Continente #080 - Mestre Salú

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Rodrigo Lôbo

EDITORIAL

Mestre Salú e o vaivém das culturas

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escritora, antropóloga e crítica de arte Lélia Coelho Frota, analisando a importância da arte popular, observou que “hoje, estudiosos consagrados da história das mentalidades, como Peter Burke e Carlo Ginzburg, demonstram que sempre houve, na Europa moderna, uma circularidade, um vaivém, um permanente movimento de mão dupla, de ‘subida’ e ‘descida’ extremamente enriquecedor entre os níveis da ‘cultura alta’ e a do ‘povo comum’ ”. Os modernistas, à frente Mário de Andrade, encabeçaram, no Brasil, a percepção de que a arte popular, num país onde era – e é – comum o preconceito da “elite culta” contra a produção literária, musical ou plástica do povo, integra um corpo coerente com a chamada “alta cultura”, representando a diversidade existente no imaginário da sociedade. Essas considerações vêm a propósito da matéria de capa desta edição, enfocando o Mestre Salú, um ex-cortador de cana, analfabeto até os 18 anos, que aprendeu com o pai, João Salustiano, além do duro ofício na agricultura, a arte de tocar rabeca (espécie de violino rústico) e a “brincar” o cavalo-marinho. Manuel Salustiano aprendeu a ler para escrever cartas às namoradas, mas esta habilidade possibilitou a ele registrar suas composições

e descortinar horizontes mais amplos às suas atividades de artista – tem comunidade no orkut, com 565 membros, e já andou por vários países. Além de tocador de rabeca, luthier, compositor e mestre do folguedo, Mestre Salú é influenciador reconhecido de uma geração de artistas de Pernambuco, como Chico Science, Siba e Silvério. Mestre Salú acaba de lançar seu segundo disco, o CD A Rabeca Encantada e comanda, com notável tino prático, uma família de músicos e artistas, congregados num espaço próprio, a Casa da Rabeca, na Cidade Tabajara, Olinda, visitada por artistas e turistas. O Documento desta edição é dedicado à vida e à obra de Oscar Niemeyer, o último grande arquiteto vivo do Movimento Moderno e um dos maiores do século 20, que completará 100 anos em dezembro. Niemeyer tem empreendido, em todos esses 70 anos dedicados à Arquitetura, uma defesa da necessidade e importância da beleza e da liberdade formal e criadora. Muitas vezes malcompreendido, afirmou: “a função não é menos importante do que a estética. Podem-se ter as duas coisas”. São mais de 500 obras e projetos no Brasil, Europa, Ásia e África. Para a geração modernista do Brasil, Niemeyer ainda hoje é um ícone da afirmação da arquitetura brasileira no cenário internacional. • Continente agosto 2007

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Divulgação

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CONTEÚDO Imago/Divulgação

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A alegria de pintar, em José Cláudio

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Natalie Potman em cena do filme As Sombras de Goya

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CONVERSA

ARTES

04 O cineasta Marcelo Gomes e sua identidade cultural

42 A arte lúdica e telúrica de José Cláudio 48 Os 100 anos das Senhoritas de Avignon

com o sertão

BALAIO

CULTURA

10 Três perguntas para J. Borges

54 O debate em torno do conceito de "morte do Autor"

CAPA

CINEMA

12 Mestre Salú e sua rabeca encantada

58 Goya e os fantasmas da Inquisição

18 Artista popular sem “síndrome do coitadinho” 20 No segundo disco, a marca da qualidade

CÊNICAS

AGENDA

68 Cia. do Latão atualiza Brecht, no Brasil 72 As relações de Barthes com o teatro

24 Fabiana Pirro e Mariz Garcez em Dom Quixote

MÚSICA

LITERATURA

74 Antigos tratados ajudam a achar os sons medievais

28 A vida e a obra do escritor gaúcho Moacyr Scliar

78 Coletânea resgata vida e obra de Benedito Lacerda

31 Paraíba de revoluções e literatura 32 A carne rasgada no novo romance de Raimundo Carrero 34 Amor divino e sexo profano em Manuel Bandeira 36 Prosa: solidão e tristeza se alastram devagar 38 Poemas de Yeda Prates Bernis 39 Festival Recifense de Literatura se abre para o humor 40 Agenda Livros

80 Agenda Discos

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TRADIÇÕES 84 O que Shakespeare bebia no folclore

DOCUMENTO 89 O centenário de um gênio: Oscar Niemeyer


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CONTEÚDO Divulgação

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Betânia Uchôa-

Cia. do Latão atualiza Brecht

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Oscar Niemeyer, perto dos 100 anos

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Colunas

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 26 O poeta, os marginais e a web

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 52 As interpretações do quadro As Meninas

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 64 Pratos que entram e saem de moda

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 67 A previsão do Cardeal Arns

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 82 Os quase-mortos, vítimas da violência

METRÓPOLE|Marcella Sampaio 88 A dualidade de uma jovem banda

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CONVERSA

MARCELO GOMES

“O sertão é um bom lugar para se compreender o Brasil” O roteirista e cineasta Marcelo Gomes fala de cinema nacional, de identidade cultural e de sua relação com o sertão Marcelo Costa

E

m 2005, um filme de nome estranho, Cinema Aspirinas e Urubus, ganhou as telas de cinema e chamou a atenção do público e da crítica especializada internacional. Por trás do projeto, um cineasta pernambucano estreante em longa-metragem, cuja persistência o levou a esperar sete anos para vê-lo pronto. Com um cinema minimalista e centrado no elemento humano, Marcelo Gomes se firmou no cenário nacional como realizador e co-roteirista de importantes trabalhos, como Madame Satã e O Céu de Suely, em parceria com o diretor Karim Ainöuz. Numa conversa informal na Fundação Joaquim Nabuco, onde exibia filmes autorais num cineclube, o cineasta investigou o cinema nacional, mostrou-se eloqüente ao falar do cinema autoral e verbalizou sua aflição quanto ao sertão nordestino. Curioso a respeito do mundo, exaltou o cinema para a compreensão da questão da identidade e do choque cultural que remete a uma citação do escritor Jorge Luís Borges: “Nossos tempos se confundirão e a cronologia se perderá num orbe de símbolos”. Qual a sua avaliação do atual cenário do cinema brasileiro? O cinema brasileiro tem mantido uma produção muito regular; o que é interessante, porque o artista só amadurece produzindo. Mantendo-se as formas de financiamento e as produções, os cineastas se desenvolvem, aperfeiçoam a linguagem e o pensamento cinematográfico. Outra coisa importante é que atualmente existem mais diretores preocupados em fazer cinema de autor, contrapondo-se a um cinema comercial, muito influenciado pela televisão: minisséries ou programas de TV se transforContinente agosto 2007

mam em filmes ou diretores do veículo migram para o cinema e trazem os atores em um formato televisivo. Você vê os filmes do Karim Ainöuz, do Cláudio Assis, do Paulo Caldas, do Lírio Ferreira, posso incluir o meu também, o Bressane continua a fazer cinema autoral desde a década de 70. O que me deixa contente é que esse cinema está tendo uma aceitação no mercado exterior, em festivais de cinema e sendo comprados por outros países. O cinema nacional, em termos de produção, está vivendo um momento muito positivo. É uma pena que ele não repercuta na distribuição e na exibição. Existem muitos filmes nacionais que não encontram distribuidor e outros tantos que encontram distribuidor, são lançados e têm uma bilheteria pífia. Apesar do sucesso de crítica e de carreiras internacionais, muitos desses filmes não atingem o grande público no Brasil. Quais os entraves para que esse diálogo aconteça? Um dia eu convidei a empregada de minha amiga para ir ver meu filme. Ela disse que não ia vê-lo porque só estava passando em shoppings, lugar de rico. Isso é uma questão importante. Nos anos 70, o cinema tinha o preço de uma passagem de ônibus. Existiam cinemas de bairro e salas de exibição no centro da cidade. Hoje em dia, eles se restringiram aos shopping centers e o preço do ingresso é extremamente abusivo para uma classe mais baixa. O cinema virou uma diversão das classes média e alta. Além disso, há a concorrência do vídeo, do DVD e a pirataria que não existiam nos anos 70. Há a violência social e o medo de sair de casa à noite. Então, tem menos gente indo ao cinema. Se popularizarmos o cinema em relação ao valor do ingresso e ao acesso – qualquer cidade de 100


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CONVERSA Fotos: Divulgação

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Eu acho que o sertão é uma incógnita. O sertão é um lugar que nos aflige porque desconhecemos

Os críticos e teóricos de cinema levantam essa questão, mas obras mais comerciais como o próprio Carandiru e Cidade de Deus também são sobre exclusão. Nós, cineastas pernambucanos, sempre fomos excluídos. Era muito difícil conseguir apoio para os nossos curtas e um longa era algo inimaginável há 10 anos. Então, essa questão termina influenciando a nossa obra, por estar presente no nosso cotidiano enquanto brasileiros e enquanto cineastas. Mas, a meu ver, existem outros temas recorrentes, como os embates culturais que a sociedade brasileira vive, desde os anos 20. Tudo é estrangeiro porque é o tupy or not tupy, Há uma nova safra de filmes – na maioria fora do ei- mas ao mesmo tempo não é. É interessante perceber que xo Rio-São Paulo – que tem se destacado por tratar de no Baile Perfumado existe um personagem estrangeiro, personagens marginalizadas, numa narrativa realista e assim como no meu filme. E há também, em outro senso, visceral. Você acredita que esse cinema nasce um pouco o personagem estrangeiro àquela situação, como em O do rancor da exclusão, da dificuldade de produzir? Invasor, do Beto Brant. Essa questão também está muito

mil habitantes tem um cinema – a gente tem chances de aumentar a bilheteria de nossos filmes. No México e na Argentina a população é metade da brasileira e tem mais cinemas do que no Brasil. Ainda existe o preconceito dos exibidores, distribuidores e mesmo do público em relação ao cinema brasileiro. Tem gente que acha que os filmes nacionais têm som ruim, mas a técnica do som brasileiro está bem melhor, porque as condições de produção são outras. Tem exibidor que não exibe filme nacional porque diz que na sala dele as pessoas vão para ouvir em inglês.

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CONVERSACONVERSA raciais. No início, esses dois personagens não se toleram, porque existe uma diferença cultural muito grande, mas eles desenvolvem a tolerância da amizade. Isso dá ao filme um apelo universal e talvez justifique sua aceitação. Ao mesmo tempo, é engraçado porque o filme fala de minha aldeia. Foi o meu tio-avô que me contou aquela história no quintal da casa dele. Mas Fernando Pessoa já dizia: quanto mais regional você é, mais universal você parece. O rio que corre em minha aldeia é diferente do rio que corre na sua aldeia, mas são rios que correm. A questão da identidade cultural também está presente no seu próximo trabalho, Carranca de Acrílico AzulPiscina. Como surgiu esse projeto? Eu e o Karim conversávamos muito sobre o sertão, um tema que nos afligia: pessoas vivendo no semi-deserto, uma confluência de ícones culturais, da antena parabólica ao carro de boi. Fizemos o projeto, cujo título já carregava um símbolo: a carranca, um elemento arcaico da cultura nordestina. Como seria uma carranca convivendo com o acrílico, um elemento da cultura industrial, e o azul-piscina, uma cor fosforescente, também industrial, pós-moderna. Como é a junção desses elementos, essa modernização esdrúxula que o Nordeste estava vivendo? Uma encruzilhada cultural influenciada por elementos da cultura arcaica e da cultura moderna. O sertão, a região Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha: o sertão como ponto de partida mais isolada do Brasil. A gente mandou o projeto para o Itaú Rumos e eles deram dinheiro para desenvolvermos presente na sociedade brasileira. É uma forma de um roteiro de documentário. Viajamos com uma equipe compreendê-la em suas influências de tantas vertentes. reduzidíssima e filmávamos recortes que nos emocionavam ao mesmo tempo em que roteirizávamos. Fizemos A sua filmografia é muito voltada para essa questão da um média-metragem e agora estamos tentando captar identidade e do choque cultural. Cinema Aspirinas e Uru- dinheiro para um longa desse material, que tem sete horas bus foi exibido em vários lugares distintos do mundo. A de duração. Vai mudar a abordagem, porque houve um que você atribui a boa receptividade do filme em processo de maturação do material e nosso. Talvez o título contextos tão diversos? mude e o percurso do filme seja adaptado para o longa. A uma questão muito importante no cinema: a identificação do público com o personagem, com a experiência O sertão volta como personagem e desde o ciclo do que ele está vivendo. Existe uma identificação profunda cangaço e de obras chaves do Cinema Novo – Vidas Secas com os dois personagens, o que leva as pessoas a gostarem e Deus e o Diabo na Terra do Sol – está no inconsciente do filme, a entendê-lo e a reagir em relação a ele. Na ver- coletivo do cinema brasileiro. A que você credita isso? dade, ambos os personagens estão saindo do seu sítio, da Eu acho que o sertão é uma incógnita. O sertão é um sua cidade e tentando encontrar uma vida melhor em lugar que nos aflige porque desconhecemos. É um lugar outro lugar. Isso é universal; todo o ser humano quer uma onde existem vazios espaciais, pessoas morando a quilôvida melhor. Além disso, são duas pessoas com pontos de metros de distância, umas das outras. E nós somos filhos vistas diferentes, mas que constroem uma amizade a da sociedade da profusão: profusão de ícones; do outdoor, partir da tolerância. A intolerância do mundo é uma ques- do comercial, da televisão, dos milhões de canais de TV. tão muito recorrente. Você vê brigas religiosas, políticas, A gente vive numa sociedade urbana, onde a profusão é Continente agosto 2007


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CONVERSA mais do que necessária. Então, essa rarefação de vestígios da civilização nos aflige, mas é uma aflição boa, carregada de doçura, porque o sertão é doce e também é seco. Então é esse habitat que nos inquieta e nos dá curiosidade para investigar. Não é à toa que muitos artistas tomaram o sertão como elemento de inspiração para compreender o Brasil. É um Brasil tão puro, tão real, tão destituído de diferentes elementos que vêm de culturas outras que se mesclam. É um bom lugar para se compreender o Brasil. O cinema verité e a narrativa simples centrada no personagem do neo-realismo parecem ser grandes influências. Pode-se dizer que você busca uma linguagem próxima da realidade? O Kiarostami disse uma coisa muito interessante quando fez o Close Up. Ao término do filme, as pessoas não sabiam se o personagem existia ou não, se era um documentário ou uma ficção. E ele dizia que não importava o processo para a construção daquele filme, o que importava era a verdade que existia dentro dele. É um pensamento que carrego no meu cinema. O filme não precisa ter necessariamente uma cara de cinema verité. Se tiver, melhor, mas o que dá a verdade é o sentimento presente nele. Você pode fazer um filme de ficção científica cheio de verdade e parecer até um documentário. Essa verdade a que o Kiarostami se referiu é o filme ser crível; é você acreditar no sentimento dele. É esse o tipo de cinema que eu quero fazer.

Que filmes, movimentos e cineastas foram definitivos para você fazer cinema e o influenciam no cinema contemporâneo? Eu decidi realmente fazer cinema depois de um curso com o Ismail Xavier sobre a obra de Glauber Rocha. Foi quando aprendi a redimensionar o cinema, problematizando e buscando diferentes leituras para o cinema dele; quando descobri que o cinema pode ser uma porta para compreender o mundo. Hoje me inspiram o cinema marginal, a Nouvelle Vague, o Cinema Novo, o Neo-realismo, o cinema asiático contemporâneo, o cinema documental e autoral francês. Acho que são diretores como Chris Marker, como o Tsai Ming Liang, o Wong Kar Wai, o Bruno Dumont ou a Lucrecia Martel. São autores a cujos filmes eu assisto e embora não os entenda completamente, instigam-me a pensar. É esse tipo de cinema que me influencia. No filme Depois da Vida, do Hirokazu Kore-eda, os personagens têm que eleger uma única memória para conviver com ela por toda a eternidade. Se você estivesse nessa situação, que imagem você escolheria para acompanhá-lo? A memória do mar. O som, a imagem e o prazer de um banho de mar. Talvez porque estou escrevendo muito sobre isso. E, afinal, o mar também é o útero, é a viagem inicial de qualquer ser humano. A água. •

Cena do filme Cinema, Aspirinas e Urubus

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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Flávio Chaves Diretor de Gestão Diretor Industrial Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte

Continente Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Flávio Chaves Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretores Editoriais Homero Fonseca e Marco Polo Diretor de Arte Ricardo Melo Editores Eduardo Cesar Maia e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Hallina Beltrão e Vivian Pires Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Gabriela Lobo, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Gestor de Marketing e Publicidade Calazans Neto Gestor Gráfico Júlio Gonçalves Gestor Comercial Paulo de Tarcio Equipe de Produção: Aluísio Ricardo, Débora Lôbo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis e Roberto Bandeira Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

Agosto 2007– Ano 07 Capa: Roberta Guimarães/Imago

Colaboradores desta edição: ALEXANDRE FIGUERÔA é jornalista, crítico de cinema e doutor em Estudos Cinematográficos pela Universidade de Paris 3, Sorbonne Nouvelle. ANDRÉ DIB é jornalista. BETÂNIA UCHÔA CAVALCANTI-BRENDLE é arquiteta, PhD em Desenho Urbano, professora do Curso de Especializaçao em Intervençoes em Sítios Históricos da Faculdade de Arquitetura Damas, Recife, e do Mestrado de Arquitetura da Fachhochschule Lübeck. CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista. CLOTILDE TAVARES, paraibana de Campina grande, é teatróloga e ex-professora de Teatro no Departamento de Artes da UFRN. DANIEL PIZA é editor-executivo, colunista de O Estado de S. Paulo e escritor. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e As Confissões de Lúcio, entre outros. ISABELLE CÂMARA é jornalista. JOSÉ TELES é jornalista, escritor e crítico de música. KLAUS BRENDLE é arquiteto, urbanista e professor do Mestrado de Arquitetura da Fachhochschule Lübeck. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. MARCELO COSTA é jornalista PAULO GADELHA é desembargador federal do TRF da 5ª Região. RODRIGO DOURADO é jornalista, diretor teatral e mestrando em Comunicação Social pela UFPE. SAMARONE LIMA é jornalista e autor dos livros Zé e Clamor.

Colunistas: ALBERTO

DA

CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de

poemas, entre os quais Yacala; Dois Caminhos e Uma Oração; e O Cão de Olhos Amarelos. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARCELLA SAMPAIO é jornalista, mestre em Teoria da Literatura e professora universitária MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RONALDO CORREIA

DE

BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos

As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente agosto 2007


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CARTAS

Dança

Fiquei muito contente ao ler a matéria sobre o Recordança na Continente Multicultural! A matéria ficou muito boa, principalmente pelo pensamento desenvolvido sobre a memória da dança no país. É um prazer ver Chris Galdino contribuindo para o jornalismo cultural da cidade e colocando a cena de dança do Recife na pauta nacional Liana Gesteira, Brasília – DF

Valiosa Recebi pelo correio o exemplar de março da Revista Continente Multicultural. É um espaço muito valioso de que o Recife dispõe, já que estamos com falta de iniciativas sérias que tratem de cultura em nosso país. Aqui, em Porto Alegre, temos apenas um veículo que trilha esse caminho solitário, que é a Revista Aplauso. Parabéns a todos os colaboradores da Continente Multicultural, por ajudarem a manter acesa a chama da cultura, há sete anos ! Márcio Gobatto, Porto Alegre – RS Lollo Como sempre, Fernando Monteiro surpreendendo. Depois de “Coincidência e Probabilidade”, temos o artigo “Um Mito Chamado Lollo”. Não sabia da fotógrafa que habitava a atriz Gina Lollobrigida. Parabéns! Nara Tarsila, Natal – RN Sgt. Pepper Fico feliz por encontrar o disco Sgt.Pepper, na Continente. O registro não podia faltar! André Luiz Silva, Rio de Janeiro – RJ

Filha do Teatro Não poderia deixar de registrar meu encantamento com o texto de Alexandre Figuerôa sobre a peça a Filha do Teatro, de Luís Reis. Fazia muito tempo que não encontrava uma crítica tão instigante, feita logo após a experiência estética, “movido pela emoção”, como explica o autor. Figuerôa fundamenta seus argumentos e passa ao leitor o sentimento que viveu naquele momento. É esse o tipo de crítica cultural que queremos ler, que merecemos ler. Depois dessa leitura, não deixarei de assistir ao espetáculo. Parabéns ao autor e à Continente por abrir espaço para textos desse nível. Clara Maria Andrade, Recife – PE Novos talentos Gostaria de dar os parabéns a todos os que fazem a Revista Continente. Talvez os editores pudessem dar oportunidade a outros talentos, através da criação de uma secção na qual outras pessoas pudessem colaborar. Beatriz Montenegro, Recife – PE

Hermilo A Continente do mês de julho está muito boa, principalmente o Documento que fala sobre este gênio do teatro e da literatura pernambucana Hermilo Borba Filho. A Revista está excelente, mesmo com tímida matéria sobre o Sgt. Pepper. Flávio Magalhães, Sertânia – PE

Errata Na edição de junho, página 95, a foto retrata a Semana de Cultura de Sertânia e aparecem Hermilo Borba Filho, Leda Alves, Pinto do Monteiro e Samuel Pereira (o Gato Velho, parceiro de Pinto do Monteiro por muitos anos e pai do violeiro e cordelista Gato Novo, residente em Sertânia). O diretor do espetáculo Auto da Compadecida, premiado no I Festival de Amadores Nacionais, em 1957, foi o diretor pernambucano Clênio Wanderley e não Hermilo Borba Filho, como foi informado na mesma edição, página 93.

Arquivo Continente “Tenho total desprezo pelo que é feito nas academias” Falo com o leitor ou com o aluno como se o conhecesse, de forma direta, como se já tivéssemos nos encontrado e passado muitas horas juntos. Falo com o leitor como falo com um amigo. Com total desprezo pelo que é feito nas academias" . “Memórias Póstumas de Brás Cubas foi traduzido como Epitaph for a Small Winner, uma tradução lamentável. O livro agora tem uma boa tradução, mas, na época, com aquela tradução, eu não podia fazer idéia da grandeza do livro."

"Ler é resgatar na obra o que desde sempre pertence ao leitor. Como disse Emerson, em toda obra de gênio encontramos os nossos próprios pensamentos, que uma vez rejeitamos, e que agora brilham em nova roupagem." "Recebi um livro com ensaios escritos por pessoas que nem conheço, chamado O Shakespeare de Harold Bloom. São peças de abuso e vituperação escritas por feministas, marxistas, neo-historicistas, seguidores das epidemias francesas, como eu as denomino. (Harold Bloom, Continente Multicultural, n°17, maio de 2002)

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Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

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Imagens: Reprodução

BALAIO

EQUIPE CONTINENTE E COLABORADORES

POETAÇOS

EÇA VEREADOR

Certo empresário, amigo do mineiro Carlos Drummond de Andrade e do pernambucano João Cabral de Melo Neto, foi surpreendido, durante entrevista na televisão, por uma pergunta capciosa: "Quem o senhor acha que é o maior poeta brasileiro: Carlos Drummond ou João Cabral?" Pernambucano, o empresário saiu da saia justa com uma resposta mineiríssima: "Drummond é o maior; mas Cabral é o melhor". (Marco Polo)

Eça de Queiroz recebeu um voto para vereador do Recife nas eleições de 1945. A deliciosa história está no livro A Cidadela do Espírito, de Dagoberto Carvalho Junior. Naquele ano, comemorava-se no Brasil e em Portugal o centenário do nascimento do escritor. Cartazes celebrando a data misturavam-se nas ruas à propaganda eleitoral. Os jornalistas Nilo Pereira e Silvino Lopes olhavam a galeria de candidatos, quando um desconhecido perguntou a Silvino em quem deveria votar. Por gaiatice, ele apontou o retrato de Eça na parede. Apuradas as urnas, saiu um voto naquela sessão para o grande romancista. (Homero Fonseca)

ZAPEANDO Acho que tem a ver com o ethos americano: quem zapear (pular de um a outro canal) pelos filmes americanos exibidos pelas televisões, deparar-se-á com uma seqüência de cenas onde se alternam um beijo e um assassinato. É infalível. Seria uma vulgarização dos conceitos de Eros e Tânatos? (HF)

AS HORAS DE TOLENTINO, OU O ANOITECER MENESES DO POETA... Dia 1º de setembro, Antonio Morreu no dia 27 de junho um intelectual de estirpe rara no país em que vivemos – a daqueles que não precisam de patotas para legitimar o que pensam.(Eduardo Cesar Maia) Abaixo, um poema em homenagem ao poeta e tradutor carioca.

Meneses celebrará seus 50 anos no Rio com a Sinfônica Brasileira (mas os parabéns são no dia 23 deste mês). No repertório, o concerto para cello em si menor de Dvorak e a estréia mundial de Edino Krieger. (Carlos Eduardo Amaral)

Bruno Tolentino no caminho de Beatriz Astier Basílio aos teus pés se apresenta o último círculo. A capela em que entram é uma neblina. Há rumores com túnicas, onde os livros são escritos à mão. O chão que pisas não permite sandálias, nem recibos. Nenhuma réplica, ali não há galeria as imagens são seu espelho e mito, são vivos os vitrais nesta Sistina onde a idéia se faz em pedra e signo. Entre incensos os pés de Deus caminham como um vento a chamar cada escolhido. Uma porta se sabe, outra adivinha-se. Cumprimentas os anjos em sua língua. O teu nome é chamado. E o resto é abismo. Continente agosto 2007

RARIDADE Uma gravação do concerto para violino de Henrique Oswald (1852-1931) – guardada num estúdio em Petrópolis (RJ) – espera, sem previsão, patrocínio para ser lançada. A obra é do mesmo patamar de um Tchaikovsky ou um Mendelssohn. (CEA)

CREPÚSCULO? “A falta de resposta também é uma resposta.” Ditado alemão

Sem nenhum lançamento anunciado no seu site (desde o final do ano passado), teme-se que a pernambucana Aurora DVD esteja a caminho de encerrar sua carreira de produtora empenhada em colocar filmes, artisticamente importantes, num mercado praticamente dominado pela oferta de filmes descartáveis. A Aurora começou muito bem, com obras clássicas nunca antes disponibilizadas no Brasil – inclusive em VHS – e algumas caixas temáticas ou de cineastas como o polonês Andrej Wajda. Espera-se que a Aurora continue, depois do crepúsculo deste meio ano. (Fernando Monteiro)


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KYOTO DA CULTURA

CINEMA FRANCÊS

No Seminário Internacional sobre Diversidade Cultural: Práticas e Perspectivas, realizado no mês de junho, em Brasília, o ministro da cultura Gilberto Gil propôs um "Protocolo de Kyoto" da cultura: "Talvez cheguemos à conclusão de que níveis de uniformização e homogeneização no mercado cultural são mensuráveis como níveis de monóxido de carbono no ar. Devemos, a partir de agora, interpretar a qualidade de vida de nossos povos de forma mais ampla, incorporando desde já o acesso à cultura como parte da sua avaliação geral". (Mariana Oliveira)

Segundo o francês Jean Galard, filósofo, ensaísta e ex-diretor cultural do Museu do Louvre, as medidas tomadas pelo governo francês no âmbito do financiamento da cultura já surtem efeitos concretos. Em abril deste ano, o Centro Nacional de Cinematografia revelou que, em 2006, pela primeira vez em 10 anos, os filmes franceses conquistaram mais bilheteria (84,29 milhões contra 83,33 milhões) que os filmes norte-americanos no país e a freqüência nas salas da França cresceu 7,5%. (MO)

“Existem os que escrevem versos por serem poetas e os que são poetas por escreverem versos.” Albert Thibaudet

OTIMISTA O poeta Charles Baudelaire não era uma alma simples. É dele a frase: "O mundo não marcha senão pelo mal-entendido. É pelo mal-entendido universal que o mundo inteiro se entende. Pois se, por desgraça, os homens se compreendessem, não poderiam jamais entender-se". Está no livro de poemas Mon Coeur Mis à Nu que no Brasil já se chamou Meu Coração Desnudado (Nova Fronteira) ou Meu Coração Posto a Nu (Nova Aguilar). (Fred Navarro)

CONTRA-ESPIONAGEM O livro My Silent War, do superespião Kim Philbi, conta que durante a 2ª Guerra Mundial, Lisboa era um verdadeiro ninho de espiões. O governo inglês, que se achava dono do pedaço, resolveu protestar e exigir medidas contra os espiões nazistas. O ministro português da pasta dos Negócios Estrangeiros, mister Sampaio, respondeu-lhe que pouco podia fazer e concluiu com uma reflexão que deixou o representante de sua majestade bestificado e fez a alegria do escritor, que a classificou de gem of diplomatic logic: "Não sei por que os países beligerantes ainda se empenham em fazer espionagem. Se ao menos todos os governos deixassem de praticar a espionagem e se concentrassem, unicamente, na contra-espionagem, ninguém poderia reclamar". (Duda Guenes, de Lisboa)

Talitha Corrêa

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PERGUNTAS A J. BORGES

1 - Maria Alice Amorim, jornalista e pesquisadora: onde vivem e quem são os outros artistas da família Borges? Quase todos os artistas da família Borges vivem em Bezerros, como eu. Meu pai era agricultor e minha mãe doméstica, só sabiam tirar leite de cabra e lidar com a foice. Quem despertou primeiro para a arte na família mesmo fui eu. Depois disso, sobrinhos, irmãos e filhos aprenderam. Os Borges não têm, portanto, a arte no sangue, nem são diferentes por isso; eles têm a tradição que começou comigo e foi sendo transferida aos outros. 2 - Jaci Bezerra, poeta: o que você acha dos anjos e de Deus? Eu sou anti-religioso, não acredito em religião nem nesse "Deus do povo". O Deus em que acredito é diferente. Uso a figura dele, a de santos e anjos porque agradam às pessoas. Gosto de trabalhar tratando o gosto e o sentimento popular. Em primeiro lugar, coloco a imagem da mulher nas minhas obras; em segundo, a do diabo, porque as pessoas temem e ou têm curiosidade sobre ele; e em terceiro a dos santos, porque o público admira. 3- Rinaldo Silva, artista plástico: por que um artista como você ainda não fez uma grande exposição num grande museu? Acho que ainda não fui convidado para uma grande exposição por preconceito e desvalorização. Sou de Pernambuco, e santo da terra não faz milagre. As verbas governamentais nunca são realmente direcionadas a artistas populares. Se para pequenas feiras e investimentos eu nunca consegui a estrutura necessária, avalie a dificuldade para se montar uma grande exposição em um grande museu , como eu gostaria de fazer. Tenho todo o material para isso, o que falta é investimento.


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A rabeca encantada de MESTRE SALÚ

Ex-cortador de cana, analfabeto até os 18 anos, Manuel Salustiano, rabequeiro,

compositor e luthier, lança seu segundo disco, reconhecido como influenciador de Chico Science, Siba e Silvério, entre outros músicos pernambucanos Samarone Lima Fotos: Roberta Guimarães/Imago

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arcar uma entrevista com Manoel Salustiano Soares, o “Mestre Salú”, um dos artistas populares mais famosos de Pernambuco, não é tão fácil. O caminho é fazer duas ligações para um de seus 15 filhos, Pedro Salustiano, que avisa de antemão que o pai está com a agenda cheia, e pede para ligar dois dias depois. Você espera, ele finalmente diz o dia e a hora. O local não poderia ser outro. A Casa da Rabeca, na Cidade Tabajara, Olinda. Se você não conhecer o caminho, siga as placas. Se não seguiu as placas direito, é só perguntar pela casa do Mestre Salú, ou “Casa da Rabeca”, que todo mundo sabe informar. É num terreno de quatro hectares, democraticamente organizado para caber a família, os filhos, o pai e o local de shows, que vive o Salustiano mais conhecido de Pernambuco. Um homem de 62 anos, bem-aprumado, de sorriso fácil, que vai tocando a vida sem muito aperreio. Ainda está dormindo na hora da entrevista agendada , às 15 horas de um sábado. É salutar não ter pressa para acordá-lo, porque os aperreios, e muitos, ele já viveu.

Agora, vai apenas tangendo a vida com tudo o que conquistou – e não foi pouco. Salustiano acorda perto das 15h30 e vem devagar, ao seu estilo. Sandália simples, um calção de jogador de pelada do subúrbio e um puído chapéu de palha. O marcapasso no coração já completou 17 anos, ele nem liga mais. Por enquanto, 15 filhos, 24 netos – falta um para completar a numeração do jogo do bicho, brinca. Defronte à sua casa, está o seu Siena prata, quatro portas, novinho em folha, com ar-condicionado, vidro elétrico, direção hidráulica, essas coisas que, para um classe média urbano, não fazem parte do desejo de consumo de um artista popular. Esse homem que diz não saber nem o “i” de internet, tem comunidade no orkut, com 565 membros e já andou por vários países, com seu pequeno instrumento, de quatro cordas. É considerado o grande influenciador de uma geração de artistas de Pernambuco: Chico Science, Siba, Silvério, fora o apreço de outros mestres como Ariano Suassuna, que fez a apresentação do CD O Sonho da Rabeca, de 1998. Depois, Salustiano iria se tornar secretá-


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CAPA rio-adjunto de cultura de Arraes, na Fundaj. Ele sai de casa, vem com a filha mais nova, Beatriz, de quatro anos, nos braços. Ela já toca rabeca, pandeiro e triângulo, e já pediu ao pai para comprar uma zabumba. Salú chega para conversar, com aquela cara de quem dormiu muito, e bem. Melhor, uma cara de quem anda dormindo bem. Então você percebe que ele tem alguma coisa diferente, mesmo naquela simplicidade toda. Aos 62 anos, ele chegou lá, algo como “o pulo do gato”. O pai, João Salustiano, de 89 anos, depois chega para a conversa, vê o filho todo desenrolado, e admite: “O entendimento dele foi outro”. A história tem até um pré-roteiro, desses que a TV adora mostrar em especiais, sobre artistas ou jogadores que vencem a pobreza e se tornam conhecidos. João Salustiano, cortava cana durante a semana, no Engenho Oiteiro Alto, Aliança, e tocava rabeca aos sábados. Mais que isso, era respeitado na região. O pequeno Manoel aguardava o sábado para descansar, mas o que queria mesmo era aprender a tocar rabeca e brincar o cavalo-

marinho, sua grande paixão. Aos sete anos, estava cortando cana, limpando mato, carreando, cambitando. Findou por aprender a arte do pai, e poderia seguir naquele mesmo rumo, mas decidiu que precisava fazer diferente, para não passar o resto da vida em meio aos canaviais. Em 1965, resolveu morar em Olinda. Foi o primeiro passo, mas não foi o pulo. Quem dá um passo, como dizia Chico Science, não está no mesmo lugar. Quem dá um pulo, sai temporariamente do chão. O pulo do gato – Que Salustiano é um homem com uma vasta carga de conhecimento da cultura popular, é unanimidade. Mas um elemento foi fundamental para que ele conseguisse passar de ex-cortador de cana, explantador de milho e feijão, ex-vendedor de picolé e exmotorista, para se tornar o que denomina “o homem dos sete instrumentos”, elogiado no Brasil, onde se apresenta, e no exterior. Ele se apoderou de uma ferramenta que, até pouco tempo, não entrava no currículo dos mestres da cultura popular – o domínio da escrita.

Folguedo no espaço Casa da Rabeca, em Olinda

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CAPA A grosso modo, foi uma pequena mudança de tradição, que não quebrou a antiga, mas abriu caminhos para o homem estar sossegado, na Cidade Tabajara, e sua arte rodar pelo mundo, seja com seu próprio trabalho, seja pela influência numa geração de artistas de Pernambuco, que fazem questão de reverenciá-lo. Vindo da tradição oral, ele achou que precisava escrever e ler. “Até os 18 anos, eu era analfabeto. Quando vim para a cidade, já estava interessado em estudar. Meu pai tinha o dom de dançar, tocar, mas não estudou”, diz. Um dos motivos principais do interesse pela escrita estava ligado com as artimanhas do bom namorador. “Eu estava doido para namorar, e precisava escrever cartas para as moças. Fui logo cuidar disso”, lembra. O homem namorou muito, teve muitos filhos, mas a escrita serviu para registrar suas composições. No lugar de repetir, começou a criar. Ele, que é um homem simples, fez o mais simples. Entrou num supletivo. Com três meses, já estava escrevendo seu nome. Notou que as coisas estavam mudando mesmo quando olhou para o rótulo de uma garrafa de cerveja e descobriu que estava escrito “Brahma”, e que, pela primeira vez, soletrou a palavra. “Eu lá sabia o que era isso?”, conta. Depois, começou a andar de ônibus sem precisar perguntar o destino aos outros. “Isso foi

uma liberdade”, confessa. O pai acompanha com um sorriso de orgulho o filho falante, desenrolado. “Ele pegou a leitura, e foi muito melhor. Como eu não sabia ler, fiquei por ali”, diz. Foram apenas três anos de estudo, o suficiente para aprender a ler e escrever. Depois, nunca mais pisou na escola, porque era o que bastava. “Quando a gente não sabe ler, fica que nem cego, vendo pelos outros”. Hoje, ele já faz até graça com o excesso de conhecimento que não incorpora a sabedoria do viver. “Vou para debate sobre cultura popular, o povo chega com caderno, planilha, uma conversa danada, eu só levo meu chapéu de palha e dou de 10 a zero”. Depois arremata: “Eles só falam o que está na internet, nos livros, mas não vivem. Eu sei falar da importância da minha vida, das coisas do dia-a-dia”.

Silvério Pessoa: sem “síndrome do coitadinho”

Siba: influência reconhecida

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Lições do mestre – “Ele é uma lição para todo mundo. Desmistifica essa imagem que a cultura popular é coisa do pobrezinho, que a gente tem que ter pena. Ele superou suas dificuldades. A síndrome do coitadinho da Zona da Mata não existe mais”, diz Silvério Pessoa, um dos muitos artistas que foi em busca da fonte salustianana. A admiração é tanta, que costuma pedir a bênção quando encontra o mestre.


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Um frasista de mão cheia Além da sabedoria própria, atravessada por um espírito brincalhão, Salustiano tem também um pouco do “mestre esperto”. Segundo Silvério, ele não admite ser colocado para trás, ou comparado com o “matuto ignorante”, que tem a sua cultura própria, mas fica entregue ao sabor dos ventos, eventos, ou de um esperto produtor cultural. “Ele sabe tudo o que acontece com ele, não admite ser passado para trás, e isso é muito positivo.” Dá para entender a dimensão de Salustiano para a cultura de Pernambuco, quando ele é interrompido no meio da conversa por um homem que chega de táxi. Veio da Bahia, está com uma camisa típica de turista, “estive em Olinda, lembrei de você”. O sujeito desce do táxi, abre um sorriso quando vê Salustiano. –“Vim conhecer aqui”, diz. –“Veio saber se tem festa hoje?”, pergunta Salustiano. –“Não, eu queria saber se o senhor estava, e se toca hoje”. –“Toco, sim”, diz Salú. Depois de fotos, o turista prometeu voltar com dezenas de participantes de um Congresso. Fora enviado em “missão de reconhecimento”. Se Salustiano fosse tocar, todos viriam. Caso contrário, iriam para outro programa. À noite, a previsão era chegar um ônibus com 40 turistas de vários Estados, só para ver o rabequeiro mais famoso de Pernambuco. É assim que o samba toca, digo, que a rabeca toca. Para Siba, do saudoso Mestre Ambrósio, agora com seu Fuloresta do Samba, Salustiano tem vários méritos, mas o principal é “a inteligência de ser um intermediário”. Ou seja, não é mais um artista tradicional, no molde clássico, e ao mesmo tempo, não virou uma criatura urbana. Entre os dois mundos, poderia ter ficado sem nenhum, mas acabou ocupando um espaço singular. O pulo à frente que ele deu, quando foi atrás da escrita, deu a Pernambuco uma legião de artistas abertos para misturas as mais diversas, uma espécie de “salustianismo”. “Muita gente que está tocando no Recife, começou no Sonho da Rabeca”, lembra. Mas nem sempre foi assim. As mudanças na vida de Salustiano vêm acompanhadas por

Em suas muitas entrevistas, Mestre Salú tem se revelado um frasista de mão cheia, misturando a sabedoria popular com um jeito próprio de pensar o mundo. Veja algumas: "Me aperfeiçoei muito foi nas coisas do Nordeste. Essas ilusões que não entendo, não gosto de me aperfeiçoar." "Tem música aí que não tem métrica, criação, a letra é pior. Todo mundo precisa sobreviver, né?." "Tem compositor que não quer compor algo num decassílabo. Não dá sentido. O que é uma cheda, uma Gadelha, um cabeçai?" "Todo mundo tem direito a um amor, né?" "A música só é boa quando o cara é o proprietário." "Crio na hora. A pessoa que cria, o inventor, não tem dificuldade. Agora, quando vive feito piolho, na cabeça dos outros, não dá. Ninguém vai dar o pulo do gato a ninguém." "Vou deitar, componho algo, me levanto e escrevo." "Se mandar eu tocar Asa Branca, eu passo vergonha, porque não sei." "É melhor cair na graça do que ser engraçado." "Quando a gente não sabe ler, a gente fica que nem cego, vendo pelos olhos dos outros." "Estudei uns três anos, o suficiente para ler e escrever. Por conta disso, peguei até cargo comissionado." "Eu sei lá o que diabo é internet! Agora... minhas filhas e meus filhos sabem." "Já fui feitor. Não é coisa boa não, mandar nos outros." "Sou feito caldo de galinha - em todo lugar, eu estou. Duvido ter um doente para não comer um caldo de galinha." "Tá vendo a diferença? É que ele não teve a dinâmica." (ao comentar o pai tocando rabeca) "Fotógrafo é a ‘gota’ – não dá uma foto para o artista!" "A gente não pode ser chato não. A maioria dos jovens quer saber de minha história." "De tudo eu tenho." "Eles estão me entrevistando e vão trazer um ‘mói’ de revistas para a gente, visse, filha?" (Explicando a entrevista demorada para a filha, em seus braços)


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CAPA uma mudança cultural que tem remodelado a cara de Pernambuco. Siba lembra que, no final dos anos 80, estudava música na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e chegou a escutar textualmente do chefe do Departamento de Música: “Cultura popular é uma coisa arcaica, simplória, que não tem mais valor”. Os alunos de música eram, na maior parte, militares, integrantes da Igreja Batista e gente que queria ser professor. “Hoje, ninguém mais tem coragem de dizer isso”, observa. Como a Universidade não dava o que queria, Siba foi atrás de Salustiano. Encontrou na Cidade Tabajara o acolhimento. “Não é só a pessoa dele, mas todo o trabalho cultural que envolve a família. A Casa da Rabeca se tornou uma espécie de embaixada da Mata Norte, representada por ele”. De tanto ver, aprender, imitar, Siba fez o vôo próprio. Tem uma casa em Nazaré da Mata, já é reconhecido como mestre, gravou três CDs e não pára de se apresentar. Arte em família, negócios em família – Salú vai mudando também a vida de sua família. O pai não esconde que hoje está “sendo criado” pelo filho, e mora na Cidade Tabajara. Maciel Salú, que também toca rabeca, segue seu vôo próprio, num trabalho reconhecido, misturando o tradicional e o contemporâneo. Já são três gerações de rabequeiros. Pedro Salustiano, que trabalha com dança, viaja pelo Brasil, mostrando seu trabalho. Não é à toa que a filha mais nova, de quatro anos, já toca rabeca e quer uma zabumba. Essa transmissão cultural cheia de êxito, envolvendo as três gerações, rendeu um trabalho de mestrado, desenvolvido pela jornalista Mariana Mesquita. Durante três anos, ela visitou a Cidade Tabajara, conviveu com os salustianos. Na primeira vez, era apenas um cenário bucólico, calmo, que não chamava muito a atenção. Um ano depois, com a inauguração do espaço cultural “Ilumiara Zumbi”, a jornalista encontrou “outra”

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A pesquisa e o CACHÊ Jornalista fez dissertação sobre os salustianos, mas teve que pagar por entrevistas

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que faz com que um homem que veio da Zona da Mata para Olinda, ainda analfabeto, vendedor de picolé, tendo como principal ferramenta cultural uma rabeca, chegue aonde chegou? Quais as estratégias que utilizou para vender, para se inserir no mercado? Quem ajuda a entender o fenômeno cultural envolvendo mestre Salú é a jornalista Mariana Mesquita. “Ele é um grande artista, não há nenhuma dúvida, um saber que é notório, mas ele tem essa capacidade – de se vender – muito maior que os outros”, explica. Ela conheceu o mestre quando ele “não era tão famoso assim”, e fez uma pesquisa de mestrado sobre três gerações da família. O trabalho resultou numa premiada dissertação de mestrado, transformada em livro em 2005, com o título: João, Manuel e Maciel Salustiano: três gerações de artistas populares recriando os folguedos de Pernambuco. Tendo como eixo de reflexão a “hibridização cultural”, de que fala Nestor Maria Canclini, Mariana começou a verificar as estratégias de Salustiano. Descobriu que ele tem uma enorme capacidade de se adaptar às demandas de outra cultura (a urbana, no caso), sem deixar de ser interessante. “Ele estava agradando sempre aos dois lados, sempre equilibrado na corda bamba”, diz a jornalista. Ela cita o exemplo do cavalo-marinho, uma tradução cultural que dura a noite inteira. Quem tem costume de assistir, sabe que o negócio é demorado, mas não liga, porque acaba torcendo por um cavalo de fulano ou de beltrano. “Ele faz adaptações. Na apresentação, condensa as coisas mais complicadas, acelera aqui, muda ali. Você acaba vendo um cavalo-marinho de uma hora, uma espécie de melhores momentos”, explica. Ou seja, Salustiano sabe o jeito original, faz quando quer, mas torna o negócio mais palatável à classe média urbana, sem tempo para um espetáculo muito longo. O mais intrigante é saber que o mestre dá curso de cavalo -marinho em São Paulo, com duração de uma semana, e, segundo Mariana, “faz o maior sucesso”.


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Salustiano para a sua dissertação, Mariana esbarrou numa dificuldade inesperada, para a conclusão do mestrado. O mestre queria ser pago pelas entrevistas que daria. Disse que estava dando “aulas de cultura”. De nada adiantou a jornalista explicar que estava sobrevivendo de uma bolsa do mestrado de R$ 700,00 e que a pesquisa não tinha como objetivo ganhar dinheiro, mas a produção de um conhecimento sobre a cultura da Zona da Mata. Como estava chegando à conclusão do trabalho, Mariana tinha duas opções – ou pagava, ou mudava o tema da pesquisa. Cada aula saiu por R$ 30,00. O mestre fez um pacote com 10 aulas, que contava por uma fita gravada. Vendo que o mestre estava ficando sabido demais, Mariana também entrou no clima. Na primeira entrevista, levou uma fita de 45 minutos. Nas seguintes, passou a levar fitas de 90 minutos. Durante toda a pesquisa, ela nunca entrou na casa do mestre. “Bastou ele ver a dissertação, que ele ficou todo feliz e me chamou para jantar na casa dele.” Depois que o trabalho foi premiado pela Fundação Joaquim Nabuco e virou livro (projeto no Funcultura), a jornalista passou a conviver com o lado que ela chama “sabido demais” do mestre. “Ele acha que o livro é uma biografia sobre ele, quer ganhar dinheiro, como se o livro fosse dele.” Dos 700 exemplares impressos, 500 Sabido demais foram distribuídos para bibliotecas públicas, um – Depois de ter pequeno lote vendeu rapidinho, até porque o projeto era feito entrevistas mesmo vender a preços populares, a R$ 8,00. Dos 150 com o pai e o que sobraram, Mariana acabou ficando apenas com filho de 30. É que Salú torrou tanto a sua paciência, que acabou ficando com 150 livros. Perguntada se há possibilidade de reedição, Mariana pensa duas vezes. “É uma encrenca tão grande...” diz, pensativa. “Não estou a fim de confusão. Deixei quieto. Não tenho o livro para vender, mas tenho a experiência para contar.” A jornalista se arrepende mesmo de não ter obtido um documento de Salustiano, autorizando a publicação do livro. Teria se livrado de muitos problemas. (SL) •

O processo de aprender a ler, para não depender dos outros, é visto pela jornalista como algo mais amplo – adaptar-se à cultura diferente, para não ser passado para trás, enrolado pelos outros. O negócio deu tão certo, que foi assessor do escritor Ariano Suassuna, quando ele foi secretário de Cultura, no governo de Miguel Arraes. “A função dele era específica, para servir de ponte com a cultura popular”. O que Siba chama de “intermediário”, Mariana chama de “intérprete”, de uma cultura para outra. “Ele é um relações públicas daquela realidade, e com sucesso”. Ela destaca também a importância do “projeto familiar” que Manuel Salustiano desenvolveu, desde que saiu de Aliança. “Ele teve a coragem de sair de lá. Era analfabeto, não tinha contatos, poderia ter sido engolido”, diz. Logo que chegou, Salú ficou impressionado com o mar, e teve uma dificuldade cultural básica – a utilização da privada. De onde ele vinha, só se usava a latrina. A pesquisadora viveu a mesma dificuldade – teve dificuldades de se adaptar à latrina da Zona da Mata. Aos poucos, Salustiano foi trazendo o pai, irmãos, filhos. Hoje, está todo mundo ao seu redor, mas nem todos debaixo de suas asas.


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CAPA Cidade Tabajara. O mundo de Salustiano se transformou em um espetáculo que rende bons frutos. Reconhecido no Brasil e no exterior, ganhador do título de Honra ao Mérito Brasileiro, em Brasília, de “Cidadão Olindense”, homenageado pelas prefeituras de Paudalho e Aliança, onde gastou muito suor no corte da cana, apreciador de um bom guisado de bode com macaxeira, Salustiano não esconde: “Estou sendo cada vez mais procurado”. Desde os anos 90, sobrevive apenas da cultura. Eleito em 2006 um dos “patrimônios vivos” da cultura de Pernambuco, o que rende uma pensão vitalícia de R$ 750,00. Ganha mais R$ 350,00 para ensinar rabeca, para jovens de Olinda. Mas isso é o de menos. Salustiano conseguiu fazer do Sonho da Rabeca, um mundo para a rabeca. O que antes era um produto cultural típico da Zona da Mata, ganhou o mundo e se tornou também um ótimo negócio. No espaço para apresentações, lugar para mais de 3 mil pessoas, como diz o próprio mestre, bar, estacionamento de dezenas de carros. Na noite anterior ao nosso encontro, a Cidade da Rabeca recebeu mais de 400 pessoas Participou do filme Abril Despedaçado, de Walter Sales, da novela Renascer, tem uma agenda repleta de apresentações, seu último CD, Mestre Salú e a Rabeca Encantada, vem com um encarte fino, ele com um sorrisão de quem vê as coisas se acertando. “Não tenho do que reclamar”, admite. No lugar de repetir as letras do universo da cultura popular, passadas de pai para filho, como manda a tradição, ele compõe suas próprias músicas, e registra no papel. No último CD, Mestre Salú e a Rabeca Encantada, 10 das 14 músicas são composições próprias. Apenas uma é de domínio público. Como ninguém é de ferro, Salú compôs um “sambinha de gafieira”, intitulado “A Chesf faz o povo do Norte feliz”. O CD tem o apoio cultural da própria Chesf. O homem é sabido mesmo. Ah, ele ainda quer conhecer Portugal. Diz que quer muito conhecer um país que fala a sua língua. •

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Mestre Salú em seu ofício de luthier


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Um disco de mestre Com boa apresentação, encarte e qualidade do som, novo CD de Salú é disco que se deveria escutar com mais atenção, principalmente os pernambucanos, tão blasés José Teles

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os anos 30, intelectuais como Valdemar de em cima de quatro pneus”, canta ele em “Vocês estavam Oliveira, Mário Melo, pretendiam que o esperando eu”, pé-de-serra rabecado, cerzido pela commaracatu-canção dividisse com o frevo a petente sanfona de Cezinha. Contagiante o forró seguinte, “Eu não gosto de satrilha sonora do carnaval pernambucano. Vivos fossem, os dois certamente apreciariam ver nos pato alto”, que lembra clássicos, como “Na base da chifolguedos juninos, ao menos os do Recife, (das poucas nela”, de Rosil Cavalcanti. Um pouco na letra, porém cidades a procurar preservar o espírito da festa), o forró ainda mais na levada, irressistível. A pabulagem, no bom compartilhando os arraiais com o cavalo-marinho e sentido, volta em “50 anos de cultura popular”, outro péoutros brinquedos da Zona da Mata, que evoluíram sem de-serra, no qual Mestre Salú lembra do seu meio século perder o sabor telúrico, como ratifica o Mestre Salú, em de festeiro, e sua ida ao exterior onde mostrou a música seu novo disco, mais dançável e divertido do que grande que toca desde criança: “Eu com a minha rabeca/eu cheguei lá e fiz show”. Aqui ele faz o show com sua banda, parte dos CDs de pé-de-serra, lançados este ano. O CD Mestre Salú e a Rabeca Encantada traz toadas mais uma canja de Ed Carlos, e a sanfona de Cezinha. de maracatu, xote, sambinha pé-de-serra, forró, mara- No xote “Segredo de um carreiro”, o rabequeiro volta ao catu de baque virado, ritmos trazidos dos canaviais por canavial, celebrando um dos personagens mais embleSalustiano, distribuídos pelas 16 faixas do álbum, e que máticos da região cana-de-açúcar, o carreiro. No forró de Mestre Salustiano permanece o estêm um único objetivo: botar cabroeira para dançar. Se antes eram dirigidos ao trabalhador da cana, hoje em dia, pírito do forró do passado. Ele canta o amor, mas não plantados na Cidade Tabajara, periferia de Olinda, esta com romantismo derramado. O namoro é mais um música é curtida pelos mais diversos estratos sociais, do episódio do seu cotidiano. Mas, adiante, ele conta suas operário ao gringo – este chega na Casa da Rabeca sem impressões de ter visto a mítica cachoeira de Paulo ter muita idéia do que irá assistir, e sai maravilhado. Coisa Afonso: “A primeira vez que eu fui a Paulo Afonque não acontece tanto com os daqui, pela freqüência so/Oh! que coisa interessante, eu vi a usina/que botou com que é exposto ao trabalho de Mestre Salú e de energia pra onde eu nasci”. Em “Forró com gosto de gás”, reverencia seu mestre protetor, o escritor Ariano outros rabequeiros. Embora pareça ser pouco afeito a novidades em seu Suassuna. Uma das mais felizes faixas do CD é “Coco trabalho, o rabequeiro é uma prova de algo tão óbvio, que zabumbado”, de Petrúcio Amorim, que participa da nem precisaria ser mais discutido: a constante evolução música em dueto com Nádia Maia. O casamento perdas manifestações da cultura popular. Tanto nos temas feito de dois estilos de forró. Mas seja qual for o tema, quanto na própria música, Mestre Salú vai assimilando a música de mestres desta estirpe é, antes de mais nada, festa, alegria, diversão informações, trazidas pelos para afastar as agruras do dia novos músicos com os quais -a-dia, sem a menor pretentem convivido, ou que trousão de transcender aquele xe das suas constantes viamomento. Por isto mesmo, gens. Salustiano sabe que, transcende. Destaque-se hoje, não é apenas um mestambém, no disco, a apresentre rabequeiro comum. É tação, o encarte, a qualidade um, com perdão do termo do som. Um disco que se meio exaurido, ícone da deveria escutar com mais música pernambucana. Poratenção, principalmente os tanto, sua música, quase pernambucanos, tão blasés, sempre na primeira pessoa, com a música vinda dos artíé farta em “pabulagem”: fices da cultura popular do “Vocês estavam esperando Estado, provavelmente poreu/eu sou que nem carro Mestre Salú e a rabeca encantada, independente, que a têm em demasia. • novo/que carrego o povo R$ 20,00. Continente agosto 2007

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AGENDA

Cinema e infância Idade da Inocência é uma mostra realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil que apresenta obras-primas do diálogo entre cinema e infância no mundo, propondo o conceito de que a relação entre eles não é feita apenas de poesia e descobertas lúdicas. Diretores de todo o planeta têm se baseado na chamada “idade da inocência” para propor reflexões sobre temas que permeiam a vida adulta, como intolerância, crueldade, miséria social, preconceitos, guerra. A exposição explora, portanto, o teor dessa essência, exibindo 24 produções assinadas por alguns dos maiores cineastas de todos os tempos. Uma oportunidade para o público conhecer a imagem que o cinema tem construído sobre esse tema no decorrer da História.

Imagens: Divulgação

A

MÚSICA

Inscrições

e 6 a 13 de outubro, Ouro Branco (MG) será palco da D 4ª edição da Semana da Música.O festival de música erudita reúne cerca de 500 pessoas entre estudantes e mestres

nacionais e internacionais. Serão oito dias de música com concertos gratuitos, recitais e cerca de 30 Oficinas. As oficinas serão ministradas por grandes nomes da música como Sergej Kravtchenko (Rússia) e Osvaldo Ferreira (Portugal). Serão oferecidas oficinas de instrumentos de cordas, sopro, canto, canto coral, apreciação musical, musicalização, performance musical e regência orquestral e de banda sinfônica. As oficinas são voltadas para estudantes e para o público leigo interessado em música. As inscrições para as oficinas vão até 26 de agosto e a ficha de inscrição esta disponível no site oficial do festival

Divulgação

CINEMA

Informações: (31) 3742.3553 ou www.semanadamusica.com

Música em Olinda

A Idade da Inocência, no Centro Cultural Banco do Brasil, de 8 a 19 de agosto – em Brasília, e de 21 de agosto a 2 de setembro no Rio de Janeiro. Informações: (61) 3443. 8891.

ARTES PLÁSTICAS

Outros Sambas Ao longo do ano de 2007 a Galeria Marcantônio Vilaça, localizada no terceiro pavimento do Instituto Cultural Banco Real, apresenta exposições individuais e inéditas de três jovens artistas nordestinos: Lourival Batista, Amanda Melo e Bruno Vieira, juntos no projeto Contemporâneos Pernambucanos. Até agosto, a mostra que estará aberta ao público é Outros Sambas, de Amanda. Um trabalho que reúne fotografia, desenho, vídeo, escultura, além de performances como fio condutor das produções.

Transparências, até 12 de julho, na Amparo 60 Galeria de Arte, Av. Domingos Ferreira, 92A, Pina – Recife. Informações: (81) 3325.4728. Continente agosto 2007

Olinda recebe nos primeiros dias do mês de setembro a 4ª edição da MIMO. O evento reúne na cidade artistas de alto nível nacional e internacional, oferecendo ao público, gratuitamente, a mais requintada música produzida na atualidade. Este ano, entre os vários concertos programados para acontecer nas igrejas do sítio histórico estão os do violoncelista Antonio Meneses, que comemora 50 anos; do contralto francesa Nathalie Stutzmann, acompanhada pela Orquestra Petrobrás Sinfônica, sob a regência do maestro Isaac Karabtchevsky; dos instrumentistas Paulo Moura e João Donato (foto), que apresentam seu novo CD Dois Panos pra Manga. A etapa educativa, composta por master classes e workshops, incluindo um curso de regência ministrado por Karabtchevsky, já está com inscrições abertas até o dia 15 de agosto. MIMO 2007, de 3 a 9 de setembro, em Olinda. Informações: www.mimo.art.br

Show O CD Impressões Sobre Maurício Carrilho e Meira, de Teca Calazans, será lançando com show no Teatro de Santa Isabel no dia 14 de agosto às 20h. O álbum celebra vários encontros e assinala o importante reencontro entre a canção popular e o sentimento lírico brasileiro. Teca estará acompanhada de dois músicos cariocas, ambos violonistas, e presentes no disco; Maurício Carrilho fez a direção artística e os arranjos da obra. Entre as 12 músicas apresentadas, “Canção do amor distante”, “Molambo”, “Quimera” e “Fatal Desilusão” ganham destaque. Impressões Sobre Maurício Carrilho & Meira, Teca Calazans, Teatro de Santa Isabel, Praça da República, s/n, Santo Antônio. Dia 14 de agosto, às 20h. Ingressos: R$ 30,00 e R$ 15,00 (estudantes e maiores de 65 anos). Preço do CD: R$20,00. Informações: 3232.2940.

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AGENDA

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CÊNICAS

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V Festival Estudantil de Teatro e Dança. Teatro Apolo Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife. De 9 a 26 de agosto, espetáculos diários, às 18h30 e 20h30. Ingressos: R$ 3,00 Informações: (81)3232.2030.

Acrobatas e ilusionistas nternacionalmente reconhecida por sua excepcional criatividade e beleza física, Momix é uma companhia de dançarinosacrobatas-ilusionistas dirigida por Moses Pendleton. Com uma longa estrada percorrida, o grupo é reconhecido por sua habilidade única de criar um mundo de imagens surrealistas utilizando acessórios, luzes, sombra, humor e o corpo humano. Em sua nova turnê brasileira, Momix se apresentará em seis capitais, de 6 de agosto a 2 de setembro. São elas: Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Salvador, Recife e Curitiba. No repertório que passará pela capital pernambucana, está Opus Cactus. Lagartos saltitantes, flores exóticas, serpentes gigantes, pássaros coloridos, – este é o universo que o público vai encontrar no espetáculo, criação de Moses Pendleton para o Momix. O diretor se inspirou na biodiversidade do deserto do Arizona e suas formas diferentes e exuberantes.

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Dom Quixote no Recife conhecida dupla formada pelo cavaleiro andante, Dom Quixote, e seu fiel escudeiro, Sancho Pança, chega aos palcos pernambucanos numa comédia em forma de cordel. O texto inédito, traduzido e enriquecido de brasilidade por Ruy Guerra, foi inspirado no Don Quixote de Miguel de Cervantes. O autor cria um universo comparativo hilariante, onde a história começa na Espanha medieval e desloca-se para o Nordeste brasileiro. O texto oferece um painel de personagens originais que se confundem com outros reinventados: são retirantes, cavaleiros, rabequeiro, coro grego, vendeiro, diabo, guardas, prostitutas, romeiros, condenados, dragão, São Jorge, cavalo falante, Sancho que fala com sua Pança e nosso Quixote/Queixada. A montagem, inspirada na estética da cultura popular brasileira, em especial, o cordel, utilizando cores e texturas, tanto na indumentária dos personagens quanto na cenografia e adereços, vai nos remeter ao imaginário de nossas tradicionais festas populares. A adaptação para o teatro tem como objetivo a valorização da poesia contida na obra de Cervantes, como também o de popularizar ainda mais esta obra clássica da literatura mundial. No elenco, Edson Celulari e os atores pernambucanos Fabiana Pirro e Mariz Garcez.

A

Dom Quixote de Lugar Nenhum, Teatro Santa Isabel (Praça da República, s/n, Santo Antonio). Dias 31 de agosto às 21h, 1° de setembro às 19h e 21h30, e 2 de setembro às 18h. Ingressos: R$ 60,00 (inteira) e R$ 30,00 (meia). Informações: (81) 3224.1020.

Ballet Imperial da Rússia

A aula-espetáculo Nau, que faz parte do projeto Onça Malhada, a Favela e o Arraial da Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco, propõe uma viagem pela cultura brasileira, passando pelas tradições culturais das três raças formadoras do país: indígena, portuguesa e africana. No total, são 11 composições exclusivas de Antônio Madureira e cinco coreografias criadas pela bailarina Maria Paula Costa Rego, tudo com a supervisão de Ariano Suassuna. Durante as apresentações, o próprio Ariano se junta aos músicos e bailarinos para levar ao público, gratuitamente, um espetáculo de qualidade com referências africana, indígena e ibérica.

O Ballet Imperial da Rússia confirma sua primeira turnê brasileira, que marca também a estréia da companhia na América do Sul. A viagem, uma realização da empresa pernambucana Art Rec Produções, começou dia 20 de julho e terminará em 12 de agosto, contemplando as cidades de Ribeirão Preto, Brasília, Porto Alegre, Curitiba, Santos, Vitória, Belo Horizonte, Aracaju, Maceió e Recife. O espetáculo escolhido para esta turnê foi O Lago dos Cisnes, numa versão do diretor artístico do grupo, Gediminas Taranda, para a coreografia de Lev Ivanov e Marius Petipa, e música de Piotr Ilhitch Tchaikovsky.

Nau, 9 de agosto, no Teatro Municipal Paulo Freire (Paulista) e dia 5 de setembro, no SESC Casa Amarela (Recife). Informações: (81) 3224.3325.

Ballet Imperial da Rússia, O Lago dos Cisnes de 10 a 12 de agosto, no Teatro da UFPE, Cidade Universitária, Recife – PE. Informações: (81) 3207.7171 e 2126.8077.

Opus Cactus, dias 25/8, às 21h, e 26/8, às 20h30, no Teatro Guararapes. Ingressos: a partir de 1° de agosto. Platéia especial: R$ 100,00 (inteira) e R$ 50,00 (meia) Platéia e balcão: R$ 80,00 (inteira) e R$ 40,00 (meia).

Aula-espetáculo

Divulgação

Festival de Teatro Estudantil de Teatro e Dança chega a sua 5ª edição, voltado para estreantes nas artes cênicas e reunindo, somente nesta versão, estudantes e arte-educadores do Recife, Olinda, Camaragibe, Jaboatão dos Guararapes, Igarassu, Vitória de Santo Antão, Limoeiro, Garanhuns e Triunfo. Na programação, vários textos consagrados tanto para o público infantojuvenil quanto adulto. A proposta, além de estimular a busca por uma melhor qualidade no trabalho cênico, é descobrir talentos nas montagens de teatro adulto/infanto-juvenil e de dança, ligadas a escolas e grupos amadores em todo o Estado.

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Teatro estudantil


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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

“Poetariado” Pernambucano

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esde o primeiro ano da década de 80 tive a honra de conviver estreitamente com o Movimento dos Escritores Independentes de Pernambuco, participando, inclusive, não sei se do primeiro ou segundo congresso do grupo na Casa das Crianças, em Olinda, em 1981. Nesta época, os poetas do Movimento aos quais me liguei mais foram (desculpem as omissões): Francisco Espinhara, Eduardo Martins, Cida Pedrosa, Fátima Ferreira, Jorge Lopes, Samuca Santos e Hector Pellizze (que nasceu na Argentina e tornou-se grande amigo meu). Nessa época, aqueles jovens poetas eram tão ou mais pobres do que nós, da Geração dita 65. Um ou outro, como nós, era de família remediada, como é costume chamar uma classe média fronteiriça com o proletariado. Falar nisso, tanto a maioria dos independentes quanto os da Geração 65 poderiam auto-aplicar-se o epíteto de “poetariado”, como propôs no Sudeste o poeta marginal Ulisses Tavares, ou, mais precisamente, de “poetílicos”, como queria Ronaldo Werneck, do mesmo movimento e região. Bem, mas essas são considerações secundárias, ou seja, sociológicas, enquanto arte é essencialmente forma. Eu disse essencialmente e não “unicamente” como queriam (e parece que se arrependeram, ao proporem depois Continente agosto 2007

um “salto conteudístico, semântico, participante”) os concretistas. Tanto a geração de “poesia marginal” ou geração “desbunde” da década de 70 (eixo Rio-São Paulo) como o Movimento Nacional de Escritores Independentes, que surgiu para arrumar a confusão, não possuem plataforma estética explícita, o que lhes tira o caráter histórico de Movimentos. Este último, em seu I Encontro Nacional, em setembro de 1981, aprovou cinco itens, todos éticos, nenhum estético. Mas, se não há manifesto, os poemas falam formalmente por si mesmos. Eu não sei até que ponto o ícone da poesia alternativa, no Brasil, Paulo Leminski, influenciou o “movimento” nacional da poesia marginal/ independente, mas desconfio de que estimulou muito o poema curto de versos curtos e oswaldianos, com teor de quotidianidade que começou a se espalhar no Brasil, atingindo de cheio o Nordeste. Pode ser que o poema minuto/ piada/ sarcasmo/ erótico/ crítico seja a marca mais característica da porrada de poetas que li, de Pernambuco ou de fora. Embora outros esquemas formais/ conteudísticos sejam, também, abundantemente encontrados nessa poética que não foi epígona de 45, como a minha, mas é apontada, pelos analistas que li, como “espontaneamente ou inconscientemente” ramificada em 22. Eu sempre concordei que o poeta moderno,


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que é difícil por natureza, reduzisse o tamanho dos poemas, como um mínimo de concessão a um público não acadêmico que tem ojeriza à prolixidade que o afasta do consumismo. Eu gosto muito dessa face-relâmpago da poesia. O próprio Goethe tem poemas líricos minúsculos e arrebatadores. Ao grupo inicial de 80 uniram-se os novíssimos como Lara que tem, ao lado do destino de poeta, o compromisso de continuar a fazer as suas análises sobre o Movimento, e assumir o seu papel de poeta-ensaísta. Regojizo-me por ter a honra de conhecer poetas como Erickson Luna, Lara, Miró, Malungo e Marinho.

Erickson Luna e Francisco Espinhara já migraram da nossa convivência, neste ano de 2007, mas não a poesia deles, que vem merecendo acentuado destaque no mais que virtual mundo da web. No site Interpoética, iniciativa de Cida Pedrosa e Sennor Ramos, há uma seleção bastante representativa de poemas que pode servir como ponto de partida para análise da obra deles. Ao contrário da minha geração, os poetas contam hoje com essa ferramenta de editoria literária. Mais recentemente, conheci Clóvis Campêlo, que vem liderando o grupo virtual Poetas Independentes. Convidado para fazer parte do grupo, não me furtei em participar, embora não cultue o prazer epistolar, muito menos nestes novos tempos da velocidade cibernética. Mas vejo que eles se renderam aos tempos do alemão Johann Gutemberg e resolveram editar uma antologia em páginas de papel. Nada mais alentador para este velho poeta. Que o digam os da minha convivência que sabem da velha Remington, onde datilografo meus poemas. Se pensarmos bem, os meios não se excluem, antes se complementam. O importante é o que se veicula através deles. Bom seria que tudo que se publicasse fosse a poesia, reafirmando seu inquestionável perfil de instituição social, uma prática humana permanente, visando a satisfazer alguma necessidade coletiva. Considero a poesia que, como arte, preenche a necessidade de beleza do ser humano, onipresente há milênios no mundo, tanto em povos arcaicos, antigos ou modernos, como uma instituição social básica, assim como o são: a família, a religião, a agricultura etc. Essa observação, meus milhões de leitores, é inédita nestas páginas, mas já se encontra no Interpoética há algum tempo, o que me faz lembrar da agilidade editorial da web, nem sempre benéfica. Mas devo confessar que, assim como o Grupo Virtual Poetas Independentes rendeu-se às páginas de papel, eu fui rendido pelas páginas de vidro. • Continente agosto 2007

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Moacyr Scliar Divulgação/Companhia das Letras

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A vida e o texto Novo livro do escritor gaúcho ilumina momentos de sua vida, revela gênese de seu fazer literário Luiz Carlos Monteiro

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oacyr Scliar antecipou-se a seus possíveis antologistas, críticos e biógrafos com a escrita de um novo livro de título O Texto, Ou: A Vida – Uma Trajetória Literária. De descendência judaica, nascido em Porto Alegre, ele é, sem dúvida, um dos escritores de maior relevância do Brasil de agora. Sua idade corresponde praticamente à quantidade de livros que publicou, pois ambas se situam na circunvizinhança dos 70. Assim, torna-se bastante

difícil contextualizar um autor que guarda uma produção literária dessa dimensão, que se inicia com o malogro de Histórias de um Médico em Formação (1962), manifestação literária imatura das histórias e experiências de um estudante de medicina, até acertar em 1968, no próximo livro, que ele considera deveras sua primeira obra, com os contos de O Carnaval dos Animais. Bem recebido pela crítica, pois trabalhado nos moldes do realismo fantástico aliado a um viés ideológico típico da década de 60, revela


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o escritor em pleno processo de amadurecimento. Mais à frente, nas próximas décadas, aparecem romances como A Guerra no Bom Fim (1972), sobre a repercussão da Segunda Guerra Mundial no bairro em que o autor foi criado e O Centauro no Jardim (1980), que tem como protagonista um menino metade homem metade cavalo, a mostrar o filho do imigrante judeu repartido culturalmente entre a influência do convívio familiar e a vida externa que, de algum modo, entra em choque com a cultura originária do seu povo. Em A Majestade do Xingu (1997), Scliar traça o roteiro biográfico do médico e indianista Noel Nutels (1913-1973), que fez seu curso no Recife e depois foi para o Rio de Janeiro. Para quem escreve de um modo “prolífico” feito Scliar, que contabiliza ainda no conjunto da obra livros de ensaios e crônicas, e mais de 20 títulos de ficção infanto-juvenil, deve-se admitir e esperar que um ou outro destes volumes possa vir a decair um pouco na questão da qualidade literária. Pois não há como evitar a saturação formal e temática, sendo quase impossível evitar também a repetição de clichês ou lugares-comuns já existentes em trabalhos anteriores. Seja como for, o seu reconhecimento como autor de primeira categoria é assunto fechado. Nos cinco capítulos deste O Texto, Ou: A Vida, Scliar destrincha a sua atividade literária de décadas em paralelo com a medicina, uma servindo de suporte e influência à outra. Outra vertente de óbvia relevância para a trajetória literária vivida é a sua condição judaica e, em conseqüência, a sua ligação com a Bíblia e muito de suas histórias, parábolas e temas. Em vários textos ensaísticos ou ficcionais, ele aborda a medicina pública brasileira e a imigração judaica com a chegada, a acomodação e a sobrevivência dos judeus no Brasil. Trabalhos a que pouca gente tem acesso são trazidos a lume, inclusive um texto longo como Os Contistas, que retrata, com humor desabrido e ferino, a imensa e exótica fauna de contistas a quem o autor imprime vida e movimento, reunidos num lançamento de livro. Texto que poderia ser aplicado também, guardadas as diferenças de gênero, à imensa quantidade de pretensos ou, mais raramente, autênticos poetas que vagam por aí, bons e maus artistas do verso, vivendo no campo ou na cidade. Este trecho de Os Contistas reflete bem o clima do texto, de gozação, ironia e sátira

explícitas: “O contista Morais parou de escrever para cultivar rosas, o contista Ymai para ser terrorista. O contista Murilo não deixou totalmente a literatura: abriu uma escola de escritores por correspondência. ‘Em um mês você estará escrevendo tão bem quanto Guimarães Rosa’, garante, em prospectos. O contista Feijó tinha seus contos sistematicamente recusados para publicação. Deixou os contos de lado, entrou no ramo de cereais e enriqueceu. Lançou, então, o Prêmio Literário Feijó, cujo regulamento estipulava que o conto vencedor passaria à propriedade do Grupo Feijó. De posse desse conto, Feijó rasgava-o, dizendo: ‘Este contista, salvei de uma carreira de sofrimento’ ”. Há uma passagem neste O Texto, Ou: A Vida de uma sagacidade e bom-humor implacáveis, que indica como o escritor é visto pelo homem comum, neste caso um vizinho, e viceversa. “O vizinho olhava o escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntava: ‘Descansando, senhor escritor?’ Ao que o escritor respondia: ‘Não, amigo, estou O Texto, Ou: A Vida – Uma Trajetória trabalhando’. Daí a Literária, Moacyr Scliar, Bertand pouco o vizinho via o Brasil, 272 páginas, R$ 39,00. escritor mexendo na terra, cuidando das plantas: ‘Trabalhando?’ ‘Não’, respondia o escritor, ‘descansando’.” E Moacyr arremata: “Uma ocupação que não parece trabalho mobiliza arcaicos sentimentos de culpa; afinal, e ao menos no Ocidente, ainda vivemos sob a influência do bíblico ‘ganharás o pão com o suor do teu rosto’ ”. Este questionamento já tinha aflorado, sob um ângulo bastante diferenciado, num livro anterior a este, Na Noite do Ventre, o Diamante (2005), a partir de uma conversa entre Spinoza e um discípulo seu, resumida adiante. Na Noite do Ventre, o Diamante foi escrito para a coleção Cinco Dedos de Prosa, da editora Objetiva, no qual Scliar construiu sua narrativa a partir de uma história sobre o dedo anular. O

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LITERATURA Sua idade corresponde praticamente à quantidade de livros que publicou, pois ambas se situam na circunvizinhança dos 70

livro pode ser resumido dizendo-se que um diamante sai em estado bruto no século 17, época da Inquisição, de um arraial em Minas Gerais, passa pelo Rio e São Paulo, chega a países como a Holanda, Alemanha e Rússia, para voltar lapidado ao Brasil num anel da judia Esther Nussembaum. O diamante, ao mesmo tempo em que é valioso e mágico, leva os que o portam a caírem em desgraça. É o caso do menino Gregório, filho de Esther, forçado a engolir o diamante, ainda na Rússia, e que sofre, durante muito tempo, as conseqüências de tê-lo em seu ventre. Quando finalmente o operam, Gregório acorda e sonha com “anulares brotando do chão (...); um bando de anulares, uma coorte de anulares, um exército de anulares, uma multidão de anulares. Todos vindo em sua direção, todos convergindo para ele, todos ansiosos por mergulhar em suas vísceras, todos ansiosos pelo diamante que a noite do ventre – soma de todas as noites – engolira.” O livro exibe situações de aventura e mistério, além de personagens inesquecíveis como o padre Antonio Vieira, o filósofo Spinoza e o revolucionário Leon Trotsky. Num diálogo atribuído a Spinoza e seu discípulo Rafael Fonseca (que lapidou o famoso diamante, depois roubado por Diogo Moreino, um também discípulo de Spinoza), emerge, com muita lucidez, a separação entre o ato de escrever e uma atividade de sobrevivência. Rafael questiona o mestre acerca de sua necessidade de polir lentes e estudar óptica. Ao que Spinoza responde: “Em primeiro lugar, polir lentes é meu ganha-pão – Filosofia, como já deves ter percebido, não dá sustento a ninguém. Depois, porque é trabalho manual. É importante usar as mãos, Rafael. Sobretudo no caso de pensadores, como nós. Usamos demais a cabeça, e isto acaba nos atrapalhando, distancia-nos da realidade que afinal é uma coisa concreta, visível, audível, palpável, sobretudo palpável”. Aqui, percebe-se claramente como o escritor ou o pensador pode ter a necessidade de usar as mãos em ativiContinente agosto 2007

dades que não as que exigiriam apenas manusear a caneta, a máquina de datilografia (para muita gente, estas duas maneiras já em desuso na escrita de poesia ou prosa) ou o computador. No último capítulo de O Texto, Ou: A Vida Scliar procura fazer uma retrospectiva do seu trabalho de escritor, desde a infância até os tempos atuais, das possíveis finalidades, objetivos e da própria razão de ser deste livro, de um modo implacavelmente realista: “Sim, a vela que, na infância, arde no bolo de aniversário é a mesma que enfeita o caixão. A vida passa; escrevendo, ou fazendo medicina, ou formando uma família, ou militando politicamente, ou trabalhando, ou bebendo – a vida passa. Chega um momento em que tudo que esperamos das velinhas é que elas iluminem, com sua tênue luz, o nosso passado e nos permitam extrair alguma conclusão de nossas trajetórias”. O começo de O Texto, Ou: A Vida indica que Scliar cresceu ouvindo histórias em casa e na rua, tendo lido também, segundo ele, “histórias de personagens que me emocionaram, me intrigaram, me encantaram, me assustaram – o saci-pererê, o negrinho do pastoreio, a Cuca, Hércules, Teseu, os Argonautas, Mickey Mouse, Tarzan, os Macabeus, os piratas, Emília, João Felpudo, Huck Finn (...)”. Estes mesmos personagens vão servir, circularmente, de fechamento ao livro: “Todos olham, em silêncio. Do ombro desse senhor, um pouco calvo, que, dizem, é autor de vários livros, mas que nesse momento é apenas o escritorzinho do bairro do Bom Fim contando sua história com a esperança de que as pessoas a acolham com um pouco de simpatia”. Exercício de modéstia e de reconhecimento das influências, familiares ou não, dos personagens e mitos, dos leitores anônimos ou especializados que o animaram e o fizeram prosseguir e contar aqui, com um bom-humor inteligente e necessário, sua “trajetória literária” percorrida até agora. •


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Paraíba: uma revolução literária Há um sentimento revolucionário plasmando a alma paraibana. Mudar é, sem dúvida, um verbo que a gente tabajara sempre conjugou, especialmente na política e na literatura

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os idos de 30, o cadáver de João Pessoa foi a sementeira que modificou a paisagem da vida política brasileira, objetivando dar ao país um modelo democrático de fazer eleições e uma forma disciplinada de administrar a coisa pública. Em fevereiro de 1945, foi a Paraíba, pela voz de José Américo de Almeida, em entrevista ao jornalista Carlos Lacerda, quem derrubou o Estado Novo. É também na literatura que o nosso Estado se mostra inovador, revolucionário, dinâmico. A Bagaceira, livro publicado em 1928, foi o “Abre-te, Sésamo”, do regionalismo na literatura pátria. Inquestionavelmente, é o mais social de todos os romances brasileiros e o que retrata a mais viva preocupação com a terra e o homem nordestinos. Razão tinha o mestre Tristão de Athayde, quando, há 78 anos, vaticinava a grandeza estética e o caráter revolucionário de A Bagaceira, conceituando: “Há, portanto, nesse livro, a síntese em que eu vejo o que já pode haver de realmente nosso, de realmente novo em nossa arte literária: a inteligência e o instinto, a natureza bárbara da terra e dos homens do interior da terra – e a natureza civilizada, requintada do espírito que vai transformando essa terra, que se vai fundindo com ela e transfigurandoa para uma unidade futura”. A Bagaceira é, pois, o grande libelo que as letras nacionais usam para estigmatizar estruturas viciadas e atrasadas. Um livro-denúncia, com certeza, no melhor estilo de José Américo de Almeida. Como ele bem observou, nessa passagem do livro: “O promotor acusou o réu em nome da sociedade. Quem é mais criminoso -– o réu que matou um homem ou a sociedade que deixou por culpa sua morrerem milhares de homens? E antes de ser réu, ele é vítima da falta de solidariedade da raça”. Um

José Lins do Rego em caricatura de Nássara

Reprodução

Paulo Gadelha

romance, realmente, apontando a íntima relação entre o autor e sua obra. Ambos se completando, na condenação ao ciclo de fome, miséria e desigualdade social. Por outro lado, a Paraíba foi, igualmente, revolucionária noutro segmento da literatura brasileira. É que, outro José, o Lins do Rego, foi o grande mestre do chamado romance do açúcar. Sinalizou, o escritor da Várzea do Paraíba, no universo literário, o drama do açúcar em obras como Menino de Engenho, O Moleque Ricardo, Doidinho, Bangüê e Usina. Neste campo, ninguém o suplantou. Construiu o seu mundo cultural sem fugir às suas origens e sem esquecer a sua temática regional. Foram romances, memórias, literatura infantil, crônicas, observações de viagens, tudo sentimentalmente vinculado ao homem e à região. Viu, sem dúvida, a ascensão e a queda do açúcar. Sofreu com a inevitável força da história: a morte dos bangüês e o silêncio dos engenhos. Sentiu tal realidade e a anunciou. Foi profeta em sua própria terra. José Lins do Rego foi aquilo que ele mesmo disse do pintor Cícero Dias, em crônica memorável: um menino de engenho com a loucura da arte. • Continente agosto 2007

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O amor não tem bons sentimentos

Talita Corrêa

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O pessimismo e a descrença nos homens são as marcas do novo romance de Raimundo Carrero Cristhiano Aguiar

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obre Raimundo Carrero, pode-se dizer que lhe agrada o prego na carne. Seu novo romance, O Amor Não Tem Bons Sentimentos (Iluminuras, 191 páginas, R$ 35), não nos desmente. Não por acaso, boa parte das capas dos livros deste premiado escritor pernambucano traz imagens de espantos arregalados. Os rostos dos seus personagens estão corroídos pela acidez das palavras como se fossem gravuras rasgadas em placas de metal. O leitor não deve imaginar que seja diferente a face de Mateus, protagonista e narrador da história, cujo início parece o de um filme policial: um corpo nu de uma pré-adolescente, chamada Biba, bóia no Rio Capibaribe, enquanto seu “irmão” e provável assassino a observa, acocorado no leito do rio. O que temos em seguida, contudo, não é uma investigação de um crime nos moldes das narrativas tradicionais, mas, sim, um testemunho de um ritual de sacrifício. Carrero imobiliza o instante em que os homicidas contemplam as próprias mãos ensangüentadas: em seguida, nos lança na vertigem. O ritmo bem-marcado da prosa de O Amor Não Tem Bons Sentimentos nos oferece um dos seus romances mais coesos. Os elementos da história não são apresentados de maneira linear, com aquele tradicional começo-meio-fim, mas como se fossem temas musicais, sobre os quais a memória e os delírios de Mateus, que é músico e toca sax, improvisam. Biba, Dolores, Guilhermina, Ernesto, entre outros personagens e situações, vêm e voltam pela mente de Mateus, que descasca o passado como se raspasse sucessivas camadas de uma pintura barata. Continente agosto 2007

O romance quase nos sufoca pela sua visão pessimista do ser humano. No rio, onde encontramos o cadáver de Biba, por exemplo, meninos vão até as suas margens para cagar e mijar com o único propósito de envenenar os peixes e qualquer um que o utilize: “mijavam muito para se transformar em grandes e perversos assassinos. Diziam isso rindo”. Nesse sentido, O Amor Não Tem Bons Sentimentos aproxima-se perigosamente de alguns lugares-comuns da literatura brasileira contemporânea: além do excesso de violência e da escatologia, é uma constante na nossa prosa um mesmo personagem-narrador, homem, geralmente, de meia-idade, que está sem rumo e observa tudo ao seu redor com cinismo e enfado – versão moderna de Pococurante, personagem da novela Cândido, de Voltaire, sobre o qual o próprio Cândido comentava: “Que gênio, esse Pococurante! Não lhe agrada coisa alguma”. O narrador de O Amor Não Tem Bons Sentimentos, entretanto, preso numa família acorrentada pelos silên-


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LITERATURA O escritor e filósofo francês Georges Bataille associava o sexo e o desejo a um movimento de destruição da própria identidade. Toda paixão, portanto, é um pouco movida por cachorros loucos, cachorros danados. A violência de O Amor Não Tem Bons Sentimentos não se torna banal, pois consiste numa investigação dos instintos humanos na lama da maldade. Nenhum sangue, na obra de Carrero, é derramado em vão. Por volta do capítulo XII, o nome Mateus passa a ser escrito como Matheus. Neste momento, já passamos da metade do livro. A mudança do nome acompanha, talvez, uma modificação, sutil, do tom, pois a partir deste ponto a loucura do narrador e a sua confusão parecem aumentar mais. Se antes estávamos nas bordas, agora despencamos. A dimensão religiosa dos textos de Carrero não deve ser subestimada. No caso deste romance, o próprio nome Mateus denuncia: é o nome de um dos evangelistas, e o que são os evangelhos, senão uma narrativa de um crime contra um inocente? O “h” em Matheus pode ser uma forma de realçar a busca por um theos, ou seja, por um deus, ou por um aspecto sagrado da existência. A própria personagem Guilhermina é quase uma santa, vivendo numa casa-claustro, cercada de pássaros, animais presentes em relatos místicos islâmicos e cristãos. As paixões de Matheus, Guilhermina, Biba e Dolores os conduzem a uma Paixão, de forma semelhante ao que ocorre com os personagens de outro romance do autor, Sombra Severa. A expiação, infelizcios e viciada nos incestos (Biba é filha de mente, não garante uma redenção, Jeremias e Isis, dois irmãos de Mateus, e ele pois o romance não nos oferece próprio pode ter nascido do incesto entre garantias de que exista qualquer sua mãe e seu irmão), oscila, de maneira coisa deslizando no céu, a não ser ambígua, entre ser carrasco e ovelha, o que oco e éter. lhe confere uma dimensão humana que o Schopenhauer afirmava que os afasta dos clichês. Como todos os homens, homens se dividiam entre atormenMateus se sente ameaçado pelo feminino. tados e demônios e que “a vida se Por isso, parte de sua tragédia consiste no traduz por um estado de necessidade fato de que ele não consegue conciliar, e miséria, no qual cada qual precisa dentro de si, o medo e o desejo causados lutar e disputar pela existência, razão pelas fascinantes mulheres que o cercam. por que nem sempre apresenta a Ao comentar Sade, Octavio Paz afirmava O Amor Não Tem Bons que “cada homem oculta um infinito. Sentimentos, Raimundo Carrero, expressão mais cordial”. Haveria uma negação total de qualquer bondade Ninguém pode possuir totalmente o outro, Iluminuras, 192 páginas, R$ 35,00. humana na violenta crítica de O Amor pela mesma razão que ninguém pode dar-se inteiramente. A entrega total seria a morte” e os crimes Não Tem Bons Sentimentos? É possível que sim, mas dos personagens de O Amor Não Tem Bons Sentimentos apenas alguém apaixonado pela humanidade poderia recusar um prato mofado com tanta veemência. • têm sua origem justamente nessa fome pelo outro. Continente agosto 2007

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Deus e o Diabo na poesia de Bandeira Edson Nery da Fonseca seleciona poemas religiosos e libertinos em edição primorosa Marco Polo

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uito afetuoso, o poeta pernambucano Manuel Bandeira sempre foi muito próximo dos parentes e amigos, tanto que durante toda a vida pontuou sua obra com poemas em que falava destes relacionamentos. Particularmente apegado à mãe e à irmã, herdou destas o gosto pelo misticismo, e, embora ateu, também produziu uma boa quantidade de poemas em que trata, principalmente, de santas, anjos e do Jesus menino. Em 1985, a editora carioca Philobiblion publicava uma seleção dos poemas de temática religiosa de Bandeira, selecionados por um dos maiores conhecedores da obra bandeiriana, o também pernambucano Edson Nery da Fonseca. Agora, a Cosac Naify lança uma segunda edição do livro, acrescido de alguns poemas que elogiam o erotismo. Sob o título Poemas Religiosos e Alguns Libertinos e em capa dura, vem ilustrado pelos delicados desenhos do artista plástico Alberto da Veiga Guignard (carioca que muitos pensam ser mineiro pela recorrente temática das igrejas e montanhas de Minas) e contendo o prefácio da primeira edição, assinado por Gilberto Freyre. São 25 poemas religiosos, classificados em sete partes: Deus, Jesus Cristo, a Virgem Maria, os Anjos, as Santas, um Grande Papa e Remissão. Onze poemas libertinos complementam a seleção. Num posfácio, em que analisa com acuidade a obra de Bandeira, Edson Nery diz que não pretende repetir o que certos críticos católicos tentaram fazer com Baudelaire, na tentativa de


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O poeta pernambucano Manuel Bandeira

afastá-lo da companhia dos chamados poetas malditos. “Não afirmo que Manuel Bandeira deva ser considerado poeta católico”, diz taxativo. Embora entusiasta da obra de Bandeira, Edson Nery não se furta a classificar um dos poemas que selecionou, “À Sua Santidade Paulo VI”, como muito ruim. “O soneto está cheio de banalidades. Nem parece de Manuel Bandeira”. Em compensação, destaca o magnífico poema “Balada de Santa Maria Egipcíaca” em que o poeta recria o mito cantado em romance espanhol do século 12, que trata de Santa Maria Egipcíaca, bela mulher de vida anteriormente pecaminosa, que tinha se convertido ao cristianismo. Em peregrinação à Terra Santa, quer atravessar o rio Jordão, mas o barqueiro que faz a travessia lhe cobra a passagem. A santa não tem dinheiro. Ele então diz que ela tem o corpo e pode negociar com ele. É quando Maria lhe entrega “a santidade da sua nudez”, como diz em verso Bandeira. A tensão entre a carnalidade do homem e a espiritualidade da mulher é a pedra de toque deste que é um dos melhores textos do poeta. Edson Nery também aponta que são poucos os críticos que identificaram a temática religiosa na obra do

poeta pernambucano e que as antologias em geral são omissas sobre sua motivação religiosa implícita ou explícita. Contesta Gilda e Antonio Candido de Mello e Souza quando notam “uma gravidade religiosa freqüente neste poeta sem Deus, que sabe não obstante falar tão bem de Deus e das coisas sagradas, como entidades que povoam a imaginação e ajudam a dar nome ao incognoscível”. “Eu não diria que ele é um poeta sem Deus”, contrapõe Edson Nery, pois, assegura, ele O invoca em vários poemas. Prefere, assim, alinhar-se com o pensamento de Alceu Amoroso Lima, quando diz que Deus está no centro da poesia bandeiriana, “mas exatamente como Ele é: invisível, intangível e praticamente inominado. Até mesmo aparentemente ex- Poemas Religiosos e Alguns cluído por certas explosões Libertinos, Manuel Bandeira, de um cinismo estritamente Cosac Naify, 112 páginas, R$ 42,00. filosófico e transcendental”. Por sinal, é justamente este certo cinismo o que se explicita nos poemas libidinosos de Manuel Bandeira, que fazem a segunda parte do livro. O poeta, que não era propriamente um homem bonito, devia ter uma boa dose de charme e carisma pois, embora nunca tenha se casado, esteve a vida inteira envolvido com mulheres, mesmo mantendo uma impenetrável discrição a respeito. Contase até que, quando professor, suas alunas costumavam inventar modinhas em que cantavam, meio a sério meio brincando, que queriam namorá-lo. É neste aspecto de sua personalidade que Bandeira revela seu materialismo. Quando, por exemplo, diz que, entre amantes, os corpos podem se entender, mas as almas não; ou quando coloca na boca da “Vulgívaga”, um de seus melhores poemas libertinos, os versos: “Não posso crer que se conceba/ Do amor senão o gozo físico!” E, para dar exatamente o clima de explosão cínica de que fala Amoroso Lima, completa: “O meu amante morreu bêbado,/ E meu marido morreu tísico!” É assim, conjugando dois aspectos aparentemente contraditórios, mas, na verdade, complementares, que o poeta se revela em sua complexidade, num livro muito bem realizado, tanto em conceito quanto em finalização gráfica. • Continente agosto 2007


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tristeza

Alberto Lins Caldas

“A quem confiar minha tristeza?” crepúsculo. umidade. redemoinhos. tou aqui. coberto de luz y sombras tantas. como fantasma. recolhido em mim. sentado sem me mover. faz tempo. tudo faz tempo demais. sem trabalho. sem ninguém. só essa luz. esse calor infernal. logologo a noite chega. não adianta estremecer. não to dormindo não. estico o pescoço. desentorto as pernas. indassim não fico bem. a gente não passa de estacas na paisagem. !sim demônio to aqui. sempre esperando. sou igual a essa massa escura de gente. vou pronde me empurram os diabos. sentado sobre alfinetes. espinhos não sei donde. gente canalha. gostam mesmo de se chocar contra a gente. só pra fazer sofrer. pra doer mais y mais. a gente vive a vida toda sob cavalos. nem falar se fala mais. só esses sons q saem da garganta como vômito. ?quem pode saber. ta em volta o diabo. to cego como cachorro velho. fecho os olhos porq não tou nada disposto. novamente imóvel. sempre imóvel. passa uma hora. passa outra y outra outra. tudo tem preço. sempre um preço. a gente tem q negociar tudo. não negocio nada. por isso tou aqui. assim. mas agora isso muito pouco importa. nem o preço. ?quem vai ficar de pé. ?com isso quem vai ficar de pé. só insultos. recriminações. a gente q não é lambechão tem q virar lambechão. ficar de pé nem pensar. esse povo bate na gente como não se deve bater nem em animal. torce o pescoço da gente até quebrar. tou com a cabeça estalando. não sei praq mentir. como bicho tossindo antes de morrer sozinho. peste velha isso de pensar. y solidão começa devagarinho. tristeza começa devagarinho. tem horas q pego na tosse assim só penso em tossir. só penso em morrer. como meu velho avô. se matou porq tossia sem querer. sem poder mais. a gente vai morrer mesmo. mas isso não justifica nada não. não posso continuar assim. y continuo. acho q não consigo me matar. não tem coisa pior. viver como bicho y não se matar como homem. q gente alegre. sempre alegre demais. tudo morreu y continuo vivo. coisa muito esquisita. essa multidão não pode fazer nada. não quer fazer nada. nada pode fazer. nem pra ouvir. a tristeza é sempre maior q a gente. y ninguém vê. como a gente não vê a tristeza dos outros. a gente é cego pra tudo q não é a gente mesmo. bela vida. boa vida. grande vida. a gente só pode se entregar. é inútil querer conversa. querer olhar. querer toque. tudo conversa. q façam proveito. não se vê nada. antes de morrer. pelo menos inda se tem tempo pra dormir. sem isso a vida se arruína toda. tando sozinho. sempre sozinho com a tristeza. a gente mastiga mastiga essa vida y não engole. não dá pra engolir mesmo não. não faltou viver mais nada pra saber q viver não presta. nem essa gente toda presta pra nada. Continente agosto 2007


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nem a gente também presta pra nada. qualquer hora dessas vai pra terra batida. sem cabeça sem pernas sem braços. se morre assim assim por nada. dá pena mas essa é a verdade. y não posso dizer doutra maneira. só resta isso assim. a gente q trinque os dentes. •

Alberto Lins Caldas é autor de oralidade, texto e história (Loyola, São Paulo, 1999), babel (Revan, Rio de Janeiro, 2001), nas águas do texto (Edufro, Porto Velho, 2001) litera mundi (Edufro, Porto Velho, 2002), oligarquia das letras (Terceira Margem, São Paulo, 2005), wyk (Bagaço, Recife, 2007). Continente agosto 2007

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A rua A rua calçada de silêncios. Cada casa, concha guardando pérolas. Cortinas afastam mágoas para o nunca mais. A casa acorda o sol e adormece as estrelas. Luzes vestem meninas que brincam de roda. Passarinhos repousam nos ombros da tarde. Jasmineiros cravejados de pirilampos debruçam-se em nossos destinos. Rua sem desejos rua sem pressa rua sem sombras: rua apenas sonhada.

Poeta Tenso como corda de violino ou prestes a detonar sua bomba interior. (Das Oliveiras o amor escorre da face do Poeta Maior e se transmuta séculos afora em sangue sobre a terra. O Pensador de Rodin medita medita medita). Estás num túnel sufocante pressentindo a opção cósmica que gratuita não floresce.

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Yeda Prates Bernis

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Poemas de

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Auto-retrato Vocacional estrabismo divergente: um olho na terra, outro no céu. Nadadora, vai singrando em largas ou tímidas braçadas oceanos, rios e lagos de emoção. Solfeja alguns idiomas para ler poemas, cantar canções e esconder, neles, sua ternura pela humanidade. Acredita em sereia, fada Iemanjá, Saci-Pererê e outras coisas mágicas com que depara, desavisadamente. Acha o livre-arbítrio tão discutível quanto a verdade, e o bem e o mal, faces da mesma moeda. Vive com Vivaldi no coração e Debussy na ponta dos dedos. Borda, com fios insólitos do tempo, pacientes pontos de esperança. Traz a alma na boca, abraça e beija muito, e vive sorrindo para mostrar atávica alegria infeliz.

Yeda Prates Bernis é mineira. Publicou os livros, Entre o Rosa e o Azul, Enquanto é Noite, Palavra Ferida, Pêndula, Grão de Arroz, O Rosto do Silêncio, À Beira do Outono e Encostada na Paisagem, entre outros.Tem poemas musicados por Camargo Guarnieri, sob o título Tríptico de Yeda, além de poemas traduzidos para o italiano, inglês, espanhol, francês e húngaro.


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Recife literário Festival recifense de literatura prestigia humor e criação poética Talita Corrêa

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Festival Recifense de Literatura é realizado há no Festival. Os critérios de escolha serão originalidade e licinco anos, sempre durante o mês de agos- terariedade. A partir do dia 18, poetas de todo o Brasil poto, reunindo na programação feira de livros, derão participar de uma espécie de torneio que pretende seminários, painéis, oficinas, recitais, tor- divulgar a poesia através de recitais, com autorias próprias, em língua portuguesa. Trata-se da segunda edição da neios poéticos e outras atividades relacionadas. O projeto do Festival nasceu da descoberta da Lei Recitata, abreviação de Recife em Cantata. A programação inclui ainda homenagens a Hermilo Municipal 14.709/84, até então engavetada, que institui o 16 de agosto como dia do Poeta Recifense, tomando por Borba Filho e Ariano Suassuna: o primeiro por 90 anos base a data de nascimento do poeta Mauro Mota. Por isso desde seu nascimento, o segundo por seus 80 de vida. a escolha do período de realização desse Festival que já faz Nomes como Luzilá Gonçalves, Fernando Monteiro, parte do Calendário Cultural da Cidade e vem amplian- Raimundo Carrero, Marco Polo, Homero Fonseca, Rodo-se a cada edição. Há muitos anos, a cidade do Recife naldo Correia de Brito, Jomard Muniz de Britto, Gilvan não realizava uma festa que priorizasse de maneira tão Lemos, Flávio Chaves, Miró, Antônio Campos, Vital Correia de Araújo, Jean-Pascal Dubost e Dominique completa o binômio “livro x leitura”. O Festival Recifense de Literatura torna-se, a cada ano, Coffin estão inseridos na realização do evento, consagranmais importante no sentido de mexer com a cadeia produ- do a importância e grandeza dessa iniciativa para a cultura tiva local do livro e com os nichos de criação literária e como um todo. • projetos de leitura. O objetivo é lutar pela permanência do Divulgação Recife como palco da cena cultural, honrando essa tradição renovadora e contribuindo para o fortalecimento local do mercado editorial e de produtos afins. A expectativa é que, nos próximos anos, seja feito um Festival muito mais sólido em suas definições pedagógicas, financeiramente mais apoiado, além de mais inserido nos interesses da comunidade. O projeto, organizado pela Prefeitura da Cidade do Recife, Secretaria de Cultura e Fundação de Cultura da Cidade do Recife, destaca como públicoalvo os editores, livreiros, escritores, professores, estudantes e leitores em geral. Em 2007, o Festival Recifense de Literatura, programado para acontecer entre 16 e 26 de agosto, abre espaço para a divulgação da poesia e das letras a serviço do bom-humor. Foram abertas este ano inscrições de textos 5º Festival Recifense de Literatura, de 16 a 26 de agosto de 2007, em diversos pontos da cidade do Recife. A programação pode ser conferida no site: www.recife.pe.gov.br. humorísticos para seleção, concurso inédito Informações: (81) 3232.2898/2937. Continente agosto 2007

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AGENDA/LIVROS Amantes, Egon Schiele, 1913

A dor do amor

Romance do colombiano Jorge Franco traz vidas que se entrelaçam, no êxtase e no desespero

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orelha do livro Rosário Tijeras, do colombiano Jorge Franco, mostra sua foto à meia luz. Metade do rosto aparece, a outra fica por nossa conta. É a imagem de um camarada com seus 45 anos, pele lisa, barba bem-feita, os olhos meio distantes. Então você abre o livro, dá uma olhadela à procura da indefectível dedicatória, e não tem dedicatória para ninguém. Tem, na verdade, uma “Oração ao Santo Juiz”, uma versão colombiana de “Jorge da Capadócia”, do nosso Jorge Ben. De nada adianta pedir que os inimigos não me vejam, e que se tiverem mãos, não me toquem, e que se tiverem pés, que não me alcancem, quando o primeiro parágrafo começa com um tiro à queima-roupa, cheio de dor e lirismo: “Como levou um tiro à queima-roupa ao mesmo tempo em que recebia um beijo, Rosário confundiu a dor do amor com a da morte. Mas tirou a dúvida quando afastou os lábios e viu a pistola”. É o começo de uma bela história, construída a partir de um feixe de lembranças, nos corredores de um hospital de Medellín. Enquanto Rosário agoniza, Antonio deixa sua memória revelar o mundo do narcotráfico, com suas histórias de sexo, morte, amor e desespero. “Tijeras”, em espanhol, quer dizer “tesoura”. É melhor ler para saber o motivo. É um daqueles livros em que o autor pega o leitor, coloca uma algema em um dos pulsos, e o outro fica livre somente para virar as páginas. Mas não espere um tradicional romance feito de balas varando corpos e sangue coalhando nas calçadas. O que permeia toda a narrativa é um amor obcecado e desesperado e vidas que se entrelaçam, no êxtase e no desespero. (Samarone Lima) Rosário Tijeras, Jorge Franco, Editora Alfaguara, 155 páginas, R$ 28,00. Continente agosto 2007

Morte voluntária

O suicídio é um tabu milenar, considerado por Camus, em célebre frase, o “único problema filosófico verdadeiramente sério”. O jornalista e escritor Arthur Dapieve, aquele que aparece comentando programas de televisão ao lado do “casseta” Marcelo Madureira, empreende um estudo sério e aprofundado sobre o tema, bebendo nos escritos de vários teóricos e baseando-se no tratamento dado pela imprensa mundial ao espinhoso tema. Dapieve conclui ser o suicídio uma escandalosa afirmação do direito à liberdade, mas considera sua apologia tão inútil quanto a da vida. Morreu na Contramão, Arthur Dapieve, Zahar, 196 páginas, R$ 39,00.

A função da poesia Das várias atividades acumuladas pelo autor, que é poeta, crítico literário, tradutor e professor, esta última é a que primeiro salta aos olhos nesse ensaio: a explicação de cada termo utilizado, o comprometimento com a conexão clara entre os argumentos e a atenção constante ao que é realmente necessário saber fazem dele uma ótima introdução às questões mais essenciais da poesia hoje. Partindo da expulsão dos poetas por Platão em sua República, discutem-se, entre outros temas, as dicotomias poesia/técnica e cognição/imaginação e a exacerbação da busca pelo novo. (Artur Ataíde) Poesia & Utopia, Carlos Felipe Moisés, Coleção Ensaios Transversais, Ed. Escrituras, 144 páginas, R$ 18,00.

Dois falares Em forma de verbetes, mas sem a sisudez dos dicionários, o livro Falares de Portugal, Falares do Brasil traz deliciosas “traduções” de palavras e expressões que em terras lusitanas querem dizer uma coisa e por aqui, outra. A autora, portuguesa residente há décadas no Brasil, discorre com leveza sobre essas diferenças, num texto não apenas útil para quem viaja para a antiga Metrópole, mas também revelador das conotações que as palavras adquirem em sua relação tempo-espaço. Certos termos “nordestinos”, como “aviar”, são de uso corrente do outro lado do Atlântico. Falares de Portugal, Falares do Brasil, Esmeralda Moura, Companhia Editora de Pernambuco, 218 páginas, R$ 40,00.

Impiedade Salgueiro é o segundo romance do mineiro Lúcio Cardoso, e expõe impiedosamente a vida no morro de mesmo nome, na década de 30. Uma população de negros, operários, malandros, prostitutas e donas-decasa perfaz um quadro de desesperança, lama e podridão. A grande personagem da trama é a negra Rosa, que traz a morte e a miséria para os que dela se aproximam, notadamente seus familiares. A solidariedade é uma marca de todos os que ali vivem, apesar das inimizades e disputas constantes. (LCM) Salgueiro, Lúcio Cardoso, Editora Civilização Brasileira, 256 páginas, R$ 40,00.


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Sensível ocupação Hildeberto Barbosa Filho alcança um refinamento amadurecido em seu novo livro

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m Todos os Lugares, Hildeberto Barbosa Filho chega a um ponto refinado de sua poesia, com um amadurecimento que o faz distribuir seus poemas em partições significantes como “Motivos”, “Bens”, “Palavras” e “Personas”. Não se trata de testamento poético antecipado, mas, sim, de encarar os grandes temas que o incitam a pensar e a escrever. E isto, sem separar a poesia da vida, ao contrário, uma entrando firme no espaço da outra, inclusive reconhecendo num verso do poema, “Mapa”, que “Só a poesia salva”. O poeta reconhece a poesia latente das coisas e objetos, como neste trecho do poema “As Coisas”: “O papel perdido à espera/ do pouso musical das palavras,/ a tesoura e seus espelhos,/ a pedra com suas estrias/ de luz, a lúcida ferrugem/ de antigos cadeados”. Em “Personas”, ele homenageia amigos, familiares e entidades mitológicas. O bloco “Palavras” é dedicado à ironia leve e ao humor inteligente, como em “MinimaTodos os Lugares, lismo”, onde se intenta dizer tudo em pouHildeberto quíssimas palavras, uma das febres da poesia Barbosa Filho, Editora Idéia, 124 atual: “Dia desses, quem sabe,/ escrevo uma páginas, R$ 15,00 epopéia/ no triângulo de um haicai”. Poesia que indaga a função das palavras, a razão de ser da escrita. Inquire sobre o estar no mundo de seres e objetos. E que delimita, a partir da geografia interior, comum a todos, as fronteiras entre a casa e o espaço de fora, mostrando que se pode trazer o mundo para o lugar onde se vive, por menor que seja este. (Luis Carlos Monteiro)

Elegância e humor Este volume traz 101 crônicas do sociólogo paulista Marcelo Coelho, escritas no caderno “Ilustrada” da Folha de S. Paulo, entre 1998 e 2007. Na verdade, crônicas e ensaios, estes na fórmula de Montaigne: reflexões não muito longas sobre assuntos os mais diversos. No final do livro, o próprio autor reconhece alguns maneirismos a que recorre: contrapor a um primeiro raciocínio ou explicação um segundo, oposto, e, ainda, um terceiro ou quarto, alternativos. Isso dá vivacidade, cria surpresas e pega pelo colarinho o interesse do leitor, ao mesmo tempo que o provoca a pensar por si só. No final, entretanto, não se furta a revelar sua opinião pessoal. Não é para menos que é também autor de outro ótimo livro, intitulado Opinião se Discute. O estilo tem a sobriedade e elegância do intelectual paulistano, mas temperado com grãos de irreverência e humor. Sua leitura dá a sensação de um bate-papo descontraído, embora muito preciso, iluminando assuntos atualíssimos como o consumismo, os engodos da publicidade e a passividade do brasileiro, entre outros. (Marco Polo) Tempo Medido, Marcelo Coelho, Publifolha, 400 páginas, R$ 39,00.

AGENDA/LIVROS Entretenimento

Um psicólogo que tem problemas de relacionamento e dá assessoria à Divisão de Homicídios de Los Angeles, mais um policial gay que luta para se impor contra o preconceito são os dois heróis desta trama em que o brutal assassinato de uma garota de 16 anos – com estupro múltiplo, marcas de brasa de cigarro e furos de canivete por todo o corpo, além de escalpo – os leva a um confronto com personagens excêntricas, umas, outras banais, mas todas complexas. A estória envolve frustrações recalcadas, psicoses sombrias e momentos de singeleza, habilmente distribuídos num livro que é puro entretenimento. O Livro do Assassino, Jonathan Kellerman, Record, 538 páginas, R$ 50,00.

Amor juvenil

A tradição da poesia para crianças tem ilustres antecessores como Vinicius de Moraes e Cecília Meireles. Certamente não é coisa fácil escrever para crianças sem cair no piegas e no simplório, principalmente em se tratando de poesia. A coisa fica ainda mais complicada se o público alvo são os adolescentes e o tema é o amor. Pois é esse o desafio que a poetisa carioca Roseana Murray aceitou neste livro. São poemas em que o lirismo, a delicadeza e a sensualidade se mesclam entre si ao falar do corpo e, por extensão, de tudo que o cerca. Sentimentos e sensações se mesclam, os sentidos em sinestesia interagem. É o amor. No Cais do Primeiro Amor, Roseana Murray, Larousse, 40 páginas, R$ 9,90.

Fotografia Complementando a trilogia que inclui os títulos Fotografia & História e Realidades e Ficções na Trama Fotográfica, do teórico e historiador da fotografia brasileira Boris Kossoy, chega às livrarias Os Tempos da Fotografia: o Efêmero e o Perpétuo. A obra, dividida em três partes, reúne ensaios que tratam do papel cultural da fotografia, o rastreamento dos fotógrafos anônimos do passado, fotojornalismo e a relação da imagem com a imprensa e, por fim, sobre a memória e imaginário social. Com os três livros, Kossoy desmonta a informação fotográfica e expõe os eixos nos quais desenvolveu seus fundamentos teóricos sobre as imagens. Os Tempos da Fotografia: o Efêmero e o Perpétuo, Boris Kossoy, Ateliê Editorial, 176 páginas, R$ 37,00.

Painel das letras Há cinco anos, um grupo de estudantes universitários criava um programa de rádio sob o título Café Colombo (referência à Confeitaria Colombo, no Rio, ponto de encontro de escritores), na Rádio Universitária da UFPE, destinado a entrevistar intelectuais ligados à escrita. Ao completar 300 edições do programa, seus responsáveis, hoje formados – Eduardo Maia, Ketinaldo José, Marcelo Correia, Marcelo Sandes e Renato Lima –, selecionaram as 22 entrevistas mais marcantes e as publicam nesta coletânea. O resultado é um painel variado e inteligente sobre a força das letras na cultura nacional. Conversas no Café, vários autores, Nossa Livraria Editora, 198 páginas, R$ 20,00. Continente agosto 2007

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A pintura diurna de José Cláudio Desenhista, gravador, escultor e, principalmente, pintor, José Cláudio, que este mês completa 75 anos, procura registrar o instante emocionante em que cada coisa alcança o seu momento único e intransferível Marco Polo

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Imagens: Fred Jordão/Roberta Guimarães/Imago/Divulgação

onheci José Cláudio na segunda metade dos anos 60. Já era do mesmo jeito que hoje: fala arrastada, com forte sotaque interiorano, um ar de caipira meio perdido na cidade grande, uma aparência geral que escondia uma grande inteligência e erudição, e uma franqueza às vezes desconcertante. Seu trabalho é que era diferente. Naquele tempo, pouco antes da reviravolta que iria desnortear muitos de seus admiradores, José Cláudio fazia uns grandes desenhos abstratos. Manchas escuras que se espalhavam sobre o papel quase que o tomando por completo, mas que, quando vistas de perto, revelavam um trançado minucioso e obsessivo, de preto sobre preto, numa superposição de tramas. Era um trabalho sofisticado, um acurado estudo de texturas de alto refinamento, em sua feitura, sem referências à realidade. Um exercício intelectual sobre espaço, profundidade, planos, recortes e traços. Para além do meramente lúdico, vale ressaltar, pois não eram desenhos feitos “para agradar” ou “embelezar”. Um desenho que, hoje, seria considerado contemporâneo. Por esse mesmo tempo, José Cláudio começou a enveredar pelo experimentalismo que aproximava seus trabalhos da poesia visual. Utilizava carimbos pequenos, que ele mesmo fazia, explorando composições de caráter serial, como que numa continuação do neoconcretismo. Mais uma vez cosa mentale, como prescrevia mestre Leonardo Da Vinci. É neste período, entretanto, que o artista dá uma guinada radical em seu trabalho, deixando seus amigos e admiradores atônitos. Muitos, francamente consternados. Ele abandonava uma carreira que já experimentava reconhecimento nacional para praticamente começar de zero. Deixa de lado os carimbos e os desenhos em nanquim para dedicar-se à pintura. E o que ele pinta? Figuras, paisagens, naturezas mortas. Sem inventar nada, quase naturalisticamente.

Na página anterior, cena de trabalho, um dos temas recorrentes do artista. Acima, José Cláudio

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ARTES O que tinha acontecido? O próprio José Cláudio explica: “A mudança, um pouco abrupta vista de fora, daqueles desenhos quase compactamente pretos, mas feitos a bico de pena, sem nenhuma referência ao mundo real, de fato não se deu de uma hora para outra. Quando resolvi sair de São Paulo, onde já tinha até um certo prestígio, como artista, para voltar para cá, depois de ter ficado por lá vários anos, um deles na Europa, mas que para mim era uma continuação de São Paulo, já essa mudança estava bem amadurecida. Eu era originário de um mundo bonito e luminoso e São Paulo para mim era uma prisão, por mais bemsucedido que eu pudesse ser na arte. Como eu tinha perdido minhas referências externas, voltei-me para dentro de mim mesmo, para a “cela de nós”, como creio que disse Santa Catarina de Sena; para a “noite escura” da alma, como disse São João da Cruz. Sempre fui muito ledor dos santos, apesar de ateu. Um belo dia, aqui de volta, me perguntei qual a razão de continuar fazendo aqueles desenhos pretos e já não encontrava resposta dentro de mim porque voltei a ver o mundo exterior, e joguei tudo para o alto para recuperá-lo. Lá em São Paulo, nos últimos tempos, para piorar as

coisas, trabalhava no jornal O Estado de S. Paulo das quatro da tarde às quatro da manhã, não vendo a luz do dia. Tanto que Dom Gerardo Martins (padre pernambucano incentivador da arte no Recife dos anos 60 – Nota da Redação), que me conhecia bem, disse que aqueles desenhos eram o meu lado noturno e a pintura o diurno. Teve uma hora, já aqui de volta, mas ainda fazendo aqueles desenhos pretos, que me ocorreu que, quando eu era menino em Ipojuca, o que eu queria pintar era esse mundo que a gente vê: eu queria saber pintar gente, bicho, paisagem; e também, me perguntando o que lamentaria, na hora da morte, não ter pintado isso. Aí ataquei até com uma certa ganância. E assim até hoje”. Quer dizer, José Cláudio retomou o partido do espontâneo, do emocional, que lhe era mais propício e próprio. Quando criança, em Ipojuca, onde nasceu, no interior de Pernambuco, gostava de desenhar as coisas que via em volta: cavalos, cães, galinhas, gente, mato, todo o mundo real e iluminado que lhe cercava a vida. Por que mudar isso em busca de uma arte intelectualizada, que não lhe dizia respeito? Tomou, pois, uma decisão corajosa, rompendo com um trabalho que não lhe estava dando felicidade, seguin-

Ao lado e na outra página, mulheres, praia e dança: a captação do momento mágico

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Carnaval de Olinda, tema constante na obra de José Cláudio

do Montaigne quando dizia que só vale a pena fazer coisas que nos tragam alegria. Contra todos os conhecidos que acharam loucura encerrar uma carreira que já estava se consolidando e começar tudo de novo, José Cláudio persistiu com a obstinação que lhe é característica. E terminou provando que estava certo. Aos poucos, foi depurando sua linguagem a ponto de obter um traço rápido, preciso, em parte derivativo do desenho de treinamento em que se procura captar a expressividade de um rosto ou de um corpo com poucas linhas e em poucos segundos. Aliás, José Cláudio diz explicitamente que pinta o momento: “Isso: eu não pinto a coisa. Pinto o momento. Ou a coisa naquele momento. Cada coisa só vive um momento e tal momento não tem nada a ver com mais nenhum nem com ela no momento seguinte. O instante emocionante em que amadurece e a capto, de chofre, mesmo que seja por Continente agosto 2007

tentativas”. Ou, seja, sua pintura se move, se expande e se resolve não apenas no espaço como também no tempo. E é principalmente no tempo que ela se condensa enquanto obra de arte, embora se apresente como obra espacial. Essa pintura rápida, expressiva, viril, tem toda ela uma gramática própria, mesmo que o artista duvide um pouco a respeito: “Quanto à pergunta sobre quando eu percebi que tinha adquirido uma gramática pessoal, isso eu nunca percebi objetivamente nem tenho regras, se é que essa gramática existe. Apenas me dou conta às vezes de que estou enveredando por um caminho que não é o meu, como uma comida que o estômago não aceita, e dá até azia, “pirose” mesmo como se diz em medicina, e aí pulo fora, sem medo de botar o quadro a perder e nem mesmo procuro maquiar no quadro o caminho anterior que ia seguindo e recusei, sem me importar com aparência.


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É mais uma questão de não perder a alegria de pintar e o resultado será conseqüência disso. Eu percebo a certa altura que tem coisa que qualquer um pode fazer, basta um pouco de aplicação, e isso não me interessa. Eu quero a surpresa feliz, digamos”. O fato é que o artista chegou àquele ponto de maturação da sua obra que, ao vermos um quadro seu, mesmo antes de conferir a assinatura, já o identificamos: É um quadro de José Cláudio. Mesmo se levando em conta que ele é, provavelmente, o artista que mais fez “escola” em Pernambuco, havendo muitos outros que procuram seguir seu jeito de pintar. Também seus temas são sempre os mesmos: mulheres, passarinhos, marinhas, paisagens, brincadeiras, trabalho, carnaval. Mas José Cláudio é, ainda, autor de duas grandes séries. Uma, amazônica, quando

acompanhou como ilustrador uma expedição científica chefiada pelo zoólogo e compositor paulistano (de “Ronda”, entre outras obras primas), Paulo Vanzolini. A outra, é a série das prostitutas, quando montou seu ateliê num prostíbulo do Recife Antigo, praticamente se mudando para lá. Porque, para ele, é preciso mergulhar por inteiro no universo em que se quer trabalhar. É daí que o artista vai tirando nacos de vida, no instante preciso em que ainda estão em carne viva. O resultado é uma arte forte, vigorosa, vivaz. E para registrar o fascinante percurso de José Cláudio até esta arte, está sendo preparado um livro, com coordenação editorial da produtora cultural Carla Valença, pesquisa iconográfica da marchande Vera Magalhães mais texto e edição do jornalista que assina esta matéria. • Continente agosto 2007

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De Picasso à

contemporaneidade Aos 100 anos do emblemático quadro de Picasso, As Senhoritas de Avignon, o conceito de arte moderna ganhou uma extrema elasticidade Daniel Piza

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tela máxima do modernismo, As Senhoritas de Avignon, de Pablo Picasso, completou 100 anos de existência. O que isso quer dizer? Quer dizer que o modernismo, amigo, está velho, bem velho. Há boatos até de que já estaria morto. Mas não passam disso, boatos. O conceito de arte moderna é tão elástico que é capaz de ricochetear de volta em quem o estica. Para alguns, o primeiro artista moderno foi Goya, que adotou uma linguagem aguda e veloz para reagir aos acontecimentos de sua época. Para outros, foi Delacroix, com suas pinceladas curtas que transmitem vibração à tela. Para outros, ainda, foi Manet, com sua Olímpia, uma mulher avançada e ambígua, cuja volúpia parece um desafio na forma de um convite. Por fim, há quem diga que a arte moderna tem dois pais de temperamentos distintos, o rigoroso Cézanne e o ansioso Van Gogh, o primeiro pelo desenho que quebra a perspectiva, o segundo pelas cores que subvertem a convenção. (Como sempre, tal polarização implica muita injustiça. A cor em Cézanne é fundamental para criar uma sensação até mesmo táctil de realidade; a linha, em Van Gogh, para criar uma noção de volume que não obedece à perspectiva matemática.) Seja como for, o que ocorre na arte ao longo do século 19 é uma aproximação física – material, concreta, exposta na própria linguagem – entre sujeito e objeto. O artista fala mais abertamente de si mesmo ao falar de alguma coisa. O tema é quase um pretexto para ele exprimir sua condição pessoal e ao mesmo tempo torná-la universal, permitindo que o observador se identifique com seu estado de espírito. Há uma tentativa – antes de mais nada, admitida como tentativa – de superar a divisão entre Classicismo e Romantismo, entre o privilégio do objeto e o privilégio do sujeito. E isso, no início do século 20, especialmente com a obra de Picasso, chega a um ponto em que inaugura um procedimento, um modo de linguagem. Não que outros artistas como os citados não tenham realizado “rupturas”, breakthroughs equivalentes; mas o que se convencionou chamar de Modernismo tem sua forma mais característica com as Demoiselles.

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Um dos mais de 100 esboรงos que Picasso fez para As Senhoritas de Avignon

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Harmonia em Vermelho, de Matisse: uso revolucionário do decorativo

Antes de seguir, porém, vale anotar que toda uma escola de interpretação a respeito do Modernismo, escola que tomou corpo ao longo do século 20, causou uma série de distorções a respeito do que veio antes dele. A própria idéia de “ruptura” é contestável, até porque muitos – e Picasso em destaque – sempre declararam estar trabalhando a partir da tradição, a qual buscavam renovar por amor a ela, não para descartá-la como “coisa de museu”. Outra distorção diz respeito ao caráter mimético da arte pré-moderna. É como se tudo que foi pintado antes, digamos de Giotto a Goya, tivesse como missão única copiar a realidade exterior tal como é, “fotograficamente”, naqueles tempos em que não havia fotografia – e muito menos cinema e televisão – para registrar imagens de pessoas, coisas e paisagens. Supor que a preocupação maior de um Rembrandt fosse mimetizar as formas reais é reducionismo atroz. Também são insuficientes as explicações mais “técnicas”, digamos, sobre a mudança numa hierarquia entre forma e fundo. É verdade que Matisse usa elementos que antes seriam decorativos ou secundários numa pintura de um modo novo, dando-lhes peso relativo maior. Mas não se pode tomar essa atitude como se fosse um salto numa “linha evolutiva”, como se na pintura modernista já não houvesse hierarquia alguma, sintaxe alguma. Certos teóricos deram a entender que a finalidade da estética moderna seria fugir cada vez mais da Continente agosto 2007

representação, do reconhecimento de objetos reais na tela; daí às teses sobre a “explosão da superfície bidimensional” (em direção à arte conceitual, feita de instalações) ou a abolição total da “representação” (segundo a qual a pintura de Malevitch ou Mondrian não teria sentido algum, salvo o da própria questão de linguagem, o mero “arranjo de formas e cores”) foi um passo. Já é tempo de abandonar essas visões simplistas e lineares – ou seja, nada modernas – sobre a história da arte. O que os diversos movimentos modernistas propuseram, entre eles o Cubismo, pode ter soado “radical” ou “chocante” em sua época, mas as obras de arte que sobreviveram aos projetos utópicos e muitas vezes ideológicos são aquelas que não se basearam numa fácil refutação do passado, e, sim, numa elaborada revisão dele em face dos novos tempos, novos tempos marcados pela ascensão de uma vida urbana, novidadeira, inquietante, que obrigava e obriga o ser humano a repensar certezas a todo momento. Foi em grande parte por essa rotulação da arte moderna que o Modernismo perdeu fôlego. E que ele perdeu fôlego me parece cada vez mais claro. Bastaria o exemplo de Picasso, cuja obra tem uma grandeza e um vigor de quem busca se equiparar aos Grandes Mestres, que, ainda criança, estudava com afinco no Louvre. Ou Matisse, Miró, Mondrian. Mas pense também na literatura. Escritores da segunda metade do século 20, para não falar deste início de século 21, mal


ARTES disfarçam o poder que sobre eles exercem os fantasmas de grão-modernos como Marcel Proust, Thomas Mann, James Joyce, Franz Kafka. Seus livros são grandes aventuras lingüísticas e humanas, uma mistura sofisticadíssima de gêneros, visões profundas do indivíduo diante da história de seu tempo. Onde essa inventividade hoje? Onde essa abrangência? Tudo que se escreve hoje, inclusive por bons escritores como Philip Roth, Günter Grass, Ian McEwan, Amós Oz, tudo parece pálido, descafeinado, diante deles. Aos poucos parece evidente a um número maior de pessoas que as artes e as idéias – é melhor nem falar de cientistas como Einstein, Bohr ou Dirac – viveram entre 1880 e 1930 um período tão fértil quanto havia sido o Renascimento ou o Iluminismo. E, sendo tão fértil, é sob a sombra dele que vivemos até hoje, mesmo que conceitos como “Pós-Modernismo” – que na verdade é apenas a aposta mais sistemática em recursos já valorizados pelos modernos, como a alegoria e a colagem – tenham buscado um alívio para essa influência. Mas quem poderia negar que a obra de um Roth é, antes de mais nada, modernista, ou a pintura de um Anselm Kiefer? Não há entre elas e as obras de 100 anos atrás a diferença que há entre as Senhoritas de Avignon e Olímpia. De jeito nenhum. E este é o ponto central. Certo, alguém pode argumentar que algumas táticas modernistas se esgotaram. Diversos movimentos se asfixiaram em seus próprios excessos. Subprodutos da vanguarda de 100 anos atrás ultrapassaram limites que não são os da convenção ou do conservadorismo, mas os da própria noção do que é arte e do que é uma obra de arte duradoura. Certos músicos tentaram abdicar da melodia; autores de instalações converteram suas obras em acontecimentos sociais ou políticos, jamais estéticos; narradores da literatura e do cinema se entregaram a exercícios de obscuridades; poetas abriram mão da sintaxe; etc. etc. Enquanto isso, por sinal, o grande público continuou consumindo canções feitas de rimas e melodias, filmes que contam histórias com personagens, imagens figurativas em revistas etc. Cole Porter, John Ford, Saul Steinberg – não por menos cito três americanos – encontraram no gosto de todas as classes e gerações um lugar aonde Stockhausen, Robbe-Grillet, Duchamp jamais chegarão. Nessa bifurcação, no entanto, a arte perdeu força. Ou ela é comercial demais e portanto não quer saber de mesclar gêneros ou parecer densa, ou ela é experimental e portanto se dirige apenas aos pedantes e nem vê que também optou por uma convenção. Quando Picasso pintou

O Grande Vidro, obra radical de Duchamp

seu quadro em 1907, levou meses para terminá-lo; fez centenas de esboços, mudou de rumo várias vezes, perdeu noites de sono porque sabia que queria chegar a um território inexplorado e estava inseguro sobre como fazêlo. Sabia também que, depois de um estranhamento inicial, viria o encantamento geral. Para ele não havia oposição entre inovar e comunicar; ao contrário. E suas formas angulosas e sua composição vertiginosa são a melhor tradução expressiva disso. O Modernismo está vivo, ainda que um século tenha se passado. Talvez seja importante aceitar que grandes viradas são raras na história da arte e do conhecimento. O mesmo Modernismo, porém, criou a mentalidade de que há sempre uma grande ruptura a ser feita ainda. Eu já me contentaria com obras de arte que fossem tão inconformistas quanto às de um século atrás. • Continente agosto 2007

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

O quadro-enigma O quadro As Meninas sugere interpretações diversas, e isso deve ser visto como uma qualidade de Velázquez, pois, pela primeira vez, nos defrontamos com o que se poderia chamar de metapintura

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quadro As Meninas, de Diego Velázquez, pintado em 1656, tornou-se motivo de diferentes interpretações, como conseqüência de sua inusitada composição. As divergências começam na dificuldade do próprio tema da obra que, para alguns, como o historiador da arte Gombrich, são o rei e a rainha, que se vêem refletidos num suposto espelho situado no fundo da tela. A prevalecer essa interpretação, o rei e a rainha estariam sendo retratados por Velázquez na grande tela, de que só vemos o verso. Desse modo, as figuras que ocupam o primeiro plano do quadro – as meninas – teriam surgido na cena por acaso, ao entrarem inadvertidamente no ateliê do artista, no momento em que o casal real pousava para ele. Trata-se, como se vê, de uma interpretação caprichosa – para não dizer fantasiosa –, pois afirma que o tema principal do quadro é o que está ausente dele e não o que nele aparece com indisfarçável presença: a infanta Margarida, cercada de suas damas de honor, juntamente com um anão, uma garotinha e um cão. Isso sem falar no Continente agosto 2007

próprio Velázquez que está de pé atrás delas, na atitude de quem observa um detalhe da cena que está pintando. Mas, se o quadro sugere, como nenhum outro, interpretações diversas, isso deve ser visto como uma qualidade dessa obra de Velázquez, em que, pela primeira vez, nos defrontamos com o que se poderia chamar de metapintura, ou seja, uma obra pictórica que fala de seu próprio fazer, que – e aqui a interpretação é minha – transforma a cena pintada no tema da cena oculta, da obra em execução, já que, de fato, o tema real do quadro é o flagrante do pintor ao pintá-lo. Está difícil de entender? Talvez, por isso vou tentar ser mais claro. Para que se aceite esta interpretação, deve-se admitir que a obra em que Velázquez aparece pintando na tela de que só vemos o verso, é esta que está diante de nós. Para ser mais explícito: a tela que não se vê e diante da qual está o artista a pintá-la é a que está diante de nossos olhos: As meninas. A interpretação contrária à minha, segundo a qual Velázquez está pintando o retrato do rei e da rainha – que


veríamos refletidos no espelho –, carece de veracidade, uma vez que a relação entre o tamanho da tela e a distância dela para o espelho não permitiria aparecerem ali as figuras dos retratados, sem falar no fato de que, estando Velázquez entre a tela e o espelho, seria dele a imagem refletida e a não a dos retratados. Uma suposição plausível é aceitar que o que se diz que é um espelho seria uma tela em que o casal real estaria retratado. O argumento contra essa hipótese é que tal quadro não existia ali no ateliê de Velázquez; argumento que me parece frágil diante das seguintes hipóteses: e se o quadro foi tirado de lá mais tarde? E se realmente não havia aquele quadro e Velázquez o acrescentou à composição para completá-la? Se tais hipóteses não podem ser tomadas como indiscutíveis, tampouco podem ser descartadas como inviáveis. E assim retorno à minha interpretação, que me parece não apenas mais plausível como sobretudo mais rica: a cena das meninas, que constitui o núcleo da tela, está sendo vista pelo artista refletida num grande espelho situado onde nos situamos nós, os espectadores. Essa é, a meu ver, a única maneira As Meninas, Diego Velázquez, 1656, óleo sobre tela, 321 x 281 cm de explicar o fato de que elas estão representadas de frente para nós e de costas para ele, que está, de pincel na mão, atrás delas. aparece na tela, vendo refletido no espelho. Essa, acredito, Como poderia vê-las de frente se não estivessem refletidas terá sido apenas a visão inspiradora que o terá levado a num espelho? Esse modo de ver a tela torna-a especial- esboçar rapidamente a cena sobre a tela. A execução mesmente fascinante, pela surpreendente relação de tempo e ma terá se realizado com o pintor diante de seus modelos. espaço, uma vez que estamos vendo, pronta e de frente, E esse fato – uma espécie de falsificação do real, que é bem a composição que está sendo pintada na tela de que barroco – possibilitou ao artista, demasiado preso ao realisvemos apenas o verso, o detrás. Substituir essa visão por mo de seus temas, transcendê-lo do único modo que lhe qualquer outra é, a meu ver, quebrar o encanto que seria possível, sem incutir-lhe nenhuma fantasia e, sim, Velázquez imprimiu a ela, no momento em que trocou a pela violentação das relações da própria realidade que a visão natural – o pintor diante do modelo – pela visão do magia do espelho possibilita. Fernando Pessoa não disse que o poeta é um fingidor? O pintor também é. Por isso pintor atrás do modelo, que o espelho reflete. Certamente, ninguém imagina que Velázquez, de fato, mesmo, Picasso afirmou, certa vez, que a arte é uma tenha pintado todo o tempo o seu tema, na posição em que mentira mais verdadeira que a verdade. Continente agosto 2007

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Reprodução

TRADUZIR-SE


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CULTURA

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oram dois bem conhecidos intelectuais fran­ ceses – Roland Barthes e Michel Foucault – os primeiros intelectuais que apareceram, no mundo ocidental, um pouco mais do que pre­ conizando a “morte do Autor”. Mestres da moderni­ dade, eles a levantaram, em teoria, antes mesmo do apa­ recimento dos meios supostamente facilitadores dessa “morte” anunciada, por ambos, não por acaso na França – onde uma antiga revolução já havia caminhado para a autofagia política até gerar, alguns anos depois, um Império de espadas e dourados, dominado por um “autor” corso capaz de criar com o material plástico dos acontecimentos da história. O que é a criação? E o que é a imitação – e o plágio? Da Córsega para Elba e, de volta, para a Paris dos 100 dias, Napoleão imitou somente a si mesmo, copiou ape­ nas a sua própria imagem e morreu mais semelhante a si mesmo – na distante Santa Helena – do que qualquer criador literário lidando tão­somente com as palavras. “As idéias se aperfeiçoam. O significado das palavras participa do aperfeiçoamento” – já o disse alguém que poderia ter sido tanto Foucault quanto Barthes, os dois

A “morte do Autor” (e o elogio do plágio)? O conceito de autor não teria mais lugar onde não mais importa a origem das coisas Fernando Monteiro

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“agitadores culturais” de enorme influência que entre­ viram, à melhor maneira verniana, os desdobramentos do mundo de certa forma modernizado pela era napoleônica até se rematar, agora, no Ocidente da Nova Idade pós­ revolução industrial e pós­tudo. Nela, um nem sempre admirável new world instalou mudanças radicais, tangíveis e intangíveis, entre as quais aquelas trazidas ou permeadas pela realidade virtual­ eletrônica preparam, ainda, as mutações mais extraor­ dinárias no corpo plasmático da contemporaneidade. “As coisas mudam. O conceito de Autor é um con­ ceito do passado” – e não teria mais lugar, segundo alguns, onde não mais importa a origem das coisas. Isso é bom? Isso é mau? Essas voltas e essas perguntas estão sendo necessárias para abordarmos uma coisa intangível – em certa medida – como a autoralidade nesta altura posta em xeque de forma franca, desde quando foi preconizada até quando parece se consumar no mar aberto da nova teoria do Recombinatório. Quando a web ainda engatinhava como rede ten­ tacular sem rosto, alguém (que eu já esqueci quem foi), lá do seu cantinho de observador arguto, arriscou um


CULTURA palpite que fazia a cauda de serpente das teorizações da dupla de intelectuais franceses se enfiar na boca da Inter­ net transformada em ouroborus. Ele previa não propria­ mente o possível fim do conceito de autoria, mas a sua transformação num “agrupamento” em que todos que participam da interpretação e da mutação da corrente textual se tornariam “autores”. Isto é, o conceito de autor mudaria – em vez de “mor­ rer” – por “haver cessado” de funcionar na forma clássica pela qual nós viemos entendendo­o desde quando ele aparece – onde e quando? Não se sabe. Recentemente, vi Heloísa Buarque de Hollanda embarcando, numa palestra aqui no Recife, na canoa furada de defender que tal conceito teria surgido no período pré­revolucionário (novamente) francês, quando o aparelho repressor dos esbirros do poder monarquista queimava pestanas na busca dos autores de centenas de folhetos circulando com as idéias que levaram a fazer rolar as cabeças reais, as aristocráticas e, na seqüência, as dos próprios juízes egressos do Iluminismo em nome do povo (que sempre quer pão e circo – e não Sade e Joyce, com 200 anos pelo meio).

Pondo alguma ordem na casa deste texto – como seu legítimo autor –, digamos que se deva ir devagar com o andor ou com a guilhotina das teses que cortam o pescoço da história apresentada assim, sem pé nem cabeça. Pondo­a no lugar, e firmando o pé de novo na web, o fato é que estamos diante de alguns fenômenos ainda por se completarem, nas suas conseqüências mais radicais principalmente no campo da cultura. De acordo com Clement Greenberg, o autor teria se tornado, hoje, “um agrupamento abstrato que não pode ser reduzido à biologia ou à psicologia da personalidade. De fato, tal desenvolvimento tem conotações apoca­ lípticas – o medo de que a humanidade se perca no fluxo textual. Talvez os seres humanos não sejam capazes de participar na hipervelocidade. Deve­se responder que nunca existiu uma época em que os humanos fossem capazes, todos, de participarem da produção cultural. Agora pelo menos o potencial para uma democracia cultural é maior. O livro absolutamente não desapareceu. A indústria do livro continua a resistir à emergência do texto recombinante, e se opõe a aumentos na velocidade cultural. Colocou­se na lacuna entre a produção e o con­

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CULTURA sumo de textos, a qual por motivos de sobrevivência está constrangida a manter. Se for permitido que a velocidade aumente, o livro está fadado a desaparecer, junto com a pintura e a escultura, seus companheiros da Renascença. É por isso que a indústria tem tanto medo do texto recombinante. O texto recombinante fecha a lacuna entre a produção e o consumo, e abre a indústria para aqueles que não são celebridades literárias. Se a indústria for inca­ paz de diferenciar seus produtos através do espetáculo da originalidade e unicidade, sua lucratividade será amea­ çada”. Para Greenberg (o autor mais pertinente nesta matéria), por ora e “de uma perspectiva quotidiana, o autor vai muito bem, obrigado. Ele pode ser visto e tocado, e sinais de sua existência estão nas capas dos livros e revistas em toda a parte, sob a forma da assinatura. Contra tais provas, a teoria (da recombinação) só pode responder com a máxima de que o significado de qual­ quer texto tem sua origem exclusivamente em sua relação com outros textos. Tais textos dependem dos que vieram antes deles, do contexto no qual estão colocados e da habilidade interpretativa do leitor. Esse argumento, é claro, não convence a todos. Enquanto for este o caso, nenhuma legitimação histórica reconhecida apoiará os produtores dos textos recombinantes, que sempre serão suspeitos aos olhos dos mantenedores da ‘alta’ cultura”. Foto: Reprodução

Usada três vezes em 20 linhas, a palavra­chave aqui é “recombinante” – advinda do conceito ainda muito duvi­ doso da “recombinação” greenberguiana como novo nome do plágio legitimado. Na literatura, principalmente, seus adeptos enxergam uma longa história de apropria­ ção mais ou menos “plagiária”, em maior ou menor grau, da qual, no Brasil (para tomar um exemplo mais próxi­ mo), um Machado de Assis teria feito uma espécie de pré­recombinação – ainda primitiva, em face do hipertex­ to – de Sterne e Stendhal, entre seus materiais de produ­ ção de “originalidade” devedora também de Balzac e Dickens por sua vez devedores do Cervantes devedor aos romances de cavalaria credores da roda de fogueira onde Homero teria recitado o seu poema frankmilleriano da antiguidade sem hipervelocidades outras senão a de alguma afiada espada sobre o cangote de um troiano há muito sepultado em praias encharcadas de sangue. Para muitos, a visão retrospectiva da história da cultu­ ra tem todas as marcas de uma avant­recombinação fun­ damental na circulação de idéias, significados, formas e invenções mais ou menos de todos, até chegarmos à praia relativamente asséptica da tecnologia de hoje, com espe­ cial ênfase no mundo agora dependente do computador para a produção de tudo – desde os mísseis substitutos da lança até a arte produzida por via dos sistemas (cada vez mais avançados) de geração de imagem, tudo fluindo em velocidades que se superam ano após ano. A “rede” – essa palavrinha curta e mais do que longa de alcance – faz tudo se cruzar, inter­ cambiar­se e modificar­se, em conseqüência, de um modo que diluiria fronteiras e conceitos deslocados no mundo virtual de agora. Para entender melhor isso, ouçamos de novo Clement Greenberg: “Numa sociedade dominada por uma explosão de 'conhecimen­ tos', explorar as possibilidades de significado naquilo que já existe é mais premente do que acrescentar informações redundantes (mesmo quando produzidas por meio da metodologia e da metafísica do 'original'). No passado, argu­ mentos a favor do plágio se limitavam a mos­ trá­lo como meio de resistência à privatização da cultura que serve às necessidades e desejos

Michel Foucault foi um dos primeiros intelectuais a preconizar a tese da "morte do Autor"

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CULTURA

Para Clement Greenberg, "numa sociedade dominada por uma explosão de ‘conhecimentos’, explorar as possibilidades de significado naquilo que já existe é mais premente do que acrescentar informações redundantes”

da elite do poder. Hoje se pode argumentar que o plágio é aceitável, e até mesmo inevitá­ vel, dada a natureza da existência pós­moder­ na com sua tecno­infra­estrutura. Numa cul­ tura recombinante, o plágio é produtivo, embora não precisemos abandonar o modelo romântico de produção cultural que privilegia um modelo de criação ex-nihilo”. E o teórico do plágio escancara sua defesa desse recurso que, para ele, só poderia ser “anatemizado” pelo mundo da burocracia: “O plágio freqüentemente carrega um peso de conotações negativas (particularmente na classe burocrática). Enquanto a necessida­ de de sua utilização aumentou com o passar do século, o plágio foi camuflado em um novo léxico por aqueles desejosos de explorar essa prática enquanto método e como uma forma legítima de discurso cultural. Readymades, colagens, found art ou found text, intertextos, combines, detournment e apropriação – todos representam incursões no plágio. De fato, esses termos não são sinônimos perfeitos, mas todos cruzam uma série de significados básicos à filosofia e atividade de plagiar. Filosofica­ mente, todos se opõem a doutrinas essen­ cialistas de produção de textos: todos pressupõem que nenhuma estrutura dentro de um determinado texto dê um significado universal e necessário. Nenhuma obra de arte ou filosofia se esgota em si mesma, em seu ser­ em­si. Tais obras sempre estiveram relaciona­ das com o sistema de vida vigente da sociedade na qual se tornaram eminentes”. Nesta 25ª hora na qual estamos, talvez, assistindo ao enterro do Autor no cemitério crepuscular da tecnologia da máquina triunfante, tudo indica que seremos convidados a deixar o campo santo para ir visitar a maternidade onde o Plagiador acaba de nascer, lavado de todos os pecados da originalidade. Agora, sim, parece haver chegado o Admirável Mundo Novo, num dos aspectos daquilo que ele tem de menos “admirável”: o clamor em favor do plágio, no universo hipertextual onde ninguém é de ninguém (se alguém já disse isso, numa canção, estou a apropriar do verso, por que não?) e tudo é de todos. •

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CINEMA

Goya no cinema


CINEMA

Imagens: Divulgação

Sombras de Goya, dirigido por Milos Forman, com estréia prevista para setembro no Brasil, retrata nas telas a caracterização e iluminação dos ambientes pintados pelo artista espanhol André Dib

Stellan Skarsgård no papel de Goya

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o fim do século 18, em uma assembléia ordinária da Inquisição espanhola, passam de mão em mão desenhos de mendigos, prostitutas, padres embriagados, demônios, zoomorfos e animais pestilentos. Os padres, indignados, pretendem submeter o autor à “Questão”, queimar suas gravuras. Não o fazem por­ que Lorenzo Casamares, um monge de olhar decidido e fala convincente, o defende com firmeza, e oferece em troca uma opção muito mais apetitosa: o aumento da austeridade das ações do “Santo Ofício”. Estas são as primeiras cenas de Sombras de Goya, dirigido por Milos Forman, com roteiro de Jean Claude­Carrière, e que estréia no Brasil neste mês de setembro. No elenco, Javier Bardem, Natalie Portman (Forman a escolheu por achar a atriz parecida com a mulher do retrato Lechera de Burdeos) e Stellan Skarsgård no papel de Goya. Atores de diferentes nacionalidades, contracenando em um filme linear, à moda antiga. O cineasta tcheco nunca teve apetite por malabarismos de linguagem, prudência que ajudou a popularizar sua filmo­ grafia. Tanto que, em 1984, Mozart se transformou em ícone pop graças a Amadeus. De forma que as qualidades de Sombras de Goya estão em outras esferas da arte cinematográfica, como na impressionante mise-en-scène capturada com luz natural ou de velas. O salão real, interiores de cárcere, o pátio do hospício lembram a caracterização e iluminação dos ambientes pintados por Goya. No roteiro destaca­se a economia e precisão dos diálogos. Tendo imprimido seu nome na história do cinema ao escrever com Luis Buñuel clássicos como A Bela da Tarde, O Discreto Charme da Burguesia, O Fantasma da Liberdade e Esse Obscuro Objeto do Desejo, Jean Claude­Carrière também roteirizou A Insustentável Leveza do Ser, Brincando nos Campos do Senhor e Valmont, este último, outra parceria com Forman. Para sua nova composição, Carrière elegeu dois momentos cruciais da época vivida pelo pintor aragonês. Um, em 1792, quando a recrudescente Inquisição volta a torturar suspeitos de praticar heresias como o judaísmo, protestantismo e a ciência; o outro, entre 1808 e 1812 – um período turbulento em que a Espanha não passava de uma marionete disputada entre a Inglaterra e a França. Entre as duas extremidades totalitárias, está Goya, um personagem central – mas não principal –, a registrar tamanha miséria humana para futuras gerações (a série de grabados de Goya não teve popularidade em sua época). A conduzir o espectador nesta sucessão de fatos históricos está a tragédia pessoal do monge dominicano Lorenzo Casa­ mares (Barden) e Inês Bilbatua (Portman). O primeiro se vê Continente agosto 2007

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Javier Bardem luta contra a Inquisição no filme Sombras de Goya

dividido entre o mundo da fé e o da razão. Enquanto posa para Goya finalizar seu retrato, repara em outra tela no canto da sala, a de uma mulher com rosto angelical. É o retrato da musa Inês, filha de Tomás Bilbatua, um rico comerciante. Na seqüência seguinte, por ter recusado comer carne de porco em uma taverna, Inês se vê presa e torturada pela Inquisição por suspeita de judaísmo. O pai, Goya e Lorenzo tentam em vão libertá­la. Lorenzo, com seus valores em crise, foge para a França para voltar esclarecido pelas luzes do racionalismo. A Goya resta observar as desventuras com lamento, por vezes indignado, por outras, carregado de melancolia. Tenta, mas não con­ segue interferir no destino de seus afetos. Não se sabe se Lorenzo e a família Bilbatua realmente existiram. Provavelmente não, são arquétipos, a reunir as angústias, ambigüidades e o espírito desta época assombra­ da, tanto pelas forças conservadoras que assombravam a Espanha isolada pelo obscurantismo quanto pela violência com que a liberdade­igualdade­fraternidade foi imposta pela expansão territorial napoleônica. Duas faces do mesmo extremismo em nome da manutenção do poder. O diretor –­ Forman, órfão desde que os pais parti­ ram para a morte nos campos de concentração, para depois ser expulso do próprio país dominado pela União Soviéti­ ca, parece ter se identificado bastante com aquele período da história em que se matava em nome de Deus, ou da liberdade. “Procurei na Espanha de Goya os ecos de minha vida sob o nazismo e o comunismo”, explicou, à época do lançamento, na Europa.

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Daí se entende por que esta não é mais uma cinebiogra­ fia deste diretor, gênero por ele largamente praticado sobre personalidades tão díspares como o editor de revistas pornô Larry Flint, o pianista alemão Wolfgang Amadeus Mozart e o humorista às avessas Andy Kaufmann (prepara­se agora para contar a história do profissional do pôquer Amarillo Slim). Se há algo parecido sobre Goya na cine­ matografia mundial, foi feito por Carlos Saura, no defi­ ciente, porém onírico, Goya en Bourdeos (1999), onde o pintor no fim da vida transcende perdido num labirinto de reminiscências. Mesmo desprovida de precisão biográfica, a caracteri­ zação de Goya como “testemunha ocular dos acontecimen­ tos” é bem convincente. Ele traz em si a cordialidade necessária para sobreviver naquele ambiente opressor, uma sabedoria discreta que só um ilustrado liberal e “afrancesa­ do” poderia ter, mais o pesar de quem carrega o fardo da surdez e mantém os olhos bem abertos para a miséria humana ao redor. O artista no cumprimento de seu ofício é um dos pontos altos de Sombras de Goya. O artista – Francisco de Goya y Lucientes nasceu em 1743, em Fuendetodos, vila que até hoje tem pouco mais de 170 habitantes, na província de Zaragoza, reino de Ara­ gão (norte da Espanha). Filho de um artesão dourador de objetos sacros, iniciou­se cedo no estudo da pintura, cujos “mestres reais” se revelaram Velásquez, Rembrandt e a natureza, teria dito. Em Madri, sob a proteção de um amigo da família, Francisco Bayeu (cuja irmã, Josefa, foi casada com o pintor até o fim da vida), foi aos poucos


CINEMA construindo sua reputação com trabalhos para a Igreja, a aristocracia, assim como a Fábrica de Tapeçaria Real. Em 1786 foi nomeado Pintor Oficial da Corte, e passa a ser reconhecido como o maior pintor da Espanha. Per­ maneceu no cargo até se aposentar, aos 80 anos de idade. Em 1795 uma doença deixou Goya completamente surdo e parcialmente cego. A partir daí iniciou sua produção mais crítica e independente. Na brilhante série de gravuras Los caprichos (1797), sua visão impiedosa sobre costumes e ins­ tituições antecipou a rebeldia ideológica presente nas artes gráficas do século 19 em diante. Para defender­se da reação conservadora, publicou um anúncio do Diário de Madrid, onde disse ser “tão próprio da pintura criticar o erro e o vício humano quanto o é da prosa e poesia”. Graças a amigos em diferentes círculos de poder, trafe­ gou incólume dos abusos moralistas da Inquisição e do exército assassino de Napoleão. A partir de 1808, Madri se tornou um cenário de guerra, devidamente registrado por Goya na série Los desastres de la guerra, e nas telas El Dos de Mayo de 1808 em Madrid (1808 – 1814) e El Tres de Mayo de 1808 em Madrid o Los fusilamentos em la montaña del Príncipe Pio (1814), duas de suas obras mais importantes. Simpatizante discreto (e crítico) do ideário iluminista, Goya assistiu à restauração da dinastia dos Bourbon, para depois cair sob a suspeita do nefasto Santo Ofício católico pela pintura La Maja Desnuda. Seus últimos anos em Madri não foram felizes, é possível concluir, ao observar as derradeiras Pinturas Negras. Com a autorização do novo rei, Ferdinando VII, visitou a França, onde passa a viver até 1828, quando morre, em Boudeaux, ao lado de compa­

O filme tenta reproduzir a caracterização e iluminação dos ambientes pintados por Goya (imagem ao lado)

triotas ilustrados e demais expatriados após a volta do status quo conservador na Espanha. O livro – Nada disso está no filme, com pouco ou nenhum espaço para narrações verbais, conjecturas ou psicologismos. A dupla Carrière/Forman reservou as palavras para o romance homônimo, lançado recentemente no Brasil pela Companhia das Letras. Nele se revelam o passado, crenças e motivos de Lorenzo e demais personagens, as tramas políticas por trás das baionetas, e demais abstrações que só a literatura pode proporcionar. A versão escrita também acrescenta mais diálogos às mesmas situações, como na reunião inicial da Igreja a analisar a série Los Caprichos. Lorenzo conversa com o líder, Padre Gregório, que comenta: – Isso é bastante perturbador. – É verdade. Ninguém fica insensível diante delas. Às vezes, o coração se revolta. No entanto, essas gravuras nos mostram o mundo, o nosso verdadeiro mundo. Tal como ele é. – Com todos esses horrores? Todos esses monstros? – O mundo, meu pai, é feito do que vemos e do que imaginamos. Não vemos os demônios, mas temos certeza de que eles estão aí, em torno de nós”. Antes de ser uma boa introdução ao universo de Goya, Sombras Goya é uma reportagem visual de Forman/ Goya, o retrato de uma época conturbada para lembrar­nos de que disparates, desastres e caprichos não são exclusividade de alguns povos, crenças ou ideologias. São como fantasmas a assombrar igualmente todos os sonolentos seres humanos. •

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CINEMA

Sólo Goya

Foi preciso um violento acidente de carro para vir à tona se não o melhor, certamente o mais interessante tratado já escrito sobre Goya. É raro encontrar publicações sobre arte ao mesmo tempo profundas e acessíveis, e Goya, de Robert Hughes, é um desses casos. Reconhecido por seu talento em traduzir a high culture para o grande público, função exercida nas páginas da Time Magazine, o crítico australiano fez do livro um retrato abrangente e vigoroso não só do artista, mas de todo o contexto político, social e de costumes vivido por ele. Escrito em primeira pessoa e com tom quase confidencial, Hughes constrói, clara e fluentemente, um painel que permite ao leitor acumular referências o sufi­ ciente para entender o contexto histórico e pessoal que possibilitou a Goya produzir obras tão magníficas quanto perturbadoras. Este árduo trabalho deriva do fascínio pelo pintor, que vem desde a adolescência, quando adquiriu sua pri­ meira obra de arte, a famosa e emblemática gravura El sueño da razón produce muonstros (Capricho 43, de 1797). Desde 1970 vivendo nos EUA como crítico de arte, por muitos anos Hughes quis escrever um livro sobre Goya, para ele, “o último Grande Mestre, e o primeiro Modernista”. No entanto, esta enorme

Reprodução

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La Maja Vestida, Goya, 1805, óleo sobre tela, 97 x 190 cm

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importância dada por ele ao artista, também o impedia de se sentir à altura do empreendimento. Oito anos atrás, um acidente de carro quase matou o crítico. O choque tam­ bém quebrou o sentimento que o bloqueava. “O impacto esmagou meu corpo, como o de um sapo; uma parte tão grande da estrutura do meu esqueleto do lado direito foi quebrada, deslocada ou pulverizada, que minhas chances de sobrevivência foram consideradas extremamente baixas”, conta, nas primeiras páginas do livro. “Foi através do acidente que travei conhecimento com a dor, o medo e o desespero extremos; e pode ser que o escritor que não conhece o medo, o desespero e a dor não tenha como compreender – totalmente – Goya”. Durante os meses em que ficou em coma, Hughes teve prolongadas visões e sonhos com Goya e seu universo artístico, momentos tidos como iluminadores para este projeto. “Eu não poderia me imaginar tendo alucinações dessa maneira


CINEMA sobre Delacroix ou Ingres, cuja obra eu também adoro. Cayetana, a duquesa de Alba. A despeito de tudo o que já Mas muitas pessoas, eu mesmo incluído, pensam em Goya foi dito, Hughes sustenta que não houve nada de sexual como parte da nossa própria época, quase tão nosso entre o artista e sua musa. Se no mais belo retrato da dama contemporâneo quanto Picasso, igualmente morto: um há uma inscrição na areia, ao lado de seus pés, que diz sólo ‘artista moderno’. Goya parece ser uma figura axial, a Goya (somente Goya), o crítico garante que isso tem mais última do que estava acabando, e a primeira do que estava a ver com um desejo incontido do pintor, surdo, sexagená­ por chegar”, avalia. rio e pouco atraente, do que com qualquer consumação dos A busca primeira almejada por Hughes é entender fatos. Enfim, uma “lenda urbana”, em interpretação como, mantendo o olhar quase fotográfico sobre a realida­ recentemente publicada por Manuela Mena, no livro La de, um artista pode mudar tão radicalmente ao longo dos duquesa de Alba “musa” de Goya – El mito y la historia. anos. Para ilustrar seu pensamento, compara duas telas, La Tampouco a duquesa teria sido modelo para as telas pradera de San Isidro (1788) e Peregrinación a la fuente de San Maja vestida e Maja desnuda. Os quadros, que renderam Isidro (1821–1823). A primeira apresenta uma paisagem grande dor de cabeça ao autor após horrorizar os monges reluzente e colorida, com figuras humanas em momentos da Inquisição, foram encomendados pelo ministro da corte de prazer coletivo; a segunda, real Manuel de Godoy, e uma das Pinturas Negras a tiveram como modelo prová­ sobreviver às intempéries (por vel uma jovem amante de ter sido feita a óleo, diretamen­ Godoy chamada Pepita Tudo, te nas paredes de seu sobrado), de Málaga. O crítico elucida mostra o mesmo local como que, na mesma época atribuí­ um palco escuro e ator­ da às obras, a duquesa estava mentado, um verdadeiro tea­ próxima da morte (por den­ tro dos horrores. gue e tuberculose). A “sexua­ Não é exagero ver em lidade desafiadora” da Maja Hughes um investigador num desnuda com certeza não cenário em que todos os envol­ estaria mais em seu corpo. vidos deixaram poucas pistas. “Uma pena do ponto de vista Sem medo de arriscar, ele con­ do folclore cultural, mas, jura longas hipóteses em hia­ talvez, também, um alívio”, tos biográficos (não são comenta. poucos) e descarta interpreta­ Intelectual afeito à cultu­ ções equivocadas ou especula­ ra pop, Hughes compara as tivas sobre a vida e obra do feições da duquesa com as pintor espanhol. De Goya, as da atriz Cher (chega a poucas palavras escritas estão lamentar ela não ter idade na correspondência nem sem­ para fazer seu papel no pre esclarecedora, entre ele e Goya, de Robert Hughes, Companhia das Letras, 504 páginas, lugar de Ava Gardner na R$ 85,00. Martin Zapater, um amigo de produção hollywoodyana de infância. Durante a recons­ 1959 The Naked Maja). trução do universo da arte européia, oprimida entre as Com igual naturalidade, vê no desenhista underground luzes do Iluminismo e as trevas da Inquisição, fica claro o Robert Crumb características do pintor aragonês, motivo de Goya não ter alcançado o nível de um Velásquez, como a predileção pelo bizarro e o monstruoso. Não que em plena Era de Ouro espanhola (século 17) traba­ deve hesitar, portanto, em admitir semelhança entre as lhou com muito mais estabilidade do que seu sucessor na fotos das atrocidades cometidas no presídio iraquiano corte. de Abu­Graib e as gravuras da série Los desastres de la Entre as várias narrativas críticas e históricas, há espaço guerra, deste que é “o mais poderoso repórter da inclusive para desmitificar notórias especulações sobre a angústia humana em toda a arte ocidental”. (André vida íntima de Goya, como o seu romance com Maria Dib). • Continente agosto 2007

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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Modas e sabores “Numa velha receita de doce ou bolo há uma vida, uma constância, uma capacidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com as modas”. (Gilberto Freire, Açúcar)

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s pratos imitam a vida. Como ela, uns nas­ cem e outros morrem. Que a “vida é só um intervalo entre o que passou e o que passará”, assim dizia Fernando Pessoa (na voz de Bernardo Soares). Volto no tempo. E lembro dos primeiros pratos que provei em restau­ rante – coquetel de camarão e estrogonofe. São nomes que desapareceram dos cardápios de hoje. Saíram de moda, substituídos que foram por carpaccios e risotos. Essa mudança é natural. Hábitos alimentares se formam aos poucos. E vão se modificando, ao longo do tempo, sofren­ do influência de outras culturas. A própria culinária brasileira é formada com ingredientes, técnicas e experiên­ cias das culturas indígena, africana e portuguesa. No séc 17, base da nossa alimentação era então arroz, farinha, feijão, carne seca, milho, peixe, laranja e banana – pura ou com mel de engenho e farinha. Na sobremesa, doce de nossas frutas e pão­de­ló – o mais popular dos bolos portugueses, presente em todas as comemorações. Daí a expressão “pão­de­ló de festa” – para referir aqueles que não perdem festa nenhuma. Com a vinda de D. João VI, no início do século 19, a vida social do Brasil tornou­se intensa e refinada. Comidas e bebidas eram todas postas à mesa, juntas na mesma hora – para que cada um então se servisse à vontade, segundo suas preferências. A grande novidade dos talheres chegou na bagagem da família real. Mas ficavam, aqui, quase sempre guardados nas malas. Deles se usando apenas umas poucas facas – que pas­ savam de um para outro comensal; e algumas colheres, embora raras. Sopas e caldos, até nas residências mais nobres, continuavam sendo servidas em pequenas tigelas de louça, tomadas emborcando na boca. Sem o uso das tais colheres, pois.

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Com o tempo outros países foram nos deixando suas marcas. A começar por França e Inglaterra. Aqui chega­ ram conservas, doces, frutas, queijos e patês de fois gras. Bebidas também – cervejas, chás, licores e vinhos france­ ses. O cacau, exportado para a Europa, nos voltava agora em chocolates que iam conquistando o brasileiro. Sur­ giram confeitarias, restaurantes e sorveterias. Chegaram espanhóis, alemães, portugueses dos Açores (açor é uma ave de rapina), russos e suíços, todos com suas receitas. Italianos também, muito contribuindo para o enri­ quecimento de nossa culinária com berinjelas, carnes à milanesa, massas (principalmente macarrão), molhos (pes­ to, tomate e bolonhesa), nhoques, panetones, pizzas, polentas, sopas (minestrone) e principalmente risotos. Mas assim como roupas, carros, músicas, candidatos, jeitos de arrumar a mesa e de receber os amigos, também os pratos seguem a moda. A seguir, como prova desse discurso, vão dois exemplos de pratos que foram ou passaram a ser importantes em nossas mesas. Um que saiu de moda – o estrogonofe. Outro que cada vez faz mais sucesso – o risoto. O VELHO E BOM ESTROGONOFE – Tudo começou na Rússia do século 16, quando as rações dos soldados eram basicamente carnes cortadas em pedaços. Essas carnes, nos depósitos de mantimentos das tropas, ficavam em grandes barris – misturadas com sal grosso e aguardente, para que se conservassem por mais tempo. Na hora de preparar, fritava­se em gordura e servia com cebolas. Só mais tarde o prato ganhou esse nome – no reinado de Pedro, o Grande (1682­1725). Mais precisa­ mente quando o imperador pediu a seu cozinheiro que preparasse jantar especial, em homenagem ao general


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Stroganov. Não era um militar qualquer. Pertencia à família nobre de Novgorod, lugarejo que fica no entorno de São Petersburgo – uma cidade fundada pelo próprio Pedro. Só para lembrar: a cidade mudou, em 1914, para “Petrogrado”. Na Revolução Russa, em homena­ gem a Vladímir llitch Lênin, passou a ser “Leningrado”. Voltando em 1991, ao nome original – São Petersburgo. Voltando aos Stroganov, interessa aqui é que construíram vilas, fortalezas, fabricas de armas e, como se fosse pouco, até conquistaram a Sibéria. Sem contar que esse ilustre general acabara de derrotar Carlos XII (em 1709), na Poltava. O experiente cozinheiro então decidiu servir algo que lembrasse aquela carne picada tão apreciada pelo general, nos campos de batalha. Dando ao prato, claro, um visual novo – para tanto acres­ centou creme azedo, o mesmo usado nos blinis do Imperador. Deu certo. A aprovação foi apoteótica. Depois o prato acabou ganhando novos ingredientes. E começou a freqüentar todas as mesas nobres. No final do século 19, Thierry Coster, famoso cozinheiro francês, passou uma temporada trabalhando em palácios da Rússia. E aproveitou para introduzir, na receita, requintes euro­ peus – cogumelos franceses, mostarda alemã, páprica húngara. Foi mais longe. Decidiu flambar a carne com conhaque, ainda substituindo aquele creme azedo dos blinis por um creme de leite fresco. A receita logo ganhou o mundo, na bagagem da aristocracia russa expulsa de sua terra pela revolução de 1917. Na França fez tanto sucesso que acabou até incluída, pelo conde Serge Alexandrovitch, no cardápio de Maxim's de Paris. Ao Brasil chegou na Segunda Guerra, trazida por imigrantes russos. Entre eles, uma descendente da família Stroganov, Sophie – que casou e viveu em São Paulo, até agosto de 96, quando morreu no frescor de seus 82 anos. Aqui novos jeitos de preparar o prato foram surgindo; tendo como base já não apenas carne, mas também frango, camarão ou presunto. Hoje os descendentes de Sophie reconstruíram a velha mansão em Novgorod, que passou a ser um museu. Expondo feitos e pertences da família. Inclusive a origem do prato famoso. Nos anos 70, nenhuma refeição requintada prescindia de estrogonofe. Depois, coitado, acabou relegado ao mais cruel e injusto esquecimento. Passou a ser considerado prato de segunda categoria. Moda vai, moda volta. Collor foi presidente, acabou cassado e é senador da República. A vida tem seus mistérios. Agora falta só voltar à moda o velho e bom estrogonofe. Divulgação

O FAMOSO E POPULAR RISOTO – Silvana Mangano, atriz italiana dos anos 50, passou quase o filme todo embaixo de um sol forte e com os pés nas águas de uma plantação de arroz. Acabou morrendo, coita­ da. E não por alguma doença ribeirinha. Mas de amor. Jogan­ do­se do alto de uma torre, desesperada pela morte do grande Vittorio Gassman. Esse filme era Riso Amaro (Arroz Amargo), de Giuseppe de Santis – um dos muitos produzidos pela Cinecittá, depois da Segunda Guerra. E o rio em que estava aquele arrozal era o Pó, que corta a Continente agosto 2007


SABORES PERNAMBUCANOS Itália entre cidades e sabores – Parma e seus queijos, Bologna e seus molhos, Ferrara e seu cappeletti de abóbora. Cremona também, terra de Stradivarius (e seus violinos), onde um festival de risoto permite saborear variações desse prato: risotto alla certosina (certosina vem de cartuxa, a famosa ordem religiosa fundada por São Bruno) – com ervilha, camarão flambado, queijo parmesão e tomate; alla veronese (de Verona, terra de Julieta, onde morreu com seu amado Romeu) – usando presunto cozido e molho de cogumelo servido à parte; con funghi – usando cogumelos secos; di frutti di mare – com frutos do mar e caldo de peixe; di nero (negro) – com a tinta negra de polvo; di scampi (livres) – com camarão e muito alho; alla zucca – com abóbora; alla Maraneso – com mexilhões; e, mais famoso deles, o milanese – feito com açafrão. Esse açafrão chegou a Milão por volta do século 13. Nessa época, era só pigmento para pintura de afrescos e vitrais. Até quando casou a filha de certo Valério Profondavalle – um artesão flamengo que montava os vitrais do duomo de Milão. Conta­se que um pacotinho dessa especiaria, por feliz acaso, então caiu na panela do arroz da festa. Deixando o prato com sabor especial e uma cor dourada única. Casamento perfeito... o do prato. Nunca mais se separaram. Sem notícias de se os noivos foram, também eles, felizes para sempre. Ao Brasil chegou em fins do século 19, trazido por imigrantes italianos. Por aqui, foram ganhando ingredien­ tes nossos – charque, crustáceos, galinha, pato, queijos. Em seu país de origem, o risoto nasceu como prato popular. Mas foi se sofisticando, a partir do século 14. Sobretudo quando o doge de Veneza decidiu celebrar o dia de São Marcos (25 de abril), padroeiro da cidade, servindo esse prato para quem o quisesse provar. O sucesso foi retumban­ te. A palavra, em italiano, é diminutivo de riso (arroz). E tem origem em dialeto lombardo­piemontês, com o sentido de “sopa enxuta”. Não por acaso, que tem mesmo consistência de sopa grossa. Quase como uma papa. E risoto bom para italiano, não custa lembrar, deve ter consis­ tência all'onda – de uma onda. O prato é feito com arroz corto (pequeno) e tozzo (gordo), que liberam amido na medida certa, fazendo com que os grãos fiquem juntos, cremosos, mas sem encharcar. Ideal, para o prato, são os italianos arbório, vialone nano ou carnaroli. Na falta deles, pode­se usar o parboilizado. A expressão vem do inglês to parboil, que significa pré­cozido. Contribuição americana a um prato tipicamente italiano. Para piorar, os italianos acabaram todos indo filmar em Hollywood. Soubesse isso a bela Silvana Mangano, coitada, e teria morrido ainda mais cedo. De raiva. • Continente agosto 2007

RECEITAS

Divulgação

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ESTROGONOFE (de d. Sophia Stroganov) INGREDIENTES: 1 kg de filé mignon 100 g de manteiga 1 cebola grande picada Alho picado a gosto Sal e pimenta do reino, moída a gosto Páprica doce Suco de ½ limão 2 tabletes de caldo de carne 300 g de cogumelos ½ litro de creme de leite ½ xícara de conhaque 1 colher de sopa de trigo PREPARO: •Corte o filé em tiras finas (no sentido das fibras da carne). •Tempere com sal, pimenta, páprica e limão. •Passe a carne na farinha de trigo e frite na manteiga (junto com cebola e alho), até que fique dourada. •Despeje o conhaque e flambe. •Acrescente os tabletes de caldo de carne, dissolvido em bem pouca água. Esfregue bem o fundo da panela, fazendo um molho escuro. Deixe reduzir o molho. •Junte creme de leite e cogumelos. •Sirva com arroz branco e batatas cozidas, passadas ligeiramente na manteiga.

RISOTO DE PITU INGREDIENTES: 2 kg de pitu, 400 g de arroz (arbório ou carnaroli), 1 cebola picada, 3 colheres de sopa de azeite de oliva, 3 colheres de sopa de manteiga, ½ xícara de vinho branco seco, 1 ½ litro de caldo de peixe, 2 envelopes de açafrão, 2 colheres de sopa de parmesão ralado. PREPARO: •Doure a cebola no azeite e em metade da manteiga. •Junte o arroz e refogue. •Coloque o vinho e deixe evaporar em fogo alto. •Junte o pitu (descascado, temperado com sal e pimenta) e, aos poucos, o caldo de peixe fervendo (acrescido de açafrão). Mexa. Quando for secando, vá juntando mais caldo até que o arroz esteja "ao dente". •Retire do fogo. Acrescente o restante da manteiga e o parmesão ralado. Misture bem e sirva imediatamente.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Anotações de um repórter: A previsão do cardeal Arns sobre o papa João Paulo II

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978. Pergunto a D. Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo: – De que maneira efetiva poderia a Igreja, no Brasil, ser o fermento de transfor­ mação das estruturas sociais? D. Evaristo me responde (“só lhe peço que escreva exatamente o que vou lhe ditar”): – Pondo a descoberto a verdade e propondo justiça. Depois, treinando comunidades, para a busca de soluções. Ao mesmo tempo, motivando universidades e instituições de pesquisa a buscar alternativas que não sejam comunismo nem capitalismo. Pergunto: – Naquele que foi considerado o primeiro comentário público do Kremlin a respeito de João Paulo II, o semanário Tempos Novos, de Moscou, afirmou que “a ascensão de um cardeal polonês ao trono pontifício é o melhor desmentido ao mito da ‘Igreja do Silêncio’ nos países socialistas”. – “Igreja do Silêncio” foi expressão muitas vezes repetida, porque é fato e não um mito, até verificável no Brasil. Nossa posição não é de antinomia. Cristo é a lei do Amor: um Amor inteligente e crítico. Outra pergunta: – Mesmo em círculos não católicos ou sequer cristãos, a eleição do novo papa, João Paulo II, despertou entusias­ mo e alegria. Como o senhor explica tal euforia? – O papa tem ombros largos. Igualmente, cultura universal. É homem de diálogo e de convicções seguras e abrangentes. Seguro como rocha. Realista e esperançoso. Umas 20 pessoas ainda esperavam ser recebidas por D. Evaristo Arns naquele começo de noite. Despe­ ço­me. D. Evaristo aperta com força minha mão, pede­me que “apareça sempre”. Já na porta, sussura­me ao ouvido: – Coragem. • Continente agosto 2007

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CÊNICAS

Metal nobre Cia. do Latão celebra 10 anos de atualização de Brecht no Brasil e assegura seu lugar como o mais consistente grupo brasileiro de pesquisa em teatro épico-dialético Rodrigo Dourado

Cybele Jácome (centro, abaixo) faz parte do elenco da peça Círculo de Giz Caucasiano


CÊNICAS

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Fotos: Divulgação

m 1997, no I Festival Recife do Teatro Nacional, a cidade travou contato com o excepcional trabalho de um grupo iniciante. Vinda de São Paulo, a Cia. do Latão trouxe ao evento dois de seus espetáculos inaugurais, Ensaio para Danton, baseado em A Morte de Danton, de Büchner; e Ensaio sobre o Latão, a partir do texto teórico A Compra do Latão, de Bertolt Brecht. A grata surpresa daquele ano se repetiria no seguinte, quando a equipe de jovens atores apresentou no II Festival a montagem de O Nome do Sujeito, trabalho dramatúrgico que unia textos do Fausto, de Goethe, a Assombrações do Recife Velho, de Gilberto Freyre. Em 2000, novamente o grupo pisaria em terras pernambucanas, com o espetáculo A Comédia do Trabalho, outro exercício dramatúrgico de criação coletiva. Neste ano de 2007, em que a Companhia comemora uma década de atividade, o Latão está circulando pelo Brasil com sua última montagem, O Círculo de Giz Caucasiano, de Brecht. A ligação com o Recife, que rendeu projeção fundamental ao grupo, estreitou-se ainda mais com a presença no elenco da atriz pernambucana Cybele Jácome. Ela, que há alguns anos mora no Rio de Janeiro e trabalha com a Companhia Teatro do Pequeno Gesto, juntou-se a atores convidados de outros três conjuntos neste espetáculo comemorativo, com tradução de Manuel Bandeira, criado a convite do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-RJ), em 2006. Com O Círculo de Giz Caucasiano, a Cia. do Latão assegura seu lugar como o mais consistente grupo brasileiro de pesquisa em teatro épico-dialético. Com

mais de 10 espetáculos no currículo, além de oito exercícios cênicos, o conjunto reforça seu interesse por debater as questões da atualidade brasileira, renovando o legado brechtiano no país. Neste novo espetáculo, o palco é tomado por uma discussão sobre terra e propriedade, tendo como prólogo um vídeo-documentário realizado com trabalhadores do Movimento Sem Terra (MST) em oficinas com o grupo teatral. O recurso atualiza o debate do texto, transpondo-o claramente para o conflito agrário brasileiro. Para Sérgio de Carvalho, diretor e dramaturgo da Companhia, nesses 10 anos o grupo se esforçou para tentar entender o sentimento de cada época, nos campos social, econômico e político, da transição da era Fernando Henrique Cardoso à chegada de Lula ao poder. “Lá atrás, O Nome do Sujeito era uma peça muito vinculada ao governo FHC. Uma peça que mostrava um barão pernambucano símbolo de uma modernização que no fundo era conservadora. Uma peça simbólica de uma entrada de um capitalismo nova fase no contexto local. Muitos anos depois, a gente fez um pequeno exercício que se chama Os Equívocos Colecionados, inspirado na obra do Heiner Müller, cujo tema era um novo quadro cultural dentro de uma mesma base econômica, já o quadro cultural da era Lula. Acho que a marca registrada do trabalho do Latão nesse período foi o interesse em criticar essa relação entre base material e ideologia de época, sempre inventando formas novas de fazer isso. Mas a gente soube renovar os meios formais de fazer teatro crítico”, comenta.

A Comédia do Trabalho: exercício dramatúrgico de criação coletiva

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CÊNICAS Em O Círculo de Giz Caucasiano, Azdak, personagem interpretada pelo ator Ney Piacentini, é um homem do povo que após a revolução torna-se, incidentalmente, juiz. Com métodos pouco ortodoxos, ele subverte a lógica do sistema, privilegiando em suas deliberações os oprimidos, sem, no entanto, deixar de tirar vantagens pessoais. Para quem imagina tratar-se de mais uma alegoria sobre a realidade brasileira, Sérgio esclarece: “Eu já não tenho certeza se o governo Lula está interessado em ajudar a população pobre. O Azdak, o avô dele, ensinou o desejo da revolução social, isso lhe ensinou a sonhar com a igualdade. Quando ele vê uma troca de governo, tem a ilusão de que foi um governo popular que entrou, mas viu que o fim dos velhos tempos não trouxe novos tempos, trouxe, sim, a troca de senhores. Ele, egoisticamente, então, resolve governar em causa própria, em parte, mas ao mesmo tempo realmente tentando ajudar as pessoas pobres nas causas que lhe caem na mão. Não houve vontade de fazer analogia nenhuma com o governo porque eu sinto que houve um abandono total do projeto revolucionário e de um projeto de igualdade mais radical neste governo”. Profundamente ligado ao pensamento marxista e brechtiano, o grupo se esforça para manter a coerência e o profissionalismo, sem ceder às tentações do mercado. O fato de ter sido convidado por um centro cultural (CCBB) ligado a uma instituição financeira para realização de seu mais recente trabalho, entretanto, foi apontado como uma contradição profunda. A Companhia, porém, estabeleceu os termos do diálogo. “É importante O mesmo princípio do estranhamento, que subtrai a platéia do seu estado de hipnose lançando-a num território ativo de reflexão crítica, é também aplicado pelo grupo ao trabalho dos atores

A Cia. do Latão em cena do espetáculo Mercado do Gozo

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que um grupo como o Latão saiba dialogar criticamente com esse projeto da mercadoria e não mercantilizar o seu trabalho, continuar sendo crítico e falando com liberdade total dos seus temas. Por exemplo, se uma instituição como o CCBB tivesse qualquer interferência no campo temático da nossa peça, falasse que o prólogo do MST é contra os interesses da instituição, a peça não seria apresentada. A condição era a liberdade total e absoluta, porque eles estão usando dinheiro público para financiar a peça. Cabe ao artista desautomatizar, criar mecanismos tensos, o próprio prólogo nosso sobre o MST é um mecanismo tenso, ele gerou tensão dentro do tipo de espectador que freqüetou o CCBB na temporada do RJ”, recorda Sérgio. O diretor, que é também professor de teatro da Universidade de São Paulo (USP), reconhece que o trabalho do grupo tem um sério viés teorizante, no entanto, rejeita a idéia de que, por esse motivo, o Latão faça um Brecht frio, racional demais, ao contrário de outra leituras do dramaturgo alemão mais ligadas ao ambiente do cabaré. Para ele, a diferença é que o grupo “recusa usar qualquer forma reconhecível. Qualquer forma que você identifique: ‘Ah, é o cabaré, é a festa popular, é o samba!’ Se isso aparece, é ironicamente. A gente nunca usa uma forma que o público tenha tranqüilidade de identificar. O público não pode se acomodar numa forma. Por isso, quando aparecem elementos populares ou de cabaré nas nossas peças, elementos reconhecíveis, eles aparecem de um modo não familiar”. Fotos: Divulgação/Lenise Pinheiro

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Cenas do espetáculo Os Equívocos Colecionados, inspirado na obra de Heiner Müller

O mesmo princípio do estranhamento, que subtrai a platéia do seu estado de hipnose lançando-a num território ativo de reflexão crítica, é também aplicado pelo grupo ao trabalho dos atores. No campo das interpretações, Sérgio não se arrisca a falar numa atuação brasileira, em função das grandes diferenças regionais do país. No entanto, após várias experiências com atores pernambucanos em oficinas, ele aponta algumas características como a facilidade para o jogo cômico e verbal, que julga uma vantagem para a prática do teatro épico. No entanto, lembra que “às vezes essa facilidade para o jogo cômico reforça a forma reconhecível. Uma atuação que já facilite a vida do público, porque ele já se sente confortável dentro daquele registro”. Para o diretor, a pernambucana Cybele Jácome “é uma atriz muito inteligente, ela faz de tudo, com especial facilidade para o jogo cômico e irônico”. Ex-aluna de Sérgio em uma oficina no Recife, Cybele acabou sendo escolhida para o elenco através do vídeo de um espetáculo protagonizado por ela no Rio de Janeiro. Sérgio reconhece a dificuldade da atriz na primeira fase de ensaios: “Eu sinto que ela ficou paralisada quase os dois primeiros meses de ensaio, sem entender que modo estranho de ensaiar era aquele, que modo estranho de pensar a atuação”, mas lembra com humor que os problemas foram superados: “No momento em que ela percebeu qual a sua contribuição dentro daquela história, quando percebeu que a ênfase era nos temas, era no prazer de contar a história e não no resultado formal, ela achou a sua marca pessoal ali e mudou, foi como aquela criança

que demorou muito tempo para falar e, quando fala, fala mais do que os outros, desembesta a falar”. Já Cybele recorda que sua ligação com a Companhia vem do tempo dos primeiros Festivais Nacionais no Recife, quando desempenhou o papel de produtora local do grupo. “Foi muito bom ver, através do Latão, que o teatro épico podia ser interessante, divertido, bonito e poético, além de perceber que numa linguagem aparentemente muito simples eles conseguiam um resultado que, a meu ver, me parecia muito sofisticado”, recorda. Entre as dificuldades do trabalho, em O Círculo de Giz Caucasiano, destaca o contato com atores de outros grupos, a expectativa diante do primeiro Brecht de sua carreira e o trabalho musical. A Companhia, que já lançou um CD com as canções de seus espetáculos, pretende lançar uma segunda coletânea ainda este ano. Dentre as ações comemorativas, previstas para outubro, estão ainda o lançamento de sete documentários em DVD, com trechos de todos os espetáculos, além de depoimentos, reflexões e bastidores do processo criativo; quatro publicações com a íntegra dos textos dos espetáculos construídos coletivamente junto com estudos teóricos sobre dramaturgia, encenação e a trajetória do grupo; e, por fim, um novo número da Revista Vintém. Enquanto isso e após participar do Festival Sesc Palco Giratório, no Recife, e do Festival Internacional de Teatro de Londrina, no Paraná, o espetáculo O Círculo de Giz Caucasiano cumpre nova temporada este mês no Teatro da Universidade de São Paulo – Tusp. • Continente agosto 2007


Os escritos de Roland Barthes sobre teatro são compilados em livro e mostram o apaixonado interesse do francês por essa arte Alexandre Figueirôa

Barthes e o teatro

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Divulgação

ara o leitor brasileiro é uma grata surpresa, so­bretudo para aqueles que se interessam pe­las artes cênicas, o aparecimento em nossas livra­­ rias deste Escritos sobre Teatro, de Ro­land Bar­ thes, integrando a coleção dirigida e organizada por Leyla Per­­ro­ne-Moisés. O pensamento deste inte­lec­tual fran­cês dei­xou marcas indeléveis em várias áreas do conheci­men­ to, em­bora ele seja mais reconhecido como se­mió­logo. Sua obra tem como principal característica a mul­tiplici­dade de objetos de estudo, razão para nos depa­rar­mos com sua escrita elegante e envolvente em temas tão varia­dos quanto a literatura, a fotografia, a moda e o cinema. Aqui, mais uma vez, vamos ter acesso a um conjun­ to de textos capaz de nos revelar todo o refi­namento de um autor que, nos anos 50 e 60, realizou um percur­so repleto de ex­periências renovadoras na arte de ana­ lisar e pensar sobre as diversas mani­festações ar­tísticas. Suas análises são sempre marcadas sob o sig­no do amor pelo objeto estudado, mas este olhar

Cena da peça Mãe Coragem e Seus Filhos, de Bertolt Brecht, em montagem canadense dirigida por Camayar Chai


Fotos: Reprodução

CÊNICAS

Barthes (à direita) tinha grande admiração por Brecht, a quem dedicou boa parte de suas reflexões sobre teatro

afetivo nunca o impediu de mergulhar com fervor na tamente o povo para a ópera na data nacional francesa, revelação das estruturas componentes das obras o 14 de julho, ou reservar, em espetáculos da Comédie­ estudadas. E com a arte teatral não foi diferente. Algo Française, alguns lugares no galinheiro, onde não se que pode ser observado no primeiro texto que integra a pode ver nada. A ampliação do público de teatro não coletânea de oitenta artigos (este publicado na revista deve ser uma ação de caridade, mas sinal de uma Esprit, em 1965) em que ternamente ele afirma: “sempre democracia sem fraude. Para isso ele advogava a mul­ gostei muito de teatro...”, embora naquela década, tiplicação de festivais, de associações em pequenas cida­ curiosamete, Barthes já não freqüentasse as salas de des capazes de promover a expansão da arte teatral. espetáculos como nos anos precedentes. Ainda, segundo Barthes, devia­se dissipar “um pre­ Ao percorrermos os textos reunidos por Jean­Loup Ri­ conceito corrente que pretende confinar o teatro popular vière, vamos percebendo o quanto esse amor foi também num repertório vulgar e tolo, interdizer­lhe, como de um caminho de escolhas, de preferências, de observações excessiva inteligência, as obras fortes do classicismo ou as empolgantes em torno de um período movimentado da obras agudas da modernidade”. Para o autor de O Grau produção teatral do pós­guerra na França. Um dos fun­ Zero da Escritura e Mitologias, a dramaturgia de vanguarda dadores da revista Théâtre Populaire, Barthes vai se alinhar não precisava ser pomposa e tola, mas “uma arte do palco a Jean Vilar e ao movimento ideológico do teatro popular e simples, despojada, sugestiva e que confia ao espectador o em vários de seus escritos não só o defenderá como também poder de imaginar, ou seja, ele próprio criar a ilusão mostrará sua clara oposição ao teatro burguês praticado teatral”. Dessa forma, Escritos sobre Teatro, apesar do pela Comédie­Française. Em meio a esta combatividade ele incontornável caráter de testemunho de uma época passa­ vai se revelar um grande admirador de Bertolt Brecht a da, é também uma oportunidade de revermos posições quem dedicará um espaço fundamental nas suas reflexões. ainda hoje enraizadas na mentalidade dos condutores de Entusiasmo cujo início se deu quando ele descobre o políticas culturais para o teatro, incapazes de vislumbrar a dramaturgo alemão, por ocasião de uma turnê do Berliner fortuna reflexiva de gerações passadas que se posicionaram contra o conformismo e a favor das invenções artísticas Ensemble com Mãe Coragem e Seus Filhos. autênticas e renovadoras. Por fim, os textos de Embora concentrado numa situação bem Barthes permitem que acompanhemos as particular da França, é curioso observar como intensas discussões, no período, em torno da arte algumas questões levantadas por Barthes em de representar, do papel da crítica teatral; e para torno de uma concepção do teatro popular e os que se deliciam com descobertas pitorescas, dos papéis das vanguardas artísticas perma­ vê­lo defender o teatro de Jean­Paul Sartre, necem atuais e merecedoras de atenção. Nada questionar a montagem de Peter Brook para O mais pertinente, por exemplo, quando ele Balcão, de Jean Genet, e não ter receio de in­ observa que “o espetáculo dramático exige, Escritos sobre Teatro, como toda percepção artística, uma educação Roland Barthes, editora dagar a si próprio porque, depois de tanto se que não pode fazer­se de um dia para o Martins Fontes, 334 bater pela arte teatral, ia tão pouco ao teatro: “Será que deixei de amá­lo ou o amo demais?” • outro”. Para ele não bastava convidar gratui­ páginas, R$ 52,00. Continente agosto 2007

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Recriando a mĂşsica antiga Antigos tratados ajudam pesquisadores a "achar as notas certas" na busca pela fidelidade aos sons medievais, renascentistas e barrocos Carlos Eduardo Amaral


Reprodução

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Roman de la Rose, ilustração da Idade Média

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em ter nada a ver com as ondas retrô ou involuções mais ana­ crônicas, comuns nesses tempos de “pós­modernidade”, a exe­ cução da música de época, desde o Romantismo, é uma preo­ cupação de intérpretes, regentes e musicólogos mais comprome­ tidos. Só assim pôde­se, por exemplo, retomar a ambientação original da Paixão Segundo São Mateus, que requeria em torno de 40 músicos, incluindo cantores – pois a peça, ao ser descoberta por Mendelssohn após sete décadas do falecimento de Bach, fora executada indiscriminadamente pelos grandiosos coros e orquestras pós­Beethoven. Desse ponto até voltar ao ambiente setecentista, os estudiosos procederam a um aprofundamento cuidadoso, cujos ramos viajaram cada vez mais para o passado. Aí começa nossa curiosidade sobre como era a música no Barroco, na Idade Média e na Renascença e se as fontes disponíveis são confiáveis ou detalhistas. A dúvida natural se revela: que certeza pode­se ter de que a atual execução da música antiga é fiel, ou seja, de que aquilo que estamos ouvindo agora é o que a platéia de então ouvia? Qualquer que seja essa certeza, ela foge da absoluta, como poucos esperavam pensar. A etnomusicóloga, e jornalista de formação, Luciana Gifoni explica que ainda é possível encontrar documentos consistentes na música européia para executar a música renascentista e barroca, tratados com indicações de estilo (articulação, execução, boa sonoridade) para diversos instrumentos e sobre a confecção destes, além de partituras com uma notação mais inteligível. Mas a pesquisadora ressalva: “Dentro da dinâmica cultural, naturalmente, os trata­ distas poderiam discordar entre si, e as práticas também variavam nas regiões. Na Idade Média isso ainda fica mais complicado, porque há de se fazer um estudo bem mais amplo, de iconografia, filosofia e literatura popular”. Um dos grupos de música antiga em plena atuação pelo país e de repertório centrado no período medieval é o Anima, de Campinas, que recentemente lançou o quarto CD, Espelho. O Anima, com 15 anos de vida, possui seis inte­ grantes, uma cantora e cinco instrumentistas, que manejam rabeca, viola serta­ neja, cravo, flautas e percussão. Porém, em vez de seguir o caminho das execu­ ções puristas, refaz arranjos de canções de cinco a 10 séculos atrás – ouça­se “A chantar”, da trovadora provençal Comtessa de Dia, e “Stella splendens in mon­ te”, anônima do cancioneiro de Montserrat, Espanha – e busca ressonâncias do medievo na música de tradição oral brasileira, a exemplo de releituras de “Engenho novo”, “Casinha pequenina” e “Beira­mar”. A respeito dos mananciais onde o Anima pesquisa, o violeiro do grupo, Ricardo Matsuda, afirma: “Os registros nos chegam com muitos filtros. A própria escrita (musical) de época não é precisa quanto à rítmica, por exemplo. Ela se acomoda à prosódia, no caso das cantigas trovadorescas, dando margem a distintas interpretações dos registros (tipos de vozes) e à improvisação. As matérias­primas dos instrumentos não eram exatamente padronizadas. O próprio sistema de afinação deixa dúvidas”. De fato, a afinação dos instrumentos veio a ser um problema resolvido quase nos anos de 1800, quando a afinação natural, cujos intervalos entre notas eram guiados pelos harmônicos, deu lugar definitivamente ao temperamento. Os harmônicos são notas simpáticas resultantes da vibração de uma nota isolada; já o temperamento define os intervalos entre notas através de cálculos logarítmicos. Antes, existiam variados diapasões (padrões de freqüência de Continente agosto 2007


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O Anima, grupo de Campinas, recentemente lançou seu quarto CD: Espelho

notas), por região ou país, e instrumentistas de sopro leva­ vam consigo partes removíveis, chamadas barriletes, trocadas a cada ocasião, a fim de aumentar ou diminuir o instrumento. Finalmente, prevaleceu o diapasão 440 (lá 3 = 440 Hz) como universal. Max Weber (ele mesmo, o sociólogo), no livro Funda­ mentos Racionais e Sociológicos da Música, analisou o desen­ volvimento da afinação e seus fatores de influência tanto na música ocidental quanto na oriental, que tinham reper­ cussão no processo de fabricação dos instrumentos, outro problema incômodo da música antiga. Weber salientou a importância dos mosteiros na disseminação de normas fixas de fabricação instrumental. Luciana Gifoni confirma essa busca pela constância sonora: “Na música religiosa, as fontes escritas são bem mais ricas e havia toda uma ligação do modo de fazer música com os dogmas da fé, como se encontrou nas bibliotecas dos mosteiros medievais. O trabalho dos luthiers – fabricantes de instrumentos; de cor­ das, a rigor – também é fundamental: a construção das réplicas contribui substancialmente para compreen­ der sutilezas sonoras e possibilidades estilísticas da música antiga”. A musicóloga ressalta que a sensibilidade e pers­ picácia do pesquisador ou do intérprete são tão impor­ tantes quanto as fontes, porque “envolve muito mais que as poucas partituras, que eram, afinal, mais indiciais e sugestivas do que precisamente ‘escrita musical’. A prática musical era viva, flexível, o sistema estava implícito”. Em 2006, Luciana publicou artigo sobre a atuação do Anima e do grupo Syntagma, de Fortaleza, que completou 21 anos de atividades. Ambos adentram no universo das tradições folclóricas brasileiras e o relê através daquelas práticas musicais antigas. O Syntagma deve seu nome ao tratado Syntagma Musicum, do alemão Michael Praetorius (1571 – 1621), o principal delineador do estilo coral luterano. Enquanto Continente agosto 2007

o Anima vasculha canções do Brasil inteiro e abrange da Idade Média ao pré­Barroco – não mencionemos as com­ posições “autorais” –, o grupo cearense atém­se ao Nor­ deste e chega a adentrar o Romantismo, contudo não se especializando na música do período clássico. Mais de 50 músicos passaram pelo conjunto, composto de oito mem­ bros, aliando instrumentos como o bíblico saltério, o alaú­ de, a viola da gamba (de joelho) e o cravo a flautas doce e transversa, violão e percussão. Considerando que é praticamente impossível encontrar um instrumento de mais de 400 anos em condições de uso, resta aos citados luthiers fornecerem réplicas perfeitas, baseadas em originais encontrados em museus. Heriberto Porto, flautista e diretor musical do Syntagma, acrescenta: “Posso dizer que hoje a música antiga soa ‘melhor’ hoje que a executada na época, devido à qualidade dos instru­ mentos e dos executantes. Toca­se flauta ‘afinadíssima’, o que não acontecia no tempo de Mozart, por exemplo, deixando o gênio com desprezo por ela”. Quase todos os instrumentos tendem a desafinar aos poucos, à medida que vão sendo tocados, portanto é necessário que algum, mais estável, sirva de diapasão aos demais. No Anima e no Syntagma, esse papel cabe ao cravo, cujo timbre é aparentado ao da viola caipira/ sertaneja. O primeiro tem ganhado espaço mundialmente; o segundo, na MPB instrumental. Ricardo Matsuda diz que a viola sertaneja incorporou novas técnicas de fabricação e execução. “A qualidade das cordas fabricadas tem melhorado bastante. Confio que, tanto quanto o violão moderno, hoje a viola pode dialogar sem constran­ gimentos com o cravo ou mesmo o piano. Cabe ao violeiro aprimorar sua técnica e ‘preservar’ a estabilidade da afinação”. Outros grupos de música antiga estão em atuação no Brasil, vide o Allegretto, que congrega três professores e seis alunos do Conservatório Pernambucano de Música,


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único do gênero em Pernambuco. Mas o precursor surgiu em 1966. O pianista e cravista Paulo Herculano e a cineasta Ana Carolina idealizaram o Musikantiga e reuniram os irmãos flautistas Milton e Ricardo Kanji e o gambista Dalton de Lucca, aos quais se somaram a cravista Maria Beatriz Ferreira Leite e outros flautistas e cromornistas, em 1968. A cromorna (krumhorn) é um ancestral distante dos oboés. Ricardo Kanji recorda a proposta do conjun­ to: “O grande lance era desmistificar o concerto erudito e popularizar a música antiga. Nosso comportamento era bastante informal, éramos cabeludos e tocávamos em galerias de arte e livrarias; fazíamos temporadas de concertos em teatros, sempre com um público bastante jovem, estudantes e intelectuais em geral”. O Musikan­ tiga gravou três LPs porém nunca recebeu divi­ dendos, segundo o flautista. “Aqueles discos estão sendo editados em CD, sem nenhuma licença, mas pelo menos estão à disposição do público, fato que me alegra”. Com a ida de Kanji para a Holanda, em 1969, o grupo se desfez. Um de seus ex­alunos, Abel Vargas, encabeça dois “descendentes” do Musikantiga, o Paraphernalia e o Carmina, em São Paulo. A cultura colonizadora no Brasil faz com que se encontre na música do povo ecos do barroco ibérico, que incorporou bastantes elementos da Baixa Idade Média, segundo a pesquisadora Lucia­ na Gifoni. Ela diz que é possível identificar o uso de alguns modos (escalas musicais) presentes no canto gregoriano, que podem ter vindo via­catequese jesuítica, e semelhanças entre as incelenças, os romances, os martelos, as emboladas e os desafios e formas medievais, como os lamentos e os mote­ tos. “A música do romanceiro medieval ibérico, assim como o nosso romanceiro, é uma prática de tradição oral. Associamos os timbres da viola sertaneja com o do cravo, da rabeca com violinos antigos, dos pifes com as flautas doces. A entoação dos aboios é semelhante aos cantos de tropeiros mouros. E assim por diante.” Tal associação vem acompanhada da mesma precaução quanto à fidelidade à interpretação antiga, pois as relações musicais foram sendo construídas a partir de conflitos e negociações entre esferas sociais. Heriberto Porto não vê de forma negativa a incapacidade de chegarmos àquela atmosfera de salões feudais, tabernas e palacetes: “Certamente não podemos afirmar que as reconstituições da música antiga são idênticas ou uma cópia fiel. As que ouvimos são ‘uma versão possível’, existindo muitas outras possíveis e boas”. Isso porque o ritmo de vida, os paradigmas de pensamento, os valores norteadores, os conceitos de tempo e espaço, enfim, eram radicalmente diferentes dos nossos. Ricardo Kanji é quem resume o espírito da tentativa de ser fiel aos sons doutros tempos: “Os tratados, métodos e livros nos contam as maneiras e gostos da época e como tocar, ornamentar, portar­se diante da platéia. Depois de estudar tudo isso e de se aprimorar nos instrumentos antigos, desenvolvemos uma maneira de tocar que é diferente da maneira romântica, que é a tradição que nos acompanha. O que tentamos fazer não é uma reconstrução histórica somente, mas uma interpretação como se a música tivesse sido escrita ontem, tornando­a atual. Assim, ela ganha vida e sentido”. Deste modo, podemos imaginar os tratados como evangelhos e epístolas, que cristalizam fatos e testemunhos, ao mesmo tempo vivos e remotos, os quais reavivam seu sentido através de nossas divergências, por mais que acreditemos saber sobre a essência deles. •

O grupo Syntagma, de Fortaleza, trabalha com a música antiga há 20 anos

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Benedito seja

O flautista Benedito Lacerda e Pixinguinha em ilustração de Paulo Flores

A coletânea de CDs Será o Benedito?!? resgata a vida e a obra musical do genial e polêmico Benedito Lacerda Isabelle Câmara

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le nasceu no mesmo ano de Ary Barroso, 1903. E, certamente, quando foi batizado seus pais não imaginavam que ele seria louvado por “flautear” nas pautas musicais como um deus: Benedito Lacerda introduziu o samba no choro; compôs mais de setecentas músicas, entre elas “A Jardi­ neira”; gravou mais de 1.000 discos; criou um per­ novos até hoje. Nada feitíssimo Regional, batizado por Sinhô como foi tão prolífero e extasiante na Gente do Morro – embrião de um conjunto que história da música popular brasileira fez escola, referência até hoje no gênero pelos quan to essa parceria. E o homem que res­ efeitos nos sopros e cordas e que foi o pre­ suscitou Pixinguinha também foi um dos ferido por 10 entre 10 cantores do fundadores da UBC – União Brasileira rádio. Como se não bastasse, ainda de Compositores e da SBACEM – tirou Pixinguinha do esque­ Sociedade Brasileira de Autores, Com­ cimento, nos anos 40, tornando­ positores e Escritores de Música. se seu maior parceiro. Porém reza o catecismo dos chorões Conta­se até que Benedito teria pago a que Benedito foi ladrão. Talvez por isso hipoteca da casa de Pixinguinha e este, em sinal sua memória tenha sido crucificada. De de gratidão, tê­lo­ia transformado em parceiro Pixinguinha, teria assumido composições de pérolas como “Sofres porque queres”, em parceria que na verdade não foram feitas. “Naquele tempo” e “1x0”. Foram 34 gravações de Também tem o caso de “A Jardineira”, no qual ele 1946 a 1951. Mas o que importa é destacar os arran­ jos e contrapontos executados pela dupla, que revolu­ e seu parceiro, Humberto Porto, foram acusados por Almi­ cionaram a instrumentação brasileira e influenciam os rante de terem se apropriado de um motivo popular do final Continente agosto 2007


MÚSICA 79 Será o Benedito?!? é um trabalho quase artesanal, es­ pecialmente na ga­ rimpagem do acer­ vo, e de uma in­ comparável rique­ za histórico­musi­ cal e estética; em todos os CDs ou­ vem­se ruídos, Será o Benedito?!? (caixa com 4 CDs), Benedito Lacerda, Maritaca Discos, chiados e cracks que R$ 85,00. revelam aconteci­ mentos sonoros e nos transportam para os anos 20, 30, 40. Segundo Homero Lotito, engenheiro de som que condu­ ziu o tratamento técnico das gravações, eles optaram por manter a máxima integridade da sonoridade dos instru­ mentos e vozes originais, evitando filtros e compressões que cortam muitas freqüências e chapam o som em dema­ sia. Paulo Flores explica: “A digitalização foi tratada com novo enfoque filosófico. Os fonogramas em 78 RPM fo­ ram afinados, talvez de maneira inédita, no padrão Lá (A) 440Hz, resultando num diferença brutal no andamento e timbre, principalmente das vozes dos cantores. O trabalho de masterização foi direcionado para a clareza do grupo, e não dos solistas somente, para isso a limpeza dos ruídos foi mais amena do que a realizada comercialmente”. Benedito Lacerda morreu num domingo de carnaval, em 1958. Ele que tanto sucesso obtivera em vários carna­ vais. Deve ter subido aos céus tocando flauta, fazendo festa. • Benê, o flautista

Reprodução

do século 19, do cordão Filhos da Primavera. Outro folclo­ re é com o ritmista Baiaco (Osvaldo Vasques), que levava novos compositores para o Café do Mangue e Benedito ficava escondido atrás de um biombo escrevendo os sambas que ouvia, para depois editá­los em nome dos dois. Polêmicas à parte, certo é que Benedito era um sucesso. Com seu Regional, não lhe faltava trabalho, estava no auge e suas músicas eram gravadas por grandes estrelas do rádio, gerando até disputas, como a que aconteceu entre Carmen Miranda e Alzirinha Camargo, pela marcha “Querido Adão”. Foi o que se chama hoje de self-made man: nasceu pobre, mas administrou muito bem a sua car­ reira. Fez da música uma indústria. Ganhou dinheiro e gerou empregos através dela. Era tido como aquele que tinha o melhor grupo, os melhores parceiros e os melhores cantores. Todos o disputavam como a Terra Prometida. O flautista – Benedito Lacerda começou a aprender flauta, de ouvido, aos oito anos de idade. E é justamente o flautista, inquestionável, que é homenageado na coletânea Será o Benedito?!?, que vem com quatro CDs e um livreto, porque ainda tem o Benedito cantor, chorão, compositor, sambista, carnavalesco, empresário, arranjador, polêmico, abençoado, genial, político, empresário, fazedor, idealista, classista, criador, financista, patrão, letrista, fumante, sin­ dicalista, o branco d'alma preta – e que não caberiam nesse projeto idealizado pelo também flautista, compositor e arranjador Paulo Flores e desenvolvido pela Maritaca Discos, com o apoio do Programa Petrobras Cultural. Esta é a primeira de uma série de três caixas. O reconhecimento devido vem tardiamente, mas ilumina sua memória. O CD 1 traz o conjunto Gente do Morro e Benedito como solista e cantor em canções como “Preto de Alma Branca”, “Gorgulho” e “Primeira Linha”. O CD 2, “Benê e Pixinga”, reúne sua deslum­ brante parceria com Pixinguinha em mais de 20 péro­ las, como os choros “1x0”, “Cochichando”, “Cheguei”, mas também a polca “Atraente”, de Chiquinha Gonzaga, alguns choros de Jacob do Bandolim e “Tico­Tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu. Já os CDs 3 e 4 apresentam gravações do seu Regional acompanhando, entre outros, Francisco Alves, Carmen Miranda, Almirante, Araci de Almeida, Orlando Silva e Sílvio Caldas em marchinhas, sambas, valsas e can­ ções. O libreto traz a cronologia da vida de Benedito relacionada com fatos importantes do mundo, um aprofundamento nos principais acontecimentos de sua vida, como o samba e o grupo Gente do Morro, e um “Abenedário” que mostra personagens e artistas que fizeram parte de sua vida.


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AGENDA/MÚSICA

Guarnieri vezes três

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Dentro das comemorações do centenário de nasci­ mento de Camargo Guarnieri, a Biscoito Clássico lança em um box especial os três CDs com as sin­ fonias de nº 1 a 6, as aberturas Festiva e Concertante e a Suíte Vila Rica, interpretadas por John Neschling e a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Até agora, as gravações estavam disponíveis em separado, através do selo BIS, da Suécia. Nesta primeira reunião do ciclo de sinfonias do compositor paulista – que bem poderia comportar um quarto álbum, com a nunca gravada Sinfonia nº 7 e a Suíte IV Centenário –, percebe­se a exímia estruturação dos temas ao longo dos movimentos de cada peça e a mudança de linha estética dentro de um espaço de trinta anos: do naci­ onalismo catequizado por Mário de Andrade, na década de 40, ao atonalismo de 1970 em diante. Não é à toa que nesse gênero Guarnieri tenha sido superior a Villa­Lobos (cons­ tatação reforçada por Aaron Copland). A “rude”, “profunda” e “radiosa” Sinfonia nº 1 (Guarnieri descrevia a atmosfera prevalecente de cada movimento, em lugar de simplesmente determinar os andamentos) antecipa a fluidez e a energia da Sinfonia nº 2, calcada sobre temas nordestinos, e a coesão temática da vigorosa Sinfonia nº 3, centrada num tema indígena. A extensa primeira sinfonia divide o primeiro CD com a enxuta nº 4, dedicada a Leonard Bernstein; ambas são intercaladas pela Abertura Festiva e seu marcante toque de agogô inicial. As Sinfonias nº 2 (na versão pré­revisada) e nº 3 integram o segundo CD, ao lado da Abertura Concertante. O terceiro CD traz as sinfonias de escrita atonal, nº5 e nº6, e a episódica Suíte Vila Rica, em dez partes. A Sinfonia nº 5 introduz um coral no terceiro movimento, cantando poesia de Rossine, irmão de Guarnieri. A regência de Neschling tende a homogeneizar as peças, tão diversas entre si, e – se acaba resolvendo bem os allegri, com segurança e imponência – não atende tão bem à variedade de caráter dos adagi. O texto dos encartes foi redigidos por Flávia Toni, curadora do acervo deixado por Guarnieri, mas tiveram cinco parágrafos excluídos sem justificativas, que estão no CD avulso – os que falavam da Sinfonia nº 6 e da afeição de Guarnieri pela Vila Rica, uma das “poucas obras que o fazia dançar enquanto a regia, pois o aproximava enormemente da musicalidade de seu povo”. Uma curiosidade: dos quadros que ilustravam as capas dos CDs avulsos, o escolhido para o box foi Cena: violão, mulher e solda­ do, de Cícero Dias. (Carlos Eduardo Amaral) Camargo Guarnieri – Sinfonias 1 a 6, Biscoito Clássico. Preço médio: R$ 60,00 Continente agosto 2007

Um mínimo de Reich O grupo italiano Contempo­ artensemble,especialistana in­ terpretação de renomados compositores da atualidade, reuniu quatro das obras mais atrativas do minimalista Steve Reich e imprimiu nelas uma interpretação que serve de referência. City life, para con­ junto de câmara, insere frag­ mentos de sons gravados na rua, vozes de taxistas e pedestres, e por mais que seja intrinsecamente repetitiva (mas nunca monótona), apresenta reexposições do tema principal. O Sexteto para percussão e teclados faz lembrar do estilo de Carl Orff, porém mais dançante e sem os textos medievais caros ao alemão – é ponto de diferença do minimalismo ser uma mani­ festação de vanguarda preservando células rítmicas e melódicas simples, e tonais. Vermont counterpoint armazena em fita magnética as melodias tocadas no flautim e nas flautas soprano e contralto, e as repete, ato contínuo, enquanto os instrumentos originais seguem seu curso, criando um contraponto simultâ­ neo entre o “ao vivo” e o “gravado”. E Clapping music cria um interessante diálogo performático entre dois músicos que usam apenas as palmas das mãos, idéia inspirada pela música fla­ menca, mas sobretudo imaginada por Reich: como seria uma música que não usasse instrumentos? (CEA) Reich – Contempoartensemble, Arts Music, R$34,00.

Temas memoráveis O filme O Preço da Paz (2004) conta a história do Barão do Serro Azul, que durante a Revolução Federalista, há mais de 100 anos, pagou aos revolu­ cionários maragatos para não destruir Curitiba e depois do conflito acabou tachado de tra­ idor e teve a memória apagada na cidade que defendeu. A película reuniu um considerável elenco (Herson Capri e Lima Duarte no meio), mas não emplacou. Insucesso injusto para com a trilha sonora composta por Jaime Zenamon, das mais belas do cinema nacional e que permanece desconhecida. Por sorte, o CD com 18 faixas está disponível e pode ser adquirido direto do compositor. O próprio Zenamon, destacado violonista, rege a trilha à frente da Sinfônica de Berlim, entrando para a história como o primeiro brasileiro a conduzir uma obra sua à frente daquela orquestra. Tendo composto obras atonais e eletroacústicas, ele mesmo confessa que a atenção do público se dá pelas românticas (nas quais a inspiração nos parece fluir­lhe melhor). É difícil de discordar quando se ouve a faixa de abertura The end of a film, o tema principal. E ainda mais inesquecíveis são o tema de Anésia, retomado com mais paixão em Sueño, o tema de Gumercindo e um típico Malambo pampeano. (CEA) O Preço da Paz, Produção independente. Pedidos: jzenamon@uol.com.br


AGENDA/MÚSICA Mapear o Brasil A flautista, compositora e arranja­ dora paulista Léa Freire lança ago­ ra o quinto CD da sua carreira, com 11 canções próprias. Cartas Brasileiras é “uma declaração de amor musical ao Brasil”, que une o trabalho da orquestra à percussão e aos improvisos, apresentando um pouco da produção contemporânea brasileira. O CD, com regência do maestro Gil Jardim e direção musical do flautista Teco Cardoso, mescla influências estrangeiras e locais, eruditas e populares. A idéia do CD é mapear a produção contemporânea nacional, através da troca de informações entre artistas dos quatro cantos do país. Cartas Brasileiras, Lea Freire, Maritaca, R$ 30,00.

Viola instrumental Em Redemoinho, o toque de vio­ la do sertão se mistura ao violão erudito e à improvisação da música brasileira, produzindo até um “tango caboclo” em homenagem ao bandeonista argentino Astor Piazzola. Este é o sexto CD do violeiro Paulo Freire, que reúne 12 faixas instrumentais. Além de compor, juntando uma idéia daqui com outra de lá, num redemoinho, Freire fez os arranjos e produziu o disco, que conta com a participação dos músicos Adriano Busko, Tuco Freire, Lara Ziggiatti e Mané Silveira, entre outros. Paulo Freire já ganhou o prêmio Sharp (atual Tim), em 1995, na categoria revelação instrumental, com seu primeiro disco: Rio Abaixo. Redemoinho, Paulo Freire, Vai Ouvindo, R$ 20,00.

Mistura fina O CD Das Ilhas Mestiças, de Rodrigo Lessa, é uma feliz mistu­ ra de samba, choro, ritmos caribe­ nhos e africanos, com pitadas de melancolia lusa. Tem a participa­ ção requintada de João Donato; dos cabo­verdianos Vassis e Toi Vieira; dos cubanos Julio Padrón e José Izquierdo; e dos portugueses Janita e Vitorino Salomé. Na arregimentação aparecem instrumentos inusuais como a bandarra e o baixolão. Algumas músicas, como “Calango Mindelo”, que abre o CD, instauram “conversas” entre sopros graves e cordas agudas; as melodias têm progressões dissonantes que estabelecem surpresas uma atrás da outra e, ora meditativo, ora francamente dançante, o disco encanta o ouvinte. (Marco Polo) Das Ilhas Mestiças, Rodrigo Lessa, Independente, R$ 20,00.

Memorial fonográfico Casa A Eléctrica, de Porto Alegre, foi um verdadeiro marco da indústria de discos de cera na América Latina. Ao ser estabelecida com esse fim, em 1913, só existiam outras três “casas de disco” no mundo: uma na Alemanha, outra nos Estados Unidos e a Odeon, do Rio de Janeiro. Fundada pelos irmãos italianos Savério e Emílio Leonetti – a princípio como uma loja de venda de gramo­ fones, agulhas, instrumentos musicais e discos –, em 1908, passou a ser também uma gravadora, em meio a outras tantas da capital gaúcha. Porém a prensagem dos discos era feita ainda no Rio ou mesmo na Europa, o que motivou Savério a criar a fábrica dos Discos Gaúcho, atraindo artistas do Uruguai, da Argentina e dos outros Estados do Sul. Essa é a gênese do registro realizado pelo músico e pesqui­ sador gaúcho Hardy Vedana, que resultou num grande livro (que traz dezenas de rótulos de discos) acompanhado de três CDs – cuja amostra é um nada em meio aos mais de 3,5 mil bolachões de cera achados na pesquisa. O misto de lamento e complacência de Vedana ante a falta de memória cultural faz com que, após a seção de agradecimentos, reproduza (só para fazer­nos rir) declarações de seus quatro netos peque­ nos, acerca da pesquisa que estava desempenhando. Uma delas: “Qual é, vô, escre­ ver sobre essas velharias, tem mais é que escrever sobre surf e reggae. Aí, sim!...”. Pois eis um tribu­ to aos pioneiros da fono­ grafia brasileira, avós de tudo de bom e de ruim que temos hoje nas prate­ leiras das lojas de discos. (CEA)

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A Eléctrica e os Discos Gaúcho, Hardy Vedana, 252 p. Pedidos: odara@cpovo.net

Cosmopolitismo Um pernambucano de nascen­ ça, paraibano de coração. Esta é a melhor forma de definir o compositor Assis Medeiros, cujo primeiro disco “oficial”, Burrodecarga, acaba de chegar às lojas. O disco traz elementos da música do Nordeste, mas não é um CD regional. As 14 fai­ xas passeiam por uma ampla diversidade de ritmos e melo­ dias: rock, samba, funk, reggae e uma pitada de música eletrô­ nica, o que dá um tom agradável e cosmopolita ao disco. A maioria das faixas é composta pelo artista, que nasceu no Recife, mas cresceu em João Pessoa. Acompanham Assis nesse CD com levada pop: o maestro João Linhares, o arran­ jador Leonardo Baltazar e o produtor Marcelo Macedo. Burrodecarga, Assis Medeiros, independente, R$ 25,00. Continente agosto 2007

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

A saga de Claudiney Silva, um quase-morto O Estado talvez possua o olhar horizontal, não enxerga misérias e dramas como os de Claudiney

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ó tive a medida exata do sofrimento de Claudiney Silva, paciente de um hospital público onde trabalho, no dia em que vi seu retrato, abraçado à filha de dois anos. Olhando sorridente para a câmara, ele nem parecia o enfermo que me habituei a ver, queixoso e transtornado. A imagem tiroume de tempo. Outras imagens dispostas em seqüência num álbum, iguais a uma revista em quadrinhos sem balões de fala, me ajudaram a recompor pedaços da vida de Claudiney, um doente quase anônimo que dava a impressão de não ter história. Um escritor famoso queixou-se de que os médicos possuem o olhar horizontal, como o dos atores de teatro que contemplam o nada. Acho que muitas vezes evitamos enxergar o oceano de sofrimento que nos cerca, talvez por sobrevivência. Claudiney Silva tem 23 anos. Quando levou o tiro que o deixou sem sensibilidade da cintura para baixo e sem poder andar, acabara de completar 21. Vendia ovos em Ponte dos Carvalhos, na periferia do Recife. Dois rapazes o abordaram na descida de um ônibus. Ele tentou esconder o apurado de R$ 190,00 e um dos assaltantes alvejou sua coluna vertebral. Bandidos nunca erram a pontaria. Claudiney, que não tinha planos além da sobrevivência, começou uma via-crucis de sofrimento, no instante em que caiu baleado. Tentou levantar-se, mas as pernas não obedeceram. Socorrido na Emergência do Hospital da Restauração, ficou internado por muito tempo, o bastante para saber que quase nada podia ser feito por ele. Teve alta com as primeiras escaras na região sacral, que iriam se infectar e acometer outras áreas do corpo. Na foto em que aparece bebendo cerveja ao lado de quatro amigos, Claudiney veste bermuda e camiseta e exibe um corpo naturalmente musculoso. É possível que Marlene, a mulher 14 anos mais velha, que o recebeu em casa como companheiro, o achasse bonito. Se beleza é uma aura de vitalidade, no retrato é fácil encontrá-la. No rosto atual de Claudiney não enxergamos nenhum dos sinais que chamamos de belo. A menos que idealizemos a palidez, a magreza extrema e os cabelos finos e quebradiços, como faziam os poetas românticos. Ao sair do hospital em sua primeira alta, Claudiney Santos voltou para a avó que o adotara, quando nasceu. Marlene, a mulher com quem tivera uma filha, o expulsara de casa quando ficou sabendo que o companheiro contraíra uma doença venérea. Não perdoou a traição com uma prima de 17 anos, na vida de prostituta desde os 13. Marlene,

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que não é bonita, também aparece numa foto, tirada em frente a uma kombi de lotação. Veste shorts bem curtos e blusa deixando a barriga de fora. Nos primeiros dias em que Claudiney ficou na casa da avó, Marlene levava suas refeições, embora não tivesse mais nada com ele. Pura misericórdia. Claudiney não recusava porque a situação era difícil e em certas horas não dá para bancar o orgulhoso. Sem maiores remorsos, compreendeu que a ex-mulher não merecia a sacanagem que fizera com ela. Para tentar redimir-se, contou a Marlene que batera na prima quando soube que estava com blenorragia, mas ela não se tocou. Soube mais tarde que já andava de caso com um motorista. Como não tinha emprego fixo, nem recolhia INSS, Claudiney ficou a ver navios num porto inseguro. Só tinha a avó para socorrê-lo, igualzinho a quando nasceu. Marle-

ne rareou as visitas, apagou as lembranças do que faziam juntos em noites calientes e desapareceu. Os amigos da cerveja tomaram chá de sumiço. Só as escaras aumentaram, e a infecção ganhou corpo. Claudiney precisou ser novamente internado num hospital público. Vive há três meses sob os cuidados do Estado, o mesmo que não lhe garantiu segurança. Claudiney, como todos os que nascem, irá morrer. Mas sofrerá horrores até que chegue sua hora. A infecção destrói os tecidos, o sangue, a carne, apesar dos cuidados de médicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Os investimentos para debelar a infecção e melhorar o estado nutricional de Claudiney são altíssimos. Os antibióticos, a albumina e os curativos especiais custam caro, dinheiro que poderia ser usado na prevenção de doenças endêmicas, em saneamento básico, em educação. Internado há três meses, Claudiney espera alcançar condições clínicas para submeterse à desarticulação dos membros inferiores, uma forma radical de amputação. Antes, precisará fazer outras cirurgias. Os procedimentos lhe darão chances de viver um pouco mais e melhor. Agarra-se à vida com unhas e dentes. Cobra atenção e cuidados da equipe, como qualquer paciente que se cura e sai de alta caminhando. Igualzinho a ele, existe outro paciente na enfermaria. E muitos e muitos outros espalhados por Pernambuco e pelo Brasil. Todos vítimas da violência. O Estado gasta fortuna para cuidar desses quase-mortos, mas falha em cuidar dos vivos. Não seria mais barato, raciocinando friamente como um economista, prevenir a violência? O Estado talvez possua o olhar horizontal, não enxerga misérias e dramas como os de Claudiney. Deixa por nossa conta o sofrimento de tratar as feridas que ele não previne. • Continente agosto 2007

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Shakespeare e folclore Continente agosto 2007

Para atender à eclética e ruidosa platéia do teatro elizabetano, o grande dramaturgo se valia da seiva fluente no rico solo da cultura e da alma popular Clotilde Tavares


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m dia desses, num “show” de humor, ouvi uma comediante dizer: “Clássico é aquilo que, mesmo passados 50 anos, ainda des­ perta o interesse.” E continuava: “Eu sou um clássico, uma vez que já passei dos 50 e o meu mari­ do ainda tem interesse por mim”. Piadas à parte, uma obra clássica pode ser definida por essa qualidade de resistir ao tempo, de não se consumir na fogueira dos modismos, de atravessar gerações. Clássica é a obra em que, sempre que a revisitamos, descobrimos algo novo, algo que acrescenta algum pequeno lampejo à luminosa construção das idéias humanas. Clássico entre os clássicos, William Shakespeare é um dos nomes mais conhecidos na literatura do mundo intei­ ro, embora já se tenham passados mais de 400 anos da sua morte. Nascido em 1564, na pequena Stratford­on­ Avon, em 1592 já se encontrava em Londres, trabalhan­ do no teatro. Naquela época, uma companhia de teatro era formada por cerca de oito homens e dois ou três rapa­ zinhos aprendizes – que faziam os papéis femininos pois era proibido às mulheres trabalharem nas peças. Esses homens eram atores, produtores, autores e empresários do ramo que encaravam o negócio do fazer teatral com seriedade, uma vez que ali investiam o seu capital, arcan­ do igualmente com lucros e prejuízos. Desde 1567 a profissão de ator havia sido reconhecida como legal na Inglaterra de Elizabeth I; mas era preciso que as companhias se colocassem sob a proteção de algum nobre, para que pudessem existir oficialmente. Em 1594 já encontramos William Shakespeare e seu grupo sob a proteção do Lorde Camareiro da Rainha, com uma pro­ dução de, às vezes, até dois espetáculos por ano, sendo que em 1599 inauguram seu próprio teatro, o Globe Theatre, à margem esquerda do Tâmisa, em Londres. Para quem representavam? Para todos. Embora suas peças versem aparentemente sobre reis, nobres e a vida na corte, seus personagens são basicamente seres huma­ nos que eventualmente ocupam posição de reis e nobres, ricos de tal profundidade psicológica que o crítico Harold Bloom afirma que é de William Shakespeare a “invenção do humano”, ou seja, da personalidade huma­ na como hoje a concebemos e experimentamos. Talvez seja essa característica aquela que mais contribuiu para

que hoje, depois de tantos séculos, o autor ainda seja lido e comentado, o que gera por ano cerca de cinco mil publicações tendo como tema sua obra. Além da riqueza de seus personagens, da sua espantosa capacidade de observação da realidade, do uso seguro da carpintaria dramatúrgica, do domínio sobre o idioma inglês – idio­ ma que ajudou a consolidar e estabelecer –, da produção constante de peças que somaram 38 até 1612, quando desistiu do teatro e voltou de Londres para Stratford, onde morreria quatro anos depois, um dos aspectos da obra shakespeariana é a presença do popular e do folcló­ rico. Em todas as suas peças é possível encontrar tanto personagens como referências diversas à cultura popular, tornando­as muitas vezes fonte de pesquisa etnográfica sobre a vida das camadas populares da época. Criaturas como Bottom (Sonho de Uma Noite de verão), Falstaff (Henrique IV), a ama (Romeu e Julieta), o criado Lance e seu cão Crab (Dois Cavaleiros de Verona), o primeiro coveiro (Hamlet), somente para citar alguns, são legítimos representantes da alma popular, com seus ditos que beiram a grosseria e a vulgaridade, sua verve, suas piadas, sua maneira de falar, seus trocadilhos, sua forma de ver o mundo, sua concepção do universo. Nas tardes elisabetanas, quando o Globe Theatre se encon­ trava repleto para as representações, que iam das duas às cinco e meia da tarde, a nobreza se acomodava nas gale­ rias, mas quem ficava mais próximo dos atores era o povo, de pé, com sua alegria ruidosa, suas cebolas fritas e sua cerveja, suas peras e maçãs ao redor do palco que se projetava por entre a platéia. As mulheres amamentavam os filhos enquanto pre­ senciavam o espetáculo e o tema haveria forçosamente que ser atraente, senão cascas de fruta e bagaços de laran­ ja eram atirados sobre o palco, embalados por vaias, assovios e zombarias. Era um verdadeiro tour de force prender a atenção de público tão variado e múltiplo nos seus interesses. Os dramaturgos elisabetanos, dos quais Shakespeare foi o mais brilhante, usavam de todos os recursos para conseguir tal feito. Assim é que, nas suas peças, vemos representados muitos dos elementos do folclore e da cultura popular inglesa que, levados à cena, encontravam imediato eco na alma do povo. Sempre existem criados, amas, artesãos,

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operários, soldados, gente do povo, que fala e reflete a vida de uma classe social específica daquela época. Isso vale para a maioria das obras de Shakespeare, mesmo para as suas peças históricas, que tratam exclusivamente da vida dos reis ingleses. Em Hamlet, a fala de Ofélia na cena 5 do ato 4, quan­ do ela entra, já louca e oferece flores e ervas aos cir­ cunstantes, a descrição que faz das ervas e das suas indi­ cações, misturadas com cantos e versos do folclore é uma demonstração disso. “Aqui está rosmaninho, para lem­ brança. Não te esqueças de mim, querido. Estes amores­ perfeitos são para o pensamento.(...) Para vós, funcho e aquiléia; arruda para vós, e um pouco para mim, tam­ bém. Poderemos chamar­lhe erva da graça dos domin­ gos, mas a vossa deverá ser usada de outro jeito. Aqui está a margarida. Quisera dar­vos algumas violetas, mas mur­ charam todas, quando meu pai morreu...” Mercuccio, em Romeu e Julieta, desfere um discurso eletrizante sobre a rainha Mab. Esta personagem é tam­

bém inspirada no folclore, sendo uma deusa feminina que embriaga os homens com seu vinho encantado. Na cena, Romeu está transtornado, distraído, cheio de pres­ sentimentos, estranho. E Mercuccio pergunta­lhe: “Visi­ tou­te a rainha Mab?” Romeu pergunta quem é a rainha Mab e Mercuccio explica: “É a parteira das fadas, que viaja sempre puxada por parelha de pequeninos átomos, que pousam de través no nariz dos que dormitam. As longas pernas das aranhas servem­lhe de raios para as rodas; a capota é feita de asa de gafanhotos; os tirantes, das teias mais sutis; o colarzinho, de úmidos raios do luar prateado. O cabo do chicote é um pé de grilo; o próprio açoite, simples filamento. De cocheiro lhe serve um mos­ quitinho de casaco cinzento, que não chega nem à meta­ de do pequeno bicho que costuma arredondar­se nos dedos das criadas preguiçosas...” Ainda no folclore Shakespeare vai buscar toda a fundamentação do Sonho de Uma Noite de Verão, uma das suas mais deliciosas comédias. Na verdade, essa “noite”

O personagem Falstaff, da peça Henrique IV, é um legítimo representante da alma popular

Shakespeare e suas criações

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Puck, personagem shakespeariano brincalhão, pregador de peças, algo assim como nosso saci-pererê

de verão não é qualquer noite. Como o próprio título em inglês indica (Midsummer Night's Dream) é a noite do “meio do verão”, ou seja, a noite do solstício de verão que, no hemisfério norte, corresponde a uma noite entre 20 e 23 de junho, que é a noite mais curta do ano. Segun­ do a cultura popular daquela região, é nessa noite que os seres do mundo mágico – fadas, elfos, duendes, e outros – confraternizam e se misturam com os humanos. É nes­ sa noite, segundo o folclore, que os bruxos colhem ervas mágicas para suas poções, e rituais são realizados nas cla­ reiras da mata, principalmente rituais de amor. Acredita­ se ainda que tudo que for sonhado nessa noite acontecerá de verdade. É, então, nessa noite encantada, que se passa a quase totalidade da ação da peça, com a presença dos homens e mulheres que se misturam com Oberon, o rei dos Elfos e Titânia, a rainha das Fadas. Os casais enamorados, figuras centrais da trama, se amam, se desamam, brigam e se reconciliam, mostrando que o amor é feito de enga­ nos que precisam ser superados para que nasça o senti­ mento verdadeiro. Conduzindo e permeando toda a ação, um duende: Puck, algo assim como o nosso saci pererê, ladino, brincalhão, pregador de peças, sempre disposto a rir à custa dos outros. É Puck, como pergunta a fada na cena 1 do ato 2, “... o canalha/ que espanta as moças e que o leite coalha,/ Mete­se no pilão e na moenda,/ Põe ranço na manteiga da fazenda,/ Acaba com o fermento e com o levedo,/ Ri de quem se perde e sente medo?/ Só quem o chama Puck, o bem­amado,/ É quem tem sorte e ainda é ajuda­ do./ Não é você?” E ele próprio responde: “... Sou eu quem alegra as noites da floresta./ Meu trabalho é fazer

rir Oberon; / Sei enganar cavalo só com o som/ De relin­ cho de égua; e eu sei também / Me esconder em panela muito bem,/ E parecer uma maçã assada;/ E quando a cozinheira, esfomeada,/ Me leva à boca, eu faço ela babar./ A velha, que tristezas vai contar, / Pensa que eu sou um banco de madeira/ Eu escapo, ela bate com a traseira!/ É tanto grito que ela acaba tossindo;/ E todo mundo, então, começa rindo, / Com um riso muito forte de alegria,/ Achando que é a melhor hora do dia”. Delicioso recurso esse usado talvez propositadamente para prender e segurar as inquietas platéias elizabetanas. Tão eficaz que nos prende até hoje, magnetizados por suas tragédias e comédias, muitas vezes sem entender o que é que nos atrai tanto na sua obra, qual é essa qualidade imponderável que a torna inalterada à passagem dos sécu­ los, conservando o seu frescor e o seu brilho original. Talvez o segredo esteja aí, nas ricas doses de cultura popular inseridas ao longo de todas as peças, ali enca­ deadas na trama de forma tão natural e lógica que parece não serem obra de uma ação deliberada. Parece que o poeta, enquanto se entregava à sua criação, abria um canal vivo da sua alma com a escrita. Da alma deste homem, o maior poeta da língua inglesa que, para espanto e escândalo de uma intelectualidade esnobe, não tinha formação universitária, é que brotaram estas obras­ primas, eternamente vivas, indiscutivelmente perenes. E o segredo dessa eternidade está aí, pois embora seja uma obra vasta e abrangente, como carvalho de abundantes frondes a espalhar seus galhos por um vasto território, tem suas raízes fincadas profundamente no rico solo da cultura e da alma popular. •

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Oscar Niemeyer 100 Anos Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle, de Lübeck – Alemanha


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scar Niemeyer, o último grande arquiteto vivo do Movimento Moderno e um dos maiores do século 20, ao lado de Le Corbusier, Walter Gropius, Mies van der Rohe e Frank Lloyd Wright, completa em dezembro 100 anos. São mais de 70 anos dedicados à arquitetura, mais de 500 obras e projetos no Brasil, Europa, Ásia e África. Para a geração modernista do Brasil, Niemeyer ainda hoje é um ícone da afirmação da arquitetura brasileira no cenário internacional. Sua arquitetura, que a partir de Pampulha estabelece o rompimento com os cânones do Movimento Moderno, provocou escândalos e forte criticismo ao ser por ele concebida como obra de arte plástica. Foi um dos poucos arquitetos que se libertou do racionalismo ortogonal, da adoção obrigatória do ângulo reto, ao lado do finlandês Alvar Aalto, do dinamarquês Jørn Utzon (autor da ópera de Sidney) e do alemão Hans Scharoun. Será a beleza uma funcionalidade da existência humana? Quando éramos estudantes nos fascinava a modernidade de suas formas, o delírio barroco (??) curvilíneo que tocava elegantemente o chão e a pura combinação de formas inusitadas cuja leveza quase etérea dos balanços generosos nos transladava a um mundo tectônico para nós, imaginário. Sonhávamos !!! Oscar Niemeyer era para nós, jovens estudantes de arquitetura, um mito, um monstro sagrado. Sua genialidade criadora e o revolucionário lirismo poético de Pampulha e Brasília apontavam para nós uma nova perspectiva para o aprendizado e o exercício da arquitetura. É inegável tanto quanto polêmica sua contribuição

ao desenvolvimento da arquitetura do século 20. Sua coragem em desafiar e desmistificar os dogmas modernos ortodoxos abriu novos caminhos para a arquitetura brasileira e mundial, influenciando arquitetos de várias gerações em todo o mundo. Niemeyer tem livros traduzidos em oito idiomas, inclusive japonês e grego, e recebeu inúmeros prêmios e condecorações ao longo de sua vida profissional. Entre eles, o Prêmio Lênin da Paz (1963), outorgado pelo Soviete Supremo, a homenagem do Museu de Artes Decorativas do Louvre, de Paris, que inaugura uma exposição de sua obra em 1965, o Prêmio Príncipe das Astúrias, da Espanha, e a medalha de Cavaleiro da Ordem de São Gregório, concedida pelo papa João Paulo II. Em 1996 ganha o Leão de Ouro, da Bienal de Veneza, e, em 1998, recebe a Royal Gold Medal, do RIBA (Royal Institute of British Architects). O reconhecimento internacional atinge seu ápice já em 1988, quando junto com o arquiteto norteamericano Gordon Bunschaft, recebe em Chicago, o Pritzker-Prize (instituído por Jay Pritzker, proprietário da rede mundial dos Hotéis Hyatt), o equivalente ao Prêmio Nobel de Arquitetura, feito que no Brasil só seria repetido pelo extraordinário arquiteto Paulo Mendes da Rocha que, sozinho, recebe o Pritzker-Prize de 2006 . A dedicação de Oscar Niemeyer à arquitetura é comovente como o é também sua defesa apaixonada pela necessidade da beleza e da liberdade formal e criadora. Muitas vezes malcompreendido, afirmava: "a função não é menos importante do que a estética. Podese ter as duas coisas". Ele alcança sua expressão própria e definitiva ao explorar a força plástica da forma livre que Fotos: Divulgação

Le Corbusier

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Lúcio Costa


Klaus Brendler/ Divulgação

Colunas do antigo Ministério de Educação e Saúde – atual Palácio Capanema. Ao fundo, painel de Portinari

o concreto possibilita, argumentando que os programas construtivos sugerem soluções inovadoras e recortadas. Em A Forma na Arquitetura, publicado pela primeira vez em 1978, contra-ataca: "Aos que reclamavam do arrojo de nossa arquitetura, não dávamos resposta. Deviam saber, como nós, que a arquitetura, quando o tema permite, deve exprimir o progresso técnico da época em que é realizada". As origens – Em todos os livros que publica, Oscar Niemeyer refere-se ao fato de ser mestiço, "como a maioria dos meus irmãos brasileiros". Assim é Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares Filho, de origem portuguesa, árabe e alemã, que viveu uma infância alegre na casa do avô em Laranjeiras, Rio de Janeiro, freqüentada por pessoas ilustres como Epitácio Pessoa e Tristão de Atayde. Quando pequeno, já desenhava bules, xícaras, estatuetas, e recorda sua mãe "a guardálos orgulhosa, sem saber que um dia eles me levariam à arquitetura". Às vezes ele "desenhava no ar", desligandose do mundo adulto exterior e mergulhando no seu mundo mágico, lúdico e particular. Como muitos meninos de sua época, estudou em colégio de padre e gostava tanto de jogar futebol que foi convidado para treinar no Flamengo. Em seu livro de memórias As Curvas do Tempo, Niemeyer recorda fatos deliciosos como o cinema com orquestra ao vivo, onde pedia ao pianista para tocar “Cuore Ingrato”. Do Liceu Francês, onde terminou seus estudos, ingressou na Escola Nacional de Belas Artes. Em 1935, recém-saído da Escola, decide trabalhar gratuitamente no escritório de Lúcio Costa e Carlos Leão: "Com eles aprendi a respeitar

o nosso passado colonial, a sentir como são belas as velhas construções portuguesas, sóbrias, rijas...Da arquitetura só me deram bons exemplos". Em sua juventude, Niemeyer foi contemporâneo da luta acirrada por uma genuína arquitetura brasileira e contra a importação de padrões estéticos europeus que produzia obras ecléticas acadêmicas como o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e contra a corrente neo-colonial, anacrônica e historicista que encantava a burguesia desinformada, bruta e kitsch. A busca de uma arquitetura brasileira contemporânea era parte de uma luta maior por uma identidade cultural brasileira defendida apaixonadamente por Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Anita Mafalti, entre muitos outros artistas, escritores e intelectuais integrantes da Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, e depois por Gilberto Freyre no Manifesto Regionalista de 1926. A ascensão do regime autoritário de Getúlio Vargas nos anos 30, a exemplo dos regimes fascistas europeus, é acompanhada pela criação da imagem de um país moderno e industrializado. Nesse contexto surge o episódio do concurso para o Ministério de Educação e Saúde coordenado pelo jovem ministro Gustavo Capanema, que, corajosamente rejeita o projeto vencedor de características historicistas "marajoaras" (sic) do equivocado arquiteto Arquimedes Memória. Estava selado o destino da arquitetura moderna brasileira. Com o apoio de Lúcio Costa, Capanema consegue trazer Le Corbusier ao Brasil e em 1936 é formada uma cooperação com os jovens arquitetos Agosto 2007

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modernistas Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Afonso Reidy, Jorge Moreira e Ernani Vasconcelos que, juntos, são os autores do primeiro edifício público modernista da América Latina. Nas palavras de Niemeyer: "Com esse edifício e a presença oportuna de Le Corbusier, Capanema deu à arquitetura brasileira o ímpeto inicial que faltava, dissipando equívocos, mostrando a todos que a arquitetura moderna era uma imposição da técnica atual". O que a crítica conservadora local repudia como extravagante luxúria é no entanto saudado em 1942 pelo então vice-diretor do MoMA, o arquiteto americano Phillip Goodwin, co-autor de Brazil Builds como "the most advanced building in the Americas", numa época em que eram construídas nos EUA e Europa cópias grotescas e anacrônicas de edifícios clássicos de proporções gigantescas. O edifício do Ministério de Educação e Saúde, hoje Fotos: Divulgação Palácio Capanema, reúne os cinco pontos da doutrina de Le Corbusier – os pilotis, a janela-corredor, a planta-livre, a fachada-livre, o teto jardim –e seu sistema de brisesoleil ou quebra-sol que, adaptados por Niemeyer para o clima tropical, se torna e móvel para acompanhar os ângulos do sol e o fluxo das brisas. É dele a avaliação definitiva: "nunca considerei a sede do Ministério da Educação e Saúde como a primeira obra de arquitetura moderna brasileira, mas, sim, um exemplo da arquitetura de Le Corbusier, um arquiteto estrangeiro que esclareceu para todos as razões do movimento moderno, dos pilotis, da estrutura independente, do painel de vidro, e isso foi muito importante para nossa arquitetura. A primeira obra moderna e de vulto elaborada por arquiteto brasileiro foi a sede da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), no Rio de Janeiro, projetada pelos irmãos MM Roberto". Apesar das mudanças no edifício, que ele sugeriu a Le Corbusier, como, entre outros, aumentar a altura dos pilotis de 4 para 10 metros, onde entre eles é construído um jardim público com projeto do paisagista Roberto Burle Marx, que introduz o uso de plantas nativas brasileiras numa época em que seu uso era menosprezado, Niemeyer o considera uma obra conjunta. Sua primeira obra individual é por ele reconhecida como a creche Obra do Berço, de 1937, no Rio de Janeiro, onde emprega o brisesoleil vertical e articula dois volumes simples, leves e de proporções puras. Niemeyer parte em direção de um modernismo próprio e livre das regras corbusianas, o que significa a Obra do Berço, de 1937, é reconhecida por definitiva valorização da arquitetura como arte plástica, Niemeyer como sua primeira obra individual afasta-se gradativamente da rigidez cartesiana dos arquitetos racionalistas defensores da estética da máquina e se deixa seduzir pelas formas curvas. O Pavilhão do Brasil na Exposição Internacional de Nova York, de 1939, projeto conjunto de Niemeyer e Lúcio Costa, rompe o rigor funcionalista, mas guarda o forte componente racionalista na pureza, elegância e leveza de suas formas e proporções que o fez merecer o reconhecimento da crítica internacional como a nova linguagem arquitetônica brasileira. O encontro com Juscelino Kubitschek, em 1940, então prefeito de Belo Horizonte, é épico, pois selaria uma parceria incomum e duradoura cujo resultado, Pampulha e Brasília, produz as maiores ousadias de sua carreira. Pampulha surgiu como um bairro de lazer idealizado por JK para a elite e classes abastadas da capital mineira e abrigaria a Casa de Baile (um pequeno restaurante com pista de dança), o Iate Golf Clube, o Cassino e a igrejinha de São Francisco construídos à beira de um lago artificial. De uma leveza extraordinária, a pequena capela de São Francisco de Assis, toda em curvas, é tombada como monumento nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e

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Em Pampulha, Niemeyer penetra definitivamente no mundo das curvas

Artístico Nacional (IPHAN), em 1984, e marca a independência definitiva da arquitetura brasileira dos cânones internacionais. Sua nave feita a partir de uma casca de concreto parabólica se articula com quatro abóbadas auto-portantes que, juntas, formam o edifício que rompe com todos os dogmas racionalistas do Movimento Moderno. Niemeyer convida Cândido Portinari para pintar o painel dedicado à vida de São Francisco, com linguagem expressionista e cubista e forte apelo social, causando uma bizarra polêmica, pois o arcebispo de Belo Horizonte diante da obra de Portinari se recusa a consagrá-la. A igrejinha permanece profana até 1959, quando JK já presidente da República consegue finalmente sua inauguração dentro dos rituais católicos. Na Casa de Baile, não há linhas retas. Dois volumes cilíndricos são ligados por uma passarela sinuosa e irregular que parece dançar. Na verdade ela dança, com um ritmo e beleza plástica encantadores. Em cada projeto Niemeyer desafia a ortodoxia do funcionalismo cartesiano, ao se permitir sonhar e executar formas fantasiosas até então desconhecidas. "Eu me apaixonava pelas formas novas, sinuosas, belas e sensuais, capazes de suscitar emoções diversas.” Com Pampulha, Niemeyer aprofunda a investigação das potencialidades do concreto para dar forma ao seu furor escultórico. "Para mim, Pampulha foi o começo da minha vida de arquiteto. Era a oportunidade de contestar a

monotonia que cercava a arquitetura contemporânea, a onda de um funcionalismo malcompreendido que a castrava, dos dogmas de forma e função que surgiam, contrariando a liberdade plástica que o concreto armado permitia." A curva atraía Oscar Niemeyer e era para ele "livre e sensual", podendo "ser bela, lógica e graciosa, se bem construída". Assim ele escreveu: Não é o ângulo reto que me atrai nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, A curva que encontro nas montanhas do meu país, No curso sinuoso dos rios, Na sondas do mar, No corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo O universo curvo de Einstein. É em Pampulha que Niemeyer descobre e penetra definitivamente no mundo das curvas e adota para sempre a forma livre como vocabulário plástico de sua arquitetura. Descobre que a complexidade dos edifícios e os novos desafios projetuais vão exigir novas pesquisas técnicas. A presença do engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo, com quem começa uma parceria de gênios em 1941, para calcular e sustentar suas Agosto 2007

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estruturas no ar, torna-se obrigatória. Agora ele combina retas e curvas "imprevisíveis" que sua imaginação cria. Le Corbusier lhe diz: "Oscar, tu as les montagnes de Rio, dans te yeux". A partir de 1945, o Brasil vai viver um curto período democrático, o Partido Comunista é legalizado e Niemeyer a ele se filia. Em A Forma na Arquitetura, Niemeyer revela: "Sobre minhas idéias políticas direi que sempre fui um revoltado. Depois foi a própria vida a evidenciar suas misérias: o patrão a oprimir o empregado, o amigo mais pobre preterido, o desamparo que aflige nossos irmãos brasileiros e a burguesia ignorante a oprimi-los, ou a se manifestar de forma paternalista. Não podia ter dúvidas sobre a posição a tomar, num país em que 70% da população sofre, explorada e perseguida". Logo cedo lhe é recusado um visto para ministrar um curso na Universidade de Yale nos Estados Unidos. Seu prestígio, no entanto, o faz conseguir um visto especial válido somente para Nova York, para integrar o grupo especial de arquitetos coordenados por Le Corbusier, para projetar o edifício sede da ONU. Seu projeto é escolhido pelos colegas

No Congresso Nacional, Niemeyer consegue uma dramática plasticidade na dialética tensão entre os dois altos volumes retangulares e as duas cúpulas assimétricas

como base para o projeto coletivo final e, em 1949, Niemeyer é eleito para a Academia Americana de Artes e Ciências. Em Brasília, cidade construída pela determinação política de JK, Oscar Niemeyer forma uma grande equipe e, como arquiteto-chefe, garante a expressão arquitetônica da cidade moderna do projeto urbanístico vencedor de Lúcio Costa. Projeto esse que segue os rígidos parâmetros do Movimento Moderno, preconizados pela Carta de Atenas e que vem a ser reconhecida pela UNESCO, em 1987, como Patrimônio Cultural da Humanidade. "Foi em Brasília que minha arquitetura se fez mais livre e rigorosa. Livre, no sentido da forma plástica; rigorosa, pela preocupação de mantê-la em perímetros regulares e definidos. Minha preocupação foi caracterizá-la com as próprias estruturas." A Praça dos Três Poderes é a expressão simbólica da Capital onde estão localizados os edifícios representativos dos poderes judiciário (Palácio da Justiça), executivo (Palácio do Planalto) e legislativo (Congresso Nacional). Todos eles têm uma característica comum: os edifícios são volumes únicos e geométricos,


suas formas puras e simples, e suas proporções precisas. Neles se contrapõem curvas e retas. No Congresso Nacional, contrastando com as duas grandes torres retangulares, Niemeyer consegue uma dramática plasticidade na dialética tensão entre os dois altos volumes retangulares e as duas cúpulas assimétricas (côncava e convexa). Na Esplanada dos Ministérios, Niemeyer projeta 11 blocos retangulares numa repetição harmônica, equilibrada e rítmica de volumes puros que constituem a espinha dorsal do Plano Piloto, onde se encontram ainda o Teatro Nacional e a Catedral de Brasília. A Catedral é uma obra-prima escultórica, imbuída de grande apelo cenográfico. Todas as funções encontram-se no subsolo para liberar todo o espaço e suas estruturas para o culto litúrgico. As colunas, concretadas no chão, induzem o olhar do observador para o alto do céu. A sua função e uso assim o exigem. "Afinal, é uma catedral, não uma estação ferroviária", diz o autor. A escala monumental necessária para expressar a representatividade e significado político de Brasília é adotada sem medos acanhados. A expressão urbana e arquitetônica da capital brasileira, produto do

Divulgação

encontro feliz de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, celebra com grandiosidade legítima uma nação, então democrática, em busca da modernidade. Em 1964, Brasília torna-se o palco da arbitrariedade e do despotismo da ditadura militar que se instala à força no país. A truculência dos generais comandantes do Brasil inaugura um longo período de perseguição, morte e tortura para muitos brasileiros. Nas universidades os estudantes militantes do movimento estudantil são sumária e arbitrariamente expulsos pelo AI5, e muitos são convocados para longos, violentos e humilhantes interrogatórios nos quartéis do país. Niemeyer foi muitas vezes convocado a depor. Comunista assumido, seu prestígio internacional evitou uma perseguição maior. "Lugar de arquiteto comunista é em Moscou", declara o Ministro da Aeronáutica, ao rejeitar seu projeto para o Aeroporto de Brasília. Em 1966, seu escritório é arrombado e revirado e ele deixa o Brasil por um período de 16 anos, passando a viver no exílio, na África e Europa. André Malraux, amigo pessoal e admirador de sua obra, consegue de Charles de Gaulle um decreto especial que o permite trabalhar como arquiteto na França. "Não posso dizer que foram tempos felizes. Naquele exílio inevitável uma simples palavra, uma música qualquer que lembrasse o meu país, me comovia, a pensar na família, nos amigos distantes, perseguidos pela ditadura. É claro que tinha os momentos de lazer, que seguia os amigos neste rir e chorar que é a vida." Sua filiação ao Partido Comunista vai ser duramente criticada por toda vida, pois seus maiores clientes são empresários capitalistas e chefes de governo, e nem todos necessariamente comungam de suas idéias. As contradições entre sua assumida ideologia e a sua prática profissional são constantemente questionadas. Afinal é um homem público e famoso. "Nos meus contatos profissionais nunca escondi a minha posição política. Mas muitos que gostam da minha arquitetura me julgam um equivocado, e deles penso o mesmo." O fato de ser ateu não o impede de respeitar a Igreja e quem nela acredita, afirma. E, na Catedral de Brasília, "os crentes olham pelos vidros transparentes os espaços infinitos onde acreditam estar o Senhor". Em seu projeto recente para o Caminho Niemeyer, em Niterói, ele projetou um templo batista com o maior vão livre de laje da América Latina. A partir dos anos 80, grandes projetos são encomendados a Niemeyer por governadores e prefeitos, como o Memorial da América Latina, o Sambódromo, o Museu de Arte Contemporânea e o Caminho Niemeyer, em Niterói, o Teatro de Araras, o Parque Dona Lindu, no Recife, a Estação Ciência, Cultura e Artes em João Pessoa, entre Agosto 2007

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Fotos:Divulgação

outros. Nesta última fase do arquiteto, os valores plásticos continuam sendo o foco principal de sua arquitetura, mas falta a pureza cristalina e lírica de suas primeiras criações. Volumes amorfos de grande apelo escultural são usados para compor espaços simbólicos e funcionais que, na verdade, se transformam em uma retórica visual de formalismo abstrato. Sem concurso público, esses projetos evidenciam o favoritismo dos políticos pelo arquiteto e seus edifícios, muitos dos quais se tornam imediatamente uma atração cultural e turística. Tudo isso tem sido muito criticado. Além disso, em uma democracia, a população tem o direito de discutir as prioridades dos projetos urbanos, que pode ser a construção de um hospital ou de casas populares, e não necessariamente de teatros, museus ou memoriais, obras que provocam fortes impactos na cidade e que envolvem muito dinheiro público. A obra de Oscar Niemeyer é, entretanto, maior. Ela transcende às contradições do ser humano e já está inscrita no imaginário brasileiro e universal pela sua revolucionária contribuição à história da arquitetura, e por ter inspirado o florescimento da arquitetura moderna brasileira. Por isso celebramos os 100 anos de Oscar Niemeyer, a legenda viva do Movimento Moderno. Acima, o Memorial da América Latina. Abaixo, o polêmico projeto do Parque Dona Lindu, no Recife


Catedral de Brasília – em detalhe, parte interna com vitrais de Marianne Peretti


Oscar Niemeyer no estrangeiro Klaus Brendle, de Lübeck

N

iemeyer tornou-se conhecido na Europa através do edifício do Ministério de Educação e Saúde no Rio de Janeiro (1936), do Pavilhão Brasileiro para a Exposição Mundial de Nova York (projeto conjunto com Lúcio Costa, 1939) e dos edifícios de Pampulha em Belo Horizonte (1940). A recepção crítica dos participantes da Bienal de 1954 de seu projeto para sua residência de Canoas, Rio de Janeiro, um manifesto de liberdade formal, dinamismo e movimento, difunde ainda mais seu trabalho. A frutífera cooperação com o mundialmente conhecido arquiteto Le Corbusier, iniciada em 1936, seguida depois no projeto da sede da ONU em Nova York, em 1947, torna-o ainda mais conhecido na Europa, determinando seu primeiro trabalho individual no exterior, na Exposição Internacional de Arquitetura (Interbau-Internationale Bauausstellung) de 1957, em Berlim. Na Guerra Fria, a intervenção no Hansaviertel, bairro de Berlim, destruído no bombardeio da Segunda Guerra, seria a resposta da Alemanha ocidental, livre e democrática à gigantesca, suntuosa e retilínea avenida Stalinallee, situada na Berlim Oriental comunista, através de um conjunto residencial formado por unidades habitacionais implantadas organicamente no meio de generosas áreas verdes no limite do Tiergarten, parque municipal da cidade. Apesar de filiado ao Partido Comunista Brasileiro, Niemeyer desenvolve, ao lado dos outros arquitetos internacionais convidados (Le Corbusier, Walter Gropious, Klaus Brendler/ Divulgação

Casa da Cultura – detalhe – Le Havre


Alvar Aalto, entre outros), um edifício de apartamentos cujo projeto segue o modelo de Le Corbusier: o pavimento térreo livre, com expressivos e maciços pilotis, uma zona comunitária no quinto pavimento (que, para irritação do arquiteto, nunca foi construída), janelas, corredores e um forte coroamento superior na fachada. O edifício, recentemente restaurado para a celebração dos 50 anos do Hansaviertel, ainda hoje possui grande vitalidade de composição e força plástica. Ele se mostra leve com suas varandas contínuas no lado oeste ensolarado, e escultural, com a torre triangular da caixa de escada destacada do corpo principal, contrastando com a fachada leste plana. Em 1962, após seu sucesso de Brasília, sua carreira internacional se consolida a partir de seu projeto para a Feira Internacional do Líbano, em Trípoli. Logo depois ele desenvolve uma série de projetos para edifícios públicos e universidades na África e em Israel. Com a rápida e espetacular construção de Brasília, Niemeyer e o Brasil tornaram-se um exemplo inspirador e progressista para a cultura arquitetônica dos países recém-libertos do poder colonial, desejosos de se tornarem livres das influências européias e norteamericanas, e, como o Brasil, poderem traçar seus próprios caminhos. Com Niemeyer, as nações libertas do colonialismo, em muitos casos governadas por regimes autoritários, viam a possibilidade da afirmação de uma identidade nacional moderna, o fortalecimento de suas próprias culturas e potencial tecnológico e a aspiração do prestígio nacional. O chefe do governo argelino, Huari Boumédiene, solicita a Niemeyer, em 1968, o projeto de um novo centro governamental. Neste ano, ele faz contínuas viagens a Europa, visita entusiasmado a União Soviética e recebe convite da Arábia Saudita. No começo dos anos 60, torna-se membro de honra do American Institute of Architects. Em 1965 começa o projeto para a sede do Partido Comunista Francês, em Paris, onde vai viver no exílio após o golpe militar de 1964. Seu projeto se diferencia claramente da "linha reta" do funcionalismo moderno de então, através da cúpula plástica e das formas curvilíneas do bloco principal. Além de Niemeyer, o modernismo escandinavo de Alvar Aalto se desenvolve também livre dos dogmas do modernismo europeu, ao lado de Hans Scharoun e Hugo Häring na Alemanha, cuja concepção "orgânica" se posiciona fortemente contra a linha reta

Klaus Brendler/ Divulgação

Na Guerra Fria, a intervenção no Hansaviertel, bairro de Berlim, seria a resposta da Alemanha ocidental, livre e democrática à gigantesca, suntuosa e retilínea avenida Stalinallee

racionalista dominante da Bauhaus de Walter Gropious. Em Le Havre, cidade de um modernismo clássico e sóbrio, projetada por Auguste Perret, Niemeyer insere um centro cultural construído entre 1972–82, cujos edifícios rebaixados na praça – para proteção contra os ventos gelados do Atlântico Norte – e inseridos na rígida paisagem urbana ortogonal se espalham como uma ameba elevando-se em forma de vulcão. A cidade e o centro cultural se confrontam respeitosamente através do contraste acentuado entre as fachadas de tonalidade cinza do norte da França com o branco brilhante "brasileiro". Niemeyer declara ao Jornal do Brasil, em 1982, que, com as formas simples e abstratas de seus edifícios de Le Havre, ele procurou acentuar o impacto arquitetônico do novo conjunto sem no entanto estabelecer uma competição com a cidade de Perret. Em1968, Niemeyer projetaria a sede da Editora Mondadori em Milão. É possivelmente seu trabalho mais importante depois de Pampulha e Brasília. Considerando as exigências funcionais do complexo Agosto 2007

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Divulgação

editorial, ele concebe uma clara composição de formas variadas de edifícios e jardins. Aqui ele alcança um convincente jogo de formas livres e ortogonais e uma façanha construtiva. Apesar do repertório formal variado e do esforço estático da cobertura que sustenta os cinco pavimentos do edifício central, o resultado é uma expressão arquitetônica balanceada e harmônica. O grande espelho d'água do sistema de refrigeração atravessa livremente o edifício porque não há colunas no pavimento térreo. O edifício principal tem uma poderosa e lógica naturalidade apesar de sua colunata irregular e monumental. Um bloco baixo, sinuoso e contínuo, reservado para a redação e refeitório, se integra neste jogo de formas, volumes, jardins e com o edifício principal.

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A Universidade de Constantine, na Argélia, é construída em 1969. Niemeyer recebe de Boumédiene total liberdade projetual e ele a usa mudando a concepção original que previa vários edifícios espalhados pelo campus. Ele concentra a universidade em cinco edifícios e numa torre de 19 pavimentos (para abrigar a célula administrativa) que se agrupam em torno de uma grande área livre com vários espelhos d'água. Ele projeta uma revolucionária cobertura de enorme dimensão feita de uma casca delgada de concreto com 60 metros livres, uma obra espetacular calculada pelo engenheiro brasileiro Marco Paulo Rabello. Ao lado, o edifício para salas de aula sobre pilotis com vãos de 50 metros e balanços de 25. Nesta composição de edifícios com figuras abstratas,


Spassbad, centro de esportes aquáticos, projetado por Niemeyer em 2005, em Postdam

produzindo grandes sombras sob o escaldante sol norte-africano, as pessoas se movimentam como personagens clássicas da pintura surrealista de Giorgio de Chirico. Em 1972 é construído o edifício da Bolsa de Trabalho em Bobigny, França, e concluído o Centro Cultural de Le Havre que agora tem o seu nome. Em 1975 ele realiza vários projetos para a Arábia Saudita e o edifício sede da FATA em Pianezza, Turim. Finalmente é construído o edifício de apartamentos em Fonteney-Sous-Bois, na França. Até 2003, quando a Serpentine Gallery é construída em Kensington, Londres, nenhum outro projeto internacional é realizado. Para esta galeria, que convida anualmente arquitetos de todo o mundo para projetarem um pequeno pavilhão temporário para exposição e eventos, Niemeyer projeta uma escultura arquitetônica de aço, alumínio e vidro. Ela é construída pelo conhecido escritório de engenharia Arup e, como no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, possui uma rampa de entrada pintada em rosa-pink A realização do Spassbad, um centro de esportes aquáticos projetado por Niemeyer em 2005 para Potsdam, cidade próxima a Berlim, tornou-se há pouco tempo um grande fracasso. As razões do cancelamento do projeto foram o altíssimo custo da obra e a ambição do prefeito da cidade, que intencionava construir uma gigantesca obra pública com um "autêntico Niemeyer" usando politicamente seu nome. Ao ignorar os regulamentos jurídicos que, de acordo com a legislação da Alemanha e da Comunidade Européia, não permite a contratação direta de um projeto envolvendo tamanhos custos, ele inviabilizou a construção do complexo. Deveria ter sido realizada uma publicação oficial da intenção do projeto pela prefeitura de Potsdam, tornando-o público e possibilitando a outros arquitetos participar do processo. A interrupção do projeto evitou o pronunciamento público dos arquitetos da Alemanha sobre este último trabalho do arquiteto cuja repetitiva composição das cúpulas e de seus elementos de ligação mostram pouca força de design, se comparados com suas obras anteriores. Afinal, conhecemos bem as grandes qualidades, as fases brilhantes e as "curvas" da arquitetura do mestre brasileiro. Seu recente projeto encomendado por Hugo Chavéz para o Monumento a Simon Bolívar em Caracas, Venezuela, mostra a mesma romântica filosofia política e ideal social que o acompanharam toda a sua vida. A concepção do monumento como uma lança semelhante a um obelisco inclinado com mais de 100 metros de altura, lembra o esporão escultural de 300 metros "apontado para o ocidente", projetado para Boumédiene em 1968. Niemeyer parece não perceber que, após 40 anos, tais projetos perderam o significado, tornando-se objetos triviais e inanimados sem função social e política a não ser em países regidos por déspotas anacrônicos e demagogos. Niemeyer, que no início de sua carreira trabalhou conjuntamente com vários artistas e escultores em Pampulha e Brasília, não vê também que seus desenhos e esculturas estão na fronteira entre arte e decoração. Seus desenhos, entre outros, para o Grande Hotel de Ouro Preto, para a Agosto 2007

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Serpentine Gallery em Londres, e para Teatro Popular do Caminho Niemeyer em Niterói, bem como suas esculturas figurativas de Le Havre e do Memorial da América Latina, são gestos patéticos que carregam mais valores afetivos que artísticos, e como as pinturas de Le Corbusier, não podem ser comparados com sua grande obra arquitetônica. Nos últimos anos, no exterior e também no Brasil, deflagrou-se uma corrida desenfreada em busca de seus projetos para os mais variados usos e funções. Ter uma obra de Oscar Niemeyer tornou-se a ambição de várias cidades no mundo inteiro. Projetos que realizados rapidamente têm atropelado o processo de discussão e reflexão técnica e da participação popular e suscitado complexas polêmicas éticas. Isto reflete o uso indevido da personalidade de Oscar Niemeyer por autoridades governamentais e grandes empresários para conferir prestígio e legitimidade à suas intervenções urbanas nos espaços públicos e expressar no concreto e vidro as suas ambições políticas. O que fica claro para nós é que no tempo de Juscelino Kubitschek e de outros clientes responsáveis para quem ele trabalhou ao longo de sua vida profissional, havia um ideal utópico de construir um mundo mais justo e melhor. Eles possibilitaram a Niemeyer realizar suas idéias arquitetônicas, dando-lhe então espaço para projetar a beleza do futuro que até hoje nos encanta e fortalece pela ausência de modismos e pelo seu vigor plástico. (traduzido do alemão por Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle) Catálogo da Exposicao Niemeyer 90 anos/Reprodução

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Oscar Niemeyer, na cobertura do edifício Sede do Partido Comunista Francês, em Paris


Depoimentos Exclusivos para Continente Wandenkolk Walter Tinoco

Arquiteto pernambucano formado em 1958 pela Escola de Belas Artes da UFPE, foi professor da Faculdade de Arquitetura da UFPE e coordena o escritório de arquitetura WWTinoco no Recife. A sua instigante arquitetura nos tem deixado o exemplo inovador que, se por vezes nos parece contestável, se impõe pela coragem das propostas que seguem modificando, como se faz necessário, os conceitos e parâmetros estabelecidos por outras culturas. Obediente à sinuosidade da nossa geografia e à sensualidade de nosso povo, faz conviver intimamente a curva ousada e a linha reta, tornando-as cúmplices de uma nova linguagem, que rompe preconceitos e inclui a volumetria tanto externa quanto atmosférica, como uma das mais importantes funções do projeto, confortando o espírito de quem as usa ou observa. Sendo assim, o invólucro de uma função corretamente posta é capaz de expressar a mensagem desejada, razão do objeto arquitetônico. Outra característica inequívoca da sua obra é o enorme poder de síntese que deixa transparecer uma linha espiritual identificável em poucos traços, que nos revela mais uma vez a força de expressão dos grandes projetos. Todos estes valores, somados a uma grande inquietação, demonstram desde a Obra do Berço até o Parque Dona Lindu a particularização de conceitos que foram crescendo na direção de uma arquitetura da qual nos devemos orgulhar e seguir buscando, cada vez mais, a consolidação da sua identidade.

Natália Vieira

Arquiteta, doutora em Conservação Urbana e coordenadora do Curso de Arquitetura da Faculdade Damas, Recife. É unânime o reconhecimento da importância de Oscar Niemeyer para a afirmação da arquitetura moderna brasileira no cenário internacional. Entretanto pouco se comenta sobre seu pioneirismo na intervenção em áreas históricas. O Grande Hotel Ouro Preto (1940), construído poucos anos depois da fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937), é um exemplo paradigmático da inserção da arquitetura contemporânea em um contexto histórico e antecipa as orientações do

Klaus Brendler/ Divulgação

O Museu de Arte Contemporânea – MAC – fica em Niterói


Klaus Brendler/ Divulgação

O Copan é um dos mais importantes e conhecidos edifícios de São Paulo

restauro crítico proposto por Cesari Brandi em sua Teoria do Restauro nos anos 60. Niemeyer respeita a instância histórica ao inserir uma edificação francamente moderna no casario antigo de Ouro Preto, e ao mesmo tempo considera a instância estética, ao utilizar elementos tradicionais locais como a telha de barro, as varandas, os azulejos e os muxarabis numa linguagem moderna sem cópias, imitações ou pastiches. Ele nos mostra que é possível a convivência respeitosa e dialética da arquitetura contemporânea de qualidade com a arquitetura do passado.

Álvaro Siza

Arquiteto português professor da Escola de Belas Arte do Porto, recebeu o Pritzker-Prize em 1992. No princípio era Corbu... As novas publicações davam conta do que se fazia, onde, como e quem. Reconstruía-se a Europa. Um dia, de chofre, surgiu a América do Sul na Architecture d'Aujour d' hui. E logo inúmeras publicações sobre o Brasil e mais ainda sobre "um" Oscar Niemeyer. As revistas pousadas sobre as nossas mesas de trabalho (monografias de Gropious, de Neutra, de Mendelsohn, de Mies) foram misteriosamente substituídas. Surgiram no papel, como nos desenhos de Niemeyer que nos fascinavam - pilares como pontos, paredes como finas linhas ondulantes, quase dissolvendo a forma, contudo tão nova e tão evocativa. Bailavam na mente Pampulha e Canoas.

Zaha Hadid

Arquiteta iraquiana de nacionalidade britânica, radicada em Londres, recebeu o Pritzker-Prize em 2004. É uma das maiores personalidades da arquitetura contemporânea mundial. Meu trabalho teve uma influência profunda de Oscar Niemeyer. Eu visitei muitas de suas obras no Brasil e tive também o privilégio de encontrá-lo pessoalmente em diversas ocasiões. Sua originalidade, sensibilidade espacial e seu talento virtuoso são simplesmente únicos e insuperáveis. Sua obra me inspirou e encorajou a buscar a minha própria arquitetura, seguindo-o na conquista da fluidez total em todas as escalas.

Günter Behnisch

Arquiteto alemão, professor emérito da Universidade de Darmstadt, autor, entre outros, do Centro Olímpico de Munique. Oscar Niemeyer é para mim o último grande arquiteto do Movimento Moderno do século 20. Através de suas criações individuais, ele consegue tornar qualquer lugar em alguma coisa especial, única e imutável. É o poético que em seus edifícios nos fascina. O jogo com as formas esculturais e com a luz, as linhas suaves e fluentes e seus vigorosos e rítmicos movimentos. Um dos objetivos de sua arquitetura é exercer a mínima pressão sobre as pessoas. A liberdade que dela resulta contribui para o florescimento individual de cada um.




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