Continente #015 - Paulo Coelho

Page 1



http://www.continentemulticultural.com.br

CONTEÚDO

Continente Multicultural

Especial – O segredo da imortalidade Em entrevista exclusiva, Paulo Coelho explica por que acha que será lido daqui a cem anos

Ferreira Gullar – Espetáculos Crítico comenta o equívoco das exposições de arte transformadas em “eventos”

História – Mártires Manuel Correia de Andrade compara Tiradendes com Frei Caneca à luz das revoluções libertárias

Literatura – Novo passo O poeta César Leal estréia como romancista e fala das diversas possibilidades do gênero

Religião – Paixão de Cristo O costume de encenar a vida de Jesus, os filmes sobre o tema e as Paixões pernambucanas

06 20 22 26 33 Página 33

Paulo Coelho na noite de autógrafos de O Demônio e a Senhora Prym Foto: Marc Alex / AFP

Antologia – João Esteves Pinto Poeta português sugere que criar uma idéia é tão importante como existir o Himalaia

Jornalismo – Sem papas na língua

O veterano Joel Silveira tem opiniões contundentes sobre temas polêmicos ou banais

Diário de uma víbora – Vigília Nas noites de insônia, a víbora reflete sobre o mau-caratismo que vem do calor dos trópicos

O filme A Festa de Babette inspira um banquete nordestino igualmente mágico

Memória – Lição de História

Entremez – Mitos O Rei Divino, que dá a vida pela salvação do reino, encontra ecos tanto em Judas quanto em Jesus

Giro – Cícero Dias Aos 95 anos, o pintor modernista tem biografia crítica abarcando toda a sua vida e obra

Crítico e encenadores respondem à pergunta: há o que se comemorar no Dia Mundial do Teatro?

Conto – Pedro Salgueiro A inquietação de um artista e uma procissão que acaba em morte, em dois minicontos

46 52

56 60

Sabores pernambucanos – Cinema

Uma homenagem ao historiador José Antônio Gonsalves de Mello, autor de Tempo dos Flamengos

Teatro – Balanço

54

Crônica – O militante e a dor O que acontece quando uma mulher desconfia das reuniões políticas do marido e faz greve de sexo

Últimas palavras – Superstição A popularidade dos livros de auto-ajuda mostra que a exploração da boa fé é um bom negócio

64 68 72 74 95 96


Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes

A melhor

Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira

Arte Luiz Arrais

Editoração Eletrônica André Fellows

Ilustradores Lin e Zenival

Colaboradores: Adriano Espínola, Alberto da Cunha Melo, Alcides Ferraz, Alcione Ferreira, Alexandre Belém, Dan Chung, Eduaro Knapp, Fábio Lucas, Fernando Monteiro, Ferreira Gullar, Flávio Lamenha, Giovanni Sérgio, Howard Coster, Jacques Vemarthon, Joel Silveira, Jorge Clésio, Kleber Mendonça Filho, Leo Caldas, Luciano Trigo, Manoel Ceiga, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Maria Teodora de Barros Oliveira, Mascaro, Pierre Verdy, Ricardo Fernandes, Rivaldo Paiva, Rodrigo Albea, Rogério Reis, Ronaldo Correia de Brito, Sebastião Vila Nova, Sônia Van Dijck, Stan Honda Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Neuma Kelly Silva, Paulo Modesto, Rafael Rocha, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 - Fone: 0800 81 1201 - Ligação gratuita e-mail: informacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br e-mail: publicacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

2 Continente Multicultural

Considero a revista “Continente Multicultural”, sem favor, como a melhor revista do gênero que é publicada em nosso País, não somente pela excelente qualidade gráfica, como pela abordagem dos variados e interessantes temas, que vem apresentando nos seus sucessivos números. Expresso os meus parabéns e faço votos que permaneça por longos anos, com esse elevando padrão. José Wanderley Carvalho – Recife – PE Blocos Venho aqui, em primeiro lugar, parabenizá-los pela excelência da revista a qual recentemente assinei e a qual certamente me renderá muito boas leituras. Em segundo lugar, quero aproveitar para sugerir uma matéria sobre o carnaval do Recife - mais especificamente sobre os blocos (conhecidos como Blocos Carnavalescos Mistos), de cuja história é profundo conhecedor o conselheiro Leonardo Dantas Silva. Como já é notoriamente sabido, os blocos caracterizam um aspecto bastante peculiar do Carnaval pernambucano, que é a integração de grupos familiares de determinados bairros da capital e de cidades vizinhas para saírem às ruas trajando belas fantasias, nas cores características de cada gremiação. Pela sua própria formação (em que se destaca a presença feminina, que compõe o coro da orquestra) e repertório característico das orquestras de pau-e-corda (a marcha-de-bloco, cuja temática é marcada pelo saudosismo), os blocos sem dúvida constituem uma das mais belas manifestações do nosso carnaval, sobretudo pela sua singularidade - vale lembrar que os ranchos do Rio de Janeiro, uma expressão carnavalesca semelhante, que guarda proximidade com nossos blocos em sua origem, e que configuraram um gênero musical (a marcha-rancho) da maior beleza na história musical do Carnaval brasileiro, estão praticamente extintos há anos. Acredito, pois, ser muito válida a proposição de uma matéria enfocando os blocos, sobretudo pelo fenômeno de ressurgimento de alguns deles, extintos há muito tempo, mas especialmente pelo aparecimento de um grande número de novas agremiações, a partir da década de 90. Júlio Vila Nova – Recife – PE


Excelente Homero, Marco Polo, Mário Hélio e equipe, parabéns pela excelente revista. Alexandre Gondim – Recife – PE Belíssima Parabéns pela magnífica revista! A página eletrônica, então, está belíssima. Qualidade de primeira. O conteúdo, mais ainda! Continuem divulgando cultura genuína, em nome de Pernambuco! Francisco de Assis Braga – Recife – PE Compactação Parabéns a toda equipe que faz a revista Continente. Pernambuco há muito tempo merecia ter uma revisa de grande qualidade como essa, provando o grande nível da cultura e competência dos pernambucanos. Já estava na hora de deixarmos a submissão às publicações sulistas e criarmos algo nosso. Gostaria de sugerir à equipe da Continente que, a partir da edição número 51, fizessem CD ROMs com as primeiras cinqüenta edições completas da revista. Incluindo as edições especiais, como a de Turismo. Entristece-me a idéia de fazer, daqui a alguns semestres, uma triagem de todos os exemplares da Continente que possuo, devido à falta de espaço para armazena-los. Assim, a compactação em CDs torna-se a melhor alternativa para os leitores domésticos disporem das primeiras cinqüentas edições quando quiserem. Aproveito para sugerir também uma matéria contendo um paralelo entre os escritores Érico Veríssimo e Luís Fernando Veríssimo. Vida, obras, estilos literários e a repercussão de cada um ao seu tempo, ilustradas por belas fotos desses grandes escritores brasileiros. Espero que minhas sugestões sejam aceitas e à equipe desta grande revista desejo bastante sucesso. Achilles Cleto C. da Luz – Recife – PE Globalização Como de hábito, leio a Continente vorazmente, num só fôlego. Neste número 13, foi diferente. Parei para respirar após a leitura das páginas 34 a 37. (NR: O leitor refere-se à matéria “O patrimônio imaterial”, entrevista com o vice-presidente dos institutos Ricardo Brennand e Cultural Itaú, Joaquim de Arruda Falcão). Isto é o que eu chamo de “volúpia modernosa”. Senti um gosto esquisito de conservante que será adicionado ao bolo-derolo industrializado. É a necessária versão “diet” para o mercado global? Deverá ser daquelas que dão ânsia de vômito. Pensei em produzir um tratado contra esse discurso fundamentalista sobre a globalização. Qual o quê! Continente é uma publicação tão completa que lá nas páginas 68 a 68 (NR: Coluna “Entremez”), Ronaldo Correia de Brito oferece o melhor antídoto para a taça de cristal “Baccarat” cheia de veneno oferecidas nas páginas 34 a 37. Grande Ronaldo! Grande Continente! Renato Feliciano Dias – Recife – PE

Programa Foi interessante, num horário tão difícil, principalmente pela briga de audiência das grandes emissoras, com programas enlatados, podermos encontrar juntos um programa de Pernambuco, e uma revista que já está dando o que falar (NR: O leitor refere-se ao programa “Opinião Pernambuco”, levado ao ar dia 25 de janeiro, às 21h, pela TV Universitária). Vocês estão de parabéns, e espero fazer a assinatura já nesta segunda-feira. Marco Filipo – Recife – PE Riqueza cultural Meu pequeno comentário sobre o assunto das páginas 34 a 37 (NR: Matéria “O patrimônio imaterial”, na edição de Janeiro) da “Continente”: Temos produtos culturais de dar inveja a qualquer país de Primeiro Mundo. Falta uma decisão política no sentido de divulgação da nossa riqueza cultural. Falta investimento. Porque não se investe maciçamente nos produtos artesanais, folclóricos e artísticos em geral? Esses produtos podem ser geradores de divisas. Antonio Francisco de Lima – Cabo – PE Conteúdo Gostei muito mesmo do número de Dezembro da revista Continente Multicultural, pois está rica em conteúdo. Roberto Belo – Recife – PE

Continente Multicultural 3


AnĂşncio

4 Continente Multicultural


H

á uma frase atribuída a autores distintos – “não li e não gostei” – que pode facilmente ser invertida e servir para aqueles livros que agradam e conquistam o público, sem que este tenha de se ocupar em lê-los. Bastaria comprá-los. Não é este o caso de Paulo Coelho, escritor que veio a suceder Jorge Amado na capacidade de cativar o seu público. Sim, porque as acusações que costumam ser feitas à literatura de um best-seller devem ser feitas menos ao autor e mais a quem o lê – e são muitos, e são tantos que logo se conclui: não é caso de vida literária e sim de marketing e indústria cultural, afeito mais à comunicação de massa do que à erudição a que o senso comum costuma associar toda a literatura digna desse nome. O romance da modernidade trouxe consigo a problemática da linguagem. Ela é que seria o centro de todas as atenções de um autor – a sua máxima elaboração, até o exagero de novos cultivos e conceptismos, que chegassem ao limite do ininteligível. Não seria mais contar uma história – a linguagem se bastava. Isso, no entanto, foi opção de uma minoria sofisticada e entediada – que é quase a casta de onde provêm os escritores. Sim, para estes a técnica é quase tão relevante quanto dizer que a “marquesa fulana de tal saiu às quatro horas da tarde”. Era uma frase como esta usada por Valéry para explicar por que não escreveria um romance: não se sentia à vontade com banalidades desse tipo. O noveau roman, no entanto, foi noutro caminho, e criou romances, em que era possível prescindir não somente da história, mas também das personagens. Paulo Coelho é de uma geração que cresceu em meio a todas essas questões – inclusive ao existencialismo que ainda deixou ecos. A sua origem – na música popular, e no interesse pela magia – explica em parte o seu êxito: a capacidade de comunicação com o público. Também é de um tempo em que autores

como Carlos Castañeda – ele é uma espécie de novo Castañeda – “fizeram a cabeça” de toda uma geração. Não foi somente ele que navegou nas águas turvas do esoterismo – Fernando Pessoa chegou a ser astrólogo profissional – nem da canção popular: Vinicius de Moraes deve a sua popularidade a isso, além das facilidades da vida diplomática. Além disso, se se observar sem muito preconceito os autores brasileiros que existem efetivamente nas livrarias do exterior será fácil constatar que são oriundos dos meios da comunicação de massa ou de subgêneros do romance: Jô Soares, Chico Buarque, Patrícia Melo podem ser vistos nas prateleiras ao lado de um eventual João Ubaldo Ribeiro, Jorge Amado, Clarice Lispector, Machado de Assis e – acredite-se, ainda – José Mauro de Vasconcelos. Todos eles acreditaram que uma das chaves do êxito com os leitores não é somente mostrar o quanto é inteligente a eles, mas diverti-los, mimálos. Paulo Coelho está entre eles. Continente Multicultural foi ouvir o que ele tem a dizer, sem preconceito. O resultado é uma entrevista reveladora e quente, e, de quebra, um texto inédito do escritor.

Continente Multicultural 5

EDITORIAL

As revelações de um best-seller



Indiferente às críticas, Paulo Coelho decide entrar na Academia Brasileira de Letras e quer encontrar no país repercussão para a sua obra que já tem no exterior

Guerreiro das letras

Detalhe de ambiente da Academia Brasileira de Letras

Luciano Trigo

M

ago quer entrar na casa do “Bruxo” Machado de Assis. Aos 54 anos, o escritor e Mega-fenômeno editorial Paulo Coelho acha que é hora de ingressar na Academia Brasileira de Letras e poucas candidaturas na história da instituição foram capazes de despertar tanta polêmica, dividindo radicalmente os acadêmicos. Desde que se transformou em “best-seller”, aliás, o autor de “O alquimista” vem provocando reações apaixonadas. De um lado, ele conta com o gigantesco público leitor, que consome seus textos em 45 idiomas, em mais de 120 países, e o enxerga como um verdadeiro guru – imagem cuidadosamente lapidada ao longo dos anos. De outro, enfrenta a quase unanimidade negativa da crítica, que considera suas histórias pueris e mal escritas. O fato é que, para se candidatar a uma cadeira na casa de Machado de Assis, basta ter publicado

livros, e esta credencial não lhe falta: deixando de lado juízos de valor estético, é forçoso reconhecer que Coelho é um escritor que leva a sério a sua atividade – e se empenha na construção de sua obra. Reduzi-lo a um simples modismo que não resiste à pátina do tempo se torna cada vez mais difícil, à medida que seu êxito sobrevive à passagem dos anos, conquistando novos territórios e desafiando as previsões mais pessimistas. Apesar de sua constante exposição na mídia, são raras as ocasiões em que Paulo Coelho se explica, expõe suas idéias e é confrontado com questões que fujam ao lugar-comum. Nesta entrevista exclusiva, concedida por e-mail durante um dos freqüentes périplos do escritor pela Europa, Coelho aceitou ser sabatinado em temas delicados. Só evitou se aprofundar em dois temas – suas experiências com as drogas e as aventuras vividas ao lado de Raul Seixas – alegando que as respostas seriam muito longas. Continente Multicultural 7


Coelho que entrar para a Academia para “dialogar com gente interessante”

Coelho, vale lembrar, trabalhou como diretor e autor teatral e compositor antes de começar sua busca espiritual e se dedicar a escrever livros. Viajou pelo mundo como “hippie”, estudou religiões orientais e participou de sociedades secretas. Na música, foi parceiro de Raul Seixas – em Eu nasci há dez mil anos atrás, Gita, Al Capone e outras 60 canções – e escreveu letras gravadas por Elis Regina e Rita Lee. Em 1982 publicou seu primeiro livro, Arquivos do inferno, sem repercussão. Três anos depois, O manual prático do vampirismo, que mais tarde tentou recolher, por considerar de má qualidade. Foi em 1986, quando fez a peregrinação pelo caminho de Santiago, que teve a idéia de escrever o livro brasileiro mais vendido de todos os tempos, O alquimista, que alcançou o primeiro lugar da lista de mais vendidos em 18 países e já foi elogiado pelo prêmio Nobel Kenzaburo Oe – e por Madonna. De lá para cá vem lançando regularmente novos trabalhos, além de escrever colunas em jornais e revistas. Até março de 2001, ele já tinha vendido um total de 32 milhões de exemplares de seus livros. Sua obra já originou diversos projetos – como um musical no Japão, peças teatrais em diversos países e até mesmo duas sinfonias, na Itália e nos Estados Unidos. Além disso, é Conselheiro Especial da Unesco para “Diálogos Interculturais e convergências espirituais”.

8 Continente Multicultural

Hélio Jaguaribe e Mário Gibson Barbosa disputam a cadeira

Os críticos me deram o respeito que eu merecia– ou seja, falaram sobre mim, e isso é tudo que um escritor espera. Mas uma coisa me alegra muito: meu trabalho provoca, não passa despercebido, seja no Brasil, seja em qualquer outro país do mundo


A antiga imagem de um autor alternativo, de certa forma ligado à contracultura e indiferente ao reconhecimento oficial, foi trocada por uma imagem nova, mais séria e sisuda, de um autor que rejeita o rótulo de esotérico, critica James Joyce e busca o reconhecimento oficial da Academia. Essa mudança é deliberada? Fale sobre isso. Na verdade, desde o meu primeiro livro rejeitei o rótulo de esotérico. Era natural que, no início, encarassem minha obra como algo desconhecido e sentissem a necessidade de classificá-la em algo também desconhecido (como é o caso desta expressão vaga, que serve para tudo: “Nova Era”). Mas o tempo, a continuidade, e a diversidade de meus livros mostraram que não era tão simples assim. A candidatura para a Academia Brasileira de Letras em nada implica reconhecimento ou rejeição: vejo a Academia como um lugar de diversas tendências diferentes, onde a arte do debate e da discussão de pontos de vista opostos é exercida com freqüência. Como qualquer autor - melhor dizendo, como qualquer ser humano sinto a necessidade da conversa, da polêmica, e do debate. A ABL, por ser representativa da cultura brasileira, serve perfeitamente para isso. A simplicidade e a fluência do texto de seus livros são dois fatores fundamentais para o seu sucesso comercial - mas também para a rejeição crítica de seus livros. Depois de tantas conquistas como um escritor “popular”, não é um pouco contraditório da sua parte almejar o reconhecimento da elite intelectual? Você não está querendo o melhor de dois mundos?

Isto é, ser fenômeno editorial e ao mesmo tempo ingressar na elite das letras? O que é um clássico? É um autor (ou livro) que sobreviveu a mais de uma geração. Nenhuma elite intelectual, em nenhum momento, reconheceu o que hoje chamamos de “clássico”. A elite das letras só é efetivamente consagrada depois de um século e basta ler algumas biografias de escritores para saber que sempre tiveram problemas com o sistema intelectual do seu tempo. Portanto, o reconhecimento que eu almejo, eu já tenho: o do leitor. O reconhecimento da posteridade fica por conta da posteridade, e não posso – nem devo – pensar nisso. Tenho que concentrar-me em continuar sendo digno de minha obra. Qual é sua motivação para entrar na Academia? É um desafio, a consagração que falta? Até que ponto entram, nesse processo, a vaidade pessoal e um certo desejo de desforra contra quem sempre o considerou um autor menor? Nenhuma destas três coisas. É a busca do dialogo com gente interessante. Em que pé se encontra sua candidatura hoje? No momento que dou esta entrevista, existem outros dois candidatos fortes - Helio Jaguaribe e Mario Gibson Barbosa. Nada está definido. Quais são as suas credenciais como candidato? A única credencial necessária pelo regulamento: escrever livros. Continente Multicultural 9


Da esquerda para direita: Joyce, Proust e Sartre

Considero Ulisses um mau livro, já que a função básica da obra de arte é comunicar uma idéia. Proust é mais dinâmico e mais rico em conflitos. Sartre era religioso em seu ateísmo Qual o grau de resistência que encontra? Pessoas que se opõem à minha candidatura são afinadas com outras idéias, e isso é o que faz a riqueza do regime democrático, e do sistema de voto. Todos os três candidatos tem o mesmo grau de aceitação ou o mesmo grau de resistência, dependendo do acadêmico.

Recebo cinco ou seis críticas por dia, sobre diversos livros meus (já que não são publicados na mesma ordem, em diferentes países). Até hoje, aproveitei apenas um comentário: de Luiz Garcia, editor de O Globo, penso que escrita em torno de 1990. Ele dizia que eu abusava de maiúsculas. Achei que tinha razão e passei a me vigiar a este respeito.

Qual será o impacto de seu futuro ingresso na Academia sobre a instituição? Em primeiro lugar, preciso ingressar. Sou uma pessoa muito realista, justamente porque lido todos os dias com aquilo que chamo de busca espiritual, onde qualquer especulação sobre o futuro termina por empobrecer a vida. Aprendemos, quando estamos nesta busca, que o mistério reside no presente, e é preciso respeitá-lo. Enquanto eu não ingressar na Academia, não posso especular qual seria a melhor maneira de poder colaborar com ela.

Qual deve ser a função da crítica, na sua opinião? Criticar. Mas creio que, hoje em dia, ela não sensibiliza mais o leitor, porque se afastou dele - que devia ser, aliás, sua prioridade. E passou a servir apenas para localizar a intelligentzia em seu tempo, nada além disso.

Sobre a crítica, sempre rigorosa em relação aos seus livros: você considera que os críticos são burros ou mal intencionados? Nem uma coisa, nem outra, e isso é um bom sinal - porque é um texto vivo. Você já aproveitou alguma sugestão ou comentário da crítica para se aprimorar como escritor?

Você já declarou que largou Ulisses no meio e que considera este romance de James Joyce de “retaguarda”. Você parece vincular qualidade literária à facilidade de leitura. A intenção foi pole-


mizar ou você realmente considera Joyce um mau escritor? Considero Ulisses um mau livro, já que a função básica da obra de arte – ou de qualquer coisa que o ser humano faça - é servir à sua geração, comunicar uma idéia. Ulisses tem uma excelente forma, um conteúdo insignificante, como uma bela roupa em um manequim medíocre. Prefiro Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, que é mais dinâmico e mais rico em conflitos. Tudo que seja elitismo cultural receberá sempre a minha rejeição. James Joyce, porém, foi capaz de escrever livros brilhantes, como Dublinenses e eu jamais disse que ele era retaguarda. Por esse critério da simplicidade, você teria que descartar como ruim a grande maioria dos poetas e escritores modernos, como Eliot e Ezra Pound, Virginia Woolf e Marcel Proust... E também Guimarães Rosa, por exemplo. Você leu Grande sertão: veredas até o fim? Quem você considera vanguarda hoje? Não descarto nenhum deles. Existe uma poesia de Eliot, por exemplo, que repete “é assim que o mundo acaba (três vezes)/ não com um estrondo, mas com um gemido”. Em quatro linhas, foi capaz de passar uma visão precisa da condição humana. Proust, eu já citei na resposta anterior. Nunca li muito Pound, talvez influenciado pelos comentários sobre o seu eventual apoio ao fascismo (mas tarde vi que eram infundados, mas já havia passado minha época). Guimarães Rosa sempre me fascinou, e só tenho uma coisa a lamentar: é um escritor impossível de ser traduzido. Temos alguns tradutores em comum (ou seja, gente que me traduziu e traduziu Rosa), e, nas línguas que consigo ler – que são poucas – a obra dele perdeu todo o impacto. Olhando em retrospectiva, que avaliação você faz de cada um de seus livros? Você pode fazer uma breve análise de sua obra, título por títu-

lo (incluindo Arquivos do inferno e o Guia do vampirismo)? E analisar de que maneira existe um encadeamento e uma evolução temática e estilística na sua obra? E também justificar as rupturas, como a que representou Veronika decide morrer? Em primeiro lugar, existe um estilo: simplicidade sem superficialidade. Esse é o laço comum entre todos os meus textos. Se alguém pegar um livro meu sem capa, sem nome do autor, e já tiver lido algo que escrevi, saberá que tal texto é meu. Quanto a evolução temática: um homem tem muitas faces, muitos oceanos desconhecidos em sua alma, e precisa estar sempre explorando a si mesmo, de modo que não posso conceber um livro como “evolução”, mas como exploração em uma direção diferente. Vamos aos livros publicados: Arquivos do inferno: Uma tentativa, mais bem sucedida do que eu pensava, de encarar meu destino como escritor. O erro foi basear-me em textos curtos, e não aceitar o desafio do romance. Gosto muito do livro, e só não o reeditei por não ter tempo (melhor dizendo, empenho) de rever seu texto. Manual do vampirismo: Escrevi apenas algumas linhas, foi quase todo feito por outros autores. Não fui digno de um tema tão interessante, que é o mito do vampiro. O diário de um mago: É o meu encontro com o escritor que sempre desejei ser. Também é meu encontro espiritual com a simplicidade da busca de Deus. O alquimista: Meu percurso metafórico. Um livro arriscado, porque vinha de um título não-ficção para um de ficção, e muitos dos autores que conheço morreram literariamente quando fizeram esta mudança. Brida: O romance mais longo, onde procuro dar uma idéia da busca feminina do conhecimento. As Valkírias: o livro que menos gosto, porque acho que não me expliquei direito. Queria falar do meu casamento, as pessoas terminaram entendendo que era um livro sobre anjos. Ou seja : errei a comunicação. Mas é um livro honesto. Na margem do Rio Piedra, eu sentei e chorei: Consegui realizar um sonho antigo, o de

Desde o meu primeiro livro rejeitei o rótulo de esotérico. Era natural que, no início, encarassem minha obra como algo desconhecido e sentissem a necessidade de classificá-la Continente Multicultural 11


Paulo Coelho e Raul Seixas, parceiros na Era do Sexo, Drogas e Rock n’ Roll

aceitar meu lado feminino e usá-lo como forma de expressão. O Monte Cinco: A incursão na vida de um homem obrigado a seguir seu destino (enquanto, na maioria dos meus livros, os personagens estão lidando com a possibilidade de evitá-lo). Veronika decide morrer: Não é uma ruptura temática, como indica sua pergunta ; lida com a necessidade de aceitar nossas diferenças. O demônio e a senhorita Plym: um livro sem final maniqueísta, risco que corri, mas que o leitor aceitou bem. Roberto Carlos hoje evita regravar canções com referências ao mal, ao diabo etc. Como letrista de Raul Seixas, você fez citações e referências à magia negra e outras formas de conhecimentos ocultos. Quando você ouve essas músicas e olha para trás, que análise você faz daquele período de sua vida? Aprendi na música a grande arte: ser capaz de sintetizar em uma frase toda uma história. Tenho orgulho das minhas composições, sem exceção, porque, como em tudo que fiz na vida, ali também coloquei o melhor de mim mesmo. Elas mostram fases que passei – mas um guerreiro da luz nunca fica analisando o passado, vive o presente. Você renega essas experiências ou considera que elas contribuíram para o seu desenvolvimento espiritual? 12 Continente Multicultural

Como diz Ortega y Gasset, “eu sou eu e minha circunstância”. Todos os passos que dei na vida me trouxeram ao lugar onde estou agora. Fale sobre dois projetos abortados. Você jogou fora, a pedido de sua mulher, os originais do livro Sociedade Alternativa, que relataria episódios dos anos 1972-11974. Por que decidiu não publicá-llo? Porque acredito em sinais. Minha mulher estava lendo os originais, ela não conhecia esta parte da minha vida. Quando já tinha escrito mais de 200 páginas, ela disse: “O livro não deve ser publicado. Acabo de ter uma visão de Nossa Senhora da Aparecida, dizendo isso”. Na verdade, ela não tivera exatamente uma visão, mas um sentimento a respeito. Perguntei por quê. Ela disse: “O mal é fascinante”. Eu argumentei que o livro terminava mal, tanto pela tragédia pessoal do Raul (que se prolongou pelo resto de sua vida) quanto pela minha tragédia pessoal, que durou sete anos. Ela disse: “Mesmo assim, as pessoas vão dizer: mas ele virou o Raul Seixas e você virou o Paulo Coelho, então vale a pena correr o risco”. Eu não quis discutir mais um sinal de Nossa Senhora, e joguei os originais em uma lata de lixo no Jardim de Allah, no Rio de Janeiro. Guardei apenas um capítulo, que narra meu encontro com o Raul.


Estive perto da loucura, durante certas experiências com drogas. Da morte, várias vezes, sendo que a mais recente foi quando me perdi em uma escalada solitária, no Pic du Gez, nos Pirineus E o anunciado livro sobre sexo, que fim levou? Ainda não chegou ao fim. Você tem medo de reações negativas que afetem a sua imagem? Como teria, se durante muitos anos só convivi com reações negativas por parte da imprensa? Não teme que o sucesso crie compromissos e obrigações que tirem a sua liberdade como autor? Os editores exercem alguma pressão no sentido de você permanecer fiel a uma fórmula bem sucedida? Se existe uma coisa que o sucesso cria, é uma extrema liberdade. Nenhum editor vai lhe pedir para que faça isso ou aquilo, porque a) são inteligentes o bastante para saber que não existe fórmula; b) têm medo de se indispor com o autor. Outro dia li uma entrevista de um escritor brasileiro, que dizia estar contente por ser funcionário público, e assim não precisar se “submeter” as pressões do editor. Do que ele estava falando? Ou é de um mundo que não conheço, ou talvez está justificando seu próprio fracasso pessoal. Você já se sentiu realmente perto da loucura e da morte? Em que momentos? Que lições tirou dessas experiências?

Da loucura, durante certas experiências com drogas. Da morte, já estive perto várias vezes – na prisão, numa intoxicação alimentar etc – sendo que a mais recente foi quando me perdi em uma escalada solitária, no Pic du Gez, nos Pirineus. Pensei que não iria saber voltar, que meu corpo só seria descoberto no verão seguinte (era o início do outono), e disse para mim mesmo: “Acho uma maneira romântica de morrer”. Não tive medo. Pensei também: “Namorei muito, experimentei muitas coisas, fui além dos meus limites, venci minha timidez da infância, viajei quase o mundo inteiro, casei com a mulher que amo, escrevi os livros que queria, vivi cada minuto de minha existência. Não me arrependo de nada, exceto das pessoas que feri. Se tiver uma nova chance, irei pedir perdão a essas pessoas, mas se não tiver, paciência, espero que me perdoem”. Você acredita no ressurgimento de um espírito contracultural e libertário num mundo globalizado e neoliberal? Ainda existe espaço para utopias e revoluções? Um mundo sem utopias é um mundo sem graça. Agora, eu não vou me arriscar a repetir a mesma estratégia das utopias de minha juventude. Se ainda acredito em sonhos, então tenho que usar as ferramentas que estão diante de mim, para provocar as transformações que julgo importantes. Continente Multicultural 13


Existe espaço para os espíritos libertários, embora haja uma grande pressão do sistema político e acadêmico – e coloco os dois no mesmo saco – para manter o status quo. Fale sobre a sua formação como leitor e escritor. Quais foram as leituras e autores fundamentais para você, e por quê? Sempre fui um leitor compulsivo, desde a infância, com Monteiro Lobato e Malba Tahan (que me influenciou muito, por sinal), até a juventude, com Sartre e os existencialistas, que eram uma moda, mas uma moda interessante. Autores fundamentais foram: Henry Miller, que me fez descobrir o universo do estilo, e entender que espontaneidade não era antônimo de qualidade; William Blake,

que luta com as mesmas dificuldades que as outras, mas não se deixa paralisar pelas suas fraquezas, e segue adiante apesar de tudo. Quanto à missão, que chamo de “lenda pessoal”, meu sonho era ser escritor, e estou caminhando no meu próprio sonho. Como define hoje sua relação com o catolicismo? Uma relação familiar: existem momentos de alegria, de briga, mas tudo a portas fechadas. E com a fé? Uma conquista diária. Um místico disse certa vez: “Tenho fé antes de atravessar a rua, e quando chego na outra calçada, já perdi a fé”. Essa é uma grande definição: a fé não é um lugar onde se chega,

Daqui a cem anos, ainda serei lembrado, mas como um escritor “clássico”, no sentido de “sou obrigado a ler na escola, mas é muito chato” ensinando-me que a memória e a inspiração são inimigas, e, se tiver que escolher uma das duas, prefira sempre a inspiração; Jorge Luis Borges, capaz de misturar o mágico e o real de tal maneira, que não podemos mais distingui-los; Carlos Castaneda, um escritor sub-valorizado pelo sistema acadêmico, mas que um dia será reconhecido. Que escritores, pensadores ou tradições gnósticas e religiosas mais o influenciaram? Spinoza. Buda. San Juan de la Cruz. A tradição sufi. Sartre (por mais ateu que seja, ele era religioso no seu ateísmo). E os escritores citados na pergunta acima. Você sente que é levado mais a sério no exterior que em seu próprio país? Na Espanha, por exemplo, você é visto quase como um filósofo... Quem me leva a sério sou eu. Os países, neste caso, não importam. Mas acho que o Brasil, hoje em dia, respeita meu trabalho. O que passou era parte do meu próprio crescimento profissional e espiritual. Você se considera um ser iluminado, um “guerreiro da luz”? Qual é a sua missão? Eu me considero um guerreiro da luz, na concepção exata do termo – ou seja, uma pessoa comum, 14 Continente Multicultural

é uma conquista diária, as vezes baseada na inspiração, outras vezes na disciplina. E com a espiritualidade? A religião é importante, mas a busca espiritual, este diálogo silencioso com Deus, de cuja responsabilidade não podemos escapar, é o fundamento de nossas vidas. Você acredita em reencarnação? Não acredito em tempo (passado, presente, futuro). Então, penso que estamos vivendo muitas vidas paralelas no momento atual, e tudo que fizermos agora afeta os diferentes universos onde nos manifestamos. Qual é a sua idéia de vida após a morte? É a vida após esta vida, se tivermos que introduzir a noção de tempo. Desde a explosão de O alquimista e O diário de um mago, você não sabe o que é fracasso... Fracasso eu nunca soube o que é, porque fracasso significa desistir. Mas já enfrentei muitas derrotas, e continuo enfrentando. Entretanto, acredito – como diz o I Ching – que a perseverança é favorável, e insisto. Por causa disso, na maioria das vezes ganho.


E quando vejo que, apesar de toda a paciência, a porta não irá se abrir, sigo em outra direção. O sucesso cria uma dependência emocional? A fama é cansativa? Não sei se cria dependência, não fico pensando nisso. Quanto à fama, se eu escolhi ser escritor, ela não pode ser cansativa. Se eu escolhesse ser eremita e viver no sertão do Piauí, aí talvez eu ficasse cansado se me procurassem muito para saber o que penso. Hipoteticamente, como reagiria à indiferença e ao esquecimento? No meu universo, não existe nada hipotético: as coisas são o que são. Entretanto, prefiro a crítica injusta e ferina a um silêncio indiferente.

Acredita que seus livros serão lembrados e lidos daqui a cem anos? Acredito que serão lembrados daqui a 50 anos, e serão lidos, sim - pela simples razão de que estão semeados em muitos lugares e em muitos corações. Daqui a cem anos, ainda serei lembrado, mas como um escritor “clássico”, no sentido de “sou obrigado a ler na escola , mas é muito chato”. Quando veremos um livro seu no cinema? “O alquimista” foi comprado por uma grande produtora americana, e você se arrependeu. Por quê? Porque o filme se faz na imaginação do leitor. Por causa disso, desde que vendi O alquimista para a Warner, e me arrependi (tarde demais), e nunca mais permiti que qualquer outro título fosse negociado. Você está com 54 anos, ainda é jovem. Mas como encara a perspectiva do envelhecimento? Como lida com a idéia da morte? Muito bem. Tem a tal montanha em que me perdi, o Pic du Gez; uma vez por ano volto lá, e resolvo escalar de novo. Estarei velho quando não conseguir mais subi-la, e então buscarei outras coisas para fazer no plano físico, já que no plano intelectual não existe isso. Quanto à idéia da morte, espero encarála como a encarei neste dia, com serenidade, sabendo que fiz o que tinha vontade, e pedi perdão a quem feri. Aliás, foi a primeira coisa que fiz, e demorou quase dois anos, porque já tinha perdido a pista de algumas pessoas. Fale sobre seu próximo projeto. Viver o dia de amanhã como vivi o de hoje – com sede e fome de aventura. Não se fala sobre isso – é sobretudo uma experiência prática.

Luciano Trigo é jornalista

Continente Multicultural 15


Comenda de Cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra, maior honraria francesa

Principais prêmios e condecorações Prix Lectrices d’Elle (France ‘95) Knight of Arts and Letters (France ‘96) Flaiano International Award (Italy ‘96) Super Grinzane Cavour Book Award (Italy ‘96) Golden Book (Yugoslavia ‘95, ‘96, ’97, ‘98) Finalista do International IMPAC Literary Award (Ireland, ‘97) Comendador de Ordem do Rio Branco (Brazil ‘98) Crystal Award World Economic Forum (‘99) Golden Medal of Galicia (Spain, ‘99) Chevalier de L’Ordre national de la Legion d’honneur (France 2000) Crystal Mirror Award (Poland 2000) Premio Fregene de Literatura (Italia, 2001) Curiosidades sobre o Mago Os direitos de filmagem de O Alquimista foram adquiridos pela Warner Brothers, que está desenvolvendo o roteiro do filme. O Alqumista já foi elogiado por autores como o prêmio Nobel de literatura Kenzaburo Oe, o prêmio Nobel da Paz Shimon Peres e foi considerado por Madonna e Julia Roberts como o livro favorito. The Graduate School of Business of the University of Chicago recomenda O Alquimista no seu currículo de leitura. Também foi adotado em escolas da França, Itália, Portugal, Brasil, Taiwan, Estados Unidos e Espanha, entre outros países.

16 Continente Multicultural

A edição ilustrada de O alquimista, feita pelo desenhista Moebius, já foi publicada em vários países. BMG Classics lançou o CD A Sinfonia do Alquimista, pelo compositor Walter Taieb, inspirada no livro. Outros projetos incluem um musical no Japão, um peça clássica pelo italiano Irlando Danieli para o Scala de Milão e peças de teatro no Brasil, Turquia, Iugoslávia, Croácia, Noruega, Polônia, Eslováquia, França. Paulo Coelho conseguiu ter três títulos ao mesmo tempo nas listas de mais vendidos na França, Brasil, Polônia, Suíça, Áustria, Argentina, Grécia, Croácia. Sua Santidade o Papa João Paulo II recebeu o autor no Vaticano, em 1998. O escritor italiano Umberto Eco elogiou Veronika decide morrer na revista alemã Focus. O Fórum Econômico Mundial distinguiu o autor com o seu prêmio mais importante, o Crystal Award. Paulo Coelho já foi convidado por três vezes consecutivas para participar da reunião do Fórum, em Davos, Suíça. Paulo Coelho tem uma coluna semanal em O Globo, a Folha de São Paulo e vários jornais brasileiros, além de jornais no México, Argentina, Chile, Bolivia e Polônia. No mês de março 2000 o governo francês concedeu ao autor sua mais prestigiosa distinção, Chevalier de L’Ordre national de la Legion d’Honneur.


Lições do terror Quando as torres desabasram todos nós morremos um pouco e o mundo inteiro ficou menor Paulo Coelho

E

u me encontrava em Munich, pronto para ir até a livraria onde tinha uma tarde de autógrafos, quando a representante da minha editora bateu à porta do meu quarto: –Ligue a TV! Urgente! Em todos os canais, a cena era a mesma: uma torre do World Trade Center já em chamas, o próximo avião aproximando-se, novo incêndio, e o colapso dos dois edifícios. A calamidade do dia 11 de setembro de 2001, que ninguém esquecerá onde, como, e com quem estava, quando o ataque terrorista aconteceu. É sempre muito difícil aceitar que uma tragédia possa, de alguma maneira, trazer resultados positivos. Quando vimos, horrorizados, o que mais parecia ser um filme de ficção científica – as torres desabando e carregando na queda milhares de pessoas, tivemos duas sensações imediatas: a primeira, um sentimento de impotência e terror diante do que estava acontecendo. A segunda sensação: o mundo nunca mais seria o mesmo. Foi com estes sentimentos na alma que desliguei a TV, e caminhei até o lugar onde – supostamente – deveria acontecer uma tarde de autógrafos. Estava

convencido que ninguém iria aparecer, já que as próximas horas seriam passadas em busca de razões, notícias, detalhes. Cruzei as ruas desertas de Munich; embora fosse 4 horas da tarde, as pessoas tinham se aglomerado nos bares onde rádios e TVs estavam ligados, procurando convencer a elas mesmas que tudo aquilo era uma espécie de sonho do qual iriam acordar mais cedo ou mais tarde, comentando com seus amigos que as vezes a raça humana está sujeita a pesadelos que costumam ser muito parecidos. Ao chegar na livraria, para minha surpresa, centenas de leitores me esperavam. Não conversavam, não diziam nada – era um silêncio que vinha do fundo da alma, vazio de significados. Aos poucos, entendi o que faziam ali: em um momento como estes, é bom estar com os outros, porque não se sabe o que pode acontecer dali em diante. Aos poucos, todos nós nos davamos conta que aquilo não era um pesadelo, mas algo real e palpável, que – a partir de agora – iria fazer parte da história de nossa civilização. É sobre isso que gostaria de escrever, no final deste ano tão conturbado. O mundo nunca

A fachada de uma das torres gêmeas do Word Trade Center

Continente Multicultural 17


mais será o mesmo, é verdade – mas, passados já quase quatro meses daquela tarde, será que ainda resta a sensação de que todas aquelas pessoas morreram em vão? Ou alguma coisa além de morte, poeira, e aço retorcido, pode ser encontrada debaixo dos escombros do World Trade Center? Creio que todo ser humano, em algum momento, termina por ver uma tragédia cruzar sua vida; podia ser a destruição de uma cidade, a

eterno sentimento de culpa. Nos escombros do World Trade Center estavam pessoas como nós, que se sentiam seguras ou infelizes, realizadas ou lutando para crescer, com família que as esperava em casa, ou desesperadas pela solidão da grande cidade. Eram americanos, ingleses, alemães, brasileiros, japoneses, gente de todos os cantos do mundo, unidas pelo destino comum – e misterioso – de se encontrarem por volta das 9 horas da

As duas torres antes do atentado e, depois, seus escombros fumegantes

“Ele não morreram em vão: nos fazem repensar as nossas vidas e os nossos valores” morte de um filho, uma acusação sem provas, uma doença que aparece sem aviso e traz a invalidez permanente. A vida é um risco constante, e quem se esquece disso, jamais estará preparado para os desafios do destino. Quando estamos diante da inevitável dor que cruza o nosso caminho, então somos obrigados a buscar um sentido para o que está acontecendo. Por melhor que sejamos, por mais corretos que procuremos viver nossas vidas, as tragédias acontecem. Podemos culpar os outros, procurar justificativas, imaginar como teria sido diferente nossas vidas sem elas. Mas nada disto tem importância: elas já aconteceram, e pronto. A partir daí, o que se faz necessário é rever a nossa própria vida, superar o medo, e dar início ao processo de reconstrução. A primeira coisa que devemos fazer, quando estamos diante do sofrimento e da insegurança, é aceitá-los como tal. Não podemos tratá-los como algo que não nos diz respeito, nem transformá-los em uma punição que satisfaça o nosso 18 Continente Multicultural

manhã em um mesmo lugar , que era bonito para alguns, e opressivo para outros. Quando as duas torres desabaram, não foram apenas estas pessoas que morreram: todos nós morremos um pouco, e o mundo inteiro ficou menor. Há alguns anos, no Japão, um grupo de estudantes de Zen budismo estava reunido numa casa de campo, quando o caseiro chegou – contando uma tragédia nas redondezas: uma casa incendiou-se, deixando mãe e filha desabrigados. Imediatamente, uma das estudantes iniciou uma coleta, para ajudar a família a reconstruir sua casa. Entre os presentes estava um escritor pobre, e a moça resolveu não lhe pedir nada. “Um momento”, disse o escritor, quando ela ia passando adiante. “Também quero dar algo”. No minuto seguinte, escreveu num papel o que havia acontecido, e colocou-o dentro do pote que estava sendo usado para arrecadar o dinheiro. “Quero dar a todos esta tragédia. Que ela seja sempre lembrada quando


pensarmos nos pequenos incidentes de nossas vidas”. No caso dos atentados do dia 11 de setembro, acho que recebemos outras coisas além deste sentimento – aceitar que, por pior que seja, nossa vida é muito melhor que a da maioria dos seres humanos. Por mais difícil que seja aceitar o que aconteceu, é preciso entender que momentos como esse nos dão a possibilidade de uma mudança radical em nosso comportamento. Quando estamos diante de uma grande perda, seja ela material, espiritual, ou psicológica, não adianta tentar recuperar o que já se foi. Por outro lado, um grande espaço foi aberto em nossas vidas, e ali está, vazio, esperando ser preenchido com algo novo. No momento da perda, por mais contraditório que pareça, estamos ganhando uma grande fatia de liberdade. Ao invés de preencher este espaço vazio com dor e amargura, existem outras maneiras de encarar o mundo. Em primeiro lugar, precisamos nos lembrar a grande lição dos sábios: a paciência, a certeza de que tudo é provisório nesta vida. Partindo daí, então vamos rever os nossos valores: se, por muitos anos, o mundo jamais voltar a ser a um lugar seguro, por que não usar esta súbita mudança, e arriscar nossos dias em coisas que sempre desejamos fazer, mas que não tínhamos coragem, já que acreditávamos que era preciso seguir “um ritmo normal de vida”, pois tudo estava sob controle? Quantas pessoas, naquela manhã do dia 11 de setembro, estavam no World Trade Center contra a própria vontade, tentando seguir uma carreira que não era a delas, fazendo um trabalho que não gostavam, apenas porque ali era um lugar seguro, e poderia garantir dinheiro suficiente para a aposentadoria e a velhice? Essa foi a grande mudança do mundo, e os que foram enterrados sob os escombros dos dois edifícios, não morreram em vão. Eles agora nos fazem pensar sobre nossas próprias vidas, nossos valores, e nos empurram adiante, em direção ao destino que sonhamos para nós mesmos, embora jamais tivéssemos coragem de enfrentá-lo. Quando as torres caíram por terra, elas carregaram consigo sonhos e esperanças, mas também abriram o nosso próprio horizonte, e deixaram que cada um de nós refletisse sobre o sentido de nossas vidas. Então, é chegado o momento de reconstruir não apenas as Torres, mas também a nós mesmos; e é justamente aí e que nossa atitude diante do que nos espera fará toda a diferença. Conta

Cartão postal WTC: fim de uma era

uma velha história que, logo depois dos bombardeios em Dresden, um homem passou por um terreno cheio de escombros e viu três operários trabalhando. – O que vocês estão fazendo? – perguntou. O primeiro operário virou-se: – Não está vendo? Eu estou removendo estas pedras! Insatisfeito com a resposta, ele dirigiu-se ao segundo operário. – Não está vendo? Eu estou ganhando o meu salário! – foi a resposta. O transeunte continuava sem saber o que acontecia naquele terreno, e resolveu insistir pela última vez. Virou-se para o terceiro homem, e mais uma vez repetiu sua pergunta. – Não está vendo? – disse o terceiro operário. – Eu estou reconstruindo uma catedral! Embora as três pessoas estivessem fazendo a mesma coisa, apenas uma tinha a verdadeira dimensão do sentido de sua vida e da sua obra. Esperemos que, no mundo que virá depois do dia 11 de setembro de 2001, cada um de nós seja capaz de levantar-se dos seus próprios escombros emocionais, e reconstruir a catedral que sempre sonhamos, mas que jamais ousamos criar. Artigo inédito em português, publicado em dezembro/2001, na revista alemã “Bunte”

Continente Multicultural 19


REPRODUÇÃO

FERREIRA GULLAR

A exposição de arte como espetáculo Um tipo de arte que quer ser efêmera nada tem a ver com as artes plásticas, que são, por essência, da contemplação e do silêncio

A

s exposições de arte são agora espetáculos. Isto é positivo para as artes plásticas? Como e por que a arte tomou este rumo? Voltemos aos anos 50, que foi um período de ascensão das artes plásticas no Brasil. Não havia ainda o mercado de arte, e o certame mais importante, no âmbito doméstico, era o Salão Nacional, que incluía todas as tendências, inclusive a arte acadêmica, já moribunda. Não havia galerias de arte, de modo que as exposições individuais realizavam-se em espaços institucionais, improvisados em galerias, e o próprio artista organizava a mostra: selecionava os quadros e escolhia o crítico para escrever a apresentação no catálogo. O surgimento do mercado de arte – creio que em meados da década de 50 – teve grande impacto na atividade dos artistas, que, acostumados a gerir, não só a própria obra, como sua relação com o comprador-colecionador, viam-se agora diante de contratos que limitavam essa autonomia. Alguns resistiram bravamente a assinálos. Mas aos poucos o mercado de arte se instalou e os artistas já reconhecidos passaram a expor nas galerias que surgiram. Com isso, o Salão Nacional, tendo perdido interesse para eles, perdeu prestí20 Continente Multicultural

gio junto ao público e à crítica, uma vez que já não encontrariam lá as obras dos artistas de maior peso. O Salão se tornou quase que apenas uma mostra de jovens desconhecidos e entrou em decadência. Nesta época, as artes plásticas gozavam de grande prestígio no mundo inteiro, o que se refletia na criação de novas mostras internacionais de arte e o renascimento da Bienal de Veneza. As revistas especializadas em artes plásticas se multiplicavam e ampliavam suas tiragens para abranger um público mundial. Paralelamente a esse florescimento institucional e comercial, radicalizavam-se os experimentos de vanguarda que, de uma maneira ou de outra, davam continuidade às vanguardas pioneiras do início do século 20. No curso dos anos 60, esses experimentos chegaram a um impasse: o tachismo, depois de inundar o mercado com uma produção jamais vista de quadros pintados em alta velocidade, saturou e cansou a todos; o concretismo suíço, que penetrara na Argentina e depois no Brasil, adquiriu aqui uma rigidez dogmática que gerou o seu oposto – o neoconcretismo, que, por sua vez, tentou conciliar a razão construtiva com a intuição; esta contradição o conduz a desintegrar a linguagem pictórica e a


romper os limites da arte, num prenúncio do que ocorreria em seguida no mundo inteiro. Assim, no lugar dos quadros e das esculturas, surgiram os happenings, as instalações, as performances. Estabeleceu-se desse modo uma situação contraditória: enquanto o mercado de arte se expandia internacionalmente e, com ele, as Bienais, a arte, abandonando os suportes, perdia o caráter de objeto permanente para se tornar um “evento”. Por que isto ocorreu? Creio que o abandono dos suportes, essencialmente, foi decorrência da problemática interna da linguagem artística, mas o caminho que a arte tomou, a partir de então, deve-se certamente à presença dominadora das Bienais. Essas mostras gigantescas, reunindo centenas ou milhares de obras de arte, pressupunham que a produção artística era semelhante à de eletrodomésticos ou de automóveis. Ignoraram que não há no mundo um número tão grande de verdadeiros artistas, nem estes são capazes de produzir ininterruptamente obras em quantidade suficiente para suprir tais exposições. Diante de tal impasse, não deixa de parecer muito oportuno, por exemplo, o surto tachista, essa pintura que era feita em alta velocidade (lembro-me de um pintor espanhol que, num só ano, pintou 1500 quadros), bem como as instalações, as apropriações, enfim, todo um tipo de “obras” que, por não resultarem do aprofundamento e conquista de uma linguagem, são na verdade improvisações. Deste modo, as Bienais funcionam como as feiras de automóveis ou de livros que, terminado o evento, são desmontadas. No caso das Bienais de arte, as próprias obras são desmontadas. E com isso se atende ao espírito desta nossa época caracterizada pela promoção comercial, o evento (que convoca a mídia) e a transformação de tudo (até os seqüestros) em espetáculo. E assim as exposições de arte se tornaram espetáculos. A mostra “Brasil 500 anos”, realizada no Ibirapuera, não foi outra coisa. Ao entrar, dava-se com uma ante-sala sinistra, atravancada por grossos e enormes troncos de árvore, que conduzia à sala principal da exposição: um vasto salão coberto de flores (artificiais) de cor rosa e vermelha e, em meio àquela profusão colorida, perdida nela, aqui e ali, uma pequena imagem de um santo, de um profeta, de um anjo... Era o nosso barroco colonial! Mas um espetáculo tem

que ter música, e por isso havia música: ora canto gregoriano, ora samba-enredo. Em meio a tantos apelos sensoriais, as obras de arte plástica propriamente ditas perdiam a importância; eram apenas parte secundária do espetáculo. Um espetáculo tem que ter diretor. O pintor, o escultor, o gravador, mesmo o instalador ou o performático não têm esta especialização. Por isso, agora, como qualquer espetáculo, toda exposição de arte que se preze é entregue a um metteur-en-scène. E como um espetáculo também tem que ter autor, aquele que o concebe: surge o curador. Igual ao que ocorreu com sua obra, o artista também passa a segundo plano: não é ele quem escolhe as obras a serem expostas, não é ele quem indica como elas devem ser expostas. Estas são funções do curador e do diretor do espetáculo.

Chegamos assim à inevitável conclusão de que a “exposição espetáculo” tem tudo a ver com um tipo de arte que, como todo espetáculo, quer ser efêmera e circunstancial, numa palavra – evento –, e nada a ver com as artes plásticas que são, por essência, artes da contemplação e do silêncio e, por isso mesmo, fruto de uma elaboração demorada e difícil. O artista plástico – seja ele pintor, escultor, gravador, desenhista – quando está concebendo a obra não a pensa como parte de uma exposição, muito menos como parte de um evento; pelo contrário: a obra é um fim em si mesma; expô-la é apenas o modo possível de torná-la pública.

Ferreira Gullar é poeta, ensaísta e crítico de arte

Continente Multicultural 21


As revoluções

Martírio de Tiredentes, Aurélio de Figueiredo. Museu Histórico Nacional - RJ

22 Continente Multicultural


libertárias A antiga discussão sobre quem deve ser o protomártir da República: Tiradentes ou Frei Caneca Manuel Correira de Andrade

C

omemora-se no próximo mês de abril, com um feriado nacional, a Inconfidência Mineira; é que, no dia 21 do referido mês, ocorre o aniversário do enforcamento do herói, José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes. Condenado à morte pelo Governo português, para que servisse de lição àqueles que se revoltassem contra a metrópole e fizessem a independência de algumas capitanias brasileiras, foi enforcado e depois esquartejado. Achamos pouco oportuno se falar em “revoluções libertárias” no Brasil, já que nunca houve, em nosso país, um movimento político-militar que aspirasse ou realizasse transformações estruturais na sociedade colonial, no Império ou na República, após a independência. Isto não quer dizer que o Brasil tenha sido, nos cinco séculos de sua história que sucederam à ocupação portuguesa, um país onde reinasse a paz e a harmonia entre os homens. Pelo contrário, foi sempre um país onde reinou a mais desenfreada violência. Tivemos a violência dos colonizadores portugueses e dos candidatos a colonizadores franceses, ingleses e holandeses que violentavam a população indígena. Em seguida, com a implantação do sistema escravocrata de colonização, tivemos a violência dos europeus sobre negros e índios. Foram intensas e violentas as lutas travadas entre eles. Com a transformação do Brasil de colônia de exploração em colônia também de povoamento, surgiram movimentos nativistas em pontos diversos, provocados, sobretudo, pela exploração econômica

A execução de Frei Caneca, de Murilo LaGreca, Coleção Murilo LaGreca, Recife-PE

Continente Multicultural 23


Tiradentes Esquartejado, Pedro Américo, Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora - MG

das autoridades e comerciantes portugueses, sobre os habitantes da terra, gerando lutas intensas, como a revolta de Bequimão, no Maranhão, a de Felipe dos Santos, em Minas Gerais e a guerra dos Mascates, em Pernambuco. Revoltas de grupos dominados, considerados como classes inferiores, também tiveram grande importância no século 17, como a chamada guerra dos Bárbaros, nos sertões nordestinos, e o Quilombo dos Palmares, em terras hoje pertencentes a Pernambuco e Alagoas. No século 18 e início do 19, o sentimento autonomista ganhou mais força e tivemos as famosas conjurações Mineira e Baiana e a Insurreição Pernambucana de 1817. Naquele período, era já expressivo o número de brasileiros, brancos e mulatos, que se diferenciavam dos reinóis e tinham interesses divergentes destes. As idéias liberais, influenciadas pelas revoluções

americana e francesa, já se difundiam na América Latina, fazendo surgir sonhos de liberdade. A Inconfidência Mineira foi uma conspiração da burguesia de Minas Gerais que, acossada pelas dificuldades provocadas pelo esgotamento das minas de ouro e pressionada a pagar os impostos cobrados pela metrópole, se reunia, conspirava, fazia versos e sonhava com a independência. A figura mais popular do movimento, Tiradentes, não medindo bem as palavras, fazia a propaganda da independência e da república, por toda a parte. O governador das Minas, visconde de Barbacena, informado do que ocorria mandou prender os conspiradores, que responderam a processo e em seguida foram condenados ao degredo na África. Tiradentes foi o único levado à forca; era o que falava mais, era o mais pobre, não tinha títulos adquiridos em Coimbra, nem ordens sacerdotais, sendo, por isto, o mais sacrificado. Daí a República, ao procurar legitimar-se, torná-lo o seu mártir. Em 1798, foi descoberta na Bahia uma conspiração de negros e mulatos que, influenciados pelos ideais da Revolução Francesa, aspiravam à independência, com uma constituição republicana. Estavam ligados também à Loja Maçônica dos Cavaleiros da Cruz. A repressão a uma conspiração de gente humilde, onde os principais líderes eram alfaiates, foi mais dura do que aquela feita à mineira, sendo quatro conspiradores condenados e enforcados: o soldado Luís Gonzaga das Virgens e os alfaiates Lucas Dantas de Amorim Torres, João de Deus do Nascimento e Manuel Faustino dos Santos. Durante muito tempo essa conspiração não mereceu a atenção dos historiadores, de vez que dela participaram apenas humildes artífices. No século 19, ocorreriam duas insurreições de maior porte em Pernambuco, a de 1817 e a de 1824, a chamada Confederação do Equador.

O debate persiste: uns argumentam que Tiradentes foi sacrificado três décadas antes de Frei Caneca, mas outros dizem que a Inconfidência não deu origem a nenhuma insurreição


Frei Caneca no Rio de Janeiro João Cabral de Melo Neto Ele jamais fez por onde, sequer desejou, ser mártir. Assim, morto, e aqui esquecido não é coisa que o agrave. Talvez sentisse que o mártir tem sempre um lado podrido e que ser eleito mártir vem com a mania ou o vício, enfim, com o gosto de crer-se já um além-mártir, messias: neurose que não sofreu, crioulo e enciclopedista (o que não o salvou do martírio, salvou-o de ver-se mártir e trouxe-lhe a honra de ter nome na rua de um cárcere). Frei Caneca, Museu Histórico Nacional - RJ

Estes movimentos tiveram maior repercussão do que as chamadas inconfidências mineira e baiana, porque houve um levante militar, e estes ocuparam a capital de Pernambuco e outras capitais e organizaram governos republicanos que administraram esta província e as províncias vizinhas, antes que tivesse havido quaisquer governos republicanos no Brasil. Foram movimentos reprimidos com muita crueldade; a primeira, pelo Reino de Portugal, e a segunda pelo Império do Brasil – a Confederação do Equador ocorreu depois da independência – e por elas numerosos heróis foram levados à forca, dentre os quais o frei Joaquim Rabelo do Amor Divino e Caneca, o mais destacado de todos, executado a 13 de janeiro de 1825, por arcabuzamento, quando os carrascos se recusaram a enforcá-lo. Durante anos discutiu-se quem deveria ser considerado o protomártir da República: Tiradentes ou frei Caneca; argumentavam os partidários do primeiro que ele fora sacrificado três décadas antes do segundo, enquanto os partidários de frei Caneca achavam que Tiradentes não lutara contra as tropas portuguesas, e que a Inconfidência não chegara a dar origem a uma insurreição. E alegavam em seu favor a sua luta pela independência e pela república, nos jornais, no púlpito, nas tribunas e no campo de batalha, tendo participado da retirada das tropas da Confederação do Equador

para o Ceará, com passagem pelo engenho Poço Comprido, onde fizeram a última reunião em que Frei Caneca teria sido o secretário da mesma. A divergência de opinião é tão forte entre os historiadores que, enquanto os compêndios de história glorificam a Inconfidência e a figura de Tiradentes, um estudioso do porte de Capistrano de Abreu minimizaria a importância daquele movimento, em seu livro sobre História Colonial No Recife, Pereira da Costa, em artigo publicado no Jornal do Recife, ano 13, n° 90, em 1900, fez uma verdadeira catilinária contra Tiradentes, parecia até que ele procurava, do ponto de vista histórico, ser um promotor mais rigoroso do que o acusador português. Parece-nos porém, que há espaço para que se homenageie os dois heróis como eles foram, já que lutaram e morreram pelos mesmos ideais. Os estudos de História do Brasil, sobretudo na parte dedicada às lutas entre etnias e classes sociais, deveriam aprofundar mais as pesquisas e analisar os fatos com a maior isenção possível, a fim de darmos ao brasileiro uma identidade que o conceitue como um povo com origens étnicas e culturais bem diversificadas e conscientizá-lo de que é na diversidade cultural que se alicerça a nossa riqueza e importância. Manuel Correia de Andrade é geógrafo e historiador

Continente Multicultural 25



O poeta César Leal pelo pintor Gil Vicente

O romance do poeta Poeta consagrado, César Leal envereda pela narrativa de ficção, compondo um romance ensaístico, recém-lançado pela editora Calibán. Em entrevista exclusiva, analisa os vários formatos dessa forma de expressão literária, apontando Mann como autor de super-romance e Tolstoi, Dostoiéviski, Proust e Machado de Assis como criadores de romances-rio e fala sobre o processo de criação de Minha amante em Leipzig

Como se sente ao estrear no romance, tantos anos após ser reconhecido nacionalmente como poeta, com obras traduzidas e estudadas no exterior, inclusive nos Estados Unidos e na Alemanha? É. São fatos da existência que precisam ser compreendidos, pois têm significado. Sou uma individualidade do século 20, muito consciente do valor das ações humanas. Por ser um escritor, uma pessoa que vem dedicando toda a vida às letras, seja criando ou ensinando o que é e o que não é literatura, posso dizer que não me faltam reconhecimento, “bem maior no Brasil e no exterior do que em Pernambuco”, dizia-me há poucas semanas a arquiteta Janete Costa, quando conversávamos no Aeroporto da Cidade do México. Ela vinha de Cancún, onde estava fazendo vários hotéis, eu, Mário Chamie, Marco Lucchesi e Waly Salomão, chegávamos de Guadalajara, a cidade

amada por Carlos V, onde haviamos participado da 15º Feira Internacional do Livro. E a narrativa é tão difícil quanto escrever poemas? Quando atingi uma idade em que a maior parte dos escritores se aposentam, fiz essa estréia em um novo gênero: o romance. E lançarei, em breve novo livro de poemas. Mas, para escrever essa narrativa, não me fixei em saberes adquiridos, supostamente eternos. Posso dizer com Camões: “Não me faltam na vida honesto estudo com larga experiência misturado”. A grande poesia também pode ser narrativa. Depende do gênero. Além de poeta e crítico de poesia, ensinei teoria da literatura durante mais de trinta anos e fundei na Universidade Federal de Pernambuco um dos seis melhores Programas de Pós-Graduação em Letras, do Brasil, assim considContinente Multicultural 27


A Senhora von Hardenberg (personagem do romance) é extremamente culta, mas é uma pessoa comum em seus sentimentos humanos. Gosta das artes, dos grandes poetas, em especial gregos e ingleses, é admiradora de Dante e Shakespeare. ...uma aristocrata prussiana de seu século, que conhece o sânscrito, o grego e o latim, é admiradora da pintura italiana e holandesa e da música de J. S. Bach erado pelos avaliadores da CAPES e do CNPq. Por isso, desde muito cedo vi-me na contingência de saber distinguir os diferentes gêneros e espécies em que se estruturam as obras de arte literária. Não acredito que tais fatores sejam capazes de fazer de alguém um romancista. Todavia, seria ingenuidade desconhecer que tais ações tornam menos fatigante a tarefa de quem se dispõe a escrever ficções. Algumas pessoas que leram seu livro têm feito elogios à estrutura lógica da intriga, aos conhecimentos da evolução da literatura da Europa e, em particular, da Alemanha do século XVIII. O que o Senhor diz sobre isso? Estrear na ficção com um romance ensaístico, depois dos 70 anos, é um feito raro, que me remoça o corpo, por saber que o espírito está bastante jovem e ativo. Satisfaz-me a consciência de que no âmbito da Cultura sou competidor da Natureza. Escrevi este livro sem nenhuma dificuldade, utilizando o que me ditavam as falas da fantasia, as ações da função fabuladora da linguagem e algumas técnicas de composição de textos narrativos. O título do romance é Minha Amante em Leipzig, tendo como subtítulo Ensaios sobre as Artes, as Armas e o Amor. Sei que é sobre o subtítulo que recai muito da curiosidade dos leitores. Mas o “leitor perfeito”, de que trata a teoria psicológica, do Dr. Richards, é um dos que poderão dizer se o livro é ou não é uma obra de arte literária, independente de tipologias criadas pelos teóricos.

Goethe (à esquerda): romances de formação Thomas Mann: o super-romance

Não julga, por exemplo, que a definição “romance ensaístico”, na boca de um personagem, confundirá o leitor, habituado a ouvir falar em romance psicológico, romance his-

28 Continente Multicultural

tórico, romance social, romance realista, romance moderno, etc? O leitor comum, que afinal é o maior consumidor das obras de arte literárias, não está interessado em tais classificações. Contudo, a literatura é uma arte que desde a mais remota antiguidade tem sido objeto de estudo. As formas literárias mudam e estão sempre mudando. A classificação do romance sofre uma contínua metamorfose. Ainda que o conceito de “literatura nacional” esteja em diluíção, não há dúvida de que muitas tipologias literárias recentes surgiram em determinadas culturas. A literatura é criação da sociedade que tem no indivíduo criador a legítimação de seu poder. É impossível imaginar um romancista, ou poeta, dissociado de um ambiente social que lhe forneça os materiais de suas obras. Esses materiais estão no mundo objetivo. São imagens que internalizadas e processadas no universo interior e subjetivo do autor, são por ele devolvidas ao mundo como um elaborado produto da linguagem. O romance alemão é diferente do romance russo, assim como o romance inglês não se confunde com o romance francês. Quando um crítico ou teórico define um texto narrativo como “romance de formação”, ele nos lembra de imediato uma criação alemã: o ciclo do Guilherme Meister, de Goethe. O que caracteriza o “romance de formação”? E o “romance ensaístico”. O romance de formação é uma estrutura narrativa complexa, altamente sofisticada. No Guilherme Meister vemos, em três fases sucessivas, a formação espiritual da personagem, cuja finalidade mais alta de sua existência seria criar o novo teatro alemão. Efetiva-


Escrevi este livro sem nenhuma dificuldade, utilizando o que me ditavam as falas da fantasia, as ações da função fabuladora da linguagem e algumas técnicas de composição de textos narrativos mente, um dos objetivos de Goethe, tão bem assinalado por Rafael Cansinos Assens, era libertar o teatro germânico da vassalagem à cena francesa. Mas isso logo se tornou difícil e foram dessas dificuldades que o romance foi crescendo e com ele sua personagem central até alcançar alturas tão grandes quanto as do Don Quixote, embora sem a mesma fama. Hoje, alguns críticos, consideram o Don Quixote, pelo menos em parte, um romance de formação. É curioso notar que em meu livro o nome de Goethe não apareça uma única vez, ainda que transitem pela narrativa mais de duzentas personagens históricas ou fictícias. É claro que eu não iria citar Goethe porque ele não era ainda uma figura histórica, por ocasião dos fatos narrados. Além do “romance de formação”, podem ser incluídas no romance alemão as grandes estruturas narrativas como o super-romance, o romance ensaístico e o romance poético. Ao lado desses complexos narrativos, há muitos outros tipos de romance, inclusive uma estrutura poderosa: o romance policial. Ele contribuiu para a fama de Edgar Allan Poe, ao introduzir nesse tipo de novela a figura do detetive. Essas tipologias são essenciais aos estudos literários nas Universidades, para que os futuros scholars – teóricos, críticos, pesquisadores e professores de literatura – conheçam a fundo as diferentes narrativas que levam o artista literário a criar grandes estruturas romanescas.

Pode dar-nnos um exemplo do último tipo citado? O romance poético? A Morte de Virgílio, de Hermann Broch. Eis um típico romance alemão. Tudo se passa nas 18 horas que antecedem a morte do criador da Eneida.

César Leal: “Quando muitos se aposentam, fiz essa estréia em um novo gênero, o romance”

E o “romance ensaístico”, quais suas ca racterísticas essenciais? Poderia defini-llas? Os teóricos da literatura têm procurado mostrar que o romance ensaístico é o romance enciclopédico, que contém algo de cada espécie de romance, muito de suas técnicas e leis narrativas. É o romance que utiliza numerosos recursos do ensaio em sua elaboração. É o “ensaio em forma de novela”. Como o ensaio, desde Montaigne, se distingue pela riqueza do leito cultural em que desliza a linguagem, alguns teóricos e críticos chamaram esse tipo de romance de ensaístico. Creio não ser um um erro – ou pelo menos um grave equívoco – classificar Minha Amante em Leipzig nessa tipologia, ainda que ele não seja tão erudito como afirmaram amigos que leram os originais. Podemos dizer que, sob muitos aspectos, o Doktor Faustus, de Thomas Mann tem muito do que se pode definir como ensaio. O capítulo XXII desse romance, em que o compositor Adrian Leverkühn descreve o sistema dodecafônico de Schönberg, não é mais do que um elaborado ensaio, sobre a teoria e Continente Multicultural 29


Os teóricos da literatura têm procurado mostrar que o romance ensaístico é o romance enciclopédico, que contém algo de cada espécie de romance, muito de suas técnicas e leis narrativas. É o romance que utiliza numerosos recursos do ensaio em sua elaboração. É o “ensaio em forma de novela” técnica de composição serial baseada nos doze semitons da escala temperada. Quem ler o Doktor Faustus não terá nenhuma dúvida sobre o que acabo de dizer. Isso não significa que eu esteja a afirmar que o Doktor Faustus é um romance ensaístico. É muito mais do que isso. Franklin de Oliveira, que foi um dos melhores conhecedores da literatura alemã no Brasil, tem razão em colocar as grandes novelas de Thomas Mann na categoria do “super-romance”, o romance oposto à “novela-rio” de autores russos como Tolstoi e Dostoiéviski, ou dos grandes novelistas franceses. Por exemplo: Balzac, Flaubert, e principalmente Proust. Os maiores romances desses escritores não apresentam a verticalidade da catedral gótica, tal como vemos em Mann, ou na Commedia de Dante, que é um romance em verso. Neles predomina a horizontalidade rica, a fluir sobre um poderoso leito cultural, tão forte como se esses rios fossem os formadores daquele oceano impetuoso, cujas ondas são mais altas do que o Himalaia, espécie de alegoria da vida humana, descrito por Edgar Allan Poe, em seu Manuscrito encontrado em uma garrafa.

Goethe (à esquerda): romances de formação Thomas Mann: o super-romance

E o romance ensaístico assemelha-sse aos picos de A Montanha Mágica ? Sob alguns aspectos, sim. O romance ensaístico também aponta para a altura, mas sua forma é a da torre dividida em pavimentos, não se assemelha a catedral, cada pavimento é diferente e ao mesmo tempo semelhante aos demais. O próprio subtítulo de meu romance indica essa orientação: – Ensaios sobre as Artes, as Armas e o Amor. Tudo isso é muito pouco em relação ao romance alemão: o romance da cultura. Em Minha Amante em Leipzig, obra escrita sem nenhuma ambição, quis apenas exercitar a fantasia, quando perdi o espaço de que dispunha semanalmente para as atividades de escritor público. “Escritor público” é uma definição de N. Frye, em sua Anatomia da crítica, para o crítico literário de periódicos, aos quais Montesqueau recomendava não escrever sobre livros novos sem antes ler os antigos. Como vê: foi uma razão meramente profissional que acrescentou a minha biografia esse novo título que

30 Continente Multicultural

tanto me honra. Mas agora retornei à minha torre de tiro. A revista Estudos Universitários, que voltei a editar e tem como diretor George Browne Rego, traz em seu próximo número, um ensaio meu de 27 páginas sobre o Doktor Faustus. Que nos diz sobre a personagem feminina? Quem é a Senhora von Hardenberg? Na arte de escrever romance, sou apenas um aprendiz. Não tive em mira criar uma personagem exemplar. Um protótipo como Hécuba, Helena de Tróia, Cleópatra, Madame Bovary. A Senhora von Hardenberg é extremamente culta, mas é uma pessoa comum em seus sentimentos humanos. Não é figura de dimensão universal máxima, a exemplo dos protótipos lembrados acima. Em sua residência, os criados não têm voz. Seu mordomo é visto pelo seu amante apenas uma vez. Gosta das artes, dos grandes poetas em especial gregos e ingleses, é admiradora de Dante e Shakespeare. Não foi criada com a intenção de tornar-se mais do que ela é: uma aristocrática prussiana de seu século, que conhece o sânscrito, o grego e o latim, domina a literatura escrita nesses idiomas, é admiradora da pintura italiana e holandesa e da música de J.S.Bach, de quem foi aluna, quando ele era diretor musical das Igrejas de Leipzig. Talvez seja apenas uma figura alegórica, um reflexo do Sturm und Drang, movimento espiritual que iniciou a


grande revolução da cultura alemã a partir de meados do século 18. Aliás o nome de Novalis é Friedrich von Hardenberg. Apesar disso, a personagem feminina não é Novalis, ainda que no romance se fale na flor azul. Você falou em romance de formação e lembrou o ciclo do Guilherme Meister? Considera Goethe um grande romancista? Sim. Goethe é um dos maiores novelistas da história da literatura universal. O argumento do Guilherme Meister é grandioso, quando se sabe que a principal função do teatro, desde os gregos, é educar. Mesmo para os que priorizam as teses de Aristóteles sobre a tragédia, o teatro é o gênero em que a função social da literatura alcança, através de um conjunto de fatores extraliterários, algo que não poderia ser atingido utilizando apenas as palavras. Lendo um romance como Os anos de aprendizagem de Guilherme Meister compreendemos não só a formação do herói como algo mais: a própria formação do grande teatro alemão que vai de Goethe, passando por Schiller, Hauptmann, até o teatro épico de Brecht. Mas isso é apenas um exemplo. O “ super-romance” de Thomas Mann pode, em parte, ser um “romance de formação” . Por exemplo, Hans Castorp, o herói de A Montanha Mágica, contribui, até certo ponto, para que essa novela seja, em parte, um “romance de formação”. No caso, o herói sobe a montanha de Davos para visitar um primo, em tratamento no Sanatório de Berghof. Ele é engenheiro naval. Sua visita deveria durar 7 dias, mas atacado de um resfriado, descobre que está tuberculoso. Assim, ao invés de 7 dias, acaba passando 7 anos. Durante esse período, presenciou a morte do primo que tinha ido visitar, mas foi ouvindo a conversa de dois intelectuais que ali estavam internados – o humanista Settembrini e o jesuita Naphta – que termina por completar a formação superior de seu espírito que o diploma de engenheiro jamais lhe poderia assegurar. Nem o diploma de doutor, porque de doutor “sem ciência” o Brasil anda cheio, embora a pós-graduação seja o que de melhor se fez na educação brasileira no século 20.

Quer dizer que A Montanha Mágica é um “romance de formação”? Parcialmente, sim. No todo a classificação que lhe cabe, por sua amplitude, a forma como o tempo é encarado na narrativa, faz de A Montanha Mágica um “super-romance” . Não há no Brasil um romance que possa ser classificado assim. Mas Proust compôs também um “ superromance”. Ou À la recherche du temps perdu não pode entrar nessa classificação? Proust não escreveu romance como quem constrói arranha-céus, nem catedrais góticas com suas místicas agulhas a apontar às estrelas. Nisso é o oposto de Thomas Mann. Proust, como Machado de Assis, escreveu o romance-rio. A novela-rio, como nos mostra uma professora da Universidade do Cairo, cujo nome não me chega à memória. Seu romance, como disse acima, desenvolve-se no plano do horizonte, não apresenta excursos fora do tema central, como ocorre com Thomas Mann. Paradoxalmente, o tema central dos dois é o mesmo: o tempo. Quem observa com olhar de astrônomo um trecho qualquer de Proust logo nota que o tempo se introduz na estrutura da narrativa de forma tão sutil que quase não chega a ser percebido. Em Thomas Mann, o tempo se apresenta de forma mais explícita, em particular quando ele nos mostra a “suspensão” do tempo para os que vivem no luxuoso Sanatório de Berghof, em Davos Platz. Sua preocupação não é com os que ali vivem, suas conversas, seus amores, seus pensamentos diante da ameaça da morte ou da possibilidade de cura que lhes restituirá a consciência do tempo que os enfermos possuiam antes de subir à montanha. Para Mann, os hóspedes de Berghof são seres imobilizados. Quem os imobiliza? Thomas Mann diz que “é uma mágica hermética, uma distorção temporal de perspectiva que lembraria alguém Continente Multicultural 31


de certas experiências anormais e transcendentes na vida real”. Para Thomas Mann há dois tempos: o tempo exterior dos que vivem fora do sanatório, no mundo, e o tempo imóvel dos doentes de Davos, onde o senso de duração está embotado, vazio. Espacialidade, temporalidade e duração apagaram-se em suas consciências. Para esses enfermos, o tempo está imobilizado. Esse tempo imóvel seria, talvez, o verdadeiro tempo. Mann diz que “ ali não há nenhum tempo do que falar, seja longo ou breve”. Acredito que esses dois romancistas, tão diferentes como narradores, – Proust e Mann – em grandeza se equivalem.

Sobre isso não direi nada. O romance já está nas livrarias. Contudo, deixo-lhe este exemplar. Faça dele o uso que julgar conveniente. A tradução na Alemanha já está praticamente assegurada. Grandes leitores de romanece o colocaram nas alturas: Erwin Theodor Rosenthal, da USP, Marco Lucchesi, da UFRJ, e o pintor Francisco Brennand, além de outros especialistas no exterior. Por que a ambientação na Alemanha?

Pela mesma razão, não tenho certeza, que Mas o Senhor nada disse de específico so- teria levado Hemingway a ambientar em Cuba a bre seu romance? O erotismo, as discussões sobre curtíssima novela O Velho e o Mar, considerada gêneros literários, o imaginado Império sonhado uma obra-prima da literatura mundial da época e por Nassau. de sua carreira literária.

O poeta e sua obra César Leal é poeta e crítico de poesia, professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco, onde fundou o Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística (Mestrado). Foi o primeiro poeta de língua portuguesa ao gravar poemas para a Biblioteca de Poesia da Universidade de Harvard. Participou do processo de criação do Prêmio Luís de Camões, pelos governos do Brasil e Portugal e interga o grupo de trabalho que prepara uma História da Literatura da América Latina, a ser pubLicada pela Oxford University Press. É condecorado com o grau de Cavaleiro com a Ordem do Mérito da República da Itália. 32 Continente Multicultural

Publicou 20 livros de poesias e ensaios, entre os quais: Invenções da Noite Menor (poesia, 1957), O Triunfo das Águas (poesia, 1968), Ursa Maior (poesia, 1969), A Quinta Estação (poesia, 1972), O Tambor Cósmico (poesia, 1978), Os Heróis (poesia, 1983), O Arranha-Céu e outros poemas (1994), Alturas (poesia, 2001), Os Cavaleiros de Júpiter (ensaio, 1969), Introdução ao Estudo da Poesia de Camões (ensaio, 1975) Literatura: a Pa1avra como Forma de Ação (ensaio, 1968), O Mito Ontem e Hoje, (ensaio, 1985, com outros autores). Tem livros de poemas traduzidos para o alemão e arrebatou prêmios, como o Vânia Souto Carvalho (1957) e o Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras (1987).


Os caminhos da Paixão A popularização das encenações do martírio de Jesus pelo cristianismo medieval e as origens da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém

E

ncenar o drama da Paixão de Cristo é costume quase tão antigo quanto o próprio Cristianismo. Quase. Nos seus primeiros séculos, além de manter uma relação problemática com o teatro (e a música), a Igreja Católica precisou se ocupar, não com os acontecimentos que precederam e acompanharam a morte de Jesus, mas com o mistério da ressurreição. Trata-se, obviamente, de uma divisão esquemática: morte e ressurreição de Jesus são eventos que não podem ser considerados separadamente. No entanto, pode-se dizer que cada um mereceu dos pensadores cristãos a atenção central, ainda que não

exclusiva, em períodos distintos da história. (A celebração do domingo de Páscoa é, de fato, mais antiga do que a da Sexta-feira Santa). Podemos entender por que, num primeiro momento, a ressurreição foi mais importante do que a morte, se associarmos à primeira a condição divina de Jesus, e à segunda a sua condição humana (o que não deixa de ser esquemático, já que ele era homem e deus ao mesmo tempo). Na formulação da teologia cristã, foi preciso resolver a imagem de Jesus como Filho de Deus antes de se considerar a de Filho do Homem. Em outras palavras, a divindade precedeu a humanidade.

Detalhe de Cristo no Pelourinho, de Antonella da Messina, séc. 15, Museu do Louvre, Paris

Continente Multicultural 33


São Francisco Adorando um Crucifixo, de Guido Reni, 1631-1632, Museu de Arte Nelson-Ackins, Kansas City

O historiador norte-americano Jaroslav Pelikan, autor do livro A Imagem de Jesus ao Longo dos Séculos (São Paulo: Cosac & Naify, 2000), explica esta precedência: “O pensamento cristão foi obrigado a calcular a magnitude do pecado humano avaliando primeiramente aquele sobre o qual se impôs o castigo divino da cruz”. Somente a consciência de que Deus havia sacrificado, dentre todos os homens, o próprio filho, esclarecia a gravidade do pecado original que compõe a natureza humana. O médico e escritor Ronaldo Brito contribui com a explicação de Pelikan, lembrando que a teologia cristã foi fundada em cima de mitos anteriores ao próprio Jesus, como o do rei divino que dá a vida pela salvação do reino. “Foi preciso igualar Cristo a esses reis e deuses míticos, primeiro, para depois considerá-lo homem, com segurança”, diz Brito. Ele trata mais detalhadamente do tema em sua coluna Entremez, nas págs. 72 e 73 desta revista. A questão divindade/ressurreição x humanidade/morte de Jesus é inesgotável e polêmica. A associação da Páscoa à superação do sábado, dia sagrado do Judaísmo; a celebração do início da primavera, correspondente à Páscoa, em culturas anteriores ao Cristianismo; são outras explicações possíveis para a ênfase inicial na ressurreição, mas se alongar no tema foge do propósito deste ensaio. Seja como for, passados os primeiros séculos, foi durante a Idade Média (séc. 5-15) que o Cristianismo pôs-se a examinar com mais atenção a condição humana de Jesus, sua crucificação e morte. São personagens centrais deste momento Santo Agostinho (séc. 4-5) e São Francisco de Assis (séc. 13). Para o primeiro, era importante perceber que Jesus havia escolhido tornar-se humano e mortal para salvar os pecadores. Agostinho concluiu que “a deformidade de Cristo vos forma. Se ele não tivesse querido ser deformado, vós não haveríeis recobrado a forma que perdestes”. E exortava os fiéis: “Nesta vida, pois, apeguemo-nos com firmeza ao Cristo deformado”.

34 Continente Multicultural

Quando estava na cruz, Jesus foi deformado. A cruz é símbolo comum a todas as culturas, mas o Cristianismo medieval particularizou o seu uso, tomando-a como instrumento de salvação. Na Antiguidade, especialmente na Palestina e no período em que viveu Jesus, era símbolo de infâmia. A morte na cruz era a pena romana capital para os delitos contra o Estado e a sociedade, aplicada a traidores, rebeldes e criminosos violentos. Ao dignificar o símbolo, a Idade Média viu proliferarem cruzes na beira das estradas, nas edificações, sobre os túmulos de cristãos. O sinal-da-cruz passou a funcionar como um talismã, adquirindo propriedades mágicas: segundo os Evangelhos apócrifos, o sinal podia abrir uma porta trancada (um dos Atos) ou silenciar os latidos de um cão (um dos martírios), e relatos populares davam conta de mortos trazidos à vida pelo poder do gesto. Mas a imagem do Crucificado tomaria o mundo cristão com maior força a partir de São Francisco de Assis. No afã de identificar-se com Jesus, na vida e na morte, São Francisco teria chegado a apresentar os estigmas (stigmata), ferimentos espontâneos nas mãos e nos pés, semelhantes aos dos cravos usados na crucificação. Ao mesmo tempo em que a morte de Jesus substituía a ressurreição como problema central do Cristianismo, operava-se uma simbiose, entre o teatro medieval e a liturgia católica, fundamental para as futuras encenações da Paixão de Cristo. Vêm do drama litúrgico as raízes desta simbiose. A utilização de cânticos e símbolos para representar passagens dos Evangelhos proporcionava dramaticidade às missas. Aos poucos, a dramaticidade, somada ao luxo dos acessórios, conferia à liturgia o caráter de espetáculo. Tratava-se, contudo, de um espetáculo realizado em latim, confinado ao interior das igrejas, executado apenas pelos sacerdotes. A necessidade de chegar mais perto das classes populares, aliada à disposição natural destas em exercitar um Cristianismo que nem sempre coincidia com o do clero, mudou esta situação. As missas pas-


do Pecado, como adversários de Jesus. As alegorias eram comuns nos autos medievais pelo potencial didático, estimulado, principalmente, pelos reformadores da Igreja Católica. As influências medievais sobreviveram na Paixão de Oberammergau até 1750, quando a Razão exigiu mudanças no texto. Para os iluministas, o fio da navalha estava entre a concepção do Cristo capaz de milagres – que a ciência moderna tratou de invalidar – e a do Cristo histórico, não apenas humano, mas efetivamente igual aos outros homens. Segundo Jaroslav Pelikan, no seu já citado livro, a solução foi identificar na sabedoria de Jesus o seu contato com o divino. “Se a unidade metafísica com Deus na Trindade e a revelação milagrosa do céu já não constituíam credenciais para a mensagem de Jesus”, diz Pelikan, “a harmonia entre sua mensagem e o melhor da sabedoria humana poderia ser capaz disso”. Em Oberammergau, a questão foi resolvida pelo beneditino Ferdinand Rosner (1709-1778), que Entra a peste escreveu os 8457 versos de uma Passio Nova piedosa Oberammergau é uma cidadezinha no Sul e racional na medida certa. O texto de Rosner tornou da Alemanha. No ano de 1633, enquanto a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) dividia os alemães entre católicos e protestantes, a peste bubônica chegou à cidade. Metade das famílias teve perdas. Ao final da epidemia, no cemitério, os sobreviventes ergueram um símbolo de Jesus crucificado e juraram encenar a Paixão de Cristo a cada década, em troca de proteção divina. Um ano depois, eles mantiveram a promessa e iniciaram uma tradição de quase quatrocentos anos. O espetáculo de Oberammergau tem especial relevância para o Brasil, pois inspirou a Paixão de Cristo de Fazenda Nova (posteriormente, de Nova Jerusalém), em Pernambuco. São bem diferentes: além da periodicidade (décadas, em vez de anos), com temporadas de meses, a Paixão de Oberammergau é encenada num teatro ao ar livre, mas com o público sentado em arquibancadas cobertas. A cópia mais antiga existente de um texto da Paixão de Oberammergau é de 1662. Com 4502 versos, indica como fonte uma peça de data imprecisa (1600-1615), que por sua vez era baseada em trabalhos de um grupo alemão medieval. Uma versão posterior, de 1730, de autoria do agostinho Anselm Manhart (1680-1752), de Rottenbuch, introduzia as figuras alegóricas da Inveja, da Cobiça, da Morte e

saram a ser realizadas também fora das igrejas, nos pátios e pórticos, e a adotar idiomas locais. Às passagens dos Evangelhos foram adicionados episódios cômicos, que já não podiam ser representados pelos sacerdotes. A liturgia foi gradualmente transformada e até pervertida pela cultura popular. Esse percurso vai resultar nos espetáculos dos mistérios das moralidades apresentados nas praças. (É importante notar que, embora podendo conter o elemento cômico, tais espetáculos cumpriam com a solenidade exigida pelas celebrações religiosas, o que inclusive condicionava a interpretação dos personagens. O desempenho era esquemático, frio; os atores não podiam se identificar com seus papéis, o que seria considerado heresia.) Apresentando, de um lado, um Cristianismo preocupado com a condição humana de Jesus, e de outro, a liturgia católica transformada em teatro pelo povo, a Idade Média propiciou a popularização do costume de encenar a Paixão de Cristo.

Cena da crucificação na Paixão de Cristo de Oberammergau (Alemanha), realizada a cada década

Continente Multicultural 21


nação “Fazenda Nova” para as terras que abrigariam “o maior teatro ao ar livre do mundo” surgiu em 1824, quando a descoberta de um olho d’água na Fazenda do Cachorro fez desta a Fazenda Nova do Cachorro. No começo do século 20, Fazenda Nova apresentava vida cultural agitada. A família Bernardo promovia vaquejadas e corridas de cavalo, a novena de São José era festejada na residência do senhor José Dão, e no Carnaval a dona Maria Francisca Sant’Ana, a Maria Catingueira, era a porta-bandeira do bloco Cambindas, composto só de mulheres. Maria Catingueira só encontraria concorrente igual, em matéria de promover eventos culturais na vila, na pessoa de dona Sebastiana Mendonça, casada com o comerciante Epaminondas Mendonça. Juntas, lideravam os festejos da cidade e promoviam competições carnavalescas. Em 1925, a marcha do bloco Ideal, de dona Sebastiana, provocava: “Atrás do Ideal vem a fidalguia, e atrás dos Ciganos vem a negraria”, e o bloco Ciganos, de Maria Catingueira, dava o troco: “Atrás dos Ciganos é que vem a fidalguia, atrás do Ideal só vem a putaria”. Epaminondas, por sua vez, apoiava as iniciativas da mulher, e foi, ele próprio, figura importante para o desenvolvimento de Fazenda Nova. Ajudou a elevá-la à condição de vila (1932), inaugurou o primeiro gerador de eletricidade (1934), a Sede Musical e Teatro (1948), a Cooperativa de Crédito Rural (1950) e a Maternidade de Fazenda Nova (1958). Em 1964, foi prefeito pelos seis meses em que a vila Entra a família Mendonça foi elevada a município, condição revertida pelo golNa mesma época em que Henry Ford assis- pe militar. Sua contribuição mais importante, contutia ao espetáculo mundialmente famoso da cidade do, foi ter tido a idéia de encenar uma Paixão de Crisalemã, Fazenda Nova via o primeiro automóvel a to aos moldes da de Oberammergau, sobre a qual tinha lido na revista circular por suas ruas, Fon-Fon, em 1950. o Ford preto do coronel Epaminondas era, nesSaturnino. ta época, dono do HoFazenda Nova é tel Familiar, e pensou um distrito do município que a idéia poderia de Brejo da Madre de atrair turistas. Deus, no agreste perEm 1951, a fanambucano, a aproximília Mendonça levou madamente 200 km da às ruas de Fazenda capital. Data de 1752 a Nova, pela primeira povoação do município, vez, O Drama do Calque começou como uma vário, peça de Luiz fazenda de gado da Mendonça (filho de Congregação do OraEpaminondas) e Osítório do Recife. A desiga Paixão de Oberammergau modelo para outras, e seria reutilizado (não consecutivamente) até 1977. Obviamente, a peça foi ganhando novas versões, dentre as quais se destacaria a do padre A. Daisenberger (1799-1883) para o ano de 1860, que, conforme o espírito do romantismo, enfatizava a emoção e o uso de símbolos, em vez do realismo anterior. O espetáculo de 2000 teve o texto de Daisenberger como base. Qualquer histórico da Paixão de Oberammergau tem que mencionar 1934. No mesmo ano em que chegava o primeiro gerador de eletricidade, movido a gás, a uma vila do interior de Pernambuco chamada Fazenda Nova, Adolf Hitler chegava a Oberammergau. Aproveitava-se da popularidade do espetáculo, então no seu tricentenário, para o plebiscito que seria realizado em breve e viria a confirmálo no poder como chanceler e chefe de Estado. O novo regime nazista mandou imprimir “A Alemanha o convoca!” nos pôsteres da peça, e buscou transformá-la ideologicamente num “drama camponês”, derivado do “poder sagrado do solo”. O nazismo passaria deixando as lembranças da violência cometida e sofrida pela Alemanha. Em 1950, a Paixão de Oberammergau era a chance de mostrar para uma platéia internacional a tradição cristã do país (foi realizada também a mostra 1000 Years of Christian Art in the Sign of Passion). Mas o Holocausto era memória fresca, e em 1970 o espetáculo passou a sofrer críticas, tanto por cristãos como por judeus, de que estaria pregando o anti-semitismo.

Atores encenando a Paixão de Cristo em Fazenda Nova, numa foto de 1961, anterior à construção de Nova Jerusalém

36 Continente Multicultural


ris Caldas, direção de Luiz e Sebastiana Mendonça. Luiz, um dos nove filhos do casal Mendonça, foi também o intérprete de Jesus, numa encenação cujos atores eram todos familiares e amigos, e cujo figurino era confeccionado dos lençóis do Hotel Familiar. O Drama do Calvário era uma peça em três atos, apresentados no Domingo de Ramos, na Quinta e Sexta-Feira Santa, respectivamente. O povo acompanhava os atores de um cenário a outro (as ruas, a igreja, o Salão Azul e a fonte hidromineral do hotel). O sucesso da encenação a colocaria definitivamente no calendário da vila. Já em 1953, O Drama conseguiu a adesão de membros da classe teatral recifense, como os atores e diretores Octávio Catanho (mais conhecido como Tibi), Clênio Wanderley, e o ator Alberique Farias. Tibi, que também era dono de ginásio de musculação e ex-Mister Pernambuco, convidaria o halterofilista (e também ator) José de Souza Pimentel para o papel de soldado romano, três anos mais tarde. A integração crescente de atores e técnicos do Recife fez com que o espetáculo superasse, desde cedo, o amadorismo dos dois primeiros anos. De fato, em torno de Fazenda Nova reuniu-se um elenco de profissionais do teatro que viriam a participar de momentos marcantes para as artes cênicas de Pernambuco, como a estréia nacional do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, e a criação o Teatro Popular do Nordeste. Fazenda Nova seria ainda pólo cinematográfico, com a realização de filmes como Terra sem Deus (1963); Riacho de Sangue (1966); A Compadecida (1969); A Vingança dos Doze (1970); Faustão (1971); A Noite do Espantalho (ganhador de prêmio em Cannes, em 1973); Batalha dos Guararapes (1977); e Pele do Bicho (1980), entre outros. A profissionalização do espetáculo encontraria, com o tempo, um obstáculo. Realizada nas ruas, gratuitamente, vivendo de donativos colhidos pela família Mendonça, a Paixão de Cristo tornouse inviável financeiramente. Num texto publicado em 1962, os promotores do evento reclamavam: “Um espetáculo custa 500 mil cruzeiros. Em onze anos de realizações a ajuda obtida dos poderes públicos não atingiu essa soma”. A solução para o problema viria da cabeça de um gaúcho de Soledade, jornalista e suboficial da Força Aérea Brasileira, que desde 1956 conhecia a encenação dos Mendonça, e desde 1957 havia casa-

do com a filha caçula da família, Diva. Em 1962, Plínio Pacheco teve a idéia de construir uma réplica da cidade de Jerusalém em Fazenda Nova, onde se poderiam cobrar ingressos ao público. Pacheco ajudou a projetar os cenários; conseguiu o financiamento para comprar o terreno; com um jipe do tempo da Segunda Guerra Mundial, carregou pedra, areia, cimento, água e comida para os operários. Durante os sete anos de construção de Nova Jerusalém (os trabalhos foram concluídos em 1968), não houve Paixão de Cristo em Fazenda Nova. A realização quase heróica de Pacheco representa o início de uma fase, na história da Paixão, marcada por sucessivas melhorias técnicas (sistema de dublagem, efeitos visuais e sonoros), aumento considerável de público e notoriedade internacional. É também a fase em que José Pimentel assumiu a direção do espetáculo (em 1970) e o papel de Jesus (em 1978), até o ano de 1996. A decisão de acumular as funções de diretor e protagonista renderia críticas da imprensa e de parte da classe teatral a Pimentel, que, por sua vez, não aceitaria a proposta de contratar atores da Rede Globo de Televisão para os papeis princiOs atores Maité Proença (Maria) e Miguel Falabella (Herodes) contracenam com Marcelo Valente (Jesus) a Paixaõ de Cristo de Nova Jerusalém, em 2002

Continente Multicultural 37


pais. Tudo isso viria a culminar com a sua saída do espetáculo, em 1997. Desde então, a direção está a cargo da dupla Lúcio Lombardi e Carlos Reis (também ex-intérprete de Jesus). O momento atual da Paixão de Cristo é marcado, sobretudo, pela presença de atores da rede Globo de Televisão nos papéis principais, e pela confirmação do evento como bom negócio para o turismo. Desde 1997, a Sociedade Teatral de Fazenda Nova, que administra Nova Jerusalém, participa das reuniões anuais da Associação Brasileira dos Agentes de Viagens (Abav); e, no mesmo ano, a Associação Brasileira dos Jornalistas Especializados em Turismo (Abrajet) confere a Plínio Pacheco o prêmio de personalidade turística do ano. Quanto a José Pimentel, após a sua saída de Nova Jerusalém, reuniu alguns atores para encenar a Paixão de Cristo do Recife, no estádio do Arruda (em 2002, será realizada na Ilha do Retiro), pela qual vem recebendo elogios da imprensa. Paixão de Cristo de Nova Jerusalém Em Nova jerusalem, a 180km do Recife (via BR-232 ou PE-90) Quando: 23 a 30 de março, abertura dos portões às 16h, início do espetáculo às 18h Preços: dias 23 e 29 - R$ 35,00 / dias 24, 28 e 30 - R$ 30,00, dias 25, 26 e 27 - RS 25.00 Informações: Fone (81) 3732.1129 / Fax (81) 3732.1181 Site: www.novajerusalem.com.br E-mail: novajerusolem@netstage.com.br Paixão de Cristo do Recife (informações a confirmar): Na praça do Marco Zero. no bairro do Recife Quando: de 27 a 31 de março, às 20h Preços: O espetáculo será gratuito Informações: Fone (81) 3231.3521 / Fax (81) 3423.3186 Site: www.paixaodecristo.com.br E-mail: tetel@elogica.com.br Livros: A Imagem de Jesus ao Longo dos Séculos, de Jaroslav Pelikan. São Paulo: Cosac & Naify, 2000 Sobras de Terras (a história de Fazenda Nova e de pessoas e famílias que lá viveram), de Diva Pacheco. Fazenda Nova: EDmicro, 2000 Jesus, peça em dois atos, de Plínio Pacheco. Fazenda Nova: EDmicro, 2001 Mero Século de Paixão, de Carlos Reis. Recife: Comunigraf, 2002 Site: Site oficial da Paixão de Oberammergau httpl/www.passionsspiele2000.de/

38 Continente Multicultural

Teatro, fé e efeitos especiais Carlos Reis e José Pimentel tentam definir as suas Paixões e falam sobre o personagem Jesus Cristo

Carlos Reis:

H

érson Capri dizia, ao trabalhar no espetáculo, que Nova Jerusalém era uma terceira linguagem, que ficava entre o cinema e o teatro. Eu acho que é um tipo de teatro diferente, de massa, mas é teatro. A gente se permite, dentro do espetáculo, algumas tiradas puramente teatrais. Em 2002, vamos introduzir no Caminho do Calvário, na Via Sacra, uma cena que é típica da tragédia grega, com um “corifeu”, que será Madalena, que a certa altura puxa um coro. Ao mesmo tempo, é um teatro que vive muito de tecnologia. E tecnologia é cara. Um simples refletor, e talvez precisemos de trinta ou quarenta deles lá, custa R$ 680,00. Um teatro convencioanl tem um palco. Nós temos nove. Tudo que nós compramos temos que comprar multiplicado por nove. Em matéria de tecnologia, nós podemos e trataremos de crescer muito ainda. Temos idéia de computadorizar o comando do espetáculo inteiro. O som e a luz. Como também toda a parte de efeitos especiais. Por exemplo, nós poderíamos fazer a ressurreição com Jesus saindo do sepulcro quase como se fosse um plasma. A imagem dele caminhando por


dentro de uma nuvem de fumaça. Poderíamos fazer entradas e saídas quase mágicas de seres não-reais, como os demônios. Poderíamos fazer um terremoto com muito mais verdade, se tivéssemos um equipamento para jogar o efeito do som do terremoto para toda a platéia. Todos iriam sentir no corpo o movimento do terremoto.” “O personagem de Jesus é almejado por quase todos os atores jovens, digamos, de até quarenta anos. É um personagem de muita força e tem uma dimensão incomum, até para quem não é religioso, ou até para quem é de outra religião. Mas o ator deve se emocionar pouco. O mais criterioso é não encarar ninguém no público. Ter uma visão acima das cabeças, porque se você por um instante encara uma pessoa qualquer da platéia, pode se contagiar com a emoção dela, e é muito perigoso. Quando eu fazia Jesus, numa cena depois da flagelação, enquanto os sacerdotes de Pilatos discutiam se crucificavam ou não, eu corri a vista pela platéia, e tinha uma moça na primeira fila fazendo careta pra mim. E pensei: “Como é que uma pessoa vem para o espetáculo para fazer careta para o ator?’ Depois, prestei mais atenção a ela e vi que ela não estava fazendo careta – estava chorando horrivelmente. Ela não agüentava: olhava para a minha figura, o sangue escorrendo, a coroa de espinhos, uma cana enfiada no meio da mão, amarrado e ensangüentado. Tive que desviar o olhar, porque estava me contagiando com a emoção dela. Certa vez um pessoal de uma TV japonesa filmou a platéia, e nos chamou a atenção para o fato de que, quando Jesus era açoitado e tombava, as pessoas se mexiam para frente, como se tivessem sendo açoitadas também. A empatia era tão grande que as pessoas cediam à queda de Jesus. Quando a cruz era jogadas nas costas de Jesus, e ele sentia o seu peso, as pessoas sentiam também.”

José Pimentel

O

público da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém é muito heterogêneo. Uma mistura de religiosos, de menininhas que estão ali para curtir aquilo tudo, e um público curioso, que vai conhecer Nova Jerusalém, e se perde vendo as paisagens: a lua, as serras, aquelas construções. Não é um público de teatro.

A gente vai ver que é um pouco diferente quando faz no campo de futebol. Também não é público de teatro. É público religioso, que vai para se emocionar. No estádio, a gente conseguiu fazer uma coisa mágica. Você vê três estruturas imensas montadas. Aí apagam-se os refletores, deixa de ser campo de futebol, passa a ser uma luz teatral. Surge um palácio aqui, com duas colunas quadradas, os acessórios de cena, aí eu corto a luz. Quando a iluminação retorna, a cena já se passa no palácio de Pilatos, com colunas redondas, tudo diferente. Para o povo isso é magia. E no estádio tem um infinito que é impressionante. No campo, tudo escuro, parece que os cenários surgem do nada. Outra: no estádio, as pessoas sentam, o espetáculo é contínuo. Em Nova Jerusalém, pára a cena, acende tudo, ligam os alto-falantes, o povo começa a correr, comenta outra coisa, e quebra aquele instante. As pessoas têm que se arrumar para começar tudo de novo. E a emoção vai quebrando, quebrando, quebrando. No estádio, o espetáculo não pára, a emoção vai se acumulando, acumulando, você chega a um ponto que não agüenta mais e desaba. O choro é inevitável. Até os homens choram. “No teatro ao ar livre, como a distância para o público é muito grande, os atores exageram nos gestos. As roupas precisam aparecer. Quem vê o ensaio pensa: “Que coisa exagerada!” Mas quando ponho isso num palco à distância, se torna normal. E os atores têm que emitir a voz, mesmo com a dublagem, porque quem está perto precisa ouvir, senão parece falso. Outra coisa: o ator tem que ter ritmo. Tem ator que não consegue pegar o tempo da dublagem e fica atrasado. Digo sempre ao ator: “Olha, não tenta pegar a frase que passou. Deixa a boca aberta e pega a seguinte”. “Ator não tem idade. Já vi ator velho fazer jovem, e o jovem fazer velho. A cada dia a maquiagem vai se aprimorando e tudo é possível. O ator, em qualquer situação, tem que ter talento e bom um condicionamento físico. Eu vou fazer Cristo até quando agüentar carregar aquela cruz.” Depoimentos concedidos ao jornalista Fábio Lucas

Continente Multicultural 39


A Paixão das “Paixões” Ingênuos, grandiosos, polêmicos, são os filmes que a história de Jesus Cristo vem inspirando ao cinema desde os seus primórdios Fernando Monteiro

D

esde a sua invenção – mais como divertimento de feira do que qualquer outra coisa – o cinema esteve sob o fascínio da história. A “sétima arte” foi meio naïf na origem próxima da grandiloqüência teatral, das “reconstituições” que sempre buscaram no passado e nos relatos bíblicos os temas que as platéias aprovariam mais reverentemente. Já em 1897, o diretor do “museu Eden” de Nova Iorque ouvia de W. B. Hurd, representante do cinematographo dos irmãos Lumière, a idéia de levar a engenhoca para filmar uma Paixão de Cristo (The Passion Play) muito popular nos teatros nova-iorquinos da época. Mistura de loja de antiguidades e museu de figuras de cera, o museu Eden adquirira o direito de exibir os primeiros filmes, como uma atração a mais, e o seu diretor (Rich G. Hollaman) de imediato “chupou” a idéia que Hurd candidamente lhe apresentara. Juntando religião e circo através de lentes, Hollaman partiu “na frente” e contratou Henry C. Vincent, diretor teatral, para produzir a primeira Paixão do cinema, intitulada The Passion Play of Oberammergau, filme de 20 minutos que estreou no museu Eden (é claro) em 30 de janeiro de 1898. Oberammergau é a cidade alemã cuja encenação popular da Paixão de Cristo inspirou a família Mendonça, em Fazenda Nova, e o esperto Hollaman só fez botar o nome da localidade no seu produto comercial (para evitar pagar direitos mais do que para se sentir original). E nem passou pela sua cabeça, com certeza, que estava abrindo filão de fôlego de sete gatos na sétima arte, com uma enfiada de “Paixões”, iguais ou melhoradas, aparecendo – na América e na Europa – pelas três décadas de aprimoramento técnico que se seguiram. Os estúdios

40 Continente Multicultural


Cena de La Vie et Passion du Jesus Christ, de Ferdinand Zecca e Lucien Nonget: versão da Paixão de Cristo vista por Ghandi e Lampião

Pathé, por exemplo, logo contrataram Ferdinand Zecca e Lucien Nonget para realizar aquela que se tornaria a Paixão mais difundida, inicialmente: La Vie et Passion du Jesus Christ, vista por Ghandi e por Lampião, por Madre Teresa e por “Madame Satã”, pelos pastores de Fátima e pelos romeiros do Padre Cícero... O que equivale a dizer, sem exagero: vista por todos, em toda parte, apesar de ser um filme rígido, de cenas primitivas e sem muito fascínio na sua oleográfica visão da vida de Cristo como cinzentas passagens de sermões, milagres e o sofrimento final, na cruz tosca. O fato é que os pioneiros perceberam toda a força de atração não só da letra bíblica levada ao pé da cruz. Jesus, Roma, soldados e camelos pareciam a melhor receita de gordas bilheterias, e logo apareceram opções mais interessantes e mais profanas. O romance Bem-Hur, de Lew Wallace – governador do Texas de Billy The Kid –, foi levado à tela em 1907, contando a história do príncipe Judah, da casa de Hur, que se torna escravo, filho adotivo de um senador romano e herói de corridas de bigas, antes de ver a mãe e a irmã leprosas curadas pela fé no Galileu: “Um filme dos tempos de Cristo!”, anunciavam os cartazes tanto dessa primeira versão (dirigida por Sidney Olcoot e Frank Oakes) como da magnífica refilmagem de 1959, assinada pelo talentoso William Wyler e premiada com 11 Oscars, merecidamente. Mas não pulemos etapas. Ainda naqueles começos, a famosa Paixão dos estúdios Pathé teria um forte concorrente americano numa produção dos estúdios Kalem: From the Manger to the Cross, algo como uma “adaptação do Novo Testamento”, intrepidamente feita pela atriz Gene Gaultier em 1911. Robert Henderson-Bland aparecia no papel de Cristo, e a coisa teve orçamento recorde (cem mil dólares) para a época. Entretanto, gastar mesmo, quem gastou foi o pioneiro D. W. Griffith – oficialmente, o “pai do cinema” ianque. O homem “tor-

Nos anos 40, a mania de não expor o ros tod e Cristo produz filmes como o mexicano Maria Magdalene, com um Jesus que parece resfriado, por trás de lenços e mantos

rou” 1,8 milhões de dólares no célebre Intolerância, com Howard Gaye na cruz de ouro do filme mais caro do cinema mudo. A produção megalomaníaca de Griffith é de 1916, ano em que um certo conde romano – chamado Julio Cesar de Antamoro – conseguiu apoio simplesmente do Vaticano para filmar Christus, uma produção cheia de pudores, o Nazareno guarnecido, na cruz, com quase um “cuecão de cooouro!” (diríamos hoje), muito pudendo, de modo a não ofender os espectadores italianos que não gostavam dos Cristos americanos crucificados com uma espécie de sunga. E haja tempos “bíblicos” no cinema! O italiano Ennio Guazonni faz uma grandiosa versão de Quo Vadis?, romance do polonês Henryk Sienkiewicz que teria também um versão alemã, em 1923, com Emil Jannings no papel de Nero, e Fred Niblo, em 1925, dirigia já a segunda versão de Ben-Hur para o magnata Louis B. Mayer. Estava ali bem perto um outro magnata emergente, o então jovem diretor Cecil B. de Mille, homem que nascera com um sonoro nome, digno de megafones, e que tinha bom faro de produtor para os temas religiosos e o Oeste selvagem. Sua primeira incursão cinematográfica pela Bíblia se chamou O Rei dos Reis e contava com H. B. Warner no papel central (nada a ver com o Warner – também magnata – da Warner Brothers)... Magnatas costumavam ter idéias de magnatas – é lógico – e os dirigentes da RKO Pictures se voltaram para Pompéia e o Vesúvio. Mudaram a data da erupção vulcânica (nada era impossível para os magnatas eruptivos) – de 79 d.C. para os tempos de Pilatos e Caifás – e convidaram Ernest B. Shoedsack para dirigir uma versão do romance Os Últimos Dias de Pompéia, de Lord Bulwer-Lytton. Mais: trouxeram a equipe de King Kong para cuidar dos efeitos especiais e só faltou se encontrar um macacão gigante nas ruínas fumegantes da cidade cenográfica soterrada. Continente Multicultural 41


Pagãos e cristãos eram uma boa fonte de renda em toda parte: em 1935, o francês Julien Duviver faz o seu Golgotha – e gasta 350 mil dólares com ele. Na França, era mais do que demais. Para o papel de Pilatos, Duvivier contratou ninguém menos que Jean Gabin– proibido de fumar enquanto estivesse em cena, com a toga romana passada a ferro em brasa. Os ingleses não poderiam deixar a França tomar liberdades com a história de Cristo e, um ano depois, lançavam The Passing of the Third Back – um título britânico para uma co-produção anglo-francesa, com a participação da Gaumont e do teuto-americano Conrad Veidt no papel do Galileu que cristianizou Roma (mais internacional, impossível). Os anos 40 fazem surgir a mania de não expor o rosto do Cristo no cinema, sabe-se lá porquê. A Sombra da Cruz – dirigido por Irving Pichel para a 20th Century Fox – de fato não mostra mais do que a sombra de Jesus, seu rosto velado e a sua imagem em geral mais sugerida do que vista na tela cheia de subterfúgios. Até o México realiza, nesse estilo, o xaroposo Maria Magdalene, dirigido por Miguel Torres, com o ator Luis Alcoriza fazendo um Cristo que parece realmente resfriado, por trás de lenços e mantos. Na Itália, o jovem Vittorio Gassman – figura carismática – aceita o papel de L’Ebreo Errante (1947), de Goffredo Alessandrini, enquanto as Paixões populares, encenadas em cidades pias, voltam à cena em Hollywood: alguém se lembra de The Lawton Story, o filme de William Beaudine e Harold Daniels? Pois eu me lembro: o dito cujo foi rodado em Lawton, cidade de Oklahoma, com os três mil habitantes que, à semelhança de Oberammergau e Fazenda Nova, iam para as ruas encenar “a mais bela história de todos os tempos”. Não sei se ainda fazem isso em Lawton, e só conheci uma pessoa que se lembrava do filme: o cineasta amador Caselli, do bairro de Afogados, que sonhava em realizar The Fazenda Nova Story (assim mesmo, em inglês). Caselli sumiu nos meandros da história do cinema pernambucano, mas Jules Dassin, cineasta profissional de ascendência grega, despontou para a fama com Celui que Doit Mourir (“Aquele que Deve Morrer”), baseado no Cristo Recrucificado, romance de Nikos Kazantzakis, grego da ilha de Creta – onde o romancista localizou o drama de uma pequena aldeia grega de pastores encenando o Drama da Paixão com realismo fatal para o ator que vive Jesus Cristo. A produção é de 1956 e muita gente ainda se lembra do impacto que o filme teve, inclusive sobre Plínio Pacheco e o “Drama” de Fazenda Nova. 42 Continente Multicultural

De cima para baixo: O Manto Sagrado, de Henry Koster Jesus Cristo Superstar, de Norman Jewison Ben-Hur, de William Wyler O Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini


Com a década de 50, vemos o gênero alcançar a “idade de ouro” a partir da estréia do superespetáculo americano Quo Vadis? (“Onde vais?”), de Mervyn LeRoy, com os astros Robert Taylor e Deborah Kerr, além de um inesquecível Peter Ustinov chorando as lágrimas de crocodilo de Nero. Contando direitinho (e levando em conta o registro de uma versão francesa de 1901), tratava-se da quinta versão cinematográfica do romance que sempre soube para onde ir, ao abrigo da tela. Em 1953, um dos produtores mais ambiciosos do cinema – o legendário Daryl F. Zannuck – parte para alargar o comprimento dela e, para isso, nada melhor do que a história larga, que dá pano pras mangas: o Cinemascope surge com The Robe (“O Manto Sagrado”), dirigido por Henry Koster e protagonizado pelo ator shakespeariano Richard Burton no papel de um certo centurião Marcellus, comandante no Gólgota, no dia da crucificação. O filme se tornou talvez o “bíblico” mais reprisado, nas nossas semanas santas, e teve uma continuação ainda melhor do que o velho Manto do medíocre Koster: Demétrio e os Gladiadores, de 1954, dirigido por Delmer Daves, especialista em westerns. Daves não quis nem saber: trocou as pistolas por espadas e lanças e imprimiu um ritmo próprio da pradaria às cenas passadas em Roma e na Judéia. Por incrível que pareça, deu certo: Demétrio é, hoje, mais estimado do que o meloso The Robe. O ótimo Bem-Hur (de Wyler), que já citamos, fecha a década com chave de ouro e chegamos aos anos 60 com Nicholas Ray dirigindo aquele que se tornaria o “filme de Jesus” mais querido das platéias: O Rei dos Reis (1961), refilmagem da velha fita de Cecil B. de Mille. O segredo de tal empatia talvez esteja no ator Jeffrey Hunter, com seus olhos verdes (estranhos num judeu) emprestando atributos de “galã” à figura ascética do profeta da Galiléia. Tangenciando o Evangelho, o épico Barrabás – de Robert Fleischer – traria Anthony Quinn, em 1962, numa das suas criações mais memoráveis. Baseado no romance de P. Lagërkvist, o bom filme de Fleischer acompanha de perto a vida que o personagem teria levado depois de libertado em troca do “profeta dos judeus”. Do outro lado do oceano, Jean Marais tentava manter o penteado mesmo no papel do governador romano (que sancionou a infeliz troca): Ponzio Pilato foi uma produção francoitaliana, de 1964, que obteve relativo sucesso no mercado europeu superlotado, na época, de Macistes e

Je Vous Salue, Marie, de Godard, mostrava uma Maria não só frentista de posto de gasolina, como também ansiosa e cheia dos temores de todas as grávidas Hércules saídos das academias de halterofilismo. Dois anos depois, Pier Paolo Pasolini surpreenderia o mundo com a bela aspereza do seu O Evangelho Segundo São Mateus, filmado com “atores naturais”, recrutados do meio do povo: nada de Jeffreys Hunters, e todo mundo feio, ou, pelo menos, sem qualquer glamour hollywoodiano. A propósito de Pasolini, haveria que fazer menção do quarto episódio de RoGopaG (intitulado “La Ricotta”) que ele dirigira em 1963: o episódio trata de uma “Paixão” satirizada, na qual um ator morre de indigestão, na cruz, sob o olhar indiferente de um diretor de cinema, fascista e megalomaníaco, vivido por ninguém menos que Orson Welles. Fecha parêntese. O cinema americano, entretanto, permanecia interessado nos Jesus atraentes e em produções grandiosas: a Fox resolve gastar 20 milhões de dólares numa Paixão definitiva e escala o veterano George Stevens (diretor de Shane) para manter na linha A Maior História de Todos os Tempos, com o sueco Max Von Sydow no papel do Filho do carpinteiro. Sidney Poitier, Shelley Winters e – surpresa – John Wayne no elenco. Os tempos estão mudando e a América contestária dos anos 70 produz Jesus Cristo Superstar, dirigido pelo competente Norman Jewison. Caminhando para o final da década, o edulcorado Franco Zefirelli faz Jesus de Nazaré copiar o melhor dos melhores filmes bíblicos (apesar do ator Robert Power – sem nenhum carisma – construir um “Cristo de folhinha” nada menos que irritante). Mas vem o mestre Roberto Rossellini compensar a ópera judaico-zefirelliana e realiza o seu último filme – O Messias – com base na história de Jesus. O cineasta viria a falecer antes de O Messias ser lançado, mas a hora é de rever a história ocidental, o Cristianismo encravado na nossa civilização (é o recado final do cineasta de Roma, Cidade Aberta). O escândalo ronda o preview da década de 80, e esta vai começar com Jean-Luc Godard tentando “modernizar” o relato do nascimento de Cristo, em Je Vous Salue, Marie – com a reação chocada do Vaticano diante de uma Maria não só frentista num posto de gasolina, mas ansiosa e cheia dos temores de todas as grávidas. Organizações religiosas também se mostram revoltadas com o interesse huContinente Multicultural 43


O “filme de Jesus” mais querido das platéias, O Rei dos Reis, deve a empaita ao ator Jeffrey Hunter emprestando atributos de “galã” à figura de Cristo mano – demasiadamente humano – do Cristo por Maria Madalena no filme A Última Tentação, de Martin Scorcese (baseado na segunda narrativa de Nikos Kazantzakis sobre Jesus), isso já em 1988. Restaria mencionar ainda duas produções italianas também muito distantes daquelas primeiras “Paixões” que motivaram o cinema primitivo: Secondo Ponzio Pilato (1987), filme de Luigi Magni – com um inesperado Nino Manfredi no papel-título – que revê o processo de Jesus do ponto de vista romano, e L’Inchiesta, do veterano Damiano Damiani, no qual Harvey Keitel assume o papel de um investigador dos acontecimentos de Jerusalém, alguns anos depois do julgamento de Jesus. Uma alegoria final viria do Canadá, em 1989, pelas mãos de Denis Arcand: Jesus de Montreal. Na linha daquela história de Kazantzakis sobre a encenação da Paixão numa aldeia de Creta, o filme canadense dá tratamento urbano ao mesmo tema: a vida de um ator convidado, por um padre, para viver o papel de Jesus numa peça teatral escrita por ele. Se já não é “a maior história de todos tempos”, pelo menos mostra que permanecemos sob o fascínio da figura do Cristo vivo ou mesmo “morto”, como no recente O Corpo. Neste, o monolítico Antonio Banderas se mete no papel de um padre que descobre, na Jerusalém conflitada de hoje, um cadáver que poderia ser o de Jesus... e com isso estamos a léguas dos bons tempos em que grandes espetáculos traziam atores de primeira saltando das bigas para em ir busca do sagrado manto que cobria de glória o cinema...

Fernando Monteiro é cineasta, poeta e escritor

44 Continente Multicultural

Elizabeth Taylor e Richard Burton, em cena de Cleópatra (1963)

A

pesar da longa história da “Antiguidade” no cinema, há poucos filmes satisfatórios pelo menos como verossimilhança e reconstituição. A Antiguidade, sabemos, é todo um planeta oculto entre ruínas, e mal podemos imaginar a vida recuada dois, três mil anos. Mesmo com a ajuda da pesquisa arqueológica e dos livros de história, tudo termina se parecendo, de algum modo, com as encenações marmóreas do final de cursos de teatro levados a sério demais, por alunos aplicados, com os cabelos frisados e sandálias apertadas nos pés. Ou seja, a “Antiguidade” comportada se parece menos com a Antiguidade do que alguns filmes de science-fiction que antecipam um futuro meio parecido com o remoto passado... Não sei se deu para entender. De qualquer modo, nem tudo, entretanto, fica sempre tão distante do que pode ter sido a realidade dos povos antigos: o grandioso circo de corridas do Bem-Hur de William Wyler é, convenhamos, memorável. A gigantesca pista foi levantada na Espanha, sem medir despesas, e deve ser


Com o que se parece a Antiguidade no cinema? A “Antiguidade” comportada se parece menos com a Antiguidade do que alguns filmes de science-fiction

lembrado que não havia efeitos especiais – através de imagens digitalizadas etc. – quando o filme foi ousadamente produzido, em 1959. Anthony Mann também caprichou no seu A Queda do Império Romano (1964), mas o melhor desse filme é mesmo o andamento de faroeste que o diretor (especialista em westerns) deu à produção que tinha tudo para ser pesada e arrastada. Curiosamente, o grande diretor Howard Hawks realizou um filme quase ridículo – Terra dos Faraós (1955)– com roteiro (adivinhem!) de... William Faulkner. Nessa “terra” do escritor de Santuário e do diretor de Rio Bravo tudo funcionou mal e o Egito antigo se parece com interior de um restaurante temático assinado por algum cenógrafos de Disney. Tanto talento reunido – numa produção tão cara – provou que o cinema pode ser, às vezes, uma pura (e desagradável) loteria para os produtores. Eles, os produtores de Cleópatra (1963), se arruinaram com a hiper-superprodução do diretor Joseph L. Mankiewicz – e o filme foi destroçado pela crítica, alguém chegou a ver um relógio no pulso de um general de Júlio Cesar (Rex Harrison)... Mas o que houve, parece agora, foi muita má vontade para com essa refilmagem da história da rainha egípcia. Elizabeth Taylor não está mal no papel-título, mas seu “caso” com Richard Burton (Marco Antonio), na

época, não deixou de criar resistência prévia ao filme de Mankiewicz – que, reavaliado, hoje obtém justos elogios (pois o velho Joseph foi um dos mais talentosos diretores da história do cinema). Ainda mais curiosamente, o filme “bíblico” de Pasolini que não dá a menor importância à reconstituição histórica (O Evangelho Segundo São Mateus) se revelaria um dos mais convincentes na atmosfera conseguida com o despojamento e toda aquela população de atores naturais (parecendo de fato saída das palhoças dos tempos de Cristo). O preto-ebranco realça a aspereza da paisagem, e o “Jesus” do diretor de Teorema é um homem seco, revoltado, apressado pela urgência do que tem a dizer, sem meias palavras e com poucas parábolas. Entretanto, a melhor incursão de um cineasta pelo mundo da Antiguidade foi, a meu ver, a de outro italiano – o genial Federico Fellini –, na versão do Satyricon, de Petrônio, que Fellini teria que transformar no Satyricon de Fellini... mas com tanta inspiração, sensibilidade e olho para o “planeta” estranho da Roma imperial que o filme faz justiça, creio, ao mundo mediterrâneo antigo: o que vemos ali realmente se parece com um pedaço da vida extinta da civilização desaparecida na sua órbita de estranhezas. (FM)

O cineasta Federico Fellini, diretor de Satyricon

Continente Multicultural 45



Um crítico e quatro encenadores listam os motivos porque se deve e não se deve comemorar no Brasil o Dia Mundial do Teatro, no dia 27 deste mês de março Rodrigo Dourado

N

o dia 27 deste mês de março é comemoNo Brasil, há 11 anos acontece no mês de rado o Dia Mundial do Teatro. Criado março o Festival de Teatro de Curitiba, maior vitrine em 1961, pelo International Theatre da cena nacional. Mas existe motivo para se comeInstitute elege a cada ano uma personali- morar o Dia do Teatro em nosso País? Para o crítico dade mundial para lançar uma mensagem a respeito Sábato Magaldi “não há muito o que comemorar, do assunto. O primeiro foi Jean Cocteau. De lá para mas mesmo assim se deve comemorar”. Ele reclama cá, Arthur Miller, Edward Albee, Peter Brook e que com o advento das leis de incentivo à cultura, o Luchino Visconti, entre outros, comentaram a situa- Estado sentiu-se desobrigado de amparar a produção do teatro, em função da situação em que viviam. ção de arte. Para ele, esta produção deve estar prevista Assim, em 1976, Eugene Ionesco escreve que “a arte no orçamento estatal, “porque a arte é uma responsanão tem fronteiras. O teatro também não as deve bilidade estatal”. Magaldi aponta também que um ter. Independente de divergências ideológicas, de dos problemas do teatro atual é a falta de público, castas, de raças, de nacionalidades, de pátrias, ele decorrente dos ingressos caros. E que os ingressos deve ser a pátria universal, o lugar de reencontro são caros justamente porque não há subsídios. de todos os homens que comungam das mesmas Quebrando a negativa concentração da proangústias e esperanças, que revele a imaginação, dução teatral no Rio e São Paulo, como aspecto a não arbitrária, nem realista, mas a expressão de aplaudir, o crítico cita a boa produção feita, em ordem nossa identidade, de nossa continuidade, de nossa de importância, em Recife, Porto Alegre e Belo Hounidade. Não às amarras aos criadores! Nada de rizonte. “Seria muito positivo estimular a circulainstruções a receber de governos”, dizia ele, refe- ção de companhias destas capitais”, argumenta. rindo-se ao processo de estatização e patrulha à É a propósito da difusão do teatro por locais criação artística vigente na Europa de então. nem sempre prestigiados, que o encenador espanhol Neste ano de 2002, coube ao encenador in- radicado em Natal (RN), Moncho Rodriguez, perdiano Girish Karnad, dizer que “o mito da primei- gunta: “Haverá razões para que o nosso público ra performance aponta que, no teatro, o autor, os a- possa comemorar? Criou-se alguma lei de incentivo tores e a platéia formam um todo que, no entanto, à formação do espectador? Criou-se algum benefício será sempre instável e, portanto, potencialmente artístico e cultural que tivesse como principal objetiexplosivo. É por isso que vo o povo? Criaram-se conCriou-sse alguma lei o teatro sinaliza para sua dições para que a arte do teaprópria morte quando bustro pudesse realmente chede incentivo à formação ca a segurança. Na congar ao espectador dos intedo espectador? Criaram-s s e tramão, essa é também a riores abandonados? Chegar razão pela qual, embora a esses jovens que teimam condições de em sobreviver sem nenhuma o futuro pareça obscuro, o teatro chegar aos o teatro continuará a vialternativa de lazer cultural ver e a provocar”. interiores abandonados? nas cidades do sertão, disContinente Multicultural 47


tantes da arte contemporânea porque a cultura é privilégio de eventos centralizados?” O próprio Moncho tem dado resposta a estas perguntas, circulando por cidades do interior nordestino com o espetáculo de rua Ditirambos. Para ele, “neste 27 de março vamos comemorar, como todos os dias, a louvação de um novo teatro do Nordeste. A renovação de um pensar, criar e fazer teatral sem nenhuma isenção por parte de todos. Vamos comemorar na reflexão de que cada dia é mais urgente o despertar de um teatro para o público e não para a capitalização comercial. Comemoremos a necessidade da execução de projetos artísticos e não das maquiavelices de um “marketing

queno mas bem-vindo” apoio do Ministério da Cultura, com o Projeto EnCena Brasil, e o Pró Cena, da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro. Guedes acha que ainda é pouco, mas é uma sinalização de que se pode continuar exigindo projetos inseridos dentro de uma política cultural com contornos definidos. É preciso também, segundo ele, que “as companhias que investem em um trabalho de continuidade insistam na busca de apoio ás suas atividades como um todo, até para se diferenciarem das propostas puramente comerciais. Desta forma, estaremos dizendo às empresas e ao Estado que o teatro não se limita à montagem de espetáculos, mas, volta-se, também, para a construção de

cultural”. Comemoremos o respeito pelo teatro pela sua condição de elevação do espírito humano”. O diretor carioca Antonio Guedes, da Cia. Teatro do Pequeno Gesto, concorda com essa comemoração: “Sim, temos que comemorar o empenho e a coragem das pessoas de teatro do Brasil. Ainda trabalhamos ancorados em nosso próprio esforço e investimento, mesmo sabendo que as bilheterias não cobrem custos de produção (mal cobre a manutenção de um espetáculo), e ainda vivemos sob a égide das leis de incentivo, que desobrigam o Estado de implementar uma política cultural efetiva. Afinal, estas leis só servem aos espetáculos de entretenimento, pontuais, não servem às propostas de trabalhos artísticos com continuidade”. Como exceções que merecem elogios, ele cita o edital recentemente lançado pela Petrobrás, “o pe-

repertórios coerentes que desenvolvem, em vários trabalhos, uma mesma idéia”. O jovem diretor paulista Sérgio de Carvalho, da elogiada Companhia do Latão, lembra que se deve comemorar não o teatro, mas as pessoas que fazem teatro. “Os cenotécnicos perfeccionistas que resistem ao desalinho”, diz ele, “os iluminadores que cultivam a clareza, os cenógrafos que enxergam no espaço também os tempos da história. Comemoremos, acima de tudo os atores, que carregam a ficção nas mãos e a modelam na respiração, e mais ainda os que gostam dos ensaios, hora em que tudo se faz possível quando se perde o medo de errar. Comemoremos também os produtores, mas só aqueles que estão a serviço de um projeto de representação, e não das contas e compras de casa. Comemoremos os figurinistas e assistentes, mas também as

48 Continente Multicultural


costureiras, camareiras, vigias e faxineiras do teatro, pessoas que às vezes nunca viram o espetáculo. Não esqueçamos de todos artistas amadores que extraem do conservadorismo formal o frescor do redescoberto. Nem das gentes que assumiram cargos públicos e não trabalham em causa própria ou para a publicidade do partido, mas sim para a formação de um teatro brasileiro melhor. Comemoremos os artistas que não são subservientes a jornalistas, que identificam nos banqueiros chefes de quadrilha, que fazem teatro para todas as classes sociais, o que vale dizer, concebem a cena do ponto de vista dos mais pobres, explorados, historicamente oprimidos. Comemoremos a recen-

os espectadores que têm ‘olhos produtivos’, os insatisfeitos, os imaginativos, o que reconhecem, nas aparentes evidências, outras possibilidades.” Quem encerra este apanhado sobre a conveniência de celebrar ou não o Dia Mundial do Teatro é Antônio Araújo, fundador do Teatro da Vertigem, companhia que vem surpreendendo pela proposta estética. A trilogia bíblica composta por Paraíso Perdido, O Livro de Jó e Apocalipse 1,11 realizou experimentos inovadores em espaços alternativos. A virulência e a modernidade da linguagem, bem como a temática urbana da violência, garantiram à trupe lugar de destaque no novo teatro de grupo brasileiro.

Antonio Guedes, Moncho Rodriguez, Antônio Araújo e Sábato Magaldi: em busca de maior compromisso estatal para com a cultura e de incentivos que privilegiem propostas realmente artísticas e duradouras

te repolitização de parte do jovem teatro brasileiro, e os grupos que procuram imagens mais verdadeiras da nossa sociedade.” E complementa: “Comemoremos, enfim, aqueles que estão tentando escrever peças brasileiras, o que não necessariamente é uma peça com assunto brasileiro, ou cor local, ou regionalismo, ou padrão identificável de qualquer tipo. São dramaturgos que trabalham perto dos atores, na beirada do palco, e vamos dar vivas a todos que com eles se reúnem para produzir imagens críticas da sociedade, atentos às histórias da nossa época, em confronto com as visões impostas pelos donos da vida. Assim, de improviso, comemoremos apenas duas abstrações, a arte de improvisar, e a vontade de se transformar, que desde sempre animam os que fazem teatro. Quase me esquecia: comemoremos

Ele enumera que “não há que se comemorar o teatro televisivo, o teatro importado nem o teatro for export, os artistas carreiristas, a falta de reflexão e a falta de técnica, os ingressos caros e os teatros sem cara nem projeto”. Mas, “há que se comemorar os que persistem em fazer teatro, a força nova do teatro de grupo, a nova dramaturgia brasileira, a articulação e o debate sobre política cultural, o teatro que vai contra a lógica de mercado, o teatro investigativo, inquieto, ousado”. Portanto, conclui: “Vaias e palmas nesta data querida!”

Rodrigo Dourado é jornalista

Continente Multicultural 49


AnĂşncio

50 Continente Multicultural


AnĂşncio

Continente Multicultural 51


CONTO

Dois contos de Pedro Salgueiro

Na praça Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Clarice Lispector

A

os poucos o artista descobria o segredo de agradar ao público. O que para todos parecia espontâneo, era na verdade puro artifício. No princípio ele mesmo se assustava com suas performances: com a força e naturalidade de cada movimento – os olhos crispados combinavam com o passo firme, a mão pouco vacilava quando erguia a garrafa à altura da testa, a vista agora levemente fechada no esforço da concentração: o vidro, nesse instante, era mastigado, devagarinho como a respiração. Também a felicidade demonstra52 Continente Multicultural

da por ele era puro artifício - aos poucos ia notando a platéia dispersa, alguns já olhavam de lado, e dos lábios (antes silenciosos) agora farfalhavam cochichos. No dia seguinte, após a madrugada sem sono, avançava na reconquista do público: aperfeiçoava o truque, naturalizava os movimentos com muito treino, respirando no mesmo compasso do coração – de novo os olhos atentos, o respeito da platéia; o corpo respondendo feliz, mas por pouquíssimo tempo... e está ele novamente desconfiando do público, as velhas (e mesmas) mudanças, um rizinho cínico do sujeito na fila de trás, o bocejar da senhora de verde... Ultimamente só restou a ele subir no galho mais alto da árvore no centro da praça, de pontacabeça, sustentado pelas pernas – num nó de equilibrista de circo –, a garrafa, que no chão era cheia de água, soltava labaredas pelo gargalho: os dedos firmes a seguravam, de novo o público na mão, mas também por muito pouco tempo. E isto já angustiava o artista, que em vão procurava uma saída para o próximo número.


Procissão

...ninguém dirige aquele que Deus extravia! Raduan Nassar

O

Senhor Morto ainda não havia dobrado a esquina da farmácia, demorava-se nas louvações em frente à janela do conselheiro Antônio Nobre. Dona Bertolina erguia as mãos para o céu, repetindo o ritual de sempre. Os galhos de benjamins foram colocados em posição que propiciasse a demora. O meio da rua completamente forrado com as folhas e flores que o sacristão e os mais devotos providenciavam desde a madrugada. E foi logo de manhãzinha, quando o magricela teve a triste idéia de largar sua tarefa de jogar rosas pelas calçadas para se dirigir ao balcão do boteco Riso da Noite, que a desavença aconteceu. Ele entrou implorando licença, olhou tímido para o proprietário e pediu um refresco. A gargalhada foi geral, uns riram por gosto, outros para agradar os parceiros. Negro Nilson se destacou dos camaradas e pegou o magrinho pela gola, enfiou-lhe a mão aberta no rosto, olhando de soslaio para os companheiros. Depois que o devoto bebeu meia garrafa de aguardente e levou alguns safanões, foi atirado no meio da rua.

O cortejo havia acabado de passar pelo mercado e contornava a esquina da farmácia. Os freqüentadores do boteco saíam para a calçada e se misturavam com a multidão, perdendo-se entre os devotos – os olhos fixos no corpo estendido do Senhor Morto, as narinas invadidas pelo cheiro de velas queimadas e o adocicado das flores murchas. Os mais firmes arriscavam alguns passos atrás da procissão, logo desistiam e cambaleavam de volta; aqueles menos bêbados se escoravam nas paredes e no tronco de um benjamim, acompanhando com os olhos tristes o féretro. Os fiéis desciam já o alto da matriz, as velas tremelicando na direção do cemitério. No Riso da Noite restou apenas o silêncio. Em todos um certo clima de paz e medo, os olhos perdidos no infinito. Menos o negro Nilson, que jazia debruçado sobre a janela, com os olhos arregalados e a boca aberta buscando desesperada o ar – as mãos cheias segurando as vísceras. Bem longe o cortejo descia vagarosamente a Rua da Saudade, um dos braços do andor vazio, o Senhor Morto ligeiramente inclinado para a direita.

Pedro Salgueiro nasceu em Tamborial, no Ceará, a 15 de novembro de 1964. Tem editados os livros de contos O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996) e Brincar com Armas (2001). Foi premiado pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (II Prêmio Ceará de Literatura, 1994), Fundação Cultural de Fortaleza (IV, V e VIII Prêmios Cidade de Fortaleza, 1994, 1995 e 1998) e Universidade Federal do Ceará (I, II e III Festivais Universitários da Cultura-UFC, 1992, 1993 e 1994). Tem contos publicados em: Antologia Literária da UECE (1996), Talento Cearense em Contos (1996), revista Literatura (1996), jornal literário O Pão (1995), revista Ficções (1998), revista Literapia (1999), Coleção Literatura Novos Talentos (2000) e Geração 90: manuscritos de computador (2001). Seu livro Brincar com Armas recebeu o Prêmio de Contos da Biblioteca Nacional para obras em curso (Ministério da Cultura/Instituto Nacional do Livro, 1997), o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura (Academia Cearense de Letras, 1997), o Prêmio Literário Cidade de Fortaleza (Fundação Cultural de Fortaleza, 1998) e o Prêmio da União Latina/Concurso Guimarães Rosa de Literatura (Radio France Internationale — RFI, 1999). Continente Multicultural 53


ANTOLOGIA

O GESTO E O CONCEITO

João Esteves Pinto

Eu quero modelar o ar Com estas mãos Como se fosse perfeito O gesto e o conceito Absoluto O olhar claro Cintilante de emoção O espelho vivo Que parou Na súbita atenção Que ressume aromas E a denotação das cores Que os convocam Eu quero modelar o ar Como se fosse um gesto Imperceptível vocábulo De língua ora nascida Que não deixe Vestígio solene sobre as pedras De gregos ou romanos Capitéis Que não ponha interrogações Hipóteses sequer Que confrontem a história Do arco ousado Em betão Da ponte aqui defronte Nada que venha Excitar a Comunicação Facto que não deixe O mero indício De uma suspeita Ou a sua simples inspiração

54 Continente Multicultural


Eu quero modelar o ar Com estas mãos Com gestos hipnóticos De opulência barroca Própria de dourados De roxos tecidos E também de perfumes Da violeta Da hortelã Das especiarias do Oriente E enriquecê-los Desta glória Que é descobrir a aventura Que vai longa Do vocábulo elementar Ao erudito texto E da surpresa Que se revela No momento segundo Desta mão discursiva Que não cessa De urdir flores e intuir jardins E outrossim De surpreender a linha geral Dos corpos geométricos Que cristalizam o sal O granito e o diamante Ouve! Mas ouve-me em silêncio Eu Eu não sei se quero Não sei se quero modelar o ar E se não quisesse nada? Absolutamente nada?

Afinal Porquê sugerir uma forma? Uma mera impressão Um simples jeito? Porquê sentar-me ao sol Ao pé do cego E ouvi-lo falar Com comoção – Por estar presente – Do amarelo Do azul E do vermelho Ouvi-lo empolgar-se Na descrição do arco-íris Com o seu fulgor De arco delirante E mais que perfeito Diz-me – Porquê?! ... Porventura Porque tão importante Como haver o Amazonas E o Himalaia Montanhas e Oceanos E o Universo inteiro É criar uma idéia Inspirar uma sugestão Modelar o ar Como se fosse perfeito O gesto e o conceito. A.D. MM/XII/XXIX

João Esteves Pinto nasceu em 12 de julho de 1940, em Sabugal, Beira Alta, Portugal. Licenciado em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa, exerce, atualmente, a administração da INCM – Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S.A. Poeta, tem um livro inédito, e ainda sem título, do qual foi selecionado este texto. Continente Multicultural 55


A víbora ruge Num fim de tarde em Copacabana, Joel Silveira, um dos últimos monumentos do jornalismo brasileiro, destila veneno enquanto saboreia o lançamento de suas Memórias de Alegria Geneton Moraes Neto

E

is a víbora: esparramado numa poltrona na sala deste apartamento na rua Francisco Sá, quase no limite entre Copacabana e Ipanema, Joel Silveira acompanha com um certo ar de enfado o telejornal da TV a cabo. O peso dos oitenta e três anos é visível no olhar mortiço. O aparente cansaço diante do desfile de horrores planetários e provincianos no telejornal não impede o velho repórter de soltar imprecações contra – por exemplo – o Excelentíssimo Senhor

56 Continente Multicultural

Presidente da República. Quando o presidente FHC aparece no vídeo, Joel não resiste: – É o tipo do presidente que sabe falar, mas não sabe dizer. Fala, mas não diz. Nunca vi falar tanto, sobre qualquer assunto. Aparece mais na TV do que anúncio de Coca-Cola. Tenho a impressão de que todo dia, ao acordar, logo de manhã, Fernando Henrique se vira para um assessor e pergunta: “Por favor, qual é o mote de hoje?”. O assessor diz – por exemplo – “indústria siderúrgica”. E


aí ele se dana a falar sobre indústria siderúrgica o dia todo. Um dia depois, muda de mote. Assim por diante, até o fim dos tempos. Desde o ano passado, Joel brinda os leitores da Continente Multicultural com as tiradas ferinas do Diário de uma Víbora. Agora, acaba de lançar Memórias de Alegria, uma coletânea de reportagens e artigos (Editora Mauad, Rio. Favor procurar nas boas casas do ramo). Não é à toa que Joel recebeu de Assis Chateaubriand o título de “víbora”: um de seus esportes prediletos sempre foi destilar veneno e ironia em doses industriais. Em artigo que entrou para a história do jornalismo brasileiro, pintou, com palavras elegantes e irônicas, um retrato devastador das grã-finas paulistas, na década de quarenta. Num país em que tantos títulos são injustamente atribuídos, o rótulo inventado por Chateaubriand para definir Joel é um exemplo de justiça. Além do apelido de “víbora”, Joel carrega também um título que o acompanha há décadas – o de “maior repórter brasileiro”. Se algum entrevistador fizer menção a este título honorífico, Joel balançará a cabeça como se estivesse contrariado com o possível exagero, mas na hora de dormir, quando for trocar confidências com o travesseiro, terá de admi-

tir que a homenagem não soa de forma alguma despropositada. Pouquíssimos repórteres já cultivaram, como Joel, uma paixão tão inabalável pela reportagem. Nunca quis ocupar os cargos – eventualmente bem pagos – que se ofereciam, tentadores, na retaguarda das redações. Sempre fez a opção preferencial pelo “mundo exterior”. Porque desde cedo aprendeu que a boa reportagem precisa ser caçada na rua, feito touro bravio. Faz mea culpa quando se lembra dos períodos de tempo que extraviou na retaguarda das redações, como burilador de textos escritos por outros repórteres. – Os chefes mandavam que eu transformasse cinco laudas em dez linhas. Tinha de cumprir a ordem. Eu deveria ser preso: já fui assassino de textos alheios. Poucos terão – como Joel – um texto que reúne com tanta maestria Jornalismo e Literatura. A nossa víbora descreveu assim a cena que viveu depois de sair do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, ao fim de uma tentativa frustrada de entrevista com Getúlio Vargas: – Lá para a meia-noite, entrei no Danúbio Azul, um bar que não existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas, desde que existem mundo e manhãs de abril. Pergunta-se: em que jornal ou revista se lêem hoje textos dessa qualidade? A resposta é silêncio. Joel pode exercer aqui e ali um lirismo que já rendeu páginas memoráveis, mas nunca abandonou o gosto pela maledicência. Adora falar mal de da fauna humana – aí incluídos personagens perfeitamente inofensivos, como, por exemplo, os alpinistas, os turistas e os tocadores de cavaquinho. É pura implicância. Cheio de certeza, constata: – O cúmulo do ridículo, beirando o grotesco, é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho... Adiante, pergunta, a sério: – Pode existir coisa mais idiota do que um alpinista? Por que é que eles não pegam um avião, meu Deus do céu? Por que não vão de helicóptero? Pra que subir naquelas montanhas, se eles poderiam ver tudo da janela de um avião, no maior conforto? Provoco a víbora. Quero saber quem ele não levaria sob hipótese alguma para uma ilha deserta,

Alpinismo, uma implicância de Joel: “Existe coisa mais idiota?”

Continente Multicultural 57


se fosse condenado a passar o resto da vida isolado do mundo: – Eu não levaria João Gilberto de forma nenhuma, com aquele violãozinho, uma coisa horrorosa. Aliás, o melhor talvez fosse deixá-lo numa ilha deserta, sem violão! Assim, eu poderia ir embora. Não entendo o fenômeno João Gilberto: é um dos mistérios que minha inteligência não consegue alcançar. Eu até me esforço para entender tanta idolatria, porque, como sou repórter, gosto de saber das coisas. Mas confesso que não consigo. Joel nunca morreu de amores por um excolega de redação que entraria para a galeria dos brasileiros notáveis do Século 20: Eu nunca disse que não gostava de Nélson Rodrigues. Apenas convivi pouco com ele. Fomos colegas de redação. Gosto da peça Vestido de Noiva, mas a verdade é não nos entrosávamos. Uma vez, eu estava escrevendo alguma coisa – escrevo depressa na máquina, porque no fundo sou mesmo é um bom datilógrafo. De repente, Nélson Rodrigues caminha em minha direção, fica parado diante de mim com um cigarro pendendo na boca e exclama: “Patético!”. Em seguida, foi embora, em silêncio. Quando acabei de escrever, fui até a mesa de Nélson – que batia à máquina com dois dedos – e fiz a mesma coisa. Fiquei em silêncio vendo-o escrever. Depois, disse, simplesmente: “Dramático!”. Fui embora. Nosso único diálogo resumiu-se a estas duas exclamações – “patético” e “dramático”. Depois de seis décadas de jornalismo, que outros tipos a víbora Joel incluiria na galeria nacional do ridículo, além dos tocadores de cavaquinho gordos e alpinistas?

– Eu incluiria o turista numa Galeria Internacional do Ridículo. Porque o turista é de um ridículo sem par. De bermuda, cheio de máquinas penduradas no pescoço, suando em bicas, é roubado a toda hora nos restaurantes. Ridículo é também o velho que quer parecer moço– aquele que pinta cabelo, rebola e faz uma operação plástica por mês. Joel vai fazendo confidências nesta tarde em Copacabana. Diz, por exemplo, que ouviu uma confissão de fraqueza de um dos maiores cronistas já surgidos no Brasil, Rubem Braga – um amigo do peito que até hoje lhe dá saudade. Os dois – Joel e Braga – foram correspondentes de guerra na Europa. Joel resolveu dar de presente a Rubem Braga um exemplar de um livro clássico de Stendhal – O Vermelho e o Negro. Semanas depois, Braga confessa a Joel que não conseguira de forma alguma passar da página noventa e dois do livro. O motivo: – Rubem me disse que tinha interrompido a leitura porque o livro tinha personagem demais. E ninguém ficava parado.... Joel confessa que nunca conseguiu chegar ao final de Os Irmãos Karamazov, obra-prima de Dostoievski. Agnóstico, alista-se entre os que concordam sem vacilar com o que disse o poeta Murilo Mendes: – Deus existe, mas não funciona.

Joel (sem boné), correspondente de guerra na Itália

“Os chefes mandavam que eu transformasse cinco laudas em dez linhas. Eu deveria ser preso: já fui assassino de textos alheios.”

58 Continente Multicultural


“Em Roma, vi Ernest Hemingway tomando conhaue sozinho num bar que ele costumava freqüentar. Fiquei em dúvida sobre se deveria abordá-lo. Fui ao banheiro remoendo a dúvida. Quando voltei, ele já tinha ido embora. É um dos meus grandes fracassos profissionais.”

Hemingway: hesitação e vexame biográfico

Cinco da tarde. É hora de dar um descanso ao guerreiro. Depois de tanta pergunta, peço que a víbora responda a um mini-interrogatório. São apenas cinco as dúvidas que quero tirar. É claro que ele aceita a proposta. Lá vai: 1 - Quem foi a celebridade mais idiota que o senhor conheceu? – Deus me perdoe, mas foi o Papa Pio XII. Fui a uma audiência com ele no Vaticano. Diante do nosso grupo, ele disse: “Brasileiros? O português é uma bela língua. Sabia é do verbo saber. Sábia é uma mulher inteligente. Sabiá é um pássaro”. Que idiotice! 2 - Se fosse escrever uma autobiografia, que fato vexaminoso o senhor faria questão de esconder? – Uma vez, em Roma, depois da guerra, vi Ernest Hemingway tomando conhaque sozinho num bar que ele costumava freqüentar. Fiquei em dúvida sobre se deveria abordá-lo. Fui ao banheiro remoendo a dúvida. Quando voltei, ele já tinha ido embora. É um dos meus grandes fracassos profissionais. O pior que poderia acontecer seria levar um soco de Hemingway. Nesse caso, pelo menos o lead estaria garantido. 3 - Se o senhor fosse nomeado ditador de Sergipe, qual a primeira providência que tomaria? – Proibir a entrada de João Gilberto no Estado. Já seria um bom começo. Não existe nada tão chato quanto a Bossa-Nova. 4 - Qual a cena mais grotesca que o senhor já testemunhou? – Não precisa ir longe. Basta desembarcar num boteco qualquer do Rio numa noite de sábado. Repito: não existe nada mais grotesco do que um sujeito barrigudo e suado tocando cavaquinho. 5 - De quem o senhor não compraria um carro usado? – Não quero parecer ranzinza, mas alguém pode me dizer para que servem os alpinistas? Por que aqueles idiotas não pegam um avião para olhar as montanhas do alto, em vez de tentar a subida ridiculamente amarrados em cordas? Eu jamais compraria um carro de um alpinista. Não se pode confiar em seres que não têm senso de ridículo.

Continente Multicultural 59


DIÁRIO DE UMA VÍBORA

1.

Insonia

Até poucos anos a insônia era para mim um tormento, o anúncio de um dia, o seguinte, pesado, sonolento, cinzento. Hoje, tornou-se uma vantagem. Descobri que, bem-usufruída e bem-aproveitada, a insônia pode transformar-se num requintado deleite. Mas tem que ser uma insônia ativa, sem bocejos, sem vontade de querer dormir, sem ligar para a implacabilidade dos ponteiros do relógio. Em resumo: uma insônia íntegra e assumida.

2.

Pobreza

De vez em quando, entre um suor e outro, penso comigo mesmo: como me foi difícil e quanto me custou construir a minha pobreza! Mas hoje posso dizer, entre altineiro e pimpão: consegui!

3.

Literato

De um copioso romancista pátrio: –Aprendi muito com Balzac. Agora só falta provar.

60 Continente Multicultural

4.

Utopia

O mundo ideal seria aquele em que não houvesse qualquer notícia. Um mundo sem manchetes. Que beleza!

5.

Quem?

Por que não se instaura no Congresso uma CPI para apurar quem inventou a detestável palavrinha “estória”?


6.

Inimigo

Já sei quem é meu maior inimigo: a memória.

7.

Porcaria

A vida é uma porcaria com um defeito ainda mais sórdido: acaba.

8.

O dinheiro

Nunca me chamem para comer na casa de Fulano. Eu sei com que dinheiro ele compra sua comida.

9.

Calor

Ninguém pode ser inteligente numa temperatura de quarenta graus à sombra. Não se pode nem mesmo ser decoroso. Calor e mau-caráter, suor e safadeza sempre se deram muito bem.

10.

Computadores

De Umberto Eco sobre o computador: –É uma maquinazinha idiota, que nas mãos de um idiota produz coisas idiotas.

11.

Coisa feia

Casal de intelectuais, desses que vivem sob o mesmo teto e dormem na mesma cama, discutindo juntos temas literários – que coisa feia!

12.

ç Constatacao

~

Como pesa a esperança. Como é leve a tristeza.

Joel Silveira, ex-correspondente na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, é autor de volumes de reportagens, crônicas e memórias, como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar, poeta bissexto, membro-fundador do Partido Socialista Brasileiro e “repórter a vida inteira”. Ganhou do fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, o apelido de “a víbora”.

Continente Multicultural 61


Anúncio


Anúncio


SABORES PERNAMBUCANOS

Uma festa de Babette nordestina

M

arço é mês de cinema. Mês do Oscar. Mês dos filmes que marcaram nossas vidas: Encouraçado Potenkin, Cidadão Kane, O Grande Ditador, Casablanca, Cantando na Chuva, ...e o Vento Levou, A Love Affair, Le Balon Rouge, Thelma e Louise, Blade Runner, Em Algum Lugar do Passado, As Pontes de Madison, A Vida é Bela, Chuvas de Verão. A lista muda, ao sabor dos gostos. Mas em quase todas estará Festa de Babette, de Gabriel Axel. Oscar de melhor filme estrangeiro, em 1988. Contando a história de um jantar. Tudo se passa na aldeia de Jutlândia, norte da Dinamarca, no distante ano de 1871. Velho pastor, fundador de seita religiosa conservadora, tem duas belas filhas que se apaixonam perdidamente: Martine (o nome é homenagem a Martinho Lutero), por quem tudo aspirava do futuro o ambicioso tenente Lorens Lowenheim; e Filippa (homenagem a Filippe

Melanchton, teólogo alemão e amigo de Lutero), por quem só tinha passado a oferecer o já decadente cantor de óperas Achile Papin. Puritanas, sacrificam o ardor da juventude para estar ao lado do pai. E envelhecem juntas. Praticando a caridade e amparando os velhos da aldeia com mingaus. Mas, no íntimo, lamentando, em todos os longos dias de suas vidas, aqueles amores perdidos. A história é universal. E poderia ser contada aqui mesmo, com personagens e ambientes do Nordeste brasileiro. Em vez do Mar do Norte, a história se passaria, por exemplo, às margens do rio Vasa Barris. No arraial de Canudos, interior da Bahia, quase fronteira com Pernambuco. O fundador da seita religiosa seria então Antonio Vicente Mendes Maciel, conhecido pelos seus como Santo Antonio Conselheiro, Bom Jesus Conselheiro ou, mais simplesmente, Antonio Conselheiro. Nômade, sempre vestido

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 64 Continente Multicultural


de padre, foi descrito por Câmara Cascudo como “frugal, austero, exigente, disciplinado e casto”. Pregava um evangelho farto em castigos e marcado pelo combate ao pecado. E criou uma comunidade baseada na posse comum da terra, dos rebanhos e da comida. A proposta desse texto é mostrar como poderia ser um jantar, como esse de Babette, aqui no Nordeste. Trocando, em pratos assemelhados, a sofisticação do ambiente europeu pela simplicidade rústica, própria da nossa culinária. Segue o filme. Babette Hersant, perseguida na França, perdeu tudo - marido, filho, casa. Pede por ela Achile Papin, em carta onde expõe seu drama às irmãs, encarecendo que a acolham em casa. Não seria um peso, trabalharia apenas pela comida. Indicando laconicamente, em uma única frase: “Ela sabe cozinhar”. E assim chega Babette à pequena aldeia. Para ficar, definitivamente. Seu único vínculo com a França, dizia sempre, era um bilhete de loteria, renovado anualmente por uma amiga. E a vida seguia seu curso monótono até quando se decide celebrar o 15º aniversário da morte do pastor. E Babette ganha, na loteria, 10.000 francos. Uma fortuna, à época. Pedindo às irmãs licença para oferecer aos velhos da aldeia, em homenagem à data, um verdadeiro jantar francês. Esse jantar é o filme. Filippa e Martine se preocupam com seus preparativos. Com as especiarias trazidas do continente, sob às ordens de Babette. E alertam aos velhinhos para a tentação que sofrerão, naquela noite. Todos se comprometem a não fazer comentários durante a refeição. Entre os convidados, um de última hora - aquele jovem tenente, hoje importante personalidade, o general Lorens. Homem culto, ele vai descrevendo os pratos, à medida em que vão sendo postos à mesa. Dando explicações. Fazendo comentários. Por fim, contando a história de uma notável cozinheira do Café Anglais (a casa realmente existiu, em Paris, entre 1802 e 1913), de quem o general Gallifet dizia ser capaz de transformar simples jantar em um caso de amor. Mulher tão especial que seria a única boa razão, na França da época, para um duelo. E o que foi anunciado como prenúncio da perdição, acaba se revelando celestial. Amantes com culpa se assumem. Inimigos se perdoam. A cena em que ficam todos dançando abraçados, em volta de um poço, é antológica. Depois

do jantar preparado por Babette, aquelas vidas nunca mais serão as mesmas. Pouco antes de findar o jantar, o general Lorens faz um belo discurso. Abrindo sua alma. “Na sua fraqueza e miopia o homem acha que tem de fazer uma escolha na vida, e teme o risco que corre.” Falava dele, que escolheu a carreira, em vez do coração.“Toda escolha é sem importância. A graça não exige nada. Tudo que escolhemos nos foi dado e tudo de que desistimos nos foi concedido.” Então, olhando profundamente para Martine, completa: “Vaidade, tudo é vaidade. Piedade e verdade se unem. Justiça e paz se abraçarão uma a outra. Sim, teremos ainda de volta o que jogamos fora.” Por fim, ao se despedir, toma a mão de Martine em suas mãos, e diz: “Estive com você em cada dia da minha vida e ainda estarei em cada dia que restar. Em nosso belo mundo tudo é possível”. Martine responde com um olhar submisso. Finda a festa, Babette confirma ser aquela chefe de cuisine, de quem falou o general Lorens. E diz ter gasto o dinheiro do bilhete naquele banquete, mas que “um artista nunca é pobre”. As irmãs se angustiam por ter perdido tudo o que tinha. Mas ela estava feliz. Sua opção era ficar ali mesmo, onde afinal encontrou a paz. Os convidados voltam a suas casas. Na memória de todos ficarão, para sempre, aqueles momentos. Piedade e verdade se uniram. Justiça e paz se abraçaram. Estrelas se aproximaram. Ao menos naquela noite, e mesmo que só por um breve instante, a natureza humana se revelou gloriosa. Em um jantar. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br


RECEITAS DO FILME: SOPA DE TARTARUGA COM QUENELLES DE VITELA

BEBIDA: Jerez Amontillado Viejo Hidalgo

INGREDIENTES: PARA A SOPA: 3,5 litros de caldo de vitela (toste ossos de vitela numa assadeira, no forno. Passe-os para uma panela alta, coloque água, deixe ferver. Retire a espuma que se formou e junte cebola, cenoura, alho, alho-poró, aipo, tomate e um bouquet garni - cozinhe lentamente em fogo baixo, peneire e reserve) • 300 g. de carne de tartaruga desossada, cortada em pedaços • 1 alhoporó (parte branca, cortada em pedaços) • 1 cenoura grande • 1 talo de aipo cortado em pedaços • 1 batata-doce cortada em pedaços • 1/3 de xícara de chá de vinho Madeira. Sal a gosto. PARA OS QUENELLES: 360 g. de carne de vitela moída bem fina • 3 claras de ovos • 4 colheres de sopa de creme de leite fresco • Sal e pimenta-do-reino a gosto.

BLINIS DEMIDOF

PREPARO: SOPA: Aqueça o caldo de vitela numa panela grande. Acrescente a carne de tartaruga e ferva lentamente por uma hora. Adicione o alho-poró, a cenoura, o aipo e a batata-doce. Continue a ferver por mais uma hora. Coe o caldo em pano fino. Descarte os legumes e vegetais e coloque a carne de tartaruga em uma tigela, com um pouco do caldo. Tampe e leve à geladeira, por doze horas. No dia seguinte, remova toda a gordura do caldo e reaqueça, acrescentando a carne de tartaruga. Junte o vinho Madeira e tempere com sal. Aqueça os quenelles no vapor, coloque 5 quenelles em cada prato e complete com a sopa de tartaruga. QUENELLES: Coloque a vitela no processador e vá juntando as claras e o creme fresco. Tempere com sal e pimenta. Com a ajuda de 2 colheres de sopa, mergulhadas em água fria, forme quarenta pequenos quenelles (almôndegas) ovais e coloque-os num prato molhado com água fria, de maneira que não encostem uma na outra. Leve ao fogo um caldeirão com água e sal e espere ferver. Coloque os quenelles nesta água, tampe o caldeirão e apague o fogo. Depois de 5 minutos remova os quenelles com uma escumadeira e deixe-os secar sobre papel absorvente. Reserve-os.

66 Continente Multicultural

INGREDIENTES: PARA O BLINIS: ½ tablete de fermento fresco • 1 xícara de chá de leite quente • 1 ½ xícara de chá de farinha de trigo peneirada • 2 gemas ligeiramente batidas • 2 claras batidas bem firmes • ¼ de xícara de chá de creme de leite fresco • 1 pitada de sal, manteiga sem sal para untar a frigideira • 120 g. de caviar sevruga. PARA O CREME AZEDO: ½ litro de creme de leite fresco • ½ limão pequeno • Algumas gotas de vinagre. PREPARO: BLINIS: Numa tigela grande, dissolva o fermento no leite quente. Acrescente uma xícara de farinha e bata, até a mistura ficar uniforme. Cubra com um pano limpo e deixe em lugar aquecido, durante duas horas, para a massa crescer. Após esse tempo, misture as gemas, o creme de leite fresco e a farinha de trigo restante. Acrescente sal e claras batidas, misturando delicadamente. Cubra e deixe a massa crescer novamente, por trinta minutos. Unte uma frigideira pequena. Leve-a ao fogo e junte-lhe três colheres de sopa de massa. Quando começar a dourar em baixo, vire e doure do outro lado. Retire o blinis, reserve-o em lugar aquecido e repita a operação, até terminar a massa. CREME: Em batedeira ou processador, coloque o creme de leite e vá batendo com o suco de limão e as gotas de vinagre. Retire assim que encorpar. MONTAGEM: Na hora de servir, coloque um pouco do creme azedo sobre cada blinis. E, por cima, o caviar. BEBIDA: Champagne Veuve Clicquot La Grand Dame

CAILLE EN SARCOPHAGE INGREDIENTES: 500 g. de massa folhada • 1 gema batida com duas colheres de sopa de água • 8 codornas desossadas (exceto pernas e asas) • 6 colheres de sopa de cognac • 60 g. de trufas pretas picadas •

240 g. de fois gras fresco de ganso • 5 colheres de sopa de manteiga sem sal • 3 échalotes (cebola roxa) picadas • 1 xícara de chá de vinho branco seco • 4 xícaras de chá de caldo de carne • 2 colheres de chá de trigo dissolvidas em um pouco de vinho branco • 8 cogumelos de Paris grandes (somente os chapéus) • 1 colher de chá de óleo de amendoim • Sal e pimenta-doreino moída na hora • Farinha de trigo para polvilhar. PREPARO: MASSA: Estenda a massa em superfície lisa. Corte oito retângulos de 10 cm de largura por 13 cm de comprimento. Faça alguns furos com a ponta de um garfo e pincele com a mistura de gema e água. Asse a massa no forno pré-aquecido, por 15 minutos, até que esteja dourada. Quando estiverem frios, corte e retire um pedaço da parte central, de cada retângulo, com o auxílio de uma faca, formando “ninhos”, para receber as codornas. CODORNAS (caille): Lave e seque as codornas. Tempere com sal, pimenta e duas colheres de cognac. Junte metade das trufas picadas. Divida o fois gras em oito porções iguais e distribua nas cavidades. Feche cada codorna com linha. Em uma panela de fundo grosso, aqueça uma colher de sopa de manteiga. Acrescente os ossos que foram retirados e toste-os ligeiramente. Coloque as échalotes e refogue sem parar de mexer. Misture 2 colheres de cognac e raspe o fundo da panela. Acrescente o vinho, o caldo e deixe ferver lentamente por 30 minutos, até reduzir pela metade. Coe o caldo e devolva para a panela. Despeje a mistura de trigo, e mexa até o caldo engrossar. Incorpore as trufas restantes e tempere com sal e pimenta. Reserve. Refogue os cogumelos em duas colheres de manteiga. Reserve. Aqueça a manteiga restante com o óleo e doure as codornas, virando-as de todos os lados, leve-as depois ao forno por 10 minutos. Coloque o cognac restante na frigideira que dourou as codornas e raspe-a. Junte essa mistura ao caldo com as trufas. Retire as codornas do forno e retire as linhas. MONTAGEM: Coloque as massas numa assadeira e deposite

uma codorna em cada “ninho” de massa. Reaqueça no forno, por 5 minutos. Transfira, cuidadosamente, para os pratos. Arrume os cogumelos em volta. Derrame o molho quente sobre as codornas e os cogumelos. Sirva imediatamente. BEBIDA: Vinho Tinto Clos de Vougeot

BABA AU RHUM INGREDIENTES: 1 tablete de fermento fresco • 1/3 de xícara de chá de leite quente • 2 ½ xícara de chá de farinha de trigo peneirada • 8 colheres de sopa de manteiga sem sal • 2 2/3 de xícara de chá de açúcar • 6 ovos • 5 ½ xícaras de chá de água • ½ xícara de chá de rum escuro • Frutas cristalizadas picadas. PREPARO: Numa tigela grande, dissolva o fermento no leite. Incorpore meia xícara de farinha de trigo, cubra e deixe em lugar abafado por trinta minutos, para a massa crescer. Bata, na batedeira, 7 colheres de manteiga. Junte duas colheres de sopa de açúcar e duas de farinha.Vá juntando e batendo os ovos, um de cada vez. Retire. Bata a farinha restante com a massa fermentada, usando os batedores próprios para massas pesadas. Depois bata junto a mistura da manteiga com os ovos, até formar uma massa muito espessa. Unte uma fôrma de buraco com o restante de manteiga. Junte a massa. Cubra-a com um pano limpo e deixe-a crescer até ocupar toda a fôrma. Asse, em forno préaquecido, por 40 minutos. Misture o açúcar restante com a água, numa panela e ferva, reduzindo essa calda. Retire do fogo e acrescente o rum. Assim que estiver assada, desinforme e despeje cuidadosamente a calda quente de rum. Decore com as frutas cristalizadas. BEBIDA: Vinho Sauternes Château de Malle


RECEITAS NORDESTINAS: CREPES DE FUBÁ DE MILHO COM ENSOPADO DE SIRI

CARNEIRO ASSADO COM PURÊ DE BATATA DOCE

INGREDIENTES: PARA O CREPE: 65 g. de fubá • 50 g. de farinha de trigo • 50 g.de farinha de mandioca • 10 g. de fermento fresco • 1 colher de café de açúcar • Sal • 3 claras • 2 gemas • 1 colher de sopa de cebolinha picada • 1 colher de sopa de salsinha picada • 20 ml. de leite • 2 colheres de sopa de manteiga derretida. PARA O CREME: ½ litro de creme de leite fresco • ½ limão • Algumas gotas de vinagre • 100 g de queijo de coalha ralado. PARA O SIRI: 1 corda de siri • 2 cebolas picadas • 2 tomates picados • 2 dentes de alho socados • 2 pimentões cortados em tiras finas • Cheiro verde • 4 colheres de sopa de azeite • Pimenta do reino • 1 copo de leite de coco • 2 xícaras de farinha de mandioca • Sal a gosto.

INGREDIENTES: PARA O CARNEIRO: 1 pernil de cordeiro novinho • Sal • Pimenta • 12 dentes de alho • Alecrim seco • 1 copo de vinho tinto • Cebola em rodelas • Azeite. PARA O PURE: 1 ½ kg de batata-doce cozida e espremida • 1 lata de leite condensado • 100 g. de manteiga derretida.

PREPARO: CREPE: Misture o leite morno com o fermento em uma vasilha e deixe descansar por 5 minutos. Em outro recipiente, junte o fubá, a farinha de trigo e a de mandioca. Faça um buraco no meio e coloque o leite com o fermento dissolvido. Junte as gemas, o sal e o açúcar. Misture bem, até obter massa lisa e homogênea. Deixe descansar por 1 hora. Bata as claras em neve e misture delicadamente à massa. Acrescente a salsa, cebolinha e a manteiga derretida. Coloque porções dessa massa em frigideira pequena e frite em pouca manteiga, dos dois lados. CREME: Em batedeira coloque o creme de leite e vá batendo, com o suco de limão e as gotas de vinagre. Retire assim que encorpar. Junte o queijo de coalha ralado. SIRI: Lave bem e cozinhe em água e sal. Depois de cozidos retire toda a carne e reserve. Faça um refogado com azeite, cebolas, tomates, alho, pimentões e cheiro verde. Junte o siri, o leite de coco, sal e pimenta. Depois acrescente a farinha aos poucos, até obter consistência de mingau grosso. BEBIDA: Um espumante

PREPARO: CARNEIRO: Deixe o pernil temperado, na geladeira, por 12 horas, com: sal, pimenta, alecrim seco, cebola, vinho tinto e alho (enfiados, no pernil, em pequenos furos). Quando for assar retire um pouco desse molho e acrescente azeite. Asse por 1 hora até que, enfiando o garfo, não saia mais sangue. Só um pouco de líquido quase transparente. PURÊ: Em uma batedeira coloque a batata-doce espremida e vá juntando, aos poucos, o leite condensado e a manteiga. Bata até que a mistura fique homogênea. Caramelize uma forma de buraco, coloque o purê e leve ao forno, em banho-maria, por 20 minutos. Desinforme e sirva. BEBIDA: Um vinho tinto

BOLO SOUZA LEÃO

SOPA DE PEIXE E CAMARÃO

INGREDIENTES: 18 gemas • 6 xícaras de leitede-coco puro • 1 kg de açúcar • 1 kg de massa de mandioca • 2 colheres de sopa de manteiga • Sal a gosto.

INGREDIENTES: 500 g. de cabeça de peixe • 250 g. de cabeça de camarão • 2 cebolas • 2 talos de aipo • 2 dentes de alho • 2 talos de alho-poró (só a parte branca) • Coentro e cebolinho amarrados 50 ml de azeite • 1 colher de sopa de urucum • ½ colher de sopa de extrato de tomate • ½ litro de vinho branco seco • ¾ de litro de água • 2 cravos • Sal a gosto.

PREPARO: Faça uma calda em ponto de fio com o açúcar. Junte a manteiga e depois as gemas. Acrescente, em seguida, a massa lavada, espremida e peneirada. Por fim o leite-de-coco. Passe toda a mistura em peneira muito fina, várias vezes. Coloque em forma untada e asse em forno regular. BEBIDA: Um espumante

PREPARO: Refogue no azeite cebola, alho, alho-poró e aipo. Junte o peixe e o camarão. Depois a água, o vinho, coentro e cebolinho. Deixe cozinhar por 10 minutos. Junte urucum e o extrato de tomate. Deixe no fogo por 30 minutos. Retire o coentro e o cebolinho. Passe no liquidificador e depois em peneira fina. Verifique os temperos. BEBIDA: Um vinho branco

Continente Multicultural 67


MEMÓRIA

Um nome para ficar na história Morto no último dia 7 de janeiro, o autor de Tempo dos Flamengos dedicou mais de seis décadas de sua vida à pesquisa histórica Leonardo Dantas Silva

C

erta vez o poeta Mauro Mota, ao fazer a apresentação de um dos seus livros, afirmou: “O que ele diz é; e se não é, passa a ser!”. Para os que se dedicam aos estudos históricos, o nome de José Antônio Gonsalves de Mello continuará presente por muitas gerações, que terão em sua obra, parte dela ainda desconhecida, fonte de referência obrigatória, inspiração para novos caminhos e exemplo de toda uma vida dedicada à pesquisa. Para os seus discípulos, porém, o desaparecimento de José Antônio deixa em todos o sentimento de orfandade. A sensação de perda irreparável, insegurança e falta de estímulo para prosseguir na caminhada. Trabalhando diuturnamente, no anonimato, sem o apoio e o incentivo que deveria merecer, ele dedicou mais de seis décadas de sua vida à pesquisa histórica, numa busca incessante das raízes de nossa pernambucanidade, revolvendo papéis de há muito esquecidos (alguns, até, considerados desaparecidos), salvando tanto o perdido como o achado, corrigindo velhos textos, destruindo lendas e ficções, formando discípulos e orientando os mais novos; ele foi a legenda maior do estudo do nosso passado deixando o seu nome inscrito no panteão dos Grandes de Pernambuco. 68 Continente Multicultural

Recifense da Jaqueira Nascido no bairro recifense da Jaqueira, às margens do Rio Capibaribe (rua Leonardo Cavalcanti), em casa do seu avô materno, professor Virgínio Marques Carneiro Leão, em 16.12.1916, filho de Albertina Carneiro Leão de Mello e Ulysses Pernambucano de Mello, conhecido médico psiquiatra e cientista social, José Antônio Gonsalves de Mello teve, desde cedo, sua atenção despertada para os estudos pernambucanos pelo seu avô paterno (de quem herdou o nome), então sócio do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. A partir de 1929 veio a sofrer influência do seu primo e amigo, Gilberto de Mello Freyre, que o convidou a colaborar na elaboração da primeira edição de Casa-Grande & Senzala (1933), para a qual contribuiu reunindo anúncios e notícias compilados das coleções dos jornais Diario de Pernambuco, A Província, Jornal do Recife e outros, conservadas na então Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco. Ainda por sugestão de Gilberto Freyre, veio, a partir de 1933, a dedicar-se aos estudos da língua holandesa, tendo por professores os padres da Ordem do Sagrado Coração, estabelecidos no subúrbio recifense da Várzea. Já estudante da Faculdade de Direito do Recife, onde se formou em 1937, participou do 1º


Em Gente de Nação, Gonsalves de Mello superou a si próprio no afã de descobrir a verdade no complicado quebra-cabeças da pesquisa histórica.

Congresso Afro-Brasileiro do Recife, organizado por Ulysses Pernambucano de Mello e Gilberto Freyre, tendo apresentado o trabalho A Situação do Negro Sob o Domínio Holandês, publicado in Novos Estudos Afro-Brasileiros. Iniciava assim os seus estudos acerca da presença holandesa no Brasil (1630-1654), tema de sua obra clássica, Tempo dos Flamengos - Influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil (Rio, 1947), hoje em quarta edição pela Topbooks, do Rio de Janeiro, e com uma tradução para o holandês. Com a criação, por Gilberto Freyre, do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, em 1949, hoje Fundação Joaquim Nabuco, coube-lhe a tarefa de organizar a nova instituição na qualidade de seu primeiro presidente, função que ocupou até 1950, quando retornou ao Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado – Ipase, sua repartição de origem, na qual ingressou em 1935. O Grão-M Mestre da História A convite do Reitor da então Universidade do Recife, Prof. Joaquim Amazonas, realizou pesquisas em arquivos portugueses, entre 1951 e 1952, objetivando a elaboração das biografias dos Restauradores de Pernambuco (Recife, 1967), publicadas em separado a partir de 1954, quando das comemorações do

Tricentenário da Restauração Pernambucana, bem como de outros temas, inclusive um levantamento histórico-cartográfico do Recife, de interesse para a história do Nordeste do Brasil. Transferindo-se do Ipase para a Universidade do Recife, em 1953, veio ocupar a cadeira de História da América na Faculdade de Filosofia. Em 1964 passou a exercer a função de Diretor do Instituto de Ciências do Homem, na mesma Universidade, acumulando com as funções de professor de História do Nordeste, Paleografia, Métodos Históricos e Técnicas de Pesquisa. Com a transformação daquele Instituto em Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e a conseqüente mudança de centro de formação de pesquisadores em curso de bacharelado e licenciatura, continuou ministrando aulas no Curso de Mestrado de História, até sua aposentadoria, em 1977. Em sua segunda estada na Europa (19571958), sob o patrocínio da Universidade do Recife, trabalhou nos arquivos dos Países Baixos, onde pôde consultar a farta documentação da Companhia das Índias Ocidentais, empresa responsável pela conquista do Nordeste brasileiro, na qual estão incluídos milhares de manuscritos da maior importância para o entendimento de nossa história social. Por ocasião de uma terceira estada nos Países Baixos, pôde consultar a documentação notarial existente no Arquivo Municipal de Amsterdã, onde se Continente Multicultural 69


conservam vários documentos relativos à Comunidade Judaica do Recife. Durante sua gestão no Instituto de Ciências do Homem, reuniu a invejável coleção de 60 mil documentos (51.874 de arquivos portugueses) de interesse para os estudos brasileiros na área do Norte e Nordeste do Brasil, trazidos de arquivos de Portugal, Espanha, Grã-Bretanha e Países Baixos, além de uma coletânea de mapas da região, cidades e monumentos, especialmente copiados em aquarelas pela artista portuguesa Isabel Sangareau da Fonseca. No dizer de José Honório Rodrigues, “trata-se do mais notável acervo de documentos históricos já reunidos pelo Brasil em uma Universidade”. Não somente os arquivos da Europa mereceram a sua atenção, mas também, e principalmente, os arquivos públicos estaduais, as listas dos reservados da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e da Biblioteca Nacional de Lisboa, os arquivos das irmandades religiosas, os arquivos notariais, os arquivos de sociedades civis, as coleções de jornais e, sobretudo, os arquivos do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Outras de suas obras mereceriam menção neste artigo, mas em Gente da Nação - Cristãos-novos e judeus em Pernambuco 1542-1654, editado no Recife pela Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco, em 1989, Gonsalves de Mello veio superar a si próprio no seu afã de descobrir a verdade no complicado quebra-cabeças da pesquisa histórica. Esgotada em três meses, a obra recebeu uma segunda edição em 1996, com apresentação do interesse do bibliófilo José E. Mindlin e do patronato do Banco Safra. A invejável bibliografia de trinta títulos, além de contribuições em revistas, jornais e obras compendiadas publicadas no Brasil e no exterior, está hoje relacionada no opúsculo José Antônio Gonsalves de Mello - Cronologia e bibliografia (Recife, 1995), elaborado pela bibliotecária Lúcia Maria Coelho de Oliveira Gaspar, da Fundação Joaquim Nabuco. Repetindo Evaldo Cabral de Mello, in Olinda Restaurada: José Antônio Gonsalves de Mello “não é apenas o grão-mestre da história de Pernambuco e do Nordeste. É também o mais vigilante guardião dos valores que ela encerra”. Leonardo Dantas Silva é jornalista, pesquisador e diretor da Editora Massngana

70 Continente Multicultural

Numa visada geral, Tempo dos Flamengos entrevê holandeses, luso-brasileiros, judeus, espanhóis e franceses em suas relações sociais Luís Carlos Monteiro

A

obra historiográfica de José Antônio Gonsalves de Mello (1916-2002), não está limitada apenas à transcrição linear e automática de datas e acontecimentos da época colonial. E apesar da pouca “carne literária” que contém, na expressão sugestiva de Gilberto Freyre, nela não se descarta a interpretação social criteriosa, seguida de visão crítica, dos períodos e eventos históricos estudados. A via preferencial dessa obra é o período do domínio holandês no Brasil (1630-1654), com destaque para a ocupação em Pernambuco. O livro inaugural do autor, Tempo dos Flamengos, concluído em 1943, somente seria publicado em 1947, pela José Olympio. Contendo cinco capítulos, nos dois primeiros podem ser apreendidos aspectos significantes da


O livro pioneiro vida urbana e rural dos homens na colônia sob o jugo holandês. Do lado urbano, viabilizam-se com Maurício de Nassau, entre outras coisas, as mudanças estruturais no perfil arquitetônico da cidade. No âmbito rural, confere-se a rebeldia e estágio de insatisfação dos luso-brasileiros, agravados pelas difíceis e às vezes inexistentes negociações entre senhores de engenho e invasores. Numa visada geral, são entrevistos holandeses, luso-brasileiros, judeus, espanhóis e franceses em suas relações sociais de harmonia e conflito, traições e alianças, crenças e hábitos, guerra e trabalho. A cultura de traços cosmopolitas do período aparece com maior ênfase nos três capítulos finais, onde estão explicitadas as “atitudes” dos holandeses para com os negros, os índios e os portugueses e judeus. Inicialmente avessos à escravidão, os holandeses foram paulatinamente rendendo-se às vantagens que essa prática representava, e “para atender às necessidades da indústria açucareira, procuraram, logo que vencidos os últimos focos da resistência pernambucana, em 1635, promover o tráfico de escravos africanos”, segundo informa o autor. Na análise das implicações econômicas e religiosas da presença de cristãosnovos e judeus em Pernambuco, o próprio historiador ressente-se da sua parcialidade em Tempo dos Flamengos. Posteriormente, isto resultará na abertura de outras frentes de estudo sobre o assunto, em outro clássico de José Antônio Gonsalves de Mello, Gente da Nação (1989). Tempo dos Flamengos – que exibe o subtítulo Influência da Ocupação Holandesa na Vida e na Cultura do Norte do Brasil – é, ainda hoje um dos levantamentos mais completos sobre o tema do Brasil holandês. Tem o aval de historiadores contemporâneos insuspeitos, a exemplo de Evaldo Cabral de Mello, que o apontou recentemente, numa enquete para um prestigioso jornal brasileiro, como livro pioneiro e indispensável para o conhecimento do período colonial. Os documentos-base para a escrita de Tempo dos Flamengos foram copiados de arquivos holandeses e entregues ao Instituto Arqueológico Pernambucano em 1866, pelo historiador José Hygino Duarte Pereira (1847-1901). José Antônio Gonsalves de Mello conhecia tanto os idiomas de que necessitava quanto

as técnicas paleográficas para a decifração de manuscritos antigos. Além disso, dentro de sua escolha epistemológica particular, transitava com alta competência em meio aos critérios e à metodologia histórica que praticava. Mas, mesmo no seu trabalho lento e meticuloso, impecável quanto à erudição, à conformação rigorosa e ao domínio temático, não estariam descartados possíveis equívocos, enganos ou erros (derivados, aqui e ali, da cópia feita por amanuenses holandeses, de uma quantidade imensa de textos em letra gótica, sob a pressão do tempo e a escassez de verbas oficiais, como as sofreu José Hygino). A edição de fevereiro de 2001 da Continente tratou desses erros, numa matéria onde foi publicada, inclusive, a última entrevista concedida por José Antônio. O pesquisador holandês Benjamin Teensma, responsável pela primeira tradução em língua holandesa de Tempo dos Flamengos, identificou os erros e sugeriu correções, que seriam aplicadas na mais recente edição da obra (4ª ed.), pela Topbooks. Enganos ou equívocos que, diante da totalidade e da eminência da obra que é Tempo dos Flamengos, terão sempre a sua importância atenuada e relativizada, não chegando jamais a prejudicá-la seriamente.

José Antonio Gonsalves de Mello recebendo a medalha do mérito Joaquim Nabuco das mãos do escritor Nilo Pereira, 1988

Luís Carlos Monteiro é crítico literário e ensaísta

Continente Multicultural 71


ENTREMEZ

Cristo e Judas: um mesmo Rei Divino A celebração de dois ritos que são um mesmo rito, propiciando a que volte o tempo da carne, da fartura e da alegrai

D

izem que Pai Véi irá morrer. Que morra! Morrer é uma condição pra que se possa nascer. Desde a quarta-feira de trevas as futuras viúvas de Pai Véi desfilam mascaradas, todas prenhes, barrigas enormes, vestidos andrajosos, sombrinhas de aspas partidas, esmolando comida e cachaça para a celebração da morte do marido. Os filhos caretas amedrontam crianças com suas máscaras de couro de bode e relhos de crina de cavalo, tirso dionisíaco manejado sem piedade, quando alguém se atreve a roubar a quinta do pai. E quem é esse Pai Véi, Pai Veio, Pai Velho, que irá morrer no Sábado de Aleluia ou no Domingo da Ressurreição? O Judas, respondem seus filhos e esposas, as vozes abafadas pelas máscaras. Esses homens do povo nada lembram de um saber mais arcaico, do significado daquele boneco atado a um mastro, no meio de um sítio improvisado em praça ou terreno baldio, cercado de canas e bananeiras roubadas nas vizinhanças. Nenhum careta da Matança do Judas ouviu falar no

Ronaldo Correia de Brito 72 Continente Multicultural


sacrifício do Rei Divino, nem conhece a precisa geografia da Mesopotâmia, do Egito ou da Boêmia, onde esse mesmo rito era praticado. No entanto, os costumes populares, esquecidos do significado do seu fazer, reduziram a espetáculos e brincadeiras os ritos primordiais. Na Antiguidade, era necessário sacrificar o rei que envelhecera “para que sua decrepitude não acarretasse um desfalecimento correspondente da energia vital dos cereais, do gado e dos homens”. Se não fosse o próprio rei, o seu simulacro, um boneco de pano, ou de folhas, costume perpetuado no norte europeu até bem pouco, saudando a chegada da primavera. Que o nosso cristianismo incorporou ao seu calendário, dando o nome de Judas a esse rei sacrificial. O Carnaval se vai e com ele a festa da carne. Resta a quaresma magra, com o peixe e a contrição. O vermelho dá lugar ao roxo. Aproxima-se o dia em que se representará, mais uma vez, a vida e a morte de um outro Rei Divino – o Cristo. Durante uma semana se reproduzirão os seus passos, a subida e descida da cruz, o seu dilaceramento e ressurreição. No ritual da missa, seu corpo é repartido em pedaços e comido, seu sangue dividido em quantias e bebido. O homem que o traiu foi Judas, pela ínfima quantia de trinta dinheiros, entregando-o com um beijo na face e um olhar de esguelha. Todos lembram de uma árvore e de um laço, onde ele novamente será pendurado e enforcado, depois de um julgamento público e da leitura de um testamento. Sem distinguir-se do Rei Divino, o Judas também será dilacerado e morto, o corpo estripado, os membros esquartejados, sob os gritos da turba confundida, matando numa só figura, um bandido e um rei. Judas morto e Cristo ressuscitado numa celebração de dois ritos que são um mesmo rito, propiciando a que volte o tempo da carne, da fartura e da alegria. A orquestra puxa o cortejo nas cidades do interior do Nordeste. Caretas agitam seus relhos atrás do jumento que carrega o boneco espalhafatoso de riso aberto. Embriagado, o bando arrasta o pai de cabeça de estopim rumo à sua quinta. Entre sarros e chumbregos, bafejos de vinho suspeito e arrotos indecentes, o Carnaval recomeça, celebrando-se com pândega a morte prenunciada. Nas noites silenciosas das cidades nordestinas, penitentes ainda dilaceram as costas com pequenas lâminas, pranteando em benditos o Inocente que

morrerá na cruz. A mão direita não sabe o que faz a mão esquerda. O Filho ignora os desígnios do Pai. Ocultam a dor e o rosto atrás de grossos madapolões. Enlouquecidos, os caretas balançam chocalhos, ritmando passos de dança, no auto de fé profana. As máscaras de couro de bode estampam a escandalosa alegria de quem leva o pai à forca. Ao som das matracas sombrias, sob sudário inconsútil, vai seguindo o Senhor Morto, carregado em ataúde. Sob pedradas e vaias, desce o cortejo de Pai Véi, boneco de braços abertos, a mão segurando um cigarro no lugar de um ramo verde. Comprimidos no interior da igreja, os fiéis aguardam a meia-noite do sábado, quando as cortinas roxas desabarão dos trilhos e os sinos tocarão dobrado, abafando o grito de Aleluia. Dispersos na praça, girando os tirsos de couro, filhos e esposas do Judas esperam o instante em que sua cabeça explodirá, para se atirarem sobre o corpo de trapos e palha. Rude contraste de um mesmo fim comum: morte e ressurreição.

Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico

Continente Multicultural 73


74 Continente Multicultural


CÍCERO DIAS

UMA VIDA PELA ARTE

Olho sobre telas: Artistas de Pernambuco participam da Bienal de São Paulo e têm banco de dados na Internet Qualquer música: Festiva Abril Pro Rock comemora dez anos com eventos em Olinda, São Paulo e Fazenda Nova Biblioteca: A relação entre a literatura e a Imprensa é tema do III Congresso de Escritores, que homenageia Cony Quadro a quadro: Sylvio Back prepara lançamento de filme sobre os últimos dias do escritor austríaco Stefan Zweig Boca de cena: A Companhia Teatro Seraphim vai ao Festival de Curitiba com a peça Churchi Blues Almanaque: Morre em janeiro Camilo José Cela, o mais importante criador de literatura espanhola contemporânea Continente Multicultural 75


OLHO SOBRE TELAS

ARTE E LIBERDADE Livro com o levantamento completo da vida e obra do artista pernambucano é lançado no Palácio do Governo, no Recife, no seu 95º aniversário Marco Polo 76 Continente Multicultural

U

m livro abrangente, que abarcasse toda a vida e obra de um artista ao longo de 95 anos. Esta era a ambição de Waldir Simões de Assis, da Simões de Assis Galeria de Arte, com sede em Curitiba. E é este livro que foi lançado no dia 21 de fevereiro passado, no Palácio das Princesas, no Recife, com a presença do homenageado, o artista plástico pernambucano Cícero Dias, vindo diretamente de Paris, onde mora, para a homenagem. “O livro é fruto de muitos anos de convivência e admiração por Cícero Dias. Eu sempre lamentava não ter gravado nossas conversas. Ele tem uma


incrível lucidez em termos de fatos e datas. E são fatos importantes, ligados não só ao Brasil como ao mundo em geral, e a personalidades da maior relevância. Teria que ser, portanto, um livro não apenas referente à arte, mas à sua postura, aos seus engajamentos. Achava que estava faltando um documento em que ficasse traçada não só a trajetória artística de Cícero Dias, mas também a de sua vida, uma vez que uma e outra estão indissoluvelmente ligadas. Quando finalmente surgiu um patrocínio, através de Fernando Xavier Ferreira, presidente do Grupo Telefônica do Brasil, realizamos o projeto”, diz Waldir. Com texto bilíngüe (português-inglês) do jornalista Mário Hélio, Cícero Dias – Uma vida pela pintura é um álbum de luxo, com capa dura e papel couché fosco, tamanho 26x31cm, com 351 páginas e prefácio de Josué Montello. Fatos, fotos e reproduções de obras até então inéditas, dão o registro de completude no levantamento de uma vida totalmente dedicada à arte, tendo como marcos o painel Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife, executado entre 1926 e 1929, no Rio de Janeiro, e a Rosa-dos-Ventos concebida para o centro da praça do Marco Zero, no Porto do Recife, na virada de 1999 para 2000.

No meio desse tempo, Cícero envolveu-se com os modernistas brasileiros, como os pintores Di Cavalcanti, Guignard, Lasar Segal, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, e escritores como Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Depois veio a mudança para Paris, em 37, a participação na Segunda Guerra Mundial, inclusive contrabandeando um poema de Paul Éluard, falando em liberdade, e que seria jogado de avião sobre a Paris ocupada pelos alemães. O casamento com a francesa Raymonde, sua companheira de todos os momentos, até hoje, a amizade com Picasso, padrinho de sua filha, a experimentação inquieta pelo figurativismo meio primitivo, o surrealismo, o abstracionismo, o geométrico. Enfim, uma vida riquíssima em atos e arte. O livro começa pela infância, no Engenho Jundiá, no município de Escada (Zona da Mata Sul de Pernambuco), onde Cícero dos Santos Dias nasceu, em 5 de março de 1907. “Nasci pintor”, diz ele. E, por sorte, teve desde o início apoio da família, recebendo as primeiras aulas de pintura de uma tia chamada Angelina. Mais tarde, indo ao Rio estudar arquitetura, logo fez amizade com os modernistas, trocando o curso acadêmico pela feitura de aquarelas. Pouco depois, um grupo de admiradores formado por Di Cavalcanti, Murilo Mendes e Graça Aranha, o incentivava para a primeira exposição. Era 1928, Cícero tinha 21 anos e sua pintura, onírica, solta, meio anárquica, provocava discussões. Aliás, o argumento utilizado por Graça Aranha para convencer a direção da Policlínica, onde estava acontecendo um congresso internacional sobre psicanálise, a abrigar a exposição, foi o

Acima, Primeiro estudo pra o piso da Praça do Marco Zero. 1999. Aquarela sobre papel, 50 x 65cm Ao lado, Composição, Década de 1940. Óleo sobre tela, 60 x 72cm

Continente Multicultural 77


Ao lado, em pé, Cícero Dias, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Adhemar Vidal; sentados, Rodrigo de Mello Franco e Antonio Bento. Rio de Janeiro, 1935. Abaixo, Sem título (detalhe). Década de 1950. Óleo sobre tela, 60 x 73 cm

de que os quadros do pintor tinham tudo a ver com o universo explorado pelo autor da Interpretação dos Sonhos. Mas discussões mesmo provocou o painel Eu Vi o Mundo..., de 15 metros de largura por 2 metros e meio de altura, exposto na 38ª edição do Salão Nacional, na Escola de Belas Artes, e que chegou a ter três metros destruído por vândalos, incomodados pelas cenas de erotismo. Ao lado do detalhamento na descrição dos episódios marcantes da vida de Cícero Dias, um aspecto do livro que enche os olhos, literalmente, é o visual. A partir das primeiras aquarelas, onde se mesclam surrealismo e primitivismo, climas oníricos e eróticos, com uma profusão de mulheres nuas, flores e folhagens, mares e rios, céus imensos e vastas paisagens, o artista passa para o exercício da pintura em óleo, com cenas de casais e família, imagens dos interiores das casas, enfatizando esse aconchego familiar, mas também cenas de trabalho em engenhos e canaviais, além de belas panorâmicas de casarios do Recife. As cores, predominantemente claras e transparentes nas aquarelas, fecham-se um pouco criando climas mais dramáticos. Num período que passa em Lisboa, no início da década de 40, surgem experiências abstratizantes, que vão se intensificando até o que o livro classifica como “uma orgia de cores e formas”. Logo, a arte de Cícero parte para o geométrico abstrato e começa a buscar uma simplificação de formas em cores chapadas que se interpenetram, operando

78 Continente Multicultural

harmonias e movimentos dentro dos limites do quadro. É um período firmemente dominado pela composição formal e a expressividade cromática. Cícero Dias parece ter alcançado uma liberdade sem limites. Tanto que nos anos 50, enquanto experimenta o abstracionismo, continua pintando cenas domésticas de casais e famílias e, em certos momentos, retoma certo surrealismo do início de carreira. Um intenso lirismo domina toda sua obra. E é esse lirismo que vai se fixar nos anos seguintes, numa pintura que retém o intenso colorido tropical, uma figuração bem definida e meio estilizada, e uma construção rigorosa, permeada de formas geométricas. É tudo isso que explode de forma cabal no painel que marca a maturidade de Cícero Dias, Frei Caneca – Revolução de 1824, um quadro épico em que canta a liberdade. Liberdade essa que foi como que uma eterna meta na vida e obra do pintor pernambucano. Afinal, seu último projeto público, a Rosa-dos-Ventos na praça do Marco Zero, no Recife, é também um poema à liberdade dos ventos, das cores, da luz e dos espaços.


PERNAMBUCO NA BIENAL DE SÃO PAULO

D

e 23 de março a 2 de junho, o Brasil sedia umas das três mais importantes exposições de arte contemporânea mundial, a Bienal de São Paulo. Em sua 25ª edição, a mostra conta com a curadoria geral de Alfons Hug, sendo a representação brasileira coordenada por Agnaldo Farias. Será instalada no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque do Ibirapuera. Sob a temática Iconografias Metropolitanas, a Bienal reúne obras de aproximadamente 200 artistas de 70 países, com a participação de dois artistas de Pernambuco. De acordo com Hug, o tema da exposição não se refere apenas à imagem da metrópole na arte atual, mas também à maneira pela qual correntes de energia urbana influem nos artistas contemporâneos. A Bienal será dividida em três segmentos principais. O primeiro leva o nome do tema da mostra – Iconografias Metropolitanas – e traz a produção artística mundial representada por 11 metrópoles: São Paulo, Caracas, Nova Iorque, Johannesburgo, Istambul, Pequim, Tóquio, Sidney, Londres, Berlim e Moscou. Ainda conta com a 12ª metrópole, chamada Cidade Utópica, uma seleção de obras nas quais se busca idealizações

de um lugar, o “desenho de uma utopia”. A segunda parte da mostra é chamada Representações Nacionais. Neste segmento, 72 países são representados pelas obras de um artista nacional. Alfons Hug procurou destacar as manifestações artísticas africanas e asiáticas, compensando o pouco espaço que estes países geralmente têm em mostras contemporâneas internacionais. No terceiro momento, encontra-se o Núcleo Brasileiro, que conta com uma seleção de 30 artistas de diversos estados do país. De Pernambuco, os nomes escolhidos foram Gil Vicente e Oriana Duarte. “Acredito que os dois artistas representem bem a diversidade de produção tão importante do Recife. Gil, com seus desenhos soturnos e dramáticos e Oriana, que utiliza-se de mídias variadas, inclusive com trabalhos na web”, afirma Agnaldo Farias. Gil Vicente leva a São Paulo uma série de 11 pinturas de nanquim sob papel, p&b. Oriana Duarte mostra na bienal uma instalação composta de fragmentos de três processos artísticos, o que permite realizar uma retrospectiva de seus dez anos de artista.

Gil Vicente foi um dos artistas escolhidos para a mostra

Continente Multicultural 79


ARTISTAS VIDUAIS TÊM BANCO DE DADOS O site registra inicialmente 300 nomes escolhidos por sua notoriedade e também pela qualidade comprovada de seus trabalhos

N

este mês, o Instituto Cultural Bandepe inaugura na Internet o primeiro banco de artistas visuais de Pernambuco. O site, que está sendo elaborado pela Caleidoscópio Escritório de Design, contará inicialmente com 300 nomes, escolhidos de acordo com a notoriedade do artista ou com a comprovação da qualidade dos seus trabalhos em exposições passadas. Todos que acessarem o site terão apoio de um serviço de busca que lhes proporcione conhecer, no mínimo, três trabalhos e um mini-currículo do artista procurado. Ainda para facilitar a navegação do visitante, o banco é dividido em três seções: artistas plásticos, artistas populares e fotógrafos. Visando à divulgação de talentos ainda desconhecidos e à ampliação do mercado para nomes já firmados, o Instituto Cultural Bandepe disponibiliza também telefones para contato. “Pretendemos levar a arte pernambucana para o mundo todo através da Internet, e escoar a produção pelo país. Queremos criar um local onde muitos artistas possam mostrar suas obras. Isso pode vir a melhorar a condição de vida de alguma dessas pessoas, além de estimular o desenvolvimento cultural do Estado”, diz Carlos Trevi, diretor do Instituto. Mas não é só o serviço de busca que vai chamar visitas ao site. Os fóruns de discussão são um atrativo à parte. Mensalmente, questões ligadas à produção cultural serão postas em debate e, em sua inauguração, a página já trará consigo

80 Continente Multicultural

a primeira de uma série: Administração de Entidades Culturais. Os temas são propostos por Marcelo Vieira e podem ser discutidos por qualquer pessoa que se interesse pelo assunto. Nos seminários on line, os internautas poderão trocar idéias e conhecimentos por e-mail acerca do tema abordado e até sugerir os que virão em seguida, através do link Fale Conosco. Este intercâmbio entre o instituto e os visitantes do site só reforça o caráter interativo a que este projeto se propõe. Para manter a confiabilidade do material exposto, a inclusão de novos nomes passará por um processo de rigorosa avaliação. Um comitê consultivo, composto por conhecedores do assunto, comprovará a qualidade, verificará a participação do artista em exposições, entre outras ações e, em seguida, colocará o nome em votação. Aprovado o trabalho, o artista é incluído no banco. A página, que foi patrocinada pelo Bandepe, Real Seguros e ABM Amro Bank, traz também um histórico, a programação e um catálogo das exposições passadas do Instituto. No site, além de todas estas informações, ainda pode ser encontrada a seção Ação Cidadã, que possui o objetivo de divulgar campanhas e pólos de doações, entre outras informações relacionadas à cidadania. Endereço eletrônico: http://www.culturalbandepe.com


QUALQUER MÚSICA

DEZ ANOS DE ABRIL PRO ROCK

N

o início dos anos 90, a produção musical pernambucana era intensa, mas pouco valorizada. Não existia apoio por parte das rádios locais, faltavam espaços, oportunidades e incentivos. Diante desse quadro, os produtores Paulo André e Geraldo Cavalcanti criaram, em 1993, o Abril Pro Rock, festival de música jovem, com o objetivo de incentivar a produção musical local. Nesta primeira edição, 12 bandas pernambucanas e o Maracatu Nação Pernambuco tocaram para um público de 1.500 pessoas, no extinto Circo Maluco Beleza. Eram os primeiros acordes da fusão de ritmos populares como o maracatu, o repente e o forró com o rock n’ roll, o rap e o soul, reconhecida, mais tarde, como o som do mangue. Logo após o festival, as bandas Chico Science & NaçãoZumbi (CSNZ) e Mundo Livre S/A foram contratadas por gravadoras. A partir do segundo ano, o evento passou a contar com a participação de artistas e bandas de outros estados e a MTV Brasil apresentou o festival para o resto do país. Ao comemorar dez anos de Abril Pro Rock, Paulo André diz que a grande vitória do evento é a sua “independência com relação a tudo e todos” e que a próxima edição reforça o conceito original do festival, apresentando “uma nova geração de bandas”. Ao todo serão 21 bandas nos três dias de shows (21, 22 e 23) no Centro de Convenções, em Olinda, e 18 entre os dias 24 e 27 no Sesc Pompéia, em São Paulo.

A grande novidade fica por conta da noite em Nova Jerusalém, o maior teatro ao ar livre do mundo. O espaço está localizado na cidade de Fazenda Nova, distante duas horas no Recife, no agreste pernambucano. A intenção em realizar essa noite, segundo Paulo André, é a de “expandir o espaço que a música eletrônica tem no Estado”. Para ele, existe uma “carência cultural desse estilo de música em Pernambuco”. Por isso, o festival vai armar três palcos e duas tendas eletrônicas para apresentação de 12 DJs e três bandas, numa maratona de 12 horas de shows (das 18h às 6h da manhã), como nas conhecidas raves – festas temáticas de música eletrônica que atravessam a madrugada. Esta edição especial vai acontecer na primeira semana de maio, pois, segundo o empresário, “tornou-se mais viável transferi-las para este mês”. Quem comprar o ingresso terá garantida a passagem de ida e volta. Passada uma década de Abril Pro Rock, Paulo André afirma que “o grande patrimônio do festival é público”, conquistado ao longo dos anos. Orgulhoso, o empresário diz que 90% dos jovens que freqüentam o festival têm entre 14 e 20 anos. Ele acredita que isso acontece porque a produção musical do início dos anos 90 influenciou e ainda influencia a nova geração. “É muito gratificante ver famílias inteiras assistindo aos shows, isso prova que atingimos o nosso principal objetivo: valorizar a música pernambucana”.

Público dançando ciranda no Abril pro Rock de 2001

Continente Multicultural 81


BIBLIOTECA

A intensão de discutir a importância da imprensa como formadora de opinião e o espaço da literatura na mídia

LITERATURA NA IMPRENSA

É TEMA DE CONGRESSO DE ESCRITORES O grande homenageado do III Congresso Brasileiro de Escritores será Carlos Heitor Cony

D

e 25 a 28 de março, no Recife Palace Hotel, acontece o III Congresso Brasileiro de Escritores. Organizado pela União Brasileira de Escritores (UBE-PE), o evento traz de volta as discussões em torno de literatura e mídia. Para os organizadores do Congresso, o papel fundamental de influenciar os hábitos humanos, inerente ao jornalismo, pode e deve ser mais bem utilizado no incentivo à prática da leitura e no desenvolvimento intelectual da população. O tema central será Literatura na Imprensa e visa, também, tentar recuperar os espaços que antes eram destinados à literatura e que foram, com o advento das culturas de massa, sendo ocupados pela música popular, cinema, artes plásticas e teatro. Por conta justamente disso, um dos sub-temas do Congresso será, especificamente, A Literatura na Imprensa: Em Busca de um Espaço Perdido. Para discutir estas questões e outras afins, o Congresso trará nomes de peso como o poeta

82 Continente Multicultural

Gerardo Mello Mourão e o editor José Mário Pereira, da Topbooks. Também estarão presentes o jornalista Daniel Piza, o poeta, tradutor e ensaísta Marco Lucchesi, o ensaísta Luiz Costa Lima, Jaguar, cartunista e criador de O Pasquim, o crítico João Alexandre Barbosa, o escritor e jornalista José Castello e o poeta Alexei Bueno, além dos editores Cristiane Costa, do Caderno Idéias, do Jornal do Brasil, e Luiz Zanin Uricchio, editor de Cultura de O Estado de São Paulo, entre outros. A abertura solene acontecerá no dia 25, às 19h, com conferência do grande homenagedo do evento, o jornalista e romancista Carlos Heitor Cony, e a palavra de Flávio Chaves, presidente da UBE-PE, e do vice-presidente da República, Marco Maciel, presidente de honra do III Congresso Brasileiro de Escritores. Maiores informações sobre o evento poderão ser obtidas através do telefone da UBEPE, (81) 3441.7488.


A HISTÓRIA PELAS IMAGENS Livro traça evolução da paisagem pernambucana, do século 16 aos dias de hoje 1697

Ao lado, Carro de boi em canavial, 2000 Foto Imago

Pernambuco: imagens de vida e de história é o 23º livro do escritor Leonardo Dantas Silva, e traça a evolução da paisagem pernambucana, do século 16 aos dias de hoje. O autor já havia publicado dois livros sobre o mesmo tema: Recife, Quatro Séculos de sua Paisagem e Paisagem Pernambucana. Neste mais recente livro, o autor abandona a orientação cronológica para enfatizar os aspectos visuais marcantes do Estado em cada capítulo, como o porto, a flora, ou a figura do mestiço. As imagens destes elementos, no tempo, são contrapostas para mostrar o que mudou e o que permaneceu quase inalterado: o carro-de-boi pintado por Frans Post (1647) é essencialmente o mesmo de uma fotografia atual (2000), onde aparece canavial semelhante ao retratado por Lula Cardoso Ayres (c. 1940). Por não se tratar de um livro de história,

1940

estritamente, o autor teve mais liberdade no estilo, o que lhe permitiu a inserção de poetas no texto, como João Cabral de Melo Neto. Para o estudante e o pesquisador, no entanto, não deixam de interessar informações como o aparecimento de certas frutas por estas terras ou as sucessivas perdas de território do Estado, fatos que contribuíram para a mudança da paisagem pernambucana. Nos dois primeiros capítulos, o autor analisa os primeiros mapas que representavam Fernambouc e os mitos sobre uma terra ainda desconhecida. Pernambuco: imagens de vida e de história foi dedicado a José Antonio Gonsalves de Mello, antes da morte do historiador, no dia 7 de janeiro último. O livro tem lançamento previsto para este mês, e foi patrocinado e editado em parceria pelo SESC Nacional e SESC Pernambuco.

2000

Abaixo, à esq. Foto de Lula Cardoso Ayres, Usina Cucaú, minicípio de Rio Formoso c. 1940. Acervo da Fundação Joaquim Nabuco Abaixo, à dir. Serinhaim, gravura de Frans Post, do livro de Barlaeus, 1647

Continente Multicultural 83


MARCO ZERO

O poeta e tradutor Ivo Barroso, autor da coletânea A Caça Virtual

O LOBO

DA ESTEPE MOSTRA AS GARRAS O A intelectualidade brasileira descobre a existência de um poeta superlativo, que a modéstia ou uma cruel autocrítica manteve escondido por décadas

84 Continente Multicultural

professor Lauro de Oliveira, que me ensinou português no Ginásio Pernambucano, sempre saudoso do que chamava a “áurea latinidade”, não dizia, como nós mortais, “cada cabeça é um mundo”, mas quot capita, tot sensus, algo como: tantas sejam as cabeças, tantas serão as sentenças. Lembrei-me do velho ditado ao ter, nas mãos, o livro A Caça Virtual, uma coletânea poética de Ivo Barroso. Mas, no caso, pensando em alterar o provérbio: cada poeta são muitos mundos. E, para o poeta em questão, poder-se-ia acrescentar: ou várias maneiras de ver o mesmo mundo. O estamento intelectual brasileiro, sempre surpreendido com as traduções magistrais de Barroso, descobre agora a existência de um poeta superlativo que a modéstia ou uma cruel autocrítica manteve escondido por tantas décadas. Eu o admirava como tradutor, mas não prestara a devida atenção à sua bibliografia e, quando a li agora, corri para a estante e tirei de lá o romance O Lobo da Estepe, do alemão Hermann Hesse. Esse livro, ao lado de Fome, de Knut Hansun, foram obras emblemáticas do chamado “Grupo de Jaboatão”, de que eu fazia parte. Mas, só agora, que ele está na 26ª edição, dou-me conta de que foi traduzido por Ivo Barroso. Isso talvez porque, ligado à poesia, chamaram-me mais a atenção suas traduções de Rimbaud, Shakespeare e T. S. Eliot, por exemplo.


Três sonetes Bem, devo botar para moer meu frágil engenho e tentar expor algo da complexidade e grandeza de A Caça Virtual. Ao olhar para a poesia brasileira atual, enlutada com a morte de João Cabral de Melo Neto, eu me pergunto por que uma obra de tal porte era uma montanha oculta na bruma, por tanto tempo, enquanto os outeiros resplandeciam ao sol. Do ponto de vista formal, embora a variedade de estruturas verbais me dê a impressão de que o poeta atravessou várias fases, o volume foi dividido em seis partes; duas delas, as mais longas e que iniciam o livro, me parecem reunir poemas com o mesmo clima intelectual, ou mesma postura cognoscitiva. Poemas da juventude e da maturidade certamente convivem indiferenciáveis no mesmo espaço. Só existe um poema datado, Os Poetas de Setenta Anos (16.05.1991) e só uma das partes se diz uma fase, confessa um período experimental do poeta (aliás, com poucas composições), que é Poemas da Fase Concretista. O prefaciador, Eduardo Portela, destaca que a falta de pistas identificadoras de fases cronológicas revela que o poeta evita tudo que pudesse parecer “justificativa inútil ou a tentativa de autodefesa”. No livro inteiro, por trás do arrojo inventivo e moderno das figuras de linguagem, há o comando, invisível quase, mas sensível sempre, de um espírito clássico. Mas, de repente, ele se explicita na expressividade maior de Três Sonetes, um ensaio de forma fixa (ver quadro), numa composição de dez versos decassílabos, divididos em quatro estrofes: um monóstico, um dístico, um terceto e um quarteto. Sobriedade e elegância atravessam todas as páginas, cobrindo as dores surdas, enxugando as lágrimas de pedra deste incurável anti-romântico. Se, como disse Pedro Botelho, “a sensibilidade é a inteligência dos sentidos”, a poesia de Ivo Barroso nos sensibiliza sem nos sentimentalizar, mesmo em composições leves, como Litania (“Mãos de camélia,/ Olhos de anêmona./ Sentida Ofélia./ Pobre Desdêmona”) ou Valsa Triste. O livro, mesmo se engajando nas principais aventuras estéticopoéticas do Ocidente, no último milênio, não cede aos modismos preocupados somente em épater le bourgeois, sendo o curto experimentalismo concretista uma mera curiosidade de percurso. Nele se encontrarão poemas em alexandrinos

I Teu nome nasce em grito no meu peito. Sobe em soluço da garganta à boca e sai do lábio já num ai desfeito. No espaço, a voz se faz lamentação; Em teu ouvido é uma palavra rouca E esvai-se em pranto no teu coração. Num sopro débil lentamente desce, quase em surdina no teu sangue escorre, ganha teu seio transformado em prece, chega em tua alma num suspiro e morre. ortodoxos, respeitando-se a obrigação da sílaba oxítona na cesura, ou da grave, quando paroxítona, com elisão na próxima também grave, e de sonetos decassílabos, com versos sáficos ou heróicos perfeitos. Mas perpassam, pela maior parte do livro, os versos livres, em poemas que, para meu uso, considero polimétricos. Sempre senti uma necessidade de classificação dos chamados poemas em “verso livre”. E resolvi, que Deus me ajude, classificá-los em poemas-polimétricos, quando o poeta, usando de vários metros, tenta uma cadência, recorrendo a uma espécie de banda métrica, que é, em analogia à banda cambial, uma oscilação controlada entre um mínimo e um máximo de sílabas e em poemascrônica (Bandeira e Drummond neles pontificaram, e que nada mais são que a poetry as speech, de Pound), sempre assimétricos, mas que tentam definir o ritmo que, para mim, é harmonia, e não só na arte poética, entre forma e conteúdo. Isso nos remete à clássica distinção entre poesia e prosa, sendo a primeira o discurso medido (mas correto seria dizer cadenciado) e a segunda o discurso livre. Enfim, o livro de Ivo Barroso é um desafio para a chamada, impropriamente “ciência da literatura”. Mas não fica só neste desafio um livro que já se incorporou, desde agora, com todos méritos, à história de nossa Literatura. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo e-mail: alberto8@hotlink.com.br

Continente Multicultural 85


DOIS PONTOS

BEIJO Vem da Paraíba um volume delicioso: Um beijo é só um beijo - Minicontos para cinéfilos, de João Batista de Brito. São 28 histórias curtas, todas criadas a partir de um determinado filme. O autor faz um jogo com o leitor, fornecendo pistas para que ele identifique o filme respectivo. As narrativas têm como foco ora a visão de um dos protagonistas ora de um personagem secundário e situam-se em qualquer momento dentro do filme ou mesmo fora dele (como no caso do conto correspondente a Shane - Os brutos também amam, cujo enredo é passado 10 anos após o tempo cinematográfico). A linguagem é sugestiva e concisa - em raros casos o texto torna-se muito explicativo, com a nítida intenção de fornecer ao leitor elementos para identificação da película. Brito é professor de literatura na Universidade Federal da Paraíba e crítico literário e de cinema. Um beijo é só um beijo. João Batista de Brito - Editora Manufatura, João Pessoa (Fone: 83-246.1121), 129 páginas. Lançamento ainda não programado.

ROMANCE-RIO Escrito dentro do conceito de “romance-rio”, Os Thibault foi escrito de 1922 a 1940 pelo prêmio Nobel de 1937, o francês Roger Martin du Gard. Conta a história de uma família católica e burguesa ao longo das duas primeiras décadas do século 20, período que culminou na conflagração da Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918. A figura do velho Thibault, um conformista social e religioso, contrasta com o retrato de seus dois filhos: Jacques, espiritual e revoltado, e Antoine, um medido enérgico e prático. Chama a atenção a pesquisa histórica do autor ao traçar este grande painel da sociedade francesa no início do século. Também provoca empatia a figura idealista de Jacques Thibault e a temática existencialista da responsabilidade individual perante os desafios da História. Originalmente lançado em oito partes, tem nesta edição brasileira cinco volumes. Os Thibault. Roger Martin du Gard. Editora Globo. Cinco volumes. R$ 85,00. 2448 págs.

POLICIAL O comissário Salvo Montalbano tem algumas características bem definidas. É apaixonado por literatura e pela versátil culinária siciliana. Também tem variações de humor provocadas pela oscilação metereológica: basta um vento frio ou ameaça de chuva para deixá-lo extremante irritadiço e impaciente. Mas possui um profundo interesse pelo que é humano e uma ternura às vezes complacente, ao ponto de “perdoar” um assassino que foi levado a tanto por excesso de sofrimento. Considerado o melhor detetive da literatura “noir” surgido recentemente, Montalbano protagoniza os 30 contos do novo livro de Andréa Camilleri. A narrativa é ágil e leve, quase sem descrições, com ação contínua, os enredos quase sempre inusitados, e personagens que têm personalidade. Camilleri tem recebido os principais prêmios da literatura italiana, sendo bem aceito por crítica e público. Um Mês com Montalbano - Novos casos do comissário Salvo Montalbano. Andréa Camilleri. Editora Record. R$ 35,00. 333 págs.

86 Continente Multicultural


CARTAS 1 O título é tirado de uma declaração de Alceu Amoroso Lima a António de Alcântara Machado, explicando sua conversão ao catolicismo: “Queira ou não, o homem é empurrado para a encruzilhada, posto diante do dilema: tem que decidir, os problemas se apresentam como de vida ou de morte. E chega por isso o momento em que o instinto de defesa acaba vencendo a covardia e o comodismo”. Intelectuais na Encruzilhada, correspondência entre Alceu e Alcântara, de 1927 a 1933, organizada por Francisco de Assis Barbosa, retrata um período agitado na história do País. O Partido Comunista na clandestinidade, o Integralismo surgindo, a Revolução de 30, o Movimento Constitucionalista, o Tribunal de Segurança Nacional, a Aliança Nacional Libertadora e Getúlio Vargas; este é o cenário das cartas que revelam as posições apaixonadas de dois homens preocupados com o Brasil. Intelectuais na Encruzilhada – Correspondência de Alceu Amoroso Lima e António de Alcântara Machado (1927-1933). Academia Brasileira de Letras – Fone (21) 2524.8230 – (R$ 20,00. 135 págs.)

CARTAS 2 Entre 1903 e 1908, o jovem Franz Xavier Kappus trocou correspondência com Rainer Maria Rilke. Kappus estava indeciso entre a carreira militar e a literatura e pedia conselhos. Três anos depois da morte do poeta alemão, Kappus resolveu publicar as dez cartas que Rilke lhe endereçara, certo de que elas poderiam ajudar outros jovens em dilemas semelhantes. “Sou forçado a escrever? Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar aquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade”. Estas cartas, verdadeiras lições de vida – que desde então passaram a ser um dos textos mais populares de Rainer Maria Rilke –, estão na reedição do livro Cartas a um Jovem Poeta, juntamente com um dos mais célebres poemas do grande escritor alemão: A Canção de Amor e de Morte do Porta-estandarte Cristóvão Rilke. Cartas a um jovem poeta – A canção de amor e de morte do portaestandarte Cristóvão Rilke. Rainer Maria Rilke. Editora Globo – Fone (21) 3460.0400 – R$ 14,00. 112 págs.

CABELOS Em Os Cabelos de Beethoven, o escritor norte-americano Russell Martin narra a história de uma mecha cortada dos cabelos do compositor, pouco depois da sua morte, por um jovem músico de origem judaica. Encerrada num medalhão, a mecha vai atravessar quase dois séculos, incluindo a perseguição nazista durante a Segunda Guerra, até surgir num catálogo da casa de leilões Sotheby’s, e ser arrebatada por uma dupla de americanos fanática pelo compositor. A partir daí será examinada por cientistas, dentro das ricas possibilidades da ciência pós-moderna, a fim de determinarem com precisão a causa de sua morte. Embora extraordinária, a história é rigorosamente verdadeira e foi reconstituída por Martin num excelente trabalho de investigação jornalística e histórica. O resultado é um livro fascinante, que se lê com o mesmo entusiasmo que um bom e movimentado romance. Os Cabelos de Beethoven – Uma extraordinária odisséia histórica e a solução de um mistério científico. Russell Martin. Globo – Fone (21) 3460.0400 – (R$ 35,00. 303 págs). Continente Multicultural 87


QUADRO A QUADRO

STEFAN ZWEIG NO NOVO FILME DE SYLVIO BACK O filme narra a última semana do escritor austríaco no Brasil, antes do seu suicídio Stefan Zweig por Zenival

O

cineasta catarinense Sylvio Back prepara o lançamento de sua mais nova produção. Lost Zweig conta a história da última semana de vida do escritor austríaco de origem judaica Stefan Zweig e sua mulher, Elisabeth Charlotte Altmann (Lotte). O casal esteve no Brasil em 1942 e esta estadia é retratada pelo jornalista Alberto Dines no livro Morte no Paraíso, lançado em 1981. Back, junto com o irlandês Nicolas O’ Neill, utilizou-se da publicação como obra de referência e consulta para criar o roteiro do filme, com orçamento calculado em R$ 3,5 milhões. Lost Zweig é uma co-produção com os Estados Unidos, Alemanha e Áustria. Além dos atores brasileiros, Back contará com um elenco estrangeiro, formado por quatro europeus (alemães e austríacos) e um americano. Com locações no Rio e em Petrópolis, a história narra de maneira poética a ideologia revolucionária de Zweig, que lutou pela causa pacifista no entre-guerras. O escritor defendia uma Europa sem fronteiras e com uma só moeda, o fim das ortodoxias e afirmava que se houvesse paraíso, teria de ser no Brasil. Ele é o autor do célebre livro Brasil, País do Futuro. Zweig e Lotte causaram polêmica nas vésperas da II Guerra Mundial ao cometerem duplo suicídio, ingerindo veneno, no dia 23 de fevereiro de 1942. O filme optou por não questionar este ato, dando a ele apenas uma visão ontológica e ética. Sylvio Back preferiu, também, seguir a ver-

88 Continente Multicultural

são de Dines, que acredita no suicídio, apesar de uma minoria sustentar que o casal tenha sido assassinado pela Gestapo. A produção de Back veio acompanhada também do relançamento no Brasil de algumas obras do austríaco. São elas Vinte e Quatro Horas na Vida de uma Mulher, Medo, Fernão de Magalhães, Joseph Fouché, Momentos Decisivos da Humanidade e O Mundo que eu Vi – este último uma autobiografia. Esta ideologia libertária de Zweig é o que mais chama a atenção do diretor Sylvio Back, que compartilha da mesma proposta de pensamento, polêmica e contestadora. Ele é responsável por uma leva de filmes que retratam linhas revolucionárias periféricas, como no recente Cruz e Sousa, o poeta do Desterro (1999), sobre o escritor negro contemporâneo de Machado de Assis. Outros filmes de sua autoria são Guerra do Brasil, um documentário sobre a guerra do Paraguai, e os clássicos Aleluia, Gretchen, Lance Maior e A Guerra dos Pelados. Segundo o dicionário de diretores Porquoi Filmez Vous, editado pelo diário francês Libération, até o ano de 1987, Sylvio Back era o cineasta mais premiado do Brasil, quando acumulava 58 láureas na carreira. Hoje, com mais de 30 títulos em sua filmografia, mora no Rio de Janeiro e mantém uma produção intensa de, em média, três projetos anuais. Além de cineasta, Sylvio Back escreve poemas, ensaios, argumentos e roteiros.


CHURCHI BLUES VAI AO FESTIVAL DE CURITIBA

BOCA DE CENA

A

Companhia Teatro Seraphim, uma das mais importantes do cenário pernambucano, leva ao Festival de Teatro de Curitiba, de 21 a 31 de março, a mais nova montagem do grupo, Churchi Blues, peça que deve encerrar a série de espetáculos na capital do Paraná. O festival é o principal evento das artes cênicas do país e reúne, todos os anos, trabalhos que se destacaram em suas regiões. Churchi Blues é baseado em um roteiro inédito de João Silvério Trevisan, que o adaptou para linguagem cênica. Narra a história de Churchi, um índio que toca violino e cuja vida é marcada por fatos históricos, como a morte de Getúlio Vargas e a fundação de Brasília. “Questiona a identidade brasileira, já que o índio não tem a real consciência desta nacionalidade, mas que, com todos os problemas sociais sofridos no país, carrega também nas costas a dor de ser brasileiro”, declara Trevisan. O nome da personagem é uma referência ao inglês Winston Churchill, chefe de governo da Grã-Bretanha no período da Segunda Guerra Mundial. A trilha sonora é composta por Aquarela do Brasil e outros clássicos da MPB. A cenografia, baseada em originais de Beto Diniz, falecido integrante da Companhia Seraphim, é de Dóris Rollemberg. Para ser encenada, a peça contou com a ajuda de alguns prêmios e da Funarte que, em

2001, premiou a Companhia Seraphim com o auxílio de R$ 15 mil. Em plena crise de manifestações culturais do País, Curitiba conseguiu promover, em 1992, um evento que mais tarde se tornaria um catalisador das artes cênicas do Brasil. Surgia o I Festival de Teatro de Curitiba que, hoje, reúne um total de 351 peças apresentadas a uma média de 580 mil espectadores. O festival é estruturado em quatro eventos principais. O primeiro é a Mostra de Teatro Contemporâneo Brasileiro, que traz estréias nacionais, com espaço para textos consagrados e propostas alternativas. Outros dois são a Mostra de Teatro Infantil, que acontece desde 1997, e os Eventos Especiais, com lançamentos de filmes e livros, oficinas, debates e feira de negócios. Por último, há o Fringe, em inglês “franja” ou “margem”, que é um espaço aberto e sem critério de seleção. Para esta edição, foram recebidas quinhentas inscrições de companhias interessadas em participar do evento. Além de Churchi Blues, foram também selecionadas as peças A Saga de Canudos e Novas Diretrizes. Maiores informações sobre a programação do 11º Festival de Teatro de Curitiba, pelo site www.redemarket.com.br/festival ou pelo telefone (41) 336-3377.

A peça narrea a história de Churchi, um índio que toca violino

Continente Multicultural 89


ALMANAQUE


UMA VIDA DEDIC ADA À LITER ATUR A

O escritor espanhol Camilo José Cela, morto no dia 17 de janeiro passado, ganhou todos os grandes prêmios do seu tempo, incluindo o Nobel de Literatura, em 1989

Cláudio Aguiar

C

amilo José Cela (1916-2002), considerado siões a propósito deste tema. Por que grande parte pela crítica de seu país como o criador da de nossa inteligência cultural continua maravilhada prosa espanhola contemporânea, morreu no com as coisas que, ao longo de décadas, nos são dia 17 de janeiro último, em Madri, aos 85 mostradas desde a Europa ou pelo caminho fácil anos. Sua biografia guarda um invejável rol de vi- dos países que se alinham no chamado Primeiro tórias literárias que, sem exagero, poderia dizer-se Mundo? Por que não olhamos para a ampla fronque ele ganhou todos os grandes prêmios de seu teira que nos une a um mundo parecidíssimo com tempo, incluído o Nobel de Literatura em 1989. O o nosso: os países da América do Sul? Por que conseu primeiro romance A família de Pascual Duarte, tinuamos a ignorar culturalmente as experiências publicado em 1942, quando ele tinha apenas 26 desses povos? Será que não temos nada de positivo anos, é a obra literária espanhola mais traduzida no a dizer àqueles milhões de seres humanos? Ou vicemundo, só superada pelo Engenhoso Fidalgo D. Qui- versa: será que eles nada têm a nos dizer? xote de la Mancha, de Miguel de Cervantes. Sua oCela, cujo nome completo é Camilo José Cebra conta cerca de cem livros publicados, abran- la Trulock, nasceu na vila de Iria Flávia, Galícia, nugendo os gêneros de romance, contos, poesia, tea- ma família cujo pai era galego e a mãe descendente tro, ensaio, roteiros para cinema, viagem, artigos de imigrantes italianos e ingleses. Como primogênietc. Dentre eles, destacamos os romances: A família to, após a morte de dois irmãos, foi mimado em exde Pascual Duarte, Viagem à Alcarria, La catira, San cesso, tendo declarado certa vez que teve uma douraCamilo 1936, Ofício de tinieblas, A colméia, Mazurca da meninice e que fora tão feliz que se recusava a para dois mortos, Cristo versus Arizona, La cruz de San pensar que um dia iria crescer e ser alguma coisa na vida. Chorava quando lhe lembravam tal Andrés etc. circunstância ou, então, perguntavam o Apesar de tão importante bagagem literária, quer pelo aspecto qualitativo, quer que ele queria ser na vida. Ele respondia: pelo quantitativo, o leitor médio brasileiro, “Eu quero sempre ser criança”. Foi para salvo raras exceções, não conhece a obra de esta mesma vila que seus restos mortais Cela. Por que? Será que estivemos durante foram trasladados de Madri, sendo entertanto tempo distanciados da cultura esparado com as honras de Marquês de Iria nhola e, por extensão, da hispano-americaFlávia, distinção conquistada ao complena, apesar de nossas estreitas raízes históri- Grande tar 80 anos de idade. O título, outorgado apreciador de cas? A verdade é que durante séculos os caminhadas, Cela pelo rei Juan Carlos, tem o seguinte lema: brasileiros preferiram espelhar-se na cultu- chegou a escrever “Aquele que resiste, ganha”. livro a ra francesa em detrimento da lusa e espa- um Como estudante foi um menino respeito: nhola. Ainda hoje continuamos dando as Viagem à Alcarria. problemático. Expulso de quatro colégios, Apesar de sua costas para a maioria dos países latino-ame- importante concluiu, por fim, o curso secundário em literária, ricanos fronteiriços com o Brasil. Dificil- bagagem Vigo, no Colégio dos Maristas. Quando o leitor médio mente conhecemos as obras dos mais ex- brasileiro não sua família se mudou para Madri, acomea sua pressivos autores desses países. Repito aqui conhece tido de tuberculose, passou a viver longos obra algumas indagações que já fiz noutras ocaperíodos em sanatórios, ocasião em que Continente Multicultural 91


leu as obras de Ortega y Gasset e clássicos espanhóis. Mais tarde, na Universidade Complutense de Madri, começou a estudar Medicina. Logo abandonaria o curso para matricular-se no de Filosofia, que também o abandonou por Letras, que não chegou a concluir. No entanto, durante as aulas de Literatura Espanhola Contemporânea ministradas pelo poeta Pedro Salinas, Cela a ele confiou seus primeiros poemas, os quais foram publicados sob o título de “Pisando a duvidosa luz do dia”. Tinha apenas 23 anos. Por essa época fez amizade com o filósofo e escritor Alonso Zamora Vicente, o poeta Miguel Hernández, o historiador literário Menéndez Pidal e a filósofa María Zambrano. Também foi inconstante no desempenho de profissões. Entre outras exerceu as funções de pintor, toureiro, ator, soldado e funcionário público. Ao eclodir a Guerra Civil alistou-se no Exército Nacional, mas, por ser ferido na frente de batalha, terminou hospitalizado e fora de combate. Após a Guerra voltou à Universidade e estudou DiAcima, o jovem Cela. reito, ocasião em que se dediNo centro, ao posar cou também a escrever, publipara a fotograifa nu e cando uma biografia de San ensaboado, cantando no chuveiro, Cela aliJuan de la Cruz, sob o pseumenta sua imagem de irreverente. dônimo de Matilde Verdú. A seguir, dedicou-se com afinco Abaixo, com o amigo Pablo Picasso, em à literatura e, então, escreveu Palma de Mallorca “A família de Pascual Duarte”, romance que lhe daria fama nacional e depois mundial. A fase histórica que toca a Cela viver e representar em suas obras é justamente o início da década de 1940, que enfeixa os graves problemas do final da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Esses problemas são marcados por um verdadeiro clamor nacional, registrado no inconsciente coletivo da nação em várias gerações como um tempo de instabilidade e desorientação. A historiografia lite92 Continente Multicultural

rária espanhola dessa fase destaca uma certa esterilidade no que se refere à produção de obras significativas. Essa situação perdurou até 1950. As obras expressivas da geração do pós-guerra não predominaram como regra geral, mas excepcionalmente. Eram apenas promessas. São representantes dessa fase: A família de Pascual Duarte, de Cela; Mariona Rebull, de Ignacio Agustí; Javier Mariño, de Gonzalo Torrente Ballester; Nada, de Carmen Laforet; La sombra del ciprés es alargada, de Miguel Delibes; Viento del norte, de Elena Quiroga, entre outros. A trajetória de A família de Pascual Duarte conta, ao lado de vitórias, algumas amarguras para Cela. A mais dura se refere à acusação de que ele plagiara o romance O Estrangeiro, de Albert Camus. Talvez a forte presença de um clima “terrificante” ou “tenebroso”, também existente na obra do autor francês, tenha chamado a atenção da crítica. No entanto, anos depois, chegou-se à evidência de que o plágio seria impossível, porque, ainda que o aparecimento de “O Estrangeiro” tenha ocorrido três ou quatro meses antes de A família de Pascual Duarte, a verdade é que ficou provado que Cela, muito tempo antes, andara oferecendo seus originais a vários editores espanhóis. Se há um livro que se parece com o romance de Cela, sobretudo no que se refere ao argumento – sem que isso signifique insinuação de plágio, mas apenas de possível influência – é o romance Cintas Rojas, de José López Pinillos, publicado em 1916. É curioso observar que A família de Pascual Duarte foi recusado por muitos editores, que alegavam ser um livro demasiado pejado de aspectos “tenebrosos”. O próprio Cela, anos depois, recordaria que um editor chegou a lhe dizer: “Vai ser muito difícil publicar este livro, mas como você é jovem não será difícil mudar de profissão”. Registre-se, ainda, que, por questões de sobrevivência, Cela, por volta de 1943, em plena fase de ascendência da ditadura de Franco, foi obrigado a trabalhar como funcionário público no cargo de “censor” de revistas religiosas e farmacêuticas, circunstância que não impediu que o seu romance A família de Pascual Duarte fosse censurado e retirado das livrarias espanholas naquele ano. Esta, no entanto, não foi a única vez que Cela teve problemas com a censura. Em 1951, quando tentou publicar o romance A colméia, foi surpreendido com a proibição da edição do livro pela ditadura franquista. A razão da proibição residia no fato de que Cela fixara neste


Os dois livros mais conhecidos de José Cela são: A família de Pascual Duarte – e A Colméia

romance, com forte matiz realista, as principais claves literárias de uma Madri marcada pelos estigmas sociais dos que padeceram as brutais conseqüências da Guerra Civil. Mesmo assim, o livro seria editado em Buenos Aires. A crítica também não lhe deu trégua. Mesmo depois da consagradora recepção nacional e internacional de seu romance A família de Pascual Duarte e de outros títulos, a crítica espanhola persistia em dizer que Cela era um “escritor”, mas não um “romancista”. Diziam que ele já escrevera três livros, mas faltava o “segundo” grande livro. Somente após o aparecimento de A colméia, dissipouse boa parte das reservas da crítica, sobretudo a partir da década de 1980, quando começaram a conceder-lhe os mais importantes prêmios literários de Espanha: o Nacional de Literatura (1984), o Príncipe de Astúrias de Letras (1987) e o Planeta (1994), além de comendas, homenagens, títulos de honoriscausa de universidades de vários países. Faltavam, porém, em seu currículo o Prêmio Cervantes, o mais importante de Espanha, bem como o Nobel de Literatura, o maior galardão das letras mundiais. Este lhe foi concedido, após ser lembrado durante sete anos, em 1989, por sua “rica e intensa prosa, que, com uma controlada paixão, mostra uma visão provocadora da realidade humana”, como justificou a Academia Sueca. Cela foi o quinto escritor espanhol a ganhar o Nobel, após José Echegaray, Jacinto Benavente, Juan Ramón Riménez e Vicente Aleixandre. O Prêmio Cervantes, o mais importante da língua castelhana e da comunidade hispânica, só lhe foi concedido em 1995. Os escândalos constituíram uma curiosa faceta na vida de Cela. Em torno de sua personalidade giram as mais extravagantes histórias, quase sempre eivadas com um certo ar de escândalo ou de excentricidade. Em plena Academia Sueca, durante a entrega do Prêmio Nobel, em 1989, após ter dançado uma música espanhola com sua mulher, a anfitriã, a rainha Sílvia, quis saber como se sentia o

mais novo Nobel. E, sem rodeios, ele respondeu: “Fodido, mas muito satisfeito”. Certa vez ele tentou defender-se dessa pecha de escandaloso e usou o seguinte argumento: “Com certeza, talvez eu seja assim. É como culpar a alguém por ser ruivo ou moreno”. As especulações a tal propósito parecem ter aumentado quando, em 1991, as revistas anunciaram que Cela vivia um caso amoroso com a jornalista Marina Castaño, 40 anos mais nova do que ele. Em seguida, para surpresa de todos, Cela abandonou sua casa de Palma de Mallorca, onde vivia com a primeira esposa, e passou a morar próximo de Madri com Marina. Também abriu várias polêmicas com forte repercussão na imprensa escrita e falada, a exemplo da que armou contra os homossexuais que, por ocasião do centenário de nascimento de Federico García Lorca, requeriam a inclusão de tal condição na biografia do autor de Romance Sonâmbulo. Mesmo depois de morto Cela continua sendo alvo de polêmicas e acusações, inclusive nos tribunais, como é o caso da denúncia de plágio que lhe move a escritora Carmen Formoso Lapido, que diz ter sido seu livro Carmen, Carmela, Carmiña plagiado por Cela quando este escreveu A cruz de Santo André (1994). Estes percalços, porém, não conseguirão empalidecer a validade da obra de Camilo José Cela, extraordinário exemplo de escritor voltado com tenacidade para o labor literário ao longo de toda uma vida. Além do mais, suas obras transmitem um sentimento de dramaticidade, tocado por uma estética que privilegia situações terrificantes, mas sempre atenuadas pela força consoladora do riso fraternal. Cela, sem exagero, atingiu aquela dimensão universal que faz com que um autor seja lido e admirado em todos os rincões do planeta.

Cláudio Aguiar é escritor e ensaísta

Continente Multicultural 93


HUMOR

Ivan Cabral

94 Continente Multicultural


CRÓNICA

O comprimido Florian Madruga

G

ustavo tem duas paixões: a mulher e o partido. Gabriela, gaúcha de Bento Gonçalves, criada entre os vinhedos, origem italiana, legítima, companheira fiel há quinze anos, sem rotinas, fogo abrasador, ainda. A segunda, o partido, dezessete anos de militância entre companheiros, alguns não muito fiéis, paciência. De dia Gustavo trabalha e panfleta em colégios, indústrias, faculdades, comércio. Gabriela é do lar, prendada. Especialista nas lides domésticas: as de limpeza, forno e fogão. Enfim, cama, mesa e banho. À noite, principalmente, cama, bem entendido. O partido de Gustavo exige dos companheiros muitas coisas: contribuição, dedicação, discussão, disposição e reunião. Gustavo reúne todos os ãos, participando dos colóquios diários, realizados à noite após o expediente. Excelente teórico, argumenta com propriedade qualquer tema, capaz de sustentar um debate por duas, três, quatro horas seguidas, mesmo quando o tema é a privatização da coleta de lixo ou o direito dos camelôs venderem bugigangas na porta dos shoppings. Gustavo é excelente debatedor. Estudou filosofia, entende de psicologia, leu todos os livros do príncipe dos sociólogos nacionais, ouviu longos discursos do velho caudilho gaúcho ainda na ativa e tem sérias restrições ao francês Bové, o antitransgênico. Pois bem, Gustavo trabalha, panfleta e participa, ativamente, das reuniões partidárias. Sobra pouco tempo para Gabriela, a paciente, que nunca foi traída. Ela não tem ciúmes, nem do trabalho, nem do partido, apesar de exageradas as atividades do cara-metade. Às vezes suspeita que uma hipotética companheira esteja trocando panfleto ou dialética com o seu Gugu – apelido do marido usado exclusivamente nas lides matrimoniais, debaixo dos lençóis. Quando essa dúvida caraminhola a cabecinha da Gabi - apelido que Gugu deu a sua consorte naqueles momentos ditos mais íntimos -, ela se tranca no quarto, ele dorme na sala e força humana ou divina não é capaz de fazê-la receber na alcova, leito conjugal, ringue, recanto do amor, ninho ou seja lá o

que as tribos denominem o sacrossanto espaço do prazer infinito, seu maridinho. Foi o que aconteceu naquela noite. A reunião do partido entrou madrugada adentro em calorosas discussões sobre a tarifa que os coveiros estavam pleiteando para chegar aos sete palmos os defuntos municipais. Como sempre, Gustavo foi brilhante no debate. Sua tese: de que o preço de enterro estava pela hora da morte, foi vencedora, derrotando os coveiros que queriam reajuste no mesmo índice de aumento do salário mínimo. Exausto, ao chegar em casa tarde da noite, Gustavo, no afã de aconchegar-se ao regaço farto de Gabriela, imprensou os dedos da mão na porta do carro. Contorcendo-se em dor encontrou a porta do quarto fechada, o que aumentou seu desespero. Implorou à descendente de italianos que o socorresse, que a dor era grande. Queria aliviar-se em todos os sentidos. Debalde. A gauchinha dirigiu-lhe todos os impropérios, na língua pátria e na dos antepassados. Os dedos macerados, a dor aguda, Gustavo lançava gritos de gata no cio. Gabriela compadeceu-se e, do outro lado da porta, sem nem pensar em abri-la, disparou: – Tome um superhist. O marido, humilhado pelo desprezo da mulher, correu para o pronto-socorro, a dor não dava outra alternativa. No hospital, em meio a tantos doentes, acidentados, bêbados, todos amargando horas de espera e descaso, a dor dos dedos amassados, forte e cortante, Gustavo começou a preparar, mentalmente, a tese para a discussão do dia seguinte na reunião do partido: “Companheiros, a fila do pronto-socorro é uma conseqüência da globalização e desse governo neoliberal...”, quando, de repente, apareceu um médico, com o indefectível estetoscópio pendurado no pescoço. Gustavo implorou: “Doutor...” e contou a história dos dedos presos na porta do carro. O homem de branco, sem nem olhar para a mão dolorida, receitou: – Passe na farmácia e tome superhist. De oito em oito horas, até a dor passar. Florian Madruga é jornalista

Continente Multicultural 95


ÚLTIMAS PALAVRAS

Filão da crendice

V

iva dança, lépida cantiga – repetiria Machado de Assis se vivo fosse, deparandose com a projeção do mais novo irracionalismo de milhares de pessoas que buscam na crendice esotérica dos milionários filões do mais rendoso filão da literatura o prazer da leitura, num conforto para as divagações em mistérios e ocultismos, magias ornadas de patuás e balangandãs. Enquanto vulgaridade literária, que para Afrânio Peixoto é crime, esse tipo de literatura alinha-se, agora, como categoria, aos romances e ensaios – melhor, ficção e não-ficção – na catalogação das obras publicadas e semanalmente divulgadas em listas das mais ou menos vendidas pelas principais livrarias do País, dependendo entusiasticamente dos lobbies das mais ricas e famosas editoras. Uns escrevem o que os espíritos ditam em seus ouvidos nos momentos de êxtase extracorpóreo, como Zibia Gaspareto, psicografando o seu guru Lucius e a cada dia aumentando seu império editorial, buscando no além autores famosos, segundo ela, ditando contos e romances fora dos seus respectivos estilos dantes, quando vivos. Para os que navegam nessa linha, pobre do Chico Xavier, que não enveredou por lucrar com seus direitos autorais, preferindo a humildade de Emmanuel, alimentando a fé dos desvalidos – que todos os santos protejam. No entanto, esse Paulo Coelho, sabido que só, pois nasceu há dez mil anos atrás, tornou-se uma figura dessas letras em projeção internacional, aconselhando os leitores a sentarem nas pedras, feito bestas, e chorar. É incrível, mas nos primórdios de sua loucura astrológica até que escreveu algumas boas letras – como Gita e Medo da Chuva – para os rocks inebriantes e eletrizantes do excelente Raul Seixas das revoluções culturais iniciadas no entremez da década de 60 do

século passado. Lépida cantiga que deve infernizar os tradicionalistas machadianos. Não é só nas letras que a crença virou produto de consumo. A relação é variada e consoladora para quem faz dela um robusto cofre do Patinhas. Segundo o psicólogo americano Michael Shermer, um agnóstico tal o biólogo Thomas Huxley, que só crê na ciência, seus avanços, suas soluções, é mais fácil para as pessoas acreditarem em crendices e superstições que na ciência. Por isso, se creditam os bafejadores dos programas de auto-ajuda, carreando para seus auditórios todos os que desejam ficar milionários, decorando receitas aturdidas de otimismo desvairado. Assim como as seitas e religiões universais e do reino de seus deuses espalhadas pelos quatro cantos do mundo, onde os pastores oportunistas se aproveitam de suas ovelhas lamentavelmente iletradas, surrupiando o parco dinheirinho de suas lidas. A exploração da boa fé é o maior negócio. É o culto à remoção das montanhas. Como o escritor Diogo Mainardi, resolvi aderir à sua campanha de se formar uma linha forte de conservadorismo nas academias de letras de todo o Brasil, mormente o Trianon nacional, para que a triagem de seus membros passe a ser mais rigorosa. Imaginem que o Paulo Coelho está movendo a mídia para entrar na ABL. Para mim é um insulto à capacidade de todos nós de discernirmos a boa literatura. Mas que serei uma pequena mosca em sua pretensa sopa, digo, chá, tenham certeza. Não agüento mais tanta involução e desprezo à nossa cultura. Oliveira Lima e Mário de Andrade estavam certos.

Rivaldo Paiva – escritor 96 Continente Multicultural




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.