Continente #054 - Sartre

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Arquivo/AE

EDITORIAL

Sartre, 100 anos

Jean-Paul Sartre, na década de 60

A

Revista Continente tem primado pela pluralidade. Os grandes temas abordados recebem interpretações diferentes, de autores diferentes. Independentemente de critérios ideológicos, geográficos ou subjetivos. Cremos que desta maneira cumprimos o papel de enriquecer o debate cultural, trazendo-lhe as luzes das opiniões diversificadas, em contraposição ao empobrecimento do pensamento único. Nunca é demais alinhar a advertência do grande dramaturgo pernambucano Nelson Rodrigues, para quem “toda unanimidade é burra”. Essa diretriz repete-se na matéria de capa desta edição, que assinala, como todos os meios de comunicação cultural certamente o farão, o centenário do filósofo, romancista, teatrólogo, contista e intelectual engajado francês Jean-Paul Sartre. Ninguém em sã consciência poderá analisar o século 20 omitindo-lhe a presença. Pois Sartre encarnou, como ninguém, o papel do intelectual engajé, do filósofo que procurou, como seu ilustre e igualmente polêmico antecessor, Karl Marx, transformar as idéias em práxis política. Polêmico, contraditório, intenso, antenado com o que considerava as grandes causas do seu tempo, o autor de O Ser e o Nada foi, como assinala o professor Lourival Holanda, um dos grandes testemunhos do século 20, ao lado de sua companheira Simone de Beauvoir, de tão importante participação nas lutas femininas do mesmo período. Identificado como defensor da liberdade por seus seguidores e acusado de alinhar-se justamente a regimes totalitários por seus opositores, Sartre foi um filósofo de tanta visibilidade que seu Existencialismo, derivado da filosofia fenomenológica de Husserl, virou moda, inspirando o comportamento de legiões de jovens de todo mundo – incluindo mesmo quem não chegou a lê-lo. Hoje, quase eclipsado, sua importância permanece reconhecida. É esse Sartre, que vivo faria 100 anos neste mês de junho, que trazemos aos nossos leitores, sob óticas distintas, dentro daquela pluralidade significadora do respeito à sua (dos leitores) inteligência. • Continente junho 2005

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CONTEÚDO

Reprodução

Divulgação

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A estranha arte de Farnese

Sartre, presença marcante no século 20

09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53

CAPA

08 Sartre e a liberdade engajada

LITERATURA

24 O novo livro de Ronaldo Correia de Brito 26 O escritor paulista José Agrippino é relançado 28 Uma tradução luminosa 31 A poesia de Almir Castro Barros 32 Aventura de Darwin em Atacama 34 Agenda livros

CONVERSA

36 Hildeberto Barbosa fala da política literária

ARTES 42 46 48 52

A poesia do pintor Vicente do Rego Monteiro A arte perturbadora de Farnese Tiago Amorim expõe cerâmicas Agenda artes

Continente junho 2005

SOCIOLOGIA 53 Obra sobre Vale do São Francisco lançada na Argentina

ESPECIAL 62 As relações entre o saber e o poder

CINEMA 74 Fernando Spencer é tema de documentário 79 Filmes de arte ganham distribuidora pernambucana

MÚSICA 82 A perfeição da Sonata Op. 110, de Beethoven 85 O declínio do forró tradicional 90 Agenda música

TRADIÇÕES 92 Ciranda: do engenho ao litoral


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Fred Jordão/Imago

Ilustração: Walter Vasconcelos/Detalhe

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Forró: tradição e transformação

O saber usado pelo poder

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Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Globalização marcou a anulação do contrato social

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 22 Escrava Isaura, livro magro, virou novela gorda

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 40 Cenário atual das artes plásticas está ficando inaceitável

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 58 Chocolate: em pó, barra, lasca, gota, granulado, pasta

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 61 O repórter e um frágil artista da argila

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 80 O preconceito está se tornando uma epidemia nos estádios

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Há quem se mate como bombas humanas por amor aos deuses Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente junho 2005


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CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert

Diretor Industrial Samuel Mudo

Continente

Junho | 2005 Ano 05 Capa: ilustração Leo Martins

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Karolina Melo Renata Melo Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Octacílio de Oliveira Penteado Filho Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente junho 2005

Colaboradores desta edição: ALEXANDRE FIGUEIRÔA é jornalista, crítico de cinema, mestre em cinema pela ECA-USP e doutor em Estudos Cinematográficos pela Universidade de Paris 3. ASTIER BASÍLIO é jornalista e cantador de viola. DANIEL PIZA é editor-executivo, colunista de O Estado de S. Paulo e autor de Perfis & Entrevistas, entre outros. EDUARDO CESAR MAIA é jornalista. FRANCISCO JOSÉ CHAGUACEDA, formado em filosofia pela Universidade de Salamanca – Espanha, é bolsista Erasmus na Universidade de Siena, Itália. GIANNI MASTROIANNI é médico e cronista. IVO BARROSO é poeta. Traduziu a poesia e a prosa completas de Rimbaud. JOSÉ TELES é jornalista, escritor, crítico de música e autor do livro Do Frevo ao Manguebeat, Editora 34. JULIO MOURA é jornalista e compositor. LOURIVAL HOLANDA fez Filosofia, é professor na Pós-Graduação de Letras e de História da UFPE. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Poemas e Vigílias. MARCELLA MACÊDO SAMPAIO

DE

SOUZA é jornalista e professora universitária.

MAURÍCIO VELOSO é pianista, doutor em Música (Indiana University, EUA) e professor adjunto da Escola de Música da UFMG. RENATO JANINE RIBEIRO é professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo e diretor de Avaliação da Capes – Ministério da Educação. RICARDO OITICICA é doutor em Literatura de Língua Portuguesa e professor na UniverCidade do Rio de Janeiro. RODRIGO DOURADO é jornalista e diretor teatral. WALTEIR SILVA é prof. dr. do Depto. de Filosofia de UFPE e coordenador do NEBA (Núcleo de Estudos Brasil/ África). WEYDSON BARROS LEAL é poeta, crítico de arte e autor, entre outros, de O Aedo.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial. de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder e Saudades de 60. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens.


CARTAS

Continente

Como assinante desta extraordinária Revista, desejo parabenizá-los mais uma vez pelo valioso trabalho apresentado mensalmente. A Revista Continente é, junto a tantos, mais um orgulho de todos os pernambucanos, principalmente dos que como eu, saudosos, vivem longe da terra amada. Como curiosidade, estou enviando xerox da capa e contracapa de uma antiga revista que possuo – 1959 – também chamada “Continente” que não sei por que tinha representação em Fortaleza e não tinha no Recife. Espero que apreciem.

Pena Wisdormann, Rio de Janeiro – RJ

O poder da burocracia Senhor diretor, quero parabenizá-lo pelo excelente modo de escrever, sou completamente maravilhada pela maneira poética em que transforma notícias importantes, e até mesmo simples, em discursos grandiloqüentes capazes de criar ecos para a eternidade (poético, não?), pelo menos para a minha, pois o descobri em 2003, quando fazia um curso de Português, e lá sempre ficavam as revistas que minha professora trazia; foi quando descobri também o delicioso hábito de escrever, eu dizia: “Como Carlos Alberto Fernandes escreve bem! Queria escrever igual a ele!” E foi através dessa leitura viajante que me senti estimulada a escrever, começando com as minhas redações para o vestibular. Hoje faço biomedicina na UFPE e continuo a ler os artigos. Liliane Melo, Recife – PE

Semelhanças Escrevo para contar a semelhança do descrito no quadro Enterro da Sardinha, de Goya, com a manifestação cultural que acontece no período da Semana Santa no interior do Ceará, em Sucatinga. A cidade está cansada de ver seus meninos bricarem pelas ruas da cidade e arredores usando máscaras horrendas e roupas velhas, além de chicotes que são estalados contra o chão. Falam com todo mundo, bebem e brincam. São os papangus. No sábado de Aleluia, saem às ruas com um Judas de pano, desfilando e judiando do boneco. Não me lembro de ter visto nada semelhante até ler a descrição do quadro. Sabemos que o Nordeste foi colonizado por portugueses, especialmente os vindos da Galícia. Algumas comunidades do interior do Ceará preservam fonemas de palavras semelhantes às utilizadas na Galícia, como “bassoura”, e/ou “barrer”. O interessante é que essa herança cultural pode ter vindo de lá e teve que se adaptar aos moldes da igreja. Talvez para amenizar o paganismo, substituíram a figura da Sardinha pela figura do Judas. Obrigada por essa oportunidade de conhecer a possível origem de uma brincadeira a que assisto desde pequena. Cristiane Torres, Fortaleza – CE

Cristo nasceu em Macujê Dr. Ronaldo, que bom que você tentou explicar o significado da palavra “arrogância”! Você não consegue imaginar como estou me sentindo feliz ao ler sua coluna (“Entremez” - nº52, Abril de 2005). Eu também adoraria que aquele caminho ao qual você se referiu anteriormente, com tanto desprezo, fosse entre flores e águas límpidas, mas infelizmente não é. Compreendo que sua intenção ao escrever a matéria de dezembro era a de alertar “alguns” a respeito da cruel realidade em que vivem aquelas pessoas, mas talvez suas palavras tenham sido duras demais, eu diria até irônicas. Acredito que aquele povo carente não nega suas dificuldades. Porém, acredito que apesar de analfabetos em sua maioria, não fiquem satisfeitos em serem tratados por “amontoados”. Soa um tanto pejorativamente, não concorda? Os universitários que lá se encontram, mesmo sem compreender suas palavras bem escritas, manifestaram-se, demonstrando que sabem decodificar letras. Não sou um daqueles universitários, bem como não manifestei minha opinião na matéria de dezembro. Li ambas, e o texto é belíssimo, não fosse a forma desprezível com que você se referiu àquele lugar e àquela pobre gente. Sou professora da Rede Oficial de Ensino, tenho nível superior. “Nasci e me criei em Macujê”, lá cursei todo o ensino fundamental I, foi naquela igreja que tive minhas lições de catecismo e fiz minha 1ª Comunhão. Hoje não moro mais lá, mas tenho um grande carinho por aquela gente simples e de coração bondoso, principalmente porque meus pais e irmãos continuam morando em Macujê e de onde eu nunca me afastarei. Joana D’Arc, Recife-PE Einstein Primeiramente, parabenizo-os pela revista, leio sempre. Depois, parabenizo-os pela matéria “100 anos de Relatividade” (Nº52- Abril de 2005). Recentemente, apresentei um seminário sobre Einstein, e fiquei maravilhada com a contribuição dele para nossa atualidade. Adalva Mendonça, Recife-PE

Kitsch Não concordo com os que consideram kitsch o Castelo de São João da Várzea. Se bem o interpreto, o Castelo foi a solução ideal para abrigar uma coleção de armas brancas e de armaduras, que surgiram no mundo antes das armas de fogo. Quanto às peças criticadas por se acharem “fora do contexto”, a crítica atinge os maiores museus do mundo, pois todos exibem objetos retirados de seus espaços originais. Basta lembrar as coleções egípcias levadas para o Louvre e o Museu Britânico; ou os claustros espanhóis reconstituídos no Museu The Cloisters de Nova York. Edson Nery da Fonseca, Olinda – PE Zôo Imaginário Obrigado pela forma como vocês destacaram meu livro, Zôo Imaginário. Parabéns a quem redigiu o texto, todo ele vazado de uma maneira concisa e esclarecedora a propósito da poesia que me foi possível realizar até a presente data. Sérgio de Castro Pinto, Cabedelo – PB Escritores artistas “Poucas pessoas no Brasil conhecem o Joaquim Cardozo desenhista de bico de pena , gravurista e crítico de arte”. Certamente é assim que poderia ter sido aberta a série de artigos do nº 53 desta Revista, sobre a associação entre escrita e imagem. Em vez de Günter Grass, Joaquim Cardozo. E, entre os nossos, também Joaquim Cardozo, que começou sua vida profissional, ainda adolescente, como chargista do Diario e, durante toda a vida, foi exímio e brilhante desenhista. Entre nós, foi ele, sem dúvida, o de maior talento. Além disso, seu conhecimento de causa sobre as técnicas da pintura, do desenho, da gravura, da escultura, levaramno a escrever matérias antológicas, como o ensaio sobre Telles Junior e um dos mais belos artigos sobre Rembrandt. Escritor de elevada erudição (sua poesia causou admiração a poetas como João Cabral e Carlos Drummond), calculista de gênio, músico, mas, sobretudo, um homem simples do seu povo, sempre distante das glórias deste mundo. Lamentamos que tenha sido mais uma vez esquecido. Aguardamos que a Revista Continente brevemente dedique a Joaquim Cardozo um número especial. Everardo Norões, Recife – PE De vivos e de mortos O articulista não se define: o livro “O Último Dia do Corpo (Revista nº52- Abril de 2005) agrada ou não agrada ao leitor? Então, respondo eu: não agrada. Não agrada porque o escritor Craveiro entra naquilo que está tão em voga, hoje: escrever para ninguém entender. É o caso. Somente Craveiro entende o que ele narra. Literatura deste jeito não acrescenta, não vale a pena. Everaldo Moreira Véras, Recife – PE

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

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CONTRAPONTO Carlos Alberto Fernandes

A teia de impossibilidades A responsabilidade fiscal, no curto prazo, restringe as ações sociais prometidas pelos governantes nos discursos de campanha oi-se o tempo em que se criavam projetos para abrir e fechar buracos, somente para dar empregos às pessoas. Nos longos períodos de estiagens no Nordeste, a ação social dos governos criava as chamadas frentes de emergência também para esse fim. Distorcidas ou não, essas ações de reconstrução física e social eram inspiradas nas idéias de Keynes. O modelo keynesiano se sustentava no poder estabilizador do Estado e era baseado num contrato social mais humano entre o capital e o trabalho. Desde o pósguerra até a sua exaustão nos anos 70, foi o principal responsável pela recuperação econômica e pela estabilidade social da maioria dos países capitalistas. Construída a partir do esgotamento daquele modelo, a reestruturação do capitalismo, através do processo de globalização econômica, iniciado nos anos 80, foi marcada pela gradativa anulação do contrato social entre o capital e o trabalho. Incorporou as idéias liberais de Von Mises e Friedrich Hayek relativas à desregulamentação e liberalização dos mercados; e o uso de novas tecnologias de informação e de gestão para melhorar o desempenho e a capacidade de adaptação das empresas. Apelidada de Consenso de Washington e monitorada por instituições financeiras globais, essa ação estratégica reestruturante teve diferentes efeitos nos países em que foi aplicada. Nesse novo capitalismo global, que influenciou escancaradamente a estrutura burocrática e de poder dos Governos, surge a nova economia com a movimentação do capital em tempo real pelas redes financeiras internacionais em busca de lucros maiores. Por outro lado, a sua eficácia social ainda é controversa. Mas o mais representativo desses efeitos foi a imposição de uma disciplina econômica comum que essa reestruturação trouxe aos países emergentes. Trata-se do equilíbrio fiscal – uma alternativa sistêmica modelar, autoritária. Implantado em contextos distintos, com características e peculiaridades próprias, o modelo baseia-se na premissa do único e melhor caminho e incorpora todas as virtudes e os defeitos que uma alternativa clássica dessa natureza possa ter.

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Tem sido sucesso no equilíbrio das contas públicas, através das restrições que impedem de gastar mais do que se arrecada; e, no curto prazo, restringe a realização das ações sociais prometidas pelos governantes nos discursos de campanha. Nesse aspecto, são visíveis as dificuldades dos governos em respeitar os princípios da responsabilidade fiscal e atender, simultaneamente, os compromissos sociais constitucionais. A consecução do primeiro não garante o êxito do segundo. Esta circunstância gera uma gangorra de impossibilidades. Na leitura do atual governo, a incompatibilidade entre meios e fins se agrava: resultados ótimos na área fiscal e críticos na área social. Paradoxalmente, os benefícios embutidos nessa nova estratégia de gestão não são incorporados pela massa. O crescimento não gera os empregos necessários. A concentração de renda aumenta na mesma proporção da pobreza. A inclusão social não acontece. Permanecem apenas as esperanças. A responsabilidade fiscal não pode ser um fim em si mesma. Ao se transformar na única base estratégica de governo, gera um estado de anomia. Em primeiro lugar, porque nos parece que nem a sociedade nem o próprio Governo têm consciência das limitações do modelo de Estado (regulador) adotado no Brasil nos últimos anos; em segundo lugar, porque nem o governo nem a oposição têm interesse em mostrar para a sociedade o real poder do Estado. Um Estado reformado à luz dos preceitos liberais de regulação e não de intervenção como era no passado. Um Estado que se deseja mínimo. A atual situação deixa exposta a vulnerabilidade de modelos considerados como os melhores e únicos caminhos para se alcançar a felicidade pessoal e coletiva. Nas condições atuais, onde não há mais espaços nem para se abrir buracos orçamentários, atender simultaneamente, no curto prazo, às demandas do povo e das instituições financeiras globais nos conduzirá invariavelmente a uma teia de impossibilidades. • Continente junho 2005

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CAPA

Sartre, intelectual O filósofo, cujo centenário de nascimento é comemorado este mês, sofreu, além dos limites de seu horizonte histórico e a contingência de seus humores, a tentação dos extremismos Lourival Holanda

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le foi, sem dúvida, um dos grandes testemunhos do século 20 – que sua sombra cobre quase inteiro. Século turbulento, de mudanças radicais de costumes, de idéias, e da geografia de distribuição dos poderes. E Sartre participou de quase todos os debates de seu tempo. Nele ecoaram todas as opiniões e todas as polêmicas. Tomava a palavra, que escutávamos com uma unção quase oracular, sobre a política das grandes linhas ideológicas, no movimento anticolonialista, em defesa das opções sexuais, no combate à tortura, na luta contra as estreitezas dos tabus; e interveio em muitos momentos, nas políticas das práticas sociais. A formação de quase todos nós sofreu o influxo do pensamento de Sartre. E continuamos impregnados de parte de sua visão de mundo. Agora, tomada alguma distância, pode-se perceber melhor sua silhueta, que se define mais a partir do ângulo quente da rua do que de um gabinete de filosofia. A imagem que fica é do inquieto filósofo de múltiplas faces. Uma espécie de consciência vigilante e apaixonada do seu tempo. Mas, falar em paixão é subentender certa cegueira: Sartre, em muitos momentos, toma posições extremadas – ou as exige dos outros. Daí as cambalhotas, as reviravoltas: na Guerra Fria, ao lado do Partido Comunista; mais tarde, a virada com os maoístas; assumindo o Libération, em 74; tantas dissidências, como com o Marxismo (“horizonte insuperável de nosso tempo – e filosofia concreta da classe operária”), em 68; as tantas rupturas, como com Merleau-Ponty, companheiro de tantos debates; ou a não menos dolorosa, com Camus. Um filósofo sofre, além dos limites de seu horizonte histórico e a contingência de seus humores, a tentação dos extremismos. Sartre (1905 – 1980) foi filho de intelectuais burgueses: daí, desde cedo, seu sentimento de “sobrar”, de ser de trop, naquele meio. O tema voltaria em A Náusea, 1938, quando o en soi, a realidade do mundo se impõe e o homem se sente sobrando. Quando estudante, na École Normale Supérieur, tem como colegas nomes que serão, como o seu, referenciais na cultura francesa contemporânea: Raymond Aron, que vai iniciar Sartre no conhecimento de Husserl e de Heidegger e, o que importa muito, vai dar a Sartre as bases de sua “filosofia concreta”, a que tanto aspirava a geração dos anos 20/30. Sartre sucede Aron, como bolsista no Instituto Francês de Berlim. Dessa época, o contato

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CAPA

do seu

tempo

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Sartre chegava a pedir aos escritores latino-americanos que deixassem de escrever e fossem ser professores, militantes – um modo mais pragmático de ser útil

Sartre, na célebre mesa do Café de Flore – Paris, 1945

com Canguilhem, tão marcante na formação de Michel Foucault. E tanto com Franz Fanon como com Paul Nizan, a quem Sartre vai prefaciar, nos anos 60, assumindo, na luta por uma identidade nacional, a contraviolência necessária, na descolonização. Em termos de descolonização, aqueles eram dias duros. Hoje, um anódino debate entre teóricos; mas ontem foi entre tiros. Também dessa época, Jean Hyppolite, um nome que se impõe na filosofia francesa atual. E Merleau-Ponty, com quem ele e Simone de Beauvoir vão fundar, em 1945, a revista Les Temps Modernes. Em O Ser e o Nada (1943) já estava a liberdade absoluta da consciência aberta e a facticidade bruta que levavam à angústia da escolha – e daí, à responsabilidade conseqüente. Tudo é aqui marcadamente ético e se opõe à tentação da má-fé: ceder à rotina, aos papéis e hierarquias sociais. Os salauds – os inautênticos, os aburguesados. Depois da Segunda Guerra, Sartre se empenha em conjugar Existencialismo e Marxismo com muito enContinente junho 2005

genho e generosidade. Em O Existencialismo É um Humanismo (1946) responde ao negativismo anterior com um projeto ético-político – humanismo aqui é assumir a responsabilidade histórica, na denúncia de toda opressão, de toda alienação (inclusive do idealismo embutido no conceito de “humanismo” da tradição; assim como verá, no marxismo stalinista, uma escolástica da totalidade, que sacrificava o indivíduo e o particular ao Partido). Claro: situá-lo é também perceber seus limites. Na fúria de certos engajamentos sacrificaria o distanciamento crítico, necessário a quem tem por função discernir, tentar ver claro na questão. E Sartre foi, em muitos momentos, corajoso, em seus posicionamentos. A ocasião do centenário de seu nascimento quase naturalmente tende a discursos louvaminheiros e a panegíricos. No entanto, não se pode deixar de ver os limites de sua visão. Sartre chegava a pedir aos escritores latino-americanos que deixassem de escrever e fossem ser professores, militantes – um modo mais pragmático de ser útil. Claro, aprendíamos mais sobre a responsabilidade, a pertinência social do trabalho do escritor. Mas não justifica colocar na mesma conta, por crise de consciência, a obra de um escritor e a miséria do mundo. Se o escritor suspendesse seu trabalho para tão somente alfabetizar – quem esse novo leitor iria ler, já que o escritor local, aquele que está mais próximo dos nossos problemas, aceitaria calar-se? A este leitor restaria Sartre, mas não Borges ou Guimarães Rosa. Perderíamos demais, na troca: teríamos lições ao invés de perplexidades, nas percepções da nossa complexidade cultural.


CAPA

O filósofo é nele mais forte que o crítico literário: ele não entendeu Flaubert, quando o reduziu a um ideólogo. Sartre desmonta Flaubert porque sua pena não estava a serviço dos communards. Flaubert fica espremido entre as teses existencialistas e o Marxismo. Embora reconheça nele um grande escritor que, como Baudelaire, funda a sensibilidade moderna. Mas, tampouco entendeu muito de Baudelaire: Sartre cita seus versos como se fossem conceitos. A urgência daquele momento sacrificava a largueza de vista que pede o texto literário em suas tantas significações. Do ponto de vista literário, Sartre prefere Genet (Saint Genet, Comediante e Mártir, 1952) a Santa Teresa d’Ávila. Espanta que ele o faça em nome de uma certa idéia da realidade social. Aliás, ele se vangloriava de não ter nunca lido textos que, no entanto, fundam o modo de ver latino-americano, textos que estão na formação da sensibilidade de nossa cultura. Era, em Sartre, uma ignorância acrescida de alguma arrogância. Quando do Levante húngaro, Sartre passa ao lado: sua fidelidade à URSS impede-o de tomar o partido da liberdade ali sufocada. Uma posição estúpida como a do grande Neruda: “a URSS é minha mãe; não me meto em questões de família”. Sartre também não crê que Kruschev tivesse razão em difundir os crimes de Stalin: o proletariado não estaria preparado para receber a verdade. Assim, a percepção da verdade dependeria de certo nível de vida... De onde se deduz uma concepção pouco revolucionária de povo, e ao mesmo tempo, uma concepção pouco filosófica da verdade. O pensamento de Sartre sofreu em sua dimensão, com o frenético movimento do mundo moderno. Foi necessário, cumpriu seu tempo. Sartre é ainda um referencial. Mas, de um modo diferente de Nietzsche, de Cervantes ou de Valéry – que foram criadores, tanto

quanto críticos. Em Sartre, a criação está em função de idéias. Não há, nele, aquela confiança na palavra, que faz o poeta, o artista da linguagem. E a filosofia francesa sempre esteve ligada a uma certa qualidade de linguagem. Descartes, Pascal, Michel Serres, escrevem muito bem. Aqui, não é tanto que a linguagem serve às idéias; é mais: as idéias têm lugar na qualidade de linguagem. Bem menos artista que Jorge Luís Borges, Sartre é, no entanto, mais expeditivo, mais peremptório em seus julgamentos. Por isso, boa parte de seu pensamento envelheceu: ele ainda submete tudo à ditadura da razão. E também, porque não soube dialogar com a ciência de seu tempo, apostar nos experimentos. Nem se deteve, atento, às inovações da arte. Daí sua dificuldade em aceitar o Surrealismo – tão importante naquele momento, e hoje tão comum à sensibilidade moderna. Sartre via ali apenas uma barulhenta iconoclastia burguesa. No fim, como o cego Tirésias, Sartre foi perdendo a visão antiga para alargá-la mais: reafirmando a ética da solidariedade e da fraternidade como dimensão essencial do animal humano. (Entrevista no Nouvel Observateur, 1980). O Sartre de Huits Clos (1945), que via coisificação em toda relação, tudo vira en-soi, e daí a fórmula que fez fortuna – “o inferno são os outros” – esse Sartre do final faz pensar em Lévinas, que resolve o essencial da relação, não no conflito, mas no mistério da acolhida. Sartre virou, muito cedo, uma moda. Sua filosofia, em muitos momentos absconsa, difícil, prolixa, não escapa ao didatismo, à certa retórica oracular de maître à penser. Ironia: ele, que sempre instigou o pensamento, a função do imaginário filosófico (O Imaginário, 1940), acaba sendo ritualmente sacrificado por certos seguidores que, ao invés de pensar a partir de Sartre, o repetem. • Continente junho 2005

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CAPA

Sartre com Simone de Beauvoir num café parisiense, 1978

Sartre: liberdade e responsabilidade Gianni Giansanti/Corbis

O pensador francês falava do poder do homem para fundamentar uma ética sem ter que recorrer a nada que esteja mais além dele mesmo Francisco José Chaguaceda

Não é tarefa fácil dizer alguma coisa interessante sobre a noção de liberdade. Ao longo do tempo, alguns conceitos são tão usados (e, muitas vezes, mal usados) que vão se esvaziando de conteúdo, chegando inclusive a se tornar triviais. Palavras perdem o valor devido à facilidade com que todos as pronunciamos – em nossas bocas aparecem já como esgotadas, cansadas de tanto uso. A liberdade, o que esta bela palavra significa, pode ter se perdido pelo caminho; perdido de tal maneira que nunca tenha conseguido chegar até nós. Assim, quando em qualquer lugar lábios a pronunciam, é dificil saber exatamente a que se referem, em que sentido caminha essa maravilhosa palavra. Então, aproximemo-nos a um pensador cuja vida tenha girado ao redor da liberdade. Nesse lugar nos enconContinente junho 2005

traremos com Jean Paul Sartre. Nesse lugar nos encontraremos com, entre outras, duas de suas obras: A Transcendência do Ego e O Existencialismo É um Humanismo. A Transcendência do Ego é a primeira obra filosófica de Sartre: um tratado de fenomenologia muito influenciado pelo contato que o filósofo francês teve com Edmund Husserl. Sem embargo, as últimas palavras deste livro nos introduzem no campo da moral, da filosofia prática. A citação, ainda que sendo um pouco longa, merece ser resgatada: “O mundo não criou o eu – diz Sartre, resumindo o conteúdo exposto no livro –; o eu não criou o mundo. Ambos são objetos para a consciência absoluta, impessoal, e é por ela que se uniram. Esta consciência absoluta, quando se purifica do eu, já não tem nada de sujeito, e não é tampouco uma coleção de representações; é, simplesmente, uma condição primária e fonte absoluta


CAPA A liberdade para Sartre não equivale a livre arbítrio -– realizar o que nos apraz sem preocupação pelas conseqüências. Somos, de fato, responsáveis pelo que fazemos

de existência (...). Não faz falta nada mais – conclui para fundar uma moral e uma política absolutamente positivas”. O pensador francês fala do homem, do poder do homem para fundamentar uma ética sem ter que recorrer a nada que esteja mais além dele mesmo, de nós. A consciência é fonte absoluta de existência. Não há nada antes dela, não há nenhuma essência que preceda a existência humana. Não existe para Sartre nenhum Deus prévio ao ser humano. Tudo isso quer dizer que se nada precede à existência humana, se o homem é autenticamente livre, já que não existe nada que o determine, o homem está obrigado a se dar uma moral e uma ética sem recorrer a essências. A própria liberdade conduz à moral. De que maneira chega Sartre a esta moral positiva? E que papel joga a liberdade nessa concepção? Assim o pensador define sua teoria da consciência humana – e de novo voltamos ao tratado A Transcendência do Ego: “A consciência é uma espontaneidade impessoal. Determina-se à existência a cada instante, sem que caiba conceber nada antes dela. Assim, cada instante de nossa vida nos revela uma criação ex nihilo: não uma nova disposição, uma nova disposição das coisas, mas sim uma existência nova”. Estas são palavras transcendentes, e do conteúdo delas deriva a ética sartriana. Cada instante que vivemos é uma nova existência. Somos, portanto, puramente livres. A consciência aparece como uma criação contínua guiada somente pela liberdade. Nada existe que anule a liberdade, sendo existência um sinônimo de liberdade. Nem sequer a vontade quebra o homem livre, “a vontade – diz Sartre – é um objeto que se constitui para e por esta espontaneidade”. Desta forma a liberdade se converte, graças às características de nossa consciência, no fato constitutivo do ser humano. E a liberdade, uma vez que é sentida dentro de nós, traz consigo duas conseqüências. Em primeiro lugar, a angústia, “a consciência, ao se dar conta da fatalidade de sua espontaneidade, angustia-se repentinamente”, mas, como se definiria esta angústia que nasce da liberdade? A resposta encontramos em O Existencialismo É um Humanismo: “a angústia significa que o homem se compromete e se dá conta de que é não só aquilo que escolhe ser, mas também um legislador, que elege ao mesmo tempo para si mesmo e para a huma-

nidade inteira – e não pode escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade”. Então, a mesma angústia anunciada em A Transcendência do Ego nos leva ao segundo caráter da liberdade e ao núcleo central da ética sartriana: a responsabilidade. A liberdade para Sartre não equivale a livre arbítrio – realizar tudo aquilo que nos apraz sem preocupação pelas conseqüências. A consciência é espontaneidade, é liberdade. Não é livre arbítrio. Somos, de fato, responsáveis por tudo aquilo que fazemos. Ninguém nem nada se impõe às nossas consciências. E, já que somos nossos próprios condutores, somos responsáveis por nossas ações; e, sobretudo, somos responsáveis ante os Outros: a consciência, assim como reconhece sua liberdade, sabe da liberdade das outras consciências. J. P. Sartre nos mostra que estamos abandonados no mundo e, ao mesmo tempo, faz-nos ver, mediante sua análise da liberdade da consciência humana, que este abandono nos eleva como criadores de nossos próprios valores e como responsáveis por nossas ações. É este o ponto inicial da moral sartriana: o fato de nos sabermos responsáveis por nossa liberdade. Responsabilidade que é tão absoluta e esmagadora como é a liberdade. Deste modo, o filósofo francês nos situa numa moral de situação e de atividade: em cada situação há um ato novo. Estamos, assim, exercendo constantemente liberdade e responsabilidade. Haverá ocasiões em que aparecerá irremediavelmente a angústia. Nossa liberdade de eleição nos angustia de tal maneira, pela responsabilidade que traz consigo, que nos tornamos “covardes” e desejamos fugir de tal responsabilidade, mediante o que Sartre chamará a “má fé” , anulando a liberdade. Contudo, é o fato de que a responsabilidade como liberdade se dirige aos Outros o ponto mais instrutivo da moral sartriana. A liberdade do homem formulada por Jean Paul Sartre se apresenta como uma forma de superar o solipsimo. É o reconhecimento das liberdades de todas as consciências individuais. Tudo isso se traduz em um compromisso com os demais homens, “estou obrigado a querer, ao mesmo tempo que a minha liberdade, a liberdade dos outros: não posso tomar minha liberdade como fim se não tomo igualmente assim a dos outros”, dirá Sartre em O Existencialismo É um Humanismo. • Continente junho 2005

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Sartre e o racismo Em seu encontro com a História, o filósofo francês escreveu e foi às ruas pela causa dos negros e judeus Walteir Silva

Diferentemente de alguns filósofos importantes, porém tranqüilos (Espinosa, Kant, Husserl) e contrariando o estereótipo segundo o qual o filósofo vive no mundo das nuvens, distraído, discutindo o sexo dos anjos ou indiferente às pressões e desafios sociais de seu tempo, Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi um pensador-escritor polêmico, briguento, inconformado com as injustiças sociais. Herdeiro de uma certa tradição francesa, que se autopercebe como mensageira das luzes e da ética ocidentais, representada, no passado por, entre outros, Voltaire, Zola e Victor Hugo, Sartre, a seu modo, odiava a burguesia, a direita e a hipocrisia. O capitalismo também, colocandose, portanto, ao lado do bem. Ambíguo, face ao Marxismo, pois ora o atacava, ora o defendia, impossível entender o autor de A Prostituta Respeitosa, da Crítica da Razão Dialética ou ainda Furacão sobre Cuba, sem a influência marxista ou então à margem do século 20. Em 1933, ei-lo em Berlim, desatento à nascente e crescente mobilização nazista, estudando a filosofia fenomenológica de Edmundo Husserl, de quem Heidegger, Max Scheller e Emmanuel Levinas, dentre outros, foram discípulos. É sob a influência do método husserliano que Sartre escreve O Ser e o Nada, mas diverge do essencialismo universalista do mestre, optando, teoricamente, pela existência singular e contingente, abrindo caminhos para seu Existencialismo. Maio de 68, grande anfiteatro da Sorbonne, templo do saber tradicional; as labaredas da revolta estudantil iluminavam as ruas e cafés do Quartier Latin: eis Sartre acolhido pelos estudantes, no tumulto, ao lado de líderes exaltados, tentando ouvir e se fazer ouvir por uma platéia Continente junho 2005

revoltada e ansiosa por um mundo melhor. Para ele foi mais um encontro com a História. Solidário, no início dos anos 70, com um grupo de extrema esquerda que teve seu jornal – A Causa do Povo – apreendido pela polícia, articula-se com os radicais, tornase diretor do tablóide e vai, sob os flashes da mídia internacional, vendê-lo na esquina: é preso. Ei-lo ainda em ação sobre um tonel, microfone em punho, em frente da fábrica Renault (Billancourt), falando aos trabalhadores sobre um processo no qual ele deveria estar depondo naquele exato momento, diante de autoridades judiciais. Aliado do “Terceiro Mundo” e seduzido pelas revoluções, sempre acompanhado por Simone de Beauvoir – companheira de toda vida – discípula, filósofa e escritora, Sartre viaja. É recebido na URSS, visita a China de Mao Tsé Tung e a Cuba de Fidel e Guevara; é acolhido, a convite de Jorge Amado, no Brasil de JK, tendo descido no Recife e visitado Olinda; conhece o Israel dos kibutz e a Iugoslávia de Tito, entre outros países que fizeram parte de sua agenda política. Homenagens, autógrafos, espaços na mídia e jantares lhes são tributados; nada impedindo, porém, que recusasse o prêmio Nobel de literatura. Anti-racista, defendeu negros e judeus. Estes, de várias maneiras, a exemplo do – Reflexões sobre a Questão Judaica –, publicado em 1946. Estimulou as negociações de paz entre árabes e judeus, concretizadas através das reuniões entre Begin e Sadat. Aqueles, através de apresentações e introduções às mais diferentes obras, atitude política do intelectual engajado que apadrinhava autores anônimos ou marginalizados pelo stablishment. Assim foi com Frantz Fanon, autor de Os Malditos da Terra; igualmente Patrice Lumumba é agraciado com uma análise política de sua atuação no Congo-belga: gestos sartrianos, representativos de uma solidariedade cons-


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Com Simone de Beauvoir, interpelado pela Polícia ao distribuir o jornal radical La Cause du Peuple

ciente, política e protetora. De um francês europeu, numa Europa que ainda era, apesar de etnocêntrica, a voz espiritual do Ocidente. Tornou-se célebre, porém, no âmbito intelectual da militância africana, o controvertido Orfeu Negro, introdução à Antologia da Nova Poesia Negra e Malgache de Léopold Senghor, em 1948, cuja postulação de uma negritude caracterizadora do negro, seria alvo de um acirrado debate. Com efeito, construída nos labirintos da Literatura, rejeitada por marxistas e racistas de todas as cores, a negritude teria tido a sua origem nos Estados Unidos, na passagem do século 19 para o 20, com W.E.B. Du Bois e Langston Hughes. Retomada pelos estudantes africanos, antilhanos e malgaches – Senghor, Aimé Cesaire, Léon Damas, entre outros –, na Paris dos anos 30, sob as influências do Existencialismo e do Surrealismo. As divergências eram fortes, pois diante das imprecisões do termo, “negritude” prestava-se a várias interpretações. A dos estudantes africanos, Senghor à frente, foi exposta, através da poesia e a partir de um pressuposto, segundo o qual o negro é emoção e o branco razão. Assim, o poema, segundo Senghor, vale mais por seu calor emocional que pelo tema: o estilo se sobrepõe à forma. Sartre,

apresentando minuciosamente os jovens poetas, envolvese na discussão, todavia, mais uma vez, de modo ambíguo e se preservando contra o patrulhamento dos experimentados críticos literários franceses, além da censura ideológica dos marxistas brancos e negros, sempre atentos. Precauções tomadas, vê os negros em face do proletariado, da história, da natureza e deles mesmos. Reconhece o panteísmo sexual e a luta de classes na poesia de Césaire; a percussão dos tantãs nos ritmos criativos do corpo, da dança e na música, a exemplo do jazz. Neste cenário de símbolos e alusões é quase impossível, em nome de uma objetividade, que Sartre puxa para o debate, deslindar a negritude do seu berço, que é a subjetividade poética. Subjetividade – refúgio, gueto emocional, talvez fuga ou recolhimento para um sofrimento “redentor”, guia de denúncias da opressão branca e ocidental. Alienação pura e simples, segundo os marxistas; fonte de criatividade para os liberais, a negritude dos poetas negros fez seu caminho, chegou aos negros atuais, os quais continuam, como Orfeu, indo aos infernos em busca de sua Eurídice, ou seja, da própria, logo, indispensável identidade. Morreu Sartre. Morreram os intelectuais comprometidos com suas épocas? • Continente junho 2005

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Sartre e Aron se reconciliam sob as bênçãos de André Glucksman, em junho de 1979

Michel Clement/AFP

O ópio ideológico A trajetória de Sartre começa com obras que defendem de forma intransigente a liberdade do homem e termina, paradoxalmente, com a defesa de regimes autoritários Eduardo Cesar Maia

A trajetória intelectual de Sartre e sua biografia são, sem dúvida, uma fonte preciosa para quem tenta compreender os paradoxos e confusões que marcaram o conturbado século 20. Na vida e na obra do pensador francês, teoria e ideologia, tendo saído de uma só cabeça, parecem pertencer a pelo menos dois homens diferentes. Sua trajetória como intelectual público e engajado começa com obras que defendem de forma intransigente a liberdade do homem; e termina, paradoxalmente, com a defesa de regimes autoritários como os de Stalin e Mao

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Tsé Tung. Chegou a afirmar, após uma viagem à URSS stalinista, que naquele País a liberdade de crítica era total; e, na famosa polêmica travada com Albert Camus, justificou os campos de concentração soviéticos em nome de uma sociedade sem classes. Seu maior adversário intelectual, Raymond Aron, nascido no mesmo ano de 1905, pode ser visto como a antítese de quase tudo o que Sartre representou. Ambos se formaram na célebre Escola Normal Superior de Paris durante os anos 20 e foram completar os estudos filosóficos na Alemanha, nos anos 30. Depois, rom-


CAPA si para obrigá-lo a aceitar o meu senhorio sobre a realidade. Mas o outro é também um ser-para-si e se opõe a minha pretensão, criando uma luta que faz com que as relações humanas terminem em fracasso, porque buscam algo impossível”. A crença de que o inferno são os outros e de que a vida social é impraticável pode ter levado Sartre a uma beco sem saída filosófico – do qual só pôde escapar através de uma fé cega em ideologias historicistas que prometiam a salvação e a redenção de todos os homens. E o que é ideologia? “É uma tripla isenção – dirá outro pensador francês, Jean-François Revel –, isenção intelectual, isenção da prática e isenção moral”. Raymond Aron seguiu toda a vida um caminho mais crítico: foi um dos poucos intelectuais do seu tempo que conseguiu enxergar as ideologias e os sistemas filosóficos apenas como elaborações teóricas que só são perfeitas em si mesmas, mas que, em contato com o Real, perdem sua aparente infalibilidade – a realidade parece querer sempre escapar às nossas idéias: “Todo regime conhecido é torpe e culpável se o comparamos com um ideal abstrato de igualdade ou liberdade”. Allan Bloom, pouco tempo após a morte de Aron, escreveu: “Esse foi o homem que vinha tendo razão durante 50 anos. Teve razão nas alternativas políticas que tínhamos à nossa frente; teve razão no que disse sobre Hitler e Stalin; e teve razão quando disse que nossos regimes ocidentais, com todos os seus defeitos, eram a única esperança da humanidade”. Sartre e Aron viveram e pensaram a mesma época e cada um buscou afirmar a própria idéia de um mundo mais justo diante das circunstâncias. A grande diferença entre eles é que Aron manteve sempre a razão alerta e o senso crítico aguçado; Sartre, sempre festejado pelos rebeldes com e sem causa, padeceu de embriaguez ideológica e acabou por submeter a razão a modismos intelectuais e doutrinários. Sua vida, como ele bem o disse, pode não ter passado de uma paixão inútil. •

Arte: Jaíne

peram as relações: não havia outro destino para cabeças tão divergentes. Sartre representava a revolta, a insatisfação e a juventude – causas “poéticas” que o tornaram um ícone dos movimentos contestatórios. Como bem escreveu Roberto Pompeu de Toledo, mesmo quem não lia Sartre estava impregnado por seu pensamento. Aron, por outro lado, sempre foi um reformista e um crítico profundo e embasado de todas as ideologias totalitárias. Sua obra mais conhecida, L’Opium des Intellectuels (O Ópio dos Intelectuais), foi um verdadeiro bombardeio teórico contra os pensadores pró-soviéticos. Aron foi um defensor ferrenho da doutrina liberal, da democracia, da cultura ocidental, da Aliança Atlântica (com os EUA) e do livre-mercado – logicamente, tais posições lhe renderam bem mais detratores do que partidários. Em artigo recente sobre o centenário de Sartre e Aron, publicado no jornal espanhol El País, o escritor peruano Mario Vargas Llosa lançou uma questão intrigante: como alguém que defendeu tantas causas equivocadas e tantas ideologias perversas pode ter sido considerado por tantos a “consciência moral” de toda uma época? E como o outro – Aron –, que defendeu tenaz e coerentemente a causa da liberdade, pode ter sido tão vilipendiado? A imprensa esquerdista da França, sectária como poucas, cunhou uma frase que pode ser a solução do enigma proposto por Llosa: “Mais vale estar equivocado com Sartre do que ter razão com Aron”. Por se colocar ao lado dos argelinos na guerra pela independência, Aron foi hostilizado também pela direita. Para tentar compreender o que transformou um filósofo de profunda inclinação libertária em um pensador doutrinário, podemos analisar um aspecto que perpassa fortemente as suas obras, principalmente as primeiras: um pessimismo com forte teor niilista. Sartre, por exemplo, em um interessante ensaio sobre o tema hegeliano do Senhor e do Escravo, escreve: “Quando vejo o outro, tento submetê-lo, objetivá-lo, convertê-lo em um ser-em-

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O teatro (des) engajado

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Os atores Liliane Rovère, Alain Berge e Marie-Christine Julien, na peça Entre Quatro Paredes, em 1944

Dramaturgia sartriana revela contradição profunda entre a necessidade do engajamento e a premissa da liberdade Rodrigo Dourado

Muitos filósofos dedicaram parte de sua produção intelectual ao Teatro. Para citar alguns nomes, vale lembrar que Aristóteles escreveu aquele que é considerado o primeiro tratado sobre os gêneros literários, a Poética (330 a.C.), cujo foco central é a tragédia; Voltaire e Nietzsche também se interessaram pelo trágico e seus desdobramentos na cena; e, por fim, Diderot, abandonando a tradição segundo a qual o Teatro é um sub-ramo da Literatura, escreveu a primeira reflexão a respeito do ofício do ator, o Paradoxo Sobre o Comediante (1773). Com Jean-Paul Sartre não seria diferente. Intelectual de múltiplos interesses, o escritor produziu 10 textos para teatro. O primeiro deles foi As Moscas (1943), no qual toma de empréstimo à mitologia grega a figura de Orestes, herói trágico cujo destino consiste em vingar a morte do pai, Agamenon, e resgatar o trono de Argos. Mesmo sendo a primeira incursão de Sartre pela dramaturgia, a peça aborda algumas questões fundamentais para o seu teatro. A principal delas é a do engajamento, ou de como o personagem administra as exigências do compromisso histórico diante da premissa da liberdade individual. Será assim em Mortos sem Sepultura (1947), na qual analisa a resistência de jovens revolucionários diante da tortura; em As Mãos Sujas (1948), cujo conflito entre comunistas ortodoxos e moderados durante a Revolução coloca em xeque o uso e a legitimidade da violência contra os pares; e em O Diabo e o Bom Deus (1951), texto que revela a transformação de um indivíduo em busca da salvação pessoal num sujeito da ação em massa, o que refletiria para muitos uma evolução da ética sartriana. Outras peças colocam ainda, de maneira diferenciada, o indivíduo como agente e vítima de seu papel social, Continente junho 2005

preservando assim o tema da liberdade e da relação do sujeito com a História. É o caso, por exemplo, de Kean (1954), adaptação do original de Alexandre Dumas, que mostra a decisão de um ator em abandonar as fantasias e mentiras do palco e tornar-se um ser humano real; e também de Os Seqüestradores de Altona (1960), na qual um ex-militar nazista se refugia na loucura tentando esquecer o engajamento de sua família à causa do Führer. Alegórica ou diretamente, como em A Prostituta Respeitosa (1947), o dramaturgo discute temas de grande relevância para seu tempo, como a guerra, comunismo x capitalismo, as lutas anticolonialistas, as revoluções camponesas, etc. Em A Prostituta..., ele utiliza um episódio histórico ocorrido no Sul dos EUA para analisar as relações sociais daquela região, tentando compreender em que medida a consciência ética e moral se reflete nas ações reais dos indivíduos. A partir de 1952, Sartre filia-se ao Partido Comunista Francês. A filiação simboliza uma ruptura em sua dramaturgia. O Sartre não engajado, cujos personagens reproduzem a contradição íntima do autor, dá lugar ao


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intelectual ativista que escreve, por exemplo, Nekrassov (1956), peça na qual ataca claramente as manipulações anticomunistas da imprensa burguesa (capitalista). Mas esse engajamento seria breve e Sartre retomaria sua orientação anárquica, de ativista distante, cujas armas são as idéias e a liberdade. Em 1966, ele escreve a última peça, As Troianas, adaptação de Eurípides, e revela o pessimismo, a desilusão, a impotência e a frustração diante das causas defendidas ao longo da carreira de dramaturgo e pensador. O texto é um protesto contras as esquer-

das, contra a própria França, e uma constatação de que seu (des) engajamento não havia surtido qualquer efeito. Um olhar superficial pode revelar inúmeros pontos de convergência entre a produção teatral sartriana e a obra de Bertold Brecht. A observação mais aprofundada, entretanto, permitirá enxergar os aspectos que separam a dramaturgia dos dois autores e que garantiram lugar de destaque ao alemão, em oposição ao desconhecimento quase que generalizado do teatro de Sartre. Marxistas, ambos criaram um teatro de contradições, que pretende revelar o indivíduo por trás das engrenagens sociais, econômicas e políticas. Brecht, porém, deu um passo além de Sartre, criando um novo modelo de teatro, o épico, que contempla os novos conteúdos por ele abordados. O filósofo francês, ao contrário, tentou encaixar novos conteúdos a uma forma desgastada, a dramática, e aí reside boa parte de seus fracassos. Para Brecht, o personagem era objeto de circunstâncias externas e, portanto, não tinha poder de escolha. Seu teatro pretende promover na platéia a tomada de consciência diante dessa constatação, instrumentalizando-a para a mudança. Já Sartre cria personagens que são, a um só tempo, sujeitos de sua história (como no modelo dramático-burguês) e objetos dela (como no épico-brechtiano), numa contradição quase sempre insolúvel e cujo resultado não encontra vazão na forma exclusivamente dramática. Na verdade, Brecht estava de fato preocupado em observar a natureza humana dentro da História. Sartre estava empenhado em fazer do Teatro uma outra forma de expressão para suas idéias, suas investigações. Essa diferença aparece claramente na obra de ambos. Brecht, apesar de abandonar o psicologismo, a individualização burguesa, cria um teatro que transborda sentimento. Sartre, por sua vez, constrói personagens abstratos, que servem a uma causa. O dramaturgo francês acaba por desenvolver um teatro de tese, em que a ação central é um problema filosófico e não uma experiência de vida concreta. Seus textos são excessivamente retóricos e muitas vezes substituem a investigação do humano pela defesa de teorias. Os personagens não se conectam como indivíduos, mas como idéias, componentes de um problema. • Continente junho 2005

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Um Genoíno sartriano Crônica da tentativa de cooptar o então existencialista José Genoíno para o trotskismo

Abaixo, o “aparelho” onde Genoíno resistiu à sedução trotskista

Gianni Mastroianni

O ponto de encontro era a pequena república da rua Assunção, esquina com Clarindo de Queiroz, Fortaleza. Sintonizado com o hoje jornalista Homero Fonseca, combinamos o encontro com José Genoíno, compactando um trio latino-americano sem dinheiro no bolso e a mente recheada de idéias. Nosso objetivo era seduzir ao trotskismo Genoíno, então funcionário da IBM, que despontava com forte potencial na liderança estudantil universitária. Eram os idos de 1966. Cuba enviava soldados para África. Che Guevara falava da necessidade de se criar um, dois, três Vietnãs. Um francês, Regis Debray, circulava pela América Latina propondo a tática guerrilheira com metodologia focal. A China pululava com a guarda vermelha de Mao Tsé Tung. A burocracia soviética apodrecia, distante da revolução permanente, bandeira levantada por Trotski para a consolidação do Comunismo globalizado. O PCzão era capitulação e havia espaço para a vitalização da política que denunciava os horrores arbitrados inicialmente pelo stalinismo. A Voz Operária era um jornalecozinho mimeografado que usava álcool como combustível e, na fonação de um operário uruguaio, J. Posadas, clamava pela necessidade da revolução popular se fundamentar em um partido operário baseado em sindicatos. Em Pernambuco um juiz absolveu os trotskistas, presos em 64, acusados de reorganizar o Partido. A absolvição teve seu pilar apenas na semântica, com o juiz argumentando que não podia condenar por reorganização aquilo que nunca foi organizado. Os remanescentes dessa liberação se estimularam em nova tentativa de re ou or, ou mesmo continuar a des – organizar, seja lá o que fosse. Continente junho 2005

Com os trabalhadores castrados, o que sacolejava o ambiente eram os estudantes. E estávamos nós diante do Genoíno, no esforço de engrossar o caldo do Leon, organizador do Exército Vermelho. Falamos da necessidade de desenvolver um trabalho de conscientização das massas. E dele ouvimos dissertar seu desconforto pelo mundo material, inclusive pela consciência de seu próprio corpo e a falta de razão do mundo existir, sendo um absurdo que até ele mesmo existisse, e que, com a gratuidade das coisas atingindo nossa cabeça, tudo flutuava e nos nauseava, além de que a consciência é não-matéria, é nada, e por isso escapa a qualquer determinismo. Sendo nada ela nadifica seus objetivos, se torna negadora das coisas em si mesmas. Ao procurar o absoluto só encontramos o relativo. Por sua consciência o homem está sempre além de si mesmo. Inspiramos fundo e insistimos em favor da luta pela liberdade humana. Fomos brindados ouvindo que em um mundo sem Deus tudo é permitido e que devemos estabelecer, a partir da liberdade, nossos valores particulares. O marxismo se ossificou ao compelir o particular a se enquadrar no universal. O diálogo prosseguiu até entendermos que, para a turma oriunda da Juventude Estudantil Católica, era uma necessidade estagiar no sartrianismo. Mais adiante o PCdoB recrutou o Genoíno. Na reflexão atual, nos indagamos se melhor não teria sido o destino do atual presidente do PT se tivesse nos ouvido ou continuado sartriano. •

Gianni Mastroianni

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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Isaura: do livro magro à gorda novela “... essa mamadeira visual, que é a televisão.” Cassiano Nunes

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om minha desautorizada opinião, menos timorata que atrevida, resolvi botar meu pé na “selva selvática” das relações entre uma obra literária (romance) e sua versão, ou melhor, paráfrase, no medium eletrônico, uma telenovela. O romance é Escrava Isaura, do mineiro Bernardo Guimarães (Joaquim da Silva). O autor nasceu em 1825 e morreu em 1884 e sua obra, nada prima, publicada em 1875, tem temática escravagista, 13 anos antes da Abolição. Daí o seu único mérito: ser corajoso (ma non troppo), porque em estética é uma calamidade. E olhem lá, meus milhões de leitores, quem o considerou uma espécie de romantismo, chegando manco à escola, tornou-se um best-seller em seu tempo, como foram, nas primeiras décadas do século 20, alguns livros de Humberto de Campos e Benjamim Costalat (alguém se lembra deles?). O Romantismo teve o seu kitsch, assim como o Modernismo teve o seu Pé de Laranja-Lima, seu chá de louro, sua papinha das oito. Meu encontro com o tema de hoje foi por caminhos tronchos. Eu assisto ritualmente ao Jornal da Record e, antes dele, passava a telenovela Escrava Isaura. Há uns três meses, vinha assistindo ao final dos capítulos, esperando o Jornal, e terminei assistindo a eles e ao noticiário inteiros. Nos créditos, dizia-se que era uma adaptação livre do romance de igual nome, de Bernardo de Guimarães. Oswald de Andrade tem um livro intitulado A Escrava que não é Isaura, e então me interessei pelo texto e, como trabalho na Biblioteca Estadual (setor de obras raras), pensei em tirá-lo, mas tive que esperar uns 15 dias para ter em mãos um dos dez exemplares do acervo, pois todos tinham sido emprestados a telespectadores ligados ao calvário da inditosa donzela. Quando a televisão resolContinente junho 2005

ve adaptar um livro para os seus folhetins digitais, pode ficar certo de que a editora, que o esquecera no pó do faturamento passado, vai “lavar a burra” como dono de Banco brasileiro. Li o livrinho em duas tardes, entre a recepção de um pesquisador ou outro. É magro e pobre feito top-model sertaneja, desfilando na seca. A trama do “livrorum” (alô, poeta Mário Hélio) é: Uma mocinha branca, filha de negra escrava com feitor português, é cativa de um fazendeiro mau de bofes e bote mau nisso. Numa fuga frustrada, ela encontra um mocinho rico que, mais tarde, a livra do tirano, ao tomar posse de seus bens, pagando todas as suas dívidas. O feroz senhor, falido, entra no quarto e mete uma bala na cabeça. Fim. Essa esquelética história dura na TV algo em torno de 170 capítulos, pouco mais de cinco meses, sob o condão da redundância mais enjoativa do mundo. Os personagens de B.G. são meras silhuetas, sem corpo, sem alma, só sombras platonicamente refletidas no fundo de uma caverna. Ele fala numa beleza de Isaura, que ninguém vê, mas, como diz Alfredo Bosi, “toda a beleza da escrava é posta no seu não parecer negra, mas nívea donzela” (sugerindo um preconceito disfarçado). Mas, para tudo há gosto e Antônio Cândido viu outra coisa na brancura da moça: “mostrando a extrema odiosidade a que podia chegar a escravidão, atingindo pessoas iguais na aparência às do grupo livre”. Bondades de sociólogo, que ele também é. Um dado sem qualquer importância estética, mas interessante para os pernambucanos, é que Isaura e o pai, no livro, fogem para o Recife, onde mora o mocinho louro em sua fazenda, “no bairro de Santo Antonio”. Uma fazenda no centro do Recife, em 1875 (publicação do romance)? Basta dizer que, pela velha estatística que guar-


MARCO ZERO

do nas minhas bruacas, em 1872, o Rio de Janeiro ostentava o 1º lugar em população, no Brasil, com 274.972 habitantes, e o Recife, o 3º, com 116.671. Nessa época, o bairro de Santo Antônio já possuía edifícios (sobrados) de três a quatro andares. Que diabo ia fazer uma fazenda no meio desses prédios e dessa população? A resposta é que, segundo um dos historiadores, Bernardo Guimarães escreveu sobre dois locais a que nunca fora: Campos, no Rio, e Recife, em Pernambuco. Mas isso não diminui nem aumenta o mérito estético do livro, não sou tão aristotélico para dar tanta importância à verossimilhança. Vale só um comentário, à vol de caga-sebito. O vilão do livro, se comparado ao da novela de Tiago Santiago, parece até um mero menino malcriado. A mocinha é típica heroína romântica, mas não do tipo que se rebela, mas daquele que resiste, e que nas mãos de um grande escritor seria uma nova Ana Karenina. Para a maioria dos historiadores da literatura, esse romance destoa de toda a obra de Bernardo Guimarães, de tão ruim que é (eu mesmo só consegui engoli-lo, para escrever as minhas maldesgraçadas linhas). Ele não é simples, é simplório. Eu gosto dos livros simples, como Lua Crescente, do indiano Rabindranat Tagore; Platero e Eu, de Juan Ramón Jeménez, e O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. Ser simples é difícil, ser simplório é fácil.

A transposição de um romance hiperromântico para a telinha, com a trama situada há mais de 100 anos, implica na confecção de um produto a que se chama geralmente “de época”. No caso de A Escrava Isaura, a pobreza absoluta do livro em descrições do meio ambiente e dos costumes, em particular a moda, implica em pesquisa histórico-geográfica por parte dos teledramaturgos. Substituíram o Recife por um lugar chamado de Águas Lindas, em São Paulo. Campos, no Rio, foi mantida como a toca do lobo mau. Isso não só reduziu os custos, mas resolveu também a incoerência histórica. Os telenovelistas tiveram de encontrar um ambiente natural, e reconstituir figurinos, falas (estratificadas entre aristocratas, escravos e homens livres). Em tudo isso saíram-se, no meu curtíssimo ponto de vista, bem. Quanto aos personagens, a falta de paisagens interiores, que repete o vazio exterior, no livro, os técnicos da novela precisaram criar ânima, vida, caráter, em suma, criar o que não existe no romance. Também nisso saíram-se bem, apoiados num elenco admirável, com Bianca Rinaldi (Isaura), Leopoldo Pacheco (Leôncio, a fera), Mayara Magri (Tomásia), Patrícia França (Rosa); e aquele que roubou todas as cenas em que apareceu, Ewerton de Castro (Belquior, o corcunda). Eu assisti ao filme O Corcunda de Notre Dame (1956), com Antony Quinn fazendo o papel-título, e meu pai não esquecera Lon Chaney, em filme de 1923, fazendo o mesmo personagem. Mas cá para mim, Ewerton superou Quinn e quem sabe se eu não diria o mesmo de Chaney, se o tivesse visto? Dizia Drummond que um conto é bom quando deixa na lembrança do leitor pelo menos um chapéu. No livro, Belquior é citado de passagem. Mas toda vez que me lembrar da telenovela, a primeira ou a única figura que me virá à memória será ele, com certeza. Tudo é tão diferente do livro que poderíamos até colocar na telenovela outro título, como O Sapo e a Muriçoca, O Galo e a Minhoca etc. É brincadeira, mas se a telenovela passasse um ano num desumificador, perdendo água, daria de 10 a zero naquele e em muitos outros romances, mesmo com tantos “meu amado! minha amada!” que lambujam a alma da gente. • Continente junho 2005

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LITERATURA

Em seu segundo livro de contos, Ronaldo Correia de Brito encontrou uma maneira de escrever que vai diferenciá-lo de outros que trabalharam o espaço romanesco nordestino

Luiz Carlos Monteiro

Solidão e fatalismo nos ermos e grotões

A

precisão de linguagem exigida para a escrita do conto não requer dimensão minimalista. Na época do microconto, ainda podem ser veiculadas histórias que ultrapassem a condensação máxima de umas poucas palavras ou expressões. Nos treze contos de Livro dos Homens, novo trabalho de Ronaldo Correia de Brito, podese conferir a associação da economia vocabular interna de frases a uma estrutura que jamais chega, por exemplo, ao tamanho da novela. No entanto, como exceção, o texto “Qohélet”, o-que-sabe, é feito de vários microcontos, onde o personagem principal se apresenta em um deles, com a secura de quem está a vislumbrar a morte e com a fragilidade de quem tem um fio de vida que depende de um rompante respiratório: “Eu sou Bibino. O outro da cama ao lado, meu professor Issacar, um evangélico da Assembléia de Deus. Discordávamos na fé e nos igualávamos na doença. Nós dois contraímos o bacilo. Eu escarrava o pulmão direito, aos bocados de pus, e Issacar escarrava os dois pulmões”. Através de Issacar, Bibino é conscientizado e aprende Continente junho 2005

a ler pela Bíblia, mas seu sonho mesmo, desde menino, é ser um brincante, transformar-se num caboclo de lança. Ronaldo Correia encontrou a sua “maneira” de escrever, e isto vai diferenciá-lo de escritores como Graciliano Ramos, o primeiro Osman Lins ou Maximiano Campos, que também trabalharam a sua literatura ou parte dela no espaço romanesco nordestino. Não faltam, nestes prosadores, histórias de misticismo, valentia, traição, politicagem, vingança, honra e desonra, miséria e mesmo narrativas que se referem à fartura de uns poucos. Livro dos Homens reflete, em algumas passagens, a experiência do autor com o teatro – nos diálogos em que personagens ora gritam ou murmuram, nas alusões a peças, como no texto “Brincar com veneno”, onde se pode encontrar, literalmente, o título da peça Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O’Neill, além da sugestão do final comum a qualquer ato de um espetáculo, com o fechamento das cortinas sem vencedores, e no conto “Cravinho”, com a tentativa de teorização dramática, representada pelas manifestações de brincantes em reisados e maracatus.


LITERATURA O leitor vai se deparar com uma linguagem de quem conhece o que se passa com a cultura do seu tempo, erudita ou popular, mesclando-a aos lugares da sua vivência inicial no interior do Ceará. O mistério e a fatalidade deixarão suas marcas em praticamente tudo que o contista escreve, pois as referências são flagrantes, como nas palavras iniciais do livro, no conto “O que veio de longe”: “Desceu a primeira enchente do rio Jaguaribe, quando todos pensavam que o ano seria de estio. No meio das águas barrentas, o corpo de um homem. Foi descoberto de manhã, preso aos destroços das margens. Vestia jaqueta de veludo, camisa fina com abotoaduras de prata, botinas de couro curtido. Um anel, com arabescos de ramos e flores entrelaçados, enriquecia o dedo anular direito. Fina camada de lama recobria a pele alva machucada no embate com as pedras.” O corpo de Domísio Justino produz uma lenda sagrada que só se esclarecerá com a chegada de Pedro Miranda, que o assassinou para lavar a honra de uma irmã. Certos protagonistas de alguns contos são, do mesmo modo, títulos, e ficam estigmatizados na mente de quem os lê e desvenda: Eufrásia Meneses, Sebastião Candeia, Cravinho, Francisco Vieira e Maria Caboré. Eufrásia Meneses pensa e afirma que a noite no Sertão é o “cheiro de carne apodrecida do gado morto neste ano de seca, um bater de portas que se fecham, o balido de ovelhas se aconchegando, o fungar das vacas prenhes, o estalar das brasas que se apagam no fogão”. A incrível Maria Caboré é a negra que tem como profissão pilar arroz, mas está sempre disponível para outros trabalhos, pois vive em função das outras pessoas: “Vagava pelas ruas, entrava nas casas. Banhava-se no rio, nuinha, as coxas à mostra, a carne macia salpicada de gotinhas d’água. Despertava desejo quando passava com o rosto longe, imaginando besteiras”. Ao fim, terá uma

morte de glória: “Maria Caboré, cercada por mulheres, é vestida, enfeitada e coroada rainha”. A tragicidade da morte aflora, nos ermos e grotões, envolta em mistério e solidão, em rituais que pouco escondem a força de amores passionais. E que parecem induzir a uma sexualidade tão natural e necessária como a dos animais, onde não são raros os incestos, estupros e adultérios, que se mostram como termos técnicos do direito e da polícia, embora já não tenham mais tanta significação nestes tempos de sexo virtual e permissividade total. O desespero é substituído pelo fatalismo enraizado numa aspereza secular, pelo irremediável das coisas e eventos, ou por aquela solidão humana inesquivável e dilacerada em meio à presença de objetos e pessoas, da natureza e dos bichos. Assim, tudo se passa num grau de imutabilidade enervante – a morte, o amor, os laços de parentesco, a luta pela sobrevivência fazem parte de um cotidiano que sempre esteve ali, que parece não mais trazer nenhuma possibilidade de mudança. •

Leo Caldas

Livro dos Homens, Ronaldo Correia de Brito, Cosacnaify, 176 págs., R$ 29,50.

Brito: economia vocabular

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LITERATURA

Relançados, recentemente, livros do escritor paulista que influenciou toda a geração da contracultura e do Tropicalismo

José Agrippino de Paula

A voz do silêncio

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escritor paulista José Agrippino de Paula tem relançado, depois de quatro décadas da primeira edição, o seu livro Lugar Público, pela editora Papagaio. Nascido em 1937, o autor acompanhou o fim da era getulista e viu a deflagração do golpe militar. E isto teve reflexos na sua escrita, ao empreender o relato de núcleos da vida cultural do Rio e São Paulo, com a construção de personagens que estavam vivendo o clima sombrio, marginal e enviesado da época. Os seres retratados por Agrippino de Paula são flagrados levando uma vida vazia e indolente, de gestos automáticos, rotinizados e extremamente parcos, e talvez por isto a narrativa em muitos parágrafos se arrasta tediosa e monótona. Mesmo que tenham nome, apresentam-se vagos, tímidos, vacilantes e têm como marca maior de reconhecimento o silêncio que observa e questiona agudamente o mundo de fora. Trata-se de um grupo de estudantes, boêmios e intelectuais que se reúnem numa biblioteca pública, estendendo tais encontros, praticamente diários, aos bares, cinemas ou ao simplesmente andar a esmo pelos centros urbanos. Continente junho 2005

O romance, lançado pela Civilização Brasileira, em 1965, traz outra faceta distinta, pois nele pode-se conferir também toda uma busca cultural realizada como resistência à opressão que se abateu violentamente sobre as pessoas que não faziam parte, diretamente, ou não aprovavam o regime político de exceção. Os trechos que se referem explicitamente à ditadura são poucos e encontram-se embutidos em meio a parágrafos maiores, como se quisessem driblar uma censura que já vinha atuando sem tréguas desde os tempos getulistas, fragmentados entre o fascismo e o populismo. O Existencialismo sartriano aparece com freqüência nas páginas de Lugar Público, onde é sugerida a necessidade de se desenvolver uma consciência individual em permanente conflito com a sociedade patriarcal, repressiva e de consumo. Na segunda metade do século 20, ergue-se o protesto contra valores rígidos, familiares e conservadores que se encontravam – e ainda hoje se encontram, guardadas as devidas proporções e peculiaridades do tempo históricosocial – em voga. O autor relata algo deste conflito, em relação a seu próprio pai, em várias passagens: “O seu


Juvenal Pereira/AE Juvenal Pereira/AE

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defeito, dizia o seu pai, teve origem no ventre materno, mas isto não significa que você, meu filho, está isento de culpa por este defeito; mas, justamente, ao contrário, você é o único culpado; e o que é mais grave, este defeito pertence a você e é irrevogável. Toda a tentativa da sua parte de eliminá-lo está predestinada ao fracasso. Não perca tempo e esforço tentando vencer a si mesmo. Prossiga na sua insignificância, indigência, ociosidade e auto-aniquilamento”. A visão do filho-narrador, uma vez que o romance guarda muito de autobiografia, é extremamente desabonadora e pouco tolerante em parágrafos que se repetem obsessivos como se estivessem substituindo uma inexistente divisão em capítulos: “Meu pai limpava todas as manhãs, batendo no colchão, a pele seca que se despregava de seu corpo durante a noite”. De 1967 é PanAmérica, seu segundo livro, com apresentação de Mário Schenberg, cuja terceira edição é de 2001, também pela Papagaio. José Agrippino sai agora da introspecção de Lugar Público para dialogar com mitos hollywoodianos, fazendo-os seus íntimos, e agindo de igual para igual com eles (Burt Lancaster, Marlon Bran-

do, Joe Di Maggio, Harpo Marx, Marilyn Monroe). PanAmérica forma um bloco inteiriço e compacto, de ritmo ininterrupto. Os capítulos não são numerados ou titulados, mas mesmo assim há uma nítida subdivisão. O “Eu” aqui não admite subjetivismos, indagações ou perplexidades e vê o circuito e o andamento do mundo tecnológico e cibernético com naturalidade e ceticismo. É um “Eu” ativo, participante e sem ilusões perante o mundo ou a vida. O que resulta num sujeito exteriorizado, que não deixa de absorver os atos cotidianos da urbe, de perceber e viver intensamente os acontecimentos e paisagens à sua volta. O romancista revela sem comedimentos o ardor de quem faz sexo desbragado com a musa de sua geração, Marilyn Monroe. O encontro com Che Guevara e o assassinato de um adido militar reafirma a condição de latino-americano do escritor, e o quanto existia de vontade consciente de transformação social na juventude daquele período. Um dos momentos mais instigantes do livro apresenta-se, quando o autor dá vida à Estátua da Liberdade, instaurando o perigo e o desespero coletivo: “A Estátua da Liberdade soltou um grito e lançou a tocha de concreto na multidão que corria em pânico. A multidão abriu para os lados e a tocha de concreto esmagou um grande número de bois, negros e japoneses. (...) A Estátua da Liberdade introduziu a imensa tocha de concreto no depósito de petróleo e mexeu a multidão. Primeiro a estátua de concreto mexia vagarosamente e depois aumentou a velocidade e logo em seguida a massa humana estava transformada numa pasta de carne e a Estátua da Liberdade levantou com ambas as mãos o imenso depósito e sorveu a pasta de carne”. Assim, PanAmérica representa uma alegoria da pompa tecnológica e da arrogância do Império Americano, promovendo a sua destruição e de seus mitos, com uma visão artística derivada em muito da pop art de Andy Warhol, ironicamente um norte-americano. Após a publicação deste livro, José Agrippino de Paula substituiu sua produção literária vigorosa daqueles anos 60 do século 20 pelo silêncio total das décadas posteriores e pela atuação em outros segmentos da arte. (L.C.M.) • Lugar Público, José Agrippino de Paula, Editora Papagaio, 272 págs. R$ 32,00. PanAmérica, José Agrippino de Paula, Editora Papagaio, 258 págs. R$ 25,00. Continente junho 2005

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LITERATURA

A sombra luminosa de Cyrano A tradução de Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, feita pelo pernambucano Carlos Porto Carreiro, é um clássico de nossa língua que nos cumpre preservar Ivo Barroso

Ator Walter Hampden no papel de Cyrano de Bergerac

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Condé Nast Arquivo/Corbis

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conforme testemunha seu aluno e coestaduano França Pereira, um dos primeiros a saudá-la entusiasticamente quando esta saiu em fascículos nas páginas do Diário de Pernambuco , nos primeiros anos do século 20: “Quando, há cerca de um ano, suponho eu, nos encontramos, lembro-me bem do fulgor de seu olhar febricitante, do riso que lhe brincava nos lábios e do tremor que lhe agitava as mãos, ao falarme do seu Cyrano, como se ele quisesse reviver ante meus olhos deslumbrados o velho Galrão da Gasconha num outro poema dramatizado. Nessa hora eu tive a ventura de escutar-lhe a recitação de vários trechos da obra. O que o desanimava, dizia-me, era a suspeita de se frustrarem seus esforços neste ‘meio’, onde o galardoariam talvez com esta frase esmagadora: – Ora! uma tradução! – E mais nada. Ela aí está e, até eu que julgo um ingrato labor esse de verter a poesia de um povo na língua de outro povo pensando, sentindo e querendo diferentemente, eu não sei como recusar-lhe agora o qualificativo de perfeita”. Depois de publicada em fascículos na província, a tradução apareceu em livro em 1907, impressa pela J. Ribeiro dos Santos, do Rio de Janeiro. José Veríssimo, crítico da escola realista, fazendo à época (1907) a resenha da tradução de Porto Carreiro, assim se expressa, depois de confessar não ter pela obra e seu autor francês “a admiração de praxe” (sic): “Para atingir a perfeição conseguida pelo Sr. Porto Carrero na tradução do Cyrano de Rostand, era preciso que o seu amor por esta obra fosse tal que, identificando-se com ela, lhe sentisse o assunto quase tanto como o autor o sentira. E deve ter sido assim, senão o seu trabalho não teria o vigor e a lindeza do original. O talento poético, as suas capacidades de emérito versejador, e ainda o seu raro conhecimento das duas línguas, não bastariam sem essa consubstanciação, para fazer desta tradução a obra-prima que, no seu gênero, ela é. (...) Com a escrupulosa fidelidade ao pensamento e à expressão do autor, principal qualidade de toda a tradução, distingue-se mais esta pelo vernáculo da linguagem, sem o mínimo ressaibo da francesa, e do estilo que conservam todas as qualidades de brilho, elegância, finura, gentileza e galanteria que os admiradores de Rostand se comprazem em lhe achar.” Hulton-Dentsch collection/Corbis

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or mais que os críticos tentem rotulá-lo de datado e demodê, e alguns pedantes literários insistam em depreciar suas qualidades poéticas, o Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, toda vez que surge em nova apresentação – seja no palco, no cinema, em vídeo, disco ou livro – faz com que a devotada legião de seus admiradores se engrosse de novos milhares de jovens que não tinham ainda conhecimento da obra. Encenada mais de 14.000 vezes só na França, motivo de quatro filmes, duas óperas, um balé, várias gravações discográficas, um musical, traduzida em todas as línguas vivas, às vezes em mais de uma versão, seu sucesso indeclinável só pode ser explicado pela genialidade de sua concepção e a beleza correspondente de sua feitura. Quanto à tradução brasileira da peça, devida à pena do escritor pernambucano Carlos Porto Carreiro (1865-1931) e publicada em 1907 (dez anos depois de sua estréia na França) – a absoluta fidelidade ao texto e ao espírito do texto, sem nada omitir, nem modificar sua estrutura, mas sem o menor servilismo, “arrancando do português faíscas que cegam”, às vezes mais ardentes que as do próprio original –, esta consegue transmitir ao leitor de língua portuguesa toda a ductilidade do idioma original, a sua verve e suas peripécias verbais sem nunca se desviar da rigorosa vernaculidade cultivada à época pelos grandes escritores de nosso idioma. Carlos Porto Carreiro, nascido em Pernambuco em 1865, era professor de economia política e finanças na Faculdade de Direito do Recife. Havia escrito alguns livros jurídicos e compunha versos, mas não gostava de ser chamado poeta, já que esta designação, na provinciana sociedade mercantil da época, presumia o tipo do boêmio desocupado, que não se coadunava com sua respeitabilidade de professor. Três anos mais velho que Rostand, Porto Carreiro encantou-se à primeira leitura com sua comédia heróica e logo intentou traduzi-la. Dedicava todos os seus esforços a essa empresa e consta que, às vezes, em seu trajeto de bonde para a Faculdade, ocorria-lhe saltar do veículo e entrar no primeiro botequim que via, a fim de tomar nota de versos que a inspiração lhe ditara ao longo do percurso. A tradução passou a ocupar-lhe inteiramente o espírito,

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O escritor francês Edmond Rostand


LITERATURA A tradução brasileira da peça Cyrano de Bergerac, devida à pena do escritor pernambucano Carlos Porto Carreiro, é de absoluta fidelidade ao texto e ao espírito do texto, sem nada omitir nem modificar sua estrutura

Reprodução

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Cena do filme Cyrano de Bergerac, de Jean-Paul Rappeneau, com Gerard Depardieu

A leitura comparada dos textos – original e tradução – permite ao leitor verificar a extrema fidelidade de Porto Carreiro à estrutura e ao estilo da peça. As falas são rigorosamente respeitadas, sem cortes ou acréscimos, cada verso traduzido vis-à-vis do verso original. A beleza e a sonoridade das frases encontram sua exata correpondência em língua portuguesa, conservando-se aqui o timbre e a gama das inflexões. Vez por outra, o efeito, conseguido em francês pela utilização de uma rima rara ou preciosa, se não é correspondido sur place, vai aparecer em outro trecho, onde melhor se ajusta. Mas o tradutor jamais foge às dificuldades estilísticas do original; utiliza recursos semelhantes, imagens reverberadas, rimas esdrúxulas, alusões consentâneas num surpreendente equilíbrio de isotopias. Veja-se, por exemplo, a tirada em que Cirano, após seu duelo com o visconde de Valvert, sabe pela aia de Roxana, que esta deseja encontrá-lo (Ato 2, Cena 7). Le Bret, o amigo, vendo seu contentamento, pergunta-lhe se doravante ele será mais calmo. Ao que Cirano retruca: Em Rostand: “Maintenant../ Mais je vais être frénétique et fulminant!/ Il me faut une armée entière à deconfire!/ J’ai dix coeurs; j’ai vingt bras; il ne peut me suffire/ De pourfendre des nains../ Il me faut des géants!” E a devolução de Porto Carreiro, conservando (e ampliando) a magnífica aliteração em ff do segundo verso, mantendo a elegância do verbo (pourfendre) e procedendo a duas antonomásias (Briareu e Golias) – muito no estilo de Rostand –, para tornar o dito ainda mais grandiloqüente: “Doravante/ É que vou ser feroz, furioso, fulminante;/ Não basta um contendor: de exércitos preciso!/ Sinto-me um Briareu. Na luta já não viso/ Desbaratar anões.../ Careço de Golias!” Não passará certamente despercebida ao leitor a pletora de momentos estelares – verdadeiras árias de ópera –, como a Continente junho 2005

balada do duelo, as (20) tiradas sobre o nariz, a apresentação dos cadetes de Gasconha, os “não, obrigado!”, a cena do balcão com o arquifamoso beijo de Roxana (“un point rose qu’on met sur l’i du verbe aimer”), as incríveis patranhas da viagem à Lua e a divertida e ao mesmo tempo angustiosa gazeta de Cirano. Em todas elas, Porto Carreiro – espadachim à altura de seu contendor francês – apara os golpes estilísticos do mestre, retruca-lhe com idênticos titilares do verso, devolve-lhe a exuberância das rimas, num duelo em que as belezas dos idiomas em choque saem da refrega empatadas. O que talvez lhe passe despercebido, se não é versado na arte sutil da tradução, será aquela seqüência inesgotável de “estalos”, a série infindável de achados, que constituem o apanágio dos grandes tradutores. Acreditam alguns que a tradução de Porto Carreiro esteja hoje um pouco defasada, que tenha envelhecido, vazada que foi numa linguagem escorreitamente vernácula. A imputação não encontra apoio no fato de que continuamos a gostar de Machado e outros clássicos, apesar de a linguagem destes destoar da indigência vocabular dos escritores de hoje. A tradução de Porto Carreiro é um clássico de nossa língua que nos cumpre preservar. Está solidamente integrada no patrimônio de nossa literatura. Ela transcende o teatro; é uma obra literária de grande beleza, um poema de qualidades incontestes, a preservação de nobres sentimentos e belas atitudes fixados para sempre na mágica atemporal da Poesia. Diferentemente daquela sombra do nariz no muro do jardim, que fazia Cirano sair de seus devaneios para voltar à torpe realidade, esta tradução – sombra luminosa do original – nos faz sair do estreito mundo em que vivemos para desfrutarmos um momento de sonho na Lua de Cirano e de Rostand. • (Excerto de prefácio inédito para nova edição da peça Cyrano de Bergerac, a ser publicada pela Topbooks.)


POESIA

Poemas de Almir Castro Barros LONGE FOGEM OS DIAS

EM MIM

A meus irmãos

Guardo-te Como objeto já sem nome Em luta A cinzelar sob o esmeril dos pés De quem acaso Passa.

Não há solidão que cumpra isso: Às noites no inverno Se acordado por facas do frio Delas fugia na dança de um besouro Rondando a lamparina até cair No gás. É desse tempo Ouvir de certa primavera Aonde não cheguei por falta de quimera.

HISTÓRIA DAS SAFRAS

Depois o amor fez do meu sono Um pobre de ira e querubins.

Os últimos amigos Podem ser a esperança E estar No sul de algum destino Ou infinitos Em Dardanelos.

Da crônica do pai guardo este risco – Pensem juntos, Que a mágoa se repete como a lua –. Anoto estas questões Enquanto longe fogem os dias Sob o ninho de silêncios Da eternidade.

A Fernando Monteiro

COMO CHAPLIN A Mariana Luna Cativo de lágrimas pela estrada vazia O coração sem a chama dos diamantes que tinha.

POESIA Ladislau afinava pianos. Fazia isso Quando as folhas amareleciam E desabavam no verão. Nunca se compreendeu as juras desse ofício De acumuladas buscas.

Perdido ou só quando madornam as árvores, E passa sem mais ver na mão das samambaias, De água – as muralhinhas. E do que foi em pensos passos Deixa dormir numa estátua de ninhos.

Almir Castro Barros nasceu na cidade de Maraial (PE), em 1945. Esses poemas integram o livro inédito Um Beijo para os Crocodilos.

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CONTO

La nutria de Atacama Cesar Cardoso

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uando já deixava as Ilhas Galápagos, com a cabeça fervilhando das idéias que desembocariam na sua famosa teoria, Charles Darwin acabou cedendo aos insistentes pedidos de um dos guias do Beagle, que o convenceu a conhecer o deserto de Atacama. O homenzinho atarracado, com pele cor de cobre, não o largava com uma história que ele entendia com dificuldade, pois conhecia mal a língua espanhola e mesmo que a conhecesse bem seria dificílimo traduzir a fala daquele sujeito, mastigada e cuspida como folha de coca. Cedeu e foi ao deserto, aborrecido, achando que se desviava de seu caminho, embora àquela altura mal soubesse qual seria seu caminho nem sonhasse com o que acabaria desbravando. Tinha, isso sim, a cabeça fervilhando de tudo que ainda não sabia o que era, o que o impossibilitou de dizer não. Assim foi, já querendo voltar. Mas não se arrependeu. Lá ele acabou por conhecer uma velha lenda, que tinha o estranho hábito de existir. La Nutria de Atacama. No deserto, o homenzinho mastigador de palavras, Darwin e seu assistente imediato, um francês antipático com quem Darwin tinha o prazer de implicar, se instalaram numa tenda e ali ficaram por três dias e três noites. Darwin discutia com seu avô já morto sobre uma teoria absurda, numa espécie de delírio. O francesinho insistia que voltassem logo para o Beagle e seguissem viagem, em vez de estarem ali escutando lendas de um povo ignorante. E o representante do povo ignorante tartamudeava a sua verdade lendária. Até que choveu. Um aguaceiro interminável despencou daqueles céus imensos, fazendo renascer, nos leitos mortos, rios que transbordaram tomando conta de tudo, arrastando tudo e Continente junho 2005


CONTO fazendo surgir vida por todo lado, repentinamente como num milagre. Darwin se deixou ficar em meio ao novo mar, com seu avô. E com sua caligrafia sofrível, começou a fazer anotações freneticamente, na primeira de suas 39 cadernetas, que acabaram sendo os rascunhos de seu futuro e mais famoso livro. Numa página que mais tarde ele simplesmente deixou de lado para pensar no que realmente tinha valor, podemos ler até hoje: “... usa uma pedra para quebrar os besouros, que são a base de sua alimentação e (trecho ilegível) o uso de instrumentos. Chora, é o que todos dizem. E de fato, emite um som idêntico ao choro de uma criança, quase ininterruptamente, aguardando a água que só cai do céu de sete em sete anos, no deserto. Cai abrupta, numa (trecho ilegível) um imenso aguaceiro que tudo carrega, como se quisesse dar fim ao deserto, (trecho ilegível) ao ver que seu intuito é impossível, o deserto é o mar maior. (trecho ilegível) Nas grandes corredeiras que se formam e que acabam em horas, ali mergulham las nutrias de Atacama. Mas por passarem anos sem sequer ver água, desaprendem a nadar e se afogam quase todas. Às que sobram cabe e tarefa de salvar a espécie da extinção, numa luta que se repete por instinto de sete em sete anos. (trecho ilegível) Nadam até o mar, onde se reproduzem. E voltam pelos leitos secos dos rios até seu lugar de origem, para chorar mais sete anos.” Darwin não chegou a observar tudo isso. A maior parte de suas observações teriam sido contadas por seu guia, o homenzinho cuspindo suas folhas de coca. Ou não, isso seria apenas mais uma das intrigas do francesinho, se vingando do inglês. E há quem afirme mesmo que Darwin nunca foi ao deserto de Atacama, tudo não passa de mais uma lenda, como a das nutrias de Atacama, espécie sobre a qual nunca mais se ouviu falar. Pelo menos no meio científico, porque um poeta, ao menos, acreditou na viagem de Darwin, em suas três noites no deserto e na existência daquela estranha espécie. Pablo Neruda. O poeta garantia tê-las visto diversas vezes no mar, jurava que elas apareciam nas noites de inverno na

Isla Negra, mostrava a alguns privilegiados o que seriam pegadas delas e até criou o “Parterre de las Nutrias”, um jardim numa das laterais do terreno da Casa de Isla Negra. Para elas compôs a “Oda a la Nutria de Atacama”, incluída no seu livro Nuevas Odas Elementales, de 1956. “Clara como un planeta y destinada a relucir escamas de cristal te acrescentaron y en el secreto de la tierra oscura se redondeó tu vientre de rocío y parece que el cielo contribuye dándote fina forma de granizo el agua es tu bandera agita tus colores los rayos amarillos los relámpagos negros de tu cuerpo, de piedra con espuma es tu tecido, el azul movimiento de tus pies arenosos, el encendido ramo de tus ojos. Tu eres el cegador escaparate de una sombría noche la garganta cubierta de aguas marinas, entonces yo seré tu poeta y dormiré en tu cinta de platino, en la frescura azul del abanico que abrirás en mi sueño como las alas de una gigantesca mariposa marina.” E por mais que a ciência comprove a não-existência das Nutrias de Atacama, a espécie segue usando pedras para quebrar besouros e enfrentando o mar para morrer e existir nos desertos e nas poesias. • Cesar Cardoso é escritor e roteirista de televisão. Colaborador da revista Caros Amigos, tem livros publicados nas áreas de humor, poesia e literatura infantil. É redator da TV Globo, onde já escreveu para programas como TV Pirata, Sai de Baixo e A Grande Família. Continente junho 2005

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AGENDA

34 LIVROS

Uma saga pungente

Literatura química

Inferno Provisório, de Luiz Ruffato, compõe painel social com competência e compaixão

Para quem é “ligado” neste tipo de relato, a coleção Intoxicações da Ediouro reúne de volta três clássicos sobre drogas, de autores que conheceram os limites do vício e os verteram para a literatura. Thomas De Quincey, em Confissões de um Comedor de Ópio (1821), fala dos efeitos da droga como se fosse uma revelação divina e traça um estudo pioneiro sobre a interferência do subconsciente nos sonhos, bem antes de Freud. Os Paraísos Artificiais (1860), traduzido por José Saramago, por sua vez, reúne dois ensaios de Baudelaire sobre os chamados “estados de exaltação”: “O Poema do Haxixe”, onde fala sobre os efeitos da droga inspirado em suas experiências e na convivência com artistas e jovens intelectuais franceses e Um Comedor de Ópio, onde analisa o livro de De Quincey, de quem foi tradutor e grande admirador. Em Junky (1953), Burroughs desmistifica com frieza a dependência química, revelando uma galeria de bêbados, prostitutas, traficantes, bichas e todos os tipos de desocupados do submundo artificial, quebrando os parâmetros que separam um estudioso de um dependente. (Luiz Arrais).

A pentalogia Inferno Provisório, do mineiro Luiz Ruffato, 44 anos, teve seus dois primeiros volumes recém-lançados, pretendendo, como diz o autor, ser “uma reflexão sobre a formação e evolução do proletariado brasileiro a partir da década de 50”. Mamma, Son Tanto Felice, o primeiro volume, tem como cenário uma comunidade de imigrantes italianos, que formam uma colônia de agricultores pobres no interior de Minas. Famílias que se desagregam pelo impacto cultural, tecnológico, econômico provocado pela caótica modernização brasileira. Poderia ser sociologia, mas não é. Ruffato constrói uma prosa própria, bela e densa, criando personagens e imagens em pinceladas fortes, nervosas, de cores vivas. A narrativa fragmentada reprocessa histórias anteriores do autor e incorpora novas, usando os recursos do romance contemporâneo – fluxo de consciência, flashes, tipologias gráficas distintas etc. – de uma forma coerente. É uma grande saga, pungente, feita com competência e compaixão. (Homero Fonseca) Mamma, Son Tanto Felice, Inferno Provisório, Vol. I, Luiz Ruffato, Record, 176 pág., R$ 25,90.

Confissões de um Comedor de Ópio, de Thomas de Quincey. 334 páginas, R$ 44,90. Os Paraísos Artificiais, de Charles Baudelaire. 190 páginas, R$ 34,90. Junky, de William S. Burroughs. 286 páginas, R$ 44,90. Ediouro. Caixa reunindo os 3 volumes: R$ 119,90.

Estréia consistente

AntiCoelho

Paredes abstratas

O paulista Wilson Rossato (1961) estréia na ficção com a novela O Tolo Precário, em que narra o cotidiano de um escrivão de polícia numa metrópole brasileira. De início, a narrativa um tanto seca, um tanto dura, parece pobre, insuficiente (“Pedi mais um café pois estava muito bom”). Rotundo engano. O ritmo monocórdico reflete com extrema felicidade a vida tautológica, o ambiente sufocante, o universo limitado do personagem enredado numa teia dostoievskiana. Por trás da aparente monotonia, a tensão, latente no início, toma conta da trama. Com direito a pérolas como “nuvens inteiras se desfaziam lá fora”.

Intelectuais não gostam de Paulo Coelho. Por quê? O professor Janilto Andrade, PhD em Letras pela UFPE, leu O Alquimista e explica, à luz da teoria literária e de suas próprias idiossincrasias: por que Paulo Coelho é kitsch, por que a obra é poeticamente de uma pobreza desmedida, por que a estrutura do romance não tem verossimilhança, por que oferece ao leitor emoções fáceis e previamente fabricadas, por que em nível de linguagem evidencia-se a desarticulação entre os elementos estruturadores da obra – trama, ponto de vista, personagens e contexto, por que o autor está sintonizado com o imperialismo americano.

O dramaturgo Jean-Paul Sartre construía personagens abstratos, usando o Teatro como mais um veículo para difusão de uma causa. É o caso de Entre Quatro Paredes, que, como As Mãos Sujas, questiona as reais motivações de gestos políticos e heróicos. Famosa pela frase “O inferno são os outros”, a peça revela um curioso estereótipo do Brasil: seu protagonista masculino é um jornalista brasileiro (“Nunca saí do Rio”), chamado Joseph Garcin, na redação fumam-se charutos, seu companheiro chama-se Gomez e ele arranja uma mulata como amante. Só falta aparecer Carmem Miranda.

O Tolo Precário, Wilson Rossato, Ed. Lamparina, 152 páginas, R$ 25,00.

Por Que Não ler Paulo Coelho, Janailto Andrade, Calibán, 100 páginas, R$ 15,00.

Entre Quatro Paredes, Jean-Paul Sartre, Civilização Brasileira, 128 páginas, R$ 20,90.

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Coisas da vida literária A cara do bardo O período que abre o século 20 foi mais de “vida literária” que de literatura. É o que considera Brito Broca em seu livro A Vida Literária no Brasil – 1900, mesmo ressaltando que “publicaram-se também algumas das obras mais sérias da literatura brasileira”, como Os Sertões, de Euclides e Eu, de Augusto dos Anjos. Mas, talvez porque havia tanta “vida literária” é que, graças a Broca, ficamos sabendo de detalhes às vezes pitorescos da vida de vários escritores. Emílio de Menezes, por exemplo, que era boêmio inveterado, foi impedido de entrar para a Academia por Machado, que abominava a bebida. Foi só depois da morte do “bruxo” que Menezes conseguiu entrar, e ainda assim porque os acadêmicos temiam sua língua ferina. José do Patrocínio, que durante a luta pela abolição era um dínamo, ao vencê-la perdeu a motivação de viver, pois só conseguia seguir adiante se debatendo por um ideal. Já Aluísio Azevedo escrevia feito um danado até conseguir um emprego, objetivo que vivia desejando ardentemente. A partir daí, entretanto, entrou num processo de esterilidade total e nunca mais produziu nada, tornando-se um amargurado. E o velho Coelho Neto, hoje tão associado a um beletrismo passadista, quem diria, aventurou-se pela nascente linguagem do cinema, escrevendo e dirigindo o filme Mistérios do Rio. (Marco Polo)

Muito já se escreveu sobre a existência de Shakespeare. Os poucos dados biográficos que se têm dele levaram teóricos a afirmar que aquele ator, vindo de uma família de analfabetos, não teria condições para escrever as mais profundas peças teatrais que o mundo conhece. Só um homem culto como Francis Bacon, por exemplo, poderia ter feito isso. Ou então uma sensibilidade aristocrática, como o Conde de Oxford. Ou, ainda, o poeta Christopher Marlowe. E embora estas teorias conspiratórias tenham prosperado por algum tempo hoje não existe mais dúvida de que Shakespeare era ele mesmo! Agora, surge outra polêmica. Como seria realmente o seu rosto? A descoberta de uma pintura feita em 1603, por John Sanders, foi anunciada como o único retrato do bardo, pela jornalista Stephanie Nolen, suscitando novo furor na indústria movida pela herança do gênio de Stratfordupon-Avon. Um elenco internacional de sete experts fez uma investigação em diversos aspectos sobre o assunto: a construção da idolatria em torno de Shakespeare; a origem das teorias conspiratórias; os significados da iconografia shakespeariana; a análise dos retratos feitos naquele tempo; o significado das roupas dos retratados e até exames grafológicos foram utilizados para estudar a autenticidade do verdadeiro rosto de Shakespeare. (MP)

A Vida Literária no Brasil – 1900, Brito Broca, José Olympio Editora, 400 páginas, R$ 58,00.

O Rosto de Shakespeare, Stephanie Nolen e outros, Editora Record, 384 páginas, R$ 54,90.

Tributo ao poeta

Poesia definida

Sabedoria acessível

O poeta curitibano Paulo Leminski marcou forte presença na literatura brasileira, não apenas por sua obra – que inclui poemas, letras de música, romances experimentais, biografias e textos teóricos - como também por uma vida romanticamente tumultuada e que acabou num deliberado suicídio pelo uso contínuo de bebida alcoólica. Execrado por uns (que o acusam de abusar dos trocadilhos e das frases de efeito) e adorado por outros, que o consideram um continuador esclarecido do concretismo, tem neste livro um vasto tributo de seus admiradores, que vai do depoimento emocionado à critica mais equilibrada. No final, uma coisa fica clara: não há como ignorar Leminski.

O crítico literário Sebastien Joachin começa o prefácio deste livro com a frase “Nasceu um poeta do Recife”. Duas verdades. A primeira é que Marcos D’Morais é de fato um poeta. Ele surge com um primeiro livro onde constam poemas aos quais não há reparo. Alguns chegam a ser destacados pelo poeta Alberto da Cunha Melo, na orelha: “Verso Preso”, “Caos”, “Poema de Superfície” e “A Renúncia”. E o Recife está muito presente nestes textos, onde predomina uma linguagem serena, um pendor muito forte para o realce das cores e uma constante reflexão sobre o fazer poético e sobre a própria essência do lirismo. D’Morais começa, assim, com uma obra de personalidade definida.

A Editora Escala está lançando a coleção Grandes Obras do Pensamento Universal. São edições barateadas pelo uso do papel jornal, mancha gráfica aproveitando ao máximo o espaço das páginas, capas desprovidas de sofisticações, mas com o texto integral das obras, acompanhado de apresentação, cronologia resumida e indicação dos principais livros do autor. Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam é obra que satiriza a sociedade dos séculos 15 e 16, ao mesmo tempo em que alerta sobre a hipocrisia, a perda de valores e a insensibilidade dos detentores do poder. Além de Erasmo a coleção é integrada por obras de Platão, Nietzsche, Cícero, Plutarco, Engels e Thomas Morus, entre outros grandes pensadores.

Recife Porto, Marcos D’Morais, Editora Universitária/UFPE, 75 páginas, R$ 20,00.

Elogio da Loucura, Erasmo, Editora Escala, 112 páginas, R$ 4,90.

A Linha que Nunca Termina, André Dick e Fabiano Calixto (org.), Lamparina, 432 páginas, R$ 44,00.

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AGENDA

LIVROS


Augusto Pessoa

“” HILDEBERTO BARBOSA

Nós somos a verdadeira Sociedade dos Poetas Mortos O crítico paraibano Hildeberto Barbosa fala da submissão nordestina ao reconhecimento do eixo Rio-São Paulo e da força do lobby nos concursos literários Astier Basílio


CONVERSA

H

ildeberto Barbosa Filho mantém o mesmo vigor militante da extinta crítica de rodapé dos jornais com o aparelhamento teórico da universidade. Doutor em Literatura Brasileira e professor de Comunicação Social da UFPB, há mais de duas décadas faz um trabalho de mapeamento da produção literária contemporânea em todo o Nordeste. Atualmente colabora para o suplemento Correio das Artes, na Paraíba Produzindo com intensidade, além do livro de poemas, seu décimo primeiro, Do Vento e Suas Vértebras Aladas” (2005), Hildeberto publicou A Literatura na Ilha (2004), sobre a produção literária do Maranhão, Letras Cearenses (2004) e tem no prelo O Rio das Imagens, sobre a poesia pernambucana, O Galo na Torre, enfocando os escritores do Rio Grande do Norte e Os labirintos do Discurso, no qual reúne ensaios e apresentações de livros sobre a literatura paraibana. Hildeberto foi membro do Júri Nacional do Prêmio Portugal Telecom 2004 e nesta entrevista conta detalhes dos bastidores das votações e revela com exclusividade a existência de lobby e acusa os críticos do Sudeste do país de complexo de superioridade.

É possível traçar um perfil da produção poética contemporânea do Nordeste? Não há, rigorosamente, uma matriz determinante de um segmento poético único, ou seja, não há uma adesão a uma forma, uma escola, a um modelo, ou mesmo a um estilo. O que se verifica é uma variedade de técnicas, de caminhos e de pesquisas. Percebe-se a presença de grandes individualidades poéticas, mas sem que elas estejam presas ou atreladas a um corpo grupal, ou reflita uma tendência específica, um modelo, uma pesquisa estética definida. Há uma grande variedade e uma grande autonomia e independência deles. Se não dá para sistematizar nenhuma matriz comum, a poesia nordestina, em seu conjunto, dá pra ter um diferencial com a poesia que é feita, por exemplo, no eixo Rio-SSão Paulo?

Se há um núcleo estético organizado no centro Rio-SSão Paulo e no Nordeste não, isso tem alguma conseqüência, alguma distância entre estas políticas estéticas? O que eu percebo é que o poeta nordestino, é claro que eu estou falando, aqui, de uma maneira geral, ele assimila muito o reconhecimento do eixo Rio-São Paulo. Ele só se considera “poeta brasileiro”, à medida que é prefaciado, apresentado, ou mesmo editado por instâncias que estejam naquele centro. Nós temos aqui, no Nordeste, poetas de qualidade, que não têm nada a dever aos grandes centros, do ponto de vista estético, mas que insistem em ter o reconhecimento daquele centro sob pena de se considerarem, praticamente, inéditos. O Nordeste cultiva, um pouco, esse complexo de inferioridade. Quanto ao eixo Rio-São Paulo, por outro lado, lá eles cultivam um complexo de superioridade. Eles já não têm uma necessidade do reconhecimento nosso. Parece que o olhar sobre o Brasil, desses poetas e editores, alcança uma distância muito curta, parece que o Brasil termina em Belo Horizonte. Eles simplesmente desconhecem que nós existimos. Eu costumo dizer que nós somos a verdadeira Sociedade dos Poetas Mortos.

No eixo Rio-São Paulo, pelo fato das vanguardas terem as suas raízes lá, os ecos destas ainda são muito fortes. Então, estes poetas tendem a se agrupar, epigonicamente, manter uma continuidade, sobretudo a poesia concreta, sobre a Mesmo assim, a que você credita o fato de ter sido qual ainda existe um debate, uma produção de certos setores eleito para o júri nacional, que foi quem decidiu os venda poesia paulistana. O que não ocorre, evidentemente, no Nordeste, em que pese o fato de que o Ceará e o Rio Gran- cedores do Prêmio Telecom? Na primeira fase, que foi a representação pelo Norde do Norte terem dado uma grande contribuição ao movimento à época. deste, eu vejo até uma certa lógica, pois meu nome é Continente junho 2005

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CONVERSA Wilton Júnior/AE

Luiz Costa Lima: “queria premiar Augusto de Campos, no primeiro lugar do Prêmio Telecom, já na fase inicial”

“Nós temos aqui, no Nordeste, poetas de qualidade, que não têm nada a dever aos grandes centros, do ponto de vista estético, mas que insistem em ter o reconhecimento daquele centro sob pena de se considerarem, praticamente, inéditos”

relativamente conhecido, foi uma questão de reconheci- há uma tendência muito grande de se ler aquilo que esteja mento e justiça. Mas, em São Paulo, no júri nacional hou- mais próximo. ve o seguinte: aconteceu uma bifurcação em torno dessas Algum jurado, por força de persuasão, acabou influentendências. Então, me parece, é uma leitura particular que eu faço, muito subjetiva, que a minha votação foi para ha- ciando outros? ver uma correlação de forças, porque na Comissão PermaBom, eu não vou citar nomes, mas alguns membros nente havia membros ostensivamente comprometidos com diziam: “Eu não li esse autor. É bom?”, e eu dizia: “É essa hegemonia vanguardista. muito bom, pode votar que eu garanto”. E o jurado votava. Você tinha a liberdade de colocar 10 nomes e, às veOs focos de discórdias, entre os dois grupos, foram zes, o membro do júri não tinha elementos para isso. Eu mais presentes em qual etapa do julgamento? No primeiro fiz uma defesa veemente do Francisco Carvalho, tanto é ou no segundo momento? que eu o coloquei, embora não ele não tenha entrado na No segundo momento. A discórdia se projetou mais final, mas muita gente votou nele. Da mesma forma como nesse segundo momento. Agora, há um detalhe que se muita gente votou em Micheline Verunsky, exatamente deve considerar, por mais que o crítico seja informado e pela defesa veemente que o João Alexandre Barbosa fez, acompanhe a produção, é impossível, num ano, ler tudo e está entendendo? Continente junho 2005


CONVERSA

Por quê? Então você credita o fato de que ela uma jovem poeta ainda não muito conhecida ter entrado na lista final por Porque, na minha opinião, eu não a considerava à alcausa da “grife” João Alexandre Barbosa? tura, num nível de maturidade, de densidade, de um Com certeza! Ela não teria entrado, se João Alexandre Francisco Carvalho, de uma Dora Ferreira... Agora, ela é uma escritora nordestina, jovem, publicou por uma editora não tivesse feito a defesa e a argumentação que fez. de lá, mas não muito conhecida. Creio que Por quê? para ela foi um grande prêmio, um grande “Eu não vou citar reconhecimento, ficar entre os finalistas. Porque ela passaria, apesar de ter nomes, mas alguns sido publicada por uma editora de membros diziam: ‘Eu Porém, é preciso ver que por trás disso há também o lobby crítico, o lobby intelectual... São Paulo, a Alguidar, que tem um não li esse autor. É grupo lá, do qual o Manuel da Cosbom?’, e eu dizia: ‘É Mas o “lobby da vanguarda” não conseta Pinto faz parte; ele inclusive votou muito bom, pode votar guiu dar o prêmio a Augusto de Campos, na Micheline e a defendeu também. que eu garanto’. E o que concorria também... Então, eu tenho a impressão de que jurado votava” houve um pouco de lobby. Não queNão conseguiu, mas fez uma defesa radical ro dizer que o texto dela não tenha a sua devida quali- logo na primeira fase. Porque o Luiz Costa Lima queria predade, mas, face a outras obras, a outros poetas, se os miá-lo, no 1º lugar, já na fase inicial. O crítico não discutia. Era outros jurados tivessem tido acesso às outras obras, para todos aceitarem, pois, no seu entendimento, o assunto, de evidentemente, que por uma escolha rigorosa, do conferir a Augusto de Campos o 1º lugar, não era passível de ponto de vista estético, ela não entraria. discussão. Ele já vinha com esta posição. Mas Costa Lima justificava que não era só pelo livro, mas pelo trabalho inteVocê não votaria nela? lectual dele, enfim, também entram os fatores subjetivos, como Não. Eu não votei nela em hora nenhuma. a amizade, a proximidade. Esses fatores pesam também. • Divulgação

Cláudia Guimarães/Folha Imagem

João Alexandre Barbosa (D): defesa e argumentação em favor de Micheline Verunsky (E) Continente junho 2005

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Redescobrir a beleza Já nos anos 20, o vanguardista Picasso dizia aos outros vanguardistas que era impossível conceber a atividade artística como uma espécie de vale-tudo

C

ada dia que passa torna-se mais inaceitável o cenário atual das artes plásticas, em que uma pseudo-vanguarda, na verdade acadêmica e pobre de criatividade, continua a gozar do apoio das instituições culturais, tanto privadas como oficiais, inibindo-se assim quase todas as manifestações que não se enquadrem no rótulo de “arte contemporânea”. A propósito desse tipo de hegemonia espúria, cito o exemplo de uma pintora que já trabalha e expõe há mais trinta anos, mas que hoje não consegue onde mostrar seus trabalhos. Ocorreu que, tendo sabido que o Museu da República ia franquear sua sala de exposições a artistas que se candidatassem a expor ali, foi até lá informar-se. A primeira pergunta que ouviu foi: “a senhora faz arte contemporânea?” E ela: “faço, sou uma pintora que busca expressar nossa cultura e nossa vida atual”. Resposta: “Lamento, mas aqui só vamos expor arte contemporânea”. Ou seja, instalações ou coisa que o valha. Não houve qualquer interesse em ver o trabalho da pintora, em avaliar a sua qualidade. O simples fato de ser pintura era suficiente para descartá-la. Mas o que significa isto? Examinemos. Se, pelo contrário, se tratasse de “arte contemporânea”, já estaria aberta a possibilidade de ser aceita. Ou seja, a atitude do responsável por aquela sala de exposições é a de pura e simples adequação ao que está estabelecido como “arte de hoje”, arte aceita e aprovada. Parece piada: depois de um século de irreverência, durante o qual os artistas romperam com todas as normas estabelecidas, em nome do novo, rejeitando o que o Estado e o burguesia aceitavam

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como arte, hoje, uma expressão sem qualquer valor estético tornou-se a arte oficial, acolhida e financiada tanto pelo Estado como pelos bancos e empresas capitalistas. Em face disto, torna-se obrigatório concluir que ou os burgueses de hoje são suicidas e decidiram apoiar a arte revolucionária que visa destruí-los ou essa tal “arte contemporânea”, que se considera herdeira das vanguardas inconformistas do passado, é cobra sem veneno, não ameaça a ninguém, e até mesmo serve para que empresa e Estado se mostrem modernos e “contemporâneos”. Um dos mais importantes espaço culturais do Rio – e dos mais flexíveis – expõe atualmente várias mostras constituídas na maioria de instalações; a maior dessas mostras, que ocupa várias salas, é de um artista que comemora 25 anos de atividade, mas que muito pouco conhecido, fora da turma especializada. Ele nos mostra, nessas várias salas, coisas destituídas de qualquer interesse e real criatividade. E ali tem de tudo: desenhos, fotografias, objetos, que sempre nos lembra outro artista. Em nenhum momento, o visitante é tocado por uma fagulha de emoção ou descoberta. Nada. São muitos metros quadrados de dèja-vu. Uma das salas foi reservada ao que, certamente, o autor reputa a grande obra da mostra: uma instalação que consiste num muro sobre o qual repousa a ponta de uma viga de aço de uns dez metros de comprimento. O que significa aquilo? Talvez houvesse ao lado um texto explicando as maravilhosas ilações que o autor – e somente ele – deve tirar de tão extemporâneo aparato. Mas, a “obra” mesma, o objeto material que temos diante dos olhos, não nos fala, não nos desperta qualquer interesse.


TRADUZIR-SE Peter Macdiarmid/Reuters

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Homem olhando a obra In his Infinite Wisdow, de Damien Hirst, em Londres

Fica-nos, porém, a pergunta: o que leva um artista, possivelmente talentoso, a realizar tal coisa, que implica em muito trabalho, em muito dispêndio de tempo e dinheiro? Não acredito que o autor da obra tenha a intenção deliberada de enganar as pessoas.Trata-se, na verdade, de um equívoco em que mergulhou boa parte dos artistas das últimas gerações. A ruptura com a arte do passado se consumou de fato no Dadaísmo, particularmente em manifestações mais radicais como as de Duchamp e os merzbaus de Kurt Schwitters. Já nos anos 20, o vanguardista Picasso dizia aos outros vanguardistas que era impossível conceber a atividade artística como uma espécie de valetudo. Mas era tarde demais e assim chegamos às manifestações extremadas de “liberdade artística”, como a do sujeito que pôs cocô numa lata, assinou-a e a mandou para uma exposição. Gostaria de citar aqui o que declarou, em entrevista recente à Folha de São Paulo, a ensaísta norte-americana Camille Paglia, internacionalmente conhecida por com-

bater as idéias conservadoras e convencionais no campo da cultura e da vida social. A respeito da arte de hoje, disse: “Tanta gente se dedica aos ‘processos’, aos ‘esboços’, às ‘notações’. É uma atitude egocêntrica, mas que foi perfeitamente aceitável num determinado momento. ‘Não quero fazer obra-prima nenhuma’, proclamam. Tudo bem. Minha vontade agora é dizer: Acordem! Estamos no século 21 e as artes estão perdendo o seu lugar. Vocês têm que brigar pela arte. O jeito de brigar é fazer coisas que durem, querer fazer coisas que durem. E que falem a todo mundo. Precisamos repensar as coisas, começando por descartar o receituário pretensioso da vanguarda. Pelo menos nos EUA, onde ainda é possível um artista como Damien Hirst exibir pedaços de vaca num museu. Teria sido muito interessante há 70 anos. Hoje não faz sentido, é adolescente. Acordem! Vocês estão pelo menos 40 anos atrasados. Já é hora de redescobrir a beleza, o prazer, coisas que têm que voltar ao centro da arte, se quer falar de novo ao público não especial”. • Continente junho 2005


ARTES

Imagens: Divulgação

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Vicente do Rego Monteiro

Síntese de múltiplos talentos Livro realça vários aspectos da personalidade artística do pintor pernambucano, destacando seu trabalho como poeta e artista gráfico Marco Polo

O recifense Vicente do Rego Monteiro, nascido em 1899 e morto em 1970, também no Recife, seis meses antes de completar 71 anos, teve uma vida altamente produtiva, criativa e variada, numa seqüência de atividades de tirar o fôlego. Vivendo grande parte do seu tempo em Paris, para onde foi pela primeira vez aos 12 anos, foi desenhista, gravador, pintor, escultor, poeta, tradutor – o primeiro a divulgar Mallarmé no Brasil –, tipógrafo, diagramador, ilustrador, editor, autor de espetáculos teatrais e radiofônicos, cenógrafo e figurinista. Como agitador cultural, fundou e promoveu diversos salões de artes e congressos de poesia, além de ter sido um Continente junho 2005

dos fundadores do Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco e de ter trazido para o Brasil, pela primeira vez, em 1930, uma exposição com os principais nomes do modernismo europeu: Picasso, Léger, Matisse etc. Suas atuações, entretanto, não se encerram aí. Vicente foi também político e mecânico amador (foi candidato a vereador do Recife e tentou construir um planador), exímio dançarino (ganhou vários concursos de dança), piloto de carros de corrida (disputou, em 1931, o Grand Prix do Automóvel Clube da França), costureiro, excelente cozinheiro, fabricante de aguardente, cineasta, professor, jornalista, crítico literário, radialista e produtor de discos, além de precursor dos movimentos antropofágico e con-


ARTES Livro de poemas e revista Renovação, duas publicações do editor Monteiro

cretista, sendo o único pernambucano a participar da Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922. Apesar de tantas realizações, o nome de Vicente do Rego Monteiro ficou, em definitivo, como o grande pintor que de fato é. E, é claro também que, entre todas as suas atuações, algumas são lembradas apenas para realçar a personalidade múltipla, inquieta e até pitoresca do artista. Mas não se pode ignorar aspectos relevantes de sua atividade, como a de poeta e artista gráfico (que hoje denominaríamos designer gráfico), inclusive porque em alguns momentos estas duas atividades se misturaram com resultados surpreendentes. Foi com o intuito de estudar estes lados paralelos da criação do pernambucano que os artistas plásticos Paulo Bruscky, Jobson Figueiredo e Sylvia Pontual, em parceria com o fotógrafo francês radicado no Brasil, Edmond Dansot, organizaram o livro Vicente do Rego Monteiro – Poeta, Tipógrafo, Pintor. Editado pela Companhia Editora de Pernambuco – CEPE –, com 557 páginas, bilíngüe (português-francês), o volume traz 19 livros de poesia editados por Vicente, além de 30 poemas não publicados, mais cartas e imagens inéditas, como uma raríssima foto Estudo de formas, jogando com o interior e o exterior

do artista quando criança. O livro – que traz depoimentos do próprio Paulo Bruscky, Mário Hélio, Edmond Dansot, Ypiranga Filho, Gilberto Freyre, Edson Nery da Fonseca, Milton Lins e Sebastien Joachin –, vem acompanhado por dois CDs com a gravação de poemas e programas de rádio de Paris e Grenoble, na voz de Vicente do Rego Monteiro. Por ocasião do seu lançamento, no Palácio das Princesas, no Recife, cada exemplar virá acompanhado por uma garrafa de aguardente Pitu Gold, com o rótulo da Caninha Cristal, produzida por Vicente. A idéia inicial do projeto surgiu em Paulo Bruscky, quando ainda trabalhava como pesquisador para Walter Zanini, autor de Vicente do Rego Monteiro - Artista e Poeta, que foca com bastante ênfase o artista plástico. Paulo achou que poderia fazer outro trabalho, explorando mais

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ARTES Imagens: Divulgação

Vicente pinta sua última tela em seu ateliê, na quitinete do Edifício Holiday, onde viveu seus últimos dias

o poeta e suas outras manifestações artísticas. “Vicente era tão criativo que chegou a antecipar a ‘arte postal’, sendo também um dos pioneiros da poesia visual”, conta. Além do poeta e do designer, outros aspectos abordados pelo livro são o de ilustrador prolífico e altamente criativo, indo do desenho linear até um grafismo expressionista; suas experiências com a abstração; seus estudos sobres os heróis de Pernambuco; e, finalmente, seu trabalho como editor, mais uma vez pioneiro ao antecipar os experimentalismos depois desenvolvidos pelo Gráfico Amador no Recife. Enquanto pintor, Vicente do Rego Monteiro encontrou seu estilo próprio ao unir técnicas do Cubismo com seus estudos do artesanato indígena amazonense Mara-

Trabalho e religiosidade, dois temas constantes

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De um modo geral, tanto em sua pintura quanto em seus poemas,Vicente do Rego Monteiro procurou fundir os dois mundos onde vivia, o brasileiro e o europeu

joara, numa fusão do primitivo com o sofisticado e do passado com a vanguarda. Como poeta, por ter escrito a maior parte dos seus textos em francês, recebeu os prêmios Mandat de Poètes, em 1955, e o Prix Apollinaire, em 1960. Foi incluído no Livre d'Or da poesia francesa, editado por Pierre Seghers, importante editor francês, em 1969. É, ainda, citado por Gaston Bachelard no livro La Poétique de L’Espace, possuindo, também, verbete no Dicitionnaire de la Poésie Française Contemporaine, editado pela Larousse, em 1968. Seu primeiro livro, entretanto, é escrito em português. É Poemas de Bolso, de 1941, onde já está presente o famoso “Poema 100% Nacional”, que Bruscky julga ser o primeiro poema tipográfico feito no Brasil. De um modo geral, tanto em sua pintura quanto em seus poemas, Vicente do Rego Monteiro procurou fundir os dois mundos onde vivia, o brasileiro e o europeu. Suas propostas artísticas revelam um antiprovincianismo nato. Recusa-se a reverenciar subalternamente a sabedoria dos mestres da vanguarda européia, introduzindo


ARTES nela a “sabença” dos índios brasileiros, ao mesmo tempo em que traz para o Terceiro Mundo as lições de sofisticação artística e intelectual que colheu lá fora. Consegue, assim, uma síntese ímpar que o coloca em pé de igualdade com os pintores do circuito francês ao mesmo tempo em que o deixa em destaque entre seus pares do modernismo brasileiro. Talento precoce, Vicente do Rego Monteiro participou do Salão dos Independentes em Paris, com apenas 14 anos.

Vicente do Rego Monteiro – Poeta, Tipógrafo, Pintor, vários autores, Cia. Editora de Pernambuco – CEPE, 557 páginas, R$ 130,00. Lançamento: dia 9 de junho, às 19h30, no Palácio das Princesas. Praça da República, Recife.

Artista visionário, quando professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Pernambuco, em 1968, defendia a inclusão da fotografia, do cinema e da televisão no ensino da arte. Apesar do temperamento dionisíaco e da produtividade exuberante e variada, era um racionalista rigoroso, que não confiava exclusivamente na inspiração. Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, do Rio de Janeiro, esclareceu: “Construo um quadro como se construísse uma casa”. •

Palavra e imagem Pesquisadora paulista analisa a obra poética de Vicente do Rego Monteiro, mostrando os pontos de diferença e semelhança com sua pintura

O

livro Vicente do Rego Monteiro: Um Brasileiro da França, assinado pela doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, Maria Luiza Guarnieri Atik, lançado no Recife em dezembro de 2004, também procura abordar a produção poética do artista pernambucano, cotejando-a com sua obra pictórica e com o panorama cultural vigente na França e no Brasil durante seu tempo, ressaltando sua singularidade. A autora destaca as atividades de Monteiro como editor, tradutor, promotor de eventos e, principalmente, como poeta. Para ela “embasada na tradição mallarmeana e na ironia temperada de Max Jacob, a poesia de Rego Monteiro extrapola o nível puramente lingüístico, revelando a natureza icônica do signo poético”. Ela ressalta ainda que “o caráter visual de seus poemas nos é sugerido ora pela diagramação do seu conteúdo na superfície do papel, ora pelo jogo entre as palavras no nível do significante”. Acrescenta, finalmente que “o jogo de aproximações e contrastes, entre linguagens tão diversas no tempo e no espaço, leva-o a uma série de experimentações no campo poético. A tipologia funcional, a sintaxe visual como elemento estrutural do poema, a concisão, a renúncia à ordem objetiva e lógica em favor das analogias e das forças sonoras da linguagem, a justaposição e a simultanei-

Rapto de Europa, interesse pela mitologia

dade de imagens são alguns dos parâmetros implícitos na construção dos poemas”. Ao traçar as diferenças e semelhanças entre poesia e pintura no artista, Maria Luiza cita estudo de Leyla Perrone-Moisés, que diz “de modo geral, o aspecto solene e perene de seus quadros contrasta com o caráter brincalhão e efêmero de sua poesia. Mas se não nos limitarmos aos significados, veremos que um mesmo rigor caracteriza sempre seus quadros e poemas”. (MP) • Vicente do Rego Monteiro: Um Brasileiro da França, Maria Luiza Guarnieri Atik, Editora Mackenzie, 221 páginas, R$ 50,00.

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ARTES

Oratório da Mulher (1980-1982) À esquerda, abaixo, Cimitarra (1978)

Universo belo e opressivo

Imagens: Divulgação

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O Centro Cultural Banco do Brasil, de São Paulo, comemora quatro anos com uma grande mostra das obras de Farnese

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arnese de Andrade é um destes artistas atemporais que a crítica tem dificuldades em classificar. Charles Cosac, curador da maior mostra do artista – 130 obras – atualmente em exibição no Centro Cultural Banco do Brasil, de São Paulo, reconhece que o mineiro “não pertenceu, tampouco gerou um estilo, uma escola ou um movimento”. Seu trabalho é personalíssimo. Contemporâneo do conterrâneo Amílcar de Castro que, como ele, freqüentou a escola de Guignard, enveredou por um processo de arqueologia íntima e mórbida, ao contrário deste, cuja obra se realiza na racionalidade objetiva e solar. Foi enquanto exercitava a gravura em metal, no início dos anos 60, que começou a percorrer a praia de Botafogo, no Rio, para onde se mudara, procurando pedaços de madeira e borracha com os quais poderia obter texturas abstratas. A praia, na época, era, segundo ele, “um maravilhoso receptáculo de lixo”. Ao juntar esses pedaços de matéria, ao acaso, descobriu a assemblage – acumulação de elementos que, mesmo sem perder seu sentido original, produzem um novo sentido –, a linguagem ideal para o que, obscuramente, queria dizer. “Um dia, a base de um possível móvel em estilo antigo, um ovo de madeira daqueles de costura, uma cabeça de santo de gesso e uma bola de gude se juntaram, e ‘aconteceu’ o meu primeiro objeto”, conta ele.

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ARTES

Viemos do Mar (detalhe), 1988. Abaixo, Anunciação, 1982

No final da década, “já estava percorrendo os bricabraques do centro da cidade, os depósitos de material de demolição, os cemitérios de navios e até antiquários, quando passei a me interessar pelos oratórios rústicos e pelas caixas antigas, fechadas e misteriosas”. Uma forte tendência litúrgica ordena sua obra, ao lado de um viés perverso que a torna francamente perturbadora. Cabeças de bonecas quebradas ou queimadas, anjos sentados sobre parafusos, fotos antigas boiando como fósseis em resina transparente, ossos de animais, grandes pregos de ferro retorcidos e madeiras carcomidas, tudo isso com fortes referências ao sexo e à violência, à vida e à morte, forma o universo fechado, opressivo e, no entanto, belo, de Farnese de Andrade. Temperamento difícil e recluso, o artista nunca soube, ou quis, administrar sua carreira. Vendia pouco e chegou até a ser esquecido, após sua morte aos 70 anos, ocorrida em 1996. Esta exposição, em comemoração aos quatro anos de existência do Centro Cultural Banco do Brasil, de São Paulo, chama de novo a atenção para a obra de Farnese, que ainda espera ser definitivamente reconhecido como um dos grandes artistas brasileiros do nosso tempo. • (MP)

Centro Cultural Banco do Brasil – Rua Álvares Penteado, 112, Centro – São Paulo – SP. Fones: (11) 3113 3651 e (11) 3113 3652.

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ARTES

Tiago Amorim Partindo da “destruição” da forma conhecida, Tiago Amorim recria a figura reinventando seu universo, dando à dimensão humana da memória a realização superior da arte Weydson Barros Leal

A vocação do telúrico


ARTES

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Fotos: Flávio Lamenha

iago Amorim é um artista até as entranhas. É pintor, desenhista, escultor, ceramista, entalhador, gravador e pesquisador de arte. Já foi imitado e copiado, mas inspirou e ensinou suas artes a quem quer que dele se aproximasse em busca de aprendizado. Por isso, a cópia ou a imitação é o que ele mais repudia. Pensa a arte como criação e invenção, mas também como modo de vida. Avesso a badalações em torno de seu trabalho, é recluso, monástico, ao mesmo tempo em que se abre para o mundo como professor e orientador de crianças, adolescentes e adultos que recebe, em sua casa-ateliê, em Olinda, para aulas de modelagem. Seu aprendizado da arte iniciou-se quando ainda era muito jovem, em cursos sempre interrompidos por uma inquietude que não lhe permitia atender ao rigor das disciplinas. O despertar definitivo para a cerâmica se deu entre os anos de 1959 e 1960, após suas primeiras visitas a Tracunhaém, um dos mais importantes celeiros de artesãos e artistas do barro em Pernambuco. Até aí, explica Tiago, “eu modelava pelo simples prazer de modelar, mas ainda não tinha uma identidade com a forma”. Mas ressalta que, mesmo depois, quando seus trabalhos já possuíam essa identidade, a busca da forma encontrou suas chaves no desenho da arte popular. A questão, no entanto, não é simples. Tiago Amorim tem um forte conhecimento da arte erudita, acadêmica, além de conhecer boa parte do pensamento ocidental religioso e filosófico, através de sua formação monástica. Por dois anos e meio, entre 1962 e 64, estudou no Mosteiro de São Bento, em Olinda. Por pouco não se tornou monge ou padre. Desde então, assim como fez com alguns dogmas da igreja católica, assumiu uma postura picassiana diante da grande arte: “Eu acho o acadêmico interessante, mas acho que a partir do acadêmico você tem de destruir e reconstruir tudo...” Por ter freqüentado a Escola de Belas Artes, quase de passagem, onde por pouco tempo conviveu com artistas como Reynaldo Fonseca e Mestre Severino, Tiago confessa que seu aprendizado se deu no fazer, na observação de outros mestres e das formas da natureza, na busca de algo que estivesse na planta, no bicho, mas que se renovasse dentro de seu universo inventivo, cerebral. Nunca foi à Europa, mas isso, diante de suas obras, de suas reflexões e principalmente dos objetivos que essas obras alcançam, não teve, para ele, maior importância. Suas viagens mais marcantes não foram a cidades ou países, mas ao entendimento da forma, ou à busca infinita de uma forma sempre inalcançável. Obras dos mais importantes artistas ocidentais, como Picasso – uma de suas referências –, ele apenas viu nas Bienais de São Paulo, cidade onde morou por dois anos, de 1966 a 1968, após ter participado, ao lado de Maria Carmen e Anchises Azevedo, da VIII Bienal, em 1965. Reflexivo, afirma: “Cultura é memória...”. Tiago Amorim parte de formas da natureza para desenvolver o imaginário

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ARTES A sensualidade feminina e os bichos são dois temas constantes Na página seguinte, exploração do desenho, da cor e da vitrificação

Não obstante, a memória a que se refere em seu axioma não é a da recordação, mas a do inconsciente, algo mais profundo, que está na raiz de nossa ancestralidade. E exemplifica: “Veja mestre Nuca, de Tracunhaém: enquanto todos os artesãos faziam santos, ele fazia uns leões que tinham todo um referencial com a Etrúria, com as formas etruscas de modelagem, e isso sem ter nenhuma informação. Um outro exemplo é Antônia Leão, também de Tracunhaém, que fazia umas damas de saias arredondadas, que são as demoiselles de Velásquez. Toda vez que eu via Velásquez, eu via Antônia Leão.” Também devido ao seu jeito particular de pensar e ver o mundo – municiado por todas as leituras bíblicas e um entendimento bastante claro da filosofia universal –, Tiago parece sempre disposto a refletir sobre seu ofício sem perder o referencial da vida, dos sentidos da vida, e dos meios que esses sentidos encontram para se expressar em arte. Sua busca é a da “identidade com a expressão popular”, ele afirma, mas não deixa de ser sofisticado esse elo telúrico entre o artesão e o pensador que não cansa de querer saber “que importância tem tudo isso, que importância tem cada minuto, cada coisa”. O seu discurso e sua visão, apesar de todo ecletismo de leituras e citações, são primordialmente cristãos, mas “de um Cristo cósmico, de um Jesus telúrico”, ele enfatiza, dissociando-os de qualquer vertente que se diga católica. Há, finalmente, uma modesta reserva quando perguntamos se até hoje ele lê filosofia: “São iniciações”... Quando fala sobre arte, Tiago é analítico: “Arte é ação, e por isso ela dá a você uma seqüência de transformações. É preciso apreendê-las e vivenciá-las”. Perguntado se, como artista, se sente mais ceramista do que pintor, ele responde humorado: “Sei que sou ótimo cozinheiro”, e se diverte com a frase enigmática. Mas logo completa: “Os artistas que trabalham com o barro não gostam de ser chamados de artesãos, mas tudo vem de ‘artesania’. Acho que todos fazemos um tanto de arte, um tanto de trabalho manual e outro tanto de artesananto. Talvez sejam coisas distintas, mas estão entremeadas.” Sobre seu ofício de ceramista, Tiago faz uma análise curiosa: “O meu trabalho de ceramista é

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ARTES mais desavergonhado. Eu consigo criar cerâmicas com o ateliê cheio de gente, com todo mundo junto, mas não consigo pintar um quadro se tiver mais de uma pessoa por perto”. E continua: “Acho o ato da cerâmica mais catártico; a pintura é mais intimista, mais fechada, embora a considere mais objetiva...” Isso tudo explica sua predileção, ainda que não totalmente confessada, pela arte do barro, que constitui a maior parte de sua produção artística. Sua obra cerâmica – cuja mostra mais recente, depois de 27 anos sem expor individualmente, está em cartaz na Galeria Arte Plural, no Recife –, ele divide entre Zoomorfia e Antropomorfia: a classificação engloba todos os bichos e figuras que, a partir de suas formas orgânicas, ele transforma em esculturas que, vivas em sua autonomia de obras de arte, alcançam o sonho de seu criador. Partindo da “destruição” da forma conhecida, Tiago Amorim recria a figura reinventando seu universo, dando à dimensão humana da memória, a realização superior da arte. Com relação aos trabalhos apresentados nesta exposição, Tiago considera o conjunto de peças “um divisor de águas” em sua obra, na qual se dará uma espécie de “catarse”, e que a partir dessa mostra irá proporcionar “uma grande virada em sua cerâmica”. Se a profecia vai se realizar, só o tempo e as próximas aparições de suas obras dirão. Até lá, Tiago afirma que voltará ao refúgio silencioso de reflexão e trabalho, que é seu ateliê em Olinda, sempre a uma distância segura das fogueiras das vaidades que, muito amiúde, a arte acende nas cabeças sem transcendência. Como um Prometeu inspirado, a fogueira que até hoje ele alimenta é a dos fornos em brasa, diante dos quais espera, paciente, o nascimento de suas cerâmicas. •

Exposição de cerâmicas de Tiago Amorim Espaço Arte Plural – Rua da Moeda, 140, Recife Antigo. Fone: (81) 3424-4431. Até 30 de Junho.

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AGENDA

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ARTES

Ensinando arte Escolinha de Arte do Recife comemora 52 anos com mostra e revitalização do espaço

Tela de Gil Vicente, ex-aluno

Cenário de importantes exposições individuais e coletivas e berço de nomes artísticos expressivos, a Escolinha de Arte do Recife fez 52 anos. Para comemorar a nova idade, os feitos artísticos e revitalizar o espaço, a Escolinha está organizando uma exposição com obras de 55 artistas, entre eles Francisco Brennand, Abelardo da Hora, Paulo Bruscky, João Câmara, Gilvan Samico e Gil Vicente (ex-aluno). Fundada em março de 1953, a entidade oferece cursos de desenho, pintura (também em tecido),

Humor do papel às ruas Se você decidir ir ao Bairro do Recife e um ator com cartuns estampados na camisa o abordar, não estranhe. É que, de forma bem-humorada, o VII Festival Internacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco vai convidá-lo a conferir a mostra na Torre Malakoff. O principal convidado do VII FIHQ é o francês Jano (Jean Le Guay), que terá alguns de seus desenhos compilados na exposição Jano, o Viajante do Traço, na qual retrata sua relação com o Brasil através de cenas do Rio de Janeiro. A programação também inclui concurso, exposições, mostras de filmes de animação, oficinas, palestras e debates. Biratan Porto, Paulo Emmanuel e Renato Alarcão estão entre os brasileiros convidados. Marcado pela descentralização, o Festival deste ano estará acontecendo também na Casa da Cultura, Teatro Arraial e pelas ruas do Bairro do Recife. Charges, cartuns, caricaturas e quadrinhos imprimem o risível nos vários cenários do evento, promovido pelo Governo do Estado/Fundarpe. VII FIHQ. Torre Malakoff, Casa da Cultura, Teatro Arraial e Bairro do Recife. Até 3 de julho. Informações: 81.3424.8702/3134.3005 Continente junho 2005

Obras de Abelardo da Hora estão à venda

gravura, dobradura, escultura (ferro, bronze, pedra, alumínio e mosaico), dança (popular, alongamento, salão e yoga), música, modelagem e restauração em santos, sempre permeados pela discussão da arte e do fazer artístico, já tendo formado pessoas como José Patrício, artista conceitual; e Guel Arraes, que faz televisão e cinema com arte. Escolinha de Arte do Recife (Rua do Cupim, 124, Graças. Tel: 81.3222.0050). Exposição até 17 de junho. Funcionamento diário.

Solidão a dois Você Não Está Sozinho é o nome da mostra individual que Caio Reisewitz, único fotógrafo brasileiro a participar da 26ª Bienal de São Paulo (2004) e participante da 51ª Bienal de Veneza, apresenta na Galeria Brito Cimino. As cinco (porque gigantescas) fotografias foram selecionadas com o objetivo de permitir uma leitura pontual do trabalho do artista. Reisewitz é um nômade urbano que prima pelo olhar e imprime certa nostalgia às suas obras, enredando a paisagem ao seu redor e trazendo o tempo para a imagem. A mostra vem para o Recife ainda este ano. Você Não Está Sozinho. Galeria Brito Cimino (Rua Gomes de Carvalho, 842 - Vila Olímpia, São Paulo. Tel: 11.3842.0635/0634). Até 16 de julho.

Grafias As ciências sociais da geografia, da cartografia, entre outras que teorizam e disciplinam a existência humana, reúnem os artistas Alice Vinagre, Malu Fatorelli, Felipe Barbosa, Rosana Ricalde, Flávio Emanuel, José Rufino, José Paulo e Rodrigo Braga na exposição Umas Grafias, da Galeria Amparo 60. Os artistas abordam o conhecimento científico, ao mesmo tempo em que transcendem o rigor da ciência. Umas Grafias. Galeria Amparo 60. Informações: 81.3325.4728.


53 Hans Manteuffel

SOCIOLOGIA

Ponte de Paulo Afonso

Sumidouro em espanhol Fundamental para a interpretação do Brasil, livro sobre as origens dos conflitos no Vale do São Francisco, do sociólogo Abdias Moura, é traduzido na Argentina

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Marcella Macêdo Sampaio de Souza

Abdias Moura, O Sumidouro do São Francisco, que se supunha tão absolutamente particular, carregado de marcos referenciais tão específicos quanto pode ser o Sertão do Brasil, terra desconhecida e distante até mesmo para nós, habitantes das metrópoles nordestinas? comunidades”. Em sua obra mais conhecida, agora traduzida para o A partir das palavras de Julia Kristeva, percebemos o quanto é tênue a fronteira que resguarda nossas idiossin- espanhol, o sociólogo e escritor pernambucano Abdias crasias geográficas, lingüísticas e culturais da mescla Moura, autor de diversos títulos, entre eles os romances complexa que nos torna parte, todos, da mesma comuni- A Descoberta da Harpa, Os Desamores de Benedicto e O Sedade humana, compartilhando das suas mesmas mara- gredo da Ilha de Pedra, oferece explicações e analisa os vilhas e desgraças. O que dizer então, do trabalho de conflitos gerados na formação do Brasil a partir de matizes estrangeiro começa quando surge a consciência da minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às

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Rio São Francisco: tema do livro de Abdias Moura

“Para ser fiel é preciso aprender a ser um pouco infiel, historiográficas, antropológicas, sociológicas e, surpresa das mais agradáveis, poéticas. Segundo ele mesmo, em desencaixado da significação da generalizabilidade culprefácio, a obra particulariza, na contramão das tendên- tural”, diz Homi Bhabha, afirmação que cabe perfeitacias globalizantes atuais. Ao mesmo tempo, essa caracte- mente à tradução do livro de Abdias Moura. A fidelidade aos objetivos da obra está, justamenrística é que a torna universal, e, a partir te, na fuga da literalidade, que Madrazo daí, passível de correr mundo e de ser tão bem soube fazer ao longo do texto. compreendida por diversas e distintas culUma das características mais interesturas. Traduzido para o espanhol por Jorsantes do trabalho feito por Madrazo está ge Ariel Madrazo, o livro editado no Brana tradução dos poemas e pequenos tresil pela Tempo Brasileiro está sendo lanchos de citações literárias que Moura utiçado em terras argentinas. Com suas parliza para abrir os capítulos de seu livro. Se ticularidades de sentido, a obra, pensou o a própria escolha dos versos daria uma anáautor a princípio, seria de difícil tradução. lise bastante rica, já que eles dialogam, sem O deslocamento dos significados, entreobviedade, diretamente com os escritos tanto, realizado com competência pelo traque vêm logo a seguir, a sua tradução para dutor, ampliou, ao invés de restringir, o o espanhol reflete o preciosismo e o carinho alcance de O Sumidouro... Continente junho 2005


Roberto Pereira

Juarez Cavalcante

SOCIOLOGIA

Abdias Moura: livro traduzido para o espanhol e lançado na Argentina

do tradutor para com a obra. Palavras características da cultura particular nordestina do Brasil foram preservadas em sua essência, sem perder o lirismo que as eleva à categoria de texto poético ou literário. Na página 143 do livro, por exemplo, há um trecho do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que diz: “... era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. (...)”. Madrazo troca “cabra”, que em idioma nordestinês possui matizes que variam de cor, embora sempre carregadas de preconceito de classe, por mestizo. Mais adiante, percebemos que mestizo é melhor escolha que cabrón, por exemplo, quando Graciliano continua: “embora branco (...) encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra”. Mestizo mantém a poeticidade do texto e segue fiel ao sentido que o autor lhe quis dar. João Cabral de Melo Neto, escultor das palavras, tão nordestino quanto sevilhano, provavelmente ficaria sa-

tisfeito com a versão castelhana de seus versos. “Faz alto à beira daquele leito-tumba” transformou-se em “Queda a la orilla de aquel lecho-tumba”. E quem há de discordar que a expressão a la orilla cria imagens até mais líricas e poéticas no imaginário do leitor do que o nosso “à beira”? A tradução do corpo do texto de Moura segue com este mesmo cuidado, de fazer-se entender sem decepar o sentido, pelo contrário; a idéia predominante que se percebe é a tentativa de aproximar a realidade brasileira do futuro leitor argentino, ao final, irmão latinoamericano, que está aprendendo, aos pouquinhos, a se orgulhar desta condição. O cinema que se faz lá no momento é prova desta afirmativa – mas esta já é uma outra história. O livro de Abdias Moura, assim como sua tradução, busca o orgulho, ao invés da vergonha; a afirmação, ao invés da negação. Diz Antônio Carlos Nóbrega, em verso da canção “Chegança”, que fez com Wilson Freire: “E assustado, dei um pulo lá da rede, pressenti a fome a sede, eu pensei: ‘vão me acabar’. Me levantei de borduna já na mão. Ai, senti no coração, o Brasil vai começar”. E começou. • Continente junho 2005

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SABORES PERNAMBUCANOS

Marizilda Cruppe/O Gslobo

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Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

A amarga doçura do chocolate (Final)

“Come chocolates, pequena; olha que não há metafísica no mundo senão chocolates.” Fernando Pessoa (“Tabacaria”)

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deus asteca Quetzalcoatl, a “serpente emplumada”, subiu aos céus em direção às estrelas. Tendo o cuidado de deixar cacahuaquchtl, de presente para seu povo. Cortês levou à Europa aquelas sementes de cacau, tão apreciadas por todos os povos da América Central. Acabaram virando moda, por lá. De bebida, o chocolate passou a ser também consumido em barras, após longo processo de aprimoramento. Disso falamos, de abril. Falta agora completar o currículo da plantinha de Quetzalcoatl. A árvore vive mais de 100 anos. Delicada, frágil até, pede solo fértil e chuvas regulares. Cresce até 12 metros. Aprecia sombra de árvores maiores. Folhas, verde escuras e brilhantes, vão a 40 cm. Flores pequenas, brancas ou rosa-claro, brotam dos galhos e do próprio tronco. Frutos, esverdeados ou amarelados (dependendo do grau de amadurecimento), chegam a 25 cm de comprimento. Sementes, cerca de 50 por fruto, se misturando a uma polpa viscosa e esbranquiçada. Chocolate é produzido a partir dessas sementes. As mais caras, usadas na fabricação dos melhores chocolates, são criolla e arriba – de sabor fino e delicado, nativas da América Central. A seguir vêm a “forasteira” – de sabor mais forte e amargo, produzida no Brasil e na África. Havendo ainda umas poucas híbridas, de qualidade inferior. Chocolate pode ser, basicamente, de três tipos: amargo (ou puro), considerado pelos entendidos, o verdadeiro chocolate – mais escuro, mais forte e menos doce; ao leite – doce e mais suave; e branco – feito de manteiga

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de cacau pura, açúcar, baunilha e leite, bem mais gorduroso que os outros. Apresentados em pó, barra, tablete, lasca, gota, granulado, pasta, floco. Também como bebida, dissolvido em leite quente ou frio. Os argentinos têm inclusive o hábito de dissolver uma barra do chocolate amargo em leite quente, fazendo um (por eles muito apreciado) “submarino”. Sobremesas, muitas: sorvete, mousse, creme, bolo, torta, pudim, biscoito, recheio, cobertura, calda, bombom. Com destaque especial para profiteroles (bombinhas recheadas com creme ou sorvete e regadas com calda quente de chocolate), petit gâteau (bolinho quente de chocolate acompanhado de sorvete e de calda quente), poire belle Helène (sorvete de creme, compota de pêras e calda de chocolate), torta imperial (feito em várias camadas muito finas, e que tem esse nome porque feita, pela primeira vez, no Hotel Imperial de Viena), sachertorte (bolo de chocolate embebido em creme de damasco, que tem origem no Hotel Sacher de Viena – basta sentar na mesa do café que um garçom a coloca em seu prato). E brigadeiro, presença obrigatória em todos os aniversários de crianças. Ganhou nome em homenagem ao brigadeiro Eduardo Gomes. Há duas versões para isso. Na primeira, o brigadeiro apenas distribuiria esse doce entre seus eleitores, na campanha presidencial de 1945 (contra o General Eurico Dutra). Na segunda, mais maldosa, assim é pela ausência de ovos na receita desse doce. Dado que o brigadeiro os perdeu em razão de estilhaços, no combate com as forças legalistas – em episódio conhecido como “os 18 do forte”. Essa versão


SABORES PERNAMBUCANOS é reforçada pelo fato de que nosso estimado brigadeiro morreu solteiro com 84 anos. E sem filhos. Esse chocolate pode ser também usado em pratos salgados, que foram ganhando referência popular pelo mundo: México – pollo com mole poblano (galinha, amendoim torrado, creme de gergelim, chille, pimenta do reino, alho, tomates e generosas quantidades de chocolate) e mole poblano de guajolote (cozido de peru com molho de chocolate); Itália – fígado frito ensopado no chocolate, sopa de chocolate, pudim de chocolate com vitela, tutano com frutas cristalizadas e polenta de chocolate; Espanha – lagosta em calda de chocolate (prato muito apreciado por Salvador Dali); Brasil também, onde o hábito é mais recente – filé de linguado ao coco e chocolate branco, com kiwi assado (criação de Bertrand Bovier, para o Caesar Park do Rio de Janeiro) ou fetuccine de chocolate, feito pela fábrica Cadoro, aqui de Pernambuco, acompanhado de molho à base de raiz-forte (criação de Emannuel Bassoleil). Cada país tem suas preferências, em matéria de chocolate. França prefere o escuro amargo, de sabor forte; Espanha, o picante recheado com amêndoas e frutas secas. Itália, com avelãs, amêndoas ou castanhas; Grã-Bretanha carrega no sabor de baunilha; Estados Unidos e Brasil preferem chocolate ao leite, com amendoim ou amêndoas. Os fabricantes se espalham pelo mundo. Suíça – Lindt&Sprüngli, Suchard (desde 1970 fabricante das famosas barras Toblerone); Bélgica – Neuhaus, Godiva, Charlemagne; França – Bernachon, Bonnat, Cluizel, Christian Constant, Fauchon, La Maison du Chocolat, Le Roux, Michel Chaudin, Richart Design, Valrhona; Holanda – Van Houten, Bensdorp, De Zaan, Gerkens, Droste; Alemanha – Heinemann, Dreimeister, Feodora, Hachez, Leysieffer, Stollwerck, Altmann&Kühne, Mirabell; Itália – o Caffarel, Majani, Perugina; Espanha – Blanxart, Ludomar, Ramón Roca, Valor; Inglaterra – Ackermans, Bendicks of Mayfair, Charbonnel et Walker, Gerard Ronau, Green and Black’s, a Rococo, Sara Jayme, Terrys; Estados Unidos – Dilettante, Fran’s, Joseph Schmidt, Moonstruck. E Brasil, claro – Garoto (incorporado pela Nestlé), Nestlé, Lacta, Kopenhagen, chocolates de Gramado e de Campos de Jordão. O mais caro é o italiano Amedei Porcelana (180 dólares o quilo); seguido dos franceses Michel Cluizel (80) e Valrhona Chuao (60), do também italiano Slitti (70) e do venezuelano El Rey (40). Além de muito saboroso, chocolate faz bem à saúde. Assim provaram estudos feitos em Israel e nos Estados Unidos. É rico em cálcio (fortalece dentes, ossos, unhas

e cabelos), potássio (regulariza contração e relaxamento dos músculos), magnésio (aumenta a produção de neurotransmissores que acalmam ansiosos), seretonina (regulariza o sono), alcalóides (efeito diurético) e gorduras (que diminuem o mau colesterol – LDL). Carboidratos também – cada 100 gr de chocolate corresponde a 6 ovos ou a 3 copos de leite ou 220 gr de pão ou 750 gr de peixe ou 450 gr de carne bovina. E fenilotilamina – substância produzida, naturalmente, pelo cérebro de quem está apaixonado. Sua reputação afrodisíaca vem desde os tempos dos astecas. Montezuma tomava até 50 vezes por dia, para dar conta do seu harém. Casanova considerava chocolate “elixir do amor”. O escritor Brandon Head (The Food of the Gods – 1903) diz que “o chocolate era um ‘violento inflamador’ de paixões”. Mas todo cuidado é pouco. Porque chocolate, provaram os estudos, vicia. Principalmente as mulheres. O tema até mereceu livro (Why Women Needs Chocolate), de Debra Waterhouse, que considera cacau como o “prozac das plantas”. A mais antiga e famosa chocólatra de que se tem registro histórico é dona Maria Tereza, mulher de Luís XIV. Enquanto o rei se divertia com damas da corte, entre elas mademoiselle Vallière (1661) e mademoiselle Montespan (1668), a rainha passava as noites comendo chocolate. E vivia feliz. O processo de fabricação de chocolates, em essência, reproduz velhas técnicas astecas; e foi se aprimorando, ao longo do tempo: Colheita – de maio a dezembro. Para saber se está no ponto, o colhedor bate no fruto com o cabo da faca; devendo ser colhidos apenas aqueles que fazem um som abafado. Fermentação – as sementes, junto com a polpa, ficam abafadas em depósitos de madeira por 6 dias. Secagem – depois de fermentada, é espalhada em esteiras de bambu ou madeira, sob o sol. Sem que se tenha explicação científica para o fato, até hoje, certo é que o pó de cacau de melhor qualidade vem daquelas sementes que secam naturalmente, sob o quente sol tropical. Depois de secas, são ensacadas e enviadas às fábricas de chocolate. Nas fábricas, o processo de beneficiamento das sementes continua: Classificação – são aproveitadas apenas as sementes sem defeito. Limpeza – feita em máquinas especiais, que lavam e escovam as sementes selecionadas. Torrefação – fase em que são secadas, para facilitar o descasque e realçar aroma, sabor e cor. Descascagem – fase em que são eliminadas as cascas. Continente junho 2005

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SABORES PERNAMBUCANOS – Por fim, lembre que chocolate não combina com Combinação – o chocolateiro mistura diferentes tipos de sementes, para chegar ao tipo de chocolate vinho. Melhor acompanhar com café, conhaque, uísque, que deseja. Essas fórmulas são segredos guardados licor de laranja ou Porto. • por gerações. Moagem – os grãos são transformados em pasta, depois prensada para retirar a manteiga de cacau. O RECEITA: resultado desse processo é o cacau em pó – presente em chocolates líquidos e achocolatados instantâneos. Para fabricação do chocolate propriamente dito, o cacau em pó ainda passa por diversas outras etapas: Malaxação – adiciona-se açúcar, manteiga de cacau e leite. Refino – tudo é novamente prensado. Conching – máquinas, em forma de concha, remexem o líquido por sete dias, dando à mistura firmeza e brilho. Durante o processo se acrescenta baunilha, canela, cravo; e, novamente, manteiga de cacau, para definir a qualidade do chocolate. Chocolates inferiores substituem essa manteiga de cacau por ingredientes menos nobres (e mais baratos) como gordura hidrogenada, margarina, óleo de coco ou dendê. Têmpera – o chocolate passa do estado líquido para o sólido, através de um processo de cristalização. Modelagem – o chocolate é colocado em moldes. Resfriamento – os moldes são colocados em câmeras com 10º, após o que são “retirados dos moldes” e “embalados”. Alguns conselhos para quem vai usar chocolate, nas PETIT GÂTEAU receitas: – Na hora de comprar, escolha o de cor marrom briINGREDIENTES: 5 ovos, 400 gr de chocolate lhante, com consistência uniforme. Sem grumos, sem meio amargo picado, 150 gr de manteiga sem bolhas e sem pontos brancos. sal, 150 gr de açúcar de confeiteiro, 1/3 de xícara de farinha de trigo, sorvete de baunilha. – Nunca misture chocolate com água (altera textura e CALDA: 200 gr de chocolate ao leite (picado), 50 sabor) ou ovo (por ele ter água em sua composição). ml de creme de leite fresco, 20 gr de manteiga. Umidade e calor são os maiores inimigos do chocolate. – Nunca derreta o chocolate diretamente no fogo. PREPARO: Prefira fazê-lo em banho-maria. Bata as claras em neve e reserve. Derreta, em – Depois de derretido, despeje o chocolate sobre subanho-maria, chocolate, manteiga e açúcar. do perfície de mármore e trabalhe com espátula, mexendo, fogo. Acrescente as gemas, mexendo sempre. Junte farinha de trigo peneirada e claras em neaté que incorpore (em torno de 26º). Acrescente esse ve. Mexa, delicadamente, em movimentos de chocolate resfriado ao restante e misture, para homobaixo para cima. Coloque a massa em formas geneizar. individuais, untadas com manteiga e polvilha– Chocolates brancos (por serem mais gordurosos) das com trigo. Asse em forno pré-aquecido, por devem ser trabalhados em temperatura mais baixa. 10 minutos. O interior do bolo fica úmido e pou– Na hora de guardar, escolha lugar escuro, seco e co assado. Derreta todos os ingredientes da calda, em banho-maria. Arrume o bolo no centro fresco. Se for por muito tempo, melhor usar freezer – por do prato. conservar gosto, forma e textura. Até 4 meses. Nesse caso, Coloque junto uma bola de sorvete. Cubra com embrulhe em papel alumínio e vede em saco plástico – a calda quente. E sirva imediatamente. porque ele absorve o cheiro e o gosto de outras comidas. Barbara Wagner/Lumiar

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Anotações de uma viagem remota: o repórter diante do menino oleiro

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oleiro tem apenas quinze anos de idade: é magro – de ossos apontando sob a pele. São sete horas da manhã, faz frio, mas ele está ali desde a madrugada, diante do barro que suas mãos vão agilmente transformando em rudes tijolos. Seu artesanato começa antes do sol, vai até o meio-dia, recomeça às duas, termina com a noite. Ao final da jornada, o frágil artista da argila terá produzido mil tijolos que não lhe renderão quase nada. Se a produção cai, o salário do dia míngua – e daí o motivo por que, ao conversar comigo e responder às minhas perguntas, ele não interrompe nem por um segundo a tarefa. Vejo suas mãos mergulharem num monte de barro, dele arrancarem a porção justa com que encherão a forma de madeira; depois, é o corte rápido

que apara as sobras do barro e, em seguida, o aparecimento mágico do tijolo que nasce do molde rústico. Tento descobrir na figurinha encardida alguma coisa que me lembre os líricos oleiros de Omar Khayam, mas não encontro nada: nem o perfume de sândalo nem o dourado sol que ilumina os trigais e afina, na distância, a plangente trompa dos pastores sem tormentos. João Luís enrola-se em farrapos, tenta agasalhar o corpinho magro num esburacado arremedo de camisa, guarda os pés nalguma coisa indistinta e turva que noutro tempo deve ter sido um par de botinas e, agora, é apenas a continuação do barro que sobe pelas pernas finas e gruda no corpo magro até os olhos – dois olhos vivos, insubmissos e valentes. •

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Walter

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Saber não é poder As relações entre saber e poder demonstram que os acadêmicos pátrios vêem seu acesso a idéias importadas e termos empolados como instrumento de poder. Por meio de seu código restrito, controlam as relações sociais ao seu redor Daniel Piza

A

s relações entre saber e poder têm muitas formas. No Brasil, uma das mais ostensivas tem sido a presença de intelectuais em cargos públicos, desde professores das universidades estaduais e federais (quem disse que só é intelectual quem faz carreira acadêmica?) até diplomatas e políticos, para não falar de autores de discursos, como José Guilherme Merquior para Fernando Collor. Desde Machado de Assis, que foi funcionário de ministérios como o da Agricultura e o da Viação (Transportes), até Haroldo de Campos, que era procurador do Estado (assim como seu irmão Augusto), passando por Drummond, Graciliano, Rosa e muitos, muitos mais, o escritor brasileiro quase sempre optou e opta por um cargo público para garantir sua renda. Roberto Campos trabalhou para o regime militar. Augusto Frederico Schmidt vivia nas franjas do poder. Etc., etc. Golbery, ele também um highbrow, cunhou o lema dessa turma: “Saber é poder”. Raro é ver no Brasil um intelectual que tenha feito carreira sem tirar sustento do dinheiro público. Mas outra forma de os supostos amigos do saber lidarem com a noção de poder, no Brasil, está em sua visão da própria função. Há intelectuais que acham que sua missão na Terra é definir os rumos do país e do mundo até o paraíso social, aquele onde não existe lucro nem culpa, onde todos são ricos e livres com a mesma exata dose. Eles podem até não trabalhar muito, mas seu pensamento pretende apontar para a solução de todos os males, para a utopia que o povo, se liberto do feitiço ideológico dos donos do poder, abraçará encantado. Do outro lado, os intelectuais se dividem entre os que abandonaram qualquer convicção do passado e aderiram ao cinismo do presente instantâneo. Muitos afogam os últimos fiapos de idealismo nas canecas de chopp. Outros, quase sempre economistas, rezam por uma “técnica” supostamente não contaminada por vícios ideológicos; são os tecnocratas cuja receita para os problemas brasileiros é estipulada em números, dos quais o mais importante é o crescimento do PIB – mesmo que do tipo

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A maioria não entende nada do que acadêmicos como

dominante desde o regime militar, que mal divide a renda, não cria empregos no ritmo necessário e exclui um terço da população. O maior exemplo desse “descolamento” em relação à realidade é a maneira como os intelectuais brasileiros se expressam. Escrevem mal, sem charme, sem originalidade e sem clareza. Falam mal nas TVs e na rádio, porque prolixos e previsíveis. Produzem teses de pós-graduação que são mais impenetráveis que a Floresta Amazônica, com seu cipoal de citações, jargões e inversões. Tratam, enfim, o saber como uma espécie de código privado, utilizando uma linguagem cifrada cuja premissa é a de ser acessível apenas aos privilegiados, aos iluminados, aos iniciados. Tal mentalidade deve estar ligada a uma herança da formação barroca, do contra-reformismo católico – à dificuldade de assimilar o que Sérgio Buarque de Holanda chamou de valores “impessoais”, como a separação entre público e privado que caracterizou o surgimento da modernidade. Daí o tom bacharelesco dos intelectuais brasileiros desde meados do século 19 (do qual, justiça seja feita, Machado de Assis e Graciliano Ramos trataram logo de escapar) até hoje. Mas já era tempo de tudo isso ter mudado. Saber, segundo essa mentalidade, é acumular microinformações específicas e, copiando em geral algum pensador estrangeiro da moda, embrulhá-las e enrolá-las como se fossem papiros sagrados, para num futuro distante, quem sabe, entregar aos leigos como frases prontas. A intelectualidade brasileira não assimilou até hoje o espírito do ensaísmo, do ensaísmo nascido com Montaigne e Francis Bacon, não à toa contemporâneos da transformação urbana das sociedades e da explosão dos dogmas religiosos pelas descobertas científicas. Os acadêmicos pátrios não

Marilena Chauí fala

Epitácio Pessoa/AE


ESPECIAL prezam pela linguagem experimentada, em tom de conversa, que duvida das verdades estabelecidas e preza a transparência como recurso para contestar o senso comum. Vêem seu acesso a idéias importadas e termos empolados, em suma, como instrumento de poder. Por meio de seu código restrito, controlam as relações sociais ao seu redor. Se não podem comandar o mundo, ao menos determinam as regras no departamento da sua universidade, como quais livros o orientando deve fazer constar da bibliografia – ou seja, por quais deuses deve rezar. Tome como exemplo dois dos intelectuais brasileiros mais respeitados: o tucano José Arthur Giannotti e a petista Marilena Chauí, ambos da Universidade de São Paulo. Tente ler seus livros sobre Marx, Heidegger, Spinoza, Lyotard. Veja-os falando no Roda Viva da TV Cultura. A maioria não entende nada! E os poucos que entendem, entre bocejos, não encontram rigorosamente nada de novo. Com isso, ironicamente, não poderiam estar mais desatualizados. O conhecimento na Era Digital é cada vez mais acessível; está cada vez mais saindo de guetos e viajando à velocidade da Internet de banda larga. Grupos multidisciplinares se juntam para somar conteúdos e romper barreiras formalistas, levando suas pesquisas quase em tempo real para o público interessado. Como Einstein, mais e mais pessoas acham que o conhecimento que não consegue ser traduzido em linguagem simples (e tudo menos simplória, banal, superficial) é um conhecimento que tende a morrer. Saber não é poder; é, na maioria das vezes, remar contra o poder, contestá-lo, expandindo os horizontes de quem não o detém. •

Rogério Reis/Tyba

Como Einstein, mais e mais pessoas acham que o conhecimento que não consegue ser traduzido em linguagem simples (e tudo menos simplória, banal, superficial) é um conhecimento que tende a morrer

José Guilherme Merquior: discursos para Collor

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Saber é poder As sinuosas relações entre conhecimento, poder e ensino universitário numa perspectiva histórica Renato Janine Ribeiro

“C

onhecimento é poder”, esta é uma velha frase – mas uma velha frase moderna, que os pensadores do século 17, como Bacon, Hobbes e Descartes de uma maneira ou outra enunciam. A modernidade nasce dessa nova idéia de ciência. Porque o conhecimento que os gregos e medievais mais valorizavam não era útil, não era o que gerasse poder sobre as coisas. Na Idade Média, a ciência continuava a tratar dos movimentos de astros que supostamente giravam em torno da Terra. Foi uma revolução quando, no século 16 e no 17, alguns cientistas se puseram à escuta dos navegadores, desses “mecânicos” que, em sua prática, havia tempos, sabiam que a Terra rodava à volta do Sol, e não o contrário. Vejamos um episódio provavelmente apenas lendário: Galileu subindo à Torre de Pisa, para jogar dois pesos diferentes, e provar que ambos caem à mesma velocidade. A física aristotélica dizia que deveriam cair em velocidades diferentes. O importante não é que a física tradicional estivesse errada, e, sim, que a ninguém ocorresse, antes de Galileu, resolver essa questão mediante uma simples experiência. E não ocorreu porque a experiência até então não importava. Na verdade, quem lidava com a empiria e com o poder dela decorrente eram espécies de homens que nos acostumamos a opor:

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ESPECIAL

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Reprodução

navegadores e alquimistas, práticos e mágicos. A ciência moderna, por racional que seja, nasce de uma pulsão que ela tem em comum não com a ciência antiga e medieval, mas com a magia: o anseio por dominar, por mudar as coisas. Vai tentar isso com meios novos, racionais, mas o desejo é o mesmo que antes se realizava por meio da sem-razão. A modernidade assim nasce de uma crença na ciência e em seus poderes – digamos mágicos. Seremos melhores e mais felizes se dominarmos as coisas. Vamos torturá-las até que nos revelem seus segredos. E a partir de um certo momento isso se fará nas universidades. É notável o que Thomas Hobbes escreve, em 1651, no seu Leviatã, sobre a reforma universitária. Até então, esses estabelecimentos serviam sobretudo para formar teólogos e fidalgos ou gentlemen. Ele protesta: isso tudo é, na melhor das hipóteses, inútil, na pior, perigoso. Formam-se inúteis, que são gente perigosa, porque procuram de todos os modos obter poder sobre os homens. Em vez disso, Hobbes propõe que se ensine ciência. Vai demorar isso, talvez até Humboldt, mas a partir da universidade alemã do século 19 teremos um ambiente voltado para o conhecimento de qualidade. Ora, por mais que se separe ciência básica e ciência aplicada, conhecimento puro e tecnologia, há um vínculo de nascença entre eles. E não é por acaso que hoje, em nosso País, parte significativa do desenvolvimento científico se espere voltada para a aplicação. Há pelo menos 15 anos que as agências de financiamento à pesquisa querem que as empresas se tornem parceiras da pesquisa. Espero que isso funcione. Mas aqui há dois problemas. Primeiro: por alguma razão, no Brasil, o apoio da empresa à pesquisa nunca foi sequer perto do patamar norte-americano. Provavelmente, porque a tecnologia

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Arquivo/Corbis

Uma universidade precisa das duas ciências, das duras e das humanas. Necessita da que nos permite dominar as coisas e também do conhecimento da reciprocidade, da fragilidade, dos seres incompletos que somos nós

Rousseau: abrindo uma vertente do conhecimento

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de lá chega aqui já paga, testada, aprovada. Ela pode não ser a mais adequada para nossas condições, sua cola pode não ser a melhor para fazer sapato com o couro de nossas vacas, mas os riscos são quase nulos e a rentabilidade, segura. Para que correr riscos? O que talvez diga muito sobre a natureza de nosso capitalismo, que sempre privatizou os lucros e socializou as perdas – isto é, é um capitalismo sem riscos. Talvez a questão esteja mais aqui, na natureza do nosso capitalismo, do que na sua relação com a ciência. Talvez essa relação decorra do modo de ser de nossos capitalistas, ponto. O segundo problema é que, se a Ciência e Tecnologia, C&T para os íntimos, começa com os cientistas-filósofos do século 17, as ciências humanas nascem de outra vertente, aberta por Rousseau em meados do 18. Tudo muda de figura. Aqui, não se trata de fabricar coisas, mas de agir sobre os humanos. A rigor, sobre as coisas não há poder, há força. Mas, sobre os humanos, só conta o poder. A força é de pouco alcance. Existe força quando impeço alguém de agir. Por exemplo, se coloco blocos de concreto para que ninguém vire à direita na contramão. Há poder quando proíbo a entrada, fiscalizo e multo – mas não impeço, fisicamente, alguém de cometer uma infração. Sobre as coisas, procuro ter força. Isso é o que se espera da tecnologia: que ela aumente nossa potência. Mas, sobre os humanos, só posso ter poder. Este sempre impõe alguma reciprocidade. Mesmo quando mando, dependo de quem me obedece. E talvez, com isso, me torne dependente de quem me obedece! Essa inversão dos papéis é o sentido da célebre dialética do senhor e do escravo, ou do amo e do servidor, de que fala Hegel: aquele que manda acaba, pelo próprio fato de mandar, dependendo do outro. Qual a conclusão? Uma universidade precisa das duas ciências, das duras e das humanas. Necessita da que nos permite dominar as coisas, inclusive a nós mesmos enquanto coisas, objetos, manipuláveis – enquanto corpos, por exemplo, que são objeto da biologia e da medicina. Mas também precisa do conhecimento da reciprocidade, da fragilidade, dos seres incompletos que somos nós. Sem isso, ficamos mambembes. Bacon falava do saber como poder no primeiro sentido, o das ciências que se ligam a uma tecnologia. Nós só podemos falar do poder se for democrático. O que não é democrático é, quando muito, força. Isso não basta mais, em nosso mundo – felizmente. •


Divulgação/ABL

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Ideologia Brasileira de Letras As relações ostensivas entre o Poder e o Saber na história de instituições culturais como a Academia Brasileira de Letras Ricardo Oiticica

A

eleição de personalidades sem livros – ou, o que dá no mesmo, com livros sem personalidade – tem levado ao extremo a vocação da Casa de Machado de Assis para a tolerância. O que ainda a salva é ser a guardiã oficial da língua portuguesa no país, zelando para que a gente não relacione, indevidamente, “tolerância na casa” com “casa de tolerância”. É a famosa lei da compensação das janelas, que Machado criou sem imaginar que poderia ser aplicada a sua própria casa. O fato é que, desde as primeiras polêmicas sobre o ingresso de figuras estranhas ao mundo das letras (os militares Dantas Barreto e Lauro Müller), muitas figuras vêm entrando pela janela – aquela parte da casa que faz as vezes de porta, na arquitetura do poder. Outra palavra ambígua que ronda a Academia é “imortalidade”. A imortalidade do acadêmico não é apenas força de expressão, mas expressão de sua força: certas candidaturas arrombam a porta (ou pulam a janela) e, uma vez consagradas, vão arrombar novas portas. A das editoras, por exemplo. Lima Barreto já mencionava a Garnier como empresa cujas “edições eram feitas atendendo mais à Continente junho 2005


Divulgação/ABL

Chá-das-cinco na Academia

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representação oficial do autor do que mesmo ao valor da obra”. Edgar Cavalheiro dizia que a editora Francisco Alves só fugia à linha de livros didáticos para lançar “um ou outro medalhão, em geral acadêmico”. E isto quando arrombar a porta das editoras não equivale a arrombar a porta dos cofres públicos: durante o Golpe de 64, o governo brindaria os acadêmicos com uma parte do milagre econômico, na forma, por exemplo, de co-edições que os imortalizariam no papel, mas não necessariamente na nossa memória (como é mesmo o nome do general que derrotou o poeta Mario Quintana?). Num primeiro momento, o fundador Olavo Bilac ainda poderia dizer que “Sem lar, sem pão, sem conforto/ O Acadêmico, afinal/ Não tem onde cair morto/ Por isso é imortal...”, mas em breve seu colega Emílio de Menezes emendaria, no poema “Hino à dentada”: “(...) Tu sabes que a Confeitaria/ Colombo é verdadeira sucursal/ Da nossa muito douta Academia/ Mas sem cheiro de empréstimo oficial”. Graças a mordidas do gênero, a Academia vai se tornar, literalmente, uma poderosa “Panelinha” – a confraria gastronômica que reunia o pessoal da Academia, antes de o termo se tornar sinônimo de toda casta criada com o fim de valorizar cegamente seus membros. A explicação é do memorialista cearense Antonio Sales: “Foi ele, como se sabe (Lúcio de Mendonça, ministro do Supremo Tribunal Federal), quem gerou e fez vingar a idéia de fundação da Academia Brasileira de Letras. Mas depois dessa, teve outra mais modesta (...): a criação de um almoço mensal em que se reunissem homens de letras, artistas e intelectuais em geral, e a esse ágape ele próprio denominou – ‘A panelinha’. (...) A panelinha não passou despercebida da maledicência. Um cronista da Gazeta de Notícias tentou meter a ridículo a nossa instituição gastronômico-artístico-literária. O título de panelinha prestava-se a um sentido egoístico de coterie, de igrejinha, enfim de um grupo de intelectuais que se isolava da multidão com fumaças de superioridade”. Efetivamente, o projeto ideológico do regime republicano passava pelas Academias surgidas ou reformadas no final do século 20. A parceria musical entre duas instituições da época – o


Instituto Nacional de Música (INM, 1890) e a Academia Brasileira de Letras (ABL, 1897) – estreitava o vínculo entre Poder e Saber. Delas sairão os autores do Hino à Bandeira e do Hino da República, bem como o autor da definitiva letra do Hino Nacional e o de sua adaptação vocal à melodia remanescente do Império, oficializada pela República. Ao mesmo tempo, a Escola Nacional de Belas-Artes (ENBA, 1890) mudava-se para a Avenida Central, deslocando também sua relação com o poder, ao sabor da reforma do ensino artístico empreendida por Benjamim Constant, mentor da conspiração que derrubou a Monarquia. Leopoldo Miguez, o compositor, e Medeiros e Albuquerque, o letrista da música vitoriosa no concurso governamental para escolha do Hino da República, em 1890, são representativos da classe artística a que pertencem: Miguez foi o primeiro diretor do INM, instituição fundada no mesmo ano; Albuquerque, introdutor do Simbolismo no Brasil, foi fundador e sucessor de Machado de Assis na presidência da ABL, autor da lei 2.577/1912, de Direito Autoral, e diretor da Instrução Pública na gestão do prefeito Pereira Passos. Alberto Nepomuceno, presidente do INM, faria a adaptação vocal do poema com que o poeta e crítico Osório Duque-Estrada, pertencente à segunda geração da ABL, ganharia o concurso para dotar de letra oficial a melodia do Hino Nacional Brasileiro – um projeto do deputado e também acadêmico Coelho Neto, oficializado apenas em 1922 pelo presidente Epitácio Pessoa, no centenário da Independência. Francisco Braga e Olavo Bilac, autores do Hino à Bandeira, encomendado em 1906 pela prefeitura do Distrito Federal, também estão ligados àquelas instituições: Bilac, o mais representativo poeta do parnasianismo brasileiro, além de fundador da ABL, liderou as campanhas de alfabetização e do serviço militar obrigatório. Braga foi professor do INM e finalista do concurso com que se pretendia dotar o país de um hino nacional diferente do herdado do Império, idéia rechaçada em função da popularidade daquela melodia. Os dois, finalmente, entrarão juntos na história do Teatro Municipal, inaugurado com discurso de Bilac e música de Braga, após execução do Hino Nacional. Até a bandeira e o nome do Brasil – com “s” – serão consolidados nesse âmbito: a substituição do “z” no nome do país terá a chancela da Academia, assim como, anteriormente, o projeto de Miguel Lemos e Teixeira Mendes para a bandeira nacional será executado pelo acadêmico Décio Villares, da ENBA, com o dístico Ordem e Progresso sugerido por Benjamim Constant – o mesmo que terá seu busto executado em bronze por Rodolfo Bernardelli, primeiro diretor da ENBA, autor de diversas esculturas que pontuarão a então Capital Federal. Na era do bacharel, a República reforçava de imediato a relação entre o Poder e o Saber. Hoje, quando a Presidência é ocupada por um sem-diploma e a Cultura por um egresso da “imaginação no poder”, tudo mudou. Ou não, como filosofariam os tropicalistas ao folhear os projetos do ministro. •

A imortalidade do acadêmico não é apenas força de expressão, mas expressão de sua força

Divulgação/ABL

Pena e óculos de Machado de Assis


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Spencer, o homem-luz Fernando Spencer, cuja história de vida se confunde com a do cinema pernambucano, vira tema de documentário e se prepara para lançar, em livro, suas memórias Alexandre Figueirôa


CINEMA

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Fotos Arquivo pessoal do cineasta

É

impossível percorrer os caminhos do cinema feito em Pernambuco e não se deparar com o “bandido da sétima luz” Fernando Spencer Hartmann. Nascido na Rua Augusta, no bairro de São José, em 1927, sua paixão pela imagem em movimento remonta à infância. Quando a família mudou-se para o bairro de Casa Forte, Spencer – como todos os cineastas de sua geração – passou a freqüentar as matinês de domingo da sala do bairro – no caso o saudoso Cine Luan – e, pouco a pouco, foi arranjando um jeitinho de ficar mais tempo dentro dela. Primeiro, fez amizade com o zelador e o ajudava a espanar as cadeiras; depois, quando o pintor dos letreiros queimava o expediente, fazia os cartazes com o programa do dia e, logo, travou conhecimento com o operador da projeção; passou a entrar na cabine e começou, então, a colecionar os fotogramas que são retirados ao se fazer as emendas da película quando esta se parte. Um dia de Natal, aos 12 anos de idade, seu pai lhe fez uma grande surpresa: deu-lhe de presente um projetor doméstico e junto com ele uma “fita” de Chaplin (outra grande paixão). A empolgação foi tanta que Spencer não perdeu tempo, juntou-se com um colega e montou um cineminha no quintal de casa: o Cine Metro, com lotação para 20 pessoas e cobrando ingresso. Ali exibia desenho animado, jornais da tela que conseguia com proprietários de cinema dos bairros que, obviamente, não temiam a concorrência do jovem entusiasta da sétima arte. Os tempos de cinema de brincadeira, porém, foram ficando para trás e só no final da década de 50, quando já trabalhava como revisor do Diario de Pernambuco, a vocação meio

adormecida voltou à tona com toda força. Desta feita com muito mais responsabilidade, pois ganhou da direção do jornal a missão de ser o redator da página de cinema. Foi o empurrãozinho que faltava. Nela comentava os lançamentos da semana, entrevistava atores e diretores de passagem pelo Recife, participava de cineclubes e começou a desempenhar um papel fundamental para o cinema pernambucano: o de interlocutor e difusor das atividades cinematográficas, mesmo modestas, que aconteciam no Estado a partir de então. Sua inquietação movida pelo amor ao cinema fez com que editasse a Revista da Tela, junto com Ivan Soares, Celso Marconi, José de Souza Alencar; e também realizasse os programas Filmelândia, na Rádio Tamandaré, e Falando de Cinema, na antiga TV Rádio Clube, emissoras integrantes dos Diários Associados. Foi também por esta época que se aproximou do cineasta e ator Jota Soares e passou a cultuar e ser um dos guardiões do acervo que restara do Ciclo do Recife, do qual Soares havia sido um dos principais protagonistas. Tudo isto, porém, ainda era pouco para Spencer. No final da década de 60, resolveu iniciar sua carreira de cineasta amador. Em 1969, realizou A Busca, um curta de ficção em 16 mm, em preto e branco. Depois rodou Humor Branco, um filme experimental com argumento de Jomard Muniz de Britto – rodado no interior de uma casa funerária e tendo como ator Enéas Alvarez, então delegado local do Instituto Nacional do Cinema (INC) – e Safári, uma comédia. Os filmes eram curtíssimos – com duração de 1 minuto e meio – e deveriam ser enviados para o festival do Jornal do Brasil, se tivessem ficados prontos a tempo. Em seguida, juntou-se a Continente junho 2005


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CINEMA Fernando Monteiro, que também estava dando seus primeiros passos na realização, e chegou a rodar a tomada de dois curtas, mas que nunca foram montados. Por estas experiências frustradas, Spencer começou a ser chamado de “cineasta de obras inacabadas”. A redenção, no entanto, não tardaria. No início da década de 70, ele descobriu o super 8 e se tornou – ao lado de Celso Marconi, no Jornal do Commercio – um dos maiores incentivadores do uso da bitola em Pernambuco. No Diario de Pernambuco publicava artigos sobre as produções superoitistas, divulgava os festivais que ocorriam pelo Brasil afora e, logo, passou também a realizar e concluir os filmes que tanto sonhava. Sua produção em super 8 é uma das mais extensas do Estado. O primeiro trabalho foi uma ficção, inspirada em um conto de Júlio Cortázar, cujo título é Labirinto. A fotografia foi do cinegrafista Firmo Neto – um dos primeiros a adquirir uma câmera de Super 8 – e o ator principal era Jota Soares. Mas a vocação de Spencer seria mesmo o registro das manifestações da cultura popular em Pernambuco e o documentário. Valente é o Galo, um filme sobre a violência nas rinhas em cidades do interior, deu ao seu autor o reconhecimento que tanto esperou. O filme foi considerado o Melhor Filme Super 8 da Jornada de Cinema da Bahia, em 1974, e circulou em vários festivais, sendo exibido até mesmo no prestigiado Festival de Oberhausen, na Alemanha. Graças ao Super 8, Spencer pôde se dedicar de corpo e alma à produção cinematográfica e embora nunca tenha abandonado o jornalismo, rodava filmes tanto nesta bitola, quanto em 16 mm. Em Super 8 rodou ainda, entre outros, Bajado, um Artista de Olinda, com Celso Marconi; Caboclinhos do Recife; A Eleição do Diabo e a Posse de Lampião no Inferno; Cinema Glória, com Felix Filho. Em 16 mm, realizou Adão Foi Feito de Barro, um documentário sobre os ceramistas do Alto do Moura, em Caruaru. A década de 80 foi o período mais produtivo da carreira de Fernando Spencer e também a fase em que ele conseguiu firmar-se como realizador e executar diversos projetos, desfrutando de financiamento da Embrafilme e podendo executá-los em 16 ou 35 mm. Sua ligação com Jota Soares, Ari Severo e o fato de ser convidado para dirigir a Cinemateca da Fundação Joaquim Nabuco o levou a produzir uma série de curtas sobre o Ciclo do Recife. O primeiro foi Jota Soares, um Pioneiro do Cinema, rodado em 1981, com narração do próprio Jota Soares. No mesmo ano, realizou Almeri e Ari, Ciclo do Recife e da Vida, em que entrevista o cineasta Ari Severo e sua esposa e atriz Almeri Steves. Em 1982, contou toda a história do ciclo em Memorando Ciclo do Recife, documentário em que aparecem depoimentos de Barreto Júnior, primeiro ator do cinema pernambucano, e Dustan Maciel, ator e produtor de vários filmes da época. O Continente junho 2005

Firmo Neto e Fernando Spencer

último trabalho em torno do tema foi Estrelas de Celulóide, ficção documental de 1987, dirigido por ele, com fotografia de Vito Diniz e montagem de Severino Dadá, pernambucano radicado no Rio de Janeiro, responsável por boa parte da montagem dos trabalhos do cineasta. Documentarista incansável do carnaval recifense, Spencer realizou ainda Santa do Maracatu (1980); homenageou os compositores Capiba – em Capiba, Ontem, Hoje e Sempre (1984) – e Nelson Ferreira com Evocações Nelson Ferreira (1987); e dirigiu também Trajetória do Frevo, em 1988. Na década de 90, Fernando Spencer foi também uma das vítimas da crise que se abateu sobre o cinema brasileiro. Neste período, apenas conseguiu concluir mais um filme sobre o Ciclo do Recife, em parceria com o jornalista e cineasta Amin Stepple. História de Amor em 16 Quadros por Segundo foi fruto de um trabalho iniciado por Stepple para a Rede Globo ainda no final da década de 80 e que resultou num vídeo. Em 1999, ele e Spencer conseguiram concluir uma nova versão do mesmo material e fazer a transcrição para película. O filme foi premiado no 32º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e no 3º Festival de Cinema do Recife. Em 2003, ele ganhou uma grande retrospectiva de toda sua obra no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Aos 78 anos, Fernando Spencer, no entanto, continua mergulhado de alguma forma no universo mágico do cinema. Embora esteja aposentado como jornalista do Diario


CINEMA

Cena de A Eleição do Diabo e a Posse de Lampião no Inferno

de Pernambuco e tenha se afastado da Cinemateca da Fundaj, em sua casa – um sobradinho no Poço da Panela – mantém uma sala com todas as lembranças destes anos dedicados à sétima arte. São livros, revistas sobre diretores e estrelas do cinema mundial, discos e fitas de entrevistas e trilhas sonoras de filmes, latas de seus próprios filmes, cópias em DVD de obras do cineastas que admira, como Fellini, Buñuel, Nelson Pereira dos Santos, e Chaplin o seu predileto. Nas horas vagas, Spencer decupou O Garoto e Luzes da Cidade e insiste em afirmar que a matéria que mais gostou de fazer em toda sua vida foi Diálogo Imaginário com Chaplin, publicada no Diario de Pernambuco, em 16 de abril de 1984, data em que o criador de Carlitos completaria 95 anos. É com este texto – uma entrevista fictícia com Chaplin cujas respostas foram extraídas de livros e recortes de jornais – que Spencer pretende abrir o livro de coletânea com seus melhores artigos sobre cinema. O título provisório é O Passageiro da Fantasia. Também gosta de rever os roteiros inéditos que pretende filmar, entre os quais cita Nosso Urso Camarada, sobre os ursos que desfilam no carnaval; outro resgate sobre o Ciclo do Recife homenageando Almeri Steves; e Maria, Matéria de Memória, uma alegoria sobre o cangaço, assunto que também lhe desperta interesse. Recentemente, Spencer foi à Espanha, país onde seu filho Ricardo, especialista em efeitos especiais para cinema e televisão, reside. Lá, num

O Último Bolero no Recife

período de dois meses, ele realizou uma série de cinco palestras em cidades como Faro de Vigo e La Coruña; organizou uma mostra de seus filmes sobre o carnaval recifense e ainda apresentou uma comunicação no II Congresso Galego do Audiovisual, na cidade de Santiago de Compostela. Queixa, ele tem apenas uma, a falta de incentivo financeiro para continuar produzindo o que mais ama: filmes. •

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CINEMA

O cineasta vira tema de documentário nas mãos de Marcílio Brandão

Valente é Spencer A

trajetória de Fernando Spencer deve ganhar neste mês de junho uma justa homenagem. Será a estréia e exibição pela TV Cultura do vídeo que está em fase de finalização e vem sendo realizado por Marcílio Brandão para a produtora Página 21. Segundo Brandão, a idéia de realizar este trabalho surgiu no final de 2003 durante o CinePE. Na época, ele ficou meio chateado pelo fato do evento exibir uma série de produções, sobretudo documentários, em horários que não permitiam uma grande afluência de público. Ele escreveu um texto para o site Página 21 e encerrava o artigo dizendo “Bravo é Spencer!”. “Foi aí que me veio o grande estalo de realizar este trabalho homenageando um dos maiores realizadores de cinema de Pernambuco e do Brasil”, revela. Brandão, juntamente com Amaro Filho e Rafael Coelho, conseguiu aprovar o projeto no Funcultura e partiu para colher depoimentos do próprio Spencer e de várias personalidades que trabalharam e admiram o cineasta: Geneton Moraes Neto, Paulo Cunha, Amin Stepple, Jomard Muniz

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de Britto, entre outros. “O vídeo é um grande painel da vida e obra de Spencer”, observa o diretor. Ver e rever o material produzido por Spencer ao longo de quatro décadas fez Brandão perceber que os documentários dele são marcados por uma poética lírica e como ele é um apaixonado pelo que faz. “Além disso, por meio dos depoimentos gravados descobri a grandeza de sua alma, como ele serviu a todos, sempre movido pelo amor que tem pelo cinema”, conclui. Graças à mediação de Alfredo Bertini, diretor do Cine-PE, Brandão conta que telecinou 29 filmes – cerca de 90 % de toda obra de Spencer –, incluindo trabalhos em Super 8, 16 e 35 mm. Trechos dos filmes serão usados para ilustrar os depoimentos e as diversas histórias pitorescas da carreira do diretor de Valente É o Galo. A duração do vídeo é de 52 minutos, pois ele será exibido em circuito nacional pela rede de televisão educativa. Para Spencer, além da homenagem mais do que merecida, um presente valioso: ele terá preservado em um suporte duradouro boa parte de seu acervo. •


Divulgação

CINEMA

Matei Jesse James, primeira vez em DVD, no mundo À esquerda, Rififi

Alvorecer no cinema Pernambuco ganha sua primeira distribuidora nacional de DVD, a Aurora DVD

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922. Edson Chagas e Gentil Roiz, dois jovens “loucos” por cinema e que tinham alguma experiência com a nova arte fundaram a primeira produtora que viria a ser o próprio núcleo do Ciclo do Recife, a Aurora Filmes. De lá, saíram produções emblemáticas, porque primeiras, do cinema local: Retribuição; Um Ato de Humanidade; Jurando Vingar; Aitaré da Praia e A Filha do Advogado. 2005. Ernesto Barros, jornalista e crítico de cinema, e Ricardo Carvalho, empresário do ramo, também “loucos” por cinema, detentores de um acervo invejável de filmes e still, fundam a primeira distribuidora nacional de DVDs de filmes de arte de Pernambuco (segunda do Nordeste e quarta no país), a Aurora DVD, numa justa e explícita homenagem à primeira. Montar um negócio ligado ao cinema era um sonho de Ernesto Barros, que já foi crítico nos dois maiores jornais do Estado e editor do site Kinema. Ricardo Carvalho entrou com a experiência de empreendedor e o capital. “O mercado de DVDs é o que mais cresce no Brasil”, diz Carvalho. “E o nicho dos filmes clássicos não está bem preenchido”, complementa Ernesto. A assertiva tem fundamento. Há uma revolução ocorrendo nas locadoras, no segmento de Home Entertainment. As pessoas ainda usam o termo “vídeo”, mas se referindo cada vez mais ao DVD. Até o fim do ano, o mer-

cado de cinema (bilheterias) deve movimentar cerca de R$ 850 milhões no Brasil, enquanto a previsão é de que o DVD movimente 900 milhões. A informação é dada por diretores de marketing e vice-presidentes de operações de majors que operam no setor, como a Columbia, Warner e Fox. Pretendendo se tornar a maior no país, a Aurora objetiva lançar uma média de 40 títulos por ano e quer atingir tanto o mercado das locadoras quanto o colecionador, disponibilizando compras através do seu site (www.auroradvd.com.br) – o valor de cada DVD para o consumidor final deve ficar entre R$ 35,00 e R$ 40,00, um preço razoável para se ter grandes obras do cinema mundial à mão.Também se impõe um grande desafio: fazer com que todo processo de autoração (processar, comprimir em DVD e colocar os menus) seja feito aqui, desde a aquisição dos direitos até a distribuição (hoje, as legendas/ tradução são feitas em São Paulo e a replicação em Manaus). Para junho, os lançamentos são Brinquedo Proibido (1952), de René Clément, um dos maiores clássicos do cinema francês do pós-guerra; O Beijo Amargo (1964), de Samuel Fuller, considerado por Scorsese como um dos grandes filmes negligenciados do cinema americano; Anos de Rebeldia (1980), de Denis Hopper, que também atua e fez desta a obra mais instigante de sua carreira; e Rififi (1955), de Jules Dassin, clássico absoluto do cinema francês dos anos 1950 e finalmente lançado no Brasil. Em julho, a previsão é lançar Matei Jesse James, de Samuel Fuller, pioneiro do western psicológico (ou anti-western); O Documento Holcroft, de John Frankenheimer; e Somos Todos Assassinos, de André Cayatte. • Continente junho 2005

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Botem todos na cadeia! Ninguém está imune ao preconceito, é preciso uma vigilância contínua, um exorcismo permanente, para não cair na tentação de senti-lo e exercê-lo

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renderam o jogador argentino no campo de futebol, sob acusação de racismo. Nada mais justo e oportuno. Ele xingou o jogador brasileiro, aludindo de forma grosseira a sua cor. O preconceito está se tornando uma epidemia nos estádios da Europa, e até mesmo do Brasil. As vítimas são sempre os atletas negros. A torcida solta guinchos simiescos, empunha faixas e cartazes com dizeres insultuosos, atira bananas no meio do estádio. Associam os negros aos macacos, querendo dizer com isto que eles são inferiores, que não evoluíram na escala animal. Parece que a Europa branca e os seus descendentes em outros continentes ainda não se desfizeram dos preconceitos arraigados ao longo de séculos de colonialismo. Até bem pouco tempo, havia o comércio de escravos africanos para as Américas. A religião católica e as outras formas de cristianismo negavam humanidade e alma aos negros. O preconceito é um vírus incubado, aparentemente erradicou-se, mas se guarda latente, perverso e maligno, pronto a manifestarse ao menor estímulo, causando novas epidemias, matando, destruindo. Foi assim em todos os regimes totalitários, de esquerda e de direita, sempre em surtos sazonais. O alvo podia ser judeus, ciganos, calvinistas, homossexuais ou negros. Os povos africanos, desde os primórdios da história, foram as maiores vítimas do colonialismo, da escravidão e das perseguições religiosas. Pensei numa situação inversa. Durante uma partida de futebol do Real Madri da Espanha, um jogador neContinente junho 2005

gro do Brasil fica irritado com o adversário do Barcelona, e o xinga de branco. Que efeito teria? Nenhum. Em vez de insulto, o xingamento poderia ser tomado como elogio, o reconhecimento da pele clara, da supremacia de uma raça sobre a outra. Ninguém tem complexo por ser branco. Nunca ouvi dizer que alguém tivesse procurado um consultório psicanalítico para tratar um complexo de inferioridade por ser branco. A menos que sofra de albinismo. O que verdadeiramente está em jogo, mais do que o futebol, é o poder econômico. É a supremacia de nações sobre outras. Mesmo que o nosso rei Pelé afirme que se vingava das chateações arrebentando o time adversário, não atenua a gravidade do preconceito, porque ele existe por razões raciais e sociais, pouco se importando as torcidas brancas se os jogadores negros são a excelência do futebol, e trabalham para a glória dos seus times. O preconceito é a ausência da lógica e da razão, é o verme da maldade instalado no coração e na mente das pessoas comuns, e até dos gênios mais brilhantes e dos homens considerados santos. Ninguém está imune a ele, é preciso uma vigilância contínua, um exorcismo permanente, para não cair na tentação de senti-lo e exercê-lo. O preconceito pode assumir dimensões diferentes, num mesmo país. Nos Estados Unidos, na guerra da Secessão, Norte e Sul divergiam quanto à escravatura. E ainda hoje é bem desigual o tratamento dado aos negros e homossexuais, de um Estado americano para outro. Mas, para que ir tão longe? Passemos uma vassoura no


ENTREMEZ

lixo do nosso Brasil, que se orgulha de sua democracia racial, da perfeita mistura das raças. Aqui, a supremacia econômica das regiões Sul e Sudeste, e o controle sobre os meios de comunicação, a televisão, os jornais e as revistas, gerou um outro tipo de colonialismo, o interno. Esse colonialismo midiático contribuiu para o isolamento dos Estados que formam as regiões brasileiras. No Nordeste, um pernambucano desconhece o que se passa na Paraíba, vizinha e próxima. A menos que leia algum jornal do Sudeste, ou assista aos noticiários de televisão. No jornalismo político e cultural, mesmo jornalistas renomados não escapam à armadilha do preconceito. Quando escrevem sobre Severino Cavalcanti, eles embutem na análise o fato de Severino ser nordestino, como se isto fosse causa dos descalabros praticados pelo presidente da Câmara. Em contrapartida, ao tratarem de Paulo Salim Maluf, de ficha política e bancária bem mais suja, nunca incluem entre os adjetivos e epítetos com que o

classificam, o de sudestino, termo, aliás, que ninguém usa, e de tão desusado aparece com grifo vermelho na tela dos computadores, como se não fizesse parte da nossa língua; como se fosse apenas um neologismo. Se prendem um jogador argentino por preconceito ou injúria qualificada por racismo, terão de prender muito mais gente. Os acontecimentos dos estádios, tão visíveis, mostram um mundo cada dia mais globalizado, com migrações permanentes, levando ao convívio das mais variadas etnias. Neste mundo, não deve existir lugar para o desrespeito e a intolerância. Os países ditos civilizados não podem ufanar-se dos seus avanços sociais, enquanto os homens baterem nas mulheres, pintarem suásticas nos bíceps e saírem para as ruas queimando mendigos. No Brasil, se não estamos dispostos a dar um exemplo de civilidade ao mundo, em todos os aspectos, então soltem o jogador argentino. E tudo acabará muito bem, ao som de um tango de Gardel. • Continente junho 2005

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MÚSICA

Beethoven e a imagem de Cristo A Sonata Op. 110 é a efetiva integração entre forma e conteúdo, idéia – nascimento morte e ressurreição de Cristo – e sua expressão Maurício Veloso Pinto

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udwig van Beethoven foi, provavelmente ao lado de seu mestre e amigo Joseph Haydn, um dos primeiros músicos da história a alcançar fortuna, fama e reconhecimento ainda em vida, enquanto Wolfgang Amadeus Mozart, seu ilustre antecessor, morrera pobre e relegado ao desprezo do mesmo público que antes o havia venerado. A transição da austeridade barroca para a espontaneidade e expressividade clássico-românticas (passando por uma certa frivolidade galante, rococó, dos primeiros anos de Mozart e Haydn) deveria seguir seu curso, necessariamente, pela vida e obra destes três magníficos compositores austros-germânicos, catalisadores de idéias e estilos internacionais cristalizados em algo que viria a se tornar conhecido como a Primeira Escola de Viena, muito embora nenhum deles fosse vienense nativo... Pois foi em Viena, onde Haydn, Mozart e Beethoven atuaram em parte significativa e relevante de suas carreiras, que muitos dos cânones do Classicismo se estabeleceram a partir da obra deste triunvirato, entre a segunda metade do século 18 e primeira parte do século 19. Muito embora Haydn houvesse obtido enorme sucesso pessoal e profissional, seu status permaneceu, até o final, basicamente inalterado: era empregado dos Esterházy, uma das mais ricas e poderosas famílias da Hungria, para quem traContinente junho 2005

balhou desde 1761 até sua morte, em 1809 – muito embora suas obrigações tivessem sido reduzidas consideravelmente nos últimos anos. Mozart tentaria se ver livre do patronato em 1781, quando se mudou para Viena, mas após sucesso inicial, sua carreira declinou vertiginosamente, culminando em sua morte na mais completa pobreza, em 1791. Beethoven foi quem venceu onde outros haviam falhado: sua atitude e atuação independente e altiva calcadas em incomensuráveis talento e competência possibilitaram que a figura prevalente do músico da época sofresse uma radical transformação, passando de um mero serviçal da corte para a de um Artista, aquele que, para citar o próprio Beethoven, foi moldado por Deus como um ser especial, igual ou até mesmo superior aos reis. De acordo com Leon Plantinga, “Beethoven foi, por boa parte de sua vida adulta, o compositor mais respeitado na Europa. Sua música rotineiramente demandava altos preços de seus patronos aristocráticos e editores em vários países; suas obras orquestrais rapidamente tornaram-se padrão em concertos por todos os lugares, exceto na França. Artistas e intelectuais correram para Viena para visitá-lo em seu leito de morte; Louis 18 enviou-lhe um medalhão de ouro por simples admiração; (...) E, no cortejo fúnebre deste homem recluso e misantropo, estimou-se que a multidão presente com-


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Adoration of Shepherds, Agnolo Bronzino

punha-se de 10.000 a 20.000 pessoas”. Nascido em Bonn, em 1770, em família de músicos da corte, Beethoven estudou com o organista Christian G. Neefe (1748-1798), que logo se mostrou impressionado com seu talento. Aos 17 anos de idade encontrou-se com Mozart que profetizou um futuro brilhante para o jovem músico. Mais tarde, já com 22, dirigiu-se para Viena a fim de ser orientado por Haydn, com quem teve aulas até 1794. Os primeiros sintomas de sua surdez surgiram em 1796, e a doença avançou gradativamente até o mais absoluto silêncio se instaurar para o artista em torno de 1820. A obra de Beethoven – destaques importantes são as nove Sinfonias, os 16 Quartetos de Cordas, e as 32 Sonatas para Piano – é tradicionalmente dividida em três grandes períodos, fases razoavelmente distintas que delineiam sua evolução como compositor. O grande maestro, pensador e escritor Sérgio Magnani as denominava como uma primeira Fase de Formação, na qual o exemplo de Haydn prevalece em um estilo eminentemente clássico; uma segunda Fase de Afirmação, de conteúdo romântico e dramático, onde o antagonismo dialético das idéias principais da Forma Sonata é francamente explorado (vale lembrar que Forma Sonata é uma estrutura organizacional prevalente no Classicismo que compreende, a grosso modo, três seções: Exposição, com duas idéias principais e contrastantes; Desenvolvimento, onde as duas idéias são trabalhadas; e Reexposição, que consiste na reapresentação das idéias principais, ambas, agora, na tonalidade central da obra); e finalmente uma Fase de Evasão, quando Beethoven se liberta progressivamente das amarras estruturais e concentra-se em um conteúdo cada vez mais intenso e abstrato, interessandose também pelo poder expressivo da capacidade recitan-

Christ at the Column, Caravaggio

te da voz humana e da técnica do contraponto. Pertence a esta última fase a “Sonata em Lá bemol Maior, Op. 110, No. 31”, em 3 movimentos: I. Moderato cantabile molto expressivo; II. Allegro molto; III. Adagio, ma non troppo – Fuga. Allegro, ma non troppo. Composta entre 1821 e 1822, teve suas primeiras edições em Paris, Berlim e Viena, em 1822, e Londres, em 1823. Sua organização temática e formal suscitou a hipótese de que se trata de uma peça de programa, uma obra musical que conta uma história, no caso a história de Cristo: de fato, as atmosferas dos três movimentos podem ser, com relativa facilidade, relacionadas a três grandes momentos da vida de Jesus: Nascimento, Paixão/ Morte e Ressurreição; também chama a atenção, no manuscrito de Beethoven, a data de 25 de dezembro de 1821 – ainda mais intrigante é a clara rasura do autor, que substituiu 1822 por 1821, talvez numa tentativa de colocar a data de conclusão da obra no dia de Natal?... Difícil saber. Como não tive acesso à Continente junho 2005


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MÚSICA

Transfiguração, Rafael Sanzio

pesquisa que tratou desta hipótese, não há como, no momento, atestar sua validade, apesar de seu evidente interesse e apelo para qualquer um que conheça a obra com alguma profundidade. O primeiro movimento, Moderato cantabile molto expressivo, apresenta uma estrutura quase totalmente tradicional, em Forma Sonata. Estão ali presentes as grandes seções com seus respectivos planos tonais, de maneira quase previsível para qualquer ouvido acostumado aos procedimentos composicionais típicos do século 18 e 19. Algumas características, entretanto, apontam para uma mudança de foco: os temas, ou idéias, assumem um caráter intensamente expressivo, reforçado de maneira especial por uma ênfase em suas qualidades vocais; essa “linha” melódico-vocal com a qual se inicia o movimento remete imediatamente a Schubert e sua notória associação com o Lied, a canção alemã, gênero pelo qual se tornou célebre. Por outro lado, não há aqui preocupação marcante com a afirmação de uma suposta “masculinidade” do primeiro tema, como seria de se esperar em sonatas tradicionalmente clássicas, mas, sim, com o estabelecimento de um caráter lírico e expressivo já a partir do primeiro compasso da sonata. Nota-se também, a partir do lirismo estabelecido para a primeira idéia, um predomínio da mesma por todo o movimento; perde força, aqui, o embate dialético entre as duas idéias, tão importante para as sonatas da segunda fase do compositor. Desta forma, o peso maior do movimento vai Continente junho 2005

para os temas em si, em função de suas qualidades expressivas e não de suas possibilidades para desenvolvimento. Por falar em desenvolvimento, tal seção é notoriamente curta neste movimento (são apenas 15 compassos), o que confirma a tese de que Beethoven trabalhava para afirmar a força individual e interior dos temas. Sob o ponto de vista da realização pianística, o brilhantismo virtuosístico tão marcante em sonatas da segunda fase – como as Op. 53, “Waldstein”, e Op. 57, “Appassionata”, por exemplo – é substituído por um pianismo voltado para questões expressivas e de sonoridade. Talvez seja o segundo movimento o mais tradicionalmente concebido de toda a sonata. Um Scherzo – Trio – Scherzo explora o dualismo entre partes em fá menor, tocadas em intensidade forte, com outras em dó maior, tocadas piano, ou fraco. O Trio apresenta dificuldades pianísticas consideráveis, conferindo ênfase a aspectos mais virtuosísticos até então ausentes na composição. Beethoven reservou maiores inovações formais para o último movimento. Sua estrutura é, de fato, inusitada: compõe-se de um Recitativo-Arioso, seguido por uma Fuga, depois por outro Arioso e finalmente outra Fuga. O Recitativo e Arioso caracterizam-se por uma intensa expressividade, de caráter quase religioso; já a Fuga, forma barroca por excelência, utiliza de recursos eruditos de composição como forma de auto-afirmação expressiva. Todos os recursos técnicos, tanto composicionais quanto pianísticos, estão a serviço do lirismo e expressividade; não há, em nenhum momento, demonstrações vazias de domínio mecânico do instrumento, mas sim uma efetiva integração entre forma e conteúdo, idéia e sua expressão. Ao se utilizar da importância dada aos temas per se e não às suas possibilidades de desenvolvimento, de um pianismo não virtuosístico e menos convencional, de inúmeras sutilezas harmônicas com vistas a um enriquecimento do colorido sonoro, e do estilo recitativo e contraponto para maior intensidade expressiva, Beethoven mudou consideravelmente a concepção corrente do Gênero Sonata. Na verdade, tamanha foi sua abstração neste campo que as obras de seu último período, até hoje difíceis de serem compreendidas, não se constituíram em modelos para as gerações futuras, que viriam a preferir os embates temáticos e contornos virtuosísticos das obras da segunda fase do grande compositor. Algumas composições de sua última fase permanecem, entretanto, como exemplos sublimes de uma efetiva integração de elementos líricos e expressivos à própria Forma Sonata, num esforço bem sucedido de sublimação formal, uma espécie de materialização da permanente busca do homem pelo transcendente eterno. •


MÚSICA Robert Fabisak

Bacamarteiros: herança da Guerra do Paraguai

Saudades do meu São João O forró, festa que virou gênero musical, se aquecia com o acender das fogueiras juninas José Teles

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ouve uma época em que o forró era a “MPB” (sic) do Nordeste. Tocava no rádio o ano inteiro, e em horário nobre. Programas como O Forró do Zé Lagoa, apresentado pelo pernambucano, de Macaparana, Rosil Cavalcanti, na Rádio Borborema de Campina Grande, batiam recordes de audiência nas noites campinenses, até 1968, quando seu apresentador faleceu de um enfarte (um dos mais importantes compositores do gênero. São de Cavalcanti, entre outros clássicos, “Sebastiana”, “Na base da chinela” e “Tropeiros da Borborema”). Os criadores e intérpretes de forró reservavam atenção especial para a mais nordestina das festas das celebrações sazonais: o São João. Mais uma herança cultural dos portugueses, o São João é comemorado em todo o país, mas foi no Nordeste que se tornou a festa de um povo. O ciclo junino, por acontecer em junho, celebra além de São João, Santo Antônio e São Pedro. É uma festa plena de simbolismos para os nordestinos, anuncia a estação chuvosa, da colheita, e tem o milho onipresente no preparo das comidas típicas da época, daí o São João ser chamado também no Nordeste de “A Grande Festa do Milho”. Era um Continente junho 2005

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MÚSICA Arquivo Mispe

Zé Dantas e Gonzagão: parceria que ficou para a posteridade. Abaixo, capa do LP Pau de Sebo

período especial para artistas e compositores de forró, numa época em que o comércio da música alicerçava-se na venda de discos, catapultadas pelas execuções nas rádios. Assim como o frevo, a marchinha e, mais tarde, o axé são os ritmos representativos do carnaval, a marchinha junina, é (ou foi) o principal ritmo do período junino. Alguns compositores notabilizaram-se pela quantidade de músicas dedicadas ao ciclo. Mais conhecido como autor de “A Feira de Caruaru”, Onildo Almeida foi um dos mais prolíficos compositores de polcas e marchinhas, fornecedor de uma miríade de sucessos para a pernambucana (de São Vicente Férrer) Marinês ou o alagoano Jacinto Silva (há alguns anos, Onildo que continua morando em Caruaru, dedica-se à música evangélica). Caruaruense, como Onildo Almeida, outro especialista em marchinhas juninas foi Luiz Queiroga, gravado igualmente por Marinês, Jacinto Silva e autor da quase totalidade do repertório do Coroné Ludugero, um fenômeno do humor matuto e do forró, falecido no início dos anos 70, de um desastre aéreo, no Pará, e injustamente esquecido. O mercado do forró no Nordeste aquecia-se com o acender das fogueiras juninas. A CBS (atual Sony BMG), por exemplo, tinha entre um dos mais lucrativos produtos Continente junho 2005

do seu catálogo a coletânea Pau de Sebo (feita no mesmo formato do LP As 14 Mais, reunindo artistas que faziam música popular urbana, antes desta ser batizada de MPB. As 14 Mais chegou ao auge na Jovem Guarda). O LP Pau de Sebo era invariavelmente a trilha sonora do São João, congregando ídolos como Jackson do Pandeiro, Marinês e sua Gente, Osvaldo Oliveira, Jacinto Silva, Trio Nordestino, Elino Julião, Os 3 do Nordeste, Messias Holanda, Zezinho dos Oito Baixos, Waldomiro e os Brasas do Nordeste, Carrapeta, João do Pife, Coroné Ludugero e Abdias. Este último, então marido de Marinês, era quem assinava a produção da série Pau de Sebo. Um sucesso que levou as concorrentes a copiar a série. A Rozenblit, pelo selo Mocambo, passou a produzir discos exclusivos para os festejos juninos, tais como a série Viva São João, que incluía artistas hoje raramente lembrados: Alcides Leão, Maria dos Prazeres, Jair Pimentel, Déo do Baião. A Viva São João mesclava baiões, rojões, com marchinhas juninas, mas a gravadora de José Rozenblit produzia LPs exclusivos para a festa, com o Capelinha de Melão, cujo repertório era formado quase que exclusivamente por marchinhas e polcas, composições como “Olé Laurindo” (Luis Queiroga), “Bicha de rodeio” (Jair Pimentel), “Pisei na fogueira” (Nelson Ferreira e


MÚSICA

O homem que cheirava a bode – Antonio Barros e Cecéu, Zé Marcolino, Rosil Cavalcanti, João Silva, muitos foram os que compuseram clássicos para o São João nordestino, nenhum, no entanto, se compara a Zé Dantas, pernambucano de Flores de Carnaíba. Culto, médico, que viveu metade da vida no Rio de Janeiro (onde morreu prematuramente aos 41 anos), dele o melhor elogio que Luiz Gonzaga encontrou para lhe realçar o talento foi o de “Era um homem tão conhecedor das coisas do sertão, que quando se chegava perto dele se sentia cheiro de bode”. Embora o cearense Humberto Teixeira tenha tido a primazia de formatar com Gonzagão os diversos ritmos nordestinos, dar-llhe uma vestimenta pop, urbana, foi Zé Dantas o mais telúrico e poético dos autores de forró. Suas composições dedicadas ao período junino são impregnadas de uma alegria paradoxalmente mesclada a uma certa tristeza, como se preconizasse o fim de um sertão condenado pelo modernismo, mas que não foi beneficiado pela modernidade. É de Zé Dantas a mais pungente de todas as canções feitas para o São João, “Noite Brasileiras” (Ai que saudade que eu sinto/Das noites de São João/Das noites tão brasileiras, nas fogueiras/Sob o luar do Sertão/Meninos brincando de roda/Velhos soltando

balão/Moços em volta à fogueira/Brincando com o coração/Eita São João dos meus sonhos/Eita saudoso Sertão). É de Zé Dantas também “São João na Roça”, outra canção obrigatória (A fogueira tá queimando/Em homenagem a São João), “São João no Arraiá” (ô Iaiá vem ver/ô Iaiá vem cá/Vem ver coisa bonita/São João no Arraiá). E a emblemática “A Dança da Moda”, que registra a invasão do baião na então Capital da República (No Rio tá tudo mudado/Nas noites de São João /Em vez de polca e rancheira/O povo só dança, só pede o baião). Infelizmente, não foi apenas o Rio que ficou totalmente mudado, o Nordeste não escapou às mudanças. Não se soltam mais balões, as fogueiras são vistas com desconfiança pelos ambientalistas, as quadrilhas, que eram animadas pelas músicas juninas estilizaramse (as tais gaydrilhas, sapadrilhas e demais “drilhas”), foram engolidas pelos gigantescos festejos como os de Campina Grande e Caruaru, assimilando trejeitos de desfile de carnaval baiano. Assim o inevitável aconteceu, as marchinhas juninas, assim como as congêneres carnavalescas acabaram. Eventualmente, forrozeiros incluem alguma em seus discos anuais (que ainda seguem a tradição de serem lançados pouco antes ciclo junino), mas as únicas que continuam a ser cantadas pelo povo são antigos sucessos do Trio Nordestino (“Tem tanta fogueira/Tem tanto balão”, do eterno Gonzagão, várias delas, a exemplo de “Olha pro Céu meu amor/Veja como ele está lindo” (“Olha pro Céu”, de José Fernan-

A fogueira e o balão são símbolos típicos dos festejos juninos

Marcelo Soares/Lumiar

Sebastião Lopes). Em grande parte destes discos a sanfona que se ouve é do maestro Camarão, que também lançou muitos LPs para o São João (todos fora de catálogo, como de resto a maioria do catálogo da Rozenblit).

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Hans Manteufell

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CINEMA

A carnavalização da quadrilha é um fenômeno decorrente do forró "alambado"

A fogueira está apagando

Desde o final dos anos 80, com o surgimento do forró-lambada, que os ritmos que compõem o gênero original esbarram em si mesmos

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o final dos anos 80, a Kaoma, um desses fenômenos isolados que grassam eventualmente o mercado musical, invadiu as paradas de sucessos internacionais com uma canção intitulada “Lambada”. Foi um furacão fugaz, mas que marcou a música brasileira e particularmente a nordestina. A Kaoma foi formatada em Paris pelo cineasta Olivier Lorsac e o produtor musical Jean Karakos, que testemunharam o sucesso da lambada no Brasil, em 1988, e decidiram lançar o ritmo como a onda do verão europeu. Reuniram músicos senegaleses do grupo Touré Kundá com a vocalista carioca Loalwa Brás, e casais de dançarinos, com uma coreografia lasciva. Conseguiram um único e arrasador sucesso. No Ceará, um ex-juiz de futebol, Emanuel Gurgel, copiou a formação da Kaoma, acrescentando-lhe zabumba e triângulo, e repetindo o ritmo alambadado, idêntica escalação com dançarinos, teclados e uma cantora desconhecida, Kátia Cilene, como principal vocalista. O sucesso da Mastruz com Leite foi quase imediato. Logo Gurgel criaria o selo SomZoom, cujas bandas não se pautavam pela personalidade musical. Soavam tão iguais que precisavam anunciar o nome do grupo em meio uma canção. As bandas que foram surgindo no rastro da Mastruz com Leite passaram a incorporar um “forró” antes do nome, ao ponto de fazer os forrozeiros Continente junho 2005

tradicionais autodenominarem-se de “pé-de-serra”. Resumindo: o forró nunca mais seria o mesmo, e a marchinha junina praticamente desapareceria. “Não acabou porque deixaram de fazer, mas porque temos um Nordeste que não se interessa mais por elas, depois que aceitou estas bandas eletrônicas. Hoje, se você chega para vender um forró pe-de-serra, no interior, para um secretário de prefeitura fica difícil, porque o povo acostumou-se com as bandas. Mas pretendo fazer no futuro um disco só de música junina”, garante o sanfoneiro Genaro, que atualmente faz dupla com a mulher Walkyria, e que já integrou por 11 anos o mais famoso grupo de forró, o Trio Nordestino. Considerado um dos mais importantes autores e intérpretes de forró da atualidade, Maciel Melo (é dele “Caboclo Sonhador”, sucesso nacional com Fagner) é fatalista, para ele a música com temas juninos saíram de moda também por culpa dos próprios compositores: “O pessoal só cuida mais de compor xote, baião; os outros ritmos que formam o forró estão sendo esquecidos. Até as quadrilhas são hoje animadas com lambada”. O próximo disco de Maciel será acústico, no estilo “cantoria”, criado por Elomar Figueira. Já Santanna, O Cantador, um dos poucos ídolos populares do pé-de-serra no Nordeste, acha que a temática junina é que limita a música: “Ainda canto


MÚSICA alguns sucessos de São João nos shows, o povo pede, mas é um estilo que, feito o frevo, acaba ficando restrito a uma época. Há composições juninas belíssimas, mas não tenho muita paixão por elas, não. Dos ritmos criados por Gonzaga, para mim, é o que fica em último plano”. Um autor prestigiado, idealizador de um projeto que denominou Forroboxote, que já vai no terceiro disco, Xico Bezerra tem a mesma opinião de Santanna. Para ele a música feita para o São João esbarra na barreira temática: “Essa coisa de falar em fogueira, balão atrapalha, é como o frevo-de-bloco, que é muito bonito, mas

se perde por bater na mesma tecla do saudosismo. Na minha música estou fazendo letra com outros temas, mais atuais”. O sanfoneiro e cantor Vanildo de Pombos, que vem destacando-se no pé-de-serra, com apresentações nos EUA e Europa, diverge dos colegas. O disco que se prepara para lançar, este mês, tem o título de Meu São João: “Na minha música falo de balão, fogueira, e faço marchinha junina, baião, rojão, não sou chegado a um xote. Sei que hoje não se vê mais balão no ar, mas eles continuam existindo na imaginação do povo, isto para mim é o que vale” (J.T.) • Arquivo/AE

São João da época de ouro Nos anos 30, os temas juninos tinham quase a mesma importância que os carnavalescos Julio Moura

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ouve um período, na incipiente indústria fonográfica nacional, onde as músicas juninas tinham quase a mesma importância que os temas carnavalescos. Era justamente nestas duas épocas do ano – Carnaval e São João – que se dava a maior demanda de canções nos anos 30, lançadas em disco e obsessivamente executadas nas rádios. Canções como “Isso é lá com Santo Antônio” (Eu pedi numa oração / ao querido São João que me desse um matrimônio / matrimônio, matrimônio / isso é lá com Santo Antônio) e “Chegou a hora da fogueira” (“Chegou a hora da fogueira / é noite de São João / (...) pensando na cabocla a noite inteira / também fica uma fogueira / dentro do meu coração”), ambas de Lamartine Babo, gravadas em dupla por Carmem Miranda e Mario Reis, tornaram-se tão referenciais quanto os temas juninos popularizados sobretudo por Luiz Gonzaga na década seguinte. Braguinha e Alberto Ribeiro também compuseram intensamente para os festejos à volta da fogueira (tradição que chegou ao Brasil por volta de 1580, trazida por portugueses e espanhóis). São da dupla as emblemáticas “Sonho de papel” (“O balão vai subindo, vem caindo a garoa / (...) São João /

Carmem Miranda também cantou marchinhas juninas

acende a fogueira no meu coração”) e “Capelinha de melão” (“Capelinha de melão / é de São João / é de cravo, é de rosa é de manjericão”). O flautista Benedito Lacerda enveredou pelo tema, dessacralizando os santos em “Antônio, Pedro e João”, com Oswaldo Santiago: “Com a filha de João / Antonio ia se casar / mas Pedro fugiu com a noiva / na hora de ir pro altar”. Mesmo Noel Rosa, que não produzia canções específicas para o período, ambienta nas festas juninas típicas do subúrbio carioca um de seus sambas mais emblemáticos, “Último desejo”: “Nosso amor que eu não esqueço / e que teve o seu começo / numa festa de São João”. A partir dos anos 40, com a popularidade de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Manezinho Araújo e outros cantores vindos do Nordeste, a música do Rio de Janeiro desaguou em outros gêneros e as antigas marchas juninas tornaram-se praticamente sinônimos de baião, xote e similares. O surgimento da bossa-nova, na década de 50, afastou certas marcas da brasilidade, propondo um discutível olhar cosmopolita, mais adaptado aos anseios da zona sul carioca, para onde a nova burguesia urbana convergia. • Continente junho 2005

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AGENDA

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Concerto para Quixote Festival Virtuosi realiza edição especial em homenagem aos 400 anos do clássico Dom Quixote O Festival Internacional de Música de Câmara de Pernambuco, Virtuosi, que habitualmente se realiza no mês de dezembro, estará nos palcos do Teatro de Santa Isabel, em edição especial, para celebrar os 400 anos de publicação de Dom Quixote. O Virtuosi celebra Cervantes é a segunda montagem “fora de época” do projeto, que, no ano passado, comemorou Nassau. Enquanto a Espanha festeja, durante todo o ano de 2005, o aniversário da obra de Miguel de Cervantes, o Virtuosi faz sua homenagem ao clássico da literatura, traduzindo-o no espetáculo Retratos para o Cavaleiro da Triste Figura, nos dias 16, 17 e 18 de junho. “Não existe obra literária com maior repercussão na música que Dom Quixote de La Mancha. Encontramo-nos, pois, diante de uma obra de grande envergadura, impossível de integrar por completo em uma partitura, mas repleta, por outro lado, de situações, histórias e cenas perfeitamente abordáveis em grandes e pequenas formas musicais”, explica a idealizadora do projeto, Ana Lúcia Altino.

O professor José Alexandre Ribeiro, da PUC-Campinas, dará início ao Virtuosi celebra Cervantes proferindo a palestra “A propósito do 400 anos de Quixote”. A mezzo-soprano Denise de Freitas (SP), o barítono Stephen Bronk (EUA), o pianista Nahim Marum (SP), a Orquestra Virtuosi, sob a direção do Maestro Rafael Garcia, e a dama do teatro Geninha da Rosa Borges são alguns dos artistas que integrarão o concerto lítero-teatral. Um dos raros eventos de música clássica fora do eixo Rio-São Paulo, o Virtuosi tem como finalidade levar um repertório diferenciado da música de câmara ao público nordestino, oferecendo ao pernambucano o que há de melhor na música erudita.

Virtuosi Celebra Cervantes. Teatro de Santa Isabel (Praça da República, s/n, Santo Antônio. Fone: 81.32241020). Dias 16, 17 e 18 de junho, às 21 horas. Ingressos: R$ 20,00 (frisa e platéia), R$ 15,00 (camarotes A e B) e 50% de desconto para estudantes e terceira idade.

Olha o Mateus!

Elogio a Tom Zé

A exemplo de Villa-Lobos, Guerra Peixe e Cussy de Almeida, o maestro Ademir Araújo também bebe na fonte das manifestações populares para fazer uma música erudita. Isto não quer dizer que ele seja parecido ou imite os mestres (ele foi aluno de Guerra Peixe). Muito pelo contrário. O que Ademir Araújo traz no segundo CD, mas o primeiro com composições e arranjos feitos por ele e especialmente para a Orquestra Popular do Recife, da qual é regente, é um repertório original, que revigora a brincadeira local. Fundada em 1975 por Ariano Suassuna, (portanto completando 30 anos de ação ininterrupta) a Orquestra é pioneira na pesquisa e transcrição de gêneros tradicionais. O frevo é a tônica do trabalho (o que faz com que saia da sazonalidade), mas o disco traz maracatus (e toadas), caboclinhos, bumba-meuboi, cirandas, cocos e baiões com um virtuosismo que assombra pelo timbre potente dos metais, pela alta afinação e precisão técnica.

Tom Zé nunca é o mesmo. Estudando o Pagode, seu mais recente CD, é um ataque dadaísta a tudo que represente ordem, autoridade: conceito, norma, forma, linguagem, patriarcado e tonalidade. Inspirado pelas festas que animam os fundos de quintais e pela lavagem cerebral que o gênero, depois que virou pop e ganhou uma cor melosa, fez numa boa parte da juventude dos anos 90, Tom Zé fez um disco que se assemelha ao gênero original somente pelos seus ritmos e síncopes e pelo tom de elogio a mulher, só que fazendo coro com os manifestos femininos por um olhar masculino que contemple não só a carne. Apresentadas em forma de opereta, ou como auto medieval, as músicas são repletas de dissonâncias e trazem recitações e versões incidentais que vão desde “Meu Primeiro Amor”, de Hermínio Gimenez, e “Dindi”, de Tom e Aloysio de Oliveira, a “Ave Maria” e a “Ária da Quarta Corda”, de Bach.

Olha o Mateus!, Orquestra Popular do Recife. Independente, preço médio R$ 15,00.

Estudando o Pagode, Tom Zé. Trama, preço médio R$ 25,00.

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Sambalanço

Crônicas do amor

A nação de Seu Luiz

Quando Jorge Ben promoveu uma revolução musical ao lançar, em 1963, seu primeiro LP, Samba Esquema Novo, J. T. Meirelles, saxofonista, flautista e, naquele caso sobretudo, arranjador, pouco apareceu para quem foi co-autor desta revolução. Depois de seis anos longe da música, Meirelles voltou (em 2001), reinventou e reafirmou seu próprio gênero: Esquema Novo, estilo que dá nome e conceito ao novo álbum e corresponde à mistura proposta por Ben/ Meirelles de bossa-nova, maracatu, funk e outros, tendo o samba como base e, no caso da carreira solo de Meirelles, o jazz como linguagem. Esquema Novo é mais uma prova do sambalanço moderno do multiinstrumenstista.

“Tocar lento é difícil, pensei, nada passa despercebido, nada pode ser à toa, tudo tem que ser na medida”. Foi pensando assim que Léa Freire (flautista) aceitou o desafio lançado por Bocato de realizar um projeto de CD de trombone e flauta-baixo para canções brasileiras. O resultado é harmônico, caprichado, repleto de improvisos melódicos. Canções como “As Rosas não Falam” (Cartola), “Andorinha” (Tom Jobim) e “Nunca” (Lupicínio Rodrigues) ganham tons ainda mais melancólicos que os originais. Mais do que uma Antologia da Canção Brasileira, nome do disco, este é um espelho musical das nossas paixões e desilusões – “crônicas” do amor demais.

Se o gênero forró (tradicional!) ainda não se apagou junto com as fogueiras que queimam durante os festejos juninos, muito se deve ao poeta, compositor e produtor Xico Bizerra, um dos impulsionadores do forró nas terras da nação de Seu Luiz. Em seu quarto Forroboxote, Xico reúne a nata do gênero: Alcimar Monteiro, Dominguinhos, Flávio José, Genaro, Jorge de Altinho, Maciel Melo, Petrúcio Amorim, Quinteto Violado, Santanna (O Cantador), entre outros, que interpretam composições do próprio Xico e fazem o autêntico pé-de-serra, com direito a xotes e baiões que falam em amor, sonhos, em Seu Lua, da eterna e brava luta dos sertanejos pela sobrevivência, em alegria e na natureza.

Esquema Novo. Dubas, preço médio R$ 25,00.

Antologia da Canção Brasileira Vol. 1, Maritaca, preço médio R$ 21,00.

Forroboxote 4, de Xico Bizerra. Independente, preço médio R$ 13,00.

Reverência a Victor

Brito no choro

Música achocolatada

Quando João Carlos Assis Brasil foi morar no Leblon, decidiu abrir as duas malas do seu irmão, Victor (morto em 1981), que havia herdado da mãe e guardavam um verdadeiro tesouro musical: 400 composições inéditas. Inspirado em Satie, Debussy e Ravel, nos ritmos nacionais e no jazz, Victor se apresentou ao irmão como um compositor profícuo e criterioso. João Carlos, que tinha uma relação de cumplicidade com Victor, por serem gêmeos e músicos, selecionou 13 músicas e as editou no álbum Self-Portrait, lançado originalmente em 1990 e relançado agora pela Biscoito Fino. O disco, quase uma dupla biografia, apresenta um compositor sensível e pouco conhecido, interpretado pelo irmão pianista reverente e claramente saudoso.

Vencedor do prêmio Visa na categoria Instrumental (2004), o jovem bandolinista e compositor Danilo Brito simplesmente barbariza com o instrumento no disco Perambulando (segundo do artista). Entrando na roda dos chorões, Brito adere à tocata com quatro composições próprias (“Um choro na madrugada”; a veloz “Sussuarana”, “Aragão no choro”; e “Perambulando”,). Nas demais, predominam clássicos, como “Confidências”, de Ernesto Nazareth, “Espinha de Bacalhau”, de Severino Araújo, “Choro da Saudade”, de Augustín Barrios, e “Um a zero” de Pixinguinha e Benedito Lacerda. Mas em todas prevalece o rigor técnico e emoção de um maduro, apesar dos 19 anos, instrumentista.

A associação feita em Music From The Chocolate Lands, da Putamayo, é uma deliciosa viagem pela sonoridade dos países que cultivam o cacau e produzem o chocolate. Com tempero caribenho, bem nas cores, sabores e movimentos que a iguaria sugere, o disco vai da África, com Richard Bono, Lokua Kanza e Gérald Toto, passa pelo Brasil, Haiti, pela música ativista do grupo mexicano Ozomatli, pelas pesquisas do Think of One, grupo viajante belga que adiciona às suas raízes as sonoridades dos lugares por onde vai, até ao Taffetas, conjugação de músicos suíços e do oeste africano. Chocolate Lands simboliza a conexão entre os climas tropicais e o prazer sinestésico que o doce proporciona.

Self-Portrait, Biscoito Fino, preço médio R$ 22,00.

Perambulando, Danilo Brito. Eldorado, preço médio R$ 26,00.

Music From The Chocolate Lands, Rob Digital/ Putamayo, preço médio R$ 49,00. Continente junho 2005

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MÚSICA


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TRADIÇÕES

Beto Figueirôa/JC Imagem

Redemunho poético Poesia oral da Mata Norte é registrada em disco, renovando e reverenciando a cultura do maracatu de baque solto, do coco e da ciranda Isabelle Câmara

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redemunho de sons exuberantes dos caboclos de lança do maracatu de baque solto, das alegres e contagiantes rodas de coco ou de ciranda que irrompem a paisagem bucólica da Zona da Mata Norte de Pernambuco, região que desponta para o cenário local como nascedouro e berço de várias manifestações populares, como as citadas e também as sambadas e o cavalo-marinho, ganha um importante registro em CD com a realização do projeto Poetas da Mata Norte, que lança, em julho, seis álbuns, sendo dois de ciranda, dois de coco e dois de maracatu de baque solto. O nome da coletânea traz o conceito de “poetas” e não de músicos, o mais comum de se imaginar. “Eles são poetas. Mesmo que musicalmente harmonizadas, o que está posto naquelas brincadeiras é poesia pura; a tradição popular da poesia oral rimada, que apenas vem sustentada pela melodia”, explica o músico pernambucano Siba, que aparece no meio deste cenário como idealizador do projeto – verdadeiro guardião de tradições vivas. Também anuncia: são os artistas populares que protagonizam os discos.


TRADIÇÕES

O que poderia ser um mero aproveitamento da criação poético-musical e brincante daquele povo tornou-se a reconhecença aos poetas que fazem a tradição acontecer. É o que afirma Seu Zé Galdino, mestre cirandeiro e dono de uma ciranda em Buenos Aires (PE), desde 1991. “Somos muito esquecidos. Nunca tinha gravado um disco, até a realização deste projeto. Apesar dos meus 56 anos, sinto-me aluno de Siba”. Autor da canção “Ô, cirandeira”, que em muito lembra a cadência da ciranda litorânea, Galdino esclarece: “A ciranda de Engenho só tinha bombo e caixa. Era mais apressada, mais matuta. Hoje ela é mais compassada, tem o suporte de outros instrumentos” – essencialmente o terno (caixa, bombo, mineiro) e o trompete. O cirandeiro João Limoeiro, mestre de ciranda há 32 anos e dono da Ciranda Brasileira de Carpina, acrescenta detalhes de como a brincadeira se dava na região, numa resposta em poesia: “O cirandeiro chegava no Engenho, botava o candeeiro num toco de pau. O mestre cantava, puxando versos de improviso e loas, acompanhado pelo terno, e as pessoas dançavam em torno da luz do candeeiro”. Os discos, além de fazer com que os poetas sejam celebrados, especialmente pelo público recifense, “com quem têm uma relação afetiva intensa, mas não reconhecedora”, segundo Siba, legará um excelente patrimônio material para os artistas: as matrizes e os direitos sobre o material – Siba não terá nenhuma participação nos lucros com a venda do álbum. Dele também participarão os coquistas Zé de Teté, de Limoeiro, com o coco de roda, Antônio Caju & Caetano da Ingazeira, de Aliança, que vêm com o coco de embolada; e os maracatuzeiros João Paulo & Barachinha e Antônio Roberto, todos de Nazaré da Mata.

Fotos: Divulgação

Os cirandeiros Zé Galdino e João do Limoeiro (abaixo)

Lacuna – As informações trazidas por Siba, resultante muito mais do ouvir e do cantar ciranda nos terreiros, da convivência com mestres cirandeiros da Zona da Mata Norte do que da investigação com rigor acadêmico, preenche uma lacuna importante sobre o folguedo. Entre as poucas pesquisas que se tem notícia no país, uma foi publicada no livro Ciranda, roda de adultos no folclore pernambucano (1960), que também conta com partituras dos versos, pelo Padre Jaime Diniz, que além de pároco da Igreja da Harmonia, em Casa Amarela (Recife-PE), era professor de música e musicólogo. Ignorado até por dicionaristas como Pereira da Costa, no seu Vocabulário Pernambucano; Antônio Joaquim Macedo Soares, no Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa; Gonçalves Dias, no Dicionário da Língua Tupi, entre outros, o termo “Ciranda”, de acordo com as pesquisas do Pe. Jaime Diniz, tem origem espanhola e vem de “zaranda”, que é um instrumento de peneirar farinha, joeirar cereais; “deve-se ao fato, também, das mulheres trabalharem juntas em serões, daí ‘seranda’”. Diniz deixou um único livro sobre o tema, mas fundamental para se entender a origem e a difusão da brincadeira, principalmente em Pernambuco. Ele afirma que o folguedo era praticado na corte portuguesa, onde era cantado e bailado: “A ciranda é uma dança típica de adultos, nada tem a ver com a ‘ciranda, cirandinha’ infantil. É de origem portuguesa, veio para o Brasil provavelmente no século 18, junto com o pastoril. Aqui se dança principalmente Continente junho 2005

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Arquivo/DP

Baracho trouxe a ciranda do engenho para o litoral

na Mata Norte, de onde desceu para o litoral, há uns poucos anos. É conhecida há muitos anos em Timbaúba, Paulista, Carpina, Goiana, Limoeiro, Nazaré da Mata, Cruz de Rebouças, Paudalho”. O projeto Poetas da Mata Norte devolve à região o reconhecimento da origem brasileira da brincadeira. “A ciranda de Engenho acontecia de forma intensa nos anos 50 do século passado, na (zona da) Mata Norte. Mas era uma ciranda diferente, com um ritmo mais acelerado. Não tinha músicos; era só o mestre cirandeiro puxando o coro. Com o êxodo rural, a ciranda chega ao ambiente urbano e assimila outras informações, ganhando um ritmo mais amarrado, o rigor da rima e da métrica, a variedade de assuntos. Também são inseridos os instrumentos tarol e bombo”, complementa Siba. •

Na pancada das ondas do mar Brincadeira saiu da mata e foi para o mar pelas mãos de Baracho, no final de 1950

M

esmo aportando na Zona da Mata Norte, a Ciranda já imitava as ondas do mar, diz o Padre Jaime Diniz – ambiente ao qual só iria chegar anos depois. “Ao sinal do mestre de Ciranda – algumas vezes com apito ou apenas ‘tirando uns versinhos’ – os cirandeiros se preparam pra começar a cantar e girar, com o seu ondeado, ou melhor, com seu ‘remado’ igual de corpo (...)”. E acrescenta detalhes de como se davam a dança e a brincadeira: “Para entrar na roda, ninguém encontra obstáculo. A roda é do povo. É de todos. Basta abrir os braços de um par e eis o candidato a dançar. Seja no meio de um par, seja entre homens ou mulheres. Nenhum preconceito dos que reinam em nossa sociedade. Improvisação coreográfica também há (...). Outras trazem influências do frevo. Vimos (...) um cirandeiro dançando com as pernas cruzadas; outro aumentando de muito – numa espécie de subdivisão do tempo – os passos realizados pelos demais”. E também o ritmo: “Cada instrumento de percussão desenha uma figuração rítmica particular. (...) não Continente junho 2005

há harmonia nem polifonia de qualquer espécie”. A Ciranda chegou ao ambiente litorâneo através de Baracho, cirandeiro e maracatuzeiro em Nazaré da Mata que decidiu vir para a Região Metropolitana do Recife, mais precisamente para o município de Abreu e Lima, no final de 1950. Numa matéria publicada no Diario de Pernambuco, em 19 de junho de 1975, assinada pelo jornalista Homero Fonseca, hoje editor da Revista Continente, Baracho afirma ter ouvido uma ciranda pela primeira vez quando tinha 18 anos (provavelmente em 1934), e que decidiu trocar o maracatu pela ciranda há “uns 20 anos” (em 1955), pois com o “maracatu nunca ia deixar seu nome na história”. Baracho ainda hoje é reverenciado pelos novos e pesquisadores como um dos mais autênticos e importantes mestres cirandeiros do país. Depois de chegar em Abreu e Lima, coube a Dona Duda, organizadora de uma roda de ciranda que teve seu auge no início de 1970, a Ciranda do Cobiçado, depois Ciranda de Dona Duda, no Janga, o papel de difundir a


TRADIÇÕES Roberta Mariz

Alejandro Zambrana/DP

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Dona Duda: difusora da ciranda litorânea

Lia de Itamaracá, embaixatriz do folguedo

manifestação. Lá, músicos, poetas, artistas plásticos, atores e intelectuais da época e da atualidade se encontravam e se davam as mãos para cantar, girar e dançar ao som das “pancadas do mar”. Não há pernambucano com mais de 30 anos que não tenha ouvido falar nesta ciranda ou que não a tenha até freqüentado. Por lá também passaram Caetano, Gil e Os Mutantes. Com a Ciranda de Dona Duda, estabelece-se a tradição de se dançar ciranda na beira da praia, conferindo à brincadeira um costume que se transformou numa de suas marcas. O pesquisador Evandro Rabello também anota, em seu livro Ciranda: dança de roda, dança da moda, que, partir de Dona Duda, os músicos passaram a tocar em cima de um tablado, “divorciados da roda dos cirandeiros”. A origem de Lia de Itamaracá, uma das estrelas do folguedo, é um mistério. Nativa da Ilha, Lia diz que foi ela quem, num culto a si mesmo, fez a música. “Eu fiz a música com Teca Calazans, quando ela passou férias aqui, não lembro, ao certo, em que ano. Nasci e me criei em Itamaracá, aprendi a cantar ciranda na vida, nunca tive nenhum mestre”. Na matéria assinada por Homero Fonseca, Baracho oferece sua versão: “Lia foi invenção minha. Isso eu provo. Cantei os versos pela primeira vez, aqui em Abreu e Lima”. Dona Duda confirma: “Baracho criou os versos a pedido da

Terezinha, que queria homenagear uma amiga. Eu estava presente”. Teca Calazans, hoje morando na França e dizendo não agüentar mais esta história, parece liquidar as dúvidas: “Em 1960, quando trabalhava no MCP (Movimento de Cultura Popular), recolhi uma série de cirandas em Abreu e Lima, donde a ‘Essa ciranda quem me deu foi Lia’ (confirmo a versão do Baracho). Em 1967 gravei um compacto simples na Rozenblit, selo Mocambo, chamado: ‘Têca’. Lado A, uma seleção dessas cirandas que recolhi em Abreu e Lima e na contracapa do disquinho está escrito: 'Seleção de cirandas, pesquisa e adaptação Teca Calazans. Lado B, ‘Aquela Rosa’, de Geraldo Azevedo e Carlos Fernando. Nesta época, ninguém cantava ciranda, eu fui a primeira pessoa a cantar e gravar ciranda. Nunca passei temporada na ilha de Itamaracá!”. Alheia às polêmicas, Lia de Itamaracá não parece preocupada com o que dizem sobre sua origem enquanto cirandeira. Na roda que faz, todos os sábados, à noite, no Espaço Cultural Estrela de Lia, na Ilha de Itamaracá, ela deixa clara a sua natural superioridade (do alto dos seus 1,80m!) de quem está levando a brincadeira Brasil afora, de quem é simplesmente considerada Lia do Mundo, embaixatriz da Ciranda. • (I.C.) Continente junho 2005


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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

O significado da existência Pode não ser bem isso o que você pensa

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á bom tempo, na sessão de abertura do parlamento de Bangladesh, os legisladores reagiram com fúria a um gesto do então ministro dos Transportes, A. S. M. Abdur Rob: “Isso é uma desonra, não só para este parlamento, mas para toda a Nação!” – declarou o vice-líder do Partido nacionalista, A. Q. M. Braduddoza Chowdhury. O que fez Rob para provocar tal ira daquela autoridade? Apenas o velho sinal do polegar voltado para cima. Para nós brasileiros, assim como nos Estados Unidos, o gesto significa “Tudo bem” ou “Tá legal”, no entanto, lá em Bangladesh é uma afronta, e em outros países islâmicos o ato equivale ao que o dedo médio levantado representa para nós: “Tá pra tu!”. Porém, enquanto o estender de uma das mãos com a palma para fora nos indica a expressão mímica de “Pare!”, na Grécia o gesto é chamado de moutza, vejam só, sinal comum de confronto. E na África Oriental ele é ainda mais ofensivo do que o “agressivo” dedo médio levantado. Entendida ou não a invenção do significado de pequenos gestos como esses, passemos, por oportuno, às coisas mais profundas, por isso complicadas, que nos desorientam a compreensão da razão do nascer, viver e morrer – de existirmos. Quando da primeira respiração choramos; à infância somos castigados por tirarmos notas baixas nas escolas de boletins fajutos; ao saber que chegamos à idade adulta – não necessariamente amadurecidos, pagamos impostos aviltantes, elegemos políticos corruptos para nos dirigir e a Nação, acreditamos em demônios – que são os outros. E, por fim, nos preparamos para morrer dignamente. Imaginem! Velhos gulosos, arengueiros, metidos a sábios do que nunca aprenderam, esperando livrar-se, ao menos, do sepultamento em covas rasas e indigentes, ou pior, tarjados de um “aqui jaz” mais um deprimido barnabé aposentado com um salário mínimo – eis o fim do poço. E o velho mestre Sartre ainda levantou a bola filosófica do Existencialismo, do sentido e fingido, que, segundo Gide, são Continente junho 2005

dois sentimentos que já não se confundem, mas quase se confundem. Desse modo, possivelmente temos de escolher, tal Mathieu comentou: não ser nada ou fingir o que se é. Se para a crendice católica e seguidores de linhas diversas e concernentes, testamenteiros da criação do mundo, Deus criou o homem à sua Imagem e Semelhança; tirou-lhe uma costela e da mesma fez a mulher, sugerindo-lhes a procriação direcionada para povoar a Terra; ditou os Dez Mandamentos nas tábuas de Moisés para serem aprendidos e cumpridos pela humanidade. E depois mandou Jesus Cristo para dar exemplo de sacrifício aos seres humanos, ensinando-lhes obediência ao Pai supremo, a paz entre os povos, a negação às guerras e aos pecados capitais... Para outras linhas religiosas somente Deus existe. Ainda esperam pela vinda do Salvador – quando serão desvendados o início, o meio e talvez o fim da Terra, os fingimentos dos homens e mulheres, suas bondades e maldades e a morte. No cientificismo, dentre as vias da física clássica e moderna – quântica, ótica, molecular, até a muscular e outros bichos, o filão de ouro ficou por conta da física de Einstein, para quem o tempo é uma variável, dependendo de quem observa e marca tempos diferentes para a mesma coisa – chose de loque. Os cientistas (nem sempre loucos) apostam no Big Bang como a razão do feitio do Universo – a explosão de uma contração de massas e vai por aí. Após tantas confusões, prefiro acreditar que Deus mandou para nossa Terra uma porção de naves cheias de homenzinhos amarelinhos extraterrestres, de cabelos em pé e olhinhos rasgados, que escreviam de trás pra frente em desenhos e hieróglifos. Noutras iguais, balaios de mulheres, todas cobertas de turbantes e burkas. E juntos, danaram-se a transar e fazer filhos como coelhos. Tirante a miscigenação, inventaram o papel, a roda, as armas, o rádio de pilha, um celular deste tamanhinho e se matam como bombas humanas por amor aos seus deuses ou imperadores ou governantes tirânicos. E ainda se diz que o Existencialismo é um humanismo. •




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