GAbriEl lAPrOViTErA
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aos leitores Os objetos adquirem diferentes valores e usos, de acordo com lugar e tempo. No passado, as bonecas de pano fizeram parte das brincadeiras de crianças de cidades e, sobretudo, do interior. Eram as bruxinhas e calungas. Hoje, com uma indústria de brinquedos profusa, as bonequinhas caseiras migram das mãos dos pequenos para as de colecionadores, que encontram nelas tanto uma referência nostálgica quanto um labor artístico que merece valorização. Nesta edição, abordamos o assunto com o enfoque nas mestras bonequeiras que persistem na atividade, em Pernambuco e na Paraíba. Outro assunto que trazemos neste número 109 é o Ano Joaquim Nabuco, que começa este mês, no centenário de sua morte, e prossegue até novembro, com variada programação. Pedimos ao professor Anco Márcio Tenório Vieira que antecipasse para a Continente um pouco do resultado do trabalho que o mobiliza há cinco anos e que será lançado em livro ainda este ano: a organização da correspondência mantida entre o abolicionista Nabuco e o escritor Graça Aranha. Em visita à redação da revista, Anco comentou que de tudo eles escreveram nessas missivas (do profundo ao prosaico), que chegavam a ter mais de 30 folhas manuscritas. Nas próximas páginas, você lerá três dessas cartas e informações sobre a trajetória pública de Joaquim Nabuco.
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sumário Portfólio
Marcelo Silveira 06
cartas
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expediente + colaboradores
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entrevista
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oscar Quiroga Astrólogo argentino, radicado no Brasil, defende uma ciência astrológica que não professe ideias obscurantistas
conexão
educação Site Academic Earth disponibiliza conteúdos didáticos de renomadas universidades americanas
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Balaio
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Perfil
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Sonoras
copenhague Prostitutas oferecem sexo gratuito em protesto ao veto às suas atividades
Xirumba Fotógrafo comemora 35 anos de atuação registrando manifestações artísticas e questões sociais do Nordeste
Guerreiras Espetáculo, baseado na história das heroínas de Tejucupapo, aborda conquistas das mulheres na atualidade
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Leitura
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Matéria corrida
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claquete
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Artigo
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Saída
Biografia
Benjamin Moser O biógrafo se apaixonou por Clarice Lispector e lhe dedicou 700 páginas de estudos
Palco
Artista pernambucano utiliza elementos do cotidiano para ocupar e preencher espaços, uma das características de sua obra de circulação internacional
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Papa-Figo Publicação anárquica, em circulação desde os anos 1980, recebe edição especial José cláudio Todos os motivos para comer bolacha
Guerras Filmes de Larisa Shepitko e Elem Klimov expressam a dor da violência Sigmund Freud Diagnóstico proposto pelo psicanalista em O mal-estar na civilização permanece atual após 80 anos de sua divulgação Gil Vicente Como o circuito e o mercado podem andar juntos no campo das artes plásticas
Mídia
Sampa O cotidiano dos músicos que seguem para a capital paulista em busca da profissionalização
Tirinhas As páginas da web se consolidam como um eficaz canal de comunicação para esse gênero, atingindo um público amplo e possibilitando ousadia aos autores
42 Capa Foto Eduardo Queiroga
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especial
Viagem
Começa, este mês, o ano joaquim nabuco, que rememora a importância do homem público, que entrou na história por sua campanha contra a escravidão
As opções teatrais da capital argentina, que vão das comédias às óperas, dividemse em cerca de 200 salas de espetáculo da cidade e atraem um público fiel
tradição
cardápio
A delicada arte de produzir bruxinhas ou calungas de pano continua viva nas mãos de algumas bonequeiras talentosas
Na estação do calor, seja de frutas ou cremosa, simples ou incrementada, a sobremesa ganha preferência nas ruas e nos restaurantes
O abolicionista
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Bonecas
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Buenos Aires
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Jan’ 10
Sorvete
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cartas D. Helder Sou professora da Escola Estadual São José, cuja comunidade foi privilegiada pela benfeitoria do Dom da Paz. Esse grupo social intitulado “Justiça e Paz”, conhecido como Tururu (que atua no Janga, em Paulista), teve o reconhecimento daquele grande homem. Fiz um trabalho com meus alunos aproveitando a reportagem sobre D. Helder, publicada na revista Continente número 98. Eles adoraram, pois a reportagem da revista confirmou a de um jornal, que apresentava o “antes, durante e depois” de D. Helder nessa comunidade. Sou leitora desta revista desde a época em que ela chegava à escola. Passei a ser assinante para ler com mais atenção, enriquecer meu conhecimento e por lazer. A revista é ótima. Sugiro uma reportagem sobre as esculturas de Francisco Brennand. Levei meus alunos à oficina. Tudo é lindo. Voltei sozinha para “viajar”. AnA MAriA Melo de liMA recife-Pe
É bom que se tome conhecimento das novas pesquisas, das novas descobertas, no entanto, sem esquecer que ciência e religião podem caminhar juntas. MAtilde thouVenin recife-Pe
Sartre e Beauvoir
Ciência e religião Gostaria de parabenizar os jornalistas e os editores da revista Continente pelos excelentes temas trabalhados ao longo do ano que passou. Sou leitora assídua. Destaco aqui a reportagem que abordou a relação entre a fé e a ciência e sugiro outros artigos com esse mesmo tema, uma vez que os homens estão se tornando grandes tecnocratas, deixando passar a oportunidade de refletir sobre certos assuntos.
Recebam os cumprimentos da equipe do Gibi Aquático, pela magnífica edição desta revista, notadamente o número 105, destacando a referência a JeanPaul Sartre e Simone de Beauvoir; os cumprimentos são extensivos à diretora Leda Alves. Logo após a circulação desse número, ouvi comentários elogiosos ao Governo do Estado, pelo prestígio da publicação – assim se referiu a rádio CBN, em horário nobre. JoSuÉ de oliVeirA liMA recife-Pe
errata Na edição 108, dez/2009, na reportagem da seção História, o sobrenome do major Emiliano é Munducuru.
Você fAz A continente coM A gente o nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. envie suas críticas, sugestões e opiniões. a seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (rua Coelho Leite, 530, Santo amaro, recife-Pe, CeP 50100-140). as mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. a continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone
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colaboradores
anco Márcio tenório Vieira
Daniela arrais
eduardo Melo França
Germano rabello
Jornalista
Graduado em Psicologia e
Jornalista, escreve sobre
mestre em Teoria da Literatura
música, HQs e cinema
Professor, doutor em Literatura Brasileira
Mariana camaroti
Sílvia Góes
tiago Hoisel
Jornalista, radicada na Argentina
Jornalista e bailarina
Ilustrador e caricaturista
e MaiS Breno Laprovitera • Christianne Galdino • Daniela Nader • Eugênio Vieira • Eduardo Queiroga • Gabriel Laprovitera • Gil Vicente • Gilson Oliveira • Léo Caldas • Marcelo Costa • Renata do Amaral • Schneider Carpeggiani
GoVerno Do eStaDo De PernaMBUco
SuPerintendente de ediÇÃo
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AtendiMento Ao ASSinAnte
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OSCAR QUIROGA
Astrologia presente em toda a vida Argentino radicado no Brasil defende uma ciência astrológica amiga do conhecimento, que não professa ideias obscurantistas ou catastróficas texto Schneider Carpeggiani
con ti nen te#44
Entrevista
Santo Agostinho até professou
que o tempo não existe, mas que a gente acredita nele, acredita. Por isso é que janeiro aparece sempre como uma oportunidade: o calendário é zerado, chega a hora de tentar, mais uma vez, recomeçar um projeto ou, melhor, saltar no desconhecido. É quando se olha para o céu em busca de respostas ou de algum alívio. E sobre olhar para o céu, o astrólogo argentino, radicado no Brasil, Oscar Quiroga entende muito bem. Famoso por assinar há anos o horóscopo do jornal O Estado de S.Paulo, ele hoje presta consultoria sobre o tema para empresas e emissoras de rádio e TV e se tornou uma espécie de sinônimo para a astrologia. Seus textos não guardam qualquer ranço do tipo “vou prever seu futuro”, e, sim, preferem uma linguagem mais filosófica, de indagação. Nesta entrevista para a Continente, o astrólogo comentou verdades e mitos que cercam o seu trabalho. Refutou o senso comum que faz as pessoas associarem astrologia à vidência e explicou o pensamento
que guia tudo aquilo que escreve: “Nós estamos preocupados demais tentando compreender um Universo que imaginamos longe, enquanto que a melhor atitude seria brilhar o suficiente para que o Universo percebesse nossa presença”. É claro que não deixou de comentar a pergunta que persegue qualquer um que já se pegou lendo o horóscopo algum dia na vida: será que o céu de fato nos protege? continente Fim e começo de ano são momentos em que as pessoas, tradicionalmente, colocam suas vidas em perspectiva. Como astrólogo, você acha que, nessas horas, é melhor refletirmos em relação ao passado ou diante das possibilidades do futuro? oScAR QUiRoGA Cada pessoa tem seu próprio estilo de reflexão, é importante que esse exercício seja feito independentemente de ter mais foco no passado, presente ou futuro. A reflexão é um esforço de rever os passos dados e de se distanciar para adquirir uma visão mais panorâmica do que é a própria Vida, a vida que vivemos, a vida que nos vive. Que isso
seja feito em dezembro é um costume consagrado culturalmente, e por isso é fadado a ser modificado, porque a cultura não é eterna, resulta de hábitos e costumes que mudam de acordo com as necessidades da época. continente Você já disse que não se preocupa se astrologia é ciência; mas, sim, que ela seja tratada como uma ferramenta de reflexão, uma espécie de filosofia de vida. O que é astrologia para você, já que seu site é chamado de Astrologia real (www. astrologiareal.com.br)? oScAR QUiRoGA Astrologia real é conceber que o Universo não é lá longe como nossa imaginação fantasia, mas que o Universo seja aqui e agora, enquanto escrevo estas linhas e enquanto você as lê. É astrologia filosófica porque é amiga do conhecimento, para aproximá-lo de nossas vidas reais, sem símbolos, sem obscurantismo, mas como aceitação de que nós somos parte integrante de um colossal circuito distribuidor de Vida, que chamamos Universo. Nós estamos preocupados demais tentando compreender um
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divulgação
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Universo que imaginamos longe, enquanto que a melhor atitude seria brilhar o suficiente para que o ele percebesse nossa presença, que nos compreendesse. Por isso chamo a astrologia que pratico de real, porque está intimamente vinculada com cada ato, pensamento e sentimento de todas as horas.
continente De acordo com o calendário maia, em dezembro de 2012, o mundo passará por uma etapa de grandes mudanças. O filme 2012, atual blockbuster de Hollywood, anuncia esse ano como o fim do mundo. O senhor acredita que nós já estamos à beira de um fim do mundo? Há alguma possibilidade da expressão “fim do mundo” ser positiva, para além da ideia de catástrofe? oScAR QUiRoGA O estresse de vivermos numa civilização que se
passado. Ao mesmo tempo, a inércia de tudo que está errado parece ser grande demais e dia a dia vemos nossos esforços serem sobrelevados pela mesma. Além disso, nossa humanidade é tomada por grande preguiça e não se atreve a fazer tudo que é necessário para acelerar a reinvenção de nossa civilização. Isso é prenúncio de desastre. Qual será a proporção deste? Ninguém sabe! Eu sugiro que seja colocada sob suspeita toda informação que dissemine o medo, porque este tem sido desde sempre um instrumento
divulgação
continente Ainda aproveitando o mote, qual o significado de um Ano-Novo para a astrologia? E mais: o senhor percebe alguma espécie de poesia na expressão “ano-novo”?
que pode ser conferida pelo aparente ingresso de nosso Sol no signo de Áries.
“não precisamos esperar até 2012 para ver isso (o fim do mundo): é só observarmos todos os sinais que vêm acontecendo desde a década de 1980 do século passado” con ti nen te#44
Entrevista oScAR QUiRoGA Olha, se você observar o céu na noite de Réveillon, não encontrará sinal algum de anonovo, porque nosso calendário é artificial, não tem correspondência nem sincronia com os movimentos de nosso sistema solar. O que gera bastante perturbação, porque não há nada mais eficiente para provocar doenças e mal-estar do que você tentar levar uma vida desvinculada do ambiente cósmico no qual ela acontece. O ano-novo astrológico acontece no dia 20 de março de cada ano, momento em que se dá o equinócio de primavera no hemisfério norte e de outono no sul. Aí, sim, temos correspondência cósmica para anunciar um novo ano, nossa Terra inicia uma nova ronda zodiacal,
desvinculou do ambiente cósmico em que a própria vida acontece alimenta a fantasia, o desejo de ver este mundo finalizado, o apocalipse. Sobram argumentos na nossa vida diária para continuarmos a desejar que o mundo termine, porque é infame, ingrato, ignóbil e só os ímpios parecem se dar bem por aqui. Porém, seríamos injustos com as futuras gerações se levássemos esse desejo egoísta até o fim. Que nossa civilização deve mudar e que está em franco processo de decadência para ser substituída por outra que atenda nossas básicas necessidades, é uma verdade absoluta. Não precisamos esperar até 2012 para ver isso: é só observarmos todos os sinais que vêm acontecendo desde a década de 80 do século
de dominação das massas e agora não é diferente. Temos mais para celebrar do que para ter medo, estamos nos livrando de uma civilização ignorante, somos hoje em dia seres muito mais inteligentes e sofisticados do que nossos ancestrais, os mesmos que escreveram essas profecias. Por isso, não há obrigação de levar ao pé da letra antigos presságios, porque com nossa inteligência atual podemos reinterpretá-las de acordo com nossa visão mais avançada da realidade. continente Nós vivemos numa sociedade que se orgulha de ser pragmática e rápida. Como a astrologia, que é o oposto disso tudo, poderia se encaixar num mundo guiado por essas expressões?
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de enfrentar a dura realidade que é libertar-se de dogmas e limitações. É completamente possível se fazer um bom trabalho astrológico através da internet, de acordo com as limitações que ela tem ainda hoje em dia. continente Há empresas que consultam astrólogos para enfrentar crises e até mesmo contratar funcionários. Pode dar exemplos da utilidade da astrologia nesses momentos? oScAR QUiRoGA Astrologia é um ótimo instrumento para organizar grupos de trabalho, porque sua origem
oScAR QUiRoGA Francamente, não achei nada. Que certo grupo de astrônomos (porque oficialmente não passou disso) tenha declarado que Plutão é um planeta anão, ou um planetoide, não muda em nada a essência. Em termos cósmicos, tamanho não é documento. Plutão continua sendo um canal de distribuição de poder, independentemente de haver um grupo de humanos aqui na Terra que ache o contrário. De todo modo, aproveito para dizer que acho curioso que os
reprodução
oScAR QUiRoGA Se a sociedade quer ser só pragmática e rápida, pior para ela, porque o lado concreto da realidade é só o último elo de uma corrente infinita de ocorrências subjetivas. É só observarmos como nascemos, como agimos o tempo inteiro. Tudo provém de uma fonte subjetiva e flui na direção do que é objetivo e concreto. Por isso, focar a atenção só no lado concreto da vida é limitar a visão da realidade e, no fim, isso nos condena a ser muito menos do que merecemos. A subjetividade tem
“o céu não nos protege nem ameaça, porque o céu não é lá em cima enquanto nós estamos aqui embaixo. nós somos o céu encarnado”
sido desprezada em nossa civilização. Mas assim as coisas andam, sem ética, sem valores, sem norte. continente Vamos falar um pouco sobre internet: o que você acha de sites astrológicos de sucesso internacional, como o de Susan Miller (www.astrologyzone. com), que é vista como uma espécie de vidente moderna, tudo o que você sempre negou ser? E mais: é possível fazer um mapa astral por um programa on-line? oScAR QUiRoGA Há mercado para tudo (não digo com isso que Susan Miller seja vidente, mas é o que me parece transparecer em sua pergunta). Se existem charlatães, é porque existem pessoas que querem ouvir mentiras e confortar-se com elas, no lugar
é grupal. Ela existe como declaração de que, em primeiro lugar, somos uma espécie coesa, para depois de muitas vicissitudes nos transformarmos em seres humanos individuais e separados uns dos outros. Por isso a astrologia é boa não apenas por atualizar a consciência do que nos une, como também por apontar para que servimos, que função é a nossa neste planeta, que papel precisamos assumir para que sejamos tudo que poderíamos ser. continente Em sua opinião, todos os comentários sobre o rebaixamento de Plutão foram uma espécie de vingança da ciência contra a astrologia, uma forma dela dizer “Vocês não são como nós, vocês não passam de um monte de místicos”?
cientistas, tão perseguidos e censurados na época da Inquisição, hoje em dia gastem tempo para fazer o mesmo com seus colegas de caminho, buscadores de verdade e conhecimento. continente Última pergunta: o céu nos protege? oScAR QUiRoGA O céu não nos protege nem ameaça, porque o céu não é lá em cima enquanto nós estamos aqui embaixo. Nós somos o céu encarnado, capazes de irradiar influência criativa, mas, como não nos educaram para isso, ainda rastejamos na lama aguardando que um céu externo venha ajudar-nos, na melhor das hipóteses, ou que nos infernize, na pior delas.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
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Para LeMBrar naBuco
PortFÓLio
No dia 17 de janeiro de 1910, morria Joaquim Nabuco. Este ano, numerosos eventos e publicações marcarão a data. Dentre as comemorações, está o lançamento de uma compilação da correspondência trocada entre Nabuco e o escritor Graça Aranha, entre os anos de 1899 e 1910. Nesta edição da Continente, o coordenador do volume, Anco Márcio Tenório Vieira, comenta algumas dessas cartas. No site, o internauta poderá ler trechos da obra memorialista Minha formação, na qual ele reconta sua infância no Engenho Massangana, período em que o futuro abolicionista estava em germinação.
O artista Marcelo Silveira tem uma clara preocupação em ocupar espaços, mesmo quando trabalha em suportes bidimensionais. Conheça outros trabalhos do artista.
Conexão
tirinHaS A web vem ganhando espaço como plataforma de leitura e firma-se como um ambiente eficaz para as tirinhas. Confira alguns trabalhos de sucesso na rede.
Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br
andanÇaS virtuaiS Lugares para ver e rever o que a web tem de bom para mostrar
eXPoSiÇÃo
MÚSica
cidadania
FLIP-BOOK
Artista entrevistou cinco mil para compor projeto audiovisual
Mais uma alternativa para quem deseja ouvir som on-line
vote na web expõe projetos de lei do Congresso e os submete aos internautas
Feita para telas de computadores, a tiger traz produções gráficas ousadas
www.6milliardsdautres.org
www.grooveshark.com
www.votenaweb.com.br
www.tigermagazine.org
6 milliard d’autres (6 milhões de outros), uma das mais comentadas exposições na Europa em 2009, pode ser conferida também via web. Idealizado por Yann Arthus-Bertrand, o projeto reuniu depoimentos de cinco mil pessoas dos cinco continentes (mais especificamente, de 75 países), para responder perguntas de temáticas diversas, como: qual o seu maior medo ou o que você aprendeu com os seus pais? O resultado é um mosaico multicultural, em que o ser humano é o foco. No site, está disponível o making of das exposições em diversas cidades do mundo.
O consumo de música para a geração 2000 mudou radicalmente. No lugar dos discos, ouve-se tudo que a internet pode oferecer – o que não é pouco. Uma das maneiras de consumir se dá através do grooveshark.com, mais uma opção para quem quer escutar qualquer estilo musical. No site, o internauta digita o nome do artista pretendido, e recebe um setlist inteiro como resposta, ou pode ainda digitar diretamente o título de uma canção. As músicas são armazenadas em pastas, e o usuário também tem a possibilidade de adicionar as listas musicais de outros participantes do programa.
Incentivar o uso da bicicleta como meio de transporte, evitar a exposição de pessoas à humilhação e degradação em reality shows, e criar um selo para empresas que promovem a preservação da Amazônia. Essas são algumas das propostas de lei dos congressistas brasileiros apresentadas no site Vote na web. Além de mostrar os dados dos projetos, a página permite que o público vote simbolicamente nas leis, detalhando o resultado a partir dos Estados. Importante tanto para ver a atuação dos parlamentares como para sentir a reação dos brasileiros.
Com mesmo nome de uma revista da Universidade de Princeton que chegou a ser editada por Scott Fitzgerald, a Tiger se define com uma “screen magazine”. Disponível exclusivamente na internet, a publicação funciona como um flip-book digital, em que os leitores podem passar suas páginas a partir do computador. Criada por Takeshi Hamada em 2000, reúne fotografias, desenhos e outras artes gráficas, sempre apostando na ousadia estética. No site, além de conferir os números anteriores, é possível enviar contribuições para a publicação.
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rEPrODUçãO
blogs QuadrinHoS http://oglobo.globo.com/blogs/Gibizada
Notícias, programação de eventos, entrevistas e discussões. Fãs de quadrinhos encontram tudo isso no Gibizada, blog de Telio Navega, que cobre tanto as HQs comerciais como o circuito alternativo.
inÉditoS http://jocareinersterron.wordpress.com
daS MaiS renoMadaS univerSidadeS Criado por Richard Ludlow, o Academic Earth permite que o usuário frequente aulas de instituições norte-americanas www.academicearth.org
a internet não inventou o ensino a distância, mas, sem dúvida, elevou
para outro patamar as suas possibilidades, permitindo que alunos e professores usassem as características de plataforma multimídia e interativa. Provou-se tão útil para esse fim que, hoje em dia, são raras as graduações e pós-graduações não presenciais que deixam de explorar essas vantagens. Com o Academic Earth, sequer é necessário pagar por um desses cursos. A meta do site é ousada: romper parte das barreiras para que qualquer um possa ter acesso à educação de qualidade. A proposta já foi elogiada por diversos jornais e revistas, como o Telegraph e a Slate, e o endereço foi escolhido como um dos destaques de 2009 pela Times Magazine. Os conteúdos vêm de renomadas universidades americanas – Berkeley, Harvard, Princeton, Stanford e Yale, para só citar algumas – e são organizados em “cadeiras”, também divididas por temática, como literatura, economia, filosofia e até conceitos básicos para estudantes de medicina. São, no total, mais de cinco mil vídeos, que também estão disponíveis para download. O Academic Earth também aceita a colaboração de professores e instituições interessados em disponibilizar material educativo. DioGo GUeDeS
Em Sorte & Azar S/A, o escritor Joca Reiners Terron apresenta textos inéditos, seus desenhos e recomenda leituras e sites. O assunto do blog, segundo o autor, é a “sua total incapacidade para escrever posts”.
SeXo www.botecosujo.com
Boteco Sujo, do jornalista Fausto Salvatori Filho, é dedicado a falar sobre sexo, com destaque para a indústria pornográfica, e já deu verdadeiros furos – foi o primeiro a falar do caso da aluna Geyse, da Uniban, que chocou o país.
entreviStaS http://programaretrovisor.blogspot.com
Mantido por Haymone Neto, o blog do programa de rádio Retrovisor disponibiliza o áudio das entrevistas realizadas com bandas da cena pernambucana, como Ex-Exus e Ampslina, além de trazer as playlists de cada edição.
sites de
músicos ANIMAÇÃO
MULTIMÍDIA
PERSONALIZÁVEL
www.questfortherest.com
www.lulaqueiroga.com.br
www.mtakara.com
Para divulgar um single, The Polyphonic Spree criou um game em que o usuário deve conduzir os integrantes do grupo.
Usando da simplicidade, o site de Lula Queiroga traz links para seu blog, perfis no MySpace, Flickr, Orkut, Twitter e Youtube.
Com janelas manipuláveis pelo usuário, o site de Maurício Takara mostra informações sobre seus trabalhos solo e como baterista.
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Portfolio
Marcelo Silveira
PREENCHER, OCUPAR E COLECIONAR
Páginas anteriores 1 ocupação
A obra de Marcelo Silveira tem uma clara preocupação espacial, evidenciada em Tudo ou nada
TexTo Mariana Oliveira
num primeiro olhar, a obra do artista pernambucano Marcelo Silveira
aponta um forte direcionamento escultórico. Mas classificá-lo apenas como um escultor seria extremamente restritivo. É notória a preocupação espacial, presente em quase todas as suas obras, inclusive naquelas em que ele, a princípio, trabalharia dentro da bidimensionalidade da pintura. Nascido em Gravatá, Agreste do Estado, Marcelo Silveira começou sua carreira nos anos 1980, quando os artistas do Recife, sobretudo, pintavam. Como todos eram adeptos das tintas e dos pincéis, aventurou-se nesse suporte, seguindo a tendência, porém sem sentir-se completamente satisfeito com os resultados. No contato com obras de outros artistas, em especial Arthur Bispo do Rosário, desvelou aquilo que procurava. Deixou a pintura e passou, então, a investir em objetos, alguns deles mais ligados ao cotidiano, outros se assemelhando a esculturas e instalações. A questão espacial fascinava-o, os armazéns abarrotados de coisas das cidades do interior despertavam sua lembrança. Nessa descoberta, o artista saiu às ruas e, como um catador, foi recolhendo elementos que pudessem compor suas obras, agora carregadas de volumes. Foi assim com a madeira de uma típica árvore da sua cidade natal e com os vidros de linha industrial.
Nestas páginas 2-4 ArquiteturA de interior
Nesta série, o artista trabalha as questões do vazio e do colecionismo
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São paulo e Madri
Rua da usina fez parte da mostra Contraditório– Panorama da arte brasileira, exibida nas duas cidades
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Os materiais recolhidos do dia a dia perdem sua funcionalidade original e ganham uma “não funcionalidade”, já que a preocupação primordial de Marcelo Silveira é com o belo, é satisfazer os sentidos. Nessa busca pela beleza, algumas palavras norteiam seu trabalho: preencher, organizar e colecionar. A necessidade de ocupar de forma organizada o espaço, de acumular coisas, como numa grande coleção, é um aspecto que perpassa todas as suas obras. “Eu não pensava em fazer uma imagem, mas em preencher um espaço, fosse ele de uma tela ou não, ocupá-lo criando volumes”, afirma. É justamente essa vontade que leva alguns a caracterizarem seu campo de ação como essencialmente o da escultura. Curiosamente, uma de suas obras mais recentes, ainda inédita, Caixa de retratos, apresenta-se, segundo ele, como um retorno às questões que envolvem a pintura. Nela, Marcelo constrói 500 colagens em preto e branco que compõem as 10 caixas de retratos de 10 famílias. Para compor Caixa de retratos, o artista trabalhou em cima de ilustrações de revistas, jornais e livros que, editadas e selecionadas, ganham um novo sentido e dão volume ao papel. “Eu vejo a edição como um procedimento escultórico”, define. Feitas as lâminas, ele organizou as imagens de cada família dentro de uma caixa que não permite a visão das imagens ali contidas. Nessa obra, Marcelo revisita a pintura, mas sem abandonar sua preocupação espacial. “Meu trabalho fala do vazio, da ausência, mas toma como ponto de partida o excesso, a redundância”, explica. Um artista que gosta de falar de pouco usando muito.
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inédita
Caixa de retratos, segundo o próprio artista, é um retorno à pintura
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Nas imagens elaboradas dentro dessa técnica para a obra Caixa de retratos, Marcelo Silveira dá volume ao papel
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Matéria-priMa
Quando o coração floresce foi produzida com pedaços de madeira, elemento recorrente em sua obra
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O escritor, político e diplomata, nasceu no Recife, em 19 de agosto de 1849, e morreu em Washington, EUA, em 17 de janeiro de 1910. Nas páginas seguintes, o leitor da Continente poderá conhecer mais
Joaquim nabuco
sobre a trajetória e o pensamento de Nabuco, e ler, em primeira mão, uma pequena prévia do livro que será lançado ainda este ano e que reúne as cartas entre o abolicionista e o escritor Graça Aranha TEXTO Anco Márcio Tenório Vieira
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em 5 de março de 1899, uma
década depois de proclamada a República no Brasil, Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (1849-1910) — monarquista e católico — aceitara, para espanto daqueles que compartilhavam os seus princípios políticos e ideológicos, o convite do presidente Campos Sales para comandar a Missão que deveria defender a questão dos limites territoriais entre a Guiana Inglesa e o Brasil. Para árbitro da questão, a escolha recaiu sobre o então rei da
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a obra de nabuco nasceu de sua vivência diária como político, abolicionista, diplomata, crítico literário e polemista Itália, Vitor Emanuel III (1869-1947), que manifestou sua sentença arbitral cinco anos depois, em 14 de junho de 1904, dividindo a Guiana Inglesa em duas partes: 3/5 para a Inglaterra e 2/5 para o Brasil. O laudo foi considerado uma derrota para o Brasil, inclusive pelo próprio Nabuco. O aceite do governo republicano levou Nabuco inicialmente a Paris, onde a Missão montou escritório, e, em abril de 1900, com a morte do embaixador José Arthur de Sousa Correia, a Londres. Na capital da Inglaterra, que acolhia a mais importante embaixada do país no exterior, assumiu interinamente a legação brasileira. No cargo permaneceu até agosto, quando foi efetivado como ministro plenipotenciário do Brasil em Londres.
aliança com os eua
Com a divulgação do laudo arbitral, o barão do Rio Branco o convida para ser o primeiro embaixador do Brasil nos Estados Unidos, o que se efetiva em janeiro de 1905. Como
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embaixador, traz para o Brasil a Terceira Conferência Pan-Americana, que tem início em julho de 1906, no Rio de Janeiro. Seu plano era levar o Brasil a declarar aliança incondicional com os Estados Unidos. Nabuco, depois do litígio territorial com a Inglaterra, estava convencido de que a maior ameaça ao Brasil e à América Latina era a Europa e o seu expansionismo colonizador. Plano malogrado, recebe um novo golpe no ano seguinte, na Segunda Conferência da Paz, em Haia. Acreditando que seria o representante do Brasil na Holanda, tem seu nome preterido em prol do de Rui Barbosa. Este, numa posição contrária à defendida por Nabuco, prega a igualdade entre
todas as nações, rejeitando a aliança preferencial com os Estados Unidos. Ainda em 1907 Nabuco é diagnosticado com duas doenças incuráveis: arteriosclerose e policitemia vera. Morre três anos depois, em 17 de janeiro de 1910, em Washington, vítima de uma congestão cerebral. Seu corpo chega ao Brasil em 9 de abril do mesmo ano. É velado no Palácio Monroe, no Rio de Janeiro, durante quatro dias, e depois segue no vapor Carlos Gomes para ser enterrado no Recife. Na sua cidade natal, foi carregado por marinheiros (filhos e netos de escravos) do Porto até o Teatro de Santa Isabel. Do teatro seu corpo seguiu, ao som da marcha fúnebre, para o cemitério de Santo
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O ESCRITOR NABUCO O abolicionismo (1883) evaldo Cabral de mello destacou que O abolicionismo foi o melhor livro escrito sobre o Brasil no século 19, sendo fundamental para a compreensão da formação sociocultural do povo brasileiro. além disso, o historiador pernambucano considerou esta obra como “um dos textos fundadores da sociologia brasileira”, articulando uma visão totalizadora da nossa formação histórica a partir do regime servil. assumidamente escrito como uma propaganda abolicionista, o livro contém uma série de denúncias, sobretudo contra políticos e a igreja católica, que, ao contrário de outros
países, acabou por legitimar e contribuir para a manutenção do cativeiro. Joaquim nabuco inova ao colocar a escravidão como o aspecto central a ser resolvido. para tanto, evidencia ser essa uma nódoa que degrada toda a nação, na medida em que está entranhada em toda a sociedade brasileira, que foi essencialmente estruturada tendo como base a escravidão. Um estadista do Império (1897-1899) Biografia em três tomos sobre a carreira política do seu pai, o senador do império José Tomás nabuco de araújo Filho. obra que acaba por traçar um panorama completo e aprofundado do ambiente e dos bastidores políticos do segundo império. um dos monumentos da historiografia imperial e um clássico do pensamento brasileiro.
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memória
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ideal
primeira edição de Minha formação, obra em que afirma ser antes um liberal do que monarquista além de defender o fim da escravidão no Brasil, nabuco também enxergava a necessidade posterior de inserir o negro socialmente
Minha formação (1900) obra de cunho memorialista. nos primeiros capítulos, nabuco esclarece como se constituiu seu pensamento, apontando influências intelectuais e a origem de muitas de suas ideias. só em capítulos posteriores, ele passa a tratar de sua infância no engenho massangana, em pernambuco. no livro, ele critica o fato de a corrente abolicionista ter refluído no dia posterior à assinatura da Lei Áurea, quando seriam necessárias “medidas sociais complementares” em benefício dos libertados, como a educação em massa. um episódio relatado nessas memórias, que ficou famoso, foi o de como se deu conta do horror que representava a escravidão: aos 7 anos de idade, um escravo adolescente atirou-se aos seus pés, suplicando que o comprasse, para livrá-lo dos castigos de um senhor.
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Amaro. As ruas e as praças não continham a multidão e o luto (principalmente dos ex-escravos; os mesmos que em 1906 o carregaram nos ombros do Porto do Recife ao Santa Isabel, para ouvi-lo dizer que fora ali, naquela Casa, que a causa abolicionista fora ganha). Entre bandeiras de associações abolicionistas, normalistas com cravos e orquídeas nas mãos e representantes de todas as instituições do Estado, estava à frente do cortejo fúnebre o amigo José Mariano. Seu corpo foi enterrado ao toque de silêncio, seguido de tiros da infantaria e troar dos canhões.
obra imortal
homenagem ao abolicionista Túmulo simboliza a luta contra a escravidão obra do escultor giovanni nicolini, o mausoléu de Joaquim nabuco é o mais valioso entre os que estão no Cemitério de santo amaro, no recife. Feito em mármore de Carrara, o mausoléu representa a libertação dos escravos no Brasil. nele, são retratados alguns ex-escravos que levam, sobre suas cabeças, o sarcófago simbólico de Joaquim nabuco. na frente do monumento, vê-se o busto do abolicionista.
O Recife enterrava aquele que, ao lado de Machado de Assis, foi o maior vulto intelectual que o Brasil produziu no século 19 e entre os maiores de toda sua história. Ao contrário de muitos dos seus contemporâneos, que tiveram suas ideias suplantadas já nos anos 1920 e 1930, a obra de Nabuco se manteve atual: seja pelo diagnóstico que fez dos males que impediam o Brasil de se posicionar no primeiro plano das nações ocidentais, seja pelos prognósticos que receitou para que esses mesmos males fossem suplantados. Sua obra — seja ela literária, ensaística, política, panfletária e de história — nasce da vivência diária como político, abolicionista, advogado, diplomata, crítico literário e polemista. É assim em 1869, quando defende, ainda estudante do quarto ano de Direito, no Recife, um escravo —
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multidão
Cortejo fúnebre recebe corpo de Joaquim nabuco no antigo Cais pharoux, rio de Janeiro
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Tomaz — que matara o seu senhor. Como resultado dessa experiência, que tanto escandalizou a elite do seu tempo, escreveu no ano seguinte A escravidão. É ainda desse mesmo período O povo e o trono, obra em que condena o Poder Moderador, defende o sistema representativo democrático, a abolição da Guarda Nacional, a liberdade de culto religioso, a temporaneidade no Senado e a abolição da escravatura. São temas que já sinalizam para o que irá pautar a sua atividade política, iniciada em 1878 e renunciada com a Proclamação da República: a defesa das terras indígenas, a implantação de uma Monarquia Federativa, e a condenação da imigração chinesa para substituir a mão de obra escrava (Nabuco, como todos os homens do seu tempo, dava preferência aos europeus caucasianos). Mas, se os seus contemporâneos se contentavam em acusar o cativeiro, Nabuco fora além: era preciso destruir a escravidão, e
ANO jOAqUIm NABUCO o ano de 2010 será dedicado ao centenário de morte de Joaquim nabuco, segundo determina a lei 11.946, promulgada pela presidência da república. para comemorar a data, uma comissão com 14 entidades – entre as quais a academia Brasileira de Letras, a Fundação Joaquim nabuco, a secretaria de educação, a Companhia editora de pernambuco - Cepe , prefeituras e universidades – montou um calendário de eventos que terá início em janeiro e se estenderá durante todo o ano. Confira abaixo as principais datas: 17 de janeiro Centenário da morte 11 de março abertura oficial do Ano Joaquim Nabuco 13 de maio data oficial da abolição da escravatura 19 de agosto nascimento de nabuco 20 de novembro dia da Consciência negra
também a sua obra de três séculos e meio. Como? Seu prognóstico é dado com a publicação das obras O abolicionismo e a Campanha abolicionista no Recife, Eleições 1884 (1885). Neste livro defende a Reforma Agrária, assim como José Bonifácio de Andrada e Silva defendera 60 anos antes. Só a distribuição de terras para os libertos os afastaria da marginalidade, da miséria e do preconceito. Mas, voltando à Missão de 1899, o que levara Nabuco a aceitar o convite do governo brasileiro? Afora os problemas pessoais — entre eles, sua instável situação financeira —, a consciência de que o Brasil era maior do que as suas convicções políticas e ideológicas. Vivera e morrera monarquista — isso ninguém questionava, nem o governo que o convidara —, mas morrera coerente com a sua convicção maior: servir tanto às grandes causas em prol da humanidade quanto àquelas que pudessem fazer do Brasil a grande Nação do século que então nascia.
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SElETA Cartas de um conservador revolucionário desde 2004 que venho coordenando, junto com
Virgínia Celeste Carvalho da Silva, Suelen Orling Machado e Yara Gonçalves Manolaque, a organização da correspondência passiva e ativa entre Joaquim Nabuco e o escritor Graça Aranha (o volume com toda a correspondência sairá neste ano de 2010). A troca de correspondência vai de 1899 a 1910, ano da morte de Nabuco, e encerra mais de 250 cartas. Ao
todo são mais de 700 páginas digitalizadas. Nela, encontramos um vasto painel da primeira década do século 20 — político, diplomático, literário, pessoal —, mas também um Nabuco que vai pouco a pouco envelhecendo e, principalmente, se despedindo de um mundo em que ele foi um dos seus principais protagonistas; mundo que chegaria ao fim definitivamente quatro anos depois, com o início da Primeira Grande Guerra
Mundial. Para esta edição da Continente, escolhemos três dessas correspondências. Na primeira, ele reclama da quase surdez que o acomete em 1902; na segunda, ele fala da sua luta para concluir as Memórias que irão defender o Brasil na Missão da Guiana; por fim, temos um Nabuco mais introspectivo, descrevendo a sua saudade do Brasil e discorrendo sobre literatura. anco MÁrcio tenÓrio Vieira
missivas o escritor graça aranha (esquerda) e Joaquim nabuco mativeram uma intensa relação epistolar, que durou de 1899 até 1910
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Set. [190]2 Ao Graça, Estou talvez condenado a refugiar-me nas recordações; lá se foram os ouvidos para a música, o espírito, a convivência, o que já aumentou muito o papel da Memória1 na elaboração da felicidade que me é precisa para viver, e breve não poderei mais permitir-me a distração das 10 horas de trabalho por dia.2 Tenho hoje necessidade de trabalhar sem parar. Quando ficar livre do Tacutu3
e solto na literatura, hei de ser um outro Oliveira Lima.4 É verdade que as tarefas deste me parecem hoje liliputianas.5 Para descansar em Viena creio que aprenderei o alemão em um mês. Se não ficar ouvindo melhor, não terei perdido a viagem. Raul,6 Veja se V. me encontra aí a título de empréstimo oficial [Joaquim Nabuco]
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grifo nosso. refere-se às Memórias sobre os limites do Brasil com a guiana inglesa.
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em 13 de setembro nabuco vai à escócia em viagem de passeio. no dia 15, anota em seu diário: “depois de um longo passeio de carro aberto por edimburgo e de edimburgo a dalmeny, sinto que não ouço, quase surdo”. retorna a Londres no dia 17 e depois de várias consultas (paris, amsterdã, Viena e Cambo), com diversos especialistas, descobre que perdeu mais de 50% da audição. o ouvido direito estava esclerosado e o esquerdo tinha o labirinto inflamado.
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era em referência ao rio amazônico que nabuco batizava a sua missão.
18 dez. [1902] Meu caro dr. Graça, Acabo de receber sua tão desanimadora carta. Nas últimas semanas não há margem para contingências de espécie alguma. O sr. não tem saúde para substituir Mme. Ferreira.7 A ansiedade bastaria para pô-lo no estado dela. Nem Dona Iaiá8 nem eu podemos admitir sequer essa hipótese. Talvez seja melhor não contar mais com Mme. Ferreira. Eu não quisera matá-la, só quero ajudá-la a viver. Aqui na Legação ela teria mais descanso e menos excitement.9 Como não posso deixar nada ao acaso[,] nem à incerteza, o meu plano é ir eu tomar conta de tudo. Passado o Natal, irei fixar-me em Paris10 até ver tudo pronto, ou fora de toda dúvida possível. Peçolhe que dê aviso da sua sala. O trabalho terá que ser feito perto de mim[,] uma sala que tomarei para esse fim e onde estará todo o arquivo. Não devemos ter Duas [sic] instalações. Eu chamarei a gente para dar conta da mão, os braços precisos (como diria o Delgado?)11 para tirar o carroção do atoleiro. O trabalho que me resta a fazer é enorme: mas eu devo arriscar a própria vida neste empenho, ninguém mais o deve, nem tem o direito de fazê-lo. O meu principal trabalho é a revisão do texto [em] português, e da propriedade da versão francesa. Pretendo fazer tudo mais ajudado, ao passo que o sr. teria que se matar se tomasse o lugar de Mme. Ferreira. Espere-me assim depois do Natal, um dia ou dois. Evelina12 já lhe escreveu sobre a ideia de virem para o Ano Bom. A situação não me permite nenhuma demora. Até Natal fico por ser indispensável, e assim mesmo fico trabalhando na parte cartográfica, a última. Muito sinto a sorte da nossa dedicada e valente colaboradora. É assim
tudo na vida. A confiança é um carniço com que a gente não deve contar. Eu quero ver tudo pronto a tempo, isto é, dentro do prazo, e Deus me ajudando, estará. Suponho que irei para o Royal Hotel, por estar mais habituado com o lugar e o pessoal. Tomarei[,] além da minha sala[,] um secretariado. Aí virá ter tudo e virão todos. Preferirei dois pequenos salões a um grande para a distribuição do serviço, etc. Eu darei todas as ordens para a distribuição do trabalho de modo que fique tudo pronto a tempo. O que será da Segunda Memória13 em 6 meses? A Terceira em 4 me assusta menos, porque não haverá mais documentos, o trabalho far-se-á entre mim e os tradutores. Ainda assim c’est un joli année,14 sem falar do meu estado físico, bem pouco satisfatório desde que perdi o ouvido. O sr. ouvirá e conversará por mim. Para este papel quero-o ver forte e curado. Não me convém matá-lo. Afetuosas recomendações a Dona Iaiá e sempre seu Mt. grato e dedicado Joaquim Nabuco. O segredo da saúde está em não alterar o ritmo da vida, ou do coração. O trabalho a curto prazo e a pressa é o que desequilibra. Eu posso evitar melhor o desequilíbrio do que o sr., chamando a mim a direção, porque posso empregar todo o pessoal preciso, e ao mesmo tempo, eu aí, desaparece sua responsabilidade, o que é o maior dos alívios. Decididamente não quero que fique em Canaã,15 e da distribuição da 2ª Memória16 me encarregarei também. Afinal me agarrarei com esse Ruffier17 que parece ter boa saúde.
4 manuel de oliveira Lima (1867-1928), membro fundador da academia Brasileira de Letras, foi diplomata e historiador. entre outros livros, escreveu D. João VI (1909). 5
refere-se a Lilipute, cidade imaginária criada por Jonathan swift (1667-1745) em seu romance As viagens de Gulliver. adjetivo para designar pessoas muito pequenas.
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raul paranhos do rio Branco, filho do barão do rio Branco.
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madame Luiza Ferreira, contratada para fazer a revisão e datilografar as memórias.
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maria genoveva de araújo, cognominada de iaiá, era a esposa de graça aranha.
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excitação.
10 nabuco viajara para a estação balneária de Cambo les eaux, nos arredores de Biarritz (uma das mais importantes cidades do país basco francês), em 15 de novembro. seguia conselho médico do seu cunhado Hilário de gouveia. 11 Carlos m. delgado de Carvalho foi estudioso da formação territorial brasileira. 12 d. evelina Torres soares ribeiro nabuco de araújo (1865-1948), esposa de Joaquim nabuco. 13 grifo nosso. 14 este é um bonito ano. a palavra “année” é grifo nosso. 15 refere-se ao romance de graça aranha, publicado em fevereiro do ano anterior. 16 grifo nosso. 17 Jules ruffier era secretário de Joaquim nabuco.
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Meu caro amigo, Calculei que seria mesmo: primeiro, o prazer de reunir-se aos seus e aos nossos; depois a saudade dos amigos de cá e a falta do ambiente desta Sagrada Europa. (Tão variada, tão rica de detalhes em tão pequenas distâncias a caminho de ferro, é isto que faz o interesse dela, o mosaico de nacionalidades, costumes, climas, paisagens, literaturas e artes). A terceira fase será a da rendição do filho amoroso ao torrão progenitor. Depois dessa será literalmente preciso arrancar-lhe as raízes para os tirarem de lá. Eu conheço bem essa alternação de saudades e nostalgias. Dentro de nós cada fibra tem a sua aspiração particular: coração, dever, pátria, família, amor, amizade, História, Poesia, Arte, Religião, todas têm as suas atrações e repulsões especiais. Quando umas estão satisfeitas, as outras estão descontentes; a saciedade de umas é a fome das outras, e nós que não somos senão o precipitado moral desses reagentes, desses incompatíveis todos, experimentamos simultaneamente a ilusão de uns e a decepção dos outros, a alegria e a tristeza, a saciedade e a fome, como um ente físico que ao mesmo tempo sentisse a plenitude do oxigênio e a asfixia do carbono. Eis aí o nosso estado perpétuo. Foi sempre o meu, será de agora em diante o seu. Contra ele (não querendo ir de vez para Goiás, nem de vez em quando renovar-se ao pampeiro) não há outro alvitre senão o trabalho intensivo. Absorver-se no trabalho criador, para quem já percorreu a fase da luta política, é em tais casos (não falando na dor) o meio de perder a consciência dessa multiplicidade contraditória do nosso feixe sensível e volitivo. Isto faz-me lembrar a história que meu pai gostava de contar de uma casa rica do Recife onde nunca se pode servir o almoço a tempo porque cada filho tinha o seu padeiro especial e não comia o mesmo pão que os irmãos. Foi essa minha regra cinco vezes: trabalhar dia e noite em um assunto que me ocupasse anos. (E note que fui traído no meu plano de vida, porque a Abolição que esperei durasse toda ela, e além, só tomou dez anos). No fim de algum tempo, mesmo curto, dá-se como lhe predisse, a aclimação, o arraigamento, a rendição. A mim custou-me muito sair do Brasil, quando de lá vim ultimamente. No seu caso especial é preciso pensar mais que tudo em sua saúde. Esta é a sua verdadeira lealdade para com o país de nosso fidei18 — comissário intelectual. Tenho o prazer em dizer-lhe que o livro do Cardoso me agradou muito.19 Considero-o um belo esforço. Vê-se que ele não chegou ainda à maestria das formas da expressão, o gosto é deficiente, o simples e o banal não se discriminam ainda bem
para o fotógrafo que é, a educação literária é imperfeita, mas tudo isso é secundário, porque é puro refinamento. Como obra de humorista o livro é uma criação, criação em grande parte anônima do nosso povo, a quem ele a tomou, mas ainda assim remodelado por ele de acordo com o instinto nacional, nele vivo, agudo, constante. Há muita qualidade que promete uma obra de grande valor. Confesso que para mim foi uma surpresa e uma revelação, não lhe sabia tal repertório popular nosso. É um livro feito à imagem do nosso povo e da nossa terra; quem os ame há de amar-lhes o livro, e ele pode dizer que não aspirou a mais. É a essência do brasileirismo recolhida e conservada para sempre. São as jarras da Bahia que conservam o aroma da nossa alma e não a louça do Porto nem a porcelana de Sèvres.20 Estou muito contente com a popularidade que ele vai ter. Na Literatura, quando houver o espírito que inspirou as bem-aventuranças, o Evangelho dos humildes, dos sinceros, dos bons, o poder de apanhar e fixar assim a alma dos simples, dos pequenos, dos nossos, a humildade ingênua das nossas coisas próprias, há de ser considerado uma faculdade superior à música das frases sonoras, aos usos elegantes da expressão, e a brilhante decepção de ideias estéreis. Antes sentir-se o escritor o nosso povo do que um simulacro de artista estrangeiro. Se ele me tivesse mostrado o livro eu teria proposto algumas alterações, como a do título (esse não é brasileiro sequer), e diversos cortes. Que pena não ter saído com algumas ilustrações do Pedro Américo.21 Vi uma interpretando o tipo de Marcos Parreira. É admirável. Que grande humorista ele também teria sido com o lápis! Recebi a mais graciosa carta de seu sogro, mas como de antemão eu já lhe tinha respondido por ocasião da sua partida, peça-lhe [que] consinta que os meus, os nossos agradecimentos, vão por seu intermédio. Também Evelina recebeu uma bela carta de dona Iaiá. Tudo que nos vem de sua casa nos consola e nos anima. Agora estamos esperando as saudades dos meninos. Também peça ao Veríssimo que me deixe agradecer-lhe por sua boa amizade e precioso volume22 que me mandou com palavras de ternura e afeto que mais rico ainda me fizeram de amor e amizade. O Sr. sabe que eu lhe pago na mesmíssima moeda. [...] Se os Oliveiras Limas chegarem amanhã vamos ter, contando os Batalhas,23 uma grande mesa para Natal. Londres tem estado mais negra do que nunca, os dias de fog espesso, chamado London Special24 sucedem-se sem intermissão. Aceitem todos o coração saudoso do Amo. dedicado
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Londres, 22 de dezembro de 1904
18 grifo nosso. Fé, fidelidade. 19 José manuel Cardoso de oliveira (1865-1962), diplomata brasileiro, romancista e poeta. Trata-se de Dois metros e cinco. Aventuras de Marcos Parreira. Costumes brasileiros, publicado por H. garnier, em 1905. 20 marca de porcelana francesa. a fábrica de porcelana de sèvres foi fundada no século 18 e é conhecida pela excelência e beleza das suas peças. 21 pedro américo de Figueiredo e melo (1843-1905), romancista, poeta e o principal pintor brasileiro do século 19, era o avô de José manuel Cardoso de oliveira. 22 Trata-se da quarta série dos Estudos de literatura brasileira, de José Veríssimo, publicado por H. garnier em 1904. 23 Trata-se do escritor português Jaime Batalha reis (1847-1935), então cônsul de portugal em Londres, e da sua esposa, Celeste Cinatti (nome de solteira). 24 grifo nosso.
Joaquim Nabuco.
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foto: Daniela naDer
encontro A esfinge clarice e o leitor Benjamin A história do biógrafo americano que começou a ler a escritora brasileira quase por acaso, quando desistiu do estudo do mandarim, e foi tragado pela Hora da estrela texto Sílvia Góes
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biografia
“_ _ _ _ _ _ estou procurando, estou
procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?”. Assim Clarice Lispector começa A paixão segundo G.H., a única derrota de Benjamin Moser diante da Esfinge, se é que se pode chamar de derrota parte do impulso que transformou a história de uma vida, nesse caso, a vida de Moser. A Clarice que assombrou o menino com uma interrogação, em 1996, a ponto de fazê-lo tentar a ousadia de traduzi-la para sua língua natal, o inglês, aos 20 anos, sem sucesso, é a mesma de sua última obra publicada em vida, A hora da estrela, que começa com a afirmação: “Tudo no mundo começou com um sim”. E foi esse livro que enfeitiçou inicialmente o norte-americano, aos 19, um ano antes de ser vencido pela mágica das palavras da esfinge Clarice. “Em 1996 eu tinha recebido uma bolsa de estudos e vim para o Brasil fazer algum trabalho, não lembro direito qual, então tentei traduzir A Paixão segundo G.H. quando estava no Rio de Janeiro. Agora eu poderia, talvez. Na biografia que escrevi, tive que encontrar uma voz americana para ela, porque é difícil traduzir Clarice Lispector, é muito delicado, muito sutil, muito poético”, diz um Moser que se mostra devotado em cada movimento. Ele
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já chegou à Panificadora Boa Vista, na Praça Maciel Pinheiro – onde viveu na infância Clarice Lispector e onde começamos nossa entrevista –, desejando tomar um suco e comer um bolo de macaxeira, com a intimidade de quem se sente “de casa”. O biógrafo mais comentado do momento foi notícia em inúmeros jornais e revistas no Brasil e no mundo desde agosto de 2009, quando o seu Why this world, título original da obra, foi lançado nos Estados Unidos. Moser mora atualmente na Holanda, mas passou uma temporada de estudos na França e nasceu no Texas, em 1976. É homossexual e se diz apaixonado pelo companheiro Arthur Japin (escritor que afirma também ter amado primeiro por sua literatura), com quem vive há dez anos. Acha Spinoza o maior filósofo de todos os tempos – uma de suas grandes afinidades com a escritora brasileira – e fala fluentemente sete idiomas. Ele se apresenta brincalhão, doce, inteligente e bemhumorado.
busca de sentido
Benjamin Moser começou a ler A hora da estrela num curso de português que iniciou por acaso, em 1995, depois de se decepcionar com as exigências do mandarim. Veio para o Brasil, tentou traduzir A paixão segundo G.H. e falhou. E não se sabe se por isso, apesar disso, ou indiferente a isso, resolveu caminhar atrás da menina, da moça, da senhora, da coisa que sentia por ela sem conseguir dizer em inglês. Nas 648 páginas de Clarice, (Cosac Naify, 2009) – lançado nacionalmente
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numa maratona entre São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, no final de novembro – estão cinco anos de pesquisas intensas (69 páginas são dedicadas a notas e bibliografia); muitas viagens; conversas com gente de todos os lugares por onde passou a escritora, da aldeia ucraniana de Tchechelnik à Rua da Imperatriz, no Recife; amizades descobertas; quase 15 anos de leituras da obra de Clarice Lispector; várias revoltas diante da crueza do mundo e a conquista de um espírito livre e apaixonado. “Foi uma
coisa que simplesmente começou, não foi premeditada”, diz, surpreso com a repercussão do livro. “Ela é muito mais forte que a Esfinge. Quanto a mim, eu me sinto mais devorado mesmo, é Clarice que vem até você”. Logo na introdução, Benjamin nos coloca diante de uma Clarice que pode ser quase tudo: “Kafka se fosse mulher, Rimbaud se fosse mãe, Rilke se fosse uma judia brasileira nascida na Ucrânia, Heidegger se deixasse de ser alemão... Que escrevia como Virgínia Woolf... Nativa e estrangeira,
judia e cristã, bruxa e santa, homem e lésbica, criança e adulta, animal e pessoa, mulher e dona de casa”. A introdução talvez seja a isca perfeita para atrair outra raça de apaixonados que precisam das referências mais concretas para amar o desconhecido e é, ao mesmo tempo, a afirmação dessa busca que ele deixa clara em todo o livro: “A alma exposta em sua obra é a alma de uma mulher só, mas dentro dela encontramos toda a gama da experiência humana”, escreve Moser em um momento do texto. Não é por acaso que, depois que foi lançada nos Estados Unidos, a biografia escrita por Moser está fazendo o que se pode chamar de uma nova disseminação clariciana, em todos os sentidos da palavra. Ela, que tem 25 títulos publicados e foi traduzida em 15 línguas. Mas há boas traduções dos livros de Clarice em inglês?
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na Praça maciel Pinheiro, Benjamin moser observa escultura de Clarice
Nestas Páginas 2 infância
Clarice aos 10 anos, no Derby, em luto pela morte da mãe, falecida em outubro de 1930
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eM faMíLia
Com os filhos Pedro e Paulo e a amiga lucinda martins, na praia do leme, em 1959
desenrolava aqui na praça, nessa praça onde os motoristas e vendedores de frutas de que falava Clarice ainda estão hoje”, relata Benjamin. Nesse mesmo jardim, em uma escultura de pedra, Clarice Lispector é rememorada, com sua máquina de escrever no colo. Benjamin Moser parece feliz com tudo que vê no Recife, mas se entristece diante de uma placa fixada na fachada da casa onde Clarice morou, que deveria prestar-lhe uma homenagem, coberta por uma camada descuidada de tinta. Imediatamente inicia um discurso que reproduziu nas palestras proferidas por ele no Recife, pela implantação de uma biblioteca naquele lugar, pela retirada da tinta naquele pedaço de lembrança que pertence por direito à memória de um povo. E aí ele não se referia somente à história do povo judeu, que permeia toda a sua obra. Ele falava do povo brasileiro. E falava com o amor
numa biografia de quase 700 páginas, a vida da escritora é contada sobretudo a partir de sua ascendência judaica “Há algumas boas, mas em geral, não. Infelizmente, isso precisa ser refeito”, responde Benjamin. Quando questionado sobre a possibilidade de dedicar mais um pedaço de sua vida debruçado sobre a Clarice, dessa vez, para vertê-la ao inglês, Moser titubeia: “Eu não sei se eu faço não, talvez, é possível fazer, mas eu acho que agora eu vou fazer outras coisas por aí... Senão é um trabalho que não tem fim. Tem uma hora que você precisa dizer: eu fiz isso e pronto, e deixar seguir”. Benjamin diz que o que deseja com Clarice, é que as pessoas conheçam a autora. “Lá onde eu moro ninguém sabe quem é Clarice Lispector e eu vivia falando dela e era muito solitário. Fiquei com essa sensação missionária. Eu sou aquele chato do bar. Surge a conversa e a pessoa me diz que não conhece e então eu começo: Você não conhece Clarice Lispector?”, brinca.
Para saLVar a MÃe
Em Clarice, Benjamin relata a dureza de muitas guerras, os amores doídos e não correspondidos de uma mulher que queria “salvar” o escritor Lúcio Cardoso do homossexualismo, mas também a delicadeza de uma esposa de diplomata que cortava as unhas dos pés dos pracinhas feridos na Itália. A Clarice Lispector de Benjamin Moser nasce antes do ventre, na dor de ter sido gerada para salvar sua mãe de uma terrível doença, por uma superstição que até hoje sobrevive na Ucrânia, segundo ele. “É muito emocionante falar sobre a vida de Clarice que ninguém conhecia. Eu fiz de tudo para homenagear os pais dela, que foram tão heroicos, marcados por essa coisa tão irracional. Olhando daqui, naquela janela, era lá onde a dona Mania (a mãe) ficava, na cadeira de rodas, sem poder andar. Paralítica, morrendo enquanto a vida se
daqueles que passam pelos lugares e são por eles para sempre impregnados, que foi o que ocorreu a Clarice Lispector ao passar por Pernambuco. “Saudade para mim é Pernambuco”, respondeu Moser sem pensar, quando perguntei sobre o que significavam para ele algumas das particularidades linguísticas do português. Ensaio biográfico ou biografia? Tanto faz. Benjamin Moser foi longe para que outras gentes tivessem a sorte de amar Clarice em sua própria língua. Clarice, é o livro de um “chato de bar” apaixonado por uma dona cheia de segredos com quem desejou uma relação mais íntima, de alma. É o trabalho de alguém que pede um interlocutor que o conteste ou que divida o seu amor numa mesa tomando uma cerveja. Ruy Castro tem razão quando diz que no livro de Moser “tudo serve para iluminar a obra de Clarice Lispector”.
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o mestre do mestre
toda forma de protesto Em Lisístrata (411 a.C.), peça do comediógrafo ateniense Aristófanes, mulheres de várias cidades gregas envolvidas na Guerra do Peloponeso se reúnem e tomam uma decisão drástica (e sábia): resolvem privar seus homens de sexo até que eles cessem todas as batalhas. Trata-se de um dos primeiros registros de greve sexual como manobra política feminina. Hoje, a forma de protesto parece estar se invertendo: em plena Conferência #44 sobre Mudança Climática da ONU (COP-15), um grupo de prostitutas decidiu oferecer sexo gratuito aos delegados que participaram do evento. A “promoção” foi uma forma de reclamar contra a prefeitura da cidade, que fez um apelo aos participantes do encontro para que não utilizassem os serviços das garotas de programa locais. O lema foi: “Sexo livre para aqueles que apresentem carteirinha de participantes da Conferência de Copenhague”. Não é só por mudanças climáticas que o mundo vem passando... eDUarDo ceSar Maia
con ti nen te
em seu livro de memórias, Vão-se os dias e eu fico, edson nery da Fonseca, do alto dos seus 88 anos de uma vida marcada pelo convívio com escritores, pensadores e figuras públicas notáveis, relata aos leitores episódios que constroem um pequeno – porém intenso – painel do que foi sua vida e, principalmente, sua formação intelectual. num dos relatos, o autor recorda um pequeno debate que manteve com o seu professor de Historia da Civilização – ninguém menos do que aquele que viria a ser um dos mais influentes críticos literários do país, o caruaruense Álvaro Lins – a respeito de uma relação que ao jovem edson, à época, parecia inconciliável: o bom gosto literário e a religião. Álvaro Lins advertiu o amigo mais jovem com uma observação que acabou sendo guardada como uma preciosa lição: “Você está julgando a literatura católica pelos versos do padre Francisco sales (um vigário do bairro da soledade). não se esqueça de que dante era católico”. Conta-nos ainda edson nery da Fonseca que, ironicamente, Álvaro Lins acabaria sendo expulso do corpo docente do Colégio nóbrega depois de ter escrito um livro de crítica literária sobre o escritor português eça de Queirós, considerado um “patife” pelos padres jesuítas da tradicional escola recifense por ser autor do polêmico O crime do padre Amaro. (eCm)
Balaio
A FRASE
“Há crimes piores do que queimar livros. Um deles é não lê-los” Joseph Brodsky
na mesma moeda o escritor osman Lins era um homem refinado. estava sempre vestindo calça comprida e calçando sapatos, mesmo quando estava na própria casa. Certa vez, recebeu uma visita inusitada: um vizinho de pijama. o autor de Avalovara se apressou em pedir licença; aquilo era uma afronta aos seus bons hábitos. subiu as escadas e voltou... de pijama também: “agora posso lhe receber”.
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cRiAtuRAS
tHompson em fúria “ok, sua vagabunda preguiçosa”. É assim que Hunter s. Thompson (1939-2005), pai do jornalismo gonzo, começa sua carta endereçada a Holly sorensen, do estúdio The shooting gallery. o motivo da fúria? o imenso atraso no andamento da adaptação cinematográfica de The rum diares, que ainda hoje não foi concluído. Hunter ficaria aliviado em saber da previsão de lançamento da obra para este ano.
de ironia em ironia
o escritor chileno roberto Bolaño (1953-2003) tornou-se uma grande referência na literatura do nosso continente por, além de escrever bem, atacar com doses de ironia o sistema político e intelectual latino-americano. num dos seus romances mais famosos, Noturno do Chile, o autor se baseia na história real de um padre que, nos anos 1970, foi o crítico literário mais poderoso daquele país. de tão poderoso (na trama do livro, que fique claro), ele foi convidado para transmitir os dogmas do pensamento marxista para um pinochet ficcional. o general precisava entender a lógica do inimigo! esse mesmo tom irônico, o leitor encontra em Estrela distante, mais recente romance de Bolaño traduzido no Brasil.
entUsiasmo de principiante
ariano suassuna, 100 aulas-espetáculo do secretário de cultura Por Hoisel
Quando ainda era pequeno e aprendia a tocar sanfona com seu pai, Luiz gonzaga foi chamado para animar um “samba” (nome que se dava às festas de forró no interior) na casa de miguelzinho, amigo do seu pai. até então, o menino só tocava na presença de Januário, mas dessa vez o mestre não pô de comparecer à festa. na falta de sanfoneiro experiente, o jovem gonzaga foi tocar. se não aguentasse o “tranco”, ele podia dormir na casa de miguel – o que aconteceu. o show foi um sucesso e o menino ficou tão feliz que acordou com a rede ensopada no dia seguinte, o que lhe rendeu alguns versos: “no terreiro de migué/ Toquei chamego e xaxado/ Cantei toada bonita/ e fui muito elogiado/ mas, quando o sono chegou,/ Tudo ficou complicado:/ perdi as calças e o fole/ e fui pra casa mijado”. (BernardoValença)
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buenos aires uma cidade que abre as cortinas para o teatro A capital portenha possui cerca de 200 salas de espetáculo e um público fiel que faz a oferta de ingressos atingir a média de 1,3 milhão de entradas vendidas por ano texto e fotos Mariana Camaroti
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A noite cai e as cortinas se abrem para a efervescente oferta teatral de Buenos Aires, que vai da ópera no majestoso Colón ao teatro de revista com vedetes, plumas e paetês na avenida Corrientes, passando por dramas e comédias que atraem filas que rodeiam quarteirões. Conhecida como a terra do tango, da arquitetura europeia em plena América do Sul e da boa carne, a capital argentina é também uma cidade onde o teatro não para e faz parte da programação noturna da população local e dos turistas que desembarcam em busca de grandes espetáculos. A variedade e a qualidade das obras, que encontram no público uma massiva resposta, reforçam o título de “cidade cultural” desta metrópole cosmopolita. De acordo com o Instituto Nacional de Teatro, 1,3 milhão de entradas em média são vendidas por ano, só em Buenos Aires, cidade com cerca três milhões de habitantes. Mas não apenas o alto nível das obras que entram em cartaz faz com que essa expressão artística seja uma referência no país. A Argentina
possui ótimos profissionais, alguns exportados para o teatro e o cinema europeu e norte-americano, como atualmente os atores Cecilia Roth e Darío Grandinetti – que já trabalharam em filmes de Pedro Almodóvar – e os diretores Claudio Tolchachir, Daniel Veronese e Rafael Spregelburd. As muitas salas de espetáculos – cerca de 200 na capital e 300 no total no país – a qualidade das instalações e as fachadas monumentais enaltecem o que se passa nos palcos. Algumas são adornadas com colunas em estilo grego, detalhes dourados e grades de ferro da escola francesa, perpetuados ao longo de décadas, séculos. Na Corrientes, conhecida como a avenida que nunca dorme, os enormes cartazes, os letreiros luminosos e a movimentação das bilheterias dos teatros do chamado circuito comercial se misturam a restaurantes, cafés, lojas de discos, bancas de jornal e livrarias, que permanecem abertas até a madrugada para atender ao público que passa a caminho dos espetáculos. A arte e a diversão pulsam nesse cenário em ebulição de quinta a domingo.
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Conhecido como “O Cômico”, inaugurado em 1927, o teatro recebe temporada de comédias musicais regularmente
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pReSidente ALVeAR
O teatro, construído em 1942, com capacidade para 861 espectadores, compõe o Complexo Teatral de Buenos Aires, gerenciado pela prefeitura
coMpLexo
O Multiteatro é a maior empresa argentina de salas teatrais, com 15 em funcionamento no país, sete na capital e oito em Mar del Plata
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Comédias e dramas dominam a pauta das salas, cujos ingressos chegam a custar o equivalente a cinco ou sete entradas de cinema
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Em meio à distribuição de panfletos de peças, musicais, balés e shows, é fácil ver um casal com um jornal nas mãos escolhendo de última hora que entrada comprar. Mas há produções em que a aquisição precisa ser feita com semanas de antecedência e por sistemas eletrônicos de venda, tamanha a procura. Nem o preço salgado de algumas entradas afasta o público das bilheterias. Os ingressos das peças mais procuradas equivalem, em média, a cinco ou sete entradas de cinema. Mesmo a crise políticoeconômica de 2001, quando a Argentina praticamente quebrou, não arrefeceu a ribalta. Foi uma das temporadas de maior público. No Paseo La Plaza, um complexo que reúne teatros, restaurantes e lojas, a estudante Agustina Rodriguez, de 19 anos, aguarda o início de Corazón idiota na sala Pablo Neruda pela quinta vez. “Adoro teatro. Vejo comédias, musicais, drama, tudo que entra em cartaz aqui na Corrientes. Venho sempre com amigos.” Entusiasmada, ela recorda que no verão portenho – quando a vida teatral costuma esfriar e os habitantes,
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irem ao litoral – de 2008 pagou caro pela entrada de La cena de los tontos e esperou três horas para poder entrar. “Ninguém se queixou, é incrível.”
BRoAdWAY poRtenHA
Essa extensa avenida, onde o Obelisco – cartão-postal da cidade – se ergue imponente, abriga grandes produções nacionais e montagens de clássicos espetáculos internacionais. Daí o apelido de “Broadway portenha”. Ali estiveram em cartaz recentemente as montagens dos musicais O fantasma da ópera, sucesso de bilheteria de mais de seis meses e que terminou a temporada em novembro, Os produtores, Hair spray e O fantasma de Canterville. O público também aplaudiu na Corrientes o espetáculo de balé Adiós, hermano cruel, que marcou a despedida do maior bailarino argentino, Julio Bocca, e arrastou multidões ao Teatro Ópera em 2006. Atualmente, Agosto, adaptação do drama norte-americano da Broadway, encabeçado pela dama da dramaturgia argentina, Norma Aleandro, é apresentado no grandioso teatro Lola Membrives há mais de seis meses.
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A fachada dourada, o hall de entrada com colunas e luminárias antigas e os vitrais anunciam ao público uma verdadeira viagem no tempo. A sala é bela, com poltronas e cortinas de veludo cor de vinho, camarotes adornados, uma cúpula grandiosa e um amplo palco. Conhecido como “O Cômico”, o Lola Membrives, inaugurado em 1927, é o cenário de comédias musicais por excelência da Corrientes. Ao abrir os jornais numa sextafeira, o espectador pode encontrar até 300 espetáculos diferentes por final de semana, espalhados por toda a cidade. Uma das curiosidades da programação atual é Rei Lear, de William Shakespeare, peça densa, com uma das entradas mais caras à venda no momento e que é um sucesso há meses no Apolo. Além das grandes produções, a programação inclui salas alternativas subsidiadas pelo governo que abrigam peças experimentais ou teatros de antanho nos bairros mais remotos, que mais poderiam servir de cenários para filmes de época.
“Existe um fenômeno interessante em Buenos Aires. As pessoas vão também aos teatros dos seus próprios bairros”, enfatiza o diretor executivo do Proteatro, Onofre Novero, um importante ator e diretor do teatro argentino. Instituição da prefeitura de Buenos Aires que promove e subsidia produções, companhias e salas independentes, o Proteatro possui um orçamento anual de 3,7 milhões de pesos (1,6 milhão de reais), com o qual fomenta 195 teatros. Novero, com 84 anos, já foi diretor musical de óperas que subiram ao palco do Colón e lembra a época em que o teatro independente, ou seja, que não está na programação dos teatros oficiais da cidade e do país, não recebia a ajuda do poder público. “Eu fazia parte da companhia Los Independientes e, em 1952, nós fundamos com o nosso suor um teatro com o mesmo nome, que depois passou a se chamar Payró e existe até hoje.” Foi remando contra a maré que outros grupos teatrais abriram salas de espetáculos e firmaram o que hoje é a reconhecida programação alternativa portenha.
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ABAStAdoS e iMiGRAnteS
Para entender o sucesso do teatro argentino, é preciso voltar na história, quando a produção nacional era pequena e as luzes da ribalta se acendiam para grandes companhias internacionais. Orquestras sinfônicas, óperas e balés compunham a programação para as famílias abastadas da então colônia espanhola, que compareciam em peso às plateias e camarotes. Ainda nos séculos 18 e 19, os espetáculos líricos passavam pela cidade e alguns estrangeiros decidiam ficar e formar suas próprias companhias. A partir do início do século passado, os italianos e espanhóis que imigraram para o país construíram vários teatros. Também naquela época as grandes salas do circuito comercial abrigavam um público de cerca de mil pessoas, de terça a domingo. Teatro já era sinônimo de consumo massivo local.
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Inaugurado em 1908, o teatro é considerado um dos cinco mais importantes do mundo, por sua grandeza edilícia, estética, história e acústica Fechado desde 2006, com previsão de abertura para maio deste ano, o Colón mantém uma programação alternativa em outra sala Nesta avenida, os cartazes, os letreiros luminosos e a movimentação das bilheterias dos teatros se misturam às fachadas de restaurantes, cafés, lojas de discos, bancas de jornal e livrarias
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Em 1908, foi inaugurado o Colón, considerado um dos cinco teatros mais importantes do mundo, por sua grandeza edilícia, estética, histórica e acústica. O edifício substituía o antigo Colón, que funcionou de 1857 a 1888 em outro lugar. As cortinas da grande sala lírica argentina já se abriram para compositores como Richard Strauss e Igor Stravinsky, os tenores Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti, as sopranos Maria Callas e Montserrat Caballé e o pianista brasileiro Nelson Freire, além de importantes balés e orquestras sinfônicas do mundo inteiro. Fechado desde 2006 para reforma, o Colón reabrirá em maio deste ano, porém os outdoors que anunciam a reinauguração e a venda dos ingressos da programação inteira de 2010 estão nas ruas desde novembro passado. O interessante é que, mesmo com suas cortinas fechadas,
este teatro de estilo eclético, próprio do início do século 20, mantém uma programação alternativa em outra sala, tamanha a demanda do tradicional público do Colón. “Existe uma plateia habitué do espetáculo lírico formada pela burguesia, mas também pela classe média portenha”, explica Carlos Pacheco, crítico de teatro do jornal La Nación e coordenador de Comunicação do Instituto Nacional de Teatro, instituição do governo nacional que tem um orçamento de 30 milhões de pesos (13,7 milhões de reais) para promover o teatro não oficial do país. Essa demanda é o que explica que, em pleno centro portenho, entre o frenesi de executivos, bancos, turistas, comerciantes e trânsito, se formem filas em frente a alguns teatros na hora do almoço. São para espetáculos de música clássica.
Buenos Aires possui associações que promovem apresentações pagas ou gratuitas, de balé e música clássica ao meio-dia. Parte do público compra as entradas para o ano inteiro, já à venda no ano anterior. Além do Colón, o Avenida, com programação lírica, o Cervantes e o 25 de Mayo – estes dois com espetáculos variados – são outros dos tradicionais e belos teatros de Buenos Aires. Já o Grand Splendid passou a ser uma das mais importantes livrarias do mundo, por seu valor arquitetônico, e um dos pontos turísticos de Buenos Aires. Em uma cidade assim, onde as salas de espetáculos brotam por toda parte, as encenações nos palcos mudam a cada temporada. Mas, fora dali, a cena é fortuitamente sempre a mesma: letreiros, bilheterias movimentadas, salas lotadas, aplausos. A arte teatral, é claro, agradece.
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tirinhas Para serem lidas na rolagem da página Cada vez mais uma plataforma de leitura, a web se consolida como um eficaz canal de comunicação entre autores de diferentes gerações e seus leitores TEXTO Diogo Guedes
É impensável um jornal diário
sem uma seção dedicada às tiras em quadrinhos. Mas, se há 15 anos revistas alternativas e fanzines eram os melhores meios de se conhecer novos autores, a massificação da internet no fim da década de 1990 tratou de modificar isso. Mesmo que publicar em jornais de grande circulação continue sendo um prestígio para quem atua na área, a facilidade de se criar um blog ou site pessoal transformou a web em um local privilegiado para o trabalho de iniciantes serem postos à prova. Não é à toa que vários dos autores que circulam em jornais ou revistas foram descobertos por seus portfólios on-line. A internet, em certo sentido, vai gradativamente substituindo parte da
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a entrada “oficial” em cena da editora se deu há três anos, com uma série de lançamentos simultâneos
certo tempo; no entanto, em novembro de 2008, o pai dos Piratas do Tietê decidiu criar outro endereço para publicar o conteúdo que estava saindo diariamente na Folha de S.Paulo, permitindo que os interessados tivessem uma visão completa das suas séries recentes. E não parou de alimentá-lo. Para autores iniciantes, divulgar seus trabalhos na internet é o caminho natural. O que surpreende é a chegada de nomes experientes ao mundo dos blogs. A principal diferença entre um site pessoal estático – que em geral não vai além da apresentação de trabalhos publicados e dados biográficos – e um blog são a pessoalidade e a proximidade entre público e autor intrínsecas aos blogs. É justamente isso que atrai alguém experiente como Laerte, que, no Manual do Minotauro, além de postar suas obras, fala sobre seu trabalho, compartilha técnicas de desenho e influências, e responde aos comentários dos leitores. “A dificuldade que eu tinha com a linguagem de site se acabou. Era isso o que eu queria”, afirma.
Para os novos autores, o ambiente virtual ocupa o espaço dos fanzines como meio de publicação função dessas publicações. Enquanto Angeli, Laerte e Glauco criaram seus próprios periódicos – alguns de grande sucesso, como Chiclete com banana –, novos nomes como André Dahmer, João Montanaro, Mauro A., Rafael Sica e Tiago Lacerda ganham reconhecimento por suas obras a partir de seus sites pessoais. E mesmo autores de maior renome, como Allan Sieber e Arnaldo Branco, atuantes do circuito independente e com diversos livros publicados, buscam atingir um público diferente ao mostrarem suas histórias também na rede. O blog Manual do Minotauro, de Laerte, é um caso ainda mais radical. Quadrinistas de carreira sólida como ele e Angeli já tinham sites na rede há
Os mais jovens também preferem a relação direta com os internautas. O quadrinista e ilustrador Tiago Lacerda, que mantém o El cerdo, vê a avaliação de outras pessoas sobre o seu trabalho como um grande incentivo a continuar produzindo e mostrando novas obras. A visão é parecida com a de Mauro A., jornalista que criou as tirinhas de humor nonsense Wagner & Beethoven: “Eu não estaria fazendo as tirinhas até hoje se não tivesse gente lendo”. Mauro A. considera que a internet foi “a única forma de divulgação” possível para seus quadrinhos, que, depois de mostrados em um site de webcomics, foram ganhando links de autores de blogs famosos e começaram
tirinhas na web allan sieber
www.talktohimselfshow.zip.net o gaúcho allan sieber começou a trabalhar profissionalmente com quadrinhos quando tinha 20 anos. aponta como suas principais influências Crumb — a mais perceptível, sem dúvida —, angeli e Jaguar. Para ele, “Qualquer assunto pode ser tratado a partir do humor”, mesmo os polêmicos, como religião e sexo. “Procuro fazer um desenho direto e sujo, bem espontâneo”, diz, comentando o próprio estilo, “Mas respeito quem tem mais esmero”.
andrÉ dahmer www.malvados.com.br
dahmer foi um dos primeiros a publicar quadrinhos na internet – e, com certeza, o primeiro a ficar conhecido neste ambiente. Cursou parte da faculdade de belas artes e concluiu desenho industrial, que nunca exerceu. Também pinta quadros, “Para atenuar os sofrimentos”. os motivos para fazer suas tirinhas? “escrevo e desenho tanto porque amo estar no mundo, amo fazer parte dele. não é o melhor dos mundos, mas não guardo mágoas”.
arnaldo branco
www.oesquema.com.br/mauhumor Criador do Capitão Presença, protetor dos maconheiros e ícone dos quadrinhos alternativos, atualmente publica no g1 a série Mundinho animal, em que satiriza a classe artística brasileira. a principal referência no traço é angeli, mas cita como influências gerais a turma do Pasquim e do Chiclete com banana, Circo e Piratas do Tietê. nas suas palavras, ser obrigado a fazer tiras diariamente equivale a ser torturado.
João montanaro www.porjoao.blogspot.com
a descrição mais exata é feita pelo escritor e tradutor daniel Pellizzari: “Melhor cartunista da categoria ‘nascidos em 1996’”. desenha desde os seis anos, no entanto, só faz tirinhas há dois, e já foi chamado de “imitação de liniers” quando nem conhecia o badalado quadrinista argentino. de onde tira suas piadas? “Todo dia 12 de cada mês eu danço pelado no meu quarto e aí as ideias aparecem”, brinca. “não, não, eu tenho um caderninho em que eu faço os esboços...”
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a receber uma boa quantidade de acessos. Processo semelhante ao que aconteceu com o precoce quadrinista João Montanaro, cujo trabalho é marcado pelos bons desenhos e humor maduro, apesar de seus apenas 13 anos. “Meu trabalho ficou conhecido mais pela internet do que por qualquer outra coisa”, admite.
editor de si mesmo
Uma das grandes vantagens da publicação em blogs é a possibilidade de conciliar o papel de artista e de editor. Mauro A., por exemplo, comemora o fato de não ter que se submeter a um espaço ou padrão prédeterminado: “Algumas de minhas histórias são compridas e ‘palavrosas’ demais para publicações impressas”. Para Allan Sieber, do blog Allan Sieber talk to himself show, o ponto positivo é poder mostrar suas tirinhas de humor pesado. “O conteúdo de algumas coisas que eu publico no blog não sairiam na Folha ou na Playboy”, explica. Já Arnaldo Branco, criador do Capitão Presença, cujo principal poder é sempre ter maconha por perto,
e que escreve no blog Mau humor, não vê nas limitações editoriais de jornais e revistas um problema. Para exemplificar sua opinião, cita o caso de autores que conviveram com a ditadura, como Henfil e Jaguar, e ainda assim fizeram excelentes trabalhos. “Às vezes, seus leitores na internet podem ser bem mais conservadores do que muitos funcionários do departamento de censura daquela época”, provoca, “Mas é claro que é bom ser seu próprio editor”. Em geral, os quadrinistas também concordam que é preciso se preocupar em fidelizar o leitor, dando espaço para materiais que não sejam apenas aqueles feitos sob encomenda para outros locais. “Eu coloco coisas não publicadas, exclusivas, que eu faço apenas para a internet”, conta Allan Sieber. Para o gaúcho, os blogs ainda têm outras utilidades: “Servem para ir reunindo trabalhos que podem virar livros, ao invés de apenas deixá-los guardados”. André Dahmer, autor de Malvados, provavelmente a mais famosa e antiga das séries on-line citadas, tem um grande apego ao seu endereço: “Eu
não esqueço o lugar em que nasci. E faço meus quadrinhos por amor, por necessidade, não é um trabalho, um estorvo. Atualizo o site porque gosto”.
aPelo comercial
Claro que ninguém se sustenta apenas do amor aos quadrinhos ou da atenção dos leitores. Já que o blog é uma ferramenta que demanda um custo mínimo, o fato de não gerar receita diretamente nem sempre é um problema. Importante é que, a partir da divulgação proporcionada, os endereços rendam convites para realização de trabalhos por fora ou que os autores saibam como usar o potencial comercial de sua obra. Todos os autores aqui citados, mesmo os mais novos, já foram chamados por publicações de diversas áreas. Wagner & Beethoven, de Mauro A., agora sai mensalmente na Playboy; Tiago Lacerda já fez trabalhos para Superinteressante, VIP e Monet; o veterano da internet Dahmer lançou neste ano o livro A cabeça é a ilha (Desiderata) e desenha semanalmente para o portal on-line G1; e até mesmo o prodígio
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Tiago laCerda/divulgação
Páginas anteriores 1 allan sieber
Para o quadrinista gaúcho, qualquer assunto pode subsidiar o humor. ele prefere o desenho direto e “sujo”
Nestas Páginas 2 arnaldo branco
Criador do Capitão Presença, ele afirma que leitores de internet podem ser tão conservadores quanto censores, mas gosta da liberdade de ser seu próprio editor
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andrÉ dahmer
veterano no ambiente virtual, o quadrinista lançou livro com suas tirinhas em 2009, ano em que passou a desenhar semanalmente para o portal g1 EL CERDO
o autor da tirinha, Tiago lacerda, encontra na avaliação dos internautas um incentivo para continuar criando
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João Montanaro, com cada vez menos tempo para escrever por conta do assédio da imprensa, contribui na revista O Grito! e já apareceu duas vezes na versão brasileira da anárquica revista Mad. Arnaldo Branco e Allan Sieber também contribuem para diversas publicações: os dois foram contratados em outubro como roteiristas do programa Casseta & Planeta. Branco ainda publica no G1 e escreve colunas na revista Monet e na on-line Zé Pereira, enquanto Sieber colabora com a Playboy e com a Folha de S.Paulo, além disso, tem uma seção em seu site dedicada à venda de materiais, que vão de camisas e livros até alguns de seus desenhos originais. Dahmer faz o mesmo, mas conta com uma gama de produtos vasta, que inclui canecas, cinzeiros e até estátuas dos personagens.
sUPorte imPresso
Ainda que a liberdade e a praticidade de mostrar os trabalhos na internet sejam animadoras, é difícil imaginar um quadrinista sustentado apenas por seu blog, mesmo que tenha um imenso
sucesso. E não é só pelo pagamento que as publicações impressas permanecem importantes. “Por enquanto, papel é o destino, a vocação do que eu faço”, explica Laerte, que considera a internet um “apoio especial” para sua obra. Opinião semelhante à de Tiago Lacerda: “As tirinhas na rede ainda não substituem o impresso. Ter uma revista em mãos ainda causa um choque maior”. Já Dahmer pensa na internet como um meio facilitador: “Ela é muito importante na comunicação de um modo geral, mas só é eficiente para divulgar o seu trabalho se você tem talento para o ofício”, pontua. A visão mais pessimista em relação à função da mídia offline é de Arnaldo Branco. “O trabalho que hoje chamamos de ‘na internet’ vai ser o único em breve. Portanto, ‘existir na internet’ hoje em dia equivale a existir enquanto autor”, opina. “E nem falo isso feliz, não. Quando eu era moleque, queria muito colaborar com revistas como a Playboy, porque meus ídolos publicavam lá”, diz, completando: “E para receber de graça as edições, claro”.
tirinhas na web laerte coUtinho www.verbeat.org/blogs/ manualdominotauro
laerte é, junto com angeli, o principal autor de tirinhas do país. Formado em Música e Comunicação, criou personagens marcantes, como os Piratas do Tietê, o ingênuo homem-catraca, o autoexplicativo deus e o super-herói surreal overman. seus trabalhos têm se tornado mais autorais e profundos recentemente, mas ele diz não pensar muito nisso. Tudo o que faz é “deixar o desejo e a experiência criativa correrem o mais livres possível”.
maUro a.
www.apostos.com/wagnerebeethoven Mauro a. nunca diz o sobrenome ou algo da vida pessoal, além do fato de ser jornalista e morar em são Paulo. a ideia de criar a série Wagner & Beethoven surgiu justamente por não saber desenhar. “eles são universalmente conhecidos e não têm como reclamar pelo uso da imagem”, explica. Tem um cuidado especial em deixar o design das tirinhas engraçado, já que não acredita que consegue fazê-lo bem. atualmente, matura a ideia de criar dolabella & Falabella, falando sobre política e diplomacia internacional.
rafael sica
www.rafaelsica.zip.net sica é um dos mais surpreendentes quadrinistas brasileiros que surgiram recentemente, apontado como leitura obrigatória por 11 de cada 10 colegas de ofício. a partir do histórico do seu blog, criado no fim de 2007, é possível acompanhar seu trabalho ao longo do tempo, que traz agora apenas desenhos, sem texto. Já declarou que sua principal inspiração, além do ato de observar, são as contas no fim do mês.
tiago lacerda
www.el-cerdo.blogspot.com Formado em design, fez em 2001 um curso com o ilustrador renato alarcão, que comparou à “girada em uma engrenagem de um relógio que o faz voltar a funcionar”. daí foi um curto caminho para os quadrinhos, que lia desde pequeno. no seu blog publica, entre rascunhos e desenhos, séries como Chernobyl family, que narra, mesclando humor e melancolia, histórias de uma família afetada pela radiação. Participa, junto com gabriel góes, gabriel Mesquita e lucas gehre, da Revista Samba.
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internet autobiografia e violência mental nos quadrinhos
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No ambiente menos vigiado que é o on-line, autores podem tanto publicar mais quanto introduzir mudanças e ousadias no gênero TEXTO Germano Rabello
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as tiras de quadrinhos estão sempre mudando. Nessas duas últimas décadas, em especial, o formato tem passado por constantes reinvenções, com o surgimento de autores e plataformas de veiculação de suas obras. Títulos lançados recentemente, tais como Macanudo (vol. 2), do argentino Liniers, e Vida boa, de Fábio Zimbres (ambos editados pela Zarabatana), ou a coleção de tiras de André Dahmer, A cabeça é a ilha (Editora Desiderata), sugerem a análise dos novos rumos seguidos por esta arte serial. Antes de tudo, é preciso esboçar uma definição. É útil relembrar que o formato comic strip (tira cômica) está na origem dos comics (quadrinhos) como os conhecemos. Os leitores associam imediatamente a expressão a um formato retangular horizontal que combina desenhos e palavras concisamente distribuídos em três ou quatro quadrinhos, num gênero humorístico de publicação regular. Esse é o formato padrão, mas a tira é mais do que isso. Seu desenvolvimento coincide com o desenvolvimento das histórias em quadrinhos como um todo, a partir do século 19. A tira já foi usada de várias formas e nem sempre foi horizontal. Utilizavamna desde os primórdios com outros intuitos que não a simples comédia.
Delírios visuais? Little Nemo in Slumberland (1905), de Winsor McCay, ou Upside downs (1903), de Gustave Verbeek. Drama? Little orphan Annie (1924), de Harold Gray. Aventuras selvagens? Tarzan (1929), de Hal Foster. Ficção científica? Buck Rogers (1929), de Philip Nowlan e Dick Calkins. Policial? Dick Tracy (1931), de Chester Gould. Quase todos os gêneros que se conhece surgiram primeiro no formato comic strip, já que o jornal foi, por muitos anos, o lar preferencial dos quadrinhos. Até as primeiras incursões no formato comic book derivaram disso: as revistas surgiram inicialmente como republicações de tiras de jornal, em títulos como Funnies on parade ou Famous funnies. De forma análoga a esses momentos em que se estabelecia a presença dos quadrinhos nos jornais, no século 19, ou nas revistas, nos anos 1930, a popularização da internet está provocando uma mudança enorme na maneira de se fazer e consumir quadrinhos, facilitando a vida de autores, que não precisam mais da mídia impressa ou dos syndicates (agenciadores de tiras) para se fazerem notados. Muitos destes webcomics de sucesso, como Malvados, seriam provavelmente rejeitados se fossem depender das editoras ou de jornais.
Com conteúdos extremamente ácidos, muitos deles iriam ficar restritos a algumas revistas undergrounds e fanzines. A web prova a existência de um público numeroso para consumir diferentes autores e abordagens. Percebe-se nitidamente que algumas tiras são frutos da era internet + Photoshop. Wagner & Beethoven, de Mauro A., é exemplo disso, sendo totalmente sampleada, ao reprocessar imagens de segunda mão (de ilustrações dos compositores Wagner e Beethoven a cenas de filmes de Sergio Leone) e adicionar diálogos engraçadíssimos. Nas tiras, cada quadro é um arquivo separado e aquilo que os formata visualmente é o leiaute do blog em que é publicado, o que acaba impondo uma leitura em sentindo vertical, ao contrário do tradicional “quadrinho ao lado de quadrinho” dos impressos.
Jogos seQUenciais
Existe uma grande produção desse tipo de montagem circulando na internet, em geral, de forma anônima. Um dos mais interessantes desdobramentos, por ser uma fórmula básica que permite inúmeras variações, é o Tenso. As origens deste meme (unidade de informação) são nebulosas, mas informações do blog
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reProdução
Mauro a./divulgação
Trabalho sujo, do jornalista Alexandre Mathias, indicam que ele teria surgido no fórum Vale tudo, da Uol Jogos, e se propagado na velocidade das conexões banda-larga dos usuários. Basicamente, parte-se de uma foto, que é gradualmente ampliada, até se chegar a um detalhe imperceptível no primeiro enquadramento, de alguém com uma expressão compenetrada, tensa. Isso é só o início da brincadeira. Trata-se de um uso muito eficaz da arte sequencial, provavelmente feita por pessoas que não costumam ler quadrinhos. Numa sociedade sedenta por imagens e entretenimento, existe o potencial de que brincadeiras como essa acabem ajudando a forjar uma nova etapa na história das tiras, ou algo que seja o equivalente das tiras nas próximas décadas. Abra-se aqui um parêntese para ressaltar que, enquanto se fala em novos talentos, novos rumos, cartunistas de gerações anteriores – como Angeli, Laerte e Fernando Gonsales – continuam a pleno vapor produzindo suas tiras – em alguns casos, sendo mais ousados que os jovens que tentam ultrapassá-los. A produção atual desses veteranos muitas vezes ecoa as características mais contemporâneas que iremos listar a seguir.
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TENSO
Macanudo, do artista argentino, é um híbrido do formato tradicional das tirinhas com as demandas contemporâneas Mesmo sem saber desenhar, o jornalista leva à frente a tira Wagner & Beethoven, em que processa imagens de segunda mão Criação anônima, esse tipo de tirinha trabalha basicamente com o insuspeito presente em imagens fotográficas gradualmente aproximadas
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os jornais foram o primeiro local de publicação das tirinhas, que se adequaram ao espaço editorial do meio A abordagem de hoje vai ainda mais além e, na maioria das tiras, é difícil identificar um personagem recorrente. Poder-se-ia até mesmo elaborar estudo comparativo relacionando a estabilidade dos casamentos de outrora e a fidelidade dos autores a um único personagem, em contraposição a estes tempos de relações voláteis. Mas, voltando da digressão, na genealogia desse desapego podemos citar o trabalho do americano Jules Feiffer, que, desde os anos 1950, abria caminho à desimportância do protagonista, com suas tiras intelectualizadas. Nelas, a cada edição surgia um personagem nunca visto antes, sem nome, mas incrivelmente bem-delineado em suas angústias. Essa abordagem que prescinde do personagem marca também uma
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Chama a atenção o crescente desapego pelos personagens. Os moldes clássicos das tiras de quadrinhos ditavam que o personagem era rei absoluto e geralmente dava o nome à tira (como em Hagar, Pinduca, Mafalda, Krazy Kat, Little Nemo etc.), até o ponto de, nos casos de grande sucesso, os syndicates continuarem produzindo a tira mesmo após a morte do autor, para que o personagem continuasse sendo publicado. Hoje é mais recorrente o uso de personagens que duram apenas algumas tiras ou apenas uma tira. As situações são mais importantes do que os personagens, diferente de uma tira clássica como a argentina Mafalda (1964-1973), de Quino, em que os protagonistas eram necessariamente a Mafalda e seus amigos. Quino foi pioneiro em abandonar a produção da tira no auge de sua popularidade. Já nos anos 1980, Angeli denominava genericamente sua tira de Chiclete com banana e tinha liberdade de alternar entre alguns personagens recorrentes, inventar novas séries quando desejasse.
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Personagem irreleVante
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mudança no estilo de crítica que a tira costumava fazer. Em geral, havia um estereótipo e o leitor se sentia protegido se não fizesse parte da cultura à qual ele pertencia (pense, por exemplo, em Angeli satirizando os hippies em Wood & Stock). Agora, a crítica é cada vez mais impiedosa e mais universal do que nunca. Ou simplesmente nonsense. É mais raro haver o personagem com o qual o leitor se identifica.
aUtobiogrÁfico
Mas é bom acrescentar que essas características, mesmo tendo ganhado recente destaque, estão longe da onipresença, porque a atual produção de tiras parece não necessitar de dogmas. Analisemos, por exemplo, os dois lançamentos recentes da Zarabatana. Macanudo, a tira de Liniers, é um híbrido de formato tradicional (personagens fixos) e contemporâneo (sem personagens fixos), pois apresenta regularmente a menina Enriqueta e seu gato Fellini. Nada mais old school do que escolher para protagonista uma criança e seu bicho de estimação. Mas a tira alterna para
outros personagens que podem ser recorrentes ou não. E se pegamos Vida boa, a tira de Fábio Zimbres, vemos que se trata de uma belíssima exceção às “regras” da tira contemporânea. Um mergulho no que o cotidiano tem de mais comum, como procurar um emprego, limpar o banheiro, com direito a muita autocomiseração. Além de exibir do começo ao fim um só protagonista, é uma história totalmente linear, desenrolando-se em pílulas progressivas de causa e efeito, algo raríssimo hoje em dia. A American elf, do norte-americano James Kochalka, também é de matriz autobiográfica, uma transcrição de algum momento interessante do dia do quadrinista. Outra particularidade sua é o formato quadrado perfeito, tipicamente composto por quatro quadrinhos. Infelizmente, a tira de Kochalka nunca foi publicada no Brasil, mas pode ser conferida em atualizações diárias no site do autor. A tradição do formato retângulo horizontal continua imperando. Ainda que, como dito anteriormente, algumas montagens feitas para a internet
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PERRY BIBLE FELLOWSHIP
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KaZ
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Com uma grande variação de desenhos e humores, as histórias do norteamericano nicholas gurewitch atuam no campo do fantástico entre os quadrinistas considerados estilosos, há o brasileiro Caco galhardo e o norte-americano autor desta Underworld JUles feiffer
Já nos anos 1950, quadrinista foi um dos primeiros a abrir caminho à desimportância do protagonista
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usem o sentido vertical. E, a exemplo do trabalho de James Kochalka, alguns trabalhos recentes de Laerte apresentam um formato quadradinho. Seja no álbum autobiográfico Laertevisão (Conrad Editora), seja na série ficcional Muchacha, publicada em seu blog. Em comum, essas tiras apresentam relação com o universo da televisão, o que dá outro sentido ao seu formato.
ViolÊncia mental
Outro aspecto digno de nota é a agressividade no humor. A acidez de autores como o André Dahmer. Embora a violência tenha sempre sido elemento crucial ao gênero, desde que Krazy Kat (1913-1944) recebeu a primeira pedrada na cabeça, pelas mãos do genial George Herriman. A diferença é que o humor agressivo costumava ter elementos mais visuais, pastelão, e hoje ele está presente muito mais no discurso dos personagens. É uma violência mais cerebral. Atualmente, as tiras não facilitam a vida do leitor. O humor, ou a mensagem, pode depender cada vez mais de referências bem específicas.
Como numa das tiras Perry bible fellowship, do americano Nicholas Gurewitch, em que cogumelos antropomórficos se preparam para disputar uma corrida cavalgando sapos. Um deles está desacordado na linha de partida. No último quadrinho, vemos o sapo em que ele está montado. Diferente dos outros, a cor dele é um alaranjado forte, um detalhe que explica por que seu cavaleiro está desacordado ou morto: a pele desses sapos, da família Dendrobatidae, é capaz de liberar um veneno fatal. Nem facilitam a compreensão, nem fazem mais piadas simplesmente. Autores como o gaúcho Rafael Sica transformam a tira num território cada vez mais livre, onde o estranhamento e a plasticidade predominam. As tiras de Sica, em geral silenciosas, têm um visual muito peculiar, uma força na composição que fazem dele um caso raro entre seus companheiros de geração.
QUal fotonoVela
Há, de fato, muitos novos desenhistas estilosos, como os brasileiros Caco Galhardo e Tiago Lacerda, ou os
americanos Tony Millionaire e Kaz, mas há que se considerar certo declínio da importância do desenho entre os modernos desenhistas de tiras. Já falamos de tiras não desenhadas, feitas com montagens de fotos. Mas há a deliberada simplificação de uma tira, como na americana Cyanide and happiness, em que as histórias são contadas com desenhos em estilo “palito”, como os das crianças. Trabalhos assim simplificados podem ser realizados a partir de ferramentas oferecidas em sites como o Stripgenerator, em que os usuários podem criar suas tiras a partir de elementos visuais preexistentes, montando as figuras, os cenários, adicionando seus diálogos. O resultado fica, em geral, longe de ser marcante. Entre as atuais experiências de tiras criadas a partir de montagens de fotografias, que remetem a fotonovelas, há o caso de A softer world, da dupla canadense Emily Horne e Joey Comeau, ilustrada com fotos originais de Emily, às quais Joey aplica suas indagações inteligentes e sucintas. O fato de ser
hoje, na web, há variadas formas de criação a partir de montagens, apropriações e uso de programas de edição uma tira feita com fotos que não inclui samplers de imagens préexistentes, somado ao tom contemplativo, não humorístico, faz dessa tira uma experiência inovadora. Seja qual for a técnica, a verdade é que, para se sobressair entre a enxurrada de novos autores de tiras, é preciso ter estilo. A tira existe como meio de comunicação muito imediato, uma unidade curta capaz de provocar empatia no leitor imediatamente. Como um haicai embrulhado num retângulo horizontal com três quadrinhos. É necessário ser preciso. Ao mesmo tempo, para se provar o verdadeiro sabor e valor da tira, precisamos acompanhar seu desenvolvimento continuamente. As tiras se parecem com a História. Só nos resta permanecer atentos.
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xirumba
Prazer e ética desenham moldura da fotografia Avesso a fotos quando criança, há 35 anos ele registra a riqueza artística e as questões sociais do Nordeste, através de imagens que têm sido expostas em espaços culturais de vários países texto Gilson Oliveira
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Perfil
Quando o compositor Carlos Fernando, autor do frevo Banho de cheiro e outros sucessos, homenageou a fauna multicultural olindense dos anos 1970, o nome dele estava lá, em primeiro plano: “Xirumba-bá, Gêgererê, / Amin sem Dadá, Cafi com você”. Gravada por Alceu Valença, a música Massa real Madrid (também conhecida como “Bloco dos bichos”) tempos depois ganharia mais alguns versos, do próprio cantor, além de um novo título, Leque moleque – e o nome dele voltaria aos ouvidos do distinto público, desta vez nacionalmente e, mais uma vez, na voz de Alceu. O tempo passa, o tempo voa, e a relação de Xirumba com a música continua numa boa. Exemplos recentes são a banda Eddie, que colocou a imagem dele em um clipe, e o bloco Quanta Ladeira – formado por Lenine, Zé da Flauta, Lula Queiroga e outros artistas –, dedicando-lhe uma de suas irreverentes paródias. Não, Xirumba não é referência em nenhuma especialidade do universo musical. O seu status de “queridinho”, aliás, se espalhou por quase todos os
setores da arte pernambucana, com os quais convive intensamente há nada menos que três décadas e meia, registrando em imagens alguns dos mais expressivos acontecimentos desse período e participando até mesmo da criação de blocos carnavalescos como o Siri na Lata e o Segura a Coisa. Fotógrafo profissional, daqueles que acreditam que sua atividade colabora para perpetuar momentos que alimentam a História e muitas outras histórias, Xirumba vem desenvolvendo um trabalho em que sua câmera às vezes parece conduzida tanto por um pesquisador social como por um artista plástico. “São quadros sociais, cenas do dia a dia, lembrando os dibujos de Goya, a sua fase negra”, disse sobre sua fotografia o pesquisador e escritor Liêdo Maranhão. “Sempre me preocupei com os problemas da sociedade, sobretudo com os relacionados com as crianças. Mas, como todo mundo que nasce em Olinda quer ser artista e eu não sabia pintar, tocar ou fazer poemas, resolvi transformar a
fotografia em uma forma de expressão artística”, explica o fotógrafo.
FotoGRAFiA, ARGH!
Se há uma pessoa no mundo que nunca imaginou, um dia, exercer a profissão de fotógrafo – menos ainda que esta terminaria projetando seu nome e lhe proporcionando experiências como a de expor na Universidade de Paris, Bienal de Valencia (Espanha) e Galeria Guadalajara (México) –, é Xirumba, que, quando criança, tinha verdadeira aversão por fotografia. Tudo por causa de uma foto que tirou ao lado dos pais e dos irmãos vestido de marinheiro. O problema era não tanto a roupa – farda de marujo era a moda infantil de uma época em que não existia moda infantil –, mas uma flor que sua mãe lhe colocou na cabeça, com a intenção, obviamente, de que ele ficasse bem na foto. Xirumba conta que as pessoas que lhe sugeriram a fotografia como atividade profissional foram o jornalista Ricardo Noblat e o fotógrafo João Bittar que, em 1974, trabalhavam na sucursal da revista Veja no Recife.
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cortesia do projeto lambe-lambe
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fotos: acervo pessoal de xirumba
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observador do cotidiano, um caminho natural para Xirumba foi a fotorreportagem e o registro documental
Na época, Xirumba possuía um bar em Olinda, o Bar do Xirumba, e Noblat e Bittar, contumazes frequentadores do espaço, certo dia fizeram uma inesperada proposta ao dono do estabelecimento: trocar a despesa deles por uma máquina fotográfica. Esse fato – nem seria necessário acrescentar – mudou a vida profissional e pessoal de um certo olindense... Localizado no Alto da Sé – um dos principais pontos históricos e mirantes da cidade –, o bar concorreu para
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aprofundar os laços de seu proprietário com a cultura, por ser muito frequentado por intelectuais e artistas. Cena comum era encontrar em suas mesas gente como os já citados Carlos Fernando e Alceu, o cantor Geraldo Azevedo ou o artista plástico Tiago Amorim, que às vezes levava para lá amigos como Gilberto Gil e Caetano Veloso. Ali, Zé Ramalho mostrou alguns de seus futuros sucessos, a exemplo de Avôhai e Vila do sossego.
APeLiDo ViRA SinÔniMo
Nascido Arlindo de Souza Amorim, Xirumba ganhou o apelido durante uma partida de futebol. O significado da palavra, da mesma forma que aconteceu com Aurélio Buarque de Holanda e Antônio Houaiss, até hoje ele desconhece. E não foi por não consultar dicionários... Mesmo sem a intenção de criar etimologias ou qualquer coisa nessa
linha, Xirumba foi transformando a desconhecida palavra que o rebatizou em sinônimo de um tipo de fotografia que não apenas celebra o casamento de arte e técnica, mas tenta, além de refletir a realidade, nela intervir. Que ele tinha jeito para o ofício ficou comprovado quando, ainda em 1975, conquistou o primeiro lugar de um prêmio oferecido pelo Museu do Estado de Pernambuco. Homem da rua, observador do cotidiano, um caminho natural para Xirumba era a reportagem fotográfica e ele passou por várias publicações, como as revistas Isto É, Veja, Senhor e Placar. O amor com a imprensa, embora infinito enquanto durou, deu um triste adeus quando, ainda na década de 1970, um dos jornais pernambucanos censurou uma foto sua. Tirada durante uma greve de motoristas de ônibus no Recife, a foto mostrava trabalhadores pegando
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Memória
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tRADiÇÕeS
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DenÚnciAS
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PoLÊMicA
fotógrafo registrou principais aspectos culturais dos índios pernambucanos “apreensão de animais”: foto vetada na imprensa levou o autor a deixar o fotojornalismo realidade das crianças abandonadas é tema constante em seu trabalho documentário comemorativo dos 35 anos de sua carreira aborda produção de grafite no estado matéria no Jornal do Brasil mostra desavença do fotógrafo com o criador do teatro do oprimido
carona em um caminhão. O problema é que o veículo, pertencente a um órgão da área de vigilância sanitária, tinha em uma de suas grades uma placa com os dizeres: “Apreensão de animais”. Sem relógio e sem patrão, Xirumba seguiu tocando seus projetos pessoais, que incluíram o registro fotográfico de todas as tribos indígenas de Pernambuco, a organização de exposições individuais e a participação em eventos coletivos em diversos países e estados brasileiros. Atualmente trabalhando na TV Viva, de Olinda, da qual é fundador, Xirumba prepara um documentário sobre a grafitagem em Pernambuco, que, segundo ele, tem como precursor o pintor e desenhista Bajado, que costumava usar muros como “telas” para suas obras. Comemorativo dos 35 anos de carreira do fotógrafo, o filme tem como título Nem tudo que reluz é ouro – é muro.
verdadeiro opressor.” A frase, pronunciada por Xirumba durante a entrevista à Continente, pode lembrar de imediato um grande número de nomes e rostos, menos o daquele a quem o fotógrafo se referiu: Augusto Boal, internacionalmente conhecido por ter fundado o Teatro do Oprimido, concebido como instrumento de luta contra todo tipo de opressão. A afirmativa do fotógrafo remete a um episódio ocorrido no início dos anos 1980, na Igreja do Carmo, em Olinda, onde Boal – falecido em maio último, pouco tempo depois de ter o nome lembrado para o Nobel da Paz de 2008 – ministrou um curso sobre suas concepções teatrais. Bem-relacionado com grupos teatrais de Olinda e, como fotógrafo profissional, ligado ao carioca Asdrubal Trouxe o Trombone (do qual saíram figuras como Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães), Xirumba quis participar das aulas de Boal, mas foi, segundo contou, barrado por não ter pago a inscrição para o curso. Junto com ele estavam os integrantes do grupo olindense Ponta de Rua, que desenvolvia um
trabalho teatral voltado para discutir a realidade social e política brasileira. “Muitas das pessoas que faziam teatro não tinham dinheiro e ficamos revoltados porque tudo aquilo nos pareceu muito contraditório e elitista”, diz Xirumba, que, embora pouco à vontade ao se referir a alguém já falecido, acredita que o resgate histórico é fundamental. Único dos não pagantes a entrar na igreja, Xirumba, vestido com um macacão em que estavam presos três cadeados simbolizando a fase ditatorial que o país então vivia, se posicionou perto de Boal e começou a falar sobre opressão e a fazer gestos inusitados, como colocar seus longos cabelos dentro do nariz. O clima ficou pesado, quando o teatrólogo começou a discutir com o fotógrafo, chegando, segundo este, a dizer que se quisesse mandaria prendê-lo. “Para demonstrar que estava me sentindo oprimido decidi ficar nu e disse a ele que estava ali representando as pessoas que, por tentarem fazer diferente, são reprimidas nos teatros da vida”, relembra Xirumba. O episódio repercutiu na imprensa local e nacional, mas o fotógrafo hoje possui apenas um pedaço do Jornal do Brasil, de data não identificada, no qual duas matérias, por suas dimensões, indicam ter ocupado cerca de meia página da publicação. GiLSon oLiVeira
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FEITO À MÃO Nem Susi, nem Barbie, as bonecas de dona Lia A septuagenária artesã, que vive em Bezerros, no Agreste pernambucano, se dedica ao ofício desde os 13 anos. Ela domina todas as etapas da produção, da matéria-prima à comercialização das peças textos Danielle Romani fotos Breno Laprovitera
Tradição Tradição
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A pequena casa da travessa José
Pedro Filho, em Bezerros, no Agreste pernambucano, se distingue pelo colorido e pelo capricho nos objetos decorativos. Luxo não há, mas as paredes pintadas num tom verde claro, o chão cuidadosamente encerado e limpo, os bibelôs e os vasinhos de flores de plástico revelam preocupação com a harmonia do local. O espaço é o que se convencionaria chamar de uma “casa de bonecas”. O que não deixa de ser verdade. Afinal, Severina Leonarda da Silva, ou Lia, a dona do recanto, é uma artesã que se destaca num ofício secular, detalhista, manual: a feitura de bonecas de pano, as antigas “bruxinhas” ou “calungas” de feira. Mas, justiça seja feita: de “bruxas”, as bonecas de Lia não têm nada. Meticulosamente produzidas, como a sua casa, as bonequinhas preparadas pela artesã encantam meninas e mulheres pelo cuidado com que são confeccionadas: rostos com volume, bocas e olhinhos bordados, narizes definidos, cabelos cuidadosamente arrumados, roupas esmeradas e cheias de detalhes. Sem falar nos acessórios: calcinhas, anáguas, colares, pulseiras, brincos, laços de fita... Delicadezas que habilitam a artista a ser nomeada “a melhor e mais caprichosa bonequeira pernambucana em atividade”. Não falta quem lhe confira o mérito de mestra. “Lia não é uma artesã qualquer, é uma artista no que faz, uma resistente”, costuma dizer o amigo J. Borges, xilogravurista e também mestre que, assim como a bonequeira, reside há décadas na cidade de Bezerros.
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Tradição
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“Ela é diferente de todas as outras da região. Foi selecionada para o Salão dos Mestres da Fenearte, em 2005. É destacada em Pernambuco e uma das melhores do Nordeste”, opina Vera Lúcia Francisca da Silva, coordenadora do Centro de Artesanato de Bezerros, detalhando os motivos de dona Lia ser uma expertise no que faz. “É a única que produz bonecas articuladas, que sentam, mexem os braços, têm dedinhos. As feições, os olhos, o detalhismo e composição das roupinhas são especiais. Ninguém tem a paciência de fazer como ela”, aponta Vera, uma das responsáveis pela escolha dos artesãos que participam anualmente da Fenearte.
AUtoconFiAnÇA
Consciente do sucesso de suas bonecas, dona Lia, que completou 70 anos em novembro, explica que ele é resultado de “muito exercício” e dedicação. “Às vezes, faço uma boneca tão bonita que nem dá vontade de vender. Mas o pessoal insiste, e a gente tem que viver.” Sobre as bonecas industriais, ela afirma, sem
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pestanejar: “Susi, Barbie? Conheço, mas prefiro as minhas”. Ela enveredou no ofício aos 13 anos, quando ainda morava em Cumaru, também no Agreste, onde nasceu. “Ninguém me ensinou nada. Meus pais e irmãos (nove no total) eram agricultores. Queria ser outra coisa e pensava assim: tenho de ter inteligência no trabalho, saber fazer diferente, ser boa”, recorda Lia, que fez suas primeiras bonecas para uma irmãzinha bebê. No sítio onde morava, as vizinhas adoravam seu trabalho. “Era velha, era criança, todo mundo queria minhas bonequinhas. O pessoal foi achando bonito e fui ficando conhecida”, gabase a artesã, que se desdobrava para produzir as bonecas, pois trabalhava na agricultura e frequentava o colégio, tendo cursado até a 3ª série do ensino fundamental. Aos 25 anos, conheceu João Inácio da Silva, agricultor, atualmente com 69 anos, com quem se casou e vive até hoje. “Fui morar com ele na Serra Negra, região rural de Bezerros, e daí comecei a vender minhas bonecas na feira da cidade, que acontecia aos
sábados.” Foi nessa época que suas bonecas se tornaram conhecidas dos turistas do Recife. “Desde então, não precisei sair mais de casa para vender.”
coM eSMeRo e DetALHe
Há duas décadas, a bonequeira mudou-se para a zona urbana de Bezerros. Os 10 filhos, oito homens e duas mulheres, foram sustentados com os rendimentos do marido na lavoura e com o extra trazido com a venda das bonecas. “Fazia bonecas para as minhas filhas brincarem, faço também para minhas netinhas, mas nenhum dos meus filhos quis aprender a fazer, porque elas dão muito trabalho.” Até tentou ensinar outras mulheres a montarem bonecas iguais às suas, mas não houve seguidoras. “Elas não querem fazer como faço, porque é preciso paciência. Por isso a gente vê tanta coisa feia, tanta boneca malfeita. É relaxo!”, critica dona Lia, que hoje vive da aposentadoria do esposo e, como sempre, da venda de sua produção, sendo cada boneca de pano vendida por R$ 10 e R$ 15, de acordo com o tamanho.
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Fio A Fio
Como cada uma das peças é montada artesanalmente, a produção é pequena
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eM DUPLA
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coMPAnHeiRAS
Desde que se aposentou, o marido de Lia, João Inácio, colabora na confecção das “bruxinhas” Enquanto estão em fase de montagem, as bonecas “dormem” no armário de roupas do casal
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A produção é pequena. “Se der duro, preparo até cinco por semana. Tantas faço, tantas vendo”, explica a artesã, que recebe encomendas de Bezerros, do Recife e, principalmente, de cidades como Brasília e São Paulo. Nos últimos anos, tem contado com um ajudante inesperado: o próprio marido, João Inácio, que depois de aposentado tornou-se seu braço direito. “Costuro o molde, ele enche os bracinhos, o corpo; abriga os pés na perna, faz os cabelos. Passa o dia inteiro mais eu, fazendo as bonequinhas. O mais engraçado é que aprecia, tomou gosto pelo negócio”, explica Lia. O ex-agricultor João Inácio confirma o prazer da nova arte, explicando que a feitura das bonecas ajuda não só a passar o tempo, como a comprar as coisas e
a manter a casa. “A pessoa, tendo interesse, aprende. É que nem leitura, é que nem a escola, vai aprendendo”, observa o aposentado, que, diga-se de passagem, não sabe ler.
tRiSteZA PASSoU
Deixar de fazer bonecas, apesar da idade e da vista cansada, está fora dos planos de dona Lia. Houve apenas um período em que foi, involuntariamente, obrigada a parar. Há dois anos, teve depressão, doença que a fez largar todas as atividades diárias. Curada, voltou à ativa e quer recuperar o tempo perdido: tudo o que deseja é ter saúde para continuar seu ofício. “Enquanto puder fazer minhas bonecas, não penso em parar. Elas me dão sustento e alegria. São a sabedoria que eu criei neste mundo.”
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OUTRAS MESTRAS Pretinhas retintas e mulheres rendeiras gabRIEL LaPROVItERa/aCERVO MusEu DO HOMEM DO NORDEstE
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A PRóPRiA viDA
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Pernambuco teve outra grande bonequeira,
cujas peças podem ser encontradas nos acervos de colecionadores brasileiros. Joana Galindo, nascida em Poção, em 1903, e falecida no Recife, em 2004, foi mestra de grandeza idêntica
anos, licenciada em Artes Plásticas, que ocupou o cargo de conselheira do Conselho de Cultura do Distrito Federal, e que desde 1999 trabalha como consultora do programa Artesanato Solidário, um dos projetos sociais criados por Ruth Cardoso. “Ela aprendeu a fazer bonecas sozinha, aos 12 anos. Na década de 1960, mudou-se para Caruaru e começou a vender a produção na feira. Depois, morou no Recife, onde participou, em 1987, da exposição Bonequeiras: fazedoras de sonhos, no Museu do Homem do Nordeste”, diz Macao, ressaltando o virtuosismo da artesã que conheceu. “A perfeição era a característica de suas bonecas, tanto no uso de bons tecidos nas roupas como nos enfeites, que davam brilho e acabamento”, diz a especialista. A psicóloga e mestra em antropologia Virgília Ribeiro Peixoto foi responsável pela montagem e organização da exposição à qual se refere Macao. Ela não apenas conheceu Joana Galindo, como conviveu com dezenas de outras bonequeiras pernambucanas. “Joana era minuciosa ”, recorda Virgília, que destaca outra mestra-bonequeira pela criatividade e originalidade: Maria Francisca da Conceição (1916-1997), de Bezerros, mãe dos xilogravuristas Amaro Francisco e J. Borges. “Dona Maria tinha um repertório riquíssimo. Fazia registros do cotidiano, modelava com pano”, observa Virgília, que enumera as temáticas da bonequeira: a rendeira; os violeiros; os jogadores de futebol; os noivos; a mulher buchuda; a família nordestina; o ato de confissão, com Frei Damião no confessionário como padre; e, o mais curioso, a noiva de cor-derosa, que ela explicava vestir-se assim por não ser mais virgem.
à de Lia de Bezerros. “Joana era muito habilidosa e tinha um repertório que se destacava pela originalidade: bailarinas, floristas, casais, famílias, guardas de trânsito e carteiros”, explica a gaúcha Macao Goés, 65
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coLeÇão
O Museu do Homem do Nordeste possui acervo composto por peças de bonequeirasmestras, hoje falecidas, doadas por Virgília Ribeiro Peixoto
Enquanto Maria Francisca registrava o contexto agrestino, a olindense Edna Morais – que não foi encontrada pela reportagem da Continente, mas que, segundo relatam pesquisadores, deve estar com 84 anos – se diferenciou por confeccionar peças com bonecas dando à luz. “As bonecas artesanais sempre representam a vida da pessoa, nada
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mais natural do que ela, que era parteira e trabalhou nisso durante anos, registrar mulheres grávidas ou tendo filhos, em mesas de operação”, explica Virgília, que perdeu o contato com a bonequeira, mas não se esquece do inusitado em seu trabalho. Em entrevista ao Jornal do Brasil, datada de 1987, ela contou à repórter Divane Carvalho que o fato de ter sido parteira a vida inteira influenciara na confecção das bonecas grávidas. “Parir é uma coisa muito normal e as crianças precisam saber disso, porque, desde que o mundo é mundo, existe curiosidade infantil sobre esse assunto e um grande segredo sobre o nascimento das crianças”, explicou dona Edna ao JB. Outra grande mestra, segundo a pesquisadora Virgília, é Maria das Bonecas, ou Maria Tavares da Silva, nascida em Toritama em 1929, e que teve seu trabalho divulgado no boca a boca, nos anos 1980, na Feira de Caruaru. Maria das Bonecas se notabilizou por confeccionar bruxinhas louras, morenas e pretinhas retintas, ao contrário da maioria das bonequeiras, que nutriam preconceito contra bonecas negras. “Na época, dizia-se que as negrinhas eram bonecas de catimbó”, observa Virgília. Segundo registros do período, assim que chegava à feira, ela vendia a produção de uma semana, algo entre sete e oito bonecas, em questão de instantes. A maioria arrematada por turistas. Apesar das grandes mestras pernambucanas estarem mortas ou se aposentando, o Estado continua mantendo uma ativa produção de bonecas de pano, grande parte concentrada na cidade de Bezerros. Outro importante polo é a cidade de Belo Jardim, conhecida pela confecção de murais de estopa decorados com bonequinhas. Falta, entretanto, na opinião de especialistas, a originalidade e a habilidade técnica encontradas nas artesãs do passado, a exemplo de dona Lia, Lindalva, Edna e as duas Marias. “Existem muitas bonequeiras, mas nenhuma como as antigas mestras”, opina Vera Lúcia Francisca da Silva, coordenadora do Centro de Artesanato de Bezerros. Dr
cALUNgAS DE íDOLO RELIgIOSO A BRINqUEDO DOMéSTIcO As bonecas populares , também conhecidas como bruxas ou calungas, fazem parte da cultura de todos os povos e são preparadas das mais diversas formas: pano, fibra, madeira, plástico, juta, sisal, papel machê, crochê, tricô, seixo rolado, papelão, entre tantos outros materiais. “Muitos estudiosos do tema registram que a transformação da boneca, do formato de ídolo em diversas culturas antigas para objeto de brincadeira, tenha ocorrido no Egito há cinco mil anos. No imaginário popular, ela surge nas mãos das avós costureiras e mães para entreter os filhos, que as acompanham nas lides domésticas, principalmente em comunidades rurais”, explica a gaúcha Macao Góes, aficionada pelos brinquedos populares, que em três décadas reuniu coleção considerada uma das maiores do país. Com 1.620 peças, das quais 433 são bonecas produzidas por artesãs de vários estados e regiões, sua coleção foi vendida em 2008 e incorporada ao acervo do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza. Estudiosa da área há décadas, desde que participou, em 1979, da Comissão de Apoio ao Artesanato do Distrito Federal, Macao diz que sempre teve fascínio por brinquedos populares, bonecas em especial, tendo convivido com mestras de mais de 20 estados. O que a habilita para afirmar: “O Nordeste é o grande celeiro de brinquedos populares de todos os tipos, bonecas inclusive. Mas existe um grupo de mulheres no sul de Minas Gerais, em Colina de Pedras, que produz bonecas igualmente lindas”.
Psicóloga e mestre em antropologia, a hoje aposentada Virgília Ribeiro Peixoto, 70 anos, também foi dona de um acervo de 300 bonecas de pano de mestras bonequeiras, doado à coleção do Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife. “Como psicóloga e como antropóloga, sempre tive interesse pelos brinquedos populares, pois são fundamentais para o desenvolvimento da ludicidade e permitem que a criança desenvolva a criatividade. Não as tornam passivas, individualistas, como a televisão, o computador e os jogos eletrônicos”, compara. A boneca de pano, sobretudo, diz Virgília, tem importante significado histórico, uma vez que era a única possibilidade das mães pobres darem uma boneca às filhas. “No Brasil colonial, chegavam apenas as bonecas de porcelana e o biscuit. Inacessíveis, caras, elitistas, eram totalmente inalcançáveis para os pobres. As bonecas de pano, portanto, eram a diversão da senzala, das casas rurais pobres, da plebe da cidade, das meninas desvalidas.” Funcionária da Diretoria de Pesquisa da Fundaj durante décadas, Virgília foi pioneira e uma das poucas que se dedicaram ao estudo das bruxinhas de pano, das calungas em Pernambuco. Em 1987, montou a exposição Bonequeiras, fazedoras de sonhos, no Museu do Homem do Nordeste, e deu igual título à monografia que apresentou no mestrado de Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco. Mas para fazer o trabalho que catalogou 79 bonequeiras pernambucanas, 46 urbanas e 33 rurais, além de meia dúzia de artesãs de outros estados, afirma que teve pouco ou nenhum apoio. “As bonecas são consideradas um gênero menor, não têm o status de outros, como a renda, o couro, o barro. O que é um equívoco grave”, defende. DanieLLe roMani
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DIvERSIDADE De bonequinhas a boneconas, depende do gosto de quem faz
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Ao todo, são 20 mulheres e três homens associados à Casa da Boneca Esperança, no município homônimo, no Agreste paraibano. Há alguns anos, no auge do projeto, 43 famílias estiveram envolvidas na atividade de produção das bonequinhas, que variam entre três centímetros e um metro de altura, e que podem custar entre R$ 1 e R$ 100. “A gente chega a fazer até duas mil bonecas por mês, só depende de ter quem encomende. Já exportamos para a Itália, os Estados Unidos e diversas cidades brasileiras”, explica Núbia Cristina da Costa Aliro, 34 anos, uma das coordenadoras da Casa, cuja inauguração, em 1999, se deu graças à dedicação da pesquisadora Macao Goés. “O projeto foi criado e iniciado por mim, e durou dois anos, período em que promovemos o repasse do fazer com a mestra bonequeira Socorro da Conceição e mulheres do sítio Riacho Fundo, em Esperança. Entre 2002 e 2003 foram vendidas mais de cinco mil bonecas por mês”, recorda Macao. Até hoje, as bonecas de Maria do Socorro da Conceição, 76 anos, que aos seis anos aprendeu a fazê-las com uma tia, continuam servindo como molde. “Dona Socorro é muito criativa. Além das bonecas normais, faz noivas, casais de Lampião e Maria Bonita, cortinas, porta-retratos. Nosso molde é todo baseado no trabalho dela”, explica Núbia, que, como a maioria dos associados, trabalha e mora no bairro do Riacho Fundo, onde fica a Casa. Bonequeira desde os sete anos, dona Socorro, que é solteira, continua na ativa, produzindo duas bonecas pequenas, diariamente, no sítio onde mora, a sete quilômetros da cidade. Para ela, que passou a vida toda no anonimato, só se tornando respeitada como mestra depois da chegada do projeto, o trabalho na Casa das Bonecas “é uma benção”, por dois motivos:
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nARRAtivAS
anita garybaldi: girândola ostenta riqueza e colorido Dona Marisô na sua casa: uma vida de silêncio e dedicação Lindalva cria histórias e personagens com agulha e pano
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“Porque me permite fazer o que gosto e ganhar um bom dinheirinho”, diz.
HiStóRiA BoRDADA
Ao contrário de Pernambuco, onde a maioria das mestras faleceu, na Paraíba é grande o número de bonequeiras na ativa. Lindalva Maria de Andrade Neri, 68 anos, residente em Bayeux, na Grande João Pessoa, é um bom exemplo. “Todas as suas bonecas têm histórias próprias, que são bordadas nos vestidos e roupas de cetim, ou escritas em pequenos pedaços de papel, que a artesã coloca nos bolsos das roupinhas. No seu repertório, tem mulher que virou cobra, noivos com estandartes reais a cavalo, e outras
invenções”, conta Macao Goés que conviveu com dona Lindalva. Outra admiradora da paraibana é Cris Turek, que produz o Blog da Vida, cuja principal missão é difundir a arte do Estado. Turek conhece Lindalva, trabalhou com ela e a considera um dos melhores exemplos da tradição em arte bonequeira. “Ela é tão importante que ganhou o título de mestra artesã e recebe uma aposentadoria especial do governo paraibano pelo valor de sua obra”, conta a blogueira. Ainda de acordo com suas pesquisas, há na Paraíba diversas bonequeiras de primeira grandeza, em várias gerações, inclusive na atual, na qual se encontra Anita Garybaldi de Souza, residente
em João Pessoa. Anita encontrou uma maneira bem pessoal de fazer suas bonecas, retratando cenas do cotidiano. Seus bonecos de tecido são conhecidos e procurados, é uma nova geração perpetuando a antiga arte”, aponta Cris Turek.
DonA MARiSÔ
Também na Paraíba, no município de Nazarezinho, no Alto Sertão, se encontra outra mestra, Maria Sobreira da Silva, conhecida como dona Marisô, uma senhora de 70 anos, cuja paixão pelo ofício começou quando ainda era uma garotinha. Quem conta a história dessa bonequeira é a odontóloga Karlene Braga, 33 anos, que hoje cursa Artes Visuais. “Dona Marisô aprendeu a fazer bonecas com a mãe, quando ainda era muito nova. As bonequinhas passaram a ser sua principal brincadeira. As bruxinhas dela têm personalidade própria, unhas pintadas, cinturinha, bumbum. O amor é tanto, que, quando as vende, se despede de uma por uma”, conta Karlene, que registrou o encontro em vídeo. No registro, Marisô — que é surda, e usa aparelho auditivo — conta sua trajetória. “Pequenininha (por volta dos sete anos), mãe fez (bonecas), e peguei jeito fazendo. Todo dia chorava pra ganhar mais pano e fazer mais boneca. Brincava, e depois desfazia tudo, dizia pra ela: ‘Aquela não presta mais, não! Eu quero outra!’ ”. E assim ia: o que fazia pela manhã desfazia à tarde. Em troca dos panos, executava as tarefas da casa, varria o quintal, limpava a cozinha. Na escola, as colegas cobiçavam suas peças. Vender, não vendia, mas trocava por objetos que pudessem ser úteis, como lápis de cor, sapatos e até roupas. Atualmente, dependendo do dia e se tem pano ou não para o trabalho, pode ficar costurando as bonequinhas até 10 da noite. A produção é detalhista e os formatos dos brinquedos variam: do tradicional até os gigantes, com mais de um metro de altura. Dr
@ continenteonline Veja o vídeo de Dona Marisô no site www.revistacontinente.com.br
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Sonoras MIGRAÇÃO Em São Paulo, a coisa melhora quando alguém leva bolo de rolo
Destino recorrente para os músicos que buscam maior profissionalização, capital paulista mostra-se um campo aberto, mas extremamente competitivo texto Daniela Arrais FotoS Eugênio Vieira 1
o motivo é sempre o mesmo: é em São Paulo que as coisas acontecem, que um músico consegue viver de seu trabalho, sem precisar fazer bicos. A partida é que é diferente. Uns passam meses planejando a vinda, guardam o dinheiro recebido de cachês para comprar passagem só de ida. Outros, por mero acaso, acabam ficando na maior cidade do Brasil no meio de uma viagem de férias ou de trabalho. Nos primeiros momentos, o clima esquizofrênico da cidade pega todos de surpresa. Se a chegada coincide com o
inverno paulistano, sofre-se o dobro: afinal, pernambucano no máximo passa frio em Garanhuns. Alguns até tentam se fazer de valentes, mas as chuvas e as baixas temperaturas logo os encaminham para a loja de agasalhos mais próxima. Nas primeiras noites e no decorrer dos meses, é inevitável pensar em tudo que foi deixado para trás: filhos, namorado ou namorada, família, emprego. Uma vida que fica em Pernambuco para que outra comece a nascer em São Paulo.
“Deixei uma loja, minha namorada há nove anos, abri mão de conforto e estabilidade financeira para me jogar no acaso, no imponderável”, diz Gleisson Jones, 32 anos (myspace. com/gleissonjonesmusic). E quando ele se mudou, em maio do ano passado, não foi bem recebido. “A cidade não está nem aí para você. Você tem que inventar a forma de se relacionar, de conviver com ela”, completa o músico, que canta e toca violão em seu projeto solo e toca bateria na Rádio de Outono, no Zeca Viana e seu Conjunto Imaginário e n’Os Ordinários.
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A mudança para São Paulo acaba sendo o caminho natural para quem quer expandir seu trabalho para um público maior. Porque é na grande metrópole brasileira que estão gravadoras, conglomerados de mídia e diversos locais em que é possível se fazer ouvir. “São Paulo permite criar uma estrutura de contatos, mídia e grana com a qual nenhuma outra cidade do Brasil pode competir”, afirma Lúcio Maia, guitarrista da Nação Zumbi (nacaozumbi.com.br), uma das primeiras
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no APÊ
Uma das alternativas para quem chega à cidade é dividir apartamento, despesas e a criação artística
bandas pernambucanas a se fixar na cidade. Ele ressalta que é preciso trabalhar arduamente. “São Paulo não é boazinha com ninguém, aqui não tem vaga para preguiçoso. Tem que ralar muito para se inserir no seu campo de trabalho. A concorrência fez subir a exigência no profissionalismo, seja na música ou em qualquer outro trampo. Ou você trabalha direito ou é substituído”, diz o músico, que mora há quatro anos na cidade e costuma voltar ao Recife a trabalho. “Pernambuco ainda sofre com a síndrome da falta de ‘milagres dos santos de casa’. Em São Paulo se valoriza bem mais o que é daqui e nesse balaio cabe também quem não é daqui, porque a cidade tem isso de agregar todo mundo, é [um lugar] muito de todos”, diz a cantora Karina Buhr (myspace.com/karinabuhr), que se sente em casa na cidade, mas fica saudosa quando pensa no mar e no céu mais azul do Recife. A integrante do Comadre Fulozinha se mudou para São Paulo em 2003, a convite do diretor José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina. “Cansada do ócio forçado no Recife, vim pra Sampa. Mas não vim arriscando, sem saber o que ia encontrar. Vim a convite de um diretor, para um trabalho específico [Os sertões] e nele passei entregue quatro anos. Depois disso é que vim saborear melhor as possibilidades da cidade, quando resolvi, numa decisão difícil, deixar o Oficina. Precisei sair para botar meu trabalho solo na rua, que já estava entalado há um bom tempo. A vida de músico dá essa possibilidade maravilhosa
de conhecer outros lugares, trabalhar junto com pessoas desses lugares e a partir daí vão surgindo muitos laços e as vidas vão tomando outros rumos”.
cicLotiMiA
No discurso dos retirantes musicais, há muito em comum. Quem quer viver de música encontra histórias, referências e inspirações em Pernambuco, mas falta o básico: um trabalho contínuo, que permita pagar as contas sem aperreios. Em comum, músicos de estilos tão diversos observam o marasmo que toma conta do Recife na maior parte do ano. Trabalho pesado, com retorno financeiro, só aparece em datas festivas, como Carnaval, São João, Natal e Réveillon. “No Recife eu ganhava dinheiro, basicamente, uma vez por ano, no período do Natal/verão/Carnaval. O resto do ano, ou estava vindo para Sampa ou estava no Recife quebrado e torcendo para tocar no Festival de Inverno de Garanhuns para salvar a segunda metade do ano – não que os cachês consigam fazer isso”, diz André Édipo, 31, que toca baixo e guitarra no Bonsucesso Samba Clube e na banda de Lulina, sendo um dos sócios do selo Jardel Music (jardelmusic.com). Seu colega, Missionário José, 33, sócio da Jardel Music, passou a maior parte da infância em São Paulo, voltou para Olinda e se fixou na capital paulistana em 2006. Toca com as cantoras Lulina e Stela Campos e atua na produtora com “sound design, trilhas, games, web, produção, dominação do mundo físico e digital”. A mudança para São Paulo foi menos para viver de música, simplesmente,
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do que para exercer a atividade sem fazer concessões por dinheiro. “Viver de música, sempre dá [em qualquer lugar]. A questão é de que música se vive, e como. Aqui é mais fácil focar em coisas com as quais se tem mais afinidade”, diz. “São Paulo é, por assim dizer, uma ‘self-made city’, uma cidade autógena, que foi se construindo em cima da ideia de que esse é o lugar onde as coisas acontecem. Isso é bem visível na maneira como, em períodos que variam desde cinco anos a uma década, os focos da cidade mudam de lugar de forma bem radical. Existe uma velocidade produtiva aqui que é fascinante, apesar de bastante desumana. Acho que é isso que atrai as pessoas que estão nesse pique, de produzir em níveis nunca antes experimentados, mas que também precisam abrir mão de outras coisas por conta disso”, analisa.
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intÉRPRete
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BAiRRiStA
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coMPARAÇÃo
Karina Buhr mudouse para São Paulo, em 2003, como integrante de grupo teatral e somente nos últimos dois anos pôde dedicarse à carreira musical Missionário José, ou José Guilherme, diz que o melhor da capital paulista são os pernambucanos que estão nela Ao chegar à megalópole, Fábio Trummer, da Eddie, constatou que o trabalho da banda era competitivo dentro dos padrões locais
Sonoras eSQUeMA De RePÚBLicA
Moradia alugada, chega a hora de batalhar pela tão sonhada exposição. Kléber Crócia, 29, do Volver (myspace. com/volverbrasil), observa que o circuito paulistano é dividido, basicamente, em três partes: “Tem o circuito das casas de show, do Sesc [Serviço Social do Comércio] e do governo, que promove eventos como a Virada Cultural”. Identificados os locais onde se pode tocar, as bandas começam a enviar material e a tentar marcar shows. E logo se deparam com uma imensa concorrência – a maior amplitude e a quantidade de público exigem uma rede maior ainda de contatos. “No Recife, a gente já tinha superado essa coisa de tocar para pouca gente. Quando saí de lá, deixei toda minha bagagem de vida, meu círculo social, para vir para uma cidade em que não conheço ninguém. E aqui a gente tem que começar tudo de novo, tem que se fazer conhecido por mais gente”, diz Bruno Souto, 31, vocalista e guitarrista da Volver. A banda se mudou para São Paulo em maio de 2009 e fixou residência no bairro de Pinheiros. Os integrantes vivem em um esquema de
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república, cozinham juntos, dividem as tarefas da casa – e, claro, lidam com os entraves do excesso de intimidade que é colocar cinco pessoas para dividir um apartamento de dois quartos — o que fizeram até dezembro. “Por mais que a gente se dê bem, é inevitável que aconteçam desentendimentos. São pessoas diferentes, vivendo em uma cidade diferente. As dificuldades fazem parte”, diz Fernando Marques Barreto, 28, baixista do Volver e da Rádio de Outono. Os músicos do Volver acabam convivendo menos com pernambucanos do que com retirantes de outros lugares do Brasil. “A gente tem mais contato com o pessoal do Acre, do Pará. Paulistano já é acostumado com a cidade, não tem tanta necessidade de ralar. As bandas que vêm de fora acabam trabalhando mais e se ajudando”, diz Zeca Viana, 27, frontman d’O Conjunto Imaginário (myspace.com/ zecaviana) e baterista da Volver. Tal interação deu origem ao projeto Mais Massa (maismassa.com.br), que tem como objetivo reunir os integrantes do Volver e das bandas Los Porongas, Madame Saatan, O Jardim das Horas,
O Sonso e Saulo Duarte e a Unidade em apresentações conjuntas. Afinal, nada melhor do que falar sobre as maravilhas e as agruras de morar na cidade do que por meio da música. Bairrista assumido, Missionário José diz: “O melhor de São Paulo são os pernambucanos que estão aqui. É com eles que eu me sinto bem, que consigo conversar e dividir as coisas boas e ruins dessa cidade. É minha família. Obviamente, São Paulo te permite uma vida cultural bem ativa. Muitos shows, exposições etc. Apesar de muitas opções terem um preço proibitivo, é possível ter acesso in loco a coisas que não temos no Recife. Mas o que salva São Paulo é quando alguém vem do Recife e traz bolo de rolo. Assim fica mais fácil viver aqui”.
niVeLADoS PoR ciMA
O deslumbre diante da cidade que não para, que oferece a maior e mais completa programação cultural do país, é inevitável para quem chega. “São tantos os atrativos da cidade que às vezes fica impossível acompanhar toda a movimentação”, diz China (chinaman.com.br), ex-Sheik Tosado e integrante do Del Rey, banda que
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também é formada por integrantes do Mombojó e baseia seu repertório em covers de Roberto Carlos. “Acho que foi em São Paulo que tive consciência de que eu realmente tinha um trabalho, e que aquela coisa de banda estava se tornando séria. Foi o lugar em que despertei para a vida profissional que me esperava”, diz o cantor, que passa ao menos sete meses por ano na cidade – ele divide uma casa na Pompéia com os músicos do Mombojó. Por ter mais tempo de estrada, os músicos do Eddie (myspace.com/ eddiebandamusic) não sentiram tanta dificuldade de inserção. Assim que chegou à cidade, o vocalista Fábio Trummer constatou que o trabalho da banda era tão competitivo quanto o que via por aqui. “São Paulo leva muito a sério o trabalho e assim o feedback é maior, o que agiliza a vida profissional. A cidade tem hoje uma das grandes economias do planeta, o que faz com que muitos dos grandes profissionais de todos os campos passem por aqui alguma hora. Isso nivela a qualidade dos trabalhos por cima, o que é excelente de se ter como referencial”.
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O acesso e as possibilidades não impedem, no entanto, o encontro com grandes dificuldades. “Uma tristeza [que a cidade dá] é enxergar de perto os mecanismos da indústria fonográfica brasileira, de TVs, rádios e revistas que são totalmente voltados para a produção musical gringa, americana e inglesa principalmente. Bandas como a nossa têm que trabalhar dobrado para atingir o grande público”, diz Trummer. Nem sempre é fácil cativar o público. “Quanto maior a cidade, mais o público fica blasé. Aqui é o top do Brasil, mas é o top do blasé. É difícil um paulistano vir trocar uma ideia depois do show”, diz Bruno Souto, da Volver. Ele ressalta, no entanto, que aqui o público se dispõe a pagar para ver novidade. “No Recife, se o cara for teu conhecido é quase implícito que você vai colocá-lo de graça para dentro do show”.
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A cantora Lulina (lulilandia.wordpress. com), 30, percebe a mesma questão de outra forma. “Quando eu comecei
StUDio SP Um reduto de pernambucanos em plena Rua Augusta pernambucanos em São Paulo têm um destino certo, quando querem ouvir música da terra: o Studio SP (studiosp.org), na badalada Rua Augusta. É na casa que bandas e cantores como Mombojó, Eddie, Maquinado, Del Rey, Mundo Livre S/A, Seu Chico, Otto, Orquestra Contemporânea de Olinda e 3 na Massa fazem shows e temporadas. A frequência de shows de pernambucanos é tão grande que a casa já é apelidada pelos entusiastas de “Studio PE”. “Para nós do Studio, tenha certeza, isso é motivo de orgulho”, diz Alexandre Youssef, o proprietário. A casa foi inaugurada em 2005, como palco para bandas e artistas autorais, “que andavam enfraquecidos pela força da música eletrônica”. Em setembro, a casa alcançou a marca de mil apresentações ao vivo. Por ano, 100 mil pessoas passam pelo Studio, afirma Youssef. Cerca de 90% das vezes, o Studio faz acordos com bilheteria para as bandas. “Em 2010, lançaremos nosso primeiro CD coletânea. Os pernambucanos Mombojó, Eddie, Otto e 3 na Massa estarão presentes”, diz ele.
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A cantora Lulina diz que percebe maior interesse do público paulistano pela música que pratica em relação ao pernambucano
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a tocar no Recife, não existia espaço, música indie era ridículo. Eu ouvia coisas do tipo ‘eita, só quer ser a inglesinha’, sendo que eu cantava em português! Mas era só porque eu não colocava uns batuques, não tinha elementos regionais”, lembra. A sensação, diz ela, era de que as pessoas preferiam covers. “O público não tinha tanta curiosidade quanto em São Paulo, onde o povo quer ouvir algo que não conhece. Lá pediam para eu tocar Cat Power, Velvet Underground. Aqui, no meu primeiro show, só toquei músicas autorais, porque as pessoas querem entender a coisa nova”. “Aqui tem um grande fluxo de informação. Se aparece uma banda nova, todo mundo quer ser o primeiro a descobrir, a ‘hypar’”, analisa Leonardo Barbalho, o Monstro, que compõe, toca e produz com Lulina. “No Recife, é difícil se dar bem. Parece que existe um monopólio, uma falta de espaço para vários profissionais”. Lulina veio passar uma semana na cidade, há sete anos, depois de uma viagem pela Amazônia. Queria entregar seu portfólio em agências
de publicidade. Acabou conseguindo emprego na W/Brasil. “As primeiras dificuldades que a cidade me trouxe foram a solidão, a saudade e a falta de grana e de lugar para morar. Fui dividindo apês aqui e ali, comendo muito miojo e cachorro-quente para economizar, até me estabilizar”. Mas as dificuldades que enfrentou nos primeiros anos de São Paulo, e que continuam até hoje de outras formas, acabam sendo traduzidas na música da cantora, que lançou em 2009 seu primeiro disco por uma gravadora, o Cristalina. “O primeiro albúm que gravei em São Paulo, o Abduzida, é praticamente uma descrição do que vivi no meu primeiro ano aqui, misturada com as minhas férias na Amazônia, antes de vir para cá. Da selva de verdade para a de pedra, o que no início se traduzia em canções escrachadas e irônicas (são dessa época músicas como Balada do paulista e Tarsila me avisou, que falam das filas no cinema e das primeiras impressões da cidade) foi se transformando em discos cada vez mais melancólicos. Álbuns sobre hipocondria e doenças pulmonares, sobre perdas
de pessoas queridas e sobre carnavais com amigdalite em dias nublados disfarçavam, em músicas aparentemente alegres, as minhas tristezas e decepções”, conta. “Até hoje São Paulo me influencia, já que minhas composições são praticamente crônicas das coisas que eu vivo e da realidade ao meu redor. Eu adoro essa cidade, o aprendizado de vida que se tem aqui é viciante”, diz a cantora. E é esse vício que parece definir a relação que os migrantes têm com a cidade. Reclamações sobre mudanças bruscas de temperatura, o trânsito que atrapalha a rotina e o trabalho que tem hora para começar, mas quase nunca para parar, se diluem nos sorrisos de quem aprende a gostar da cidade, a depressa chamá-la de realidade. São Paulo acaba sendo, então, aquele amor que você precisa aprender a cultivar aos poucos, ao contrário de outras cidades que enchem os sentidos de paixão à primeira vista.
@ continenteonline Escute músicas de alguns dos artistas citados no site www.revistacontinente.com.br
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INDICAÇÕES FOLK
INSTRUMENTAL
VEnDO 147 Vendo 147 DoSol netlabel
O Vendo 147 vem fazendo barulho (sob todo e qualquer sentido da expressão) pela prática do clone drum (trata-se do ato inusitado de colocar dois bateristas dividindo o mesmo instrumento). Mas isso é o de menos: o EP homônimo embala uma sucessão espantosa de riffs, de maneira que o ouvinte não consegue “processar” o disquinho nas primeiras audições. Haja fôlego. O quinteto se aproxima mais da surf/skate music, mas ainda surpreende com inserções de clássicos como Metallica e AC/DC. É como se esses dois fossem ao encontro do Suicidal Tendencies. E c om do is ba teristas.
INSTRUMENTAL
MOnStERS Of fOlk Monsters of folk Shangri-la Music
O MOF existe desde 2004, mas só agora debuta em CD. O motivo: os integrantes estavam ocupados. Espécie de supergrupo alternativo, reúne dois membros do Bright Eyes (Conor Obest e Mike Mogis) com Jim James, do estimado My Morning Jacket. Sem falar em M. Ward, cujo currículo inclui as bandas de Cat Power e Norah Jones. A expectativa em torno do quarteto foi tanta que rendeu comparações ao histórico Travelling Wilburys (superbanda formada em 1988 por Bob Dylan, George Harrison, Tom Petty, Jeff Lynne e Roy Orbison). Exageros à parte, o MOF mostra como se faz folk – especialmente para quem achava que Vanguart e Mallu Magalhães eram os novos ícones do gênero.
nIcOlAS kRASSIk Odilê odilá
ROCK
REJEctS Green DoSol netlabel
Segundo EP do poderoso trio potiguar, capitaneado pelo ativista musical Anderson Foca (o produtor do festival DoSol assume baixo e voz). Green alça os Rejects (o guitarrista Julio Cortez e o baterista Marcelo Costa completam o grupo) ao rock musculoso que bandas como a envenenada AMP (PE) e a veterana MQN (GO) fazem com propriedade: força e volume dão o tom à bolachinha de 12 minutos (sem contar com a faixa-bônus, que condensa a íntegra do EP anterior, Devil´s corner, tão bom quanto este). Do jeito que o diabo gosta.
rob Digital
O quarto disco do violinista Nicolas Krassik é uma grata surpresa. Em Odilê odilá, o músico interpreta apenas canções de João Bosco, acompanhado por um bandolim, um acordeom e um violão de sete cordas. As melodias das músicas de Bosco prestam-se perfeitamente às versões instrumentais. Nas 13 faixas, estão composições de sucesso como Corsário, Linha de passe – brilhantemente executada –, e outras menos conhecidas do grande público como Sanfoneiro do deserto. Há apenas duas faixas cantadas pelo próprio compositor (Da África à Sapucaí e Odilê odilá), que ainda disponibilizou para Krassik a inédita Depois da penúltima.
Mano a mano
Os irmãos fazem bonito no Mano a mano (título do CD que gravaram juntos). Apesar dos mais de 30 anos de serviços prestados ao samba, esta é a primeira parceria da dupla a render um álbum de fato. Até então Guilherme tinha feito apenas participações especiais nos álbuns do irmão. Carlinhos devia estar com a agenda cheia: já colaborou com Chico Buarque, João Nogueira, Martinho da Vila, Vinicius de Moraes e Toquinho, além de ter produzido álbuns de Nelson Cavaquinho e Adoniran Barbosa. Mesmo sendo mais conhecido como compositor (tem mais de 150 músicas gravadas e, se o leitor ainda não associou o nome à pessoa, ele é coautor da clássica Por que será?, em parceria
com Vinicius e Toquinho), ele não fica devendo aos parceiros quando interpreta. Aqui, seu vozeirão de puxador de samba conta com o background de Guilherme, o responsável pelos arranjos esmerados. A dupla também contou com uma banda afiada, formada por Carlinhos Sete Cordas (violão de sete cordas), Thiago Silva (bateria) e Laudir de Oliveira (percussão). O último já tocou com ninguém menos que Carlos Santana. Mano a mano carrega 12 faixas com a substância e o refino que os irmãos garantem, alternando clássicos de Carlinhos (rearranjados por Guilherme, que escolheu o repertório) com músicas inéditas. Ainda há espaço para uma bela versão de Feitio de
iMAGENS: REPRODUçãO
IRMÃOS VERGUEIRO EM ALBUM DE FAMÍLIA
oração, a primeira composição de muitas que Noel Rosa e Vadico assinaram juntos. O CD é dedicado
à dupla, que estaria completando cem anos em 2010. O poeta e o pianista ficariam felizes.
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guerreiras A força de uma peleja feminina
Espetáculo inspirado na história das heroínas de Tejucupapo discute ciclos, derrotas e vitórias das mulheres hoje texto Christianne Galdino
Uma mulher guerreira, de saia
vermelha, galopando em um cavalo... Esta cena saiu de um sonho da atriz pernambucana Luciana Lyra para se transformar em seu objeto de pesquisa, desdobrando-se em experiências e resultados cênicos diversos, atendendo igualmente aos seus objetivos artísticos e acadêmicos. Interessada em se aprofundar na máscara ritual, que ela define como “um estado cênicopoético em que o intérprete não é ele mesmo nem é completamente o personagem”, Luciana enveredou pelos estudos sobre arquétipos e mitos femininos para descobrir os traços comuns das guerreiras, suas batalhas, seu imaginário. Desse mergulho já surgiram os espetáculos Joana in cárcere (2005), Calunga (2006), Conto (2007) e o mais recente trabalho intitulado Guerreiras (2009), inspirado na história das heroínas de Tejucupapo que, em 1646, conseguiram defender sua vila, derrotando os invasores holandeses. “Contudo, o viés histórico funciona aqui apenas como uma referência, até mesmo porque desde 1993 um grupo local de teatro amador, liderado e formado majoritariamente por mulheres, já se encarrega de contar essa história, encenando anualmente o espetáculo A batalha das heroínas”, explica Luciana. Oito filhos, 22 netos, cinco bisnetos e 220 participantes do espetáculo sob sua responsabilidade, dona Luzia Maria da Silva é um exemplo da reinvenção do mito da guerreira. E foi de uma batalha pessoal que ela extraiu coragem para colocar em cena A batalha das heroínas, e ajudar a preservar e divulgar a história das mulheres da sua comunidade.
Da linha tênue entre realidade e ficção, de guerreiras de todos os lugares e tempos parece ser feito o tecido dessa nova criação de Luciana Lyra, que teve estreia em abril do ano passado e, graças ao Prêmio de Teatro Myriam Muniz 2009 e ao Prêmio Artes Cênicas na Rua 2009, ambos da Funarte-Minc, cumpre uma nova temporada em Pernambuco este mês, desta vez nas fortificações do período da ocupação holandesa no Estado.
ReSiDÊnciA ARtÍSticA
Para compor suas guerreiras, a Cia. Duas de Criação, nascida da parceria entre Luciana Lyra e a bailarina pernambucana Viviane Madureira, optou por um processo de imersão, que teve uma primeira fase de estudo e pesquisa bibliográfica, a residência intensiva em Tejucupapo, e a etapa da montagem propriamente dita. Além de Luciana, que assina também direção e dramaturgia da peça, o elenco é formado por Cris Rocha, Katia Daher, Simone Evaristo e Viviane Madureira. Outras mulheres compõem a equipe, como a iluminadora Luciana Raposo e a compositora Alessandra Leão, responsável pela trilha e direção musical. A montagem de Guerreiras faz parte da pesquisa de doutorado de Luciana Lyra, orientada pelo professor John Cowart Dawsey (USP), que enfoca a dialética da representação e coloca em questão a máscara ficcional em detrimento da máscara ritual. Mas a ligação dela com as mulheres de Tejucupapo começou bem antes do projeto acadêmico. Depois de conhecer a história por meio de livro, vídeo e conversas com familiares e amigos, Luciana visitou o lugarejo no litoral norte de Pernambuco, distante 63 quilômetros do Recife, e
encontrou ali seu ponto de partida. A pesquisadora viu traços das guerreiras que derrotaram os holandeses no século 17 nas donas de casa, pescadoras e servidoras públicas do século 21, e decidiu homenageá-las, trazendo para o espetáculo não só as referências da batalha histórica, mas também as vivências do cotidiano dessas mulheres e a experiência no coco de roda e na ciranda, danças populares específicas da região. “Essas manifestações fazem parte da restrita lista de brincadeiras em que a mulher assume o papel de mestra. Foi o universo imagético das heroínas de Tejucupapo, configurado pela cata de ostras no mangue, pelo roçado da cana-de-açúcar, pela fé inabalável, que fomentou a construção de Guerreiras. São as heroínas goianenses de ontem e de hoje que servem como fonte primeira dessa criação”, complementa Luciana. O espetáculo arma suas barricadas para discutir ciclos, derrotas e vitórias do feminino nos dias atuais, revelando as batalhas diárias contra diferentes opressões. Mas, talvez por se tratar
A pesquisadora da encenação, Luciana Lyra, busca, com ela, investigar e discutir arquétipos e mitos femininos de um guerrear feminino, apesar da densidade do assunto, a sutileza é preservada. O tom de comédia e a estética que flerta com o gênero musical, no entanto, não impedem que a Cia. Duas de Criação apresente suas guerreiras como mulheres modelos. Esta é a opinião e o desejo de dona Luzia Maria da Silva, musa inspiradora do espetáculo: “Que elas continuem levantando as tantas guerreiras que existem por aí caídas!” pRogRAmAção no ReciFe Dias 4 e 5 – Forte do brum Dias 6 e 7 – Forte das cinco Pontas Dias 8, 9 e 10 – sítio da Trindade Sempre às 19h. Entrada Franca
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PaPa-figo O Pasquim do Recife sai em compilação de luxo
Publicação anárquica que circula na cidade desde a reabertura política, nos anos 1980, recebe edição em que as diabruras de Bione, Ral e José Teles estão para sempre registradas texto Danielle Romani
Quem é recifense da gema,
certamente já ouviu falar no PapaFigo, personagem lendário que, na calada da noite, saia às ruas para raptar criancinhas. Foi inspirado nesta “lenda” e com a clara determinação de “comer o fígado” e tirar muito “sarro”, não dos pequenos, mas dos marmanjos que ousassem cometer bobagens ou pilantragens, que há 25 anos o psiquiatra, jornalista e cartunista Manoel Bione, 58 anos, fundou o semanário Papa-Figo, misto de anedotário, diário político e apologia ao besteirol. Duas décadas e meia após o lançamento do número zero, que entrou em circulação em agosto de 1984 – quando o Brasil iniciava o processo de redemocratização, às voltas com a disputa entre Tancredo Neves e Paulo Maluf à presidência da República – o Papa-Figo continua a atacar, e desta vez em grande estilo: após o Carnaval chega às livrarias edição especial, uma caixa reunindo 300 exemplares da publicação, dividida em dois tomos, com 150 números cada um. Além deles, o leitor receberá um terceiro volume com um CD contendo reportagens, depoimentos e informações sobre o Papa-Figo na TV, quadro transmitido na década de 1990, durante seis meses, pelo SBT, que teve produção de Bione, em parceria com Sergio Gusmão e Danielle Gouveia, entre outros. As quatro capas da publicação são assinadas por feras da área: os cartunistas Miguel, Samuca, Ral e, obviamente, o próprio Bione.
“O Papa-Figo é o Velho Faceta do jornalismo, é o deboche total, típico exemplar do folclore e humor nordestinos.”, compara Bione, que nesses 25 anos jamais deixou de assinar as edições do hebdomadário. “No início, éramos eu, o cartunista Ral (Romildo Araújo) e o jornalista José Teles. Eles desistiram, devido à rotina de trabalho e outros compromissos. Pensei que ia desistir, mas continuei. Acredito que essa assiduidade só pode ser fruto de uma mente doentia”, brinca Bione, que continua editando, sozinho, só que
Matérias inventadas, personagens insólitos, como ivan Pé de Mesa, e trocadilhos infames são a marca do jornal agora com periodicidade mensal, o irreverente jornalzinho, que conta com 320 números publicados. Vale salientar que o jornal, considerado O Pasquim do Recife, se antecipou ao O Planeta Diário, da turma do Casseta & Planeta.
GoZAÇÃo e BoeMiA
Tudo começou no ano em que a abertura política animava jornalistas a fundarem jornais independentes, e Bione, recém-chegado de São Paulo, procurava um periódico que pudesse chamar de seu.
“Nesse período, eu, Paulo Santos, Amin Steple, Geneton Moraes Neto, Ana Farache e Clériston, entre outros, fundamos o Rei da Notícia, que só durou três números, pois era muita estrela para pouca constelação”, diverte-se o misto de psiquiatra, cartunista e jornalista, recordando a experiência que redundaria no Papa-Figo. Com o Rei da Notícia falido antes de dizer ao que vinha, Bione resolveu procurar Tarcisio Pereira, dono da extinta Livro 7 – então a maior livraria do Brasil – para que apoiasse um novo empreendimento. “Ele topou na hora. Mandou a gente tocar, e bancou a publicação, que nunca nos deu dinheiro, mas sempre teve os anunciantes, além de nos ter dado reconhecimento e muitas amizades”, diz Bione. Na primeira semana de agosto de 1984, com a colaboração de Ral e muitos palpites de José Teles, foi às ruas o primeiro exemplar do Papa-Figo. O jornal em formato A4, frente e verso, recheado de bobagens, piadas com políticos e matérias absolutamente nonsenses, repletas de humor popular e politicamente incorreto, tomou conta da cidade. Em poucas semanas, o periódico se tornara sucesso total. “Foi aceitação quase imediata”, recorda Bione, que passou apertos devido ao excesso de graça da sua publicação. “Trabalhava como médico da Capitania dos Portos. Certa vez, um militar que era meu chefe me chamou e disse: ‘Quero saber se é o senhor que faz esse
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jornal pornográfico’. Fiquei em pânico, pensei que ia ser preso e torturado”. A “redação” do PapaFigo, nos seus primórdios, era a sala da casa de Ral, mas como as reuniões se estendiam além do devido e a mulher do cartunista não achava qualquer graça na farra dos três marmanjos, rapidamente os encontros se transferiram para uma mesa de bar. O que não constituiu problema algum para os três jovens boêmios, conversadores e gaiatos. Diariamente, às seis
Leitura e pouco da noite, nas imediações da Livro 7 – na Rua 7 de Setembro, ou nos arredores da Rua do Imperador, em especial no restaurante Dom Pedro –, lá estavam eles, copo de cerveja na mão, mesa cheia de amigos, comentando as manchetes dos jornais, ouvindo as fofocas da cidade, recolhendo as tiradas e casos dos conhecidos. Material para produzir o Papa-Figo não faltava.
FiGURAS Do PoDeR
Personagens como Ivan Pé de Mesa e Eva Gina, cujos nomes dispensam maiores explicações, fizeram história em suas páginas. Mas foi principalmente a referência a outras personas, essas reais, a exemplo de Dr. Arraia e Gustavo Krise, respectivamente Miguel Arraes e Gustavo Krause, que ajudaram a alimentar a fama e a gaiatice do jornaleco. As “matérias”, todas calcadas em fatos, devidamente deturpados, eram para lá de absurdas. Havia referências explícitas
a figuras públicas, como o ex-presidente Fernando Collor de Mello – que quase os faz levar uma surra – e o atual ministro do TCU, José Múcio Monteiro, que à época, por ser bonito, era ilustrado no semanário não por uma fotografia sua, mas pela do boneco Ken, o namorado da Barbie. Essas e outras “subversões” faziam a graça do Papa-Figo, que era aguardado com ansiedade pelos leitores fidelizados. Em algumas ocasiões, a irreverência dos rapazes causou polvorosa e reações violentas. Foi o caso de uma manchete sobre o dia das mães, que fazia um trocadilho infame com as nossas genitoras. “Foi um dos piores momentos, desta vez, a gente quase apanha. Tinha um anunciante, dono de uma clínica de fraturas, que distribuiu o jornal para os pacientes e ligou revoltado: muitos doentes queriam sair da cama para bater na gente! Escapamos por pouco”, recorda Bione. Outra polêmica das boas foi motivada por uma série de “matérias” onde o espírito de Gilberto Freyre “baixava” num “negão” que psicografava textos seus. A brincadeira redundou num voto de repúdio por parte da Câmara dos Vereadores. “Quando recebemos o documento, depois emoldurado, o vereador que tomou a iniciativa veio me dizer que fora obrigado a fazer aquilo porque estava sendo cobrado pelo Movimento Negro Unificado (MNU), mas que era fã número um do PapaFigo”, lembra Bione, que não perdeu tempo quando soube do voto. “A manchete do jornal, logo após o ocorrido, foi emblemática: Papa-Figo entra no anal da Câmara”.
renata CaDena
Microcontos
COTIDIANO VIOLENTO O décimo segundo livro do médico e escritor Luiz arraes, A noite sem sol (Cepe editora, 2009), leva o leitor a se reconhecer na sequência vertiginosa de fatos relacionados à violência urbana, cotidiana e feroz, que coloca todos como vítimas e protagonistas a uma só vez. Dos contos sobre os meandros da solidão, do abandono e da luta pela sobrevivência, emergem seres humanos que lutam desesperadamente para não sucumbir ao Mal. Considerado um dos contistas mais modernos da atualidade, seus textos, em que alia preocupações filosóficas e sociais, são curtos e precisos, escritos com intensidade e paixão. as histórias são ilustradas por desenhos de renata Cadena. a apresentação é do poeta everardo norões. rePrODUÇÃO
Beatles
LETRA POR LETRA sobre os Beatles tudo já foi dito. Mas, desta vez, o jornalista steve turner se propôs a analisar todas as letras do quarteto de Liverpool, mostrando-nos os bastidores do processo de composição das músicas. O interessante da forma de abordagem de The Beatles – a história por trás de todas as canções é que, de certa forma, o entendimento mais amplo dos contextos e das referências que inspiraram cada música nos faz renovar as antigas percepções e sentimentos que nutríamos por canções que já admirávamos. além disso, o livro deixa claro que o talento da banda superava em muito o universo pop da época, pois, além de grandes artistas no palco, as letras dos Beatles – mesmo as mais simples – mostram uma inventividade e capacidade poética que obrigaram o rock a se reinventar.
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INDICAÇÕES CONTOS
ANDRÉ RESENDE Uma coisa de cada vez Cubzac
a expressão “uma coisa de cada vez” pressupõe uma ordenação, a necessidade de pausas e distinções. em seu novo livro, o escritor andré resende apresenta 15 narrativas, “pausas” de um narrador – um suposto autor – em que se estabelece uma rede de histórias e personagens, ligados por rotinas e acontecimentos. a expressão que titula um dos contos e o livro ressurge a cada relato. a narrativa tem sabor de cotidiano, base de reflexões sobre a própria existência, como no conto Inspiração, que encerra com a frase: “então, voltei para minha rotina e para a mensagem que um dia me arrastou para dentro de mim: suavizai o corte, desfazei os nós, diminuí o brilho”.
POESIA
BIOGRAFIA
JOÃO CABRAL DE MELO NETO Museu de tudo
LIRA NETO Padre Cícero: Poder, fé e guerra no Sertão
Museu de tudo é o título que João Cabral de Melo neto deu a um livro em que reúne poemas que foi fazendo casualmente ao longo de três décadas (1946-1974) para coisas, pessoas, lugares. não são poemas projetados, são como crônicas e observações. nesta edição, alguns dos poemas vêm acompanhados de fotografias. Para Pereira da Costa, o poeta escreveu 12 versos graciosos, entre os quais afirma: “Quando no barco a linha da água/ era baixa, quase naufrágio,/ ele foi quem mais ajudou/ o Pernambuco necessário,/ porque com sua aplicação,/ não de artista mas de operário,/ foi reunindo tudo, salvando/ tanto o perdido quanto o achado”.
Uma biografia não se restringe ao seu objeto, mas contempla uma contextualização que enriquece tanto o universo do biografado quanto aquele que o cerca. este é o caso do trabalho do jornalista e escritor Lira neto, que, ao deter-se na figura mítica do Padre Cícero, oferece aos leitores informações sobre a igreja católica, a política e a geografia do Ceará, a imprensa, o banditismo, temas diretamente envolvidos com os 90 anos de vida do religioso. O livro é dividido em duas partes. em a cruz, o foco está na religião, da sua ordenação ao seu afastamento da igreja. em a espada, aborda do início de sua carreira política à sua morte. a edição conta com ilustrações.
alfaguara
Companhia das Letras
CRÍTICA DE ARTE
SÔNIA SALZSTEIN (ORG.) Matisse: Imaginação, erotismo e visão decorativa Cosac naify
“Matisse é o grande disponibilizador de mundo da arte moderna. nenhuma essência trava a livre desenvoltura das aparências em seus quadros.” Com esta frase ronaldo Brito inicia o seu texto, incluído nesta coletânea, que reúne ensaios clássicos sobre o pintor e alguns contemporâneos. além de Brito, há textos de artistas como Paulo Pasta e iole de freitas e de críticos, como Clement Greenberg que, ao comparar o fauvista a Picasso e Braque, afirma-o um pintor completo, sendo “o mestre discreto, ponderado, seguro de si, para quem pintar bem é tão inevitável quanto respirar”.
BiblioGráfico
SELEÇÃO COMENTADA DE 100 LIVROS DE DESIGN se você tivesse de escolher uma centena de livros incontornáveis em sua área de conhecimento, quais elegeria? a resposta encontrada pelo designer e bibliófilo inglês Jason Godfrey para seu campo profissional está em BiblioGráfico – 100 livros clássicos sobre design gráfico (Cosac naify, 2009), que resulta num belo índice ilustrado, agrupado em seis tópicos: tipografia, livros de referência, didáticos, histórias, antologias e monografias. a maioria das edições utiliza a língua inglesa, algumas obras raras; reeditadas, como Die neue typographie, de Jan tschichold (foto); e outras
recentes, como Robert Brownjohn: Sex and typography (2005). na apresentação ao livro, steven Heller escreve: “aqui se encontra a nata dos livros sobre artes gráficas publicados entre os séculos 20 e 21. Dada a relativa insignificância do design gráfico para os estudiosos da arte e da cultura, é fascinante que tantos livros tenham sido publicados sobre tantos aspectos gerais e enigmáticos dessa atividade”, ponderando a mudança de mentalidade dos editores, que desde o final do século passado passaram a investir no tema, publicando muito mais sobre o assunto.
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Cardรกpio
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sorvete Pistache, coco, morango e calda de caramelo, por favor! No verão, a procura pela sobremesa gelada aumenta, estimulando a criatividade de fabricantes e chefs, que passam a utilizá-la até em receitas salgadas texto Renata do Amaral FotoS Léo Caldas
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euDeS SAntAnA/ DivulgAção
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inovação Masayoshi Matsumoto, do Sushi Yoshi, criou um sorvete de chá verde para o festival Recife Sabor e Arte 2009
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Feito em casa Apaixonada pela iguaria, a designer Carol Cani comprou uma sorveteira e faz de forma rápida vários sabores de sorvete
3-4 sabores
Para Savas e Sandra Savidis, proprietários da Della Frutta, o diferencial da sua produção está no uso de matérias-primas e aromas naturais
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os comentários em qualquer
elevador da cidade não deixam dúvidas: o verão chegou com força total e, com ele, aquela vontade desesperada de tomar sorvete. Segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Sorvetes (Abis), 70% do total do produto são consumidos nessa estação. Desde que alguém na China resolveu misturar suco de frutas ou vinho à neve das montanhas, por volta de 500 a.C., muita coisa mudou. Há sorvete de tudo que é tipo: cremoso, light e até salgado. Saíram das sorveterias e entraram nos menus de restaurantes badalados para deixarem de ser figurantes ou aquela sobremesa meio sem graça, pedida apenas quando mais nada desperta o paladar. Quem vem balançando o mercado pernambucano com criações inusitadas é o grego Savas Savidis, dono da fábrica Della Frutta. Proprietário de uma sorveteria em Porto de Galinhas, ele se chateou com a irregularidade e a queda de qualidade do antigo fornecedor e resolveu criar sua própria marca de gelados, após contratar o know-how de uma empresa italiana.
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Criada há dois anos e meio, hoje a Della Frutta fornece produtos para 90 estabelecimentos – entre restaurantes, hotéis, bufês – e conta com nada menos que 150 sabores. Para Savas, o diferencial está na preferência pelo uso de matériasprimas e aromas naturais. O interesse dos restaurantes na marca, porém, tem motivos mais objetivos: ela cria sabores sob encomenda e prepara versões salgadas, como cream cheese, queijo do reino, manjericão, iogurte e queijo coalho, usadas não somente na sobremesa, mas em outras etapas da refeição. É o caso do sorvete de mostarda, usado pelo chef André Falcão para substituir o condimento no clássico carpaccio, agora em roupagem moderna. Com franquias no Recife, Gravatá e Porto de Galinhas – a antiga lojinha foi repassada por causa do aumento da produção – e entrega em domicílio (taxa de R$ 3 e pedidos a partir de um litro), a Della Frutta também conta com sabores convencionais, como graviola, abacaxi e cajá. Outras opções são os sorbets de jenipapo,
kiwi ou tamarindo; os cremosos de bolo de rolo (com pedaços do mais famoso bolo pernambucano), cachaça, bolo de noiva, cartola ou Romeu e Julieta; e as versões light para os sabores mais pedidos. Alguns chefs vão ainda mais longe e optam por fabricar seu próprio sorvete. É o caso de Masayoshi Matsumoto, do Sushi Yoshi, que criou um sorvete de chá verde para o festival Recife Sabor e Arte 2009, em setembro. Comum no Japão, o sorvete foi elaborado aqui para servir de substituto para o chá, pois o hábito de tomar a bebida ainda engatinha no país, apesar da divulgação dos efeitos positivos do consumo desse tipo específico de chá para a saúde. No nipo-tailandês Nikko, o chef Márcio Fushimi pretende lançar logo depois do Carnaval uma receita com sorvete de wasabi ou raiz-forte. Ele entra como ingrediente do tataki de atum, uma espécie de ceviche temperado com molho de soja, saquê, cebolinho e gengibre. “A ideia é desmistificar um pouco o wasabi. Ele faz um contraponto com o ceviche, pois o sorvete, à base de nata, lhe dá um tom mais adocicado”,
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diz. O prato já faz parte da casa Temaki Lounge, em Natal, e tem tido boa aceitação do público, segundo o chef.
LoUcos Por sorvete
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Não são só chefs renomados que andam aprontando na cozinha. A designer Carol Cani, de 23 anos, resolveu levar a paixão pelo sorvete a sério e comprou uma sorveteira caseira da marca americana Cuisinart, com capacidade para um litro, e agora faz um sabor atrás do outro. “Ela é bem prática porque oferece uma consistência legal sem dar muito trabalho: uns 20 minutinhos na sorveteira e a massa já fica pronta para ir ao freezer”, explica Carol, que gosta tanto de cozinhar que até mantém um blog sobre as receitas que faz. A máquina prepara três tipos de sorvete: com massa à base de ovos e leite, só de leite ou só de água. A última, usada para receitas de frutas, Carol nem pretende experimentar. “Gosto mais dos sorvetinhos cheios de leite e gordura”, confessa. “Todos que provaram ficaram impressionados com a consistência do sorvete, pois ele fica bem fofinho”. Chocólatra
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Cardápio 5
assumida, testou um gelado de leite com nutella. Para tomar sorvete fora de casa, prefere a Santo Doce e não dispensa os sabores blueberry e africano, de chocolate meio-amargo. Para o roteirista Luiz Otávio Pereira, de 32 anos, sorvete tem gosto de programa de fim de semana na infância. Na adolescência, ficou até amigo de um sorveteiro que passava com a carrocinha na frente do prédio onde morava. Ele já chegou a tomar sorvete quase diariamente, mas hoje em dia a frequência é semanal.
“Acho que ando me dividindo entre sorvete e café. Alguns cafés daqui servem ótimas sobremesas à base de sorvete com café”, opina. O sorvete de pistache da saudosa gelateria Tomaselli, ainda servido na pizzaria La Gondola, é o favorito do roteirista, que também aprova os sabores da Fri-Sabor. “O problema é que a maior parte das sorveterias virou self-service. O abre-e-fecha dos refrigeradores faz o sorvete perder a consistência e boa parte do seu segredo está em como a bola é
Para todos
nas sorveterias clássicas, como a Fri-Sabor, há opções tanto de sorvetes cremosos quanto de frutas típicas da região
servida”, reclama. “Certa vez, na lanchonete Pin-Up, eu pedi uma banana split, fiquei impressionado quando chegou, parecia coisa de desenho animado”, recorda. (Aliás, outra consequência da mania de selfservice foi o quase desaparecimento da banana split e dos sundaes. Não é por acaso que eles aparecem no cardápio de uma burgueria de estilo retrô como a Pin-Up.) Já o analista de sistemas João Ferreira, de 31 anos, é louco por sorvete de um sabor difícil de encontrar: abacate. Quando criança, o gosto pelos picolés e sacolés cheios de corantes e bem artificiais convivia com o amor pelo sorvete de abacate feito pela mãe e pela avó em casa, numa caçamba de gelo. “Sempre procuro sorvete de abacate em qualquer sorveteria em que eu vá. Sempre mesmo. Se tiver, eu experimento. A qualidade varia: às vezes ele deixa um gosto bem amargo no final”, afirma. Quando não encontra o sabor, opta por outras frutas, como manga e tangerina. As sorveterias mais requintadas não têm vez com ele: “Eu não sou muito fã desses sorvetes ‘finos’. Eu gosto mais dos caseiros. Gosto da Fri-Sabor e, recentemente, descobri uma sorveteria de fundo de quintal muito boa, dentro de um condomínio, atrás do Mercado de Casa Amarela”, conta.
concorrÊncia À beira-mar
No verão, há lugar melhor para se refrescar com sorvete do que a praia? Há 24 anos, nas areias da praia de Boa Viagem, zona sul recifense, o vendedor de picolés Amauri Fernando Magalhães exerce uma profissão que virou marca registrada de sua família. Além dele, mais quatro irmãos possuem o mesmo ofício: Francisco de Assis Bezerra, José
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sorveterias Bacana Avenida getúlio vargas, 166, Bairro novo (olinda), (81) 3429-2110 Della Frutta Praça de Boa viagem, s/n, Boa viagem, (81) 3325-7917 Fri-saBor Rua visconde de goiana, 434, Boa vista, (81) 3421-6022 Gelateria Parmalat Shopping Center Recife, Boa viagem, (81) 3326-0104 italian FreDDo Avenida Conselheiro Aguiar, 1205, Boa viagem, (81) 3091-9555 John’s Avenida Dezessete de Agosto, 819, Casa Forte, (81) 3268-7107 santo Doce Rua Doze de outubro, 15, Aflitos, (81) 3241-2034
restaUrantes nikko Avenida Conselheiro Aguiar, 1712, Boa viagem, (81) 3325-3030 Pin-uP BurGueria Avenida Herculano Bandeira, 204, Pina, (81) 3466-0001 sushi Yoshi Rua Padre luiz Marques teixeira, 155, Boa viagem, (81) 3462-2748 tomaselli la GonDola Rua Conselheiro Portela, 536, espinheiro, (81) 3427-3710 6
Maria Bezerra, Sebastião Bezerra Sobrinho e João de Deus Magalhães. Na família de Tupanatinga, no Agreste pernambucano, quatro empurram carrocinhas da Kibon e um, da marca Milet. Enfrentam agora a concorrência de uma novata nas praias: a Garoto, que ataca com versões geladas de seus chocolates clássicos, como Baton, Serenata de Amor, Talento e Opereta. Amauri conta que trabalha o ano todo nos fins de semana, mas durante o verão percorre a praia diariamente, das 9h às 15h. Segundo ele, as vendas seguem em alta até o Carnaval. Os sabores de frutas e chocolate são os mais pedidos na praia. Seu preferido é o picolé de limão, mas ele não pode mais tomar desde que se descobriu
diabético. “Isso é um crime, não é?”, lamenta-se, mas sem deixar de sorrir. E o peso do carrinho? “O novo modelo é mais leve”, garante. Para se proteger do sol, ele procura se abrigar sob o guarda-sol e usar protetor no rosto. Para quem deseja tomar um gelato sem pisar na areia, as opções também são variadas. Os fãs das sorveterias clássicas e dos sabores de fruta estão bem-servidos na FriSabor, cuja matriz existe desde 1957 e acaba de passar por uma reforma; na rede John’s, com lojas a cada esquina, sempre disputadas; e na olindense Bacana, que se destaca por sabores como jabuticaba e pitomba. Quem prefere gelados à moda italiana pode recorrer à Santo Doce
ou à Italian Freddo. A primeira serve desde 2000 os ótimos sorvetes da marca alagoana Bali, tais como limão com hortelã, morango silvestre, café irlandês (com uísque) e paçoquita. Já a segunda, com unidades em Porto de Galinhas e Boa Viagem, acaba de abrir uma filial no Paço Alfândega para servir sabores como maracujá, melão, tiramisú e bis, sempre supercremosos. Há ainda a sorveteria de grife Gelateria Parmalat, no Shopping Center Recife, que oferece doce de leite com brownie, figo ao conhaque e chocolate branco ao Baileys, entre outros sabores com textura cremosa e preços nas alturas. No que depender de tamanha oferta, só passa calor quem quer.
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me dano a comer bolacha
matéria corrida José cláudio
artista plástico
toda vez que fico triste me dano
a comer bolacha. Ou mesmo sem ter motivo. Me dano a comer bolacha, me dano a comer bolacha, me dano a comer bolacha. Na minha idade provecta, com diabete melito, 77 no lombo, devendo me afastar de massa, açúcar, álcool, gordura, tudo que é bom afinal, torresmo etc. e tal, logo eu que era dos que diziam “só como gordo embora lance”... Quando falta inspiração me dano a comer bolacha. Se vou pra casa de Joca ou minha cunhada Jaça, se vou pra casa de Noca, se vou pro raio que o parta, me dano a comer bolacha. Quando vejo quadro ruim me dano a comer bolacha. Meu, daqui ou de outra praça, me dano a comer bolacha, me dano a comer bolacha, me dano a comer bolacha. Exorcismo, panaceia, compulsão, desforra sei 1á de que, que nunca fui de guardar
raiva, não tenho ideia da origem ou quem sabe troque minhas raivas por bolacha como menino a quem dão bombom para parar de chorar, sabe Deus por que razão me dano a comer bolacha. Tenho um primo dono de padaria em Cucaú, Toinho, aliás primo segundo, primo mesmo era do pai dele, Amaro Antônio, filho de Seu Zé Dias e minha tia Edith, que eu chamava somente Amaro, seu nome original botado em homenagem ao meu pai Amaro Silva, a que depois acrescentaram o Antônio já Amaro crescido, promessa de Tia Edith a Sto. Antônio não sei se de Ipojuca ou Sirinhaém não sei a jurisdição, mas desde a época de a padaria de Amaro Antônio, já Amaro Antônio me mandava bolacha, pense numa bolacha, parece que leva um pouquinho de coco: agora mesmo
Ceça, irmã de Toinho, casada com o alemão Wolfgang para melhorar a raça, Wolf, Ceça e o filho Patrick, pense numa simpatia, que moram em Xanten na Alemanha e me disseram que significa Santos, antes se escrevia Santen, com a nova grafia se pronuncia ksânten, foram eles que trouxeram de Cucaú quatro pacotes de bolacha, eu gosto de alemão porque exagerado, não sem razão apelidaram um ramo do expressionismo de “expressionismo alemão”, palavra essa, expressionismo, inventada aliás por um alemão, Wilhelm Worringer, falando aliás do holandês Van Gogh e do francês Cézanne na revista Der Sturm em 1911; naquele dia que trouxeram a bolacha eu almocei na rua, pense num almoço, mandei botar um guisado somente a carne, no Mercado São José, boi e porco,
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tinha levado num saco de papel um meio litro de bolacha na bolsa, referindo-me aqui a litro desses de pau como vendiam cereais nas feiras, a própria bolacha servindo de colher como se além da comida se comesse o talher. A primeira bolacha famosa em Ipojuca era a bolacha do Ó, porque vinha do distrito de Nossa Senhora do Ó em lombo de burro, descarregava na venda de Seu Octavio Padilha: deviam instituí-la patrimônio, se é que alguém ainda sabe a receita, como fizeram com o bolo souza leão. Não sei se tinha o mesmo gosto da bolacha de Amaro Antônio-Toinho. Só se eu mandasse para Breno, filho de Seu Octavio, ou suas irmãs Neninha e Zulina: será que é por isso, encontre na bolacha a perdida infância, a ânsia inexplicável de comer bolacha?
A primeira bolacha famosa em ipojuca era a bolacha do Ó, porque vinha do distrito de nossa Senhora do Ó em lombo de burro. Não tenho mais dente, quebro a bolacha dentro do café, agora descafeinado,por causa da labirintite, recomendação do médico Caio Souza Leão Filho evitar cafeína e comidas condimentadas: para me levar à ruina o demônio, para quebrar a minha arrogância, não através de tentações maiores, riqueza e poder como tentou Jesus no alto do monte, resolveu o assunto com bolacha, insignificante pedaço de massa cortada na cortadeira manual de que eu escutava o
delengodengo nas tarimbas da padaria de Seu Silva vizinha da loja de meu pai na Rua do Comércio 80 Ipojuca. Até quando a taxa de açúcar está alta e eu deveria cortar carboidrato, quando me dou conta já a bolacha está sendo mastigada, parecendo que o estralo da bolacha no dente tem o dom de minorar minhas dores, pelo menos as mais agudas, enquanto como bolacha. Quando a conta bancária baixa, quando há problema de caixa, quando a violência grassa, diante de uma ameaça, fiasco, medo, desgraça ou dúvida que perpassa, ou a vista se me embaça se me quebraram a vidraça só me restando a carcaça, me dano a comer bolacha. Mas qualquer coisa me basta: por um qualquer foi não foi, por qualquer vai ou não vai ou dá lá aquela palha, por um nadinha qualquer, por um nada vezes nada, sem mais essa nem aquela danome a comer bolacha.
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obras-primas as indeléveis marcas da segunda Guerra
A ascensão e Vá e veja, do casal de cineastas Larisa Shepitko e Elem Klimov, traduzem a dor da violência em filmes que expressam domínio narrativo texto Marcelo Costa
Claquete 1
Duas obras-primas do cinema
que oferecem uma experiência intensa da invasão nazista na BieloRússia durante a Segunda Guerra Mundial: esse é apenas mais um ponto de convergência da trajetória do casal de cineastas Larisa Shepitko e Elem Klimov, que, em A ascensão (1976) e Vá e veja (1985), respectivamente, construíram visões bem íntimas do episódio. Esses filmes, de certo modo, representam uma radicalização da vivência da guerra no cinema soviético, que desde o fim do regime
stalinista procurava retratar ou representar os dramas individuais em meio à destruição coletiva em obras de forte impacto dramático e excelência técnica. O realismo e a densidade alcançados por eles parecem estar relacionados, ao mesmo tempo, com o testemunho direto ou indireto do horror daquele período e o rigor formal de quem domina a narrativa cinematográfica. É justamente essa consciência do vivido – entendido não apenas como os eventos passados, e o aprendizado
retirado deles, mas também a própria prática do momento presente – que aproxima esses relatos tão pessoais. Em A ascensão, Larisa Shepitko oferece um redimensionamento do sagrado, pela história de dois soldados submetidos às provações de um inverno rigoroso e, sobretudo, dos conflitos morais estabelecidos no contato com os camponeses e com as tropas nazistas. Baseado num conto de Vasily Bykov, o filme restabelece a relação entre a aparente fragilidade física e a austeridade espiritual, ao
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a ascensão
Lançado em 1976, o filme de Larisa Shepitko retrata os dramas individuais em meio à destruição
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o longa de elem Klimov foca na história de um garoto que é atingido pelo estouro de uma mina
contrapor a reação dos dois soldados capturados pelos nazistas, diante da ameaça de tortura e da possibilidade de trocar a vida pela colaboração com os alemães. Nesse momento, o filme assume completamente seu caráter místico numa releitura da experiência cristã, através de temas como o martírio, o sacrifício, a culpa e o perdão, e da fotografia em preto e branco que, se antes realçava o contraste dos corpos em meio à paisagem tomada pela neve, agora sacraliza o rosto
do soldado que resiste em closes saturados por uma luz sobrenatural. Essa dimensão espiritual, em tempos de materialismo e tecnicismo, confere ao filme um estofo poético incomum. Mais do que os tiros e os embates da imagem-ação, A ascensão investe nos planos contemplativos, nos conflitos de consciência, na dureza e no peso das palavras, no trânsito entre territórios aparentemente opostos, mas que mantêm zonas de intersecção entre si: o bem e o mal, a redenção e a traição.
inFÂnciA MARcADA
Vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, o filme garantiu a projeção internacional da cineasta ucraniana, que viria a falecer prematuramente num acidente de carro em 1979, durante as filmagens de Farewell to Matyora. O projeto foi finalizado por Klimov, que ainda lhe dedicaria uma bela homenagem no documentário Larisa (1980). Especula-se que a morte da esposa foi determinante para o tom declaradamente pessimista e selvagem de Vá e veja. Possivelmente, jamais um filme conseguiu traduzir tão bem o horror de uma guerra, com tanta propriedade, o que parece reforçar a ideia de uma catarse pós-traumática. Inspirado nas lembranças de Klimov, o filme é uma espécie de exercício inventivo-memorialístico, uma reconstituição poética de uma infância marcada pela guerra. Tratase da coleção de impressões de um jovem (Florya) em meio ao campo de batalha – algo já presente em A infância de Ivan (1961), de Tarkovski. O tom ameno da sequência inicial, na qual Florya e outra criança escavam a areia à procura de um rifle, sob o protesto de um velho camponês, logo dará lugar a uma série de situações-limite em que a resistência do personagem – e consequentemente do espectador – será posta à prova. Nesse sentido, Vá e veja revela-se uma experiência emocional brutal, ao utilizar os recursos da linguagem cinematográfica para amplificar a percepção sensorial do personagem. Isso fica evidente quando uma bomba explode perto de Florya e somos convidados a dividir a longa sensação de desorientação e surdez do personagem através da primorosa edição de som, uma mistura de ruídos com a música de Mozart em nível quase subliminar. É o ponto de partida para a odisseia do personagem, que logo perceberá a insanidade da guerra e a realidade pouco glorificante da saga de um soldado. A cada momento, seu rosto é tomado pelo tormento e assume um estado de transe – tão bem-representado pelo ator Alexei Kravschenko, que, há quem diga, foi submetido a sessões de hipnose durante as filmagens. Ele é a personificação do desespero, da
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outRos clássicos De gueRRA Quando voam as ceGonhas (1957) de mikhail Kalatozov com Tatiana samoilova , alexei batalov, vasily merkuryev
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confusão de sensações como pavor, tristeza, ódio e pânico; a testemunha viva das atrocidades cometidas pelas tropas nazistas nas aldeias da Bielo-Rússia. Mas tudo isso só é possível pela maneira como Klimov constrói uma mise-en-scène do terror, capaz de nos fazer acreditar em cada ato de insanidade vivenciado pelo personagem, num exercício contínuo de câmera presencial. O simbolismo com que representa as sensações do personagem, como na cena em que ele atravessa um pântano na tentativa de negar a morte dos familiares, ou quando tenta extrair leite de uma vaca morta em uma troca de tiros, também é um exemplo de como a composição visual e sonora pode contribuir para traduzir um estado de espírito. Ao final, após uma longa jornada, o herói dispara seus únicos tiros contra um retrato de
Hitler: um ato de desabafo que acaba por reivindicar uma humanidade perdida através de um belíssimo trabalho de montagem. Apesar dos diferentes processos de subjetivação das vivências e da diversidade de abordagens, é interessante perceber como a guerra significou uma identificação entre Klimov e Sheptiko, seja na ressonância alcançada nos filmes ou na possibilidade de compartilhar um episódio traumático. Assistir a esses filmes – A ascensão continua indisponível no Brasil e Vá e veja foi lançado recentemente em DVD pela Lume filmes –, de certo modo, é não se permitir passar incólume ao episódio retratado; é conhecer a dura realidade dos camponeses na Bielo-Rússia invadida e, sobretudo, dividir um pouco a experiência intensa de quem vivenciou a guerra sem concessões.
um dos primeiros filmes soviéticos a retratar os dramas individuais de um povo devastado, através da história de um jovem casal apaixonado separado pela guerra. Ao invés de expor as feridas abertas daqueles que foram à luta, investe na dor interna daqueles que ficaram à espera, no limiar entre a esperança do reencontro e a possibilidade da perda. Vencedor da palma de ouro no Festival de Cannes, o longa destila excelência técnica em closes sob efeito de luz e sombras, e no completo domínio do espaço fílmico.
a infância de ivan (1961) de andrei Tarkovski com Kolia burlaiev e valentin Zubkov
A guerra pelos olhos de um menino. A partir dos conflitos do personagem, o filme traça um panorama poético e comovente do abandono de uma geração de filhos da guerra. um retrato duro, marcado pela densidade filosófica. Já no seu primeiro longametragem, Tarkovski atinge a dimensão espiritual, a remissão melancólica ao passado e o rigor formal que acompanhariam sua filmografia. premiado com o Leão de ouro no Festival de Veneza, A infância de Ivan projetou o diretor no cenário internacional.
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INDICAÇÕES Animação
vaLsa com bashir De ari Folman Com ari Folman, ron Ben-Yishai, Dror Harazi Sony Pictures Classic
o israelense Ari folman obteve uma indicação ao oscar na categoria de melhor filme estrangeiro pela animação Valsa com Bashir. embora o gênero esteja associado ao universo infantil, folman nos entrega um filme adulto, marcado pelo drama de guerra, em que a busca pelas memórias perdidas assume o papel de guia. Ari é um sobrevivente da Guerra do Líbano, mas se incomoda com o fato de não se lembrar de quase nada do que foi vivido naquele período. A partir daí, resolve ir atrás de seus companheiros, para entender o porquê da lacuna em sua mente.
Drama
thriller
deseJo e periGo
a GaroTa ideaL
De ang Lee Com Tony Leung, joan Chen europa Filmes
De Craig Gillespie Com ryan Gosling, emily Mortimer, Paul Schneider Califórnia Filmes
Lançado no Festival de Veneza 2007, Desejo e perigo, do premiado cineasta Ang Lee (O segredo de Brokeback Mountain), é um thriller carregado de erotismo. A história se passa durante a ocupação japonesa na China, em 1942. Wang é uma jovem chinesa, participante de um grupo de teatro, que terá seu talento interpretativo usado para outros fins. fingindo ser a Sra. Mak, ela terá que seduzir Yee, um colaborador do lado japonês, para que seus comparsas possam assassiná-lo. o plano dá errado, quando o jogo de sedução se torna um caso de amor.
Lars Lindstrom (ryan Gosling) é um rapaz solitário que mora na garagem da casa do irmão e da cunhada. Mais do que isso, ele vive em seu próprio mundo. o comportamento de Lars passa a preocupar ainda mais seus parentes quando ele recebe pelo correio uma encomenda especial: uma boneca com tamanho e forma de um ser humano. Acreditando ser esta a mulher de sua vida, Lars logo tem toda a cidade como cúmplice de seu devaneio. Com um desfecho inesperado, o filme recebeu uma indicação ao oscar na categoria de melhor roteiro original.
terror
anTicrisTo
De Lars Von Trier Com Charlotte Gainsbourg, Willem Dafoe Califórnia Filmes
o diretor dinamarquês Lars Von Trier conseguiu, mais uma vez, ser o foco das atenções no último Festival de Cannes. Com o filme de horror Anticristo, há quem diga que o cineasta passou dos limites ao filmar mutilações em plano fechado. Após ter afirmado que escreveu o roteiro durante um período de crise na vida pessoal, o espectador fica pensando que espécie de problemas enfrentou Von Trier. o resultado da catarse narrativa é um casal que se isola em uma floresta, após a morte do único filho. Sentindo-se culpada, a mãe do garoto desenvolve um comportamento psicótico e violento.
A prateleira
embora o formato de curtametragem seja bem-recebido em festivais no Brasil e mundo afora, o consumo por parte do público sempre esbarra na escassez de sua circulação. Indisponível no catálogo das locadoras, a maior parte desses filmes (para não dizer a sua totalidade) fica relegada ao ostracismo, ou vive apenas na memória de quem teve a chance de um dia vê-los. Quando o cineasta Leonardo Lacca resolveu abrir o Café Castigliani, que funciona em frente à sala de cinema da fundação Joaquim Nabuco, no derby (recife), pensou de que forma poderia colaborar para a disseminação de produções cinematográficas, o que incluía os curtas, claro. Leonardo conta que a iniciativa tomou forma por sugestão
do cineasta Marcelo pedroso, à época, em vias de lançar Balsa, que de curta passou a média-metragem. foi, então, que surgiu A prateleira, um espaço dedicado à venda de dVds, vinculado ao Castigliani. “Nós sabemos que é no formato curta-metragem que se faz o melhor do cinema brasileiro atual. então, a possibilidade do contato direto com esses curtas é muito instigante e propicia essa aproximação”, acredita Lacca. A prateleira, no entanto, não é restrita a filmes de pequena ou média duração. “Não há restrição, estamos abertos ao cinema, independentemente do formato, gênero ou duração”, diz. por enquanto, os dVds contam com um display apenas na fundaj, mas novas sedes podem surgir em ambientes que dialoguem com a proposta.
dIVuLGAção
VITRINE PARA FILMES DE RARA CIRCULAÇÃO
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Artigo
reprodução
Eduardo MElo França FrEud Para oTIMISTaS ou CÉTICoS ConVICToS o efeito que O mal-estar na civilização , de Sigmund Freud,
escrito em 1929, causa nos poucos leitores que realmente entendem sua gravidade e pessimismo não é menor do que o de um soco no estômago. Depois dele, qualquer estudo sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade, que não leve em conta a constante tensão produzida pelo atrito entre o desejo de prazer do homem e a necessidade reguladora da civilização, deve ser tomado como uma prova de ingenuidade. A grande sacada da tese freudiana foi perceber que o indivíduo vive numa condição inevitavelmente paradoxal. Se, por um lado, a psicanálise propõe que o sujeito carrega consigo uma vontade brutal de prazer, por outro, assume, de forma inquestionável, que as sociedades devem ser capazes de criar e manter uma série de normas que, embora sacrifiquem uma parcela de nossa felicidade e satisfação sexual, prezem, antes de tudo, pelo bem-estar coletivo. Com um estoicismo inabalável, sem moralismo ou pedagogia, Freud foi capaz de inverter a chave do entendimento psicológico e demonstrar que esse mal-estar produzido pelo abismo entre a vontade de prazer do indivíduo e a necessidade coletiva de cultura e civilização é mais do que um problema e, sim, uma condição inevitável. Em outras palavras, esse malestar é resultado de uma espécie de jogo psicológico de troca e concessão. Sempre que as regras desse jogo privilegiem um dos lados, observaremos sintomas desagregadores,
do ponto de vista social, e neuróticos, do ponto de vista psicológico. Freud chamou de mal-estar a essa impossibilidade de encontrar um meio termo, constante e satisfatório, para o desejo individual e a civilização. Também define civilização como um emaranhado de regras que, embora limitando nossa liberdade, procura “ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade”. A civilização, portanto, esse mecanismo tão sofisticado e criado pela própria
humanidade, seria responsável por uma boa parte de prazer e liberdade a que precisamos renunciar e, por consequência, pela nossa infelicidade. Tudo o que hoje chamamos de civilização e cultura foi construído sobre uma imensa renúncia ao prazer e à liberdade – seja através da opressão, da repressão, dos acordos políticos e civis ou de interdições culturais e simbólicas. Não se conquista ou mantém tudo isso impunemente. “O homem civilizado trocou uma parcela de
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obra visionária
em O mal-estar na civilização, Sigmund Freud demonstrou que a insatisfação humana fundamental é produzida pelo abismo entre a vontade de prazer do indivíduo e a necessidade coletiva de cultura e civilização
suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança.” Toda essa perda precisa ser compensada. É uma ilusão acreditar que o homem seja capaz de se manter voluntariamente durante um longo período vivendo apenas sob a abnegação e na esperança de uma sociedade mais justa, igualitária e segura. A possibilidade de o indivíduo substituir a busca de um prazer por uma ausência de dor é um mecanismo provisório e precário. Ora, pensando assim, não é de se espantar que
Freud, por exemplo, não consiga acreditar nas esperanças comunistas, considerando que suas premissas psicológicas se baseiam em “uma ilusão insustentável”. A mesma sociedade que precisa de normas para sobreviver também deve ser capaz de construir dispositivos adequados para que seus indivíduos possam satisfazer suas tensões e desejos. Uma sociedade que não é capaz de impor normas civilizatórias e culturais de convivência e, igualmente, não proporcione as possibilidades de seus indivíduos obterem prazer e escoarem suas frustrações, não sobreviverá – e nem deveria. O maior desafio da humanidade – e, disso, os psicólogos, psicanalistas, sociólogos, políticos e juristas já devem ter consciência – tem sido encontrar uma acomodação conveniente que atenda na mesma medida e de forma conciliatória tanto ao indivíduo singular e idiossincrático, quanto à sociedade e às reivindicações culturais de grupo. A análise empreendida por Freud descortina o cerne do problema e traça um diagnóstico sem saída: a civilização é um artifício neurótico, precário, indesejado, mas necessário. Da civilização, precisamos, mas não desejamos. É isso, em poucas palavras, o que quer dizer O mal-estar na civilização. Apesar de ter passado boa parte de sua vida tentando entender a psicologia humana e desenvolvendo uma técnica terapêutica que ajudasse o indivíduo a lidar melhor com seus problemas conscientes e principalmente inconscientes, aparentemente o criador da psicanálise não nutria sobre o homem uma concepção muito otimista. Nas palavras do bom e velho Freud, “Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se
quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo”. Diante dessa inclinação inevitável do homem para a agressão, a civilização se vê permanentemente ameaçada. Essa plena convicção sobre a necessidade de regras que inibam a agressividade inerente ao desejo humano impedia Freud de amenizar ou adocicar as possíveis consequências da existência de um homem puro, bom e livre de regras e
Para Freud, o que chamamos de cultura e civilização foi construído sobre uma imensa renúncia ao prazer e à liberdade interdições. Por isso que, em um dos mais verdadeiros e cruéis retratos do ser humano, Freud, em O mal-estar na civilização, diz que “em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho”. A leitura d’O mal-estar na civilização é uma experiência definitiva. Recomendada tanto aos que ainda conseguem, apesar de tudo e todos, se enganar e trazer consigo algum otimismo em relação ao ser humano, quanto àqueles que perderam suas esperanças, mas sentem a necessidade de legitimar seu pessimismo a partir de uma teoria que não se fundamente em qualquer ideologia, nostalgia, utopia ou moral.
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Gil Vicente
circuito e mercado Vejo no sistema de artes plásticas duas partes que
Gil Vicente é artista plástico flora pimentel
podem ou não andar juntas: o circuito e o mercado. O primeiro faz a promoção e a exibição da arte através dos salões, prêmios, bolsas, bienais, museus, galerias, ensino de arte, debates etc. Nos últimos 15 anos, este circuito cresceu em todo o país por conta da nacionalização de editais e projetos (como o Rumos Visuais, do Itaú Cultural) que ajudaram a legitimar e integrar diversas gerações de artistas, curadores, arte-educadores e gestores culturais. Tudo incentivado pela Lei Rouanet e suas versões locais que viabilizaram exposições e publicações de catálogos e livros sobre artistas. O mercado é a quantidade de público e também a venda de obras, esta intermediada pelas galerias, que representam comercialmente os artistas. Hoje, esses estabelecimentos compreendem melhor seu papel no sistema, ajudando instituições no contato com artistas e empréstimo de suas obras, ou sendo orientados por curadores em seus projetos anuais. Vivemos um momento de qualidade de produção sem precedentes na arte brasileira, e tudo isso pode ser medido pelo reconhecimento institucional e comercial que temos no Exterior. Mas precisamos compreender um paradoxo nacional: nas décadas de 1970 e 1980, toda exposição lotava de visitantes e colecionadores. Era um acontecimento cultural, social e comercial (muitas obras eram vendidas antes da abertura). Como explicar a diminuição do número de visitantes e colecionadores, comparando aqueles dias com os de hoje, se estamos mais profissionais? Atualmente, quem visita mostras é gente do próprio circuito, e poucos apaixonados que compram. Houve evasão de público e colecionadores. Já ouvi que as obras atuais são tão herméticas que afastam os visitantes. Não acredito nisso. A evasão aconteceu porque a arte deixou de aparecer na frente do público. As exposições são muito bem-divulgadas apenas nos jornais impressos, mas estes já não têm o alcance de antes. As revistas nacionais não falam de arte hoje. E, principalmente, a arte não aparece mais na TV, que é a grande mídia. Nos anos 1970 e 1980, toda exposição aparecia nos programas e telejornais, e o artista era entrevistado. O modo de vida é ditado pela TV. Ela diz o que se deve pensar, falar e comprar. O que nela aparece é compreendido e deve ser possuído; o que ela não mostra é sem valor ou não existe. E a televisão não dá mais nem um segundo de graça a ninguém. Só voltaremos a ter público e mercado se o Ministério da Cultura pagar uma inteligente e duradoura campanha sobre arte brasileira na TV.
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