Continente #043 - Olga

Page 1



EDITORIAL

Jaq Joner/Divulgação/Lumière

Olga, o cinema, o real e o simulacro

Cena do filme Olga, de Jayme Monjardim

A

pós a leitura da biografia de Olga Benario Prestes, de Fernando Morais, publicada em meados dos anos 80 e que rapidamente ascendeu às listas de best-sellers, muitos leitores devem ter pensado, diante da saga da ativista judiacomunista: “A vida dela parece coisa de cinema”. Nessa expressão prosaica está embutida uma curiosa inversão das relações entre o real e o simulacro, bastante recorrente nos tempos atuais, sejam eles rotulados, ou não, como pós-modernos. O cinema, como assinalou o semiólogo russo Yuri Lotman, constrói com seus signos um modelo do mundo real. Esse modelo, por sua redundância e sua força, chega a confundir o grau de discernimento entre o real e sua representação. É então que ocorre a inversão, passando a realidade a ser determinada pela ficção. Daí a percepção, quando nos deparamos com algum aspecto espetacular da realidade, de que parece “coisa de cinema”, como sucedeu com as transmissões ao vivo dos atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos.

A vida de Olga teve os ingredientes dramáticos que imediatamente o leitor contemporâneo associa à sintaxe do cinema. Nascida na Alemanha, onde se destacou desde bem jovem como ativista política, veio ao Brasil na condição de segurança do líder comunista Luís Carlos Prestes, no retorno deste de Moscou, e com ele se casou. Presa, em 1936, como o marido, pela ditadura do Estado Novo, foi entregue de mão beijada aos nazistas pelo Governo Vargas, num gesto de aproximação com Hitler. Estava, então, grávida de sua filha, Anita Leocádia. Em fevereiro de 1942 foi levada do campo de concentração, onde se encontrava, e executada na câmara de gás de Bernburg. Essa epopéia política chega no próximo mês às telas dos cinemas, com direção de Jayme Monjardim, conceituado diretor de TV que estréia em película. O filme de cores sombrias em que Olga é interpretada pela atriz Camila Morgado ocupa a matéria de capa desta edição, incluindo entrevista exclusiva com o diretor e artigo em que os fatos são analisados sob a perspectiva histórica. • Continente julho 2004


»

2

CONTEÚDO

Reprodução

Divulgação

» 08

Olga: presente de Vargas a Hitler

Retrospectiva mostra genialidade de Chagall

» 38

09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 »

CAPA

»

REGISTRO 56 Saint-Exupéry e o baobá de Natal

08 Jayme Monjardim fala sobre o seu filme Olga, mercado e revolução » »

CONVERSA

ESPECIAL 64 A arte da sedução e suas metamorfoses

18 Autor de Dicionário do Nordeste comenta linguagem

ao longo do tempo

e preconceito »

LITERATURA

»

73 A música indígena é objeto de pesquisas

24 Conrad no centro do redemunho do horror colonialista

»

»

TRADIÇÕES acadêmicas

A celebração dos 100 anos de nascimento de Neruda Flip abre com Guimarães Rosa – clássico e na moda Os 80 anos da poetisa Maria do Carmo Barreto Campello

»

ARTES

»

CONTEMPORANEIDADE 80 Barcelona reúne as culturas do mundo todo

AGENDA

38 Chagall no telhado da arte do mundo

88 Música, artes plásticas, teatro, cinema,

A inusitada arte sacra de José de Moura

eventos e livros

MÚSICA

Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br

52 Arthur Moreira Lima põe a música erudita na estrada

Continente julho 2004


3

Joan Roca de Viñals/Divulgação/Fórum Barcelona 2004

Re pr od uç ão

» 64

»

» 80 O que há por trás dos atos de sedução

Barcelona, capital mundial da cultura

54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96

Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Emoções estéticas como produto de mercado

»

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 36 O furto de obras raras ou uma patologia do Primeiro Mundo

»

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 50 Exposição dos índios ticunas revive esplendor da Arte

»

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 60 Galinha já foi comida de rico entre nós

»

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 63 Um ônibus carregado de raiva e desespero

»

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 86 Sherazade continua emendando histórias no Brasil

»

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Da direita saciada à esquerda esfaimada

Continente julho 2004


»

4

CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Altino Cadena

Julho Ano 04 | 2004

Diretor Industrial Rui Loepert

Capa:a atriz Camila Morgado,

Continente

intérprete de Olga Foto: Jaq Joner/Divulgação/Lumière

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Luiz Carlos Monteiro, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

Colaboradores desta edição: ANGELA PRYSTHON é professora da Pós-graduação em Comunicação da UFPE e doutora em Teoria Crítica e Estudos Hispânicos e Latino-Americanos pela Universidade de Nottingham, Inglaterra. DANIEL PIZA é jornalista, editor executivo de O Estado de S. Paulo, autor, entre outros, de Jornalismo Cultural (2003) e Questão de Gosto – Ensaios e Resenhas (2000). DENIS BERNARDES é historiador e professor do Departamento de Serviço Social da UFPE. FÁBIO ARAÚJO é jornalista. FELIPE PORCIÚNCULA é jornalista. FERNANDO MONTEIRO é escritor e cineasta, autor, entre outros, de O Grau Graumann, Armada América e Cabeça no Fundo do Entulho. GUILHERME AQUINO é jornalista. IVO LUCCHESI é ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) e articulista do Observatório da Imprensa (on line). LUCIANO TRIGO é jornalista e escritor. Foi editor do suplemento Prosa & Verso, de O Globo, e editor-assistente do Idéias, do JB. É autor de seis livros. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário e poeta, autor de Poemas (1999) e Vigílias (1990). PLÍNIO PALHANO é artista plástico. SUELI CAVENDISH é professora de Literatura da Língua Inglesa na Universidade de Pernambuco, ensaísta e tradutora. TÉRCIO SOLANO LOPES é jornalista fotográfico e aviador.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor geral da revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta e crítico de arte. Autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Marco Maciel – Uma História de Poder. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias e Faca.

Continente julho 2004


CARTAS

Reparação a Ivan Junqueira Rio de Janeiro, 17 de junho de 2004 Prezados Senhores, Acabo de ler na edição do nº 42 de Continente, entre incrédulo e estarrecido, o texto de um manifesto, intitulado A re-volta do Realismo, que esta Revista vem de publicar como se fosse de minha autoria. Desejo esclarecer que jamais escrevi o referido artigo, que o mesmo jamais me foi solicitado por esta publicação e que jamais autorizei a sua divulgação, pois jamais compactuei com nenhuma espécie de fraude autoral. O texto em epígrafe chegou-me às mãos por intermédio da artista plástica Áurea Domenech, crivado de erros de português e de incorreções conceituais e factuais que logo corrigi ao saber que esta senhora se empenharia em publicá-lo na imprensa. A pedido dela, apus ao mesmo, já corrigido, a minha assinatura, estritamente sob forma de apoio, por concordar com alguns pontos de vista ali expendidos contra a arte conceitual que ainda hoje contamina e envilece a produção artística nacional. E fi-lo apenas porque supus, como fui por ela induzido a crer, que outros intelectuais também o fariam, já que partilham de minha opinião a respeito do assunto. Causam-me estranheza – e até mesmo estupor – a leviandade e a desfaçatez com que agiram não apenas a Sra. Áurea Domenech, mas também esta conceituada e prestigiosa Revista, da qual sou assíduo leitor, ao estampar em suas páginas, sem que me fosse feita uma única consulta ou sequer me solicitado qualquer pedido de autorização, um texto que não escrevi e que agora se dá como meu, o que configura, de forma a um tempo cabal e despudorada, o crime de apropriação in-

Atenciosamente, Ivan Junqueira. Presidente da Academia Brasileira de Letras A Revista lamenta ter sido enganada em sua boa fé pela Sra. Áurea Domenech. Carpe Diem Sou dramaturgo e produtor cultural no Ceará e estou encaminhando às organizações civis e jurídicas um projeto de natureza desenvolvimentista em amplo aspecto, tendo como base a “arte da cena”. O artigo de Carlos Alberto Fernandes, economista e diretor da Continente, “Carpe Diem” (edição nº 38), caiu como uma luva no contexto da proposta, denominada “Projeto Teatro Imediato”. Gledson Silva, Foraleza–CE De qualquer maneira Adorei a Revista, ou melhor, amei! Moro em Curitiba e gostaria de saber como posso obtê-la. E em Nova York, só pela Internet? Gostaria de tê-la de qualquer maneira. Janaina Moraes, Curitiba–PR Joyce Meus mais efusivos parabéns pela Continente Multicultural de junho. O material sobre Joyce é o melhor que li na imprensa brasileira inteira sobre o Bloomsday. Excelentes, a coluna de Alberto da Cunha Melo e o erudito e claro artigo de Cláudia Cordeiro Reis sobre Chico Ka, de Praga. Destaco ainda o texto sobre o genial Silvério, o material sobre cinema e, last but not least, o destaque dado a dona Senhorinha Magalhães e seus cocos. Assim que sair o CD Arresponde a roda outra vez vou querer ouvir. É Pernambuco escrevivendo (viva Jomard Muniz de Britto) para o mundo mesmo. E não percam a nova obra-prima de Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque, Príncipe e Corsário, sobre dom Maurício das Holandas, a ser lançada em breve. José Nêumanne – São Paulo – SP

débita no que toca à autoria intelectual. Caso não se faça o devido e imperioso reparo à trapaça de que fui vítima, ou que a edição do nº 42 de Continente não seja de imediato retirada de circulação, antecipo que impetrarei ação judicial competente contra essa Revista por danos morais à minha pessoa e por flagrante ilícito de fraude autoral.

Universalidade Gosto muito da maneira que a Revista é formatada. Tem abordagens regionais e internacionais, dando uma grande visão do panorama artístico cultural de universalidade (cosmopolita, como Pernambuco é). Adolfo Ramos, Parnamirim–RN

redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Primeiras palavras Sou assinante da Revista Continente Multicultural e mais uma vez parabenizo todos que fazem a melhor Revista cultural do Brasil. Neste momento meus elogios se convergem para a coluna de Rivaldo Paiva, em especial o texto da edição nº40 “Que reino é esse?”, uma análise, de certa forma, política e histórica. A cada edição que recebo, suas “Últimas Palavras” são as primeiras que leio. Erinaldo Cavalcanti, Terezinha–PE O mundo em Pernambuco Senhores, há tempo deveria escrever-lhes, mas se há tempo não o fiz, ainda há tempo. A Revista Continente tem sido até aqui um dos primeiros rebentos mais que pernambucanos, uma das arrebentações contra o cais do nosso provincianismo. Em lugar daquela coisa ridícula de “Pernambuco falando para o mundo”, temos hoje o “mundo falando dentro de Pernambuco”. Porque temos uma civilização que não precisa levantar a voz. Basta falar, simplesmente. E dentre essas vozes está a palavra do nosso maior poeta vivo, o nosso Alberto da Cunha Melo. Saibam, por favor, que tem sido um bem imenso, desfrutar a Revista, o seu universalismo, com a pernambucaníssima voz de artistas e poetas como ele. Muitos anos de vida para a Continente, muitos anos de poesia e vida para nosso poeta. Urariano Mota, Olinda–PE Corbiniano Parabenizo todos que fazem essa Revista pelo excelente conteúdo e nível dos seus cronistas. Aproveito para solicitar uma matéria com o artista plástico Corbiniano Lins que completou 80 anos em março e continua em plena atividade. Flávia Amaral, via e-mail Governar é preciso Achei muito lúcido, profundamente esclarecedor, o artigo do colunista Carlos Fernandes, “Governar é Preciso”, sobre o tamanho do Estado após as ditas reformas neoliberais. Parabenizo todos vocês. Guilherme Barros, via e-mail Continente julho 2004

5

»


Anúncio


CONTRAPONTO

7

Carlos Alberto Fernandes

Caminhos são caminhos O novo capitalismo comercializa o acesso a experiências culturais

S

e você ainda tinha dúvida da importância relativa do ser sobre o ter, fique tranqüilo, pois estamos chegando a uma era em que essa supremacia tende a se concretizar sem que lhe chamem de visionário ou de sonhador. Fique certo de que uma nova visão da economia sobre as coisas estará incorporando, como produto de um novo mercado, emoções estéticas, sensações espirituais e fantasias românticas. Nesse novo espaço de potencialidades econômicas, assegurar o acesso aos vários recursos e experiências culturais que alimentam a alma das pessoas torna-se tão importante quanto manter posses. O ser, finalmente, começa a ficar, de fato, tão importante como o ter. São os primeiros sinais da era pós-industrial. Alvíssaras. Na era industrial, produzir bens é a forma mais importante da atividade econômica, assim como ter propriedades é essencial para a sobrevivência física e para o sucesso. Na era pós-industrial, que, para Daniel Bell, é a continuação em grande escala da sociedade industrial e caracteriza-se pelo predomínio numérico dos trabalhadores do setor terciário, a produção cultural está se tornando a forma mais dominante da atividade econômica. Trata-se, no fundo, de uma transformação contínua e profunda que está se processando na natureza do sistema capitalista. As mudanças que estão ocorrendo na estrutura das relações econômicas já permitem observar, por exemplo, que um comércio de ponta no futuro envolverá o marketing de um vasto arranjo de experiências culturais em vez dos tradicionais bens e serviços industriais. Nesse sentido, Jeremy Rifkin admite que viagens e o turismo global, parques e cidades temáticos, centros de lazer e entretenimento, moda, gastronomia, esportes, música, cinema, televisão e os mundos virtuais do ciberespaço estão se tornando rapidamente o centro de um novo capitalismo que comercializa o acesso a experiências culturais. Trata-se do surgimento da nova fase de um capitalismo que está transformando a cultura em mercadoria. Materializa-se um novo estágio do estilo de vida capitalista que tem conduzido cada vez mais a atividade humana para a área comercial. Antenada com esse novo espectro de oportunidades, a Espanha vem dando largos passos no sentido de ampliar suas oportunidades econômicas nesse campo. O Fórum Universal das Culturas, que acontece em Barcelona desde 09 de maio e vai até 26 de setembro deste ano, com investimentos de 300 milhões de

Rafael Vargas/Divulgação/Fórum Barcelona 2004

Esfera de 30m montada para o espetáculo Mover o Mundo (Omkarakala)

euros em infraestrutura e equipamentos, na construção de edifícios, centros de convenções e exposições, parques e praças esportivos, é o exemplo de um produto pós-industrial com expressivos impactos econômicos e sociais. Com temas centrais como a Diversidade Cultural, o Desenvolvimento Sustentável e a Paz, este Fórum é, em verdade, um megaevento de natureza mercadológica que transforma Barcelona na capital mundial da diversidade e do diálogo entre as culturas dos cinco continentes. Esperemos que a diversidade seja vista como patrimônio comum, e não como obstáculo, e o desenvolvimento sustentável seja identificado pelas necessidades de crescimento baseadas no respeito aos recursos naturais e seu aproveitamento. E que a paz seja apoiada na justiça, no respeito aos direitos humanos e às culturas locais. Ainda é nossa expectativa que a discussão das soluções possíveis para os problemas derivados do brutal processo de globalização traga os frutos esperados, não obstante a cultura ser transformada em recurso comercial e a própria vida de cada indivíduo se tornar o melhor mercado. De outra parte, pode-se dizer que, do ponto de vista cultural, o Brasil também tem muito o que mostrar e contar para o mundo. Nesse particular, nossa diversidade cultural e nosso patrimônio material e imaterial são riquíssimos. O patrimônio ambiental merece toda a atenção do mundo, considerando que ainda temos riquezas como a Amazônia e o Pantanal. Diante desse cenário, como recurso de sobrevivência econômica e social, só nos resta ingressar nos espaços possíveis da sociedade pós-industrial e também tratarmos as experiências sociais das pessoas como mercado e a própria cultura como mercadoria, pois o mal será menor, porquanto alternativa melhor não há. • Continente julho 2004


8

capa

Reprodução

»

Olga Benario aos 16 anos: militância comunista


OL GA

capa

9

O filme sobre a vida da revolucionária judia e comunista entregue a Hitler pelo Governo Vargas chega aos cinemas em agosto, marcando a estréia do diretor Jayme Monjardim Luciano Trigo

O

lga só será lançado nos cinemas no dia 20 de agosto, mas antes mesmo de estrear o filme já vem despertando algumas polêmicas. Baseado no livroreportagem do jornalista Fernando Morais, fenômeno editorial dos anos 80, o filme conta a trajetória da militante comunista Olga Benario, da infância na Alemanha à morte na câmara de gás num campo de concentração nazista, para onde foi deportada com sete meses de gravidez, passando por seu casamento com Luís Carlos Prestes. Com roteiro de Rita Buzzar e estrelado por Camila Morgado, Caco Ciocler e Fernanda Montenegro, Olga é o primeiro longa-m metragem de Jayme Monjardim, diretor de diversos sucessos da televisão, como Sinhá Moça, Roque Santeiro, Pantanal, O Clone e A Casa das Sete Mulheres. Curiosamente, esse currículo invejável vem despertando alguns preconceitos em relação ao filme, por parte de críticos que associam Monjardim a um estilo televisivo global e que, portanto, o drama de Olga corre o risco de ser despolitizado. Em vez de contestar os críticos, o diretor reage com serenidade, admitindo que não faz distinção entre a linguagem televisiva e a cinematográfica, com muitos closes, câmara frontal e planos fechados, como nas seqüências que mostram a relação de Olga com o líder da Intentona Comunista – por quem se apaixonou ao acompanhá-llo na viagem de Moscou para o Brasil, em 1934, quando fingiam ser marido e mulher, para facilitar seu disfarce. Embora Prestes já tivesse 37 anos, Olga foi sua primeira mulher. Continente julho 2004

»


»

10 capa Reprodução

Olga é levada por policiais quando anuncia que está grávida

Caco Ciocler (Prestes) e Camila Morgado (Olga) em cena do filme

– Olga é mais um filme de mercado do que um filme autoral – afirma. – Não sei qual vai ser a reação do público, mas levei anos para desenvolver meu estilo de contar uma história e não teria por que sair dele, abandonando minha linguagem. Os críticos podem dizer o que quiserem, mas eu estou interessado em contar o drama de uma mulher, e não em discutir política. Procuro mostrar o lado humano de Olga, não o lado da ativista. Não quero debater o papel de Luís Carlos Prestes na História brasileira, ele só aparece na medida em que está envolvido com Olga, num período relativamente curto de sua vida. De fato, a história de amor entre Olga e o líder comunista brasileiro, um dos eixos do filme, dura pouco mais de dois anos. Ela começa quando Olga é designada pelo Partido Comunista Russo para cuidar da segurança de Prestes, que estava exilado em Moscou desde 1931. Na viagem arriscada que fizeram juntos, passando pela Europa e Estados Unidos, Olga e Prestes se apaixonaram. Ele iria articular uma insurreição armada para instalar um governo revolucionário no país. Prestes estava acomContinente julho 2004

panhado por um pequeno grupo de experimentados revolucionários, que incluía Olga, o alemão Arthur Ernst Ewert, o americano Victor Alan Baron, o belga Léon Jules Vallée e o argentino Rodolfo Ghioldi. Ewert foi encarregado por Moscou de participar da revolução de 1935, junto com Prestes. Mesmo sendo barbaramente torturado, nada revelou sobre suas ligações. Morreu louco. A estreante Renata Jesion interpreta a mulher de Ewert, Elise, que se tornará a principal confidente de Olga na prisão, no Brasil e em Ravensbrück, onde sofre torturas. Mas é claro que o filme não despreza inteiramente o conteúdo político da vida de Olga, até porque sua militância a fez participar de diversas aventuras. Filha de uma família judia burguesa de Munique, Olga tinha somente 20 anos quando comandou, em 1928, o cinematográfico seqüestro de seu namorado e companheiro de militância na Juventude Comunista, Otto Braun, em Berlim, durante o julgamento dele. Líder da Juventude Comunista Alemã, Otto foi o primeiro companheiro de


capa 11 » Jaq Joner/Divulgação/Lumière

Reprodução

Prestes é preso meses após o levante comunista de 1935

Olga. Perseguidos, os dois fugiram juntos para Moscou, mas acabaram se afastando. Monjardim acredita que o sonho revolucionário de sua personagem permanece vivo: – Sou uma pessoa idealista, acho que todos devemos ter um ideal revolucionário dentro de nós – afirma. – Mas talvez hoje seja preciso escolher uma forma mais serena e moderna, menos radical, de ser revolucionário. Sou partidário da tese de que nada na vida deve ser extremo. Chegando ao Brasil em abril de 1935, Prestes e Olga permaneceram na clandestinidade, apesar de nessa época o nome de Prestes ser entusiasticamente aclamado nas manifestações populares promovidas pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente política de caráter antifascista que reunia diversos setores de esquerda, entre os quais os comunistas. Mas, em 1936 os dois são presos e nunca mais tornam a se ver. Monjardim lembra que começou sua carreira no cinema, participando da equipe de mais de 30 curtas, o que

muita gente esquece. Quando indagado sobre os cineastas que influenciaram a sua maneira de olhar o mundo, ele cita Roberto Rosselini e o neo-realismo italiano, pela narrativa direta e transparente, sem grandes movimentos de câmera, com a qual se identifica. Monjardim quer que a história de Olga seja a protagonista do filme, e que o trabalho de direção seja invisível: – Não tentei dar um show de direção, porque não quero que o espectador perceba a presença da câmera. Quero é que ele entre na história, e sinta a mesma emoção que se tem ao ler o livro. Eu tenho uma experiência grande em cinema, mas a experiência na televisão é importante porque, devido à grande quantidade de cenas gravadas todos os dias, ela obriga o diretor a tomar decisões rapidamente, a ter uma linha de raciocínio mais ágil. Grávida, Olga empreende uma grande luta para ter sua filha no Brasil. A cena em que ela anuncia a um grupo de repórteres que está esperando um filho de Prestes é uma das mais emocionantes do filme. Mas o governo Vargas, como uma vingança pessoal contra Prestes, se Continente julho 2004


Jaq Joner/Divulgação/Lumière

»

Cena de Olga, no campo de concentração de Ravensbrück

empenha e Olga, grávida de sete meses, é deportada para a Alemanha Nazista – um presente de Vargas para Hitler. Lá ela é levada à prisão de mulheres da Gestapo, no número 15 da Barnimstrasse. Ela teve o bebê em novembro de 1936. Leocádia, mãe de Prestes, fazia uma grande campanha na Europa pela libertação de sua nora e sua neta. Por causa disso, Olga teve permissão de permanecer com sua filha enquanto pudesse amamentá-la. Quando Anita tinha 14 meses, ela foi retirada de Olga e entregue à avó Leocádia. Em 1938, Olga foi transferida para o campo de concentração de Lichtenburg e em 1939 para Ravensbrück, o único grande campo exclusivo para mulheres. Lá Olga dava aulas para as outras presas. Em fevereiro de 1942, ela foi levada com outras 200 prisioneiras para a câmara de gás de Bernburg, onde foi executada. Embora tenha sido feito com um orçamento relativamente limitado (oito milhões de reais), Olga teve locações no Brasil, Alemanha, Rússia e Romênia, e já no trailer do filme pode-se avaliar o capricho da produção, que fez até nevar numa antiga fábrica de tecidos em Bangu, bairro da periferia no Rio de Janeiro, onde foram filmadas as cenas do campo de concentração de Ravensbruck, para onde Olga foi enviada e onde teve sua filha, Anita Leocádia – que seria resgatada pela mãe de Prestes, Leocádia Prestes, interpretada por Fernanda Montenegro. Foram usadas 40 toneladas de sal grosso para criar o efeito da neve no chão. Continente julho 2004

O cuidado de reconstituição se revela nos detalhes de época, como símbolos e cartazes de 1924 a 1942, período abordado pelo filme. Para recriar o ambiente do campo, não faltam pastores alemães, oficiais nazistas com pesadas roupas de lã e prisioneiras esqueléticas com a cabeça totalmente raspada, no calor de Bangu, com a participação de quase 200 figurantes. As cenas em que as judias são desinfetadas antes de entrarem na câmara de gás são devastadoras. De momentos assim foi feito o cotidiano amargo dos últimos dias de Olga. Por outro lado, também chamam a atenção as belas cenas da nudez alabastrina de Camila Morgado, quando Olga desvirgina Prestes. Monjardim já tinha dirigido Camila em A Casa das Sete Mulheres – durante as filmagens, ela teve que emagrecer sete quilos. Camila também precisou aprender alemão, tingir e cortar os cabelos e submeter-se a um intenso treinamento militar, aprendendo a manejar fuzis e pistolas, apesar de seu pânico de armas. Jayme Monjardim gostou da experiência de dirigir seu primeiro longa, mas dá a entender que, se o caso de amor com o cinema pode ter novos frutos, o seu verdadeiro casamento é mesmo com a televisão – até pelo enorme poder do veículo de afetar diretamente a vida das pessoas. – É claro que o cinema tem a vantagem de eternizar o seu trabalho. Um filme fica, enquanto a televisão é passageira. Mas se você pensar no alcance imediato de uma campanha anti-drogas, por exemplo, você percebe como a televisão é importante.


CAPA 13 »

Cartas do cárcere D

Reprodução

tudo que há de triste em nossa situação, posso urante mais de 50 anos, Lygia Prestes dizer que sou bem feliz; muito, muito feliz... conservou cerca de 900 cartas que E tu sabes por quê; não é verdade? Não posseu irmão Luís Carlos escreveu em nove so apertar contra o meu coração, como tu o anos de prisão, de 1936 a 1945. Em fazes, tua linda boneca; devo, então, con2000, o Arquivo Público do Rio de tentar-m me com a pequena mecha de seus Janeiro e a Faperj organizaram essa excabelos, que atravessou o oceano e que já traordinária documentação em livro, está aqui entre meus dedos. Todas as notícom apresentação, seleção e notas de cias que me dás são bem alegres. É realLygia e da historiadora Anita Leocádia mente admirável que nossa filha esteja tão Prestes, a filha de Olga que nasceu na bem. É que tu lhe dás teu próprio sangue. prisão. No ano passado, a editora Paz e (...) Quanto à minha situação, nossa Mãe, Terra lançou comercialmente a obra de 628 Anita Leocádia aos cinco anos certamente, te manda as informações possíveis. páginas, em três volumes, com o título Anos É sempre a mesma coisa: dormir, comer e andar no Tormentosos. O livro traz informações desconhecidas sobre o Cavaleiro da Esperança e revelações sobre as meu cubículo, cinco passos para diante, cinco passos para torturas morais a que foi submetido nos cárceres da dita- trás... (...). (...)Envio-tte muitos beijos para repartir com a nossa dura varguista. Prestes e Olga, embora estejam em contextos políticos querida, ensinando-aa a dizer papá, e abraço-tte de todo o distintos, vivem dois cenários de horrores. Num momen- coração, teu Karli to de conflagração mundial, quando tudo parecia irremeSó muitos anos depois de escrita, Prestes receberia a diavelmente perdido para eles, essa correspondência fica derradeira carta que Olga escrevera a ele e à filha, na noite como um exemplo de que a esperança pode desafiar o desda viagem de ônibus para Bernburg, onde ela morreu na tino. As cartas trocadas são carregadas de sentimento, cocâmara de gás. mo mostra esta pequena seleção (L.T.): Queridos: Berlim, 11/04/1937 Amanhã vou precisar de toda a minha força e de toda Carlos, meu querido. a minha vontade. Por isso, não posso pensar nas coisas Com a ajuda de nossa mãe, estou tentando fazer-tte que me torturam o coração, que são mais caras que a michegar estas linhas. Lamentavelmente só me permitem esnha própria vida. E por isso me despeço de vocês agora. crever em alemão, sendo necessário, portanto, que te conÉ totalmente impossível para mim imaginar, filha tentes com a tradução de minha carta. querida, que não voltarei a ver-tte . (...) Antes de tudo, vou Antes de tudo, quero falar-tte da nossa pequena. A fazer-tte forte. Deves andar de sandálias ou descalça, corAnita Leocádia tem agora mais de quatro meses. Ela se rer ao ar livre comigo. (...) Todas as manhãs faremos gidesenvolve muito bem. (...) Externamente ela é uma misnástica... Vês? Já volto a sonhar, como tantas noites, e estura de nós dois. Tem cabelos castanhos, tua boca e tuas queço que esta é a minha despedida. (...) mãos. É lindo vê-lla mover seus dedinhos da mesma maCarlos, querido, amado meu: terei que renunciar para neira que tu. Seus olhos são muito grandes e azuis, mas sempre a tudo de bom que me destes? Conformar-m me-iia, não tão claros como os meus, antes de um azul violeta. (...) mesmo se não pudesse ter-tte muito próximo, que teus Se for possível, escreve-m me! Podes imaginar o quanto esolhos mais uma vez me olhassem. (...) Quero que me tou inquieta de encontrar-m me inteiramente sem notícias entendam bem: preparar-m me para a morte não significa tuas e que alegria me trariam algumas linhas tuas! A peque me renda, mas sim saber fazer-llhe frente quando ela quena Anita Leocádia envia muitos beijos ao seu papai. chegue. Mas, no entanto, podem ainda acontecer tantas Eu te abraço de todo o meu coração. Tua Olga. coisas... Até o último momento manter-m me-eei firme e com vontade de viver. Agora vou dormir para ser mais forte Rio de Janeiro, 22/06/1937 amanhã. Minha pequena querida. Beijo-oos pela última vez. Olga. (...) A leitura de tuas cartas me fez feliz. Apesar de Continente julho 2004


Fotos: Reprodução/Ag. Estado

»

Getúlio Vargas: governo nos modelos de Mussolini e Hitler

O Brasil e o mundo na era dos extremos C

Olga Benario foi sacrificada no contexto da vaga mundial do totalitarismo de direita Denis Bernardes

olocar como marcos do período os anos de 1914 e 1945 não é um capricho de historiador, mas, sim, uma exigência de uma perspectiva histórica necessária para situar as grandes linhas de força que foram determinantes na configuração de parte significativa da história mundial do século 20 e, também, por inevitável conseqüência, do Brasil. Os grandes conflitos políticos, as novas ideologias, as novas sensibilidades e correntes culturais, estéticas, comportamentais, a crucial centralidade da questão social, juntamente com a questão nacional, que marcaram todo o século 20, emergiram das ruínas e destruições causadas pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ainda em pleno conflito, desaparecia a Rússia czarista, uma das maiores e mais duradouras autocracias que mantinha, em muitos aspectos, sobrevivências do Antigo Regime, substituída não por uma república de tipo ocidental, como havia sido o modelo quase geral desde a Revolução

Continente julho 2004


CAPA 15 » Francesa, mas pelo primeiro governo socialista da história mundial. A vitória da revolução socialista de outubro de 1917, mesmo que restrita a um só país, trouxe um dos elementos centrais que marcariam – à direita e à esquerda – as lutas políticas a partir de então e por largo tempo: a crise do liberalismo clássico e seu crescente enfraquecimento, até quase desaparecer do cenário político mundial, entre os anos 20 e o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Algumas datas, mesmo sendo impossível desenvolver aqui análises mais extensas sobre as mesmas, permitem perceber como ao longo do pós-guerra e em um crescendo, o liberalismo clássico vai sendo atacado, minado e, por fim, quase inteiramente derrotado em todo o Ocidente. Em 1919, Adolf Hitler (1889-1945) funda o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães e, em 1923, tenta conquistar o poder com o putsch de Munique. Seu fracasso e prisão não significaram, como todos sabem, o fim de sua carreira política. No mesmo ano de 1919, Benito Mussolini (1883-1945), um ex-militante socialista, funda na Itália os fasci di combattimento e, em 1922, chega ao poder, como primeiro-ministro, apoiado em vitória eleitoral, ainda dentro das regras da democracia vigente, mas que não tardará a destruir, com o golpe que criou, em 1925, o Estado Fascista Italiano. Em 1928, Antônio de Oliveira Salazar (1889-1970) assume o poder em Portugal, instaurando um governo

Filinto Müller, chefe da polícia política: Olga como presente à Gestapo

caracterizado pelo mesmo modelo antiliberal: supressão dos partidos políticos, censura à imprensa, instalação de uma todo-poderosa polícia política, a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado). No mesmo ano de 1928, o general Chiang Kai-Chek ocupa Pequim. Seu governo é uma versão chinesa dos regimes totalitários de direita citados acima. Em 1930, o Partido Nazista elege 107 deputados ao parlamento alemão, em 1932, são 230 os deputados nazistas eleitos, o que os faz maioria, tornando possível a ascensão de Hitler ao poder como chanceler. Tal qual Mussolini, sua ascensão ao poder deu-se por via legal, no embate eleitoral, mas não tardou a instaurar um regime de partido único, com todas as conseqüências conhecidas e sobre a base do antijudaísmo e do ideal da superioridade racial dos arianos. Em 1936, o general Francisco Franco subleva parte do exército contra a República Espanhola e, ao término da guerra civil (1939), inicia uma sanguinária e retrógrada ditadura, com grande apoio da Igreja Católica. Ainda em 1936, é a vez do próprio berço da democracia, a Grécia, acompanhar a onda totalitária de direita que avançava por toda parte. O general Ioánnis Metaxás (1871-1941) estabeleceu uma ditadura que durou até 1941. Esta lista poderia ser continuada, mas já é suficiente para percebermos uma das principais linhas de força da história política do período que se iniciou após a Primeira Guerra Mundial.

Adolf Hitler, emblema do totalitarismo Continente julho 2004


»

16 CAPA

Do lado de cá do Atlântico, o quadro não era muito diferente. Para simplificar, é mais fácil registrar quais países das Américas, na década de 1930, ainda eram consistentemente constitucionais: Canadá, Colômbia, Costa Rica, os EUA e o Uruguai. Fora desta limitada lista, todos os outros países das Américas estavam sob governos declaradamente ditatoriais ou caudilhescos. Como bem sintetizou Eric Hobsbawm: “Em resumo, o liberalismo fez uma retirada durante toda a Era da Catástrofe, movimento que se acelerou acentuadamente depois que Adolf Hitler se tornou chanceler da Alemanha em 1933. Tomando-se o mundo como um todo, havia talvez 35 ou mais governos constitucionais e eleitos em 1920 (dependendo de onde situamos algumas repúblicas latino-americanas). Até 1938, havia talvez dezessete desses Estados, em 1944 talvez doze, de um total global de 65. A tendência mundial parecia clara”. Embora cada um dos regimes autoritários de direita – e eram, como vimos, a esmagadora maioria, pois então o autoritarismo de esquerda estava restrito à União Soviética – apresentasse algumas características próprias devidas, especialmente, a fatores culturais e formação histórica, havia aspectos que eram comuns. Todos eles combateram e destruíram o liberalismo clássico e sua expressão política: a democracia representativa e a idéia de direitos e garantias individuais, com a livre manifestação do pensamento e a representação através de parlamentos eleitos dentro do jogo partidário. Todos buscaram, com mais ou menos vigor, mobilizar o conjunto da população, mas sob rígido enquadramento estatal. Todos combateram ideológica e policialmente as idéias socialistas e qualquer manifestação autônoma dos trabalhadores. Quase todos associaram o grande capital a um projeto de desenvolvimento econômico nacional e, em certos casos, expansionista. Todos montaram sofisticados aparelhos de censura política e cultural, mas também de propaganda de massa, inclusive com a utilização do rádio e do cinema, então os meios mais modernos de comunicação. Todos se basearam na idéia de um nacionalismo militante, por vezes guerreiro e expansionista, e, no caso do nazismo, anti-semita e racista. Criaram também a mitologia do chefe, do dirigente genial e iluminado, acima do bem e do mal e contra o qual toda crítica ou oposição se convertia em traição antinacional e subversiva. Todos estavam baseados na supremacia da Continente julho 2004

Massacre de Petrogrado, em 1917, às vésperas da Revolução Bolchevique: crise do liberalismo clássico

força militar e policial sobre o conjunto da população. Mas, o fator histórico que propiciou, com relativa facilidade, a expansão mundial desta onda de implantação de governos autoritários de direita foi a crise econômica iniciada em 1929, provocando milhares de falências em todo o mundo capitalista e uma legião de milhões de desempregados. Crise que minou as bases da legitimidade do liberalismo e da democracia representativa e propiciou audiência aos líderes nacionalistas de direita que prometiam ordem, crescimento econômico e emprego para milhões de homens e mulheres. O caráter mundial da crise econômica provocou igualmente a mundialização dos embates políticos, cada vez mais centralizados entre a via socialista representada pela União Soviética e a via do totalitarismo de direita, cujos modelos mais influentes eram o nazismo alemão e o fascismo italiano.


capa

17

Reprodução

Vargas – O Brasil não ficou imune nem à crise de 1929 e seus prolongamentos, nem aos agudos conflitos políticos vividos em todo o mundo, especialmente o mundo integrado ao sistema capitalista. A ascensão de Getúlio Vargas (1883-1954) ao poder, como resultado da autodenominada Revolução de 1930, expressou, no Brasil, a crise do liberalismo com o fim da república iniciada em 1889. A vitória de Vargas, contudo, não pôs fim aos conflitos que, especialmente, desde os anos de 1920, opunham diversas correntes políticas em torno do modelo de sociedade que liquidaria a então predominante economia agrário-exportadora e, ao mesmo tempo, seria capaz de enfrentar as lutas sociais, cuja expressão maior estava na questão operária. A adesão de Luís Carlos Prestes (1898-1990) ao marxismo e sua filiação ao então Partido Comunista do

Brasil deram ao mesmo uma prestigiosa liderança, tornando-o uma força política com grande base popular. Se o PCB representava a vertente socialista, com clara vinculação ao Estado soviético, o totalitarismo nazi-fascista possuía também sua versão tropical na Ação Integralista Brasileira (1932), fundada e dirigida por Plínio Salgado (1895-1975). A volta à legalidade constitucional em 1935 – cuja conquista mais duradoura foi o reconhecimento do direito das mulheres ao voto – não deu hegemonia a nenhuma das forças políticas atuantes no Brasil, nem encerrou a atração pelo modelo golpista para a conquista do poder, modelo preconizado tanto pelos comunistas quanto pelos integralistas. O fracasso do levante comunista de 1935 e do golpe integralista de 1937, além das simpatias de parte expressiva da alta cúpula militar e de outros membros das forças armadas pelo modelo autoritário vitorioso na Alemanha e na Itália, criaram as condições políticas para o golpe de 10 de novembro de 1937 que instaurou o Estado Novo (1837-1945), sob o comando de Getúlio Vargas. Até o final de 1938, mas prolongando-se com alguma ambigüidade, até o início de 1939, o Estado Novo manteve aproximação com a Alemanha nazista e com a Itália fascista, tendo feito, inclusive, vultosa compra de material bélico à Fábrica Krupp. No entanto, por incontornáveis razões geopolíticas, que incluíam negociações para a instalação de uma pesada indústria siderúrgica, o Brasil afastou-se das potências do Eixo e participou da guerra contra o mesmo, ao lado dos Estados Unidos e dos Aliados. Mas, antes disso, em um prova mais que simbólica de suas primeiras inclinações políticas, os homens que implantariam o Estado Novo entregaram, em 1936, por iniciativa própria, a judia alemã e comunista Olga Benario Prestes (1908-1942) à polícia de Hitler que a internou em um campo de concentração e, finalmente, a executou em uma câmara de gás. A derrota do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e o fim da Segunda Guerra Mundial tornaram insustentável a continuidade do Estado Novo, trazendo, também, junto com a restauração da democracia em vários países, novas polarizações políticas. Mas tudo isto é uma outra parte da história... • Continente julho 2004


» Hans Manteuffel

18 CONVERSA


CONVERSA 19 » Jornalista Fred Navarro, pernambucano radicado em São Paulo, que acaba de lançar Dicionário do Nordeste, com 5.000 verbetes, discute sotaque, preconceito e homogeneização da língua Homero Fonseca e Marco Polo

“O falar nordestino é cheio de picardia”

Ilustrações: J. Borges

FRED NAVARRO

Como foi a feitura do livro? Quando eu me mudei para São Paulo, pela segunda vez, em 1988, eu estava trabalhando na Istoé. Num dia de fechamento, mandei uma coluna de volta ao Departamento de Arte, pois ela estava troncha. Aí, foi aquela gargalhada. Todo mundo entendeu que a coluna estava torta, mas eles não usam a palavra troncha. Então ali surgiu uma luz. Eu uso muito essas expressões e cada vez que acontecia isso eu anotava numa cadernetinha, num papelzinho. Um belo dia, eu tinha uma gaveta cheia de pedaços de papel, uma caderneta de anotação, e era um material bem razoável. Então, decidi sistematizar a pesquisa. Mas não fez um trabalho acadêmico. Não. É um trabalho jornalístico de longo prazo. O grande trabalho desse livro foi checar fontes, cruzar informações, entrevistar gente na feira de Caruaru, Campina Grande, pegar cordel, ir atrás de Jota Borges, quer dizer, é um trabalho de pesquisa e ao mesmo tempo um trabalho investigativo. Durou entre seis e sete anos. A editora gostou da idéia e lançou o primeiro, Assim Falava Lampeão. Mas esse não era um trabalho acabado... Qual a diferença entre esse e aquele primeiro, além deste ter o dobro de verbetes? Em primeiro lugar, não é o volume. O outro tinha lacunas de Estados menores, como Sergipe, Piauí, e até de Estado grande, como o Maranhão. Então, eu reforcei a pesquisa e a inclusão de verbetes desses Estados. Em segundo lugar, inclui manifestações como o São João, mamulengo, papangu, maracatu. O anterior tinha poucas informações sobre isso. Pesquisei essas coisas especificamente, acrescentei citações. A editora adotou o título mercadológico, “Dicionário”. Mas ele é mais que um dicionário, é um pouco de almanaque mesmo. Continente julho 2004


»

20 CONVERSA

Depois dessa pesquisa, como você definiria o falar nordestino? O falar nordestino tem uma característica que o diferencia do falar do resto do Brasil, que é o bom humor, a picardia, a sacanagem. Tudo é motivo para gozação, tudo é motivo para brincadeira e isso é impressionante. O que mais se aproxima disso é a gíria carioca. No final desse trabalho todo, o que ficou para mim, em evidência, é que apesar da miséria, da seca, do sofrimento, da pobreza, dos políticos, esse povo não perde o élan, não perde sua vontade de viver, de brincar, de tentar fazer do dia-a-dia uma coisa mais amena. Também é impressionante a referência à terra, à natureza. Então, eu diria que é uma linguagem marcada pelo bom humor e pela relação com a natureza. Existem diversas ilhas, diversos falares pelo Brasil afora. Mas é no Nordeste onde encontramos, juntos, esse bom humor e essa ligação com a natureza.

“A permeabilização lingüística, a troca de informações, não há como fugir disso. Essas fronteiras estão acabando. Isso não empobreceu a língua portuguesa, ao contrário”

EXEMPLOS Alcatifa – carpete Atacar – amarrar cadarço, abotoar camisa Catota – meleca Góia – bituca de cigarro Mangar – zombar Maloqueiro – malandro Troncho – torto

Por falar nessa diversidade, como você, que se debruçou sobre um quase-ddialeto, encara o milagre da unidade lingüística brasileira? Essa lição eu aprendi do mestre Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro. Ele diz que essa unidade se deve a três acidentes geográficos: a Floresta Amazônica, a Cordilheira dos Andes e o Oceano Atlântico, intransponíveis militarmente. Foi uma unidade forjada geograficamente e mantida politicamente ao longo desses cinco séculos. Seu livro serve para que tipo de leitura? Para mim é como se fosse uma reportagem séria, que você poderia ler num grande jornal ou numa grande revista. Você pode abrir em qualquer página e começar a ler aleatoriamente, porque as citações e os exemplos são realmente gostosos de ler. Às vezes eu tinha cinco citações para o mesmo verbete e eu escolhia as duas mais bem humoradas, mais leves. Isso é um critério jornalístico, deixar o texto mais agradável para o leitor, mais inteligente. Se fosse um autor mais trágico, escolheria umas citações mais trágicas, mas eu gosto desse bom humor, dessa sacanagem, dessa brincadeira, é meu jeito de ser. Essas citações são a alma do livro, elas mostram os usos das palavras e das expressões no cotidiano. Não são uma coisa tirada de dicionário. Claro, eu cito Graciliano, João Cabral, Ariano Suassuna, Jorge Amado. Eu tive que ler e ouvir algo em torno de 700 livros e discos, dos quais uns 400 são citados. Eu tive que ouvir muito Caetano, Fagner , Ednardo... Aqui de Pernambuco, desde Luiz Gonzaga até Fred 04, Mestre Ambrósio, Chico Science. Então, como diz a professora Nely Carvalho, foi um critério anacrônico, tem coisas de várias épocas, e também geograficamente vasto, do sertão, do litoral. Aqui no Recife há coisas deliciosas, como “boizinha” (menina, feminização do inglês boy). Isso não tem em lugar nenhum do Brasil, não tem em Salvador, não tem no Rio de Janeiro. Outro caso curioso é muriçoca, só nordestino fala muriçoca, no resto do Brasil é pernilongo. Você deve ter percebido que muitas coisas do linguajar nordestino, sobretudo no Sertão, e que podem ser interpretadas como erradas, vêm do português arcaico. “Arre, égua!” você encontra em Gil Vicente... “Avoar” era o verbo voar em Portugal até 200 anos atrás, mas hoje em dia quem fala “avoar”, dizem que está falando errado. O professor Marcos Bagno, da UnB, que fez o prefácio do meu livro, abre a discussão do que é falar errado. Ele diz que se a pessoa se comunica ou dá a entender o que ela quer, não está falando errado, o resto é convenção. Você não vê um “arretado” em nenhum jornal. O jornalismo e a literatura são baseados em clássicos.


CONVERSA 21 A língua é um fator de identificação cultural, mas também de estigma, a partir do momento que diferencia as pessoas por suas origens distintas. Você acha que um livro como esse reforça o preconceito ou o atenua? Minha experiência pessoal é que atenua. O lançamento do livro em São Paulo teve grande receptividade, tanto em relação à mídia quanto às pessoas, que ficam admiradas com a riqueza da linguagem e seu bom humor. Pasquale Cipro Neto me disse que todos os Estados já mereciam um dicionário desse. Em São Paulo, quando recebo e-mails dos leitores, eles dizem que acham a idéia fascinante, que estão adorando, rindo muito, e eu acho que não é o riso da subjugação e, sim, da surpresa, do bom humor. Nesse sentido, eu acho que o livro quebra barreiras, abre portas, ele serve como um manual de tradução para pessoas que não tinham acesso a essas expressões deliciosas que nós usamos. A partir dos anos 60, com as redes nacionais de televisão, houve uma certa homogeneização da linguagem no país, com a predominância de determinados tipo de falar, que são os do Rio de Janeiro e São Paulo. O que você descobriu em relação a isso nesse seu trabalho? Se analisarmos com alguma severidade, mesmo antes da televisão, o rádio já cumpria esse papel de homogeneização, de padronização nacional e as principais emissoras eram fixadas em São Paulo e no Rio. Eu vejo esse fenômeno como inevitável. Você não pode criar ondas protetoras para Internet, para televisão, para rádios, para livros, para comunicação eletrônica. Então eu acho que essas coisas do Rio de Janeiro que vão bater em Cajazeiras têm até um aspecto benéfico, ampliam o vocabulário, ampliam o horizonte. A maioria dos pernambucanos e baianos que eu conheço e que mora em São Paulo, às vezes solta o seu “arretado”. Você perde um pouco, mais não perde totalmente (o sotaque). Mas eu acho ridículo uma sertaneja falar como Luana Piovani, como acho ridículo Luana Piovani tentar imitar uma sertaneja numa novela da Globo. As duas coisas são caricaturais, por mais que as emissoras treinem o pessoal para falar com sotaque, a gente sabe que fica uma coisa meio artificial e ridícula. Mas a permeabilização, a troca de informações, não há como fugir disso, nem entre Estados nem entre países. Essas fronteiras estão acabando. Quantas coisas nós temos de origem francesa, inglesa, árabe? Isso não empobreceu a língua portuguesa, ao contrário. Temos, como exemplo, alcatifa e tabica – que só se falam aqui no Nordeste – e almirante, atalaia, também palavras árabes. Quando são aprendidas e incorporadas viram contribuição, viram patrimônio lingüístico. Outro exemplo é mouse, que daqui a pouco vai ser escrito com a, aportuguesado. Eu não sou contra essa invasão, a população mostra que quando essas palavras são bemvindas, elas são incorporadas. •

Dicionário do Nordeste – Fred Navarro, Estação Liberdade, 408 páginas, R$ 36,00.

“Você não vê um ‘arretado’ em nenhum jornal. O jornalismo e a literatura são baseados em clássicos”


Anúncio


Anúncio


24 LITERATURA

Bettmann/Corbis

»

Ensaio de Luís Costa Lima faz a exegese do horror na literatura, de Fernão Mendes Pinto a García Márquez, passando pela presença obrigatória de Conrad, na perspectiva da “conduta desviante” da colonização branca Sueli Cavendish

a r u t a r e t i L A orror h o d


LITERATURA 25 »

N

o conforto de uma biblioteca universitária norte-americana – no caso a de Johns Hopkins, em Baltimore – instalada em sítio privilegiado do esplêndido campus, começa o nosso scholar, Luiz Costa Lima, a esboçar o seu O Redemunho do Horror. As palavras primeiras, registradas em “Uma Nota Pessoal”, nos fornecem as tintas com que é possível imaginar uma cena de escritura: o olhar, preso aos textos de valor inexcedível – um deles é uma tradução para o inglês do A Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto (1614) –, de repente se eleva para vislumbrar o além-campus, a desolação das cidades norte-americanas da era pós-industrial, a miséria convivendo com o fausto, um ou outro habitante a perambular por ruas quase sempre vazias, a vida parecendo cultivar-se apenas no interior das tavernas irlandesas, os famosos Irish pubs. Do contraste entre as ambiências surge o desvio que orientará o ensaio. O passeio pela dura realidade circundante faz que o olhar ajuste o ângulo e veja agora o antigo texto de Mendes Pinto mesclado às impressões causadas pelo pequeno horror local, restolho circunstancial da tritura cíclica do capitalismo. Daí enfuna as velas em demanda da cena maior, da grande cena da “experiência do horror provocado pela presença sistemática do branco em terras distantes”. Coincidência ou não, ali mesmo em Baltimore, onde vivera e morrera Edgar Allan Poe, horror e remoinho já haviam sido por ele solidamente articulados. Sem forçar demais a mão, poder-se-ia ler Uma Descida no Maelstrom, sobre o tenebroso remoinho marítimo nas costas do sombrio distrito de Lofoden, na Noruega, como uma alegoria do capital. Todavia a narrativa sinaliza que trata dos limites da linguagem. O relato dos geógrafos sobre o Maelstrom, o de Jonas Ramus citado como exemplo, “não dá a mínima idéia da magnificência e do horror do quadro”. O horror experimentado nesse vórtice, que a tudo suga e devolve em estilhaços, também se furta ao discurso ficcional, pelo qual a ele apenas se alude. Um velho marinheiro, único sobrevivente a uma descida no Maelstrom, emudecera após haver sido engolido e regurgitado incólume pelo remoinho. É incomunicável, diz o narrador do conto de Poe, o horror que lhe causa a visão do Maelstrom, quando do alto da lúgubre montanha de Helseggen, a Nublada, contempla obsessivamente o oco formado pelo furioso giro das águas. Remete ao inominável, também, a famosa exclamação de Kurtz, “O Horror! O Horror!” sussurrada do fundo da selva, em O Coração das Trevas. Tais palavras respondem em grande parte pelo fascínio do livro, sobre o qual, citado por Costa Lima, nos fala Harold Bloom: “ele tem obsedado a literatura norte-americana desde a poesia de T. S. Eliot, passando por nossos grandes romancistas dos anos de 1920 a 1940, até uma série de filmes, desde o Cidadão Kane (que substitui o projeto abandonado por Welles de filmar O Coração das Trevas) até o Apocalipse Now, de Coppola”. “Escrevi-o de olhos vendados”, diz Conrad sobre o livro que articula, numa mesma linhagem, a sua obra, a de Poe e a de Henry James. Mas é com Conrad que o horror alcança voltagem máxima e adquire, no imaginário do Ocidente, valor de enigma. Costa Lima se dispõe a enfrentá-lo, indagando da força do ato de visão que o constitui. Não sem razão o autor dedica a sua mais extensa, intensa e inspirada exegese à obra de Conrad. O Redemunho do Horror tem como ponto de partida a experiência portuguesa no Oriente. Na primeira seção, “Os Transtornos do Discurso”, os discursos historiográfico e ficcional modernos são flagrados em seu nascedouro. Os textos que se encaminham para a escrita da história são o Ásia, de João de Barros e o Década IV, de Diogo do Couto. O Peregrinação, já citado, é o incipiente texto ficcional que cotejará os precedentes. A ocasião é a de uma reflexão

Ao lado, Joseph Conrad: enigma e horror em voltagem máxima

Continente julho 2004


Reprodução/AE

A experiência do horror parece implicar uma fuga para um “fora da linguagem”, para a essência do selvagem, cuja força de atração é irresistível

Cena de Apocalipse Now, de Coppola, baseado em O Coração das Trevas, de Conrad (abaixo)

Continente julho 2004

substanciosa sobre a teoria do discurso, que expõe a dupla e perversa face do horror português: a ambição de lucro sustentada pela justificativa religiosa. Na terceira seção do livro, “A Expansão do Redemunho”, o horror migra para a América Latina, e é visto em W.H. Hudson, Alejo Carpentier e Gabriel García Márquez. A seção sobre Conrad – “A Consolidação do Redemunho” – tratará do extravio do branco que, longe das instituições controladoras, cede aos primitivos impulsos: “o horror é o afeto decorrente da conduta desviante”. Primeiro em A Loucura de Almayer (1885), o romance de estréia; em seguida, em An Outpost of Progress (1898) e O Coração das Trevas (1902), nos quais o elo entre extravio e horror se aprofunda, prosseguindo em Lord Jim (1900), Vitória (1915) e Chance (1913). Outras obras de Conrad, porém, estarão sob exame: An Outcast of the Islands (1896), The Nigger of the Narcissus (1897), The Secret Agent (1904), Nostromo (1904) e Under Western Eyes (1911). Mas desta vez verá o leitor que, sem nada perder do rigor analítico, o autor o conduzirá pela mão, ao longo das 190 páginas, nas quais brilham e reluzem as palavras de Conrad, sejam as colhidas da ficção, sejam as da biografia. O caminho é sinuoso, o deslindar da trama requer um vai-e-vem constante entre textos ficcionais e biográficos, estes extraídos de O Diário do Congo (1890), das Notas do Autor aos romances (1895-1898), da Coleção de Cartas de Joseph Conrad (1898-1916) e de Um Registro Pessoal, de 1912. Sem que explique a ficção pelos fatos é tratada com a maior gravidade, pelo crítico, a relação entre “a vida real de um autor e a sua produção ficcional”, sobre o fundo da sua concepção da mímesis como diferença – Costa Lima revela o fio da navalha sobre o qual se equilibrava Conrad: era emigrado da Polônia, para onde não poderia retornar, daí o esforço por se mostrar um súdito fiel da coroa britânica, enquanto a sua ficção expõe o colapso do etos branco no bojo da experiência colonizadora, da qual o Império Britânico detém hegemonia. A noção de etos branco, conjunto de crenças e valores ocidentais que legitimam a dominação de povos outros – a escravização do semelhante, a crueldade praticada por ambição do lucro, o horror praticado em nome do avanço da civilização – é aprofundada pelo crítico a cada passo. Desde A Loucura de Almayer, em que a superioridade étnica e técnica do ocidental ainda se sustêm como norma, até O Coração das Trevas, em que o “desvio da norma”, atingindo o seu grau máximo, se confunde com a própria norma. Aqui o etos ocidental se espatifa: “os aspectos sombrios, macabros”, da expansão do Ocidente, “chegam a ponto de tornar seu etos irrepresentável”.


É na análise do discurso, um trajeto no qual Costa Lima revisitará as suas próprias noções sobre o ficcional, entre elas a mímesis e o controle do imaginário, que o crítico descobrirá, na sutil construção conradiana, os vários matizes que assumem o extravio e a ruína do branco em solo exótico. Em A Loucura de Almayer, a dimensão trágica do branco solitário, instalado na Malásia por conta própria, visando enriquecimento rápido a fim de retornar ao país de origem. Sem a proteção das grandes companhias, é marginalizado, levado ao desvio e por fim à loucura. Há a variante do homem automatizado, mecânico, que de tal forma internalizara a norma do seu etos que em torno de si nada vê: “o rio, a floresta, toda a terra palpitante de vida eram como um grande vazio”. E há Kurtz, aquele que não se restringe aos métodos de exploração costumeira e penetra fundo no coração da selva, onde “os homens uivavam, pulavam, rodopiavam e faziam caretas”. Em um relatório enviado a um posto europeu, Kurtz defende a empresa civilizadora de forma eloqüente. Nas margens do papel, porém, escreve, à mão, “Exterminem todos os brutos!” No gesto estão figurados a anulação do etos branco e a podridão que o caracteriza. Ora pelo discurso indireto livre, ora pela obscuridade tão criticada, ora, ainda, pelos desvios do próprio texto, Conrad se defende de potenciais acusações de traição à pátria que o acolhera. A configuração Costa Lima fez uma intensa exegese do horror na Literatura formal, trazida para o proscênio, aliada à ênfase nas implicações éticas do expansionismo, interpõe o véu que impede olhares outros de verem a problemática que o move: a “sua reflexão sobre o mal está diretamenO horror advém do te articulada ao sistema econômico”. Em Uma Descida no Maelstrom, assim como em O Coração das extravio do branco, que Trevas, a experiência do horror parece implicar uma fuga para um longe das instituições “fora da linguagem”, para a essência do selvagem, cuja força de controladoras cede aos atração é irresistível justamente pelo oco que revela naquele que a primitivos impulsos procura. Ou seja, a força do ato de visão que constitui o horror se funda no vazio que atrai o olhar do sujeito humano desde as entranhas. A rota de Kurtz configura a busca vã do significado, no que Costa Lima chama de a “mortífera realidade primária” – equivalente do real lacaniano, que abandonamos desde infantes – através da renúncia ao mundo da simbolização e da representação, ao mundo da linguagem, fora do qual, já dissera Derrida, nada existe. A morte espreita a quem persegue o significado último do signo: é o que insinua, em A Carta Roubada, de E. A. Poe, a última mensagem de Dupin ao Ministro D, de fato dirigida ao leitor, ameaçandoos com o mesmo destino de Atreu e Tieste, de inominável barbárie. Mas, se de um lado aponta para os perigos do extravio do sujeito humano fora da cultura, de outro é placa de sinalização de uma ficcionalidade a não ser ultrapassada. Placa também fincada em O Coração das Trevas, na forma de “O Horror! O Horror!”. Como se a dizer, ao leitor contaminado pela vertigem interpretativa, “por aqui não passarás, ou o destino de Kurtz te será reservado”, seu valor funcional é impedir o “escape” para um “fora da ficção”, em que já não vigora o contrato entre autor e leitor, o “como se ficcional”. Costa Lima ultrapassa esse veto pelo escrutínio do discurso, da função sígnica e da história. E da difícil, conturbada e contraditória trajetória pessoal de O Redemunho do Horror: As Conrad, súdito frágil do Império Britânico e escritor engajado em denúncia. É no interior do Margens do Ocidente – Luiz Costa Lima, Editora Planeta, texto, nas margens do texto, em outros textos e, por vezes, fora do texto, que a argúcia do crítico 456 páginas, R$ 48,00. descobre a estratégia autoral que oculta e revela o segredo.

Divulgação/Editora Planeta

LITERATURA 27 »

Continente julho 2004


»

28 LITERATURA

Comemoram-se este mês os 100 anos de nascimento do poeta chileno, Prêmio Nobel de 1971, falecido em 1973, autor de uma obra prolífica, em que a experiência amorosa e a militância política se misturam Luiz Carlos Monteiro

Antônio Quintana/Arquivo Fundación Pablo Neruda

Pablo Neruda celebrado


LITERATURA 29 »

P

ablo Neruda elegeu como assuntos centrais e recorrentes de sua poesia a celebração da natureza, a experiência amorosa e a militância política. O desdobramento deste itinerário poético permitiu a realização de meia centena de livros, quase todos publicados em vida, e geralmente configurados por um excesso verbal irrefreável. A expressão poética nerudiana vai mudando, repetindo-se e entrelaçando-se ao sabor da inspiração e do momento, resultando numa grande diversidade formal e de estilos. Ele passa sem constrangimentos do soneto mais classicamente enquadrado ao verso livre ou ao poema em prosa. “Tentativa do Homem Infinito” constitui uma exceção na sua obra, com todos os versos em minúsculas e sem pontuação, trazendo a lume um Neruda circunstancialmente vanguardista. O poeta adolescente de 1919 já escrevera boa parte da versão inicial de Crepusculário, seu primeiro livro – tinha 15 anos e vivia com o pai e a madrasta em Temuco, cidade ao sul do Chile. Concluirá Crepusculário dois anos depois, estimulado pelos poentes entrevistos diariamente de uma pensão estudantil de Santiago, tornando explícita uma obsessão neo-romântica pelo mistério da morte e o imaginário da paixão. Os versos deste livro encontram ressonância imediata no próximo, Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada, cujo fascínio reside no lamento dramático e na mensagem obstinada do ser que se debate em busca de outro ser que o complemente: “Aqui te amo e em vão o horizonte te oculta./ Estou te amando ainda entre estas coisas frias./ Às vezes seguem meus beijos nesses barcos silenciosos/ que correm pelo mar até onde não chegam”. Vinte Poemas de Amor é um dos livros mais conhecidos de Neruda, sendo seu êxito editorial comparável apenas às memórias de Confesso que Vivi, publicadas em 1974, um ano após a sua morte. Na biografia “autorizada” escrita pela chilena Margarita Aguirre, Gênio e Figura de Pablo Neruda (1964), um trecho mostra o desempenho público dos Vinte Poemas entre a juventude da época: “Não há adolescente de fala espanhola, seja qual for o meio a que pertença, que não o conheça. De seus poemas foram feitas canções e até boleros de moda”. No Brasil, sua poesia começou a ser divulgada nos anos 40, a partir da ligação partidária mantida com Prestes e Jorge Amado. Teve outros amigos brasileiros como Vinicius de Morais e Manuel Bandeira. Segundo testemunho do cronista Fernando Sabino, o poeta “Paulo Mendes Campos veio ao Rio especialmente para conhecê-lo e acabou ficando. Desde cedo havíamos aprendido a admirá-lo, recitando seus poemas pelas ruas de Belo Horizonte”. Neruda influenciou a poesia engajada de muitos poetas locais, a exemplo de Ferreira Gullar, Thiago de Mello e Moacyr Félix. O próprio Drummond, num poema de A Rosa do Povo, ao convocar os poetas incorporados ao seu “fatal lado esquerdo”, solicita ao chileno que lhe dê “sua gravata chamejante”. Toda a sua poesia inicial concentra e prepara a poesia inventiva de Residência na Terra (1933), considerado por muitos críticos seu melhor trabalho. Uma viagem consular ao Oriente entre 1927 e 1932 terminou contribuindo para o tom agônico que perpassa neste primeiro Residência, com a solidão inigualável de quem não falava as línguas e dialetos dos países asiáticos. A inovação expressional efetiva-se através dos toques surrealistas antecipadores e de uma notória unidade interna que o caracteriza. Um trecho do poema “Unidade” é representativo da dicção sombria e hermética que informa este livro: “Me rodeia uma mesma coisa, um só movimento:/ o peso do mineral, a luz da

Continente julho 2004


»

30 LITERATURA

pele,/ agarram-se ao som da palavra noite:/ a tinta do trigo, do marfim e do pranto,/ as coisas de couro, de madeira e de algodão,/ envelhecidas, destecidas e uniformes,/ se unem em torno de mim como paredes”. Da morte da mãe, quando ele contava apenas um mês de idade, passando pela pobreza da infância e juventude, e chegando ao outro extremo com as atividades de diplomata e senador, os prêmios internacionais como o Nobel, além da indicação à presidência do Chile, Pablo Neruda, batizado Ricardo Neftalí Reyes Basoalto percorreu um roteiro existencial atribulado. Em muitos momentos de sua vida conviveu com o perigo e a hostilidade, em mistura com a glória e o reconhecimento de povos e países. Em Madri, o poeta Juan Ramón Jiménez fez-lhe oposição pessoal tão acirrada, e talvez gratuita, que outros poetas espanhóis levantaram-se em sua defesa, entre eles García Lorca, Rafael Alberti, Luis Cernuda e Jorge Guillén. Editaram, como desagravo, os Três Cantos Materiais – incluídos no segundo Residência – com um manifesto de apoio à sua poesia e à sua estadia no país, na condição de cônsul chileno. Na Terceira Residência passa a utilizar o verso como “arma de combate”. O poema-livro Espanha no Coração (1937) é um divisor de águas na sua obra, ao veicular uma posição social e radicalmente empenhada. Motivado pelo assassinato de Lorca e os bombardeios da Guerra Civil Espanhola, escreve versos panfletários e indignados: “E naquela manhã tudo estava ardendo,/ naquela manhã as fogueiras/ saíam da terra/ devorando seres,/ e desde então tudo era fogo,/ tudo era pólvora desde então,/ e desde então tudo

era sangue.// Bandidos com aviões e mouros,/ bandidos com duquesas e anéis,/ bandidos com frades negros abençoando/ vinham pelo céu a matar as crianças,/ e pelas ruas o sangue das crianças/ corria simplesmente, como sangue de crianças”. O Canto Geral é o seu livro de maior ressonância política e social. O projeto original era mais modesto – intitulava-se Canto Geral do Chile e chegou a ser publicado nas Poesias Completas (1951), pela Editorial Losada de Buenos Aires, que ainda hoje edita suas obras. O homem comum – inicialmente chileno, depois latino-americano e universal – é conduzido ao centro e à raiz do universo poético nerudiano. Há um engajamento e uma entrega total do poeta à causa das esquerdas. Foi escrito na clandestinidade, quando ele sofria perseguições da polícia chilena, acionada pelo presidente Gonzáles Videla, ex-aliado político. Ao lado de uma exaltação fervorosa da natureza e das origens da terra americana, podem ser encontrados equívocos ideológicos gritantes, como o elogio do stalinismo e de um comunismo tosco, burocrático e nefasto que sustentava essa tendência. No entanto, a experiência pessoal do poeta fugitivo dentro de seu próprio país é comovente e marcante. Um dos 15 cantos chama-se exatamente “O fugitivo”, onde destacam-se versos de luta e esperança como estes: “Não me sinto só na noite,/ na escuridão da terra./ Sou povo, povo inumerável./ Tenho em minha voz a força pura/ para atravessar o silêncio/ e germinar nas trevas./ Morte, martírio, sombra, gelo,/ cobrem de repente a semente./ E o povo parece enterrado./ Mas o milho volta à terra./ Atraves-

O desdobramento deste itinerário poético permitiu a realização de meia centena de livros, quase todos publicados em vida, e geralmente configurados por um excesso verbal irrefreável

Continente julho 2004


LITERATURA 31 »

Arquivo Fundación Pablo Neruda

Vinicius e Neruda em Congonhas, Minas Gerais, 1968

saram o silêncio/ suas implacáveis mãos vermelhas./ Da morte renascemos”. No discurso de recepção do prêmio Nobel, ele relata a aventura que foi atravessar as “regiões inacessíveis” da cordilheira dos Andes a cavalo, escoltado por quatro companheiros, para chegar à vizinha Argentina. Para Matilde Urrutia, sua última mulher, escreveu Cem Sonetos de Amor e Os Versos do Capitão, retomando o lirismo amoroso, agora sem a angústia, a melancolia e o desespero solitário dos “Vinte Poemas”. Na tentativa de alcançar a própria transformação como poeta, partindo da cegueira, do tateio e da busca dos primeiros versos, ensaia uma definição para seu ofício no Memorial de Isla Negra: “E eu, mínimo ser,/ ébrio do grande vazio/ constelado,/ à imagem e semelhança/ do mistério,/ me senti parte pura/ do abismo,/ rodei com as estrelas,/ meu coração se desatou no vento”. O seu objetivo vital e necessário era a abertura individual à experiência do mundo e à totalidade da vida,

em comunhão sincera e solidária com os outros seres e o universo. Mostra-se, neste passo, temporariamente destituído da vaidade e dos laivos de autopromoção que tanto o estigmatizaram. E isto coincide com a ambição do escrever de modo simples e inteligível, entrevista em diversos poemas das Odes Elementares: “Dai-me para minha vida/ todas as vidas,/ dai-me toda a dor/ de todo o mundo,/ e posso transformá-la/ em esperança”. Mesmo em face das numerosas críticas e ataques recebidos, o poeta solene e compenetrado dos últimos tempos não mudara seu pensamento revolucionário. Não hesitava em aderir aos ditames e exigências da luta partidária. Por outro lado, continuava a transitar, embora com certas oscilações na qualidade poética, entre os temas iniciais e definidores de sua poesia, que sempre guardaram fortes ligações à lírica de tradição espanhola e americana. Continente julho 2004


32 LITERATURA

Leo Martins

»

Baile de palavras Guimarães Rosa, sob os refletores em Paraty, é um verdadeiro clássico não só por causa de sua criatividade lingüística, mas também por sua ambição humanista Daniel Piza Continente julho 2004


LITERATURA 33 »

J

oão Guimarães Rosa (1908-1967), como todo clássico de verdade, nunca sai de moda, mas há no momento uma moda Guimarães Rosa no Brasil e isso é evidentemente bom. CDs como o de Maria Bethania, Brasileirinho, documentários como o de Angélica Nery, Livro para Manuelzão, livro de ensaio como o de Marly Fantini (Ateliê/ Senac), livros infantis, palestra de abertura na Feira Literária de Paraty por Davi Arrigucci – são muitos, enfim, os “remembramentos” de seu nome, com boa qualidade média. Pouco a pouco, como resultado, a imagem de um autor difícil vai caindo por terra – o que, de resto, é comprovado pelo fato de que sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas, está na vigésima edição – e dando lugar a um homem apaixonado por seu idioma, pelas paisagens e personagens de sua terra, pelo mundo todo ao redor, capaz de olhar a dor e o encantamento da vida. O toque de Rosa é mágico. Eu me lembro de uma vez, ainda adolescente, em que estava passando uma semana no Grande Hotel de Araxá (MG) e, entre um descanso nas termas e um passeio de bicicleta, ia com freqüência à boa biblioteca do hotel (foi quando li Gogol pela primeira vez) e no caminho sempre via um senhor com um livro volumoso nas mãos, sentado numa poltrona do corredor. Era o Grande Sertão. A cada dia que eu passava, ele já tinha lido várias dezenas de páginas a mais, num ritmo de alta concentração. No fim de semana, terminou. Ele nem nos ouvia, absorto nas mais de 600 páginas, e deve ter sentido uma tristeza ao término. Rosa é assim: se você se acostuma, não quer mais abandonar e fica sonhando com o livro enquanto não está com ele em mãos. E isso não só por causa de sua criatividade lingüística, mas também por sua ambição humanista, a grandeza de sua visão da natureza complexa do ser humano. As discussões sobre o pensamento filosófico de Rosa, por assim dizer, não devem ser levadas a ferro e fogo. Ele é um metafísico, sim (“Tudo é a ponta de um mistério”, “É possível pensar além da lógica” etc.), mas de um tipo heterodoxo, não idealista, não otimista – um tipo que não crê num sistema que nos tire daqui nem nada. Como na física quântica, Rosa sabia que o infinito é parte da própria matéria, e então o que nos cabe é “normalizar” essa perturbação, readequando continuamente o que não sabemos ao que sabemos. A “sonata do absoluto” mencionada pelo cético Machado de Assis – cujo “ver claro e quieto” era admirado por Rosa – é apenas uma tentação no horizonte, a prometer aos homens as conciliações harmônicas entre contrários. A prometer Diadorim, misto de guerreiro e mulher que tira o foco de Riobaldo, o Urutu Branco, jagunço letrado dono do tiro mais preciso do sertão. O que importa é ver o resultado dos conceitos de Rosa na sua arte, na formulação de suas personagens e tramas, no seu trato com o idioma, no desenho de seus cenários. Entre regional e universal, Rosa se dizia um “homem do Sertão” – e logo acrescentava que o era à maneira de Goethe, Dostoievski e outros “fabulistas”. Isso significava que era um homem plenamente consciente da solidão inelutável da condição humana (“Sertão é o sozinho”, “Sertão: é dentro da gente”), interessado em ver seu enredamento na rede de mitos e símbolos que faz parte da vida como os atos e os fatos. Em uma fábula sertanista o final nunca é edificante; o que importa é a travessia, não a chegada. Pouco se nota, por exemplo, que no Grande Sertão há uma situação trágica tal como no teatro grego antigo: Riobaldo, como Édipo, não sabe a verdade por trás de seu amor (Diadorim, ou Reinaldo, é mulher disfarçada de homem) e Diadorim é obrigada a não viver seu amor por Riobaldo porque tem Continente julho 2004


34 LITERATURA

A Festa do Livro em Paraty Walter Craveiro/Divulgação

»

A

2ª Flip – Festa Literária Internacional de Paraty (RJ), de 7 a 11 de julho, começará com palestra e show musical dedicado a Guimarães Rosa e terminará, fazendo jus ao nome, com uma espécie de happening em que os escritores Paul Auster, Margaret Atwood, Martin Amis, Pierre Michon, Miguel Souza Tavares, Milton Hatoun e Joce Reiners Terron falarão sobre seus livros de devoção. O evento, em sua segunda edição, tem caráter celebrativo e reunirá 39 autores, entre os quais o angolano José Eduardo Agualusa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Lígia Fagundes Telles, João Ubaldo Ribeiro, Moacyr Scliar, Ziraldo, Luís Vilela, Sérgio Sant’Anna, Raimundo Carrero e Luís Fernando Veríssimo, além dos já citados. Eles participam de debates, leituras e noites de autógrafos. O cardápio vai de uma travessia para o mundo rosiano, a cargo do crítico Davi Arrigucci Jr., às caras novas da literatura urbana brasileira, como Marcelino Freire e Daniel Galera, passando por sátira política, pelas verdades tropicais nas relações Brasil-África, pela História como inspiração, até o humor, o cânone literário e as vozes femininas que vocalizam angústias e vivências dentro e fora do Brasil, como Rosa Montero, Isabel Fonseca, Adriana Lisboa e Geneviève Brisac. Informações (programação, ingressos e hospedagens): www.flip.org.br

Continente julho 2004

um dever a cumprir (vingar seu pai). Riobaldo pode até aprender com essa travessia, mas aprende tarde. Não que em Rosa não se possa ler o drama local, uma interpretação de um lugar e tempo específicos, o Sertão mineiro, o interior profundo do Brasil; seu mergulho na prosódia e no imaginário da região, naturalmente, é um dos aspectos mais prodigiosos do livro. Mesmo em contos mais “abstratos” – de personagens sem nome e lugares sem descrição – como o famoso “A Terceira Margem do Rio”, há uma questão envolvida que pode ser dita brasileira, embora não exclusivamente: é a questão do afeto, o dilema entre ficar e partir, entre dar continuidade ao trabalho do pai ou ir embora atrás de sua história individual. Essa é uma divisão sofrida por sertanejos e também por brasileiros em geral, que sentem a força do carinho familiar e dela mal se desprendem, mesmo que a centenas de quilômetros de distância, tal como o embaixador Rosa correndo mundo sem tirar o Brasil de sua cabeça. Em Rosa a “indizível brasilidade” é uma música que também não desaparece do ar. Mas Rosa é uma lição para todos aqueles que ainda acreditam ter de optar entre ser filho de sua terra e ser cidadão do mundo. Seu olhar se detém sempre a meio caminho, encarando as dicotomias (di-adorim) em toda sua complexidade, não como confortáveis meios-termos – tal como em Machado. Apenas Rosa vê ali também a oportunidade do movimento, o endereço da inquietude que é sempre preferível à paralisia. Vê até mesmo a possibilidade da redescoberta dos primeiros prazeres, o refazer do contato com aqueles instantes da infância em que tudo pareceu iluminado e limpo como o mundo visto por Miguilim depois de pôr os óculos. Não se engane, porém: essa chance de encantamento retroativo, essa saudade tão brasileira e tão humana (Proust e sua Madeleine) não oferece resgate da transcendência, não traz uma redenção para o viver perigoso e doloroso – é apenas uma confirmação de que tudo se move, de que a existência é mais que aparência e jogo. Rosa, como Heráclito, dizia gostar de rios, símbolo simultâneo de eternidade e movimento, de que nada é fixo e tampouco raso. Por fora, dizia ele, os rios parecem simples, fluidos, lineares, mas por debaixo são cheios de camadas foscas, de acontecimentos profusos. Sua linguagem tem a mesma função: parecem correr na sonoridade de seu quasedialeto, mas têm pedras e desvios surpreendentes, adensamentos, torvelinhos, uma diversidade de efeitos e acidentes, para não falar das muitas reticências... Cada palavra é pensada, pesada, reescrita, ao mesmo tempo o andamento é vigoroso, musical, como palavras que bailam pois “o diabo é sem parar” e há que driblá-lo. O texto de Rosa é como o Brasil que ele vê e o mundo que ele vê: a um tempo complexo e singelo, repleto de solidões ligadas.


35

Poesia permanente Maria do Carmo Barreto Campello de Melo, que completa, este mês, 80 anos, tem lugar garantido na nossa poética contemporânea

Fotos: Divulgação

A poesia escrita pelas mulheres conta, na atualidade brasileira, com uma voz diferenciada e discreta, mas de rara eficácia poética. Nascida no Recife (21 de julho de 1924), Maria do Carmo Barreto Campello de Melo começou a afirmar-se como poetisa já na década de 1960. Ela soma à corajosa extensão de seu nome a longevidade da vida e a consolidação de uma obra que parece ter sido elaborada em plena maturidade, podendo figurar sem favor ao lado de renomadas poetisas brasileiras, a exemplo de Adélia Prado, Hilda Hilst, Cora Coralina ou Olga Savary. Publicou vários livros, alguns em edição nacional, mesmo sabendo que publicar poesia não traz a fama fácil de outros segmentos da literatura e da arte. No entanto, uma obra para ser conhecida deve obviamente ser editada, pois não vive por si só, ainda que seus signos estejam agrupados de forma a justificarem um sentido e uma função poética. Escrevendo sobre O Tempo Reinventado (1972), quarto “momento” – como ela chama os livros da série Música do Silêncio –, Joaquim Cardozo afirmou ser a “poética de Maria do Carmo válida e perfeita, um pouco personalista, no bom sentido é verdade, mas com uma grande capacidade de evoluir, de se libertar de uma forma interna dada, para alcançar um campo mais independente e inovador”. Verdevida: o Tempo Simultâneo (1976) é um ponto de inflexão na sua obra, reunindo um livro inédito e quatro publicados, todos da coleção Música do Silêncio. O que faz dele um livro simétrico, referencial e indispensável na compreensão dessa obra até agora. O tom angustiado que permeia os poemas perfaz-se sob as malhas de um intimismo autodevorador e entrecerrado. Sua poesia também não guarda conteúdos ideológicos explícitos, sendo trabalhada mais num clima de neutralidade e distanciamento. Em compensação, os poemas demonstram, com freqüência, uma elaboração formal extremamente cuidadosa. Guardando fortes sentimentos de religiosidade, Maria do Carmo Barreto raramente ultrapassa seu eu indagativo e transcendente. Isto acontece apenas quando se volta para o mundo externo das ruas e do cotidiano, da própria família e dos amigos. Pode dizer, por exemplo, nestes versos da antologia Partitura sem Som (1983), que “Os transeuntes/ não sentem sua própria transitoriedade./ A carne perecível e frágil passeia/ entre os edifícios tranqüilos/ e sólidos que se erguem e bebem o azul/ no alto”. Seu livro mais recente, A Consoada (2003), resulta de uma coletânea que resume o subjetivismo inicial e a circunstancialidade mais recente, configurando uma poética que tem garantida a sua permanência. (Luiz Carlos Monteiro) • Continente julho 2004


»

36 MARCO

ZERO

Alberto da Cunha Melo

Obra rara e poder ordinário “Nenhum livro é tão ruim que, sob algum aspecto, não tenha utilidade.” Plínio, o moço. (S.23-79)

A

civilização burguesa chegou, enfim, ao Brasil. Descobriu-se, em São Paulo, uma quadrilha especializada no furto de obras raras. Para começo de conversa, obra rara é aquilo que a administração de um acervo documental considera obra rara. Algo como o conceito de conto atribuído a, se não me engano, Mario de Andrade: conto é aquilo que a gente chama de conto. Anedotário à parte, embora haja critérios que incluam características particulares nos acervos bem organizados de livros, folhetos e periódicos raros, alguns atributos são universais e nada mais são que a epifania do bom-senso, no qual repousa 90% da sabedoria humana. Em toda parte, estarão dentro do conceito de obras raras os incunábulos, livros publicados até 1500, isto é, no tempo em que Gutemberg descobriu os tipos móveis, Continente julho 2004

quase 400 anos depois dos chineses. Outro atributo contemplado são as primeiras edições de autores nacionais consagrados (meus quinze livros estão todos na primeira edição, mas, como não sou consagrado, eles poderão tornar-se obras velhas – como eu próprio – que nada têm a ver, ou só em casos especiais, com as obras raras). Outras características são valorizadas, como edições de luxo fora do comércio e “obra científica de personalidade de projeção pública, literária ou científica”. Bem, não vou listar os 14 critérios para a classificação de obra rara, que tenho aqui, comigo, para não chatear meus milhões de leitores brasileiros mais preocupados em preservar uma obra raríssima, que é sua vida, cada dia mais ameaçada nas ruas neoliberais do Brasil atual. Como eu ia dizendo, e enfiei no meio uma comprida digressão, o Brasil ainda não erradicou o analfabetismo,


MARCO ZERO 37

o desemprego, a fome, o trabalho escravo, o trabalho infantil, a burocracia dolosa, a corrupção na administração pública, a criminosa concentração de renda, a devastação das florestas, mas já possui um ilustre traço cultural do Primeiro Mundo: o furto de obras raras, peças do tesouro documental de um país. E, o que é mais interessante: a quadrilha comandada pelo estudante de biblioteconomia Laéssio Rodrigues de Oliveira parece ser autóctone, não é possivelmente um grupo terceirizado de alguma quadrilha européia. Ela agia há muito tempo e seu chefe só foi preso (os outros três cúmplices até agora estão soltos) porque “marcou bobeira”, vendeu a um antiquário o livro História Natural do Brasil, em latim, escrito por um tal de Guilherme Pison e publicado em 1648, por míseros dois mil reais, quando sua cotação no mercado internacional é de R$150 mil. O órgão saqueado, o Museu Nacional, no Rio, divulgou pela imprensa o desaparecimento de 24 obras raras, e o antiquário que comprou aquela obra, com medo, levou a polícia até a casa do estudante. Outra relíquia, furtada entre as demais, foi “uma obra em latim de Hans Staden, de 1592”, disse imprecisamente a administração do Museu. Depois do alvoroço provocado pelo desfalque de preciosidades do Museu Nacional, começaram a chegar àquela entidade, pelo correio, com nome falso dos remetentes, alguns livros furtados. A quadrilha, marinheira de primeira viagem, negociou seus furtos, não somente com bibliófilos particulares, mas com antiquários, um dos primeiros suspeitos a serem visitados pela polícia, em casos similares. A valiosa divulgação da ocorrência, pelos meios de comunicação, fez surgir aqui e ali outros acervos também visitados pelos larápios, como o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (74 obras furtadas), o Ministério das Relações Exteriores, Rio (150 mapas e 500 fotos dos séculos 17 e 18, avaliados em seis milhões de reais) e a Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo (número não especificado de fotos históricas). Pelo tipo das peças vê-se que não apenas livros, folhetos e periódicos compõem os acervos de obras raras, pois algumas entidades estendem o conceito até fotos, documentos, mapas, e por aí vai. O poder público no Brasil não vem atribuindo qualquer prioridade ao trabalho de preservação de seus bens naturais e culturais. O mais insignificante país europeu

ganha, nesse particular, de 10 a zero para o nosso país. Temos a elite econômica mais mesquinha e egoísta do mundo, e os políticos são patrocinados por essa laia, pelo menos os que sempre vêm dando a decisão final. Já perdemos 16% de nossa Floresta Amazônica e 93% de nossa Mata Atlântica. Os governos gastam quase nada com a fiscalização e os legisladores parecem ser um bando de grileiros, pois as multas por desmatamento são tão baixas que vale a pena desmatar. Se isso é verdade para os bens naturais, que são, pelo menos compreensíveis para a corja de insensíveis que dirigem nossos destinos, torna-se uma calamidade quando se trata dos chamados bens culturais. Basta dizer que a direção do Museu Nacional há dois anos vem suplicando ao MEC recursos para melhorar a sua segurança e infra-estrutura, e só depois da divulgação do furto é que, temendo o clamor da opinião pública, aquele Ministério soltou uns trocados para aquela importante entidade, que já está se tornando, também, um abrigo para bens naturais, pois uma coruja já mora numa parte em ruína do prédio, comendo ratos e morcegos, fazendo faxina. Felizmente, a mídia fez um grande estardalhaço com o que aconteceu no Museu. A estas horas, todas as administrações de acervos de obras raras devem estar fazendo inventários para saber se houve saques. Bibliotecas públicas, fundações, institutos, câmaras, assembléias legislativas, e órgãos similares da iniciativa privada que guardam tesouros documentais precisam pressionar as instâncias superiores para que invistam na segurança, antes que seja tarde. Eu costumo chamar o setor de obras raras “o cofre” das bibliotecas. O que nos causa, como brasileiros, desalento e vergonha é que obras frágeis materialmente e fáceis de furtar, há séculos preservadas por mosteiros e outros tipos de colecionadores, sejam manuseadas diariamente por pesquisadores de verdade ou ladrões neles disfarçados. Todo esse tesouro só deveria ser consultado através de microfilmes, como nos países alfabetizados. Mas isso, eu sei, vai demorar muito, pelo menos enquanto o governo federal continuar a utilizar o superavit e os cortes nas verbas sociais para engordar, mais suspeitosamente, os gordos balanços dos especuladores e banqueiros globalizados. • Continente julho 2004


»

38

ARTES

São 140 obras do pintor em exibição que preenchem todo o arco de tempo da sua principal produção artística Guilherme Aquino, de Turim (Itália)

Uma exposição de sonhos Continente julho 2004


39

Imagens: Reprodução

ARTES

A Quermesse, 1908, óleo sobre tela, um dos primeiros quadros do pintor, já prefigurando alguns temas recorrentes em sua obra Na outra página, o artista russo

U

m pintor russo posa para uma câmera fotográfica dentro do seu atelier, em uma ilha. Ao fundo está a janela aberta revelando um gigantesco arranha-céu. O artista é Marc Chagall, a ilha é de Manhattan, o prédio se chama Empire State Building. Do vilarejo de Vitbesk, na Rússia, até a metrópole de Nova York, nos Estados Unidos, Marc Chagall fez uma longa viagem. A sua jornada terminaria na França mediterrânea. O retrato funciona como um elo entre a exposição curada pelo próprio pintor, em 1953, no Palazzo Madama, em Turim, e a atual, na mesma cidade italiana, na Galeria de Arte Moderna. A fotografia é a primeira imagem antes da apresentação das obras do artista. Meio século atrás, Marc Chagall realizou a mostra que marcava o seu retorno à Europa, depois do exílio na América. Hoje, foi a neta Meret Meyer, responsável pelo Comitê Chagall, a organizar a exposição junto com Jean-Michel Foray, diretor do Museu Chagall de Nice, e Alan Crump, crítico de arte. São 140 obras do pintor em exibição que preenchem todo o arco de tempo da sua principal produção artística. Elas são provenientes de coleções privadas, da família e de museus franceses, italianos, Continente julho 2004

»


Âť

40

ARTES

Continente julho 2004


Imagens: Reprodução

ARTES

41

O Soldado Bebe, 1912, óleo sobre tela Na outra página, O Violinista Verde, 1918, óleo sobre tela

A exposição permite ao visitante acompanhar, passo a passo, a evolução técnica de Marc Chagall no decorrer de toda a sua carreira suíços, alemães e russos. “A mostra começa com os desenhos do meu avô, feitos entre 1907 e 1910 em nanquim sobre papel”, disse Meret Meyer. Um deles mostra toda a família Chagall em pé e o artista se preparando para retratá-la. A exposição permite ao visitante acompanhar, passo a passo, a evolução técnica de Marc Chagall no decorrer de toda a sua carreira. Chagall atravessou revoluções políticas e de costumes, vivenciou duas guerras mundiais, presenciou de perto o nascimento e a morte de importantes movimentos artísticos. E, de uma forma ou de outra, suas telas incorporaram as conseqüências e as influências provocadas pelos grandes eventos. “Por trás daquelas cores vivas, como o vermelho, o azul cobalto, o amarelo, em muitos casos, existia a tentativa de camuflar uma mensagem angustiante. A cabeça verde de um asno pode se tornar um espectro do stalinismo, do nazismo que ameaçava o seu vilarejo”, disse Meret Meyer durante a abertura da exposição. Marc Chagall tinha origem hebraica. As suas referências religiosas e geográficas sempre se manifestaram nos quadros. As lembranças do pequeno povoado de Vitbesk, na fronteira com a Polônia, foram importantes elementos de inspiração de suas obras do início ao fim. Figuras e representações esparsas aqui e ali, circundando o centro das telas, quando não as ocupando por inteiro, decodificam este “cordão pictórico” que o liga às suas raízes. “Nas suas obras, Chagall revela toda a ambivalência de pintar o mundo de origem e aquele mundo moderno em que vivia”, diz diretora da mostra, Claudia Beltramo Ceppi Zevi. Continente julho 2004

»


À esquerda, A Mulher de Cara Azul, 1932-1960, óleo sobre tela Acima, Minha Mãe, 1914, crayon sobre papel

Mas, como para todo jovem pintor de qualquer época, o vilarejo é pequeno demais para tanta fantasia e curiosidade. Incentivado pela mãe, Chagall, o filho mais velho de seis irmãos, vai viver em São Petersburgo onde se inscreve na Escola Imperial de Belas Artes, aos 20 anos de idade. Em 1910, o artista viaja para Paris, à custa de um mecenas. Na capital francesa, o jovem Chagall vive em Ruche, e conhece Apollinaire, Cendrars, Delaunay e Léger. O encontro com a vanguarda européia e com o Cubismo de Picasso dura até 1914, quando ele expõe sozinho, pela primeira vez, em Berlim. O mundo entra em guerra. Chagall retorna à sua cidade natal e se casa com Bella Rosenfeld. A primeira temporada na França lhe abriu os horizontes. Impregnado pelo Cubismo, o pintor encontra uma Rússia imersa na atmosfera criada pelo Abstracionismo, em meio à Revolução Bolchevique em curso. Em 1917, ele pinta A Aparição, uma obra que expõe a influencia do Cubismo e, em 1914, realiza O Judeu Vermelho, uma obra quase expressionista. Mas seria uma pintura criada um ano antes que marcaria o seu estilo. Vista da Janela de Zaolchie, de 1915, revela toda perspectiva poética do artista. Por isso o quadro ganha um lugar de destaque na exposição de Turim. A obra mostra uma paisagem do ponto de vista de quem está atrás de uma janela. O toque de maestria e sensibilidade de Chagall impede o espectador de perceber onde começa o cenário exterior e termina a esquadria. A fusão do espaço de fora com o interior se transforma numa metáfora – marca registrada das suas obras. A fantasia começa onde termina a realidade, e vice versa. A queda desta fronteira, deste muro invisível, foi determinante para o artista. Marc Chagall apontou seu pincéis para uma estrada raramente explorada no passado: a criação e a representação de imagens de sonho. Não por acaso, Os Meus Sonhos, de 1907, é a obra que abre a exposição. Além da Vista da Janela de Zaolchie, os quadros O Passeio, do Museu do Estado, em São Petersburgo, e Por Cima da Cidade, do State Tretiakov Gallery, em Moscou, representam a impossibilidade de confinar a arte de Chagall a um rótulo definitivo. A primeira obra mostra um casal caminhando de mãos dadas, uma cena bucólica, se não fosse uma das figuras levitando. A segunda revela um casal voando sobre a cidade de Vitbesk. Pela primeira vez essas duas telas são expostas juntas e provocam um impacto único no espectador. Continente julho 2004


A Vida, 1960, óleo sobre tela

Imagens: Reprodução

Marc Chagall vive o seu retorno à Rússia como se, inconscientemente, armazenasse energia para dali sair e nunca mais voltar. Ele funda na sua cidade o Instituto de Arte Moderna e divide o seu tempo entre ser pintor e professor. A decepção política com os rumos da revolução cada vez mais o empurram de volta ao estrangeiro. Enquanto amadurece a idéia de partir definitivamente, Marc Chagall ensina desenho na escola para órfãos de guerra, em Malashovka, perto de Moscou. Até que em 1922 viaja com a mulher Bella e a filha Ida para Berlim e de lá segue até Paris, seu destino final. Chagall e família desembarcam em plena Paris modernista. O editor Vollard o convida para ilustrar Almas Mortas, de Gogol, e depois as fábulas de La Fontaine. Naqueles “loucos anos 20”, a ordem era experimentar novos conceitos visuais. O Surrealismo salta das páginas literárias do francês André Breton para as telas do espanhol Salvador Dalí. O pai da psicanálise, Sigmund Freud, é o guru dos artistas defensores da idéia de que só a irracionalidade pode dar vazão à expressão artística. Chagall assiste a todo este movimento do alto do seu cavalete e continua a pintar, aparentemente, imperturbável. “Chagall realiza aquela revolução dos planos do espaço preparada por Rimbaud”, declarou Breton sobre o artista que, instintivamente ou não, seguia uma trajetória única. Uma viagem ao Oriente Médio o aproxima dos temas religiosos com maior personalidade. Em 1931, Marc Chagall publica o livro autobiográfico Minha Vida e visita a Terra Santa, conhece a Palestina (o Estado de Israel seria criado apenas em 1948), Egito e Síria. Ele pinta Jerusalém, A Queda do Anjo, Ressurreição, entre outros. Corre a década de 30 e os novos ares de guerra sopram de Berlim. Já com a cidadania francesa, mas judeu, Marc Chagall percebe que corre perigo. A invasão da França pelas forças de Hitler o leva a fugir para o sul do país. Em 1939, ele pintaria o célebre quadro surrealista Sonho de Uma Noite de Verão e, dois anos depois, atravessaria o Atlântico rumo à segurança nos Estados Unidos. Continente julho 2004


»

44 ARTES Reprodução

Acima da Cidade, 1924, óleo sobre tela

Na fronteira do sonho e da realidade, numa dimensão ausente de tempo e de espaço, Marc Chagall viveu sua vida e criou sua obra

No exílio americano, Chagall trabalha realizando cenografias para obras teatrais como para o balé Aleko, de Massine, inspirado na obra Os Ciganos, do autor russo Puchkin e com música de Tchaikovsky. Ele também pinta quadros famosos inspirados nos animais, como o cavalo ou os galos. Ouvindo o Galo, de 1943, e O Olho Verde, de 1944. A morte da mulher Bella, em 2 de setembro deste mesmo ano, leva-o à depressão. Por quase dez meses, Chagall sai de cena. Ele retoma o trabalho ao ilustrar a ópera O Pássaro de Fogo, de Stravinsky, outro conterrâneo. Em agosto de 1948, Chagall retorna à França e vai viver em Saint-Paul-Vence, na Côte d’Azur. Nestes primeiros anos de “repatriamento”, o pintor executa diversos trabalhos em cerâmica. “Ele explora a escultura como forma de aperfeiçoar a técnica tridimensional e levá-la para a tela”, afirma o crítico Alam Crump. Peças em mármore e em bronze fazem parte da megaexposição. A mostra exibe as obras do artista até 1975, ainda que o pintor tenha produzido até pouco antes de morrer, em 28 de março de 1985. A exibição oferece ao espectador a possibilidade de admirar de perto as colagens de tecido em madeira que, de certa forma, anteciparam a pop arte. Ao final da exposição, o visitante sai impressionado com a força das cores e com a atemporalidade de seus quadros. E talvez seja ali, na fronteira do sonho e da realidade, numa dimensão ausente de tempo e de espaço, que Marc Chagall viveu a sua vida, legando ao mundo de hoje as obras do amanhã. Continente julho 2004


Anúncio


»

46

ARTES


ARTES

47

Uma celebração ao sol, ao sangue e à alegria Na exposição Altares, José de Moura exalta o povo e sua crença num universo povoado de santos simples, mas verdadeiros Plínio Palhano

Fotos: Flávio Lamenha

O artista plástico José de Moura. Na página anterior, A Santa do Cabaré e o Anjo que Veio de Longe, óleo sobre tela

A

poética do pintor pernambucano José de Moura é límpida, fala de nossas raízes culturais diretamente da fonte popular, com a naturalidade de quem está sintonizado com essas forças. Na sua criação, o processo é lento e reflexivo: primeiro, ele retém na memória os fatos, as histórias que ouviu através dos contadores ou mesmo viveu como um dos atores nas cenas enriquecidas pela imaginação – tudo numa dosagem exata de humor, que lhe é peculiar. Em seguida, anota as impressões retidas na mente em vários desenhos, selecionando-os para transpor a idéia pronta à pintura. Recria várias obras a partir daí, tomando os detalhes ou o todo de uma matriz, em multiplicação genética, mas cada uma dessas obras adquirindo vida e características próprias. A narrativa divide valores com a matéria pictórica e abre a visão do artista: “O meu desenho é suporte para a cor”, diz ele. Em Altares, nome da exposição dos seus trabalhos recentes, o pintor procura repassar uma simbologia mística, uma celebração à vida, à carne, ao Sol, ao sangue, à alegria de viver, ao prazer expresso na amizade, ao vinho, ao povo com seus mitos e seu universo próprio de religiosidade, que elege os santos domesticados na crença simples e verdadeira. A começar com a pintura A Santa do Cabaré e o Anjo que Veio de Longe, em que representou uma cena com duas figuras, a santa e o anjo, como se o anjo estivesse anunciando revelações íntimas. A santa vestida apenas de lingerie preta em rendas coladas em seu corpo, sapatos verdes, delicados, a cabeça envolvida numa aura que expande a luz em ouro 14 – material em pó, de trabalho do pai do artista, marceneiro, que J. Moura guardou, preservando-o para momentos Continente julho 2004

»


»

48

ARTES especiais – misturado ao óleo de linhaça com o fim de ressaltar o amarelo puro; e acima, ao lado esquerdo, sai o arcoíris de um copo – desses, de bares, para se tomar uma cerveja – que se integra à aura também decorada em rendas, como na lingerie. O anjo talvez não tenha vindo de muito longe, das alturas celestes, mas de outra cidade, numa camisa adequada para brincar o carnaval. O diálogo entre os dois lembra a temperatura tropical, pelos amarelos no fundo, atrás do anjo, e no vermelho do apoio em que a santa está sentada. Certamente esta cena não será encontrada na parte norte do planeta, mas no calor latino-americano. Tô Avisando é outra composição vertical em que aparece uma personalidade profética, eclesiástica, com o dedo em riste, num discurso de alerta, ornamentada em paramento idealizado pelo pintor, vermelho, formando flores, sóis. O profeta tem olhar piedoso, mas enérgico, para que todos sigam a profecia anunciada. Este personagem principal, no centro; e, como num tríptico em linha vertical, os complementos: acima, um coração e duas mãos sangrando; embaixo, continuam as vestes e um pedaço de entalhe decorativo. A verticalidade da obra diz que todo profetismo só poderá surgir nesse sentido. Em que profeta se inspirou o artista? Visto de longe, com uma câmera na mão, em imagens rápidas, vê-se uma semelhança com a figura de D. Hélder, como transfigurada; não sabemos se foi a intenção do autor, mas fica, em reflexos, a impressão.

Acima, Tô Avisando, técnica mista. Ao lado, O Homem do Coração Tatuado ou O Homem de Dois Corações, ambos em óleo sobre tela

Continente julho 2004


ARTES

49

Nas obras atuais de José de Moura, os elementos em arabescos tomam o olhar do espectador e um maior espaço na pintura, deixando o menos possível as áreas planas e uniformes

O Nascimento de Vênus, em parceria com José Cláudio, da série Eu e Alguns Amigos Fotos: Flávio Lamenha

Nas obras atuais de José de Moura, os elementos em arabescos tomam o olhar do espectador e um maior espaço na pintura, deixando o menos possível as áreas – presentes nos seus trabalhos anteriores – planas e uniformes. Reutiliza os bastões a óleo – confeccionados pelo pintor –, que já fazem parte do seu ofício, dando vida aos detalhes, aumentando a intensidade da cor, formando as transparências e passagens ou fechando o quadro com linhas retas. O princípio de centrar a luz está sempre presente em todas as obras, como: Chica, A Guerreira, O Homem de Coração Tatuado, Dizendo o Que Não Fez, e ainda uma série dentro de Altares, Reza Forte, apresentam os subtítulos Alma do Santo I, II e III. Para celebrar Altares, José de Moura convidou os amigos artistas – João Câmara, Francisco Brennand, José Cláudio, Luciano Pinheiro, Fernando Guimarães, José Barbosa, Gil Vicente, Delano, Rinaldo, Pedro Dias, José Carlos Viana, Ferreira, Maurício Silva e Plínio Palhano – para que fossem co-autores em obras com temáticas escolhidas pelos convidados e linguagem plástica compartilhada. As obras emolduradas estão colocadas numa última moldura em forma de caixa e protegidas por vidro: certamente para estar na concepção de Altares, simbolizando o rito da amizade. A exposição também apresentará objetos: um representa o Cristo crucificado dentro de uma cruz com frontal em vidro, erguido na idéia de santuário, em suporte longilíneo; o outro, com três pequenas pinturas assinadas por autores diferentes, numa cúpula de vidro sobre o mesmo tipo de base, como um minúsculo altar. A participação desses artistas indica também a importância que o pintor dá ao entrelaçamento de trabalhos e ao velho conceito da criatividade coletiva em que, generosamente, se diz influenciado por todos, “porque a influência não é só no trabalho diretamente, mas principalmente nas conversas que mantenho com os amigos, e Exposição Altares, de José de Moura, eles estão em Altares porque, Galeria Segundo Jardim, Rua Solidônio Leite, 62, Viagem – Recife. principalmente, pretendo ce- Boa Vernissage: dia 10 de agosto, às 19h, até o dia 30. lebrar em espírito coletivo”. •

Da série A Alma do Santo, óleo sobre tela

Continente julho 2004


50 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Imagens: Divulgação/CCBB Rio

»

Piracema, de João Otaviano do Carmo Filho Tera’ücü Na página ao lado, O Jacaré Preto, de Jonas Iricino da Silva Taraucü

Reinvenção da floresta Os índios naturalmente sempre buscaram expressar (ou inventar) sua visão mágica do mundo

Q

uem visitar a mostra Pinturas da Floresta, dos índios ticunas, que o Centro Cultural do Banco do Brasil, do Rio, está expondo, certamente será tocado pelo encanto daquelas obras plenas de fantasia, riqueza gráfica e beleza cromática. A impressão que se tem, ao vêlas, é de que a arte de pintar acabou de nascer e ali apresenta-se com todo o vigor e o esplendor. Quem pensaria, diante de tanta criatividade e alegria de pintar, que a pintura acabou? Ninguém, certamente. E se a alguém como eu, que vivo a refletir sobre as questões da arte contemporânea, acode essa pergunta, certamente responderá, como respondi a mim mesmo: “Se a pintura acabou, não foi para os ticunas; foi para nós, urbanos, imbuídos dos problemas de nossa civilização. Para eles, a pintura mal começou” . E o importante desta reflexão surgida ali, de repente, é que ela deixa clara a relatividade das opções que fazem Continente julho 2004

os artistas urbanos de hoje, herdeiros de uma tradição moderna que começou com o Cubismo, no despontar do século 20, e se desdobrou em dezenas ou centenas de tendências experimentais. Na origem dessas experiências, estava o questionamento que, de um lado negou a fantasia em favor da racionalidade e, de outro, negou a linguagem figurativa em função da autonomia da pintura, deixaria de se referir ao mundo exterior. Não cabe aqui discutir os problemas envolvidos nestes questionamentos; o que importa é observar que a pintura dos ticunas, concebida no fundo da floresta amazônica, num universo cultural habitado de seres mágicos, não reflete nenhuma dúvida com relação a sua validez. Pelo contrário, os artistas ticunas encontram nela o instrumento incomparável que lhes permite expressar o mistério e a maravilha da floresta em que vivem juntamente com seus pássaros, seus peixes, cotias, jacarés e tatus... Isto sem falar nos seres invisíveis – o yawaré, o wüwürü – que se


TRADUZIR-SE 51

tornam visíveis graças à arte da pintura e ao talento daqueles artistas. Os temas dos guaches expostos no CCBB são todos derivados da experiência de vida e da cultura desses habitantes da floresta, como o igapó, a piracema, o jacaré-preto, o yawaré ou o wüwürü. E tudo transfigurado, iluminado de cores intensas, surpreendentemente harmonizadas. Todos os trabalhos estão povoados de árvores e plantas coloridas (com troncos e galhos azuis ou vermelhos), de flores e frutos, águas cor-de-rosa ou verdes, sem falar nos peixes das mais inesperadas formas e cores, tudo tocado de inesperada originalidade e ingênua fantasia, como, por exemplo, o casal de jacarés-pretos, enormes, com seus filhotes minúsculos: a concepção deste guache, dividido em faixas horizontais, integra as figuras dos répteis numa composição simétrica que, por assim dizer, os “abstratiza” e lhes imprime um caráter de seres sonhados. Cumpre assinalar, a propósito, que essa ambivalência de sonho e realidade, impregna todos os seres representados nas obras da presente exposição. Não menos surpreendente é a cobra-grande (yawaré), em meio a peixes e tartarugas. O “dono do buritizal” (wüwürü), caminha como um fantasma transparente entre os troncos dos buritis, como se atravessasse uma floresta encantada, de rara e delicada beleza, aliás, bem adequada àquele ente encantado que ataca as pessoas fazendo-lhes cócegas até que elas morram – morram de rir, literalmente!

Igualmente fascinante é o guache que retrata a piracema que, como se sabe, designa o período de reprodução dos peixes, quando eles sobem o rio, contra a corrente, para se reproduzirem em suas cabeceiras. Os trabalhos que tratam desse tema apresentam traços muito especiais, se comparados aos demais guaches expostos: é que, neles, coexistem a preocupação com o realismo no retratar dos peixes e uma espécie de surrealismo quanto às suas proporções, tanto no que se refere à relação entre eles como em relação ao rio em que nadam. Certamente, para expressar a magnitude do fenômeno que arrasta os peixes em direção às nascentes dos rios, na piracema, o artista consegue juntar, num guache de pequenas dimensões, mais de 50 espécimes diferentes, alguns sem dúvida inventados. Mas a esta altura do comentário, devemos levar em conta um dado que, embora óbvio, passa-nos despercebido: é que a pintura a guache não pertence à tradição cultural ticuna, ou seja, os ticunas a receberam do branco, da civilização urbana. Valendo-se de outros meios, os índios naturalmente sempre buscaram expressar (ou inventar) sua visão mágica do mundo. Não obstante, ao se apoderarem da linguagem pictórica “branca”, ganharam um novo instrumento não apenas de expressão, mas também de invenção de seu mundo e de si mesmos. Chamo a atenção do leitor para este aspecto da questão, a fim de sublinhar o fato de que, através das linguagens artísticas, não apenas expressamos, como também inventamos – ou reinventamos – o mundo em que vivemos, mais cultural que natural, mesmo quando se trata de homens que vivem tão perto da natureza como os índios ticunas. Essa reinvenção da realidade pelo homem, não apenas responde a condições concretas e necessidades subjetivas, como depende dos meios de que ele dispõe para efetivá-la. Não resta dúvida, portanto, de que, se os ticunas não dispusessem do guache nunca teriam tornado perceptível, para si mesmos e para nós, a visão mágica da floresta tal qual esta exposição nos oferece. • Continente julho 2004


52

MÚSICA

Fotos: Divulgação

»

O concertista, no seu palco itinerante. Na outra página, o caminhão Continente julho 2004


MÚSICA

53

A

música é clássica, mas sem pompa nem trajes a rigor. Ao ar livre, o pianista Arthur Moreira Lima vem se apresentando pelo Brasil, em cima de um caminhão, com o erudito que já caiu no gosto popular. Em cada concerto, ele troca o fraque por uma roupa mais esportiva, entra no palco sob efusivos aplausos e, de cara, procura seduzir a todos com seus dedos inquietos em um ritmo alucinante. “Sinto-me muito bem tocando para o meu público. Além de pianista, sou brasileiro”, arremata Arthur Moreira Lima, que promete completar 80 apresentações até o final de 2004. “Já fiz tudo o que queria. Aqui, eu consigo viver uma vida mais autêntica. Acho que tenho uma obrigação e estou cumprindo esta obrigação comigo mesmo”. Trata-se do projeto Um Piano Pela Estrada que acontece desde o ano passado, quando fez sua estréia percorrendo 12 cidades que margeiam o Rio São Francisco, da sua nascente, em Minas Gerais, até a foz, em Alagoas. Foram cerca de 60 mil atentos espectadores, muitos dos quais nunca tinham visto um piano na vida. “Quero que todo mundo tenha acesso a um concerto”. Dando seqüência ao projeto, recentemente Artur Moreira Lima mostrou para a periferia de São Paulo um repertório bem diversificado. Ele abre com Beethoven, passa por Bach, evolui para as peças musicais de Chopin, adaptadas de músicas folclóricas da Polônia, até chegar aos clássicos brasileiros como Villa-Lobos e Radamés Gnattali. Ainda na música brasileira, as favoritas do público como “Carinhoso”, de Pixinguinha e “Asa Branca”, de Luis Gonzaga têm seu lugar cativo, assim como o choro de Ernesto Nazareth. No final, executa “Adeus Niños”, de Astor Piazzola e o “Hino Nacional”. A cada nova música, faz comentários explicativos sobre quem a compôs, como se estivesse jogando conversa fora, no mais refinado jeito carioca. Aliás, esse jeito ele nunca perdeu. Apesar da dedicação à música clássica, desde o começo de sua carreira, não vislumbrava a sala de concerto como seu monastério. “Até porque sempre fui um garoto normal. Ia à festa, tomava porre e fumava. O fato de ter tocado pela primeira vez aos nove anos (na Orquestra Sinfônica Brasileira) não me torna precoce coisa nenhuma”. E vai mais além: “A maioria dos meus colegas fica tão presa ao piano que

Um piano na estrada Arthur Moreira Lima apresenta-se em 12 cidades que margeiam o Rio São Francisco, tocando música erudita em cima de um caminhão Felipe Porciúncula Continente julho 2004

»


MÚSICA 5454

Divulgação

»

Na antiga URSS, Arthur recebeu o Prêmio Chopin, mas não como representante do Brasil, porque o governo militar preferiu indicar outro pianista, por desconfiar de suas opções ideológicas

não sabe conversar sobre política, sobre futebol, sobre nada. São animais profissionais” (veja depoimento). Ele até pensou em fazer vestibular para o Instituto Tecnológico da Aeronáutica – ITA, em São José dos Campos, por ser bom em matemática, porém a paixão pela música falou mais forte. Foi em 1963, quando resolveu estudar no Conservatório Tchaikovsky de Moscou, considerada na época a melhor escola do mundo para solistas, onde passou 10 anos. “Comecei uma carreira internacional muito antes do que eu estava contando”. Dois anos depois de chegar à antiga URSS, ele recebeu o Prêmio Chopin, em Varsóvia, mas não como representante do Brasil, porque o governo militar preferiu indicar outro pianista, por desconfiar de suas opções ideológicas. Ainda ganhou outros prêmios, um deles do próprio Conservatório de Moscou, em 1970, e seguiu sua carreira pelo mundo afora. Nos mais de 20 anos em que morou na Europa, Moreira Lima se apresentou com as principais orquestras européias, como a Filarmônica de Leningrado, a Sinfônica de Berlim e a de Viena, além de tocar em várias rádios, como a BBC de Londres. O grande sonho começou nos anos 60, em Moscou, quando o jovem Arthur fazia apresentações nos arredores da ex-capital soviética para operários, cobrando cinco rublos (moeda russa). “Durante o tempo em que vivi fora, entre os estudos e a carreira internacional, sempre pensava que quando voltasse ao Brasil iria rodar com meu piano por todos os lugarejos desse grande País”, disse ele. Continente julho 2004

Em 1985, ao realizar uma turnê por 10 cidades de Santa Catarina, Moreira Lima percebeu que esse sonho podia se concretizar, mas sentiu falta de uma estrutura maior de apoio. Sete anos depois, o pianista comprou um pequeno caminhão. Naquela época, ele colocava o piano na carroceria e promovia muitos concertos em todo o estado fluminense. “O problema era o espaço apertado da carroceria”, lembra Moreira Lima. Surge a oportunidade, em 2001, da compra de um caminhão maior para se criar um palco. “Este não é um caminhão qualquer, é um teatro móvel em que eu fiz um investimento. É, de fato, uma cena itinerante”. Feitas as adaptações, que inclui o alongamento do chassi e a suspensão a ar, foi construído o palco de 45m2 (montado com a ampliação da lateral da carroceria). Após cada concerto, o piano é desmontado e fixado na própria carroceria para enfrentar as oscilações das estradas. Os locais escolhidos para as apresentações são, geralmente, em comunidades de baixa renda. O que significa que a chegada do caminhão transforma-se em um acontecimento para os moradores, que vão, aos poucos, ocupando seus lugares. Primeiro arma-se o palco, depois o som é testado, em seguida entra em cena o afinador do piano e enfim, o espetáculo começa. “Aquele mundo erudito não me bastava como ser humano. Ficar horas e horas tocando piano para mim era pouco”, ressalta ele. E acrescenta: “Eu quero agradar não ao crítico nem aos meus colegas, mas ao público. Meu palco é o meu país”.


MÚSICA

55

Arthur Moreira Lima realiza seu sonho de levar a música erudita a platéias do interior

As opiniões de Arthur O pianista que se recusa a ficar fechado no mundo da música erudita opina sobre vários assuntos Ditadura “De certa maneira o brasileiro conservou sempre um traço de bom mocismo. Por exemplo, Darcy Ribeiro (exministro da Casa Civil de Jango), em 1976, ainda no exílio, teve câncer no pulmão. Aí os militares disseram “deixa ele vir morrer no Brasil”. Ele veio, ficou bom e deu um trabalho danado” (gargalhadas).

Governo “O Brasil está bem. E está mudando. Virando realmente um país sério. Eu acho que este governo é bem intencionado e é popular, mas tem o pé no chão. O pessoal quer que o salário mínimo seja de 500 reais, mas não pode! Nós herdamos as dívidas dos governos anteriores. Se não paga, você não consegue exportar e as coisas ficam muito piores. É chato, mas esse governo está fazendo o dever de casa, inclusive, melhor que o antecessor”.

PT “É o partido que nasceu do trabalhador e de intelectuais, que realmente queria fazer algumas mudanças e, aos poucos, vem conseguindo. Acho que, internacionalmente, o Brasil deu um salto e hoje todo mundo o respeita. Descobriu-se o óbvio: se o país der um murro na mesa, vão ouvir sim”.

Maio de 68 “Eu tenho a impressão de que, depois de maio de 68, o mundo piorou muito. Isso porque os estudantes resolveram que eles sabiam mais que os professores (risadas). Eu estou brincando, mas foi uma revolta que obrigou reformas em currículos e essas reformas foram muito exageradas, sobretudo aqui no Brasil”.

Língua portuguesa “Tiraram o latim e hoje ninguém sabe mais falar. Não sabe se exprimir. Daqui a pouco estarão grunhindo em vez de falar. Esse excesso de gírias é um empobrecimento da língua, porque é necessário ter um vocabulário grande para poder se exprimir, para ler. As pessoas não lêem”.

Povo brasileiro “O Brasil é uma ilha. Aqui se fala português em um continente onde todos os outros falam espanhol. É um país enorme e bastante coeso. Acho maravilhoso a gente não ter nenhum dialeto. Quando estava na excursão pelo Rio São Francisco, levei uma equipe com pessoas de várias partes do país e todo mundo se entendia com a população local. Isso é uma riqueza”. •

Continente julho 2004


»

56 REGISTRO

O poeta Diógenes da Cunha Lima acredita que Saint-Exupéry fez em Natal as ilustrações do livro O Pequeno

Príncipe Fernando Monteiro

Continente julho 2004

Saint-Exupéry

A

recente descoberta de duas peças de uma aeronave perdida no fundo do mar Mediterrâneo, pôs fim a um mistério que já durava 60 anos. Na manhã de 31 de julho de 1944, Antoine de Saint-Exupéry partiu de Borgo (Córsega), a bordo do Lockheed Lightning P-38, e não retornou à base. O vôo fora uma missão de reconhecimento, preparatória do desembarque das tropas aliadas na Provença, e o piloto entrou na lista de baixas. Era, entretanto, mais do que um aviador desaparecido entre muitos, pois seu nome brilhava nas lombadas de Correio Sul, Terra dos Homens, Vôo Noturno, O Pequeno Príncipe e outros livros publicados pela editora Gallimard, com grande sucesso. Falou-se até em suicídio, porém um “acidente de guerra” foi sempre a hipótese mais considerada, sendo os destroços do P-38, procurados durante muito tempo.


Arquivo AFP

O escritor francês diante do avião que pilotava

REGISTRO 57 »

Em 1998, o pescador Jean-Claude Bianco já havia encontrado, na ilha de Riou, uma pulseira com os nomes do escritor e da sua mulher (Consuelo Suncin). Isso reanimou as buscas na costa de Marselha, a cargo de mergulhadores do DRASSM – Departamento de Pesquisas Arqueológicas Subaquáticas e Submarinas – que afinal encontraram, em outubro do ano passado, partes do trem de pouso e do motor de um velho avião, a 70 metros de profundidade. De posse dos destroços, a Força Aérea local acionou sua equipe de peritos em acidentes, e seis meses foram necessários para que se confirmasse: são restos do Lightning P-38, a aeronave de Saint-Exupéry, afundada a leste de Riou, há seis décadas. Nascido em 1900, numa família francesa da mais alta linhagem, cheia de sonoros nomes de soldados e homens de ação, o aviador foi, logo cedo, atraído também para as letras. A fina sensibilidade de Exupéry – não só para temas da aviação – ajudou a fazer decolar, a partir dos anos 30, a carreira literária do gordote Antoine (fisicamente parecido com outro Antônio, o nosso Maria, cronista ameno como ele). O aristocrata ganhou asas no campo da literatura e, por isso, não seria nenhum exagero dizer que, ao sumir na missão de guerra, Antoine de Saint-Exupéry era amado por leitoras e leitores do mundo inteiro, para os quais o fim trágico, aos 44 anos, só fez aumentar a aura romântica em torno do pai do “pequeno príncipe”. Lançada em 1943, a curta fábula, ilustrada com desenhos do autor e dirigida “a crianças dos oito aos 80”, de imediato cativou o público. No Brasil, iria atrair, mais tarde, a preferência de inúmeras candidatas a miss que, invariavelmente, apontavam o livro como o das suas mesinhas de cabeceira manchadas de laquê. Saint-Exupéry, porém, não escreveu apenas a fábula do principezinho chatinho – que produtores americanos tranformaram num dos filmes mais insossos de Hollywood (tendo sido Frank Sinatra o primeiro convidado para o papel-título, acredite quem quiser...). Sua obra transita pelo humanismo católico típico dos anos 30-40 e, na porção mais sólida – onde se inclui Correio Sul, Terra dos Homens e Vôo Noturno – não está condenada a se desfazer no ar. São livros plenos do sentimento, ambivalente, da solidariedade e da solidão nas alturas, muito acima da terra sempre em discórdia lá embaixo. Considerado um estilista da língua francesa, seu autor tem bom olho para a paisagem humana e empatia para com os mundos culturais da África e da América do Sul. Antes da guerra, a profissão de aviador o levara a enfrentar longos vôos entre os dois continentes, a serviço da Lattécoère, tendo feito escalas em Natal, várias vezes, entre outubro de 1929 e janeiro de 1931. Saint-Exupéry chegou a ser diretor de uma subsidiária (Aeropostal Argentina) da companhia de aviação francesa, que tinha escritório no bairro da Ribeira. Junto com o legendário Jean Mermoz (1901-1936), quando desembarcava na capital natalense – no campo de pouso do Refoles –, era hóspede da senhora Amelinha Machado, que guardava as melhores recordações dos dois franceses, também lembrados por Nati Cortez e Nair Tinoco. (Mermoz foi outro que sumiu no mar, na sua 23ª travessia do Atlântico, quando rumava justamente para Natal, a base da linha no fim do horizonte, ponto de encontro das tripulações substituídas na então pequena cidade branca.) Rocco Rosso, chefe do setor de Rádio e Comunicação da Lattécoère, fez várias fotos em que aparecem Saint-Exupéry e Jean Mermoz, na casa de “Dona Amelinha”, a quem o escritor Nilo Pereira foi apresentado por Jean. Sem nunca haver afirmado que conheceu Saint-Exupéry na mesma ocasião, Pereira dizia ter visto fotos autografadas pelo escritor nas Continente julho 2004


»

58 REGISTRO

A descoberta dos destroços confirmados como os do avião de Saint-Exupéry pode até alimentar o sonho de ver algum pedaço do avião doado, pela França, à capital norte-riograndense

mãos de moiçolas da época. O piloto-escritor já fazia sucesso, portanto, no meio feminino local, bem antes do tempo das misses “apaixonadas” pelo livro de 43, que conta com fãs-de-bigode igualmente encantados. O poeta Diógenes da Cunha Lima, que não usa bigode, mas é da Academia Riograndense de Letras, está entre eles. Diógenes acredita que Saint-Exupéry fez em Natal as ilustrações da obra “mais vendida no mundo depois da Bíblia”, segundo afirma. E vai mais longe: um baobá situado na Rua São José, com 19 metros de circunferência, “a um metro do solo”, pode ter sido a fonte de inspiração para a árvore, cuja exuberância fascina o pequeno príncipe. Ela se acha desenhada no livro, e toda a longa floresta de baobás vistos por Exupéry, nas rotas africanas do início da sua carreira,

Diógenes da Cunha Lima cuidando do baobá

Um piloto com a alma poética Em quase todas as obras de Antoine de Saint-Exupéry perpassa a idéia da terra e dos homens observados do ponto de vista solitário do aviador Tércio Solano Lopes

A

ntoine-Marie Roger de Saint-Exupéry nasceu em Lyon, França, em 29 de junho de 1900, filho de um inspetor de seguros em Rohône, terceiro filho oriundo de uma família aristocrática empobrecida. Aos quatro anos fica órfão de pai e passa a viver em casa de seus tios, em Saint-Maurice Des Remans. Entre 1909 a 1910, época em que completava dez anos, entrou no colégio jesuíta Notre-Dame de Saint-Croix. Em 1912, realizou seu primeiro vôo, no aeroporto de Ambérieu, com o experiente piloto Védrines. Em outubro de 1914 a 1916, passa a estudar no colégio Saint-Jean, em Friburgo, Suíça, com os maristas. Em 1919 entra na escola Bossuet, Continente julho 2004

depois se interna no Licée-Saint-Louis, em Paris, e se prepara, sem sucesso, para a escola naval. Um ano depois, abandona completamente os grande cursos. Como sabia desenhar com perfeição, ingressou na escola de Belas Artes. Em 1921, apto para o serviço militar, foi servir no 2º Regimento de Aviação em Strasbourg, na oficina de manutenção de aeronaves. Tempos depois, consegue o brevê de piloto civil e militar, sendo enviado a Casablanca como cadete. Os primeiros contatos do jovem aspirante com as instáveis máquinas voadoras da época não foram muito auspiciosos. Uma recordação deste tempo foi um peque-


Arquivo pessoal de Diógenes da Cunha Lima

REGISTRO 59

não merece lá muita consideração, na lógica de Cunha Lima. Ele crê que o seu baobá é o baobá exuperiano legítimo. Esse “seu” aí é rigorosamente de patrimônio, no sentido cartorial, pois o poeta-advogado adquiriu, com escritura passada e tudo, a tal adansonia da rua São José, nobre malvácea agora sob proteção de cerca fincada no micro terreno já devidamente declarado no imposto de renda de Diógenes. Até no elefante de O Pequeno Príncipe, ele vê semelhanças do desenho “estilizado” com o paquiderme-símbolo da terra de Cascudo – que, aliás, Diógenes não receia levar, na cabeça já calva, por alinhar e deduzir muito mais, a respeito da “marca de Natal” na obra do francês-voador. Nos demais desenhos coloridos (feitos lá?), o acadêmico vê claras falésias potiguares, perfeitas dunas natalenses e a estrela armorial dos Reis Magos. E não pára aí: “No livro póstumo Cartas à Sua Mãe – destaca o bacharel da lógica irrespondível – há um trecho onde Exupéry diz que ‘Dacar é bem feia, mas o resto da linha, uma maravilha’. O resto da linha começava em Natal, ora. E há depoimentos de que Saint-Exupéry teria declarado que o pôr-do-sol do Potengi era o mais lindo do mundo”... Alguém duvida? Seja como for, a descoberta dos destroços agora confirmados como do P-38, pode até alimentar, quem sabe, o sonho de ver algum pedaço do avião doado, pela França, à cidade que já possui uma coluna romana (“capitolina” autêntica?), oferecida pelo ditador Benito Mussollini, durante a guerra, e que ainda está lá, embora menos protegida do que a árvore da rua São José, o “baobá do pequeno príncipe” para quem quiser ir ver, na bela capital, em romaria pelos 60 anos do último vôo de Antoine de Saint-Exupéry.

no defeito numa das pernas e uma fratura no crânio, conseqüência de um pouso desastrado em Bourget. Em janeiro de 1923, abandona a carreira militar. Regressa a Paris, dedicando-se a várias atividades, inclusive escrevendo uma novela, O Aviador, publicada em várias revistas. Depois, é admitido como praticante de piloto pela Lattécoère, antecessora da Air France, na exploração da linha Toulouse, no sudoeste da França, e Dacar na África Ocidental francesa. Começa então a voar regularmente na rota Casablanca, Espanha, Dacar, e nos cruzeiros do Correio Aéreo Postal dos Andes e do Atlântico Sul. Em l929 aceitou o cargo de responsável pela operação da Aeropostal Argentina, transferindo-se para Buenos Aires, onde, em l93l, casou-se com a salvadorenha Consuelo Suncin. Nessa época, Exupéry empreendeu vários vôos pioneiros em rotas sul-americanas. Foi então que escolheu a área para um campo de pouso no Recife, hoje Aeroclube do Encanta Moça, no bairro do Pina. Outra de suas escalas no Brasil foi o pequeno campo de pouso existente na praia de Campeche, em Santa Catarina. Saint-Exupéry cumpriria, ainda, inúmeras missões solitárias, não ape-

nas na aviação militar, mas principalmente aos comandos de aeronaves pioneiras da Aeropostale, o Correio Aéreo Francês. Foram esses vôos os inspiradores de uma série de formidáveis livros, cujo estilo grande parte dos críticos literários da época classificou como prosa poética. Em quase todas as obras de Antoine de Sant-Exupéry perpassa o mesmo procedimento: a terra e os homens da terra observados do ponto de vista solitário do piloto. Em l933, quando a companhia Argentina encerrou suas atividades, Saint-Exupéry volta à França, como piloto comercial da Air France. Sua decisão de regressar à aviação militar, no início da II Guerra, foi explicada com uma frase lacônica no livro Terra dos Homens, de l939: “Que sou eu se não participo ?”. Eram 20h45 do dia 3l de julho de l945, na Base Aérea aliada de Borgo, na Córsega , quando decolava de forma rotineira no legendário bimotor da Lockheed, largamente empregado naqueles dias decisivos. No decurso de suas missões de reconhecimento, no Sul da França, couberam-lhe os vôos sobre o Mediterrâneo. Foi nessa noite que ele desapareceu, em vôo solo sobre o mar, a bordo de seu inseparável P-38 Lightning. • Continente julho 2004


»

60 SABORES

PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Reprodução

Pintura de Maria do Santíssimo, artista popular do Rio Grande do Norte

Carnes de pena

"Minha galinha pintada Põe três ovos ao dia; Se ela pusera quatro, Que dinheiro não fazia!" Tradição popular portuguesa

O

ovo de Colombo não foi de Colombo. Foi de Brunelleschi. Convidado a revelar o segredo da cúpula que projetou para a Catedral de Santa Maria del Fiore (Florença), ainda maior que a da Basílica de São Pedro (Vaticano), limitou-se a quebrar a ponta de um ovo e pô-lo de pé. Evocando as semelhanças entre aquele ovo e o perfeito desenho de sua cúpula. Duas façanhas, portanto, a cúpula e o ovo. Antes dele “todos os mestres da arquitetura tentaram, em vão, pô-lo de pé”, confessou Giorgio Vasari (Vite dei Piú Eccelente Pittore, Scultori ed Architetti). Anos depois, em março de 1493, voltou Cristóvão Colombo à Espanha como herói. Havia descoberto um novo mundo. O cardeal Pedro Gonzalo de Mendonza ofereceu banquete, para comemorar a grandeza do feito. Na hora do discurso, Colombo apenas imitou Brunelleschi. Pondo um ovo em pé. Como se dissesse que uma vez mostrado o caminho, outros depois o seguiriam. Nascia ali, naquele banquete, a Continente julho 2004

expressão “ovo de Colombo”. A história não fez justiça a Brunelleschi. Como também não fez, depois, a Colombo. Morreu pobre e abandonado. Tendo ainda o desgosto de ver que aquele continente por ele descoberto, em vez de “Colômbia”, acabou “América”. Por conta de trapalhada do obscuro geógrafo alemão Martin Waldssemüller. Que em 1507, desenhando um mapamúndi, deu ao novo continente o nome do (para ele) seu descobridor – “Américo” Vespúcio. Provavelmente por conta do sucesso de Mundus Novus, roteiro das viagens de Vespúcio ao novo continente, com mais de 40 edições em seis línguas. Apesar do erro, o nome pegou. Acontece. Mais difícil que colocar esse ovo de pé seria, talvez, responder ao antiqüíssimo dilema da humanidade – quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Continuaremos sem resposta. Certo é que as aves são recentes na Terra. Evoluíram dos répteis. Como prova o archaeopteryx lithographica, fóssil encontrado na Baviera (1861) –


SABORES PERNAMBUCANOS 61 »

cabeça de lagarto, corpo de penas, cauda achatada, dentes, dedos em garra na extremidade das asas. Não voavam, ainda. Mas planavam. Dessa espécie evoluíram todas as aves – avestruzes, garças, patos, pernaltas como grous ou de rapina como mochos. Galinha também. Foi domesticada, há mais de 4000 anos, na Birmânia. Sobretudo porque produziam ovos. Egípcios e chineses descobriram, depois, fórmulas para preservar esses ovos por mais tempo. Na Grécia antiga, destaque para o ganso. Alimentado com figos, para que sua carne ficasse macia e saborosa. Galo era animal sagrado. Depois foi, aos poucos, perdendo a santidade. Passando a freqüentar rinhas. Temístocles, às véspera de uma batalha contra os Persas (Salamina), promoveu grande briga de galo para distrair os soldados. Venceu. A partir daí, todas as batalhas foram precedidas por rinhas. A galinha começou a aparecer, nas mesas gregas, só ao tempo de Sócrates. Em 19 a.C., certo Caio Canio conseguiu que o Senado romano aprovasse lei proibindo galos barulhentos que o acordavam de madrugada. Esses galos passaram, então, a ser vigiados por pullarios. Com os criadores logo descobrindo que, castrados, eles paravam de cantar. Capões passaram a ser iguarias muito apreciadas. Galinhas eram alimentadas com anis e especiarias, para dar gosto à carne e aumentar a produção de ovos. O mais sofisticado prato de Roma era o moretum – guisado de galinha, peixe, queijo, frutas, legumes e carne picada. Tudo bem misturado. As refeições começavam com ovos – ex ovo omnia, todas as coisas nascem do ovo. Mais tarde, na França, durante batalha entre celtas de Vercingetórix e romanos de Julio César, nasceu o coq au vin – galo cozido no vinho, para tornar a carne mais macia. A receita continua a mesma, até hoje. Em Portugal, essa “carne de pena”, assim a descrevia Gil Vicente, sempre foi muito apreciada. No reinado de Dom Afonso II, o Gordo (1211-1223), “a galinha valia dois soldos, o dobro de um cabrito” – segundo J. Lúcio de Azevedo (Épocas de Portugal Econômico). Lei de 7 de janeiro de 1453, editada por Dom Dinis, dispunha: “matar o próximo, desonrar-lhe a mulher, estuprar-lhe a filha – pagar de multa uma galinha ou mil e quinhentos módios”. Pena bem mais leve que ser degredado para África ou Brasil – destinada aos que “usavam feitiçaria ou praticavam crimes místicos ou imaginários”. No século 18 mereceu decreto do Marquês de Pombal – ministro mais poderoso de Dom José I. Em que se ordenava fosse a carne de galinha base da alimentação dos doentes internados nos hospitais do reino – “os enfermos e febricitantes devem sustentar-se em mantimentos tênues e de digestão fácil”, explicava o regulamento. Galinha passou a ser

privilégio de reis e enfermos. Algumas receitas são reproduzidas desde essa época. Galinha Alardada – envolvida com toucinho bem fino e assada no forno. Galinha Albardada – assada, cortada em pedaços depois passados em ovo batido e fritos na manteiga, sobre fatias fritas de pão. Galinha Mourisca – cortada em pedaços e cozida em água bem temperada, arrumada na terrina sobre fatias de pão, com gemas, polvilhada com canela. E, mais famosa delas, a Galinha de Cabidela – que ganhou esse nome por ser feita com miúdos e extremidades, por lá conhecidos como “cabos”. Tão saborosa que passou a merecer fartas citações nos meios literários portugueses: de Camões – “esses olhos são panela/ Que coze bofes e Baco/ Com toda a mais cabadela” – a Eça de Queiroz – “maravilha cabidela de frango, petisco dileto de D. João IV, de que os fidalgos ingleses, que vieram ao reino buscar a noiva de Carlos II, levaram para Londres a surpreendente notícia”. A galinha chegou ao Brasil com Cabral. Os índios a viram, pela primeira vez, em 24 de abril de 1500, já de noite – segundo Caminha. Nunca fez sucesso, entre eles. Nem seus ovos. Continuaram preferindo os de jacaré. O mesmo com escravos, que depois aqui chegaram. Galinhas eram criadas pela gente simples da África só para vender. E nunca fizeram parte da culinária popular. Ovos eram, por lá, apenas remédio. Entre os poucos pratos (de galinha) pelos negros apreciados estão “xinxim” e “moambo” – prato que originou o vatapá. Por muito tempo, no Brasil, foi comida só de rico. “A mulher de Luís do Rego/ não comia senão galinha / inda não era princesa/ já queria ser rainha”, dizia versinho cantado pelo povo do Recife (1821), falando mal da mulher do Governador. Depois passou a ser, também, comida para doente e mulher parida. Garcia da Orta (Colóquios) chegou a prescrever, para doente, “uma galinha gorda, tirando-lhe primeiro a gordura que tem e deitem-lhe dentro umas talhadas de marmelos”. Não era consumida nos primeiros dias de luto porque galinha assada era comida de festa. Sem esquecer que aqui veio também, junto com os escravos, a galinha-d’Angola – penas pretas, com pintas brancas, pescoço pelado e gosto semelhante ao faisão, na Europa conhecida como turkey-henne (galinha turca). Frango foi o prato predileto de Dom João VI (1769-1826), durante todo o tempo em que viveu no Brasil – 6 por dia, três no almoço e três no jantar, assados, acompanhados de pão torrado e laranjas. Comia usando os dedos e jogando os ossos no chão. Foi fiel a esse gosto, até morrer. Já Dom Pedro II preferia canja. Tomava todos os dias. Inclusive no camarote imperial, quando ia ao teatro. A cena foi assim descrita por R. Magalhães Júnior (Artur de Azevedo e sua Época –1953) – “Vinham elencos da Europa Continente julho 2004


62

SABORES PERNAMBUCANOS

e o imperador Pedro II prestigiava as representações sem dormir ou bocejar, fazendo questão apenas de tomar uma canja quente entre o segundo e o terceiro ato, que só começava, por isso mesmo, ao ser dado o aviso de que sua majestade terminara a canjinha”. Daí a zombaria, em 1888, do teatrólogo Artur Azevedo – “sem banana macaco se arranja, mas não passa monarca sem canja”. Os portugueses aprenderam, em Goa, a receita dessa kanji – “água de expressão de arroz com pimenta e cominho a que chamam canja”, segundo descrição de Garcia da Orta (1563). “Caldo de arroz”, como a chamou o jesuíta Manoel Godinho, um século mais tarde. Aos poucos foi caindo, essa galinha, cada vez mais no gosto popular. De todo tipo – guisada, assada, frita, à milanesa, à caçarola. Com feijão branco, grão-de-bico, fava, aspargos, pirão ou repolho e lingüiça. Em pratos como risoto, pastelão, torta, fritada, salpicão, cuscuz, arroz, xinxim, vatapá, cozido, sarapatel de miúdo de galinha e galinha de cabidela. Muito se escreveu sobre esses animais. Até na Bíblia, em relatos que contam a passagem em que Pedro, pescador de Cafarnaum, por três vezes na Paixão negou Jesus. Para Shakes-

peare, galo era “trombeteiro da manhã” (Hamlet, 1º ato). Edmond Rostand escreveu Chantecler (1910) – nome de galo que acreditava, com o poder de seu canto, fazer nascer o sol, todas as manhãs. Entrou em nossa cultura. Nenhuma outra palavra tem tantos significados, na língua portuguesa. “Galinha” é mulher que se entrega fácil. “Galinha morta” é mercadoria vendida por preço baixo demais. “Galinha verde” foi apelido dos integralistas, na década de 30. “Pé-de-galinha” são rugas nos cantos dos olhos. “Dormir com as galinhas” é dormir cedo. “Quando as galinhas criarem dentes” define uma situação que jamais acontecerá. “Galo” é pequena inchação na testa. “Galo de rinha” é indivíduo brigão. “Frango” é homossexual. E também gol com a bola passando debaixo das pernas do goleiro. Faltando só lembrar que o ossinho em forma de forquilha, que se encontra no peito da ave, chama-se “fúrcula”. Duas pessoas seguram essa fúrcula, uma em cada ponta, formulando desejos. Puxam até quebrar. Tendo seu desejo realizado aquele que ficar com o maior pedaço do osso. Mas isso é só superstição. Ou não? • Arquivo/CEPE

RECEITA: GALINHA DE CABIDELA INGREDIENTES: 1 galinha de capoeira, 2 colheres de sopa de vinagre, sal, pimenta do reino e cheiro verde a gosto, 2 dentes de alho socados, 1 cebola ralada, 2 colheres de sopa de óleo, ½ pimentão cortado em tiras finas, 4 tomates picados (sem pele e sem sementes), 2 colheres de sobremesa de extrato de tomate. PREPARO: Junte o sangue da galinha em recipiente com vinagre. Bata, com um garfo, para não talhar. Reserve. Corte a galinha em pedaços. Lave e tempere com sal, pimenta e alho. Reserve. Leve ao fogo panela grande com óleo. Doure a galinha. Junte cebola, pimentão, tomate, extrato de tomate, louro, cheiro verde. Refogue tudo, em fogo brando. Acrescente água. Deixe no fogo, até que a galinha esteja bem macia. Na hora de servir junte o sangue (mexa antes) na panela. Leve novamente ao fogo e misture bem. Deixe até que tudo esteja bem cozido. Sirva com batata cozida e arroz branco.

Continente julho 2004


DIÁRIO DE UMA VÍBORA 63 Joel Silveira

Um enterro a 80km por hora

F

iz anteontem uma viagem de ônibus de Copacabana à Praça da Bandeira e fiquei impressionado com a fisionomia grave, sisuda, zangada mesmo da maioria dos passageiros. E era domingo. Ninguém falava, ninguém ria, muitos tinham os olhos duramente vazios. Desencanto, desespero, angústia, revolta – estava tudo ali, naquele pequeno e soturno aglomerado. É como se todos estivessem às vésperas de um pânico inevitável, uma desgraça maior, que infalivelmente virá, selando definitivamente a sorte dos que sabem que a ela não podem fugir.

Um gaiato qualquer, que pegara o ônibus na Presidente Vargas, parece ter ficado chocado com o ambiente trevoso que reinava ali. Deu uma tragada no cigarro, falou alto: – Isto aqui parece um velório. E era. Ou melhor: era um enterro que o chofer, lá na frente, os olhos inchados de raiva, puxava a oitenta quilômetros por hora, como o condutor de um carro fúnebre que, atrasado, tivesse de chegar de qualquer maneira ao cemitério, antes que este fechasse. •

Continente julho 2004


»

64 ESPECIAL

Douglas Kirkland/Corbis

Sedução e poder O sedutor precisa dominar, por saber-se frágil demais para compartilhar, enquanto o seduzido recusa o princípio de realidade, em favor de uma aposta no devaneio Ivo Lucchesi

Continente julho 2004


ESPECIAL 65 »

N

ada mais oportuno quanto necessário do que, na abertura do tema proposto, se recuperar a etimologia da palavra “sedução”. Com o intuito de não se incorrer em mera repetição do que, em outra época, a respeito já escrevemos, melhor será a transcrição direta da fonte: A palavra provém do Latim seducere (se[d] + ducere). Sed, além de conjunção equivalente a “mas”, atuava nos textos antigos como prevérbio, significando “separação”, “afastamento”, “privação”, e ducere queria dizer “levar”, “guiar”, “atrair”. Em síntese, portanto, “seduzir” era o processo pelo qual se atraía para privar o outro da autonomia de si, sob a promessa de possibilitar-lhe a experiência do prazer pleno. As marcas semânticas presentes na formação da palavra convergem para sentidos dúbios ou imprecisos, a ponto de se prestarem tanto a processos edificantes quanto a práticas eticamente condenáveis. Em qualquer das opções, porém, a sedução implica uma estratégia comandada pela linguagem. Do mesmo modo que é a aquisição da linguagem o ato de fundação civilizatória, assim o é a origem da sedução. Linguagem e sedução formam, talvez, a primeira parceria na história da aventura humana. Em outros termos, a sedução tem a idade da linguagem. Não é por outra razão que, na narrativa mítica das origens, lá está, como parábola, a “alegoria da perdição”: a serpente, a tentação e o fruto proibido. Lendo os símbolos dessa narrativa, não é difícil deduzir-se que a inspiração divina escolhe a “sedução” como instrumento de seus obscuros desígnios com os quais põe à prova Adão e Eva. A narrativa bíblica – aqui desvinculada de suas implicações religiosas e apenas mencionada como registro de uma escrita – é pródiga em oferecer outros tantos exemplos que remeteriam ao episódio de Sansão e Dalila, a dança de Salomé, as passagens de Sodoma e Gomorra, entre outras. Todas, em comum, remetem à idéia primeira: uma linguagem se articula para traduzir o enredamento de uma trama na qual reina a “sedução”, cujo propósito consiste na obtenção de algo da ordem do segredo ou do proibido. Em sendo compreendido o exposto, torna-se inevitável a compreensão seguinte: no fundamento que enlaça a linguagem e a sedução encontra-se a questão mais profunda – a verdade. Tanto seduzimos para obtê-la, quanto seduzimos para ocultá-la. A dominação – A cultura latina não esconde, em suas derivadas línguas, relações entre “atrair” e o “trair”, principalmente a Língua Portuguesa. Nesta, há claro processo de derivação entre elas, o que muito colabora para elucidar tantas passagens de nossa história, seja da mais remota, seja da mais recente. O sentido de “atrair” está impregnado de uma estratégia direcionada para a falsificação, a simulação. Promovendo um corte para as raízes da brasilidade, nelas identifica-se, como discurso de fundação, o signo da sedução: o encontro entre o colonizador e os habitantes indígenas. Mesclada aos tiros de canhões que provinham da esquadra, seguiu-se a exposição de quinquilharias com que o colonizador objetivava a invasão e a apropriação. José de Alencar, nos dois primeiros capítulos de Iracema, oferece ao leitor a metaforização do significado histórico do que representou a chegada dos portugueses e seus desdobramentos. Ardilosamente, Alencar atribui ao indígena o inicial ato agressor: Iracema, transitando pela floresta, ouve ruído e vê movimento entre as folhagens. Julgando tratar-se de um animal agressor, desfere uma flechada que atinge o jovem e belo Martim, português perdido na selva. Sentindo-se culpada, trata-lhe a ferida e, adiante, por ele se apaixona. Resultante da paixão (sedução), Iracema engravida e, ao dar à luz o filho Moacir, morre. Na construção alegórica de Alencar, o Brasil, representado na figura do recém-nascido (Moacir), nome que, em tupi, significa “o filho da dor”, é fruto de um “apaixonado extermínio”. Claramente, há, na obra indianoContinente julho 2004


»

66 ESPECIAL

Adão e Eva, Albrecht Dürer, Museu do Prado, Madri

De inspiração nitidamente norte-americana, ao longo das últimas décadas é perceptível a glorificação a tudo que cerca o “mito da jovialidade”. À frente desse formato a multiplicar os efeitos da aparência, encontramse os meios de comunicação de massa

nacionalista de Alencar, uma permanente tensão indissolúvel entre o pacto de sangue e de morte, diluído no derramamento sentimental de uma paixão impossível, como se o discurso da sedução procurasse atenuar ou disfarçar a política de uma cruel dominação. Como na narrativa bíblica, a história brasileira é contada com base num artifício de linguagem que, apoiado na sedução, faz vingar a “lógica perversa da tentação” da qual deriva o infortúnio. No enredo da sedução, há invariavelmente a construção de um “jogo” em que o sigilo das verdadeiras intenções se faz determinante para a obtenção do pretendido. Seguindo o atalho dessa conceituação, não se torna difícil deduzir que, em sociedades cuja prática do poder está envolta em redes com maior grau de opacidade, se verifique maior intensidade da “sedução” como modo de condução do próprio poder, em oposição a sociedades nas quais é maior a taxa de transparência. Em certo sentido, portanto, a vigência de maior ou menor presença de signos da sedução numa dada cultura revela seu estágio de infantilização ou amadurecimento. Tal diagnóstico se mostra bastante rentável, ao procurarem-se que signos são esses. Para tanto, cabe uma primeira indagação: O que associa a sedução à infantilização? A resposta pode ter elucidação inicial, a partir de uma definição de Jean Baudrillard: “Seduzir é morrer como realidade e produzir-se como engano”. O que Baudrillard resume de um modo tão pleno é o fato de cirurgicamente ir ao ponto central da questão. Quem seduz sabe que precisa negar a realidade das coisas para, por intermédio da ilusão, atingir o objetivo. Na outra ponta, está o seduzido para quem a realidade só é percebida pelo olhar turvo da ilusão. No discurso da sedução, vigora, pois, o duelo entre dois imaginários infantis. Ambos recusam o “princípio de realidade”, conforme Freud conceitua. A compreensão dessas implicações abre uma cena à parte. A infantilização – De inspiração nitidamente norte-americana, ao longo das últimas décadas, é perceptível a glorificação a tudo que cerca o “mito da jovialidade”. Não é preciso explicitar quanto nesse modelo figura a vida cultural brasileira. À frente desse formato a multiplicar os efeitos da aparência, encontram-se os meios de comunicação de massa. Por intermédio da ação deles, o processo é realimentado, gerando um quadro tendente à esquizofrenia cultural. De um lado, jovens, recém-saídos da adolescência, sem nenhum talento especial, afora o que seus corpos exibem, ganham, além de exuberanContinente julho 2004

tes salários, espaços e visibilidade cada vez mais generosos em sucessivas novelas, capas de revistas, reportagens, palcos e passarelas. De outro, jovens, recém-saídos da universidade, ou de cursos técnicos, destituídos de mínimas perspectivas, dada a escassez progressiva de ofertas. A princípio, a descrição do quadro anterior parece deslocada do tema em questão. Todavia, os aspectos pontuados são o gancho adequado ao


Reprodução

ESPECIAL 67 »

Que aspectos mais profundos habitavam o imaginário eleitoral brasileiro para produzirem a polarização entre a “esperança” e o “medo”, se sabidamente se trata de dois sentimentos próprios da “infância”? Um caminho se apresenta claro para a resposta às perguntas formuladas. Todas as questões convergem para a tensão entre “sedução” e “infantilização”. À estratégia da sedução, estão presas as forças sistêmicas; ao processo de infantilização, estão subordinadas camadas da população que, no entender de Hegel, representam a “consciência ingênua”. Em sociedades cujas estruturas dominantes precisam investir no mascaramento de suas práticas, é natural que elas recorram a expedientes requintados no propósito de ocultar. O fingimento passa a constituir-se no principal instrumento de sustentação, aliando-se ao controle sobre as fontes do conhecimento, sem que, para tanto, precisem da utilização da censura. No regime da sedução, não há lugar para o veto ou proibição. Pelo contrário, no jogo da sedução, há de vingar a idéia de que tudo é da ordem do permitido, visto que um dos atributos do sedutor depende da capacidade de convencer pela promessa de uma aventura libertária e prazerosa. É nesse contexto que podemos vislumbrar como pares se associam: liberdade – alegria; publicidade – sonho; ilusão – sucesso; riqueza – bênção; futuro – redenção. Em síntese, um modelo cultural que recusa a maturidade reflexiva, o “princípio de realidade”, deve confundir-se com o “princípio de prazer”, ou seja, há deliberado propósito em neutralizar-se a diferença fixada por Freud.

encaminhamento crítico seguinte. A quem interessam a infantilização e a acriticidade que o sistema midiático dissemina? Por que, na sociedade brasileira, gasta-se cada vez mais com verbas para a publicidade? Por que nos tornamos uma cultura de perfil consumista predominantemente audiovisual? Por que, progressivamente, a sociedade brasileira dá demonstrações claras de uma associação entre a política e o messianismo?

A aventura amorosa – Outra face da sedução tem larga tradição na cultura literária. Algumas referências se tornaram mais célebres, porque também mais conhecidas e citadas. Don Juan (Idade Média, na Espanha), Giacomo Casanova de Seinglat (vertente italiana: 1725 – 1798). Na tradição francesa, as personagens Valmont e a marquesa Merteuil, em Ligações Perigosas, Choderlos de Laclos (séc. 18), a desventura do jovem Werther, na criação narrativa alemã de Goethe, em fins do século 18, compõem a galeria. Nada, porém, se iguala à dimensão que o tema adquiriu, quando nos deparamos com a quase inesgotável produção romanesca a perpassar o século 19. Flaubert, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, José de Alencar e Machado de Assis, entre outros, legaram obras que demandariam reflexões e análises específicas que obviamente escapam à objetividade e resumida extensão deste escrito. Continente julho 2004


Reprodução

»

Iracema: a virgem dos lábios de mel, José Maria de Medeiros, Museu Nacional de Belas Artes, RJ

Igualmente, em diferente instância, nos campos político e religioso, abre-se amplo leque de possibilidades de leituras acerca dos procedimentos com os quais líderes locais ou mundiais promoveram diversificados “jogos de sedução”. Por mais estranho que pareça, desobstruídas as barreiras da crença, bem podem aproximar-se Jesus Cristo e Hitler, como agenciadores de massas, o mesmo estendendo-se a Mussolini, Maomé, Fidel Castro, Perón e Evita. São todos, antes de mais nada, fenômenos comunicacionais que, por meio do vigor da linguagem, capturaram o imaginário coletivo naquilo que há de mais instável no ser humano: a subjetividade em sua face emocional. É exatamente nesse mesmo espectro da face emocional que se configura a sedução transposta para a aventura amorosa. O que de mais profundo busca o sedutor na construção da cena amorosa? Que aspectos estratégicos estão em jogo? De início, cabe relatar que não foi ocasional a escolha da palavra “aventura”, em lugar, por exemplo, de “relação”. Cabe, pois, maior explicação quanto ao critério de nomeação. Semanticamente, algo separa uma da outra. Enquanto “aventura” pressupõe curta duração, “relação” sugere o oposto. Assim, já se deseja antecipar que, na cena amorosa, o processo de sedução exige um tempo ajustado – nem mais nem menos – para a obtenção do desejado. E o que define por completo a fronteira é o propósito ético a envolver o pacto. Na sedução, o prazer reside na capacidade de “A” dobrar a resistência de “B”. Na relação, “A” quer compartilhar de “B” e vice-versa. Continente julho 2004

Todos os movimentos da sedução devem ser tramados pelo sedutor. É ele quem espacializa, mesmo quando finge submissão. O fingimento das reais intenções norteia os gestos e os sentimentos do sedutor, armando a teia na qual sediará a presa. “A” sedia e “B” cede. Ambos parecem emoldurados pelo prazer, sem a percepção das diferenças entre as quais se situam a perversão de “A” e a morbidez de “B”. Na sedução amorosa, portanto, a morte (real ou simbólica) é inevitável. Ao infindo prazer, haverá de corresponder infinito sofrimento. Não é por outra razão que a vivência no regime da paixão é perigosa. Sob o fluxo intenso da paixão, turva-se a noção de distância, tão necessária para o ajuste do foco, da visão. Nem muito longe que o olhar não alcance; nem muito perto que o olhar embaralhe. Como saber a justa medida? Sim, a paixão não a reconhece. Como também é impossível que “A” e “B” saibam da igualdade com que vivem a intensidade dos sentimentos. É justo nesse ponto que se abre a perspectiva da sedução. Ambos temem, desconfiam. Mentem para si mesmos que só o que importa é o “outro”, quando, na verdade, é apenas o EU que clama pela posse definitiva. Tudo, pois, se torna aflitivo, ilimitado e devastador. Instalado o quadro, não há o que negociar. A generosidade da negociação é ultrapassada pela impetuosidade da sonegação (só negação). “A” passa a esconder de “B” e o enigma cresce, razão pela qual na paixão o que vinga não é o poder da razão, mas a razão do poder na sua desmedida volúpia e voraz dominação. Nesse sentido, dosar a vivência da paixão é perpetuar o processo civilizatório. De igual modo, intensificar o


Reprodução/AE

ESPECIAL 69 »

Todos os movimentos da sedução devem ser tramados pelo sedutor. É ele quem espacializa, mesmo quando finge submissão. O fingimento das reais intenções norteia os gestos e os sentimentos do sedutor, armando a teia na qual sediará a presa

O devasso Visconde deValmont (John Malkovich) seduz a virtuosa Madame de Tourvel (Michele Pfeiffer), em cena do filme Ligações Perigosas, baseado em livro de Choderlos de Laclos

regime de sedução na sociedade de consumo significa potencializar o fascínio pelos “objetos”. Numa ponta, situase o sedutor (o detentor do capital); na outra, o ser fragilizado pela dominação que investe e canaliza sua reatividade na aquisição do que move seu fascínio. Como mediadora dessa aventura, apresentam-se a publicidade e o marketing. Por que a sociedade de mercado tende a ser mais violenta que a sociedade de consumo? Porque os instrumentos com os quais a sociedade de mercado implementa sua lógica não dizem mais respeito a estratégias de sedução. Nessa altura, a etapa foi ultrapassada pelo “fluxo da compulsão”. Não há mais “jogo”. Somente o frio resultado: entronização do vencedor e eliminação do vencido. A reflexão proposta aparentemente saiu, de modo brusco, do enfoque da “aventura amorosa” para migrar para processos sistêmicos. Todavia, o roteiro está absolutamente coerente com o propósito delineado. Deseja-se exatamente demonstrar que as práticas a regerem sentimentalmente duas vidas estão perfeitamente sintonizadas com a lógica do processo civilizatório em curso. Assim, quando se pensa criticamente o discurso da sedução na esfera subjetiva, tem-se a possibilidade de ampliar a percepção para a “macrovida”. Na maioria das vezes, constata-se o equívoco promovido pelos recortes da sociologia e da psicologia, justamente em função da parcialidade de seus focos, a despeito de sofisticado aparelhamento teórico. Um privilegia a compreensão do que é sistêmico para explicar a conduta individual. Outro seleciona o sintoma do indivíduo para ajustá-lo ao modelo dominante. São dois olhares fraturados que deslizam sobre

realidades incompletas. O real desafio consiste no permanente estado de abertura do pensamento, a fim de melhor apreender e compreender acontecimentos sinuosos e, por vezes, assimétricos com os quais se molda a vida na simbiose de uma construção em mosaico, combinada com o movimento da espiral. Conclusão em máximas – O sedutor sempre quer o poder. Envolve o outro para dominá-lo. O sedutor precisa dominar, por saber-se frágil demais para compartilhar. O seduzido recusa o princípio de realidade, em favor de uma aposta no devaneio. Entre sedutor e seduzido, há sempre o encontro de seres inautênticos. A fragilidade e o masoquismo alimentam o jogo da sedução. Somente seres falsificados se entregam à sedução. O sedutor é um tirano acovardado. O tirano é um sedutor frustrado. Em ambos os casos, o poder exercido é sempre inautêntico. Ao sedutor, resta o gozo incompleto; ao seduzido, o gozo da entrega. Embora possa parecer o contrário, a atmosfera da sedução é a negação do erotismo. Ambos os parceiros estão fora da cena real. O sedutor, porque está preocupado com a condução da trama; o seduzido, porque se encontra invadido pela ilusão. Uma sociedade, sob a liderança da sedução, tende à infantilização. A experiência democrática no Brasil é marcada por esse aspecto. O sedutor é um traidor de si mesmo. O seduzido é um ser que, ao deixar-se atrair, trai sua liberdade e sua autonomia. O sentimento masoquista é o impulso que move sedutor e seduzido. Ambos se tornam reféns da perversão e da morbidez. Continente julho 2004


70 ESPECIAL

Anoréxicas e travestis

Bettmann/Corbis

»

A imagem do travesti é de um corpo modificado a partir de adições e de ornamentações, enquanto a imagem da anoréxica opera sucessivas subtrações até restar apenas uma unidade mínima Angela Prysthon

“S

ou uma garota Barbie, num mundo Barbie/ Vida em plástico, é fantástica/Você pode escovar meu cabelo, me despir em qualquer lugar/ Imaginação, é a sua criação”, “Barbie Girl”, do grupo Acqua. “Bochechas encolheram e desapareceram/ deslumbrante baixei para 38 quilos/ perdi o resto do meu lar/ vejo minha terceira costela aparecer/ uma semana depois toda a minha carne desaparece/ papel filme esticado, estirado por sobre o osso/ estou ficando melhor”. “4 st 7lb”, da banda galesa Manic Street Preachers, Uma das muitas promessas do discurso feminista diz respeito à possibilidade de se livrar de opressivos padrões de beleza. Em vários momentos quase achamos que tal promessa havia sido cumprida: ao longo do século 20, o feminismo (como movimento e como prática discursiva) nos deu em muitas ocasiões, de certo modo, a ilusão de que os padrões de beleza infligidos à mulher ocidental estavam superados. Essa ilusão, contudo, era quase sempre contrabalançada pela sua constante negação. Ou seja, ao mesmo tempo em que se consolidaram os ideais da liberação sexual, e exatamente na mesma medida em que cresceu a importância do feminismo, cresceram também as imposições da moda, explodiram as imagens cada vez mais explícitas da pornografia e da sedução feminina, inflacionaram-se os valores do espetáculo, o sexo se infiltrou de maneira assombrosa na esfera pública. Poderíamos dizer que esse paradoxo, aliás, é um dos principais alicerces da sociedade contemporânea. Na verdade, esse paradoxo dá origem a alguns outros paradoxos e compõe um cenário de intensos contrastes. Poderíamos muito bem elaborar uma lista, começando pela alta exposição de corpos colocando moralistas conservadores e feministas nas mesmas trincheiras – mesmo que por motivos essencialmente distintos; passando pela proliferação do pornográfico banalizando e esvaziando o erotismo; indo até o deslocamento de papéis sexuais que reformulam as “leis” da sexualidade sem, contudo, deixar de manter bem claras as demarcações entre os gêneros. Mas talvez seja mais interessante, a partir desse cenário – que é precisamente o imaginário contemporâneo da sedução –, pinçar duas imagens extremas (e, quiçá, por isso bastante úteis para compreender os caminhos do desejo na atualidade): a da anoréxica e a do travesti. Continente julho 2004

Num certo sentido a afirmação do corpo efetuada pela anorexia se dá pela sua quase completa negação: para os anoréxicos, o corpo desejável é aquele próximo da aniquilação; enfim, é uma meta inalcançável


A modelo inglesa Twigg, exemplo típico da estética anoréxica

Parece que o padrão dominante de beleza (com as suas várias nuances, nos seus mais diversos matizes) hoje remete inevitavelmente a uma ou outra das extremidades, muitas vezes até instituindo a esdrúxula combinação simultânea das duas imagens – que pode dar certo, especialmente se pensamos nas magérrimas top models com redondos seios siliconados, ou muito errado, como fica patente pelas últimas aparições de Michael Jackson, por exemplo. Ou seja, temos de um lado do espectro o excesso – de maquiagem, silicone, cabelos, chapinhas, curvas, tatuagens e botox – e de outro a privação absoluta, a ascese. O mais instigante de tudo isso é que, apesar de simbolizar concepções diametralmente opostas do corpo (a imagem do travesti é de um corpo modificado a partir de adições e de ornamentações, enquanto a imagem da anoréxica opera sucessivas sub-

trações até restar apenas uma unidade mínima), além de não serem excludentes, ambas fazem parte do mesmo ímpeto de sedução, do mesmo afã de concretizar um ideal de beleza (particularmente da beleza feminina), das mesmas estratégias do desejo. Tal ideal, de certa maneira, revela-se discrepante em relação aos supostos objetivos de toda a sedução. Pois ambas as concepções de corporalidade correspondem a subversões ou modificações do sexo. Na primeira, há uma exacerbação artificial da sexualidade, o feminino é definido a partir de suas partes: nádegas e seios opulentos, lábios carnudos, peles esticadas, roupas mínimas. A perfeição é buscada através da soma dessas partes. Partes perfeitas modificando o velho corpo, compondo o corpo perfeito, um look exemplar, um simulacro sem referente, sem idade. Na segunda, o corpo perfeito só pode ser Continente julho 2004


72 ESPECIAL

Gilberto Marques/AE

Travestis: estética do exagero e das adições físicas

alcançado através da purificação, através de um regime (em todos os sentidos da palavra) severo de autopunição e privação (não só de comida, mas também de sexo). Num certo sentido a afirmação do corpo efetuada pela anorexia se dá pela sua quase completa negação – para os anoréxicos, o corpo desejável é aquele próximo da aniquilação; enfim, é uma meta inalcançável. Oscilando entre esses dois modos e suas mais diversas nuances, vemos as musas contemporâneas desfilarem pelas passarelas, pelo cinema, pela televisão, pelas revistas semanais ilustradas com seus corpos modificados. Em algumas prevalece a imagem anoréxica, outras optam pela opulência travesti. Várias combinam a magreza semi-esquelética com lábios carnudos, amplos decotes, escovas japonesas e mínimas saias. Todas efetuando escolhas muito deliberadas na procura da beleza e da juventude. Enquanto isso, as feministas seguem empenhadas em denunciar os espartilhos imaginários da indústria cultural. Os moralistas continuam a sua cruzada contra a nudez midiática. Os nacionalistas reclamam da importação de padrões exógenos de beleza, da ditadura da Barbie; acusam a mídia e as divas midiáticas de terem esquecido a morenice brasileira, as fartas ancas mestiças em prol de

Continente julho 2004

bustos “turbinados” por silicone, os negros e crespos cabelos em troca de lisas madeixas em cadeia nacional. Poucos se dando conta que ao manejar os novos (e também os velhos) instrumentos da sedução, as reais e fictícias Gisele Bündchen, Luma de Oliveira, Juliana Paes, Danielle Winits, as jovens atrizes de Malhação, as VJs da MTV, Preta da novela das 19h, Darlene da novela das 20h ou a mulata Globeleza, entre muitas outras, não estão propriamente negando os ideais libertários dos anos 60 (de formas muito diversas das tradicionais elas até os reafirmam), ou recuando léguas no que diz respeito às conquistas mais básicas das mulheres nos últimos séculos. Mesmo mantendo alguns preconceitos e mitos a respeito do sexo feminino, as mulheres midiáticas do século 21 são a prova viva de que é cada vez mais fácil manipular, moldar seus corpos – de acordo, sim, com os padrões ditados pela moda, mas também de acordo com suas próprias vontades. Ou seja, mesmo que oferecendo um espectro com limites aparentemente demarcados (que estão entre a anorexia e o travestismo), essas novas corporalidades (ou, mais exatamente, possibilidades corporais) podem servir também como um interessante paralelo à lógica social da indeterminação que governa o feminino a partir do século 20: quase não há mais vias pré-traçadas, pré-organizadas que enquadrem a vida feminina, que determinem os destinos da mulher na sociedade. Do mesmo modo, poderíamos ver no contemporâneo que o corpo (e em especial o corpo feminino) não precisa mais se sujeitar nem aos desígnios da genética, nem da gravidade e ainda menos dos limites entre os gêneros, muito embora esse mesmo corpo esteja o tempo inteiro atento às oscilações da moda, da sedução e das frivolidades em geral. •


73

» Max Carneiro da Cunha

TRADIÇÕES

Os praiás representam o elo com o sobrenatural para o povo Pankararu

A música encantada A música indígena, principal instrumento de preservação da memória e das tradições de um povo, é alvo de pesquisas antropológicas e etnomusicológicas Fábio Araújo

“P

ovo que não tem toré não tem força. Não tem consciência. Não tem sabedoria”. O brilho nos olhos e a paixão expressa nas palavras da professora indígena Sônia Truká são impressionantes. Em apenas três frases e 14 palavras, ela expressa de forma categórica o papel exercido pela música entre os índios do Nordeste. Manifestações como o toré – a mais conhecida e difundida delas – têm um significado muito maior do que muitos não-índios podem imaginar. As danças estão intrinsecamente ligadas ao universo do simbólico e do sagrado, à religiosidade, à identidade cultural e à organização social dos povos indígenas. São o elo com o sobrenatural, com os encantados que os protegem. São o principal instrumento para manter as próximas

gerações unidas em torno de sua condição de índios. E foram, num momento crucial da auto-afirmação dos índios, fatores decisivos para seu reconhecimento enquanto grupos étnicos diferenciados. Com a Constituição de 1988, que deu novo impulso à luta pela demarcação e regularização fundiária das terras indígenas, os povos espalhados pelo Brasil descobriram que “as tradições” eram talvez sua maior arma para verem reconhecido o status de verdadeiros índios – muitas vezes questionado, pois os séculos de colonização e violência destruíram boa parte da cultura original. Segundo a antropóloga Vânia Fialho, a partir deste momento, manifestações que estavam “abafadas” foram atualizadas, retrabalhadas e difundidas dentro das próprias aldeias. Vânia acompanhou de Continente julho 2004


»

TRADIÇÕES 7474 Fotos: Robert Fabisak/Ag. Lumiar

A marcha Xukuru é marcada pelas maracas e passos do Toré

perto, e relata em seu livro As Fronteiras do Ser Xukuru, um exemplo concreto desse fenômeno. Todo dia 6 de janeiro, os Xukuru (de Pesqueira, Agreste de Pernambuco) realizavam um ritual fechado na área sagrada conhecida como Pedra d’Água. Apenas os “iniciados” participavam. Porém, a partir dos anos 90 – justamente quando esse povo assumiu uma postura mais reivindicatória – a “Festa de Reis” passou a envolver toda a população na dança do toré. Presente em todos os dez povos indígenas de Pernambuco, com a possível exceção dos Pankará, o toré é uma música/dança ritual que entra no campo do sagrado, tem caráter religioso e político e é evocada em momentos de alegria e tristeza. É uma expressão performática relacionada ao universo simbólico dos índios. As letras do toré falam em entidades, animais, matas, a força dos índios. “Não há como falar em música indígena sem levar em conta a religião”, define Vânia. Para entrar em contato com os encantados durante os rituais, os índios lançam mão da jurema, uma bebida sagrada que os leva a outra dimensão. A musicalidade é criada com maracas, “jupagos” (espécie de vara que é batida no chão) e instrumentos de sopro como o “mibim”. Nas letras, sinais evidentes de sincretismo religioso. Vânia cita algumas músicas entoadas na Festa de Reis, que invocam figuras, como “Rei Jericó”, “Rei Canaã”, “São Jorge Guerreiro” e “Oxalá”. Nem sempre é fácil estudar os rituais, pois os pajés e iniciados evitam falar sobre suas tradições, como forma de preservá-las. Diante do interesse de Vânia Fialho em acompanhar a Festa de Reis, o Continente julho 2004

pajé Zequinha, dos Xukuru, tentava despistá-la afirmando que era apenas “xangô”. Paulo Alves Laurentino, índio Pipipã que integra a Comissão de Professores Indígenas de Pernambuco (Copipe), explica como a música e dança são usadas como ferramenta pedagógica para os 348 alunos das quatro escolas da reserva. “A gente trabalha com a afirmação de nossa identidade étnica a partir do toré, para que a criança futuramente não tenha vergonha de ser índio. O toré entra em todas as aulas, seja de Português, Matemática, Física, Geografia e História”, diz. Por exemplo, em vez de perguntar “quantas crianças estão vendo TV?”, o professor indígena de Matemática questiona “quantas crianças estão assistindo ao toré?” Em sua tese de mestrado, intitulada A Música Encantada dos Índios Pankararu, o mestre em antropologia e doutorando em etnomusicologia, pela Universidade do Texas, Maximiliano Carneiro da Cunha traça um panorama da música produzida por este povo, segundo ele uma das poucas sociedades indígenas do Nordeste que mantém traços característicos de sua cultura original. Habitantes do Vale do São Francisco, nos municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá, os Pankararu não escaparam à catequese promovida pelos missionários cristãos. Assim, hoje em dia, sua religião aparente é a católica, havendo inclusive uma igreja instalada na principal aldeia. Mas a cultura indígena sobrevive, pois a população das aldeias cultiva a crença nos encantados, entidades sobrenaturais que protegem e aconselham. De acordo com Maximiliano, os encantados exercem um papel de fundamental importância na vida cultural e social dos Pankararu, que os reverenciam como espíritos de importantes antepassados. Em sua forma terrena, estas “entidades” são representadas pelos praiás – indivíduos designados pelas lideranças – que dançam as músicas tocadas nos cerimoniais usando uma máscara que cobre todo seu corpo. Muito além do campo religioso, a crença nos encantados é a base do sistema político interno do grupo, influenciando a economia e o sistema de parentesco. Mas é na música que estes seres sobrenaturais aparecem com mais força na cultura dos Pankararu. A música é usada para invocar a presença dos encantados nos cerimoniais públicos, como a Festa do Imbu ou o Menino do Rancho, ou nos fechados, quando entram em contato com as entidades para pedir ajuda. Toantes e Praiás – Os Pankararu praticam dois gêneros musicais. O toante, de caráter sagrado, é cantado apenas por cantadores especiais e dançado apenas pelos praiás. Já o toré, presente na maioria das sociedades indígenas do Nordeste, é cantado, dançado e tocado por todos os participantes dos


Os Pipipã usam o toré como elemento definidor da identidade étnica

“O senhor não bota um telefone no ouvido e ouve e tá escutando em qualquer canto do país? É igualmente. Às vezes eu tô aqui, até sem assunto. Ele balança aquela mata e aí chegou aquela visão no ouvido do cabra. Lá vem, balançando e a cantiga saindo. Pois é!” cerimoniais. “Os Pankararu cantam porque ouvem música. Em outras palavras, enquanto estão cantando estão ouvindo um encantado entoando seu toante. Existe não só uma comunicação unilateral, mas um diálogo entre um Pankararu e um encantado”, atesta o pesquisador. A presença das entidades sobrenaturais é descrita, na tese de Maximiliano, pelo índio Miguel Binga: “O senhor não bota um telefone no ouvido e ouve e tá escutando em qualquer canto do país? É igualmente. Às vezes eu tô aqui, até sem assunto. Ele balança aquela mata e aí chegou aquela visão no ouvido do cabra. Lá vem, balançando e a cantiga saindo. Pois é!” A maioria dos depoimentos colhidos por Maximiliano afirma que a música é passada para os cantadores através dos encantados. Eles não apenas ensinam toantes e torés, mas também escolhem os cantadores, aparecendo para estes em sonho. Quem aprende as canções passa a ser considerado médium pelos Pankararu. Como disse a cantadeira Quitéria Binga, “tem que ter aquele dom”. Os escolhidos passam a ser muito respeitados no grupo, pois têm a missão de invocar os encantados nas festas e rituais. Maximiliano Carneiro da Cunha afirma ter descoberto,

em sua pesquisa, “uma música ritual que diverte, uma música que cura, mas especialmente, uma música sagrada, isto é, uma música cujo propósito é a ligação entre o mundo real dos Pankararu e o mundo sobrenatural dos encantados”. Encarando o culto a essas entidades como o centro da cultura dos Pankararu, Carneiro da Cunha afirma que a música ritual dos Pankararu tanto é utilizada para a manutenção dos cerimoniais do grupo, quanto para o reconhecimento dos Pankararu perante a sociedade que os envolve. Territorialização – Voltando ao papel da música enquanto definidora de uma identidade indígena, o coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade da UFPE, Renato Athias, afirma que grande parte do reconhecimento étnico dos índios de Pernambuco está associado à forma de cantar, dançar e produzir música. Há uma “maneira indígena” de produzir música. Esse fator está associado à territorialização, tendo influenciado o processo de demarcação das terras dos índios. Cada um dos dez povos presentes no Estado – Fulni-ô, Pankararu, Xukuru, Kapinawá, Kambiwá, Tuxá, Truká, Atikum, Pipipã e Pankará – possui um Continente julho 2004


»

TRADIÇÕES 7676 toré específico, com forma rítmica distinta, capaz de definir a identidade do grupo. As músicas têm significado próprio, ligado a um ritual e a um período específico dentro do calendário dos povos. Por exemplo, há músicas que só são cantadas durante o “ouricuri”, período de três meses que os Fulni-ô (de Águas Belas, Agreste de Pernambuco) se isolam numa área proibida para não-iniciados. O professor Renato Athias afirma que a música indígena de hoje não é, seguramente, a mesma de 500 anos atrás. Grande parte da música dos índios tem relação com a sociedade que os cerca, pois a cultura é dinâmica e vai definindo novos conteúdos à medida que se relaciona com os distintos grupos. Mas o professor garante que as manifestações são, sim, autênticas e específicas das comunidades indígenas. Na música indígena, o dançar não é igual para todos. Cada grupo preza por um conteúdo bem distinto e etnicamente diferenciado, o que multiplica a riqueza do conjunto. Além do toré e dos toantes, Athias cita outros estilos musicais indígenas presentes em Pernambuco, como as músicas de festas ou rituais; as músicas de mesa de cura; e as danças presentes nas “brincadeiras”, voltadas mais para a diversão pura. Maria Acselrad

“Menino do Rancho”, ritual dos Pankararu

Continente julho 2004

Ressurgimento – Para os recém-reconhecidos índios Pipipã, moradores do Sertão da Serra Negra, em Floresta, o toré foi um elemento fundamental na definição e demarcação de sua identidade enquanto grupo indígena específico. Em maio de 1998, uma cisão interna entre os Kambiwá levou ao “ressurgimento” dos Pipipã, povo considerado oficialmente extinto. Os índios estavam reunidos e cogitavase a deposição do então pajé Kambiwá, Expedito Roseno. A crise provocou uma eleição para pajé e cacique, que acabou num impasse sobre seu resultado. Expedito, acompanhado por seis famílias, foi para a aldeia Travessão do Ouro e resgatou o etnônimo Pipipã – referente a uma nação que habitara aquelas terras, porém não mais existia – para denominar o grupo, que logo foi reforçado pelos moradores de outras cinco aldeias. O rompimento foi simbolizado pela queima das maracas e cataiobas, usados na dança do toré, numa atitude que simbolizava o repúdio à situação anterior. Para “justificar” sua existência enquanto grupo indígena separado dos Kambiwá, os novos Pipipã usaram o mote da diferença cultural, opondo o toré à dança dos praiá, que caracteriza os Kambiwá e os liga aos Pankararu. Em sua tese de mestrado em Antropologia Toré e Identidade Étnica: Os Pipipã de Kambixuru, o professor Jozelito Alves Arcanjo – educador do Projeto Escola de Índios, do Centro de Cultura Luiz Freire – considera que “o principal elemento que distingue um Pipipã é a sua predisposição para a Dança do Toré”. Jozelito estudou o processo de construção da identidade Pipipã para compreender como o toré está integrado em sua estrutura social. Neste contexto, em que os ressurgidos Pipipã precisavam legitimar sua nova identidade em busca de reconhecimento, a dança do toré adquiriu natureza ao mesmo tempo política, ritualística e lúdica. “A Dança do Toré revela-se, portanto, capital cultural, moeda corrente na relação de inclusão e exclusão entre os Pipipã. Trata-se de uma identidade política no processo de produção da ‘indianidade’ Pipipã”, escreve Jozelito, para quem o toré é uma música/ dança ritual que está no campo do sagrado. O toré pode ser considerado fruto de hibridismo cultural, pois os demais ritmos da região, como o xaxado, o baião, o forró pé-de-serra, estão nele imbricados, junto com elementos de cultos afro e católicos. Essa relação de “trocas intraculturais” fica visível nas flautas feitas de PVC e nas calças jeans usados pelos indígenas. Pelo menos até agora, os Pipipã têm obtido sucesso em sua luta pelo reconhecimento externo: entre 2000 e 2003, o número oficial de integrantes do grupo passou de 591 para 1.312.


FQV/Divulgação

Banda de pífanos Leitão da Carapuça, Afogados da Ingazeira, Pernambuco

O som inesperado Fundação Quinteto Violado grava CD com músicas presentes nos lugares mais inóspitos do país

A

música dos índios pernambucanos ganha, em julho, um importante instrumento para sua preservação e divulgação. A Fundação Quinteto Violado (FQV), ligada à famosa banda homônima, incluiu o grupo Fulni-ô de dança Ooyádmanedw-á numa ambiciosa série de projetos voltados ao levantamento, registro e divulgação de elementos culturais. De 2 a 4 de maio, o estúdio móvel do Quinteto foi levado à aldeia – em Águas Belas, no Agreste do Estado – para uma gravação ao vivo com o grupo. O trabalho resultou em um CD, com 2 mil cópias, que está sendo lançado este mês, a ser comercializado em parte pelos próprios índios. Está prevista a realização de trabalho semelhante com os Xukuru. O registro cresce em importância quando se sabe que os Fulni-ô preservam um tesouro de valor incalculável: a língua yathê, único idioma indígena vivo de todo o Nordeste. É uma língua isolada, não relacionada a nenhuma outra. A gravação do CD, registrando as expressões musicais dos Fulni-ô, portanto, contribui para a eternização e disseminação deste patrimônio. São 14 canções, cujas letras estão no encarte em yathê e na tradução para o português. A sobrevivência da língua impressiona ainda mais porque estes índios vivem em contato diário e direto com o não-índio. A aldeia está inserida na zona urbana de Águas Belas. Outro produto cultural em fase de produção na FQV vem do nordeste da Bahia, mais precisamente do município de Valente. A região tem no cultivo e beneficiamento do sisal

uma de suas principais fontes de renda. A planta é usada de várias formas, inclusive no artesanato. Enquanto trabalham, as artesãs – “cantadeiras do sisal” – improvisam versos e toadas características, que já foram registradas pelo estúdio do Quinteto e resultarão num CD, também com 2 mil cópias. A gravação aconteceu em duas etapas: parte das faixas traz o canto espontâneo das artesãs enquanto trabalhavam, e o restante teve um lado mais “profissional”, com mulheres já habituadas a subir ao palco. Uma das músicas, bastante conhecida do grande público, “Amor de Longe”, já gravada por Marisa Monte e Carlinhos Brown, é originária da região. Curiosidade: o álbum será distribuído dentro de uma embalagem de sisal. Estão também em pauta as quebradeiras de coco do Maranhão, o tambor de crioula da divisa Piauí/Maranhão e, numa perspectiva mais distante, a cultura cabocla de Santa Catarina e a música dos índios Terena, do Mato Grosso do Sul. A filosofia dos projetos da FQV é aliar preservação cultural com desenvolvimento econômico sustentável. Realizadas junto a parceiros como o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Projeto Dom Hélder, as iniciativas já resultaram em CDs que registram, por exemplo, a Missa do Vaqueiro de Serrita, a música do Coral Aboios, a “pifeira” Zabé da Loca (conhecida por ter morado durante anos dentro de uma gruta) e duas bandas de Afogados da Ingazeira: o Grupo de Coco Negros e Negras do Sertão e a Banda de Pífanos Leitão da Carapuça. (F.A.) • Continente julho 2004


Anúncio


Anúncio


»

80

CONTEMPORANEIDADE

Jaume Balañá/Divulgação/Fórum Barcelona 2004

O encontro das culturas

O Fórum de Barcelona destaca o respeito e o conhecimento das divergências culturais como condições para a paz Mariana Oliveira

Continente julho 2004


CONTEMPORANEIDADE

81

»

Reprodução

É difícil definir o Fórum Universal das Culturas, que desde o início de maio se realiza em Barcelona. “As olimpíadas da cultura”, “a grande exposição universal”, ou, até mesmo, “o encontro que moverá o mundo” são alguns dos termos já utilizados ao longo dos últimos dois meses para definir o evento. O jornal francês Le Monde tentou simplificar e o chamou de “a grande festa de todas as culturas”. Definições à parte, o Fórum tem conseguido chamar a atenção do mundo e levar muita gente à capital da Catalunha. Após os atentados terroristas do 11 de março, em Madri, os espanhóis parecem querer demonstrar a importância de discutir a diversidade cultural no mundo. Dentro da própria Espanha, essas variações são bastante perceptíveis. Para um povo que sofre há anos com o terrorismo vinculado às diferenças, discutir a convivência harmônica entre todas as culturas é pertinente. As três colunas do Fórum, realizado pela Prefeitura de Barcelona, Governo da Catalunha e Governo Espanhol, com o apoio da Unesco, são: desenvolvimento sustentável, diversidade cultural e condições para a paz. Segundo os organizadores, a partir do reconhecimento da diversidade cultural é possível viver em paz. Barcelona – a cidade européia com maior crescimento turístico da última década – parece ter um perfil adequado para a realização de grandes eventos. Em 1992, foi sede dos Jogos Olímpicos e também já recebeu, duas vezes, em 1888 e 1929, as Exposições Universais. Para sediar o Fórum, um trecho da cidade sofreu uma das maiores intervenções urbanas da Europa. O Recinto Fórum foi construído numa área litorânea entre a Vila Olímpica e o município operário de Sant Adrià de Besòs, onde prisioneiros políticos eram mortos durante o franquismo. Foram investidos mais de 300 milhões de euros para erguer o conjunto arquitetônico, cujas peças-chave são uma praça, um edifício triangular (emblema do evento), um parque de auditórios, outro da paz, um porto e um centro de convenções, todos voltados para o mar Mediterrâneo. A maioria das apresentações culturais ocorre na praça Fórum (epicentro dos acon-

Depois dos Jogos Olímpicos de 1992, Barcelona se tornou um dos maiores destinos turísticos da Europa

Continente julho 2004


»

CONTEMPORANEIDADE 8282 Agustí Argelich/Divulgação/Fórum Barcelona 2004

Vista aérea do Recinto Fórum

tecimentos), que possui dimensões expressivas, sendo a segunda maior do mundo, perdendo apenas para a Praça da Paz Celestial, em Pequim. Mas, o Recinto é apenas o ponto de partida. As ruas da cidade também estão sediando espetáculos e apresentações diversas. São 141 dias consecutivos de evento (9 de maio a 26 de setembro), ocupados por 49 diálogos, mais de 23 exposições, 60 apresentações de teatro e dança, 30 festas, cerca de 450 shows com 170 artistas. Espera-se que, ao final do Fórum, mais de cinco milhões de pessoas tenham participado. Dentro da programação, há o Fórum Diálogo que promove congressos e conferências com palestrantes de todo o mundo – cerca de 1500 foram convidados – para discutir os principais problemas da atualidade. José Saramago, Paulo Coelho e Mikhail Gorbachov foram alguns dos nomes que já trocaram idéias em Barcelona. Em agosto, o grande desContinente julho 2004

taque será o III Festival Mundial da Juventude que deve reunir cerca de dez mil jovens. O presidente Luís Inácio Lula da Silva também vai dar a sua contribuição às discussões, este mês, no diálogo “Pobreza, Microcrédito e Desenvolvimento”. As conclusões do Fórum Cultural de São Paulo, realizado entre os dias 26 de junho e 4 de julho, vão servir como ferramentas para o diálogo “Direitos Culturais e Desenvolvimento Humano, Novos Espaços Multiculturais”, no mesmo mês. O Fórum Cidade, por sua vez, converte toda Barcelona num cenário do Fórum, levando para as ruas, fundações e museus exposições, espetáculos, óperas e concertos. Carlinhos Brown contagiou os espanhóis e os turistas com o Carnavolona, carnaval fora de época que cruzou a avenida Paseo de Gracia, no mês de maio. Sting, Norah Jones e Gilberto Gil também já participaram. Em julho, as brasileiras Bebel


CONTEMPORANEIDADE

83

Joan Roca de Viñals/Divulgação/Fórum Barcelona 2004

Gilberto e Adriana Calcanhoto mostrarão seus trabalhos, bem como o cantor argentino Fito Páez. Grande parte das exposições se encaixa, de alguma maneira, nas colunas definidas no evento. Dentro do Recinto, estão abertas, desde o início, quatro exposições temáticas: Vozes (celebra a diversidade lingüística), Habitar o Mundo (destaca a relação entre o homem e seu entorno), Cidades e Esquinas (observa como as esquinas urbanas são expoentes da diversidade e das condições culturais e geográficas) e Guerreiros de Xi’An (que expõe relíquias arqueológicas da arte chinesa). Há outras 23 exposições espalhadas pela cidade. O Museu Picasso apresenta Picasso: Guerra y Paz, que reúne 300 obras do pintor relacionadas ao tema, e o Museu de História da Cidade apresenta a mostra A Condição Humana: o Sonho de Uma Sombra, que valoriza os aspectos comuns a todos os homens. O Fórum está longe de ser unanimidade. Vários grupos de esquerda ou antiglobalização alegam que ele tem um objetivo mais turístico e comercial do que humanitário. O preço do ingresso também é bastante criticado. A entrada para um dia de evento custa 21 euros (cerca de R$ 74,00) . O pacote para temporada sai por 168 euros (R$ 588,00). Críticas à parte, Barcelona está concentrando diálogos, espetáculos de dança, teatro, música, exposições de artes plásticas, de relíquias arqueológicas, que enriquecem ainda mais a visita à cidade. Cabe a cada um tentar definir esse Fórum que, de tão grande, torna-se um tanto indefinível. • O carnaval fora de época comandado por Carlinhos Brown, na avenida Paseo de Gracia. Ao fundo, a casa Batlló, projeto do catalão Antonio Gaudí

Mais Informações: www.barcelona2004.org

Marina Premià/Divulgação/Fórum Barcelona 2004

O infográfico mostra a grandiosidade do Recinto Fórum e destaca (com pontos coloridos) a variada programação que vem acontecendo há cerca de dois meses Continente julho 2004


84 HISTÓRIA

Reprodução / Coleção Beatriz e Mário Pimenta Camargo

»

Paisagem alegórica do Porto do Recife (detalhe), Gillis Peeters, 1637, óleo sobre tela

Notícias de uma guerra de conquista Companhia Editora de Pernambuco lança série de obras fora de catálogo com abordagens diferentes sobre a invasão e a expulsão dos holandeses de Pernambuco, no século 17 Homero Fonseca Continente julho 2004

16 de fevereiro de 1630 Cena 1 – Oração e vinho para dar coragem Na noite anterior, a poderosa frota de 65 embarcações comandada pelo general Henrick Lonck posicionou-se, em forma de meia-lua, em frente ao Forte de S. Jorge e iniciou o bombardeio. Pela manhã, sob o comando do coronel Diederik van Waerdenburch, as tropas preparavam-se para desembarcar em Olinda. O coronel convocou todos os oficiais ao seu navio. “Reunidos de novo oramos publicamente a Deus; em seguida comemos um pouco para robustecer o corpo, pois o coração e alma estavam fortes e corajosos, mercê de Deus. (...) Depois, o senhor coronel fez vir à câmara todos os soldados que se achavam no navio, em número de 300, aos grupos de oito e 10, e escançou a cada um um trago de vinho de Espanha, exortando-os à coragem e ao valor”...


HISTÓRIA 85 Cena 2 – O ataque “Marchamos, ao longo da praia ou margem do mar, contra a cidade de Olinda, que distinguíamos perfeitamente, situada em cima do monte. (...) Durante o trajeto, houve várias pequenas escaramuças.(...) Neste passo encontramos a primeira e mais forte resistência, pois ali achavam-se para mais de 1.800 homens, a cavalo e a pé, atrás de um parapeito. (...) Travou-se uma violenta peleja, ficando de ambos os lados muitos no terreno e não menos feridos. Após longo batalhar conseguimos expulsar os inimigos da sua vantajosa posição. (...) Assaltamos à viva força o Convento dos Jesuítas, levando a ferro e fogo quantos ousaram resistir-nos. Em seguida, fizemos flutuar da torre e das janelas afora as nossas bandeiras”. Cena 3 – A fuga “Veio a armada holandesa endireitando com o Recife, e começou a despedir tantas balas com a artilharia que parece que choviam do mar para a terra. (...) Cerrou-se a noite e começaram a deitar fora das vilas suas mulheres e filhos, e o mais precioso que puderam de suas fazendas. (...) O querer agora tratar da grande confusão, e desamparo em que se viram as viúvas, casadas e donzelas, e os meninos inocentes. (....) E com tanta pressa, que o marido não sabia da mulher, nem as mães dos filhos, e filhas; o temor era grande, o perigo certo, a morte presente, o remédio não era outro senão dar clamores aos céus, com os olhos arrasados de lágrimas”. Cada cena acima representa um ângulo de visão do desembarque das tropas a serviço da Companhia das Índias Ocidentais (WIC), que somente seriam expulsas do Brasil 24 anos depois, na chamada Restauração Pernambucana, há exatos 350 anos. A primeira é relatada pelo reverendo calvinista João Baers, capelão da armada da WIC, 49 anos, publicada em Amsterdam, em 1653, com o título, resumido, de Olinda Conquistada; a segunda, por Ambrósio Richshoffer, aos 18

anos alistado na expedição holandesa, em seu Diário de um Soldado, editado em Estrasburgo em 1677, 47 anos após os acontecimentos. A última está no livro O Valeroso Lucideno, do frei Manoel Calado do Salvador, cuja primeira edição, em Lisboa, é de 1653, e que foi considerado, pelo historiador José Antônio Gonsalves de Mello, “o mais valioso do século 17, em língua portuguesa, acerca do domínio holandês no Brasil”. Essas três obras, “de há muito desaparecidas das prateleiras das livrarias”, como assinala o historiador Leonardo Dantas, integram a série 350 Anos – Restauração Pernambucana, editada pela Companhia Editora de Pernambuco, sob a coordenação editorial do próprio Leonardo. Outras quatro que completam a série e serão lançadas ainda este semestre são: História da Guerra de Pernambuco, de Diogo Lopes Santiago; Os Holandeses no Brasil, de Charles Ralph Boxer; O Domínio Colonial Holandês no Brasil, de Hermann Watjen, e Fontes para História do Brasil Holandês (Economia Açucareira, Administração da Conquista), de José Antônio Gonsalves de Mello. O Lucideno saiu em dois volumes e os relatos de Richshoffer e Baers foram enfeixados num só volume. São obras de notável valor histórico. O secretário de Estado Dorany Sampaio, presidente da comissão organizadora dos festejos pelos 350 anos da Restauração Pernambucana, afirma, na apresentação das obras, que “esse capítulo da história colonial brasileira assinala (...) lutas e fatos da maior significação na construção da identidade nacional.” Ao entregar ao público essas preciosas peças da nossa historiografia, o presidente da Cepe, Marcelo Maciel, informou que os lançamentos fazem parte do programa de apoio editorial à cultura pernambucana, como outras iniciativas da editora do Governo do Estado, a exemplo da publicação da Revista Continente Multicultural. •

O Valeroso Lucideno, de Frei Manoel Calado do Salvador, CEPE, 2004, 350 páginas (volume I) e 316 páginas (volume II). Diário de um Soldado, de Ambrósio Richshoffer, 195 páginas, e Olinda Conquistada, de Padre João Baers, CEPE, 2004, 54 páginas, volume único.

Continente julho 2004


»

86 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Ali Babá e os 40 Malufes Os personagens de As Mil e Uma Noites e os poderosos ladrões do dia-a-dia brasileiro permanecem indecifráveis para mim

T

odo mundo já leu ou escutou a história de Ali Babá e os 40 ladrões, do livro As Mil e Uma Noites. Existe até uma gravação em disco, bem antiga, com os estereótipos que, desde a edição francesa de Antoine Galland, o Ocidente criou sobre o Oriente. Eu adorava esse conto, mas nunca compreendia porque os ladrões ocultavam os tesouros roubados, dentro de uma caverna. Tentava imaginar o dia em que eles, finalmente, usariam os fardos de brocados e sedas, os tapetes de elevado preço, e gastariam as moedas de ouro e prata guardadas em sacos e bolsas de couro. No Oriente, principalmente na Índia, onde as histórias do livro têm origem e depois se difundem através dos árabes, tudo possui proporções infinitas. As riquezas dos ladrões pareciam incalculáveis, a mais delirante das fantasias não imaginaria o seu tamanho. No relato de Sherazade, os ladrões não chegam a usufruir o roubo. Trinta e sete deles são mortos dentro de jarros de barro, queimados com azeite quente, dois executados, e o chefe do bando atravessado pelo punhal de Morgiana, a escrava fiel de Ali Babá. O tesouro custosamente roubado ao longo de uma vida de crimes e maldades termina nas mãos de um mais esperto, Ali Babá, que acreditava não ser crime apropriar-se do furto praticado por outros. A caverna se abria com uma senha mágica: “Abre-te Sésamo”. Sem a fórmula, tudo se guardaria escondido, oculto para sempre. Ela excitava a imaginação das crianças, como os hackers de hoje se excitam na perspectiva de vasculhar os segredos dos computadores alheios.

Continente julho 2004

Os acontecimentos do Brasil nos levam a acreditar que Sherazade continua emendando histórias, uma puxando a outra. A mais recente é a de Paulo Salim Maluf, adaptada aos tempos cibernéticos. Descobriu-se que Maluf possui uma caverna num banco suíço, onde depositou a fortuna desviada de cofres públicos, nos períodos em que foi prefeito da cidade de São Paulo e governador do Estado. Por um acaso, Ali Babá presenciou os ladrões entrando na gruta secreta e ouviu-os gritando as palavras mágicas. Já a Polícia Federal brasileira precisou rastrear depósitos e contas bancárias, até chegar à boca da gruta. Porém, como de outras vezes em que se suspeitou de contas misteriosas, a sorte não permitiu que eles também descobrissem a senha, o “abre-te sésamo” que daria acesso ao dinheiro. Acredito que Maluf entrou na história de Aladim, apoderou-se da lâmpada maravilhosa, esfregou-a, e ordenou ao gênio que transferisse os seus milhões para outra conta bancária, em outro paraíso fiscal. Não se espantem! É sempre assim que acontece. Não temos notícia de um final feliz como o de Ali Babá, a prata e o ouro retornando para os nossos cofres, sendo gastos em projetos sociais ou num carnaval das arábias. Os 40 ladrões dAs Mil e Uma Noites e os poderosos ladrões do dia-a-dia brasileiro permanecem indecifráveis para mim. Como usufruem o que roubam, se passam a vida acumulando e escondendo? Será o desejo de poder que os motiva? Os faraós egípcios supunham-se divinos e acreditavam que após a morte a alma regressaria ao corpo, e por


ENTREMEZ 87

isso construíam pirâmides, onde eram sepultados com objetos pessoais, utensílios domésticos e ricos tesouros. A elevação desses monumentos custou o sacrifício de muitas vidas. A construção de Brasília e da Ponte Rio-Niterói, também. No caso dos faraós e das pirâmides, havia uma motivação religiosa para o acúmulo de tesouros e a morte de milhares de pessoas. Houve motivações de poder e desejo de perpetuar-se para a história, nas pessoas que idealizaram Brasília e a Ponte Rio-Niterói. Mas acredito que houve, sobretudo, o interesse de servir à coletividade, de promover a vida. Em casos como o de Sérgio Naya, Luís Estevão, Jáder Barbalho, Celso Pitta, Maluf, o juiz Nicolau e muitos outros, os motivos para o acúmulo ilícito de riquezas parecem ser os da pura ganância e do individualismo. A História permeia-se de guerras, saques e pilhagens. Basta ler a Ilíada e se estarrecer com os heróis engalfinhados sobre o cadáver dos inimigos para roubar escudos, elmos, espadas e lanças. Mas nada se compara às tramas fraudulentas dos políticos, aos jogos de poder, às sonegações, à mão enfiada no erário público. As guerras obedecem ao movimento de muitas vontades, a uma pulsão co-

letiva, com justificativas e intenções por detrás. Os roubos cometidos contra o povo e a nação parecem invisíveis, sem conseqüências. Mas a nação empobrece, amesquinha-se, deixa de acreditar na democracia. As pessoas comuns passam a justificar os seus erros e a falta de ética, espelhandose no exemplo desonesto dos que detêm o poder. Maluf afirmou que Deus ouviria o relato de seus feitos administrativos, contados durante dois meses, e o mandaria passar apenas 10 minutos no purgatório, abrindo-lhe em seguida as portas do céu. Muito generoso esse Deus, bem diferente de Alá. A pobre Sherazade passou acordada mil e uma noites, tentando aplacar a ira do sultão que fora traído pela primeira esposa, e condenara à morte todas as mulheres com quem se casasse, após dormirem uma primeira noite com ele. Não sei se Maluf impressionará Deus com a sua inocência ou o seu poder de convencimento. Em qualquer das hipóteses, vivemos a perspectiva de um novo acontecimento literário. As Mil e Uma Noites também ficaram conhecidas como As Noites Árabes. Quem sabe, teremos agora “Os Dias Brasileiros”, com Maluf no papel de narrador e Deus no de ouvinte? • Continente julho 2004


88

Imagens: Divulgação

AGENDA

»

ARTES PLÁSTICAS

O olhar de Uiso Expressionismo social aporta no Museu do Estado, que faz sua primeira exposição internacional A Espanha desembarcou no Brasil e trouxe o artista plástico Uiso Alemany, natural de Valência, para, a convite do Governo do Estado de Pernambuco, vivenciar as formas de expressão do povo e da arte pernambucana. A experiência, ação de um projeto de intercâmbio cultural entre os dois países, resultou na exposição Uiso Alemany – Em Olinda, como em Alboraia, com curadoria de Emmanuel Araújo. Durante os dois meses em que morou na Cidade Patrimônio, Alemany, que nunca veio ao Brasil, mas já expôs, em 2000, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (PE), se propôs a fazer um mergulho pessoal no “novo mundo”, evitando análises sócio-antropológicas ou alumbramentos culturais. O resultado é o conjunto de 155 obras, entre desenhos, pinturas e formatos híbri-

dos de cores fortes, que dialogam intimamente com o povo pernambucano. Por mais que fuja dos conceitos sócio-antropológicos, os quadros de Uiso servem como representação da sociedade, se vistos como o olhar de um estrangeiro. Uiso Alemany – Em Olinda, como em Alboraia, primeira exposição internacional recebida pelo Espaço Cícero Dias do Museu do Estado, sai de Pernambuco no dia 25 de julho e parte para São Paulo, Curitiba, Brasília e Rio de Janeiro. Uiso Alemany – Em Olinda, como em Alboraia. Museu do Estado de Pernambuco, Espaço Cícero Dias (Av. Rui Barbosa, 960, Graças. Fone: 81.34270766). Visitação de terça à sexta-feira, das 10h às 17h, e sábados e domingos, das 14 às 17h. Até 25 de julho.

Índios em Pequim

Em Construção

A Cidade Proibida, símbolo máximo da China imperial, abriu suas portas para o universo cultural indígena da Amazônia. Pela primeira vez, os chineses vêem em seu país uma ampla mostra da cultura indígena brasileira, sendo esta também uma das raras vezes que a Cidade Proibida se abre para objetos que não pertencem ao seu acervo. A mostra Amazônia: Native Traditions está dividida em duas partes e reúne 344 peças. A parte arqueológica inclui objetos de até oito mil anos, como as cerâmicas Marajoara, Aristé e Maracá. Na segunda parte estão adereços que são usados hoje pelos índios, como as máscaras, a arte plumária e a cestaria.

O xilogravador Rubem Grilo, com sua série de miniaturas na exposição Arte Menor – Objetos Imaturos, apresenta um mundo por ele recriado. Através da tradicional técnica da xilogravura, que mesmo não permitindo inovações no seu processo técnico sugere a experimentação, Grilo ironiza as funções de alguns objetos utilitários, reconstruindo imagens e significações. A série Objetos Imaturos se encontra exposta no Instituto de Arte Contemporânea, no Centro Cultural Benfica.

A coleção de Marcantônio Vilaça, composta de mais de 500 obras, ganha mais uma exposição na galeria que leva o seu nome, no Instituto Cultural Bandepe. Na mostra Arte em Construção o curador Moacir dos Anjos selecionou obras que partilham de uma filiação flexível a princípios da arte moderna, tais como adição, justaposição e articulação entre as partes, de artistas como Rivane Neuenschwander, Nuno Ramos e Hélio Oiticica. O que poderia ser um simples elogio da forma e da experimentação, é muito mais um importante retrato da história recente da arte, que se destaca pela inventividade e instigante ironia.

Amazônia: Native Traditions. Pavilhão ao norte da Cidade Proibida, Pequim, China. Até 24 de Agosto. Informações: www.brasilconnects.com.br

Objetos Imaturos, de Rubem Grillo. Até 31 de julho, no Instituto de Arte Contemporânea, Centro Cultural Benfica (Rua Benfica, 157, Madalena, Recife/PE. Fone: 81.32270657).

Arte em Construção. Instituto Cultural Bandepe (Av. Rio Branco, 23, Bairro do Recife, PE. Fone: 81.32241110). Visitação de terça a domingo, das 14h às 20h, até 30 de dezembro.

Continente julho 2004

Arte de Grilo


O silêncio de Deus

89 »

Fotos: Divulgação

Texto do dramaturgo João Denys volta aos palcos com a encenação de Deus Danado Deus Danado traz de volta aos palcos pernambucanos – e brasileiros – a verve dramática do encenador, escritor e dramaturgo João Denys. O texto de 1993 ganha materialidade nos corpos dos atores Júnior Sampaio, pernambucano radicado em Portugal há 10 anos, gestor da Cia. Entretanto Teatro, e Leonardo Brício. Num espetáculo rusticamente belo e atormentado, eles narram a história trágica de três criaturas corroídas pela seca/deserto, pela fome e pela solidão: Teodoro, o padrinho; Luiz, o afilhado; e Roseta, a vaca à beira da morte. Como num quadro mítico e doloroso da passagem do homem sobre este duro e cruel mundo de meu Deus, a peça desenvolve-se em 13 “jornadas” de luz e escuridão, que mostram a tensão entre o particular, concentrado no Nordeste rural, e o universal, oprimidos pelo “silêncio de Deus”. É uma história para ser vista e ouvida, como a palavra dita pela tradição oral, na boca e nos olhos de cada povo.

Leonardo Brício interpreta Luiz

Deus Danado será apresentado nos dias 09 e 10 de julho, durante o XIV Festival de Inverno de Garanhuns (PE), depois cumpre temporada nos dias 07, 08, 14 e 15 de agosto no Teatro Tablado (RJ). Deus Danado, de João Denys. Encenação e interpretação de Júnior Sampaio e Leonardo Brício. Teatro Luiz Souto Dourado (praça Guadalajara), nos dias 09 e 10 de julho, durante o XIV Festival de Inverno de Garanhuns. Teatro Tablado (Av. Lineu de Paula Machado, 795, Rio de Janeiro-RJ), dias 07, 08, 14 e 15 de agosto.

Diante da Lei

Os ensaios de Hermilo

Diante da Lei é um espetáculo escrito pelo professor e dramaturgo Marco Camarotti, que neste espetáculo também decidiu voltar aos palcos como ator. Com base em textos de Franz Kafka, Carlos Drummond de Andrade e Herman Melville, Camarotti lida, de maneira bem-humorada, com o tema da perplexidade do ser humano perante a realidade que não consegue explicar, especificamente a do serviço público, com sua lógica surpreendente e, às vezes, tragicômica. Produzida pelo Conjunto Dramático Pátio da Fantasia, a montagem transpõe a linguagem das manifestações dramáticas populares e a gestualidade do brincante nordestino para a cena do teatro dito sofisticado.

A obra de Hermilo Borba Filho, que estaria completando 87 anos este mês, ganha mais uma semana de debates, realizada pelo Centro Apolo-Hermilo, em parceria com a Fundação Hermilo Borba Filho, de Palmares, cidade natal do jornalista e dramaturgo. Durante a 3ª Semana Hermilo, o público poderá conhecer e discutir aspectos importantes da obra hermiliana, cuja influência foi decisiva para a renovação do teatro pernambucano. E desta vez uma parte inédita da obra será estudada: os ensaios do autor sobre os espetáculos po- Semana Hermilo, de 28 a 31 de julho, às 20h. pulares do Nordeste, em palestra de Teatro Hermilo Borba Marco Camarotti; o mamulengo, com Filho/Centro de Fernando Augusto; e a encenação, em Formação e Pesquisa das Artes Cênicas Apolodiálogo com Antonio Cadengue. O púHermilo (Av. Cais blico conferirá ainda a leitura dramática, do Apolo, s/n, com direção de Carlos Bartolomeu, e Bairro do Recife. apreciação crítica, por Luís Reis, da peça Fone: 81.32241114). Um Paroquiano Inevitável.

Diante da Lei, de Marco Camarotti. Até 1º de agosto, no Teatro Joaquim Cardozo (Rua Benfica, 157, Madalena, Recife/PE. Fone: 81.32270657), aos sábados e domingos, às 20 horas.

Continente julho 2004

AGENDA

ARTES CÊNICAS


AGENDA

» 90 CINEMA

História de amor ao cinema Pela primeira vez, Fernando Spencer, cuja história de vida se confunde com a do cinema pernambucano, apresenta publicamente o conjunto de sua obra

KK Santos

O cineasta Fernando Spencer – que nasceu no mesmo ano do cinema falado, 1927, e é um dos mais prolíficos do cinema pernambucano – será homenageado com uma mostra retrospectiva no Cine-teatro Apolo. Películas como Valente é o Galo, Caboclinhos do Recife, Bajado, um Artista de Olinda, Um Instante, Maestro Nelson Ferreira, A Eleição do Diabo e a Posse de Lampião no Inferno, e mais 36 filmes do diretor e pesquisador, realizados desde os anos 60, serão exibidos publicamente entre os dias 24 e 28 de julho no Cine-teatro Apolo. Fernando Spencer soube, como poucos, captar as realidades e a luz do Nordeste, registrando as brincadeiras, a poesia, a religiosidade e o trabalho do povo nordestino. Mas não se prendeu a esse ambiente: fez filmes experimentais de ficção, obras baseadas em poemas de Júlio Cortázar e na vida de Marilyn Monroe, na peleja entre Lamartine Babo e os Irmãos Valença sobre a autoria da música “O Teu Cabelo não Nega”. Também de-

De cima para baixo: Spencer dirigindo; cena de A Elei ªo do Diabo e a Posse de Lampiªo no Inferno;

clarou sua paixão pelo cinema em obras como Cinema Glória, Jota Soares, um Pioneiro do Cinema, Almery e Ari, Ciclo do Recife e da Vida, Memorando o Ciclo do Recife e História de Amor em 16 Quadros por Segundo. Idealizada pelo também produtor e cineasta Marcos Enrique Lopes, a mostra é uma justa e tardia homenagem a Spencer – alguns dos filmes estão fragmentando-se, inspirando cuidados. Atualmente, o cineasta finaliza Almery, a Estrela, sobre uma das estrelas do Ciclo do Recife (1923-1931), e transforma em livro todas as críticas que escreveu no Diário de Pernambuco, durante 40 anos; sendo também biografado em Paixão de Cinema, documentário de Marcílio Brandão. (Isabelle Câmara) Mostra Fernando Spencer, de 24 a 28 de julho. Cine-teatro Apolo (Rua do Apolo, s/n, Bairro do Recife. Fone: 81.32241114).

Curtas em foco

Animação itinerante

Entre os dias 22 e 31 de julho, Belo Horizonte vai virar a Meca do cinema. Curtas-metragistas de todo o mundo aportarão na capital mineira para a realização do 6º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte. Na mostra competitiva serão exibidos 80 curtas, sendo 41 do Brasil, inclusive os pernambucanos A Partida, de Sandra Ribeiro; História da Eternidade, de Camilo Cavalcante; e The Lastnote.com, de Leo Falcão, e 39 internacionais. O Festival terá exibições em vídeo no Teatro João Cesquiatti, no SESC e nos Centros de Cultura das Regionais da Prefeitura de Belo Horizonte, além de mostras temáticas focando culturas e diretores de outros países e a produção de animação mineira e brasileira.

Começa, no próximo dia 9, no Rio de Janeiro, o 12º Anima Mundi, festival que leva ao público brasileiro uma boa safra de filmes e vídeos do mundo da animação. Foram selecionadas 493 produções de 39 países, que vão participar da competição. Nas categorias nãocompetitivas, haverá também exibições de longas, médias e curtasmetragens. Convidados de peso, como Tim Hill, roteirista do popular desenho animado Bob Esponja, vão participar de workshops. Encerrando dia 18, no Rio de Janeiro, segue para São Paulo, de 21 e 25 de julho, e chega, ainda este ano, ao Recife, única ci- 12º Anima Mundi dade no Norte-Nor- De 9 a 18 de julho, Rio de Janeiro. deste a receber o De 21 a 25 de julho, São Paulo. info@animamundi.com.br / Anima Mundi. www.animamundi.com.br

6º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte. Sala Humberto Mauro e Teatro João Cesquiatti/Palácio das Artes (Av. Afonso Pena, 153, Centro, BH). SESC (Rua Caetés, 603, Centro, BH). De 22 a 31 de julho. Entrada Franca. Informações: www.festivaldecurtasbh.com.br

Continente julho 2004


A comunhão dos vaqueiros Missa do Vaqueiro, de 22 a 25 de julho. Prefeitura de Serrita – (87) 3882-1156. Fundacão Padre João Câncio – (87) 3871-1653. www.empetur.pe.gov.br

Frio e diversidade Michelle Zolline/Divulgação

O XIV Festival de Inverno de Garanhuns elege o ecletismo como vertente

O Grupo Devotos na edição de 2003 do FIG Divulgação

A 14ª edição do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), que atrai cerca de 600 mil pessoas, nos 10 dias de festa, e acontece, este ano, entre os dias 8 e 17 de julho, optou pela diversidade em suas 206 atrações . Nesta edição, o FIG promove, pela primeira vez, a exibição de cinco filmes inéditos no parque Euclides Dourado, onde será montado um cinema com 800 lugares. Haverá ainda um espaço dedicado ao hip hop, na avenida Santo Antônio. As apresentações instrumentais, que já faziam parte do festival, ganham uma nova faceta, trazendo a música erudita. A praça Guadalajara será palco de shows de grandes nomes da música nacional, como Simone, Ângela Maria, Lulu Santos e Ney Matogrosso. O parque Ruben Van Der Linden, sede da música instrumental, trará João Donato. O Palco Pop, no parque Euclides Dourado, recebe o grupo francês La Rue Ketanou e bandas da cena pernambucana, como Mombojó, Eddie, Otto, Superoutro, Devotos entre outras. Durante toda a semana, após os shows, a música eletrônica vai comandar o som no parque, com a presença de VJs e Djs. A programação de teatro vai levar 11 peças ao festival, iniciando com o espetáculo Deus Danado, no teatro Luís Souto Dourado. O Ballet Stagium de São Paulo será o destaque ligado à dança. Também estarão acontecendo 28 oficinas de temáticas variadas. O FIG está inserido à programação do Circuito do Frio, promovido pelo Governo do Pernambuco, que percorre cinco cidades do interior do Estado, levando atrações culturais. O circuito começou em Pesqueira (1 de julho), vai passar por Garanhuns, depois segue para Triunfo (17 a 24), Taquaritinga do Norte, (de 29 de julho a 1 de agosto), e termina em Gravatá, de 5 a 8 de agosto.

91 »

O amazonense João Donato: atração do

XIV Festival de Inverno de Garanhuns, de 8 a 17 de julho. Informações: (87) 3761-3231. www.fig.com.br www.fundarpe.pe.gov.br Circuito do Frio, de 1º de julho a 8 de agosto. www.empetur.pe.gov.br

Todos os anos, no terceiro domingo do mês de julho, Serrita reúne vaqueiros de todo o Nordeste para celebrar a Missa do Vaqueiro. Foi a música “Morte do Vaqueiro” de Luiz Gonzaga, que inspirou a realização da primeira missa, no Parque João Câncio, no Sítio das Lajes, há 34 anos. Nos dias que precedem a celebração da missa (22 a 24 de julho), haverá vaquejadas, exposições de artesanato, espetáculos e shows. Mas o ponto alto será no dia 25, quando a missa será celebrada, num clima rústico, com os vaqueiros vestidos a caráter e montados nos seus cavalos. Estima-se que cerca de 50 mil pessoas participem do evento. Continente julho 2004

AGENDA

EVENTOS


Fotos: Divulgação

AGENDA

» 92 MÚSICA

Caetano is back

Palco Pernambuco movimenta os domingos de julho Lula Queiroga: mestre-de-cerimônias

Cicerones do palco Começa, no próximo dia 04, o 2o Palco Pernambuco, que já trouxe, em janeiro, Otto como mestre-de-cerimônia, recebendo Luciana Mello, Zélia Duncan e Fernanda Abreu. Nestas férias, a programação já está fechada para os quatro domingos do mês de julho. Lula Queiroga, nos dias 4 e 11, e Otto, nos dias 18 e 25, vão ciceronear os convidados. Abrindo o evento, que inaugura um novo espaço para shows, o Ancoradouro, Lula Queiroga (que acaba de lançar novo CD) recebe seu parceiro Lenine, Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado, Marcelo Camelo, do Los Hermanos, e o DJ Zezão. No domingo seguinte, Pedro Luís e a Parede, Yamandú Costa, Paulinho Moska e DJ Baiano sobem ao palco, também sob o comando de Queiroga. Otto assuPalco Pernambuco me o reinado e apresenta, no dia 18, 4, 11, 18 e 25 de Julho, a partir das 17h, Gabriel Pensador, D Negão, X e DJ Ancoradouro – Cais de Santa Rita, em Nuts e, no dia 25, Lobão, Nando frente à EMTU. Informações: 3424Reis e o DJ Ramílson. Todos os dias, 5773. Ingressos: R$ 30,00 (inteira), 15,00 (meia), R$ 12,00 antes dos shows, uma banda da cena R$ (promocional/antecipada). local abre o evento.

O som (in)visível de Lula Queiroga Das raízes da estética Mangue emerge o novo disco de Lula Queiroga, Azul Invisível, Vermelho Cruel, que confirma o talento do pernambucano para a criação de cenários cinematográficos e lítero-musicais sobre as paisagens que lhe inspiram. Aqui é possível “se ver (ouvir) o mar”, o cortejo de maracatu, os passos do frevo, os tambores e palmas afro-indígenas, o burburinho das pessoas que transitam pela caótica cidade do Recife, harmonizando-se com as dissonâncias da música eletrônica e orgânica (sax alto e tenor). Tem rap, tem frevo, samba, rock. “A Telefonista da Floresta Predial” é uma balada saudosa com direito à introdução de gaita e violão e matizes chorísticos. Já “Sentimental” tem participações Azul Invisível, Vermelho de Lenine (que aparece em mais duas Cruel. Independente, faixas) e Arnaldo Antunes. O álpreço médio bum, feito para dançar, representa R$ 21,00. um manifesto sonoro da moderna Contato: (81) 32691654 música popular pernambucana. Continente julho 2004

Depois de alguns anos sem se apresentar no Recife, Caetano Veloso está de volta. Desta vez, ele traz o show do seu novo Cd A Foreign Sound, trabalho que reúne um repertório anglo-americano, lançado em abril, com grande polêmica, depois que o tropicalista anunciou que a música americana é a melhor do mundo. A turnê nacional chega ao Recife, em única apresentação, no dia 31 de julho, no palco do Classic Hall. O repertório do show é basicamente composto por canções do novo álbum, como “So in Love”, de Cole Porter, “Come as You Are”, do Nirvana, “Cry me a River”, de Arthur Hamilton, “Diana”, de Paul Anka, “It’s Alright Ma”, de Bob Dylan, entre outros. Mas o compositor baiano também canta em português, abrindo o espetáculo com a canção “Não tem Tradução”, de Noel Rosa, e mostrando a sua nova composição, única inédita no show, “Diferentemente”. No espetáculo, Caetano é acompanhado pelos músicos Lula Galvão (violonista), Jorge Hélder (baixo e contra-baixo), Pedro Sá (guitarra), Léo Reis (percussão), Carlos Bala (bateria), Jaques Morelenbaum (cello) – que também dirige o show – e por uma orquestra com 21 elementos. A Foreign Sound 31 de julho, no Classic Hall – Av. Agamenon Magalhães s/n – Complexo de Salgadinho – Olinda – PE. Informações: 3427-7500. Ingressos: Mesa para 04 pessoas, setor premium, R$400,00; mesa para 04 pessoas, setor vip, R$300,00; mesa para 04 pessoas, 2º e 3º piso R$240,00; mesa para 04 pessoas, 4º e 5º piso R$200,00.


Rompendo o silêncio

Diálogo para violão e clarineta

Após 40 anos de silêncio, a Dubas presenteia o público com a remasterização do único long-play de Tenório Jr., que gravou, aos 23 anos, este Embalo – cuja pulsação nunca diminuiu – devolvendo o talento desse pianista que pode ser posicionado entre o melhores do jazz mundial. Um dos maiores músicos da nossa história, Tenório Jr. desapareceu em Buenos Aires, em 76, quando fazia uma tournée com Vinicius e Toquinho e foi preso por engano pela polícia argentina, pois nunca teve idéias revolucionárias, ao menos políticas. O CD reúne bambas do samba-jazz do período, como Paulo Moura no sax alto, Zezinho Alves no contrabaixo, Ronnie Mesquita e Milton Banana nas baterias e Raul de Souza no trombone de pistões, que, com Tenório Jr. à frente, produziram músicas vibrantes e arrebatadoras, que viraram hits dos fanáticos pelo gênero, como “Sambinha”, de Bud Shank. Aqui também Tom Jobim, Johnny Alf e Durval Ferreira, que com “Clouds” agitou o Rio dos anos 60, com arranjos sofisticados e geniais.

El Negro del Blanco é um disco instrumental como poucos. Talvez único. Primeiro porque aproxima a música brasileira da América Latina (por que mesmo foram separadas?). Depois reúne dois dos maiores instrumentistas da atualidade: Yamandú Costa, virtuoso do violão, e Paulo Moura, bamba da clarineta. Mapeando a Latinoamérica, o violão de Yamandú e a clarineta de Paulo viajam, apenas eles, pelos argentinos Astor Piazzolla, Mariano Mores e Atahualpa Yupanqui, pela chilena Violeta Parra, no clássico “Gracias a la Vida”, despedida da chilena, mas que aqui ganha uma versão alegre, cruzam a linha do Equador pelo México e Caribe em “La Paloma” (composta pelo espanhol Sebastian Yradier no século 19, sendo considerada a primeira habanera), e chegam a Cuba por “El Camino de La Vereda”. Mas, antes da partida, colocaram o choro de Jacob do Bandolim, de João Pernambuco, Severino Araújo e Raul de Barros, além de temas de Baden Powell, na bagagem.

Embalo, de Tenório Jr., Dubas Música, preço médio R$ 26,00.

El Negro del Blanco, com Yamandú Costa e Paulo Moura, Biscoito Fino, preço médio R$ 20,00.

Colcha de retalhos

Mundo sonoro

Músico completo

Amares é o terceiro CD do Grupo Anima, fundado pelo músico e pesquisador, especialmente da rabeca, José Eduardo Gramani, falecido em 1998. O álbum é um presente aos sentidos. A começar pela embalagem, que é bela e requintada, repleta de pinturas em aquarela e de textos explicativos sobre cada canção. Já as músicas são como colchas de retalhos, tecidas harmonicamente com as tradições musicais de várias origens. Tendo como fio a rabeca, o grupo costura canções medievais ibéricas, cantigas de tradição oral sefardita e brasileira, como o maracatu, fandango e bois. Assim é possível ouvir diálogos entre, cravo e viola caipira, rabeca e flautas doce e indígena. São músicas que remetem aos navegadores do período colonial, trovadores e versejadores, mas que justapõem o antigo com o novo.

De todos os cantos vêm as canções para o grupo Mawaca, nome que reúne sentidos em várias tradições: para o povo Hausa, da Nigéria, designa músicos que usam magia para atrair espíritos, para os índios Mehinaku, do Xingu, quer dizer lugar protegido, já em japonês significa canto sagrado. O álbum Mawaca Pra Todo Canto, quarto do grupo, propõe uma viagem sonora, na qual se encontram mantras indianos e saudações muçulmanas, mitos indígenas e ancestralidade japonesa, cordel de Patativa do Assaré e canções sefarditas, tambores de maracatu e cangomas africanas, vozes búlgaras e das índias Tupari. De onde quer que venham, as músicas se reconhecem, criando um mundo sonoro habitado por ciganos, judeus, índios, árabes, japoneses, indianos e outros povos.

O multinstrumentista Arismar do Espírito Santo, reconhecido como músico completo por dominar o violão, contrabaixo, guitarra, piano e bateria, relança o seu CD homônimo, desta vez levando a marca 10 Anos. O álbum reafirma seu talento e criatividade, onde também aparece como arranjador ao lado de Hermeto Pascoal, em canções próprias, como “Fulô”, “Seu Zezinho”, “Neguinha”, Velho Bahia”e “Breve Encontro”, que, fazendo jus ao nome, promove um encontro rápido, de apenas 1:40”, entre o baixo e o violão de Arismar e a voz grave de Edson Montenegro; ou em interpretações de Durval Ferreira e Newton Chaves, Silvia Góes, Nelson Cavaquinho e Amancio Cardoso, Pixinguinha e Vinícius de Moraes e do próprio Hermeto.

Amares, Anima. Independente, preço médio R$ 32,00. contato: www.animamusica.art.br

Mawaca Pra Todo Canto. Azul Music, preço médio R$ 23,00.

Arismar do Espírito Santo, 10 Anos. Maritaca, preço médio R$ 20,00. Continente julho 2004

AGENDA

MÚSICA 93 »


Image ns: D ivulga ção

AGENDA

» 94 LIVROS

Reprodução/Ag. Estado

Primeira Guerra Mundial

Beatriz Alcântara e Lourdes Sarmento

Poesia tropical na Europa Antologias brasileiras de poemas sobre o amor, a água, a fauna e a flora nos trópicos são lançadas em Portugal As poetisas Beatriz Alcântara, do Ceará, e Lourdes Sarmento, de Pernambuco, uniram-se e criaram o Projeto Literatura nos Trópicos que, de 2000 a 2002, lançou as antologias Amor nos Trópicos, Águas nos Trópicos e Fauna e Flora nos Trópicos, com patrocínio da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará e apoio do Programa Editorial Casa de José de Alencar, da Universidade Federal do Ceará. Os livros reuniram 205 poetas e ensaístas contemporâneos do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Alagoas, Maranhão, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Ceará, Sergipe, Pernambuco e Bahia, e mais 19 artistas plásticos pernambucanos e cearenses, que ilustram as obras. No mês passado, as antologias foram lançadas na Embaixada do Brasil em Lisboa, Portugal, com apoio da Universidade Aberta. Lourdes Sarmento e Beatriz Alcântara, porém, já desenvolvem o projeto de publicar em Paris, numa edição bilíngüe (português-francês), uma seleção de textos de 90 poetas entre os 205 que integram as obras originais, a serem escolhidos por um Conselho Editorial. Nas três seletas que iniciaram o projeto, ao lado de outros menos conhecidos, estão presentes autores já consagrados como Ferreira Gullar, do Maranhão, Olga Savary, do Pará, e Gerardo Mello Mourão, do Ceará, todos radicados no Rio de Janeiro. Águas dos Trópicos, Amor nos Trópicos e Fauna e Flora nos Trópicos, Beatriz Alcântara e Lourdes Sarmento (orgs.), Secult. 288, 154, 292 páginas, respectivamente.

Continente julho 2004

Mapa do sangue derramado Uma detalhada cronologia das guerras, conflitos, levantes, expurgos, revoluções e genocídios ao longo do século 20 mostra que, praticamente em todos os anos, em algum lugar do mundo estava havendo uma manifestação coletiva da violência humana. Da Guerra dos Boers, de 1899 a 1902, até a atual Guerra dos EUA contra o Iraque, passando pelas duas Grandes Guerras, o sangue dos homens jorra sem estancar nestes recentes 100 anos, entrando pelo novo século, com o agravante de que, graças a novas estratégias e armas sofisticadas, as dimensões da matança alcançaram patamares nunca antes vistos. Este mapeamento do sangue derramado está na Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX, feita por 264 especialistas brasileiros e estrangeiros das mais diversas áreas, sob coordenação de Francisco Carlos Teixeira da Silva. O livro, porém, não se limita apenas às guerras. A Revolução dos Jovens, o Movimento Ecológico e a Body Culture são também estudados, mostrando que revoluções podem ocorrer nos campos social, cultural, político e econômico. As matérias são abordadas de forma extensa, com informações objetivas, devidamente analisadas. Vários assuntos são tratados de mais de um ponto de vista, o que estimula o leitor a refletir a respeito.

Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX, Francisco Carlos Teixeira da Silva (Org.), Editora Campus, 1008 páginas.


Simplicidade e poesia

Uma língua suja

Reformando a mente

Pode um fascista ser um bom escritor? O que faz de um homem um herói? Um único ato pode dar sentido a toda uma vida? Estas são algumas das questões postas pelo belo romance Soldados de Salamina, que tem como pano de fundo a Guerra Civil Espanhola, episódio que prefigura a 2a Grande Guerra. Alternando uma linguagem simples e episódios humorísticos com momentos solenes em linguagem poética, o autor vendeu na Espanha mais de 500 mil exemplares deste livro que, num tempo de cinismo e ceticismo, fala de ideais que ainda valem a pena, além de revolver um passado que os espanhóis tentam esquecer.

Glauco Mattoso é homossexual e podólatra assumido. Seu nome é Pedro José Ferreira da Silva – o pseudônimo autoirônico é uma referência ao glaucoma que o cegou. Comemorando 30 anos de poesia satírica e fescenina, Glauco tem, finalmente, uma edição profissional de seu trabalho. Trata-se de uma antologia muito bem editada e que dá uma boa chance ao leitor brasileiro de conhecer a obra que Gregório de Matos escreveria se vivesse em nosso tempo.Usando formas que vão do soneto ao poema concreto, Glauco se diverte em passar a sua língua suja na carne mole e rósea da poesia, lambuzando-a de vida real.

Texto inacabado, mas, ainda assim, essencial para quem quer compreender a filosofia de Espinosa, o Tratado da Reforma da Inteligência não traz um conjunto de regras para pensar, mas, sim, uma meditação sobre a natureza do pensamento que nos leve a uma tal mudança de ponto de vista, que nos possibilite ver todas as coisas, incluindo o homem e seu destino, na total unidade do Ser Perfeito. Para Espinosa, a nossa inteligência é a criadora das idéias verdadeiras, mas, como modo finito da substância divina, só podemos pensar bem quando pensamos a partir da ordem universal das idéias, ou seja, a partir de Deus.

Soldados de Salamina, Javier Cercas, Francis, 141 páginas, R$ 29,00.

Poesia Digesta 1974-2004, Glauco Mattoso, Landy, 232 páginas, R$ 35,00.

Tratado da Reforma da Inteligência, Baruch de Espinosa, Martins Fontes, 66 páginas, R$ 18,90.

Cinema franciscano

Democracia crucial

Mínimo e preciso

A obra do cineasta Eduardo Coutinho, na definição do seu colega João Moreira Salles, é uma tomada radical de decisão pela responsabilidade diante do frágil. E onde está frágil leia-se humano. O autor de Cabra Marcado para Morrer e Santo Forte, entre outros, é tema de um estudo de Consuelo Lins, crítica, professora e também diretora, que além de aportar uma abordagem teórica, traz o depoimento de quem foi colaboradora do cineasta, referência do cinema documental brasileiro. O livro traz mais de 150 fotos (minúsculas, a maioria) e fichas técnicas de toda a obra de Coutinho, que divide com as personagens a autoria de seus filmes, correndo os riscos da incerteza.

Nas sociedades atuais, eminentemente urbanas e complexas, a questão da participação popular constitui um dos aspectos mais cruciais da democracia. A professora Suely Leal, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, debruçou-se sobre as experiências desenvolvidas na cidade do Recife durante as duas gestões de Jarbas Vasconcelos na Prefeitura e produziu este Fetiche da Participação Popular. É um trabalho acadêmico, que expõe as dificuldades de uma gestão democrática na moldura da democracia representativa, para concluir que “não há outra via possível à crise do Estado e à ofensiva neoliberal, senão reaproximar a sociedade de si mesma”.

O quinto livro do contista Luiz Arraes traz 28 contos, consubstanciando sua tendência rumo ao minimalismo. Neste O Remetente, entre narrativas desiguais, que vão de 2 linhas e meia a cinco páginas, estão pequenas obras-primas, como “Se Arrependimento Matasse”, em que, em rápidas pinceladas, é traçado um perfil preciso da angústia de uma ruptura amorosa ou “O Medo”, capaz de comover poderosamente. As quatro linhas de “O Brilho” são um prodígio de concisão, ao flagrar com notável precisão de palavras um pequeno drama individual na moldura sociológica da pasmaceira de uma cidade estagnada no tempo e perdida na geografia do mais cruel provincianismo.

Eduardo Coutinho – Televisão, Cinema e Vídeo, Consuelo Lins, Jorge Zahar, 205 pág., R$ 36,00.

Fetiche da Participação Popular, Suely Leal, Cepe, 351 páginas, R$ 45,00.

O Remetente, Luiz Arraes, Sete Letras, 58 páginas, R$ 15,00. Continente julho 2004

AGENDA

LIVROS 95


»

96

ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Por favor, chamem o Pires! Quem sabe, não repensaremos uma vida com razões?

P

ra que tanta zoeira democrática, se por muito longe passou o verdadeiro espírito democrático? Quando a libertinagem se confunde com liberdade e a reciclagem das chamadas ex-esquerdas esbarra num protótipo de "neoestado-novo", vacilante nas mãos ingovernáveis de um punhado de autoridades passivas à desordem e rapinagem do bem comum, o País torna-se inconstitucional perante todos, e ao mundo globalizado de hoje. Sem a ex-direita, diga-se de esguelha. Parece que por detrás dessas duas figuras partidárias míticas, esquerda e direita, oculta-se a verdadeira oposição, bem conhecida dos sociólogos, entre sociedade e comunidade, dizia Sergio Benvenuto em "Tramonto della sinistra?". São os progressistas-conservadores. É a oposição deslavada contra o povo brasileiro. Ardilosa e golpista. A irresponsabilidade de encantadores políticos, arrotando honestidade em negociatas as mais intimidadoras, cegos ao desrespeito dos malandros de gravatas legislativas, lembrando os liliputianos de alcova - fazem-nos rogar esperança nos poucos e seletivos políticos sérios, infelizmente escondidos de vergonha (será?) -, rumoreja a sensação de que tudo isso não passa de uma "feliz" manifestação da democracia marginal, ordenamento imperioso para a nossa difícil transição para o total estado democrático. É incrível que os detentores do poder político civil só recorram às Forças Armadas quando - como nos mostra a história - já roubaram o que puderam, rasgaram nossa carta de cidadania, deixaram o País na bancarrota, dissolveram nossa consciência e endividaram o instituto da competência gestora, repositório único da oportunidade de se mostrarem corretos diante a coisa pública. Com isso, detonam um anarquismo desvairado desses aproveitadores sem terras, por exemplo, confundindo ordenados movimentos classistas, e um sem número de anseios populares. Infelizmente o nosso Brasil brasileiro, de pobres, analfabetos, famintos e ladrões, ainda não está preparado

Continente julho 2004

para ter liberdade. Antes de se ter democracia, tem que se ter o zelo cordiano para com o próprio País, respeitando suas leis, sua independência. Por que nossos líderes civis não se aliam às Forças Armadas, sem antigas lições, para, zelosamente, administrarem o Brasil com disciplina, lisura e patriotismo? - Não! - Gritaria a moribunda esquerda populista que gosta da pobreza (será?), da igualdade social, combatendo os militares - que tomam conta (ainda?) da Constituição brasileira - afirmando-se dona da 'verdade' absoluta. Como sempre foram burras as esquerdas! Nunca souberam administrar sequer suas próprias ideologias, tampouco se prepararam para ter o poder nas mãos. De repente, a utopia da atualidade é o 'socialismo progressista'... Não, é o 'socialismo liberal' europeu, assim se lhe parece... Desenterrando velhos jargões, vitimando-se de injustiçados, torturados e perseguidos. Por outro lado, a terminal direita é inóspita, tanto quanto outrora. Acostumada ao nariz arrebitado e sempre sabedora de como manejar e manter o poder, nunca aprendendo a ser uma oposição que não fosse conjurada e silente. Como dizia Neruda, a nossa terra já passou das mãos dos saciados às mãos dos esfaimados. E nós, povo, arrendados a mais um engodo eleitoral desta vez do PT de tantas anacondas e vampiros, precisamos ir às ruas. Não com molecagem, invadindo propriedades privadas ou órgãos públicos - desmoralizando a autoridade constitucional. Temos, sim, que requerermos, publicamente, nossos direitos, resgatando o nossa cidadania, tão pouco ou quase nada valorizada por uma sociedade desencantada pela violência e impunidade reinantes. Consoante se espera a última chance. Ou o nosso Lula exerce seu poder de mando, ou, como o ex-presidente Figueiredo, ameaçado certa vez na sua autoridade, que chame o Pires! (seu então ministro do Exército)... Pois, para combater esta situação de furtadela, violência e anarquia nacionais, alguém tem que ter estrelas - e não podem ser somente vermelhas.




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.