Revista Cásper #9

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´ casper Nº 9 – Maio de 2013

Teatro a indústria dos musicais

Cinema

a produção autoral brasileira

Rádio Gazeta 70 anos de tradição

Alberto Manguel As possibilidades da linguagem e da literatura nos dias de hoje



´ casper Fundação Cásper Líbero Presidente Paulo Camarda Superintende Geral Sérgio Felipe dos Santos

Faculdade Cásper Líbero Diretora Tereza Cristina Vitali Vice-Diretor Welington Andrade

Revista Cásper Núcleo Editorial de Publicações Coordenador de Ensino de Jornalismo Daniela Osvald Ramos Editor-chefe Carlos Costa Editora Amanda Massuela Conselho Editorial Adalton Diniz, Carlos Costa, Daniela Osvald Ramos, Elisa Marconi, Walter Freoa, Sergio Andreucci e Welington Andrade Reportagem Amanda Massuela, Leandro Saioneti, Luíza Fazio, Mariana Marinho, Patrícia Homsi e Victor Bonini Editora de Arte e Fotografia Rafaela Malvezi Diagramação Luíza Fazio, Rafaela Malvezi e Thaís Helena Reis Colaboradores Gilberto Maringoni, José Geraldo Oliveira, José Medeiros da Silva, Luísa Pécora, Mariana Oliveira e Simonetta Persichetti Redação Avenida Paulista, 900 — 5º andar 01310-940 — São Paulo — SP Tel.: (11) 3170-5874 E-mail: revistacasper@casperlibero.edu.br Site: http://www.casperlibero.edu.br Capa José Geraldo Oliveira Correção Na página 13 da última edição, o nome correto da atriz ao lado de Lígia Cortez é Ludmila Dayer

Arte e Comunicação Esta nona edição da revista Cásper que chega a suas mãos, caro leitor, analisa e discute a natureza de três manifestações artísticas – o cinema, o teatro e a literatura – e a relação que elas estabelecem com o grande público por intermédio dos meios de comunicação. Os personagens retratados nas matérias e nas entrevistas dão depoimentos muito significativos a respeito de como o artista e o intelectual lidam com o amplo universo da Comunicação. A sétima arte é abordada por diversos ângulos. A matéria “De Nós para Quem?” mostra que muitos filmes não se restringem ao circuito comercial. Há muitas produções alternativas que circulam além do eixo Rio–São Paulo, encontrando, porém, dificuldades para chegar ao grande público. A reportagem “Além dos Rótulos” traz uma entrevista com o cineasta Kleber Mendonça Filho, internacionalmente aclamado pela direção de O Som Ao Redor. Na conversa, o diretor fala sobre o processo de produção da obra, a relação com a crítica e o cinema de Pernambuco, sua terra natal. A empresária francesa Laure Bacqué, sócia do Reserva Cultural, é a perfilada da edição. O mercado dos grandes espetáculos musicais parece ter se firmado no Brasil, sobretudo graças à atuação dos diretores e empresários Charles Möeller e Claudio Botelho, responsáveis por montagens de grande sucesso como O Mágico de Oz e O Despertar da Primavera. A matéria “Um palco para diversão?” discute o crescimento desse gênero teatral e os problemas que ele enfrenta, como os critérios para a concessão de meia-entrada e a formação do público. A literatura é discutida em uma conversa com o intelectual canadense Alberto Manguel, que nasceu na Argentina e hoje reside na pequena cidade de Mondion, no interior da França. Especialista em leitura, com inúmeros livros publicados, ele reflete sobre os limites e as possibilidades da literatura nos tempos contemporâneos, e indica autores a serem descobertos, como o português Eduardo Lourenço e a canadense Anne Carson. A reportagem “Vozes da Tradição” celebra os 70 anos da Rádio Gazeta AM, contados pelas histórias de personagens como Leonilde Provenzano, cantora lírica do veículo nos anos 1950, o pesquisador e professor Irineu Guerrini e Regiane Ritter, atual locutora da emissora. O texto “Os Extremos que o Rádio Liga” narra a história de José Medeiros da Silva, um educador nascido no interior do Rio Grande do Norte que foi ao outro lado do mundo para trabalhar no departamento de português da Rádio China. A professora Simonetta Persichetti organizou um portifólio que exibe imagens das fotógrafas Paula Cinquetti, Luiza Sigulem e Hélia Scheppa. Nascidas em diferentes regiões do país – respectivamente, Brasília, São Paulo e Recife –, elas constroem narrativas únicas, repletas de sensibilidade. Há ainda o fenômeno dos blogs de moda – “Moda Online à Venda” –; a relação da nova classe média com a televisão – “A Menina dos Olhos da TV” –; e a produção cultural da periferia. As resenhas, a crônica e as notícias do mundo casperiano completam este número. Até nosso próximo encontro. Boa leitura!

Tereza Cristina Vitali Diretora

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Sumário

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20 6 De nós para quem?

O cinema autoral brasileiro vive boa fase, mas sofre para consolidar seu público e garantir espaço

14 Kleber Mendonça Filho: além dos rótulos O cineasta pernambucano conta o processo criativo de O Som Ao Redor e atenta para um novo cenário na produção nacional

18 Cidadã francesa, identidade paulistana

Conheça a trajetória da francesa Laure Bacqué, uma das sócias do Reserva Cultural

20 Um palco para a diversão?

Os musicais movimentam milhares e atraem grande público. Mas seria esta uma arte meramente industrial?

24 Alberto Manguel

O escritor canadense fala sobre o ato de ler, aponta as debilidades da linguagem e afirma não ser um homem de teorias

31 Vozes da tradição

A história da Rádio Gazeta, que completou 70 anos, contada por seus personagens

36 Os extremos que o rádio liga José Medeiros da Silva, brasileiro que trabalha na Rádio China, num depoimento sobre a função social do rádio

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31 Pelos olhos delas 40

O trabalho de três fotógrafas de cantos distintos do Brasil

Moda à venda online 48

O fenômeno dos blogs de moda e suas it girls sob a ótica da publicidade

A menina dos olhos da TV 52 Como o aumento da chamada “nova classe média” influencia a programação da TV brasileira

A periferia no centro 56

A produção cultural que floresce nas periferias desmistifica a ideia de que apenas os centros urbanos ditam a cultura nacional

Resenha 62

A Revista no Brasil no Século XIX - a história da formação das publicações, do leitor e da identidade do brasileiro, por Gilberto Maringoni

Notícias Casperianas 64

Os principais eventos da Faculdade no início do ano letivo

Crônica 66

A cidade é sua, por Luísa Pécora

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CINEMA

De nós para

quem? Nem só de blockbusters vive o cinema brasileiro. Por todo o país, há uma ampla e crescente produção alternativa que luta para encontrar o seu espaço e cultivar público Por Amanda Massuela e Luíza Fazio

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Emmanuelle Bernard


PAPARAZZI

Emmanuelle Bernard

Em Sudoeste, de Eduardo Nunes, há um cuidado estético tanto na fotografia, quanto no aspecto granulado da imagem

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or trás dos galhos secos que preenchem o primeiro plano, uma carroça transita lentamente por um pequeno caminho de terra. A silhueta se aproxima fora de foco e, mesmo depois que desaparece de enquadramento, o pano de fundo se mantém o mesmo por alguns segundos. Um ambiente deserto e inóspito. As cenas, filmadas em preto e branco, prolongam-se em tom de fábula, onde tudo parece tomar o seu devido tempo. Não há pressa em captar a essência do vilarejo e de seus habitantes. O longa metragem Sudoeste, do cineasta carioca Eduardo Nunes, faz parte de uma safra cada vez mais relevante dentro da produção cinematográfica brasileira: o chamado cinema autoral. “O filme autoral é aquele em que o diretor se expressa de maneira pessoal, não convencional. Se não for uma narrativa visual impessoal, nem

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mera imitação de outros estilos, o diretor pode ser considerado um autor, alguém que se expressa de maneira única”, explica José Geraldo Couto, crítico de cinema. Na obra de Eduardo Nunes, lançada em 2012, a trama se desenrola a partir de um único dia na vida de Clarice, interpretada por quatro atrizes diferentes. Em meio a um apurado refinamento estético, o tempo se apresenta como o grande protagonista – numa aproximação com o cinema do russo Andrei Tarkovsky –, tornando o enredo tanto mais poético quanto enigmático. Tais traços, segundo José Geraldo, vêm da vontade de expressar alguma verdade pessoal. “O cinema, em todo o planeta, está abarrotado de filmes sem alma, sem identidade. Mas no Brasil, enxergo uma porção de jovens realizadores buscando se expressar de modo próprio”, afirma.

Ainda que haja certa abundância na produção – em termos de número e qualidade –, as dificuldades impostas a quem deseja fazer cinema autoral e independente no Brasil são muitas. Abrangem, principalmente, a distribuição desses filmes, que sofrem para alcançar as salas de cinema. Eduardo Nunes, diretor de Sudoeste, acredita que a diversidade na produção é algo positivo, pois a cinematografia de um país deve ser composta por diferentes formas de expressão. “Os filmes ‘mais populares’ têm um importante papel na formação de público, bem como na manutenção de um mercado de trabalho. No entanto, são os projetos autorais que criam identidade para o nosso cinema e representam o país no exterior, além de apontar para novas possibilidades de linguagem”, sustenta. “A situação fica óbvia quando compreendemos os primeiros como


entretenimento e os segundos como arte; e a necessidade de ambos para o ser humano.” O problema, de acordo com Nunes, é que há uma enorme discrepância nos investimentos de recursos públicos. “As produções mais comerciais são privilegiadas em todas as instâncias: da produção à distribuição, quebrando o equilíbrio necessário.” Para José Geraldo Couto, “o mercado anda muito perverso, ocupado em sua quase totalidade pelos blockbusters, sobretudo norte-americanos, mas também brasileiros. Os filmes de baixo orçamento têm dificuldade em encontrar lugar no circuito”.

seu primeiro longa, e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), em codireção com Karim Aïnouz. Selecionado para diversas mostras internacionais e ganhador do prêmio de Melhor Direção pelo Festival do Rio de 2009, Gomes buscou outra inspiração para sua obra mais recente, Era uma Vez Eu, Verônica (2012). “Eu queria realizar um filme existencialista tropical. Verônica é luminosa, mas tem suas questões. A partir disso escrevi o roteiro.” O longa, vencedor de sete prêmios do Festival de Brasília, narra a história da médica recém-formada na capital pernambucana, uma jo-

vem adulta que encarna as incertezas do ser contemporâneo, vivendo suas paixões e dúvidas de maneira libertária. “Meus três filmes foram viabilizados a partir de editais de fomento ao cinema. As salas dão preferência a grandes produções e quando exibem longas como o meu, eles não ficam muito tempo em cartaz. Por isso a bilheteria não cobre todos os custos.” José Geraldo Couto afirma que Pernambuco realmente se tornou um polo importante no cinema brasileiro devido à vitalidade cultural da região. No entanto, o crítico não acredita que haja relação direta entre o cinema de autor e a expansão da

Figuras Nacionais

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O bom momento da produção nacional se reflete na sua disposição geográfica, que apesar das dificuldades de distribuição, começa a se destacar fora do eixo Rio–São Paulo. “Há excelentes realizadores de outros polos se firmando”, conta Alfredo Manevy, ex-secretário executivo e atual colaborador do Ministério da Cultura. “No passado, até havia alguns ciclos, mas esses realizadores estavam condenados a vir para os centros. Hoje, eles podem continuar trabalhando em seus estados, com seus vínculos culturais preservados.” Os nomes que se destacam atualmente vêm de muitos cantos do país: Marcos Jorge, paranaense, estabeleceu-se com o filme Estômago (2007). Do Ceará, mas reunindo diversas influências dos países em que estudou, Karim Aïnouz expõe sua estética particular com O Céu de Suely (2006). O estado de Pernambuco é um polo cultural a parte, terra natal de boa porção desses cineastas, como Cláudio Assis – que explora o lado visceral do ser humano em Febre do Rato (2011) – e Kleber Mendonça Filho, diretor do internacionalmente aclamado O Som Ao Redor (2012). Marcelo Gomes é outro pernambucano de destaque. Apesar da formação cosmopolita, ambienta seus filmes em locais áridos e insere seus personagens em transformadoras travessias, como é o caso das obras Cinema, Aspirinas e Urubus (2005),

Para Eduardo Nunes, o problema é a diferença na aplicação dos recursos

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“A quantidade de obras produzidas é altamente variada, o que é bom. Estamos num momento maravilhoso do cinema nacional, mas não há muito know-how na distribuição de certos títulos” produção fora do eixo Rio–São Paulo. “Não gosto da ideia de mistificar a expressão ‘cinema autoral’, como se fosse uma categoria cinematográfica a parte. Em todo lugar há cinema feito com personalidade e cinema feito no piloto automático, não apenas no eixo Rio–SP.”

Incentivos à produção Foi diante da consciência do papel decisivo das políticas públicas que Alfredo Manevy, doutor em cinema pela USP, passou de cineasta a gestor cultural. “Num dado momento, ficou muito claro que se não houvesse uma política cultural à altura da arte brasileira, ela não teria condições, público, nem meios para se desenvolver completamente.” Segundo ele, a evolução de nosso mercado cultural necessita de incentivos governamentais, privados e de formação de mão-de-obra. Hoje se investe mais em projetos audiovisuais do que na época da Embrafilme, empresa estatal criada em 1969 e extinta em 1990 responsável por produzir e distribuir filmes nacionais. Manevy debate a Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, baseada no princípio de isenção fiscal. “Vinte anos depois de ser aprovada [foi criada no fim de 1991], houve um balanço para mostrar seus resultados. Os números são terríveis: 3% dos proponentes captaram mais de 50% da renda disponível e, de 5.500 cidades participantes, Rio e São Paulo captaram 80% de todo o dinheiro do Brasil.”

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A reavaliação dessas leis também é desejo do cineasta Eduardo Nunes, que, penalizado pelas incoerências dos editais, levou dez anos para produzir Sudoeste. “A primeira versão do roteiro ficou pronta em 1999 e durante muitos anos tentei a captação através dos concursos do BNDES, Petrobras e Ministério da Cultura. Mas o projeto não conseguia recursos. O primeiro prêmio que recebemos para a realização do filme foi da Fundação Hubert Bals, do Festival de Rotterdam.” Para combater essa concentração de recursos no sudeste, em 2010 o Governo Lula apresentou um projeto de reforma da Lei Rouanet, batizado de Pró-cultura, ainda em processo de aprovação. Além disso, existe um número consistente de editais federais, estaduais e municipais, e outras leis de incentivo, como a Lei do Audiovisual. Ainda que seja por meios tortuosos, o dinheiro chega até o produtor. O real desafio está em fazer esses trabalhos chegarem ao público.

Meios alternativos Os cineastas brasileiros têm produzido e finalizado, em média, um total de 100 a 130 títulos por ano, de acordo com o jornalista e crítico Christian Petermann. Não fossem as mal estruturadas políticas de distribuição da cinematografia, este número poderia apontar uma indústria capaz de caminhar com as próprias pernas, de maneira saudável e autogerida. “A quantidade de obras produzidas é altamente variada, o que é bom. Es-

tamos num momento maravilhoso do cinema em termos de produção, o problema é que não há muito knowhow na distribuição de certos títulos”, analisa Petermann. Excluída do circuito comercial de exibições, a produção autoral busca alcançar seu público por vias alternativas e acaba restrita a salas menores, em pequenos cinemas especializados. “Esses filmes são exibidos em duas salas, em poucos horários. Não dá nem tempo de ser visto e compreendido. Quando alguém procura, ele já saiu de cartaz”, comenta Silvia Cruz, proprietária da Vitrine Filmes, empresa especializada na distribuição dessas produções. Hoje, a estratégia para cultivar público, segundo


DIVULGAÇÃO

Era uma vez eu, Verônica é a produção mais recente do pernambucano Marcelo Gomes

ela, é mantê-los em poucas salas por mais tempo – foi assim no caso de Sudoeste, de Eduardo Nunes. Silvia acrescenta que, mesmo inserida nas salas, a produção brasileira concorre com um amplo catálogo de filmes estrangeiros, dividindo ainda mais os espectadores e comprometendo a bilheteria. “Hoje em dia estreiam 8 filmes por semana, de todas as nacionalidades, buscando o mesmo espaço. É uma concorrência, digamos que desleal, pois não é fácil competir com Woody Allen e Almodóvar.” Nesse panorama de luta por espaço e público, a trajetória do cinema de autor em festivais nacionais e estrangeiros se torna tão importante quanto sua carreira em salas. Ninho

Moraes, diretor do documentário Futuro do Pretérito: Tropicalismo Now! e professor no curso de Rádio e TV da Faculdade Cásper Líbero, afirma que um longa se paga pela sua difusão, e não tanto pela bilheteria. “Meu filme foi exibido no Festival de Montevidéu e foi muito bem aceito. É uma forma de alastrar a nossa cultura”, observa. Em alguns festivais, os vencedores pelo júri oficial ganham prêmios em dinheiro – no Festival de Brasília, por exemplo, o melhor longa-metragem leva a quantia de 250 mil reais. Segundo Silvia Cruz, “há mais chances de fazer dinheiro em festivais do que na exibição comercial em salas de cinema”. Além do lucro, os festivais po-

dem fornecer outros ganhos, como parcerias para segundas produções ou contratos com distribuidoras, como comenta Raquel Hallak, idealizadora da Mostra de Tiradentes. “O público que frequenta festivais é muito aberto para consumir o novo e há muitos caças-talento. A Globo, por exemplo, sempre vai em busca de atores e diretores.” Os festivais também permitem que os filmes circulem em âmbito internacional. Desde 2009, Raquel convida curadores dos festivais de Cannes e Amsterdam para conhecer o cinema do Brasil. Autora da ousada ideia de realizar uma mostra de cinema em uma cidadezinha de 7 mil habitantes, ela complementa que Maio de 2013 | Cásper

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Leo Lara/Acervo Universo Produção

PAPARAZZI

Mesmo em uma cidade de 7 mil habitantes, a Mostra de Tiradentes é bem sucedida a cada ano

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tais eventos permitem que o filme tenha uma carreira mínima, mesmo sobrevivendo apenas nesse circuito. “Os festivais são muito importantes como espaço alternativo de exibição num país em que apenas 9% dos municípios têm salas de cinema.”

Novos ares ao cinema nacional Uma exceção nesse núcleo subterrâneo do cinema de autor é o pernambucano Kleber Mendonça Filho, que reuniu mais de 100 mil espectadores com o seu O Som Ao Redor – recorde para um tipo de filme que não costuma ultrapassar uma audiência de 10 mil pessoas. O cineasta e crítico de cinema debutou seu primeiro longa ano passado e logo garantiu exibições nos festivais de Nova York, Sydney, Edimburgo, Munique e Seul – além de participação em mais de 50 mostras de cinema no Brasil e no exterior. Foram 14 prêmios nacionais e estrangeiros. “O diferencial do filme é o fato de ter captado com sensibilidade uma questão central no Brasil contemporâneo, que é a emergência das camadas populares e a perplexidade que isso causa numa

sociedade de forte herança escravista e patriarcal. Tudo com uma narrativa sutil, refinada e, ao mesmo tempo, acessível a qualquer espectador”, comenta José Geraldo Couto. O personagem principal é a rua. O asfalto, rodeado por casas e prédios, tem um único dono, Seu Francisco (Waldemar José Solha), numa alusão aos latifundiários dos tempos passados. Mas a área passa a sofrer mudanças em sua lógica quando ali se instala um grupo de seguranças particulares, liderado por Clodoaldo (Irandhir Santos). Os residentes têm suas histórias contadas de maneira íntima, como se a câmera de Kleber invadisse as quatro paredes e revelasse o que há por trás da classe média recifense. A trajetória de exibição do filme se deu de maneira inversa à convencional: estreou em 13 salas e, na semana seguinte, passou a 18. Em relação à captação de recursos, Kleber afirma não ter enfrentado dificuldades. “O Brasil é relativamente generoso com incentivo à produção artística. Eu fiz o que qualquer cineasta faz, que é começar a colocar o projeto do filme em editais. Ganhou em todos.” (Leia

Nossos melhores filmes autorais, por José Geraldo Couto Limite (1930), de Mario Peixoto. Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos. O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla. Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. A Lira do Delírio (1978), de Walter Lima Jr. O Invasor (2002), de Beto Brant. Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci. Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho.

a entrevista completa na página 20). Por fim, do custo de 1,8 milhão de reais, 550 mil vieram do governo. Apesar do sucesso, O Som Ao Redor parece habitar poucos círculos cinematográficos do Brasil e do mundo. Mas há esforços para introduzir esse tipo de produção no cotidiano popular, como ocorreu no dia 24 de março, quando Kleber participou do programa Esquenta!, da Rede Globo. A atração de domingo é apresentada por Regina Cazé e reúne artistas da cultura erudita e popular brasileira. Ao lado de Kleber, o colunista Francisco Bosco e o cantor Caetano Veloso estiveram presentes. Eduardo Nunes acredita que a discussão acerca da segmentação do público é secundária, uma vez que “qualquer um pode apreciar um filme autoral; basta sermos educados para isso – e me refiro à educação artística que estimule a sensibilidade e a compreensão da vida através da arte”. Já Silvia Cruz, da Vitrine Filmes, garante que “a audiência brasileira não está acostumada a esse tipo de filme, pois cresceu frente a outro tipo de dramaturgia e não tem muito o hábito de ir ao cinema”. O Brasil caminha cada vez mais para a expansão do alcance do cinema de autor. Exemplo disso é a criação da Lei da TV Paga, fruto de uma lógica simples que promete transformar a produção audiovisual do país. Aprovada no Congresso Nacional em 2011, ela estabelece uma cota de produção brasileira a ser veiculada pelos pacotes de TV por assinatura: dentro da grade, deve haver espaço para canais brasileiros e produções independentes – inclusive no horário nobre. Para Alfredo Manevy, esta é uma “lei modernizadora que irá profissionalizar o mercado, exigir roteiristas qualificados, inovação de gêneros, criação de novos formatos e relação com outros públicos”. Manevy é enfático: “Estamos vivendo um novo cenário cultural. Que filmes como o de Kleber [Mendonça Filho] possam encontrar mais espaço, público, oportunidade de circular e que realizadores como ele tenham mais espaço para desenvolver suas trajetórias”. Maio de 2013 | Cásper

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ENTREVISTA PAPARAZZI

além dos

rótulos Kleber Mendonça Filho afirma não se importar com estereótipos e garante: a nova geração de diretores está pronta para explorar um novo filão cinematográfico Por Patrícia Homsi Imagens Divulgação Vitrine Filmes

D

epois do sucesso de O Som Ao Redor e dos polêmicos depoimentos sobre o cinema comercial nacional, imagina-se que Kleber Mendonça Filho seja um homem de difícil acesso. Porém, quem telefona para a produtora Cinemascópio, no Recife, responsável pelas produções do cineasta, se surpreende com a confirmação ao perguntar por ele: “Sou eu mesmo”. O pernambucano de 44 anos sempre viajou pelos caminhos do cinema. Mesmo antes do período em que morou na Inglaterra com os pais – entre 13 e 18 anos, quando assistia a filmes do mundo todo pela televisão britânica –, foi aficionado espectador. Formado em Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFP) e trabalhando como crítico no Jornal do Commercio, Kleber começou a experimentar o fazer cinematográfico. “Às vezes eu tinha uma boa ideia que queria desenvolver em um tempo livre, então fazia um curta. Passava um tempo nessa montagem, depois ia trabalhar no áudio, lançava o filme num festival e viajava com ele”, conta. Kleber dirigiu

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oito curta-metragens, além do filme brasileiro mais comentado internacionalmente em 2012, O Som Ao Redor. Antes mesmo de estrear, o longa foi incluído na lista de melhores filmes de 2012 do The New York Times, assinada pelo crítico A. O. Scott – ao lado de produções estrangeiras como Amor, Lincoln e O Mestre. Após o sucesso, Kleber mostrou sua insatisfação com o cinema brasileiro em entrevista à Folha de S.Paulo. “Minha tese é a seguinte: se meu vizinho lançar o vídeo do churrasco dele no esquema da Globo Filmes, conseguirá 200 mil espectadores no primeiro final de semana.” O comentário incomodou o diretor executivo da distribuidora, Cadu Rodrigues, que propôs a Kleber o desafio de mover 200 mil espectadores, com o apoio da Globo, a uma nova produção de sua autoria: “Se não fizer os 200 mil, assume publicamente que, como diretor, ele talvez seja um bom crítico”. Na entrevista a seguir, Kleber fala sobre o processo criativo de O Som Ao Redor, sua relação com a crítica e os caminhos do cinema brasileiro.


Kleber afirma: O Som Ao Redor é uma obra que rejeita qualquer tipo de rótulo. “Comédia, documentário, terror: o filme tem todos esses elementos numa única cena”

O Som Ao Redor parece ser um filme construído a partir de sensações, principalmente auditivas, como o título sugere. Às vezes se sente até uma irritabilidade junto com as personagens. Por que você escolheu apresentar a história por meio desse retrato sonoro? O Brasil é um país muito barulhento. E digo isso porque viajo muito. Morei na Inglaterra, passo muito tempo na França, pois minha mulher é francesa. Somos barulhentos de uma maneira maluca, alegre, sem noção, mal educada, tudo isso junto, dependendo da hora do dia. Achei que seria dramático retratar esses traços num filme e mostrar como isso pode minar nossa paciência. Num sábado à tarde em que você deveria estar tranquilo, vendo um filme, sem fazer nada, aquele barulho começa a te irritar. Achei interessante que Bia [personagem do filme] tivesse isso com o cachorro que não para de latir. Só ela sintoniza o animal. As crianças e o marido não se importam. Ela está naquela frequência e fica muito irritada.

Você acha que o brasileiro está preparado para este tipo de experiência no cinema? Iniciamos a carreira em 13 salas e estamos chegando a 100 mil espectadores. Eu diria que há um público muito forte que está preparado para esse tipo de cinema e as pessoas continuam descobrindo O Som Ao Redor. No dia 19 de março, em Natal, Rio Grande do Norte, houve uma sala de 240 pessoas completamente lotada. Eu não me preocupo muito se o brasileiro está ou não preparado, mas as pessoas estão sempre prontas para ver um bom filme. Não significa que ele será uma unanimidade absoluta no universo, porque isso não existe. Acho que o que importa é a média geral de aceitação – e, no caso de O Som Ao Redor, ela tem sido bem alta. Até agora, como é sua análise da percepção do grande público com relação a O Som Ao Redor? Fica extremamente confuso, o que para mim, como realizador, é excelente. Esta é uma obra que recusa rótuMaio de 2013 | Cásper

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PAPARAZZI

“O cinema pernambucano é virtual. Ele é os filmes. Não tem um estúdio, um andar de pós-produção, uma estrutura física em que alguém investiu.Tudo é feito no quarto da casa do idealizador” los num momento em que o mercado corre na direção contrária, pois procura maneiras de definir um produto para que ele seja vendido com mais facilidade: comédia romântica, documentário, filme de terror. O Som Ao Redor tem muitos desses elementos na mesma cena. Em termos de mercado, isso gera uma confusão, mas para quem realmente gosta de cinema, pode ser o instrumento de uma grande descoberta. Quanto ao processo prático, quais foram as principais dificuldades de produção e distribuição enfrentados? É algo muito complexo. O Som Ao Redor foi muito bem tratado, eu diria, porque veio acumulando uma repercussão grande. Quando chegou o momento de ser lançado no cinema, o filme já estava aquecido, havia uma visibilidade muito grande – algo que não é comum, pois não é paga. A divulgação não veio por publicidade, mas por meio de jornais e revistas internacionais. Quando isso alcançou o Brasil, começou a ser duplicado, o que fez com que existisse uma curiosidade de importantes salas de cinema. Ao mesmo tempo, é impossível negar que o próprio mercado, antes de ver o filme, já tinha designado um papel a ele, que é o de filme de arte. Eu não fiz um filme de arte, fiz um filme. Não me preocupo com esses rótulos. Tanto não fiz um filme desesperadamente comercial, para agradar, como não fiz um filme de arte. Eu nem sei o que é isso. Mas uma vez pronto, ele foi obviamente tratado como um filme alternativo, e dentro desse circuito

O filme destaca a especulação imobiliária que assola Recife

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ele é um sucesso. Tudo é meio confuso, principalmente porque O Som Ao Redor não parece aceitar o papel que foi imposto a ele. Isso me chamou muita atenção nesse processo de lançamento. A produção autoral parece romper um pouco com o tradicional eixo Rio–São Paulo, explorando outras regiões do país. A que atribui isso? Acho que houve uma liberação geral por parte da tecnologia. Ela emperrava muito a vida de quem queria fazer cinema em outras regiões até os anos 90. Depois do digital, está tudo liberado. Isso é sensacional. É curioso porque a arte precisa de dinheiro, mas também não é tão mesquinha assim. Ela pode existir com pouco, e dependendo do sacrifício, sem dinheiro algum. A Cinemascópio, por exemplo, é basicamente uma produtora pequena criada para desenvolver meus filmes. Três pessoas trabalham aqui. O cinema pernambucano é virtual. Ele é os filmes. Não tem um estúdio, um andar de pós-produção, uma estrutura física em que alguém investiu. Tudo é feito no quarto da casa do idealizador. Dentro da produção brasileira, como você analisa esse momento? O cinema de autor anda bem melhor do que o cinema comercial que, de maneira geral, está ruim, pois tenta agradar e conquistar a qualquer custo. Ficar bolando artimanhas de sedução é algo pateta e é isso que percebo


O Som Ao Redor retrata os clichês culturais da classe média. “É uma representação honesta de como são as coisas”

da produção comercial. Mas há toda uma geração – e talvez eu faça parte dela – que está assumindo, tomando as rédeas do cinema. Isso me parece muito saudável. Vejo com bons olhos a produção nos próximos anos. Aqui em Pernambuco há muita gente séria fazendo filmes que são pessoais, que se preocupam apenas em ser filmes. Muitos desses filmes autorais têm um grande reconhecimento lá fora e são pouco valorizados no Brasil. Nesse sentido, O Som Ao Redor foi uma exceção. O que é necessário para que um filme se torne um sucesso aqui? Cada filme é um filme. Você pode ter uma produção horrível que é selecionada para Cannes ou ter um filme que foi lançado numa sala de estar com 18 amigos, e eles irão falar do impacto que foi vê-lo. Há todo o tipo de filme. Alguns são mortos, simplesmente nada irá acontecer com eles, não há uma receita. Comercial, de autor, não importa. Cada um tem uma história. O mercado não está interessado em nada que não seja comercial, então você já começa no prejuízo. Achei que um filme meu, O Crítico, que é um documentário sobre tensões entre crítica e cineasta, poderia ser descoberto por quem gosta de cinema, mas era estranho porque ele parecia ter uma energia meio morta. As pessoas liam a sinopse e não queriam assistir. O Som Ao Redor é o completo oposto. O filme sai correndo e eu corro atrás, tentando pará-lo. Ele tem uma ação muito forte na cabeça das pessoas, gera empolgação, e essa é a natureza dele. Eu me sinto muito sortudo de estar à frente disso, e também muito impressionado. Numa palestra recente, você disse que O Som Ao Redor foi, por sorte, uma das preferências do crítico An-

thony O. Scott, do The New York TImes Você acredita que a crítica é mesmo uma questão de preferências pessoais e sorte? Ela deve ser lida dessa forma? Para mim, é tudo muito orgânico. Há uns cinco anos, fui contrariado a uma cabine [de imprensa] ver O Virgem de Quarenta Anos, preconceito puro. E adorei o filme. Fui para não gostar e acabei gostando. Isso é sorte? Não sei. Talvez seja sorte minha. A. O. Scott poderia ter detestado meu filme. Quando você detesta, não tem como lutar contra isso. A crítica tem mais a ver com a formação de cada um, o perfil psicológico, os gostos. O filme talvez lembre um momento da vida, não é matemático. Sorte é meio simplista. Quando eu digo que foi sorte, as pessoas dizem “Mas você fez um bom filme”. Eu sei, mas O Crítico também era um bom filme e ninguém viu. Quando Woody Allen finalizou Manhattan ele detestou, quis escondê-lo do público, mas todo mundo gostou. Você mostrou um pouco da cultura da classe média brasileira no filme. A relação entre o patrão e a empregada doméstica, por exemplo, que é muito particular aqui no Brasil. Essa representação foi pensada? É uma representação honesta e verdadeira de como são as coisas na vida da gente. Você coloca isso no filme, sem nem pensar muito. Fiquei impressionado em como as pessoas reagem de maneira forte a um determinado detalhe. Não pensei “essa cena vai ter um efeito incrível em Oklahoma”. Tinha sérias dúvidas se esse filme seria visto seja lá onde fosse. Sempre me preparo para menos. Alguns cineastas acham que o filme, depois de pronto, vai ser um grande sucesso. Mas como é que você sabe? Já existe muita gente produzindo estereótipos. Isso eu deixo para eles. Maio de 2013 | Cásper

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PERFIL

Cidadã francesa, identidade paulistana Sócia de um dos pontos culturais mais visitados da Avenida Paulista, Laure Bacqué aposta no incentivo à cultura e no aconchego para agradar a seu público Por Victor Bonini

“O

espaço era apenas um salão imenso de mil lugares”. Essa área descrita por Laure Bacqué, sediava o antigo Gazetinha, cinema cult que fechou as portas ainda na década de 1990. Em meados de 2004, no entanto, o ambiente teve a sua aparência radicalmente alterada: o grande salão, localizado na Avenida Paulista 900, transformou-se no concorrido espaço Reserva Cultural. A fala de Laure, atual sócia do local, é carregada do sotaque francês acentuado, de pronúncia forte - principalmente quando profere palavras cuja entonação é semelhante em sua língua materna. Seus modos são tímidos e o cabelo, preso em um grande coque, deixa em evidência um rosto bastante jovem para a empreendedora de um cinema que existe há quase oito anos, dos onze em que passou morando no Brasil. Ela vem de Toulouse, a quarta maior cidade da França, onde nasceu em 1975 e viveu até o fim de sua graduação, na Escola Superior de Comércio (ESC). Foi lá que Laure conheceu o marido, Fabrice Daniel, com quem se orgulha de ter rodado o globo – o que só aconteceu depois

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de Laure haver finalizado os estudos e trabalhado em Paris. “Fizemos muitas viagens pelo mundo, e o engraçado é que quando passamos pela América do Sul, visitamos a Bolívia, o Chile, o Peru e outros países vizinhos ao Brasil, mas este ficamos sem conhecer”, conta. O contato com o mundo cinematográfico veio dos anos em que passou em Paris, quando foi responsável pela organização de duas renomadas feiras de audiovisual que reuniam, em um só lugar, o mercado da TV e do cinema francês. Em 2002, Fabrice, seu marido, recebeu uma proposta de trabalho fora da França, numa filial estrangeira da Geodis International, a quarta maior empresa de logística da Europa, em que trabalhava. O convite os transportaria justamente para o único país da América do Sul para o qual eles ainda não haviam viajado. “A ideia era vir ao Brasil e ficar por um tempo determinado, mas isso há onze anos. O contrato do Fabrice acabou e mesmo assim ficamos.” Ficaram, em primeiro lugar, porque se estabeleceram em São Paulo - ele com a WV Logistics, empresa que montou depois de encerrado o con-

trato de quatro anos com a Geodis –, e ela na embaixada francesa. “No consulado, eu representava o cinema francês no Brasil, um posto que garanti por causa da minha experiência com audiovisual na França. Foi assim que comecei a mergulhar no mundo cultural e cinematográfico da cidade de São Paulo.”

Ponto de encontro Laure exerceu o cargo de 2002 a 2004, período em que conheceu seu atual sócio, Jean-Thomas Bernardini. Como exibidor de filmes pela Imovision, Bernardini aspirava construir um cinema em que pudesse exibir algumas das obras francesas que trazia ao Brasil, além de outros projetos independentes de outras nacionalidades. “Eu o ajudava com o processo de trazer filmes franceses ao Brasil na época em que eu estava na embaixada”, relembra. “Ficamos amigos e, depois que saí do consulado, no final de 2004, Bernardini me chamou para trabalhar com ele e, então, já em junho de 2005, inauguramos o Reserva Cultural.” O sucesso do negócio é um dos motivos pelos quais Laure sequer tem planos para voltar à França. Mãe de dois filhos paulistanos – um menino


RAFAELA MALVEZI

Desde 2005, a francesa Laure Bacqué dirige o Reserva Cultural junto de seu sócio e amigo, Jean-Thomas Bernardini

de 5 anos e uma menina de poucos meses –, ela reconhece a importância do público para o crescimento do Reserva e, consequentemente, para sua estabilidade profissional. “Ele é sempre muito fiel e antenado em nossa programação. Queríamos exatamente isso: um ambiente receptivo e confortável, com restaurante, café e livraria. Um espaço para além das salas de cinema, em que os nossos visitantes passassem um tempo de qualidade conosco.” Em tempos nos quais, de acordo com Laure, as interações presenciais são cada vez mais raras, o Reserva Cultural resiste como um dos principais pontos de encontro da cidade. “Hoje, com todos inseridos no mun-

do virtual, praticamente acabou o costume de visitar lugares. Às vezes, mesmo que a pessoa saia de casa, ela continua conectada pelo celular.” Ainda assim, o público tem crescido a uma taxa de 20% ao ano – tudo isso sem pipoca, blockbusters e propagandas. “Aqui em São Paulo, se você não tem como comprar páginas publicitárias na Veja ou na Folha, o único jeito é fazer o boca-boca.” Além disso, os filmes costumam ficar em cartaz por longos períodos, até que os espectadores se esgotem. Laure explica que a política do Reserva é um tanto diferente. “Mantemos os filmes o máximo de tempo possível em cartaz para que eles possam, de fato, existir no Brasil.” Essa

posição lhe rendeu um dos dias mais memoráveis de sua carreira. “O filme argentino Medianeras, que fez muito sucesso em 2011, ficou em cartaz por mais de seis meses. O diretor, Gustavo Taretto, veio ao Brasil lançar o DVD e resolvemos convidá-lo para uma sessão especial no Reserva”, narra, entre risadas que, momentaneamente, deixam a timidez de lado. “Naquela noite, avisamos nosso público pela newsletter e os ingressos foram vendidos em 10 minutos.” O otimismo em relação ao futuro já a faz pensar na expansão dos negócios. “Estabelecemos um conceito que agradou o público, por isso esperamos criar mais Reservas pelo Brasil. Por que não?” Maio de 2013 | Cásper

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TEATRO

MARIAN STAROSTA

Montagem brasileira do musical O Despertar da Primavera

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Cรกsper | Maio de 2012


Um palco

para a

diversão? Está aberta a temporada de musicais em São Paulo e é preciso muito mais do que cantar e dançar para se manter em cena

Por Mariana Marinho

E

ra março de 2010. Um foco de luz quebrava a escuridão do palco do Teatro Sérgio Cardoso. As enormes estruturas de ferro que compunham o cenário ainda não podiam ser vistas por completo. Da penumbra, surgia Wendla Bergman, interpretada pela atriz Malu Rodrigues. A jovem alemã, de longos cabelos loiros, usava um vestido branco e meia-calça escura. Enquanto uma meia luz amarelada começava a tomar conta do palco, Wendla iniciava a primeira canção de O Despertar da Primavera. O musical, inspirado na peça homônima do dramaturgo alemão Frank Wedekind, traz ao palco 19 adolescentes que estão descobrindo sua sexualidade. As canções, uma mistura entre pop e punk, narram histórias de incesto, estupro e suicídio. A peça, escrita em 1891 foi proibida pelas autoridades da época e só se livrou

da censura inglesa em 1974, quando pôde ser apresentada livremente. Em 2006, a narrativa ganhou os palcos da Broadway e foi indicada a 11 prêmios Tony – considerado o Oscar do teatro –, vencendo em oito categorias. A versão brasileira de O Despertar da Primavera, dirigida pela dupla Charles Möeller e Claudio Botelho, estreou em 2009 no Rio de Janeiro e em São Paulo no ano seguinte. O espetáculo não era o primeiro da dupla – 20 outros já haviam sido produzidos por eles – e tampouco foi o que mais arrecadou bilheteria. Porém, O Despertar era, sem dúvida, um dos musicais mais arrojados e ousados.

Os donos da cena Desde a época de O Despertar, Möeller e Botelho já eram conhecidos como os reis dos musicais. A dupla começou em 1997 com As

Malvadas – um tributo às comédias musicais no espírito de filmes B – e hoje soma cerca de 30 produções no currículo. Entre Rio de Janeiro e São Paulo, estão em cartaz com três musicais: Como Vencer na Vida Sem Fazer Força, O Mágico de Oz e Milton Nascimento – Nada Será Como Antes. Aos 48 anos, Claudio Botelho, criado em Uberlândia, Minas Gerais, orgulha-se da posição que ocupa hoje na cena teatral. “Sou um senhor, mas comecei a fazer espetáculos aos 25 anos. Sem patrocínio, pegávamos o dinheiro que ganhávamos naquela noite e voltávamos para casa, muitas vezes a pé”, relembra o também compositor e tradutor. “Havia cerca de dez pessoas na plateia, apresentávamos os musicais nas segundas e terçasfeiras, apenas com piano. As pessoas não tinham interesse no gênero. Isso foi surgindo aos poucos”, completa. A dupla, conhecida por montaMaio de 2013 | Cásper

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entrar para o Centro de Pesquisa Teatral (CPT), do diretor Antunes Filho. Para Botelho, é uma batalha conseguir com que o público seja cativado em espetáculos cujas músicas são inéditas. Ele explica que, quando as canções já são familiares à plateia, como no caso de Ópera do Malandro – musical de sucesso criado a partir da obra de Chico Buarque – a aceitação é mais imediata. “O público gosta de ouvir canções que já conhece. Você tem de convencê-lo pelo carisma, fazer com que seja cativado pela canção e pelo drama da história.”

Divulgação Factoria Comunicação

gens como A Noviça Rebelde, Hair e Um Violinista no Telhado, gosta de frisar que suas produções não são réplicas. Antes de um texto estrangeiro ser interpretado no Brasil, ele é inteiramente repensado para se tornar acessível ao público. “Nunca fizemos uma franquia. Fazemos espetáculos americanos e ingleses com criação absolutamente nacional. Por mais que estabeleçamos parcerias com compositores estrangeiros, é uma criação nacional”, explica Charles Möeller – nascido em Santos, ele chegou a cursar um ano de Arquitetura antes de

No ramo desde 1997, Botelho e Möeller são considerados “os reis dos musicais”

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Arte industrial? “Eu só acredito no teatro quando você sai de lá diferente de quando entrou. Seja musical ou em prosa, tem de levar a alguma discussão”, afirma Tadeu Aguiar, diretor geral do Quase Normal, em cartaz no Teatro FAAP. Para o diretor, um dos problemas do teatro musical brasileiro é encontrar bons atores capazes de cantar. “Hoje em dia você vê musicais nos quais as pessoas cantam e dançam lindamente, mas quando abrem a boca não conseguem articular duas palavras com substância e subtexto. Pode-se constatar que é tudo frágil.” Quase Normal conta a história de uma família que luta para se manter nos eixos diante da bipolaridade da mãe e de uma série de acontecimentos que fragiliza emocionalmente a todos. O espetáculo estreou em 2010 na Broadway e ganhou o Prêmio Pulitzer no mesmo ano. Möeller enxerga outro tipo de desfalque na produção artística brasileira: “Falta no mercado compositores que se dediquem ao ofício de criar para teatro musical. Tivemos a experiência de trabalhar com Ed Motta em 7 – O musical e foi ótimo”. Tadeu Aguiar conta que a versão brasileira, que ocupou primeiro os palcos cariocas antes de vir para São Paulo, travou uma batalha para conseguir patrocínio, visto que a obra não tem nenhuma estrela e não é um espetáculo alegre do qual as pessoas saem sapateando – elas saem pensando. “Hoje em dia qualquer patrocinador é resistente a esse tipo de espetáculo. Eles querem algo mais digestivo, em que os espectadores saiam da sala para comer pizza e se esqueçam do que viram”, conta. De acordo com Botelho, o público hoje procura o teatro musical pela diversão. “O musical é uma espécie de arte industrial que precisa do público que paga o ingresso caro. Ele começou a fazer sucesso porque é uma garantia de diversão. O público percebe que as coisas são feitas para ele: a movimentação do cenário, os efeitos, etc. Por isso, ele vem.” Tadeu discorda e acrescenta que não acredita que o teatro musical seja


GUGA MELGAR

Atualmente em cartaz em São Paulo, O Mágico de Oz é um dos musicais dirigidos por Möeller e Botelho

novidade para o público. “O teatro brasileiro começou com o musical, com o teatro de revista. Durante a ditadura militar houve uma lacuna na produção, mas ele não está acontecendo há apenas dez anos. Wolf Maia, Maurício Sherman, Bibi Ferreira já produziam musicais há muito tempo”. “Agora”, contrapõe o diretor, “o teatro musical do Teatro Renault é outra coisa: é importado da Broadway, é McDonald’s. Na minha montagem do Quase Normal nós não copiamos nada, inventamos um musical diferente do americano”. Os espetáculos do Teatro Renault, realizadas pela T4F – maior empresa de entretenimento ao vivo da América do Sul – são os mais caros do ramo. O Rei Leão, que estreou em março na capital paulista, tem seu custo estimado em R$ 50 milhões, dos quais R$ 11 milhões foram captados via Lei Rouanet. O restante será custeado por receita gerada pelo próprio musical com a bilheteria e a venda de produtos. Em

comparação, o musical de Aguiar, Quase Normal, ficou por R$ 800 mil.

Os vilões Hoje, o teatro musical brasileiro enfrenta dois grandes antagonistas: a meia-entrada e a curta temporada. Na Broadway, O Rei Leão ficou 15 anos em cartaz para conseguir, em 2013, lucrar cerca de US$ 850 milhões. Com as curtas temporadas brasileiras, os espetáculos ficam à mercê de leis de incentivo e patrocínio. “Um espetáculo que custa R$ 1 milhão, por exemplo, não consegue permanecer em cartaz depois que termina o patrocínio por causa da meia-entrada. O valor dos ingressos não paga a produção”, expõe Aguiar. Möeller concorda e completa, dizendo que “hoje, patrocinador só investe em teatro musical se tiver Lei Rouanet por trás. É uma escadinha: no dia em que a lei cair, o mundo dos musicais também cai. Nos mantemos em pé em cima de uma lei muito frágil”. A lógica é simples: ao

ancorar um projeto amparado pela lei, a empresa apoiadora também recebe a sua cota de benefícios por meio de isenção fiscal. Para Botelho, a meia-entrada é o maior assassinato cultural do país. “Ninguém obriga as pessoas a venderem um jeans Diesel pela metade do preço porque fulano é estudante ou porque minha avó tem 65 anos. Isso é tão absurdo porque nós não cobramos menos pelo ingresso, mas sim o dobro. Ao fazer as contas, sabemos que 85% vão pagar meia, o que afeta o lucro da produção”, expõe. Apesar das dificuldades, o cenário musical brasileiro se mostra próspero e consolidado no circuito Rio–São Paulo. Tadeu Aguiar até arrisca dizer que estamos mais profissionais do que os americanos. “Temos um jogo de cintura muito maior e conseguimos realizar coisas muito mais criativas do que eles.” Mas ainda falta afinar alguns refletores para que o foco do mundo dos musicais esteja no Brasil. Maio de 2013 | Cásper

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CAPA 24

Cรกsper | Abril de 2013


entre os livros

deAlberto

Manguel O que me interessa são as ideias, não as teorias. A teoria se converte em dogmas e dogmas não permitem o diálogo. Impõem respostas antes de saber quais são as perguntas Por Carlos Costa Imagens José Geraldo Oliveira

N

ão é difícil falar sobre Alberto Manguel. Ele já foi apresentado aos leitores da Cásper como “O homem que lia para Borges” (número 6, junho de 2012). E em muitos de seus livros ele volta ao tema. É possível reconstruir sua caminhada a partir de observações biográficas espalhadas em ensaios de seus livros À Mesa com o Chapeleiro Maluco, No Bosque do Espelho ou O Livro e os Dias. A história de Alberto Manguel é a história de um leitor. Foi nessa função, como avaliador de novos autores e de edições de livros e antologias, que ele viveu uma experiência peregrina entre Buenos Aires, Milão, Paris, Madri, Londres, Taiti, até se fixar no “seu Canadá” de adoção. Reside atualmente numa cidadezinha do interior da França, e chegou ali por haver encontrado, numa velha casa paroquial ou presbitério, o lugar ideal para abrigar seus quase 50 mil livros. Comprou o presbitério meio arruinado, reformou também o celeiro, transformando-o em sua biblioteca. Há doze anos se

estabeleceu ali para continuar suas peregrinações, agora participando de palestras e congressos, onde o tema é sempre o ato de ler. Para falar com a reportagem da Cásper, ele reservou uma tarde de sábado da segunda semana de janeiro deste ano. Ali, em meio a tantos livros raros e ordenados, se desenvolveu a conversa a seguir. Em Os Livros e os Dias o senhor conta que ao voltar à Argentina, em 1973, seus livros não estavam mais lá. Isso é dito numa frase seca, sem comentar a dor que foi perder obras autografadas, como a da escritora Silvina Ocampo... Eu queria que O Livro e os Dias fosse mesmo um registro de notas de leitura. Falei sobre isso em outro ensaio. Mas certamente naquela volta em 1973 senti como uma terrível surpresa. Pensei que os livros que havia deixado iriam estar ali e por distintas questões familiares já não estavam. Penso que para um leitor que sente a necessidade de posMaio de 2013 | Cásper

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PAPARAZZI

Manguel reformou o celeiro do presbitério, transformando-o em sua biblioteca pessoal, composta por cerca de 50 mil obras

suir livros, sempre será assim. Foi como ter perdido uma parte de minha vida e identidade, boa parte de minha história estava ali. Sinto de maneira forte a identidade e a memória que os livros conservam. Aqui na minha biblioteca posso, a qualquer momento, tocar um livro e dizer a que período de minha vida ele corresponde, que eixos e relações há com outras obras. Se isso desaparece, desaparece um momento de minha vida. Recordo, mas já não existe. Uma das cenas mais terríveis de Dom Quixote é uma passagem narrada após sua primeira aventura. Ele volta para casa e o barbeiro e o padre decidem murar sua biblioteca e dizer que o feiticeiro havia levado os livros. A cena parece cômica, mas é intensamente trágica, pois é uma deliberada intenção de eliminar uma parte da pessoa do Quixote. O Alzheimer faz isso com a gente, nos tira o momento de nossa vida. No período de Mao Tse-Tung, por exemplo, os prisioneiros eram obrigados a reescrever suas autobiografias, censurando certas partes como se não houvessem existido e terminavam convencendo-se de que tal coisa não havia ocorrido e outra sim [longa pausa]. Para mim, perder uma biblioteca é algo similar a esses momentos terríveis. O senhor, desde o livro inicial, Dicionário de Lugares Imaginários, tem o hábito de criar listas, algu26

Cásper | Maio de 2013

mas muito interessantes. Em O Livro e os Dias há diversas. Como o das cidades preferidas. Onde fica Saint John’s? Há dois Saint John’s no Canadá. Essa Saint John’s da lista fica na Terra Nova e é uma pequena cidade costeira de muita influência irlandesa. É um dos lugares do continente americano mais próximo geograficamente da Europa. Essa Saint John’s me encanta por suas pequenas casas de pescadores e pelo clima feroz. Não acho possível que um brasileiro sobreviva ali. E Poitiers, que na lista figura ao lado de Tiradentes e Bogotá? Eu não conhecia Poitiers antes de descobrir esta casa há doze anos. Lugares chegam a nós da mesma maneira que pessoas. A gente se enamora de alguém ou alguém se converte em seu melhor amigo por uma absoluta casualidade. Cruzamos com uma pessoa na rua, conversamos com outra em um jantar. Com a cidade sucede o mesmo. Estávamos buscando um lugar para viver na França, pois não dirijo carro e queria encontrar uma casa próxima a uma linha de trem. No Canadá era complicado encontrálos, pois eles desapareceram. E viver na cidade era muito caro. Tudo era caro também na França – sobretudo em Paris. Então, fui convidado para uma noite de autógrafos


na livraria La Belle Aventure aqui em Poitiers. Descobri uma cidade que me encantou e fascinou. Enraizada na Idade Média, com uma das igrejas românicas mais lindas de todo o mundo. E havia uma oferta de casas a bom preço. Foi assim que descobri a cidade, as pessoas daqui foram generosas comigo. E como chegou ao presbitério de Mondion? Quando procurava casas em Poitiers, um agente imobiliário me mostrou um velho moinho, um pequeno castelo. Eu disse que imaginava algum dia encontrar um pequeno mosteiro com um pátio ou claustro interior. “Não tenho um mosteiro, mas um presbitério. Quer dar uma olhada?” Vim e tive a certeza de que encontrara o que buscava. Susan Sontag no livro Diante da dor do outro, fez uma crítica aos intelectuais franceses, que em seus confortáveis gabinetes teciam análises sobre o conflito de Kosovo. Que intelectuais franceses? É como mencionar “os escritores brasileiros”. Que escritores brasileiros, Paulo Coelho ou Moacir Scliar? Falar em termos genéricos abre espaço para não chegar a lugar algum, pode revelar um pensamento preconceituoso. Precisamos ser mais precisos e tomar o tempo para falar quando temos algo concreto a dizer. Há muitos autores franceses que me interessam, embora alguns deles tenham se convertido em uma forma de clichê.

é um tema que me interessa. Julgar ou ler uma obra por meio daquilo que não está dito construiria uma biblioteca de não-citações. Uma coisa é dizer que determinado livro ou ideia não me interessa ou me parece muito interessante. Mas daquilo que eu não falo, não quer dizer que não gostei. Não sei a quem cito ou não. Cito muita gente, mas o fato de não citar não quer dizer que não me interesso ou que seja contra. Numa palestra em São Paulo, em 2010, o senhor disse que “a metáfora é a pedra fundamental da literatura. Mas ao mesmo tempo, ela confessa nossa dificuldade em comunicar as coisas de modo direto, sem ambiguidade”. A metáfora é uma forma natural de nos comunicarmos, pois estamos constantemente tratando de explicar o que queremos dizer não apenas por meio das palavras que nomeiam, mas também das imagens que evocam. O uso da metáfora é uma confissão da debilidade da linguagem,

Vargas Llosa em sua recente obra A Civilização do Espetáculo critica intelectuais franceses, como Baudrillard e Foucault. Não sei se esses juízos absolutos são úteis. Dizer que Foucault não vale nada, isso não é argumentação intelectual. Há muitos pensadores franceses de peso. Por exemplo, não posso dizer que entendi todos os seminários de Lacan, mas ele aportou ideias importantes. As ideias de Foucault sobre a sexualidade são relevantes, da mesma forma os seus estudos sobre prisão para definir uma sociedade fechada ou aberta. Não podemos simplesmente eliminar as teorias francesas. Susan Sontag, que fez teatro em Kosovo, teve a companhia de outros intelectuais franceses engajados que estiveram naquele campo de batalha tratando de ajudar e de entender coisas. As generalizações não me interessam, mas sim ideias particulares. Não sou um leitor de teorias. O senhor conhece Beatriz Sarlo? Estive com ela em um congresso no Brasil. Não há nenhuma referência de Sarlo em sua obra e vice versa. Tivemos conversas interessantes. Não sei se a minha obra não corresponde ao que ela pesquisa e se eu não tive oportunidade de citá-la. Leu o trabalho dela sobre a memória? Sobre a memória não, mas sobre a posição do leitor, que

Para Manguel, “a teoria se converte em dogmas e os dogmas não permitem diálogos”

Maio de 2013 | Cásper

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Em Mondion, interior da França, Manguel encontrou, por acaso, um antigo presbitério onde vive atualmente

pois ela não consegue nomear a plenitude do que pretendemos dizer. A metáfora ajuda a aproximar, uma vez que injeta ambiguidade na definição que utilizamos. Se disser que é uma tarde bela, tento comunicar os meus sentimentos a respeito da tarde. Se trocar por “é uma tarde como um incêndio no céu”, comunico algo a mais e, sobretudo, algo mais aberto, que permite às pessoas que lêem incorporar suas impressões a respeito de incêndio, de céu e de tarde. Vivemos na sociedade da imagem ou da palavra? Somos animais narrativos, viemos ao mundo acreditando que ele é um livro que nos conta histórias, que a paisagem que contemplamos, o rosto dos outros, os ruídos que escutamos, estão nos contando histórias. Algumas delas passam pela visão e outras pelo ouvido, de maneira que é difícil dizer se uma sociedade é de imagem ou de palavras. Tem que ser das duas. Não existimos em um mundo em que as imagens não são nomeadas, tampouco existimos em um mundo em que a palavra não está ilustrada. Quando dizemos que vivemos numa sociedade da imagem, esquecemos, por exemplo, da Idade Média ou da Grécia antiga, que também eram sociedades de imagens. Ao afirmar que o Renascimento era uma sociedade da palavra, esquecemos que hoje tudo acontece por meio da palavra, com todos esses aparelhos eletrônicos se comunicando pelo verbo. Prefiro não eleger uma ou outra e viver numa sociedade de imagem e de palavra. 28

Cásper | Maio de 2013

O que hoje significa ler? Nossa vontade de interpretar o mundo através das histórias que acreditamos que o mundo nos conta faz com que sejamos leitores. Em uma sociedade de livros – e é claro que nem todas o são –, isso passa pela leitura de textos. Hoje a leitura apresenta distintas possibilidades, não somente em livros impressos ou em manuscritos, mas também na leitura eletrônica. Sempre ocorreram mudanças tecnológicas que fizeram com que lêssemos de forma distinta. O importante é não esquecer que podemos eleger e que não estamos obrigados a ler apenas de uma determinada maneira. Podemos ler um manuscrito, um livro impresso ou eletrônico, conforme a oportunidade. E também não se deve esquecer que a tecnologia eletrônica é a última que surgiu, mas não a última em termos absolutos. Quem sabe dentro de dez ou vinte anos nossos netos considerarão a tecnologia eletrônica algo absolutamente antigo. Poderão ter um chip no cérebro que permitirá ler tudo o que hoje seguramos com as mãos. Por que escrevemos? Não sei dizer o porquê de modo genérico. Escrevo para não cair no desespero e na loucura. Em A Cidade das Palavras o senhor discute o que nos mantém juntos e nos faz reconhecer-nos como parte de um grupo. E em contraparte nos diferencia


“Somos animais narrativos, viemos ao mundo acreditando que ele é um livro que nos conta histórias” dos estranhos a esse grupo. Como fica o homem na cidade contemporânea? Cada sociedade trata de se definir para criar uma circunferência dentro da qual possa atuar. Ao criar esse círculo, cria-se o espaço de fora e a presença do outro que está além das muralhas da cidade. Ao mesmo tempo, faz com que os cidadãos que atuam dentro do círculo queiram buscar o que está fora. Nesse jogo de tensões entre o que está permitido e o proibido, o que está incluído e o que está excluído, é que acontece a vida da sociedade. Uma sociedade que não viva essa tensão é uma sociedade morta. Que intelectual ou escritor o motivou em especial e o senhor recomendaria? Já que estamos com a língua portuguesa, para mim uma das figuras essenciais hoje é filósofo português Eduardo Lourenço. Ele é um dos maiores pensadores atuais. Tem 90 anos e vive na França. No Brasil, a Companhia das Letras o publicou. Eu o conheci com Mitologia da Saudade seguido de Portugal como Destino. Luiz Schwarcz, meu editor no Brasil, tem uma produção muito boa. É pouco comentado no Brasil, tem livros editados em francês, como o Eloge de la Coïncidence. Seus trabalhos Minha Vida de Goleiro, Linguagem de Sinais ou o Discurso sobre o Capim merecem uma atenta leitura. Me interessa muito Richard Dawkins [autor de O Gene Egoísta]. É um darwiniano científico que propõe algo genuíno para entender nossa posição no universo. Mas é diferente se estou pensando em um ensaísta, num pensador, num escritor de ficção ou num poeta. Algum canadense nessa lista de recomendações? Sim. Para mim, a poeta mais importante é Anne Carson. Sua obra é extraordinária, como uma reinterpretação do mundo antigo. É uma obra original e creio ser a poeta mais importante dessas décadas. [Sem tradução no Brasil, sua obra maior seria Playwater: Essays and Poetry.] Alice Munro é uma contista maravilhosa e a chamam de “Tchekhov do nosso tempo”. [Livros editados no Brasil: Felicidade Demais, Fugitiva (pela Companhia das Letras) e Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento (Editora Globo). O que é ser canadense? Há anos li num jornal australiano a carta de uma leitora que se definia como “cidadã britânica de 5a geração”. Essa percepção

ocorre no Canadá, onde nem é preciso usar o DDI para telefonar para os EUA? Não, nada a ver com esse sentimento da leitora da Austrália. A diferença é que o Canadá é um conglomerado de regiões muito distintas. Quebec não é Ontário, que não é como as províncias marítimas que, por sua vez, não são como a Colômbia Britânica, e assim por diante. Há lugares no Canadá em que as pessoas se sentem britânicas com ascendência inglesa, como na cidade de Victoria, por exemplo. Da mesma maneira que na cidade de Quebec se sente um enraizamento muito forte com a França - claro que com a França de Luis XV [risos]. Há isso, mas o país é muito mais aberto. Aqui na França, quando vêem que sou canadense me perguntam: “Como? Se o seu nome é Alberto Manguel e nasceu na Argentina?” Para o francês esta questão burocrática não termina nunca, é para sempre. No Canadá, se você se torna canadense, ninguém vai questionar onde nasceu. Jamais irão fazer essa pergunta. Em Os Livros e os Dias, ao comentar O Lago Sagrado, de Margaret Atwood, escreve que a ideia de propriedade perde sentido na paisagem canadense. No Brasil sabemos que há um grande problema com os industriais madeireiros que derrubam as árvores da Amazônia. Diz-se que a Amazônia “nos pertence desde sempre”. Quando se está diante de uma selva imensa e avassaladora, dizer que isso me pertence é algo absurdo para um canadense. Ele teve de lutar contra uma natureza invasora, difícil e dura, que é a selva canadense, e somente pode viver numa pequena franja que é a fronteira com os Estados Unidos. Então Margaret me disse uma vez que o verso do americano Robert Frost “A terra era nossa antes que nos tornássemos dela” não tem sentido algum no Canadá, um canadense nunca irá dizer que essa terra me pertence. A terra nunca foi nossa e nunca será [risos]. O sentimento é muito distinto. O senhor disse que não lhe interessam as discussões de ideias genéricas, mas a relação com as propostas mais particulares. Disse que a teoria não me interessa, as ideias sim. A dificuldade da teoria é que ela se converte em dogmas e os dogmas não permitem diálogos. São imposições e respostas antes de saber quais são as perguntas. Maio de 2013 | Cásper

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RÁDIO

vozes da

Arquivo gazeta press/doc

tradição Em março, a Gazeta AM completou 70 anos no ar. As memórias e experiências de seus personagens reafirmam a história de uma das emissoras mais tradicionais do país Por Amanda Massuela e Leandro Saioneti


Arquivo gazeta press/doc

Programas como o Cortina Lírica reuniam orquestra e público em transmissões de música clássica

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écada de 50, início de noite. Em frente a um edifício localizado na Rua da Conceição, próximo ao Viaduto Santa Efigênia, forma-se uma fila composta por homens e mulheres trajados em finas roupas. Assim que o acesso é liberado, todos entram no auditório e os quase 200 lugares disponíveis são instantaneamente ocupados. Ali, na sede da Rádio Gazeta, o coral inicia mais uma noite de apresentações em que os ouvidos são os verdadeiros olhos; e a voz, o grande espetáculo. O cenário remete a um período em que o rádio despontava como principal veículo de comunicação, e a Gazeta, que em 15 de março de 2013 completou 70 anos, era um dos destaques na frequência. “Nos anos 40 e 50, o rádio viveu seu apogeu, porque a televisão não havia chegado ao Brasil e o número de pessoas que pos32

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suía o aparelho era pequeno”, explica Irineu Guerrini, professor de História do Rádio e da TV na Faculdade Cásper Líbero e autor do livro A elite no ar: óperas, concertos e sinfonias na Rádio Gazeta de São Paulo (Terceira Margem, 2009). Foi a partir de 1943 que a emissora começou a operar por meio do sinal da primeira estação de São Paulo, a Rádio Educadora Paulista, fundada em 1923. O pioneirismo vem logo do início da sua história. Irineu conta que o jornalista Cásper Líbero comprou uma emissora cambaleante e a equipou com o que havia de melhor no mercado, iniciando a história de uma rádio cuja programação se tornaria única em São Paulo e raríssima no Brasil. Com orquestra e coral próprios, ela contava com um amplo coro de solistas, compositores, sonoplastas e cantores, muitos deles estrangeiros.

Os principais concertos eram realizados aos finais de semana, em programas como Cortina Lírica e Soirée de Gala, nos quais o público, por vezes, precisava se acomodar além das portas do prédio, tamanha a lotação. Em plena Era de Ouro do rádio brasileiro, a Gazeta era anunciada por seus locutores como “a rádio de elite”. Uma elite não tanto econômica, como aponta Irineu, mas cultural, pois quem a sintonizava estava em busca de uma programação mais erudita. “O que a distinguia das demais é que, no horário nobre – das 20h às 22h –, ela colocava no ar muitos programas de música clássica, feitos em seu próprio auditório.”

Entre orquestras e solistas Quem ouvisse as transmissões de música clássica da Rádio Gazeta talvez não imaginasse que, além do ta-


“O que a distinguia das demais é que, no horário nobre, ela colocava no ar muitos programas de música clássica, feitos em seu próprio auditório” aos meus quatro irmãos. Ligava o rádio e nos chamava para ouvir, ficava contando histórias. Fui criada neste ambiente”, relembra.

No gramado, uma nova fase O tempo se mostrou soberano e a década de 60 surgiu como um período de transformações. As famílias deixaram de se reunir em torno dos aparelhos de rádio e passaram a tomar a televisão como principal fonte de informação e entretenimento, pois ela se tornava cada vez mais po-

pular no país. Assim, a Gazeta também se via obrigada a repensar a sua programação. “As audiências migraram para a TV, e com ela migraram também os anunciantes. Não foi algo que atingiu somente a Gazeta, mas o rádio em geral”, aponta Irineu. A esta altura, o maestro Armando Belardi convocou todos os seus músicos para um jantar e anunciou o fim de uma fase. Sem mais programas ao vivo e auditórios lotados todas as noites, aos poucos os discos foram substituindo a big band na programaluíza fazio

lento, a excelência também vinha de uma rígida metodologia de ensaios. O tom e a harmonia do conjunto eram mantidos por uma figura de pulso firme e larga experiência: o maestro Armando Belardi, diretor artístico do Teatro Municipal de São Paulo. Em meio aos coristas regidos por Belardi, estava Leonilde Provenzano. Em 1952, depois de entrar para o Conservatório Carlos Gomes e tomar aulas de canto, a jovem passou a ser parte integrante dos cantores da Gazeta, função que ocuparia por oito anos. “Prestei o concurso para o coral e fui aprovada. O maestro Belardi me contratou e, às vezes, eu conseguia alguns papeis secundários”, conta, relembrando a rigorosa rotina. “Todos os dias, ensaiávamos de manhã e de tarde, e à noite nos apresentávamos.” Hoje, aos 79 anos, Leonilde vive num aconchegante apartamento no bairro da Sé, envolta por saudades e boas lembranças – quase todas materializadas num baú, onde guarda recortes de jornais e revistas da época. Irineu Guerrini, que desenvolveu intensa pesquisa sobre o assunto ao longo de dois anos, ressalta que “para entrar no coral, os candidatos tinham que passar por um concurso público com um júri de altíssimo nível”. Da Itália, país com tradição em canto lírico e que enfrentava a Segunda Guerra Mundial, vinham vozes de alto gabarito. “Éramos uma família, todos grandes cantores. Os italianos iam almoçar em casa, minha mãe cozinhava para eles. A relação era maravilhosa”, diz Leonilde. Ainda menina, ela começou a frequentar o auditório da rádio com o pai, Luiz Provenzano, responsável por apresentá-la a este mundo. “Foi ele quem me ensinou a gostar de ópera – não só a mim, mas também

Para Irineu Guerrini, o diferencial da Rádio Gazeta era a sua programação

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Arquivo gazeta press/doc

Regiani Ritter tornou-se referência no jornalismo esportivo

ção musical – tanto que a discoteca da Fundação Cásper Líbero possui um dos acervos mais ricos da América Latina – e as vozes líricas deram espaço a transmissões jornalísticas e, principalmente, esportivas. “Pela Rádio Gazeta passaram os grandes nomes do jornalismo esportivo”, afirma Regiani Ritter. Regiani é jornalista da emissora desde setembro de 1980. À frente dos programas Disparada no Esporte e Revista Geral, ela chegou conduzida por um casal de amigos, “meio no piloto automático”, como conta. “Aqui descobri um mundo novo. Depois de sofrer uma perda muito dolorosa, vim para o rádio e entendi que podia, finalmente, parar de correr para lá e para cá.” Corria porque sempre teve pavor de rotina e transborda agitação, algo nítido até mesmo em sua fala. Antes de se dedicar à trajetória na Rádio Gazeta, ela 34

Cásper | Maio de 2013

iniciou uma bem sucedida carreira de atriz no teatro e na televisão, mas a deixou de lado por uma sucessão de experiências profissionais. Foi ser garota propaganda quando ainda não havia videotape, apresentadora na TV Cultura e atriz no show de humor do Costinha, na TV Excelsior. No esporte gazetiano, acumulou funções e se tornou referência. Ainda que recuse o título, é considerada repórter esportiva pioneira do rádio brasileiro. “Fui a primeira mulher a cobrir jogos no gramado e, logo em seguida, a entrevistar os jogadores no vestiário, todos pelados. Por isso fiquei tachada como pioneira, mas, na verdade, eu só fui a primeira a chegar mais longe na profissão”, esclarece. Em 1991, num momento em que eram raras as mulheres que se consolidavam na carreira, Regiani trabalhava para rádio, TV e impresso simultaneamente. Por isso foi escolhida

pelo Jornal Unidade, do Sindicato dos Jornalistas, como a melhor jornalista esportiva, entre 600 homens. “Todo mundo ficava colado na Gazeta para saber das principais notícias, e eu estava nela, uma rádio tradicionalíssima, a segunda do Brasil e a primeira de São Paulo”, frisa Regiani. “Ela me proporcionou muitas coisas boas. E me levou também. Levou meus anos vividos, minhas emoções, meu sangue, meu suor – mas era uma troca. Para mim, nunca foi uma relação fria, como ‘eu trabalho e ela me paga’. Eu dou de mim e ela me dá dela. É algo meio misterioso.”

Próximas Gerações Hoje a Gazeta AM funciona como a Rádio Universitária da Fundação Cásper Líbero. Um espaço de experimentação e aprendizado, onde os alunos têm a oportunidade de participar da programação de forma


Arquivo gazeta press/doc

A discoteca da Fundação Cásper Líbero possui o acervo mais completo - e raro - do Brasil. São cerca de 78 mil discos LP

efetiva, desde a sugestão de pautas até a elaboração de projetos de programas. “Procuramos sempre promover o aluno no sentido de deixá-lo à vontade para que possa aprender e trazer algo de novo. Ele tem a chance de explorar os gêneros radiofônicos de todas as maneiras”, expõe o gerente Pedro Vaz, que, em meio às fotografias antigas que mantém em sua sala, sabe apontar exatamente quais são os ex-alunos que partiram dali para voos maiores. Desde que foi nomeado coordenador da rádio universitária, em 1999, Pedro conta que, ao todo, foram 24 projetos premiados, entre reportagens e programas especiais produzidos junto aos alunos.“O grande lance da rádio é trabalhar a experimentação e o laboratório no campo profissional, porque a emissora realmente está no ar”, destaca. Hoje, a Gazeta AM alcança a 19ª po-

sição entre as 35 estações contadas no IBOPE, uma boa marca, para Pedro. “Procuramos mesclar a tradição da AM com alguma experimentação, pois não queremos reproduzir o que é feito no mercado. Temos como filosofia trabalhar a inclusão social, acessibilidade, cultura e cidadania de modo geral.” Para Irineu Guerrini, essa é “uma bela diferença a favor dos alunos, pois são poucas as faculdades que possuem uma emissora de rádio que, inclusive, chega mais longe que a FM”. Com a vinda da internet, os veículos de comunicação foram obrigados a adaptar o seu conteúdo, aliando-se à plataforma recém-chegada – e a Rádio Gazeta não ficou de fora. Hoje, é possível também ouvir toda a programação por meio de alguns cliques, o que, segundo Irineu, faz parte de um novo momento vivido pelo jornalismo: a convergência de mídias. “Tanto

o rádio quanto a televisão estão convergindo de modo que você tenha, num único aparelho, mensagens sonoras, textos e vídeos”, esclarece. Regiani Ritter acredita que a Fundação Cásper Líbero é um gigantesco e bonito complexo de imprensa, comunicação e educação. “Cásper era alguém que tinha verdadeira paixão pela comunicação, tudo começou com ele. Às vezes eu brinco e digo que o senti pelos corredores.” Segundo Pedro Vaz, “assim como Roquette Pinto, criador do rádio, nosso fundador também tinha a missão de educar as pessoas, e é nosso dever continuá-la”. Seja através do baú de Leonilde, das pesquisas de Irineu, memórias de Regiane ou fotos de Pedro, a trajetória da Gazeta AM se mostra construída por inúmeras vozes. Vozes que ecoaram ao longo de 70 anos – e que continuam a contar novas histórias por meio das ondas radiofônicas. Maio de 2013 | Cásper

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DEPOIMENTO 36

Cรกsper | Abril de 2013


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extremos que o

rádio liga

O redator do departamento português da Rádio China Internacional traduz em um depoimento especial para a Cásper a importância do rádio na aproximação de povos e culturas Por José Medeiros da Silva Imagens José Geraldo Oliveira

I

magine um jovem, bem adolescente, que vive no interior de um estado pequenino, o Rio Grande do Norte e, pelo rádio, descobre que existe a China. Vai crescendo e construindo uma amizade solitária, quase invisível com informações e mensagens distantes. Passados alguns 20 e tantos anos, ele tem a oportunidade de estar do outro lado. Nos meus melhores roteiros sobre o futuro, acho que isso nunca chegou a ser pensado. Cheguei ao mundo com a primavera, no dia 23 de setembro de 1969, num lugar ermo do nordeste brasileiro chamado Ubaeira, pequena comunidade na zona rural de Touros. Apenas algumas famílias vivem ali. Mesmo hoje, a população não deve passar de 100 habitantes. Não nasci em hospital, mas dentro de uma casinha de taipa e com piso de barro. Minha família era muito pobre, como quase todos dali. Conseguir a subsistência já era grande vitória. Na última visita que fiz ao Brasil, em julho de 2012, tive a oportunidade de recordar, com alguns parentes,

pedaços de nossas memórias – como meu avô materno, João Sarafim. Um trabalhador braçal que não tinha terra e precisava trabalhar alugado para ganhar o sustento da família. Minha avó, Maria Sarafim, agora com 84 anos, era costureira. Também minha mãe, que já nos deixou, costurava e ensinava. Era uma professora leiga, que ajudou na alfabetização de muitas pessoas da comunidade. Fomos sustentados por valores humanos especiais, como o respeito ao próximo e aos mais velhos. Aprendemos a agradecer sempre por tudo, mesmo que fosse muito pouco. Em resumo, a sermos gratos pela vida. Com minha família aprendi a olhar o céu, as estrelas, as nuvens, a lua, a sorrir. E a ouvir histórias, muitas histórias. Principalmente quando apareciam aqueles cantadores de viola, com canções e improvisos; apresentações de João Redondo ou circos ambulantes de pano de saco. Como não tínhamos luz elétrica, nossas noites eram cheias de brincadeiras. Na areia, sem asfalto e quase

sem carros. Sentar na areia e brincar, inventar brinquedos, buscar água na cacimba, subir em árvores, pegar manga, caju, goiaba, mangaba. Assim eu cresci, quase sempre muito feliz. De 6 para 7 anos, lembro que eu já morava em outra comunidade, Cana-Brava, no município de Pureza, também um lugar muito pobre. Ainda hoje ele tem um dos mais baixos índices de desenvolvimento humano do Rio Grande do Norte. Foi aí que passei a ter consciência do mundo. Fui para a escola, aprendi a ler e, com a leitura, a entrar em outros mundos. Em Cana-Brava, só havia até a 3ª série do que hoje chamamos de Ensino Fundamental. Para fazer a 4ª, precisávamos ir a pé para outra comunidade. Íamos de caminhão para estudar à noite na cidade. No Ensino Médio, mais dificuldade, pois não tinha mais estudos ali. Então, saíamos a pé para uma comunidade vizinha e lá pegávamos o caminhão para ir estudar. À noite, dormíamos na casa de amigos e cedinho retornávamos para Cana-Brava. As dificuldades eram reMaio de 2013 | Cásper

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almente grandes, mas na época nem percebíamos, pois havia caminhos, conexões, pontes para interação com outros mundos. Esse percurso faz compreender a importância da educação e da solidariedade humana. Por isso compreendo profundamente o valor da campanha “A Educação em Primeiro Lugar”, anunciada em setembro de 2012 pelo Secretário Geral da ONU, Ban Kimoom, colocando a educação no topo da agenda para o desenvolvimento. O contato com a Rádio China Minha avó tinha um rádio, uma preciosidade, aquele ABC canarinho, mas quase não podíamos tocar. Quando eu tinha 9 ou 10 anos, minha mãe também tinha um. Pela manhã, sintonizava com a ajuda de algumas antenas, alguns programas de São Paulo, como o Jornal da Manhã e, principalmente algumas rádios em espanhol. Na época eu não sabia que era espanhol, mas gostava de ouvir aquele falar diferente. E só desligava quando minha mãe brigava. Já um pouco maior, à noite passava a sintonizar outras rádios, como a Radio Internacional da China, antiga Radio Pequim. Eu gostava das palavras, mesmo sem saber o signi-

ficado. Sempre apreciei suas texturas sonoras. Sentir outras vozes e outros mundos sempre foi fascinante para mim. Gostava de ouvir noticiários. O mundo se aproxima de você e, de repente, pela consciência, você já é parte dele. Dominar raciocínios, intenções... Nesse sentido o rádio foi uma importante escola, talvez a mais importante para aproximar-me de outros mundos e sentidos. Quando era adolescente gostava de jogar futebol, com bola de meia ou qualquer outra. Também gostava de ir para alguns bailes, missas, procissões. Na verdade, qualquer movimento social organizado para dar vida a uma coletividade. Mas não jogava bem, não dançava bem e, não sei se por feiúra ou distração, não tinha muita sorte para arrumar namorada. Eu me ocupava muito em andar por entre a fantasia e a imaginação. Na adolescência, entrei no mundo da literatura pelas portas do cordel. Ela me fascinava e ainda o faz. Quase todo sábado o meu tio e padrinho, Antônio Brito, trazia um cordel da feira. Ele deitava numa rede e me chamava para ler e aquilo me viciava. Quando passei a estudar na cidade, na 5ª ou 6ª Série, descobri que minha escola tinha uma bibliote-

ca. Encontrei José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos e muitos outros, como Júlio Verne e a sua Volta ao Mundo em 80 dias. Talvez com uns 13 anos, por um grande e maravilhoso acaso, fui um dia a Natal e, diante de um sebo, perguntei se aquele moço tinha algum livro bom de literatura. Ele me indicou Netochka Nezvanova, de Dostoievski. Foi o primeiro livro que comprei na vida. Lia, relia, chorava. Depois, quando tive a oportunidade de voltar a Natal, já ia com o nome daquele escritor na mão. Assim li Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov e tantos outros. Na universidade, fui saber quem era realmente Dostoievski e aí vieram Machado de Assis, Guimarães, Euclides, Mário, Drummond, João Cabral, Camões e tantas outras Pessoas. No doutorado, o encontro Mesmo saindo daquela escola, que pela primeira vez formava uma turma de estudantes do que hoje denominamos Ensino Médio, pude entrar na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no curso de Letras. Fui estudar no sertão, no Campus de Caicó, a cidade imortalizada por Heitor Villa-Lobos. Ali vivia na re-

O interior da Rádio Internacional da China, onde José atua no departamento de língua portuguesa

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sidência universitária e dias comia bem, dias comia menos, mas todo dia sorria. Descobri um novo sol, o sabor da carne de sol com macaxeira, do queijo de manteiga do sertão, do arroz de leite e da amizade. Depois do Rio Grande do Norte fui aventurar-me por São Paulo. Cheguei para fazer um mestrado na PUC-SP, em Comunicação e Semiótica, com as mãos abanando, mas amparado por amigos. Recebi uma bolsa de estudos e, sob orientação do saudoso professor, poeta e pesquisador Philadelpho Menezes, comecei a dar os primeiros passos pelo mundo das linguagens e das reflexões sobre a modernidade e seus adereços. Depois do mestrado, ingressei na área de Política Internacional e, em 1998 concluí o doutorado de Ciência Política na Universidade de São Paulo com uma pesquisa sobre a questão camponesa na China. Foi justamente essa escolha que me trouxe para cá. Em 2007, precisava visitar este país para uma pesquisa de campo, mas não tinha condições financeiras. Nesse momento de conflitos e incertezas, chegou um convite para ensinar português na China, pois na Universidade de Estudos Internacionais de Xi’an, a terra dos cavalos e soldados de terracota, iniciava-se um curso de português. Não quis acreditar. Depois do primeiro ano, me convidaram para permanecer. Voltei ao Brasil, defendi a tese, e imediatamente retornei para continuar meu trabalho. Fiquei por quase três anos. Um lugar fantástico, um sítio arqueológico a céu aberto. Por cerca de 3000 anos, Xi’an foi a capital do império chinês. Em 2010, tive a honra de ser um dos 7 estrangeiros da província escolhidos para receber o “Prêmio da Amizade”, o mais importante oferecido aos estrangeiros que contribuem para seu desenvolvimento econômico e social. Depois de três anos, o ex-embaixador chinês no Brasil, Chen Duqin, fez o convite para ajudar a montar o curso de português no Hebei Institute of Communication. E assim fiquei mais 2 anos na cidade de Shijiazhuang, capital de Hebei.

José Medeiros, que vive há seis anos na China, acredita que o rádio o aproximou de outros mundos e sentidos

O rádio, uma ponte Um dia estava em casa, e a atual diretora do departamento de português da Radio Internacional da China mandou uma mensagem perguntando se gostaria de trabalhar com eles. Já era o segundo convite. O antigo diretor também havia convidado, mas eu sentia que precisava ficar mais um tempo em Shijiazhuang. Valorizo muito essas bases potencialmente ricas para as conexões interculturais, nesses casos, com a China e o mundo falante de português. Nesse segundo convite, senti no coração que era o momento de vir para Pequim. Hoje, posso compreender com mais profundidade o papel do departamento de português da CRI [Rádio China Internacional] para a cultura de língua portuguesa. São 52 anos de transmissão, uma contribuição valiosíssima para a aproximação de nossos povos e culturas. O Brasil, no geral, é um país muito querido aqui.

Estou na China há cerca de 5 anos e a amo cada vez mais - ela tem cuidado muito bem de mim. E, no geral, tenho com os chineses uma relação de muita afetividade e admiração. Penso que, se nos desarmarmos de preconceitos sociais e culturais, poderemos compreendê-los com mais facilidade e construir relações de confiança mais sólidas. A canção Timoneiro tem esses versos do poeta e cantor Paulinho da Viola: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”. Quando penso no futuro, gosto de refletir na sabedoria desses versos. Nas nossas raízes culturais temos a força dos nossos povos primitivos, portugueses e africanos, seguidos por asiáticos, árabes e outras civilizações que vão se aportando para nos inventar, como dizia Darcy Ribeiro. Pois bem, dessas raízes, em alguns aspectos, sou fortemente influenciado. Principalmente de escutar o coração para seguir. Maio de 2013 | Cásper

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PORTIFÓLIO


Pelos olhos

delas Em cantos distintos do país, três fotojornalistas brasileiras constroem, por meio de retratos e registros cotidianos, narrativas únicas e sensíveis

Por Simonetta Persichetti

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esde que a fotografia foi inventada em meados do século XIX a mulher esteve presente na construção das imagens. Muito mais do que a história conta, muito mais do que a história mostra. Em 1994, a historiadora Naomi Rosemblum lançou o livro A History of Women Photography tratando justamente deste assunto. Como esquecer os magníficos retratos de Julia Margaret-Cameron (1815-1879) ou as fotos de Gerda Taro (1910-1937) na Guerra Civil Espanhola? De Tina Modotti (1896-1942) acompanhando a revolução mexicana; de Margaret Bourke-White (1904-1971), que estampou a capa da primeira edição da revista Life, e registrou os campos de concentração nazistas, imortalizando depois o líder indiano Mahatma Ghandi em frente a uma roda de fiar. Isso para ficar apenas no jornalismo. No Brasil também tivemos mulheres trabalhando nos jornais - se não desde o início do século passado, pelo menos a partir da década de 1930. Foi o caso da alemã Hildegard Rosenthal. Chegou ao Brasil em 1937 fugindo do nazismo e se tornaria, em São Paulo, uma das primei-

ras fotojornalistas com imagens em jornais como o Estado de S.Paulo e Folha da Manhã. A partir daí, o contingente feminino na imprensa brasileira só tem crescido – embora em menor número que os homens. Díficil não se lembrar dos registros da revista Realidade nos anos 60 e 70, realizadas por Maureen Bisilliat e Claudia Andujar. Ou das fotos de Nair Benedicto, uma das fundadoras da agência F4 em São Paulo. Mulheres batalhadoras, femininas, criativas, únicas. Para esta edição da Cásper, selecionamos três jovens fotojornalistas de diferentes pontos do Brasil. Cada uma nos apresenta o mundo como ele se oferece aos seus olhos. Na foto ao lado, de autoria de Luiza Sigulem, a mulher com o quadro na mão é Ida Martins da Silva, 81 anos. Viúva do primeiro desaparecido político brasileiro, Virgilio Gomes da Silva, que foi torturada durante a ditadura. O registro foi feito em 2012, quando ela acompanhava os trabalhos da Comissão da Verdade, com a esperança de encontrar informações sobre o paradeiro do corpo e de quem teria executado Virgilio.

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“Fotografar é uma forma específica de se relacionar com o mundo e entendê-lo. Assim como um psicanalista ou um historiador enxergam o mundo de forma diferente, um fotógrafo também tem uma forma peculiar de enxergar” 42

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Luiza Sigulem, São Paulo É a mais jovem das três. Tímida e contemplativa, encontrou na fotografia a forma de se expressar e de se comunicar. Uma maneira de ir a lugares diversos, conhecer pessoas interessantes, testemunhar acontecimentos do cotidiano. “Fotografar é uma forma específica de se relacionar com o mundo e entendê-lo. Assim como um psicanalista ou um historiador enxergam o mundo de forma diferente, um fotógrafo também tem uma forma peculiar de enxergar.” Há quatro anos trabalha na revista Brasileiros. “Comecei como estagiária. O diretor é o fotojornalista Hélio Campos Mello, quem me ensinou tudo o que sei.” Suas imagens são apontamentos, gestos contidos de quem se aproxima sem escancarar.

Para a revista, ela faz muitos retratos - talvez uma das mais fascinantes e difíceis estéticas. Fazer com que o outro se deixe capturar. Luiza entrou na profissão em meio a discussões e profecias sobre qual seria o futuro do jornalismo. Filha do seu tempo, percebe as transformações pelas quais a mídia está passando. “Os veículos mais tradicionais estão se adaptando às novas tecnologias e é natural que a fotografia tenha de dialogar com o vídeo, por exemplo. Ao mesmo tempo em que ela perdeu espaço nos meios impressos, há uma profusão de sites independentes, dedicados apenas ao fotojornalismo. A fotografia mais interessante está inclusive fora dos jornais, que demandam muita veloci-

dade e urgência. Trabalhar num jornal diário significa estar no ‘olho do furacão’, imerso nos acontecimentos. Isso também traz uma qualidade específica, mas tenho visto trabalhos com um valor documental muito forte, feito fora dos jornais, com mais calma e tempo de desenvolvimento.” Na foto abaixo, está Tereza Beatriz Viega, faxineira de 68 anos, em janeiro de 2012, após as operações policiais na cracolândia. Ela procurava sua nora Desiree, supostamente viciada em crack e grávida de seu filho, que se encontrava preso por tráfico, para lhe entregar comida e dinheiro. Ao lado, Gilberto Gil em 2009 – quase um ano após deixar o Ministério da Cultura – e Tom Zé, no mesmo ano.


Paula Cinquetti, Brasília Há 14 anos na profissão, ela nunca teve dúvida de que um dia seria jornalista. Só não sabia que mudaria das letras para as imagens. Em 1999 começou a estagiar na revista Caros Amigos e encontrou o fotógrafo carioca Walter Firmo, na época editor da revista. Foi ali que deu seus primeiros passos, embora seu primeiro trabalho profissional viesse por convite da revista Show Bizz. Neste momento, sentiu necessidade de se aprofundar no estudo da imagem e resolveu investir num curso de cinema no Rio de Janeiro. Reencontrou Walter Firmo, que mudaria sua vida. “De uma tarde inteira conversando com ele, saí com um novo trabalho.” Ela começou a organizar seus cursos, ajudar na edi-

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ção de seus livros e viajar pelo Brasil acompanhando suas expedições. O mais curioso é que Paula só comprou sua câmara em 2006. Até então fotografava com equipamentos emprestados por amigos: “Me chamavam de fotógrafa sem câmera”. Há três anos, Paula se mudou para Brasília, onde coordena a equipe de fotógrafos do Senado. São 10 fotógrafos e 4 arquivistas que cuidam das informações factuais atreladas à imagem. Ainda assim, ela nunca deixou de clicar. “A fotografia me faz observar a sociedade de forma mais crítica e analítica; me faz perceber o mundo à minha volta. Traduz liberdade e também me permite criar a partir do que já existe – o que acre-

dito que seja a solução para encarar a vida: aceitar e transformar.” Ao lado, um registro do Plenário do Senado logo após aprovação do texto-base do novo Código Florestal. Na mesma foto, à direita, de terno vermelho, a senadora Marinor Brito (PSOL-PA) lamenta a aprovação de regras mais brandas para a proteção de vegetação nativa, enquanto a senadora Katia Abreu (PSD-TO), da base ruralista, comemora juntamente com outros senadores. Na foto abaixo, estudantes fazem manifestação em frente ao Congresso Nacional para reivindicar que investimento em educação seja de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) e de metade das riquezas do pré-sal.


“A fotografia me faz observar a sociedade de forma mais crítica, analítica; me faz perceber o mundo à minha volta.Traduz liberdade e me permite criar a partir do que já existe – o que acredito que seja a solução para encarar a vida: aceitar e transformar”

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Hélia Scheppa, Recife Quando menina, Hélia Scheppa se encantava em ver os primos fotografando, especialmente se a foto era de casamento. Curiosa e atenta a detalhes e à delicadeza da situação, pedia para ver as imagens e saber como eram feitas. Decidiu estudar jornalismo, mas desde a faculdade sua vontade era fotografar. “Ela me ensina todo o dia sobre o mundo, as pessoas, as situações. Saber respeitar o próximo.” Para alcançar o que queria, veio para São Paulo estudar durante três meses no Foto Cine Clube Bandeirante. Ao retornar para Recife, começou como estagiária na Folha de Pernambuco, onde ficou por

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sete anos. Hoje, depois de 15 anos de profissão, trabalha no Jornal do Comércio. Ela também reflete sobre o futuro da profissão: “As mudanças tecnológicas influenciaram bastante o fotojornalismo atual. Hoje contamos histórias com vídeo e com fotos, ou seja, o fotojornalista tem outros meios de se exprimir. Além disso, o mercado solicita cada vez mais um profissional editor e que saiba realmente contar a história em uma única foto, saber escolher”. É muitas vezes com este olhar que Hélia sai em busca da notícia, um olhar metafórico que lhe permita, com um único golpe de vista, nos

dar ideia do fato. A cada nova reportagem, um novo desafio, uma nova maneira de olhar. “Trabalhar em jornal me coloca em situações tanto boas quanto ruins, que em nenhum outro lugar teria a oportunidade de viver. Fotografar para mim é descobrir e reconhecer.” À direita, uma criança atravessa a linha do Batalhão de Choque durante desapropriação da prefeitura de Recife. Abaixo, a personagem tira o sustento da família no lixão de Araçoiaba e um homem caminha com bicicleta durante enchente, provocada por forte chuva no ano de 2010, na Região Metropolitana do Recife.


“As mudanças tecnológicas influenciaram bastante o fotojornalismo atual. Hoje contamos histórias com vídeo e com fotos, ou seja, o fotojornalista tem outros meios de se exprimir”

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Moda à venda online A publicidade encontra um novo mercado no sucesso dos blogs de moda e, assim, segue experimentando outras formas de se relacionar com o público Por Mariana Marinho e Patrícia Homsi

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stração Ilu

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S

uas fotos circulam diariamente pela internet seguidas da hashtag lookoftheday. Suas roupas, cabelos, maquiagens e unhas recebem centenas de curtidas todos os dias, seja no Instagram, Facebook ou em seus próprios blogs. Suas dicas são lidas, seguidas e compartilhadas por leitoras entusiasmadas. Seus rostos já passeiam por páginas de revistas como Gloss, Glamour e até mesmo a Vogue. Estilosas e fashionistas, as blogueiras de moda conquistaram espaço na rede e mostram que também exercem influência fora dela: na São Paulo Fashion Week Primavera-Verão 2013/2014, por exemplo, havia uma área reservada apenas para elas. Se antes os blogs dessas meninas eram um espaço informal de expressão dos seus gostos e de troca de informação sobre produtos e acessórios de moda e beleza, hoje eles se transformaram em negócio de gente grande: além da visita das leitoras, atraem também a atenção de publicitários e de grandes marcas. Em 2011, Lala Rudge, que soma cerca de 270 mil seguidores no Instagram, foi escolhida como porta-voz da linha de batom Volupté Sheer Candy, da Yves Saint Laurent. Segundo a marca francesa, a personalidade e o estilo de vida da blogueira vêm de encontro com o DNA de seu produto. Lala abriu a porta de sua casa para uma noite de festa e make up, contando com a presença de convidados e de representantes da YSL no Brasil. Junto da irmã mais velha, Maria Rudge, Lala assina, desde 2010, os posts de um dos mais famosos blogs do meio, que leva seu nome. No Lala Rudge, as irmãs compartilham, entre outras coisas, fotos de seus looks diá-

rios, viagens internacionais e dicas de restaurantes e hoteis.

Donas da palavra Fernanda Campioni, especializada em Marketing e Comunicação Publicitária e coordenadora de brandbuilding da marca Mary Kay, afirma que os produtos comentados pelas blogueiras em seus posts se tornam objeto de desejo das leitoras. “Para as marcas, esse relacionamento é importante. Em 2011, o fato do blog Espelho Meu ter falado de uma de nossas sombras fez com que ela se esgotasse rapidamente no estoque.” Para Cris Guerra, a visibilidade e o poder de persuasão de uma blogueira hoje é comparado ao das celebridades. “O que as top models foram para mim, são hoje as blogueiras para as adolescentes”, garante Cris. Essa mineira de 42 anos passou 20 deles trabalhando como publicitária, até criar o Hoje Vou Assim, considerado o primeiro blog de looks diários brasileiro. Esse tipo de publicação consiste na foto do look (a combinação de roupas, acessórios e maquiagem) que a blogueira usará no dia, com informação das marcas e destaques de todas as peças. O sucesso da plataforma, que já chegou a ter cerca de 5 mil acessos diários, rendeu a Cris uma coluna de moda quinzenal na revista Veja BH e outra na Rádio Band News FM. Fernanda Campioni acredita que dois tipos de blogueiras se tornaram celebridades, “as consumidoras, pessoas da vida real que dão dicas de como se vestir; e as meninas de uma classe social mais alta, que usam marcas cobiçadas de roupas e produtos de beleza”. Com relação ao

aumento do interesse das internautas por esse segundo grupo, Roberta Cesarino, professora de Gestão de Negócios e Marcas e Identidade Criativa na Universidade Presbiteriana Mackenzie, sustenta que a razão é simples. É o mesmo mecanismo responsável por vender revistas de celebridades: a vontade de saber o que um mundo inacessível faz. “É um grande espetáculo”, define.

As top blogueiras Desde setembro de 2009 o site americano Signature 9 traz a lista dos 99 blogs de moda e beleza mais influentes no mundo. Além do número de acessos, o ranking leva em conta a repercussão do conteúdo dos blogs em redes sociais. Nenhum brasileiro apareceu nas duas primeiras edições. Apenas em abril de 2010 o Garotas Estúpidas, da recifense Camila Coutinho, entrou para a batalha, ocupando o 55º lugar. Em 2013, o blog aparece na quarta posição, junto de outros quatro brasileiros que entraram para a lista deste ano: Petisco, da ruiva Julia Petit; Fashionismo, da arquiteta Thereza Chammas; Blog da Mariah, de Mariah Bernardes; e Chata de Galocha, da mineira Luísa Ferreira. Cesarino entende que os blogs brasileiros ganharam força porque conseguiram romper com a estrutura das revistas do segmento. “Quando um estilista lançava uma coleção, ele fazia um grande esforço para que uma peça sua aparecesse em uma revista como a Vogue. Procurava que alguma editora de moda emitisse opinião a respeito de seu trabalho. O resultado era uma relação bastante estreita e até meio doentia.” Para ela, “as blogueiras Maio de 2013 | Cásper

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Divulgação/acervo pessoal

“Não vejo problema em fazer conteúdo pago, mas é realmente importante que isso esteja muito claro para a leitora” o mesmo cuidado de apuração e checagem de informação dos tempos em que trabalhava na Editora Abril.”

Anúncio mascarado

Editora de beleza da revista Vogue, Victoria Ceridono também alimenta o blog Dia de Beauté. Para ela, a transparência na publicidade é fundamental

democratizam a informação que antigamente era restrita às editoras de moda das grandes revistas.” O crescimento do fenômeno das blogueiras brasileiras foi de tal magnitude que abriu espaço para que se formasse a F*Hits, primeira network de blogs de moda do Brasil. Com curadoria da empresária Alice Ferraz, essa rede cuida do marketing e da imagem de todas as blogueiras vinculadas a ela, além de comercializar e gerenciar as entregas dos posts e mídia display dos blogs. A plataforma ainda oferece mais um serviço: o F*Hits Shops, site por meio do qual as leitoras podem 50

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comprar os looks vestidos e indicados pela sua blogueira preferida. “É um espaço onde nos reunimos para conversar e postar as informações dos desfiles. Muitas das nossas inspirações para os posts vêm dessa troca de ideia entre nós”, explica Lalá Noleto, uma das blogueiras da rede e dona do Blog da Lalá Noleto, que tem cerca de 50 mil acessos únicos diários. Ela conta que o formato do blog surgiu em 2007, quando já escrevia uma coluna de moda e beleza na revista Contigo!. “Colocava no blog um complemento do que escrevia para a revista. Quando elaboro meus posts, tenho

A atração da publicidade em torno das blogueiras culminou num assédio desenfreado de anúncios e publieditoriais. Em meio a essa nova oportunidade de faturamento, os blogs criaram um tipo de propaganda sem os aspectos tradicionais de transparência e espaço demarcado: os publiposts. “A publicidade precisa fazer com que o público seja um admirador de determinada marca. Por isso é interessante ter alguém influente que use, escreva algo, ou tenha uma ideia que possa ser associada a ela”, explica a especialista Roberta Cesarino. As maneiras de diferenciar um anúncio pago de uma expressão pessoal são muitas: Lalá Noleto os sinaliza com uma tag de Publicidade e Cris Guerra insere links das marcas. “Vendemos mais ‘ações’ no blog. Isso dá dinheiro para a blogueira e muito mais resultado para o anunciante”, afirma Cris, cujo blog está vinculado ao site da revista Claudia, da Editora Abril. “É um acordo: a Abril se apropria da minha audiência e a incorpora à sua. Isso me ajuda a ganhar publicidade e audiência também. No entanto, ultimamente tenho certeza de que gero


Divulgação/blog dia de beauté

Elencar as principais marcas e tipos de produtos é uma prática comum entre os blogs de beleza, como o Dia de Beauté

mais audiência no relatório da Claudia do que o inverso”, comenta. Os blogs, assim como os veículos de comunicação tradicionais, possuem mídia kits, contendo informações sobre acessos, valores de banners e frequência de posts. “No caso dos publiposts, o valor depende do tamanho, da dimensão do blog, do seu mídia kit. Há blogs com 5 mil seguidores e outros com 200 mil, então o valor gira em torno de mil a vinte mil reais, dependendo do blog”, afirma Fernanda Campioni. No entanto, o fato dessas “ações” nem sempre ficarem claras têm gerado polêmica. Em 2012, três blogs – o Blog da Mariah, Blog da Lala Rudge e Blog da Thassia – foram advertidos pelo Conselho Nacional de Autoregulamentação Publicitária (CONAR), alegandose que os três postaram textos com expressões muito semelhantes sobre produtos cosméticos da rede Sephora. O CONAR não possui nenhuma regulamentação específica para blog, pois o compreende como um formato de mídia como tantos outros. Segundo a assessoria, “se um veículo traveste seu conteúdo editorial em

publicidade e não deixa isso claro para o consumidor como exige o código, o CONAR não tem o que fazer. Se o autor do blog faz isso de má fé, ele tem o mais importante a perder: o respeito do público”. Victoria Ceridono, editora de beleza da Vogue Brasil e dona do blog Dia de Beauté, acredita que a transparência é essencial. “Não vejo problema em fazer conteúdo pago, mas é realmente importante que isso esteja muito claro para a leitora.” Por questões contratuais, Victoria não pode fazer propaganda paga. A editora alimenta o Dia de Beauté com novidades do universo da beleza e com vídeos, nos quais ensina a fazer maquiagem e penteados. Ela recebe muitos produtos, mas pode criticá-los livremente. “Não tinha necessidade de ficar alardeando que o DDB não tem conteúdo pago, mas agora algumas pessoas, talvez leitoras mais recentes, têm começado a questionar isso, então coloco a política do blog no fim de posts que podem gerar polêmica.” Para Roberta Cesarino, é inadmissível fazer um publipost pago sem

que o leitor tenha ciência disso. “A blogueira se transformou em mídia. Ela tem que saber o que é ético e o que não é na condução dessa informação.” Além da publicidade velada, o crescimento dos publiposts e as ofertas gordas dos anunciantes fizeram com que algumas blogueiras fugissem dos seus estilos. “A menina usa Christian Louboutin, Chanel, e, de repente, faz propaganda da Carmen Steffens. Não dá para fazer propaganda do que não tem a ver com você, porque o leitor vai perceber essa incoerência”, defende Cris Guerra. “A informação dos blogs pode ser a mesma encontrada nos grandes portais, mas pode ser mais autêntica, mais qualificada”, defende Roberta Cesarino. Independentemente dos benefícios comerciais da união de posts e publicidade, é importante que os blogs não percam em seu horizonte os fatores responsáveis que os tornaram famosos: autenticidade, frescor e espontaneidade. Tal qual a moda, é preciso se reinventar sem se esquecer de adicionar os elementos que funcionaram em épocas passadas. Maio de 2013 | Cásper

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TELEVISãO

a menina

dos olhos da TV A nova classe média já representa 54% dos brasileiros e ganha cada vez mais atenção. Na comunicação, as emissoras se adaptam para atender aos seus interesses Por Patrícia Homsi Imagens Divulgação Rede Globo

N

os anos 1960, o artista plástico Hélio Oiticica criticou o contraste entre a miséria nacional e a comoção em frente à tela da TV na instalação Tropicália. Um labirinto guiava o público por favelas, folhagens, areia. No final do caminho, uma televisão ligada o confrontava. Principal meio de entretenimento e informação do brasileiro, a televisão se tornou elemento indispensável nos lares, principalmente daqueles que ascenderam socialmente. Com o crescimento econômico e os benefícios garantidos pelo governo a quem está ainda abaixo da linha de pobreza, uma nova classe social começou a surgir: a chamada “Nova Classe Média”, conceito criado por Marcelo Côrtes Neri, economistachefe do Centro de Políticas Sociais e professor da Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE), da Funda-

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ção Getúlio Vargas. Após o sucesso do plano de estabilização econômica da década de 1990 e dos programas de inclusão do governo Lula, pelo menos 30 milhões de brasileiros subiram alguns degraus na escala do consumo – e são suas demandas que configuram, hoje, o padrão de um novo tipo de consumidor. Assim, os grandes conglomerados do país, bem como os grupos de mídia, passaram a direcionar produtos e serviços a esse público. Itens como móveis, cosméticos, televisores e seguros médicos se tornaram comuns à rotina dessa parcela da população – que agora passa mais tempo em frente à tela. Com seu recém-adquirido poder de compra, eles influenciam diretamente a TV aberta, que busca inseri-los em seus programas diários. “Nesse momento, eles representam uma parcela

significativa dos telespectadores. São os consumidores mais interessados, aqueles para os quais as campanhas publicitárias estão voltando os olhos”, afirma Nilson Xavier, autor do Almanaque da Telenovela. Além de maioria telespectadora, os brasileiros que alcançaram este novo patamar passaram a ocupar também o papel de protagonistas dentro das programações das emissoras.

Armas de popularização Com a chegada desse novo público às telas da TV, as emissoras procuraram se adaptar ao que consideram o gosto médio desta classe ascendente, que espera agora encontrar na programação certa familiaridade com suas preferências. Realizaram-se mudanças sutis, que abrangem tanto os telejornais, mais carregados de violência, fait divers e menos análise, quanto os


Personagens que não tinham destaque, como as empregadas domésticas, agora protagonizam a trama

programas de entretenimento, cada vez mais numerosos. Segundo Ana Carolina Temer, pesquisadora de Mídia e Cidadania na Universidade Federal de Goiás (UFG), “o público procura uma participação cada vez maior, seja simbólica – por meio de processos de identificação – ou efetiva. Quer ter chance de ser escolhido para um reality show, de ganhar um prêmio, de aparecer na televisão por qualquer motivo”. Por meio da presença das caravanas de espectadores nos programas de auditório, das celebridades instantâneas saídas do anonimato e apresentadores carismáticos, garante-se cada vez mais audiência. “Armas da popularização da televisão neste início de século”, como ressalta Ana Temer. A volta dos programas de auditório, bem como as mudanças nos enfoques das novelas e a grande quantidade de

reality shows constituem marcas características da TV hoje. Segundo Marcia Tondato, doutora em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e professora pesquisadora na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), é preciso entender de que maneira ocorre a ressignificação de tais conteúdos por parte das diferentes classes sociais – já que todas são espectadoras. No caso dos noticiários, por exemplo, “a periferia enxerga a oportunidade de identificar os problemas de seu cotidiano. A nova classe média se informa, enquanto as classes mais altas, por vezes, assistem por curiosidade”. No entanto, há quem diga que as mudanças na programação se justificam por um problema interno de baixa qualidade, e não por uma possível mudança concreta na sociedade. Segundo Lau-

rindo Leal Filho, jornalista, sociólogo da Universidade de São Paulo (USP) e apresentador do programa VerTV, transmitido pela TV Câmara e pela TV Brasil, a televisão já vinha num declínio de qualidade. “Vê-se que cresceu o número de programas de auditório com a justificativa do aumento da classe média. A TV mostra celebridades a qualquer pretexto e diz que é uma preferência da audiência, quando é apenas pretexto para a queda da qualidade.” Se as emissoras buscam maior audiência por meio dessa conexão com o novo público e a sua programação, talvez um dos caminhos mais evidentes dessa identificação sejam as telenovelas. Para Nilson Xavier, os folhetins sempre acompanharam as mudanças da sociedade, até mesmo por questão mercadológica e de sobrevivência. “Como atualmente Maio de 2013 | Cásper

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Divulgação/Acervo Pessoal

“Como atualmente mais da metade dos telespectadores é da chamada ‘nova classe média’, nada mais justo do que mostrá-los protagonizando as tramas”

Para Nilson Xavier, a nova classe média é o grande alvo dos publicitários

mais da metade dos telespectadores é da chamada ‘nova classe média’, nada mais justo do que mostrá-los protagonizando as tramas”, acredita.

Papel principal A mesa disposta verticalmente acomoda todos os membros de uma extensa família do subúrbio do Rio de Janeiro. Em torno dela, acontecem as cenas mais emblemáticas da novela Avenida Brasil. Sobre fatias de frutas frescas, bolos, pães e xícaras de café, os personagens – quase sempre com os nervos à flor da pele –, embarcam em discussões acaloradas sobre aspectos pessoais da vida da família e de toda a vizinhança. Na obra de João Emanuel Carneiro, houve a exploração de clichês 54

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culturais que envolvem a nova classe média, como a cabeleireira que enriquece com a criação de um novo produto. Tufão, o chefe da família, era um jogador de futebol aposentado que seguia morando no bairro onde cresceu e fez fortuna, o fictício Divino. Mesmo na atual telenovela, Salve Jorge, de Glória Perez, a referência bairrista vem do Complexo do Alemão, que encena o clima de vizinhança do subúrbio carioca. Apesar de não ter atingido índices de audiência tão altos quanto outros sucessos como O Clone e Senhora do Destino, Avenida Brasil ganhou repercussão entre público e crítica, conquistando a assiduidade de grande parte dos brasileiros em seus sete meses de exibição. A nove-

la soube aproveitar os núcleos da periferia como protagonistas, criando laços entre a trama e o espectador. “O centro dessas produções foi deslocado do núcleo ‘rico’ para o ‘popular’. Em geral, as novelas até então ‘começavam’ no núcleo ‘rico’, sendo os demais núcleos incorporados durante o desenvolvimento”, assinala Marcia Tondato. Para Nilson Xavier, o segredo é “transformar em protagonistas personagens que antes não tinham papel de destaque na teledramaturgia, como as empregadas domésticas [foi o caso da novela Cheias de Charme, por exemplo] e personagens de um bairro de subúrbio [como em Avenida Brasil e Salve Jorge]”. Com a trama centralizada em histórias vindas dos grupos populares – e não mais dos casarões elitizados isolados em condomínios fechados –, é viável considerar que a mudança na estrutura da sociedade brasileira orienta a mudança do protagonismo nas novelas. Porém, há outros fatores envolvidos no sucesso dessas produções. Na opinião de


As cenas mais representativas de Avenida Brasil aconteciam à mesa, durante as refeições

Laurindo Leal Filho, é a qualidade do roteiro que continua guiando os índices de popularidade. “É a boa trama que desperta suspeita e curiosidade. A audiência não é um resultado de mostrar mais o núcleo de classe média – até porque todo mundo gosta de ver diversidade na televisão.” Marcia Tondato também acredita que “não é o caso de dizermos que esse é um fator determinante, pois estaríamos nos colocando um problema maior: ‘Então o que atraía antes?’, cuja resposta já temos a partir das matrizes do melodrama e do folhetim, raiz da telenovela brasileira”.

De Cervantes a Agatha Cristhie “Todo mundo fica falando que sou maluco. Parece o cara do livro que eu estou lendo, o Dom Quixote, que de tanto ler romance de ‘cavaleiro’, começou a achar que era um. Sabe o que ele fez? Começou a partir para dentro do sonho dele.” O trecho é parte da fala de Tufão, personagem interpretado por Murilo Benício em Avenida Brasil. Entre uma armação e outra, a mocinha justiceira da trama,

Nina (Débora Falabella), apresenta ao patrão uma série de clássicos da literatura moderna. “Clássicos como no Maracanã”, de acordo com a icônica Carminha de Adriana Esteves. Utilizando, talvez, a inspiração de Machado de Assis, que, em Dom Casmurro, se referia às figuras de César, imperador romano, e Otello, personagem shakespeariano, João Emanuel Carneiro inseriu no roteiro referências literárias que recuperam a traição – traço recorrente em Avenida Brasil –, além de outros clássicos, como Madame Bovary, de Flaubert, Dom Casmurro, de Machado de Assis, e Primo Basílio, de Eça de Queirós. Até Sigmund Freud e seu A Interpretação dos Sonhos já foi discutido e introduzido por Tufão. João Emanuel Carneiro contou ao jornal O Globo que até mesmo a construção das personagens do lixão sofreu influências da obra de Charles Dickens e que o desfecho do personagem Max (Marcelo Novaes) foi baseado em Assassinato no Expresso do Oriente, de Agatha Christie. No entanto, a literatura preenche

ainda tímidos espaços da trama, que propõe ao espectador o encontro com uma “nova” forma de lazer, muito mais antiga do que a televisão, e que, ao mesmo tempo, atrai a atenção do público acostumado ao assunto. Para Laurindo Leal Filho, um dos papeis das grandes redes seria o de levar conhecimento e cultura ao público. “Não há compromisso com a elevação cultural e crítica de quem assiste TV, e isso é um problema. É necessário televisionar programas mais inteligentes, que desenvolvam o espírito crítico do espectador.” As inovações das telenovelas, a popularização e a abrangência do público da classe média ascendente não são implantados de maneira negativa. Pelo contrário, para que a adaptação englobe as camadas mais baixas que assistem à televisão – e também a decantada elite –, é importante que a qualidade não seja prejudicada. Nilson Xavier é enfático: “Popularizar pode ser abordar ou focar histórias e personagens mais populares, mas que agradam a todas as classes. O importante é sempre uma boa história.” Maio de 2013 | Cásper

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CULTURA

aperiferia mais perto O crescimento da produção cultural nas periferias das grandes cidades prova que não são apenas os centros urbanos que marcam a nossa cultura Por Victor Bonini Colaboração de Mariana Oliveira

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chuva contínua e os sopros de vento açoitavam a noite de quarta-feira na zona sul de São Paulo. Já passava das 20h45, horário em que se inicia religiosamente, todo meio da semana, o Sarau da Cooperifa. Mas, apesar do atraso, os organizadores – ou agitadores culturais, como se intitulam – ainda mantinham desligado o microfone que daria voz aos mais de sessenta poetas, prontos para recitar suas obras naquela noite. Detinha-se o início do sarau para que os visitantes de fora pudessem fugir da chuva e se abrigar no interior do Bar do Zé Batidão, localizado no bairro Jardim Guarujá. Quando a maioria estava acomodada – nem todos sentados, pois não havia 56

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cadeiras suficientes –, o fundador da Cooperifa, Sergio Vaz, moveu a chave do microfone para a posição On. Em instantes, o palco improvisado era tomado pela literatura, na imagem de homens, mulheres, jovens, velhos, negros, brancos, músicos e contadores de histórias. Um desfile de diversidade. Os poetas, introduzidos por um organizador, dirigiam-se ao tablado e declamavam seus versos, uns com os cadernos para recordar as frases, outros ousados o bastante a ponto de confiar na memória. Na plateia, as pessoas assistiam e escutavam atentas. O silêncio era quebrado por alguns murmúrios isolados vindos principalmente dos fundos, onde se acomodavam os

visitantes mais próximos do balcão e do caixa – e se perdiam em conversas, enquanto esperavam mais uma cerveja. “Shhhhh”, insistia Rosi Doria, uma das organizadoras. “Lembrem-se de que o silêncio é uma prece. Pode fazer barulho quando o poeta terminar.” Esse tipo de produção cultural tem apresentado em São Paulo um crescimento notável nos últimos anos. Conforme ganha notoriedade, influencia mais e mais os grandes centros culturais. Apesar de se mostrar ainda dispersa e diversificada, essa arte não deixa dúvida: seu contexto não se resume apenas às periferias e aos assuntos que a elas interessam. É uma arte que aos pou-


O Sarau da Cooperifa acontece todas as quartas, no Bar do Zé Batidão, Jardim Guarujá

cos aglutina e influencia a sociedade paulistana como um todo.

Os saraus A ONG Ação Educativa foi criada em 1994 com a proposta de educar a população de comunidades carentes, e viu na juventude um de seus principais públicos. Mas as consequências da iniciativa foram além de apenas cumprir a meta proposta: a ONG representou também importante papel no crescimento de ações culturais na periferia. Isso porque a Ação Educativa viu no rap, popular entre grupos jovens, uma oportunidade de se aproximar deles, passando a utilizar o ritmo como instrumento de inserção e ensino. O gênero musical

popularizou-se ainda mais com o tempo, sendo produzido e divulgado em maior escala – o que serviu para reafirmar a identidade dos cantores da periferia, que exploravam o cotidiano, os problemas e os ambientes de suas comunidades por meio das canções. Essa tendência, por outro lado, levou ainda a criar uma distinção entre o conteúdo originário da periferia daquele originário dos centros, em categorias bastante opostas. O coordenador da Ação Educativa, Eleilson Leite, aponta que essa diferenciação vem das raízes do movimento. “Desde Fim de Semana no Parque, rap de 1993, já era evidente essa dicotomia centro-periferia. Mas esse movimento de afirmação era necessário porque a

periferia era muito segregada”, esclarece Leite. “Isso vem da década de 90, com o Mano Brown e os Racionais Mc’s encabeçando o hip hop e o rap.” No entanto, quem hoje encontra esses músicos na mídia pode questionar a divisão entre cultura da periferia e dos grandes centros. E a explicação é simples: diferentemente de vinte anos atrás, as duas produções começam a se misturar, até por muitas vezes tratar dos mesmos temas. “No início, nossas poesias eram muito ligadas às críticas sociais”, conta Marcio Batista, um dos organizadores da Cooperifa, que teve início em 2001 e hoje é uma das maiores tertúlias de São Paulo. “São mais de sessenta poetas por noite, muitos Maio de 2013 | Cásper

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deles de outras regiões. E o conteúdo das criações é mais variado.” O poeta Binho, conhecido pelo sarau que leva seu nome, reforça esse ponto de vista: “O nosso sarau é, agora, um intercâmbio de ideias, uma grande mesa redonda que influencia e é influenciada por diferentes temas e em que todo mundo pode se expressar sobre o que pensa.” Para que a diferenciação de assuntos chegasse a esse ponto, porém, foi necessário, primeiramente, que a cultura da periferia fosse reconhecida fora de seu círculo. A criação da loja de roupas 1DaSul, marca fundada em 1999 por Ferréz, foi o primeiro empurrão. Reginaldo Ferreira da Silva, o nome real de Ferréz, veio do Capão Redondo, também periferia paulistana, é considerado um dos

maiores romancistas brasileiros da atualidade, irá este ano como convidado à Feira de Frankfurt, uma das mais importantes mostras de livros do mundo. A 1DaSul continua ainda hoje em três endereços - no Capão Redondo, Santo Amaro e na Galeria do Rock da 24 de Maio, no centro velho -, com o mesmo objetivo inicial: além da venda de roupas, camisetas e bonés, estimular o comércio cultural da periferia, um propósito que permitiu a Ferréz conhecer a fundo a cultura produzida em seu bairro de origem e difundi-la. “Esse contexto serviu de base para que Ferréz publicasse na revista Caros amigos três suplementos literários: Literatura Marginal, atos 1, 2 e 3, que tiveram um grande peso nesse cenário, pois revelaram ainda mais a cultura da

periferia”, relata Eleilson. Foi o empurrão necessário para que a onda de saraus eclodisse.

Ficou grande Lá atrás, a poucos metros do balcão, havia um móvel bastante insólito para um bar. Apoiada em uma parede e sempre à vista do Seu Zé, a comprida estante lotada de livros de diferentes gêneros, carrega exemplares que se sobrepõem como se competissem para chamar mais atenção de algum leitor em meio à vasta pilha de autores. Naquela noite de quarta-feira, ali ao lado, um homem de seus trinta anos recebia abraços e congratulações pelo projeto literário que desenvolvera e agora autografava sobre uma mesa de plástico. A Vida

Estante de livros que ocupa uma das paredes do Bar do Zé Batidão, sede da Cooperifa

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“Nesse cenário, o que mais chama a atenção é a literatura, porque sempre foi dominada pelas elites, pelos ricos”

em Três Tempos é o nome do livro, o segundo lançamento de Marcio Vidal Marinho. “Foram dois anos e meio preparando essa obra, que pretende discutir a vida nos seus três capítulos: guerra, trégua e paz”, comenta Marinho. Em seus escritos,ele trata de temas como amor e futebol por meio de “poesias, crônicas, aforismos e outros gêneros literários. Quis fugir daquele estilo de obra que só se ocupa com protestos”, pontua. Antigo frequentador do sarau da Cooperifa, Marinho recebeu especial menção de parabéns de Sergio Vaz durante os comunicados que antecederam o sarau. “Lançar meu livro na Cooperifa é algo mágico. A recepção das pessoas daqui é muito boa e eu percebo que elas gostam dos meus temas.” Além disso, as vendas durante o sarau foram expressivas, de acordo com o escritor, que já calcula ter recuperado mais da metade do dinheiro que investiu na publicação do volume. “Agora quero terminar meu mestrado em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa e lançar meu terceiro livro, que será de crônicas esportivas, sempre focando na literatura da periferia”, adianta. Eleilson Leite percebe que casos como esse se tornaram mais comuns do que no passado. “O início deste

Para Eleilson Leite, foi a produção literária que atraiu os olhos para a periferia

século marcou o aparecimento dos movimentos culturais na periferia. E nesse cenário, o que mais chama a atenção é a literatura, porque sempre foi dominada pelas elites, pelos ricos”, justifica. Ele destaca ainda que essa produção literária – vista como inusitada pelos tradicionais produtores de cultura – fez com que olhassem com maior seriedade para a produção artística da periferia. E o coordenador da ONG Ação Educativa reforça uma frase repetida por Sergio Vaz, Binho, Ferréz e outros nomes do movimento: “Pensavam que o povo da periferia não sabia ler, e agora eles estão escrevendo livros”.

Renato Rovai, editor da revista Fórum e professor no curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, comenta como esse preconceito sobre a baixa instrução dos moradores das regiões afastadas começou a ser quebrado: “O filho de uma família de boa renda ganha incentivos ao longo da vida que o permitem ter uma carreira promissora; já ao filho do pobre só resta estudar para se dar bem na vida”. Segundo Rovai, foi com esse pensamento que surgiram – e ainda surgem – os principais artistas da área. “Ficou claro que o caminho para a mudança era a cultura. Hoje se veem nos saraus trabalhos artísticos de grande Maio de 2013 | Cásper

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“Nosso sarau é um intercâmbio de ideias, uma grande mesa redonda”, afirma Binho

diversidade e sofisticação.” Eleilson Leite complementa: “O movimento cresceu, se abriu a outros segmentos. Já não se trata apenas do hip hop”.

A abertura e os filhotes “Até o segundo ano de vida da Cooperifa, ainda éramos muito fechados, voltados para nós mesmos. De repente, um jornal quis fazer uma matéria com a gente. Em seguida, a Globo quis gravar o nosso sarau para um programa. A coisa começou a se espalhar para outros veículos e deslanchamos”, lembra Marcio Batista, um dos organizadores do evento. Entre fechar e abrir para outros públicos, a decisão foi abrir. “Divulgar o sarau significava influenciar a criação de outros grupos em diferentes regiões do Brasil”, ressalta Batista. “Para ter uma noção, depois da Cooperifa foram criados, apenas no Estado de São Paulo, mais de 50 saraus que seguem nossos moldes.” 60

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Durante os saraus da Cooperifa, já foram lançados mais de setenta livros com edições de até mil exemplares,“e chegam, às vezes, a esgotar, porque há público que consome nossa literatura”, frisa Batista. Isso sem contar o Natal Literário e a Mostra Cultural, que em seus dez dias traz ao bairro palestrantes sobre literatura, música, cinema e teatro. O poeta Binho teve de enfrentar dificuldades com seu projeto quando estava em profunda efervescência: o espaço que sediava o Sarau do Binho teve as portas fechadas por falta de alvará. “Não nos davam o alvará como uma justificativa para fechar”, explica o criador do projeto, para quem o fechamento era a resposta das autoridades ao combate político que seu sarau representava na região. “Mas continuamos, porque como um sarau é feito por palavras, não há como impedir.” Hoje em dia, o Sarau do Binho – descrito por ele como iti-

nerante – acontece mensalmente na praça do Campo Limpo e no Espaço Clariô de Teatro. Mas, mesmo com o entrave do alvará, as atividades culturais de Binho não foram interrompidas. Um exemplo é o projeto de viagem Donde Miras, “uma caminhada cultural pela América Latina. Entramos em consenso sobre algumas cidades ou regiões interessante para visitar, tiramos quase um mês de férias e vamos a pé até lá, parando em alguns municípios do caminho para realizar saraus”, conta Binho. Até agora o projeto já teve quatro edições – uma delas, inclusive, percorreu o litoral paulista inteiro – e dela surgiu o livro Donde Miras: Dois poetas e um caminho, lançado no Sarau do Binho. Em 2013, a expectativa é de que o programa se repita. “Pensamos em ir para a Bolívia, onde ocorrerá um encontro cultural de toda a América Latina”, menciona o poeta.



RESENHA

páginas

de uma nação

em construção Por Gilberto Maringoni

L

eiam A revista no Brasil do século XIX – A história da formação das publicações, do leitor e da identidade do brasileiro. Leiam! Leiam, leiam, leiam. Toda recomendação é pouca. Trata-se de um formidável levantamento sobre o período pré-industrial da imprensa brasileira. Seu desenvolvimento teve o condão de expressar as rápidas mudanças pelas quais passou a sociedade entre a Independência e os primeiros anos da República. O autor é Carlos Costa, um historiador que prefere ser chamado de jornalista, quando não está no papel de professor.

Todas as posições Carlos Costa é homem da imprensa escrita, que jogou em quase todas as posições. Começou como revisor e copidesque – função hoje extinta – e tornou-se repórter, editor, chefe de sucursal e de escritório no exterior, sempre pela Editora Abril. Colocou os pés numa redação aos 25 anos de idade, com algumas vantagens comparativas, expressão tão ao gosto dos economistas. A primeira delas era ser dono de vasta cultura, adquirida em duas faculdades, teologia e filosofia. A segunda foi uma invejá62

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vel disciplina para o trabalho, resultado de anos de seminário, no Brasil e na Espanha. Se a Igreja perdeu um futuro padre, a imprensa ganhou um versátil profissional. A terceira vantagem comparativa foi conquistada numa nova graduação – em jornalismo, na Cásper – e na copa e cozinha das publicações por onde perambulou. As três marcas moldaram uma prosa fluente e elegante, capaz de fisgar o leitor no primeiro parágrafo. Não é algo desprezível. Celso Furtado, um dos maiores intelectuais brasileiros de todos os tempos, dizia que “a palavra é a expressão do pensamento organizado”. Texto claro e cativante nasce de ideias idem. Não bastasse isso, tantos anos vividos em sala de aula e em programas de pesquisa revelaram outro talento de Carlos Costa: o de historiador meticuloso.

Grande reportagem A revista no Brasil do século XIX revela o melhor desse viés. Carlos faz uma grande reportagem sobre uma atividade que enfrentou violências, censura, precariedades materiais, altos índices de analfabetismo, bai-

xo poder aquisitivo da população e restrito mercado consumidor. Com método e rigor, o livro apresenta em cada capítulo uma linha do tempo que se inicia em 1813, com O Patriota, “jornal literário, político e mercantil”, do Rio de Janeiro. Ela atravessa o século e termina em 1900, com A Revista da Semana, protótipo da moderna imprensa de variedades, a mesclar política, vida mundana e entretenimento em suas páginas. Nosso autor faz incursões pela fase áurea da imprensa de caricaturas, entre 1860 e 1890, examina publicações femininas, disseca os “Almanacks”, e mostra a evolução das técnicas de impressão, quando a atividade jornalística começa a se profissionalizar. Mas não se trata de uma sucessão de nomes e títulos de veículos já desaparecidos. O livro ressalta que a evolução da imprensa vinculou-se desde o início à formação da nação. A sucessão de jornais, revistas e folhetos revela-se uma das expressões de uma identidade coletiva, com aspectos positivos e também progressistas, mas, por outro lado, com faces preconceituosas e elitistas. O Brasil do século XIX sofreu aceleradas transformações em perí-


Marco carlotto

O lançamento aconteceu na livraria Martins Fontes, da Avenida Paulista, no dia 14 de março

Pouco explorado Os estudos sistemáticos sobre a história da imprensa brasileira são relativamente recentes. Há alguns levantamentos realizados no início do século XX, em especial os de frei Pedro Sinzig sobre caricatura, escrito em 1911, e o de Afonso de Freitas, acerca da imprensa paulista, publicado em 1915. Depois desses, as grandes marcas foram a História da caricatura no Brasil, de Herman Lima (1963) e a Historia da imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré (1966). Os dois trabalhos consumiram mais de uma década de seus autores e são referência essencial até hoje. A partir dos anos 1980, as pesquisas históricas sobre meios impressos

e eletrônicos ganharam fôlego, juntamente com a disseminação dos programas de pós-graduação nas universidades. A imprensa deixou de ser fonte de apoio e ilustração para teses e dissertações e passou a ser ela mesmo objeto de estudo. Mesmo assim, há um imenso campo a ser desbravado. O exame de publicações do século passado – quando a atividade de imprensa consolidou-se como empreendimento industrial – multiplicou-se em trabalhos acadêmicos, biografias, testemunhos, memórias e até romances. O século XIX, no entanto, tem uma cobertura bem menor. É nesse universo que Carlos Costa optou por realizar um panorama detalhado. Uma contribuição expressiva para entendermos não apenas o que é, de fato, a imprensa brasileira, mas o que foi nossa evolução social nas primeiras décadas de vida independente.

divulgação Alameda editorial

odos de tempo relativamente curtos. Começou como colônia, povoada por cerca de 3,24 milhões de habitantes, e terminou como República, com uma população de 17,37 milhões. Deixou de ser uma economia escravista e chegou ao capitalismo periférico, sem perder as marcas da desigualdade social e de exportador de matérias primas. É em meio a essa atmosfera que a Comunicação nasce, cresce e prospera.

A revista no Brasil do século XIX – A história da formação das publicações, do leitor e da identidade do brasileiro (Alameda Editorial, 458 páginas), de Carlos Costa

Gilberto Maringoni é Professor de Relações Internacionais da UFABC, ex-professor da Cásper Líbero e autor de Angelo Agostini, impressões de uma viagem da Corte à Capital Federal (1864-1910)

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notícias CASPERIANAS

CENTRO ACADêMICO

PUBLICIDADE

JORNALISMO

Aulas magnas, ciclo de cinema e debates iniciam o calendário de atividades da Faculdade Cásper Líbero O jornalismo frente às novas ferramentas Convidado para ministrar a aula magna do curso de Jornalismo, Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil e professor da PUC-SP, discutiu os obstáculos da profissão atualmente. Contrário à obrigatoriedade do diploma, ele compartilhou suas experiências como repórter

investigativo e independente, além do contato com ferramentas digitais. Daniela Osvald Ramos, coordenadora do curso, acredita que o evento mostrou outras formas de encarar a profissão, apontando para a produção de conteúdo voltada às agências de comunicação e à carreira baseada na

tradição investigativa. O trabalho de Sakamoto a partir da internet também é destacado pela docente: “Ele representa um novo tempo, mais empreendedor e cumpridor de sua função na essência”. A aula magna ocorreu nos dias 19 e 20 de março, no Teatro Cásper Líbero.

André Porto Alegre discute os rumos da profissão No dia 14 de março, a aula magna do curso de Publicidade e Propaganda ficou por conta de um ex-casperiano: o jornalista e publicitário André Porto

Alegre. Com extenso currículo, ele acumula passagens pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação da Propaganda (CONAR), Conselho do Fó-

rum do Audiovisual e Cinema (FAC), Folha de S.Paulo, dentre outros. Junto aos alunos, debateu o atual rumo do mercado publicitário no Brasil.

Centro Acadêmico debate a figura da mulher na atualidade Para celebrar o dia da mulher, 8 de março, o Centro Acadêmico Vladimir Herzog promoveu o encontro Mulher & Mídia, que ocorreu durante os dias 4 e 7 do mesmo mês. O evento baseou-se na mostra de documentários

seguidos por debates sobre a representação da mulher na mídia, racismo, aborto e homossexualidade feminina. Foram convidadas palestrantes como a filósofa Márcia Tiburi e a estudante de filosofia da USP Vivian Petri, que

resumiu em poucas palavras o intuito do evento: “Não, não é um machismo às avessas. A luta do feminismo é para que a gente exerça nossa identidade. Qualquer que seja ela. E que a gente tenha igualdade de direitos”. LUIZA FAZIO

O 2º dia, sobre racismo, contou com Juliana Causin, Chico Nunes, Cinthia Gomes, Luka Franca e Danillo Oliveira

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Divulgação/CECL

RELAÇÕES PÚBLICAS

RáDIO E TV

CULTURA GERAL

O 10º Ciclo de Cinema de Cultura Geral levantou discussões em torno dos profissionais de comunicação

O cinema é destaque em Cultura Geral Entre os dias 11 e 14 de março, a questão da ética na comunicação foi abordada, através do 10º Ciclo de Cinema de Cultura Geral, que exibiu filmes relacionados ao tema, na Sala Aloysio Biondi. A cada dia, um curso da área (Rádio e TV, Publicidade e Propaganda, Jornalismo e Relações Públicas) foi analisado com base na obra exibida. Seguindo a tradição, o

debate pós-exibição contou com a participação de professores e alunos dos quatro cursos. O Comerciante, de Lars Kraume, abriu o ciclo questionando os desafios a que os publicitários estão sujeitos na carreira. No segundo dia, o profissional de Rádio e Televisão foi analisado por meio da exibição de Quiz Show – A verdade

dos Bastidores, produzido por Robert Edford. O documentário Roger e Eu, do diretor Roger Moore, serviu como fonte para o debate sobre o papel do profissional de Relações Públicas. Fechando o ciclo, a produção O Quarto Poder, de Costa-Gavas, foi escolhida para a discussão sobre os limites que o jornalista deve se impor para produzir uma reportagem.

Carlos Augusto Calil ministra aula magna para o curso de Rádio e TV No dia 13 de março, o cineasta e ex-secretário de cultura da cidade de São Paulo, Carlos Augusto Calil, ministrou a aula magna de Rádio e TV. Professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicação e Artes da USP, Calil guiou a discussão sobre a inserção da

comunicação no plano da cultura. A coordenadora do curso, Elisa Marconi, destaca o modo singular de Calil expressar suas ideias. “Ele possui uma ironia na fala, e a compreensão dela por parte dos alunos já é um desafio natural”, analisa a docente. O cineasta enfatizou a distinção entre os diversos

conceitos de arte, além de discutir como a comunicação é influenciada pela dinâmica cultural. Por meio do debate, Elisa acredita que a discussão contribui para a evolução educacional dos alunos: “Grande parte da fala de Calil talvez faça sentido ao longo da vida universitária dos estudantes”.

Marianne Feldmann explica as relações diplomáticas entre Brasil e Áustria A embaixadora da Áustria no Brasil, Marianne Feldmann, foi a convidada da aula magna do curso de Relações Públicas. A aula ocorreu no dia 24 de abril e tratou de temas

como a relação entre os países e o papel de representação do profissional de Relações Públicas. Marianne Feldmann discutiu a entrada de produtos austríacos no Brasil e a facilidade de

negociação comercial entre os países. Sua função como embaixadora, assim como o profissional de RP, é manter a estabilidade e os benefícios da relação diplomática entre seu país e o Brasil. Maio de 2013 | Cásper

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CRÔNICA

Luíza Fazio

A cidade é sua Por Luísa Pécora

E

ra uma terça-feira ruim de uma semana negra de um mês não muito melhor. Por volta das 17h saí do trabalho e comecei o trajeto até meu próximo compromisso, dali uma hora e meia, na Vila Mariana. Na estação Berrini da CPTM, o cheiro do Rio Pinheiros estava desagradável como sempre. Comemorei quando o trem chegou cheio, mas não lotado, permitindo o embarque. Enfrentei a multidão e as múltiplas escadas da estação Pinheiros e consegui baldear para a linha amarela do metrô. Na Paulista, a caminho da verde, cruzei o túnel lotado a passos lentos, seguindo o fluxo dos outros. Finalmente, a estação Ana Rosa, onde nova aglomeração, dessa vez acompanhada de música alta, me fizeram amaldiçoar mentalmente – talvez em voz alta – o metrô, a prefeitura, a população e a cidade. A curiosidade humana, potencializada pela jornalística, fez fracassar o plano de passar batido pela multidão. Dei uma espiada: era um show. Os músicos usavam uniformes e um cartaz explicava se tratar da Banda dos Seguranças do Metrô. Eles tocavam Zeca Pagodinho e a plateia, provavelmente trabalhadores da região e usuários de transporte público, sambava, feliz. Quando começou um hit do Roupa Nova, desconhecidos dançaram juntos e a equipe da limpeza improvisou coreografia. Vi um lugar cinza ficar colorido e decidi chegar atrasada. Várias semanas se passaram. Era um domingo 66

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tranquilo de um feriado bonito de um mês promissor. Entre todas as opções de lazer possíveis, escolhi passar a tarde no inóspito Elevado Presidente Costa e Silva, vulgo Minhocão, um dos mais feios e criticados espaços paulistanos. Motivava-me, a princípio, o show da banda do meu namorado. Mas havia também a lembrança dos seguranças do metrô. Sim, eu prefiro rock e detesto esse lugar. Mas às vezes a cidade surpreende. Foi a primeira vez que passei pelo Minhocão a pé, com a via fechada para carros. Muita gente caminhava, corria, passeava com o cachorro e aproveitava o dia. Enquanto a banda passava e o público acompanhava dançando, eu olhava para os prédios próximos – lugares tão ruins para morar, desvalorizados, barulhentos, sem privacidade. Observei as pessoas na janela e pensei se elas estavam felizes em encontrar, pelo menos naquele dia, cores e música em vez da cinzenta e barulhenta infelicidade do trânsito. Dois dias bonitos em lugares feios definiram meu próprio Ocupa Sampa: a vontade e a missão de reocupar, mesmo que por pouco tempo, um lugar urbano que já não parecia pertencer a mim. Como mantra, uso palavras que vi pichadas no Minhocão: “A cidade é sua.” Luísa Pécora é jornalista formada pela Cásper Líbero em 2008. Hoje, é repórter de Cultura do portal iG.



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