Continente #047 - Democracia

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Sem tĂ­tulo-1 1

03/02/2012 10:44:42



EDITORIAL

Paradoxos democráticos

M

ês passado, 121 milhões de brasileiros votaram em 1o turno para escolher entre 15 mil candidatos a prefeito e 346 mil candidatos a vereador, em todo o País, os titulares de 5.562 prefeituras e os 51.818 legisladores municipais. Poucas horas depois das eleições, os resultados oficiais eram conhecidos do Oiapoque ao Chuí. Foi um feito notável, sob todos os aspectos. E que enseja a discussão, numa perspectiva histórica, da questão da Democracia, este regime definido por Winston Churchill como “a pior forma de governo, exceto por todas as outras que foram tentadas.” Aprofundando a reflexão sobre o tema, a Continente traz texto do professor Wanderley Guilherme dos Santos em que ele define a Democracia institucionalizada, tal qual a conhecemos hoje, como fenômeno recentíssimo na história da humanidade e observa que, sua questão crucial, ao promover simultaneamente a inclusão e a exclusão, está no direito de não-participação dos irredentos. Noutro artigo, Daniel Piza, assumindo a falibilidade do sistema democrático, vê no fato, paradoxalmente, sua

maior virtude, que resulta em seu permanente redesenho como instituição humana. Por fim, publicamos trecho do novo livro de Geneton Moraes Neto – Dossiê Moscou – em que o repórter narra as primeiras eleições, formalmente democráticas, na extinta União Soviética, flagrando a humilhação, nas urnas, de Mikhail Gorbachev, o homem que, ao perder o controle da glasnost, involuntariamente mudou o século 20. A Bienal Internacional de Arquitetura, em Veneza, aponta para as metamorfoses que estão acontecendo na concepção de moradia, proporcionando uma mostra de como vai ser a Arquitetura do futuro. São cerca de 150 estudos e 200 projetos, entre maquetes, instalações, vídeos e fotografias, feitos pelos arquitetos mais prestigiados do mundo, que revelam como as novas tecnologias e as novas necessidades do homem moldam construções que arranham os céus de Shangai, espalham-se sobre as águas em Berlim, mimetizam-se nas florestas da Escandinávia, multiplicam-se em cidades industriais como Kyoto, no Japão, e ganham um grande arco de diversidade num país de proporções continentais como o Brasil. •

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CONTEÚDO

Flávio Lamenha

Divulgação

52 A arte dos vitrais

44 A metamorfose da Arquitetura

09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53

CONVERSA

ARQUITETURA

08 Professor Nelson Saldanha defende a clareza

44 Bienal de Veneza aponta para a moradia do futuro

na Filosofia

CAPA 12 O espaço dos irredentos na Democracia

ARTES 52 A beleza translúcida dos vitrais

Um sistema que se redesenha permanentemente O dia em que a ex-URSS foi às urnas

PERFIL

LITERATURA

MÚSICA

28 Obra-prima de Saint-John Perse tem ótima tradução

68 A família de músicos por trás do Virtuosi

A decepcionante mudança de gosto do leitor brasileiro em duas décadas Nova edição traz toda a poesia de Mauro Mota CD retoma a tradição da poesia falada Ivo Barroso adapta tradução do Rubáiyát Cinco narrativas de Evandro Affonso Ferreira

Os 100 anos do compositor Edgard Moraes

60 A pernambucanidade do carioca Edu Lobo

FOTOGRAFIA 84 Uma expressão de amor à Índia

CINEMA 89 Os 35 filmes que os gaúchos estão fazendo Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br

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CONTEÚDO Hans Manteuffel/Divulgação

Marcelo Buainain

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Visão da Índia mística

Nova versão do Virtuosi

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Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Nosso cotidiano está cada vez mais veloz

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 26 No Brasil, verba para a Cultura tem valor ridículo

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 42 Miguel Ângelo: vitória da arte sobre a materialidade da pedra

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 80 Abacaxi é fruta que vale qualquer sacrifício

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 83 São Paulo é uma cidade dura e esbaforida

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 94 Quantas armadilhas existem em um nome?

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Malvada política, podre política

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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Novembro Ano 04 | 2004

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta

Capa: Constituição Americana Foto: Peggy & Ronald Barnett/Corbis

Colaboradores desta edição: DANIEL BUARQUE é jornalista. DANIEL PIZA é editor-executivo e colunista de O Estado de S.Paulo e autor, entre outros, de Jornalismo Cultural e Paulo Francis. EDUARDO PORTANOVA é jornalista e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. EVANDRO AFFONSO FERREIRA é escritor, autor de Grogotó, Araã! e Erefuê. FÁBIO ARAÚJO é jornalista. FÁBIO LUCAS é jornalista e mestrando em Filosofia na UFPE. FERNANDO MONTEIRO é escritor, poeta e cineasta. GENETON MORAES NETO é jornalista, editor do Fantástico, da Rede Globo, e escritor, autor de Dossiê Moscou, entre outros livros.

Revisão Maria Helena Pôrto

GUILHERME AQUINO é jornalista.

Secretária Tereza Veras

IVO BARROSO é poeta e tradutor.

Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro

JOSÉ TELES é jornalista, escritor e crítico de música. LAURO LISBOA GARCIA é jornalista e crítico de música popular. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Poemas e Vigílias. MARCELO BUAINAIN é fotógrafo.

Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

PAULA FONTENELLE é jornalista, autora de Iraque – A Guerra pelas Mentes. PAULO POLZONOFF JR. é jornalista. Trabalhou nos jornais Rascunho e Jornal do Estado, ambos de Curitiba. RODRIGO PETRONIO é poeta e ensaísta. WANDERLEY GUILHERME Teoria Democrática.

DOS

SANTOS é cientista político, professor e pesquisador de

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta e crítico de arte. Autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder e Saudades de 60. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias e Faca.

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CARTAS Dom Hélder O Instituto Dom Hélder Câmara – IDHeC vem agradecer a bela e importante edição nº25/2004 da Revista Continente Documento, sobre o nosso saudoso Dom Hélder Câmara. A oportuna data da edição, praticamente coincidindo com o 5º aniversário da morte do Dom e as conseqüentes homenagens que foram prestadas ao mesmo, despertou ainda mais o interesse pela Revista, já em falta em muitas bancas. Lúcia Moreira da Costa, Recife–PE Dom Hélder 2 Parabenizo a Revista pelo projeto gráfico da edição Continente Documento, dedicada a Dom Hélder, “O Pastor da Liberdade”. As fotos estão perfeitas. Mas acho que faltou aprofundamento, pois, quando se fala do Dom, 32 páginas são altamente insuficientes. Ademais, os textos estão bastante superficiais. Desnecessárias foram as opiniões do senador Marco Maciel, tendo em vista que foi nomeado senador pelo então presidente Ernesto Geisel no período ditatorial, que D. Hélder tanto combateu. Quanto ao ex-ministro Gustavo Krause é notória a verborragia em tão poucas palavras. Alexandre Teles, Recife–PE Educação A nossa educação, tão bem-tratada na coluna do Carlos Alberto Fernandes (edição nº 45), faz notar que os programas de parceria entre Governo Federal e as empresas não passam de uma mera demonstração de quanto o Governo se alia aos seus potenciais consumidores que, por sua vez, não querem ver outra coisa, a não ser “mãode-obra qualificada”. Sei que no campo educacional, para não dizer cultural, esperamos sempre um resultado mais profundo do que qualificação mercadológica. É algo que, talvez, o Governo não possa oferecer através de bolsas-auxílio nem incluir em seus pacotes governamentais. Vinícius Uchoa, Recife–PE Confuso Os textos da Revista Continente muitas vezes subentendem que o leitor já conhece o assunto, o que nem sempre é verdade, deixando o mesmo confuso ao citar nomes, datas e acontecimentos, sem maiores explicações. José Valfrido A. da Costa, Garanhuns–PE Joel Silveira Gostaria de parabenizar o Joel Silveira. Sem desmerecer os outros colunistas, ele é, sem dúvida, um dos melhores! Conheci a Continente há pouco tempo, por meio de uma professora de literatura, e posso afirmar que me

apaixonei à “primeira lida”. Parabéns não só ao Joel, mas a todos que fazem essa revista esplêndida! Carla Araújo Lima, via e-mail Referência Encontrei o site de vocês, ao pesquisar material para o meu trabalho de conclusão de curso. Estou no último semestre de Editoração, nas Faculdades Integradas Rio Branco – SP, e o meu projeto é uma revista literária cultural para jovens dos ensinos médio e universitário. Ao navegar pela Continente, vi mais uma excelente referência para o meu trabalho. Juliana Freitas, São Paulo–SP

Paulo Bruscky Estive na Bienal: vi, revi e consumi a instalação de Paulo Bruscky. Fico cada vez mais convencido de que arte não se interpreta e, conseqüentemente, não deve existir intérpretes. Pernambuco, como sempre, tem honrado o cenário! Antonio Figueiredo, via e-mail Extradordinária Insistam nesta abordagem multicultural tão extraordinária. Tratem das manifestações religiosas, das histórias das Missões ou aldeamentos indígenas, dos movimentos de resistência políticosocial – fatos pernambucanos, em particular, sem perder de vista os grandes temas gerais da nação e da cultura universal, que vêm sendo tão bem-tratados. Geraldo Ferreira, Recife–PE Orgulho Que bom, que existe um publicação como a Continente, que nos dá orgulho por ser uma publicação pernambucana, sem dever, em nada, a nenhuma publicação do Sul e Sudeste do país. Vocês estão seguindo uma linha muito interessante, com personagens nordestinos de destaque mundial. Parabéns. Sugiro uma matéria sobre as histórias em quadrinhos do Nordeste. Ricardo Oliveira, Recife–PE

redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax Distribuição Eu e minha mulher, ambos professores universitários aposentados, tínhamos já incorporado aos nossos hábitos a aquisição e cuidadosa leitura dessa agradável Revista, que adquiríamos na banca de um tradicional fornecedor. Todavia, nos últimos tempos, temos sentido a sua falta, recebendo a informação de que houvera problemas de distribuição por aqui, o que lamentamos e registramos. Talvez seguindo outras manifestações semelhantes, esperamos ter a notícia de que essa falha foi reparada e que a teremos disponível novamente. Arael M. da Costa, João Pessoa–PB Cultura afro-brasileira Achei ótima a entrevista com o escritor José Eduardo Agualusa (edição nº 45) e estou interessada na cultura afro-brasileira, pois sou professora de História da rede pública no Distrito Federal e estou elaborando projetos nesta área em que pretendo ensinar. Sandra Garrido, Brasília–DF Inspiração A Revista Continente é muitas vezes inspiradora, quando não, complementar, na minha formação como professora. Gostaria de sugerir matérias sobre Nelson Mandela e o apartheid, podendo até discutir sobre raça, etnia, sincretismo religioso e questões discriminatórias – assuntos dos quais sinto necessidade de mais material, principalmente visual, para trabalhar com os alunos. Juliana das Oliveiras, Recife–PE Índice Sugiro um aprimoramento minucioso do índice da Revista Continente Multicultural. Lamartine Lima, Salvador–BA Preço Acho o preço do exemplar muito elevado! Rodrigo Campos, Recife–PE Continente novembro 2004

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CONTRAPONTO

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Carlos Alberto Fernandes

A catraca roda A vida do homem comum é influenciada pelo salve-se quem puder e pela busca do prazer e da felicidade a qualquer custo

Antonio Bob

É

engraçado como a dinâmica da vida moderna nos coloca num trem que cada vez mais aumenta a sua velocidade, mesmo não sabendo, seus passageiros, o destino. Crê-se que mal maior é ficar parado por não ter aonde ir nem tampouco chegar a lugar algum. Nesse ritmo frenético de aculturação, até “ficar” transforma-se numa forma peculiar de avançar. As expressões que enfeitam o nosso cotidiano fazem o tempo mais veloz. E, contraditoriamente, todos têm que correr para enfrentar as “paradas” da vida. Nessa prova de velocidade, os jovens criam neologismos de curtição da vida e tendem a furar filas e pular catracas para chegar em primeiro. Certamente, esquecem que chegar juntos é mais prazeroso que chegar primeiro. Inadvertidamente, usam todas as armas para subir ao pódio, pois o sucesso é reluzente. A felicidade imanente. Nessa arena moderna, a vida do homem comum é influenciada pelo salve-se quem puder e pela busca do prazer e da felicidade a qualquer custo. Ao encontrar essa irracional felicidade, imola-se o corpo e se sacrifica a alma. Na procura por sensações de êxito, valores sociais são jogados por terra ou para o alto. Sorrateiramente superficiais, as relações sociais e pessoais perdem intensidade e se esgarçam facilmente. A busca do amor é confundida com a procura radical da satisfação e do prazer total em todas as suas dimensões, inclusive da dor, podendo levar as pessoas à perversão. O culto ao corpo modelado e à beleza esquálida aparece como recurso fundamental para o sucesso. A malhação e a lipoaspiração se transformam em símbolos de uma vida glamorosa. As pessoas – vistas como objetos de desejo e de consumo – são expostas como mercadorias através de modelos estereotipados de beleza e de sucesso. Ironicamente, a procura do bem nas relações formais da convivência amorosa tende para o plural e se transforma em bens. A segurança e a estabilidade que não se encontram mais em lugar nenhum são perseguidas a todo custo. Nessa ação, filho na praça é sucesso garantido. Não é surpresa que a radicalidade predatória e a visão de curto prazo – que inspira a economia e molda nossas atitudes – se incorporem à inconseqüência de nossas ações,

fazendo com que a competição e a agressividade se transmutem para o comportamento das pessoas, atingindo, particularmente, os jovens. Nessa selva de pedra, os rapazes não mais conquistam as moças. Simplesmente eles observam o terreno, cercam e atacam a “presa”. Usam o termo “ficar” para caracterizar uma relação que cairia bem somente com o “passar”. Nesse ambiente, fazer sexo virou necessidade, fazer amor virou felicidade. No afã do fazer coisas politicamente corretas, criam expressões novas que, apesar de banalizar os efeitos do seu comportamento social, soam como ritos de passagem para a certificação de uma convivência social positiva. Esta realidade mostra o que se pode esperar de uma sociedade sem utopia. Uma juventude angustiada e sem sonhos para o futuro. Um povo, vítima da perplexidade de desencontros, habitando um país que ainda não é propriamente nação em função da agudeza de suas desigualdades. Nesse contexto, nenhum paraíso tem algo a ver com o tipo de felicidade que os nossos jovens estão buscando com avidez. Inspirados numa visão mercantilista de que “o negócio é ser feliz”, mesmo nomes doces como Maria ou Ana, usam de neologismos criativos, e crêem piamente que pior é permanecer parado e transformar-se em vítima do tempo, pois, a felicidade está bem aqui em frente, o futuro é hoje, “a fila anda” e “a catraca roda”, independentemente de você querer ou não. • Continente novembro 2004


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CONVERSA

NELSON SALDANHA

Tudo pelo

humano Professor defende que o filósofo deve tentar dizer alguma coisa que seja válida para o humano como tal, mas se confessa pessimista Fábio Lucas

S

e a paixão pela palavra escrita define o pendor intelectual, o professor e ensaísta pernambucano Nelson Saldanha enquadra-se bem na definição. Com a ressalva da liberdade que deve orientar sempre o pensamento, segundo o próprio Saldanha, autor de livros como Filosofia, Povos, Ruínas, Ética e História, Secularização e Democracia e O Jardim e a Praça e que acaba de preparar uma introdução à Filosofia que trata mais da evolução dos problemas do que da seqüência das obras. Professor universitário e membro da Academia Pernambucana de Letras, Nelson Saldanha defende, na entrevista a seguir, resumida, que a busca do valor humano deve nortear toda corrente filosófica. Continente novembro 2004


Hans Manteuffel

CONVERSA

Qual a primeira coisa que se deve saber sobre a Filosofia? Que a Filosofia não é “uma ciência”. É um saber, é uma reflexão. Sem essa reflexão o saber não é grande coisa, e sem o saber a reflexão é vazia. Evidentemente, não pode ser dogmática, mas também não é um saber gratuito. Temos que evitar estas duas coisas diferentes e também uma certa caricatura popular da Filosofia, que atribui ao filósofo ser uma pessoa irresponsável, muito desligada, no mundo da lua. Não é nada disso. A Filosofia requer concentração de espírito e responsabilidade intelectual. Também não é um saber rigoroso, como a Matemática, a Física. Em algumas correntes filosóficas atuais, a linguagem parece muito complicada. O que acontece quando a Filosofia se afasta da clareza? Quando se fala nesse assunto, eu me lembro logo de Derrida, cuja Gramatologia eu nunca consegui ler. Derrida parece que cultivava deliberadamente a complicação, uma exasperação do específico dentro da linguagem filosófica. Deleuze também, que é quase uma resposta dos franceses a Heidegger, que sempre fez um pouco de esoterismo. Mas se deve lembrar que a clareza é relativa, porque se a pessoa não tiver nenhuma noção, por mais claro que o filósofo fale, não será entendido. Um matemático pode ser muito claro, mas se eu não sei nada de matemática, não vou entender. O filósofo deve ser claro no sentido de que não busque a complicação como ingrediente necessário do pensar filosófico. Ele tem que se comunicar porque sabe que aquilo que ele está dizendo deve ser endereçado a um público. Heidegger é uma referência na Filosofia contemporânea, que vem do século passado. O que fica do século 20 para a Filosofia? Os filósofos do século 20 tiveram uma herança complicada. Era um século de crise e, para não ficar repetindo o que o século 19 fez, os filósofos tiveram que inventar. A complicação a que nos referimos tem um pouco disso. Também está muito impregnada de consciência histórica. O filósofo é cada vez mais consciente de sua época, de sua condição histórica, do caráter cada vez mais complexo do legado em que se situa. O legado que vem de Parmênides, Platão, Descartes, tem que ser revisto a cada momento. Em Matemática, o que foi dito há 200 anos pode ser inteiramente descartado. É interessante o estudo da história da Matemática, ver como foi enfrentado determinado problema, mas nas ciências humanas em geral e na Filosofia, o legado histórico é fundamental. É o húmus onde o filósofo se move. Continente novembro 2004

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CONVERSA Como a universalidade dos conceitos se encontra com o momento histórico? As pessoas, às vezes, dão muito valor à lógica por isso: porque dois e dois são quatro aqui e na China. Uma Filosofia que se conduza por uma metodologia logicamente rigorosa, tem probabilidade de sucesso na Rússia, na África, na América Latina. Ela é uma articulação de conceitos mais ou menos clara para todo mundo. Nem sempre isso é possível, porque o filósofo está sempre preso a influências que têm o seu pólo e o seu momento. Ninguém se livra disso. Sem trair inteiramente a vinculação a dados que estão no tempo e no espaço, o filósofo deve tentar dizer alguma coisa que seja válida para o humano como tal. E o humano está em Dostoievski, em Cervantes, em Homero. Cada um tem o seu modo de colocar. Li uma vez que aqueles críticos filosóficos do Romantismo chamavam a Odisséia de o mais humano dos poemas. Não sei se é o mais humano. Por quê? A gente não pode estar ligado somente a uma tradição cultural, tem que ter em vista o humano como temática do filósofo, mesmo distinguindo diferentes dimensões na perspectiva cultural. Como o Sr. avalia a Pós-M Modernidade? Eu não sei o que é pós-moderno. Aliás, Spengler dizia que falar em moderno e contemporâneo é uma terminologia desesperada. Porque o que é moderno daqui a 50 anos, o que é contemporâneo daqui a 100 anos? Ele não chegou a alcançar a expressão “pós-moderno”. Ela designa, de certa maneira, aquilo que já não é moderno no moderno, aquilo que está à nossa volta, mas que já não corresponde às propostas racionalistas, ao Modernismo, ao cientificismo. Até pouco tempo me parecia que o homem estava muito voltado para compensações místicas, religiosidades emergentes que negariam ou temperariam o cientificismo absoluto dos séculos 18 e 19. Mas não sei se continua havendo essa religiosidade. Tenho a impressão de que esfriou um pouco. O que isso significará, na sua opinião, para o futuro? Muitos de minha geração são, como eu, pessimistas. Há um ensaio de Umberto Eco, que fala de apocalípticos e integrados. Um ensaio de 30 anos passados, pelo menos. Há os integrados, que aceitam o que vêem e se integram, tudo está muito bem, e os apocalípticos, que ficam reclamando de tudo, tudo está péssimo. A minha tendência é apocalíptica. O meu medo é que o homem se encontre, daqui a um certo tempo, sozinho num mundo sem animais, sem plantas, sem água, num universo humano superpovoado, sem as crenças fundamentais de outras épocas, e com essa crença miúda e cotidiana na tecnologia, no afã furioso – estou plagiando de Heidegger, numa frase sobre isso – de supervalorização da tecnologia, que faz o homem esquecer outras carências mais profundas.

Fábio Seixo/O Globo

Derrida parece que cultivava deliberadamente a complicação, uma exasperação do específico dentro da linguagem filosófica

O filósofo franco-argelino Jacques Derrida, recentemente falecido Continente novembro 2004


Reprodução/AE

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Cena do filme Blade Runner, que mostra um futuro sombrio para a humanidade, espremida entre a tecnologia e indagações sobre o ser

E no que implica a mudança? Tenho medo de que isso se torne uma verdade avassaladora. Antigamente, os bosques eram sagrados, o mar era sagrado, havia até árvores sagradas... Aquilo era uma forma de vincular o humano ao cósmico. O cosmos era sagrado porque é o pai e a mãe de tudo. Fazemos parte disso e compartilhamos essa sacralidade. É algo que se acabou. Tenho um livro que é a coisa mais importante e mais ousada que escrevi até hoje, chama-se Secularização e Democracia. Ninguém tinha explicado para mim porque foi possível falar em Democracia. A humanidade passou milênios com monarquia. O que descobriu? Encontro no processo histórico da secularização o porquê da Democracia. Não há hoje mais fundamentos para um regime que não seja democrático. Na secularização, o homem cai para “dentro” da sociedade, de suas entranhas e de sua mente. Na Democracia, o povo retira suas regras do próprio povo. É bom, pois favorece a crítica, a ciência livre, a visão descomprometida e, portanto, mais fecunda das coisas. Mas é a troco de uma sensação enorme de insegurança que termina jogando os homens uns contra os outros.

Na Democracia, o povo retira suas regras do próprio povo. É bom, pois favorece a crítica, a ciência livre. Mas é a troco de uma sensação enorme de insegurança

O que faz com que o filósofo surja? Há uma variável histórica. Se não me engano, Locke era médico. Francis Bacon, um dos homens mais inteligentes daquela época, era advogado. Se a pessoa tiver a Filosofia dentro dela, o chamamento, vocação é chamamento, pode ser o que for, engenheiro, burocrata. Agora, é necessário que ele tenha um trabalho profícuo, para que consiga falar com as pessoas, porque fazer Filosofia não é somente ruminar em seu gabinete, é também dizer as coisas, e, às vezes, o indivíduo não tem essa chance. Farias Brito, cearense, deixou obras importantíssimas, comparáveis, mutatis mutandis, com Bergson. Era uma revisão do saber do século 19, e a proposta de uma nova visão da evolução muito paralela, ao meu ver, não sei se alguém já escreveu sobre isso, com Bergson. De modo que existem profissões que favorecem mais o trabalho filosófico, mas não há uma limitação absoluta. • Continente novembro 2004


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CAPA

A anomalia democrática A Democracia, como sistema institucionalizado, é fenômeno recentíssimo na história da humanidade e sua questão crucial, ao promover simultaneamente a inclusão e a exclusão, está no direito de não-participação Wanderley Guilherme dos Santos

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Reprodução

CAPA

Stump Speaking , George Caleb

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impressionante e talvez surpreendente para nós, estudiosos da Democracia, respeitosos dos grandes teóricos e pensadores clássicos e contemporâneos, e entre eles incluo por exemplo Robert Dahl, termos dificuldade com a cronologia, a cronologia do que seria ou do que teria sido a evolução da Democracia. Vou-lhes dar uma definição minimalista de Democracia: chamemos Democracia aquele sistema em que o poder é preenchido após eleições regulares, em condições de sufrágio universal e sob garantias mútuas, ou seja, de respeito pelos resultados. Ora, essa definição minimalista de Democracia, que requer não apenas eleições regulares e respeitadas, mas também sufrágio universal, não pode ser aplicada da maneira tão fácil, tão simples, tão gratuita, tão generosa com que se a aplica à cronologia da história política a partir do século 17, e a partir do século 18, e a partir do século 19. Até mesmo porque poder preenchido mediante eleições regulares, com segurança mútua e com sufrágio universal só ocorreu em 1893, na Nova Zelândia; em 1902, na Austrália; em 1913, na Noruega; em 1915, na Dinamarca; em 1919, na Alemanha e na Holanda; em 1921, no Canadá e na Suécia; em 1923, na Irlanda; em 1929, na Inglaterra. Enfim, o sufrágio universal só ocorre no mundo no início do século 20. O direito de voto a todo adulto, independentemente de sexo, religião, renda, cor, só começa a ocorrer a partir do início daquele século. A última barreira a ser superada – nestes grilhões que acorrentavam a participação e a criação de formas políticas novas, formas que a humanidade começará a experimentar depois que os reis são decapitados, nos séculos 17 e 18 – foi o voto feminino. Caem – e eu tenho a cronologia de quando caem, dos impactos que tiveram na vida política – os requisitos de renda, de religião, de idade (25-26 anos), de estado civil, de cor, os requisitos de sexo. Todos eles foram sendo sucessivamente abolidos ao longo do século 19. Evoluía o sistema representativo, que substituiu o sistema monárquico autocrático. Não evoluía o sistema democrático; evoluía o sistema

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CAPA O problema político dos séculos 17 e 18 não é um problema de participação, é justamente o contrário: o direito de não participar do pacto político, se eu não desejar, de não delegar soberania e de não aceitar que os representantes tenham império sobre toda a sociedade à qual pertenço e da qual dependo

representativo oligárquico. E com a abolição de cada uma dessas barreiras aumentava a população, a comunidade política. Mas o voto feminino, seu impacto na comunidade política, foi extraordinariamente revolucionário. Somam-se, com freqüência, o fim do requisito de renda e do requisito de sexo, mas nas primeiras eleições que se sucederam à instalação do voto universal, este foi o crescimento percentual da comunidade política nos vários países: 66% na Nova Zelândia, 92% na Austrália, 34% na Noruega, 148% na Dinamarca, 158% na Alemanha, 117% na Holanda, 112% no Canadá, 170% na Suécia, 25% na Irlanda, 33% na Inglaterra. Ou seja, a democracia é uma revolução. Nós estamos tratando de um outro mundo, de um mundo em que nenhuma das formas institucionais até então vigentes tinha resposta para um problema que se supunha resolvido, mas que só se resolveu no século 17 inglês, no século 18 francês e americano. Esse problema, fundamental, era o seguinte: ao se reconhecer que o poder constituinte do poder residia no povo soberano, como devia ele governar-se? Como podia parte do povo – os representantes – governar todo o povo, os governados? Até onde poderia ir o direito de impor decisões àqueles que não haviam concordado sequer com a constituição de um sistema representativo, que são os irredentos? Aqueles que não assinaram o contrato original que os leveller ingleses achavam que todos os ingleses deviam assinar para que o sistema fosse legitimamente representativo; aqueles que se resguardavam o direito de só cumprir aquilo a que dessem consentimento, como poderiam eles ser governados por aqueles cujo poder vinha de sua própria delegação? A distinção entre poder constituinte e poder legislativo – o que significa um sistema representativo? quem representa o quê? até que ponto? com que direito? – é um problema que perpassará todo o século 17 inglês, todo o século 18, praticamente, inglês, todo o século 18 americano e todo o século 18 e 19 francês, em que se concedeu e retirou o sufrágio universal e experimentou ditaduras várias vezes a partir de 1792. A história inglesa e a história americana durante os dois séculos a que me referi é a história de um ajuste entre o que significava um sistema representativo, o que implicava em termos de abdicação de direitos por parte daqueles que reconheciam o sistema instaurado, até onde podiam ir os representantes na sua decisão de impor legislação. E o princípio da segurança mútua traduzido nestes séculos queria dizer o seguinte: ninguém pode delegar a outro um direito que não possui: o direito de impor a terceiros uma decisão de que terceiros discordam. Portanto, o limite da imposição de decisões legislativas era a capacidade de efetivamente impor aos irredentos o império do sistema representativo, por delegação de parte dos representantes. O problema do século 17 inglês e do século 18 inglês e americano não é um problema de participação. O problema político dos séculos 17 e 18 inglês e americano é um problema de autonomia, de independência. Em primeiro lugar, do parlamento diante do rei. É por isso que se decapitam reis, para que eles aceitem a idéia de que existe limites ao seu poder de impor coisas ao parlamento que representa o povo. Mas que povo é esse? Em nome de um abstração – do que é o povo em geral – se impõe a uma parte do povo aquilo que, teoricamente, o povo em geral, por delegação, deu a Continente novembro 2004


Minnesota Historical Society/Corbis

esses representantes. O que ocorre durante os séculos 17 e 18 é um disputa em torno da autonomia do parlamento, portanto, da sua independência em relação aos ditames do rei, e depois, em torno da autonomia do indivíduo em relação ao sistema político, o direito que cada indivíduo deveria, ou não, continuar a ter de dizer: “não faço parte do pacto, quero conviver em sociedade, quero me relacionar com os meus iguais, mas não desejo nem necessito aceitar leis com as quais eu não concordo. Eu não quero ingressar no pacto político”. O problema político dos séculos 17 e 18 não é um problema de participação, é justamente o contrário: o direito de não participar do pacto político, se eu não desejar, de não delegar soberania e de não aceitar que os representantes tenham império sobre toda a sociedade à qual pertenço e da qual dependo. Ao longo desses dois séculos, essas questões foram sendo interpretadas, institucionalizadas e aceitas pela comunidade. Ou seja, o parlamento mobilizou muitos – grande parte do povo – para dar poder a poucos – os representantes – para governar muitos – a maioria, todos. Este problema, uma vez resolvido, passou a significar que aqueles que desejavam manter o direito de autonomia ou bem faziam parte da comunidade política e aceitavam o império do parlamento, ou restavam anômicos – sem lei, na ilegalidade – e sobre eles podia se exercer todo o direito dos representantes do povo em abstrato. No momento em que não há mais lugar na sociedade, em princípio, para se esconder os irredentos – e isso ocorre quando os exércitos oficiais institucionalizados tornam-se mais poderosos do que os indivíduos ou pequenos grupos de indivíduos (não esquecer que durante os séculos 17 e 18 os exércitos oficiais não existiam, que cada um possuía as suas armas, que cada pequena

Mulheres de Minnesota (EUA) apresentam rolo de papel com milhares de assinaturas na campanha pelo voto feminino, 1923

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CAPA comunidade podia se armar e resistir), quando o poder dos representantes torna-se suficiente para impor pela força o seu império, como se soberania fosse, e não apenas lei –, cessa o problema da independência do ponto de vista teórico e para a maioria se coloca o problema da participação. Institucionalizar as relações políticas significava, simultaneamente, definir a inclusão e a exclusão. Não obstante, do ponto de vista legal, embora somente pudessem eleger e ser votados os adultos homens, casados, acima de um certo nível de renda, religiosos – protestantes ou católicos –, brancos etc. etc., apesar de serem estes os eleitores, a participação política durante os séculos 17 e 18 era uma festa. O processo eleitoral obrigava os candidatos a percorrerem as cidades, a ouvirem as petições e as demandas do povo, a escutarem as suas reclamações. Todos interpelavam os candidatos, embora apenas alguns votassem. Era uma festa, um carnaval, a inversão de papéis: a ficção da igualdade de todos perante o poder. E essa ficção era fundamental: inventouse o povo para dar legitimidade ao poder institucionalizado. A Democracia que se vai constituir é, na verdade, o alargamento da participação no sistema representativo oligárquico. A Democracia institucionalizada é a negação da Democracia romântica, que é a participação de todos, a festa revolucionária, como chama Mona Ozouf. E a grande festomania terminou, diz ela, com uma grande decepção. Porque, à medida que se institucionalizava a participação, à medida que as demandas por participação foram sendo aceitas, o que se institucionalizava e o que se fazia simultaneamente era a exclusão legal dos irredentos e daqueles que a inclusão deixava de fora. Pois o grande ato da reforma de 1832, na Inglaterra, além de aumentar o eleitorado reduzindo o censo, ou seja, o requisito de renda para a participação política – o que ampliou o eleitorado de 2,5% para 3,6% do total da população – foi ao mesmo tempo tornar ilegal as paradas e os carnavais no processo eleitoral, obrigando à existência de cabines, a que só entrassem para discutir com os candidatos aqueles que tinham o direito de votar. E a grande festomania revolucionária da participação transformou-se na exclusão. Pois o grande ato da reforma de 1867, na Inglaterra, que diminuiu outra vez o requisito de renda e permitiu o aumento da participação para pouco

José Cruz/ABr

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CAPA mais de 6% da população inglesa, foi a exigência de que os candidatos fossem filiados a partidos, de que os partidos fossem institucionalizados, de que só aqueles que fossem filiados a partidos participassem do processo. A institucionalização da participação foi ao mesmo tempo a institucionalização da exclusão. Não foi possível institucionalizar, organizar a participação política sem, simultaneamente, dizer quem ficava fora do jogo da representação oligárquica. E com o sistema representativo, e com essa institucionalização na Inglaterra, nos Estados Unidos, vieram, como vieram no Brasil no século 19, como vieram na Nova República, a violência, a corrupção endêmica, a fraude, a compra de votos, as tentativas, às vezes com sucesso, de impeachment de representantes. Tudo isso veio com a extensão da participação política. Ao final desse processo, quando todas as barreiras são abolidas, nós encontramos que a Democracia institucionalizada é uma forma recentíssima – como vimos, a partir do início do século, e para alguns países como a Inglaterra a partir do final da década de 20 – de conciliar a autonomia dos irredentos, dos indivíduos, com a imprevisibilidade de um modo material de produção comercial e industrial, cuja temporalidade é inteiramente diferente da temporalidade do modo de produção agrário, durante o qual as eleições eram simultaneamente festas de participação. O calendário, o ritmo e a expressividade das festas e ritos de celebração de contratos do sistema mercantil, comercial e industrial, são outros, radicalmente distintos daqueles dos ritos de celebração de contratos nas sociedades agrárias. Receitas para a formação de identidades sociais; eleições; conteúdo, extensão e limites do mandato representativo; em nome de quem se fazem as leis; as bases de sua legitimidade; a abrangência do direito de impor sem consentimento: tudo se altera, tudo se torna imprevisível, e é a isso que é preciso dar previsibilidade. Um novo palimpsesto nos mostra que, na verdade, ao se expandir a participação política, ao se alargar os limites do sistema representativo oligárquico, instaura-se no mundo a imprevisibilidade das formas de participação e a imprevisibilidade dos resultados. Sóror Violante do Céu nos dá, em outro palimpsesto, uma antecipação do que então se instaura na sociedade, aqui, na De-

Manifestação de estudantes de Direito em frente ao Palácio do Planalto, setembro/2004: produtores de poder

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Reprodução

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CAPA

A Democracia institucionalizada é uma forma recentíssima de conciliar a autonomia dos irredentos, dos indivíduos, com a imprevisibilidade de um modo material de produção comercial e industrial

Alegoria para Sufrágio Universal, de Leonard de Selva, 1893

mocracia institucionalizada, onde já fenecem por decreto, entre as certezas de um “logo”, as incertezas de um quando, no Parnaso Lusitano de 1733, mas isso só aconteceu ao final do século 19. O fundamento da ficção que funda o governo e dá previsibilidade não está na narrativa mimético-cartesiana, mas na metáfora contrapositiva de Levi-Strauss: a afirmação de uma identidade simbólica (o povo) para esconder uma diferença real (as classes) e a afirmação de uma diferença simbólica (representantes/representados) para esconder uma identidade real (os produtores de poder). E quem são os produtores de poder? A congregação comunitária permanentemente fundante e sempre correndo o risco de não aceitar o império da institucionalidade. Os produtores de poder, hoje, como sempre, são aqueles que não abdicam de afirmar que o poder constituinte é algo que não se transfere, que há uma distinção entre poder constituinte e poder legislativo, e que se foi a subjetividade que levou à Democracia, também é essa subjetividade que impõe permanentemente a necessidade de novos experimentos, de novas formas de interação, de novas reflexões sobre o que ocorre, de propostas utópicas; que impõe a liberdade interna de pensar, de ousar e de tentar instaurar a quebra de rotina. Os produtores de poder são os irredentos de sempre, são os irredentos de hoje, submetidos pela força, pela ameaça da coação, mas que jamais abdicaram da sua liberdade interior, nem mesmo quando privados da sua liberdade exterior. São esses irredentos, é a esses irredentos, é nesses irredentos que se funda o impulso permanente para a transcendência humana de si próprio a cada momento histórico; neles e não nos conformados, nos submissos, nos rotinizados; é nos irredentos, nos que dizem não à arrogância do poder, nos que dizem não à altivez do poder, nos que dizem não à unanimidade do dogmatismo, das opiniões hegemônicas, nos que dizem não, nos que dizem não, nos que dizem não! Só estes é que, a cada momento, transcendem e têm a coragem e a ousadia de tentar transcender o dado, o institucionalizado, de desprezar e não se intimidar com o estigma, com a discriminação, com o ostracismo, com a difamação, com a calúnia, com a infâmia, com o assassinato de caráter. É nos irredentos que sempre se fundou, sempre se funda e sempre se fundará a Democracia. Ela, que está em sua adolescência romântica. (Excerto de palestra publicada na Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 36, 1998). • Continente novembro 2004


Corbis/Stock Photos

CAPA

A sustentável instabilidade da Democracia As democracias estão sempre se redesenhando, em torno de poucos e evidentes vértices, e nunca deixam que o sistema se considere pronto Daniel Piza

A

melhor frase sobre Democracia ainda é a de Winston Churchill, “a pior forma de governo exceto por todas as outras que foram tentadas”. Vindo do estadista que não capitulou ante Hitler, o qual queria impor seu totalitarismo à Europa, a frase não poderia ser mais exata. Em todo contexto de ameaça à Democracia, pode ser sempre lembrada pelo fato de que não diz que ela é o melhor regime político que existe, cheia de defeitos por definição, e simplesmente porque não existe outro melhor. A maior dificuldade que enfrenta a Democracia mundo afora é essa percepção, que bate com a mania demasiado humana de idealizar soluções perfeitas e esquecer que a matéria de que somos feitos é que é imperfeita. Para um teocrata médio-oriental, digamos, isso soa como um cinismo imperdoável, como uma prova do individualismo e da ansiedade que corroem a modernidade ocidental. No entanto, o outro sentido dessa percepção é o de que a Democracia é flexível o bastante para se adaptar a condições muito adversas, justamente por ser falível como o ser humano é. Afinal,

John Hancock, governador do Massachussets, ratifica a Constituição Americana de 1787

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CAPA

quais são seus defeitos? O principal talvez seja o de fazer supor que, sendo por princípio “do povo, pelo povo e para o povo”, o povo realmente administra a sociedade, que o mandatário segue o que ele instrui ou deseja. Um grande sociólogo francês, Jacques Ellul, analisou essa questão no clássico A Ilusão Política, em que está outra frase primorosa – “O senso comum é a trama ideológica fundamental”. Ellul mostra como grandes decisões são tomadas à margem da vontade popular, sem consulta direta, por representantes que defendem seus próprios interesses que não raro divergem dos interesses de seus eleitores. E não há representatividade plena, ou mesmo consistente, pois sempre conheceremos pouco as pessoas que elegemos, os mecanismos pelos quais governarão e o recorte estatístico que devem ter para enfeixar todas as vozes existentes numa sociedade. E é melhor que seja assim em muitas situações. Já pensou se a adoção ou não da pena de morte no Brasil fosse decidida por um referendo popular? Ela já teria sido adotada, a despeito da carnificina que já se comete diariamente nos presídios brasileiros. Ou como pedir que os eleitores digam se transgênico faz mal ou bem à saúde? Cabe à ciência responder, e de fato ela já respondeu (organismos geneticamente modificados existem há décadas e não há nem sequer um caso de doença causada por eles). Saindo da esfera dos assuntos que, de alguma forma, chegam às instâncias decisórias dos parlamentos (onde estão os ditos representantes do povo), como transferir ao coletivo a responsabilidade de decidir, por exemplo, se o Banco Central deve atuar no mercado cambial ou não? Impossível. Quando se elege um governante, cabe a ele e a seu partido montar a equipe que tomará essas decisões, e nessa cadeia de comando há muitas etapas para desvios, erros e até reversões das premissas gerais que originaram aquele poder. No entanto, propaga-se a ilusão de que o povo é quem faz as opções essenciais. Outro defeito, subproduto dessa ilusão, é fazer de uma coisa de tamanha importância – a política – um circo diário e infindável, no qual uma fisionomia e um slogan, ou o tal carisma, freqüentemente são mais determinantes que idéias, projetos, méritos éticos e administrativos. É comum ouvir, a propósito, que cada país tem o governo que merece. Mas não é verdade: nenhum país tem o governo que merece. Um staff governamental – o de Churchill, por exemplo – pode sim estar acima da população em termos de qualidade moral e intelectual; mas quem dirá se havia merecimento ou não? A humanidade merecia Hitler? Um niilista pode dizer que merecia, até mesmo porque Hitler ascendeu ao poder de forma relativamente democrática (segundo as regras vigentes na Democracia alemã de então), com grande apoio da massa. Mas o que fez no poder não se encaixa em nenhum conceito de Democracia, por mais que este seja elástico; e a humanidade não é só agressão e disciplina. Eis mais uma demonstração da necessidade de não dar voz absoluta à maioria. A Democracia, enfim, carrega em si grandes doses de distorção: exagera o poder popular e exagera também o próprio poder dos políticos de transformar a máquina e suas regras. Mas ela também traz em si os instrumentos para contenção ou mesmo correção (ainda que tantas vezes tardia) desses exageros. Um candidato pode prometer criar 10 milhões de empregos, mas, embora muita gente ainda acredite nisso em países subdesenvolvidos (cuja característica central é a crença excessiva – ou conseqüente descrença excessiva – no poder de um homem ou equipe para resolver problemas complexos), ele mesmo descobrirá que ter “vontade política” é muito pouco. E as instituições de pesquisa e debate e os órgãos de comunicação – cuja expansão e inde-

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Yousuf Karsh/Divulgação/ Nova Fronteira

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CAPA Winston Churchill: “a pior forma de governo...”

A Democracia é flexível o bastante para se adaptar a condições muito adversas, justamente por ser falível como o ser humano é

pendência são historicamente associadas ao desenvolvimento democrático – vão revelar o fiasco daquela promessa, cedo ou tarde, ainda que também se deixem iludir por um tempo. As leis que, cumpridas ou não, estão aí para encaminhar políticas e arbitrar conflitos, claro, fazem republicana uma sociedade. O que a faz democrática é a liberdade de informação e expressão. Sem ela, a Democracia não seria o “menos ruim” sistema de governo; seria apenas um triste espetáculo. A Democracia é mais recomendável que as outras formas de organização política não exatamente por seus atributos (pelo ritual da eleição, resuma-se), mas por não confiar demais nesses atributos (permitindo que os governos sejam continuamente avaliados, de um modo ou de outro). Os regimes autoritários, mesmo aqueles que conseguem atingir certos graus de riqueza e paz e/ou sejam governados por homens esclarecidos e comprometidos, só se desenham no início ou no fim. As democracias estão sempre se redesenhando, em torno de poucos e evidentes vértices, e nunca deixam que o sistema se considere pronto. Os regimes sem eleição, até mesmo aqueles que permitem certo grau de liberdade individual, condenam a si mesmos de ciclo em ciclo, pela rigidez. As democracias condenam a si mesmas todo dia. Sua instabilidade é, por assim dizer, sua estabilidade. Tudo isso, enfim, significa que a Democracia tem de estar sempre alerta contra as ameaças que se fazem a ela. De Hugo Chávez, que chamou a Constituição da Venezuela de “prostituta”, a George W. Bush, cuja equipe de “falcões” neoconservadores acredita que o único modelo de Democracia seja a americana – passando pelo governo Lula, sempre brandindo “regulamentações” que na realidade são amarras para os setores que vivem do direito de opinião, e com destaque pelo fundamentalismo islâmico, que odeia o capitalismo democrático ocidental dos últimos 500 anos –, os perigos localizados são muitos. E há também os perigos difusos, como a própria perda do senso crítico na sociedade de espetáculo explorada por megacorporações, para não falar de grupos que, escudados pela liberdade de expressão, defendem ideologias que vão contra essa premissa, o que deve ser cerceado nos casos radicais (como os sites pró-nazismo que surgem de vez em quando). Mas a Democracia é uma aspiração que, apesar de tudo, só tem feito crescer no mapa-múndi, inclusive nos países muçulmanos, que só têm tentado formas de governo piores que ela. E isso o povo sabe. •

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Democracia à russa

O dia em que o século 20 mudou é narrado, em livro, por repórter que cobriu, em Moscou, as primeiras eleições após o fim do regime soviético

Geneton Moraes Neto

Q

uem terá escrito palavra de ordem tão bela e tão inútil? Jamais se saberá. Quando os tanques soviéticos chegaram à Tchecoslováquia na quarta-feira, 21 de agosto de 1968, para esmagar a chamada “Primavera de Praga”, um estudante anônimo pichou este grito de protesto num muro: “Acorda, Lênin, eles enlouqueceram!” A Tchecoslováquia – país satélite da União Soviética – estava tentando criar um “socialismo com face humana”. Mas o socialismo de face dura de Leonid Brejnev, o homem forte da União Soviética, resolveu mandar lembranças, em forma de tanques. Moscou não estava para brincadeiras. Os paísessatélites deveriam seguir o figurino do Kremlin. O bloco soviético só voltaria a falar em “socialismo com face humana”, quando um homem que, até então, era um ilustre desconhecido para o resto do mundo, assumiu o poder no Kremlin no dia 11 de março de 1985. O cargo de secretário-geral do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas estava vago depois da morte da múmia Konstantin Tchernenko – um clássico representante da gerontocracia que durante décadas mandou e desmandou na União Soviética. Nome do desconhecido: Mikhail Sergueivich Gorbachev, um jovem de apenas 54 anos. A história deu voltas surpreendentes nos anos seguintes à ascensão de Gorbachev ao comando do gigante soviético. Todo mundo conhece o resto do enredo: depois de perder o controle sobre o

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Henrique skujis/Divulgação Geração Editorial

Geneton Moraes Neto

CAPA

Cola no coração de Moscou: símbolo do fim de um ciclo Cartaz da Coca-C

Gorbachev fala à Imprensa após votar na primeira eleição pós-URSS

processo de abertura política e econômica, Gorbachev viu o império soviético sumir sob seus pés, mas entrou para a História como o homem que mudou o rumo do século 20. O fascinante processo de democratização da Rússia pós-soviética só ficaria completo no dia em que o país fosse às urnas para eleger um presidente pelo voto direto. O cenário estaria completo se o próprio Gorbachev, o último dirigente da finada União Soviética, comparecesse às urnas, para votar como cidadão e ser votado como candidato a Presidente da Rússia, uma cena que jamais passou pela cabeça dos que o antecederam no comando do império soviético – Vladimir Ilyitch Lênin, Josef Stalin, Nikita Kruschev, Leonid Brejnev, Yuri Andropov e Konstantin Tchernenko. As peças do quebra-cabeças pareciam se juntar com a perfeição possível: a Rússia convocara, para 1996, as primeiras eleições diretas para presidente depois da extinção da União Soviética; Gorbachev se lançara candidato. A História se movia de novo. Um ciclo extraordinário iria se fechar. O repórter que quisesse testemunhar uma daquelas cenas que só se repetem de mil em mil anos deveria voar, urgente, para Moscou. Porque a primeira eleição direta para Presidente na história da Rússia pós-soviética marcaria, por todos os motivos, o início de uma nova era. O dia que demorou tanto para chegar estava se aproximando. Liberdade, abre as asas sobre o Kremlin: 16 de junho de 1996 – um domingo – foi a data marcada para a eleição. A sede do desmoronado império soviético iria às urnas. Se acordasse agora, às vésperas da eleição, o que Lênin diria? Ao ver as multidões se dirigindo às cabines de votação com o título de eleitor nas mãos, saudosistas da gerontocracia soviética teriam todas as razões para pichar na porta do mausoléu: “Acorda, Lênin; eles enlouqueceram”. Porque o mundo parecia ter enlouquecido: já não havia lugar para partido único, já não havia lugar para imprensa controlada, já não havia lugar para “economia planificada”, já não havia lugar para “comitês centrais”. A pichação do estudante – que servira como um grito em defesa da abertura política na Tchecoslováquia de 1968 – poderia ser Dossiê Moscou, Geneton Moraes Neto, usada,na Rússia de 96, como slogan a favor da Velha Ordem. Geração Editorial, 240 páginas, R$ 39,50. (Trecho de Dossiê Moscou, recém-lançado pela Geração Editorial). • Continente novembro 2004

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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

"Em Literatura, o meio mais seguro de ter razão é estar morto." Victor Hugo (1802-1885)

De prêmios, orfandade e mixarias

O

assunto é chato: prêmios literários no Brasil, com alguma excursão à vol d'oiseau (como diria um patrício galicista do séc. 19) em países como os EUA, a França, Portugal e Suécia. Por quê? Porque ainda cometo a burrice de me irritar, já velho, com a forma como o Poder Público e a elite econômica deste país vêm tratando, ao longo do tempo, “a mais órfã das artes”, a Literatura. Chamou-me a atenção o fato de que até prefeitura da capital e academia estadual de letras oferecem prêmios ofensivos de R$2.500,00, algo em torno de dez punitivos salários mínimos – no valor imposto, para baixo, pelo presidente petista (R$260,00) – em concursos para obras inéditas de Poesia, Ensaio e Ficção, por exemplo. É prêmio de valor inferior a um único ágape (êpa!) que os prefeitos e os acadêmicos de carrão oferecem aos seus puxa-sacos. Dinheiro que não dá, no entanto, para um escritor pobre comprar um barraco na Rocinha. E o mais interessante é que tais prêmios mixurucas são para obras inéditas tanto de escritores iniciantes, quanto dos já consagrados, pelo menos, na província. Em tais concursos são julgados, pelo mesmo peso e mesma medida, mestres e aprendizes. Que eles tivessem o propósito de reContinente novembro 2004

velar escritores sem livros publicados, sem especular a sua experiência, já seria um atenuante para o desprezo e a agressão implícitos na mesquinhez do valor pecuniário dos prêmios, neste mundo de tanto desperdício. Deu uma paradinha para um parêntesis necessário. Estou falando em prêmio literário porque a literatura é minha área, mas sou a favor da criação de prêmios de incentivo e revelação de novos valores na música instrumental, no canto, nas artes plásticas, nas artes cênicas, no cinema, artesanato, grupos de folguedo, em suma, de todas as manifestações artísticas consideradas eruditas e populares, menos as de notória pseudo-arte, o kitsch, seja ele importado (rap, hip hop and analogous), seja nacional (falsa música sertaneja das duplas sudestinas que vivem infectando o país, o brega e quejandos e queijudos). Considero os concursos artísticos oficiais uma forma de democratizar, ou melhor, descentralizar as verbas orçamentárias destinadas à cultura, que são sempre ridículas. As da União para o Ministério da Cultura, até um ano atrás, eram de 0,2% do orçamento federal. O ministro Gilberto Gil estava tentando um percentual menos vergonhoso de 1% e não sei se conseguiu, sei apenas que a sua tão anunciada Loteria


MARCO ZERO

Cultural parece que levou sumiço igual ao do Programa Fome Zero de Lula, lorota para pegar voto e enganar estrangeiro. Mas, voltando aos prêmios como forma de revelação de novos valores em todos os setores culturais, eles comporiam um dos vetores mais importantes de uma autêntica política cultural em um Estado democrático, e também significariam uma forma de cumprimento do Art. 216, Inc.V, § 3°, da Carta Magna: “A Lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais”. Como o incentivo não é só o fiscal, no caso dos prêmios, todos deveriam ser abertos e não indicativos. Desculpem, meus milhões de leitores, o comprido parêntesis. Voltando aos prêmios literários, até que no plano nacional temos, hoje, três prêmios de porte, o maior deles da iniciativa privada, o Portugal Telecom, que anualmente atribui R$150.000 aos três primeiros colocados (1° - 100.000, 2° - 30.000, e 3° - 20.000), o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, de R$100.000, promovido pela Academia Brasileira de Letras e patrocinado pelo industrial pernambucano Antônio Ermírio de Moraes, e o Prêmio Nacional Jorge Amado, também de R$100.000, patrocinado pelo governo da Bahia e criado através de Decreto-Lei. Estes prêmios são honrosos para o país, suavizando um pouco o desprezo que a mais “órfã” de todas as artes vem recebendo, em países pobres ou ricos, neste mundo refém do capital financeiro e de um mercado artístico sob o cabresto da pesquisa de opinião, que “dirige os filmes de Hollywood”, segundo Robert Altman. No entanto, dos três prêmios, o da Portugal Telecom é o menos fechado de todos, pois parte de uma eleição feita por 400 intelectuais de peso, dos livros mais importantes (poesia ou prosa) no ano, em todo o país, resultando numa lista de 20 obras dos mais votados e, depois, numa lista de 10 finalistas que, através de uma seleção feita por uma comissão idônea, reduzem-se aos três primeiros lugares. Os outros dois prêmios são fechados, partem de uma indicação de instituições culturais, como o Prêmio Jorge Amado, ou de uma indicação da própria entidade promotora, como o da

Academia Brasileira de Letras, e são, portanto, só meio democráticos. No mundo, o maior de todos é o Nobel, decidido pela Academia Sueca, no valor de 10 milhões de coroas suecas, ou mais de um milhão de dólares, ou mais de 3 milhões de reais. Ele é também por indicação, e que parece só premiar escritores pé-na-cova, de mais de 70 anos, ultimamente. Quando critico os premiozinhos de dois ou três mil reais, espalhados por prefeituras da capital e academias estaduais de letras, alguém poderia argumentar com o maior prêmio francês, o Goncourt, cujo valor é simbólico em Euros, corresponde a algo como 10 reais, mas considerado consagrador, pois o autor em língua francesa vencedor é geralmente contratado por editores para edições de até 100 mil exemplares. Bem, eu acredito, como Cassirer, que a Literatura é linguagem simbólica, mas nenhum prêmio o deveria ser, neste planeta monetarista. O mesmo diria quanto ao Prêmio Pulitzer, patrocinado pela Universidade de Columbia (EUA), que concede algo em torno de R$15.000, para obras de ficção, mixaria idêntica à do nosso Jabuti, que também é indicativo. Para terminar, cito o Prêmio Camões, patrocinado pelos governos de Portugal e do Brasil, no valor respeitável de 100 mil Euros, mais ou menos 350 mil reais, e que contempla a obra que “tenha contribuído para o enriquecimento dos patrimônios cultural e literário, em Português”, abrangendo, portanto, vários países lusógrafos. Quanto a este, não estou bem certo, mas tenho quase a certeza de que é também indicativo. O que me faz chegar à seguinte conclusão: quanto mais alto o prêmio literário, menos democrático, com uma única exceção, no Brasil, por ficar no meio-termo, o Prêmio Portugal Telecom. Mas, basta de falar de prêmios, eu tenho tanta sorte com eles como tenho com jogo de bicho, no qual, até hoje, só ganhei uma vez, a fortuna de R$700,00. O mundo que eu sonho, sem desdizer coisa alguma nesta crônica, é mais ritualístico que competitivo. Existe o metaforicamente chamado futebol-arte, mas arte não é futebol. Que acha, Nelson Rodrigues? • Continente novembro 2004

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LITERATURA

RV/AFP

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O poeta da totalidade

Saint-John Perse (1887-1975), por volta de 1930

Em Marcas Marinhas, tradução em português de Amers, obra-prima de Saint-John Perse, a poesia e o sagrado se integram Rodrigo Petronio

S

e o poeta é mesmo um mediador, como queria Platão, aquele que intercede pelos deuses e faz falar em sua voz humana as palavras numinosas e divinas, que encarna na língua dos homens aquela linguagem ancestral de onde não só promana o verbo, mas que possibilita a própria existência da linguagem, poucos poetas deram um testemunho tão arrebatador dessa potência da poesia do que Saint-John Perse. E esse milagre se realiza com tanta pujança que, no seu caso, falar de poesia como se esta fosse um correlato do sagrado chega a ser quase um truísmo. Não só poesia e sagrado são a única e mesma

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coisa, como a melhor metáfora para o poema seria a de um altar em chamas, onde se consuma o fogo dos deuses e onde o homem se imola, sacrifica-se em sua finitude humana para, assim e somente assim, ingressar no reino da Totalidade que lhe fundamenta, em seu ser, e aderir ao devir de um tempo finalmente redimido. Não é por acaso que, tendo-se em mente tal natureza de criação poética e de concepção de arte, o próprio SaintJohn Perse comparará o poeta ao sacerdote: é aquele que no mundo moderno mantém aceso o fogo da superação de todos os limites e que força o espírito a transcender toda e


LITERATURA prêmios, condecorações, publicações e traduções de sua obra, vindo a falecer em setembro de 1975. Esses dados biográficos não são gratuitos, tampouco têm função ornamental em relação à sua obra. Se pensarmos, como o fez o crítico Albert Henry, que a obra de Perse se funda em uma poética do movimento e do devir, sua própria situação itinerante pode nos afiançar essa hipótese, bem como corroborar a permanente insatisfação e a profunda insubmissão que movia o poeta, presentes ao longo de seus versos e referidas como sendo a grande virtude da poesia, como diz a famosa (e poética) carta a Dag Hammarskjöld, consultor do tradutor sueco de Perse. Se pensarmos que a tônica de sua poesia é a adoção de uma perspectiva cultural ecumênica, ou seja, uma poesia que pretende dar uma configuração universal de toda a humanidade, na qual, não raras vezes, somos tomados por uma riqueza vocabular, histórica e geográfica desconcertante, poesia esta que também trata sempre de celebrar a viagem, não só em sua dimensão literal, mas também em seu sentido alegórico, como travessia do homem pela sua existência na Terra, os dados biográficos e poéticos se complementam, formando juntos uma só fisionomia do homem que os compôs. No caso de Amers, trata-se de obra complexa, que foi publicada em partes, em revistas literárias, e depois reunida em volume, em 1957. Sua estrutura é sinfônica e de difícil redução didática. Subdivide-se em quatro partes: Invocação, Estrofe, Coro e Dedicação. Cada qual conta com uma Pertences pessoais do poeta

Reprodução

qualquer contingência material. É desse impulso vital que emana a sua poesia e nele é que se funda o ímpeto de transgressão sobre o qual toda a verdadeira atividade poética se radica. Transgressão porque faz das balizas que se divisam no mar os pontos flutuantes de uma peregrinação incessante rumo ao Absoluto, e funda sobre a imagem mítica deste mesmo mar um palco onde se desenrola o destino da humanidade, rumo ao esplendor e à transitividade, à impermanência e à grandeza épica que este mar encerra, em oposição à derelicção, ao abandono, à amargura e ao espírito de gravidade que aprisiona os homens no Porto, em terra firme, seres feitos exclusivamente para a morte e cativos de sua própria miséria. Em um paralelismo curioso, é por meio do trabalho incansável de outro sacerdote espiritual, que também exerce função semelhante no mundo das letras, tamanho é o seu empenho e generosidade intelectuais, que o leitor brasileiro agora tem a oportunidade de ter acesso direto a essa poesia. Trata-se da tradução de Amers – Marcas Marinhas, obra fundamental, dir-se-ia uma das grandes obras da língua francesa, que vem a lume sob a esmerada e impecável tradução do Frei Bruno Palma, que há 30 anos se dedica ao estudo e à tradução minuciosa deste que foi um dos maiores poetas do século 20. Assim, a atividade de Bruno Palma como tradutor é um caso exemplar em nossa vida intelectual. Haja vista o seu currículo invejável: sólida formação humanista e filosófica, conhecimento das línguas clássicas, longa estadia como pesquisador na França, onde foi aluno de ninguém menos que Julien Greimas, e, por fim, condecorado com a alta distinção de Cavaleiro pela Ordem das Artes e Letras do governo francês. Por sua vez, a trajetória de Saint-John Perse, pseudônimo de Marie-René Aléxis Saint-Leger Leger, é das mais singulares e vale a pena ser comentada. Nascido em 1887, de família francesa, em Pointe-à-Pitre, na ilha de Guadalupe, no arquipélago das Antilhas, logo parte para a França. Cursa a faculdade de Direito e mais tarde, depois de cumpridos os anos de aprendizagem na Escola de Altos Estudos Comerciais, ingressa na carreira diplomática. Viaja pela Espanha, Inglaterra, Alemanha. Cumpre missões na China e retorna à França, onde é nomeado para o alto cargo de chefe de gabinete de Aristide Briand, Ministro de Relações Exteriores. Com a ofensiva alemã e a tomada de Paris, é demitido de suas funções e tem sua cidadania e seus bens confiscados pelo governo de Vichy, em 1940. Exila-se nos EUA, de onde enceta uma série de novas viagens, podendo regressar ao solo francês apenas no final da década de 50, quando dá início a um novo período de sua vida, repleta de

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seqüência de cantos, que vão se intercambiando, de modo que temos, se não um enredo, já que não lhe subjaz propriamente uma estória, um itinerário, que se abre às mais variadas interpretações e leituras. Atravessam essas quatro partes uma série de figurações, ou seja, de personagens que representam instâncias do real, indivíduos ou grupos humanos. São elas: Oficiais e Trabalhadores do Porto, Mestre de Astros e de Navegação, as Trágicas, as Patrícias, a Poetisa, as Profetisas, as Jovens e os Amantes, aos quais é dedicado o canto IX, “Estreito são os Barcos”, um dos mais belos da literatura erótica ocidental moderna e um dos poemas mais famosos de Perse. As remissões ao mundo grego e às tragédias são evidentes e programáticas: não só Perse estabelece um paralelo entre o seu mundo poético e a antiguidade, como usa, para a criação do espaço cênico de Amers, elementos e uma disposição semelhante às dos grandes teatros gregos, sendo o palco o próprio mar, onde se desenreda o fio da trama humana, tendo o céu como pano de fundo. Por seu turno, a pluralidade de sentidos da obra já começa pelo título. Amers, em linguagem técnica da marinha, são marcas, balizes que se fixam no mar para orientar a navegação. Porém, ela tem ressonâncias do verbo amar (aimers) e do vocábulo amares, que quer dizer “estar diante do mar”. Além disso há uma outra acepção: como notou a poeta Dora Ferreira da Silva em estudo sobre o poema e como ratifica Bruno Palma, amers também se aproxima de amères, que é amargo, e, ao dar a justa dimensão alegórica do percurso da humanidade, compara o desenrolar do nosso destino neste mundo com a amargura das águas que nos presenteiam com sua eterna novidade assim como nos arrojam na mais profunda solidão, finitude e instabilidade. O mar como correlato objetivo do puro movimento, do devir incessante, do ser unívoco e monista dos primeiros filósofos pré-socráticos, como Unidade imanente que corresponde ao próprio universo, tal como foi dito pelo poeta em carta a Roger Caillois, um dos maiores estudiosos de sua obra. De fato, para Saint-John Perse o mar não é apenas uma entidade mítica, uma metáfora poética de alta carga semântica ou o ideal de uma vida colhida em pleno curso e em seu frêmito vital de expansão. O mar é signo da própria existência, corresponde àquela clareira do ser de que nos fala Martin Heidegger, e é também o Aberto por onde se acede ao Absoluto e onde nos reconduzimos àquela nossa pátria natural alienada: a Totalidade. Se desde o início dos tempos ela nos fora privada e por ela o homem erra como um eterno exilado, tal como o solitário de “Babel e Sião” vive exilado da pátria Celeste, como nos diz Camões, e por sua ausência o homem vive preso à rotina da Cidade e da terra firme, entre as sombras do Porto, a poesia é um dos meios privilegiados pelos quais ele pode reconquistá-la e restituí-la. Porque nela se realiza a síntese suprema entre o instante que pulsa e o eterno, entre o movimento das imagens que nos vêm aos olhos, as vagas que quebram e se reno-

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Hans Manteuffel

O mar, real e simbólico, é tema central do livro recém-traduzido

LITERATURA vam, o mar que é sempre e sempre outro e sempre recomeçado, e aquela Imobilidade fulminante que só existe para além da percepção e dos conceitos, sede de toda a nossa vida possível e horizonte de toda a nossa liberdade. Quando diante dela, cabe a destruição do poeta pela luz que exorbita os limites humanos. Aqui entra o mito de Xiva, que tanto atraiu Perse e que tanto marcou sua infância e seu imaginário. Mito pelo qual sua ama indiana, desde criança, instilara-lhe a admiração, chegando a compará-lo a ele. E aqui nasce o poeta, como pequeno deus modelador do real, sob o signo de Xiva. Deus da suprema criação que é ao mesmo tempo a suprema destruição, destruição transfiguradora e criação que revolve tudo dentro de si, ímpeto prometeico rumo às origens e destruição da realidade tomada como uma das faces do sonho e da ilusão, véu de Maia, mergulho no sono das criaturas rumo à reorganização da ordem divina. É o poeta tomado pela hybris, emulando o Criador, querendo ser também ele um deus que cria o mundo pela intercessão da palavra poética. Mas também é o poeta em sua mea culpa, em um dos seus últimos livros, chamando-se a si mesmo de “macaco de Deus”. Não adianta a atitude simiesca, a imitação da música, a aspiração à divindade: tudo no mundo sublunar é causa segunda e derivação do primeiro sopro de Deus. Não adianta a atitude megalômana: somos todos ainda mais criados de Deus do que seus criadores. Poesia como meio e fim, essência e origem, sacerdócio e cuidado, contra o niilismo e o materialismo do mundo moderno e contra a vileza de valores de uma sociedade devastada. Poesia como ciência do ser, porque toda a poesia é uma ontologia, diria Perse em um texto crítico. É um mergulho nas zonas indevassáveis do real e um parti pris do silêncio que institui a própria possibilidade da Palavra. Poesia da liberdade, da liberdade em seu estado puro e de pura latência, liberdade fundadora e original, não como algo perdido no tempo e em uma ancestralidade remota, mas como uma força que irrompe e se projeta no presente, e se oferece como o fundamento mesmo da própria possibilidade de nossas vidas e de nossos atos. Assim é o mar de Perse: instância projetiva do real, realidade fulgurante e ígnea, sempre apontando para a transcendência de si mesmo e do mundo pobre dos fenômenos visíveis e tangíveis. Para lembrar o discurso que o poeta pronunciou em Florença, em 1965, no sétimo centenário de nascimento de Dante, a poesia partilha de um tempo que não é nem histórico nem eterno: é um constante agora. E nesse sentido, Perse, ao falar do grande poeta florentino, falava, sim, de si mesmo. Dele que ergueu sua voz e fê-la alçar-se à dimensão daquela era plena da linguagem, de que nos fala o poeta, domínio próprio da poesia e sua morada, onde a palavra de Saint-John Perse, a sua precária palavra de homem, transfigurou-se, susteve-se e agora permanece e há de se manter, como a de Dante, incólume e inaugural, sobre a lâmina do abismo dos séculos que se sucederão indefinidamente. •

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Com o correr dos anos, o livro deixou de ser fonte de prazer e conhecimento, ganhando uma função utilitária Fernando Monteiro

Cabeça de leitor

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m menos de um quarto de século, o que aconteceu com a cabeça do leitor brasileiro? Isto é, com o seu gosto, a sua qualidade, os seus interesses? Há 23 anos, a revista Veja – na edição de 12 de agosto de 1981 – estampava, nas páginas finais dedicadas à cultura, uma longa matéria não assinada (“Qualidade é sucesso”) sobre “a volta da boa literatura, com os clássicos na livraria e Memórias de Adriano – de Marguerite Yourcenar – comemorando um semestre na lista dos mais vendidos no país”. Havia outras obras de alta qualidade, naquela edição, na lista publicada, semanalmente, desde junho de 1973, com tal impacto que muitas livrarias (aqui no Recife, a extinta Livro Sete, por exemplo) exibiam um cartaz anunciando “os mais vendidos da Veja” nas bancadas com todos os livros mais-mais reunidos atrativamente. Nos Estados Unidos, era já antiga a prática de tais listas, naquela altura – com a do jornal The New York Times na posição da mais influente. Exatamente no ano em que a revista brasileira inaugurava a sua lista, Gore Vidal havia se debruçado, num artigo, sobre as listas do jornal americano (por sinal, descobrindo – segundo ele – que a “arte de escrever” estava se Continente novembro 2004


transformando na “arte de escrever para o cinema”), e eu vou imitá-lo, aqui, debruçando-me sobre as listas da Veja, que foram imitadas por ISTOé e Época, na seqüência dos anos. A primeira relação dos livros mais vendidos da semana, publicada há 31 anos, apresentava um romance de Érico Veríssimo – Incidente em Antares –, o estudo A Hegemonia dos Estados Unidos, de Celso Furtado, e um ensaio do americano Alvin Toffler (alguém se lembra do “futurólogo”?), campeão de vendas: O Choque do Futuro. Um ano depois, consultando-se as listas do mês de março, Érico comparece com o primeiro volume de sua autobiografia – Solo de Clarineta – e O Exorcista, de William P. Blatty, era o primeiro entre os estrangeiros, numa altura em que a revista separava apenas obras nacionais e de fora (a ficção se misturando com a não-ficção etc.). Pulemos uma meia dúzia de anos, agora, para avançar até à glória das listas de 1981, mais do que surpreendentes: o leitor brasileiro estava lendo, em primeiríssimo lugar (ao longo de cinco meses), o já citado Memórias de Adriano, ficção baseada em rigorosas pesquisas da Yourcenar sobre o imperador romano do século 2 – “o século dos últimos homens livres”, segundo a autora belga (cujo centenário, ano passado, foi ignorado no Brasil). Deve ser lembrado que a personagem “Joana”, vivida por Betty Faria, em Baila Comigo, da Rede Globo, havia comprado o romance, num determinado capítulo da novela, com o que duplicaram as vendas das Memórias magnificamente traduzidas por Marta Calderaro. Em seguida, o voraz leitor tupiniquim estava atraído para um romance do bom Antonio Callado, Sempreviva, e para o sucesso do cinema O Beijo da Mulher-Aranha, de Manuel Puig (olha o cinema de novo aí, depois de O Exorcista, para dar razão à “descoberta” de Gore Vidal). Um Homem, de Oriana Fallaci, e O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges, eram a quarta e quinta preferências, respectivamente... e, antes de dar o sexto livro naquela lista, faço uma pausa de “suspense” porque, nesse lugar, estava posicionado – com cinco mil exemplares vendidos em um mês – nada mais nada menos que Poesia, de T. S. Eliot, acreditem ou não. Poeta difícil e requintado, Eliot estava sendo lido amplamente em Pindorama, com a primeira edição da antologia esgotada no primeiro mês do lançamento, no segundo semestre de 1981, cuja dourada lista dos “mais vendidos” (na Veja de 12 de agosto) prosseguia com a sétima posição ocupada por uma obra do excelente Julio Cortázar – Alguém que Anda por aí –, seguida... sabem do quê? De Em Busca do Tempo Perdido, a obra-prima de Marcel Proust, em sete volumes esgotados em dois meses! Somente os dois últimos títulos da lista daquela semana eram obras descartáveis: Ninja, de Erich van Lustbader (?), e O Amor Nunca é Demais, de uma certa Helen van Slyke. A lista de “Não-Ficção” inclui os títulos (nesta ordem) 1964: a Conquista do Estado, René Dreifuss; O Desafio Mundial, J. J. Servan-Schreiber; Roleta Chilena, Alfredo Sirkis; Tirando o Capuz, Álvaro Caldas; Entradas e Bandeiras, Fernando Gabeira; Geopolítica do Brasil, Golbery do Couto e Silva; Liberdade de Escolher, Milton e Rose Friedman; Henfil na China, Henfil; Como Vejo o Mundo, Albert Einstein; e O Homem e o Amor, Nancy Friday. Como se vê, apenas o último lugar das apurações de “Não-Ficção” estava na linha, já, do que hoje enche as livrarias (e já conquistou até a talentosa Lya Luft para produzir os Perdas e Ganhos chinfrins da vida etc.). Sem chegar a figurar nas listas dos dez, apareciam na reportagem sobre o “sucesso da qualidade” etc., os também bem vendidos A Montanha Mágica, de Thomas Mann – reeditado com pleno êxito – e os lançamentos A Consciência de Zeno, do italiano Ítalo Svevo, e Absalão, Absalão, de William Faulkner, entre outros títulos de ótimo retorno, conforme seus editores. Seis títulos de Virginia Woolf (disponíveis no mercado de então, sem nenhum empurrão do tipo As Horas) haviam vendido 60.000 exemplares, ou “quase tanto quanto os romances de Agatha Christie”, lembrava o editor Oswaldo Siciliano, ouvido pela Veja: “Um autor como


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Poeta difícil e requintado, Eliot estava sendo lido amplamente em Pindorama, com a primeira edição da antologia esgotada no primeiro mês do lançamento, no segundo semestre de 1981

Harold Robbins não vende hoje nem metade do que vendia há cinco anos”, acrescentava o dono da rede de livrarias do mesmo nome (com a aparente indiferença de livreiro que não se importa se o que vende mais é James Joyce ou Paulo Coelho...). O que aconteceu, desde então? No país das mesmas 400 livrarias de sempre (o número não muda? Já em 1981, é essa a estimativa referida), além de Memórias de Adriano como livro de cabeceira levado até para a praia, dava-se o fenômeno dos 190.000 exemplares de Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, vendidos em bancas de revista, na coleção Gênios da Literatura, selecionada com notável apuro. No Círculo do Livro (ainda existe?), ao qual o leitor se associava por meio de uma contribuição “x”, a cada trimestre eram oferecidos pelo menos um de 300 títulos, a preços bem razoáveis. Em 1981, o Círculo contava com 700.000 sócios, “a maior comunidade associada a qualquer interesse no país”, destacava o texto no qual aparecia o editor Sérgio Lacerda, já falecido, muito otimista com a situação do livro no Brasil: “Com este mercado amadurecido, resolvemos dirigir nossas forças para a produção de qualidade”. O que deu errado? Conferindo as listas dos anos seguintes, vejo que o ano do impeachment do aloprado Fernando Collor e da posse do engordurado topete de Itamar Franco (1992) assinala o aparecimento de Paulo Coelho nas listas decaídas que, em lugar de Marguerite Youcenar e T. S. Eliot, passam a trazer romances de Sidney Sheldon (arhg!) e outras porcarias editadas pela Record na frente de outras editoras, disputando o lixo literário internacional. Posso dar um depoimento? Em 1998, quando a diretora editorial da Record - Luciana Villas Boas - veio ao Recife para contratar três dos meus livros (A Cabeça no Fundo do Entulho, Aspades Ets, Etc e T. E. Lawrence: Morte Num Ano de Sombra), ela me disse que a sua editora estava em busca da qualidade perdida no meio da montanha de dinheiro que o patrão, Sérgio Machado, ganhava com best-sellers descartáveis. Talvez Sérgio tivesse autorizado a “busca” em homenagem ao pai, o velho Alfredo Machado, que assim comentara o sucesso de público de Em Busca do Tempo Perdido, em 1981: “No caso da reedição de Proust, o que mudou foi o editor, não o leitor, porque Proust em qualquer época faria sucesso”... Roberta Mariz - Cortesia: Livraria Progresso

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Memórias de Adriano: um semestre no topo das listas dos mais vendidos, em 1981

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De Os Irmãos Karamázov a Código Da Vinci: a literatura atual tornou-se de sobrevivência

Será? Se você for ver o que aparece nas listas da Veja, vinte e três anos depois, não parece que Proust pudesse obter êxito, com a fina renda da sua literatura, entre preferências descidas até bobagens como 100 Escovadas Antes de Ir para a Cama, de Melissa Panarello, e o estrondoso sucesso de um tal Dan Brown, intitulado O Código Da Vinci – o qual já gerou Revelando o Código Da Vinci, de Martin Lunn, Quebrando o Código Da Vinci, de Darrel L. Block, e Decodificando o Código Da Vinci, de Amy Welborn – todos davincianamente na relação dos mais vendidos da Veja de 8 de setembro passado. Tal relação está ampliada, hoje em dia, para além de “Ficção” e “Não-Ficção”. A realidade de mercado impôs um terceiro gênero, “Auto-ajuda e Esoterismo” (na Época, há uma quarta lista de êxitos na faixa “Infanto-Juvenil”), cujos títulos dão conta da atual atração brasileira por “profundas” leituras na área de textos do nível invertebrado-gasoso que aparece na edição nº 1870, ano 37, 2004: Não Leve a Vida Tão a Sério, de Hugh Prather, Caminhos e Escolhas, de Abílio Diniz (“escritor” e dono do Pão de Açúcar), Por que os Homens Fazem Sexo e as Mulheres Fazem Amor, de Allan e Barbara Pease, Tudo Valeu a Pena, de Zibia Gasparetto, Homem-Cobra e Mulher-Polvo, do inacreditavelmente óbvio Içami Tiba, e Quem Mexeu no Meu Queijo?, de alguém com nome de personagem de seriado de TV: Spencer Johnson... Não sei quem mexeu no queijo dele. Não acho que tudo vale a pena. Não quero conselhos, caminhos nem escolhas, Abílio-das-sopas-de-letrinhas. Levo a vida a sério – e também os livros, o conhecimento, a existência que estamos abastardando apenas para sobreviver, como já identificava Márcio Souza, em 1994, numa reportagem de Rinaldo Gama justamente sobre as listas dos livros mais vendidos da Veja: “Criamos o que eu chamo de literatura de sobrevivência. A classe média vai gastar seu dinheiro lendo Dostoiévski ou um livro de informática que pode lhe abrir espaço para ganhar dinheiro?” Ou seja, o livro teria ganho uma “função” utilitária imediata, prioritária para os leitores de hoje. Pode ser ajudar a ganhar dinheiro ou arrumar emprego, melhorar o casamento, afastar o estresse, dar dicas para orientar filhos ou comprar produtos naturais de bom preço no Comprebem. É o que nos importa, no mundo do aqui-e-agora: vale a pena tudo – desde que seja pequeno. Na diminuta vida dos anões mentais que fomos nos tornando, neste mundo hegemônico do capitalismo triunfante na sociedade de consumo de massa, as memórias fictícias de um imperador romano morto há quase dois mil anos realmente não voltarão jamais – suponho – à posição de leitura de cabeceira, de praia ou de qualquer outro lugar desse deserto que é, sim, a “terra desolada” dos homens ocos de Eliot, aquele poeta lido uma vez, noutro planeta. •

Conferindo as listas dos anos seguintes, vejo que o ano do impeachment do aloprado Fernando Collor (1992) assinala o aparecimento de Paulo Coelho nas listas decaídas Continente novembro 2004

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Poética de Mauro Mota Obra do poeta é relançada, no Recife, com acréscimo dos “versos de Arquivo” Luiz Carlos Monteiro

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Ilustração: Murilo

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aparição recente da poesia completa de Mauro Mota vem suprir uma lacuna de pelo menos duas décadas na literatura brasileira. O poeta não se dispôs, ele mesmo, a reunir, enquanto vivo, os livros publicados e o material inédito que guardava. Talvez pela gama de atividades que exercia no cotidiano, como a escrita sistemática de prosa para livro e jornal. Os seus livros de poesia foram sendo editados num intervalo de tempo médio de dois-quatro anos, o que se mostra razoável e não revela descuido ou saturação. E nesta Obra Poética – lançada no Recife com o selo novo da Ensol, em convênio com a ABL – o leitor atento não perceberá mudanças substanciais numa poética que já tinha se consolidado desde As Elegias em 1952, mesmo com o acréscimo, agora, do que se convencionou chamar, no volume, “versos de Arquivo”. Mauro Mota (1911-1984) costuma ser enquadrado na geração de 45, embora parte significativa de seus versos demonstre o contrário, pois na sua trajetória não há fixação numa forma poética ou fase literária específica. Tanto podia representar o poeta passadista do Recife – como também o foram, em certa medida, Manuel Bandeira e Joaquim Cardozo – quanto o neomodernista comedido, convivendo sem grandes problemas com a irreverência de um Ascenso Ferreira. Além do mais, numa empatia ao “novo” ou ao supostamente “novo”, em poesia, podia se render ao charme do micropoema ou do poemínimo, da escrita coloquial e do texto minimalista. Pelo seu lirismo irreprimível, não mantinha maiores aproximações com João Cabral, ainda que trabalhasse seus poemas, levando em conta a aprendizagem e a prática


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de uma “alta e obstinada lição de rigor, de um rigor que se Cabral e Joaquim Cardozo. No fragmento “A Lua”, é mardiria clássico, tamanho é o tributo que paga à austeridade cante o traço humorístico, numa referência direta à fama de expressiva e ao culto das boas tradições da língua”, como “comilão” de Ascenso Ferreira; em “Os Subúrbios”, o referente é as “tecelãs”, tema caro a Mauro Mota. Aliás, aponta Ivan Junqueira no prefácio à Obra Poética. Os poemas neomodernistas da primeira fase chegam Mauro não foge à poesia social – no seu caso, de vertente impregnados do Regionalismo em voga, no Recife, sobre- humanística – que se manifesta, por exemplo, em dois tudo nos anos 20/30 do século passado, sob a liderança de poemas de O Galo e o Catavento (1962), “Cantiga de Gilberto Freyre. Nestes poemas, publicados em jornais Lavadeira” e “A Rendeira”, e no poema “A Tecelã”, editado interioranos, identifica-se um certo sabor provinciano, per- pelo Gráfico Amador, em 1956, e posteriormente incluído meado de intenções e tonalidades agudamente localistas, em Os Epitáfios (1959). Em versos de “A Tecelã”, a com uma certa inclinação epigramática, aproximando Mau- motivação central é a mulher trabalhadora que fabrica, com ro Mota do poeta modernista Ronald de Carvalho. Tais seu sangue e pele, tecidos, estampas e roupas para consumo poemas se caracterizam, ainda, pelo humor raro e explí- de outras pessoas, com exclusão dela própria: “Muito cito, algumas vezes ingênuo e piegas. Desta safra são os embora nada tenhas,/ estás tecendo o que é teu.// Teces poemas de Jornal do Município, do livro Itinerário, onde um tecendo a ti mesma/ na imensa maquinaria,/ como se poema condensado e sintético, “Jogo Noturno”, se desta- entrasses inteira/ na boca do tear e desses/ a cor do rosto e ca: “Ilumina-se o campo/ para o futebol na aldeia./ Apare- dos olhos/ e o teu sangue à estamparia”. A partir de Canto ao Meio (1964), os poemas de Mauro ce a bola branca,/ feita de algodão e meia./ Meninos poetas Mota vão sendo publicados como pequenas reuniões ou jogam/ com a bola da lua cheia”. A poesia que fala diretamente do Recife reflete a condição breves antologias. Uma das últimas publicações de pessoas, coisas, paisagens bucólicas e “imagens da água” conhecidas, a Antologia em Verso e Prosa (1982), não foge a dentro do urbano, onde se aflora também a imagem reversa esta orientação. Quando ele se afasta dos sonetos de linhade um Recife sombrio e melancólico, senão aburguesado pe- gem petrarquiana, passa a desenvolver o verso branco e o las velhas e tradicionalistas famílias que aqui residiam em poema livre, instaurando quebras diversas – no ritmo e nas rimas, na métrica e nos efeitos sonoros satisfeitos sobrados, contrapostos a rotos e de maior ressonância e aplicabilidade, esfomeados mocambos. Ou a visão de um como aliterações e assonâncias. Ao outro Recife, cingido pelos saraus liteabandonar recursos expressionais de rários do Café Lafayette e movimentado valia comprovada, para aventurar-se pelo footing da rua Nova. O passadismo no mundo de quem reivindica, acima neste poeta significa um momento de de tudo, o surto novidadeiro, o engajaextrema coerência entre sua vida e obra: mento vanguardista e a maldição icohá uma conexão simbiótica que increnoclasta, Mauro Mota, às vezes, paga menta, na obra, os elementos vivenciais o preço por forçar a mão e a circunsque perfazem o poeta antigo e com o olhar tância. E pode vir a ser penalizado, voltado nostalgicamente para um mundo também, por associar sua performance derrocado, morto e em franca desaparição poética individual, indesejadamente de seus valores. talvez, ao poema que não logrou se No poema-inventário, “Guia Prático realizar artisticamente, ou seja, ao poeda Cidade do Recife”, Carlos Pena Filho ma que foi concebido e construído covai introduzindo os poetas de sua prefemo poesia, mas que guarda todas as carência, notadamente os que melhor can- Obra Poética, Mauro Mota, Editora Ensol, 315 páginas, R$ 20,00. racterísticas da prosa. • taram o Recife: Manuel Bandeira, João Continente novembro 2004

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Poesia na ponta da língua A estudiosa e divulgadora da poesia brasileira contemporânea, Cláudia Cordeiro, lança CD de poemas falados Marco Polo

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lguns exegetas consideram que tanto a Ilíada quanto a Odisséia são compilações feitas por Homero, na Grécia, por volta de 750 a.C., de poemas narrativos orais, recitados por rapsodos e aedos. Já na Idade Média, na Europa, os trovadores cantavam, em versos, narrativas de amor, guerra, heroísmo e viagens, além dos fatos do dia-a-dia, seja em praças, seja em castelos. No Brasil, na primeira metade do século 20, floresceu a literatura de cordel, recitada nas feiras, e tematizando desde temas históricos, como o cangaço, até lendas maravilhosas, como o Pavão Misterioso. Nos EUA, também na década de 50, do século passado, os poetas beatniks popularizaram os recitais de poesia de tal forma que, até hoje, em San Francisco, um de seus principais redutos, ainda há auditórios exclusivos para se dizer e se ouvir poesia. A tradição da poesia falada, portanto, é tão antiga quanto respeitável e, vez por outra, floresce em movimentos ou manifestações isoladas. João Cabral de Melo Neto, por exemplo, tem poemas que ele classificou de “em voz alta”, ou seja, poemas para serem falados e não, simplesmente, lidos em silêncio. Lembrando, ainda, que muitos poemas ganham força quando ditos. Caso típico é o de Ascenso Ferreira, cujos poemas, recitados (gritados, cantados e cuspidos, diria Manuel Bandeira) por ele próprio, ganhavam uma dinâmica especial. Divulgadora incansável da poesia, a professora de Literatura Brasileira, Cláudia Cordeiro Reis, está lançando o CD Plataforma para a Poesia, com poemas de Alberto da Cunha Melo, Astier Basílio, Domingos Continente novembro 2004

Alexandre, Eduardo Martins, Geraldino Brasil, Gilberto Mendonça Teles, Ivo Barroso, José Nêumanne e Marco Polo Guimarães. Ela própria diz os poemas – em performance impecavelmente sóbria e com dicção perfeita – pontuada pelo elegante e contido violão de Isaac Costa. A respeito, disse o escritor Deonísio da Silva: “Os poetas aqui reunidos (...) têm o que dizer e, à semelhança dos pré-socráticos, filosofam em versos, com profundidade e leveza extraordinárias (...) Pequenas amostras de grande poesia na voz delicada, firme, expressiva e persuasiva de Cláudia Cordeiro, medianeira de graças alcançadas por nós, leitores e degustadores da boa poesia, ao som do violão cadenciado e terno de Isaac Costa. Enfim, tudo é tão puro e verdadeiro nesse CD que a inteligência e a bondade, em consonância, ensejaram para que versos recitados com fundo musical nos emocionassem tanto. Saudei, no Jornal do Brasil, a inventividade do grupo que criou a Plataforma para a Poesia. A sorte foi lançada. O projeto está consolidado”. Cláudia é também a editora do sítio virtual www.plataforma.paraapoesia.nom.br, que congrega 72 poetas, entre novatos e consagrados, além de artigos, entrevistas e links de interesse para quem gosta do assunto. •

CD de Poemas Falados Plataforma para a Poesia, com vários autores. Voz de Cláudia Cordeiro. Violão de Isaac Costa. Lançamento: 18 de Novembro, às 19h, na Nossa Livraria (Rua do Riachuelo, 267, Boa Vista – Recife). Preço: R$ 15,00.


POEMAS

Meu Rubáiyát de Omar Kháyyám Ivo Barroso

LXXXIX Não pedi a ninguém a vida que possuo! Farei por acolher sem ira e sem amuo tudo o que a vida me ofereça, quer me fira ou quer me favoreça. Eu sou, de um modo tal, conformativo, de um desprezo tão profundo, que irei sem indagar o secreto motivo da minha misteriosa estada neste mundo. CXV Se queres gozar a solidão perfeita que nos vem das estrelas e das flores – rompe com os homens, servos ou senhores, desliga-te de todas as mulheres, não busques a companhia de ninguém. Prefere a taça cheia e sem espuma... Não participes da alegria alheia e nem te inclines sobre dor alguma. X Sinto reflorescer a minha mocidade. Desejo aquele vinho que me dá calor, felicidade, amor, o vinho que conforta. – Homem, por que meu passo embarga? Ofende-lhe a bebida? Quero vinho! Dirá que o vinho amarga? Não importa!... Tem o gosto da vida!

LXXXVII Escuta o meu segredo: Quando a primeira aurora cor-de-rosa iluminou o mundo, Adão já era um ser cheio de medo, criatura dolorosa, sem ideal nem sorte, abismado no tédio mais profundo, ansiando pela noite e pela morte. XII Lancei minh’alma além da Terra e do Infinito a procurar o Céu e o Inferno, a esmo. Quando voltou a mim, disse, num grito: “O Céu e o Inferno estão dentro em ti mesmo!” CXII Bebo meu vinho assim como a raiz do salgueiro bebe a água da corrente e sou feliz! Mas diz o crente: “Deus é quem sabe, teme-o!” – Pois bem, quando me criou, Ele sabia que vinho eu beberia. Foi seu desejo que essa fosse a minha estrada!... Se eu me tornasse abstêmio, toda a ciência de Deus se quedaria errada! V Procura ser feliz ainda hoje; nada sabes do dia de amanhã! toma uma urna de vinho e vai-te: foge da ciência, limitada e vã. E antes que o vinho de todo se acabe, Escuta, ao luar, esta sábia canção: “Amanhã, talvez, quem sabe? te procure a Lua em vão!” XXII Na Primavera, gosto de sentar-me à sombra amiga, num vergel florido; e enquanto a rapariga entoa um carme, eu bebo de meu vinho preferido e acaricio-lhe o frescor da face sem me lembrar de minha salvação. Se de tal pensamento me ocupasse, eu valeria menos que um cão. • (Adaptação em versos rimados da versão em prosa de Octávio Tarquínio de Souza). Continente novembro 2004

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NARRATIVAS

Evandro Affonso Ferreira

Zelotopia

Ave de Juno aquela dia todo desfilando revestida de pompas nada-nada preocupada por exemplo com a doutrina panteísta de Spinoza ou com a metafísica plotiniana do Uno bah só pensa purutacotataco em abrir a cauda em leque mostrando sua plumagem convenhamos belíssima.

Arrelá!

Aie agüento mais de jeito nenhum escaldo-rabo dela parentela toda ixe extinto pai apre últimos arquejos dizia lamuriante: urubu jr este incuravelmente caído no caminho da desonra puf! me leva pra cova agindo assim hã dia todo comendo verduras legumes frutas frescas fu!

Bordalengo

Aiuê tiro saiu pela culatra eh-eh maldade humana não conhece margens fronteiras nascentes oxe malfazejo autor de iniqüidades ano todo anzol dele pescador tição do inferno vupt mas hoje bem-feito! quis enganchar boquinha da piabinha aqui pluft furou o próprio olhinho.

Punfas!

Barbalhoste Continente outubro 2004

Funambulesco pensa que pode me lançar à margem hã hoje sou uma Bovary pronta pro adultério eh-eh chega ufa que rufem os tambores do brejo: primeiro bufonídio que coaxar nos meus ouvidos fuque-fuque-fuque puh marido funambulesco pensa que pode fazer gato-sapato deles meus sentimentos só porque foi príncipe um dia.

Desfecho doloroso apre bisbórria aqui desalumiado rezingando pelos cantos oxe vida toda luz viva huifa tempo todo fosforejando preluzindo resplandecendo huumm ser iluminado literalmente pirilâmpico aie desfecho deprimente velho feito eu terminar com todos eles órgãos luminescentes desativados apre.


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A guerra manipulada

Romance de cavalaria Publicado em 1490, Tirant Lo Blanc, de Joanot Martorell, é considerado o ápice do romance de cavalaria. Cervantes o coloca na vala comum dos textos do gênero, que ironizou com maestria 115 anos depois, no Dom Quixote. Mas os admiradores do primeiro o consideram uma obra-prima, apesar da opinião do mestre. Num ritmo vertiginoso, narra aventuras, costumes, façanhas militares e amores do cavaleiro bretão Tirant, numa clave realista e maravilhosa ao mesmo tempo. Combates heróicos, amores extremos, astúcia, nobreza e vilania se sucedem num turbilhão de palavras, salgadas por abundantes lágrimas ou adoçadas por pitadas de humor. Vargas Llosa o considera um romance universal e assinala, no prólogo da caprichada edição traduzida do catalão por Cláudio Giordano, que Martorell utiliza as armas dos grandes escritores – talento e bruxaria – para tornar seu romance uma “formidável máquina de sedução”. Com efeito, o texto é uma verdadeira lição de como conduzir o leitor do início ao fim, numa técnica que assentaria as bases narrativas dos posteriores folhetim de aventuras, novela romântica e até o western cinematográfico, como acentua ainda Vargas Llosa, ao que acrescentamos: e dos bons folhetos de cordel. É um calhamaço de 856 páginas que proporciona uma verdadeira fruição da leitura. (HF)

Numa guerra, tão importante quanto a estratégia e as manobras militares é a batalha pelos corações e mentes das pessoas dentro e fora do conflito. Isto é um truísmo e o australiano Philip Knightley, em seu clássico estudo sobre o trabalho dos correspondentes de guerra, em A Primeira Vítima, dá bons exemplos da manipulação de jornalistas (em muitos casos, consentida) ao longo da história das coberturas de guerra. A guerra do Iraque (que o jornalista Sérgio Dávila classifica de invasão) é um exemplo emblemático do jogo envolvendo empresas jornalísticas e seus profissionais nos campos de batalha físico e psíquico. A jornalista Paula Fontenelle, em dissertação para o mestrado em Marketing Político da Universidade Greenwich, em Londres, ouviu os principais correspondentes de jornais e tevês britânicos em Bagdá, assim como os coordenadores da operação de mídia do Ministério da Defesa. Escoimando o trabalho de todo ranço acadêmico, Paula publica os resultados de sua pesquisa em livro, num texto fluente, em que muitas vezes dá a palavra diretamente aos envolvidos, constatando uma forma mais sutil e eficiente de manipulação. Tão sutil e eficiente que, na maior parte dos casos, estava introjetada pelos próprios jornalistas. É documento valioso, este livro, para conhecimento crítico da mídia diante dessa guerra que não termina.

Tirante Lo Blanc, Joanot Martorell, Ateliê Editorial, 856 pág., R$ 75,00.

Iraque – A Guerra pelas Mentes, Paula Fontenelle, Editora Sapienza, 206 páginas, R$ 32,00.

Despersonalização

Fábulas

Medicina

Um escritor brasileiro vai a Londres, supostamente convidado por uma instituição, para fazer palestras. Desde o seu desembarque, entretanto, começa a duvidar de tudo: desde as intenções do inglês que vai esperá-lo no aeroporto até a sua própria missão ali. Seguese um processo de despersonalização, em que o personagem (sem nome) vai mudando tanto interna quanto externamente: pinta os cabelos, usa maquiagem etc. Numa sucessão de crises de vômito e desmaios, perde-se de si mesmo e de seu país, misturando realidade, delírio e sonho, indiscriminadamente. Tem vários encontros homossexuais (que nunca se completam, entretanto) e, ao final, assume o corpo de um estivador tatuado. Romance perturbador, que se lê de um só fôlego.

Jean de La Fontaine escreveu contos, poemas, máximas, pensamentos e peças teatrais, mas deve sua imortalidade às fábulas, muitas delas reescritas a partir de Fedro e, principalmente, Esopo (fabulista grego que viveu no século 6 a.C, e que na época de La Fontaine estava praticamente esquecido), acrescentando-lhes comentários e digressões. Também é muito respeitado pela mestria e perfeição com que manejava o verso de caráter classicista, em métrica variada. Graças a este francês, até hoje são conhecidas fábulas como “A Raposa e as Uvas”, “O Lobo e o Cordeiro” e “A Cigarra e a Formiga”. É dele, também, a expressão “dar pérolas aos porcos”. La Fontaine nasceu em 1621 e morreu em 1695, aos 73 anos.

A partir de uma palestra proferida na Sociedade Paulista de História da Medicina, Alceu Maynard Araújo, conceituado antropólogo do século passado, resolveu aprofundar e estender o assunto em um livro. O resultado é uma compilação e análise das plantas medicinais da flora brasileira e da mentalidade dos moradores de áreas distantes de centros urbanos, que diagnosticam e curam doenças através da medicina rústica ou com o auxílio de curandeiros. Ao detalhar aspectos da cultura, crenças e mentalidade das classes populares, principalmente do Nordeste brasileiro, Maynard contribuiu para a melhora do atendimento médico à população carente.

Lorde, João Gilberto Noll, Editora W11, 112 páginas, R$ 32,00.

Fábulas de La Fontaine, Jean de La Fontaine, Madras Editora, 376 páginas, R$ 39,90.

Medicina Rústica, Alceu Maynard Araújo, Editora Martins Fontes, 380 páginas, R$ 45,00. Continente novembro 2004

AGENDA

LIVROS


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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

O David de Miguel Ângelo A obra de arte – e particularmente a obra-prima – guarda, na expressividade de suas formas, algo que permanece para além dos marcos de sua época

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á exatamente cinco séculos – no ano de 1504 –, Miguel Ângelo Buonarotti entregava à cidade de Florença uma obra-prima da escultura conhecida pelo nome do personagem que representa o David. Trata-se de uma obra de grandes proporções – cinco metros de altura e cinco toneladas de peso – que foi instalada na praça central da cidade. Mas – e isto é obvio – o que mais impressiona, nesta obra, menos que suas medidas, é, sim, a beleza da figura esculpida: um jovem de proporções harmoniosas, esculpido em mármore branco que, pela magia da arte, parece quase imaterial, como uma aparição luminosa. Pablo Picasso disse, certa vez, com a lucidez de sempre, que toda arte é atual. O que é verdade, mas não impede que nem todos os olhos de hoje vejam no David de Miguel Ângelo a mesma atualidade a que se referia o mestre espanhol. Os milhares de pessoas que visitam anualmente a Academia de Belas Artes de Florença, para admirá-la, vêem nela certamente uma das expressões máximas da arte de todos os tempos; para outros, no entanto, trata-se de uma obra importante, mas ultrapassada: expressaria uma concepção estética que já não tem cabimento nos dias atuais. De certo ponto de vista, tal afirmação é aceitável pelo fato mesmo de que toda obra de arte nasce historicamente condicionada, enquanto fato cultural, produto da criatividade de determinado indivíduo em determinado momento e circunstâncias. Mas isto não impede que as qualidades propriamente estéticas da obra se mantenham capazes de comover ou deslumbrar o espectador de hoje. Deve-se, por outro lado, admitir que certos fatores circunstanciais podem contribuir

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para esmaecer ou ressaltar aquelas qualidades. De qualquer modo, a obra de arte – e particularmente a obraprima – guarda, na expressividade de suas formas, algo que permanece para além dos marcos de sua época. O David é prova disto. Para muitos estudiosos da arte, o David, embora obra da juventude de Miguel Ângelo, seria o ápice de sua realização artística. Quer concordemos ou não com tal juízo, a verdade é que esta escultura é, de certo modo, um momento excepcional da concepção estética de seu autor, para quem o belo se confundia com a pura espiritualidade, ou seja, produto da superação da matéria ou sua transfiguração em manifestação espiritual. Como observou Giulio Carlo Argan, Miguel Ângelo opunha o valor exclusivo da Idéia ao mundo da experiência, o qual é por ele excluído, do mesmo modo que o presente e a história. Sua obra resultaria, portanto, no triunfo do espírito humano sobre a contingência da materialidade e da morte. Isto parece suficiente, se se pensa no David ou na Pietà do Vaticano e mesmo no conjunto escultórico da capela dos Médicis, em Florença. Quanto a essa obra, não podemos dissimular a surpresa que nos causa o rosto inacabado da figura alegórica da Aurora, deixada em esboço – mero borrão na pedra. Por quê? Sei muito bem que a informação conhecida é que o escultor deixou, inconclusas, esta figura e ainda A Noite. Esta é certamente a explicação mais plausível, o que não nos impede de refletir sobre o fato de que, se para Miguel Ângelo esculpir era “tirar” matéria, debastar o mármore, deixar ali aquele rosto inacabado – que é o contrário da pedra tornada imagem, que é a matéria na sua rudeza


TRADUZIR-SE

Reprodução

O David, de Miguel Ângelo, na Academia de Belas-Artes de Florença

intranscendente – dá o que pensar. Quer ele o tenha deixado assim, de propósito ou não, pode-se perfeitamente imaginar que ele não seria insensível ao choque que aquele contraste provoca: como uma ferida aberta, o rosto inconcluso tanto mostra o abismo insondável da matéria quanto a vitória da arte sobre a materialidade da pedra. Quase o mesmo se poderia dizer da série de esculturas conhecidas como Escravos, também deixadas inacabadas: nelas se assiste, por assim dizer, ao nascimento da obra de arte, encarnada naqueles corpos de homens que parecem libertar-se da inexistência, vindos do âmago da matéria para tornar-se expressão humana, obra de arte. A hipótese, por mim levantada, que sugere ter havido da parte de Miguel Ângelo a intenção de não terminar aquelas obras, não me parece inteiramente descabida, não apenas porque se insere na dialética de sua visão da arte e da vida, mas também porque a última escultura que concebeu – e que não concluiu –, a Pietà Rondanini, parece revelar, na anatomia do Cristo e no esboço da figura da Virgem, uma mudança radical em sua linguagem artística; mudança esta que consiste no abandono do estilo maneirista em favor de uma expressão mais contundente, mais dramática e, consequentemente, mais vinculada à emoção que à Idéia. Se admitirmos que Miguel Ângelo deixou a obra deliberadamente inconclusa, ela ganha outra significação e outra força expressiva: não apenas porque o inacabado da figura do Cristo, com seu tórax estreito e desfeito na imprecisão do mármore, torna-se a expressão mesma da dor e da miséria humana, como também uma tal opção estética ecoaria como a antecipação do gosto estético do futuro, que trocou a perfeição anatômica idealizada do David pela imperfeição da anatomia individual esculpida pelo desamparo e pelo sofrimento. O fato é que, no caminho seguido pela arte ocidental, após Miguel Ângelo, trocou-se a figura humana idealizada pela figura do indivíduo real. Mas a essa figura naturalista, sem idealização alguma, faltava fantasia e transcendência, sem as quais a arte se restringe a mera habilidade técnica, a habilidade de copiar a realidade. É a negação da arte em seu verdadeiro sentido. Por isso mesmo, sem poder retornar às formas ideais do classicismo, o caminho seguido pelos escultores modernos foi aprofundar a dramaticidade da forma enquanto forma, tornando-a expressão de arquétipos provindos da zona escura e insondável do Inconsciente. É o que se observa, por exemplo, nas obras de Rodin, Bourdelle, Giacometti ou Henry Moore. •

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ARQUITETURA

Bienal da Arquitetura reúne a nata mundial da área, revela as mudanças que estão acontecendo em conceitos e materiais, e apresenta a questão: onde e como vamos viver no futuro? Guilherme Aquino, de Veneza

Arquitetura em metamorfose

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Arquitetura contemporânea vive uma fase de metamorfose, provocada pelas novas necessidades das modernas sociedades ocidentais e orientais. Grandes mudanças surgem em tempos cada vez menores e geram conseqüências ainda maiores. As transformações dão origem a tecnologias mais avançadas. Estas, por sua vez, possibilitam a criação e a realização de projetos e, assim, simultaneamente, encerram e retomam o círculo vicioso. Um ciclo que gira a uma velocidade espantosa para cima e para os lados, na forma de construções que arranham os céus de Shangai, espalham-se sobre as águas em Berlim ou se mimetizam nas florestas nos países nórdicos, lá na Escandinávia e se reproduzem em cidades industriais como Kyoto, no Japão. A 9ª Mostra Internacional de Arquitetura, em Veneza, tem como objetivo capturar esses atuais movimentos, materializados diante de nossos olhos pelas cidades do mundo inteiro. Essa Bienal revela o que está sendo feito hoje, para o amanhã, e, indiretamente, apresenta a questão: onde e como vamos viver no futuro? “Não temos a pretensão de dar ou assinalar uma tendência. O nosso objetivo é mostrar aquilo que está já em curso e que se enquadra na ótica da metamorfose arquitetônica. Esta é a proposta deste evento”, explica o suíço Kurt W. Forster, diretor artístico da Mostra. O canteiro de obras-primas reúne a nata mundial da Arquitetura. São cerca de 150 estudos e 200 projetos entre maquetes, instalações, vídeos e fotografias de protagonistas do cenário internacional, como Norman Foster, Frank O. Gehry e Renzo Piano. São


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Divulgação

ARQUITETURA

projetos capazes de estabelecer os estágios social, cultural e tecnológico de uma nação. O evento está espalhado em duas grandes áreas: Giardino e Arsenale. A primeira reúne os pavilhões nacionais dos países participantes. São 42 no total, entre os quais o Brasil. A segunda abriga um percurso de temas que orbitam em torno da matéria, na seguinte ordem: transformações, topografias, superfície, atmosfera e hiperprojetos. Do lado de fora do Arsenal foi montada a “Cidade d’Água”, um pavilhão que bóia sobre as águas de Veneza. Ele foi criado para mostrar e discutir a nova relação existencial e material entre os tecidos urbano e aquático. “O melhor do mundo está representado aqui. Reflexão, linguagem, confronto, análise e diálogo são algumas chaves para ler o que está na Bienal”, explica Kurt W. Forster, acrescentando que os cinco sentidos do visitante são colocados à prova durante a Mostra. De fato, pode-se falar de tudo desta Bienal, menos que ela tenha um conceito abstrato, como normalmente acontece em eventos do gênero. A amplitude da Mostra possibilita diferentes leituras, mas todas elas questionam o Modernismo e/ou o fim do Pós-Modernismo. Não se trata de uma crítica histórica ou de estilo ao movimento, já feita em anos passados, mas, sim, um acerto de contas com a Arquitetura social. A atual fase de transição da Arquitetura provoca inquietações e reflexos multifacetados.

Ponte da Aspiração, do The Royal Ballet School, em Londres. Projeto de Wilkinson Eyre Architects


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ARQUITETURA

O melhor do mundo está representado em Veneza. Reflexão, linguagem, confronto, análise e diálogo são algumas chaves para ler o que está na Bienal Internacional de Arquitetura

Fotos: Divulgação

Acima, o diretor artístico da mostra, o suíço Kurt W.Forster. Ao lado, uma sala da Bienal de Arquitetura de Veneza Continente novembro 2004

A Bienal apresenta dados importantes, capazes de chamar a atenção de uma pessoa completamente alheia aos temas. “A Bienal tem esta capacidade de fazer com que as pessoas reflitam sobre o mundo”, afirma o professor Kurt W. Forster. O pavilhão dos Estados Unidos, por exemplo, revela uma série de informações preocupantes. Os americanos ficam 8 bilhões de horas anuais engarrafados no trânsito. Deste total, 25% do tempo gasto são por conta de motoristas procurando vagas para estacionar o carro. Com o preço do barril de petróleo nas alturas, as conseqüências deste desperdício são evidentes e nada desprezíveis. Segundo cálculos de especialistas de transportes urbanos, cada metro quadrado de área construída para supermercados ou para lojas de departamento, deve corresponder à igual medida para o estacionamento. O resultado lógico deste raciocínio são os prédios multifuncionais, com andares e mais andares de vagas para os clientes. A exposição cruza a linha do Equador . Da Finlândia até a Argentina, passando pelo Brasil e Itália, os projetos vão revelando as soluções encontradas pelas populações ao redor do globo para melhorar o nível de qualidade de vida, através da criação de novas construções ou da modernização das antigas. Sob este aspecto, a Alemanha vive um momento especial. As ruínas e as novidades advindas, após a queda do muro de Berlim, fazem deste país um laboratório, um centro de experimentos em todos os campos da Arquitetura. As periferias das cidades germânicas são um mosaico de estilos muito distintos entre si e de épocas bastante diferentes. Elas cresceram relegadas ao segundo plano pelas políticas urbanistas oficiais. Hoje, uma verdadeira força-tarefa de arquitetos e urbanistas tenta costurar esta colcha de retalhos, com intervenções nos espaços ociosos e com a revitalização de antigas construções industriais. O subúrbio, assim, sofre uma metamorfose e ganha uma nova vida. Já na Holanda, a criação de uma malha que unisse e integrasse as populações do campo e das cidades começou a ser uma preocupação constante, desde o final dos anos 70. E pensar que apenas uma década antes, quarteirões inteiros de construções modernas foram demolidos por conta do fim do Modernismo. Os Países Baixos investiram muito para entrelaçar as áreas rurais e urbanas, preservando e potencializando os pontos de qualidade de vida das diferentes regiões. A ocupação de imensos espaços vazios também foi colocada em prática. Hoje, os holandeses colhem os frutos desta estratégia, ao frear o inchaço dos grandes centros e manter uma população espalhada pelo território de forma quase homogênea. Algo impensável para o Brasil, a começar pelas dimensões do país. •


ARQUITETURA

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Sintonia brasileira Pela sua imensidão territorial, o Brasil se dá ao luxo de experimentar diferentes sistemas de construção

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Metamorfose, como capacidade de modificar uma realidade, é justamente o título e o fio condutor da Bienal. O Brasil trouxe projetos responsáveis pela transformação do meio ambiente e, principalmente, das mudanças da Arquitetura em si mesma, espinha dorsal da exposição. No campo da diversidade foram selecionados cinco projetos. Uma antiga pedreira em Curitiba – a capital do Estado do Paraná, conhecida como um verdadeiro laboratório de urbanismo – cedeu espaço à Opera do Arame, obra do arquiteto Domingos Henriques Bongestabs, com a estrutura em aço tubular e o revestimento externo em placas de policarbonato. De São Paulo, participa da exposição o projeto do Centro de Cultura Judaica, concebido em vidro, aço e concreto – tradicionais elementos da Arquitetura brasileira –, pelo arquiteto Roberto Loeb. De Belo Horizonte, veio Amnésias Topográficas, do arquiteto Carlos Teixeira. A idéia é preencher espaços públicos ou privados vazios e abandonados, terrenos mal-aproveitados pela planta original e preparálos para eventos provisórios, como apresentações de teatro, ou decorá-los com projetos de paisagismo. No campo da reciclagem, muito em voga na Europa, o país apresentou dois projetos paulistas de revitalização e reestruturação de prédios em São Paulo. O edifício São Vito, abandonado até pouco tempo atrás, dentro de um dos mais importantes parques centrais da cidade, representava um peso morto para a área ao redor. A sua transformação em condomínio residencial exemplar vai refletir na valorização da vizinhança. O prédio ganhou uma nova interpretação e corrigiu os erros provocados pela monofuncionalidade segundo as regras do…Modernismo. Serviços, dependências e comércio foram incorporados à área do imóvel. O projeto foi muito elogiado por arquitetos e urbanistas de Milão, em visita à Mostra. Pela sua imensidão territorial, o Brasil se dá ao luxo de experimentar diferentes sistemas de construção. Cada região molda a sua Arquitetura de acordo com as suas necessidades. Pelo menos em teoria. Depois do inchaço populacional, do crescimento selvagem das grandes cidades brasileiras, chegou a vez de priorizar a qualidade de vida, que passa, obrigatoriamente, pelo respeito ao meio ambiente. (GA) •

Cartazes da Bienal, à margem de um canal de Veneza

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Fotos: Divulgação

O poder da transformação A Arquitetura atual está, também, direcionando ousadas idéias, respaldadas em tecnologia e materiais de ponta

National Swimming Centre, no Beijing Olympic Green, em Beijing, China. Projeto de PTW Architects e CSCEC+design

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eformas, reconstruções, novos empreendimentos são adaptados às exigências de mercado e às rigorosas leis do uso do solo. Relatórios de impacto ambiental são condições básicas para levar um projeto adiante. E a multifuncionalidade também. Hoje, é praticamente impensável o surgimento de um museu sem áreas adjacentes, com restaurantes, lojinhas, livrarias, sala de projeção, parquinho para crianças, criando assim uma forma de fazer interagir as diferentes atividades em um único lugar. A Arquitetura atual está também direcionando ousadas idéias, respaldadas em tecnologia e materiais de ponta, para os auditórios musicais. Com um detalhe: a velocidade de execução das obras cresce a olhos vistos por causa dos equipamentos disponíveis. Do ponto de vista estático e estrutural,


ARQUITETURA a Arquitetura deu um salto impensável, até pouco tempo atrás, e os modernos auditórios são quase uma celebração desta evolução. Não por acaso, eles receberam uma atenção especial na Mostra. “Temos, na Bienal, uma ala dedicada às salas de concerto, com a exibição de quase 40 obras. Sabemos que todas elas são descendentes da Philharmonie de Berlim, tão criticada na metade do século passado pelo seu Expressionismo. Mas a obra se revelou uma etapa imprescindível para a evolução das modernas salas. Inovações técnicas e mediáticas foram introduzidas por Le Corbusier e Iannis Xenakis, que criou o Pavilhão Philips para a Exposição Mundial de Bruxelas. Hoje celebramos a Disney Concert Hall, em Los Angeles, de Frank Gehry, e inaugurada no ano passado”, explica o diretor da Mostra, Kurt W. Forster. A seção dedicada ao tema da Topografia apresenta uma série de projetos que acompanham as linhas do terreno ou jogam com elementos presentes no ambiente de forma criativa e inteligente. O Museu da Ciência Natural, em Niigata, no Japão, tem 160 metros de comprimento por 34 de largura. A estrutura é sinuosa, realizada com painéis de aço, com espessura de 6mm soldados entre si. As janelas são em acrílico, com espessuras que vão dos 55mm aos 75mm, oferecendo um grau de transparência de 98%. Já em Toledo, na Espanha, uma monumental escada rolante foi embutida sob a ladeira que leva à “la Granja”. O corte transversal no terreno não altera o paisagismo do lugar e o moderno acesso das “Escaleras de la Granja” está totalmente integrado ao ambiente original e praticamente mimetizado, com a ladeira da superfície e com a muralha medieval. O tema da superfície traz o único arranha-céu exposto na Bienal. Trata-se da construção do Jinling Tower, na cidade de Nanjing, China, iniciada no ano passado e com o término previsto para 2007. A estrutura é dividida em quatro quadrantes. Cada um gira ao redor de si, num ângulo de 90 graus ao longo do eixo longitudinal. A impressão que se tem é de que todo o prédio se contorce em torno de si. Os 320 metros de altura da torre provocam mais vertigem pela forma arquitetônica do que pela distância do solo. O Som Jinling Tower começa e termina como um quadrado, mas, no meio, a estrutura ganha a forma de um X. Um gigantesco átrio de 18 andares garante a luminosidade natural ao hotel e aos escritórios. Um moderno sistema de refletores distribui a luz do sol no interior. Nada mal um projeto desta envergadura como cartão de visita do país que cresce a uma velocidade assustadora.

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Montagem de maquete do projeto alemão de casa flutuante


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ARQUITETURA A atmosfera é um outro “corte” da Bienal. A criação de um ambiente com “luz própria”, graças ao menor ou maior grau de trabalhar as condições internas e externas de iluminação representa um dos maiores desafios da Arquitetura. As soluções são tão infinitas quanto as questões colocadas pelo problema. E não somente isso: “As aparências e as funcionalidades de um prédio jogam com a possibilidade de transformar um elemento fixo, o prédio em si, em ‘organismo vivo’”, teoriza Kurt W Forster, diretor da Bienal. Um imóvel com jeito de “queijo suíço” foi projetado por um grupo de estudiosos na Suécia. A idéia original é otimizar uma condição climática interna, já que, do lado de fora, o tempo é inclemente. O prédio tem 16 apartamentos e 4 dúplices, e “faz luz” por todos os Fotos: Divulgação

Maquete das Escadarias da Granja, em Toledo, Espanha

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buracos. Grandes janelas ovais garantem a entrada dos raios solares, muito importante, principalmente, para quem vive praticamente seis meses no escuro, por causa da longa duração do inverno. Todos os apartamentos estão em diferentes alturas do solo. O edifício tem, ainda, a função estética e social de “unir”, de ser um elemento mediador entre um condomínio velho dos anos 70 e um conjunto de casas da alta burguesia. O percurso da Bienal de Arquitetura, em terra firme, se encerra na seção dos Hiper-Projects. A grandiosidade de projetos como o Musée de Confluence, na cidade francesa de Lion, reúne a complexidade numa escala raramente vista. Ele faz parte de uma selecionada “nata” de prédios que se tornaram símbolos de uma própria existência, muito além das funções para as quais foram concebidos e construídos, tal a engenhosidade e a capacidade de tornar concreta uma miragem. A fluidez dos elementos camufla as paredes, esconde as lajes, mimetiza as pilastras. Tudo parece envolvido em uma só membrana. As superfícies curvilíneas reencontram as linhas mestras da natureza e, talvez, o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer seja um dos expoentes desta corrente profetizada pelo austríaco Frederick Kiesler (1890-1965), mestre da Arquitetura surrealista, quando declarou que “as separações entre solo, paredes, pilastras e teto devem ser eliminadas e apenas um fluxo deve uni-las (…) A solução estrutural poderia ser chamada de conversão da compressão em tensão contínua”. Tal predestinação foi feita entre as duas guerras mundiais. (GA) •


ARQUITETURA

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Arquitetura das águas Pavilhão da Cidade d’Água, na Bienal de Arquitetura

Nas grandes áreas ociosas, equipamentos obsoletos deram lugar a projetos recreativos, culturais e eles estão reaproximando os moradores da cidade ao mar

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Bienal foi mais além do seu tradicional território físico. Os organizadores montaram um pavilhão sobre as águas de um dos inúmeros canais que cortam Veneza. A idéia funciona também como uma metáfora à necessidade de uma sociedade que tenta recuperar o espaço perdido junto ao mar. Estão lá alguns projetos urbanos, responsáveis pela devolução de uma faixa costeira preciosa à população, numa tendência iniciada em Barcelona. A cidade espanhola, à margem do Mar Mediterrâneo, fez escola ao derrubar as barreiras portuárias, físicas, não as fiscais, seja bementendido. A obra da Biblioteca causou um grande remodelamento da orla marítima de Alexandria, no Egito. E o que dizer dos quarteirões construídos em ilhas artificiais para os milionários de Dubai, nos Emirados Árabes? Emerge das pranchetas dos arquitetos uma megacidade portuária para 300 mil pessoas, com 65 km2, nas águas de Luchao, a 30 quilômetros de Shangai, na China. Uma ponte, a ser realizada até 2020, pelo grupo alemão Gerkan Marg, vai ligá-la à terra firme. Em Berlim, os moradores da cidade estão avançando sobre os rios Havel e Sprea, que cortam a cidade. As modernas palafitas alemães são confortáveis casas com até 210m2 de área construída sobre decks flutuantes. Nos locais residenciais mais interessantes, o desenvolvimento urbano continua a criar novas formas de estruturas arquitetônicas aquáticas. E sobre a península de Strau, desde 1997, estão em curso os trabalhos para a construção da “Wasserstadt”, com término previsto para 2015: 5.900 habitações, 425m2 de escritórios, lojas, escolas e centros sociais vão ocupar um espaço que antes pertencia somente aos pescadores de outra época. (GA) • Continente novembro 2004


ARTES

Acima, a Catedral de Brasília. Na página ao lado, Marianne Peretti, em conversa com Salvador Dalí

As cores mágicas da luz Da Catedral de Brasília às esculturas, quadros e luminárias, a artista plástica Marianne Peretti renova a grande tradição medieval dos vitrais Paula Fontenelle

Fotos: Arquivo pessoal de Marianne Peretti

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filósofo inglês John Ruskin (1819-1900) foi o crítico de arte mais importante de sua época. Até hoje, ele é reconhecido pelo trabalho que fez de valorização dos pré-Rafaelitas. O que pouca gente sabe é que Ruskin foi também responsável pelo renascimento dos vitrais, expressão artística que, nos dois séculos anteriores, havia mergulhado na obscuridade. Nos vidros coloridos que compunham os espaços monumentais das igrejas góticas, ele projetou sua visão de religiosidade: “a translucidez do vidro é o melhor caminho para a penetração do Espírito Santo no coração humano”. Foi na França dos séculos 12 ao 15 que a arquitetura gótica alcançou o apogeu, exportando o estilo para outros países da Europa. Ao compor a atmosfera imponente das igrejas, os vitrais assumiram caráter intrinsecamente religioso, vínculo esse que permanece nos dias de hoje. A utilização do vitral como componente estético não é comum na arquitetura moderna, inclusive no Brasil. O arquiteto Oscar Niemeyer é uma das poucas exceções. Numa abordagem inovadora, ele reconstruiu a relação entre o catolicismo e o vitral, encontrando na artista plástica Marianne Peretti a energia e criatividade necessárias para envolver com vitrais toda a circunferência da Catedral de Brasília, um espaço de 2.240m2. O projeto desafiou todos os seus limites. O vitral incorporou-se à vida de Marianne de forma natural. Nascida em Paris, de mãe francesa e pai pernambucano, ela acostumou-se a ver inúmeros vitrais nas igrejas góticas da França. A mais famosa de todas: a Notre Dame, em Paris. Estudou desenho e pintura na École des Arts Décoratifs e na Academie de La Grande Chaumière. No início dos anos 70, visitou as obras da Editora Mondadori, projetada por Niemeyer, em Milão. Foi naquele momento que decidiu trabalhar com o arquiteto. Ao vir para o Brasil, pôs alguns desenhos debaixo do braço e levou ao escritório de Niemeyer, no Rio de Janeiro. Começava a longa parceria. Quando Niemeyer a convidou para projetar os vitrais da catedral – desejo antigo do arquiteto – , ela assustou-se com o desafio. E estava certa. Desde o início, o projeto foi sofrido. Sem contar com os recursos de softwares atuais, Marianne tinha que fazer os desenhos, em tamanho natural, com canetas Pilot. Foi quando se deparou com a primeira dificuldade: onde encontrar um espaço vazio com as dimensões necessárias? Cada desenho tinha 30m de comprimento por 10m de largura. Depois de várias tentativas, instalou-se Continente novembro 2004


ARTES Fotos: Flávio Lamenha

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no Ginásio Nilson Nelson, o maior de Brasília. O diretor do ginásio não queria ceder o espaço, mas a vitralista contava com o apoio do então governador José Aparecido. Por ser o primeiro governador da capital após o regime militar, José Aparecido queria promover melhorias estéticas à capital. Após um telefonema seu, o ginásio foi liberado. Para visualizar a composição da obra, a vitralista subia na arquibancada e, com o uso de binóculos, avaliava o desenho. Ela recorda que, em alguns momentos, havia 800m2 de papel espalhados pelo chão. Após terminar parte do desenho, era preciso ver se ele tinha continuidade e como o design se encaixaria na estrutura da catedral. Só o Corpo de Bombeiros teria equipamentos para elevar o papel até o topo da edificação. Ao telefone, Marianne ouviu que o trabalho não poderia ser feito, a não ser que a catedral estivesse em chamas. “Pois então, imaginem que a catedral está em chamas!”, disse aborrecida. Diante de um pedido tão incisivo, os bombeiros acataram a solicitação. Terminado o desenho, era preciso fabricar o vidro. Como o orçamento do projeto não permitia que o material fosse importado, Marianne tinha que encontrar um fornecedor no Brasil e ela não conhecia ninguém que fabricasse vidros naquelas dimensões. A solução foi dada pelo bispo da igreja que conhecia “alguém no Rio Grande do Sul”, com prática na reprodução de vitrais seculares. Chegando lá, a artista viu que os tais vitrais eram muito pequenos, mas, por falta de opção, passou os detalhes técnicos ao vidraceiro. Meses mais tarde, doente e tendo gasto uma fortuna na construção de fornos que comportassem as placas de vidro, o profissional conseguiu fabricar um semi-cristal de grande transparência. “A essa altura, eu estava com úlcera”, lembra Marianne. Em 1990, a catedral foi reinaugurada. Além dos vitrais, a igreja teve sua cor modificada, a pedido de Marianne, para o branco. Nos vidros, prevalecem as cores azul, verde e painéis de vidro branco jateado ou transparente, vidros fumê e espelhos, num traçado que simboliza a busca do homem pelo equilíbrio espiritual. Acima do altar, um ovo de 20m2 representa o início da vida. A vitralista queria que o centro do ovo fosse na cor rosa, mas não foi possível chegar à tonalidade desejada. “O rosa é à base de ouro, tem uma química um pouco complicada. Acabei optando pelo vermelho”, explica. Concluiu o trabalho exausta e com a coluna afetada. Quando fala daqueles dois anos, prefere não se esforçar nas lembranças: “Foi irracional. Não Continente novembro 2004

calculava o tempo. Era como se estivesse no mar e precisasse chegar do outro lado”. O projeto da catedral foi o mais importante da vida de Marianne, mas a artista plástica tem inúmeras obras espalhadas pelo Brasil e Europa. Na própria capital federal, são dela também os vitrais do Palácio Jaburu, do Memorial Juscelino Kubitschek, do Superior Tribunal de Justiça e da Capela da Câmara dos Deputados. Durante a carreira, trabalhou em vários projetos do arquiteto Oscar Niemeyer, junto com Alfredo Ceschiatti e Athos Bulcão. As obras podem ser vistas em cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Pará; no exterior, suas obras estão em Torino, na Itália, e em Le Hâvre, na França. A visão crítica da artista está presente em sua obra. No vitral do Supremo Tribunal de Justiça, em Brasília, uma mão em relevo tem nuvem entre os dedos e, no


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Marianne explora a transparência e a luminosidade, tanto nos vitrais (acima) quanto nas peças escultóricas (abaixo)

centro, um olho em destaque. “Ele simboliza a Justiça, que dizem ser cega, mas acho que não é tão cega assim”, opina. No início de sua carreira, Marianne dedicou-se à litografia, à pintura e ao desenho. Em 1959, participou da 5ª Bienal do Livro de São Paulo, recebendo o prêmio de melhor capa – As Palavras, de Sartre. Fez exposições em Paris durante as décadas de 50 e 60, passando também por Brasília, Campinas e São Paulo. Foi no final da década de 60 que a artista deu início ao trabalho com vitrais, sempre em parceria com arquitetos. Além de Niemeyer, integrou as equipes de Janete Costa, Raphael Peres, Marcantonio Borsoi, Carlos Fernando Pontual, André Remondet, entre outros. Apesar do vidro ser a sua marca, Marianne Peretti é uma artista inquieta e inovadora tanto no design quanto na escolha da matéria-prima. Ao criar seus primeiros projetos em vidro, procurou distanciar-se dos vitrais europeus. “Queria fazer algo de novo, nunca repito o que já foi feito”. Seu estilo? “Diferente”, responde com ênfase. A artista plástica está sempre experimentando novos materiais em suas esculturas. No Teatro Nacional de Brasília, construiu uma peça de 1,80m de altura, em bronze dourado polido; no Sambódromo do Rio, ergueu um mural em concreto de 100m2 no Museu do Samba. Para o Espaço Cultural do Hâvre, próximo a Paris, projetou dois grandes pássaros brancos de fibra de vidro. A integração com obras de outros artistas também faz parte de sua trajetória. No Panteão da Pátria Tancredo Neves, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, seu vitral se incorpora ao painel de João Câmara e ao mural de Athos Bulcão. Pelas suas mãos passaram o bronze, granito, mármore, ferro, concreto e cerâmica. Marianne Peretti cria suas peças num antigo casarão reformado de Olinda, Pernambuco, local que escolheu para sua residência. O espaço é amplo o bastante para permitir a montagem de obras de grandes dimensões. Até hoje, a artista não utiliza computador e, em sua casa-ateliê há desenhos e obras espalhadas por todas as partes. Entre suas mais recentes realizações, um vitral para a Fundação Oscar Niemeyer, em Niterói, e dois painéis de ferro laqueado e vidro para o Tribunal de Justiça de Pernambuco. Em processo de finalização, vitrais para uma capela antiga em Villa do Conde, Portugal e a fachada do auditório da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. • Continente novembro 2004

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Uma história peculiar Heinrich Moser, Aurora Lima e Betânia Uchoa traçaram o percurso do vitral produzido em terras pernambucanas

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história do vitral em Pernambuco é peculiar, tendo como destaque o pintor alemão Heinrich Moser, pioneiro na difusão dessa expressão artística no Estado. Em 1930, ele concluiu o primeiro vitral feito no Recife. A obra foi produzida para o Palácio da Justiça, no centro da capital pernambucana. Como tema, a instalação, em 1640, por Maurício de Nassau, da primeira Assembléia Continente novembro 2004


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Flávio Lamenha

Arquivo pessoal de Betânia Uchoa

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Detalhe de vitral de Betânia Uchoa. Na página anterior, trabalho de Heinrich Moser

Legislativa em terras americanas. Dois anos mais tarde, Moser fundou, junto a Murillo La Greca, Balthazar da Câmara, Goerges Munier e outros artistas, a Escola de Belas-Artes. Foi lá que ele montou o primeiro ateliê de vitral do Estado. O artista assinou também a pintura e os vitrais da Igreja Madre de Deus, Palácio do Governo, Igreja das Graças e da Basílica do Carmo. Foi Aurora Lima, aluna de Moser, quem deu continuidade aos trabalhos do artista, assumindo a condução do ateliê. Durante as décadas de 60 e 70, ela repassou seus conhecimentos a alunos de Artes Plásticas e Arquitetura, sempre fiel ao estilo do mestre. É de Aurora o vitral da Biblioteca Central da UFPE. A arquiteta pernambucana Betânia Uchoa acompanhou de perto a trajetória de Aurora e a efervescência do ateliê. Logo que se formou, em 1976, Betânia foi trabalhar com o arquiteto Wandenkolk Tinoco, seu antigo professor. Foi ele quem sugeriu a Betânia experimentar os vitrais. A arquiteta se viu fascinada com a luz e a transparência do

vidro e foi na versatilidade desse material que ela encontrou sua forma de expressão. Betânia não gostava do estilo figurativo dos vitrais da época, optando pela ruptura da representação ilustrativa da realidade. A composição de suas peças – na maioria das vezes, produzidas para residências e edifícios projetados por Wandenkolk – seguia o estilo abstrato. Foi no ateliê de Aurora que Betânia encontrou “Seu Tibúcio”, especialista no corte do vidro e na montagem de vitrais. O chumbo – usado na junção das peças de vidro – ela comprava em ferros-velhos espalhados pelo Recife. Já a principal matéria-prima, o vidro, a arquiteta preferia importar da Bélgica, porque achava que os produzidos no Brasil não eram transparentes o bastante. “A textura era grosseira”, lembra. Betânia Uchoa produziu vitrais para residências, espaços públicos e clínicas de Pernambuco e João Pessoa. Uma de suas obras pode ser vista no portão do anexo da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife. Atualmente, a arquiteta mora na Alemanha. (PF) • Continente novembro 2004


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Dois espaços e três tempos O Salão Pernambucano de Artes vai exibir obras de artistas convidados e de bolsistas premiados na edição anterior Em sua 46ª edição o Salão Pernambucano de Artes será realizado em dois espaços, Museu de Arte Contemporânea (MAC) e Museu do Estado de Pernambuco (MEPE). A mostra será aberta em três etapas. A primeira abrigará os artistas convidados, sob curadoria de Cristiana Tejo: Alexandre Vogler (RJ), Marepe (BA), Chiara Banfi (SP), Carlos Melo (PE), Bruno Vieira (PE), Mário Simões (PB), Lucas Bambozzi (SP), Marcelo Cidade (SP), Paulo Bruscky (PE) e os grupos ReCombo (PE) e Canal Contemporâneo (SP). Eles exibirão suas obras no MAC. A segunda vai expor um primeiro grupo de obras executadas por ganhadores das bol-

sas oferecidas na 45a edição do Salão. Será no MEPE, com os artistas Oriana Duarte, Renata Pinheiro, Lourival Batista, Juliana Notari, Rodrigo Braga e a dupla Rosinha e Eulália. O segundo grupamento terá obras de Augusto Japiá, Renato Valle, Eudes Mota e grupo Corgo. O Salão contará ainda com palestras e workshops práticos e teóricos. Entre novembro e janeiro estarão abertas as inscrições para os projetos que concorrerão a 10 bolsas na categoria arte, quatro na categoria foto, dois na de ensaio crítico e mais duas para vídeo e site na Internet.

46o Salão Pernambucano de Arte. MAC (Rua 13 de Maio, Cidade Alta, Olinda. Fone: 3424.2587) e MEPE (Av. Rui Barbosa, 660, Graças, Recife. Fone: 3427.9322), de 18/11 a 31/03/2005.

Imagens: Divulgação

AGENDA

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Jardim Interno, de Chiara Banfi

Olinda de todas as artes

Design pernambucano

O tesouro sagrado

O Sítio Histórico de Olinda recebe a 4ª edição do projeto Olinda Arte em Toda Parte, evento que reúne artistas plásticos que vivem no município ou que de alguma maneira expressam a cidade em suas obras. Durante os finais de semana de novembro e dezembro, vários artistas estarão com as portas de suas casas e ateliês abertos, à espera do público e de suas indagações sobre as obras. Restaurantes, bares, casario, pousadas e mercados públicos espalhados pela cidade também aderem à idéia, expondo produtos diversos.

A busca da excelência motiva a realização do Pernambuco Design 2004, evento promovido pela Associação Profissional dos Designers de Pernambuco, em parceria com o Governo do Estado, o Sebrae e a Prefeitura do Recife. Na programação, o resgate histórico da profissão, mostras 2º Salão PE Design, Acadêmica, Imagens da Música, Gráfico Amador, Capas de Discos no Brasil, Letras Latinas e Imaginário Pernambucano, além de desfiles, concursos, seminário e palestras.

As obras de arte e objetos de uso litúrgico que integram o cotidiano dos monges beneditinos do Mosteiro de São Bento de Olinda (PE) e que, por isso mesmo, não são encarados por eles como acervo de museu e, sim, como parte da devoção a que se dedicam, está, pela primeira vez, exposta ao público, no Instituto Cultural Bandepe. A mostra, que conta com 150 peças que sempre viveram na clausura, inclui prataria, paramentos, jóias eclesiásticas, imagens, quadros e objetos de arte.

Olinda Arte em Toda a Parte – 4ª edição. Sítio Histórico, de 25/11 a 05/12. Informações: Ladeira da Misericórdia, nº 86, Carmo, Olinda. Fone: (081)3429-1750 ou www.arte.olinda.info

Pernambuco Design 2004. Evento em vários pontos do Bairro do Recife (Teatro Apolo, Terminal Marítimo, Torre Malakoff etc.), de 05 a 21/11. Informações: (081)3221.9548.

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O Tesouro dos Abades. Instituto Cultural Bandepe (Av. Rio Branco, 23, Bairro do Recife, Tel. 81.32241110). Visitação de terça à quinta, das 14h às 20h, e de sexta a domingo, das 14 às 22h. Até 25 de novembro. Informações: www.culturalbandepe.com.br



Fรกbio Seixo/O Globo

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Elogio da sofisticação Edu Lobo revisita as influências pernambucanas em sua obra, que se distingue como das mais elaboradas do movimento Bossa-Nova Paulo Polzonoff Jr.

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gosto. O compositor Edu Lobo é internado às pressas para uma cirurgia, que duraria cinco horas. O diagnóstico alardeado por todos os jornais: aneurisma. A cirurgia não deixou seqüela alguma. Mas em virtude deste incidente, ele cancelou todos os shows marcados para setembro e início de outubro. O que não o impedirá de estar no Recife no dia 4 de novembro para receber o título de Cidadão Honorário de Pernambuco. A iniciativa do deputado Bruno Araújo se respalda na influência pernambucana na vida e obra de Edu Lobo. É a primeira homenagem deste gênero que ele recebe no Brasil. No dia seguinte, apresenta o show Edu Lobo – Cidadão de Pernambuco, no Teatro Santa Isabel, ao lado de Nelson Ayres no piano, Bororó no baixo e Jurim Moreira na bateria. Edu Lobo nasceu no Rio de Janeiro, em 1943. Cursou Direito até o terceiro ano, mas desistiu por causa da música. Em 1961, conheceu Vinicius de Moraes, que fez a letra para a música “Só me Fez Bem”, a primeira parceria entre os dois e o passaporte para o jovem compositor entrar no seleto time da BossaNova. Aos poucos, porém, sua música foi recebendo influência da cultura popular. Canções representativas desta fase são “Canção da Terra”, “Reza” e “Aleluia”, todas em parceria com Ruy Guerra. Durante toda a década de 60, Edu Lobo esteve envolvido com o teatro. A música que o projetou internacionalmente foi “Arrastão”, uma parceria com Vinicius de Moraes cantada por Elis Regina. O compositor escreveu para cinema e TV e participou de muitos festivais durante aquele tempo fervilhante. Impossível falar de Edu Lobo sem se lembrar de “Ponteio” e “No Cordão da Saideira”. Mais impossível ainda é não ligar Edu Lobo a Chico Buarque por espetáculos como Calabar e O Grande Circo Místico. Os mais recentes trabalhos de Edu Lobo são Cambaio, espetáculo dirigido por João Falcão, com direção musical de Lenine, e a orquestração do filme O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria. Edu Lobo e o Recife têm uma história em comum. Apesar de ter nascido e crescido no Rio de Janeiro, o compositor passava férias em Pernambuco todos os anos, até os 18 anos. “Eu me lembro que estudava muito no colégio para não ficar para segunda época e para não perder as férias no Recife de jeito nenhum”,

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perfil conta. Da experiência recifense, Edu Lobo herdou duas coisas: a influência inegável da música nordestina em sua obra e uma série de fatos atribulados, atribuídos erroneamente à sua biografia. A relação com o pai, o também compositor Fernando Lobo, é fruto de boa parte destes equívocos. O historiador de música brasileira Zuza Homem de Mello, por exemplo, disse certa vez que o recifense Fernando Lobo merecia até um prêmio por ter incentivado Edu a estudar música. O detalhe é que este convívio nunca existiu, já que Edu Lobo só passou a ter uma relação mais próxima com Fernando depois dos 18 anos. Outro equívoco que associa Edu Lobo ao pai diz respeito ao violão. Diz a lenda que Fernando Lobo teria proibido o filho de tocar violão, porque o instrumento era associado a boêmios e desocupados em geral. “Leio estas coisas e fico achando graça”, desdenha Edu, para em seguida esclarecer que nunca houve tal proibição. O adolescente Edu Lobo era fascinado pela cultura nordestina. “Até os 18 anos eu queria mesmo era morar no Recife”, recorda-se. Por isso, toda a sua música é pontuada por influências pernambucanas. Isto foi algo que o ajudou a se distinguir na Bossa-Nova. “A música de Pernambuco faz parte da minha música”, declara. O tempo não apagou o gosto de Edu Lobo pelas coisas do Recife, que o marcaram tanto, quando menino. Ainda hoje ele escuta músicas regionais. “A escala nordestina é muito interessante e muito importante para mim”, diz.

Edu, Othon Bastos, Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil na passeata dos 100 mil, no Rio, 1968

Do acordeão ao piano – O primeiro instrumento que Edu Lobo tocou foi o acordeão. Ele não gostava muito, mas o estudava mesmo assim. “Era um instrumento pesado, muito complicado”, conta. Tudo mudou quando ele ouviu pela primeira vez o som de um violão. “Fiquei louco. Comecei a aprender os primeiros acordes, mas ninguém deu bola, disseram que eu ia largar logo e voltar para o acordeão”. Mas o que aconteceu foi justamente o contrário. “Certa vez, minha mãe me ouviu tocando e ficou impressionada”, conta. “Dois dias depois ganhei o violão.” França / AJB


Flávio Florido/Folha Imagem

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"A censura era menos censora do que o mercado é hoje. O tipo de música que eu faço não toca em rádio" O acordeão não caiu no ostracismo completo. Ele ainda fascina Edu Lobo (“Gosto do instrumento com alguém tocando, não eu”), mas foi o violão que marcou sua carreira de compositor. Com o passar do tempo, porém, o trabalho exigiu que Edu Lobo aprendesse também piano. Do tempo em que não dominava este instrumento, restaram imagens de um homem que mostrava dons de poeta também. Quando precisava explicar para alguém, que estava ao piano, que som exatamente queria, recorria a metáforas de uma beleza que ele jura ser involuntária. Dizia: “toca mais gordo, faz mais magrinho”. Este tempo, para o perfeccionista Edu Lobo, “era angustiante”. Porque nem sempre as pessoas entendiam suas curiosas figuras musicais. “Depois que eu estudei (piano), tudo melhorou”. Daí a necessidade de estudar. Apesar de ter vivido numa época em que se valorizava muito o artista meramente intuitivo, Edu Lobo procurou no estudo e na prática sistemática da música os alicerces para o seu trabalho. Pergunto a ele se o estudo amenizou o caráter hedonista da música. “Tem umas lendas no Brasil que acredito que sejam erradas. Dizem que se você começa a estudar, você joga fora o que tem de bom, de natural, mas não é verdade.” Sofisticado demais – Edu Lobo pertence a uma geração especial. Era um tempo, já descrito em crônicas deliciosas, marcado por uma visão mais romântica da profissão. Não havia uma pressão tão grande do mostrengo chamado “mercado”. Há quem diga, ainda, que o que uniu toda esta geração e a estimulou foi a ditadura. Involuntariamente, claro. A existência de um “inimigo” comum, a ser vencido, teria estimulado os melhores cérebros daquele tempo. “A censura era menos censora do que o mercado é hoje”, afirma Edu Lobo, sem medo de soar polêmico. Apesar da consagração em vida, ele não esconde certa mágoa, ao constatar que o grande público prefere outro tipo de música. “O tipo de música que eu faço não toca em rádio”, reconhece. Os que comandam o mercado têm uma resposta sempre pronta para músicos de renome, como Edu Lobo, que reclamam da ausência de espaço nas rádios e também nas grandes gravadoras. “É sofisticado demais”, sentenciam, como se isto fosse um defeito. Edu Lobo, constantemente, é vítima deste tipo de retórica torta. E, é claro, fica indignado com isso: “Sou expulso, porque passei do ponto. É como se eu fosse penalizado porque bati um recorde”, diz. A sofisticação é o que Edu Lobo tem de melhor e, no entanto, é o que o exclui de um mercado fonográfico cada vez mais ávido por sucessos efêmeros. O compositor, porém, não cogita a possibilidade de adaptar sua música às exigências do mercado. “Não posso entender o que é sofisticado demais como se fosse um defeito. Eu só sei trabalhar deste jeito, sendo sofisticado. E cada vez mais, porque o tempo vai passando e vou ficando mais exigente, procurando a melhor melodia. Mas é preciso também que se entenda que sofisticado não quer dizer complicado”. • Continente novembro 2004

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perfil Foto: Álbum de família

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O elo da memória

Edu com a prima Teca, na praia de Boa Viagem, 1947

Como as coisas de Pernambuco contribuíram para a construção de um caminho próprio na Bossa-Nova Fábio Araújo

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navio se aproxima lentamente. Aos poucos, o rapaz começa a identificar aquele grupo enorme, de 80 pessoas, que o aguarda no cais do porto. É a família inteira de sua mãe, dona Carminha, fazendo festa para receber o jovem que nascera no Rio de Janeiro, mas passava sempre, no Recife, os três meses das férias. Até hoje, passadas mais de quatro décadas, a lembrança continua fortíssima na memória de Edu Lobo. “Parece um filme do Fellini”, já definiu o compositor. Até a idade de 18 anos, Edu veio ao Recife todos os anos, sem exceção. O contato freqüente com a família e com as raízes pernambucanas foi decisivo para a formação artística daquele jovem carioca fã de Bossa-Nova. Seus pais, Fernando e Carminha, mudaram-se, logo após o casamento, para o Rio, onde nasceu Eduardo de Goes Lobo, em 1943. A união durou pouco e Edu só conheceria o pai no final da adolescência. Morando com dona Carminha, num apartamento de 10º andar na rua Barão de Ipanema, o menino tinha outras duas grandes referências familiares: seus tios Noemi (a “Dinda”) e Waldemar (o “tio Umá”), muito presentes em sua infância, que chegaram a morar com ele nos primeiros anos. Era uma criança reservada, tímida, não demonstrava muita alegria. Mas mudava muito ao chegar ao Recife, nas férias, quando se transformava no centro das atenções de uma grande família, repleta de tios e primos que o recebiam de braços abertos. O advogado Octávio de Oliveira Lobo conhece bem essa história. Primo quase carnal do compositor, embora 10 anos mais velho, era na casa de seu pai que o visitante costumava ficar enquanto

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perfil

Foto: Álbum de família

criança. “Ele se refere muito aos pregões dos vendedores ambulantes da época”, comenta Octávio. Expressões simples, mas cheias de musicalidade, que desde cedo se fixaram no inconsciente do futuro autor de “Arrastão”: “Mel novo....de engenho”, “Chora, menino, para comprar pitomba”. O sentido da música também despertava, quando Edu ouvia o som dos apitos, usados para chamar passarinhos, que imitavam os trinados das aves. Já na adolescência, a base preferida passou a ser a casa de “tio Mano”, o José de Goes, perto de onde, hoje, fica a rua do Futuro. Por volta dos 14 anos, Eduardo passou a freqüentar as festas de carnaval, com sua imensa variedade de ritmos. Maracatu, frevo, caboclinho e baião entraram em sua vida nessa época, imortalizada nos versos de “No Cordão da Saideira”, a mais pernambucana das composições de Edu Lobo: “Tempo do corso na rua da Aurora / É moço no passo / Menino e senhora / Do bonde de Olinda / Pra baixo e pra cima / Do caramanchão esqueço mais não / E frevo ainda / Apesar da quarta-feira / No Cordão da Saideira / Vendo a vida se enfeitar”. A mesa farta e variada da família foi outro elemento que ficou na memória do compositor, até hoje adepto de carne-de-sol, manteiga de garrafa, feijão-verde, lagosta e aratu. Além, claro, dos “agulha frita, munguzá, cravo e canela”, citados em “No Cordão da Saideira”. Aliás, a letra deste clássico é quase um roteiro do que o jovem Edu fazia durante as férias no Recife. São citados a praia de Ponta de Pedra, o bonde de Olinda, o bumba-meu-boi, a caramboleira. “Ele adorava subir nas árvores, para tirar goiabas, mangas e outras frutas. Para um menino que morava em apartamento, no Rio de Janeiro, brincar nos quintais era uma experiência inesquecível. Toda nossa família morava em casas, naquela época”, lembra Ana Maria Lobo Vaz de Oliveira, irmã mais nova de Octávio. Ela destaca como as seguidas férias, no Recife, podem ter influenciado a personalidade de Edu. “Aqui, ele se sentia querido, cercado de tios e primos. Quando chegava, toda a família ia ao cais”. Era o centro das atenções, bem antes de se tornar um compositor famoso. Chegando ao Recife, o menino descobria a liberdade nos quintais cheios de fruteiras, em piqueniques nas então distantes praias de Boa Viagem e Piedade, na folia de Momo. Ana Maria conta que, às vezes, a família alugava um caminhão para os quatro dias do Carnaval, com direito a confete, serpentina e lança-perfume. Em entrevista publicada em seu site oficial, o próprio Edu Lobo descreve os meses felizes que passava em Pernambuco. Revela, por exemplo, que se dedicava aos estudos e tirava boas notas, nem tanto pela vontade de aprender, mas para não perder as férias. Quanto melhor o desempenho escolar, mais dias extras conseguia ficar com os primos. Segundo ele, a musicalidade estava presente no convívio familiar. “Tinha uma varanda na casa da minha tia e as pessoas vinham e cantavam, tocavam violão. Eu tocava acordeão, na época, e todos cantavam”. Edu relembra a força do Carnaval de rua naquela época – não só em Olinda – e o acesso maior do povo às festas populares. Edu conta que, quando começou a realmente trabalhar com música, procurou intuitivamente misturar as informações que tinha da música nordestina com as escalas harmônicas que aprendera com a Bossa-Nova. Era uma forma de criar uma marca pessoal, uma característica própria, sem repetir o que já estava sendo feito. “Tinha muitos craques naquela época. Então, quem tentava entrar no estilo do Tom, ou do Carlos Lyra, ou do Oscar Castro Neves, ou do Baden Powell, ficava um “sub” de qualquer um deles. Eu acho que a saída, o processo, até de defesa, é você tentar seu caminho próprio, de alguma maneira. Eu acho que concorreu, então, essa lembrança toda das músicas, das canções, dos frevos... Eu comecei a fazer frevos e baiões, o que não era comum na época”, explica. Sem as férias no Recife, Edu Lobo não teria encontrado esse diferencial. •

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Edu no Recife com a prima Teca, a tia Noemi (Dinda) e os avós maternos Zé de Goes e Nana, 1947

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Rogério Reis/Tyba

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Renovador da Bossa-Nova

Edu e Chico, no Bar Lagoa, Rio de Janeiro: parceria profícua

Melodista de alto padrão, Edu contribuiu para a renovação do movimento musical Lauro Lisboa Garcia

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armonia, em toda a amplitude do termo, sempre foi e sempre será o atributo primeiro da grande música de Edu Lobo. O perfeccionismo vem na esteira e é a característica que conduz ao primor de acabamento de sua obra. Se tivesse surgido da década de 80 para cá – como tantos outros talentos resistentes à avidez do grande mercado de quinquilharias sonoras –, talvez Edu amargasse o destino dos malditos, dos gênios difíceis à percepção das mídias subservientes ao popularesco. Só que Edu teve a grande hora e lugar ainda no tempo da delicadeza, em que plantou o reconhecimento de sua sofisticação. A jovem televisão ainda era veículo para a arte, no Rádio havia espaço para a canção de boa qualidade, os cantores tornavam-se populares pela capacidade vocal, não pelos dotes físicos. Seleção natural da segunda geração da Bossa-Nova, Edu e sua turma, como ele próprio já afirmou, só queriam fazer música boa, atingir o padrão de Tom Jobim. Ele não apenas se equiparou ao mestre em termos de qualidade – inclusive, aliando-se a parceiros comuns, como Chico Buarque e Vinicius de Moraes –, como

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contribuiu para a renovação do movimento do qual Tom é um dos pilares. No momento de maior repercussão e influência da Bossa-Nova, o jovem Lobo começou a freqüentar shows no famoso Beco das Garrafas. Em 1962, conheceu Vinicius. Na contracapa do primeiro disco do parceiro, naquele mesmo ano, o poeta escreveu: “Edu Lobo está aí para provar que a Bossa-Nova, ao contrário do que muitos dizem, não representa uma quebra de tradição: é, isto sim, uma resultante natural do que há de melhor e mais positivo no cancioneiro popular carioca”. Edu era, na análise de Vinicius, o ponto extremo de uma nobre linhagem de compositores, que vinha de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e Pixinguinha e iria desaguar em Francis Hime, Marcos Valle e nele próprio. Influenciado por Sérgio Ricardo, João do Vale, Carlos Lyra e Ruy Guerra, e valendo-se de toda a sofisticação musical da Bossa-Nova, Edu passaria a incorporar à sua música elementos da cultura popular e letras de conteúdo social. Criou uma espécie de embrião do que viria a ser conhecido como MPB, sigla tão


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Tom Lisboa/www.sintomnizado.com.br

abrangente quanto malveias, em seu peito pulsava interpretada. A música geum coração negro e de sua nial de Edu situa-se, natuvoz vinham tristes cantos ralmente, acima de rótulos brasileiros”. A partir do redutores. Com sua genetrânsito constante entre estes rosa diversidade sonora, ele e outros universos, é que abriu espaço para toda uma Edu adotou ritmos como o geração. Emblema de uma frevo e o baião. Melodista linguagem renovadora da de alto padrão, é autor de música, daquela era dos fessambas, modinhas, baladas tivais – que revelou talentos emocionantes, faz expericomo Elis Regina, Gilberto mentações rebuscadas. A Gil, Caetano Veloso, Mildiversidade de Edu nada ton Nascimento, Paulinho tem que ver com o balaio da Viola e tantos outros –, esquizofrênico dos ecléticos, Edu emplacou grandes suporque tem o denominador cessos populares, como do estilo característico. “Arrastão”, “Memórias de Nada em torno de sua Marta Saré”, “Upa, Nemúsica chega a público sem guinho”, “Ponteio”, ao que esteja lapidado. São mesmo tempo em que se belíssimas melodias, riqueza engajava na crítica social. de acordes, letras deslumO teatro, em especial a brantes, entre outros achaparceria com Gianfrancesdos. A conjunção desses co Guarnieri em Arena elementos, listados dessa Conta Zumbi, de 1965, um maneira, sugerem uma clássico da época, passou a pompa que não combina ter papel importante no seu com o jeito um tanto tímido Grande Circo Místico, de Edu e Chico, pelo Balé Teatro Guaíra processo de compor. Até da pessoa Edu Lobo, com o tornar-se a grande motivação, não apenas dele, mas de criador que se sabe exigente e meticuloso, mas que seu maior parceiro: Chico Buarque. Como Chico – com sempre burila as harmonias, aberto a opiniões alheias. “A quem chegou ao ápice com O Grande Circo Místico, música vive em movimento, não termina nunca. Só não composto para o Balé Guaíra, em 1980 –, Edu teve pode mudar a melodia, mas adoro quando alguém dá outros letristas dignos de suas canções, mas ele próprio um palpite. Tenho um temperamento quase de criança, “é um letrista tão exigente e rigoroso quanto o é com sua de gostar sempre da novidade”, disse. Edu jamais acreditou em inspiração. Ao contrário música”, já frisou Chico. Desse encontro nasceram de ser perseguido por ela, como alguns dizem ser, obras-primas como “Valsa Brasileira”, “Beatriz” e outras maravilhas que se tornaram clássicos da maturidade de sempre teve de ir atrás das coisas. Se a perfeição é uma ambos, ao nível de seriedade e respeito relacionados a meta, no aspecto da qualidade e da sofisticação, o Edu Lobo atual é o mesmo do início. Se a sofisticação foi Tom Jobim. Filho do também compositor Fernando Lobo, o ca- banida do mercado, azar do mercado. Sucesso para rioca Edu começou na música aprendendo a tocar acor- Edu é fazer música com substância. O tempo de sua deão, aos 8 anos de idade e passou a se interessar pelo música é a conquista da eternidade, o lugar de sua violão aos 16. Nas férias, costumava ir à casa dos tios, no música é a imensidão, mas a base palpável e concreta de Recife. Como bem ilustrou outro grande poeta, Paulo lançamento ocupou terrenos propícios de que só inteliCésar Pinheiro, “o sangue nordestino fervia em suas gência e talento inato podiam se valer. • Continente novembro 2004

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Música nos genes Família de músicos promove o Festival Virtuosi, unindo os prazeres do trabalho e do reencontro Daniel Buarque Continente novembro 2004


MÚSICA Hans Manteuffel/Divulgação

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Rafael Garcia, na batuta, e Rafael Altino, na viola: pai e filho afinados

E

nquanto alguns milhares de pessoas lotarem, por cinco noites seguidas, de 14 a 18 de dezembro, o Teatro de Santa Isabel, no Recife, poucos estarão sabendo que, no fundo, participam não apenas do maior Festival de música de câmara (um dos mais importantes eventos de música clássica) do Nordeste, mas também de uma simples reunião de família. Uma família virtuosa que, em vez de churrasco, feijoada, galeto e pagode, no tradicional almoço de domingo, se reúne uma vez por ano, com pompa e platéia, em apresentações de música clássica de alto nível, no Festival Virtuosi. Pai, mãe, filho, irmão, esposa, nora e cunhada... Sete pessoas, de uma mesma família, que organizam, administram, planejam, tocam, regem e solam, produzindo um espetáculo para os recifenses. O Virtuosi é o Festival de música de câmara do Recife e um dos raros eventos de valorização de música clássica no Nordeste. As apresentações de grupos, de até oito músicos,

fazem um espetáculo mais intimista que os das grandes orquestras. Surgido em 1998, ocupando apenas duas noites, o Festival cresceu em público e em apresentações, contando, neste ano, em sua sétima edição, com cinco noites. “Tratase de um Festival com um nível extraordinário de solistas, em apenas uma semana. Teremos três músicos vencedores do prêmio Tchaikovsky (o violoncelista pernambucano Antonio Meneses, o armênio Suren Bagratuni e o pianista americano Stephen Prutsman), o que é difícil até para as maiores cidades do mundo”, explica Rafael Garcia, um dos organizadores. A proposta original era movimentar a cena musical pernambucana, incentivar a formação de um público para a música clássica, oferecer um programa de qualidade para quem se interessasse pelo gênero, mas, acima de tudo, reunir uma família espalhada pelo mundo: os pais moravam no Recife, mas os filhos, também músicos, viviam nos EUA e Continente novembro 2004


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MÚSICA na Europa. O Festival seria uma boa desculpa, para que as “crianças” viajassem ao Recife, a trabalho, e aproveitassem para rever os pais e matar as saudades. “Queríamos fazer alguma coisa nessa cidade que não oferecia nada na área de música clássica, e a gente morria de tédio. E também era uma oportunidade de trazermos os filhos e tocarmos juntos. Cada um ia trazendo seus amigos, os amigos dos amigos, professores, e o Festival foi crescendo”, explica Ana Lúcia Altino Garcia, também organizadora do encontro. O violinista chileno Rafael Garcia – “uma das maiores importações que o Brasil já fez do Chile”, segundo o maestro João Carlos Martins – e a pianista recifense, Ana Lúcia Altino, conheceram-se em 1966, quando ela, recém formada em música pela Universidade Federal de Pernambuco, foi premiada pelo Brasil e ele pelo Chile, com bolsas de estudo de música do governo alemão. Casaram-se na Alemanha, onde nasceram Rafael Altino, seguido pouco depois por Leonardo Altino, e, mais adiante, quatro outros filhos nascidos em outros lugares do mundo. Eles voltaram para o Brasil em 1970, passaram quatro anos em São Paulo e depois foram morar em João Pessoa, onde criaram o departamento de música da Universidade Federal da Paraíba. “Vivemos um momento de sonho, por 10 anos, na Paraíba. Nossa vida era a música – do café-damanhã à meia-noite. Isso influenciou muito tanto a nossa família quanto a própria Paraíba”, conta, empolgado, Rafael Garcia. Em seguida, foram morar nos EUA e, em 1995, voltaram para o Recife, lugar ideal, segundo Rafael, para

juntar a fertilidade com o incentivo. “Um músico precisa de terreno fértil de idéias, para trabalhar, e isso existe no Recife; mas precisa de incentivo financeiro e estrutural, o que existe em São Paulo. Ao menos, durante o Festival, conseguimos o ideal, que é juntar os dois.” Os filhos mais velhos seguiram os passos dos pais e se tornaram músicos renomados internacionalmente: Rafael Altino é violista e vive na Dinamarca, onde toca a viola principal da Orquestra de Odense; Leonardo Altino toca violoncelo, já conquistou o prêmio do concurso internacional Viña del Mar, vive nos EUA e ensina na Universidade de Memphis, no Tennessee. Nos últimos anos, a família de músicos ainda cresceu mais. Rafael casou-se com a violinista dinamarquesa Sara Wallevik, e Leonardo com a violinista sul-coreana So-Hyun Park. As duas também tocam no Virtuosi, e Sara ainda agrega a irmã, a também violinista Lotte Wallevik, reunindo um total de sete “Altinos Garcias” no Recife. Segundo o casal organizador, tudo começou bem antes de 1998, desde o trabalho que desenvolviam na Universidade da Paraíba, passando pelo projeto Camerata Armorial – que trabalhava a música clássica com jovens músicos profissionais e amadores do Recife e que chegou a fazer cerca de 50 concertos em fábricas –, até o surgimento e crescimento do Virtuosi, e projetos mais novos. Como fruto do reconhecimento público, o ano de 2004 trouxe três grandes novidades entre os projetos do grupo. Em primeiro lugar, fizeram um pequeno festival especial de celebração a Maurício de Nassau (o Virtuosi Celebra Nassau, Divulgação

A família Altino Garcia, cujos membros vivem em continentes diversos, reencontra-se no Virtuosi Continente novembro 2004


Fotos: Hans Manteuffel/Divulgação

A pianista Ana Lúcia Altino coordena o Festival

em junho), apresentando músicas holandesas e coloniais brasileiras. Em seguida, levaram a música clássica, pela primeira vez, ao Festival de Inverno de Garanhuns, onde reina a música popular. Foram seis concertos que lotaram a igreja de Santo Antônio, onde cabiam, ao menos, 500 pessoas sentadas, mais várias que ficaram de pé. Por último, Rafael e Ana Lúcia planejaram e conseguiram apoio para o projeto Fábrica de Música que, de 9 a 23 de janeiro do próximo ano, vai reunir estudantes de música de Pernambuco com professores de grande reconhecimento de outros lugares do Brasil e do mundo, com curso intensivo, e finalizando com cinco grandes concertos no Recife e em Olinda. Como não poderia deixar de ser, Ana Lúcia vê nisso mais uma oportunidade de fazer com que os filhos voltem ao Recife. “Mais uma vez estamos tentando contar com a participação deles. Leonardo e a esposa já confirmaram presença, falta Rafael saber se consegue tirar licença no trabalho.” Para Ana Lúcia, além dos carinhos naturais da família, há uma empatia musical muito forte entre eles, quando tocam juntos. “Nós quatro temos características musicais completamente semelhantes. Na semana passada, estive nos EUA e

Leonardo Altino é professor na Universidade de Memphis, Tennessee

toquei dois concertos com Leonardo, na universidade. É tão fácil, para nós, tocarmos juntos. É tão simples. É como se respirássemos a música juntos, entendêssemos juntos. Um professor dele, uma vez, falou: ‘não me venha com essa história que vocês tocam tão bem porque são mãe e filho, vocês devem ensaiar muito’, mas não. A gente entende a música de uma forma muito parecida e é muito fácil estar junto. Não precisa falar, a gente se entende. Cada um tem a sua particularidade, mas a parte interpretativa é muito parecida. Cada um com suas coisas melhores, mas muito bem juntos.” Pelo lado profissional, Ana Lúcia e Rafael sentem, pelo Virtuosi e seus novos trabalhos com música clássica, um orgulho de mãe, semelhante ao que têm pelos filhos músicos. E, como a reunião entre eles acontece em meio ao trabalho, tocar em família torna-se um prazer acima de qualquer outro, juntando a alegria da família com a felicidade do crescimento da música clássica no Recife. “O Virtuosi está aí para mostrar que se tem público. Acho que existe espaço. A música clássica é uma forma de atingir desde o público mais pobre ao mais sofisticado, elitista e rico”, comenta Ana Lúcia. “Não é que o povo não goste de música clássica. É que não tem oportunidade de ouvir”, completa Rafael. • Continente novembro 2004


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Virtuosi 2004, a fusão G

rande homenageado da sétima edição do Virtuosi, o violoncelista pernambucano, radicado na Suíça, Antonio Meneses vai encerrar o Festival deste ano, dia 18, com a apresentação de uma peça escrita especialmente para ele, pelo compositor, também pernambucano, Clóvis Pereira. Os dois se conheceram através de Rafael Garcia, quando ele morava em Campinas, há pouco mais de um ano. “Antonio me pediu para ouvir músicas regionais. Mostrei-lhe alguma coisa de Clóvis Pereira e ele ficou fascinado. Liguei para Clóvis na mesma hora e eles conversaram por um bom tempo, já acertando tudo para o Virtuosi deste ano”, conta Rafael Garcia. Meneses é aclamado, atualmente, como um dos maiores músicos brasileiros vivos. Comparado por Ana Lúcia ao violoncelista chinês Yo-Yo Ma, ele conquistou o prêmio Tchaikovsky, uma das maiores premiações internacionais para músicos, em 82. Para o violoncelista, além da grande honra de ser homenageado, há a alegria de isso acontecer na sua cidade natal. “Fico feliz, principalmenContinente novembro 2004

te, por me oferecer a oportunidade de voltar ao Recife, o que não tenho feito com a regularidade de que gostaria”, diz. Antes da homenagem ao músico pernambucano, no primeiro dia o festival abre espaço para um outro grande nome da música clássica brasileira, João Carlos Martins. Consagrado como um dos maiores pianistas do mundo, e um dos melhores intérpretes da obra de Johann Sebastian Bach que já existiram, Martins sofreu um processo de paralisia nas mãos, que o impediu de continuar a carreira de pianista. A limitação não conseguiu, entretanto, que Martins se separasse da música, e ele passou a estudar para reger orquestras. “É como se todos os músicos juntos formassem um grande piano”, compara. A participação de Martins, no Virtuosi, vai ser a primeira apresentação dele como convidado para reger em um festival. A passagem da execução de um do instrumento à regência, segundo ele, não é necessariamente difícil. “A música está dentro da pessoa, só a parte técnica é que tem que ser aperfeiçoada. Obtenho muitas dicas


Leonardo Aversa/Ag. O Globo

Hans Manteuffel/Divulgação

com outros músicos, e já me peguei prestando atenção até no trabalho de um guarda de trânsito, que parecia reger os carros na rua”, comenta. Uma das noites do festival, a do dia 16, vai ceder ao afã antropofágico dos mangues recifenses e misturar a música clássica com elementos regionais. O percussionista pernambucano, Naná Vasconcelos, apresenta seu Concerto para Berimbau e Orquestra de Cordas, juntamente com o violinista francês Gilles Apap, unindo o popular ao erudito. Apap é conhecido por sua habilidade na imTeatro de Santa Isabel: palco da provisação. “É um músico programação do Virtuosi do século 21, que tem todo o conhecimento acadêmico, mas faz essa fusão”, diz Ana Lúcia. Ele e Naná devem se reunir alguns dias antes do espetáculo e preparar um número inédito a ser executado no dia. O Concerto para Berimbau foi gravado pela Orquestra Sinfônica de Stuttgart e nunca foi apresentado no Recife. Para completar as cinco noites, o já tradicional, no Virtuosi Nobilis Trio: violino, violoncelo e piano, tocam na segunda data; e o Quarteto de Cordas do Teatro Municipal de São Paulo e convidados apresentam músicas de Astor Piazzola para piano cordas e saxofone, regidos por Rafael Garcia, no dia 17. “É uma noite para Rafael e Leonardo receberem os seus amigos”, diz Ana Lúcia, já ansiosa pela chegada dos filhos e pelo encontro de parentes, amigos e convidados, numa celebração da boa música clássica, e deixando o público recifense ansioso pelas cinco noites de música de câmara no Santa Isabel. (DB) •

O violoncelista Antonio Meneses, homenageado na edição deste ano do Virtuosi

Programação Dia 14/12 – Concerto de Abertura – Orquestra Virtuosi, regente João Carlos Martins – Johann Sebastian Bach Dia 15/12 – Nobilis Trio (Ruggero Allifranchini, violino, Suren Bagratuni, violoncelo, Stephen Prutsman, piano) – Sergei Prokofiev, Pyotr Ilich Tchaikovsky, David Popper, Johannes Brahms Dia 16/12 – Gilles Apap & Naná Vasconcelos e Orquestra de Câmara do Festival, regente Rafael Garcia – Claude Debussy, Eugène Ysaye, Saint-Saens, Wolfgang Amadeus Mozart, Naná Vasconcelos Dia 17/12 – Rafael & Leonardo Altino, convidados e Orquestra Virtuosi – Walter Piston, Mozart, Poul Ruders, Felix Mendelssohn, Kamran Ince, Tchaikovsky Dia 18/12 – Orquestra Virtuosi & Antonio Meneses e Orquestra de Câmara do Festival, regente Rafael Garcia – Benjamin Britten, Tchaikovsky, Joaquin Turina, Giovanni. Bottesini, Clóvis Pereira, Joseph Haydn 7º VIRTUOSI – Festival Internacional de Música de Câmara de Pernambuco – De 14 a 18 de dezembro, no Teatro Santa Isabel Ingressos: Frisas e Camarotes A – R$ 20,00 Platéia e Camarote B – R$ 15,00 (Estudantes e maiores de 65 anos pagam meia-entrada) Mais informações: (81) 3363. 0138 / ana_altino@terra.com.br


MÚSICA

“B

loco das flores, Andaluzas, Cartomantes/ Camponeses, Apois Fum e o Bloco Um Dia Só/Os Corações Futuristas, Bobos em Folia/Pirilampos de Tejipió”, estes versos, que já fazem parte do inconsciente coletivo dos foliões de Pernambuco, são de “Valores do Passado”, uma das composições mais conhecidas, e cantadas, do repertório carnavalesco do Estado. Graças à proliferação dos chamados blocos líricos, a partir da década de 80, houve uma revalorização do frevo de bloco, conseqüentemente um maior reconhecimento da obra de Edgard Moraes, o criador de “Valores do Passado”, que há 16 anos dá nome a um coral especializado neste tipo de frevo, não por acaso, formado por suas filhas, netas e noras (com um CD gravado). O centenário de Edgard Ramos de Moraes, que nasceu em 1° de novembro de1904, só não passou completamente em brancas nuvens, porque ele foi, com Capiba (que também completaria um século este ano), um dos homenageados do carnaval do Recife em 2004. O apelidado General Cinco Estrelas da Folia, curiosamente, faleceu no dia 31 de março, em 1974. Na rua Esberard, em Campo Grande, onde morou (e vivem ainda filhas e netos), houve uma exposição com fotos, troféus, discos, e um encontro de blocos (uma homenagem que teria aprovado – grande folião, ele foi fundador de vários dos blocos que cita em sua mais conhecida composição).

Val ore s et ern os Inten s as c amente o cen mposiç executa te õ d orgu nário é es de E as dura d lho c n aos omem gard M te o C o arna herd Jos orae rado é Te e s i , e r o s les cujo val, te m s ês, só r end em

Fotos: Leo Caldas/Titular

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MÚSICA Reprodução/Leo Caldas

Homenagem a Edgard Moraes, na Rádio Jornal, durante concurso de Marchas

Mas foi muito pouco, para quem dedicou meio século de sua vida à música pernambucana, e não apenas aos frevos, conforme ressalta um artigo, não assinado, na extinta revista recifense A Bessa (edição de fevereiro de 1968): “Edgard Moraes, não deixou só músicas carnavalescas. Possui um vastíssimo repertório de centenas de composições de todos os gêneros. Entretanto, por incrível que pareça, só lhe tem sido dada a oportunidade de gravar músicas carnavalescas, o que ele lamenta, pois muito teria que apresentar ao público se lhe fosse dada essa chance”. Aposentado como comerciário (trabalhava em lojas de autopeças), Edgard Moraes teve em vida a chance de ter registrado em disco pouco mais de cinqüenta de suas composições. Curiosamente, até 1973, suas músicas eram mais solicitadas por gravadoras do Rio, graças à amizade que mantinha com o maestro pernambucano, Jonas Cordeiro, que dirigia uma orquestra da Phillips (hoje Universal). Cordeiro lançou, nos primeiros anos da década de 60, vários LPs de frevo ( O Frevo Saúda o Rio Quatrocentão, O Frevo no Rio, O Frevo é Assim, entre outros), e em todos incluía alguma composição de Edgard Moraes, que também era gravado pela Orquestra de Zacarias (contratada da RCA). Isso deixou intrigado José Rozenblit, da Fábrica de Discos Rozenblit. Elizardo de Souza Oliveira, ou Bila, músico, e genro de Edgard Moraes, estava presente quando José Rozenblit, em 1973, veio à loja de autopeças de Renê de Pontes, no centro do Recife, conversar com o compositor: “Ele disse que queria saber que mistério era aquele de Edgard viver mandando música para o Rio e não para a gravadora dele. Edgard não teve dúvidas, respondeu a Rozenblit que perguntasse ao seu diretor musical, Nelson Ferreira”. Diz Bila que o autor de “Evocação” simplesmente engavetava as músicas de Edgard Moraes, ou mexia nas partituras: “Uma coisa que Edgard não aceitava de modo algum”. O certo é que depois dessa conversa foi gravado o álbum Edgard e Raul Moraes Glórias do Carnaval de Pernambuco,

O centenário de Edgard Ramos de Moraes, que nasceu em 1º° de novembro de1904, só não passou completamente em brancas nuvens porque ele foi, com Capiba, um dos homenageados do Carnaval do Recife em 2004

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MÚSICA Parte da quase três centenas de músicas que deixou inéditas vem sendo conhecida graças à perseverança dos parentes. No entanto, Edgard Moraes não compôs apenas frevos. Fez maracatus, choros, sambas, e até cocos

um álbum de tratamento gráfico luxuoso, com textos de Paulo Fernando Craveiro, do próprio Edgard Moraes, com produção de Leonardo Dantas, e orquestra dirigida por Nelson Ferreira. Infelizmente, fora de catálogo há anos, este álbum é hoje um item de colecionador. Parte da quase três centenas de músicas que deixou inéditas (quantidade estimada, o acervo de Edgard Moraes ainda não foi devidamente catalogado) vem sendo conhecida graças à perseverança dos parentes. No entanto, como lembrou o anônimo cronista da citada A Bessa, Edgard Moraes não compôs apenas frevos. Fez maracatus, choros, sambas, e até cocos, um deles, “O galo cantou”, gravado por Jackson do Pandeiro. Uma obra que veio, não apenas do talento e inspiração, mas também de uma promessa feita ao irmão Raul, morto em 1937. Com esse compromisso assumido, Edgard Moraes estudou sozinho arranjo, orquestração, e no ano seguinte participava do concurso da Federação Carnavalesca, com sua primeira marcha de bloco, dedicada a Raul Moraes, “Recordação do Mano”. Obra que, aliás, recebia elogios até mesmo dos adversários. Luís “Boquinha” de França (compositor de “Eu vou pra Lua”, morto este ano), com “Panorama de Folião”, venceu o concurso de músicas carnavalescas de 1962, derrotando “Valores do Passado”. No entanto, logo depois do resultado, Boquinha admitiu ao próprio Edgard Moraes que “Valores do Passado” era a melhor composição do certame. O tempo veio ratificar o elogio. “Valores do Passado”, assim como “A Dor de Uma Saudade”, e outras composições de Edgard Moraes tornaram-se clássicas, são intensamente executadas durante o carnaval. Mas aos herdeiros só rendem orgulho. Iara, uma das filhas, diz que o sonho dela é lançar uma coletânea com as músicas gravadas de Edgard Moraes. Mas cadê dinheiro? A última parcela de direitos autorais que a família recebeu foi menos de duzentos reais. Cento e oitenta e cinco, para ser mais exato. • Reprodução/Leo Caldas

Edgard Moraes (sentado, à direita) com banda, em Campina Grande, 1925


AGENDA

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O sopro da anunciação

Imagens: Divulgação

Leopoldo Nunes/JC Imagem

Encontro em São Paulo reúne músicos de vários timbres de sopros de todo o Brasil Um sopro de música instrumental anuncia bons ventos para os flautistas, saxofonistas, clarinetistas, gaiteiros e todos os naipes de madeiras e metais do Brasil. Durante todos os finais de semana do mês de novembro, 250 músicos de vários timbres de sopro de todo o país estarão dividindo o palco do novo Sesc Pinheiros-SP. Um Sopro de Brasil, evento promovido pelo programa Petrobras Cultural, reunirá músicos como Paulo Moura, Hermeto Paschoal, Altamiro Carrilho, Copinha, Maurício Einhorn, Quinteto Villa-Lobos, Orquestra SpokFrevo, Uakti e Toninho Carrasqueira. Um Sopro de Brasil, que, segundo seus organizadores, significa o espírito do Brasil, foi buscar inspiração nos mestres do sopro. Assim, Pixinguinha, Anacleto de Medeiros, Patápio Silva, Benedito

Lacerda, K-Ximbinho, Abel Ferreira e Copinha, entre outros, serão homenageados. O evento também inclui manifestações tradicionais como Caboclinhos 7 Flechas, do mestre Zé Alfaiate (PE); o carimbó Os Quentes da Madrugada (PA); os pernambucanos João do Pife e mestre Tavares da Gaita, que também será homenageado, além de oficinas com os músicos que se apresentarão.

Choro, por que sambas?

O universo numa viola

Recado ao Brasil

Em recente entrevista à Continente, o clarinetista Paulo Moura (edição nº 45) anunciou que Mário Sève e Daniela Spielman estavam gravando um álbum que iria romper as barreiras entre o samba e o choro, transformando-os num só ritmo; o que certamente geraria muitas controvérsias no meio musical. Polêmicas à parte, Choros, por que sax? apresenta um exuberante encontro entre dois virtuoses do sax, que reabilitam o saxofone como instrumento solista e interpretam sambas, baiões, choros e frevos próprios e de Viriato Figueira (1851-1883), Pixinguinha, Anacleto de Medeiros, Érika Rego, KXimbinho, Paulinho da Viola. O CD contém ainda um play-a-long com as músicas em MP3 e partituras em PDF.

Dando continuidade à série dos Bambas (Violão, Bandolim, Flauta), este 4º álbum da coleção da Kuarup é dedicado ao instrumento-símbolo da música do Sertão, do Brasil de Dentro – a viola. E aqui quem dá os acordes são os violeiros Roberto Corrêa, Renato Andrade, Chico Lobo, Almir Sater, Helena Meirelles, pantaneira de 80 anos, e Heraldo do Monte, bambas que conseguem transportar o ouvinte Brasil adentro, ou mesmo trazer o espírito sereno e quieto do interior, para quem vive nas grandes cidades. São modas, rasqueados, cateretês, guarânias, xotes e desafios. Os Bambas da Viola mostra um pouco do riquíssimo universo sonoro e cultural que cabe numa viola.

Os adolescentes que cantavam e tocavam emboladas em latas de doce na Praça do Diário (PE) cresceram e conquistaram o Brasil. Em Recado a São Paulo, álbum recém-lançado pela Trama, Caju (que não é mais o primeiro Caju, falecido em 2001, e, sim, o sobrinho dele) & Castanha, nossos trovadores, mandam “recados” para todo Brasil: “Salário do deputado e o salário do operário”, “A fome zero zerou”, “Motorista e motoboy” e “Torcida brasileira” são músicas irreverentes, que provocam risos, mas também reflexão. O ouvinte vai se surpreender com as novas misturas musicais da dupla, que incluem rap e batidas eletrônicas.

Choros, por que sax?. Biscoito Fino, preço médio R$ 20,00.

Programação 06 e 07 de novembro Tavares da Gaita, Bandas Mantiqueira e Retreta e Uakti. 13 e 14 de novembro Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, com Pife Muderno, João do Pife, Roberto Sion e Sujeito a Guincho. 20 e 21 de novembro Caboclinhos Sete Flechas (PE), Orquestra SpokFrevo (PE), Sexteto Brassil e Quinteto

Os Bambas da Viola. Kuarup Discos, preço médio R$ 20,00.

Tavares da Gaita

Villa-Lobos. 27 e 28 de novembro Carimbó Os Quentes da Madrugada (PA), Panorama de Solistas do Sopro Brasileiro e Hermeto Paschoal. Sesc Pinheiros (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros – SP. Tel: 0800118220). Ingressos: R$ 15,00, R$ 10,00 (usuário matriculado) e R$ 7,50 (trabalhador no comércio e serviços matriculado e dependentes, aposentados e estudantes com carteirinha).

Recado a São Paulo. Trama, preço médio R$ 10,00. Continente novembro 2004


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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Leo Caldas/Titular

Abacaxi, a mais saborosa fruta do reino "Ao povo fazia dó destruir os sítios, que se criaram pelas margens do vertente. Os pobres viviam deles, das laranjas, dos abacaxis, das bananas, que vendiam na feira." José Lins do Rego (Usina)

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que é, o que é? Tem escamas e não é peixe, tem coroa e não é rei, tem espada e não é soldado, tem olho e não vê, tem pé e não anda? E a meninada então gritava: abacaxiii! A fruta acabou levando injusta fama. “Abacaxi” virou problema complicado. Donde “descascar abacaxi” seria resolver esse problema complicado. A comparação faz sentido. Que descascar abacaxi dá mesmo muito trabalho. Fura dedo. Corta mão. Cansa braço, no manejo da faca. Mas a fruta é gostosa. Vale o sacrifício. Durante muito tempo foi sinal de boas-vindas. Os guaranis penduravam folhas do ananás,

Continente novembro 2004

em forma de coroa, nas portas das ocas – “nasce o ananás com coroa como rei”, observava Frei Antonio do Rosário (Frutas do Brasil, 1702). O fruto era muito apreciado por nossos índios – “colhem-na do chão e com uma faca tiram-lhe a casca e cortam em talhadas e dessa maneira comem”, descreve Pêro de Magalhães Gândavo (Tratado da Terra do Brasil, 1576). Essa casca aproveitavam para fazer bebida de prestígio, o aluá - posta para fermentar em potes de barro, junto com mel de abelha. Dela faziam também remédio, capaz de curar até cálculo renal – “doentes de dor de pedra”, assim se dizia. A prática foi descrita pelo


SABORES PERNAMBUCANOS

Padre Nóbrega em carta (1561) enviada a seus superiores de Lisboa. Nóbrega, vale a lembrança culinária, não se dava com Dom Sardinha – aquele mesmo que foi prato principal no cardápio de um almoço dos Caetés, mas essa é outra história. Ananás, em guarani, significa “fruta saborosa”. Os cronistas da época comprovam isso. “É a melhor fruta, e mais gostosa e apetitosa que se sabe” (Padre Simão Travaços – Declaração do Brasil,1596). “Há uma fruta nesta província do Brasil muito saborosa, que excede no gosto a quantas frutas há nesse reino” (o mesmo Gândavo). Os índios também apreciavam o iuaka’ti (fruta cheirosa) – mais perfumada, mais macia e mais doce que o ananás. O som desse nome acabou convertido, pelos portugueses, no próprio nome da fruta “abacaxi”. Mas abacaxi, bom lembrar, é só variedade desse ananás. “Há três variedades de ananás no Maranhão, chamadas abacaxi...Seu sabor é superior ao das espécies que conhecemos há longo tempo” observou o frade, médico e botânico Manuel de Arruda Câmara (1810). E foi tanto seu prestígio que deu nome a uma tribo – a dos Iuaka’tis; e a um Rio – o Abacaxi, afluente da margem direita do Amazonas, entre o Madeira e o Tapajós. Abacaxi (Ananas sativus) é fruta nativa da América do Sul. Nasceu, provavelmente, na região onde hoje está o Paraguai, daí se espalhando por todo o continente americano. Na segunda de suas quatro viagens à América, Colombo foi recebido em Guadalupe por índios que lhe ofereceram ... abacaxi. Para os nativos, um gesto de hospitalidade. Para Colombo, apenas prenúncio dos tempos ruins que viriam. Brigou com o Rei Fernando e acabou a vida na miséria, abandonado pelos amigos, com fama de doido. Mas essa também é outra história. Certo é que a fruta cruzou os mares a bordo de galeões e caravelas do colonizador. Chegou primeiro à Espanha, onde logo lhe deram o nome de piña, por sua semelhança com o fruto do pinheiro europeu. Ainda conserva esse nome em alguns países de língua espanhola. Embora hoje, na própria Espanha e no restante da Europa (Portugal, França, Itália, Alemanha), seja mesmo conhecida apenas como ananas. Com exceção da Inglaterra (pineapple), claro. Que teima em ser diferente em tudo – a corrente elétrica é de 240 volts (contra os usuais 110 e 220); as distâncias se medem em polegadas (inches), pés (feet) e milhas (miles); o peso se conta em libras (pounds) e pedras (Stones); os líquidos em galões (gallons); carros tem direção no lado direito e andam pelo lado esquerdo da rua. Depois o abacaxi foi bater em terras da África e da Ásia.

No Velho Mundo foi, no início, usado apenas como decoração. Portões e cantoneiras de telhado passaram a receber coroas de pedra que imitavam abacaxis, reproduzindo os hábitos da hospitalidade índia. Depois se converteu em fruta das mais apreciadas. Na Inglaterra era cultivada em estufas, a partir do séc 17. Numa pintura da época se vê John Rose, jardineiro real, entregando a Carlos II o primeiro abacaxi cultivado na Inglaterra. William Speechley até escreveu livro (1779) sobre sua experiência no cultivo de 10 mil pés de abacaxi em ... vasos. E tanto foi o prestígio da fruta que Luís XIV mandou seu jardineiro real, De La Quintinie, aprender a técnica com os ingleses. O abacaxizeiro pode atingir 80 centímetros de altura. O forte da safra se dá entre dezembro e fevereiro, mas produz em todos os outros meses. Prefere solo seco e clima tropical. De preferência pé de serra. Brasil é o maior produtor mundial. São 700 mil toneladas, por ano. Maiores plantações no Nordeste – Paraíba, Bahia, Pernambuco, mais triângulo mineiro e São Paulo. Produzimos basicamente as variedades Pérola (preferida para ser consumida ao natural), Smooth Cayenne ou Havaí (um fruto maior, mais ácido e resistente, destinado à exportação e às industrias de compotas e sucos), Gomo-de-Mel e Ananás Silvestre. O abacaxi, na aparência, é uma única fruta. Mas são em verdade muitas, todas pequenas, aglomeradas em torno de um talo central. Sendo cada “olho” ou “escama” da casca uma fruta que cresceu, a partir de sua flor. Na botânica, como na vida, as aparências enganam. São muitas as maneiras de aproveitar essa fruta. Pode, e mesmo deve, ser consumida ao natural. Sozinha ou misturada a outras frutas, na salada de frutas. Também é especial como suco, sorvete, doce (cristalizado, compota, geléia), chutney, creme, pudim, bolo, torta. Podendo ainda (grelhado ou assado) acompanhar pratos salgados – frutos do mar, presunto, frango, porco, peru. É também ingrediente de bebidas – aluá, abacaxibirra (corruptela de abacaxi beer, cerveja de abacaxi) ou piña colada, coquetel de prestígio em todo o mundo. Sem esquecer que seu caldo é muito usado para amolecer carnes – posto que rico em bromelina, enzima que ajuda na digestão. Também é remédio. Tendo fama, no interior pernambucano, de ser eficiente lambedor no combate à bronquite – devendo ser, no caso, cortado em rodelas e cozido com mel de abelha. Por fim, alguns conselhos úteis. Na hora de comprar, para saber se está maduro, dê um puxão brusco nas folhas da coroa. Se estiverem firmes, é sinal de que está ainda verde. Maduro, e Continente novembro 2004

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SABORES PERNAMBUCANOS Leo Caldas/Titular - Cortesia do Bar e Restaurante Cuba de Capibaribe

RECEITA PIÑA COLADA INGREDIENTES: 3 colheres de sopa de rum branco, ¹/3 de xícara de suco de abacaxi, 2 colheres de sopa de leite de coco, 1 xícara de cubos de gelo, 1 cereja e 1 pedaço de abacaxi para enfeitar. PREPARO: Bata no liquidificador rum, suco de abacaxi e leite de coco. Junte gelo. Bata até obter consistência cremosa. Despeje em taça. Decore com cereja e uma rodela de abacaxi. DOCE DE ABACAXI EM CALDA INGREDIENTES: 1 abacaxi cortado em rodelas, sem o talo 1 kg de açúcar 2 copos de água PREPARO: Leve as rodelas de abacaxi ao fogo brando, com água e açúcar. Deixe cozinhar, com a panela tampada, até que estejam cozidas e a calda fique consistente. Quanto mais tempo ficar no fogo, mais transparente fica o doce. ABACAXI CRISTALIZADO (Receita de Gilberto Freyre, no livro Açúcar)

INGREDIENTES: 1 abacaxi cortado em rodelas, sem o talo 1 kg de açúcar 2 copos de água PREPARO: Faça uma calda rala com água e açúcar, junte o abacaxi, e deixe no fogo até dar o ponto. Retire do fogo, coe e polvilhe as rodelas com açúcar cristal. Deixe no sol, até secar.

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essas folhas largam do talo. O abacaxi maduro tem perfume forte e característico (bem diferente do verde ou inchado), que só conhece quem já provou. Para saber se está doce recomenda-se tirar, com a unha, um pedacinho do talo, por baixo da fruta – quanto mais forte o amarelo, mais puxado a ouro, então mais doce a fruta. Na hora de provar, bom lembrar que ela vai ficando mais doce, à medida que se afasta da coroa. Não cortar, portanto, em rodelas com o talo ao meio. Que alguns, na mesa, provarão só do bom. Enquanto outros ficarão com pedaços menos doces. Melhor será, então, cortar no sentido do comprimento, com o talo acompanhando toda a fatia. Nesse caso, começar a comer da parte mais clara e menos doce. Então é como se o abacaxi reproduzisse a própria vida. Primeiro vem o ruim, depois o melhor. Primeiro a obrigação, depois a devoção. Primeiro “perigo e abismo”, depois o “céu”, palavras de Fernando Pessoa. Faltando só dizer que abacaxis eram também chamados os escravos que, de Pernambuco, iam “furtivamente ao Ceará”, para se alforriar, segundo Cascudo. Um grande “abacaxi” para seus proprietários, é certo. Enquanto para esses escravos, mais que sabor generoso de uma fruta verde e amarela, tinha sobretudo o doce sabor da liberdade. •


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Quem derrotará quem?

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ão, não se trata de falta de calor humano, que aqui em São Paulo me sobra. Tenho em São Paulo alguns dos meus melhores e mais velhos amigos. Mas os amigos de São Paulo são uma coisa – e São Paulo outra. E São Paulo, a cidade grande, não gosta de mim. O quarto dia é o limite fatal, aquele que não devo transpor, pois, se o fizer, como faço agora, fatalmente encontrarei do lado de lá – no território que começa no quinto dia – a já indisfarçável hostilidade que São Paulo, não sei por quê, passa a manifestar por mim, por tudo o

que faço e digo quando não estou na roda dos amigos. Talvez seja culpa minha. Talvez seja eu que não aceitei a cidade como ela é: dura, vertical, esbaforida, poderosamente pulsando dentro de um ritmo que não é o meu – uma cidade onde a modorra é impossível e onde, ao contrário do Rio, tenho de consultar o relógio dez, vinte vezes por dia. É uma luta que já dura anos. Quem derrotará quem? Ou tudo acabará um dia num grande abraço de mil pedidos mútuos de desculpas, como sempre acontece quando se põe fim a um estúpido mal-entendido? •

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FOTOGRAFIA

Amor à Índia O país, apesar das suas heterogeneidades sociais, ostenta o título de “patrimônio espiritual do planeta” Texto e fotos de Marcelo Buainain

Homem sobre muro no distrito de Haridwar, em Uttar Pradesh

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FOTOGRAFIA

Aos oito anos, crianças da casta brâmane recebem o cordão janoi, símbolo do nascimento espiritual

A

Índia tem sido percurso quase obrigatório na carreira de inúmeros fotógrafos humanistas deste século e, também, uma espécie de fonte inesgotável de valores metafísicos para aqueles que buscam o amadurecimento espiritual, o autoconhecimento e a compreensão da verdadeira razão da nossa existência. Em 1997, no aeroporto de Nova Delhi, respirei pela primeira vez o cheiro adocicado que impregnava aquela madrugada do mês de novembro. Regressei à Índia diversas vezes e, durante meses, debrucei-me sobre a alma de um país que, apesar das suas heterogeneidades sociais, ostenta o título de “maior patrimônio espiritual do planeta”. Sirvo-me da câmara fotográfica como um instrumento de documentação e comunicação. Através desta pequena obra, composta de 61 imagens representativas de uma série denominada Índia – Quantos Olhos Tem uma Alma, glorifico Deus mostrando ao Ocidente um pouco de uma cultura milenar, cujos valores estão sedimentados na simplicidade, humildade, desapego, compaixão e amor. • Continente novembro 2004

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FOTOGRAFIA

Mulher no distrito de Deoprayag, em Uttar Pradesh

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Adeptos do Sikhismo fazendo doações de dinheiro e flores. Os braceletes são obrigatórios, para lembrar a importância de servir a Deus


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FOTOGRAFIA

No alto, integrante militar da comunidade sikh À esquerda, criança toma banho purificador na piscina do templo de Nova Delhi Acima, após cremação ritual de um morto, crianças catam restos de madeira


Carlos Gerbase/Divulgação

CINEMA

Cinema às pampas

O

cinema gaúcho vive um momento de êxtase. Mostras, festivais, debates, cursos, revistas, salas alternativas, projetos de iniciativa pública ou privada, dissertações, teses e a produção de diretores autorais oferecem, no início do milênio, um universo complexo do fazer cinematográfico gaudério. Prova dessa vitalidade é a realização, anual, de dois festivais de cinema: Gramado (www.festcinegramado.com.br) e Porto Alegre. O primeiro, conhecido em todo país, acontece em agosto, e distribui Kikitos. O Festival de Cinema de Porto Alegre, também chamado Cine Esquema Novo (www.cineesquemanovo.org), está na segunda edição, ocorre em julho e acolhe centenas de filmes, em 35 ou 16mm, em Super 8 ou vídeo, para uma competição cujo caráter é mais o de reunir cinéfilos do que, propriamente, eleger o melhor deles. Uma das razões dessa vitalidade é um impulso criativo próprio da tradição cultural no Estado, inspirando uma produção que é, muitas vezes, realizada à margem do circuito comercial no eixo Rio-São Paulo. Foi o que motivou a Casa de Cinema de Porto Alegre a produzir vários filmes, rodados a partir da década de 70, principalmente em Super 8. O primeiro longa nessa bitola foi Deu Pra Ti, Anos 70 (1981), de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil. O também gaúcho João Carlos Massarolo, professor de Cinema da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), explora a temática dos curtas de ficção gaúchos em sua dissertação de mestrado, defendida em 1991 na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP): Um Lugar ao Sul. De acordo com ele, o caráter artesanal do Super 8 teria contribuído para “uma linguagem despida de convencionalismos”. Poderíamos ver na opinião de Massarolo uma referência aos traços autorais na produção gaúcha dos anos 70//80. Carlos Gerbase, um dos nomes do cinema de vanguarda gaúcha naquele período, assume a simpatia pelo Cinema de Autor, amadurecido teoricamente nos anos 50 pelos

Camila Pitanga, no novo filme de Carlos Gerbase, Sal de Prata

Depois de Anahy de Las Missiones, o cinema gaúcho vive um período de retomada: são 35 projetos em andamento, envolvendo cerca de dois mil profissionais, que garantem finalizar 10 longas-metragens em até 12 meses Eduardo Portanova

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CINEMA

Cena de Noite de São João, longa em fase de finalização, de Sérgio Silva

franceses da Nouvelle Vague. “Tento preservar a autonomia de modo sutil”, afirma Gerbase. Para ele, dois “cinemas” que substituíram a Nouvelle Vague, no sentido de mostrar novas soluções narrativas ou estéticas, são o Cinema Independente dos Estados Unidos, na lente de Jim Jarmush e Hal Hartley, e o Dogma 95 dinamarquês, que procura fazer do filme um ato de espontaneidade. Natural de Porto Alegre, Gerbase está realizando Sal de Prata (em fase de pré-produção), que chegou a se chamar Roteiros Encontrados Num Computador. O cineasta também colabora, eventualmente, com roteiros e direção em minisséries e especiais para a televisão. É no cinema, porém, que Gerbase faz e acontece, desde os tempos da faculdade, inspirado por um colega, Nelson Nadotti, que tinha uma câmera Super 8. “Eu olhava e dizia: Vem cá, tchê! É tão fácil assim fazer filmes? Vou fazer também”, conta. Diretor de Tolerância (2000), Gerbase vive o dilema de ser um cineasta ao mesmo tempo autoral e comercial. Hoje, porém, as duas opções não se excluem. O trânsito entre a pulsão subjetiva de um artista, seja em que área for, e a coerção objetiva é a angústia pós-moderna. Gerbase sabe disso. “Quase sempre, o filme que realmente funciona, tanto para a crítica quanto para o público, que é o sonho, o nirvana de todo o cineasta – vencer nos dois lados –, é um cinema híbrido. Combina a autoria com preocupações comerciais, sim.” Em uma sala, na Faculdade dos Meios de Comunicação Social da PUC-RS, a Famecos, o professor Gerbase, atento e agitado, lembrando o baterista dos Replicantes (banda punk-rock gaúcha), me disse, em entrevista para a dissertação de mestrado apresentada em abril de 2003, na ECA/USP: “Se tu estás fazendo um longa-metragem (Tolerância), que custa R$ 2,5 milhões, tem o apoio da Columbia e tu sabes que terá um lançamento nacional, é inevitável que existam preocupações comerciais”. Conforme o diretor, se ele estivesse se lixando para o lado comercial de um filme, também estaria assinando o atestado de óbito da Casa de Cinema. “Para sobreviver de cinema, nós temos que fazer filme com alguma chance no mercado.” A questão é: até onde o diretor consegue imprimir sua personalidade no filme? São vários os exemplos de diretores que enfrentavam e ainda enfrentam, afrontavam e ainda afrontam ou admitiam e ainda admitem uma imposição dos produtores para a realização de filmes. A lista seria imensa, de Alfred Hitchcock a Mike Figgis, passando por François Truffaut, Jean-Luc Godard e Glauber Rocha. A autoria cinematográfica é uma preoMauro Goulart/Divulgação


CINEMA

Ana Luz/Divulgação

Carlos Gerbase em estúdio

cupação permanente dos cineastas gaúchos, mesmo os que admitem, como Sérgio Silva, não ser obcecados por essa idéia. Silva dirigiu Anahy de Las Misiones (1997), considerado o primeiro filme gaúcho no período da Retomada. Rótulos à parte, o fato é que ele, com muito esforço e apoio de leis de incentivo, chega ao segundo filme, Noite de São João (inspirado na peça Senhorita Júlia, de August Strindberg), lançado em junho no Rio Grande do Sul, com produção da NGM Produções Artísticas. O diretor acaba de terminar, também, a primeira versão de um roteiro para filme, intitulado Quase um Tango Argentino, de sua própria autoria. Autoria não é um dogma para Sérgio Silva. Ele não procura fazer filmes de arte: “Eu quero ser um diretor de cinema.” Instalado, confortavelmente, em uma sala de um casarão no arejado bairro de Ipanema, na zona sul da capital gaúcha, bairro próximo do estuário do Guaíba, o diretor porto-alegrense revela um cuidado profundo pela produção de seus filmes. Em Anahy, usa grandes planos, filmados em locação. A história se passa durante a Revolução Farroupilha (1835-1945), reconstituindo a indumentária dos revolucionários que queriam fundar a República Piratini e o uso do gauchês arcaico. A estréia como diretor foi em 1969, com o curta

Não Tem Sentido. De lá para cá, quando consegue verba, trabalha em novo filme, enfrentando dificuldades para produzi-lo e lançá-lo. “Não que os produtores sejam burros, mas, às vezes, eles têm uma idéia muito epidérmica do filme. Entre o sim e o não, sugerem o mais fácil”, afirma o cineasta. Uma característica de Silva é aliar conhecimento prático e teórico. Professor de Cinema na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ele admira o cinema italiano, principalmente Luchino Visconti (1906-1976). Também viu muito cinema francês e fez até curso em Paris com Jacques Rivette, nos anos 80, sobre a linguagem cinematográfica. “Essa idéia de autoria vem muito do momento em que se teoriza”, diz Silva. De acordo com ele, a autoria francesa só foi possível porque diretores partiram de uma produção paralela aos grandes estúdios. Truffaut, por exemplo, criou a Films du Carrosse e colaborou com vários amigos, inclusive Godard. Diferentemente dos diretores franceses, Silva afirma não ter necessidade da autoria. Seu estilo, porém, está lá, como que impresso no filme, resultado de seu olhar atento a todos os detalhes. Com Noite de São João não foi diferente. “Disse para Fiapo Barth que eu queria uma cozinha assim, assim, assim... Ele nunca tinha feito filme de época Continente novembro 2004

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CINEMA

AE/Divulgação

(aristocrática), mas nos demos muito bem.” Conforme o diretor, Barth montou a cozinha que ele, Silva, imaginava, apesar de pendurar umas cebolas que não pedira: “Acabei gostando”. Tudo é pensado. Já em Anahy, Silva queria que prevalecessem só duas cores, o verde do campo ou o azul do céu. Em Noite de São João, o diretor não aprovou, de início, o chapéu da personagem interpretada por Fernanda Rodrigues, porque deformaria a figura da atriz. Uma nova geração de diretores gaúchos, além de Silva e Gerbase, tem movimentado o cenário cinematográfico gaúcho. Um deles é Gustavo Spolidoro, diretor multipremiado em Gramado, com diversos curtas, e curador do Festival de Cinema de Porto Alegre, que procura ratificar um espaço de produção alternativa no país. Em 2003, o festival homenageou Rogério Sganzerla. Este ano, o convidado é Ruy Guerra. É assim, criando, que o cinema gaúcho se apresenta ao país. Um curso de Realização Audiovisual, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), localizada no município de São Leopoldo, espera contribuir com novos valores, da técnica à direção. A Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) criou um curso na mesma área, o Curso Tecnoló-

gico em Produção Audiovisual/Cinema e Vídeo. A Universidade Luterana Brasileira no Rio Grande do Sul (Ulbra) também abriu o Curso Superior de Tecnologia em Produção Audiovisual, em funcionamento desde o mês passado, para interessados em cinema. Outras iniciativas buscam ser referências na área de cinema. É o caso da Teorema, uma revista de crítica de cinema, lançada em agosto de 2002, que reúne em Porto Alegre um grupo “inconformado com a falta de espaço adequado à reflexão sobre a sétima arte no Rio Grande do Sul”. Assim diz o editorial do primeiro número. Não é só de teoria, mas também dela, que vive o cinema gaúcho. Mostras são cada vez mais freqüentes em salas alternativas, muitas delas novas, como as do Santander Cultural, ou comerciais, como as do Unibanco Arteplex, inauguradas no final de 2002. Porto Alegre tinha, nessa época, uma sala para cada 23,4 mil habitantes, conforme o jornal Zero Hora (19/11/2002). Segundo pesquisa da Secretaria Municipal de Cultura, cerca de 28% dos porto-alegrenses vão ao cinema com regularidade. Os números não param por aí. De acordo com a Fundação do Cinema RS (Fundacine), criada em 1998, para reunir iniciativas tanto pública quanto AE/Divulgação

Anahy de Las Missiones: marco na retomada do cinema gaúcho

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CINEMA Fernanda Schemale/Divulgação

privada em torno do Pólo de Cinema do Rio Grande do Sul, lançado no ano anterior, no Festival de Gramado, cerca de 35 projetos estão em algum fase de ação no Estado (sendo filmados ou já finalizados). E mais: nos próximos 12 meses, dez filmes de longa- metragem estarão concluídos. O Rio Grande do Sul produz, entre curtas e médias-metragens, sem contar material televisivo, uma média de 30 filmes por ano, envolvendo de 1 500 a 2 mil profissionais. “O momento atual é o melhor de todos os tempos”, opina Paulo Ricardo Zilio, gerente técnico da Fundacine. Nunca, antes, um volume de produção atingiu esse estágio, acrescenta ele. “Neste momento, a produção é consistente e crescente.” Zilio destaca, também, alguns filmes em fase de produção, como Meu Tio Matou um Cara, Caravaggio e, começando, O Cerro do Jarau. Uma das formas de viabilizar o cinema gaúcho é por meio de leis de incentivo e de concursos, como o Prêmio RGE de Cinema, que está na terceira edição, no valor de R$ 4 milhões. Outro projeto em andamento é um convênio com o Ministério da Educação (MEC) para a criação de uma escola técnica e um estúdio público de cinema. Silva e Gerbase também se beneficiam dessas iniciativas. Apesar de maduros, dirigiram poucos longas-metragens. Ambos encarnam estilos de fazer cinema que não se excluem. O que vale é a vontade de expressão. É possível que a autoria esteja voltando à cena, não com a mesma noção dos anos 50, mas em sintonia com o emaranhado complexo de uma sensibilidade pós-moderna, onde exclusivo não significa exclusão. •

Maitê Proença e Roberto Bomtempo em Tolerância

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

As armadilhas do nome Criei-me sem nunca saber ao certo quando nasci, nem que nome carrego

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urante anos carreguei o meu nome como um equívoco. No meio de tantos Geraldo, Antônio, Joaquim, Pedro, Raimundo, Luís e João, da família, acharam para mim um Ronaldo, escolha feita numa lista de dezenas de outros nomes, copiados numa folha de papel almaço, em boa caligrafia, por uma prima concluinte do curso normal. Listas infames como essa corriam as casas nordestinas, onde nasciam crianças, e foram responsáveis por algumas escolhas extravagantes. Houve meninas batizadas até por Alacoque, escuta precipitada de ovo à la coq, no tempo em que o francês dominava o mundo, e emprenhava os ouvidos cearenses. Sem saber o que significava o som mal-ouvido, alguma sabichona igual à minha prima acres-

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centou à lista o galicismo “Alacoque” que, com o sobrenome “da Silva”, batizou uma legião de galinhas poedeiras ou, melhor dizendo, mulheres parideiras. O meu Ronaldo, pescado da lista de onde tiraram todos os nomes começados por “r” dos meus irmãos, e os começados por “o” e por “i” das casas de uns tios, resultando em combinações estranhíssimas, passou igualmente por um equívoco sonoro que me rende prejuízos até os dias de hoje. No meu batizado, o padre alemão que dera com os costados no sertão dos Inhamuns, escapando da guerra e do nazismo, pediu ao meu pai que dissesse o nome do filho. – Runaldo, pronunciou meu pai, bem ao estilo sertanejo de trocar “e” por “i” e “o” por “u”.


ENTREMEZ

– Não batizo, disse o alemão irritado. – Este nome “ser” de pagão. Só batizo nome cristão. Os padrinhos não sabiam como proceder com a criança nos braços, no caso, eu, vestido num timão de cetim, que passava de irmão mais velho para mais novo, tão inocente e já sofrendo a primeira recusa. Negavam-me o óleo da unção, a água e o sal. – Arranjem outro nome! Runwald não batizo, gritou o padre desalmado, sem a menor condolência pelos meus berros de pagão. O impasse se mantinha. Alguns temiam que eu morresse de repente, coisa comum naquele tempo, e fosse condenado ao limbo, um lugar escuro onde ficavam as almas das crianças sem batismo. Nascido com a marca do pecado original, precisava ser batizado para ter direito a um lugarzinho melhor depois de morto. Mesmo que merecesse o céu, antes de subir às esferas celestes, deveria passar pelo purgatório, e vomitar todo o leite que mamara. – Misericórdia! – gemeu minha avó, num quase desmaio. Por sorte, uma tia lembrou que eu nascera laçado, ou seja, com o cordão umbilical amarrando o pescoço, e se não levasse o nome de José, poderia morrer afogado. – José, serve? – perguntou meu pai, temeroso da ira do padre. O ingrato compensava a fome sofrida na sua Alemanha natal, enchendo a barriga de queijo, coalhada e carneiro assado, na nossa fazenda. Talvez a lembrança da boa mesa tenha abrandado o coração do sacerdote. E assim, no livro de registros da paróquia de Saboeiro, no Ceará, foi anotado o batismo de um menino por nome José, nascido no dia primeiro de outubro do ano de 1950. Mas a história não ficou por aí. Meus pais não se conformaram em perder o nome bonito que a nossa prima mandara de tão longe, do Crato, por conta das maluquices de um padre, que mal sabia falar o português. Transcorrido o resguardo de minha mãe, meu pai foi atrás da desforra. Percorreu a cavalo os dezoito quilômetros que separavam a fazenda da cidade, para cuidar do registro civil em cartório, do rebento trapalhão. E lá,

em alto e bom tom, já que estava pagando e não regateava preço, ordenou que me registrassem por Ronaldo. Isto mesmo que você leu: Ronaldo. O escrevente, que apanhava da mulher e só andava bêbado, fez tudo como ele mandou, trocando apenas a ordem do sobrenome materno pelo paterno e a data do meu nascimento: fiquei nascido, naquele importante documento, no dia dois de julho do ano seguinte. Criei-me sem nunca saber ao certo quando nasci, nem que nome carrego. Titubeio, quando me perguntam à queima roupa a data de meu nascimento. Dois de julho ou primeiro de outubro? Sou José ou Ronaldo? Já nem me importo, quando trocam o meu retrato nos jornais. Outro dia, botaram um certo Ronaldo Brito de cabelos lisos, gordinho e simpático no meu lugar. As pessoas estranharam. Um amigo escreveu uma carta comentando o quanto eu mudara. Mandei contar o meu tempo de funcionário público, desejando saber quanto ainda me falta até a aposentadoria. Por conta das bebedeiras do escrivão, me registrando errado, terei anos a mais de trabalho a cumprir. – Existe uma solução – garantiu-me um advogado. – Dê entrada num processo com o seu batistério. O registro de batismo tem valor legal de documento. – Mas como posso provar alguma coisa, se me chamo José e nasci noutra data? – Então, seu caso é perdido. Fiquei à deriva, inclinado a procurar um psicanalista lacaniano. Socorreu-me um amigo afeito a etimologias. Ronaldo, que meu pai balbuciou Runaldo, é Runwald, nome alemão de origem celta. O padre desconfiara em cheio do paganismo em que estavam me enfiando, de velhos sacerdotes druidas que governavam – wald – com as runas – run –, jogando pedrinhas e adivinhando com sabedoria. Runwald é isto: governar com as runas, com sabedoria. E eu que poderia ter seguido a fortuna, tornando-me um catimbozeiro dos bons, ou pelo menos um esotérico como Paulo Coelho. O destino traçou o meu rumo e não fui capaz de perceber. Quem sabe, ainda posso seguir o caminho de Santiago ou chorar à margem de algum rio Piedra? • Continente novembro 2004

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ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Malvada política

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Continuamos a ouvir a mesma ladainha daqueles dogmáticos intérpretes dos sobretudo e até porque

endo uma arte milenar de pregar um fazer tudo e não fazer nada, assim como um costume que se remonta aos primeiros passos do homem sobre a terra, a política é, ao mesmo tempo, um direito natural de qualquer pessoa singrar um mar de malvados espinhos e, no dizer de Eduardo Guimarães, também singrar, voga o navio, um caminho florido/ de rosas e já não o mar. Enquanto nós, pobres mortais, marginalizados ao trabalho duro pela sobrevivência e de todos que arraigamos dependentes, vivemos ao primor de uma insegurança constitucional – que move e remove nossos direitos adquiridos, nossa identidade e cidadania, depressões e anarquias provenientemente consistentes –, muitos daqueles que se alçaram pelo nosso voto democrático a representantes legislativos e executivos tratam de cuidar mais de seus interesses de poder futuro do que da melhoria de condição social de todo um povo. Isso no plano federal, estadual ou municipal. Pouquíssimos artesãos políticos se empenham em projetos de leis dedicados à comunidade – uma sociedade subdividida em colégios coronelistas – na defesa de um futuro melhor para os seus respectivos Estados ou para o nosso País. Com as últimas eleições, passamos, por maioria esmagadora da vontade popular, a trilhar um caminho que ousávamos ser revolucionário em medidas desaceleradoras do mesmismo ortodoxo dos vários dirigentes que passaram. Até agora, não vimos isso. Amanhã, quem sabe! Por enquanto, continuamos a ouvir a mesma ladainha daqueles dogmáticos intérpretes dos sobretudo e até porque. Por exemplo, ainda estamos à espera da abertura da caixa-preta do Poder Judiciário, denunciada pelo presidente Lula. Desejamos saber dos milhares de de-

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vedores da Previdência pública e privada – dos caixas 2 das empresas (inclusive as multinacionais) e das polpudas contas pessoais escondidas nos paraísos fiscais – tanto quanto dos ladrões do INSS (não foi só a Georgina, que já, já, terá um salvo-conduto qualquer), passivos e ativos. Aí poderíamos nos convencer dessa avalanche de reformas da Previdência pregadas e convenientemente aprovadas, que só atingem, ferinas, os esfomeados trabalhadores e principalmente os barnabés do serviço público (ativos e inativos). A espada de Dâmocles só cairá sobre os pescoços dos pequenos? E a desalmada elite brasileira, responsável por todo esse desando em séculos, que sonega o Imposto de Renda em nome de suas empresas e que pouco se importa se o Brasil vai economizar x ou y de reais para seus cofres? Anda no mesmo trinque dos seus status, sem ser incomodada em nenhuma de suas transações sujas ou limpas, não ajudando ninguém carente. E olhem que o nosso maior dignitário, Lula lá, veio de baixo, prometendo equiparar os direitos dos ricos com o dos pobres, sem fome, sem inflação, sem politicagem. Que delícia de política!... Malvada política, podre política. Essas queixas começaram desde a última fase do Segundo Império. São de ontem, contudo, hoje, apenas estilizadas. Ah, políticos! O poder, a fortuna os expande, e eles absorvem ou repelem quantos se lhes aproximam. Assim, José de Alencar, mais generoso do que nunca, profetizou que o revés, a desgraça os concentra e então eles acham dentro de si mesmos o mundo onde se isolam. Esses homens de conversa mole, pobres homens, cujo destino os deixa fadados para a dominação da sociedade, que me faz lembrar Capistrano de Abreu, quando dizia ser avesso a qualquer sociedade, por já achar demais a humana. Malvada, muito malvada, malvadíssima política. •




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