Continente #060 - Arte & loucura

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Reprodução

EDITORIAL

O Princípio do Prazer (Retrato de Edward James), 1937, de René Magritte

Artes e loucura

N

a introdução do seu instigante Sortilégios do Avesso – Razão e Loucura na Literatura Brasileira, recentemente lançado pela editora Escrituras, a professora Luzia de Maria apresenta um longo currículo da loucura: “doença sagrada” ou “possessão das musas” na Grécia antiga, protagonizou episódios da Bíblia, freqüentou festas sagradas e profanas na Idade Média, mereceu o célebre Elogio de Erasmo em tempos de Reforma, imortalizou-se em personagens shakespearianos e no Dom Quixote, foi confundida com genialidade pela estética romântica e insinuou-se no pensamento moderno, de uma forma tal, a ponto de assumir o prestígio, outorgado pelos surrealistas, de ser apenas a outra face da moeda chamada Razão. O livro da escritora e pesquisadora fluminense, autora de ampla obra ensaística e de literatura infantil, deflagrou a pauta que se tornaria a capa desta edição, que investiga ainda as relações do fenômeno da perturbação psíquica com outras formas de arte, como a música, o teatro e as artes plásticas, além de uma abordagem psicanalítica, como não poderia deixar de ser. Esta edição da Continente Multicultural, de número 60, assinala o quinto aniversário da Revista, marca por si só bastante expressiva em se tratando de uma publicação cultural no território brasileiro. Publicada pela CEPE – Companhia Editora de Pernambuco, empresa responsável pelo Diário Oficial do Estado, a Revista cumpre o papel de difusor cultural, atuando numa mão dupla: de um lado, divulga a cultura pernambucana e, de outro, abre suas páginas à produção cultural relevante de toda a parte. Nesse período, a Revista publicou uma série de matérias especiais em que tem espaço uma reflexão plural sobre alguns dos temas mais estimulantes desta e de todas as épocas, como a crise da Razão iluminista, os fenômenos kitsch e trash, os tabus na arte, o que é pós-modernidade, narcisismo, democracia, sedução, saber e poder, entre outros. Eles estão reunidos num livro-revista intitulado Pensata, a ser apreciado pelos nossos leitores. É uma forma de comemorar com qualidade os cinco anos ininterruptos de circulação da Revista. • Marcelo Maciel Presidente da CEPE

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CONTEÚDO Fotos: Reprodução

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Foucault viu as complexas relações entre arte e loucura

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Casal, 1998 – bronze, de Abelardo da Hora

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CONVERSA

04 Marco Nanini fala sobre sua experiência teatral

CAPA

PAISAGISMO 58 Burle Marx e sua concepção de paisagismo como arte

12 O hospício e seus habitantes na literatura

ESPECIAL

16 Arte e loucura à luz da psicanálise 18 De loucos, os artistas não têm nem um pouco 20 O gênio romântico flertava com a desrazão 22 O teatro no limiar da loucura em cena

70 Universidade de Yale prepara “Dia de Machado” 73 Nova biografia do “Bruxo”, precursor de Borges 77 Um Machado ativo e participante do seu tempo

LITERATURA

80 Maestro Moacir Santos volta à tona 84 Agenda Música

26 Os ecos ferozes do “Uivo” dos beatniks 31 O centenário do autor de O Tempo e o Vento 33 A poesia-enigma de Delmo Montenegro 34 Poemas inéditos de Affonso Romano de Sant'Anna 36 Agenda Livros

CÊNICAS

MÚSICA

REGISTRO 85 Pinter, um Nobel para o cinema

FOTOGRAFIA 88 A vanguarda das câmeras em Brasília

42 As espetaculares feiras de encenação na Espanha 47 Agenda Cênicas

TRADIÇÕES

ARTES

94 Dom Quixote e Cancão de Fogo, personagens de cordel

48 Biografia de Abelardo da Hora, mestre dos mestres 53 Ecofestival de Serra Negra: arte e natureza 55 Agenda Artes

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Reprodução

O Rio de Janeiro no tempo de Machado de Assis, que ganhou nova biografia

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Rodrigo Mattioli/Divulgação

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CONTEÚDO

88 Foto Arte 2005, em Brasília: linguagens pessoais

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Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 A Igreja, entre a fé e as finanças

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 38 Quando poesia e música se divorciaram

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 56 Reencontro com Goeldi, um mestre expressionista

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 64 À mesa com Dom Quixote de La Mancha

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 67 Os paradoxos do olhar e falar brasileiros

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 92 Entre o transe criador e a esquizofrenia

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Dois mestres certinhos em linhas tortas estilísticas Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente dezembro 2005


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Fábio Seixo/Agência O Globo

CONVERSA

MARCO NANINI

“Eu precisava correr o risco Gerald Thomas” Nos palcos com a peça Um Circo de Rins e Fígado, de Gerald Thomas, na TV com o seriado A Grande Família e prestes a estrelar mais um longa de Carla Camurati, Quem Tem Medo de Irma Vap?, Marco Nanini colhe os louros dos 40 anos de carreira e da consagração pública Toninho Vaz

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xiste algo em Marco Nanini que – apesar de 1 metro e 84 de altura, sapatos 44 e mãos grandes – transmite leveza e suavidade. Algo mágico, relacionado com o equilíbrio do ator diante da exposição pública, exercício intermitente de bem-estar psicológico para encarar o público e o ato dramático. Para subir no palco todas as noites e viver o personagem confuso e desesperado de Um Circo de Rins e Fígados, que Gerald Thomas criou para ele, Marco Nanini precisa estar bem. Nestas horas, a concentração é importante e qualquer desnível de humor pode ser fatal. Não que isso represente um congelamento das emoções, a pasteurização do sucesso, um afastamento das bases, nada disso. Apenas a sobrecarga da coordenação dos trabalhos agora tem um novo operador: Fernando Libonati, fiel escudeiro que deixou a odontologia para organizar a produção executiva da trupe. Hoje, mais do que nunca, Marco Nanini está podendo ser ator. Pouca gente sabe, mas ele é pernambucano do Recife, apesar de ter chegado ainda criança no Rio de Janeiro. As memórias são cariocas, mas o orgulho é pernambucano: “Sempre considerei primorosas as artes pernambucanas, seja na dança, no teatro ou nas cantorias. Quando eu e

Guel Arraes, outro pernambucano, fizemos no cinema O Auto da Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro, pude encarnar tipos clássicos do Nordeste e mostrar nosso orgulho em tela grande e colorida”. Na tela pequena da televisão foram quase 20 novelas e seriados, como A Grande Família, ainda no ar; no teatro, o sucesso veio com O Mistério de Irma Vap, que está ganhando versão livre para o cinema de Carla Camurati, com quem Nanini já trabalhou em Copacabana e Carlota Joaquina. No total, foram quase 20 filmes, alguns premiados como Amor e Cia., de Helvécio Ratton, e Apolônio Brasil, o Campeão da Alegria, de Hugo Carvana. Nesta entrevista, concedida na platéia do Teatro Villa-Lobos, minutos antes de entrar em cena, Nanini, com um sorriso constante no rosto, falou sobre a timidez no início da carreira, do teatro autêntico de Molière e das boas amizades (prefere lembrar, sem muito pensar, de Ary Fontoura “que me recebeu em sua casa quando eu estava em dificuldades” e Pedro Paulo Rangel, responsável pelo seu caminho até o palco de um teatro, “embora a recíproca seja verdadeira.”). Trilha sonora sugerida por ele para a leitura desta entrevista: MPB e música de câmara. Continente dezembro 2005

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Eder Chiodetto/Folha Imagem

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Os atores Marco Nanini e Débora Bloch durante o ensaio da peça Kean

Você está colhendo os mimos de uma espécie de consagração pública, conseqüência de seus trabalhos notáveis em cinema, teatro e televisão. Que tal lhe parece? Eu sempre projetei viver como ator, fazendo o que gosto. Venho perseguindo isso há muitos anos. Acho que agora consegui.

(rindo) Certo... A equação está correta. A televisão tem mais recursos financeiros, o cinema é circunstancial e o teatro depende do resultado da bilheteria. O teatro está mergulhado numa fase danada, vivendo um momento muito conturbado. Em tese e na prática, a receita da bilheteria não cobre as despesas de produção.

Qual foi a chave-m mestra? Em 1979, eu percebi que deveria produzir minhas próprias peças, que muito da liberdade que teria como ator viria do fato de ser também o produtor. Faltava o parceiro certo e a hora certa. O Fernando (Libonati) veio se juntar a nós porque se encaixou nos esquemas de produção e se adaptou aos objetivos. Ele era dentista, mas largou tudo para fazer a organização do trabalho. Ele é meu sócio nas duas empresas: Pequena Central de Produções Artísticas e Trupe Produções. Com uma boa infra-estrutura eu agora tenho mais tempo para me concentrar como ator.

Como você se descobriu ator? A coisa começou a ficar confusa para mim na infância, nas brincadeiras onde a gente fingia ser xerife, mocinho, jogador de futebol... Eu costumava ir à missa na Igreja de Santa Teresinha, na boca do túnel de Copacabana, ao lado do Rio Sul, onde tinha um pequeno teatro nos fundos. Ali encontrei alguns atores consagrados ensinando a um grupo de jovens, entre eles o Pedro Paulo Rangel, o Pepê, que acabou me apontando o caminho do Conservatório de Teatro do Rio de Janeiro. Ele diz que foi o contrário, que eu fiz a convocação para irmos ao Conservatório.

Qual o seu veículo preferido: teatro, cinema ou televisão? O teatro é como a casa do ator, onde ele colhe os resultados na hora, em contato com o público. O cinema deixa você dentro do processo, fazendo parte de uma grande estrutura, muito parecida com a da televisão. Seu trabalho, em ambos os casos, fica sujeito a cortes e edições. No teatro a reação é imediata, não tem edição. Como ator, o importante é dominar as três técnicas.

Você é bom cantor? Eu canto quando necessário. Em Apolônio Brasil – o Campeão da Alegria, eu fazia um cantor que tocava piano. Eu fiz a dublagem do piano, inclusive. Até fingir cantar é bom. Eu tenho inveja de quem toca um bom instrumento. Quando eu canto, costumo ficar muito nervoso, pois considero esta oportunidade um presente do paraíso, algo muito divino.

É correto dizer que aquela atividade que lhe dá mais prazer também lhe dá menos dinheiro – e vice-vversa?

As filmagens de O Mistério de Irma Vap já terminaram. Como foi trabalhar novamente com a Carla Camurati?

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CONVERSA Duas coisas que te deixam indignado? Foi muito bom. Nós temos afinidades no set de filA miséria de grande parte da população e a falta de magens. O filme é um roteiro original da Carla, apenas mencionando a peça de teatro, que tinha forte caráter político nas esferas de poder em nosso país. É de apelo na mudança de roupa dos atores em tempo real. virar o estômago. No cinema não foi possível aproveitar esta trucagem. Duas coisas que te fazem feliz? Mas estamos eu e o Ney (Latorraca) novamente fazendo comédia. Mas, outro detalhe, o título mudou A perfeita sintonia da nossa equipe de trabalho, desde para Quem Tem Medo de Irma Vap. que todos sabem dos seus deveres e reconhecem os objetivos. Afinal, poder trabalhar naquilo que se gosta é um Você se considera um artista politicamente engajado? privilégio. A outra é feijoada. Eu nunca fui de tomar posições políticas agressiComo aconteceu a parceria com o polêmico Gerald vas. Procuro dar opiniões sempre que possível, pois Thomas? não pretendo ficar omisso, mas tenho muito cuidado para não ser manipulado. Eu e o Gerald sempre cogitamos trabalhar juntos. Estava difícil conciliar os calendários, ele morando em Você concorda que interpretar pode ser parecido com Nova York, com uma agenda internacional, e eu no Rio, deitar no divã, quer dizer, fazer psicanálise? com o dia tomado de trabalho. Mas bastou um telefonema Tecnicamente não, mas como resultado final pode ser. e as coisas começaram a se encaixar. O Fernando entrou na Afinal, são questionamentos que partem de você e, por- história e viabilizou a produção. Mas eu reconheço que o tanto, refletem o seu mundo interior. Você é a fonte dos Gerald provoca distúrbio por onde passa. Ele é um agitasentimentos. Eu, no inicio, tive que superar a timidez dor cultural com grande vivência no teatro. para poder representar. Eu fiz poucos anos de análise, em Ele te acrescentou alguma coisa? São Paulo, com o Ângelo Gaiarsa. Sim, claro. Ele é um excelente diretor de atores, doSaudades do Brasil? mina a situação e sabe conduzir muito bem o processo de Muitas... Saudades da vida ingênua de outros tempos, trabalho. É um grande encenador e tem uma grande quando íamos para a Barra da Tijuca tomar banho de mar qualidade: sabe ouvir. E, coisa inusitada: eu tive confiança de madrugada sem nenhum temor. Hoje a vida está por nele desde o início. Este sentimento é a base do trabalho que se inicia. E a conseqüência foi positiva. um fio e a morta leva tiro no caixão. Luiz Carlos Santos/Ag. O Globo

“Reconheço que Gerald provoca distúrbio por onde passa. Ele é um agitador cultural com grande vivência no teatro”

O trabalho com o teatro de vanguarda, a esta altura da sua carreira, pode ser visto como uma reação à estagnação? Certamente. Eu não vou dar murro em ponta de faca, até porque acredito no imponderável, mas também não vou deixar de experimentar. No início eu queria fazer teatro clássico de Molière, minha iniciação na comédia. Foi importante. Agora era hora de ousar. Eu tinha, neste momento, que correr o “risco Gerald Thomas”. •

O teatro é como a casa do ator, onde ele colhe os resultados na hora, em contato com o público. O cinema deixa você dentro do processo, fazendo parte de uma grande estrutura, muito parecida com a da televisão. Seu trabalho, em ambos os casos, fica sujeito a cortes e edições. No teatro a reação é imediata, não tem edição Continente dezembro 2005

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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert

Diretor Industrial Samuel Mudo

Continente

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Sara Correia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Karolina Melo e Renata Bezerra de Melo Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Rubens Câmara

Dezembro | 2005 Ano 05 Capa: Corbis

Colaboradores desta edição: DANIEL PIZA é editor-executivo, colunista de O Estado de S. Paulo e autor de Machado de Assis, um Gênio Brasileiro, entre outros. EDUARDO GRAÇA é jornalista. EDUARDO MAIA é jornalista. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e Armada América, entre outros, e cineasta. JARBAS MACIEL é matemático, filósofo e músico. JOSÉ CLÁUDIO é pintor. JULIO MOURA é jornalista e compositor. LUÍS AUGUSTO REIS é jornalista, professor de teatro, mestre em Comunicação Social e doutorando em Teoria da Literatura. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. MICHELINY VERUNSCHK é poetisa, historiadora e ensaísta. MILTON HATOUM é escritor, autor de Cinzas do Norte, Relatos de um Certo Oriente e Dois Irmãos, e professor de literatura. MONCHO RODRIGUEZ é autor e encenador teatral.

Gestor de Gráfica e Editora Adailton Elias

PAULO MEDEIROS é psicanalista, membro do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise.

Supervisora de Marketing Ygara Kober

PAULO POLZONOFF JR é jornalista.

Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Eliseu Barbosa, Elizabete Correia, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Roberto Bandeira, Rojonas Egon e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1808-7558 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente dezembro 2005

TONINHO VAZ é jornalista, escritor e autor dos livros Paulo Leminski, O Bandido que Sabia Latim, Pra Mim Chega – a biografia de Torquato Neto e Edwiges, A Santa Libertária. WEYDSON BARROS LEAL é poeta e crítico de artes plásticas.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretorgeral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA foi correspondente de Guerra na Europa, em 1945. É autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder e Saudades de 60. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens.


CARTAS Mestres sem academia Um primor de saber a matéria “Mestres sem academia” (edição nº 58 – Outubro de 2005). Sugiro a essa maravilhosa revista editar um documentário com danças/folclore semelhantes e suas variações de um Estado para outro do Norte e Nordeste, em parceria com as Secretarias de Cultura. Será um documentário histórico que fará parte das bibliotecas de escolas e universidades. Precisamos salvar nossos saberes antes que se percam com a morte de nossos brincantes. Cristina Henriques, Recife – PE Sábato Magaldi Gostei muito da entrevista com o professor Sábato Magaldi (edição nº58 – Outubro de 2005). Fiquei feliz em saber do seu enorme carinho pelos jovens que tentam dar seus primeiros passos no mundo do teatro, é muito importante ter esses incentivos. Anderson Damião, Tabira – PE Rock Como leitor assíduo da Revista, posso dizer que a mesma só acrescenta à minha cultura. Gostaria apenas de sugerir um assunto a ser abordado com mais clareza: a liberdade que os jovens conseguiram no século 20 por meio da revolução que o rock, e outras formas de transgredir as barreiras sociais, fez, ajudando a formar uma sociedade com muito menos preconceito. Obenice Oliveira, Recife – PE Nota da Redação Em setembro de 2004, a Revista Continente Multicultural dedicou sua matéria de capa aos 50 anos do rock. Psicanálise Entendo que a psicanálise, em especial sua interface com a cultura, deva freqüentar as folhas da Continente. Osvaldo Costa, Quixeramobim – CE Maestro Duda Não tenho nada a criticar na Revista Continente, apenas a agradecer a visão da Revista sobre as pessoas que realmente fazem a nossa história. Algo a sugerir: uma Continente Documento sobre o Maestro Duda, semelhante ao que foi feito com Capiba. Josivânio Henrique de Lima, Timbaúba – PE Textos Adoro a forma como a Continente lida com o leitor. O projeto gráfico da Revista é incrível, mas os textos precisam ser mais cuidadosamente redigidos, com uma linguagem mais acessível. Edgar Ferreira, Recife – PE

Imortais Gostaria de ver uma Continente Documento sobre a Academia Pernambucana de Letras, ou seja, todos os seus membros, dos fundadores ao último imortal, juntamente com seus textos. Giselle Araújo, Recife – PE Língua portuguesa Quero parabenizá-los pela Revista Continente, uma publicação de grau bastante elevado em se tratando de conteúdo. Também proponho uma matéria que acho significativa: como a Revista é feita no Recife – PE, Nordeste do Brasil, sabemos que, para o Sul e o Sudeste, a nossa região é considerada sem muito valor. As pessoas que nela vivem são tidas como “analfabetas”, pobres, entre outros adjetivos. Hoje, estou terminando o curso de Lingüística e percebo que não falamos errado como dizem em determinados lugares. Até mesmo alguns pernambucanos têm essa mesma idéia. Por isso acho que a Revista deveria fazer um documento sobre esse assunto – valorizando as variantes da língua portuguesa. Fernanda Caldeira, Recife – PE Purificação Quero aqui deixar o registro do quanto a Revista Continente Multicultural está presente em nossas vidas... Passei por um período de purificação financeira e prometi a mim mesmo que quando estivesse melhor ajudaria o meu espírito a progredir culturalmente, e foi o que fiz. Assinar a Revista Continente, para mim, foi valorizar a minha cidade/região e, acima de tudo, dar mais valor às coisas que engrandecem o espírito. Vocês têm me proporcionado momentos de leituras maravilhosos. Fernando Matos, Recife – PE

Segunda Guerra Gostaria de parabenizar a todos que compõem a Revista Continente Documento pela edição Nº 33, do mês de maio/ 2005, que aborda a Segunda Grande Guerra Mundial. Devo confessar que fiquei surpreso por dois fatores distintos, quando avistei o fascículo nas bancas. O primeiro, indubitavelmente, foi o tema, por sua amplitude e conseqüências, e o segundo por se tratar de uma publicação genuinamente pernambucana. Quero estender a minha gratidão e entusiasmo a todos que tomaram parte, direta e indiretamente, deste projeto, a fim de tornar essa obra possível de forma clara e bastante objetiva. Sem sombra de dúvidas, enfatizar os inúmeros adjetivos qualitativos da Revista seria algo muito fácil de fazer. De leitura fácil, a Revista, que é um resumo dos acontecimentos, está muito bem ilustrada, rica em fotos originais e desenhos, com os acontecimentos concatenados e com uma revelação notória sobre a FEB. Espero, em breve, que as próximas edições tragam a matéria que aborde o tema sobre a I Grande Guerra Mundial (A Guerra do Kaiser 1914-1918) ou sobre os grandes enigmas da humanidade, da mesma forma magnânima, assim como foi a primeira. Esperamos que sobre o aspecto bélico isso jamais volte a ocorrer – do contrário, estaremos novamente lutando (...) uns contra os outros; dessa vez de maneira mais “humana”, por um breve espaço de tempo e de forma “igualitária”, ou seja, as poucas vidas que porventura venham a remanescer dessa catástrofe, certamente lutaram com outros tipos de armas, ou seja, com paus e pedras. Ricardo J. Fischer, Recife – PE

Nélida Piñon

Relatei a minha alegria à Nélida pela edição da Continente com matéria de capa sobre ela. Faltava-me dar a vocês os meus parabéns! Estão ditos e são merecidos.

Cyl Gallindo, Madri – Espanha

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes

A medida de todas as coisas A economia e a fé, nas teias do poder temporal, precedem o amor ao próximo

“E

stando próxima a páscoa dos judeus, Jesus subiu a Jerusalém. E achou no templo os que vendiam bois, ovelhas e pombas, e também os cambistas ali sentados; e tendo feito um azorrague de cordas, lançou a todos fora do templo, bem como as ovelhas e os bois; e espalhou o dinheiro dos cambistas, e virou-lhes as mesas; e disse aos que vendiam as pombas: Tirai daqui estas coisas; não façais da casa de meu Pai casa de negócio.” (João 2:13-17; Sal. 69:9). Na radicalidade do amor ao próximo, a ação agressiva de Jesus, que prometera fazer gratuitamente os encômios que os sacerdotes cobravam à população, inseria-se na tese de que o rei está acima da lei e dos bons (ou maus) costumes e prejudicaria fortemente as autoridades religiosas da Galiléia no que elas tinham de mais sagrado: as finanças. Vendido por 30 dinheiros, Cristo foi crucificado. Construída sobre pedra, a sua Igreja empreendeu uma das maiores experiências de poder da história da humanidade. Consolidada como instituição global, passou a associar aos valores espirituais interesses econômicos, indo de encontro às lições que Cristo nos ensinou. Conquistou a significação econômica, recebendo bens e terras em contrapartida de serviços simbólicos; alcançou o poder político, na simbiose do temporal ao espiritual; controlou a vida social de reis e súditos, submetendo-os ao código da fé e ao monopólio da verdade. Imaginem se Cristo – que dizia ser o caminho, a verdade e a vida – voltasse à terra – o que ele faria com relação à cobrança de dízimos para a construção de suntuosos templos, se ele próprio, ao manifestar-se sobre as moedas cobradas em nome de César, teria dito: A César o que é de César e a Deus o que é de Deus? Dessa dialética econômico-religiosa, surgiram fenômenos sociais como a Reforma Protestante, a Guerra dos Trinta Anos,

as Cruzadas com sua fome feudal por terras e a própria gestação do capitalismo que tivera inspiração calvinista. Com relação a essa questão, Marx afirmara que tudo se reduzia à questão econômica e que a religião era o ópio do povo. Hobsbawn acha que essa é a versão vulgar do Marxismo. De outra parte, Weber defendia que os níveis de desenvolvimento econômico e social de muitos povos estão nitidamente intrincados ao fundamentalismo de suas crenças religiosas. Economia e religião são determinantes em quaisquer das visões. Caminham juntas. Conflitos da história, principalmente os bélicos, estão repletos de circunstâncias que misturam valores simbólicos das religiões com valores econômicos do imperialismo. Esses valores, que consagraram reis e déspotas tanto insuflaram a coragem e a galhardia de conquistadores de terras, corpos e mentes, como douraram os grilhões dos combatentes defensores da pátria ou de seus interesses mais tangíveis. Cenas oníricas de Deus e do Diabo. A significação econômica na religião mantém-se, através dos tempos, desde os sacrílegos 30 dinheiros recebidos por Judas, aos conflitos palestino, bósnio e até o fundamentalismo religioso islâmico ou americano. A economia e a fé mostram que, nas teias do poder temporal, precedem o amor ao próximo e consubstanciam a vida social, política e cultural dos povos. Contrariando os ideais cristãos da transcendência divina, ainda hoje há templos que parecem mercados. Através deles, a crença assume perspectiva utilitária e presença inexorável num mundo tutelado tanto pela luta para seduzir rebanhos e conduzi-los ao paraíso quanto pelo poder do mercado globalizado e apátrida. Instrumentalizada na fé e no consumo como necessidades do espírito e do corpo, a comemoração do nascimento do Cristo deveria, antes de tudo, eleger o amor ao próximo como o único critério ipso facto, para a medida de todas as coisas. • Continente dezembro 2005


literatura

e loucura

A loucura, como arquétipo, é sempre tema ou personagem da literatura, mas o inverso – o alienado produzir uma obra – se situa no terreno das impossibilidades, apesar das exceções Paulo Polzonoff Jr. - Ilustrações: Nelson Provazi

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CAPA

A

loucura sempre fascinou escritores e poetas. Não é à toa. O louco, antes de ser um caso para psiquiatras, representa no imaginário universal o homem em todas as suas possibilidades. É um arquétipo (e não um estereótipo, por favor) do exagero e das escolhas e suas conseqüências. Por isso mesmo são infinitos os textos que usam o louco, em suas mais diversas manifestações, como personagem. Donde se pode deduzir que, em literatura, o superego atrapalha um pouco. É interessante perceber que, ao contrário das artes plásticas, do teatro e da música, a literatura não permite que o louco seja ativo na criação. Claro que há exceções, mas elas não passam disso. Jamais um escritor diagnosticado como louco será canônico, ainda que a academia adore se debruçar, vez ou outra, sobre os delírios do dramaturgo gaúcho e louco de pedra Qorpo Santo.

A marginalidade em que vivem na literatura os escritores doidos varridos é motivo de crítica para Walter Benjamin: “A existência deste tipo de obras tem algo de surpreendente. Estamos habituados, apesar de tudo, a considerar o âmbito da escritura como algo superior e seguro, de tal maneira que a emergência da loucura, que aqui aparece sigilosamente, assusta mais”. Há que se entender aí a surpresa do moço: corria o ano de 1928 e as vanguardas artísticas ainda buscavam na loucura um modo de expressar a criatividade nunca compreendida. Neste caso, parece claro que as idéias libertárias de Benjamin se chocam com as de Michel Foucault. Em sua História da Loucura, o intelectual francês tem um enunciado que é claro ao relacionar a loucura à ausência e à impossibilidade da obra. É óbvio que uma declaração destas não passa incólume à fúria dos pós-modernos, loucos para legitimar a loucura como arte. Continente dezembro 2005

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CAPA Divulgação/Escrituras

Luzia de Maria, no ensaio Sortilégios do Avesso, analisa a loucura como personagem

O Romantismo é o auge da loucura A loucura é sempre tema ou personagem. A loucura não faz literatura. Como personagem, a loucura é fértil. Deu-nos de Dom Quixote a Policarpo Quaresma, passando por Hamlet e Quincas Borba. Como tema, ela sempre é alegoria, símbolo de algo que o autor nos quis revelar. No caso do longo ensaio de Luzia de Maria sobre o assunto, Sortilégios do Avesso (Escrituras), a loucura é expressão da tirania. O assunto tomou conta de Luzia de Maria como um surto, durante uma aula com Silviano Santiago. A partir daí, ela começou a perceber que várias obras de seu escritor predileto, Machado de Assis, envolviam a loucura. Bingo. Nascia uma tese de mestrado. A autora, porém, ignora sem cerimônia a questão arquetípica da loucura – o que é uma pena. Em seu trabalho de 360 páginas, Luzia de Maria começa por traçar um panorama da loucura através dos séculos, desde a Antigüidade Clássica. Há, neste momento, certa confusão entre a loucura e os “estados alterados da mente”. Tudo parece ser a mesma coisa na imprecisão de um tempo em que a medicina e a filosofia se misturavam. Assim, Luzia de Maria consegue juntar delírio e profecia sob a alcunha de loucura. Na literatura brasileira, são abundantes os loucos de pedra. Luzia de Maria reduziu o imenso universo deste Continente dezembro 2005

hospício da intelectualidade brasileira para cerca de 20 nomes analisáveis. Estavam entre eles, é claro, Machado de Assis, Guimarães Rosa e Lima Barreto. Este último, aliás, chegou a ser internado no hospício, menos por ser um caso clássico de loucura e mais por se interessar demasiadamente por água que passarinho não bebe. Luzia de Maria, no entanto, salienta que sua tese procura mostrar como a loucura foi usada para se fazer uma crítica à sociedade. “A loucura serve como crítica política e ideológica. Bernardo Guimarães, por exemplo, usou a loucura para criticar o autoritarismo na religião. Machado de Assis faz uma crítica à euforia do modernismo e ao capitalismo”, diz, ainda que os registros da época não falem, em momento algum, de um mulato epilético carregando a bandeira de Marx pelas ruas da Gamboa. Fica claro, porém, que o Romantismo é o auge da loucura enquanto tema. Até porque os amantes deliram infinitamente. E também os românticos tinham certo pendor para visões tenebrosas de espíritos e demônios. Paradoxalmente, a literatura louca de Álvares de Azevedo, por exemplo, era feita sob parâmetros muito lógicos de uma arte que procurava traduzir em beleza aquilo que muitas vezes é delírio. A loucura do Romantismo é, por-


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Machado: crítica à euforia modernista

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Lima Barreto foi internado por alcoolismo

~ tenebrosas Certo pendor para visoes tanto, abrandada pela sua finalidade que muitos não consideram nobre: a beleza. Mas, como a loucura é, por definição, irrestrita, na medida em que amplia nosso horizonte para muito além da lógica, ela acaba servindo para qualquer propósito. Aqui talvez valha a pergunta: a loucura existe de fato ou louco é quem a vê como tal? A retórica torta tem sentido, quando se percebe que estão usando a loucura para levantar bandeiras às quais os loucos, é claro, estão alheios. É o caso da interessante “luta de boxe” literária proposta por Luzia de Maria, entre Coelho Neto (que ninguém mais lê) e Machado de Assis. O primeiro escreveu Inverno em Flor que, na visão de Luzia de Maria, é uma espécie de certificado literário para o discurso psiquiátrico vigente, que não titubeava em classificar as pessoas como sãs e lunáticas, de acordo com parâmetros científicos hoje bastante discutíveis. Já Machado de Assis, mais ou menos na mesma época, escrevia o célebre “O Alienista”. “É incrível perceber a superioridade de Machado de Assis (grifo meu)”, diz. “Ele faz uma crítica aguçada, enquanto Coelho Neto embarca nas teorias do final do século 19”. Ainda segundo a autora, Machado de Assis compreendeu a alma humana como Freud, que só não

usou os personagens de Machado em seus estudos porque, evidentemente, não conhecia sua obra periférica. Freud, aliás, parece ter sido o grande “amenizador” da loucura literária. A difusão dos estudos do psicanalista trouxe uma maior compreensão sobre o tema. O reflexo disso está em obras mais modernas, como a de Autran Dourado, na qual a loucura reside sem o folclore de outrora. “É uma loucura mais condizente com o que o personagem louco é. Ele tem a inteligência perfeitamente coesa, mas em certo ponto começa a ter delírios”, diz. Por outro lado, a literatura contemporânea incorporou outro tipo de loucura. Induzidos por todos os tipos de alucinógenos possíveis, os escritores passaram a fazer uma literatura que se enquadra perfeitamente na idéia de Foucault de que a loucura só é capaz de produzir a nãoobra. Luzia de Maria, porém, passa ao largo destas preocupações. “Não me detive sobre a literatura contemporânea”, diz. É pena. Porque se a loucura foi usada, em determinado momento, para se fazer uma crítica à sociedade, hoje ela aparece perfeitamente agregada à literatura de aceitação. A loucura – quem diria? – se tornou a coisa mais normal do mundo. • Continente dezembro 2005


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arte

e loucura

A inteligência e a razão impedem-nos de que nos quedemos em contemplação abobada, mas devem estimular-nos à perplexidade e à surpresa Paulo Medeiros

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rte é criação. De onde o artista retira sua capacidade criadora não constitui questão para a psicanálise. Se o artista é, porventura, neurótico ou louco, então poderíamos considerar, em cada caso, que sua existência, como a de qualquer um, só é vista por ele de um ponto, mas é olhada de toda parte. A formulação desse tema proposto poderia organizar a reflexão sobre o assunto, considerando o ato criativo, a criação artística – seja poética, pictórica, escultórica, musical ou qualquer outra –, sob o aspecto da moderação do ímpeto; ou, então, da contenção de uma loucura qualquer a ser mantida sob restrição. Bem, descarto, de saída, o disparate de sugerir que haja, no ato criador, para usar o termo proposto, a loucura, ou que o criador seja louco. Afirmar tal coisa é ignorar a arte e desconhecer o que seja a loucura. A loucura não é recomendada para ninguém, nem mesmo para os artistas; além disso, sabemos que não é louco quem quer. Ao contrário, a arte pode até ser sugerida para os loucos, o que não significa afirmar poder ser por eles apreciada, pelo menos da perspectiva de um olhar para aquém e além do olho. Uma outra coisa a ser, de imediato, descartada é que se possa fazer análise do artista por meio de sua criação. Se um psicanalista, atento à sua função – é função, nada mais, restrita à escuta de quem, porventura, lhe solicite ouvir o que tem a dizer –, conseguir, pelo menos, aprender, com seus analisantes, a arte da onirocrítica, poderá, quem sabe?, tornar-se também


CAPA um crítico, um crítico de arte, mas não a partir de sua função de psicanalista. Não há análise possível de um autor a partir de sua obra; nem o autor a solicita, nem a obra diz do autor, mas, sim, de sua criação. Seria como analisar os pais pela fala dos filhos, mantendo os pais alheios ao que sobre eles está sendo dito por outros. Não sendo um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo, observo, no entanto, haver em mim uma atração, para além das qualidades formais e técnicas de uma obra de arte, para algo que ultrapassa o alcance de meu conhecimento e, portanto, de minha compreensão, tanto quanto do mesmo modo como me deparo diante da loucura, que me é também incompreensível, ainda que consiga, como psicanalista, lidar com ela em algumas ocasiões. Assim, peço muito mais ajuda ao leitor do que possa lhe oferecer nesse campo, contando com sua indulgência. A inteligência e a razão impedem-nos, claro, de que nos quedemos em contemplação abobada, mas devem estimular-nos à perplexidade e à surpresa, comovendo-nos diante do que nos afeta, em face, por exemplo, da eloqüência de certos objetos da arte. Só isso nos faz reconhecer o fato de que haja nas criações da arte enigmas que nos são propostos, não necessariamente resolvidos pela nossa compreensão. Nesses casos, os objetos da arte nos propõem indagações; mas também podem conter respostas a indagações sequer formuladas. Nós, analistas, lidamos com ambas: indagações e não-indagações. As indagações receberam o epíteto de neuroses; as não-indagações, o de psicoses. São termos pertencentes ainda à semântica do discurso médico originário, e, talvez até mesmo por falta de arte, de criação, nós ainda con-

tinuamos a usá-los impropriamente. As indagações são aquelas que advêm sob determinadas circunstâncias, que se tornam existenciais, cruciais, isto é, colocam o sujeito numa encruzilhada. O sujeito, despreparado para dar-lhes conteúdo de formulação e de resposta, pode ir a uma encruzilhada acender velas ou procurar um analista para tentar encontrar uma formulação adequada à sua existência. As não-indagações das loucuras, por sua vez, são as respostas dadas ao sujeito, acossando-o em sua existência, uma existência de dor sem sofrimento. Se a arte de um determinado artista representa para ele a tentativa de formular – a exemplo dos “neuróticos” – alguma grande indagação que lhe foi imposta, à sua revelia, ou se se trata de lidar, por meio de grande tormento persecutório – no caso “psicótico” –, com respostas que não lhe são próprias, como respostas a alguma indagação que não lhe ocorreu, só o próprio artista poderá expressálas e significá-las – tais quais lhe passam – com sua arte. De modo geral, diante de uma grande obra de arte, cada um diz algo diferente do outro e nenhum diz nada que resolva o problema para o admirador despretensioso. Então, pode ser que o que nos captura tão poderosamente seja o “desejo” do artista, até onde ele conseguiu expressá-lo e transmiti-lo em sua obra e que de alguma forma encontra alguma correspondência, mesmo aparente, com nosso próprio desejo. O que no artista produziu esse ímpeto criativo pode corresponder, significantemente, ao nosso próprio desejo articulado em outro lugar. •

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Disparate: que o criador seja louco

O divã de Freud: obra não diz do autor

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artistas e loucos Arte e loucura são fenômenos excludentes. Chamar um artista ou cientista de louco só é cabível como metáfora José Cláudio

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omparar arte e loucura devia ser crime inafiançável, tentativa de assassinato, sujeito a pagamento de indenização por danos morais. Quem confunde arte com loucura nunca viu um louco nem um artista. Loucura é inércia, é ausência, é oclusão mental, é doença séria, não dá para fazer comparação. Quando Van Gogh ficava louco não fazia nada, ficava inerte num canto, não tugia nem mugia, não pintava, não cortava a orelha, nem sabia que era Van Gogh. Arte é saúde, é acuidade, é inteligência. A loucura veda ao paciente a prática da arte. O louco não tem acesso ao mundo real ou mundo objetivo, não tem como apanhá-lo, é incapaz de discerni-lo, quanto mais de reconstruí-lo ou recriá-lo num todo orgânico que é o que se exige da obra de um artista, não bastando uma ou outra pontada alardeada como genial pelos sãos, tanto que Picasso disse: “Se as maçãs de Cézanne não tivessem sido pintadas por Cézanne não tinham a menor importância”. Arte e loucura são fenômenos excludentes, são seres antagônicos, são substâncias que se repelem. Chamar um artista ou cientista de louco só é cabível como metáfora, como figura de retórica: mas não que se vá manter empalhado num museu de zoologia algum ser humano por ter sido chamado de águia ou de raposa. Para ser pintor, precisa ter cabeça muito boa, auto-segurança. Precisa agüentar ser chamado de louco sem se perturbar. Essa história de chamar artista de doido começou com a burguesia. Para o burguês, o que não for dinheiro é doidice. Para o poeta português Fernando Pessoa, existiam três classes: a ralé, que só pensa em dinheiro; uma classe intermediária, digamos classe média, cuja meta principal é o poder; e finalmente o que ele chama de aristocracia,


CAPA voltada para a beleza. Não queria entrar em águas tão fundas, mesmo porque não tomo pé; não me lembrando se o poeta chegou a discutir o que cada uma dessas primeiras duas classes tinham como ideal de beleza, podendo significar, a beleza, tanto para a ralé como para o burguês, o dinheiro, por exemplo; podendo-se perguntar se dinheiro não gera poder ou vice-versa; ou se não tinham ideal nenhum, o que é mais plausível. Atribui-se à burguesia, ao assumir o poder, através do dinheiro, o sucateamento das artes, a não ser a arte de furtar, dir-se-ia. Aliás, a palavra “artista” ganhou a conotação de “espertalhão”, quase como elogio ao indivíduo rapace que se faz de louco para enganar os trouxas. A aristocracia, isto é, a nobreza e o clero, gozava de completa intimidade com as artes. Letras, música, pintura, tinham nos palácios e nas igrejas o seu habitat. Com a ascensão da burguesia, cuja data costuma-se dar a da Revolução Francesa, 1789, a nova classe dominante não precisava mais de licença de nobres nem o nihil obstat da Igreja para existir. Quem passou a mandar no mundo foi o sapateiro, o ferreiro, o fabricante de utensílios e os comerciantes. E estes vinham da plebe, não possuíam a tradição de acrescentar o retrato aos dos antepassados nos longos corredores dos palácios. Por letras, bastavam os contratos de compra e venda, e, por música, o malhar das máquinas nas fábricas ou o tinir das moedas sonantes. E assim se explica o desemprego, e por toda a vida, desse novo inútil, o artista, incapaz, desenquadrado, fora da realidade, obsoleto, incompreensível, louco.

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Van Gogh: na loucura, não fazia arte

´ Jogando lenha em fornalhas ilusorias E repare que não se trata de indivíduo isolado, mas de toda uma classe, havendo mais uma extravagância: quando uma classe de profissionais deixa de existir, por não haver mais necessidade desse serviço, como o de foguista de locomotiva, por exemplo, ou empurrador de carrossel, essas profissões também se extinguem; mas no caso das artes é como se continuássemos jogando lenha em fornalhas imaginárias e a empurrar carrossel, fazendo roda feito peru no espaço vazio. É assim que passamos a ser vistos. O artista continuou a existir mesmo desempregado, mesmo tido como louco. Com a distância entre o artista e o novo mundo instalado pela burguesia, o burguês cada dia entendia menos, por não conviver, por não acompanhar a linguagem do artista, linguagem que seguia o seu curso natural. Essa distância deu lugar ao lance do épater le bourgeois, espantar o burguês, muito em moda até hoje. Um pintor, um escritor, a quem já não podia satisfazer o lugar-comum e que procurava uma forma pessoal de exprimir-se, incorporando à sua arte as experiências de outros povos, por exemplo, agora ao seu alcance, ou assumindo postura mais condizente com o mundo atual, parecerá louco ou espertalhão, causará esse espanto.

Uma tentativa de fazer do artista um sujeito normal seria botá-lo para trabalhar, produzir algo de útil, servindo aos novos senhores, fabricando embalagens, dedicando-se à estamparia, emblemas, propaganda, arrumação de prateleiras de supermercado, até fazendo desenho de navio e avião, casas, edifícios, carros, numa reintegração como a que ocorrera na época do Barroco, desde as fachadas das igrejas às casulas e navetas, como queria a Bauhaus, Alemanha, 1919, escola dirigida pelo arquiteto Walter Gropius, a chamada “arte funcional”, batizando-se de designer o novo artista. Cito sempre o caso do pernambucano Aloísio Magalhães. Ele compartilhou essa idéia, de o artista servir à indústria e ao comércio, aos bancos, às empresas, como antes servia à Igreja e à nobreza, empenhando-se tanto nisso a ponto de fundar a até hoje respeitada Escola Superior do Design, no Rio de Janeiro. Mas no final da vida, curta pelo muito que ainda podia fazer e parecendo longa pelo muito que fez, tinha voltado a desenhar coqueiros no fundo do quintal aqui em Olinda, a lápis, reaprendendo a desenhar para si. Perguntado pelo amigo Joaquim Falcão sobre o design, respondeu: “Nunca mais”. Quer dizer, por enquanto o artista continuará desempregado. E louco. Desempregado de fato e louco aos olhos dos filisteus. • Continente dezembro 2005


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música e loucura O Romantismo considerava o gênio como algo afim com a loucura e terminou por produzir uma estética capaz de abrigar, enquanto disciplina filosófica autônoma, elementos irracionais e sobrenaturais Jarbas Maciel

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s compositores, em geral, concordam quanto à presença, em seus processos mentais, de um elemento irredutível – a inspiração – que, junto a todo um complicado trabalho de construção racional, constitui a essência do processo criativo. A inspiração resulta, na prática, naquilo que poderíamos bem chamar de “coisa dada” ao compositor, em contradistinção a tudo aquilo que ele irá acrescentar para obter a peça musical acabada. A inspiração fornece uma espécie de “semente” – um motivo musical, um tema –, em que o compositor baseia todo o restante de seu trabalho. O fato importante a destacar, aqui, é que essa “coisa dada” não chega ao compositor pela via racional . É algo mais ligado ao instinto, aos sentimentos, que brotam das entranhas da alma – ali onde residem as grandes paixões e onde o gênio faz a sua morada. Não sendo racionais, a melodia de uma peça e sua inesperada seqüência harmônica são, em última análise, inexplicáveis. Quando J. S. Bach reduziu o papel da inspiração na arte da composição ao da perspiração, na verdade o fez enunciando uma das mais espetaculares mentiras jamais ditas por um cristão temente a Deus: “– Trabalhe tanto quanto eu, e você comporá tão bem quanto eu”... Mozart foi mais sincero: “ – Quando eu sou completamente eu mesmo, inteiramente a sós, e de bom humor (...), é nesses momentos que minhas idéias fluem com mais facilidade e abundância. De onde elas vêm, ou como elas vêm, eu não sei; tampouco posso forçar que elas cheguem”.


CAPA Nenhum outro período histórico ilustra tão bem o milagre da inspiração, não só na música, mas em todas as artes, quanto o Romantismo, na transição do século 18 para o 19. Esse movimento notável de idéias, entretanto, começa a surgir na Inglaterra já em meados do século 17, inicialmente como mero termo para indicar o fabuloso, o extravagante, o fantástico e o irreal. Daí por diante, “romântico” passa cada vez mais a indicar o renascimento do instinto e da emoção, que o racionalismo do Iluminismo não havia conseguido abafar inteiramente. O ethos do homem romântico pode ser assim resumido: sentimento e emoção que se afirmam acima da razão, conflito interior, dilaceração de um ego que nunca se sente satisfeito, busca interminável de “algo mais” que lhe escapa continuamente, impressionabilidade permanente, inquietude, saudade irremediável e ânsia de retorno a uma felicidade utópica. Além disso, o Romantismo – principalmente em música – é triste. A música dos compositores românticos, de Schubert a Berlioz, passando por Beethoven, Chopin, Liszt, Schumann, Weber, Brahms, Wagner, Mendelssohn e os compositores das chamadas escolas nacionais (onde não podemos deixar de lembrar a figura extraordinária de Tchaikovsky), pois bem, essa música exprime, acima de tudo, a paixão dolorosa, a fantasia (em contraste

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com a “fria razão”), não raro também o desespero. Ora, ninguém descreveu melhor do que Foucault, em sua tese sobre a Histoire de la Folie à l’Âge Classique, o que ele chamava de “campo da desrazão”, vizinho à loucura, que sempre esteve presente nas artes, como, por exemplo, quando se manifesta em todo o seu vigor criativo em Nietzsche, Van Gogh, Artaud e tantos outros. Delineando os contornos de uma espécie de arqueologia do conceito de furor poeticus – a divina loucura poética –, Foucault forneceu os instrumentos para uma análise profunda do Romantismo. Autores modernos como Burwich e Porter conseguiram desencavar conexões interessantíssimas entre as “representações” da loucura em Goethe, nos poemas de Byron e Shelley e na poesia satânica de Blake. Analisando os “poetas genuinamente loucos” (Hölderlin, Nerval e Clare), Burwich termina por afirmar a coincidência perfeita entre criatividade e irracionalidade. Esse furor poeticus marca quase toda a expressão musical do Romantismo. Essa foi uma era assombrada pela identificação do lunático ao amante, ao poeta, que terminou por produzir uma estética capaz de abrigar, enquanto disciplina filosófica autônoma, elementos irracionais e sobrenaturais. O Romantismo considerava o gênio como algo afim com a loucura.

Na Sinfonia Fantástica, Opus 14, Berlioz retrata um jovem sensível e torturado que, num impulso desesperado de amor, resolve envenenar-se com uma overdose de ópio. Toda a atmosfera da obra é de sombria depressão, alternando-se com verdadeiros espasmos de alegria exultante, devoção ardente e ciúme colérico. No meio de uma bela cena pastoral, Berlioz faz soar as trompas trazendo ominosos presságios de solidão e tragédia. A sinfonia termina com a visão de um Sabá das Feiticeiras, onde um fantástico cortejo de espectros, monstros e outras figuras terríveis dos umbrais reúnem-se para celebrar a morte do infeliz jovem. O tema do “Dies Irae”, da antiga missa gregoriana dos mortos, anunciado pelos trombones reforçados por uma tuba, dá à Fantástica o seu acabamento justo. No seu belíssimo Quarteto em Dó Menor, Opus 60, com piano, Brahms confidencia a seu editor: “– Imagine um homem que tudo perdeu e que decide se matar...” Infeliz com seu amor impossível por Clara Schumann, Brahms manda as instruções para a publicação do Quarteto: “Na capa você deve colocar a figura de um homem com um paletó azul, colete amarelo... e uma pistola apontada para a cabeça. Agora sim, você vai poder fazer idéia da música! Para essa ilustração lhe enviarei minha fotografia...” Compreende-se: essa era uma época em que as pessoas liam o Werther de Goethe e, inebriadas com o espírito do Romantismo, decidiam tirar a própria vida. Felizmente, o “suicídio” de Brahms não passou das notas do seu Quarteto – uma das mais belas páginas da literatura musical de câmara de todos os tempos. •

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Algo brota das entranhas da alma

Brahms: “suicídio musical”

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teatro e loucura A verdadeira loucura é, em última instância, um doloroso impedimento à representação cênica Luís Augusto Reis

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mbora nascido do êxtase e do entusiasmo suscitados por primitivos rituais de vida e de morte, é com a ascensão do logos, no apogeu da Grécia clássica, que o teatro vai ganhar autonomia, instituindo-se como uma forma consciente de expressão artística. Desde então, credenciado sobretudo como uma arte da palavra, o teatro ocidental tem habitado prioritariamente os domínios da racionalidade. No entanto, pela essencialidade de seu caráter ritualístico, o fenômeno teatral jamais se desvencilhou de suas forças ancestrais, nem sempre submissas à lógica e ao intelecto. Ou seja, de algum modo, a arte de representar parece trazer em sua própria natureza a instigante tensão entre a razão e o seu outro – algo desconhecido, muitas vezes rotulado como loucura. Todavia, a despeito de seus componentes irracionais, o teatro raramente concedeu o privilégio da representação aos indivíduos que na vida real são tidos como loucos. Isso não impediu que a loucura se tornasse uma temática teatral recorrente, embora sendo quase sempre representada, de forma mais ou menos caricatural, por pessoas consideradas normais. Há inúmeros loucos famosos na dramaturgia ocidental. Porém, a rigor, esses personagens que despertam tanta curiosidade das platéias não guardam muitas semelhanças com os seres humanos depositados em hospícios, ignorados pela maioria, controlados por grades ou por drogas, quase incomunicáveis.


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Qorpo-Santo: contato aproximado

De fato, a representação da loucura que vitima os pacientes psiquiátricos, a insanidade passível de diagnóstico científico, desglamurizada pelo habitual isolamento do doente, tem significado um grande desafio para o teatro – não somente para os atores, mas também para os diretores, e sobretudo para os dramaturgos. Estigmatizada no imaginário ocidental como um estado irreversível, a doença mental grave parece negar ao drama o seu componente mais importante: a ação desenvolvida por motivações subjetivas. Talvez por isso, através dos séculos, percebe-se que ao teatro, tanto à tragédia como à comédia, interessou menos a enfermidade psíquica propriamente dita, e, sim, o tornar-se louco, o fingir-se de louco, ou ainda, especialmente, o manter-se nos limiares da loucura.

Artaud: teatro dos sentidos

observa-se que muito da graça de Noite de Reis reside na gradual exposição dos desvarios de Mavólio, culminando com o seu completo colapso nervoso, após ser ridicularizado por meio de um trote que expôs a verdade de seus sentimentos amorosos. O cômico, por sinal, desde da antiguidade clássica, sem maiores compromissos com a representação de uma loucura verídica, produziu uma vasta galeria de hilariantes quase-loucos – excêntricos, lunáticos, maníacos e dementes. Esses tipos, criados e recriados por diversos autores e atores, ganhariam maior profundidade com a genialidade de Molière. Se Orgon fosse efetivamente louco, não haveria O Tartufo; mas se ele fosse um sujeito equilibrado, também não. Do mesmo modo,

A autoridade da palavra em xeque Ora aparecendo como castigo por atos maléficos, ora como resultado da maldade alheia, ou ainda utilizada como artifício para obtenção de vantagens ou como subterfúgio para escapar de apuros, as formas de loucura que rendem melhor resultado dramático não necessariamente obedecem às descrições dos manuais de psicopatologia. Assiste-se com enorme assombro, por exemplo, à decadência mental de uma Lady Macbeth; mas que interesse teria essa personagem, se desde o início da peça ela já se apresentasse em agudo quadro de delírios e alucinações? Em Hamlet, por sua vez, em mais um lance de grande força cênica, o angustiado príncipe da Dinamarca, com seus teatrais métodos de vingança, deixa-se passar por louco, levando ao suícidio sua amada Ofélia. Pelo lado da comédia, os exemplos também são abundantes. Ainda em Shakespeare, para citar apenas um caso de eficiência teatral advinda de uma representação idealizada da loucura,

quase todos os demais tragicômicos protagonistas das peças de Molière parecem se encontrar a um passo da loucura, mas se mantêm obstinadamente no mundo das pessoas sãs. O teatro voltado para o riso também engendrou a enigmática figura do bobo, o falso-louco por excelência. Bufão, pícaro, gracioso ou clown, a designação pode mudar, mas sua essência permanece a mesma: por ser marginalizado, como os loucos, ele tem a liberdade de dizer o que bem entende, sendo ouvido ou ignorado conforme os interesses de cada situação. Geralmente associados à comédia, o bobo também vai aparecer, sobretudo a partir do século 17, em tragédias e em dramas históricos, atuando como uma espécie de conselheiro do herói, ou como uma voz – remanescente do coro grego – capaz de expressar o sentimento do homem comum diante dos fatos apresentados. Continente dezembro 2005


CAPA A loucura como ela é – Algumas vezes, porém, o teatro pôde estabelecer um contato mais aproximado com a realidade da doença mental, por intermédio do sofrimento particular de alguns criadores. No Brasil, entre outros casos, destaca-se o autor gaúcho José Joaquim de Campos Leão, conhecido como Qorpo-Santo (1829-83), que chegou a ser formalmente declarado incapaz, por manifestar distúrbios mentais. Algumas de suas peças, redescobertas a partir da década de 1960, como Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte ou Mateus e Mateusa, viriam a ser comparadas a certos experimentos do teatro moderno, em especial ao chamado teatro do absurdo – rótulo associado ao trabalho de autores como Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Edward Albee e o atual ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Harold Pinter, todos interessados em interpelar, por meio da linguagem, os limites da comunicação humana. Antes dos chamados absurdistas, a autoridade da palavra no âmbito da expressão teatral havia sido posta em xeque pelo francês Antonin Artaud, que viveu longos episódios de tratamentos psiquiátricos, sendo submetido a incontáveis sessões de eletrochoque. Depois de ser expulso do grupo dos surrealistas liderados por André Breton, esse poeta, ator, diretor e teórico teatral volta-se para um tipo de atuação inspirada no transe e na sensualidade encontrados nas manifestações cênicas dos povos considerados não-civilizados. Deixando a palavra de lado, ele reafirma um tipo de comunicação teatral mais voltada para os sentidos e menos para a razão. No Recife, a Cia. Teatro de Seraphim, cujo próprio nome foi inspirado pelos escritos teóricos de Artaud, tem se detido com especial atenção sobre a problemática da loucura. Sempre sob a direção do professor Antônio Cadengue, em 1996, esse grupo levou aos palcos uma versão de O Alienista, de Machado de Assis. Nos dois anos seguintes, participou ativamente do Ciclo Iluminuras, importante experiência de aproximação entre o doente mental e a sociedade por meio da arte – iniciativa liderada pelo cantor Gonzaga Leal, quando atuava como terapeuta no Hospital Ulisses Pernambucano. Uma das peças encenadas pela Seraphim, nesse projeto, foi Lima Barreto ao Terceiro Dia, de Luís Alberto de Abreu, texto que reconstrói poeticamente o convívio do autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma com os internos do manicômio a que foi recolhido por ser alcoólatra e por se encontrar em profundo estado de depressão. Protagonizada pelo Continente dezembro 2005

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Nelson Rodrigues: evocando arquétipos mitológicos

saudoso ator Marcus Vinícius, encenada na antiga capela do hospital, os pacientes residentes, que dividiam a platéia com as pessoas que foram apenas ver o espetáculo, presenciaram um dos momentos mais belos da recente história do teatro pernambucano. Alguns anos antes, esse grupo havia oferecido ao público recifense uma requintada encenação de Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues. Nessa peça, ecoando arquétipos mitológicos, a loucura rompe no palco com toda a força, desenvolvendo-se rápida e cruelmente, instalada em seu habitat ideal: uma família sem amor, erguida e mantida pela hipocrisia das convenções sociais. Apesar de não ter corrido o risco de ser internado em hospícios, como ocorreu com Lima Barreto, embora também hostilizado por setores mais conservadores da sociedade, sendo freqüentemente tachado de pornográfico e de pervertido, caberia a Nelson Rodrigues produzir uma das melhores ilustrações das dificuldades de se representar teatralmente, em sua devida complexidade, as dores da enfermidade psíquica. Captando com precisão a atávica marginalidade do doente mental, em Álbum de Família, Nelson concebe o personagem Nonô, “o possesso”, um jovem atormentado que perambula nu ao redor da casa, causando vergonha aos seus familiares. Nonô não tem voz, não possui falas, nem sequer precisa aparecer em cena, mas a sua presença – que é ao mesmo tempo a sua ausência – é lembrada durante toda a narrativa, por exclusão ou por negação. De certa maneira, esse recurso encontrado pelo maior dramaturgo brasileiro parece sintetizar metaforicamente a maior contribuição que o teatro talvez possa legar à questão da doença mental: a evidência, ou a confirmação, de que a verdadeira loucura é, em última instância, um doloroso impedimento à representação. •


NONONON 25 »

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Ginsberg: o mais feroz dos escritores malditos


Hulton-Deutsch Collection/Corbis

LITERATURA

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As garras de Ginsberg Há 50 anos, o poeta Allen Ginsberg, um dos expoentes da geração beatnik, dizia em público seu poema “Uivo” (Howl ), na Six Galery, em San Francisco Weydson Barros Leal

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e todos os conflitos, passeatas e manifestações culturais desencadeadas na turbulenta década de 50 nos Estados Unidos, foram os uivos do poeta Allen Ginsberg e os gritos absurdamente novos de uma turma que se auto-proclamava beat que mexeram definitivamente com os rumos da literatura na América. A publicação de Howl and Other Poems, em 1956, deu-se exatamente um ano depois do encontro, numa certa Galeria Six, em San Francisco, onde o movimento beat – a nova corrente literária que vinha se costurando desde Nova York – armou o circo. O meeting, organizado a pretexto de dar as boas vindas a Jack Kerouac, detonou um jardim de imagens exóticas na cabeça dos que acompanharam, no êxtase da festa, a primeira leitura de “Uivo” – o longo e endiabrado poema que entronaria Allen Ginsberg como o mais feroz integrante dessa matilha de escritores mais que malditos. A maldição que fora lançada sobre os novos anjos, no entanto, seria uma reação de repulsa natural (e observável em todo apontar de novas asas na história da literatura), se não houvesse, por trás da crítica pretensamente literária da época, um policiamento comportamental em relação aos seus componentes. Ser beat simbolizava a quebra de todos os limites estéticos, como o “desregramento de todos os sentidos” rimbaudiano, tanto na arte como nos modos de vida, criando assim a primeira literatura que decididamente era reflexo e objeto da conduta (e de sua transgressão) levada por seus mentores. Mas o bando de demônios também era um bando de poetas iluminados. Allen Ginsberg, William Burroughs e Jack Kerouac eram escritores que haviam se conhecido na Universidade de Colúmbia – de onde Ginsberg sairia graduado e Kerouac expulso – e onde o ambiente frenético de algumas cabeças fazia o giro de leituras pouco ortodoxas como Rimbaud e Kafka. Um caminhão de notas biográficas poderia ser despejado sobre a formação da ideologia e a criação do movimento beat, como os bandidos do contra e os arcanjos protetores, às vezes distantes das nuvens da estação – como o poeta William Carlos Williams, amigo de Ginsberg – e que tiveram importância fundamental, como sal e açúcar, nessa receita celeste. Alguma informação faz-se necessária ao entendimento do leitor menos habituado aos alucinógenos dessa literatura. A era beat foi precursora de uma série de movimentos que Continente dezembro 2005


LITERATURA

eclodiram nas décadas de 1960 e 70 nos EUA. Quando não foi a semente, certamente alimentou, com a carne de membros como Ginsberg, movimentos de liberação sexual, passeatas antiguerra do Vietnã, movimentos gays, simbioses para a difusão de toda a filosofia hippie, ou ainda foi responsável pelos experimentos com drogas como o LSD (em moda, na época) e a procura de alucinógenos naturais e novas filosofias – como nas viagens do lobo Allen pelo Peru, Índia e Japão. Estes fatos, portanto, eram o prato preferido de uma crítica sem outro fundamento, que queria associar a nova corrente a uma imagem de drogados e promíscuos. É claro que, na história da literatura, este não foi o primeiro grupo ou movimento a ser discriminado e perseguido por suas ousadias comportamentais que resultaram em revoluções literárias. E com poucas exceções, todos os grandes poetas que puseram a mão no leme desse barco embebedaram de suspeitas o grande público. Basta lem-

brar alguns românticos franceses, capitaneados por Baudelaire – que conhecia os paraísos artificiais –, ou Verlaine, Tristan Corbière, Rimbaud... A lista pode não ter fim, antes e depois da geração beat. Como escreveu o poeta Cláudio Willer no ensaio introdutório de sua tradução de Uivo, Kaddish e Outros Poemas (L&PM, 1999), esses críticos esqueciam que “naquele momento, corriam soltos os mais diversos tipos de drogas, sem que isso provocasse o aparecimento de uma miríade de poemas como “Uivo” ou de narrativas em prosa como On The Road (publicado no Brasil com o título Pé na Estrada). Em outras palavras, se o ticket para todas as alucinações dos jovens da época desse acesso aos sagrados infernos da poesia, os Estados Unidos teriam sido o maior celeiro de Ginsbergs e Kerouacs que de alguma terra já teria brotado. Mas “Uivo” foi de um impacto digno de um buquê baudelairiano. Até processo por obscenidade sua publicação inspirou, sendo o livro só liberado após um ano, Imagens: Reprodução

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Peter Orlovsky (namorado de Ginsberg), Jack Kerouac e William Burroughs (deitado em primeiro plano), na praia de Tanger, Marrocos, em 1957 Continente dezembro 2005


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Neal Cassady (com o cigarro) personagem principal de On the Road

na Suprema Corte americana. O poema, escrito numa linguagem acelerada e de fôlego profundo, arrasta por suas imagens inúmeras alusões a fatos vividos ou anotados pelo poeta ao longo de seus labirintos. Estes fatos, estando tão intimamente ligados a sua realidade, recriam pelas metáforas com que se vestem universos absolutamente novos, de uma beleza de incêndios, às vezes doando à fantasia poética a semelhança das cores de um Lautréamont endiabrado. Sua estrutura de três movimentos compõe o inebriante concerto onde o que poderia se batizar de “Allegro”, “Andante” e “Allegro assai”, é inspirado por um certo Carl Solomon, a quem é dedicada a partitura. Solomon fora um escritor neodadaísta que Ginsberg conhecera no Instituto Psiquiátrico de Colúmbia, onde permaneceu internado por oito meses, como forma de evitar sua prisão depois de incidentes com a polícia. “Uivo” é, portanto, a explosão poética de todas as experiências e reflexões do autor até aí: "Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus..." William Carlos Williams, que 20 anos antes testemunhou toda a formação intelectual e “psíquica” de Ginsberg, quando eram adolescentes em Paterson (Nova Jersey), registra na nota prefaciadora de “Uivo” o seu espanto pelo fato de como o perturbado garoto surgia agora com um poema empolgante, e diz: “Literalmente, com toda a evidência, ele atravessou o inferno.”

Esta imagem nos leva imediatamente aos degraus do universo rimbaudiano. A diferença seria: Rimbaud, tendo visionado os infernos da existência humana, abandonou seu patíbulo cosmopolita enfurnando-se em outro, que foi a tentativa de esquecer-se de si, distante de tudo e de todos. Ginsberg, ao contrário, depois da temporada nas margens do seu Letes, andou o mundo, vagou pelos campos da indignação moderna e retornou ao seu habitat para combatê-la, engajando-se em todos os movimentos de protestos e reivindicações em que, com sua voz, pudesse lutar. Por esta postura de poeta engajado, porém, pagou o homem, o idealizador, o príncipe visionário da beat generation um preço de isolamento, e aos poucos, o grupo se dispersou, guiados os seus ex-sócios, ora por projetos pessoais, ora pela mórbida calmaria que se abate sobre tantos na idade madura: “Verdadeiro riso santo no rio! Eles viram tudo! O olhar selvagem! Os berros sagrados! Eles deram adeus! Pularam do telhado! Rumo à solidão! Acenando! Levando flores! Rio abaixo! Rua acima!” Mas Ginsberg, seguindo seu instinto, mergulhou cada vez mais em sua pregação de liberdade total, fosse carne ou espírito, quando estes dois componentes fundiam-se em sua poesia num canto de iluminação sobre suas sombras que, afinal, compunham o universo de sua inquietude e homossexualidade. Neste ponto, “Uivo” é um divertido manifesto ideológico onde, tendo-se acesso a algumas notas explicativas, o leitor pode chocar-se (o que seria lamentável) ou refletir sobre este magnífico exercício de liberdade de um homem que viu os expoentes de sua geração “arrastando-se nas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa, que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das cidades contemplando jazz, que morderam policiais no pescoço e berraram de prazer nos Continente dezembro 2005

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carros de presos por não terem cometido outro crime a não ser sua transação pederástica e tóxica, que uivaram de joelhos no Metrô e foram arrancados do telhado sacudindo genitais e manuscritos, que copularam em êxtase insaciável com uma garrafa de cerveja, uma namorada, um maço de cigarros, uma vela, e caíram da cama e continuaram pelo assoalho e pelo corredor e terminaram desmaiando contra a parede com uma visão de boceta final e acabaram sufocando um derradeiro lampejo de consciência...” Hoje, passados 50 da primeira edição de “Uivo”, este poema continua a impressionar liberais e a chamar a atenção dos jovens que, como leitores ou estudantes de literatura, têm em suas prateleiras lugar reservado para o bicho. A tradução brasileira, no caso, reflete de forma bastante lúcida a linguagem original quanto ao som e aos termos utilizados por Ginsberg, como as gírias e os palavrões. E o poema, como autêntica obra de arte, permanece conduzindo através dos anos a emoção de seu criador, que com a pena e a palavra, transmuda-se em homem, santo, ou lobo. •

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Allen Ginsberg, em Berkeley, 1956, ano de publicação do poema “Uivo”


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Erico Verissimo 100 anos

Comemora-se este mês o centenário do escritor gaúcho de obra oscilante, que se superou, entretanto, nos sete volumes da saga O Tempo e o Vento Luiz Carlos Monteiro

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obra do escritor sul-rio-grandense Erico Verissimo (1905-1975) possui uma nítida divisão interna que se processa a partir de um naturalismo ingênuo e provinciano, passando pela literatura infanto-juvenil e de viagem, pela autobiografia e o memorialismo, até chegar à eficácia alcançada com o romance histórico. Este percurso se inicia com o livro Fantoches (1932), feito de contos com diálogos teatralizados e contendo alguns assuntos que irão ser desenvolvidos posteriormente. No entanto, o romance Clarissa (1933), que é considerado a sua verdadeira estréia, apresenta no enredo o cotidiano de uma pensão de Porto Alegre, onde se destacam os personagens Clarissa, uma adolescente saudável e arguta, em contraposição ao quarentão Amaro, pianista e bancário que tem como arma defensiva contra o mundo e a timidez que o assola, a própria solidão. A descrição de

paisagens amenas e estáticas mostra um mundo mais natural que urbano, além do comportamento solitário de personagens que se reafirmam nos sonhos geralmente impossíveis de realização, sugerem uma forte ligação com o Romantismo. Após essa entrada no mundo psicológico de Clarissa, os próximos romances serão construídos à sombra de um intimismo que enfatizará uma certa crueza na visão do homem e do mundo. Além disto, o escritor revelará, paradoxalmente, uma grande habilidade na apresentação de situações humanas radicais relacionadas a costumes de época e de ambientes de decadência e miséria ou prosperidade burguesa. Esse sentido intimista, presente com mais força na continuidade dos livros iniciais, como Um Lugar ao Sol (1936), se estende até Olhai os Lírios do Campo (1938). O romancista cumpre um roteiro irregular, oscilando entre as experimentações com a narrativa e o Continente dezembro 2005

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LITERATURA convencionalismo de uma escrita tradicional em seus moldes internos, ao manter no texto as categorias de início, meio e fim. Por outro lado, ele irá promover também o desenvolvimento, a permanência e a multiplicação de numerosos personagens, que podem aparecer em mais de um livro, como no caso de Vasco e Clarissa. Mas a ficção de Erico Verissimo não se restringe aos limites do Rio Grande do Sul, ultrapassando-o em outros pontos de seu trabalho. Em O Senhor Embaixador (1965), descreve os eventos da fictícia República de Sacramento, expondo todos os crimes, vícios, traições e meandros obscuros da vida diplomática de uma embaixada latino-americana em Washington. Já em O Prisioneiro (1967), denuncia o racismo e a tortura na guerra do Vietnã. E mais anteriormente, em Saga (1940), mostra o personagem Vasco alistado na Brigada Internacional para lutar contra a ditadura do general Franco na Guerra Civil Espanhola, tendo um final surpreendente como criador de vacas e galinhas e casado com a mesma Clarissa de outros romances. Feita a superação do sentido humanista inicial, ele se dirige a um aprofundamento na discussão dos eventos políticos e históricos de seu Estado natal, caso dos sete volumes de O Tempo e o Vento, com os títulos gerais de O Continente, O Retrato e O Arquipélago, publicados entre 1949 e 1962, sendo os seus livros mais bem aceitos pela crítica. Um de seus analistas mais lúcidos, Flávio Loureiro Chaves, assim se pronuncia sobre O Continente: “Uma crônica de sangue pontuada por sucessivas guerras, eis o cenário onde brota a gênese da Província de São Pedro. Ao início de O Continente, no episódio de Ana Terra, o espaço físico foi inteiramente destruído após um ataque dos castelhanos, que massacraram todos os homens válidos da fazenda de Maneco Terra. Sobre a imensidão do campo, duas mulheres e duas crianças sepultam os seus mortos. Desses escombros surge a personagem de Ana Terra, armada de uma confiança absurda em si mesma, que se integra na caravana pioneira para fundar, muito distante, a vila de Santa Fé. (...) A mesma intriga, distribuída por diferentes níveis da temporalidade, repete-se várias vezes na sucessão de Terras e Cambarás. Justamente essa reiteração da temática, insistindo no motivo, amplia o contexto da narração e faz com que O Continente ultrapasse os limites do mero romance histórico, escapando ao regionalismo”. O último romance, Incidente em Antares (1971), mescla o realismo histórico à ocorrência inusitada de mortos itinerantes que saem do cemitério e invadem a cidade na Continente dezembro 2005

Divulgação

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Verissimo e o volume Continente, da sua saga de sangue O Tempo e o Vento

sexta-feira 13 de dezembro de 1963, para denunciar e julgar desmandos, corrupção e desvios de costumes de antarenses poderosos e influentes socialmente. A primeira parte, “Antares”, se inicia com a explicação da própria denominação Antares, prossegue com a genealogia de duas famílias tradicionais e inimigas, Campolargos e Vacarianos. Ela serve como preparação, em duas centenas de páginas, para a segunda, “O Incidente”, que provoca uma debandada geral e uma intranqüilidade sem precedente na cidade: “Pouca gente dormiu naquela noite em Antares – a maioria por causa da presença dos sete mortos na praça e do calor opressivo, mas alguns porque pensavam nas possíveis conseqüências das denúncias de Barcelona, que haviam maculado a honra de tantas damas e cavalheiros da sociedade local. Alguns maridos, cujas mulheres tinham sido acusadas publicamente da prática de adultério, aproveitaram o pretexto para abandonar a casa da família legítima e ir passar a noite com as respectivas amantes e filhos naturais”. Ao término de Incidente em Antares, um pai leva o filho para a escola, e este vê, num dos muros pichados, uma palavra que passa a soletrar, sendo repreendido pelo pai. O garoto, na sua ingenuidade, não poderia imaginar que a perigosa palavra liberdade que balbucia talvez pudesse vir a comprometer seu pai. Mas o que se constata é que ela foi a razão e o esteio de toda uma vida dedicada pelo escritor à causa literária e libertária, privilegiando sua terra e seu povo, ultrapassando o seu Estado para ser lido no restante do país e merecer traduções em numerosos outros países. •


Alexandre Belem/JC Imagem

Que cadáver é esse?

LITERATURA

Ciao Cadáver, de Delmo Montenegro, é poesia policial Micheliny Verunschk

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elmo Montenegro, autor de Les Joueurs de Cartes (Edições Bagaço, 2003), apresenta seu novo trabalho, o instigante Ciao Cadáver (Landy, 2005), poesia de invenção na melhor tradição poundiana. Fraturando os signos, transtornando-lhes e apropriando-se de palavras da grande babel linguística e imagética que é o mundo pós-moderno, o poeta constrói seu poema como o artefato que toda (boa) arquitetura poética deve ser. De fato, Ciao Cadáver tem peso, medida, textura. O livro é costurado em cinco movimentos. O primeiro movimento, homônimo ao título, dialoga com a obra de Lourenço Mutarelli, quadrinista do póscaos-tudo, e captura o olhar nervoso e ágil do leitor de quadrinhos. Aqui, o grande desafio é não apenas acompanhar o flash da máquina, é sê-lo, luz em movimento, clareando a cena obscura que num átimo de segundos desaparece: “tudo sangra sob os estrobos”, adverte. E é sob o estourar contínuo de flashs ou da luz negra de danceterias infernais que o leitor é preso numa teia de referências que vão da cultura pop à filosofia contemporânea, de Elton John a Bachelard, dos mitos gregos à Mondrian. No segundo movimento, Apocalipsis Cum Figuris, a música (ou não-música) dá o tom e o poema desnuda por completo seu caráter francamente dionisíaco: desregramento dos sentidos, viagem noturna aos subterrâneos do inconsciente, embriaguez do vinho da poesia. Partituras de John Cage colam-se ao texto menos como emplastros, mas como a própria pele do poético. Syrinx e sirenes compõem a “ópera-câncer” do poema num crescente conflituoso e dolorido: “homem-húmus/ músculo délfico/: via-láctea/ músculoartropóde-estrela; liber vulgata/ músculo-flor:/ carcinoma-ouvido/ nada”. Não é apenas o desregramento, é mesmo o extâse da dissolução que este poema canta. A liberdade do ciclo de vida e morte e vida. É um Frankstein sedutor que Montenegro começa a alinhavar e que pode surgir ora como um novo Prometeu ora com um rosto extremamente familiar. Em Attachein Poiesis, um dos momentos mais líricos e precisos do livro, surge como um rasgo de sabedoria oriental. Sob o título Exercícios Lineares 2, o poema se diz: “tão/ retidão/ viver a economia/elíptica da carne/passo/abstração”. Um ideograma situa o movimento, uma adaga corta o céu da poesia e tudo pressupõe leveza

O poeta Delmo Montenegro

e silêncio. Poemas Negros, dedicado a Frederico Barbosa, dialoga intertextualmente em forma e conteúdo com a obra e imaginário do poeta paulista-pernambucano, e entre túmulos e escombros as duas poéticas se encontram e se celebram. Finalmente, em Le Grand Guignol du Mond, o poema delineia um universo feminino em que a água como metáfora do útero e dos mistérios amorosos exerce papel primordial. Entre Penélopes e ninfas, o gozo supremo é a morte, ou la petite mort, como se referem os franceses ao orgasmo. A dor subsiste, mas é libertadora. Montenegro apresenta um cadáver ausente, que deixou suas marcas para que uma leitura atenta o decifre ou seja por ele devorado. É o Frankstein sedutor do qual se falava anteriormente. Podemos nos despedir sem saber dele senão suas partes, podemos encontrá-lo em espelhos fraturados, tomando-nos o rosto que é nosso, podemos nos perturbar com o seu hálito como que de fantasma, mas não se sai ileso desse encontro que há de seguir a mesma lógica da investigação policial: procurar indícios, juntar elementos, apresentar as provas. Ciao Cadáver é poesia policial. O que vem a ser isso cabe ao pós-mundo conceituar. • Ciao Cadáver, Delmo Montenegro, Landy Editora, 144 páginas, R$ 25,00.

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POESIA Cinco Poemas do livro inédito O Homem e sua Sombra

Affonso Romano de Sant’Anna O homem e sua sombra (12) Era um homem que não podia amar ninguém pois entre ele e o objeto amado a sombra se intrometia e o perturbava. Tentava afastá-la deixá-la em casa, mas a sombra se dava conta e como uma cadela o seguia e quando ia beijar a amada nos seus pés ela urinava. Pior, quando o homem se deitava com a amada era a sombra que gozava.

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O homem e sua sombra (16) Uma sombra apaixonou-se – não por outra sombra – mas por outro homem que ao seu lado passava. Telefonou-lhe, mandou bilhetes, o espionava. Fazia serestas à moda antiga mas, desprezada definhava. Passou a soltar suspiros líricos: Era uma sombra que poetava.


POESIA

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O homem e sua sombra (30) Era um homem que andava de braço dado com sua sombra como se fosse sua senhora. Aos passantes cumprimentava tirando sua cartola enquanto a sombra ajeitava a estola.

O homem e sua sombra (28)

O homem e sua sombra (19) Era um homem em cuja sombra ovelhas brancas pastavam.

Há quem tenha a sombra redonda e a acaricie a toda hora. Há quem tenha a sombra quadrada e em carregá-la se esfola. Quem tem a sombra redonda deita e rola. Quem tem a sombra quadrada se assenta e chora.

No princípio estranhou as criaturas que senhoreava. Aceitou seu destino descobriu na sua sombra a lã que o agasalhava.

Affonso Romano de Sant'Anna é poeta e ensaísta. Publicou Que País é Este?, O Lado Esquerdo do meu Peito e Textamentos, entre outros.

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AGENDA/LIVROS A misteriosa Olga Bonita de doer, atriz talentosa, Olga Tchekova viveu perigosamente em plena era das tiranias. Russa, fugiu do regime soviético e se estabeleceu em Berlim, onde virou estrela, dirigida por diretores como Murnau, Ophüls, Clair e Hitchcock. Tornou-se íntima do primeiro escalão nazista, espécie de Leni Riefenstahl na frente das câmeras. Daí foi recrutada pelo irmão, o compositor Lev Knipper, para atuar na espionagem soviética. Essa vida cinematográfica é contada com rigor de historiador e sedução de ficcionista pelo britânico Antony Beevor.

Quinteto solitário Novo romance de Cristóvão Tezza percorre os labirintos de mentes atormentadas pela solidão e pelo ressentimento

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m fotógrafo profissional recebe uma encomenda misteriosa de um estranho: fotografar secretamente a bela modelo Íris e entregar os negativos intocados. A partir deste início meio enigmático desenrola-se O Fotógrafo, do catarinense Cristóvão Tezza, radicado no Paraná e autor de 10 livros de ficção e alguns ensaios bem-recebidos pela crítica e pelo público. Aqui, cinco personagens têm suas vidas apresentadas em linhas cruzadas, no transcorrer de um dia, à maneira de um bloomsday. O Fotógrafo (cujo nome, Rodrigo, raramente é enunciado) vive um casamento estropiado com a professora e mestranda Lídia e, no bojo da tarefa recebida, sente uma atração especial por Íris (nome que, entre outras acepções, quer dizer halo de luz em torno das pessoas e coisas, diafragma de máquina fotográfica), que abandonou os estudos, fracassou na carreira de modelo e consome drogas. Esta, por sua vez, faz análise com Mara, casada com o professor Duarte, com quem Lídia tem um princípio de envolvimento. Nessa quadrilha drummondiana, todos vivem uma espécie de solidão acompanhada e desfiam, nos comezinhos acontecimentos de um dia, seus rancores e náuseas. Neste último romance, o escritor atinge a plena maturidade e o domínio da carpintaria ficcional, construindo um texto psicológico e urbano, de narrativa ágil e econômica, sem as pirotecnias verbais tão comuns entre jovens autores candidatos a gênio incompreendido. Ao contrário, Tezza seduz o leitor pela condução competente nos labirintos de mentes atormentadas pelo ressentimento, numa Curitiba apresentada de forma bem diferente dos cartões-postais, de onde emergem, infiltrados no mundo da pequena burguesia, trombadinhas, traficantes e assaltantes, compondo um painel ácido e ao mesmo tempo afetivo da cidade fria. Ao fecharmos esta edição, não havia ainda saído o resultado do Prêmio Portugal Telecom, no qual a obra figurava como finalista, com justiça. (Homero Fonseca) O Fotógrafo, Cristovão Tezza, Rocco, 224 páginas, R$ 27,00. Continente dezembro 2005

O Mistério de Olga Tchekova, Antony Beevor, Record, 332 páginas, R$ 45,90.

“Inês é morta” Inês de Castro morreu em 1355, mas seu mito chegou até nós, atravessando mais de seis séculos de memória e história. Conhecida como “a que depois de morta foi rainha”, entranhou-se de tal modo no imaginário português que personagem real e de ficção se entrelaçam de maneira indissociável, de Garcia de Resende a Camões, impregnando diversas literaturas européias e autores brasileiros, como Jorge de Lima, Mário Faustino e Ivan Junqueira. O “mito do amor português” é condensado aqui em coletânea dirigida por Lucila Nogueira. Saudade de Inês de Castro, Lucila Nogueira (org.), Bagaço, 328 páginas, R$ 30,00.

Atores da História Dos ideais de liberdade no século 18 à participação política das mulheres do chamado movimento popular do Recife; da formação histórica da sociedade do Sertão do São Francisco no século 19 às beatas do padre Ibiapina; das ligas camponesas à abolição da escravatura, passando pelo conceito de modernidade entre nós no século passado. São temas abordados pela coletânea Sete Histórias – Inúmeros A(u)tores, organizado pela professora Andréia Bandeira e escrito por historiadores egressos do curso de pós-graduação em História da UFPE. Obra importante para o nosso auto-conhecimento. Sete Histórias – Inúmeros A(u)tores, Andréia Bandeira (org.), Editora Oito de Março, 203 páginas, R$ 10,00.

Encruzilhada poética

O poeta paraibano Antônio Mariano encontra-se diante de uma encruzilhada, a julgar pela reunião de seus poemas em Os Guarda-Chuvas Esquecidos. Como um arquiteto que domina a relação entre volume e vazio, mas hesita entre o partido a adotar, ele flerta com veleidades vanguardistas enquanto exercita uma escrita límpida. Seus melhores poemas são os concisos, quase hai-kais, como “Todo nascer / era verdadeiramente novo. // Cabia a ti / a novidade de estar vivo”. Ou esses versos perfeitos: “O claro olhar da moça / é um só leitmotiv: // a lua está lua. / Lua como sempre achou-se. // Nua de adjetivos”. Os Guarda-Chuvas Esquecidos, Antônio Mariano, Lamparina, 112 páginas, R$ 19,00.


AGENDA/LIVROS Sobrevivente da tortura Quando seus principais combatentes foram presos ou mortos, a guerrilha urbana de esquerda que lutava contra a ditadura militar, nos anos 60, começou a recrutar até mesmo estudantes secundaristas. Um deles, Celso Lungaretti, acabou preso e, após ser torturado, concordou em assinar uma carta em que se dizia arrependido de ter aderido à luta armada. Daí para ser considerado delator dos companheiros foi um passo e Celso passou 34 anos com a fama de traidor, até que, no ano passado, teve acesso a arquivos militares secretos e pôde provar que não delatara ninguém. Náufrago da Utopia, Celso Lugaretti, Geração Edit., 304 págs., R$ 39,00.

Moral e religião Ao lado de Diderot, Voltaire e Montesquieu, Rousseau foi um dos construtores do grande Esclarecimento que combateu a ignorância e o preconceito no século 18, a partir da França. O filósofo, que não fugia à polêmica, escreveu em resposta à Carta Pastoral do Arcebispo de Paris, Christophe de Beaumon, que condenava a compra e a leitura do livro Emílio, acusando-o de destruir os fundamentos da doutrina cristã. Rosseau rebate ponto por ponto as acusações do prelado ao mesmo tempo em que reafirma suas convicções. Carta a Christophe de Beaumont, Jean-Jacques Rousseau, Estação Liberdade, 240 páginas, R$ 37,00.

História da fêmea Há mais de 30 anos, assinando matérias sobre sexo nas principais revistas femininas brasileiras, além de ter feito parte da equipe que criou a revista Nova, a jornalista Márcia Lobo foi acumulando uma vasta pesquisa sobre curiosidades médicas, históricas e antropológicas, as maneiras de se explicar a reprodução através dos séculos, as perversões mais bizarras, crenças e costumes incríveis, as formas inusitadas como diversos povos se referem ao ato sexual e até mesmo uma coleção de aforismos sobre a mulher, a qual resultou numa história da fêmea, rica e hilariante. Uma História Universal da Fêmea, Márcia Lobo, Editora Francis,192 páginas, R$ 28,90.

Contos poéticos

Após conquistar o prêmio de melhor livro de ficção pela Academia Pernambucana de Letras, com o livro O Olho do Girassol, a escritora Djanira Silva, natural de Pesqueira, no interior de Pernambuco, está lançando o volume de contos Pecados de Areia. A partir de suas próprias memórias, ela mostra as dúvidas e inquietações de criança-adolescente, numa prosa altamente poética. “O título é uma alusão àqueles pecados leves que são cometidos sem maldade pelas crianças e que costumam compor as lembranças dos adultos, ao recordarem um período de inocência e descobertas”, explica a autora. Pecados de Areia, Djanira Silva, Edição da Autora, 147 páginas, R$ 20,00.

Aventuras no séc. 16 Pela primeira vez no Brasil é publicado o relato de Fernão Mendes Pinto, que visitou o Extremo Oriente em 1537

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ma das mais importantes publicações dos últimos tempos é esta primeira edição brasileira do livro Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, português que se aventurou pelo Extremo Oriente dentro do ciclo das Grandes Navegações, nos idos do século 16, quando Portugal era uma potência marítima. Livro tido como tão importante para a fundação de nossa língua quanto Os Lusíadas, de Camões, foi, entretanto, banido pela Igreja Católica e pelo governo português, porque expunha claramente não apenas as intenções mercantilistas por trás de hipócritas missões evangelizadoras, como também o comportamento muitas vezes brutal dos navegantes e conquistadores portugueses. Fernão Mendes Pinto nasceu por volta de 1510 e, a partir de 1537, passou 21 anos viajando pelo mundo. Interlocutor de soberanos, testemunha de batalhas, foi preso 13 vezes e vendido em 17 ocasiões. De volta a Portugal em 1558 começa a escrever o relato de suas aventuras 11 anos depois, levando mais 11 para concluí-lo. A obra só pôde ser publicada, entretanto, em 1614, 31 anos após a morte de seu autor. Esta edição, em dois volumes, baseia-se na edição estabelecida pela tradutora e poeta portuguesa Maria Alberta Menéres. (Marco Polo)

Peregrinação, Fernão Mendes Pinto, Editora Nova Fronteira, 2 volumes, 816 páginas, R$ 118,00.

As vidas de Cervantes Pouca coisa se sabe com certeza sobre a vida de um escritor exemplar: o espanhol Miguel de Cervantes Saavedra, autor de El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha, tido como o romance mais importante de todos os tempos. O poeta, novelista e ensaísta, também espanhol, Andrés Trapiello, resolveu fazer um levantamento de todas as hipóteses e fatos sobre Cervantes, procurando, através do bom senso, separar o que é lenda do que é provável realidade. Seu livro As Vidas de Miguel de Cervantes tenta, também, escapar do palavreado e teorização acadêmicos, que quase sempre mais obscurecem do que clareiam o assunto que tratam, e, melhor ainda, procura buscar na própria obra de Cervantes – não só o Quixote, como as Novelas Exemplares, seus entremezes e comédias teatrais e o Persiles – substratos para apreender a sensibilidade e a consciência do escritor. Trapiello faz também uma análise da época contraditória e rica em que viveu Cervantes. As Vidas de Miguel de Cervantes, Andrés Trapiello, José Olympio Editora, 352 páginas, R$ 43,00. Continente dezembro 2005

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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Belas lésbicas “Tudo que é novo parece belo.” Provérbio francês

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propriando-me de uma confissão de Franz Kafka, digo-lhes em flagrante que “fiz amizade com minha ignorância”. E hoje já faço concessões ao meu princípio de não revelar gratuitamente o que não sei ou desconheço. Para que adotar princípios rígidos se a realidade do mundo é tão elástica? Mas nada de abuso nas concessões, como acontece com a legislação brasileira, tão pródiga em recursos que vai terminar dando ordem de prisão a defunto. Resolvi que não vale a pena silenciar sobre certas ignorâncias, vamos dizer, quase unânimes, porque sua revelação pode dar início a um bom bunda-bunda erudito. Não sei, por exemplo, quando, no Ocidente, a poesia apartou-se da música. O leitor comum pode encontrar nas enciclopédias que na cidade egípcia de Alexandria, houve, no século 3 a.C. ou 2 a.C., um movimento literário de autonomia do poema em relação à música. A poesia lírica da antiguidade grega, principalmente no século 6 a.C., era “cantada e dançada” (Spina). Dependia da lira, nos encontros domésticos, e da cítara em espetáculos corais e apresentações mais importantes. A flauta era também um instrumento do universo lírico da Grécia. Foi contra esse casamento lésbico de poesia com a música que os alexandrinos impuseram um divórcio. Não foi propriamente um divórcio, mas uma separação provisória, porque na baixa Idade Média (séc. 11 a 15), com o Trovadorismo, a música e a poesia tornaram a encontrar-se de novo sob a cumplicidade da corte, do clero e dos beduínos. Mas o casasepara continuou. Continente dezembro 2005

Estava eu em meu diário desassossego, com todos os ss que vocês, meus milhões de leitores, podem imaginar, quando o correio me entrega o Manual de Versificação Românica Medieval, do professor da USP Segismundo Spina, um presente da amiga, quase menina e quase doutora, Isabel Moliterno. O Manual foi devorado em três dias. Trata-se de uma árvore sem folhas, só frutos. Obra de historiador e de grande analista. Como todo grande livro, reserva-nos sempre sobressalto, e este se encontrava no capítulo sobre a lírica medieval francesa, que é dividida em três partes: “Lírica Popular e Semi-Popular”, “Lírica Cortês” e o que me fez ir respirar à janela, a “Nouvelle Rhétorique”. Foi essa terceira parte que me fez deparar com algo parecido com o que chamamos, hoje, de vanguarda. Mas, diferentemente daquelas que vagueiam pelo Brasil, e deveriam procurar abrigo nas artes plásticas e não na literatura, a Nouvelle Rhétorique teve à sua frente um gênio, Guillaume de Machaut, poeta e músico, que mexeu nos corações e mentes do século 14, ao propor a separação da poesia da música. O que as vanguardas brasileiras tiveram de bom foi justamente o esforço de dar autonomia ao poema, depois da anarquia promovida pelo verso livre. Quanto a Machaut, sua luta conseqüente teve o propósito de tornar autônoma a própria poesia, como arte. Sem ser por esperteza minha, mas por necessidade de melhor esclarecer a proposta estética de Guillaume de Machaut, cito este trecho de Segismundo Spina: “partiu


MARCO ZERO

do princípio de que o ritmo poético devia sobrepor-se ao ritmo melódico. (...) Proclamada a superioridade e a anterioridade da letra em relação à música, surge então o poeta: a fase do trovador e do troveiro entra em declínio”. Spina considera a Nouvelle Rhétorique (retórica, na época, era como se chamava a poesia) uma renovação da poesia francesa. Quanto a mim, acredito que a separação não foi um desejo leviano de ambas as artes, mas uma verdadeira ânsia de autonomia, para que libertas, renovassem suas técnicas, abrindo caminho para o Renascimento. A protopoesia dos povos ágrafos aparece sempre em comunhão com a música e a dança, mas se dermos uma espiada em algumas tribos brasileiras, principalmente nos dois primeiros séculos após o descobrimento, vamos encontrar alusões a índios-poetas que iam de tribo em tribo, até mesmo tribos inimigas da sua, levando a poesia falada e, com isso, granjeando um grande respeito. Mas, não falemos de exceções. O poeta e letrista baiano Wally Salomão, que foi um dos próceres da poesia marginal, no Sudeste, na década de 70, em entrevista ao Jornal do Commercio do Recife, pouco antes de morrer, fala que “alguns professores” pretenderam “uma separação definitiva entre música e poesia, quando a base da poesia da língua portuguesa são as

canções do amigo e canções de amor”. No entanto, parece mais justo acreditar que a separação começou na própria Idade Média, no meio dos trovadores, jograis e menestréis, pela ação de Guillaume de Machaut e sua Nouvelle Rhéthorique. Como disse Gilberto Mendonça Teles, é muito mais passional do que técnica essa discussão sobre se os compositores de música popular são poetas ou não. Essas besteiras não tiram o sono de ninguém, mas conheço um pai que mandou seu filho estudar na França, quando viu no livro adotado, pelo colégio brasileiro, Cazuza ao lado de Cruz e Souza. Na França, disse o pai revoltado, tais compositores não são confundidos com os poetas, e são chamados chansonniers. Como nunca fui à França... Um jovem poeta que me chamou a atenção foi o paulista Ademir Assunção, da geração 80. Numa entrevista ao mesmo jornal, ele revelou que está realizando uma experiência que evita colocar a poesia em segundo plano. Diz ele: “Estou o tempo todo falando os poemas; só que a divisão dos versos e o encaixe dentro dos compassos da música, muitas vezes dão a impressão de canto”. Só temo que, nessa fronteira, não termine caindo no rap, que dá otite virótica e câimbras no lado esquerdo da alma. • Continente dezembro 2005

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Espanha

palco de festa, fúria e fantasia Fabricantes de sonhos que inventam a vida no palco se encontram na Espanha, país que dá grande impulso à indústria cultural através das feiras de teatro Moncho Rodriguez, de Cádiz Fotos: Vicente Nagarythe


CÊNICAS

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á quem diga que a vida se repete em ciclos, círculos, tempos que voltam e nos visitam como por mistério ou simples coincidência. O poeta Vinicius colocou em versos que “a vida vem em ondas como o mar”, repetindo-se ou renovando-se em cada lua ou maré. Para o poeta ou o artista, a vida pode ser terra onde António Machado afirma que “se faz caminho ao andar”. Lá se foram os tempos dos titiriteiros independentes que nos anos 60 e 70 cruzavam com as suas “carroças” terras de Castela e de León, da Galícia ao País Vasco, de Astúrias a Cataluña. Fabricantes de sonhos, que inventavam a vida no teatro do dia-a-dia. Agora posso ver que, em cada vila ou cidade onde semeavam dramaturgias e conceitos de respeito ao profissionalismo teatral, hoje recolhem os frutos em cenários privilegiados, o que para muitos países ainda pode ser apenas sonho, desejos utópicos. A Espanha do “teatro independente” é hoje o país da indústria cultural, onde o teatro se mostra como produto artístico em grandes feiras: Tàrrega, Ciudad Rodrigo, Donostia (Antzerki), Castilla-La Mancha, Huesca, Galicia, Palma del Río (Córdoba), e por aí seguem. Não são festivais nem mostras, mas, sim, “Feiras”, com toda a força e sentidos que a própria palavra pode significar em castelhano: Feria / Fúria / Fiesta! Mercado onde o produto principal que se expõe e se negocia é Teatro. Espaços onde as companhias se encontram com os programadores, produtores, distribuidores e outros compradores de teatro. Lugar onde as artes cênicas podem mostrar as tendências das novas linguagens, onde a dramaturgia procura as tendências do contemporâneo, onde os especialistas discutem e refletem sobre a problemática de políticas culturais.

Teatro no Teatro – Uma verdadeira indústria cultural que movimenta milhões de euros por ano, atraindo o turismo, renovando espaços físicos, abrindo caminhos para a capacitação e formação de técnicos e artistas, de animadores culturais e principalmente formando novas platéias que, todos os anos, encontram nas “Feiras” motivos para acreditarem que a cultura é um dos mais importantes produtos de exportação de uma Espanha que se impõe no mercado europeu e mundial pela qualidade e profissionalismo dos seus criadores. A arte e a cultura devolveram ao povo espanhol a imagem de um grande país. Um país que historicamente viveu e se engrandeceu graças aos seus privilegiados construtores de sonhos, seus utópicos Quijotes, pintores, músicos, escritores, que parecem continuar a semear lendas nas terras castelhanas, fazendo dos campos e cidades, dos povoados e aldeias, das feiras e das festas, cenários de imaginários tão atraentes que a fantasia ganha verdades tão reais como imaginadas. Os números podem dar uma visão geral do volume de negócios que essas Feiras de Teatro podem produzir. Basta tomar como exemplo os orçamentos para a programação de uma temporada na zona de Castilla y León, que vão para além dos três milhões de euros (aproximadamente nove milhões de reais). Trata-se do orçamento para contratação de grupos e de

Cena de Yo Cervantes, tuve otras cosas que hacer (ES): evocação dos fantasmas inventados e reais

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CÊNICAS

Uma verdadeira indústria cultural que movimenta milhões de euros por ano, atraindo o turismo, renovando espaços físicos, abrindo caminhos para a capacitação e formação de técnicos e artistas, de animadores culturais e principalmente formando novas platéias Teloncillo (ES)

companhias de teatro e dança (90% teatro) que devem circular por 22 teatros descentralizados apenas nessa região, nos seis meses deste segundo semestre. Citamos aqui apenas uma região (Castilla / Leon) com uma área geográfica comparada ao que pode ser metade do Estado de Pernambuco. O orçamento para a organização da VIII Feria de Teatro de Ciudad Rodrigo, em 2005, que teve um calendário de cinco dias de atividades, foi de 500 mil euros (cerca de um milhão e meio de reais). Essas verbas, que saem dos cofres públicos e de empresas privadas, principalmente da Junta de Castilla y de León e do Banco Caja Duero, podem significar o grau de interesse depositado pelas empresas privadas e governo regional na promoção cultural da sua região. Para a oitava edição da Feria de Teatro de Ciudad Rodrigo, a organização recebeu a solicitação de 430 companhias de teatro de todo o mundo. Mais de 100 programadores, produtores, agentes, distribuidores especializados, “compradores” de artes cênicas, profissionais da gestão cultural entram na grande maratona de espectáculos que começa ao meiodia e termina muitas vezes pela madrugada. A cidade é totalmente tomada pelo espírito do teatro, não apenas as salas de teatro mas também praças, ruas, claustros, palácios, até as muralhas de Miróbriga se transformam em cenários, e pode-se afirmar, sem nenhum erro, que a ocupação dos espaços pelo público ultrapassa os 100%. Continente dezembro 2005

Viaje al centro de la tierra (ES), adaptação de Julio Verne

Uma cidade reconquistada pelo teatro – Ciudad Rodrigo, Miróbriga, é uma dessas cidades encantadas que a Espanha ainda guarda como jóia do seu tesouro arquitetônico. Cercada por muralhas como um cinturão de pedras mágicas, no meio de uma planície onde o sol tinge de dourado os campos que se perdem no horizonte, caminho de Salamanca ou passagem para terras das serras mais altas de Portugal, parece como adormecida no tempo das guerras mouras e cristãs. Com os campanários de suas igrejas elevados sobre a muralha de pedra, sua ponte romana, seus ninhos de cegonhas, a cidade amuralhada revela um entranhado de igrejas, palácios e casarios tão antigos que confundem as visões e memórias de quem por suas ruas se deixa levar. Ao ver a “Feira de Tàrrega”, Juan Carlos, padre-diretor do seminário de Ciudad Rodrigo, acreditou que a sua cidade podia recuperar o alento e protagonismo, atraindo jovens e outros públicos com um evento de igual natureza. Convidou jovens especialistas do movimento associativo e teatral de Castilla y Leon para que criassem um projeto, e junto com a produtora Rosa Garcia Cano e o animador cultural Manuel Jesus Gonzalez fundou uma associação, a Civitas. A idéia tinha o propósito de criar e gerir uma Feira de Teatro que pudesse reacender a dinâmica cultural da cidade, projeto que conquistou o apoio da Junta de Castilla y Leon, atraindo outros investidores, como bancos e empresas privadas. Graças a essa “luz profana e divina” que iluminou o sacerdote ani-


CÊNICAS mador cultural, Ciudad Rodrigo salva-se, contrariando o destino das cidades vizinhas, e se converte no palco das artes cênicas mais ocidental da Espanha na Europa. A associação Civitas pode servir como exemplo de coerência de um projeto do terceiro setor: reuniu um grupo de jovens animadores culturais, e com eles mantém programas de animação e formação de jovens e crianças não apenas no período em que se realiza a Feira de Teatro, mas durante todo o ano. Assegurar a formação de novas platéias, manter acesa a chama da arte e da cultura como uma necessidade de renovação constante, fomentar a criação de novos postos de trabalho na área sócio-cultural, é o maior empenho dessa associação, que agora se estende para um circuito que abrange quase toda região. Civitas leva para cenários medievais, como Sequeros (povoação com aproximadamente 150 habitantes e dez crianças, com um teatro do século 17 para 180 espectadores, mais que a própria população), 25 jovens de Espanha e Portugal, estudantes de animação sócio-cultural, para que ali, na aldeia histórica, realizem a sua capacitação e formação como futuros agentes da arte e da cultura. Esses jovens participam de um curso profissionalizante com 300 horas, para promover programas que possam restaurar vida nova nessas pequenas aldeias e cidades que formam a “Serra de França”, uma espécie de cordão de pérolas preciosas que ponteiam a serra, cada uma com seu próprio encanto, lendas, histórias, que preservam memórias que são patrimônio da humanidade. Teatro como fator de desenvolvimento: cultural, artístico, econômico, turístico e principalmente da cidadania. A intervenção de Civitas em Ciudad Rodrigo e seu entorno é um exemplo vivo de como a Arte pode gerar Vida. É uma síntese da fórmula utilizada pelos espanhóis na criação dessa grande indústria cultural que rende à Espanha incalculáveis benefícios. Teatro de texto – O quarto centenário do Quixote (1605-2005) rendeu ao teatro centenas de montagens criadas e recriadas no mundo inteiro. Circulam neste momento, só na Espanha, mais de 50 novas produções, onde o Engenhoso Cavaleiro da Triste Figura é o protagonista da cena. Este foi sem dúvida o ano do Quijote. Não apenas no teatro como também na dança, na música, nas artes plásticas e obviamente na literatura. Instituições no mundo hispânico estiveram promovendo a criação artística de espectáculos que renovassem para a cena a personagem e os universos criados por Cervantes. Uma dessas produções foi Yo Cervantes, tuve otras cosas que hacer que abriu a XVIII Feria de Teatro de Ciudad Rodrigo, numa produção da Fundación Siglo para las Artes de Castilla y León, também financiadora da própria feira. Com essa produção, a festa teatral de Ciudad Rodrigo abria as cortinas com o próprio Cervantes, convocando e evocando os fantasmas da sua memória inventiva para virem à cena, misturados com as personagens reais que partilharam a vida do próprio escritor.

Cena de Viaje al centro de la tierra (ES): prêmio do Júri Popular

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CÊNICAS

Talvez Camões, de Lisboa: invenção em tom de Odisséia

Na mesma Feira, a companhia de Valladolid Achiperre/Teloncillo Teatro estreou o seu “Quijote!” expressando como principal razão para a sua montagem que “este mundo seria muito mais aborrecido sem a fantasia e invenções criadas pelo engenhoso fidalgo”. Novos espectáculos que se somam a outros tantos já criados e que vão circular pela Europa com o mesmo tema, embora com visões e propostas teatrais totalmente diferentes. Da Itália, o Oplas Teatro apresenta uma recriação de Romeu e Julieta em pernas de pau. A mistura da dança e do teatro num cenário fantástico onde a cidade é incorporada à cena, com seus muros e arcadas medievais. A fórmula do teatro de efeitos e privilégios da tecnologia contemporânea esteve presente em cada momento da montagem do espectáculo Viaje al Centro de la Tierra uma adaptação do clássico de Júlio Verne, realizado por Rayuela Producciones Teatrales, que conquistou nesta Feira o prêmio de um dos espectáculos escolhidos pelo júri popular. Outro premiado como melhor espectáculo escolhido pelo público foi o Chapito, companhia de teatro e circo de Lisboa, que levou a Ciudad Rodrigo o espectáculo Talvez Camões, uma invenção divertida em tom de Odisséia, que relata incontáveis acontecimentos que os historiadores certamente desconhecem. A Companhia Micomicon apresentou o que podemos chamar da gênese do teatro: os bufões. Na sua montagem Todas las Palabras, o teatro volta a ser visitado num texto duro e amargo de Mariano Llorente que faz ator e espectador refletir Continente dezembro 2005

sobre a arte e a vida. Teatro de texto. Esta pode ser a expressão que melhor defina o teatro produzido e mostrado na Espanha nesta Feira e neste momento. Uma espécie de contraposição às gigantescas produções pirotécnicas que nos últimos anos foi moda, e ainda é, exportada por companhias espanholas para todos os mercados da Europa. Espectáculos que se exibem pela encenação de mirabolantes efeitos de luminotecnia, de malabares e exercícios corporais, onde os atores mais parecem atletas radicais que compõem imagens visuais. Nesta Feira, a tendência geral faz pensar que o teatro espanhol parece querer voltar a encontrar-se com a palavra, com o “teatro de texto”, sem que isso queira significar nenhum tipo de recuo no tempo, mas, sim, de pesquisa de linguagens onde a palavra é poética necessária à total composição cênica. Vale a pena adiantar que Civitas, associação que organiza a Feira, já se encontra há mais de um ano planejando e organizando a sua participação em um outro grande acontecimento que se realizará em Ciudad Rodrigo, em 2006. Trata-se da mega exposição Las Edades del Hombre, que deverá levar centenas de milhares de visitantes à região durante todo o ano. Para já, a Junta de Castilla y León assegurou 2,6 milhões de euros para que se realizem melhorias na cidade, preparandoa para que possa receber essa exposição, que já percorreu as principais cidades da Espanha. É o Grande Teatro do Mundo imaginado por Calderón de La Barca que se renova nesta Espanha de fiesta, feria, fúria. •


AGENDA/CÊNICAS Foto: Marcelo Lyra/Divulgação

Natal à brasileira Ronaldo Correia de Brito, Assis Lima e Antônio Madureira montam uma brincadeira de Natal à brasileira no Marco Zero

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epois de muito procurar, dois Mateus encontram uma casa, em cuja porta existe uma estrela, sinalizando que ali nasceu um menino. Muitas e muitas peripécias resultam na abertura da porta por um casal: José e Maria. Na seqüência, acontece um baile natalino em louvor ao nascimento de Jesus. Toda a história é embalada por inesquecíveis canções, a exemplo de “Romã, Romã”, “Cantiga Para Acalentar o Menino”, “Ciganinha”, “Beija-Flor e Borboleta” e “Jaraguá”. Lançada há 22 anos, a cantata natalina é uma das peças mais montadas do país e volta ao Marco Zero sob a direção de Ronaldo Correia de Brito, em parceria com Assis Lima e Antônio Madureira. A trilha sonora é executada ao vivo por uma orquestra de câmara com 12 músicos (Camerata Studio de Música), um coro adulto (Coral Canto da Boca), um coral infantil (Coral Canto da Boquinha), e dois cantores solistas. No elenco, três atores e dois bailarinos.

Baile do Menino Deus – Uma Brincadeira de Natal. Dias 23, 24 e 25 de dezembro, às 20h (Marco Zero, Bairro do Recife – Recife-PE). Informações: 81. 3226 2366.

Greve de sexo

Ponto facultativo

Uma greve de sexo decretada na Grécia antiga talvez surtisse mais efeito do que se proclamada atualmente. O novo espetáculo de Paulo Hamiltonn, Greve de Sexo, conduz o espectador para essa reflexão. A história, baseada em Lisístrata de Aristófanes, narra uma greve de sexo, liderada por uma grega com o objetivo de obrigar os homens de Atenas e Esparta a selarem a paz. Apesar de ser a primeira heroína do teatro, protagonista do enredo clássico grego há 2.500 anos, Lisístrata ainda é capaz de inflamar uma reflexão sobre os costumes contemporâneos. Talvez a modernidade tenha desconectado homens e mulheres de brigas e greves pelos seus direitos, assim como, também, parece ter alterado a relação dos homens com o sexo.Em cartaz no Teatro de Arena da UFRJ, o espetáculo é o terceiro do Teatro Aurora, que já apresentou: Há Vagas Para Moça de Fino Trato, de Alcione Araújo (2002) e Brutal de Mário Bortolotto (2003).

A Apacepe informa: todas as terçasfeiras de dezembro, das 18h às 24h, os artistas da cidade devem bater o ponto no Armazém 14. Atores, músicos, bailarinos, artistas plásticos e circenses, escritores e estilistas estarão no Ponto dos Artistas, projeto de encontro e intercâmbio de idéias e expressões artísticas encampado pela Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe). A cada semana, sessões de arte diversificadas deverão inflamar a cena cultural recifense. O núcleo-base do projeto é formado por Bobby Mergulhão, Magdale Alves e José Mário Austregésilo (interpretando poemas), a Cia. de Dança Árabe Hannah Costa e os dançarinos de salão Rogério Alves e Adriana Bandeira. Um serviço de bar e o conjunto musical “No Ponto” (formado especialmente para o evento, com participação especial do violinista Henrique Annes ) complementam a proposta do café-concerto. A produção executiva é de Paulo de Castro e Walmir Chagas.

Foto: Marcio Iudice/Divulgação

Greve de Sexo. Teatro Grego da UFRJ (Praia Vermelha). Sábados e domingos às 20 horas. Até o fim de dezembro. Informações: (21) 2556-5265 ou www.grevedesexo.com.br

Márcio Shimabukuro/Divulgação

Ponto dos Artistas. Sempre às terças-feiras, das 18h às 24h, no Teatro Armazém (Bairro do Recife, s/n). Fone: 81. 3424 5613. Ingressos: R$ 10,00 (estudantes e maiores de 65 anos pagam meia). Artistas pagam R$ 3,00. Maiores informações: (81) 3421.8456 ou 9112.2622. Continente dezembro 2005

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ARTES

A vida de um mestre de muitas obras

Mulher Sentada, 1986, concreto armado


ARTES Imagens: Reprodução

Desenho da série Meninos do Recife, 1962, bico de pena

Biografia de Abelardo da Hora revela que, além da vasta produção artística, o pernambucano idealizou inúmeras atividades visando à popularização das artes e a educação do povo Marco Polo

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estre de mestres. Este é pelo menos um dos títulos que podem ser atribuídos ao artista plástico Abelardo da Hora. Entre tantos outros, pelo menos quatro grandes artistas de Pernambuco estudaram com ele: Francisco Brennand, Gilvan Samico, José Cláudio e Wellington Virgolino. Escultor – atividade pela qual é mais conhecido –, é também desenhista, gravador, ceramista, tapeceiro e poeta, além de ser o idealizador e fundador de alguns marcos das artes no Estado, como a Sociedade de Arte Moderna, o lendário Atelier Coletivo, o Clube da Gravura (cujos trabalhos correram mundo, chegando à Europa, Ásia, África, América do Norte e América Latina) e o Movimento de Cultura Popular. Militante comunista, chegou a pegar em armas contra a polícia e foi preso diversas vezes. Mas sua atividade mais importante na vida pública se deu no campo educacional e artístico. Desde criança, Abelardo sempre foi cheio de idéias e iniciativas. Fazendo os cursos de Desenho e Pintura na Escola de Belas Artes, sugeriu aos professores que fossem feitas excursões a diversos pontos da cidade, a fim de retratar paisagens e lugares diferentes, proposta que não só foi aceita como adotada com entusiasmo. Continente dezembro 2005

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ARTES Desamparados, 1981, concreto polido

No Rio de Janeiro, ao trabalhar numa fábrica de confecções, escutou do patrão que as freguesas reclamavam do excesso de visitas das costureiras, a fim de provar e ajustar os vestidos. Sugeriu então que as costureiras fizessem uma única visita à cliente, criando um molde de gesso dos seus corpos, a partir do qual seriam feitos manequins específicos para cada uma, para que neles fossem provadas as roupas. Mais uma vez uma idéia original de Abelardo faria sucesso. Foi Abelardo da Hora o idealizador do Sítio da Trindade, como espaço para atividades artísticas voltadas para o povo, e onde funcionou uma das “praças de arte” do Movimento de Cultura Popular, que integrava artes plásticas, teatro, música e alfabetização para crianças e adultos, reunindo nomes de peso como o educador Paulo Freire, o teatrólogo Luiz Mendonça, o maestro Geraldo Menucchi e o administrador Germano Coelho. Também de sua cartola mágica saiu o projeto da Galeria Flutuante, uma caixa de cimento e vidro construída sobre o leito do Rio Capibaribe, próximo à Agência Central dos Correios, que atraía, pelo inusitado, a visita da população curiosa que em outra circunstância talvez não se interessasse em visitar exposições de quadros.

Acima, Tapeçaria, 1974. Ao lado, Nabuco e a Abolição, 1950, painel cerâmico


Musa, 2002, gesso


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ARTES

Ensaio com Abelardo da Hora, Weydson Barros Leal, Instituto Abelardo da Hora, 155 páginas, R$ 100,00.

Mulher Reclinada V, 1998, bronze

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Outro fato da rica biografia do artista é que foi ele quem descobriu, na Chapada do Araripe, uma jazida de gesso que se tornaria a maior do Estado, sendo até hoje um pólo de atividades em torno do gesso. Foi também o autor de um projeto de lei que obrigava a instalação de uma obra de arte em construções particulares com mais de mil metros de área construída e em edifícios públicos, quaisquer que seja a área de construção, projeto aprovado por unanimidade na Câmara dos Vereadores, tornandose lei a partir de 1961. Líder nato, Abelardo organizou diversas exposições coletivas para divulgar a arte pernambucana em outros Estados. E, naturalmente, ao lado de todas essas atividades, construiu uma obra poderosa, na qual se destaca a famosíssima série de 22 desenhos em bico de pena Meninos do Recife, em que retrata a infância dos desvalidos da cidade, com pernas e braços finos em contraste com as cabeça grandes, as barrigas inchadas e os olhos imensos de espanto diante de tanta miséria. Aliás, a arte de cunho social é uma das vigas do seu trabalho, tanto em gravuras e desenhos, como em esculturas. O amor pelo povo e suas atividades também se reflete em uma série de desenhos coloridos retratando os folguedos populares, e nas esculturas de trabalhadores. A outra vertente está nas grandes esculturas de mulheres de corpos e poses sensuais, mostrando um outro lado da personalidade deste artista tão múltiplo e fértil. Todas estas informações, e muitas outras mais, estão no livro Ensaio com Abelardo da Hora, escrito pelo poeta e ensaísta Weydson Barros Leal, com ampla e completa documentação fotográfica das várias fases e técnicas na obra do artista pernambucano, nascido no município de São Lourenço da Mata, em 31 de julho de 1924. Livro que a gente lê como um romance, espantados com a atividade incessante deste homem pequeno e magro, de onde jorrou um imenso rio de criatividade e realização. Hoje, simples, Abelardo diz: “Continuo o mesmo rapaz que estudou com o velho Cassimiro Correia e trabalhou montado num andaime, na avenida Guararapes, como operário de construção”. “Rapaz operário” de 81 anos que, lépido e disposto, ainda sobe no alto da casa onde mora com Margarida, companheira desde a década de 40, para consertar alguma telha fora do lugar. •


Fotos: Carolina Pires

ARTES

Símbolo da Mostra do Imaginário, na obra de J. C. Viana

Arte na Serra Mostra do Imaginário, no Festival de Serra Negra, integra arte e ecologia

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anifestações culturais, shows, trilhas ecológicas, feira de turismo e palestras estiveram na programação do Ecofestival Serra Negra, realizado no fim de outubro, que ocorreu no Parque e Reserva Ecológicos de Serra Negra, na cidade de Bezerros, no agreste pernambucano, distante 107 km do Recife. O evento, que vem sendo promovido anualmente, tem um forte potencial, por ser uma vitrine para a divulgação da rota do ecoturismo e do turismo rural em Pernambuco. Região das mais bonitas e agradáveis do Estado, Serra Negra está a 260 metros de altura e fica a menos de dez quilômetros do centro da cidade de Bezerros. O local abriga uma pequena vila e um parque ecológico com vegetação típica do semi-árido nordestino. Inicialmente, a serra era explorada apenas pelos adeptos dos esportes radicais que instalaram ali uma rampa para vôo-livre; hoje já pode ser considerado um dos pólos culturais do Estado. O destaque do Ecofestival foi a Mostra do Imaginário, organizada pelo artista plástico José Carlos Viana: obras de arte expostas ao ar livre, num estilo conhecido como land art – modalidade em que o terreno natural, no Continente dezembro 2005

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ARTES

Pedra Branca, da paraibana Ana Lú

Intervenção na Natureza, de Joelson

lugar de prover o ambiente para uma obra de arte, é ele próprio trabalhado de modo a integrar-se à obra. Tudo a ver com a proposta ecológica do Festival de Serra Negra. Formaram parte desta Mostra os artistas plásticos Zé Carlos Viana, Márcio Almeida, Cristina Machado, Ana Lú, Joelson, Rejane Trindade e Gugu Ferrer, em torno de intervenções artísticas montadas em diversos espaços da Vila da Serra. Segundo alguns pesquisadores, o conceito de land art teria surgido numa exposição organizada na Dwan Gallery, em 1968, em Nova York. A land art aparece e se desenvolve em parte como expressão de um desencanto relativo à sofisticada tecnologia da cultura industrial, em parte como conseqüência de uma insatisfação crescente em face da deliberada monotonia cultural pelas formas simples do minimalismo, bem como ao aumento do interesse às questões ligadas à ecologia. • (Eduardo Maia) Continente dezembro 2005

Do Vento Vem Tudo, obra de Gugu Ferrer

Performance: moradores do local, vestidos como papangus estilizados, interagem com a obra Guerreiros da Serra, de J. C. Viana


AGENDA/ARTES

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Fotos: Divulgação

Descontentamento político

Chegada do Jahú no Bairro do Recife

Essência da memória O Recife de ontem é mostrado na exposição História de Muitos – Evolução Urbana do Recife

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ara que a Av. Dantas Barreto fosse construída, a Igreja dos Martírios precisou ser demolida, isso em 1972. Os fragmentos do centro religioso são apenas alguns dos resquícios capazes de narrar a história da Veneza brasileira, que estarão presentes na mostra História de Muitos – Evolução Urbana do Recife. Do descobrimento ao século 21, mapas, fotografias, plantas, textos e objetos ilustram o caráter memorialístico da exposição, composta por peças do acervo do Museu da Cidade do Recife e de alguns colaboradores, a exemplo do Arquivo Público e dos fotógrafos Roberta Guimarães e Fred Jordão. Mobiliário urbano, azulejos portugueses, holandeses e litografias do artista suíço Luis Schlappriz ajudam a compor um panorama evolutivo da capital pernambucana. Entre as fotografias antigas, um dos destaques é a chegada do avião Jahú, um “acontecimento” para sociedade recifense da época. História de Muitos – Evolução Urbana do Recife. Museu da Cidade do Recife (Forte das Cinco Pontas, s/n – São José. Recife – PE). De 15/12 a 02/07/2006. Informações: 81.3224.8492.

Vista privilegiada Um guarda-sol, uma mesinha, uma cadeira, uma toalha e um regador decoram a varanda do Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC) até o dia 19 de fevereiro. A “cena verão” constitui o ponto de partida do artista plástico Nelson Leirner para composição da mostra Por que Museu? A obra, pensada especialmente para a ocasião, brinca com a importância do MAC como ponto turístico e ainda intitula a exposição,

questionando a função da arte e o papel do Museu. Quatro trabalhos inéditos, e mais 20 instalações já consagradas ocupam o primeiro andar do MAC. Entre as novidades está a obra América, América – constituída de duas ampliações fotográficas –, que integrará uma exposição na Galeria Roebling Hall, em Nova York, em 2006. Na esteira do inédito vêm obras relativas a Marcel Duchamp, como as Duchampbikes, de 2003, e Monalisas, de 1998/1999.

Nelson Leirner – Por que Museu? MAC Museu de Arte Contemporânea de Niterói (Mirante da Boa Viagem, s/n – Niterói, RJ). Até 05 de março de 2006. Informações: 21 2620.2400

Procura-se Gil Vicente. Descontente com a atual situação política, o artista plástico matou o presidente Lula, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o deputado federal Eduardo Campos, o presidente dos Estados Unidos, George Bush, o secretário geral da ONU, Kofi Annan, a rainha da Inglaterra, Elizabeth II, o primeiro-ministro de Israel Ariel Sharon, e o Papa Bento XVI, mesmo que simbolicamente. As mortes foram sugeridas através de desenhos e estão expostas na mostra Inimigos, em cartaz na Galeria Mariana Moura. “Não sei falar sobre política textualmente, por isso fiz uma reclamação pessoal através de desenhos”, explicou Vicente. A exposição reúne nove imagens de 2m x 1,5m e pretende provocar o descontentamento alheio. Inimigos. Galeria Mariana Moura. (Av. Rui Barbosa, 735, Graças – Recife-PE). Até 30 de janeiro de 2006. Informações: (81) 3421 3725. www.marianamoura.com.br

Prestes a rolar A maior empresa de mineração diversificada das Américas, a Companhia Vale do Rio Doce, é o mais recente alvo das intervenções do artista plástico Eduardo Frota, que reaproveitou vários carretéis de dimensões distintas, em compensado industrial de madeira reflorestada e que certamente virariam lixo, e modificou os espaços da empresa, inserindo obras como se estivessem prestes a rolar, fazendo os funcionários se relacionarem de uma nova forma com os “restos” dos seus trabalhos. A obra de Eduardo faz alusão à produção de dois relevantes artistas brasileiros, Iberê Camargo e Ione Saldanha. Eduardo Frota – Intervenções Extensivas X – Museu Vale do Rio Doce – Vila Velha – ES. Até 19 de fevereiro de 2006. Informações: 27. 3246-1443 Continente dezembro 2005


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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Reencontro com Mestre Goeldi Goeldi era um legítimo expressionista, tanto pela entrega passional à expressividade intensa da obra criada, como pela exigência ética do trabalho artístico

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e há, dentre os movimentos de vanguarda do começo do século 20, um que expressou a reação do indivíduo em face da sociedade moderna, já então marcada pelos primeiros sinais da massificação, este movimento foi o Expressionismo, de que a mais legítima expressão, no Brasil, foi Oswaldo Goeldi. Escrevo, agora, sobre esse mestre da gravura, a propósito do livro Oswaldo Goeldi na Coleção Hermann Kümmerly, recentemente lançado no Rio de Janeiro. O livro contém a reprodução de 150 desenhos e gravuras doados pelo artista, em 1930, a seu amigo de juventude Hermann Kürmerley, trabalhos esses que nos revelam os primeiros passos daquele que se tornaria o fundador da moderna gravura brasileira e o autor de uma obra gráfica que o situa entre os mais importantes gravadores contemporâneos. Uma parte das obras de Goeldi jovem pertence hoje a Raul Schmidt Phillipe, responsável pela publicação da mencionada obra. Devo assinalar a qualidade desses trabalhos de juventude que, sem plenitude da fase madura, já trazem a força expressiva do futuro mestre. Conheci Oswaldo Goeldi nos anos 50, logo depois que me mudei para o Rio de Janeiro. Àquela altura, a gravura também sofria a influência de artista estrangeiros, americanos e europeus voltados para a renovação técnica e temática. Ele, convicto de sua concepção expressionista, fiel à valorização dos meios genuínos da gravar, sorria irônico: – Isso não é gravura, é estampagem. Goeldi se referia a um tipo de gravura – particularmente a que então fazia Fayga Ostrower –, usando grandes placas Continente dezembro 2005

de madeira e impressa em cores. É que, para Goeldi, o uso da cor na gravura havia sido uma conquista difícil e lhe custara anos de trabalho e apuro. – A cor na xilogravura – dizia ele – deve ter um caráter próprio, diferente da cor na pintura ou na estampagem. A cor na gravura tem que ser “gravada”. E, de fato, quando se observam as gravuras dele em que aparece a cor, esta possui um caráter especial que lhe empresta expressão própria. Basta lembrar a célebre xilo Guarda-Chuva Vermelho, na qual a cor vermelha do guarda-chuva, ao mesmo tempo em que fulge como um relâmpago na composição de formas negras, integra-se na linguagem xilográfica do mesmo modo que as demais formas: a cor não está apenas impressa, mas efetivamente “gravada”. Ao afirmar que Goeldi era um legítimo expressionista, refiro-me precisamente tanto a essa entrega passional à expressividade intensa da obra criada, como também à exigência ética do trabalho artístico: a placa de madeira mal-lixada, o uso da palma da mão para calcar o papel sobre a chapa entintada. Enfim, a rejeição a todo e qualquer recurso técnico sofisticado que o afastasse da relação direta do artesão com sua linguagem genuína. Goeldi muito cedo tomou conhecimento das obras do expressionismo alemão, a que aderiu com entusiasmo, ao visitar uma exposição do grupo Der Blaue Reiter. O Expressionismo, nascido de uma atitude de certo modo romântica em face da arte e da vida, rejeitava a civilização industrial e a ela opunha o retorno às fontes primitivas da cultura humana, em que se inclui a arte. A valorização do artesanato como meio de criação artística expressa também


TRADUZIR-SE

Sem título, circa 1950, xilogravura (20,8 x 26,9cm)

Chuva, circa 1957, xilogravura a cores (22 x 29,5 cm)

Despedida, circa 1951, xilogravura em cores (58 x 42 cm)

a contestação às novas técnicas industriais, que eram vistas pelos expressionistas como uma ameaça à verdadeira criação estética. Por isso mesmo, os artistas em que se inspiraram foram principalmente Vicent van Gogh e Paul Gauguin, o primeiro por lhes indicar a ruptura com a visão objetiva do real, e o segundo por ter feito de sua própria vida um exemplo de rejeição à civilização européia moderna, ao transferir-se para a Polinésia, onde viveu o resto de sua vida. Sem fazer uma opção tão radical, os primeiros expressionistas alemães trocaram a cidade pela floresta, passando a viver e trabalhar às margens do lago Moritzburg. Nosso Goeldi entendeu a opção expressionista como uma busca da própria individualidade, do que há de mais autêntico no mais fundo de cada um de nós. A expressão dessa autenticidade seria o próprio objetivo do trabalho artístico. Por isso mesmo, não tinha sentido para ele, adotar, seja técnica seja tematicamente, os procedimentos de outros artistas, mesmo aqueles que ele mais admirava, como Gauguin e Munch, em cujas obras e postura estética se inspirou. Coerente com tal ponto de vista, não percebia nas vanguardas artísticas mais do que um experimentalismo inconseqüente, que nada tinha a ver com o que considerava a verdadeira arte. Referiase ironicamente ao jargão da época, quando os artistas falavam de suas “experiências”, afirmando que eles passavam a vida experimentando sem realizar efetivamente a obra. – Eles próprios dizem que suas obras são “experiências”, e passam a vida inteira “experimentando”, sem nunca chegarem a realizar a obra propriamente dita. Arte não é experimento, é realização – afirmava ele. Independentemente dessa atitude contrária ao espírito experimentalista que caracteriza a arte contemporânea, Oswaldo Goeldi foi um inovador, mas inovador que se preocupava em dar densidade e humanidade à sua obra de gravador. Outro aspecto a ressaltar na personalidade deste grande artista é a coerência que identifica a exigência estética do artista com o comportamento ético do homem – o homem que ele foi, modesto, íntegro e afetuoso. • Continente dezembro 2005

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Jardim também é arte

Koiti Mori/Reprodução

Andrés Otero/Reprodução

PAISAGISMO

O paisagista em excursão de coleta botânica

Em suas conferências, o paisagista Burle Marx mostrava que a elaboração de jardins particulares e públicos deve ser feita no mesmo rigor com que se cria uma obra artística

O jardim da residência de Odette Monteiro, em Correias (RJ), projetado por Burle Marx

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empre que vinha a Pernambuco, Roberto Burle Marx se hospedava na casa de seus amigos, Acácio Gil Borsoi e Janete Costa. A filha do casal de arquitetos, a galerista Lúcia Santos, até hoje lembra com carinho as vezes em que acordava com o ilustre hóspede cantando ópera em altos brados ao tomar seu banho matinal. Nascido em 1909, em São Paulo, filho do alemão Wilhem Marx e da pernambucana Cecília Burle, o futuro paisagista demonstrou qualidades excepcionais para o canto desde menino. Tanto que, em 1928, seguiu para a Alemanha, a fim de aperfeiçoar sua voz de barítono. Mas o destino tinha lhe reservado algumas surpresas. Ao visitar as estufas do Jardim Botânico de Dahlem, em Berlim, descobriu as plantas da flora brasileira, o que lhe despertou o interesse de conhecer melhor a nossa flora. Burle Marx já convivia com plantas desde 1919, quando sua família foi morar numa chácara, no bairro do Leme, no Rio, onde ajudava sua mãe a tomar conta do jardim, tendo, já naqueles tempos, cultivado seu primeiro canteiro. Ainda na Alemanha, ao ver uma exposição retrospectiva de Van Gogh ficou tão impressionado que resolveu largar a música e dedicar-se à pintura. Na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, onde se matriculou, em 1930, conheceu Oscar Niemeyer e outros arquitetos. Amizades que vieram se somar à de Lucio Costa – que viria a ser o autor do Plano Piloto de Brasília –, com quem já vinha convivendo. E foi justamente a convite de Lucio, que, em 1932, elaborou o seu primeiro jardim, complementando o projeto arquitetônico de Costa e Gregori Warchavchik para a casa da família Alfredo Schwartz, a primeira residência carioca com arquitetura modernista. Continente dezembro 2005

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PAISAGISMO O resultado foi tão satisfatório que logo depois Burle Marx participava de outro projeto de Lucio Cosiretor de Parques e Jardins do Recife. Na capital pernambucana, o paisagista realiza seus dois primeiros trabalhos de caráter público, utilizando só plantas brasileiras, o que se tornaria uma das marcas registradas de sua obra: a Praça Euclides da Cunha (Cactário da Madalena), hoje mais conhecida como Praça do Clube Internacional, onde utilizou exclusivamente plantas nordestinas; e o Jardim de Casa Forte, hoje conhecido como Praça de Casa Forte, onde explorou as plantas da região amazônica, em particular as vitórias-régias que ornamentam os tanques centrais daquele logradouro. A partir de seu amor pelas plantas e pelos jardins, de sua paixão pela pintura, juntamente com a amizade de

Parque do Flamengo (RJ), exemplo de paisagismo na estrutura urbana

arquitetos brilhantes, Burle Marx tinha encontrado e confirmado uma vocação que resultaria numa das mais brilhantes e fecundas carreiras de paisagista não apenas no Brasil, como no resto do planeta. Ao longo dos mais de 60 anos em que exerceu seu talento, Burle Marx desenvolveu, em conferências, um leque de teorias em que não apenas explica seus métodos e técnicas, como também suas concepções estéticas. Estes textos foram enfeixadas pelo arquiteto José Tabacow no livro Roberto Burle Marx – Arte & Paisagem, editado pela Studio Nobel. Nele, Burle Marx aborda desde problemas de ecologia e devastação até questões técnicas no uso da iluminação artificial, espelhos d’água e rochas, a função do jardim, o paisagismo na estrutura urbana, os projetos de


PAISAGISMO Outro ponto a ressaltar, segundo ele, é que, no caso específico do ambiente ajardinado, “a composição é um reflexo da paisagem circundante. Para tanto, o paisagista lança mão de uma vegetação que, quando não se origina no local, pelo menos possui identidade formal e ecológica com os elementos da paisagem existente”. O que demonstra o cuidado de integrar e harmonizar o jardim com a paisagem, complementando-a. Perante a exposição da metodologia de planejamento e execução das suas obras, fica evidente o cuidado com que Burle Marx trabalhava. Segundo Tabacow, ele nunca dizia “Eu quero um arbusto de porte médio, de flor amarela”. Ele sabia exatamente o nome da planta de que iria precisar e onde ela poderia ser encontrada. Reprodução

paisagismo de grandes áreas, e as pequenas jóias em que se podem transformar os jardins residenciais. Mas o aspecto mais instigante de suas especulações estéticas está na concepção dos ambientes ajardinados como obras de arte. Ressaltando que, embora o jardim obedeça a certas leis inerentes à arte, como a solução dos problemas de forma, cor, dimensão, tempo e ritmo, tem certas características específicas que não podem ser ignoradas: “O tridimemensionalismo, a temporalidade, a dinâmica dos seres vivos têm de ser levados em conta na composição. E as outras características têm, no jardim, sua maneira própria de participar. A cor, na natureza, não pode ter o mesmo sentido da cor na pintura. Ela depende da luz do sol, das nuvens, da chuva, das horas do dia, do luar e de todos os demais fatores ambientais”, lembra o mestre.

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PAISAGISMO "Quero dizer-lhes algo sobre a atração violenta que sinto pelas viagens em busca de novas plantas. É como se a floresta estivesse a oferecer um tesouro, que existe apenas para aquele que o busca"

Fotos: Hans Manteuffel

Acima, Praça de Casa Forte. Abaixo, Praça da República. Ambas obedecem a projetos de Burle Marx

Para não incorrer em erros, cercava-se de botânicos e especialistas que pudessem dirimir qualquer dúvida a respeito das características de determinada planta, fazendo com eles excursões às diversas regiões brasileiras a fim de conhecer sua flora específica. “Neste convívio, estabelece-se uma troca de impressões e conhecimentos, e muitas vezes também de conclusões que nos levam à compreensão desse emaranhado de mistérios que é a natureza não alterada pela mão do homem, onde muita coisa fica ainda envolta no impenetrável. Apesar de nem sempre chegarmos a um perfeito conhecimento, existe a intenção de compreender as formas de vidas por elementos como a cor, o volume, o ritmo e o movimento”, explica, com típica modéstia. E complementa, com entusiasmo: “Quero dizer-lhes algo sobre a atração violenta que sinto pelas viagens em busca de novas plantas. É como se a floresta estivesse a oferecer um tesouro, que existe apenas para aquele que o busca. Cada dia que passa, mais sinto o quanto é breve a minha vida para conhecer e explorar todos os tesouros da flora brasileira”. Talvez não tenha alcançado sua meta em sua totalidade, mas, ao morrer, em 1994, com quase 85 anos de idade, o grande paisagista brasileiro deixou um legado de amor e respeito à natureza, além de uma inestimável contribuição à sua conservação nos espaços urbanos. Suas criações estão espalhadas pelo mundo todo: no Brasil, o Parque do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro; o Parque Anhembi e o Jardim Botânico, em São Paulo; os Jardins do Eixo Monumental, em Brasília; na Ásia, o Jardim das Petronas Towers, na Malásia; na América Latina, o Parque de Las Américas, no Chile; na Europa, o Jardim das Nações, na Áustria, entre muitos outros. No Recife, Roberto Burle Marx contribuiu com a elaboração de dez espaços públicos: as Praças de Casa Forte e Derby, nos bairros homônimos, e as praças Ministro Salgado Filho, no Ibura; da República, no bairro de Santo Antônio; do Entroncamento, nas Graças; Euclides da Cunha, na Madalena; Faria Neves, em Dois Irmãos; Arthur Oscar, no Recife Antigo; Praça Dezessete, no bairro de São José; e Praça Pinto Damaso, na Várzea. Ele também tinha presenteado Francisco Brennand, em 1992, com o projeto de uma praça que, em 2000, o artista plástico mandou executar dentro do seu Museu/Oficina Cerâmica, situado na Várzea, e que recebeu – merecidamente – o nome de Praça Burle Marx, fazendo com que obra e artista ficassem assim integrados na imortalidade da beleza. • (Marco Polo) Roberto Burle Marx – Arte & Paisagem, organização e comentários de José Tabacow, Studio Nobel, 224 páginas, R$ 148,00.

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Andrés Otero/Reprodução

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EspĂŠcies ornamentais introduzidas no Brasil por Burle Marx, no sĂ­tio que leva seu nome, em Barra da Guaratiba (RJ)


SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

À mesa com o engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha “A figura de Dom Quixote já é parte da memória da humanidade”.

Ilustração: Klévisson

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Jorge Luis Borges

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iguel de Cervantes Saavedra tem esse primeiro nome porque nasceu no dia de São Miguel. Em 29 de setembro de 1547. Na aldeia de Alcalá de Henares, pertinho de Madri (Espanha). Foi quase tudo na vida. Jovem ainda, inscreveu-se como soldado da Invencível Armada Católica de Felipe II – perdendo os movimentos da mão esquerda na batalha de Lepanto. Capturado por piratas argelinos, por cinco anos, serviu como escravo ao rei Hassaou Pacha. Alforriado, acabou nomeado coletor de impostos. Mas, pouco apreciador da boa prestação de contas, por três vezes foi preso. Numa dessas prisões, em Sevilha, começou a escrever a primeira parte de seu monumental O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha, em 1605. A segunda parte veio só 10 anos depois. Redimindo sua alma atormentada, fez então votos de pobreza e ingressou na Ordem Terceira de São Francisco. Durante o dia, rezava pedindo perdão a Deus. À noite, dormia no chão frio. Alquebrado no corpo, e usando trajes rotos, mais lembrava nesse fim de vida “a triste figura” de seu personagem. Morreu pouco depois, em 1616, sozinho e triste. Seu livro fala das aventuras de um fidalgo da baixa nobreza de La Mancha, D. Alonso Quixano, um leitor compulsivo dos romances de cavalaria – Amadis de Gaula, Diana, La Araucana, Orlando Furioso. Chega a vender “boas partes de suas terras de semeadura para comprar livros” (Cap. I). E tanto lê que “se lhe secaram os miolos, de modo que veio a perder o juízo” (Cap. I). Para imitar, na vida, as aventuras de seus heróis, “a primeira coisa que fez foi limpar umas armas dos bisavós que, cobertas de ferrugem e azinhavre, longos séculos havia que estavam postas e esquecidas num canto”. Montou no Rocinante – um velho e cansado cavalo que, a seus olhos desvairados, “nem o Bucéfalo de Alexandre nem Babieca, o de El Cid, a ele se igualavam”. Faltando “uma dama da qual se enamorar, pois um cavaleiro andante sem amores era árvore sem folhas e sem fruto e corpo sem alma”, escolheu Dulcinéia, modesta camponesa de El Toboso. E, para escudeiro, seu vizinho, Sancho – que aceitou o posto por acreditar na promessa de se tornar governador de uma ilha.

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Tendo, esse vizinho, apelido proporcional a sua gula – “Pança”. Depois obrigou o dono de uma hospedaria a fazê-lo cavaleiro andante – “Deus faça de Vossa mercê mui venturoso cavaleiro e lhe dê ventura nas lides” (Cap. III). Assim partiu em busca do sonho impossível, convertido em Dom Quixote de La Mancha. Comemoramos, agora, os 400 anos desse romance. E aqui o fazemos lembrado dos sabores do Quixote, a partir de citações de Cervantes. “Um cozido com mais vaca do que carneiro, salpicão no mais das noites, duelos y quebrantos aos sábados, lentilhas às sextasfeiras e algum pombinho por luxo aos domingos” (Cap. I). Salpicão – Era prato obrigatório nas mesas nobres da Espanha, por volta dos séculos 16 e 17. Servido algumas vezes quente, misturava legumes cortados em pequenos cubos, umedecidos com guisado de frango, vitela ou coelho. Mas também se servia frio, como entrada – assim está, por exemplo, em receita de Taillevent (Século 14). Duelos y quebrantos (dores e desalentos) – Prato feito com mexido de ovos. Na receita daquela época, levava toucinho e testículo de cordeiro – curiosamente não se considerando romper, com ele, a abstinência de carnes que então ocorria aos sábados. O prato se originou em Castela e La Mancha – quando os pastores levavam, para a casa dos patrões, animais inutilizados em brigas ou acidentes no campo. Uma parte da carne era salgada e assim conservada. A outra virava duelos y quebrantos – referência ao sofrimento do dono do rebanho, em relação à perda do animal. Lentilhas – Grão usado desde a Antiguidade, trazido para a Península Ibérica pelos árabes. É, ainda hoje, muito apreciado por espanhóis, usado em saladas, sopas, ensopados, cozido no arroz ou como molho sobre massas. Palomino (pombos) – O prato conferia prestígio a quem o servia. Dado ser pombais, então, privilégio de fidalgos e religiosos.


SABORES PERNAMBUCANOS “Não havendo na estalagem nada além de umas rações de um peixe que em Castela chamavam abadejo, na Andaluzia bacalhau, noutras partes curadilho e noutras ainda trutela” (Cap. II). Trutela – A cozinha espanhola é pródiga em mariscos, lulas, vieiras, crustáceos e peixes. O nome vem de truchuela diminutivo de trucha (truta). É prato em que o peixe é servido seco e salgado. Mas na época de Dom Quixote, só para lembrar, abadejo e trucha eram sinônimos de prostituta. Sendo abadejo as velhas e baratas; e trucha, ao contrário, as jovens e bem mais caras. “Uma porção de um mal demolhado e pior cozido bacalhau e um pão preto e sujo quanto as armas do hóspede” (Cap. II). Bacalhau – É peixe que pode ser encontrado fresco ou salgado. Quando salgado, deve ser bem lavado e demolhado, antes do uso. Nos tempos do Quixote, já era famoso o bacalao à Viscaina da região Basca. Esse bacalhau salgado tem origem na necessidade de conservar o peixe por mais tempo, por conta das grandes navegações. As primeiras receitas conhecidas estão em A Arte de Cozinha (1680) de Domingues Rodrigues – “bacalhau à Provençal”, “bacalhau à Bexamela” e “bacalhau assado nas grelhas e por outros modos”. “Bem outra foi a noite de Sancho Pança, que, tendo o estômago cheio, e não de água de chicória” (Cap. VIII). Água de chicória – É cozido feito com o bulbo de chicória que, acreditava-se, tinha propriedades sedativas. O sabor é levemente amargo. A chicória pode ser consumida crua (em saladas) ou cozida (em sopas e refogados). “Contentou-se com duas arroubas de passas e duas fanegas de trigo” (Cap. IX). Fanegas – É medida usada para pesar grãos, equivalente a 100 kg. Passas e trigos – São ingredientes básicos do cuscuz dito magrebino – de Magreb, região do norte da África. A receita chegou à Península Ibérica com os mouros, algumas vezes substituindo o trigo por sêmola (mistura de trigo duro, arroz e milho, triturados juntos). “Trago aqui uma cebola e um pouco de queijo, e não sei quantos pedaços de pão velho, disse Sancho, mas não são manjares próprios de tão valente cavalheiro como vossa mercê”. “Não comas alho nem cebola, para que não tomem por odor a tua vilania” (Cap X). Cebola (cebolla, em espanhol) – Não se sabe com precisão sua origem. Está em hieróglifos egípcios e textos escritos em sânscrito, hebraico, grego e latim. Era ingrediente usado apenas por pessoas simples do campo. Donde, por preconceito, não ser “manjar próprio” a cavaleiros como o Quixote. Alho – Originário do sul da Europa foi, durante muito tempo, utilizado como revigorante – por aumentar a força dos escravos e estimular a coragem de que precisavam nos combates. Seu aroma, muito ativo, deixa um hálito desagradável

em quem o consome. Por isso os sacerdotes da deusa Cibele (na Grécia Antiga) proibiam a entrada, em seus templos, dos que tivessem se alimentado de alhos. Pela mesma razão, em 1368, proibindo o rei Afonso de Castela que, diante dele, comparecesse qualquer cavalheiro que o tivesse feito. “Acabado o serviço de carne, espalharam sobre as peles grandes quantidades de abelotas doces, e junto puseram meio queijo, mais dura que se fosse de argamassa” (Cap. XI)”. “Um pedaço de pão e de queijo, pois foi isto que a minha senhora Dulcinéia me deu, por cima da cerca do quintal, quando dela me despedi; e, por sinal, o queijo era de ovelha” (Cap. XXXI). Queijo – Os primeiros queijos vêm do tempo em que os homens começaram a domesticar os animais. Deixado ao relento, o leite simplesmente coalhava. E se transformava em queijo. Usavam, então, apenas leite de ovelha – como esse a que se refere o Quixote. Na Idade Média era por vezes chamado de carne branca. Hoje, pode ser feito com leite de vaca, de cabra, de ovelha ou de búfala. Os de ovelha, mais fortes, amadurecem mais rápido e não estão disponíveis durante o inverno – por dar-se a lactação das ovelhas somente entre a primavera e o outono. Na época do Quixote já era costume servir queijo como sobremesa. “Uma sobremesa sem queijo é como uma bela a quem falta um olho”, escreveu Brillat Savarin (A Fisiologia do Gosto). “Lembrando-se de seu licor, sacou de sua azeiteira, colocou-a à boca e começou a despejar licor no estômago” (Cap. XVIII). “Mas, reparando um pouco mais naquilo, percebeu pela cor, pelo sabor e pelo cheiro que não era sangue, e, sim, o bálsamo da azeiteira que ele o tinha visto beber” (Cap. XVIII). Azeite – A cozinha espanhola, principalmente na região de Andaluzia, é generosa no uso do azeite – em saladas, molhos, peixes ou frutos do mar. Devem esse costume aos árabes, que usavam azeite em muitos pratos – para eles, azzait. Inclusive replantando todos os olivais perdidos na grande seca de 846, que assolou a Península Ibérica. Ensinaram aos espanhóis a valorizar esse azeite. Até hoje se diz, por lá, que “a melhor cozinheira é a azeiteira”. Azeiteira é recipiente, normalmente de vidro, onde se coloca o azeite. “Pois faz de conta - disse D. Quixote – que os grãos daquele trigo eram grãos de pérolas, tocados por suas mãos. E viste, amigo, se o trigo era candial ou tremês?” (Cap. XXXI). Trigo – Alimento conhecido desde que o homem começou a plantar, no Oriente Médio. Segundo a lenda, Salomão teria financiado a construção do Palácio de Jerusalém trocando trigo por peças de cedro e de ciprestes, necessárias à obra. Candial é variedade de trigo rijo, que faz farinha e pão muito alvos; e tremês, aquele que se torna maduro em três meses. “Com tua licença, voltarei, se for mister, pela verdura deste jardim, pois, como diz meu amo, em nenhum há melhores para salada do que nele” (Cap. XLI). Continente dezembro 2005

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SABORES PERNAMBUCANOS Salada – A palavra vem do francês salée (comida salgada). Era, na época do Quixote, uma reunião de vegetais crus, temperados com sal, vinagre e azeite. Mais tarde o termo foi estendido a vegetais cozidos frios, peixe, carne, cereais, ovos e outros ingredientes. “E a travessa que está acolá, parece-me que é olla podrida, e pela diversidade das coisas que nela entram é impossível que não encontre alguma que me dê gosto e proveito” (Cap. XLVII). “O que o mestre-sala pode fazer é trazer-me o que chamam ollas podridas que quanto mais podres são, melhor cheiro têm” (Cap. XLIX – 2º livro). Olla Podrida – Prato de enorme prestígio, naquela época. O nome vem de se cozinhar na olla (panela), tão lentamente, que a comida mais parecia podrida (apodrecida). Como dizia Rodrigues Marím, “quase tudo se desfaz, como fruta que amadurece demais”. É cozido de carnes e vegetais. Cada região tem seu jeito próprio de preparar. O madrileno (puchero) usa carnes de boi e porco, toucinho, chouriço, grão de bico, feijão verde, couve, cebola, aipo e batata. O catalão prefere uma salsicha regional preta e branca (botifarra), além de pilota (picado de carnes), alho, pão ralado e ovo batido. O andaluz, bem colorido, é rico em vegetais e perfumado com açafrão e pimentões. O galego usa porco e feijão branco. “E tão bem sustentaram Sancho a seco com pão e cebolas, como a governador com perdizes e capões” (Cap. XLIII – 2º livro). Perdiz – Ave muito apreciada na Espanha daqueles tempos. Era alvo habitual dos caçadores da região. São duas as variedades de perdiz – a cinza, pequena, com sabor delicado, normalmente assada; e a vermelha, maior, que se serve guisada – sendo famosas, ainda hoje, as perdizes rojas de Toledo. Capão – É frango novo e castrado, para que engorde mais depressa. A origem do capão, à mesa, remonta à Roma Antiga – quando o cônsul romano Caio Cânio, não podendo dormir com o barulho que faziam os galos de madrugada, conseguiu aprovação de lei que proibia o som desses animais dentro do perímetro da cidade. Os apreciadores da ave passaram a castrá-las. E então perceberam, por acaso, que aquela carne ficava então bem mais delicada e saborosa que a dos galos reprodutores. “Não deve comer daqueles coelhos que ali estão, que não é comida saudável; aquela peça de vitela não seria má se não fosse o ser assada e adubada, mas assim não” (Cap XLVII – 2º livro). Coelho – Junto com a lebre, já era apreciado desde a China de 2.500 a.C. O que difere um do outro são as patas traseiras – no coelho, menos desenvolvidas. Tem carne saborosa, com muito mais proteína que as carnes de vaca e de porco. Na Espanha é costume usar coelho em cozidos ou em ensopados, com muito alho. Vitela – Carne de novilho com menos de seis meses de idade. Acaba sendo, por isso, mais clara, delicada e macia que a carne de boi. Na região de Castela têm muito prestígio os chouriços e assados de vitela. Continente dezembro 2005

“Prefiro fartar-me de gaspachos do que sujeitar-me à miséria de um médico impertinente que me mate de fome” (Cap XLIII – 2º livro). Gaspacho – É guisado de carne de caça, geralmente perdiz, coelho ou lebre, acompanhado de uma torta de pão ligeiramente crocante, preparada na frigideira com gordura de porco. A ela se referiu Cervantes. Mas é também sopa típica da região da Andaluzia, feita com tomates crus, vinagre, azeite, alho, cominho, pimenta vermelha, pimentões verdes e vermelhos, cebolas, pepinos e pão cortado em cubos fritos no azeite com alho. Servida sempre fria – porque, levada ao campo pelos trabalhadores, era consumida ao longo do dia. A palavra tem origem árabe, que significa “pão ensopado”. • RECEITA: Leo Caldas/Titular

GASPACHO INGREDIENTES: 500 g de tomates maduros, 100 g de pepinos, 120 g de pimentões vermelhos, 1 cebola pequena, 1 dente de alho, 2 colheres de sopa de azeite de oliva, ½ litro de água gelada, sal e pimenta do reino a gosto, azeite e vinagre (para temperar). PREPARO: Retire pele e sementes dos tomates, pimentões e pepinos. Corte-os em cubos. Coloque no fogo azeite, cebola e alho. Deixe dourar. Junte os legumes cortados em cubos e tempere com sal, pimenta, azeite e vinagre. Coloque no liquidificador e bata bem, com a água. Verifique o tempero. Sirva bem gelado com croûtons (cubos de pão assados no forno com azeite).


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

A lição de Gilberto Amado

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ilberto Amado fala de mim em suas Memórias. É uma referência curta, circunstancial, encaixada num pequeno trecho da “Mocidade no Rio”, o quarto volume de suas reminiscências. Mas se me perguntarem se ele fala bem ou mal, eu não saberia dizer. O que posso dizer é que sempre que releio aquelas poucas linhas do livro sinto nelas uma certa mágoa, uma certa frustração. Alguma coisa me diz que no nosso primeiro encontro em Paris, no inverno de 1952, Gilberto Amado esperava mais de mim. Diz ele: “Em 1952, fiz com jovem brasileiro e jornalista a mesma excursão. Mostrei-lhe o que me interessava, durante horas. O rapaz olhava tudo, perguntava, eu explicava, respondia, esclarecia. Tornando ao Brasil, não escreveu uma linha sobre o que viu... Chamava-se Joel Silveira, sergipano a quem eu via pela primeira vez, mas de quem fiquei gostando por isto: olhou muito e não escreveu. O outro não olhou e escreveu! Todo o Brasil, para mim, aí se reflete. O País se divide assim: os que não vêem e falam do que não viram e os que vêem e não falam do que viram. Uma média se fará um dia – devemos esperar. É preciso crer”. PS: A verdade é que durante aqueles dias no duro inverno de 1952, em minhas andanças com Gilberto Amado em Paris, ele me encheu de tanta ilustração, tantas histórias de escritores, artistas, reis e rainhas, que me seria impossível anotar, antes de dormir, o tanto que havia visto e ouvido durante o dia. O homem era uma torrente de sabedoria. •

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ESPECIAL

Precursor de Borges e Heidegger, escritor brasileiro e universal Livro que reúne 30 ensaios em mais de 500 páginas deverá promover uma revolução na recepção da obra do gênio brasileiro nos países de língua inglesa Eduardo Graça, de Nova York

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recepção internacional da obra de Machado de Assis é inevitável. Quem garante é o professor João Cezar de Castro Rocha, da UERJ, que organiza a mais ambiciosa publicação sobre o Bruxo do Cosme Velho nos Estados Unidos, On Machado de Assis, dentro da coleção Portuguese Literary & Cultural Studies, da Universidade de Massachusetts-Dartmouth, a ser lançada pela Biblioteca do Congresso, em Washington, no primeiro semestre de 2006. On Machado reúne 30 ensaios, em um volume de mais de 500 páginas em fase de edição-final que promete promover uma revolução na recepção da obra do gênio brasileiro nos países de língua inglesa. Para convidar os ensaístas que elaboraram On Machado, Castro Rocha partiu da premissa de que o pai de Brás Cubas e Dom Casmurro é nosso autor mais universal, fugindo da armadilha de escalar apenas “brasilianistas” ou especialistas em cultura latinoamericana em seu livro. Um dos textos é justamente do alemão Hans Ulrich Gumbrecht, uma das estrelas da Universidade de Stanford, que escreveu sobre o Memorial de Aires. Em seu ensaio, intitulado “The Beautiful Form of Sadness”, o professor sugere que Machado antecipou uma nova compreensão do tempo que, na filosofia ocidental, somente ficaria evidente com a obra de Heidegger. E há muito mais: o imortal Alfredo Bosi escreve sobre “Raymundo Faoro leitor de Machado”, David Wellbery, da Universidade de Chicago, trata do “Machado como leitor de Filosofia”, Earl Fitz, da Vanderbilt University, lança um olhar sobre o “Machado como transformador do moderno romance europeu” e Michel Wood, de Princeton, analisa o “Master Among the Ruins”. Entre muitos outros grandes nomes, On Machado contará ainda com ensaios do professor Antônio Cândido, da USP, do acadêmico Sérgio Paulo Rouanet e de Stephen Hart, da Universidade de Londres.

Machado de Assis

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LITERATURA

Hoje, de acordo com Castro Rocha, que conversou com a Continente, de Berlim, na Alemanha, há claramente duas dimensões de Machado de Assis fora do Brasil. “Na universidade, Machado vai muito bem, obrigado! Contamos, por exemplo, com uma sólida produção de conhecimento produzido pelos estudos machadianos nos Estados Unidos. Vários trabalhos importantes foram realizados por professores norte-americanos, como Earl E.Fitz, Paul Dixon e Gregory Rabassa, entre outros. E o professor David Jackson acabou de preparar uma bibliografia de trabalhos críticos sobre Machado em inglês e o resultado é animador. Porém, no tocante ao público mais amplo, a diferença é, sim, constrangedora”, reconhece. A expectativa dos “machadianos” aqui nos Estados Unidos é a de que On Machado gere uma nova onda de estudos ligados ao autor no país. Mas Castro Rocha lembra que, apesar de contar com defensores ilustres como Woody Allen e John Bart, Harold Bloom

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Imagens: Reprodução

Objetos pessoais do escritor

e Susan Sontag, Machado ainda não é um nome conhecido do leitor norte-americano como o de um Flaubert, um Dostoievski, um Thomas Mann. O que fazer para reverter este quadro? “Em um primeiro momento, uma possibilidade viável e de execução rápida seria o nosso governo financiar a circulação mais ampla de autores brasileiros no exterior”, diz o professor da UERJ, tendo em mente que o autor potencialmente mais universal de nossa literatura é justamente Machado de Assis. De qualquer modo, Castro Rocha passa a léguas de distância do deslumbramento que domina parte da inteligência brasileira. Ele tem horror ao auto-exotismo constrangedor, aquele afeito à chamada “arte para exportação”, e não hesita em considerar Machado um “precursor de Jorge Luis Borges”, dentro de um grupo de autores, das mais diversas nacionalidades, que concebe a escrita como um produto secundário da leitura. Por estas e outras, um dos mais destacados nomes dos estudos brasileiros contemporâneos, o professor titular de literatura brasileira da Universidade de Yale, David Jackson, está organizando um lançamento de On Machado na prestigiosa universidade no que já está sendo chamado de “Dia de Machado”, em setembro de 2006. Na ocasião, intelectuais de todo o país serão convidados para ler trechos de livros fundamentais da obra machadiana. A tentativa é a de que esta reunião seja menos restrita ao universo acadêmico e que ecoe a idéia da descoberta deste “autor-universo” que é Machado de Assis. A Biblioteca do Congresso e a Universidade de Princeton tamContinente dezembro 2005

bém estão programando seus colóquios em torno de Machado, em datas ainda a serem confirmadas. Na última década, a Oxford University Press já havia encampado a idéia da popularização de Machado de Assis na língua inglesa e promoveu a “retradução” dos cinco derradeiros romances do escritor brasileiro. “E são excelentes traduções, mas são difíceis de se encontrar, até mesmo na Inglaterra”, conta Castro Rocha. Para o professor, além da importância do escritor na difusão da literatura brasileira no exterior e no próprio entendimento da identidade nacional, Machado segue fundamental para a compreensão de nossas mazelas éticas, sociais e políticas: “Eu creio que, hoje, Machado se comportaria como o narrador de ‘Esaú e Jacó’, isto é, saberia que mudam os regimes e os sistemas políticos, mas que o homem permanece o mesmo. A corrupção não tem ideologia, talvez concluísse o narrador que, por ser cético, não se decepcionaria muito. É que ele nunca esperou nada de muito diverso”. Mas, como o próprio estudioso enfatiza, cabe a uma nova geração de machadianos a tarefa de esclarecer que Machado era brasileiro e universal ao mesmo tempo: “Não apenas um, e muito menos somente o outro. Os dois. E ao mesmo tempo: esta a marca do grande autor. E poucos foram tão grandes como Machado”. Em tempo: On Machado também terá um lançamento de gala, em 2006, no Rio de Janeiro, na UERJ, em data a ser definida, e receberá uma edição em português. •


ESPECIAL

O gênio brasileiro No caso de Machado, é preciso entender a época e o lugar em que viveu o escritor, num diálogo cerrado e constante com a sua obra Milton Hatoum

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Grupo que fundou a ABL. Machado é o segundo, da esquerda para a direita, sentado

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provável que os livros de Machado de Assis não tenham ocupado um lugar cativo na vasta biblioteca de Jorge Luis Borges. O autor de Ficções, que parece ter lido tudo, não leu o nosso maior escritor, que, ironicamente, é um dos ilustres antecessores do grande narrador argentino. Além da linguagem concisa e de uma certa inquietação filosófica – em graus variados de especulação metafísica –, há a famosa máxima borgiana que bem podia ser machadiana: nosso patrimônio é o universo. Mas para alcançar o universal, é necessário aprofundar as questões locais, mesmo com artimanhas e estratégias narrativas que, às vezes, não falam ostensivamente do país e do tempo em que ambos viveram e escreveram. No caso de Machado, é preciso entender a época e o lugar em que viveu o escritor, num diálogo cerrado e constante com a sua obra. Foi essa a tarefa árdua a que se dedicou Daniel Piza neste Machado de Assis – um Gênio Brasileiro, uma ótima biografia que também comenta com propriedade e sem rodeios retóricos uma parte significativa da produção ficcional do autor.

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ESPECIAL A dificuldade dos biógrafos de Machado reside na escassez de informações sobre sua vida. Apesar disso, os livros seminais de Alfredo Pujol, Raimundo Magalhães Júnior e Lúcia Miguel Pereira deram uma grande contribuição para a biografia analítica do escritor carioca. Piza reconhece essa dificuldade, mas encarou o desafio e escreveu uma história de vida, contextualizada no mundo literário, artístico e político do Rio, no período que vai do Primeiro Reinado à República Velha. Um dos méritos do livro é mostrar que a obra de um grande escritor é construída aos poucos sobre uma base intelectual cada vez mais consistente. Bisneto de escravos, neto de escravos libertos, filho de agregados e órfão de mãe aos 11 anos, Joaquim Maria Machado de Assis viveu uma infância pobre no Rio acanhado e provinciano do Primeiro Reinado. Se não fossem a obstinação e o extraordinário talento de Machado, seu destino teria sido outro. Além disso, uma confluência de circunstâncias a seu favor também foi, se não decisiva, ao menos importante para que ele não fizesse parte da multidão de pobres

e miseráveis que na época do escritor – e ainda hoje – constitui a maioria dos brasileiros. Um Gênio Brasileiro começa pelo fim da vida de Machado, e essa estratégia narrativa atrai o interesse do leitor logo nas primeiras páginas. A lenta agonia, o desencanto, a solidão, as doenças, a saudade da esposa Carolina – morta em 1904 –, tudo isso é narrado por meio de um diálogo com os depoimentos de amigos e admiradores que visitaram o escritor no leito da morte. Diálogo também com os últimos textos de Machado, inclusive o romance Memorial de Aires (1908), em que alguns amigos viram na figura de dona Carmo a evocação de Carolina. Piza não traça a correspondência direta entre a vida do autor e sua obra, uma armadilha para leitores ingênuos e apressados. Ele prefere trabalhar com mediações, examinando suposições ou possíveis convergências na relação sempre complexa entre vida e obra. Isso pressupõe a análise minuciosa do ambiente cultural e político a que pertenceu Machado, o que não exclui a transformação da fi-


sionomia urbana do Rio e sua modernização incompleta, mas fulgurante nas últimas décadas do século 19. O ensaio acompanha de perto – ano após ano – a evolução e o amadurecimento de uma obra que, nos primeiros poemas e romances, estava muito arraigada no Romantismo. Nessa trajetória lenta, mas sempre ascendente, Piza revela e esclarece os pontos de inflexão que apontam para uma qualidade literária ímpar em sua época. A partir da década de 1870, Machado dá a primeira virada qualitativa em sua obra, com a publicação dos contos reunidos em Histórias da MeiaNoite (1873), que culminaria com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880). É também nessa época que ele publica o ensaio “Instinto de nacionalidade” (24/03/ 1873), em que afirma: “O que se deve exigir do escritor é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. Nesse texto, Machado critica o uso da cor local e do pitoresco na literatura, reivindicando uma abordagem

mais íntima e reflexiva, e menos superficial do país e de sua história. Assim, criticava o Romantismo exacerbado do qual ele já se afastara: um ideal nativista que empunhava a bandeira literária do patriotismo e dos valores “genuínos” da jovem nação. Machado ainda demorou alguns anos para elaborar artisticamente o “sentimento íntimo” de seu tempo e do Brasil, examinando suas contradições e aberrações sociais. No entanto, as bases teóricas de seu projeto estético foram lançadas nesse ensaio breve e poderoso. Como a maioria dos grandes escritores, ele buscou com paciência, obstinação e disciplina o tom irônico e o modo de narrar que usou em contos, crônicas e romances. Nesse sentido, foi um verdadeiro homem de letras, estudioso de clássicos da Antiguidade e da literatura européia, sem desprezar a prata da casa, cujo ícone maior era José de Alencar. Shakespeare, Dante, Montaigne, Cervantes, Sterne, Swift, Voltaire, Diderot e Stendhal são autores recorrentes em sua obra, além de poetas e narradores portugueses como Camões e Almeida Garret.

Praça Quinze de Novembro, no Rio de Janeiro, em 1890

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ESPECIAL Machado soube extrair dessa biblioteca o que mais lhe interessava para fabular, ironizar e criar analogias e aforismos. Muito antes de Borges, o escritor carioca foi um demônio da citação, que nunca era aleatória nem gratuita, e, sim, um parêntese reflexivo que aludia a algo mais geral e revelador na trama. No auge do Naturalismo e Realismo europeu, ele preferiu urdir narrativas com tramas aparentemente diluídas ou esgarçadas, com ênfase em triângulos amorosos que acarretavam danos morais. No entanto, os ciúmes, os encontros clandestinos de amantes, os olhares insinuantes e furtivos formam apenas a parte mais visível do enredo. No centro dessas relações passionais move-se um narrador irônico e cruel, que, não poucas vezes, reproduz o que há de mais vil e ultrajante no comportamento das elites políticas e econômicas do país. Além disso, Machado soube sondar e problematizar Carolina, a eterna companheira as relações e conflitos humanos, transcendendo as fronteiras entre razão e loucura, como revelam textos geniais como “O Espelho”, “A Causa Secreta” e “O Alienista”. A atuação de Machado na imprensa e nos círculos literários, suas afinidades com a música, com o teatro lírico e dramático, sua participação decisiva na fundação de instituições culturais, cujo ápice foi a ABL, tudo isso contribuiu para inserir o escritor na vida efervescente do Rio. Daniel Piza mostra como essas atividades – saraus, reuniões, bailes, etc. – foram também assimiladas à obra do escritor, que foi testemunha de mudanças políticas, inclusive a abolição da escravidão e o nascimento da República. Mas, como assinala o biógrafo, Machado foi também uma espécie de severo censor de manuscritos de obras teatrais, e ainda um “patriarca das letras, no bom e mau sentido”, para usar as palavras de Antonio Candido. Antiimperialista, defensor de uma monarquia constitucional e admirador fervoroso de Dom Pedro II, ele percebeu que o advento da República não ia mitigar as mazelas da sociedade. Como funcionário do Ministério da Agricultura, redigiu pareceres em favor da liberdade de escravos. Nesse sentido, a biografia de Piza revela um escritor muito mais participante das discussões políticas e da vida cultural do Rio, desmistificando o senso comum

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que construiu a imagem de um homem sempre pacato, encorujado ou ensimesmado. Nos últimos anos de vida, abatido pela morte da esposa Carolina e cada vez mais doente, a figura de Machado já é para lá de grandiosa. Uma crônica, “Bons Dias!”, publicada pouco depois da Abolição, é um dos textos mais ácidos e virulentos contra a mentalidade de nossas elites. A crônica é narrada por um proprietário de escravo que decide alforriá-lo. Ao ouvir a notícia de sua liberdade, Pancrácio entra na sala, “como um furacão”, e abraça os pés do amo. Aceita um ordenado irrisório; depois aceita tudo, até um peteleco que o exproprietário lhe dá no dia seguinte. Em seu comentário, Piza escreve: “Boa parte da literatura de Machado está nessa crônica. Vemos toda a vaidade que reside na mente ociosa daquela elite escravocrata, a começar pela falsa modéstia: a necessidade dos puxasacos; a retórica grandiloqüente e afrancesada; os apelos à religião cristã e aos direitos naturais (herdados); o paternalismo, que promete afetos e dá petelecos; a comparação do escravo a animais; o esquema de dominação servil; a suposição de estar acima da lei; o desejo de se encastelar no poder público; o aliar-se com os tempos por interesse. É interessante observar o dado de que a ele (proprietário) já não custa quase nada alforriar o escravo, pois seu valor equivale a dois jantares e ele pode lhe pagar salário seis vezes maior." Se, em 1888, Machado já alcançara plena maturidade na elaboração formal e nos temas narrados, a partir de Brás Cubas ele foi, segundo Daniel Piza, um mestre na caracterização de personagens, na rede de implicações destes com temas sociais, políticos, morais e filosóficos, tratando a matéria e os personagens como um jogo entre afetos e interesses, mas sempre com ambigüidade. O talento, a cultura e a intuição alcançaram qualidades incomuns na segunda fase da obra de Machado de Assis, tanto mais se considerarmos a época e o país em que o escritor viveu. Por isso, Carlos Drummond de Andrade chamou-o de Bruxo. Mas não seria exagero considerá-lo um gênio brasileiro. •


Imagens: Reprodução

Os golpes de Machado Machado de Assis absorveu como poucos a vida cultural do seu tempo, freqüentando saraus e participando de banquetes Daniel Piza

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imagem corrente de Machado de Assis (1839-1908) é a de um escritor fechado e frágil, que tinha vida social escassa e humor melancólico e dedicava quase todo o seu tempo à sua obra. Mas essa imagem é mais pertinente para o Machado do final da vida, sobretudo depois da morte de sua amada Carolina em 1904. Mesmo então, ele tinha muitos amigos com quem se encontrava na Academia Brasileira de Letras ou na Livraria Garnier e trocava correspondências freqüentes. Com Mário de Alencar, almoçava todo domingo, para espairecer a solidão e tentar esquecer um pouco os sofrimentos nos nervos, olhos e intestinos. Na mocidade, Machado era ainda mais ativo, e alguns relatos o descrevem como sorridente e espirituoso; reservado com os estranhos, mas descontraído com os íntimos. Em especial nas décadas de 1850 a 1870, vivia mergulhado no mundo do Segundo Continente dezembro 2005


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ESPECIAL Reinado, no convívio com a corte, as sociedades literárias e musicais, os grupos de teatro e ópera, nas transformações aceleradas do Rio de Janeiro em uma cidade moderna, cada vez mais tomada por inovações como telégrafo, trem, fotografia, bonde, bolsa de valores, butiques, hotéis etc. Como jornalista, cobriu o Senado durante o período em que os conservadores dominaram. Como escritor, publicava poemas e contos em diversos periódicos que iam surgindo e participava de grupos “lítero-humorísticos” como a Sociedade Petalógica. Como crítico e dramaturgo, trabalhava como censor no Conservatório Dramático, traduzia e escrevia peças e se apaixonava por atrizes. Como melômano, dirigia o Clube Beethoven e fazia letras de canções para seu amigo pianista Arthur Napoleão. O Rio desse tempo, aliás, chegou a ganhar o apelido de Pianópolis, tal a quantidade de casas que reuniam pessoas ao redor do instrumento e de uma cantora. Machado absorveu como poucos essa vida cultural que, para nossos padrões, pode soar provinciana, mas que em muitos aspectos não era. Freqüentava saraus e neles apresentava seus textos. Participava de banquetes em torno de questões literárias ou políticas, como o da fundação da Sociedade Abolicionista, comandada por seu grande amigo Joaquim Nabuco. Ia caminhar no Passeio Público ao lado de seu ídolo de juventude, José de Alencar, o último numa seqüência de padrinhos que teve – como Paula Brito, que o contratou como tipógrafo quando Machado tinha 15 anos, e Manuel Antônio de Almeida, o romancista que foi seu chefe na Imprensa Nacional. Na Garnier e no Gabinete Português, lia a mais nova ficção européia; no Clube Beethoven e no Diário do Rio de Janeiro, acompanhava os jornais franceses e ingleses. De um neto de ex-escravos, que ainda adolescente deixou a casa do pai para tentar a vida na cidade, a um jornalista e escritor erudito, que mais tarde chegaria até a estudar grego e alemão, sua ascensão foi contínua e consistente. O mesmo se deu na carreira de funcionário público, pela qual chegou ao segundo escalão do Ministério da Viação. Machado também era participante ativo dos debates que ocupavam aquela sociedade, principalmente os dos anos 1870. Foi então que tanto a literatura como a política se viram divididas em grandes correntes opostas. Na literatura, a pendenga era entre o Romantismo e o Realismo. O Romantismo havia embebido Machado no início da atividade literária; nomes como Álvares de Azevedo, Castro Alves e o próprio Almeida, para não falar de grandes estrangeiros como Hugo e Poe, atraíam-no. Mas o ReaContinente dezembro 2005

lismo já começara a dar as cartas na Europa e nos EUA, e Machado passaria a defendê-lo quando crítico teatral. Em seguida, porém, veio a ascensão do Naturalismo, o realismo levado ao extremo da minúcia anti-romântica por autores como Zola e Eça de Queirós. E aí Machado não gostou. Achava que uma mescla entre Realismo e Romantismo seria mais justa com a natureza humana, tão capaz de ambas. Na política, republicanos começaram a abrir uma guerra de idéias contra os monarquistas. Ironicamente, tinham ganhado força a partir da Guerra do Paraguai (1964-70), da qual Dom Pedro II havia saído como grande vencedor, para gáudio de Machado, que o julgava “honesto e esclarecido” e a ele dedicou poemas e cantatas exortatórias. Machado era monarquista, mas, apesar de fã do imperador (que o condecorou com a Ordem da Rosa),


Detalhe do quadro Rio de Janeiro da Ilha das Cobras, em 1850, de Eugênio Cicéri e Philippe Benoist

defendia uma monarquia constitucional, à maneira inglesa, e a abolição da escravatura, sempre adiada. Não por acaso, republicanos em geral eram a favor do Realismo na literatura; monarquistas, do Romantismo. Machado, que não gostava de ver a literatura subjugada à política, oscilava entre os pólos. Na primeira fase de sua ficção, de Ressurreição a Iaiá Garcia, procura uma forma de se equilibrar, como defendido no brilhante ensaio de 1873, “Instinto de Nacionalidade”, e na famosa crítica a Eça, de 1878 (que mudaria o curso da ficção do grande autor português). Mas faltava achar a forma original dessa mistura. No final de 1878, a saúde de Machado piorou muito. A retinite o impedia de ler à noite. Os ataques epilépticos, além de o encherem de vergonha, obrigavam-no a tomar remédios que, por sua vez, atacavam o estômago. Dores de cabeça, insônia e diarréias eram suas companheiras in-

ESPECIAL separáveis. Como estava perdendo muito peso, foi passar uma temporada na serra de Nova Friburgo, a qual mais tarde diria salvadora. Nós podemos dizer o mesmo sobre a literatura brasileira: foi lá que Machado teve a idéia de escrever Memórias Póstumas de Brás Cubas e ditou os primeiros capítulos a Carolina. O romance sairia em livro em 1881. Nele, estratégias do Romantismo e do Realismo se fundem, ganhando o acréscimo da influência humorística de Cervantes, Sterne e Voltaire. As histórias de adultério (Romantismo) e busca pelo poder (Realismo) ganham um colorido satírico, um livre-pensar, uma folia de idéias que teria uma voz única – o defunto que decide ter a última palavra sobre seu próprio fracasso. Para a guinada estética – e moral e filosófica – que Machado realizou com Brás Cubas, inaugurando assim 20 anos de uma produção que a literatura brasileira jamais viu igual (de contos e crônicas e dos dois romances seguintes, Quincas Borba e Dom Casmurro), concorreram não só sua experiência de quase-morte, mas também sua desilusão com o Brasil, com o passo lento e limitado de seu progresso, com a decadência de um regime que teimava (e teima) em não ser mais que um rodízio de oligarquias no poder. Machado via sua cidade se transformar, via a nova geração de políticos, via a morte de seus padrinhos e amigos. Como Nabuco, tirava esperança da campanha abolicionista e achava que ela poderia restabelecer a monarquia e abrir caminho para o Terceiro Reinado, com a princesa Isabel no governo. Mas a história, essa irônica, foi por outro caminho. O golpe republicano em 1889 abalaria muito Machado. O exílio imposto ao imperador, a arbitrariedade dos militares, a disparada dos títulos e ações nos anos seguintes – tudo isso chocaria Machado a ponto de fazê-lo abandonar por dois anos sua coluna semanal na Gazeta de Notícias. Sua literatura, em contrapartida, continuaria ganhando sutileza e mordacidade. A transição de regime, afinal, traria mudanças de comportamento, mas as promessas de distribuição da renda e da educação continuavam não sendo cumpridas. A sociedade prosseguia sendo uma “mascarada”, um jogo de aparências. Aí, no entanto, se dava o lance de gênio: Machado viu nisso não só o fracasso de uma política ou de um país, mas a complexidade da natureza humana – a vaidade cuja forma mais corriqueira é a humildade, a confusão entre afetos e interesses, o complexo de inferioridade dando lugar a delírios de grandeza. Para descrever seu tempo e lugar com tanta argúcia, precisou, antes, vivenciá-lo intensamente. • Continente dezembro 2005

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O maestro das “coisas musicais” Moacir Santos lança disco, DVD e songbooks com o melhor de sua obra Julio Moura


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Brasil é minha terra, Pernambuco é meu orgulho”. A afirmação é de um dos mais importantes músicos brasileiros, cuja influência se estende a pelos menos quatro gerações de instrumentistas e intérpretes. Aos 79 anos – há 38 vivendo em Los Angeles – a presença do maestro Moacir Santos em terras brasileiras já não é tão rara quanto o ocaso das últimas décadas poderia supor. Sob a tutela dos produtores Mario Adnet e Zé Nogueira – responsáveis por Ouro Negro, que trouxe Moacir de volta há quatro anos – saem agora um novo CD (Choros e Alegria, incluindo as primeiras composições do maestro), um DVD (com a gravação do álbum Ouro Negro) e três songbooks, incluindo as partituras completas dos discos citados, além do mais importante deles, Coisas, gravado em 1965. Moacir Santos veio ao Rio, junto com a eterna companheira, Cleonice, no início de outubro. Coordenou os ensaios da banda Ouro Negro, com alguns dos mais requisitados instrumentistas do país, para três shows no recém-inaugurado Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Depois de uma temporada em Maceió, em visita a um filho adotivo, voltou ao Rio para dois shows na Sala Cecília Meireles. Há 10 anos, por causa de um AVC, Moacir não toca mais. Mas os sons jamais deixaram de acompanhar o maestro: “Não sei onde nasci, mas sei que nasci com a música. A lembrança mais remota que tenho é de quando contava pouco mais de três anos de idade. Estava batendo lata no quintal de casa, com outros meninos, todos nus, que é como as crianças pobres andam no Sertão. Eu era o regente das latas. Alguém me chamou para dizer que minha mãe havia morrido. Eu, menino, não sabia o que era a morte. Mas já sabia o que era música”, explica, num tempo todo seu, marcando minuciosamente as palavras. Uma vez que o pai havia abandonado o lar, Moacir, depois da morte da mãe, foi criado por uma família de brancos, na cidade de Flores, às margens do Rio Pajeú. A família morava em frente ao coreto da cidade. E o pequeno Moacir, intuitivamente, cismava de bulir nos instrumentos. Tal ousadia era punida pela madrasta com chibatadas. Tem rato no sax – Em pouco tempo, o menino tornou-se vigia dos instrumentos. Tomou intimidade com eles. Sob a batuta do Mestre Paixão – maestro da orquestra e seu primeiro professor – cuidava para que os saxofones estivessem em ordem, as flautas não desaparecessem, não houvesse gato na tuba. O que não impediu, mais tarde, um incidente com um mamífero bem menos sociável: “Aos 14 anos, fugi de casa, cansado de apanhar – conta o maestro. Rodei durante meses diversas cidades de Pernambuco e da Paraíba. Certa vez, no Recife, encontrei Mestre Paixão e ele me levou para tocar na Banda dos Operários da cidade. O mestre da orquestra perguntou: o que é que o rapazinho toca? Eu disse: qualquer um. Mas não foi arrogância de minha parte, eu queria tocar. E completei: se o senhor me der um saxofone, melhor ainda. Ele me deu um sax tão velho,

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música Marco Antônio Texeira/Ag. O Globo

Arquivo/O Globo

Nelson Gonçalves e Nara Leão: alunos de Moacir Lumiar

“Estava batendo lata no quintal de casa, com outros meninos, todos nus, que é como as crianças pobres andam no Sertão. Eu era o regente das latas. Alguém me chamou para dizer que minha mãe havia morrido. Eu, menino, não sabia o que era a morte. Mas já sabia o que era música” Somente após os 40 anos, o maestro descobriu que nasceu em São José do Belmonte

que não conseguia tirar som nenhum dele. Tive que botar água. Saiu um rato lá de dentro”, recorda. As andanças acabaram levando-o a um circo. O adolescente, entretanto, não sabia onde havia nascido, seu nome completo ou quantos anos tinha. Tantas incertezas povoaram a cabeça do maestro durante décadas. Ele destrincha. “Quando o circo chegou em Salvador, tive saudades do meu Pernambuco. Fui até as docas da Bahia, sem dinheiro, tentando uma vaga em algum navio. O rapaz me perguntou: quantos anos o menino tem? eu não sabia. Aí ele me olhou bem de perto e disse: esse menino não tem mais que 16 anos. Não consegui a passagem, mas ganhei uma idade. Assumi aquela para mim”. Já consagrado, em Nova York, buscou ajuda mística para tentar esclarecer as dúvidas quanto à sua origem: “Um conhecido me levou a um lugar para ver se conseguia alguma resposta. Me apresentou à saContinente dezembro 2005

cerdotisa: meu amigo quer saber onde ele nasceu. Ela disse: sei não. Eu não sou mãe dele”. Solução salomônica – A incerteza, entretanto, chegou a render histórias engraçadas. Como na vez em que Moacir se apresentou para uma platéia formada em parte por moradores de Flores, parte por habitantes de Serra Talhada. “Alguém perguntou onde eu havia nascido. Fiquei mudo, pensativo. Um grupo começou a gritar: Flores, Flores! E o outro: Serra Talhada, Serra Talhada! Meio sem saída, lembrei da solução de Salomão e anunciei: nasci em Serra Talhada, mas abri meus olhos em Flores”, diverte-se. O mistério só foi esclarecido nos anos 70, em visita à Igreja de São José do Belmonte, na região de Serra Talhada: “Eu me sentia como uma pedra no meio do oceano. As ondas batiam em mim e perguntavam: onde você nasceu? Quantos anos você tem? Qual o


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seu nome? Eu não tinha a resposta para essas questões. Aquilo me perseguiu durante anos. Até que fui nessa igreja e encontrei meu batistério. Nasci no dia 26 de julho de 1926. Fiquei tão emocionado, que pedi à dona da Igreja para me emprestar o órgão. Comecei ali mesmo a compor um improviso em homenagem à minha mãe. Eu chorava muito, mas a música fluía. Ela nasceu comigo”, reafirma. A evolução das coisas – A música é a religião de Moacir, que carrega os santos em seu próprio nome. No entanto, uma das descobertas essenciais de sua vida foi o estudo da Teosofia, que o auxiliou nos momentos mais difíceis. A religiosidade sempre acompanhou as notas que brotavam em sua cabeça: “Me tornei maestro da rádio Tabajara, em João Pessoa. Pouco depois, fui para o Rio, onde cheguei a estudar com cinco professores diferentes, ao mesmo tempo. Fui aluno de Koellreuter e Guerra-Peixe. Fui professor de Nara Leão,

Roberto Menescal, até Nelson Gonçalves tomou aulas comigo. Conheci muito Vinicius de Moraes, Baden Powell, Tom Jobim, todo o pessoal da bossa-nova. Uma vez Tom me pediu para tocar “Coisa número 2” durante uma noite inteira. Mas nada se compara ao dia em que entrei numa igreja no Catete e prometi à Santa que eu iria estudar até compreender toda aquela música que saía de mim”. Levado por Horace Silver para os EUA, em 1967, Moacir vive em Pasadena, na Califórnia, e sua casa virou rota de peregrinação para os amantes de sua música. Ou melhor, de suas “Coisas”: “Sempre gostei da expressão em latim opus, para definir uma obra musical. Mas sentia que eu não tinha uma opus. O que crio são coisas. Coisas musicais. Algumas vezes, as pessoas não entendem o que componho. Sinto que tenho feito música para a posteridade. Daqui a algumas gerações, vão compreender melhor a música que faço. É a evolução das coisas” – arremata. •

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Moacir: “O que crio são coisas. Coisas musicais”

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AGENDA/MÚSICA Fotos: Divulgação

Maremotos musicais

O realejo de Quebrangulo O original Versos Vialejos e Quebranguladas viaja entre a tradição agreste e o baixo acústico

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em tradicional nem moderno é o som do realejo (instrumento que está para a gaita assim como a rabeca está para o violino) de Gaspar Andrade, no seu inusitado disco solo Versos, Vialejos e Quebranguladas. Incentivado pelo filho músico, Thiago de Andrade, o advogado Gaspar Andrade, 56 anos, retomou o antigo hábito de tocar realejo, aprendido quando criança na sua cidade natal, Quebrangulo, terra de Graciliano Ramos, com um mestre local, Nego Duda. O repertório do álbum ficou na gaveta durante 30 anos. Algumas faixas remetem aos forrobodós pré-Luiz Gonzaga, mas nada que se encaixe em gêneros engessados: o que se ouve é uma reverência à memória, com uma incrível conexão com a atualidade. Gaspar organiza diálogos, por exemplo, entre o realejo e o baixo elétrico e a guitarra e a viola de arco para tocar melodias intrincadas que se inspiram em frevos, cocos, pastoris, cavalhadas e procissões arquetípicas – tudo em tom anárquico. Não se trata simplesmente da fusão do tradicional com o moderno, mas de pequenas aventuras musicais, nas quais as composições revelam a brincadeira e o prazer em serem tocadas. O álbum conta com participações especiais de Silvério Pessoa, Siba, Fernando Catatau, Nego Duda, Isaar, Conceição Camarotti, entre outros. Sempre soprando a sua gaita, Gaspar promove imagens insólitas, como em “O dia em que as negras da costa se encontraram com João Balaio”, na qual une um canto folclórico de Alagoas à célebre “Jambalaya”, de Hank Williams. Há títulos quilométricos, como “Na Rua da Areia de Pastorinha, Natersa, Milton Bebão, Sebastião Quebra-pedra, Babão e outros heróis” que remete à literatura de cordel. Em “Manuel era fiel e filho da liberdade”, Gaspar homenageia o operário Manoel Fiel Filho, cuja morte na prisão, seguida à de Wlademir Herzog, abalou a ditadura. (Isabelle Câmara) Versos, Vialejos e Quebranguladas. Independente, preço médio R$ 20,00. Contato: quebranguladas@uol.com.br Continente dezembro 2005

Nos últimos anos, a cidade de São Paulo foi “acometida” por dois maremotos musicais: um foi o surgimento da Banda Mantiqueira, big band que, depois de décadas de procura, encontrou um som genuinamente brasileiro; o outro foi o ressurgimento da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo – OSESP, que, regida por John Neschling, retomou seu “som de ouro” e conseguiu, em poucos meses, transformar-se numa referência para todas as orquestras brasileiras, em termos artísticos e funcionais. O disco Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo Roberto Minczuk – Luciana Souza – Banda Mantiqueira é o encontro destes monstros da música instrumental, com duas “cerejas no bolo”: a regência do maestro Roberto Minczuk e a voz de Luciana Souza, cantora brasileira de jazz há anos morando nos Estados Unidos. OSESP / Minczuk – Mantiqueira – Luciana Souza. Biscoito Fino, preço médio R$ 28,90.

Samba genuíno Num tempo de revivescência do samba, “tem muita gente vacilando por aí, não sabe nem dançar”, como diz Nereu São José na faixa “Vem Sambar”, do seu disco Samba Power. Nereu é um dos pais do samba-rock, compositor e um dos melhores pandeiristas do país, e seu disco traz à tona sambas vigorosos, sensuais e irônicos, escondidos e acumulados por mais de 40 anos; sambas inscritos na tradição do morro e das quadras de samba do Rio, até as mais recentes e balançadas canções, primas-irmãs das canções do seu Trio Mocotó, como “Balança Menina”, “Maria José” e “Transformação” (samba de quadra de Jurandir Mangueira). Samba Power resgata o samba de malandro, feito para deslizar nos salões, de forma malemolente, escrita com a frase corporal africana. Samba Power. YB Music, preço médio R$ 23,00.

Diversidade em alta Contrastando com a música pasteurizada que nos é servida maciçamente por discos, rádios e televisão, a caixa Rumos – O Brasil em 9 CDs, patrocinada pelo Itaú Cultural, mostra que a diversidade de ritmos, timbres e tendências continua vicejando em território nacional, pronta para assombrar e alegrar ouvidos mais exigentes. Das composições de Lillísacar, índio fulniô da tribo de Águas Belas, à experimentalista “No Tranco”, do percussionista Ricardo Siri, com o som de buzinas e motores de carros misturado a tambores e sopros, o que se constata é que tanto recriando a tradição quanto investigando a vanguarda, a criatividade do músico brasileiro só precisa mesmo é de melhor divulgação. Rumos – O Brasil em 9 CDs. Informações: www.itaucultural.org.br


Photos12/AFP

Vencedor do prêmio Nobel de Literatura 2005, o dramaturgo inglês Harold Pinter já foi destaque como roteirista de cinema e chegou a disputar um Oscar Fernando Monteiro

Nobel de cinema

Vencedor do prêmio Nobel, Harold Pinter: grande contribuição ao cinema

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enhum dos jornais brasileiros que, em outubro passado, deram a notícia da escolha do nome do inglês Harold Pinter como vencedor do prêmio Nobel deste ano, destacaram o bastante, a meu ver, a importância do seu trabalho para o cinema, a rica contribuição do dramaturgo como roteirista de alguns filmes soberbos, artisticamente, ao mesmo tempo que bem-sucedidos do ponto de vista da bilheteria. Nos dias que correm (demais, talvez), o chamado “jornalismo cultural” às vezes peca por resumir, confundir ou trocar as bolas, em casos de notícias urgentes – como a da atribuição da láurea sueca atualmente na casa de 1,1 milhão de euros. A Agência Estado, por exemplo, divulgou matéria em que Ubiratan Brasil fazia jus ao seu sobrenome: ele escreveu que Pinter era “um dos mais destacados representantes da geração Angry Young Men, na qual se enquadravam também John Osborne e Arnold Wesker” etc. O Brasil não sabia que é justamente o contrário? Ou seja, que foi Harold quem se “enquadrou” no movimento da juventude irada de Londres, capitaneado por John como guia avançado do teatro rebelde de pós-guerra? Pinter é da mesma geração de Osborne, ganhador do Oscar de melhor roteiro, para Tom Jones (1963), o melhor dos filmes assinados por Tony Richardson, um dos líderes do free cinema, ao lado de Richard Lester e Lindsay Anderson. Atraídos para o cinema, tanto Osborne como Pinter aceitaram trabalhar para Continente dezembro 2005


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REGISTRO AFP

Cena do filme The Servant (1963), cujo roteiro é assinado por Harold Pinter

produtores capazes de enxergar além dos portões de Hollywood. Harold terminou escrevendo mais roteiros do que o ainda mais talentoso (e já falecido) Osborne. Assim, a Academia sueca, com o prêmio Nobel, terminou por contemplar, em parte – e pela primeira vez –, neste ano, a literatura voltada para o cinema, ou seja, a colaboração de quem escreve o material que vai parar nas mãos dos diretores sob os holofotes da fama e pisando no tapete vermelho do prestígio mais “evidente” de quem assina as obras cinematográficas (ou como os realizadores preferem, atualmente: “Um filme de”)... Nesse campo, Pinter teve mais sorte do que renomados escritores (Scott Fitzgerald, William Faulkner, Aldous Huxley, Nathaniel West e outros) recrutados como roteiristas – e que não impressionaram a máquina insensível dos estúdios, com o seu trabalho delicado sobre argumentos na maioria fracos, se não mesmo idiotas. Nem ele nem Osborne entraram nessa “máquina”, propriamente. Pinter, em especial, ajudou a criar, como escritor, filmes de diretores de alta capacidade intelectual, entre os quais Joseph Losey se situa acima de todos, com obra sólida e muito pessoal. O quanto desse tom “pessoal” se deve – paradoxalmente – ao roteiro, elaboradíssiContinente dezembro 2005

A Academia sueca, com o prêmio Nobel, terminou por contemplar a literatura voltada para o cinema, ou seja, a colaboração de quem escreve o material que vai parar nas mãos dos diretores sob os holofotes da fama

mo, de um The Servant (1963) ou de um Accident (1967), será difícil de estabelecer com alguma régua mágica, capaz de dividir (?) onde teria acaso terminado a participação literária de Pinter e começado o gênio de Losey, essencialmente cinematográfico. The Servant tomou por base a novela homônima (O Criado) de Robin Maugham, lançada por The Falcon Press em 1948. É uma pequena obra-prima de autoria do sobrinho de Somerset Maugham – e seu tratamento cinematográfico (o script criativo que torna superlativas todas as qualidades de um texto) dilata a sombria ficção escrita pelo Maugham menos estimado pela crítica. Sobre ela, Pinter fez um trabalho exemplar, adequando a narrativa para o peculiar barroquismo (no melhor sentido) do estilo do diretor americano perseguido pela “caça às bruxas” do senador McCarthy, nos anos 50. Obrigado a emigrar para a Inglaterra, depois que entrou na lista dos comunistas e simpatizantes do Marxismo em atividade na meca do cinema, Joseph Losey recomeçou a sua carreira na Inglaterra, longe do fascismo dos Nixon e dos Hoover do passado e dos Bush de hoje. Mas nosso foco se concentra no recém-laureado londrino de 75 anos (filho de um alfaiate judeu) que emprestou a característica de “intensidade crispada”, dos seus melhores textos teatrais, ao perfil do mordomo de The Servant, transformando-o numa insinuante e sutil encarnação do Mal refletido, de forma indireta (em mais de um sentido) até nos múltiplos espelhos espalhados por Losey na mansão típica da city onde, em 1962, rodaram O Criado quase claustrofobicamente, com baixo orçamento, em preto-e-branco. O serviçal ganhou, ainda por cima, a verdadeira “encarnação” do excelente Dirk Bogarde, perfeito nesse papel ideal para que ele exercitasse toda a ambigüidade básica das suas melhores atuações. Lembro um encontro – na tradicional Hartchards, de St. James, em 1986 – em que Dirk nos “corrigia”, educada, porém firmemente, nos elogios ao realizador americano, lembrando que o filme não seria o mesmo sem a colaboração de Pinter. Foi num final de tarde de setembro, por ocasião do lançamento de Backcloth – o último volume da autobiografia de Bogarde (um homem


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Romance A Mulher do Tenente Francês: um dos roteiros mais lembrados dos anos 80

serenamente insatisfeito perante os novos tempos do “mal-acabado, do grosseiro e do apressado”). Com as sílabas bem destacadas, típicas de um ator, suas palavras eram ditadas menos pela amizade ao autor de O Zelador (1957) do que para ressaltar a vulgaridade da nova sociedade inglesa, tão bem expressa pelo teatrólogo de A Festa de Aniversário (1957), The Collection (1962), The Dwarfs (1963), Old Times (1971) e outros ácidos retratos da Inglaterra que The Servant já flagrava na relação entre o criado cockney dissimulado e o patrão aristocrata decadente. Bogarde foi enfático, ao dizer mais ou menos isso (ele, que havia se tornado escritor, após abandonar o cinema): “A novela de Robin nasceu ‘pinteriana’ até o osso de uma ficção debruçada sobre o tipo de tensão social acirrada em ambientes fechados etc.” O ator se referia ao cenário de O Criado como um “microcosmos” da sociedade maior, estratificada, ou caminhando para situações ainda mais desesperadas (conforme se vê, digo eu, numa recente obra “loseyana” de Mike Leigh – All or Nothing, de 2002 –, na qual as tensões se desatam no seio das classes mais baixas do mal mantido reino de Elizabeth segunda, em mais de um sentido)... Pinter & Losey especializaram-se em relações íntimas fadadas ao fracasso ou a se tornarem doentias - o que vem a dar no mesmo, seja pelo laço das diferenças sociais ou pela confusão dos sentimentos num casal que se separa, por traição ou pela falta da ilusão do amor como alguma coisa ressecada, alguma cola ou liga desfeita por acidente (ver precisamente Accident, com Bogarde e Vivian Merchant, primeira mulher de Pinter). Vale lembrar mais um

roteiro brilhante, desenvolvido para Losey, pelo dramaturgo: o de The Go-Between (1970), baseado na novela de L. P. Hartley, que resultou num filme de nuances delicadas sobre um amor que termina (ou começa?) mal. Esse é tema também do romance A Mulher do Tenente Francês, de John Fowles, transformado por Harold Pinter num dos roteiros mais lembrados dos anos 80. E o que fez, aqui, o mestre roteirista? Ele encontrou um equivalente perfeito do jogo com o tempo, magistral no livro: fez coexistir o mistério dezenovesco da mulher do tal tenente, através do artifício do filme dentro de outro filme, na roteirização em dois planos (antigo e moderno) que foi entregue ao competente diretor Karel Reisz. Esse trabalho de mais de duas décadas continua a ser estudado, nas poucas escolas que se dedicam a formar bons roteiristas (a ausência gritante, por sinal, no nosso cinema), inclusive como lição de trabalho sobre um extenso texto romanesco, com os três finais diferentes incorporados ao meta-filme que medita sobre a própria arte do cinema etc. Por tais qualidades, o tratamento dado ao original literário foi justamente indicado para o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, o qual viria a escapar das mãos de Pinter pelas razões que a “razão” da Academia de Hollywood (ela própria) geralmente desconhece... Não importa. Agora, não há mais o que lamentar: a Academia sueca – bem mais respeitada do que a americana – acaba de fazer justiça não só ao autor de textos teatrais instigantes e perturbadores, mas também ao roteirista que se tornou, em 2005, o primeiro a figurar na seleta lista dos laureados de Estocolmo. • Continente dezembro 2005


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FOTOGRAFIA

Com talento poĂŠtico, Labastier mostra uma realidade sombria de igrejas e mosteiros


Ricardo B. Labastier

FOTOGRAFIA

Novas imagens na Capital Megaevento realizado em Brasília reúne 256 artistas nacionais e estrangeiros dedicados à fotografia, e revela talentos e tendências alternativas na construção da imagem Sara Correia

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otografia é representação da realidade. Era. Quando ela surgiu, no século 19, dizia-se que era obra do diabo e que o homem não poderia reproduzir tão fielmente uma imagem real. O tempo passou e hoje a fotografia não só reproduz algo com fidelidade como tem a capacidade de “criar” uma realidade. Esta é a máxima quando a discussão gira em torno da fotografia digital, tema debatido no Foto Arte 2005 – Brasília: Capital da Fotografia, um dos maiores eventos dedicados à fotografia, que este ano chegou à sua quarta edição. Cerca de 70 exposições, palestras, seminários e leituras de portfólios são realizados durante mais de 90 dias e envolvem 256 fotógrafos nacionais e estrangeiros. 43 espaços espalhados pelo Distrito Federal abrigam as mostras, que revelam destaques como o pernambucano Ricardo B. Labastier, o paulista Iatã Cannabrava, o brasiliense Pedro Ladeira, o argentino Marcelo Brodsky, o carioca Walter Firmo e o mexicano Pedro Meyer, entre muitos outros. Este último, além participar de um seminário, assina a exposição El Pincel de la Cámara, (O Pincel da Câmera), que fica em cartaz até cinco de fevereiro de 2006, no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília. Uma das primeiras mostras montadas no Foto Arte 2005, Aos Olhos do Pai, de Ricardo B. Labastier, carrega, desde o título, a essência da religião. Embora explore o universo do catolicismo a partir de um passeio por sótãos, porões e corredores de mosteiros e igrejas barrocas do Nordeste, o ensaio faz um registro mais poético e pessoal. “Não sou religioso, mas há uma ortodoxia recorrente e natural na nossa formação, e faço parte disso. Cada um absorve de uma maneira. Acho a minha visão sinuosa e pouco uniforme. Vou pelo cheiro, pelo sonho e pelo lúdico”, revela Labastier. O processo de criação utilizado pelo fotógrafo, que nasceu em Olinda, foi o da vivência pessoal, com a proposta de registrar o mundo underground das igrejas, objetivando apenas um registro dessas instituições. “Foi isso de estar na rua e andar por igrejas barrocas. Juntei algumas idéias com as surpresas encontradas pelo Continente dezembro 2005

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FOTOGRAFIA Fotos: Pedro Meyer

Mexicano defende o uso da tecnologia digital e a manipulação de imagens, e acredita que fotografia deixou de ser a representação da realidade

O olhar digital de Pedro Meyer P

edro Meyer é daqueles que acham que uma boa foto deve sair da cabeça. Quando o pai e a mãe morreram, ele fez fotos. Quando teve um problema de saúde, na coluna, ele fotografou um raio-x e mandou para os médicos, nos Estados Unidos. Depois disso, fez fotos de si mesmo andando de cadeira de rodas, enquanto viajava. A fotografia digital, desde que surgiu, sempre esteve na vida do mexicano Pedro Meyer, editor do site ZoneZero (www.zonezero.com), que tem cerca de 25 mil acessos por dia – e 1.350 fotógrafos cadastrados. Em 1994, antes mesmo de passar a se dedicar ao trabalho digital, Pedro Meyer criou o ZoneZero com a intenção de montar uma revista, espécie de vitrine de fotógrafos. “Sempre quis ter uma revista, mas o problema é o alto custo com impressão, distribuição etc., que impede uma tiragem que chegue a um grande público. Com o site eu tenho uma revista por muito menos e levo a um público muito maior”, resume Pedro Meyer, justificando a criação do site que, segundo ele, chega até 110 países. A oportunidade de grande acesso e abrangência, sem dúvida, atrai muitos artistas ao ZoneZero. Meyer revela que o único critério usado para um fotógrafo ser selecionado é “que tenha uma boa foto, que tenha qualidade”. Residente nos Estados Unidos, o criador dos Colóquios Latino-Americanos de Fotografia acredita que o conceito de fotografia deve ser encarado com flexibilidade pelos artistas. “É necessário se pensar a noção de fotografia. Ela se candidata a documento da realidade, mas na verdade nunca será. O interessante é fazer fotografia pensando o resultado, manipulando, mexendo, sem se preocupar muito com os meios”, ensina Meyer. Continente dezembro 2005

Se artes plásticas e fotografia se aproximam, Pedro Meyer acha que sim, mas acredita que é justamente o trabalho voltado para a manipulação de imagens que possibilita essa aproximação. “Creio que arte é o trabalho, a construção... Há algum limite que separa a fotografia das artes, mas é como a novela ou a poesia, que é um segmento da literatura. Num processo de redefinição, eu penso que artes plásticas e fotografia representam o mesmo papel. Há um grande prisma, tanto na pintura, como na fotografia, na escultura etc. e por distintas razões de cada um. Ocorre que a fotografia, por exemplo, pode estar vinculada com o vídeo e a pintura, não. Na fotografia não há limites. É tudo fruto da imaginação”, define Pedro Meyer. A percepção e a interpretação de uma fotografia é algo conceitual, segundo Pedro Meyer. “Alguns fotógrafos têm a capacidade de transformar a fotografia em algo Procissão do Divino Padre Eterno, em conceitual e não apenas visual. E o Trindade (GO) espectador também é responsável por essa interpretação, uma vez que ele carrega valores próprios”, sintetiza Pedro, ao definir uma possível fotografia contemporânea. “É a foto feita, não importa o método e nem quando. Se ela é vista hoje, é de hoje, é contemporânea. E este momento consiste não apenas no que estamos vendo fisicamente, mas também no que estamos pensando. Como afirmar que a fotografia é a representação do real? Temos a possibilidade de não crer nessa realidade”, conclui. Utilizando o método digital, Pedro Meyer fotografou o Brasil (Rio de Janeiro e Trindade, no Goiás) no ano passado e o resultado integra a exposição El Pincel de la Cámara (O Pincel da Câmera), montada no CCBB de Brasília de 13 de dezembro até 5 de fevereiro de 2006. •


FOTOGRAFIA Walter Firmo

Walter Firmo, com a exposição Abstrato Extrato, mostra criatividade e sutileza

Pedro Ladeira

percurso e o resultado foi esse ensaio. Tenho fascínio pelo Barroco. Acho misterioso e enigmático”. O trabalho de Labastier é analógico e, se vem de encontro com a fotografia digital, não perde o tom poético e emotivo. “Meu trabalho sempre foi muito plástico e pouco jornalístico, navegando muito no pessoal, existencial e tudo mais”. A tendência poética na mostra de Ricardo B. Lasbastier representa o perfil artístico do Foto Arte, mas que este ano dedica 20% dos trabalhos ao fotojornalismo. Karla Osório, idealizadora, diretora e coordenadora do Foto Arte, conta que é um perfil diferente, com um conceito de arte contemporânea. “Não usamos um critério que diga respeito ao estilo do ensaio, mas ao que de ineditismo ele traz. O mais importante para o evento é buscar mostras inéditas e artísticas. Trazer a vanguarda para Brasília”, explica Karla Osório. • Foto do brasiliense Pedro Ladeira integra a mostra DF EM FOCO – Tons Humanos

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Nem arte, nem loucura Na era moderna, o artista desprezou a natureza coletiva da criação, assumindo o caráter da nova sociedade: um exacerbado individualismo

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ntre as balelas inventadas pela modernidade, uma foi estabelecer nexo entre arte e loucura, como se o artista fosse necessariamente um alucinado. Diz-se comumente que “de artista e de louco todo mundo tem um pouco”. O verbo surtar, do jargão psiquiátrico – que significa a perda de controle sobre si mesmo, a entrada num estado paranóide ou delirante com todas as dores próprias da alucinação –, ganhou status e glamour. Hoje em dia todos surtam. É a moda. Até o Houaiss já registrou o significado “mais ou menos brando” do verbo surtar, colocando-o no campo Continente dezembro 2005

das neuroses, dos problemas psicológicos. Ninguém se assuste ao ouvir esse neologismo nas filas de banco, no supermercado, na novela das seis horas. — Surtei, cara, quando vi a moto. — A menina me deu um amasso e eu surtei. — Se Lula ganha a eleição para presidente, eu surto. A sociedade apropriou-se da loucura como um bem descartável, banindo o que havia de sagrado e maldito nesse estado alterado de consciência. Empanturrou-se de drogas, de medicamentos, de álcool, de fumo. E também de psicanálise. Na derrapada, confundiu o estado de


ENTREMEZ

transe criador com o delírio esquizofrênico, o jejum da ascese com a anorexia nervosa, a náusea existencialista com a bulimia das modelos de passarelas. A fantasia de que todos os artistas são seres fragmentados é própria de uma sociedade com rupturas. Os poetas buscaram o absoluto, um fluxo permanente de criação a custo de trabalho e sofrimento. Nietzsche não escreveu delirando, Schuman não compunha em surto psicótico, nem Van Gogh pintava seus quadros maravilhosos quando estava alterado. Os Upanixades, livro sagrado do povo indiano, define o vazio que antecede o ato criador como um instante de comunhão com o ser: “O mais alto estado se alcança quando os cinco instrumentos do conhecer permanecem quietos e juntos na mente, e esta não se move”. Êxtase, iluminação, revelação ou inspiração, qualquer nome que se queira dar a esse estado, não corresponde à loucura. Ao contrário, é puro conhecimento. O poeta inglês Wordsworth escreveu “que a poesia é emoção relembrada em tranqüilidade”. O mesmo pensou Freud, quando afirmou que no ato criador há um fluxo de idéias e imagens que jorram do inconsciente, mas que são polidas pelo consciente. Na era moderna, o artista desprezou a natureza coletiva da criação, assumindo o caráter da nova sociedade: um exacerbado individualismo. Atribuiu a si próprio a única responsabilidade pela sua arte e nomeou-se “criador”, epíteto antes usado apenas para designar os deuses. A autoria virou a marca do nosso tempo. Os pintores zen-budistas não assinavam suas aquarelas porque acreditavam que elas só adquiriam existência ao serem contempladas. Qualquer pessoa que olhasse a aquarela tornava-se o autor, pois a reinventava a partir daquele instante de contemplação, conceito filo-

sófico vago para a nossa mente ocidental monoteísta, que atribui a criação do mundo a um Ser único. A modernidade buscou assinaturas onde elas não existiam, em trabalhos sabidamente grupais, de mestres e discípulos. Os afrescos italianos pintados por confrarias de artesãos tornaram-se obras exclusivas de Giotto, Duccio, ou Pisanello. Apagaram-se os nomes dos pintores especialistas em mãos, pés, olhos, dourados, pregas de mantos, molduras, que trabalharam duramente em paredes de igrejas e palácios, crendo que melhor que sonhar uma obra de arte é realizá-la. Busca-se a assinatura do criador único a qualquer custo, por mais oculta que ela se encontre, mesmo debaixo das inumeráveis camadas de tinta do palimpsesto da história. Entre as nações tribais, bastava que um membro se desgarrasse dos costumes para ser punido com a expulsão ou a morte. A mitologia de todos os povos está repleta de heróis que padeceram na luta pela individuação. Quando uma sociedade se confronta com um artista, ela tanto pode aliená-lo de sua coletividade, como elegê-lo seu representante. Ao mesmo tempo em que ela cobra do artista que ele rompa com as regras, transgredindo, extrapolando, derrubando muros, pune-o por essas transgressões. Surge a figura moderna do artista neurótico, perplexo e fragilizado, que não distingue o eterno do descartável, porque também não lhe interessa a distinção. Tudo é consumido numa velocidade alucinante. O novo envelhece em poucas horas, criam-se outros simulacros, as prateleiras são repostas. O artista se transforma em fabricante de escândalos, em alucinado. Confunde-se arte e produto, poesia e escracho, êxtase e exposição da imagem. E o atributo de loucura serve apenas à ambígua função de justificá-lo e execrá-lo. • Continente dezembro 2005

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TRADIÇÕES Ilustrações: Klévisson

Quixote & Cancão de Fogo Pequena editora do Ceará lança caixa com folhetos do grande poeta Leandro Gomes de Barros e versão de Dom Quixote em cordel Homero Fonseca

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poeta Leandro Gomes de Barros está para a literatura de cordel, mutatis mutandis, como Miguel de Cervantes Saavedra está para a literatura universal. Se o genial espanhol fundou o romance moderno com seu Dom Quixote, o paraibano é considerado o pioneiro dos folhetos rimados no Nordeste. Ambos construíram uma obra assentada, em grande parte, nas tradições populares de sua época e seu país. As semelhanças acabam aqui, habitando cada um a margem oposta da fronteira que separa, arbitrária e difusamente, a dita cultura erudita da chamada cultura popular. O que os une neste momento, além daquelas semelhanças significativas, são dois lançamentos da editora cearense Tupynanquim, coordenada pelo poeta e desenhista Antônio Klévisson Viana, nascido em 1972. Um é uma edição especial para colecionadores (apenas 500 exemplares) de uma amostra expressiva da obra de Leandro Gomes de Barros (Pombal, PB, 1865 + Recife, 1918), em comemoração aos 140 anos do seu nascimen-


TRADIÇÕES

Leandro Gomes de Barros, criador do célebre personagem Cancão de Fogo, foi um poeta prolífico, que produziu entre 600 e 1.000 folhetos e romances rimados

to. São 12 folhetos, acondicionados em uma caixeta de papelão, com capa em preto e dourado, onde se destaca uma xilogravura da face do grande poeta, de autoria de Klévisson. Os títulos são: Juvenal e o Dragão, O Cavalo que Defecava Dinheiro, O Testamento do Cachorro, A Vida de Pedro Cem, Casamento e Divórcio da Lagartixa, O Cachorro dos Mortos, Meia Noite no Cabaré, A Sogra Enganando o Diabo, A Donzela Teodora, A Vida de Cancão de Fogo e seu Testamento (em dois volumes), além do folheto Leandro Gomes de Barros – O Pioneiro da Literatura de Cordel, do mesmo Klévisson. Desses, dois – O Cavalo que Defecava Dinheiro e O Testamento do Cachorro – inspiraram Ariano Suassuna na criação de três dos mais marcantes e engraçados episódios da sua obra-prima Auto da Compadecida. Já o personagem Cancão de Fogo faz parte da progênie de heróis picarescos, remotamente inspirados em “Ulisses” e da qual faz parte outro personagem de cordel, João Grilo, também aproveitado por Ariano. Apesar da exigüidade da coletânea, seu interesse está na variedade de estilos e gêneros, que vão do picaresco ao épico. Leandro, criador do célebre personagem Cancão de Fogo, foi um poeta prolífico, que produziu entre 600 e 1.000 folhetos e romances rimados, numa época em que os livrinhos toscos eram a principal fonte de fruição poética da imensa maioria da população do Nordeste, com tiragens que se contavam na casa das dezenas de milhares. O outro lançamento da Tupynanquim, este em parceria com a pernambucana Coqueiro e a também cearense Edições Livro Técnico, é uma revista de 30x20cm com 48 páginas – As Aventuras de Dom

Quixote em Versos de Cordel – baseada na obra de Miguel de Cervantes, de Antônio Klévisson Viana, com ilustrações do autor, inclusive a da capa, esta em policromia. É uma adaptação, resumida, da novela cervantina, cantada em sextilhas e inserindo-se nas comemorações pela passagem dos seus 400 anos que tiveram efeito em todo o mundo no transcorrer deste 2005 que se vai. O poeta cearense faz esta proclamação: “Quem ler este livro tira / Algumas boas lições: / Quão imutável é o sonho / Para muitas gerações! / Dirá: “Quixote está vivo / Em nossas vãs ilusões!” Amém. •

Leandro Gomes de Barros – 140 anos, de Antônio Klévisson Viana, caixa com 12 folhetos, R$ 25,00. As Aventuras de Dom Quixote em Versos de Cordel, de Antônio Klévisson Viana, 48 páginas, R$ 25,00. Informações: (85) 3217.2891/9116.8296 e e-mail: kleviana@ig.com.br Continente dezembro 2005

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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

A fama de dois mestres Dois mestres certinhos em linhas tortas estilísticas de suas obras

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inguém resiste ao tempo, à imortalidade literária, ao encanto da intelectualidade, à sordidez de críticas liliputianas – ao torcer da cara colonialista –, à magia da idéia, senão os mestres da palavra que fica arraigada na tênue poeira dos calabouços da memória. Um era filho de pernambucano e outro da gema recifense. Gostavam de uma boa conversa, de requintadas cachaças-decabeça, adoravam músicas e saraus, varavam noites em grandes polêmicas quanto às publicações estrangeiras, ambos eram bairristas e acima de tudo nacionalistas. Ambos morreram. Os dois já foram festejados pela lembrança dos seus 100 anos e o terceiro das suas 90 primaveras de nascimento em 2002. Trilharam a fama que diferencia suas magnitudes para descarrilar na história da literatura brasileira. Sérgio Buarque de Hollanda (que faço questão de deixar com dois eles, contrariando seu desejo) soube, como ninguém, das raízes da nossa Pátria. Nelson Rodrigues sabia tanto das Raízes do Brasil de Sérgio, que deu chuteiras ao nosso patriotismo. Todos eram muito amigos, principalmente Gilberto Freyre e Sérgio, contrariando uma infinidades de boatos nos meios jornalísticos e literários, que insistiam em motivá-los, afastados por hipotéticas rusgas de vaidades. Pura invenção. E não foram poucas as vezes que se visitaram e ao mesmo tempo se preparavam, expectantes, para os encontros marcados. Apipucos e o centro da cidade, geralmente, eram os pontos favoritos dos três. Eram, enfim, muito parecidos quando se aboletavam entre os trinta copos de chope de trinta homens sentados, ao analisarem os trezentos desejos presos ou trinta mil sonhos frustrados – verso que popularizou e eternizou o poeta do azul Carlos Pena Filho pelas calçadas do Bar Savoy na avenida Guararapes do Recife. Certa ocasião, pelos anos 50, cinco mestres se enconContinente dezembro 2005

traram, separadamente, naquele reduto boêmio e das letras, da política e do futebol, das futricas e do fetichismo atento do frevo tão pernambucano de entronchar pernas. – Os cinco? Vôte! – protestaria o velho Ascenso Ferreira, com seu vozeirão de mil megatons, que fazia fumaçar o trem de Catende, danado de vontade de chegar lá. Sim, os cinco, porque não dispensavam Manuel Bandeira – o poeta maior – que ainda sabia onde ficavam o cais da rua da Aurora e a casa de dona Ninha Viegas, defronte da casa do seu avô, na nunca acabada rua da União, impregnada de sonhos e eternidades. Amigos, amigos, discussão farta sobre o dia-a-dia burlesco desfiante e desafiante do inimaginável caldeamento étnico do nosso povo primava o dia. Lá assistiram ao folião Mário Melo no passo do sábado de Zé Pereira, beliscaram Tolstoi como tira-gosto das pedras do caminho de Drummond e molharam a goela com o licor de pitanga de Gilberto Freyre. Quem sabe, lá combinaram um pomposo reencontro nas praças do Derby do paraíso? Provavelmente. E agora estão falando do Recife, suas origens, do maracatu, das senzalas, do coco e maxixe. Todos juntos, onde só se fala de alegria, da ironia da crônica com pitadas do humor negro e ferino que escandalizaram suas respectivas épocas. Dois mestres certinhos em linhas tortas estilísticas de suas obras. Se, por um lado, Sérgio Buarque cauterizava-se como um mestre historiador, sem nenhuma conta a pagar de Diderot, pelo outro, Nelson Rodrigues se consagrava como o mestre da crônica tragicômica do teatro da vida brasileira – deixando Molière mordendo as trombetas de Gabriel. Os dois viraram mitos. E deixaram legados primorosos – seus filhos. Resumindo, Nelsinho nunca deixará de ser o filho de Nelson, e Chico (para mim, o maior poeta da música brasileira) será sempre o filho de Sérgio. Cada um criou a sua fama. Cada um virou uma chama. E bota labareda nisso!... •


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