apontam para um quadro transitório. De acordo com o último relatório da Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), o mercado nacional de música digital responde hoje por 16% da produção total e, no ano passado, arrecadou R$ 60,9 milhões. Em sete anos, esse segmento cresceu mais de 100%, enquanto a indústria tradicional assistiu à queda de cerca de 1/3 da sua produção. “Hoje as gravadoras vendem música digital, mas perderam muito tempo. Quando o mp3 apareceu e foi


Em clima de novos tempos Ao contrário dos que afirmam que a indústria demonstra constantes sinais de cansaço, José Peña acredita que ela nunca esteve tão forte – ainda que esteja dividindo fatias do mercado com a internet e com o crescente número de gravadoras independen-

Se antes as majors dominavam toda a produção de música, agora se veem ameaçadas frente à internet

tes. “Eu trabalho há muitas décadas com isso e o mercado da música nunca foi tão falado, tão escutado, ouvido e publicado”, garante ele. Fábio Silveira, pelo contrário, acredita que o modelo está mesmo ultrapassado. “Não há diversificação de produtos para cada artista que é lançado. Você o coloca numa linha de produção em que ele tem de produzir, de imediato, a mídia física e a digital, mas não expande o pensamento. Não analisa se deve lançar em vinil, por exemplo. Não se parou para mudar o formato porque existem as pressões para lucro e, como isso acontece, o formato antigo acaba permanecendo.” O modelo de funcionamento da indústria fonográfica era completamente baseado na venda de mídias físicas, como o CD – e antes o K7 ou o vinil. Há quatro anos, por exemplo, cerca de 90% da receita da gravadora EMI era proveniente desse formato. Entretanto, esse cálculo vem se alterando de maneira significativa. E, segundo previsões do próprio José Peña, cairá para 50% em 2013. O diretor de música digital da EMI afirma que até o final deste ano de 2012, o mercado físico irá faturar R$ 300 milhões, enquanto o digital passará dos R$ 60 milhões contabilizados em 2011, para o patamar dos R$ 110 milhões, ou seja, quase o dobro. “À medida que se encaram essas ferramentas como parceiras em vez de ameaças, é possível estabelecer um novo tipo de entendimento que tem como meta beneficiar nossos consumidores”, ressalta. Para ele, o importante não é o formato do produto, mas a satisfação do cliente. Mas se em 2011 as vendas de música por meio de suporte físico tiveram um crescimento de 7,6% em relação a 2010 – o que se explica pelo

bom momento vivido pela economia brasileira –, ainda assim exibiram um desempenho inferior ao setor digital, que cresceu 12,8% no período. Num momento em que uma enorme variedade de downloads ilegais está à breve distância de um clique, um dos maiores desafios da indústria fonográfica é capitalizar esse ato, tornando a música legal e gratuita para os ouvintes e, ao mesmo tempo, rentável para as gravadoras. “Do DIVULGAÇÃO

apresentado às majors, elas deveriam tê-lo abraçado logo de cara, convertendo-se no grande agente que apresentaria às pessoas esse novo jeito de ouvir música”, aponta Bôscoli. A primeira reação da indústria fonográfica frente ao avanço da internet não foi, de fato, receptiva – basta observar as ações em represália à criação do Napster, programa de compartilhamento gratuito de música, lançado em 1999. “Num primeiro momento, a internet não era completamente inteligível para as gravadoras, que demoraram a perceber que ela poderia ser, sim, uma forte aliada”, admite José Peña, gerente de música digital da gravadora EMI na América Latina. Se antes as majors dominavam os processos de produção, distribuição e divulgação de música, agora se veem ameaçadas diante de uma ferramenta plural, capaz de quebrar seu monopólio. Além de possibilitar ao internauta o download gratuito de músicas antes vendidas somente em formato físico, a internet também conecta o artista diretamente com o seu público, favorecendo o aparecimento cada vez mais intenso de músicos e gravadoras independentes. “Quando se fala em público na internet, não se fala apenas de um simples consumidor, mas de um ‘prosumidor’, um cara que consome, mas também produz, gera conteúdo e o compartilha na rede”, conceitua Fábio Silveira, gerente de novas mídias da Deckdisc, primeira gravadora 100% independente do país, subproduto da extinta Abril Music. A internet possibilita relações interativas e novas, segundo ele. “Ainda que o dinheiro das majors faça a diferença nos negócios, os consumidores estão em busca das experiências inovadoras e artísticas que a internet pode oferecer.”

Segundo João Marcelo Bôscoli, o streaming é uma tendência mundial que já ultrapassa o próprio download

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José Peña, gerente de música digital da EMI, acredita que as gravadoras têm grande interesse em liberar downloads contanto que isso lhes renda lucros

RAFAELA MALVEZI

lado de cá, existem alguns milhões de músicas que esperam a melhor oportunidade para serem distribuídas por meio dos canais digitais. Se houver contratos em que seja possível auferir dinheiro para nós – pois não se trata de filantropia, e sim de negócio – será vantajoso liberar”, endossa Peña, afirmando que a indústria não tem nada contra a música grátis, apenas algumas reservas para disponibilizar todo esse conteúdo. “O Youtube, por exemplo, é um serviço digital em que as gravadoras ganham dinheiro, mas o consumidor não paga nada”, exemplifica. O ganho, nessas situações, entra por meio de publicidade. Dessa maneira, João Marcello Bôscoli mantém o acervo de músicas da Trama Virtual, vertente online da sua gravadora Trama – que ele prefere chamar de “empresa de música”. Fundada em 1998, a Trama funciona como uma reunião de atividades nas quais a tecnologia trabalha a serviço da música. Além da gravadora e de programas regulares no rádio e na televisão, Bôscoli mantém um estúdio – onde recebe cerca de 200 bandas por ano e realiza mais de 200 transmissões ao vivo pela internet – e um site com acervo composto por 77 mil bandas e 199 mil músicas para download gratuito. “A Trama Virtual começou em 2002, dois anos antes do MySpace. Sempre tivemos esse serviço de pro30

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moção na internet e nunca colocamos proteção nos CDs que disponibilizamos”, conta Bôscoli, que é a favor de um modelo de “download remunerado”. Marcas apoiadoras da empresa cedem uma determinada quantia, que é dividida entre as faixas e, ao final de cada mês, dependendo do número de downloads realizados, os artistas recebem o dinheiro correspondente. Entre sites de downloads, rádios online, canais de vídeo e streaming, já existem, ao redor do mundo, cerca de 4 mil serviços de música digital, de acordo com relatório do Digital Music Report de 2011 – realizado todos os anos pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI). Segundo Bôscoli, o streaming, forma de ouvir música por meio de um player sem a necessidade de baixá-la, é uma tendência mundial que já ultrapassa o próprio download.

O artista independente Desde que lançou seu primeiro disco na internet, em junho de 2011, o jovem músico carioca Cícero Rosa Lins, de 25 anos, traçou um caminho ascendente. Inteiramente produzido em seu apartamento, no bairro do Botafogo no Rio de Janeiro, o álbum Canções de Apartamento alcançou visibilidade nacional num curto período de tempo. Em apenas 20 dias, mais de 10 mil pessoas haviam baixado o

seu disco e, desde que criou sua página no Facebook, em maio do ano passado, reuniu mais de 20 mil likes. “O processo de criação foi algo diário, terapêutico. Como eu não tinha um prazo fixo ou uma gravadora me cobrando, as coisas foram bem fluidas. Fui gravando diariamente uma coisa ou outra, um violão, um baixo, um piano”, descreve. Depois de ser disponibilizado para download gratuito em seu site oficial, o álbum rapidamente se espalhou pela rede por sucessivos compartilhamentos, chegando a virar pauta das principais revistas de música do país. Embalado por tons intimistas, e realizado de maneira independente e artesanal, o trabalho do músico carioca lhe rendeu uma série de feitos: em meio a listas de “Melhores do Ano” e apresentações ao lado de importantes figuras da música brasileira contemporânea, como Marcelo Camelo, ele viu seu nome se tornar cada vez mais conhecido. “O artista que publica seus trabalhos na internet tem chances de fazer as coisas acontecerem. Muitos começam com um vídeo caseiro e acabam falando com milhões de pessoas”, aponta Bôscoli. Para Cícero, este é um dos principais pontos positivos da internet: a qualidade do que é produzido deixou de estar vinculada ao dinheiro das gravadoras, passando a ser


minado momento histórico, outros menos, mas há uma coexistência de mídias”, resume. Para o produtor, as mídias físicas não tendem a desaparecer, pois sempre haverá um grupo de pessoas disposto a sustentá-las, como ele mesmo. “Eu tenho um disco dos Beatles no meu iPhone, comprei no iTunes, também tenho o vinil e a camiseta. Tenho os Beatles em vários formatos.” A tendência de mercado é que os formatos se diversifiquem cada vez mais, como aponta Fábio Silveira. “O correto é oferecer ao ouvinte todas as formas possíveis de consumir música. Ele vai querer comprar o vinil, porque é lindo, imenso e a arte de capa salta aos olhos. Tem fã que irá preferir o CD, porque gosta de ter o material físico em mãos, gosta de folhear o encarte. E tem gente que vai ficar só com o digital, pois basta colocar no seu tocador.” Da mesma maneira, Cícero acredita que os formatos estão se pluralizando para atender a todos os tipos de demanda. “Um cara que mora numa cidade em que a internet não

chega direito, precisa que tenha disco lá. Agora, um amante de música que tem um iPhone no bolso o tempo todo, só precisa das canções disponíveis na iTunes Store. As demandas estão diferentes, então é preciso dispor de suportes diferentes.” Para o diretor de música digital da EMI, José Peña, a indústria fonográfica se encontra em um momento de transição, em que é preciso manter relações firmes, modernas e digitais. “O nosso papel é identificar talentos, retê-los, fazer o marketing, empacotar tudo e distribuir, além de manter uma relação de serviço com os artistas. De fora, vieram alguns exemplos a partir dos quais a indústria pôde elaborar determinadas respostas, praticar alguns exemplos, criar novos modelos, sobretudo para o artista novo”, afirma. Segundo ele, as previsões para os próximos anos são as melhores, especialmente porque os principais parceiros de música digital do mundo estarão no país para consolidar o que João Marcello Bôscoli afirma ser “uma das maiores revoluções da história da humanidade.”

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intimamente ligada à criatividade de quem produz. Apesar disso, o capital financeiro e o lobby das majors ainda fazem diferença. “Há uma força motriz, sim, que é a grana, para qualquer coisa que você queira fazer – seja arte, um prédio ou uma campanha política. É por isso que os novos meios não substituem os antigos, pois eles não têm dinheiro”, ressalta. Com o Canções de Apartamento materializado em CD, Cícero enxergou a necessidade de assinar com a Deckdisc, uma gravadora que pudesse distribuir o álbum pelo Brasil. “Depois que a coisa ganhou tamanho, ela se transformou em expectativa – e, de certa forma, expectativa é uma espécie de cobrança, mesmo que carinhosa. A gravadora foi fundamental para vascularizar o meu trabalho pelo país, fazer o disco chegar até as pessoas”, afirma Cícero Fábio Silveira, gerente de novas mídias da Deckdisc, conta que o músico já chegou à gravadora com o disco estourado. “O que fizemos foi apenas assinar a distribuição. Quando o artista independente quer contar com o suporte de uma empresa que realize um trabalho de marketing e uma distribuição mais extensiva, geralmente procura uma gravadora.”

O futuro da música Em meio a especulações a respeito do avanço da internet, da consequente decadência da indústria fonográfica e, até mesmo, do desaparecimento de formatos físicos como o CD e o DVD, fica a certeza de que nunca se ouviu tanta música no mundo. Seja no carro, na internet, no rádio, nos fones de ouvido ou na televisão. João Marcello Bôscoli conta que sempre notou uma resistência por parte dos gerentes da indústria fonográfica. “Antes da internet, havia uma geração do ‘ou’, que buscava determinar demais as relações de trabalho: ou isso ou aquilo. Eu percebi, a partir da revolução digital que, na verdade, as coisas convivem em diversos formatos, que não deve existir a indústria ‘ou’ a internet, mas sim as duas coisas juntas e mais coisas. Uns ganham mais ênfase em deter-

Cícero Rosa Lins acredita que a qualidade das produções deixou de estar vinculada ao dinheiro das gravadoras, passando a se ligar à criatividade dos artistas

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LITERATURA

Nova

potência

EDITORIAL Aquecimento no setor livreiro e crescimento do público consumidor prometem um futuro de boas colheitas para o livro Por Victor Bonini

O

brasileiro está lendo cada vez mais. Positiva e já integrada ao senso comum, essa informação pode ser considerada um clichê. Seja pelo maior número de pessoas nos ônibus e metrôs segurando exemplares embaixo dos braços ou mesmo pela expansão das grandes livrarias, o fato é que a cada ano são vendidos mais livros. As estatísticas confirmam. Dados de uma pesquisa sobre produção e venda do setor editorial no país, realizada anualmente pelo Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL) e pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) desde 1990, apontam para o aumento tanto de títulos impressos quanto do faturamento das editoras. Dos 22.500 novos livros que chegaram às prateleiras do país no primeiro ano da pesquisa, os lançamentos passaram dos 58 mil, em 2011. Quanto à receita obtida com as vendas, ela 32

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mais que quadruplicou: saltou de 900 milhões para 4,1 bilhões. Quando comparadas às de outros países, essas taxas surpreendem ainda mais, colocando o Brasil em 9º lugar no ranking de mercados editoriais. Essa posição nos torna donos da maior indústria livreira da América Latina — o que pode vir a quebrar um dos mais conhecidos estereótipos: o de que o brasileiro lê menos do que o argentino. Carlo Carrenho, economista e fundador do site PublishNews, categoriza três principais motivos para esse avanço. O primeiro é o aumento da classe média, fruto de uma maior distribuição de renda. “Isso gera um público cada vez mais em condições financeiras para adquirir livros”, afirma Carrenho. E mesmo que a classe A compre mais títulos no decorrer de um ano do que as outras, não é essa a camada predominante para o comér-

cio. “Os grandes compradores são os leitores das classes B e C”, observa. Outra explicação tem como base o Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf) — promovido pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa. Ele demonstra uma queda notável de analfabetos rudimentares, aqueles que, mesmo sabendo ler, não conseguem reter informações de textos. Logo, mais brasileiros adquirem a capacidade de ler livros inteiros. A terceira causa está ligada ao crescimento da educação básica no Brasil e, principalmente, da universitária. “Com o crescimento do número de estudantes, são gerados incentivos de leitura que consequentemente aumentam a demanda por obras das mais variadas”, afirma Carrenho. Outra boa notícia trazida pelas estatísticas está relacionada ao bolso do leitor. De acordo com a jornalista Raquel Cozer, especializada em cobertu-


SXC.HU/ ZSUZSANNA KILIAN

ra de mercado editorial e repórter da Ilustríssima da Folha de S.Paulo, o mercado vem crescendo mais em número de vendas do que em faturamento, o que significa que os livros estão ficando mais baratos. “Isso é pouco perceptível para o consumidor porque a alteração se baseia em poucos centavos por ano, que podem representar uma bela diferença se calculados por um período maior”, esclarece. Apesar de animadores, esses dados escondem fatos imprescindíveis para compreender nosso mercado editorial. “É preciso ter cuidado ao dizer que o setor está crescendo, uma vez que boa parte das compras é realizada pelo próprio Estado”, afirma a jornalista. “Se você desconsiderar as vendas para o governo, o crescimento anual de 2010 para 2011 ficou negativo, ou seja, o mercado encolheu.” Raquel ainda salienta que nossa indústria de livros se desenvolve

pouco frente a seu potencial por causa de uma logística insuficiente. O argumento é apoiado pelo diretorexecutivo da CBL, Mansur Bassit, que aponta o sudeste como um eixo do qual é difícil se distanciar. “É muito complicado mandar livros para estados do norte, por exemplo. Além disso, as vendas por aqui são bem maiores”, assegura. Deixando de lado as complicações, as expectativas para o futuro são otimistas, principalmente a partir do momento em que as principais empresas estrangeiras do ramo estão se preparando para aterrissar em solo nacional. “Se praticamente 50% dos brasileiros não são leitores, então são potenciais leitores. São eles que queremos atingir”, analisa Mansur Bassit.

Que venha a concorrência A Amazon é uma das mais poderosas e conhecidas empresas de vendas

online. Isso porque possui uma vantagem expressiva em relação a seus concorrentes: um sistema de algoritmos que compara regularmente os preços de seus produtos na internet e os lança com desconto. Como se não bastasse, a popularidade da empresa é ampliada devido à política de colocar o cliente sempre em primeiro lugar – mesmo. Já a Kobo, empresa canadense de livros digitais comprada pela japonesa Rakuten no final de 2011, faz sucesso por dispor de um dos e-readers mais queridos do mercado – graças à sua portabilidade, aliada a uma mecânica simples que permite ao consumidor comprar livros de outras lojas que não da Kobo. O aparelho, por isso, estabelece uma rivalidade acirrada com o leitor digital Kindle, da Amazon, o pioneiro do setor. A meta das duas empresas para 2013 é expandir seus negócios para Dezembro de 2012 | CÁSPER

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DIVULGAÇÃO

Carlo Carrenho conseguiu reunir interessados por mercado editorial num único lugar e expandir seu site a outras línguas, como o inglês

o Brasil. A Amazon tinha planos de inaugurar seu site brasileiro ainda na metade de 2012. Porém, após dois adiamentos em função de dificuldades em firmar acordos com as editoras daqui, sua vinda aconteceu somente na primeira semana de dezembro. A Kobo se firmou no Brasil no final de novembro. Tendo fechado um contrato com a Livraria Cultura em setembro, a canadense se consolida como a primeira grande empresa de livros digitais a investir no Brasil. Ela deve incentivar o desenvolvimento dessa área por aqui — não somente pela qualidade de seu e-reader, mas pela variedade e volume de seu catálogo. “Com a chegada da Kobo, o 34

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brasileiro disporá, finalmente, de um bom e-reader”, avalia o fundador da PublishNews, Carlo Carrenho. Outro palpite é que a iniciativa da Livraria Cultura fará com que outras lojas invistam nas tecnologias de leitura digital. “Com a efervescência desse tipo de suporte, qualquer livraria que o ignorar ficará para trás. Espera-se que o Natal de 2012 nos Estados Unidos seja o do livro digital, mas no Brasil, o e-book só deve se firmar no Natal de 2013”, pondera. Já com relação à Amazon, Carrenho afirma que a chegada da empresa afetará principalmente a qualidade dos serviços prestados pelas livrarias e editoras, e não o preço do livro.

Isso, claro, se a multinacional trouxer o excelente padrão em atendimento ao cliente e entrega de produtos (terceirizada nos Estados Unidos), algo excessivamente deficiente no varejo brasileiro. Com uma entrada mais agressiva ou não, é certo que a chegada da gigante trará vantagens ao consumidor. “Por um lado, o comprador terá uma livraria eficiente, que o deixará satisfeito. Por outro, ela pode ser tão eficiente, tão melhor que as outras, que acabe detendo um monopólio, prejudicando a todos”, adverte Carrenho. “A solução ideal seria que houvesse no mercado duas Amazons, ambas mantendo um mesmo padrão de qualidade”, idealiza o economista. Esse sonho utópico ao menos cria a esperança de que a Kobo se desenvolva de forma igualmente forte no Brasil e possa concorrer com a americana, elevando, ao mesmo tempo, o nível de qualidade das empresas nacionais. Apesar de já preverem consequências que o barateamento agressivo de livros pode causar na indústria, os especialistas ainda não sabem como ele será realizado – muito menos se será efetivamente possível. Raquel Cozer encontra duas barreiras claras que dificultam esse barateamento. A primeira, de âmbito legal, se aplica ao custo de leitores digitais e títulos estrangeiros, tendo em vista que a legislação brasileira não exime empresas gringas de impostos sobre produtos importados. “A não ser, claro, que os e-readers sejam desonerados desses impostos, o que deve acontecer em algum momento”, considera a jornalista da Ilustríssima. Atualmente, o Kindle mais simples sai por US$ 70, nos Estados Unidos, enquanto por aqui esse valor se eleva a R$ 299. Outro obstáculo que pode atrapalhar os planos da empresa tem relação cultural com o povo brasileiro. “O livro pode ser mais barato quanto maior for o mercado, mas nosso público leitor ainda é muito retraído”, afirma Raquel Cozer. Se, nos Estados Unidos, por exemplo, os livros têm preços acessíveis, é porque a tiragem inicial de cada novo título fica, em média, entre dez e trinta mil exem-


plares, com exceção dos best-sellers, que já saem na casa das centenas de milhares. No Brasil, o primeiro lote de impressão se limita a três mil exemplares, resultantes de uma demanda limitada de público. O problema se espelha tanto na distribuição deficiente do varejo brasileiro quanto na ausência do hábito de leitura da população. Afinal, é difícil que o livro chegue até regiões mais periféricas do país porque as pessoas não leem, ou as pessoas não leem porque o comércio livreiro não as alcança? “De qualquer forma, eu imagino que a Amazon esteja contando com isso”, assume Raquel. Do ponto de vista das lojas brasileiras, os livreiros estão receosos quanto à legalidade da concorrência. A maior das preocupações é que as estrangeiras consigam, de algum modo, se livrar de impostos cobrados, criando uma desigualdade no mercado. Mesmo assim, Mansur Bassit reforça: “Toda concorrência é saudável para o mercado. Se as multinacionais disputarem de igual para igual, então estamos prontos”.

A maior feira editorial do mundo O Brasil está na moda. Temos a sexta maior economia do globo e com a Copa do Mundo e as Olimpíadas tão perto, é certo que a cultura brasileira ganha cada vez mais oportunidades de ser exibida lá fora. É para o nosso país que os preparativos da Feira do Livro de Frankfurt 2013 estão voltados. Galeno Amorim, presidente da Fundação Biblioteca Nacional, ao lado do escritor Milton Hatoum, recebeu o bastão entregue pela Nova Zelândia, país homenageado em 2012. Com isso, o Brasil juntará três homenagens consecutivas: na Feira de Bogotá em 2012, Frankfurt em 2013 e na Feirado Livro Infantil de Bolonha em 2014. A vitrine, contudo, não se limita ao mercado editorial: mostras e exposições de artes plásticas, dança e música, entre outros, prepararão a Alemanha, ao longo de todo o ano para a chegada dos brasileiros no segundo semestre. A homenagem do evento representa, segundo Cozer, “um patamar que a literatura brasileira precisa alcançar para, a partir daí, crescer mais”.

Apesar de ser uma bela vitrine, a feira em si já não representa um ponto substancial para fechamento de contratos. Hoje, seu maior objetivo é estabelecer, entre os convidados, um verdadeiro tête-à-tête. “Antes da internet, você ia a Frankfurt para ver as novidades e comprar, como numa feira de automóveis. Agora, não. É mais um ponto de encontro”, descreve Carrenho, que foi à Alemanha com o intuito de aprimorar os relacionamentos com outros editores, fazer networking e sentir o termômetro do mercado editorial. Por maiores que sejam esses eventos internacionais, eles podem não fazer muita diferença para o típico leitor brasileiro. O vice-diretor da Faculdade Cásper Líbero e também professor de Língua Portuguesa, Welington Andrade, compreende que as consequências da feira serão muito pequenas para o mercado interno. “Toda essa repercussão com as homenagens chega aos meios acadêmicos e intelectuais, mas não acho que o grande público entenda que um título que é exposto internaVICTOR BONINI

Satisfeito com o desempenho da Bienal 2012 de São Paulo, Mansur Bassit agora foca nos arranjos para a Feira de Frankfurt

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cionalmente vale a pena ser lido. O impacto criado é muito mais publicitário do que realmente cultural”, destaca o professor.

Ficou mais fácil publicar?

Para Raphael Montes, os autores estreantes encontram dificuldades para publicar

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Crescimento interno e externo, visibilidade literária, homenagens internacionais — o resultado de tudo isso é um incentivo cada vez maior à produção de novos títulos, bem como à sua distribuição para camadas da sociedade carentes nesse sentido. Consequentemente, a quantidade de novos autores brasileiros só tende a subir. As novas obras — ficcionais, não-ficcionais, religiosas, científicas, de autoajuda etc. — deixam à disposição do público um variado catálogo que enriquece a literatura brasileira e gera opções para todos os gostos. Atualmente, só não lê o que gosta quem não procurou. Para os escritores, no entanto, publicar novos trabalhos ainda se mostra uma tarefa complicada. Raphael Montes, de apenas 22 anos, só conseguiu publicar seu romance de estreia, Suicidas (Editora Benvirá, 2012), quando o inscreveu no concurso da editora. “As editoras não leem”, constata. “Eu cansei de ouvir as mesmas desculpas, como ‘Você é muito novo’, ‘Você não tem nome’ e ‘Você escreveu um livro de 500 páginas’. Antes da Benvirá, ninguém quis” — fato que agora pode fazer com que essas editoras se arrependam, já que Suicidas chegou, em outubro, ao topo da lista de romances policiais mais vendidos da Livraria Saraiva. “As editoras recebem muitos exemplares para avaliar, dos quais boa parte é ruim. Não tem como pagar um funcionário para ler cem originais por mês.” Essa baixa perspectiva de novas publicações é comprovada pelo ranking global de mercados editoriais, que também calcula o número de títulos estreantes e reedições lançados em cada país por milhão de habitantes. Nesse quesito, o Brasil ganha apenas da China. No país comunista, esse índice é de 245 lançamentos por milhão de pessoas, enquanto no Brasil, o número vai a 285, muito abaixo do primeiro colocado,

Estados Unidos, com 1080. A frustração de autores que veem seus originais serem recusados fica ainda mais acentuada graças ao pouco conhecimento que eles têm sobre o funcionamento das editoras — que muitas vezes nem esclarecem o motivo da recusa. Laura Bacellar, editora responsável pela Editora Malagueta e colaboradora de outras empresas do ramo, como a Editora Leya, observa: “Trabalho com mercado editorial desde 1983. Sempre senti que existe um problema de comunicação extremo entre editoras e autores”. Tomando como ponto de partida essa deficiência, Laura decidiu escrever, em 2001, um site (www.escrevaseulivro.com.br) e um manual sobre o assunto, Escreva seu livro – guia prático de edição e publicação (Mercuryo, 2001), com a intenção de dar ao novo escritor uma ideia de como funciona a lógica da indústria livreira. Ela insiste que o autor deve assumir para si a divulgação de seu livro, mesmo que uma grande editora o tenha publicado. “A divulgação é o passo mais difícil, pois você tem que se tornar conhecido em um círculo além dos seus amigos, tem que enganchar novos leitores.” Seja pela internet ou por editoras particulares, que são pagas para editar originais para o mercado ou exclusivamente para o autor, hoje está mais fácil publicar. O resultado não poderia ser outro: há uma grande procura — o que Laura Bacellar descreve como a “superpovoação da cultura” — mas, oposto a isso, temse um interesse ainda limitado por essas novas obras. “Ou você publica algo na mesma linha de autores que estão fazendo sucesso, mas aí você não tem muita originalidade, ou então você mostra que há um grande grupo de pessoas interessado no que você escreveu, ou seja, você prova que vai vender”, aconselha.

Alta e baixa literatura Lançado neste ano, o livro Geração Subzero (Record) é uma coletânea organizada pelo jornalista Felipe Pena de textos de vinte autores brasileiros condenados pela crítica, mas adora-


Ranking mundial de mercados editoriais Ranking 1º

País Estados Unidos

Faturamento das editoras em milhões de euros

Valor de mercado em valores ao consumidor

Novos títulos e reedições por milhão de habitantes

21.500 €

31.000 €

1.080

10.602 €

245

6.350 €

9.734 €

1.172

China

Alemanha

Japão

7.129 €

França

2.804 €

4.587 €

1.242

Reino Unido

3. 738 €

4.080 €

2.459

Itália

1.900 €

3.417 €

956

Espanha

1.820 €

2.890 €

1.692

Brasil

2.027 €

2.546 €

285

10º

Índia

1.675 €

2.500 €

– Fonte: PublishNews

dos pelo público. Na contracapa e nas orelhas do livro são discutidos quais critérios determinam a qualidade de uma obra. O que pode, enfim, ser considerada alta ou baixa literatura? Apesar de não haver um manual que defina esse conceito e segregue as obras a partir dele, a opinião geral tende a relacionar essa classificação com a qualidade da escrita. “No sentido artístico, essa comparação é muito válida, pois livros criativamente superiores devem, sim, ganhar crédito”, opina Carlo Carrenho. “Mas incomoda quando gera preconceito e as pessoas começam a achar que não se deve publicar a chamada baixa literatura.” Ainda na opinião de Carrenho, não é o mercado editorial que deve fazer com que as pessoas leiam títulos mais complexos, mas sim a sociedade e o sistema educacional que devem ensinar a população. “A função do editor não é educar, é levar ao leitor aquilo que ele gostaria de ler.” Welington Andrade concorda e identifica o problema do nosso siste-

ma de ensino. “O que não resolvemos no Brasil, em termos de educação, é dar possibilidade para que o público escolha entre literatura mais fácil e mais complexa, porque nós não conseguimos capacitar nossos alunos a serem bons leitores. Assim, eles acabam indo para a literatura fácil, pois é a única com a qual conseguem se relacionar. O problema é da educação, e não propriamente da literatura.” A sequência disso é um círculo vicioso. “Se o mercado já começa a facilitar a vida do sujeito com obras mais fáceis, uma vez que ele não está preparado para textos mais complexos, é sinal de que falimos como sociedade letrada”, Welington lamenta. Como escritor, Raphael Montes relaciona alta literatura com o cuidado do autor na escolha de cada palavra do livro. É, por outro lado, contrário a qualquer rotulação, fazendo clara referência ao preconceito que afeta o diminuto romance policial nacional. “Esse conceito é algo bem brasileiro. Nos Estados Unidos, os

jornais leem todo tipo de livro e criticam de maneira justa. Aqui, o gênero policial, por exemplo, é praticamente desconsiderado e não é devidamente resenhado pela crítica.” A jornalista da Folha de S.Paulo, Raquel Cozer, também se sente desconfortável com a divisão entre alta e baixa literatura. Fã tanto dos livros de Jorge Luis Borges quanto da série Harry Potter, Raquel entende que essas duas partes da literatura devem conviver. “Uma coisa não exclui a outra, acho que há momentos para ambas.” Do ponto de vista da indústria, porém, não há literatura boa ou ruim. “Aquela visão romântica de que as editoras escolhem quais originais publicar julgando se são bons ou ruins não existe”, esclarece Laura Bacellar. Mas e se elas escolhessem publicar apenas a chamada alta literatura? Mansur Bassit antecipa: “Não haveria crescimento do mercado editorial. Afinal, como é que uma pessoa vai ter contato com Dostoievski se ela sequer leu Padre Marcelo Rossi?”. Dezembro de 2012 | CÁSPER

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PORTIFÓLIO


TIBETE:

o teto do mundo


Para o tibetano Yishitenzin, a fotografia congela momentos que se tornam registros de memória. É o modo de fazer com que mais pessoas compartilhem a beleza de sua terra e a alegria do povo de sua região Por Yishitenzin

O

fotógrafo tibetano Yishitenzin mora em Llasa e é funcionário do departamento de turismo dessa região autônoma da China. Na rotina de seu trabalho, Yishi documenta as recepções a visitantes ilustres e reuniões oficiais realizadas pelo governo local. Mas é nas horas vagas do trabalho ou em seus momentos de lazer que ele empunha sua Canon 5D MARK2 e leva junto seu iPad para armazenamento das imagens que vai realizando. “Reconheço que ainda falta muito para chegarmos a uma compreensão plena do Tibete, mas tenho grande entusiasmo pela natureza, pela gente e pelas tradições da minha terra. Isso me inspira, pois documento as transformações, o desenvolvimento 40

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e essas belas paisagens por meio de meu trabalho com a câmera.” Quando era garoto, afirma ele, “me afeiçoei por uma foto de 5 x 7 em preto e branco, que um fotógrafo fez de mim. Essa é minha primeira memória de fotografia. Naquela época, já intuía que a fotografia era a melhor maneira de fixar o tempo, de congelar um momento e guardá-lo para sempre como memória”. Em 2000, quando fazia os estudos universitários em Pequim, o interesse pela fotografia voltou com força ao visitar uma exposição mostrando trabalhos de colegas. “Fiquei impressionado com as belas paisagens captadas por outros alunos de suas cidades de origem. Foi quando me apaixonei pelas possibilidades de

comunicação da fotografia e quis me dedicar a mostrar as belezas do Tibete. Após a formatura, voltei para Llasa e fui contratado como fotógrafo da Associação Cultural de Intercâmbio Internacional da Região Autônoma do Tibete, sem dúvida, isso me possibilitou muitas oportunidades para registrar cenas, personagens, atrações de minha terra, além da oportunidade de fazer amigos entre profissionais de mídia de países do mundo inteiro. Como tibetano nativo, posso testemunhar as mudanças que vêm ocorrendo na minha região, os progressos do Tibete. E estou confiante de que minhas fotografias podem fazer com que mais pessoas compartilhem da beleza, da alegria e da felicidade desse meu povo.”


Cì Rén Ma Bái, ou Lotus de Longa Vida, matriarca de sua aldeia de Gong Zhong, veste roupas de festa que ela mesma confeccionou. Abaixo,Yumbulagang, primeiro palácio da história do Tibete. Fiz a foto após uma chuva fina ao entardecer, quando o palácio, o céu e as montanhas exibiam uma atmosfera de tranquila velhice

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CĂ SPER | Dezembro de 2012


A peregrina leva sua roda de oração em Llasa a caminho do Palácio de Potala. Viajar de bicicleta é um modo de conhecer as vilas e templos. Quando vi esse ciclista a caminho de Jiangzi pensei no título: “Uma visão infinita”. A imagem da esquerda, o cenário da pastagem dos iaques contra o fundo das montanhas, me fez parar o carro para capturar o momento: uma visão que tocou o coração

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No final do outono os pastos, pântanos, rios e montanhas mudam suas cores e acolhem milhares de aves migratórias. É o momento precioso para captar cenários de rara beleza


ENTREVISTA

O homem

da Folha na

CHINA

Fabiano Maisonnave prepara uma rĂĄpida passagem para uma reportagem a ser veiculada na TV Folha, semanal da TV Cultura de SĂŁo Paulo


Após cobrir a América Latina em momentos críticos como a posse de Morales na Bolívia, o golpe de Zelaya em Honduras e o terremoto no Haiti, Fabiano Maisonnave hoje acompanha as mudanças da China Por Carlos Costa Imagens José Geraldo Oliveira

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ascido em São Paulo e criado em Foz de Iguaçu, no Paraná, para onde a família se mudou quando ele tinha 2 anos, o correspondente do jornal Folha de S.Paulo em Pequim, Fabiano Maisonnave, voltou à cidade natal para estudar Jornalismo na Metodista. “Não tinha muita informação sobre o que era o jornalismo, não conhecia nenhum jornalista antes de entrar na faculdade. Achava que o curso seria mais dinâmico, me enganei. Então, decidi partir para outras áreas em busca do que senti falta no jornalismo. Fiz História na USP.” Ao final do curso, uma bolsa da Fundação Fulbright o levou para um mestrado em história americana. Enquanto a bolsa não saía, candidatou-se a trainee da Folha e passou. Isso foi em 1998. Trabalhou como redator na editoria de política. Foi aí que nasceu o vínculo com o jornal. No mestrado nos Estados Unidos, realizou um estudo comparativo sobre questões raciais, entrevistando 30 negros brasileiros que já viviam lá. Terminado o curso, voltou para visitar os pais que haviam mudado para o Mato Grosso do Sul. Iniciou o doutorado nos Estados Unidos, ainda como bolsista, mas após dois bimestres decidiu se estabelecer com os pais em Campo Grande – isso em 2000. “Lá, trabalhei no governo, mas descobri um esquema corrupto, vi muita coisa errada, não deu para ficar.” Foi trabalhar num jornal local e, quando a Folha descobriu que vivia em Campo Grande, propôs ocupar a função de correspondente – o que fez de 2001 a 2003. Começava a trilhar seu caminho.

Por que saiu do Mato Grosso do Sul e veio trabalhar na redação em São Paulo? Tive muitos problemas, principalmente durante a reeleição do Zeca do PT [José Orcírio Miranda dos Santos] para o Governo do Estado. Durante a campanha, fiz várias matérias denunciando irregularidades – havia muita corrupção naquele governo. A primeira vez que fui ameaçado de morte, havia publicado uma reportagem mostrando que o governo usava a máquina da Polícia Militar para fazer campanha na corporação. Por causa da publicação, o Supremo Tribunal Federal afastou o comando da PM e enviou tropas federais para fazer a segurança do segundo turno. Um delegado da polícia, que nunca soube quem era, foi atrás de minha cunhada e disse que eu teria um encontro com Jesus após a eleição. Eu fiz um Boletim de Ocorrência e avisei o jornal, mas as coisas acalmaram com a eleição do Zeca. Depois, tive de sair de Campo Grande de vez por causa de uma denúncia que fiz sobre um esquema de desvio de ICMS que a Petrobras pagava ao Estado para a construção do gasoduto Brasil-Bolívia. Em vez de pagar o ICMS diretamente ao Estado, a Petrobras fazia depósito para empresas fantasmas indicadas pelo governo. Era um esquema que a própria Petrobras não autorizava. Quando comecei a ligar para as empresas fantasmas, cerca de 17, um advogado que prestava serviços na penitenciária de Mato Grosso do Sul descobriu que a minha morte – ou algum tipo de crime para me incriminar – estava sendo planejada. Naquele estado é Dezembro de 2012 | CÁSPER

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um tanto comum que se contrate um pistoleiro da penitenciária para realizar esse serviço sujo. Ele sai à noite, faz o que tem que ser feito e volta. Eu recebi mais ameaças de morte, então pedi para o jornal me tirar de lá.

abrir uma correspondência em Caracas e fui convidado. Mudei para Caracas em abril de 2007 e fiquei três anos por lá. Foi uma decisão acertada do jornal pois logo depois o Chávez ganhou sua segunda reeleição, em 2006...

E aqui em São Paulo, fez o que? Fui trabalhar na editoria de internacional. A guerra do Iraque estava começando quando assumi o cargo de redator: no meu primeiro dia aconteceu a invasão americana. Depois que passou a guerra, comecei a me interessar pela cobertura da América Latina. Eu havia morado muitos anos em Foz do Iguaçu, tinha essa experiência peculiar de convívio com hispânicos. Além disso, quando morei no Estados Unidos, minha vida era entre outros latinos, então era um tema que me tocava. O jornalista responsável por essa seção ia sair do jornal e me candidatei para a vaga.

Isso foi antes do golpe? O golpe foi em 2003, em 2004 cobri o referendo em que Chávez foi ratificado do cargo e em 2006 ele ganhou a reeleição. E começou o programa de nacionalização, aumentou a concentração do poder e tentou mudar a Constituição – foi quando fechou a emissora de TV, a RCTV. O ano de 2007 foi incrivelmente intenso. Foi nessa época que houve aquele ensaio de crise entre Brasil e Venezuela, quando Chávez chamou o Parlamento brasileiro de papagaio do império. Um ano que terminou mal para Chávez, que viveu a primeira derrota nas urnas, perdendo um referendo para reformar a Constituição. Outro período intenso foi 2009, quando fui cobrir a crise de Honduras e fiquei 42 dias dentro da Embaixada brasileira. Para mim, foi um ano muito forte.

Qual foi sua primeira viagem como correspondente internacional? A primeira foi clandestina para a Colômbia, para entrevistar o Raúl Reis, líder das FARC, que acabou morto no Equador. Essa época coincidiu com a onda de esquerda que varria a América Latina, então cobri a primeira eleição do Evo Morales, do Rafael Correa e, entre 2004 e 2005, o jornal me deixou seis meses como correspondente-bolsista em Washington. Durante o processo de nacionalização ocorrido na Bolívia, por exemplo, estive no país 23 vezes em um ano. Acompanhei todo o primeiro ano de governo do Evo Morales. Depois disso, a Folha decidiu 48

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A embaixada foi um dos principais palcos da confusão de Honduras... Sim, num segundo momento, foi o epicentro. Como eu havia ficado muito tempo da primeira vez no país, tinha uma vantagem sobre os meus colegas jornalistas: eu tinha contatos. Consegui entrar na embaixada muito antes de todo mundo. Foi uma decisão acertada do jornal de priorizar Honduras naquele ano. Eu era o único jornalista


brasileiro que estava lá no dia do golpe. O jornal percebeu que o clima estava tenso por causa do referendo que o Zelaya criara para modificar a Constituição, e a Folha me mandou para lá. Aí na madrugada de 28 de junho aconteceu o golpe. A viagem era para durar 5 dias, durou 40. A Venezuela foi seu período mais produtivo como repórter? Na verdade, todo esse período de América Latina foi muito movimentado, com o tumultuado começo do governo Morales, a radicalização do Chávez, a chegada dessa onda no Equador e agora com o Ollanta Humala, com quem, aliás, viajei de carona. Conheci o Humala muito bem... E o Evo... Ele é o falastrão e índio fake, que não fala a língua de sua etnia, criado por nossa mídia? Essa é uma imagem falsa, uma bobagem. Ele tem uma rica história com as duas etnias: ele é aymará, mas foi criado em uma região que é quéchua, então tem muito das duas culturas. É só ver como ele se sente a vontade com a população. O uso da língua é muito pessoal, mas ele respeita todas as línguas locais da Bolívia e a Constituição que promoveu reflete isso. O problema do Evo, e também do Chávez, é que se acham verdadeiros divisores de águas e têm pouco respeito pela oposição. Tentam minar as constituições e concentrar cada vez mais poder. Se acham os salvadores da pátria – esse é o principal problema dos dois, pois dividir o país e ter apoio da maioria é mais fácil do que buscar o consenso.

do Chávez. Também tentou seguir um estilo mais de composição. Mas o governo dele está começando. Os governos do Peru historicamente terminam bem. Houve algum intervalo entre a Venezuela e a China? Não, estava na Venezuela quando me chamaram. Em dois meses saí de Caracas e tomei o voo para Pequim. Isso foi em 2010. A experiência aqui na China é fantástica. O país caminha para grandes mudanças. Mas prefiro que os leitores acompanhem minhas coberturas e meu blog, Vista Chinesa, no site do UOL. Que outros momentos marcaram sua trajetória? Uma experiência marcante que vivi foi em Honduras ao cobrir o golpe do Zelaya, em 2009. Eu estava na Venezuela e cheguei para cobrir o referendo do dia 28 de junho. A tensão estava aumentando. Quando amanheceu, o

Como foi a viagem de carona com Humala? Foi na primeira vez em que ele se candidatou à Presidência, em 2006. Começava a chamar a atenção nas pesquisas em dezembro de 2005 e em janeiro de 2006 fui a Lima e negociei, com a ajuda de uma amiga, acompanhá-lo durante uma viagem de comício. Ele não tinha recurso algum. Íamos para uma cidade no altiplano e tivemos de subir 6 mil metros para depois descer. De avião, a viagem dura meia hora, mas de carro são seis, sete horas. Ele fez essa viagem difícil para falar com cem, duzentos estudantes, mas ele não tinha outros meios. Na ida, fui com um carro alugado; na volta peguei carona com ele, à noite. E ele é bom motorista? Sim, pois conseguia falar comigo e ultrapassar caminhão em lugar proibido sob nevasca – e estamos vivos para contar a história [risos]. Comecei a dirigir mal depois que viajei com ele, ele me influenciou negativamente [risos]. Na época, ele parecia despreparado para a campanha, era tudo muito amador e acabou perdendo o segundo turno para o Allan García. Mas estava claro que tinha carisma e não foi surpresa que acabou ganhando, depois. Você acha que ele se preparou nesse ínterim? Estive com ele duas vezes depois e seu discurso se voltou mais para o diálogo do que no primeiro momento – Humala se baseou mais na imagem do Lula do que na Dezembro de 2012 | CÁSPER

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Na cidade de Liuzhi, o correspondente toma lições de um policial tibetano com o glossário publicado no final de um guia sobre a região autônoma

Zelaya já tinha sido detido e expulso do país, e o Roberto Micheletti, o presidente da Assembleia, assumira. Nunca testemunhara nada parecido. Uma semana depois, o Zelaya tentou voltar para Honduras de avião, não conseguia pousar, havia manifestações na rua, foi um momento tenso. Quando a situação se acalma um pouco... E o Zelaya se asila na embaixada do Brasil... Isso. Se não me engano foi em setembro. Houve a surpresa de ele entrar na Embaixada brasileira, então voltei para Honduras e fiquei 42 dias internado ali. A discussão, no começo, era tensa, havia o governo interino, o exército jogava bombas de gás lacrimogêneo no teto, fazia barulho à noite, quando cheguei tinha mais de 70 pessoas na embaixada. Com acomodações para todos? Tive sorte por causa dos contatos – uma amiga, a Adriana, conseguiu trazer colchões para nós. Depois do terceiro ou quarto dia, tínhamos colchões. Dormíamos na sala ao lado do gabinete do embaixador, onde dormia o Zelaya. Numa outra salinha ficava o encarregado de negócios da embaixada, o Francisco Catunda. Quando começou a diminuir o número de pessoas, dividi um quarto com um fotógrafo chileno da Reuters. 50

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Como era a embaixada: um casarão, um prédio? Era um casarão com história. Ali morou João Cabral de Melo Neto. Quando ele trabalhava para o Itamaraty, sua filha se casou com um hondurenho e ele decidiu se mudar para o país, para ficar mais próximo da família. Tempos depois, o governo brasileiro comprou a residência, transformando-a na embaixada. Havia chuveiros, mas não para aquele volume de gente – e eram banhos de água fria. Qual a impressão sobre o Zelaya? Ele quis forçar uma mudança constitucional não deixando claro se queria a reeleição ou não. O esforço político empenhando indicava que buscava se reeleger, a exemplo de outros países que fizeram o mesmo: Venezuela, Equador, Brasil, Bolívia, Argentina. Mas a reação da população e da mídia foi desproporcional. Na época havia o discurso antichavista. O fato de o Zelaya ter entrado na Alba [Aliança Bolivariana para as Américas] e de ser próximo do Chávez fizeram com que o discurso da ameaça populista de esquerda pegasse em boa parte da população. Foi uma reação histérica a uma tentativa de mudança constitucional. O Micheletti havia sido aliado do Zelaya, então também foi uma briga meio paroquial.


Outro momento de alta adrenalina? Uma cobertura marcante foram as primeiras eleições do Haiti, em 2006, quando, depois da queda do Aristide, foi eleito o René Préval. A eleição fora adiada várias vezes e, no dia em que aconteceu, eu e o fotógrafo Jorge Araújo víamos as pessoas indo às urnas realmente acreditando que aquilo iria alterar a situação do país, foi impressionante. Mas atrasaram a abertura dos portões e ao começar a votação no local em que estávamos as pessoas invadiram, tomaram as cédulas, votaram e colocaram nas urnas, a polícia não conseguia controlar. E depois houve a frustração porque o resultado não saía. Infelizmente, por decisão errada, não minha, deixamos o Haiti um dia antes de o país explodir, virar um caos por causa da falta do resultado – que terminou numa leitura constitucional dando a vitória para o Préval. Foi um momento que marcou muito pela dinâmica daquele país, o mais pobre das Américas, e aquela crença da população no voto, a esperança de que haveria mudança na situação. Haiti marca muito qualquer repórter, tanto pela situação de extrema miséria quanto pela vontade de viver que aquelas pessoas têm apesar de tudo. Infelizmente, a mudança não se deu. Voltei uma quarta vez na ocasião do terremoto, algo ainda mais impressionante. O número final de mortos é de mais de 200 mil pessoas. A ausência do Estado era enorme. Saí da Venezuela e fomos a Santo Domingo, eu e um fotógrafo do jornal. Alugamos um avião junto com outros jornalistas... Este foi o último avião civil a entrar no país... Sim. Depois de nosso avião pousar, o governo fechou o acesso ao país, ficou aberto só para ajuda humanitária e militar. O primeiro dia foi impressionante, havia muitas pessoas vivas, mas sem nenhuma estrutura para o socorro. Também não havia meios para recolher corpos, cansamos de ver cadáveres na rua, a maior parte já empilhada nas esquinas, pulávamos crianças mortas, vimos pessoas vivas presas nos escombros, desesperadas sem saber o que fazer. Fiquei mais de 12 dias lá. Para quem não conhece o Haiti, era difícil saber o que era consequência do terremoto e o que já estava em ruínas antes do desastre. Fiquei decepcionado com muitas coisas, como a atitude de jornalistas. Havia cerca de 700 jornalistas ali e muitos passavam o dia inteiro numa única rua comercial em que aconteceram distúrbios e saques. A capacidade de resignação do haitiano é impressionante, praticamente não houve saques, só naquele lugar. E iam lá, para filmar atos de violência – achavam que iam ganhar o Pulitzer com aquilo. Havia outros que misturavam a função de jornalista com ajuda humanitária, mas sempre filmando, nunca fora das câmeras. Também houve muita picuinha entre Estados Unidos e Brasil. Eles distribuíam comida na mesma região, mesmo sem comunicar à ONU, pois queriam aparecer na imprensa como salvadores. Eram atitudes mesquinhas. Qual você acha que é o pulo do gato, o diferencial para ser um bom correspondente?

Tenho formação acadêmica em História e Antropologia e isso me ensinou a prestar muita atenção na realidade local e buscar entender o contexto da melhor forma possível. Sempre que vou a um país, procuro as pessoas da cidade, leio o máximo que posso da imprensa local, leio livros acadêmicos, tento estabelecer relações com fontes de qualquer segmento da sociedade, entender o máximo possível. É algo que herdei das minhas pesquisas em história e antropologia. Até que ponto essas novas tecnologias ajudam ou atrapalham a cobertura multimídia? Tem um ditado anarquista que diz que tempo é uma questão de prioridade. Então, numa cobertura sem hard news, com tempo, em que não é preciso enviar uma matéria por dia, é possível fazer televisão, por exemplo. Mas numa cobertura quente, tendo de fazer reportagem para vários formatos, isso tira tempo de apuração. Acho que essa fase multimídia tem de ser vista com cautela e vir com investimentos para não sobrecarregar o repórter e tirá-lo da sua principal função, que é apurar e reportar para o jornal. O que mais te desafia: perfil, reportagem, entrevista? É entender o lugar. Quando há uma crise, como a dos cocaleros com Evo Morales, é preciso entender os argumentos dos dois lados e tentar explicar para o leitor o que está acontecendo. Essa tradução de uma sociedade para outra, do mundo para o leitor que está em São Paulo, preocupado com outras coisas, conseguir atraí-lo para uma realidade que muitas vezes não tem ligação direta com sua vida, isso tudo é um desafio. É, sem dúvida, o que mais gosto de fazer. Você daria um conselho para um estudante que queira ser correspondente? Infelizmente, o número de correspondentes brasileiros é pequeno – imagino que não seja mais de 30 –, mas existem outras possibilidades. O estudante não deve achar o fim do mundo se não conseguir ser correspondente. Outra coisa: muitos jovens jornalistas vão morar em outro país para estudar alguma língua ou fazer um curso e tentam ser correspondente a partir de lá. Isso é um erro. Vale a pena viajar, estudar línguas, mas o jornalista tem de começar dentro da redação, os jornais têm essa tradição de mandar gente da casa para ser correspondente. Outro ponto importante é domínio de línguas. Inglês e espanhol são básicos, e o mandarim é estratégico porque a demanda aumentará cada vez mais e infelizmente temos pouco, ou nenhum, jornalista brasileiro capaz de apurar e fazer boas matérias falando mandarim. Além disso, ler muito a imprensa internacional, principalmente a americana e a britânica que têm uma tradição incrível de correspondência. Mesmo com a crise, o The New YorK Times tem uma rede fantástica de correspondentes. Do lado britânico, Financial Times faz cobertura excelente, sobretudo da Ásia, com correspondentes morando 30, 40 anos num mesmo lugar. The Economist também tem tradição. Dezembro de 2012 | CÁSPER

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GASTRONOMIA

Jornalismo de

forno & fog達o

Prato da Chef Andrea Kauffmanm do restaurante AK Vila


A gastronomia vive um boom de popularidade – todos falam sobre comida na TV e na internet. Mas até que ponto o público se orienta pela crítica do jornalista gastronômico? Por Amanda Massuela e Patrícia Homsi Imagens Divulgação

S

eu nome é Anton Ego. Com nariz e faro finos, olhar e paladar atentos, roupa social bem alinhada e gestos elegantes, é a clássica figura do crítico gastronômico impiedoso, intimidador de qualquer cozinha. Ele se senta em uma mesa redonda iluminada por um pequeno abajur em um famoso restaurante parisiense, pressiona a ponta da caneta ruidosamente contra seu bloco de anotações e leva uma garfada de ratatouille (prato francês à base de molho de tomate e legumes) à boca. Imediatamente, o sabor transporta Ego para sua infância – tal como as madeleines de Proust –, para o gostinho da comida caseira de sua mãe. A caneta tomba de sua mão e ele se rende, saboreia o prato, deixando de lado, ainda que brevemente, sua função puramente técnica e profissional de avaliação gastronômica para se deixar levar pela paixão à boa comida. Essa cena é do filme Ratatouille, da Pixar, e figura como estereótipo do trabalho do crítico gastronômico. Mas isso vem mudando. “Comida é um assunto a ser tratado de modo muito mais sensorial do que racional”, defende Danielle Noce, criadora de um dos maiores hits gourmets da internet, o blog I Could Kill For Dessert. A jovem de 28 anos vive na região de Plaisir, na França, onde cursa pâtisserie – especialização em

bolos e doces – na École Lenôtre. É de lá que Danielle alimenta o ICKFD com vídeo-receitas, fotos e notícias sobre o mundo da gastronomia. O jornalismo gastronômico sempre se baseou em regras e teorias, mas a opinião pessoal e a experiência sensorial vêm se sobressaindo aos métodos dos críticos – e dos leigos – na hora de dar estrelas aos restaurantes. Danielle é uma dos que acreditam que todas as áreas do jornalismo estão enfrentando mudanças e que o discurso autoritário e imparcial do crítico vem perdendo espaço para um julgamento fundamentado em outros quesitos, como a opinião do público. De acordo com ela, está havendo uma adaptação à pluralidade de preferências e referências. Aquela meia dúzia de críticos formadores de opinião, que sempre trabalharam no sentido de padronizar o bom gosto e definir o que era boa ou má gastronomia, se vê obrigada a dividir espaço com blogs de jornalistas, chefs ou simples amantes da culinária que trazem opiniões mais afetuosas com relação à comida. “Hoje em dia, todos são potenciais produtores de conteúdo e isso é enriquecedor. Cabe ao leitor/espectador/ produtor escolher com que tipo de conteúdo quer dialogar.” Com a concorrência dos blogs e a da mídia focada no “faça você mesmo” – que aponta as direções para o

leitor aprender sobre gastronomia e ser capaz de cozinhar em casa, criando seus próprios pratos para receber os amigos – a crítica gastronômica clássica constatou a necessidade de se reinventar. Para conquistar leitores, algumas revistas especializadas incluíram em seu cardápio longas reportagens que vinculam gastronomia com estilo de vida, convencendo o leitor de que ele também pode viver esse mundo de perto. Além disso, as receitas e dicas culinárias encorajam aqueles que não podem bancar jantares luxuosos a se aventurar com as panelas. A revista Casa e Comida, da Editora Globo, é uma das que aposta nesse novo jornalismo gastronômico. Criada há três anos a partir do sucesso da seção Receber com charme da revista Casa e Jardim, ela tira o foco do restaurante e se inspira nos chefs, que ensinam os leitores, de maneira simples, a preparar pratos elegantes. “Nós temos o cuidado de publicar receitas com passo a passo e ingredientes fáceis. O leitor tem de se sentir instigado a inventar na cozinha.”

Democratizar é preciso Existe uma diferença básica entre crítica e crônica, como aponta a jornalista Flávia Pinho. Autora do guia Onde Tem? (FNAC, 2005), contemplado pelo German Cookbook Award, maior prêmio de literatura Dezembro de 2012 | CÁSPER

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gastronômico do mundo, ela colabora regularmente para revistas como Prazeres da Mesa, Menu e Casa e Comida. “Acho o máximo que haja vários blogs, revistas, programas sobre gastronomia e vários pontos de vista. Mas temos que diferenciar as coisas. Opinar, escrever abertamente e visitar um restaurante em que você é amigo do chef é muito diferente de um trabalho sério de crítica.” Durante os quatro anos em que escreveu sua coluna na revista Época São Paulo, Flávia conta que nem ao menos mostrava o seu rosto, além de não fazer entrevistas pessoalmente e sempre pagar a própria conta nos restaurantes. “Acho que o crítico não pode se deixar influenciar. O que a maioria dos blogs publica é bem diferente disso. É uma atmosfera muito mais festiva, leve e gostosa do que a rotina do crítico.” O anonimato, na opinião de

Flávia, é fundamental para o bom desempenho de qualquer pessoa que queira trabalhar com crítica gastronômica. “A equipe de cozinha, quando reconhece o profissional, irá se esmerar o máximo e, mesmo que não altere a qualidade da comida, influencia no serviço e até no tamanho da porção”, conta Flávia, que já passou por uma situação bastante similar ao acompanhar um jornalista famoso a um restaurante. “Vi que o couvert dele era bem maior que o meu, ou seja, isso realmente acontece.” Na revista Prazeres da Mesa a dinâmica é parecida. O jornalista e diretor editorial Ricardo Castilho conta que entre eles há uma política estrita de não aceitar convites para escrever sobre os restaurantes. “Além disso, compramos os vinhos que degustamos, pois procuramos ter independência – queremos total liberdade. Assim podemos fazer,

quando necessário, uma crítica não muito favorável.” Quando visita restaurantes a trabalho, as reservas nunca são feitas em seu nome. Andrea Kauffman é chef do restaurante paulistano AK Vila – vencedor da categoria Variado do prêmio Comer e Beber da revista Veja São Paulo. A chef, que abandonou a publicidade para se dedicar inteiramente à gastronomia, lida com críticas e opiniões do outro lado da mesa todos os dias. Apesar de não pautar o seu trabalho pelo que a mídia especializada publica ou pela opinião dos críticos e blogueiros, ela tem sérias ressalvas quanto à internet e ao crescimento de sites voltados para a publicação de receitas e críticas gastronômicas. “Como esse tipo de divulgação é livre, muitas pessoas escrevem sem ter conhecimento suficiente, muitas vezes sem ter ideia do que estão afirmando. O especialista deve acumu-

A blogueira Danielle Noce acredita que a internet é um espaço plural, em que falar de comida, como de qualquer outro assunto, é permitir a diversidade de pontos de vista e isso deve ser valorizado

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“Conhecer o dia a dia da cozinha e trabalhar nessa área deveriam ser pré-requisitos para os que desejam falar sobre gastronomia”

lar uma ampla bagagem culinária.” Em meio a tantas críticas, Danielle Noce segue firme com sua opinião. A blogueira acredita que a internet é uma aliada para aqueles que querem falar e saber sobre comida, além de conferir liberdade de expressão para o meio gastronômico, tradicionalmente elitista. “Finalmente o especialista, o discurso de autoridade e a comunicação concentrada em grandes mídias cai por terra. A comida carrega uma grande carga cultural e afetiva, que determina o paladar e a memória afetiva de cada um. Como dizer que apenas especialistas podem opinar sobre isso se todos podem sentir?” Para Patrícia Oyama, redatorachefe da revista Casa e Comida, os blogs de culinária funcionam como uma adição ao jornalismo. “Alguns são realmente bem escritos, trazem a opinião do consumidor, de quem é leigo no assunto. Valorizam esse viés da gastronomia. Às vezes tem muito jabá envolvido, mas os blogueiros prestam um serviço. Independentemente do meio de comunicação, o foco tem que ser o leitor, a pessoa comum. Os textos não podem ser escritos como se todo mundo conhecesse a linguagem específica do meio. É preciso democratizar.”

A chef Andrea Kauffman afirma não pautar o seu trabalho pela mídia especializada

Gosto vs. método “Repertório” se torna palavra de ordem para o profissional que deseja se sobressair em meio a tantas informações, trazidas pelos mais diversos suportes. A chef Andrea Kauffman defende que a vivência em uma cozinha é imprescindível para a formação de um crítico gastronômico. “Conhecer o dia a dia da cozinha e trabalhar alguns anos nessa área deveriam ser pré-requisitos para todos os que desejam falar profissionalmente sobre gastronomia. Nesse ramo, só é possível falar daquilo que já se experimentou.” A crítica Flávia Pinho acredita que o arcabouço de competências também pode ser obtido por outros

meios além de cursos e experimentações formais. “A bagagem não é adquirida somente em cursos de culinária ou experiência profissional, mas também ao comer, ler e pesquisar. Para você saber se um prato está bem feito, tem que ter provado muito.” Castilho concorda e acrescenta: “É uma área em que você nunca pode achar que sabe tudo, nem parar de pesquisar. É uma pena que os veículos de comunicação raramente invistam na formação de críticos”. Mas no momento de avaliação de um prato, muitas vezes fica difícil traçar os limites entre técnica e gosto pessoal. Na opinião de Ricardo Castilho, o paladar individual pode Dezembro de 2012 | CÁSPER

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Restaurante AK Vila, da chef Andrea Kauffman. Ela defende que para falar sobre comida com prioridade é preciso “acumular uma ampla bagagem culinária”

influenciar muito no julgamento, caso o conhecimento técnico seja deficiente. “É preciso saber avaliar cada prato a partir de alguns pré-requisitos, como, por exemplo, o grau de frescor e cocção. Você pode não gostar de determinado produto, mas tem que saber degustá-lo.”

Novo jornalismo gastronômico O jornalismo gastronômico segue uma tendência que não é exclusividade dessa atividade, mas de todo o campo da comunicação que vem sendo atingido pelo surgimento de novas mídias e maneiras de produzir conteúdo. A crítica profissional agora divide seu espaço com os consumidores que, tendo algum tipo de formação culinária ou não, encontram na web a chance de criar, publicar e disseminar suas impressões a respeito dos nichos gastronômicos que mais lhes interessam. Avaliações feitas assim, de forma 56

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despretensiosa, como no Qype, – e em blogs, reportagens aprofundadas e no estilo “faça você mesmo” – contrariam o antigo modelo estereotipado do crítico gastronômico arrogante que experimenta todos os pratos da casa, deixando os chefs exasperados à porta da cozinha, à espera de um veredicto. “A publicação de receitas exige um olhar profissional, por isso procuramos pratos de chefs renomados, mas o jornalismo em si não deve ter tanta pretensão culinária. Não fazemos revista para experts. E nem os blogs devem agir dessa maneira”, afirma Patrícia Oyama. Assim, o caminho tomado pelo leitor em direção à informação se torna cada vez mais amplo e dinâmico – reforçado pelas possibilidades de vídeo, áudio e som. Ou, como observa a blogueira Danielle Noce, o jornalismo se torna “difuso, democrático, pirateado, contestado, subjetivo e impossível de conhecer todos os seus autores”.


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PUBLICIDADE

Mamãe, EU QUERO! As propagandas de produtos infantis estão presentes nas prateleiras dos mercados e lojas de brinquedos, na televisão e na internet, influenciando as crianças e dividindo opiniões Por Mariana Oliveira

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artigo número 37 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) proíbe toda publicidade enganosa ou abusiva e define como tal a propaganda que, entre outras coisas, se aproveite da deficiência de julgamento das crianças. As demais formas de controle e regulamentação como o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também trazem normas que devem ser seguidas quando o assunto é publicidade direcionada aos pequenos. Porém, há brechas e insuficiências que trazem à tona uma discussão que divide pais e ativistas de um lado, empresas e publicitários do outro. Segundo Carmem Lucia Cornacchioni, promotora de Justiça que ajuizou uma ação contra a marca de refrigerantes Dolly por causa da utilização do universo infantil em comerciais de televisão, o problema não é da legislação. “Nossas leis de defesa do consumidor estão entre as mais avançadas do mundo, temos condições de disciplinar a publicidade dirigida à criança. O que acontece, muitas vezes, é que o aplicador do direito sente necessidade de uma lei específica para aquela situação e acaba tendo dificuldade de interpretar o Código do Consumidor.” A mesma postura é assumida por Isabella Henriques, diretora de Defe58

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sa e Futuro do Instituto Alana, ONG que desenvolve trabalhos relacionados com a defesa infantil. “Como não temos uma legislação muito detalhada sobre esse tema, os juízes podem interpretar a lei de diferentes formas no âmbito do tribunal. Consequentemente, o mercado publicitário não tem uma diretriz objetiva, o que leva organizações como a nossa, ou o próprio Ministério Público, a questionar caso a caso”. De acordo com Isabella, esse processo de análise específica é inviável pelo elevado número de campanhas publicitárias lançadas todos os meses – não havendo tempo suficiente para a ação ser julgada antes que a campanha publicitária deixe de ser veiculada. De acordo com Stalimir Vieira, assessor da presidência da Associação Brasileira das Agências de Publicidade (Abap), os limites estão bem estabelecidos. “O Conar dedica um grande esforço à observância de cuidados a serem adotados na comunicação mercadológica dirigida ao público infantil”, comenta. “Os anúncios não podem provocar deliberadamente qualquer tipo de discriminação, em particular daqueles que, por qualquer motivo, não sejam consumidores do produto; não devem associar crianças e adolescentes a situações incompatíveis com sua condição, sejam elas ilegais, perigosas ou socialmente condenáveis; e não podem impor a

noção de que o consumo do produto proporciona superioridade ou, na sua falta, inferioridade. Além disso tudo, não podem provocar situações de constrangimento aos pais ou responsáveis, ou molestar terceiros, com o propósito de forçar o consumo.” As normas existem, mas nem sempre são seguidas pelas empresas. Discute-se hoje na Câmara dos Deputados o projeto de lei número 5921/01, criado no dia 12 de dezembro de 2001 pelo deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), com o objetivo de proibir a veiculação de propaganda de produtos destinados ao público infantil. Hauly previa o acréscimo de um parágrafo no artigo 37 da Lei nº 8.078, de 1990. Entretanto, ao longo desses onze anos em que o projeto está em discussão, foram acrescidos substitutivos como o da deputada Maria do Carmo Lara (PT-MG) que, em vez da alteração do CDC, propõe “uma nova lei específica para regulamentar a publicidade infantil”. Ela acredita que o código é geral e que, por isso, não deveria ser “inchado” com normas específicas. Atualmente o projeto ainda aguarda o parecer da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática.

Exagero e consequências Obesidade infantil, estresse familiar, valores consumistas, violência e erotização precoce são possíveis consequ-


RAFAELA MALVEZI


Mães do Movimento Infância Livre de Consumismo durante a Feira de Troca de Brinquedos em São Paulo

ANDRESSA PELLANDA / MICL

ências do excesso de propagandas às quais as crianças estão sujeitas todos os dias. A quantidade de publicidade produzida para atingir diretamente o público infantil assusta os que consideram baixa ou nula a condição cognitiva dos menores de 12 anos – limite entre infância e adolescência, de acordo com o ECA – para discernir a necessidade do desejo consumista. “Por estar em desenvolvimento, a criança ainda não tem todos os recursos para conseguir realizar uma avaliação crítica das mensagens publicitárias como nós adultos fazemos”, argumenta Isabella Henriques. A blogueira Anne Rammi, mãe de Joaquim, de dois anos e de Tomaz de oito meses, questiona a publicidade que fala direto com seus filhos. “Se criança não pode comprar, por que então elas estão sendo impactadas por desejos de consumo? É uma incoerência.” Seus filhos não têm contato com os canais de TV: “Não existe em casa a rotina de assistir televisão”. Anne acredita que as marcas estão buscando convencer desde muito cedo as crianças para que se tornem consumidoras e sejam elas as norteadoras das compras da casa. 60

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“Isso é função de adulto, não é função de criança”, defende. As vinculações de brinquedos com marcas, como no caso da última versão do Jogo da Vida, da Estrela, que traz logotipos de bancos e cartões de créditos como Itaú e MasterCard, ou os carrinhos com marcas de distribuidoras que imitam o carro do pai, por exemplo, não são consideradas inofensivas por Anne. “Isso tem uma intenção clara de fidelizar um público que ainda é uma massinha de modelar, um público que ainda não está maduro.” A blogueira é também representante do coletivo Infância Livre de Consumismo, criado há sete meses na internet por meio de uma organização de mães. O objetivo é refletir sobre a cultura do consumismo, explica a colaboradora Silvia Düssel Schiros. “Queremos mostrar que menos pode ser mais, e que a libertação dessa cultura do consumismo desenfreado terá efeitos benéficos para todos, inclusive para o planeta.” Até o final da apuração, o coletivo contava com 18.851 likes em sua fan page no Facebook – além do blog infancialivredeconsumismo.com e do twitter @infancialivre. Uma das inicia-

tivas do projeto é a Feira de Troca de Brinquedos, que incentiva a troca no lugar do consumo. “Fazemos parte de uma classe em que as crianças estão atoladas de brinquedos, já possuem mais do que o suficiente. Não precisam de mais”, explica Anne. Diferentemente do coletivo, Daguito Rodrigues, não acredita que a propaganda traga algum malefício ao desenvolvimento da criança. Redator da agência Age Isobar, responsável pelo marketing da marca de brinquedos Mattel – um de seus clientes –, ele considera que a programação infantil e a publicidade têm o mesmo efeito no momento em que a criança assiste à televisão. “Tudo depende da educação que a família oferece para a criança. Ela vai criar suas questões morais e de inteligência a partir do que vivencia em casa. Dizer que a propaganda tem uma ação prejudicial à formação ou educação de alguém é complicado, pois teríamos que falar a mesma coisa a respeito do entretenimento”, defende. Ainda segundo Daguito, a propaganda ajuda a criar na cabeça da criança a questão da escolha e acaba se tornando um entretenimento lúdico


“Tenho muitas desconfianças com relação à TV, à internet e aos games. As crianças estão entrando muito cedo nisso. Estão assistindo a programas que não são para a faixa etária delas”

Elas hoje são mais críticas? “Tenho muitas desconfianças com relação à TV, à internet e aos games. As crianças estão entrando muito cedo nisso. Estão assistindo a programas que não são para a faixa etária delas”, pondera Roberto Machado, professor da Cásper Líbero e diretor de programas infantis veiculadas pela TV Cultura. As crianças são a audiência da programação adolescente hoje, enquanto os jovens assistem aos programas que os pais vêem. “Minha filha começou a ver programas com temática adolescente como ICarly, Drake e Josh, Big Time Rush e Brilhante Victória do canal Nickelodeon, aos 5 anos. E a publicidade nos intervalos desses programas falam da Barbie, de brinquedinhos da Fisher Price, joguinhos, ou seja, os programadores de TV sabem que os pequenos assistem a esses programas.” Para Daguito Rodrigues, a propaganda infantil de hoje não tem o poder de mandar a criança tomar uma atitude. Além das normas que proíbem o uso do imperativo, fazendo com que conceitos de antigas campanhas famosas como “Não esqueça a minha Caloi!” ou “Compra Cremutcho!” não

possam ser reproduzidas, as crianças também estão mais inteligentes. “Nem se quiséssemos conseguiríamos enganá-las. Elas têm plena consciência do que é propaganda”, afirma. O acesso a produtos importados e a possibilidade de compra em sites também mudaram o cenário do mercado brasileiro. Para o publicitário, o fato de as crianças estarem antenadas e multiatarefadas, se torna um desafio maior na hora de apresentar um produto. “Elas são mais críticas.” As mudanças de comportamento da sociedade exigem transformações na forma de comunicar e são essas modificações que traçam os rumos e as regras da comunicação focada no público infantil. Resta saber se estamos prontos para usar as tecnologias de que dispomos hoje a favor da educação de nossas crianças. “Atualmente, boa parte da educação, e portanto da formação, se dá por telas de TV, de Ipad, de computador, de notebook, de smartphone”, comenta Machado. Aos pais compete acompanhar o aprendizado e a educação. A posição deles na educação não pode ser esquecida ou descartada. Para a mãe e blogueira Anne, a televisão acaba sendo uma muleta. Diante da tela, a criança está se entretendo e se divertindo, mas, mais do que isso, está dando um tempo para os pais fazerem uma outra coisa. “O importante é ter consciência de que você não está fazendo o melhor para o seu filho, mesmo que às vezes deixá-lo horas em frente à TV seja necessário”, alerta. Diante da defesa da liberdade de expressão em relação à proibição ou regulação da propaganda infantil, a promotora Carmem Lucia lembra

que a liberdade de expressão prevista na Constituição não tem absolutamente nada a ver com a liberdade de comunicação comercial. “Muitas vezes, nem mesmo o autor de uma peça publicitária concorda com a ideia que está sendo veiculada ou vê o produto que anuncia como a melhor opção no mercado”, diz. “Liberdade de expressão é o que você pensa a respeito de um determinado assunto – publicidade não é isso. A publicidade é encomendada pelo fabricante para aumentar as vendas, somente”. DIVULGAÇÃO/MURILLO MEDINA

de estimulação à imaginação e à criatividade. “Nos brinquedos e desenhos existem os vilões e os mocinhos, que apresentam a noção do certo e do errado. A boneca Barbie®, por exemplo, é vendida em versões como arquiteta, top model, ou seja, ela trabalha com várias profissões diferentes”, expõe o publicitário. “A brincadeira é uma experimentação. Apresentar os brinquedos é como abrir as possibilidades para a criança imaginar e criar.”

Isabella Henriques é diretora de Defesa e Futuro do Instituto Alana desde 2007, quando o tema Criança e Consumo começou a ser discutido na ONG

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notícias CASPERIANAS Workshops, entrega de prêmios e comemorações compõem o calendário do segundo semestre na Faculdade Cásper Líbero GAZETA AM

90 anos do rádio no Brasil e 70 anos da Gazeta AM Esportes, Gazeta FM e da Universidade Metodista de São Paulo, além dos próprios docentes da Cásper. A programação começou cedo: com transmissão ao vivo pela Gazeta AM, teve início às 10h a primeira das três palestras do dia. Foram discutidos os desafios do ensino de radiojornalismo hoje, o futuro da radiodifusão e sua convergência com novas mídias. Antes do início da terceira mesa, foi realizada uma série de homenagens, que cultuaram figuras consagradas da televisão e da rádio brasileira, como Inezita Barroso, Vida Alves, Regiane Ritter, Geraldo Nunes e Reynaldo Tavares. Nos intervalos entre

as palestras, os participantes puderam visitar uma exposição disposta no saguão do teatro com aparelhos radiofônicos antigos, além de cartazes, fotografias, símbolos de emissoras e capas de discos de outras décadas. O estudante Érico Lotufo, do segundo ano de jornalismo, participou do evento com a leitura de um texto introdutório às duas primeiras palestras e considerou a comemoração importante para o debate acerca de um dos veículos de comunicação mais populares do Brasil. “O rádio não está nem perto de morrer, pois ele sempre se adapta às novas mídias que surgem”, frisa Érico.

DIVULGAÇÃO/CECL

No dia 22 de setembro, o aniversário de 90 anos do rádio no Brasil foi devidamente comemorado no Teatro Cásper Líbero. A organização do evento ficou a cargo da rádio Gazeta AM e do Centro de Eventos da fundação. Pedro Vaz, professor, diretor da Gazeta AM e idealizador do projeto, já havia promovido a celebração dos 80 anos, em 2002, e desde 2011 vinha planejando a festa deste ano. “Desta vez, quisemos aproveitar o nome e a localização da faculdade para também trazer professores e especialistas de outras instituições”, conta Pedro, que convidou nomes das rádios Bandeirantes, Estadão ESPN, CBN, Bradesco

Professores da Cásper e convidados discutem o ensino de radiodifusão nos dias de hoje e o futuro do rádio

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PUBLICIDADE E PROPAGANDA

Projeto Cidadão 2012 premia melhores agências criadas por alunos

Neste ano, o Projeto Cidadão premiou as agências fictícias La Peluquería (integrantes acima), DUAL e WE/C

vessem foco social, ambiental ou cultural. A iniciativa, sem fins lucrativos, não permitiu que esses clientes pagassem os alunos pelo trabalho realizado. Porém, criou uma ligação entre eles e o mercado de trabalho, promovendo ainda a possibilidade de futuras contratações. As discipli-

nas de Planejamento, Ética, Criação e Redação Publicitária foram responsáveis pelas orientações dos trabalhos, todos finalizados em junho. As agências vencedoras deste ano foram La Peluquería, DUAL e WE/C enquanto que Ato Um, DP Madre e Ânima receberam menções honrosas.

Curso de Relações Públicas completa 40 anos Na semana de 5 a 9 de novembro, a Coordenadoria de Relações Públicas organizou a Mostra! Comunicação 2012, voltada, este ano, para a comemoração dos 40 anos da criação do curso na Cásper Líbero. Os estudantes do segundo ano apresentaram projetos de comunicação com foco em ONGs, desenvolvidos a partir de agências criadas por eles. O exercício serviu como uma aula prática aos envolvidos e como exemplo para os alunos do primeiro ano, que assistiram às apresentações. O evento contou com palestras de abertura no Teatro Cásper Líbero: a primeira com a presença do jornalista e diretor geral da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial, Paulo Nassar, que discutiu a situação do mercado de Relações Públicas no Brasil. Já na Sala Aloysio Biondi, foram realizadas conferências para os estudantes do terceiro ano.

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RELAÇÕES PÚBLICAS

A premiação do Projeto Cidadão 2012 aconteceu no dia 9 de novembro, na sala Aloysio Biondi. Durante todo o ano, alunos do terceiro ano de Publicidade e Propaganda simularam a criação de agências e precisaram produzir campanhas publicitárias para empresas ou ONGs que ti-

Paulo Nassar, diretor geral da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial abriu o evento com palestra

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JORNALISMO

Semana de Jornalismo movimenta o calendário e evoluir”, ressaltou, destacando a importância dos órgãos laboratoriais dentro das faculdades de jornalismo. No mesmo dia, na rodada da noite, o professor Gilberto Maringoni discutiu, junto com os jornalistas Laurindo Leal Filho e Bia Barbosa, a necessidade de democratização e regulamentação da mídia brasileira. “O problema é que as grandes empresas de comunicação entendem a regulação como censura aos meios de comunicação, o que não é verdade”, explicou Bia Barbosa, ativista do Coletivo Brasil de Comunicação Social Intervozes. Laurindo ressaltou que “informação é poder e quem a detém concentra também o poder”. Por isso, alguns grupos empresariais que controlam um grande número de meios de comunicação, precisam ser contidos por legislações democráticas. Os debates seguiram acalorados com as mesas Copa do Mundo e opinião pública e A presença do negro na mídia brasileira. Os palestrantes Juca Kfouri, Vitor Birner e Celso Unzelte posicionaram-se a respeito da realização da Copa e suas posteriores consequências, mobilizando os alunos, presentes em peso, a participarem da discussão. Igualmente agitada, a outra mesa, mediada pela historiadora e professora Juliana Serzedello, tratou da importância da diversidade racial, gerando discussões a respeito das cotas nas universidades e das referências racistas na obra de Monteir o Lobato. O grande tema do terceiro dia de encontros foi a inovação, seja em ter-

MARIANA OLIVEIRA

Entre os dias 10 e 14 de setembro, profissionais da comunicação, alunos e professores da Cásper Líbero participaram da 20ª Semana de Jornalismo, evento anual realizado em parceria entre o Centro de Eventos e a coordenadoria do curso. Buscando debater as principais questões referentes à prática jornalística nos dias de hoje, foram discutidos, nos períodos da manhã e da noite, temas como o surgimento de novas plataformas de conteúdo, a Copa do Mundo no Brasil e a presença do negro na mídia nacional – além de apresentar aos alunos um novo olhar diante da profissão, pautado atualmente pela cultura digital. Os encontros do primeiro dia abordaram o ensino do jornalismo hoje e a polêmica sobre a regulação da mídia. Com a mediação de Rafael Filippini, aluno do curso de Rádio e TV e membro do Centro Acadêmico Vladmir Herzog (CAVH), a rodada inaugural contou com a participação do professor e vice-diretor da faculdade, Welington Andrade, dos convidados Luis Massonetto e Manuel Carlos Chaparro, além de Melina Sternberg, aluna do curso de Jornalismo e diretora pedagógica do CAVH. Chaparro, jornalista e professor da ECA/USP, acredita que o ensino jornalístico está parado no tempo, pois as universidades se comportam como se ainda estivessem em 1990, ignorando boa parte dos avanços tecnológicos. “Com a tecnologia e as redes sociais, o mundo se transformou, logo, o ensino também deve mudar

integrantes da mesa “A presença do negro na mídia brasileira”

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mos de tecnologia, formatos ou novas maneiras de pensar o jornalismo A primeira mesa, mediada pela professora de Novas Tecnologias da Comunicação, Daniela Ramos, contou com a participação dos jornalistas Letícia Massa e Gustavo Mansur, além do diretor de operações da agência ADBAT/TESLA, Rodrigo Prates. Em meio às discussões a respeito de mobilidade, inventividade e novos formatos de produção de conteúdo, consolidou-se a ideia de que é necessário que o jornalista seja cada vez mais versátil. “O mercado necessita de profissionais polivalentes, que saibam interagir de maneira criativa com outros profissionais, como programadores e designers’’, afirmou Letícia. O jornalismo independente e o empreendedorismo dentro da profissão foram os principais assuntos da discussão moderada por Renato Rovai, professor da faculdade e editor da revista Fórum. Os convidados Natália Viana, Luis Nassif e Rodrigo Savazoni delimitaram as possibilidades existentes dentro de “um novo jornalismo”, guiado por modelos colaborativos. Nos últimos dois dias aconteceram discussões sobre jornalismo autoral, comunicação corporativa e ética na prática do fotojornalismo. As atividades foram encerradas na sexta-feira, 14 de setembro, às 19h30, com a exibição dos telejornais produzidos pelos alunos que participaram do 10º Workshop Internacional de Telejornalismo, fruto de uma parceria entre a Faculdade Cásper Líbero e o consulado dos Estados Unidos.


RÁDIO E TV

Workshops propõem análise de produções culturais Já o segundo workshop criou uma interação entre os estudantes e o professor Dragan Milinkovic Fimon, da University of Audiovisual Arts ESRA, também de Belgrado. Dragan, especialista em longa-metragens, analisou criticamente o modelo com que os filmes são produzidos atualmente e procurou estimular nos estudantes suas capacidades

de discernir, apreender e examinar os conteúdos de mídia a que foram expostos. A partir daí, eles puderam construir suas próprias impressões sem a interferência midiática dos filmes ou de qualquer outro meio a que têm acesso. O exercício serviu como aula de crítica à postura indiferente que normalmente se tem frente aos meios de comunicação.

DIVULGAÇÃO/CECL

Nos dias 24 e 26 de novembro, a faculdade organizou para alunos e exalunos dois workshops sobre análise de produção cultural: Media Makeup e Looking at Movies. O primeiro trouxe a professora Lydia Trisovic, da Academy of Fine Arts de Belgrado, Sérvia, para conversar sobre o uso que o teatro, o cinema e outros meios visuais fazem da maquiagem.

Trabalhos de mestrandos de todo o país são apresentados em evento Buscando enriquecer o debate acadêmico e incentivar a produção de ideias, o Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Faculdade Cásper Líbero organizou, no dia 23 de novembro, o 8° Interprogramas de Mestrado em Comunicação. Voltado a professores, alunos e exalunos da faculdade – mas também ao público em geral –, o evento propiciou a apresentação, em diferentes eixos temáticos, de trabalhos inéditos produzidos por mestrandos de todo o Brasil. Assuntos que atingem o universo da tecnologia, mídia e sociedade estiveram em pauta no encontro. Além de

incitar a discussão em torno de assuntos relevantes ao campo da comunicação contemporânea, o objetivo do Interprogramas foi também integrar professores, alunos da faculdade e mestrandos dos mais diversos cantos do país, agregando conhecimento e produzindo discussões de qualidade. A conferência de abertura, realizada às 14h, também ficou a cargo do escritor, professor, produtor e diretor de cinema Dragan Milinkovic Fimon, com a palestra Teaching in a media world – building a tool belt (Ensinar num mundo midiático: a construção de novas ferramentas).

DIVULGAÇÃO/CECL

PÓS-GRADUAÇÃO

Dragan Milinkovic Fimon, especialista em longa-metragens trabalhou a crítica de cinema com alunos. Acima, abertura do 8º Interprogramas

Trabalhos de mestrado de estudantes do Brasil inteiro são apresentados

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CRÔNICA

Pela leitura

ANALÓGICA Por Fábio Fujita

N

ão tenho tablet. E embora tenha a consciência de que um dia eu vá ter, prefiro adiar a experiência. Não sou daqueles que evocam o cheiro dos livros como argumento de resistência ao modelo de leitura digital – tenho rinite e só arrisco eventuais fungadas em exemplares tinindo de novos. Diferentemente dos puristas, nem sou o maior fã de livros de segunda mão adquiridos em sebos. Claro que os frequento – os livros usados, os sebos. E não sou insensível para não ficar curioso com dedicatórias alheias verificadas em páginas mofadas, ou com passagens grifadas a lápis, enfim, com todos os pequenos registros próprios dos livros que chegaram a mim depois de passar por outras mãos. Mas, pessoalmente, nunca leio fazendo marcação alguma, rabiscando canto de página, nada disso. Leio, aliás, tentando preservar ao máximo a integridade física da obra, de modo a chegar ao final da leitura como se aquele exemplar continuasse virgem. A gente cuida do que a gente gosta. Eu gosto dos livros, e mantê-los limpos e intactos é a minha forma de amá-los. Mas voltando ao tablet, ou ao anacronismo de não tê-lo, a questão é que tenho dificuldades para ler na tela. É uma plataforma brilhante demais para a leitura – e brilhante, diga-se, no sentido literal, e não inteligente, ainda que também possa ser. Questão de hábito: aprendi a ler no papel. Leitores forjados na geração 2000 talvez tenham menos restrições a esses formatos pós-modernos. Não sei. O problema da tela – do tablet, do PC – é a natureza multiuso implícita em seu funcionamento. Ler na tela um pdf ou um docx nunca é simplesmente ler um pdf ou um docx: é conciliar isso com uma janelinha do MSN pulando de forma histérica no canto do monitor (como ignorá-la?); com o e-mail daquela pessoa que acabou de baixar na caixa de entrada; com a frase genial que lhe ocorreu para desovar no Twitter e que não pode ficar para depois sob 66

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o risco de esquecimento. Aderir ao tablet não é, portanto, adaptar-se a uma nova forma de ler, mas submeter-se a uma teia de relações digitais cada vez mais insuportável. O livro sempre foi, ao menos para mim, uma ferramenta social. Quando perdi meu pai, uma semiconhecida me surpreendeu prestando sua solidariedade ao me presentear com um Nick Hornby. Guardarei para sempre (o gesto e o Hornby). Na minha fase leitora mais produtiva, quando a leitura aliviava (um pouco) meu exílio dekassegui antes de entrar na faculdade, tive baixas consideráveis no meu acervo ao emprestar livros a quem não devia. Perdi, na mesma tacada, Cem Anos de Solidão, do García Márquez, e A Casa do Poeta Trágico, do Cony, obras que tanto maravilharam meu universo imaginativo. Não pedi de volta a quem emprestei por considerar que seria deselegante (embora a apropriação indevida seja mais, acho). Mas aprendi: para emprestar um livro a alguém, não basta que a pessoa seja sua amiga, ou que ela pareça gostar de ler: é preciso conhecer seu comportamento leitor. As que conheceram o meu e quiseram socializar suas paixões literárias, me permitiram ser feliz com O Encontro Marcado, do Sabino; com Espere a Primavera, Bandini, do Fante; com Kitchen, da Banana Yoshimoto. Tantos...Ter em mãos um livro do seu repertório afetivo e contemplar sua capa, ou ler uma passagem a esmo, sempre irá remeter a uma fase da vida, a uma pessoa, a alguma referência invariavelmente pulsante. Só que, na era dos tablets, kindles e ipads, tudo isso chega ao fim: a irmandade leitora dos livros emprestados, a delícia de um livro ganho de presente, as pescoçadas na leitura alheia do companheiro de metrô. Sou, por convicção, um leitor analógico. Desconfio de quem aperta Power para ler. Fábio Fujita é jornalista formado pela Cásper Líbero em 2002



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