ROBERTA GUIMARÃES
MARÇo 2011
aos leitores Há coisas para as quais não damos importância, elas estão ali, adormecidas, invisíveis. Somente uma crise é capaz de tirá-las desse limbo. Como nós, da revista Continente, gostaríamos que nossa reportagem sobre a azulejaria pernambucana surtisse esse efeito de crise bem-vinda, que pudesse de alguma forma reverter a situação por nós encontrada! Quando pautamos a matéria, como conta a repórter Danielle Romani na abertura de sua reportagem, nossa intenção era sobretudo estética: queríamos destacar a riqueza desses elementos arquitetônicos, que tanto caracterizam as cidades históricas do Brasil, associando-as ao passado colonial e imperial. Munidos de documentação segura, fomos ao confronto com a realidade. Romani gastou sola de sapato seguindo os passos antes dados pela arquiteta Sylvia Tigre, que registrou em dois livros a azulejaria civil e religiosa do estado. Veio o susto. Parte daquele tesouro restava sob os escombros do descaso ou tinha simplesmente desaparecido! Embora houvesse em nós a expectativa de que o acervo religioso estivesse em melhores condições que o civil, por diversos fatores que o leitor verificará ao ler a matéria, o que se constatou também foi a
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precariedade de conservação dos azulejos que revestem igrejas e conventos. Verificamos que aquilo que estava conservado pertencia à parte mais esclarecida e endinheirada da sociedade, embora isso significasse – em alguns casos – a sujeição do patrimônio histórico às regras do mercado imobiliário, como na recorrente permanência de portentosos casarões espremidos em terrenos agora ocupados pelos arranha-céus que dominam os endereços nobres da cidade. Sabíamos que não havia um judas a quem pudesse ser imputada a culpa de tal situação. Depois de apurações junto a vários moradores, arquitetos e urbanistas, especialistas e técnicos em conservação e restauro, funcionários públicos ligados às instituições de preservação patrimonial, chegamos à conclusão de que o risco de desaparecimento a que está submetida a arte azulejar de Pernambuco associa-se a uma cultura de descarte e de desobediência que perpassa todos os agentes da sociedade. O que precisamos, neste caso, é tomar consciência desse estado de coisas, enfrentar a crise e sair do torpor ou indiferença, valorizando aquilo que está tão próximo de nós e que não queremos ver.
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sumário Portfólio
Bicicleta Sem Freio
6 Cartas
7 Expediente
8 Entrevista
58 Palco
Raymond Williams Livro do crítico britânico aborda a relação entre o texto teatral e suas montagens
+ colaboradores John D. French Professor da Universidade Duke, nos EUA, analisa as aproximações entre os governos Lula e Vargas
12 Conexão
Hunch Site mais detalhista do que o Facebook quer estimular amizades através do cruzamento de gostos
20 Balaio
Oscar Vencedoras da categoria de Melhor Atriz têm probabilidade 63% maior de terminar o casamento antes do que as preteridas
34 Peleja
Literatura A continuação de clássicos por outros autores é uma fraude?
42 Mídia
Jornalismo A pressa e o descuido podem gerar notícias falsas e vexames profissionais
54 Perfil
Irandhir Santos O ator pernambucano é um dos mais requisitados do atual cinema brasileiro
65 Visuais
A rock art dos designers goianos já rompeu as barreiras do instável circuito alternativo. Até grandes marcas renderam-se às coloridas e psicodélicas criações do trio
14
Vik Muniz Em novo trabalho, o artista se volta à situação dos catadores de lixo
68
Matéria Corrida José Cláudio Delano (1945-2010)
70 Sonoras
Geraldo Maia Intérprete garimpa composições menos conhecidas de Manezinho Araújo, O Rei da Embolada, em seu mais recente disco
76 Claquete
Alumbramento Produtora cearense surge na esteira da ampliação do espaço para debates e exibição do audiovisual no país
86 Artigo
Palavras de plástico Por que nós teimamos em utilizar estrangeirismos?
88 Saída
Lúcia Bettencourt O lixo da Cinderela
Tradição
Caiana dos Crioulos Isolada na serra do brejo paraibano, comunidade de 128 famílias – habitada por escravos fugidos desde o século 18 – mantém viva a herança cultural negra
48 Capa foto Roberta Guimarães
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Especial
História
Patrimônio pernambucano se encontra em iminente extinção, por conta de abandono dos proprietários, descaso público e roubo de exemplares
Há 100 anos, o movimento liderado por Pancho Villa e Emiliano Zapata promovia a ascensão de Francisco Madero, num começo sucessivo de erros
Cardápio
Leitura
Os bolinhos fofos, coloridos e açucarados são a nova sensação gastronômica do país, motivando a abertura de vários estabelecimentos especializados
Em 676 aparições de Killoffer, autor francês narra em arte sequencial a experiência de uma temporada em Quebec, numa abordagem surreal
Azulejaria
22
Cupcakes
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Revolução Mexicana
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Mar’ 11
Patrice Killoffer
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cartas Contribuição
Qualidade 2
Sou professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, arquiteto e urbanista, pernambucano e residente em Campo GrandeMS há 31 anos. Sou o primeiro assinante da Continente por essas bandas, há anos, creio que quase 10. Recentemente lancei o livro História da Arquitetura em Mato Grosso do Sul e enviei um exemplar para vocês. O livro tem quase 400 páginas, formato grande, preto, com capa protetora, edição de luxo. Gostaria de poder contribuir com a Continente, pois admiro o trabalho de vocês, que, sem dúvida, produzem a melhor revista de cultura brasileira.
Foi num sebo aqui, em Salvador, que fui apresentado à revista Continente. Foi amor à primeira capa. Comprei as que havia ali e acabo de renovar a assinatura pela terceira vez. Escrevo poesias e contos, estando com três livros escritos. Na última Bienal do Livro de Pernambuco, durante a minha estada, fui inspirado a escrever um conto ambientado no Recife e pensei que poderia vê-lo publicado na Continente.
Ângelo Arruda Campo Grande-MS
Qualidade 1 Sensacional, a revista! Qualidade impecável. Já estou lendo e gostando muito. Vou aproveitar e levar para O Globo a fim de que o pessoal conheça!
Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140).
Cosme Custódio da Silva Salvador-BA
10 anos Acabou de chegar a edição de janeiro. Como sempre, a qualidade da revista está 10+. Fiquei embasbacado com as ilustrações do Indio San, que já conhecia pela internet. O brinde que vem junto à Continente também está show.
Leitura matinal Muito obrigado pelo exemplar da revista de janeiro. Ficou linda a edição, o brinde também. Achei fantástico. Foi ótimo receber a surpresa por baixo da porta, hoje! Leitura matinal garantida!
Cavalcante
Mauricio Planel
Indio San
Rio de Janeiro- RJ
Rio de Janeiro-RJ
são paulo – sP
As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
(81) 3183 2780
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colaboradores
Luiz Amorim
nelly carvalho
Roberta Guimarães
Victor Leguy
Arquiteto e urbanista, professor da UFPE, PhD pela University College London
Doutora em Linguística, professora da Universidade Federal de Pernambuco
Fotógrafa, sócia da agência Imago, autora de Pernambuco popular – Um toque de mestre
Artista visual, responsável pelo estúdio Noir&Libre, e parceiro da NID-pi
e MAiS Augusto Pessoa, jornalista e fotógrafo. Daniel Buarque, jornalista e autor de Por um fio – O mundo explicado pelo telefone. Fernando Monteiro, escritor, poeta e cineasta, autor de A cabeça no fundo do entulho, entre outros. isabella Valle, fotógrafa. Lúcia Bettencourt é ficcionista. Renata Amaral, jornalista, doutoranda em Comunicação. Renato Alarcão, ilustrador e professor de artes gráficas.
GoVeRno Do eStADo De PeRnAMBUco
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puBliCidAde e mArKeting
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e CirCulAÇão
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diagramação e ilustração)
Alexandre Monteiro Rosana Galvão Gilberto Silva Daniela Brayner
Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE redAÇão, AdminiStrAÇão e pArQue grÁfiCo Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br
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JOHN D. FRENCH
Lula, Vargas e as leis trabalhistas
Brasilianista norte-americano compara os governos trabalhistas dos dois presidentes, a partir de aproximações históricas e diferentes relações com o povo texto Daniel Buarque
con ti nen te
Entrevista
Os movimentos trabalhistas do
Brasil fecharam em dezembro de 2010 um ciclo histórico, quando Luiz Inácio Lula da Silva deixou a presidência após oito anos de governo, com níveis recordes de aprovação popular. O historiador americano John D. French conta que Getúlio Vargas, quando governava o Brasil, fez um discurso para os operários em que dizia ter lhes dado a liberdade, por conta da CLT (lei trabalhista de 1943), e que, no futuro, seria a vez de um daqueles operários liderar o Brasil. “Um ciclo perfeito com a chegada de Lula ao poder”, diz French. Professor da Universidade Duke, na Carolina do Norte, ele é doutor pela Universidade Yale, e especialista em movimentos trabalhistas no Brasil, onde viveu por muitos anos. Seu principal trabalho é o livro Drowning in laws: Labor law and brazilian political culture (Afogandose em leis: Lei trabalhista e cultura política brasileira), versão lançada em 2004, em inglês – e mais completa –, do estudo Afogado em leis, lançado anteriormente no Brasil. Trata-se de um resumo de anos de estudos no ABC Paulista, acompanhando os movimentos trabalhistas da região
e relacionando-os à história política e econômica do Brasil. Entre 2002 e 2010, diz, Lula concretizou a previsão de Getúlio Vargas, que, assim como ele, entrou para a história como “mãe dos ricos e pai dos pobres”, capaz de gerar riqueza para quem já tinha dinheiro e ajudar os que não tinham a melhorar de vida. Admirador do governo Lula, French diz que se podem traçar paralelos entre a carreira política do ex-operário com a de Vargas, e que os dois ajudaram a moldar o país. Apesar da importância histórica e da popularidade dos dois líderes, nenhum deles conseguiu mudar a relação que o Brasil tem com sua legislação. Partindo do exemplo das leis trabalhistas, que muitas vezes são apontadas como vilãs para o desenvolvimento econômico do país, French explica que o Brasil tem um abismo entre a teoria e a prática das leis. A famosa piada das “leis que não pegam”, segundo ele, reflete uma característica jurídica do país, sempre preocupado em ter leis antenadas com o mundo desenvolvido, mesmo que elas nunca se adaptem
à realidade do seu povo. “O Brasil é uma sociedade cheia de leis, mas ao mesmo tempo uma sociedade sem leis”, diz French, que concedeu à Continente a entrevista abaixo. CONTINENTE Na introdução da edição americana de Afogado em leis, o senhor menciona que Vargas conseguiu se tornar um líder visto como “mãe dos ricos e pai dos pobres”... Se pensarmos nos oito anos de governo Luiz Inácio Lula da Silva, encerrados em dezembro passado, com crescimento econômico e ascensão social, o Brasil não parece ter vivido algo semelhante a isso? É possível comparar os dois presidentes? JOHN D. FRENCH Lula se mostrou capaz de reunir, em um único grupo, gente de todos os espectros políticos. Essa capacidade de reunir pessoas de diferentes opiniões vem desde sua formação nos sindicatos, e no PT. Em cada estágio da sua vida, ele se mostrou capaz de assumir a habilidade de liderança, pensando em longo prazo e de forma pragmática, tentando evitar conflito sempre que possível. Lula não é como Hugo Chávez (presidente da Venezuela), ele não tem
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divulgação
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CONTINENTE Qual vai ser o lugar de Lula na história do Brasil? JOHN D. FRENCH Lula foi bem. Não acho que Fernando Henrique Cardoso tenha ido mal na presidência, especialmente em comparação com o governo Collor, mas penso que daqui a 25 anos vamos olhar para a história e ver que o caminho tomado pelo Brasil foi definido muito mais pelo governo Lula do que pelo de Fernando Henrique. Isso é, em parte, por sorte, por ser uma história fantástica, e porque foi uma surpresa, já que ninguém esperava que ele fosse um bom administrador. Até 2002, eu achava que ele nunca seria eleito. Quando foi, mesmo sem nenhuma experiência executiva, e com toda razão para acreditarmos que
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inimigos. Ele levou essa habilidade ao nível nacional, e isso fez com que fosse um presidente bem-sucedido. É verdade que isso tem alguma relação com o que Vargas havia feito. Lula se mostrou um bom estudante, que aprendeu tudo. Entretanto, Lula e a esquerda brasileira nunca gostaram muito da referência a Vargas, pois ele foi um ditador capaz de atos violentos. Por outro lado, olhando para trás, não há dúvida de que ele ajudou a moldar o Brasil moderno, e isso não pode ser ignorado. As diferenças entre os dois são a origem humilde e o fato de que Vargas não era exatamente um democrata. Ele tinha uma visão de como melhorar a vida das pessoas pobres, mas não era um igualitarista.
con ti nen te
CONTINENTE Em 2009, a revista The Economist publicou uma longa reportagem de capa a respeito do desenvolvimento econômico do Brasil nos últimos anos, alegando que o país se tornava mais próximo da potência internacional que sempre prometeu ser. O maior obstáculo para o seu crescimento, segundo a revista, são as leis trabalhistas, que dificultam a operação de grandes empresas. O senhor analisou profundamente a CLT e as leis trabalhistas brasileiras. Concorda com essa avaliação? JOHN D. FRENCH Há um enorme exagero nisso que chamam de “custo Brasil” – a ideia de que investir no país sai caro e pode não valer a pena. Essa era
“A esquerda brasileira nunca gostou muito da referência a Vargas, pois ele foi um ditador capaz de atos violentos, mas não há dúvida de que ele ajudou a moldar o Brasil moderno”
Entrevista Além disso, Vargas nunca foi um bom falador. Ele não conseguia fazer discursos que o ligassem às pessoas mais pobres, como Lula faz, que consegue estar do lado do povo, mostrando que ele virou presidente, mas continua sendo um deles. Lula, hoje, é capaz de falar corretamente, se ele quiser, mas ele fala a língua do povo, cometendo os erros que o povo comete. Ainda assim, há uma relação entre os dois. Há um momento muito interessante em que Vargas fala para os operários brasileiros e diz que lhes deu a liberdade – o que é um exagero da parte dele –, e, em seguida, diz que no futuro vai ser a vez de um deles liderar o Brasil, o que é um ciclo perfeito com a chegada de Lula ao poder.
empolgante. Isso está em todas as áreas: negócios, política, movimentos sociais; é uma sociedade muito dinâmica.
não seria tão bom como presidente, todos ficamos surpresos. O próprio José Serra reconheceu isso. Passou-se tanto tempo subestimando-o, que essa surpresa é importante. Podemos falar sobre a melhora na qualidade de vida das pessoas mais pobres, o declínio da desigualdade, mas a maior mudança foi uma revolução cultural. Ele tem uma enorme importância para a autoestima das pessoas mais pobres, que passaram a achar que elas podem fazer algo com suas vidas. Isso vai além de Lula, entretanto. Fico impressionado com o quanto o Brasil mudou desde 1980, quando cheguei ao país pela primeira vez. Cada vez que volto, vejo coisas novas, a sociedade está mudando rapidamente, o que é impressionante e
uma grande questão do neoliberalismo nos anos 1990, tanto no governo de Collor (1990-1992) quanto no de FHC (19942002). O argumento era o de que o Brasil, especialmente por causa da sua legislação trabalhista, estava em desvantagem na corrida competitiva da globalização. Não acho que isso seja totalmente verdade. Não concordo com a Economist, e penso que a posição ideológica deles em defesa do mercado livre está muito clara. Não me parece que a evidência dos últimos oito anos, do governo Lula, indique que a CLT seja um problema. Não houve nenhuma flexibilização na essência ou na estrutura da lei, ou nenhum afrouxamento na cobertura legal, e, mesmo assim, o Brasil cresceu e se desenvolveu. As mudanças que haviam
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sido iniciadas com Fernando Henrique foram interrompidas por Lula. Mesmo sem uma mudança na essência da lei, nos últimos anos, a economia do Brasil tem se dado muito bem, com aumento do emprego formal, com progresso. Entretanto, o mais importante é que, mesmo sem uma transformação no texto da lei, por conta da má aplicação das leis trabalhistas no Brasil, a CLT acabou sendo essencialmente flexibilizada desde o começo. Não acredito que ela seja, em si, um obstáculo para o desenvolvimento econômico do Brasil. CONTINENTE Mesmo sem a prática se igualar à teoria das leis trabalhistas, existe essa visão internacional de que o Brasil tem leis que dificultam a contratação e, em última instância,
assim, o investimento estrangeiro só cresce. As leis trabalhistas servem como uma forma de criticar as injustiças nas relações de emprego no Brasil. A experiência de usar a lei mostra que a realidade não é tão boa quanto o que está no papel. Isso até vem se transformando nos anos recentes, mas menos por uma questão legal do que por conta da democracia, que permite uma maior liberdade para a ação trabalhista – atacada à época da ditadura militar. Os trabalhadores no Brasil estão em uma situação melhor, atualmente, do que estavam nos anos 1970, e isso é por causa da democracia, não por mudanças na lei. A lei é mais real, hoje, para mais gente do que era no passado. Isso é um progresso, e mostra
CONTINENTE O senhor mencionou que isso acontece com outras leis. É um traço do perfil brasileiro essa adaptação das leis entre a teoria e a prática? JOHN D. FRENCH O Brasil tem o costume de se apropriar dos procedimentos legais de uma forma própria. O país tem as leis mais avançadas para menores e adolescentes, de 1989, mas isso não impede o trabalho infantil no país, por exemplo. A elite letrada do Brasil tem historicamente criado um mundo alternativo nas leis que são colocadas no papel. Isso vem desde a emancipação de escravos. Ela cria mundos imaginários de perfeição, que a faz pensar que está participando de uma tendência global, como se
“O Brasil não tem penas capitais em suas leis, ao contrário dos Estados Unidos, mas, na prática, o Brasil executa mais gente por ano do que os Estados Unidos, quase tantos quanto a China” o lucro. Essa “mitologia”, como o senhor diz, pode gerar preconceito e afastar o investimento estrangeiro no Brasil? JOHN D. FRENCH O investimento internacional vai para locais em que os investidores acham que vão ganhar dinheiro. O neoliberalismo funcionou nos anos 1990 com o argumento de que havia apenas um caminho para o futuro e que, se os países em desenvolvimentos não seguissem as regras X, Y e Z, eles iriam fracassar na tentativa de atrair investimento estrangeiro. Mais uma vez, acho que o caso brasileiro nos últimos oito anos prova que não é bem assim. O Brasil parou de tentar enfraquecer as leis trabalhistas para acomodar os interesses dos empregadores, e, mesmo
que as pessoas mais pobres ganharam força desde o fim da ditadura. No Brasil, acredita-se que as leis trabalhistas são injustas, que a justiça é morosa e que não há aplicação delas, mas apenas corrupção. O discurso é que a lei é uma fraude. Isso vale para outros tipos, mas especialmente para as leis trabalhistas. Ao mesmo tempo, há uma mentalidade e um reconhecimento, de mais de duas décadas, de que a existência de qualquer tipo de norma garante uma cobertura mínima para os trabalhadores, e que, se essas normas forem flexibilizadas formalmente pelo governo, os empregadores brasileiros iriam tirar vantagem da falta de coberturas oferecidas aos trabalhadores.
a realidade do Brasil e dos países da Europa fosse a mesma. Há o desejo de ter leis perfeitas, mais avançadas do que em qualquer país do mundo, mesmo que elas nem sempre funcionem na prática. É o que acontece com as penas capitais, por exemplo. O Brasil não tem penas capitais em suas leis, ao contrário dos Estados Unidos, mas, na prática, o Brasil executa mais gente por ano do que os Estados Unidos, quase tantos quanto a China. O fato é que o Brasil quer ser progressista na forma das leis, mas a realidade é diferente; a política mata centenas de pessoas por ano, sem se responsabilizar por isso. O Brasil é uma sociedade cheia de leis, mas ao mesmo tempo uma sociedade sem leis.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
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ROCK EM ILUSTRAÇÕES
GERALDO MAIA
Com trabalhos feitos para a Nike e Sony, o coletivo goiano Bicicleta Sem Freio é dono de um traço facilmente reconhecível, mesmo atuando em diversas mídias e formatos. Conhecidos também por obras feitas para festivais de rock, como o Abril Pro Rock e o Goiânia Noise, e parcerias com bandas independentes, eles são o destaque da seção Portfólio, que traz algumas imagens de suas ilustrações. Em março, no site Continente, o internauta confere uma galeria com outras produções do coletivo, incluindo a animação do clipe My favorite way, da banda Black Drawing Chalks.
Ouça o novo CD de Geraldo Maia, que homenageou o compositor Manezinho Araújo pelo seu centenário, no ano passado.
Conexão
VIK MUNIZ Conheça mais obras do artista plástico brasileiro, mundialmente famoso por seu trabalho em conjunto com catadores de lixo.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
andanças virtuais
NOTÍCIAS
DESIGN
MÚSICA
COLABORATIVO
Site As boas novas informa sobre o que acontece de bom pelo mundo
Diversas opções de fundos de tela cools para computadores e portáteis
Songsterr ensina acordes e ritmos de canções para vários instrumentos
Destaque a projetos culturais que buscam financiamento do público
asboasnovas.com
marcogomes.com/wallpapr/
songsterr.com
catarse.me
Cansado do sensacionalismo de alguns veículos midiáticos em relação aos fatos, o empresário Ruy Drever decidiu criar seu próprio meio de divulgar o que acontece de positivo no mundo. Editado por Maria Clara Vergueiro, Eduardo Abreu, Fernando Flores e Renata Batochio, o site As boas novas é dividido em oito seções e foi feito todo em Adobe Flash Player, fazendo com que sua navegação aconteça sem a troca de página em nenhum momento. As matérias vão desde pesquisas que prometem melhorias na qualidade de vida até a análise de aspectos da economia nacional e mundial, buscando assim alimentar o otimismo dos internautas.
É das ideias simples que, em geral, surgem as criações mais úteis. Usando a base de dados de fotos do Flickr, o empreendedor Marco Gomes fez o Wallpapr, um site de busca de fundos de tela para computadores. Além da opção de receber indicações de papéis de parede cools, o usuário pode digitar um assunto específico e visualizar as recomendações organizadas pela página. Já em sua segunda versão, disponível apenas em inglês, o site também tem versões para iPhone e iPod Touch, sempre com visual limpo.
As tablaturas de guitarra, apesar de bastante úteis para ensinar as notas de uma música, normalmente são limitadas, quando se precisa saber mais sobre o ritmo e duração da música. Descrevendo-se como um “tocador de tablaturas para violão”, o Songsterr inclui também auxílio para quem toca baixo e bateria, e divide suas canções por grau de dificuldade, ainda que seja possível procurá-las por artista ou título. Disponível também como aplicativo do iPhone, o site oferece inúmeras opções, como a de alterar a velocidade ou o tom dos acordes, algumas delas limitadas a assinantes do serviço.
O financiamento coletivo já é uma febre na internet, indo de sites de descontos a histórias sobre obras feitas com adiantamento do público. O Catarse tem a proposta de ser um local de divulgação desses projetos, selecionando boas propostas para chamar a atenção de possíveis consumidores/ patrocinadores. O site avisa: não quer projetos de caridade ou vinculados a empresas, e todos os inscritos devem oferecer alguma “recompensa”, ou seja, algum benefício para quem investiu inicialmente, que varia de acordo com o valor.
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blogs cuLturA blogdoims.com.br
Conhecido por seu representativo acervo de cultura e história, o Instituto Moreira Salles criou um blog com dicas de bons sites e comentários sobre pinturas e fotografias, além da troca pública de cartas entre o escritor Daniel Galera e o editor André Conti.
LiterAturA abreparentese.com
eStAtÍSticAS e AMiZAdeS Hunch.com filtra gostos e comportamentos, estabelecendo vínculos entre usuários, a partir de afinidades pessoais hunch.com
você é uma pessoa Mac ou PC? Prefere Vespa ou Harley Davidson? Coca ou Pepsi?
Respondendo às perguntas lançadas no Hunch.com, você pode ser levado a conhecer alguém que tenha os mesmos gostos, ou excentricidades. O sistema dessa rede social, mais detalhista do que o Facebook, identifica o usuário e, à medida que é usado, lança questões mais específicas, até indicar “amigos digitais em potencial”. Criado por Caterina Fake, uma das cofundadoras do site colaborativo visual Flickr, o Hunch existe há apenas um ano e meio, tendo somado mais de um milhão de visitas desde então. Jimmy Whales, o Mr. Wikipedia, não perdeu tempo e já anunciou sua entrada no time de conselheiros do Hunch. O modelo de funcionamento do mesmo prenuncia a ascensão da web semântica, em que as máquinas começam a “ler” informações e “dialogar” com o usuário. Quem interpreta bem esse processo é o cofundador da Apple, Stephen Wozniak. Em recente passagem pelo Brasil, o engenheiro de computação norte-americano concedeu entrevista ao blogueiro Alexandre Matias, do trabalhosujo.com.br, em que apontou ser essa uma nova espécie de fidelidade canina. Para Wozniak, em menos de um século, os computadores se tornarão nossos “melhores amigos”. Hoje, isso já soa evidente, e pode ser experimentado no Hunch. Duvida? Faça o login. tHiaGo LinS
O jornalista Breno Fernandes é o nome por trás do Abre parêntese, voltado para a literatura. Além de resenhas, principalmente de autores nacionais, há um bom arquivo de entrevistas.
teAtro travessiasculturais.blogspot.com
O Travessias culturais, mantido por Luciana Eastwood Romagnolli e Annalice Del Vecchi, é um blog curitibano que acompanha o cenário local, mas também traz entrevistas e matérias de abrangência nacional.
QuAdrinHoS julietaarroquy.blogspot.com
A quadrinista argentina Julieta Arroquy publica no seu blog desenhos e tiras feitos com seu traço delicado e simples, mesclando humor, reflexões pessoais e uma abordagem que ela mesma descreve como feminina.
sites sobre
celebridades NAMOROS
FOFOCAS
VENENO
whodatedwho.com
perezhilton.com
katylene.mtv.uol.com.br
Para quem quer saber quem já namorou com Mick Jagger – e a lista é longa –, o Who dated who mostra o histórico dos relacionamentos entre celebridades.
Com o intuito de ironizar as celebridades de Hollywood, o Perez Hilton é um dos blogs mais famosos por seus polêmicos boatos, sendo alvo de processos judiciais.
Katylene Beezmarcky é a personagem fictícia que alimenta, com muita afetação e veneno, o blog, que conta com notícias sobre celebridades brasileiras e internacionais.
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Bicicleta Sem Freio
HEDONISMO VISUAL TEXTO Thiago Lins
Se você já esteve no festival Abril Pro Rock, no Recife, conhece a arte do Bicicleta Sem Freio.
Se já esteve no Goiânia Noise ou em algum evento do atuante coletivo de iniciativas culturais Fora do Eixo, também conhece o trabalho de Renato Reno, Douglas de Castro e Victor Rocha. Mas a rock art do Bicicleta Sem Freio, que os rapazes gostam de resumir no slogan “Muito fetiche e belas mulheres”, já rompeu as barreiras do instável circuito alternativo. Gigantes corporativos como Sony, Nike e Converse não resistiram ao hedonismo que o coletivo estampa em seus trabalhos. Os três goianos se conheceram em 2003, na Faculdade de Artes Visuais da UFG. Organizaram o grupo, dois anos depois, quando estiveram reunidos num congresso estudantil, e hoje fazem parte de um “estúdio de criação focado em animação e ilustração”, segundo Renato Reno. Ele, Victor e Douglas não têm um modo de operar pré-estabelecido. “O importante é sair bem-feito e com nossa identidade, depois de muita conversa fiada, rabiscos e mesa de luz”, detalha Reno. Assim, os meninos soltam suas cores num improviso: é jazz gráfico. Ou rock gráfico. É que dois terços do coletivo (Douglas e Victor) ainda arranjam tempo para integrar a Black Drawing Chalks, banda que já provou seu poder de fogo no circuito independente nacional e, mais recentemente, tem se arriscado no exterior, versando sobre “tudo o que importa”,
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Página anterior 1 CIRCO
As mulheres predominam no mundo hedonista retratado pelo trio
Nestas páginas 2 el club
Ilustração criada para a boate goiana homônima
Noitada monstrO 3 Cartaz foi o primeiro desenho feito em conjunto pelos artistas
4 Burlesque A pin-up foi desenhada para um estúdio de tatuagem goiano PSICODÉLICO 5 Trabalho do BSF que teve mais visualizações no Flickr
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na opinião deles: cerveja e mulheres. A temática explorada pelos “gizes negros para desenho” converge com o pequeno mundo de prazer que o BSF costuma retratar. Não por acaso, o trio concebeu a animação de My favourite way (música de trabalho do segundo disco da Black Drawing Chalks), clipe em parceria com o diretor Marck Al, que rendeu uma indicação no Video Music Brasil 2009, a tradicional premiação da MTV. O clipe, que somou mais de 165 mil exibições no Youtube, é um desfile de clichês picantes, com muitas mulheres e pouca roupa. Os artistas ilustram não apenas as capas de CDs da Black Drawing Chalks, mas também as dos discos de bandas da cena independente nacional, como
AMP e Macaco Bong. Tudo com a identidade do coletivo: cores berrantes e os mencionados objetos de desejo, enquadrados em primeiro plano, sugerindo todo tipo de pecado – em excesso cavalar, como reza a cartilha do rock. Alguns desenhos chegam a indicar sadomasoquismo e não faltam olheiras, pupilas dilatadas e traços que remetem à pop art, a filmes B e quadrinhos. Os integrantes, inclusive, já fizeram tabelinha com Rafael Grampá, autor da ultraviolenta HQ Mesmo delivery e ganhador do Eisner Award (importante prêmio do universo HQ) de 2008, conquistado com a coletânea 5, da qual é coautor. Mestres dos quadrinhos underground, como Robert Crumb e Charles Burns, são influências
6 mqn Ilustração sobre foto para a capa do vinil da banda goiana BICICLETA SEM FREIO 7 Cartaz levou o maior lance em leilão do N Design, evento nacional e estudantil da área
decisivas para o Bicicleta Sem Freio. Quando os artistas conseguem deixar um pouco de lado suas sinuosas mulheres, traçam quadros claramente inspirados nos moldes da produção desses artistas, como a sujeira tão familiar à arte de Crumb. Em meio às vertentes das artes visuais, Renato Reno diz que o foco do trio é desenhar cartazes de pequenos eventos e capas de discos, apesar de vir chamando a atenção de grandes empresas.
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HALLINA BELTRÃO
coM o cARiMBo DA nASA
Maldição do oscar As atrizes Nicole Kidman, Michelle Williams, Jennifer Lawrence, Annette Bening e Natalie Portman, concorrentes ao Oscar de Melhor Atriz de 2011, cientes ou não, foram candidatas a vítimas de uma maldição que ronda a premiação desde os seus primórdios. De acordo com uma pesquisa da Universidade de Toronto e da Carnegie Mellon, as vencedoras dessa categoria estão sujeitas a uma maior chance de se divorciarem mais cedo. Que o digam Joan Crawford, Bette Davis, Halle Berry, Kate Winslet, Hillary Swank, Reese Witherspoon e, mais recentemente, Sandra Bullock – esta, uma semana após conquistar a estatueta em 2010, voltou a ser assunto na imprensa, protagonizando a rumorosa separação do infiel Jesse James. O estudo analisou a vida conjugal de 751 indicados ao Oscar de Melhor Ator e Atriz entre 1936 e 2010. Os resultados mostram que as agraciadas com o prêmio têm uma probabilidade 63% maior de terminar o relacionamento amoroso muito antes do que as não contempladas. A média de duração do casamento das “oscarizadas” é de 4,3 anos, bem menor do que a média de 9,5 anos para as não vencedoras. No entanto, a diferença entre os ganhadores (média de 11,97 anos) e os perdedores da categoria de Melhor Ator (média de 12,66) não é significante. DÉBOra NaSCImENTO
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a FrasE
Podíamos jurar que a Nasa tinha mais o que fazer do que se preocupar com filmes produzidos por Hollywood. No entanto, em janeiro deste ano, a agência espacial norteamericana realizou uma conferência para avaliar a cinematografia de ficção científica produzida nos EUA e eleger as produções mais absurdas e as mais plausíveis. Da primeira lista, destacam-se 2012 (2009), cuja repercussão fez com que o órgão elaborasse um site explicando que a teoria abordada na obra era equivocada. Os aprovados foram: Gattaca – Experiência genética (1997), Contato (1997), Metrópolis (1927), O dia em que a Terra parou (1951), A mulher na Lua (1929), O monstro do Ártico (1951) e Jurassic Park – O parque dos dinossauros (1993). (DN)
Balaio BieBeR e oZZY?!
“o que se leva desta vida é a vida que a gente leva.”
Ozzy Osbourne e Justin Bieber estrelam juntos a nova campanha da empresa norte-americana BestBuy. Isso, depois do ex-Black Sabbath ter mandado um sonoro “Who the f#*$ is Justin Bieber?” durante uma entrevista, no talk-show de Mark Hoppus, do grupo Blink 182. Ozzy protagoniza um documentário dirigido por seu filho, que pretende provar que o pai “não é um grande idiota”. Há rumores de que Bieber recebeu 1 milhão de verdinhas pela campanha. Caso os cachês sejam iguais, Ozzy Osbourne não terá mais o que provar com o documentário a seu respeito. (Thiago Lins)
Aparício torelly
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A GRÉCIA NO RECIFE Ainda mergulhada em um radical plano de austeridade econômica, que já resultou em greve geral e na morte de várias pessoas, é difícil para quem vê a Grécia, hoje, imaginar que ela foi uma das mais influentes civilizações da História, impondo sua cultura até mesmo sobre os povos que a venceram militarmente, como Roma. Esse episódio levou o poeta romano Horácio a dizer que, mesmo vencida, a Grécia apoderou-se do vencedor. No Recife, entre as mais conhecidas expressões da arte greco-romana estão as quatro estátuas que enfeitam as cabeceiras da ponte Maurício de Nassau, que liga o Centro à área mais antiga da cidade. Construídas quando a capital pernambucana, devido ao incremento da economia açucareira, vivia sua belle époque, representam as deusas do comércio, da justiça, da cultura e da lavoura. (Gilson Oliveira)
criaturas
ACABEM COM O GLEE A exemplo de muitos telespectadores, a banda Kings of Leon não aguenta mais o seriado Glee. O quarteto americano não liberou suas faixas para uso na série adolescente, o que rendeu xingamentos de Ryan Murphy, criador do programa musical, no Twitter. O baterista Nathan Followil sugeriu que Murphy “comprasse um sutiã e fizesse as unhas”. Homossexual bem-resolvido, Murphy conseguiu levar o comentário maldoso na esportiva: “Eu adoraria sentar com um membro do Kings of Leon”. (TL)
PAGODE REVIVAL A comparação da foto acima dá o tom exagerado do atual revival do pagode do anos 1990 na internet. Têm surgido, desde 2009, blogs homenageando e ironizando o estilo, como o pioneiro Pagodados, que transforma em estatísticas as letras mais conhecidas do ritmo, e o inusitado Pagode – The gathering, que junta o RPG de cartas Magic com figuras e músicas do estilo. O principal indício de que, em 2011, o gênero volta com tudo para a rede, no entanto, é o retorno do Pagodecast, programa de rádio gravado na internet, mantido pelo blogueiro Chico Barney. Nas seleções comentadas de músicas, ele argumenta que o pagode é uma forma de explicar o mundo. E a relação do ritmo com os Beatles não está só no cartaz acima: para os quase 500 membros de uma comunidade do Orkut, o cantor Belo, ex-vocalista da banda Soweto, é simplesmente a versão brasileira de John Lennon. (Diogo Guedes)
Tennessee Williams Por Victor Leguy
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PATRIMÔNIO E se não dermos valor ao ornamento? Os acervos de azulejaria pernambucana, tradição herdada dos antepassados ibéricos, estão relegados ao abandono, quando não, depredados e saqueados, o que os coloca em vias de extinção texto Danielle Romani Fotos Roberta Guimarães
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A prática de revestir fachadas e
interiores de prédios com azulejos foi herdada dos nossos antepassados ibéricos, e disseminada por várias cidades brasileiras. Importantes centros econômicos e políticos do Brasil Colônia e do Império, o Recife e Olinda se destacaram no uso dessa técnica secular, que até hoje pode ser admirada em moradias, conventos e igrejas locais. Mostrar toda a complexidade, beleza e multiplicidade dos padrões e tipos de azulejaria – a civil do século 19 e a religiosa dos séculos 17 e 18 – era a inspiração inicial desta matéria. Nosso ponto de partida foi procurar a arquiteta Sylvia Tigre de Hollanda Cavalcanti, especialista em patrimônio
histórico e autora de dois livros que são referência na área: O azulejo na arquitetura civil de Pernambuco, século 19, publicado em 2002 e estruturado a partir de levantamento do pesquisador Antônio de Menezes e Cruz; e O azulejo na arquitetura religiosa de Pernambuco, séculos 17 e 18, editado em 2006. Durante o encontro com Tigre, a pesquisadora alertou que grande parte do acervo civil pernambucano sofre por conta do abandono dos proprietários, roubo dos exemplares e descaso público, e que está em vias de extinção. Ela não exagerou. Com base nas duas publicações da especialista, traçamos roteiros no Recife e em Olinda, as duas cidades com a maior quantidade de
casas azulejadas, e nos deparamos com a depredação do conjunto. O que seria uma reportagem de exaltação à beleza de um ornamento típico de nossas cidades acabou transformando-se numa investigação sobre o desmonte de um patrimônio arquitetônico estadual.
BAIRROS CENTRAIS
O Bairro da Boa Vista dispõe do maior conjunto da arquitetura civil pernambucana, reunindo, atualmente, mais de três dezenas de imóveis com revestimento do tipo, cuja expressividade é comparada ao acervo de São Luiz do Maranhão. O que não significa que ele esteja garantido. A Boa Vista, na verdade,
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Página anterior 1 ABANDONO
esgaste marca D a fachada de residência azulejada na Rua Velha
Nestas páginas 2 restauradO
as Graças, o N prédio da Academia Pernambucana de Letras teve o revestimento recuperado
BOA VISTA 3 Dona Irene Nunes (D) foi vítima de roubo dos azulejos franceses do século 19 de sua residência
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apresenta um conjunto de ruínas, de fragmentos e resquícios do que significou a tradição da arquitetura civil do século 19. Poucas casas se mantêm íntegras e conservadas. Nas ruas Barão de São Borja e da Soledade, que possuem uma das maiores concentrações azulejares da cidade, é possível conferir mais de uma dezena de residências com esse revestimento, mas apenas duas estão em bom estado. O restante, inclusive numa escola pública, encontra-se em péssimas condições: com as fachadas malcuidadas, em ruínas ou descaracterizadas. Na Rua de Santa Cruz, que abriga outro importante conjunto, a situação é quase idêntica, com um agravante:
lá, uma das fachadas recebeu pintura sobre as peças cerâmicas. Em quase todo o bairro, o casario se mantém “em pé” com dificuldade, e os proprietários, quando presentes, argumentam que não têm condições de arcar com os reparos e a manutenção. Dono de uma casa revestida com delicada azulejaria francesa, José Ermídio, 90 anos, há três décadas no local, aflige-se para preservar o prédio. “As autoridades cobram, mas não nos ajudam em nada. O IPTU é alto, por um prédio caindo aos pedaços. Não temos qualquer incentivo, só penalidades”, reclama o morador. O furto de peças é outra preocupação constante. Irene Nunes
de Souza, conhecida como Maruza, 80 anos, moradora da área há mais de 50, foi vítima de uma ocorrência dessa natureza. Conta que, um dia, ao acordar, constatou que metade dos seus belos e raros azulejos franceses do século 19 haviam sido retirados durante a madrugada. “Levei um susto enorme”, diz a proprietária, que encomendou a especialistas a reprodução do padrão francês, mas teme ser novamente furtada. O saque às casas do centro é uma ameaça constante, principalmente devido à impunidade. Basta o exemplo da fachada de uma residência na Rua dos Coelhos. Quem passa pode observar, no cimento cru, apenas as marcas das peças seculares
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portuguesas, descritas no livro de Sylvia Tigre como dotadas de um padrão diferenciado. A situação de abandono não é diferente nos bairros de Santo Antônio e São José, que sofrem, principalmente, pela descaracterização promovida por estabelecimentos comerciais e pela favelização local. Já no Bairro do Recife, a degradação não é constatada por um motivo: dos quatro imóveis listados em um inventário realizado na década de 1950, sobrou apenas um com fachada azulejada, em
bom estado, na Rua do Bom Jesus. O desmonte do acervo azulejar do centro da cidade, na opinião do coordenador-geral do Laboratório de Pesquisa, Conservação e Restauração de Documentos e Obras de Arte da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Antônio Montenegro, reflete a degradação total da área. “Os bairros centrais do Recife formam um maravilhoso conjunto, no qual foram combinados aspectos naturais e culturais com rara felicidade. A ação de desmonte não se restringe aos
azulejos, mas a todos os componentes arquitetônicos e estilísticos, pois o centro está totalmente degradado, entregue à própria sorte: na ocupação dos seus espaços de modo indevido, na completa desorganização da circulação de pessoas e de veículos, na sujeira, na falta de saneamento e na insegurança”, aponta. Ele acredita que, a curto prazo, será difícil modificar a realidade. “Não é tarefa fácil, requer ação incisiva do poder público, em suas várias instâncias, que combine não só obras
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4 raridade Na Capela de Nossa Senhora de Piedade, estão faltando 26 peças que compõem o altar e seus mosaicos laterais de temática incomum
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE, o arquiteto Luiz Amorim afirma que a favelização da área é o cerne do problema. “O fenômeno de perda de integridade do centro da cidade é complexo, e envolve, principalmente, o deslocamento do capital imobiliário para outras áreas, o que abriu espaço para ocupação de uma população de mais baixa renda nas localidades desvalorizadas”, pondera.
bairros nobres
físicas e imediatas – de restauração, reconstrução e retomada dos lugares – mas, talvez, principalmente, de ações civilizatórias de educação, de presença das instituições cumprindo seus diversos papéis. Nesse processo, acredito que o patrimônio arquitetônico – pelos seus significados históricos, políticos, culturais – possa servir de ponto de partida e de apoio”, sugere Montenegro. Um dos agentes da degradação da zona central foi a desvalorização imobiliária. Vice-coordenador do
Suas afirmações são pertinentes, pois o quadro muda consideravelmente quando se visita os chamados bairros residenciais nobres, onde os moradores têm maior padrão aquisitivo, e a valorização imobiliária é uma realidade. Mas, mesmo neles, questiona-se a utilização dada aos antigos prédios. Em Casa Forte, Monteiro e Apipucos, com exceção do prédio do Instituto de Pesquisas Sociais da Fundaj e de duas residências, que mantêm todas as características preservadas, a maioria dos imóveis com fachada azulejar virou salão de festa de arranha-céus luxuosos. O que significa dizer que lhes foi reduzido o sentido espacial e a grandiosidade. Na Madalena, a situação é diversa, os imóveis, três no total, estão em bom estado e, apesar da função comercial, suas características foram totalmente preservadas. O mesmo acontece nas Graças, onde os azulejos que enfeitam a fachada do prédio da Academia Pernambucana de Letras receberam vida nova, depois de recente restauro. Em Olinda, onde se contabilizam cerca de 15 casas e sobrados do tipo, a situação é de menor decadência. Mas não é ideal, principalmente no que diz respeito aos prédios públicos, como a Câmara Municipal e a Secretaria de Educação, que se encontram sem manutenção e com falta de peças. Lamentável, principalmente por se tratar de uma cidade-patrimônio. A situação do acervo azulejar religioso é menos problemática, apesar dos conjuntos encontrados em vários conventos e igrejas locais apresentarem sinais de deterioração, a maioria deles por falta de
manutenção adequada ou exposição a condições ambientais desfavoráveis. Exemplo disso pode ser visto no conjunto formado pelo Convento de São Francisco e Igreja de Nossa Senhora das Neves, ambos localizados na ladeira de São Francisco, no Carmo. A preciosa azulejaria local, encontrada no claustro, sacristia e galerias, além da nave da igreja, apresenta evidentes sinais de corrosão devido à ação do tempo e da maresia, segundo afirma a mestre em Arqueologia e Preservação de
Os bairros de Santo Antônio e São José sofrem descaracterização promovida pelo comércio e favelização Patrimônio, Suely Cisneiros, que vem mapeando todo o acervo azulejar religioso pernambucano. Foi durante esse trabalho que Suely verificou desgastes na fachada da Igreja Nossa Senhora dos Prazeres, no Monte dos Guararapes, cujos azulejos externos, datados do século 17, sofrem com a ação das intempéries; também investigou as condições do acervo encontrado na Capela de Nossa Senhora de Piedade, e constatou que, neste caso, o triplo conjunto está em boa situação. O problema é a ausência de 26 peças que compõem o altar e seus mosaicos laterais.
URGÊNCIA
Mesmo carentes de reparos e manutenção, as igrejas são um problema menor na conservação do patrimônio azulejar. “Por terem seu acervo abrigado, todas são passíveis de restauração”, explica Roberto Carneiro, restaurador e técnico em Preservação e Tombamento da Fundarpe. Especialista na área, há três décadas, Roberto afirma que até mesmo o acervo civil dos bairros centrais do Recife – cuja exposição às intempéries e ao intenso fluxo de carros são outros grandes problemas, além dos já mencionados – pode
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con especial ti nen te 5 interior Há desgastes nos azulejos, datados do século 17, da Igreja Nossa Senhora dos Prazeres, no Monte dos Guararapes
“A depredação não é apenas um problema do poder público, e, sim, da cidade como um todo” Emanuella Ribeiro ser restaurado. Mas alerta: a ação de resgate tem que ser imediata. Diante da afirmação do técnico, a indagação surge naturalmente: o que é preciso, então, para que a depredação seja freada e ações emergenciais ativadas? Ao que tudo indica, o problema se concentra na falta de uma política nacional, que começa com a ausência de um orçamento adequado para os organismos responsáveis pela preservação poderem atuar; por descaso dos proprietários e pela ausência de políticas efetivas, que consigam driblar entraves. Leis, certamente, não faltam. São diversas, em nível federal, estadual e municipal. Só para citar um exemplo, a Constituição Federal, no seu artigo 216, inciso primeiro, é bem clara: “o poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. No âmbito municipal, o casario histórico e seus adereços, a exemplo dos azulejos, está protegido pelas Zonas Especiais de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural, as
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ZEPH, segundo a Lei 16.176, de 1996, que regulamenta o uso e a ocupação do solo no Recife, e que estabelece zonas específicas, de acordo com as características de cada localidade. Os Bairros de São José, Santo Antônio e da Boa Vista estão inclusos nessas áreas de preservação, e deveriam ter suas características rigorosamente mantidas pelos proprietários, a partir de fiscalização dos órgãos municipais. A Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural (DPPC) da Prefeitura do Recife é a responsável
pela área. Planeja, analisa e fiscaliza, mas não tem poder de autuar, ou seja, não tem poder policial de multar nem de punir quem desrespeita a lei – o que, de certa forma, lhe tira a agilidade para coibir infrações. Essa função, atualmente, é cumprida pela Diretoria de Controle Urbano (Dircon), responsável pelas autuações, a partir de denúncias da população ou da própria DPPC. “Notificamos o proprietário para que resolva a situação. Caso isso não aconteça, pode-se chegar até
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a ação judicial. A multa, nesses casos, varia entre 10% até 50% do valor venal do imóvel. Esse tipo de situação representa em torno de 1% das multas aplicadas pela 1ª Regional nas áreas de São José, Santo Antônio e da Boa Vista”, informou a assessoria da Dircon. Dezenas de denúncias são feitas mensalmente, mas, em muitos casos, quando a Diretoria chega ao local, o imóvel já foi destruído ou descaracterizado. “É uma corrida contra o tempo, na qual quem sempre perde é o
patrimônio. As coisas acontecem numa velocidade tão impressionante, que, na maioria das vezes, as autoridades responsáveis só têm tempo de constatar o desmonte”, afirma Antônio Montenegro, da Fundaj. Chefe da Divisão do Parque Histórico Nacional dos Guararapes pelo Instituto do Patrimônio Artistítico e Histórico Nacional (Iphan), a arquiteta Carmen Muraro conta que vem, há anos, lutando para resguardar e preservar os ornamentos azulejares. Visitou várias
cidades pernambucanas para coibir desmontes e estudar exemplares, fez um sem-número de denúncias à Polícia Federal, muitas adiantadas na esfera judicial; participa da equipe que inventaria as fachadas azulejares na cidade, e reconhece que é difícil brigar contra proprietários que não valorizam o patrimônio, acreditando que cabe apenas ao Estado o papel de preservação. “Não se pode esperar que somente o governo aja. O que estendo às igrejas, cujas Ordens são proprietárias, e também têm que assumir responsabilidades pelos monumentos”, ponderou Carmen. A museóloga Emanuella Ribeiro, especialista em Patrimônio e Legislação, defende a cobrança de responsabilidade do proprietário. “A depredação não é apenas um problema do poder público, e, sim, da cidade como um todo, pois nada adiantaria investir recursos públicos (nosso dinheiro, portanto) em imóveis particulares. Com certeza, com o tempo tudo estaria de volta à mesma situação.” Mesmo concordando com a responsabilidade do proprietário, o arquiteto Luiz Amorim é enfático ao afirmar que as autoridades devem assumir o processo, em especial, na instância municipal. “A salvaguarda dos ambientes identitários da nossa cidade é de responsabilidade do município, tanto nas ações institucionais – sejam elas públicas ou privadas –, ou mesmo individuais, como numa simples denúncia. O gestor público é o responsável pelo planejamento e pela coordenação das ações de proteção. A perda desse patrimônio azulejar, por exemplo, é um sinal da pequena importância que as últimas administrações têm dado ao assunto”, critica o arquiteto. Ele chega a afirmar que um dos problemas principais está no foco de preocupação da atual gestão municipal, que dá mais prioridade para festas e eventos, do que à preservação do casario. “O patrimônio imaterial é a nova joia da coroa da cultura. O grande erro é considerá-lo como outro tipo de patrimônio, quando os patrimônios imaterial e material estão imbricados. Não é possível dissociá-los”, alerta Amorim.
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HISTÓRIA Um elo entre a colônia e a metrópole lusitana
O azulejo firmou-se como um elemento característico da arquitetura dos séculos 17 a 19, tornando-se adorno marcante não só nas fachadas, como no interior de casas e igrejas
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1 figurativo Raro painel com estampa silvestre, encontrado na Igreja Nossa Senhora de Piedade
O azulejo, do árabe al zuleyche, é
usado como elemento decorativo desde os tempos mais remotos da civilização. Começou a ser largamente utilizado na Península Ibérica por volta dos anos 1200, e se tornaria, nos séculos seguintes, um elemento especial no revestimento de igrejas e moradias brasileiras. “O azulejo foi um importante elo entre a colônia e a metrópole”, explica a arquiteta e pesquisadora Sylvia Tigre. Bahia e Pernambuco detêm o maior, e mais belo, acervo da azulejaria religiosa nacional. “Os baianos se beneficiaram do fato de terem sido capital colonial. Por aqui, os fatores social, político e geográfico determinaram a disseminação do azulejo. Além disso, depois da expulsão dos holandeses, em 1654, o nosso estado assistiu a um natural sentimento de ufanismo, além do ressurgimento e reafirmação da fé católica. Tal fato, associado aos enormes lucros financeiros proporcionados pelo açúcar, contribuíram para que as Ordens Religiosas recebessem grandes doações financeiras e heranças. E os recursos refletiram-se no embelezamento de nossas igrejas”, conta Sylvia. Por esses motivos, os prédios religiosos de várias localidades pernambucanas guardam exemplares do que há de mais precioso no país, a exemplo do arco-cruzeiro em azulejos da Igreja de Nossa Senhora do Amparo, em Olinda, provavelmente aplicados em 1630; ou das peças encontradas no atual Seminário de Olinda, que datam por volta de 1659. Outro destaque é a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, localizada no Monte dos Guararapes, forrada internamente por azulejos azuis e brancos que formam um “tapete”, considerado pelo especialista português Santos Simões como o conjunto mais importante de azulejaria sacra portuguesa, sem paralelo mesmo em Portugal. “Ele a descreve como o mais importante conjunto de que teve conhecimento em décadas de pesquisa”, aponta Sylvia Tigre. Igualmente rara é a Igreja Nossa Senhora da Piedade, no bairro homônimo da cidade de Jaboatão dos Guararapes, datada do final do século 17. Lá, pode ser encontrado o único altar azulejado do Brasil. O conjunto azulejar
diversidade 2 Entre os padrões remanescentes, há os temas marinhos e da fauna, dos séculos 17 e 18, e os florais do acervo português e francês, do século 19
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também ostenta um desenho inusitado, com padrões silvestres, com aves, flores, pássaros e animais de vários portes. Outras preciosidades são os painéis encontrados no Convento de Santo Antônio, na Rua do Imperador, centro do Recife, cuja procedência supõese flamenga. “São figuras avulsas, bem representativas da temática holandesa. Existe uma hipótese de que foram trazidos do Palácio de Friburgo”, afirma Sylvia Tigre.
cenas de caça
Ao lado desse convento, a Capela Dourada guarda outro tesouro: lá se encontram três painéis, contendo cenas de caça a coelhos, javalis, leopardos e aves – datados de meados de 1703. No maior deles, outra raridade: a assinatura do artista que executou a obra, o que só pode ser visto em mais duas peças brasileiras, ambas localizadas na Bahia. A vinda da família real para o Brasil e da Missão Artística Francesa, trazida por Dom João VI, iniciou a divulgação local do Neoclassicismo. A presença da Academia de Belas Artes, no Rio
de Janeiro, favoreceu a implantação de materiais refinados na construção e o aperfeiçoamento de técnicas dos países europeus nos trópicos. O azulejo acabou firmando-se como uma característica da arquitetura imperial, tornando-se um elemento essencial não só nas fachadas, como no interior de casas e igrejas. Em Pernambuco, na terceira década do século 19, a boa fase econômica vivida pelos produtores de cana-deaçúcar e a vocação local de aderir às modas da corte fizeram com que a cidade começasse a se enfeitar de azulejos. O Recife não seria a única. Outras capitais, como Belém, São Luís, Rio de Janeiro e Porto Alegre também utilizaram largamente a técnica, por motivos semelhantes. “Além do aspecto decorativo de embelezar o imóvel, o azulejo tinha ainda a função de proteger contra a umidade. Portanto, as cidades litorâneas, ou as situadas às margens de rios, se valeram amplamente da azulejaria”, diz a arquiteta Sylvia Tigre. No Recife, em especial, a azulejaria ganhou porte diferenciado, segundo
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con especial ti nen te 3 modernista Painel de Petrônio Cunha Lima pode ser visto na Praça da República, no Recife
observa o arquiteto Luiz Amorim. “A nossa identidade reside na conjugação entre o nosso sobrado magro e alto com a nova tradição azulejar, como nos imóveis da Rua do Imperador, em consonância com a modernidade dos sobrados neoclássicos ricamente decorados com grandes superfícies azulejadas.” Na capital pernambucana, registros de jornais da época atestam que as primeiras construções civis se iniciaram por volta de 1837. Entre 1840 e 1890, a técnica espalhou-se pela cidade. “A partir de 1860, com a importação em grande quantidade de azulejos franceses, os portugueses perderam o exclusivismo inicial e os padrões começaram a diversificar. Em muito menor escala vieram também azulejos de outras procedências, como os ingleses, hoje
A arquitetura azulejar recifense se utilizou de padrões franceses e portugueses, em residências e monumentos públicos praticamente inexistentes”, explica Roberto Carneiro, restaurador e técnico da Fundarpe. Até o começo do século 20, todos os azulejos eram importados, pois inexistia uma indústria nacional. A diferença entre os azulejos franceses e portugueses, segundo Roberto, dá-se, principalmente, nas dimensões. Os lusos são maiores, com dimensões entre 13,5 x 13,5 e 14,5 x 14,5, enquanto os francos são menores, entre 10,5cm a 11,5 cm de dimensão. Também podem ser percebidas diferenças quanto aos padrões. “Tanto um quanto o outro apresentam a modalidade azul e branco e a policrômica. O azul e branco português, entretanto, tem o desenho mais nítido. Além disso, o francês contém o padrão na própria peça, enquanto, no português, é comum o desdobramento do mesmo em módulos de dois por dois (quatro peças compõem o desenho) e quatro por quatro (oito
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peças formam o desenho completo)”, explica Sylvia Tigre, que observa ainda: “Nos portugueses, os padrões têm composições que sempre privilegiam a diagonal, e, nos franceses, os desenhos são sempre delicados: quer em flores, pontos ou guirlandas”. O uso da azulejaria na arquitetura recifense foi profícuo até o começo do século passado. Na primeira década do século 20, porém, um decreto municipal baniu os elementos das fachadas da cidade. A Lei 546, de 25 de fevereiro de 1909, proibia “o emprego de ladrilho vidrado, chamado de azulejo, na fachada dos prédios que se construírem ou reconstruírem na cidade”. Os motivos da restrição, diz Sylvia, são desconhecidos. Mas, como
ela mesma ressalta, a lei acabou sendo inútil, já que a azulejaria mostravase incompatível com o estilo eclético, então em moda. Os azulejos só foram revalorizados com o Modernismo. Belos exemplares do século 19 são o solar da Rua Benfica, que apresenta fachada original de azulejos portugueses no estilo holandês. E uma casa localizada na Avenida Apipucos, que tem como atrativo peças da azulejaria portuguesa em relevo. Outro conjunto belíssimo, mas hoje deteriorado, está na Travessa do Falcão, no Bairro de São José. Lá, pode-se constatar que, mesmo alvo de descaracterização, os azulejos ainda se destacam, evidenciado a urgente necessidade de recuperar e resgatar tão valioso acervo. DANIELLE ROMANI
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Artigo
Luiz Amorim A arte azulejar moderna e o Recife A arte azulejar tem feito parte da
arquitetura da nossa cidade desde sempre, seja na forma de painéis artísticos dedicados a temas religiosos ou cívicos, seja na forma de tapetes formados por intricadas combinações de um ou mais padrões. Estão presentes nas naves das nossas igrejas, nos claustros dos nossos conventos e nas fachadas da arquitetura civil, dos imponentes solares oitocentistas da Madalena às modestas casas de porta e janela de São José e da Boa Vista. Também se faz presente em obras relevantes da onda historicista que varreu a cultura ocidental entre o século 19 e o primeiro quartel do século 20, como em exemplares neoclássicos e neocoloniais; mas é na arte e arquitetura modernas que a azulejaria adquire novo impulso. O conjunto azulejar modernista recifense é riquíssimo, com exemplares vinculados a diversos movimentos artísticos, do realismo socialista à arte concreta, revelando temas diversos, do puro engajamento social à revelação da paisagem natural do nordeste brasileiro. Delfim Amorim, arquiteto português, radicado no Recife em 1951, foi um dos responsáveis por alçar os tapetes azulejares modernos a uma nova escala de valores. Autor de inúmeros painéis, Amorim aprimorou sua arte ao longo de sua curta, mas profícua, trajetória profissional. Afirmava que a concepção de seus painéis azulejares se fundamentava na relação entre a obra e o observador, segundo distintas escalas de aproximação. A distância, o olho humano tende a perceber apenas a soma cromática das cores aplicadas. Ao se aproximar, é possível apreender o tapete, cujo motivo ou motivos-padrão serão identificados quando próximo ao painel.
Amorim procurou colapsar as três escalas, simplificando o motivopadrão, ampliando sua escala e vazando o motivo em fundo cromático escuro, para evitar que o fundo branco dilua as cores componentes, como acontece com o painel azulejar do edifício Acaiaca, na praia de Boa Viagem, sua primeira obra em larga escala e marco da azulejaria modernista brasileira. Os painéis projetados para os edifícios situados nas avenidas Conde da Boa Vista e Barão do Rio Branco, na Praça da Independência, e nas ruas Sete de Setembro e do Giriquiti, todos no centro do Recife, exemplificam seu desafio compositivo. Uma nova tradição azulejar se inaugura no Recife, portanto, e vários arquitetos com extensa atividade profissional no Nordeste desenharam tapetes azulejares para suas obras arquitetônicas, como Acácio Gil
A colaboração entre arquitetos e artistas plásticos resultou no vasto uso de azulejaria, entre 1950 e 1980 Borsoi, Geraldo Gomes da Silva e Hélvio Polito Lopes. A associação entre arquitetos e artistas plásticos também se faz presente. São exemplos notáveis o painel artístico de Abelardo da Hora para o Edifício Walfrido Antunes, projeto de Waldecy Pinto; o conjunto dedicado às Revoluções de 1817, 1824 e 1848 de Corbiniano Lins, na Praça de Santo Amaro; e a vasta obra de Francisco Brennand, do painel em cerâmica-pedra dedicado à Batalha dos Guararapes, em obra do arquiteto paulistano Álvaro Vital Brasil, à flora tropical retratada em larga escala na antiga loja Primavera, na Rua do Sol. Painéis de Athos Bulcão, colaborador de Oscar Niemeyer em suas obras em Brasília, revestem os equipamentos projetados por Armando de Holanda Cavalcanti para o Parque Histórico Nacional dos Guararapes.
Essa intensa colaboração entre arquitetos e artistas plásticos para a construção de uma obra arquitetônica integral, que incorpora em sua essência os bens artísticos azulejares, caracterizou uma vasta produção entre as décadas de 1950 e 1980. Nas décadas subsequentes percebe-se um declínio significativo. Alguns fatores podem ser destacados, como a exploração de novas composições arquitetônicas e a introdução de novos materiais e técnicas de construção. Em poucas palavras, houve uma mudança de gosto impulsionada pela indústria da construção civil. Porém, é exatamente nessas últimas décadas que a experiência recifense na arte azulejar moderna encontrou seu novo grande mestre: o arquiteto e artista plástico Petrônio Cunha Lima. Com ele, a azulejaria ganha nova dimensão artística pela introdução de intensa variação escalar de padrões, exploração de cores e suas variações tonais e uma rica aproximação com as artes gráficas. Recomenda-se conhecer, ao menos, três obras. Os painéis azulejares da Caixa Econômica Federal, na Praça da República, projeto do extinto J&P, e do Templo da Paróquia Anglicana do Bom Samaritano, em Boa Viagem, de Arquitetura 4, seguem a mesma ordem compositiva: fundo azul cobalto e motivos gráficos vazados. No primeiro, peças gráficas; no segundo, símbolos ricos à tradição cristã, como a pomba e o cálice, impressos em peças unitárias de azulejo, dispostas lado a lado para compor o conjunto. Já o belíssimo painel do Tribunal de Contas da União, projeto de Antônio Amaral, Claudia Charifker, Ana Amélia Oliveira e Tânia Schwambach, situado no Bairro de Santo Amaro, é de certa complexidade pela introdução da variação de escala dos motivos componentes, que promove uma profundidade ilusória. A essência da arte azulejar modernista é o seu caráter público – a cidade que a recebe se transforma em uma galeria de arte aberta, própria para a apreciação coletiva. A galeria recifense é das mais ricas que se conhecem. Livre-apreciar é só apreciar.
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HALLINA BELTRÃO
CON TI NEN TE#44
Peleja
A continuação de clássicos por outros escritores é uma fraude? Em 2009, o escritor sueco Fredrik Colting lançou o livro 60 anos depois: Do outro lado do campo de centeio, mostrando a trajetória adulta do personagem Holden Caulfield, o adolescente rebelde da obra O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger, lançada em 1951. Recebido como um desrespeito e não como uma homenagem ao autor da obra original, o novo livro gerou muita polêmica em torno da legalidade de se fazer releituras ou mesmo continuações de clássicos da literatura mundial.
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Israel Camargo
Claudia Dornbusch
Se levarmos em consideração a
definição a seguir, sim. Fraude, de acordo com alguns dos principais dicionários da língua portuguesa, significa “todo artifício empregado com o fim de enganar uma pessoa e causar-lhe prejuízo. A fraude traduz a intenção de procurar uma vantagem indevida, patrimonial ou não”. Professor de Pois bem, após a definição, podemos língua portuguesa e literatura nos remeter a quão prejudicial pode ser a continuação de clássicos por autores novos, ratificando que essa posição não emite, absolutamente, juízo de valor em relação à qualidade desse novo autor, ou seja, não estamos questionando se ele tem ou não a capacidade, propriamente dita, de dar continuidade a um clássico, mesmo porque seria leviano e relativamente inocente, mas, sim, o que uma nova interpretação causaria a esse clássico, enquanto conteúdo. Não poderíamos sequer imaginar uma continuação de Os lusíadas, que não fosse pelo próprio Camões. A começar pela época, um autor atual, por exemplo, cantaria bravamente, apaixonadamente os tão fortes e decididos e guerreiros versos dessa majestosa obra? Não, pois as grandes conquistas portuguesas, que ficaram num passado longínquo, não estariam na realidade do novo autor. Mas o que torna a questão mais polêmica e delicada ainda é, segundo a definição, existir a “intenção de procurar uma vantagem indevida”. Nessa passagem, temos a ideia contundente do provável prejuízo causado a outrem, que pode ser a memória do autor, ou o próprio leitor, que se entrega à obra, esperando encontrar nela algo que fosse o próprio autor dando continuidade. Mas devemos deixar claro que essa provável “fraude” nem sempre terá a intenção de prejudicar a memória do autor ou o leitor, até porque essa releitura ou reescrita pode acontecer também de forma ingênua, mais por vaidade do que por prejuízo, pois quem não gostaria de dar continuidade a um clássico e tentar ter seu nome na história da literatura? No entanto, a própria “seleção natural” dessa literatura dar-nos-á a resposta. É só imaginar como é difícil, agora, uma continuação de um Grande Sertão: Veredas, ou de um Dom Quixote, por exemplo. Como configurar-se-ia o típico e até personalíssimo vocabulário de Guimarães Rosa, na continuação de outra pessoa? Seria como perder todo um contexto histórico, social e, por que não dizer, emocional.
“Não poderíamos sequer imaginar uma continuação de Os lusíadas, que não fosse pelo próprio Camões”
Acredito que a continuação de um
original não seja uma fraude. Exemplos: o autor Fredrik Colting fez a aparente continuação da obra O apanhador no campo de centeio, de Salinger, de 1951. O novo autor deu à sua releitura o título 60 anos depois: Do outro lado do campo de centeio, em que o próprio Salinger vira personagem – há, portanto, referência Professora de clara ao original. literatura alemã da USP Soube-se, também, de pelo menos quatro continuações da obra inacabada de Thomas Mann, As confissões do impostor Felix Krull, desde os fins dos anos 1950. Os vários autores retomaram elementos da obra, que levou uma vida inteira para ser escrita e permaneceu inconclusa. A editora de Mann não gostou do fato, mas, em uma das continuações, apenas exigiu que tirasse o nome Krull. Desde que foi superado o debate em torno do original e da cópia, não podemos chamar de fraude algo que, hoje, em época de open access e literatura interativa, se tornou cotidiano. Creio ser útil mencionar aqui um texto dos anos 1930, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin, que me parece atualíssimo. O que é original no século 21? Quem define e estabelece os parâmetros do que tem qualidade, originalidade? O que é plágio num universo de livre acesso a virtualmente tudo? Às vezes, os grandes clássicos parecem ser intocáveis. É muito salutar que sejam relidos, desmontados, continuados, enfim: redescobertos. Justamente para motivarem o diálogo. Penso que o mais importante nesse debate seja o fato de que a obra “continuada” acabe por ser resgatada, voltando ao debate cultural. Isso é um grande mérito. Na história da literatura, as obras sempre dialogaram umas com as outras, inspirando-se mutuamente. Não entramos aqui no mérito da qualidade literária, o que seria outro debate. Diz Benjamin, no texto citado, que a obra de arte, a partir de sua reprodutibilidade, perdeu o seu status, passando a objeto de exposição. O caráter único de cada uma, ou seja, a sua aura – para usarmos um termo benjaminiano – depende de sua inserção em uma tradição. Para manter essa aura, a obra precisa estar associada a uma espécie de ritual. A partir do momento em que ela se massifica e perde a sua aura, entra na esfera do objeto de exposição – no mais amplo sentido da palavra. Ela é exposta e se expõe. Inclusive a releituras e continuações. E delas não se pode esquivar.
“Às vezes, os grandes clássicos parecem ser intocáveis. É muito salutar que sejam relidos, desmontados, continuados”
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MéXICO Um típico faroeste aos pés da Sierra Madre
Há 100 anos, o movimento libertário, encabeçado por Pancho Villa e Emiliano Zapata, promovia a ascensão de Francisco Madero, começando uma sucessão de eventos confusos e contrarrevolucionários texto Fernando Monteiro
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1 ícones Embora tenham se unido em torno da revolução, Pancho Villa e Emiliano Zapata (sentados, o segundo e o terceiro, da esquerda para a direita) vinham de motivações políticas diversas
Neste começo de ano, veio o
velho Egito exibir a sua face de revolta, afinal, contra o presidente Mubarak, um governante tão longevo quanto detestado. O noticiário sobre os distúrbios vitoriosos ao pé da esfinge – logo após a “revolução dos jasmins” na Tunísia – fez pensar no estopim aceso aos pés da Sierra Madre, há um século precisamente, quando também a China se levantou em armas contra o mandarinato. A mexicana foi uma revolução que ainda hoje evoca o clima de um western cheio de som e fúria – despontando em novembro de 1910 para, três meses depois, consolidar-se com a tomada da importante cidade de Juárez, decisiva na derrubada do ditador Porfírio Díaz. Logo
em seguida, o movimento libertário promoveria a ascensão ao poder de Francisco Madero, rico proprietário que empunhava bandeiras de justiça social no incendiado país dos astecas. Começava uma enfiada de acontecimentos confusos, surtos contrarrevolucionários e dissensões, inclusive no meio dos maderistas com interesses próprios de haciendados, camponeses, pequenos comerciantes e funcionários, idealistas românticos, liberais e bandoleiros convertidos à causa com euforia às vezes suspeitosa. Entre altos e baixos, caminharia assim a variegada humanidade dos revoltosos de sombrero, enquanto os chineses, no outro lado do planeta, decidiam pelo destino à parte de um imperador recluso numa “Cidade Proibida” em plena modernidade do século 20. Não é forçado aproximar tais cenários do que acontece hoje no Oriente Médio, sob o influxo internetiano – enquanto o míope Departamento de Estado americano não dá mostras de entender nada do que se passa em nações insatisfeitas por viver sob a meia-lua do obscurantismo. O “rastilho de gás” (como diria Lawrence da Arábia) do mundo agora virtual atinge a geopolítica de alguns regimes fechados, da Tunísia ao Iêmen, com uma arma letal: informação sem fronteiras. É a nova pólvora – velha invenção chinesa – capaz de se acender no ânimo dos revolucionários em busca da liberdade, conforme aconteceu no México profundo, há 100 anos.
“VIVA VILLA!”
A colorida Revolução mexicana não contou com perfis hieráticos como o do carismático líder da revolta chinesa (Sun Yat-Sem, 1866-1925), porém arregimentou homens tão díspares quanto empenhados em se lançar rumo ao futuro, nos trens de tropas animadamente seguidos pelos galopes de guerrilheiros. De norte a sul, nas planícies de Chihuahua a Morelos, os ginetes dos ventos de liberdade foram cavaleiros
velozes na ação – e na confusão – ideológica. Para muitos, o movimento pela reforma do mundo arcaico que imperava no México español teve como protagonista a falta de ideias claras, correndo na frente e atrás dos rebeldes. A “revolução” do ex-bandoleiro Francisco Villa não era a mesma do outro Francisco – o fazendeiro Ignacio Madero. Os argumentos ideológicos que atraíram o primeiro (simploriamente sacados do liberalismo burguês) despertavam a instintiva desconfiança de um Emiliano Zapata, naquele cenário que o filme de Eisenstein – Que viva México! – quis captar por inteiro. Para Villa, talvez fosse suficiente acenar com alternância no poder, rotatividade no executivo, eleições honestas, juízes independentes e algumas satisfações não só da sua vaidade de “general”. Emiliano, por sua vez, emergira de dramas mais tragicamente campesinos e exigia, antes do mais, uma ampla reforma agrária, seguida do atendimento “às mais justas aspirações do povo, plantadas as mais imperiosas necessidades sociais e propostas as
O movimento pela reforma do arcaísmo no México espanhol foi marcado por acontecimentos dissonantes mais importantes reformas econômicas e políticas, sem cuja implantação o país passará inevitavelmente ao abismo, deprimindo-se no caos da ignorância, da miséria e da escravidão”, segundo o semianalfabeto Zapata fez escrever por si. Também pouco letrado, Pancho havia sido ladrão de gado, nas suas origens em torno de Durango. Nascido numa família de meeiros (1878), foi batizado com o prosaico nome de José Doroteo Arango. Com 16 anos, ao partir para vingar a afronta à sua irmã Martina – ameaçada de estupro por um dos membros da família de proprietários (não há certeza de que tenha chegado a matá-lo) –, teve que se refugiar no meio de bandidos que mantinham
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sua base de operações na alta Sierra. Começava ali a vida aventurosa de Villa, até ser convocado para virar revolucionário contra o governo. “Uma figura”, conforme se diz, sob qualquer ângulo de visão. Mesmo no México de hoje, quem o percorra com olhar atento irá perceber um culto remanescente em torno de Pancho, talvez mais espontâneo do que a aura que também cerca Zapata no campo. Lá, ser “villista” ou ser “zapatista” ainda remete para duas maneiras de ver as coisas, 100 anos depois da convivência mais ou menos conflituosa entre esses dois homens pobres lançados contra opressores civis e militares. John Reed, o escritor norteamericano que deixou um irretocável documento sobre a Revolução no admirável livro México insurgente, traçou um retrato de Villa que o mostra tão brutal quanto carismático, sujeito a tempestades de mau humor e
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arroubos generosos, parecidos com os dos bandoleiros daqueles tempos de assaltos, pilhagens, gringos e “federales” da caricatura de cinema (embora a psicologia real de homens violentos tenha bem mais nuances do que as simplificações dos filmes). Luz Corral de Villa – viúva “oficial” de Pancho – deixou este depoimento de quem sobreviveu tantos anos ao marido cuja lembrança poderia estar um tanto reforçada pela lenda: “Nos seus últimos anos, ele se sentia traído, mas ainda assim não pressentia a tragédia que se aproximava. Pancho era um camponês que não fez a Revolução por política, mas, sim, pelos pobres e para os pobres. Sabia que seus homens eram bons lutadores, que as montanhas eram um excelente refúgio e que tentar mudar as coisas pelas armas se impunha como uma necessidade. Na verdade, era a única forma de sobreviver, naquela época.
Não se sabe realmente quem mandou matá-lo, mas eu sei que não foram operários e camponeses, porém homens da cidade que temiam a verdade representada por ele”. Villa foi assassinado em 20 de julho de 1923, numa emboscada provavelmente organizada pela polícia secreta em associação com pistoleiros – que atingiram o caudilho dentro do automóvel no qual se dirigia para uma festa de compadres. O carro de luxo, com todas as perfurações dramáticas, ainda pode ser visto no Museo de la Revolución. Sepultado no cemitério de Parral (Chihuahua), seu cadáver foi mutilado por ordem de alguém que queria – por admiração ou por ódio – a cabeça de um mito do México insurgente para o qual Villa (“Viva!”) nunca teria sido ladrão de gado, nem qualquer coisa mais desonrosa do que “diretor” improvisado de um filme que ninguém chegou a ver.
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2 General Francisco Madero foi presidente do México, de 1911 a 1913 Luz corral 3 A viúva de Pancho Villa sobreviveu ao herói lendário e manteve em sua casa-museu sobre o movimento
4 diego rivera Trecho do mural En la trinchera, sobre os acontecimentos revoltosos do seu país
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John Reed, em México insurgente, traçou um retrato de Villa, que o mostra tão brutal quanto carismático
Esse filme tratava-se de história que parecia ficção de um Juan Rulfo: em 1914, Pancho foi procurado, no seu retiro da Canutillo (Durango), por Frank Thayer, em nome da Mutual Film Company, com a proposta da filmagem de um revival das batalhas da Revolução, com o próprio “general” em cena, ao lado dos seus antigos comandados simulando a violência das lutas enfrentadas anos antes. Do ponto de vista financeiro, era irrecusável – e o velho Pancho de imediato partiu
para reunir o maior número possível dos veteranos das redondezas. Feito isso, correu tudo muito bem: as cenas de autênticos “revolucionários” em refregas violentas foram rodadas com um verismo inusitado para os pioneiros de Los Angeles; entretanto, reveladas as latas de negativo, os chefes do estúdio temeram pela reação do público (Columbus ainda estava fresca na memória ianque), tão “crus” lhe pareceram os combates realisticamente encenados. Apesar dos gastos, condenaram o material, digamos, “dirigido” pelo próprio Villa, e mandaram contratar atores profissionais a fim de refazer tudo ali mesmo na Meca do cinema, segundo o padrão de artificialismo de Hollywood, portanto, preferindo seus produtos de entretenimento sem maiores compromissos, principalmente com revoluções.
“VIVA ZAPATA!”
Emiliano Zapata não entraria numa dessas. Era uma pessoa bem diferente do “general” responsável pela Divisão do Norte. Sua intensidade era a de um índio sofrido, tentando se libertar pessoalmente – e ao país – das garras do analfabetismo e do latifúndio concentrador das riquezas na mão de algumas poucas famílias poderosas desde a aventura de Maximiliano I (se não, desde os espanhóis colonizadores de ferro, com armaduras e corações duros). Símbolo internacional do agrarismo, Zapata nasceu em 1879, no meio do deserdado campesinato de Anenecuilco (Morelos), filho de Gabriel Zapata y Cleofas Salazar (nome estranho para uma mulher). No ano de 1906, é assinalado como uma das presenças numa reunião, em Cuautila, na qual estava em pauta a ideia da terra para o povo. Ele trabalhou em várias fazendas e, em 1909, foi eleito presidente da Junta de Defesa das Terras, no seu longínquo povoado próximo da Vila de Ayala. Esse foi o início da carreira do líder popular, que logo se envolveria nas eleições para governador da região, militando no partido do oposicionista Patrício Leyva. Com a vitória do candidato da situação (Pablo Escandón), Zapata se torna objeto de perseguições que frustram o plano da entrega de parcelas de terra para os “seus” camponeses. Nesse revés, firma a imagem de protetor da gente miserável, e, assim, será logo arrastado para o fogaréu da Revolução acesa com vistas a iluminar o caminho de Madero até o palácio presidencial. Estamos no ano de 1911, e Zapata vai ter a sua primeira decepção com o partido maderista – conduzido por um proprietário que, afinal, não pretendia ir às últimas consequências em matéria de distribuição de terras. O líder agrarista passa a combater a tibieza do presidente que havia ajudado a eleger pela ação revolucionária, já então produzindo suas primeiras contradições, encarnadas em homens como Victoriano Huerta – o militar, comandante das tropas federais, que conspirava contra o presidente Madero e pretendia apear Villa do seu prestígio crescente (pois não hesita em mandar prendê-lo por uma questão
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referente a cavalos do exército não devolvidos pelos “villistas”). O incidente vai levar o ex-bandoleiro para o círculo de influência de Don Venustiano Carranza (1859-1920), governador de Coahuila e próximo aspirante à presidência mexicana, mais uma vez disputada por meio de conspirações combinadas com a garantia de forças, como o Exército Constitucionalista, formado pelo novo presidente Carranza (sucessor de Francisco Carvajal, que assumira logo após o assassinato de Francisco Madero). Cheia de Franciscos nada santos, a “Revolución” irá oferecer, a partir daí, um espetáculo de instabilidade política dos mais lastimáveis. A firmeza de caráter parece quase reservada exclusivamente para Zapata, com as teses agraristas correndo no seu sangue índio (teses que, de um modo ou outro, todos irão trair mais cedo ou mais tarde). O seu Exército Libertador do Sul não fora constituído para lhe garantir mais impacto do que já trazia da fortaleza dessas convicções – pelas quais volta a se unir às tropas nortenhas do jogador esperto que é Pancho Villa.
É assim que, triunfalmente, entram na cidade do México, em novembro de 1914, para tentar “consertar” a Revolução. Villa se põe de acordo com grande parte do ideário zapatista, e esse é, talvez, o momento que virou o clichê de ambos: dois revolucionários aboletados (com certo ar de desconforto) nas poltronas palacianas
O grito “Viva Zapata!” alimentou o cordel mexicano, novelas, romances e filmes, feitos até por estrangeiros arranhadas por esporas, os sorrisos incertos como o destino da maior parte das revoluções. Cada vez que revejo essas imagens, penso nos homens de ação envolvidos na complexa malha de políticos profissionais de gabinete, na iminência do passo que vai dar errado e poderá levar até à tragédia. Enquanto
posam ao lado de ordenanças (todos com caras de bandoleiros), é essa a sombra que logra empanar suas esperanças ingênuas, na euforia dos movimentos traídos pela confiança nos poderes que “tudo mudam – para que tudo possa continuar no mesmo”. Carranza é o político da vez, que se revelará ansioso, agora, por se livrar desses incômodos “generais de sandálias” e, pior, vindos do nada – se deles pudessem ser arrancadas as medalhas pela condução de soldados irregulares e até “soldaderas” (as mulheres que participaram ativamente dos combates mais renhidos do levante romântico), antes de chegarem os políticos profissionais e os militares golpistas. Em 1919, Zapata irá morrer em Chinameca, entre artimanhas e ardis dos generais Pablo González, Jesus Guarjardo e mais um certo Luis Patiño, todos para sempre odiados pela longa serpente da memória dos excluídos. Na verdade, em vez de colorida – como aqui foi chamada –, a cinematográfica Revolução de 1910-1911 desenrola uma comédia de erros começados por uns
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legenda à esquerda o nome da rosa
5 engajamento As tropas federais alistavam até menores de idade 6 conflito Tropa zapatista ingressa em cidade mexicana mulheres 7 As soldaderas acompanhavam os batalhões da guerra civil
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e terminados por outros (enquanto o povo recolhia seus mortos anônimos, nas praças da “vitória”)... Como resume o professor Antonio S. Bichir: “Os índios – ao menos de Morelos – tomaram para si a propriedade da terra, por certo momento, coletivizando-a. E depois? Os terratenientes tomaram tudo
novamente, por conta de desorganização e da falta de quadros, além da confusão de ideias, característica dos movimentos espontâneos, frutos de uma sufocante exploração”. Essa revolta popular, em conluio com o exército forjado sob a égide da luta contra Napoleão (um dos exércitos mais sanguinários e corruptos das
Américas), criou o México moderno, necessariamente, com um partido institucional dominante por sobre a poeira, depois que cabeças foram perdidas e legendas se alçaram aos céus das vilas mais remotas. As conversas dos velhos ao pé das fogueiras, como testemunhas vivas dos feitos dos heróis nos seus cavalos de São Jorge e tudo o mais, fizeram os “vivas” pintados na cal dos muros se imprimirem na imaginação de um povo que ainda cultua a morte, no Dia de Finados, com desconcertantes festas noite adentro. Villa morreu? Não, Pancho não morreu (com 47 balas no corpo), mas ainda cavalga pelas montanhas de névoa e ouro do passado. Sua cabeça jaz no coração do povo herdeiro dos indígenas que os espanhóis foram os primeiros a tentar exterminar, muito antes do crime organizado e da corrupção erguerem suas cabeças de medusas modernas. O grito “Viva Zapata!” alimentou corridos (cordéis mexicanos), novelas, romances e filmes, feitos até por estrangeiros comovidos por um assassinato que segue longamente projetado, em câmera lenta, no cinema da história que se repete: em 1994, foi a memória de Emiliano que inspirou a criação do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), em novo ayuntamiento de camponeses que ainda hoje se mantêm rebeldes contra o governo, em Chiapas, num dos impasses que o México precisa resolver para aspirar a um futuro menos problemático. No labirinto da solidão, referido pelo prêmio Nobel Octavio Paz, há, como sempre, a contradição de ser vizinho de uma potência difícil como a norte-americana, para a qual tantos mexicanos continuam a emigrar como se o velho Porfírio não houvesse um dia falado pela boca de praga dos ditadores cínicos: “Pobre México. Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos.”
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renato alarcĂŁo
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notícias Pressa, inimiga da perfeição
Chegada de facilidades tecnológicas, como a busca de informações online, não livra os jornalistas da angústia do tempo, que os faz produzir conteúdos muitas vezes inverídicos e sensacionalistas texto Thiago Lins
Pauta. Apuração. Deadline. Furo. Barriga. O modo de produção do jornalismo, que, desde os dias do telex, teve uma relação estrangulada com o tempo – curto, urgente –, não melhorou muito nesta era da convergência. Nas redações, o mantra de que “em jornalismo, não se espera” nunca foi seguido tão à risca quanto agora, em que minutos são suficientes para que um portal “fure” ou dê a notícia antes de outro – “falha” passível de demissão. Além da neurose do furo, há a ameaça “externa”. Você, leitor, pode virar jornalista a qualquer momento e conseguir seu próprio material em primeira mão. É que hoje estamos todos conectados. Em casa ou na rua, com os celulares de última geração. Se, nos anos 1960, os seguidores de Timothy Leary “se ligavam, sintonizavam e caíam fora”, porque eram entusiastas do flower power e acreditavam numa alternativa ao “sistema”, nos anos 2010 ninguém quer cair fora desse outro sistema, rápido e capilarizado, que é a internet, o veículo majoritário da
No jargão jornalístico, barriga significa a publicação com informações falsas produzidas pela imprensa sociedade da superinformação. O resultado dessa adesão massiva é uma dispersão do labor jornalístico, que tem rendido frutos bem verdinhos: notícias são publicadas, mas não necessariamente apuradas. Então, vamos a algumas “notícias”: Abraço corporativo, vídeo filmado na Avenida Paulista, impulsiona carreira de certo consultor de RH Ary Itnem, criador da Teoria do Abraço, que curaria “o stress e a inércia do afastamento” no ambiente de trabalho. A Revolta do Acaju, protagonizada por bravos índios javaés, na distante Ilha do Bananal, inspira o nome do celebrado grupo Móveis Coloniais de Acaju. O ator Joaquim Phoenix apresenta sua mais recente persona:
rapper, drogado e coprófago. O artista japonês Souzousareta Geijutsuka, criador da técnica de fotografia “Shiitake”, que permite “a captação dos fenômenos invisíveis ocorridos na atmosfera”, expõe em Fortaleza. Caramelo, um dócil vira-lata, guarda o túmulo de sua dona em meio à tragédia dos deslizamentos na região serrana carioca. Todas as cinco notícias acima são o que no jargão jornalístico se chama barriga, ou seja, mentira, notícias inverídicas. Algumas delas geradas pela pressa, por rumores não confirmados, pelo desejo de causar sensação, pela simples cópia irrefletida de material de divulgação, ou mesmo “plantadas” pelos próprios protagonistas (caso de Móveis Coloniais de Acaju e Phoenix, como se verificaria posteriormente). De Fortaleza a Hollywood, do jornal Diário do Nordeste ao programa de TV Late show, do americano David Letterman, muitos foram atacados pelo que já se convencionou chamar de marketing viral. Na famigerada banda larga, um estalo, um lampejo de algum nerd de plantão tende a repercutir
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mais do que profundos estudos acadêmicos. O mundo é injusto, e o mundo 2.0 pode ser mais ainda. Que o digam editores e repórteres, presos à roda da internet, pela qual acessam tudo. Tudo, menos tempo.
“PÓS-RELEASE”
Doutorando em Comunicação pela UFBA, o jornalista Bruno Nogueira conta que, ele mesmo, na função de curador do festival Abril Pro Rock, ficou surpreso com a quantidade de matérias veiculadas na imprensa que apenas copiavam os releases (material de divulgação) fornecidos pela organização do evento. A reprodução desses conteúdos, oferecidos aos jornalistas como fonte de informação, nunca foi proibida, mas o que ocorre está mais para a “livre-apropriação”: textos transcritos são publicados com assinatura de profissionais de redação. “Fico assustado com jornalistas que me perguntam, por exemplo, a qual show devem prestar atenção e até pedem informações posteriores, em que eles possam se basear”, afirma.
Abraço corporativo satiriza o cotidiano esgotante das redações e a fome de pauta que geram notícias irrelevantes Nogueira, que deixou as redações e tem seguido carreira acadêmica, afirma que jornalista é “bicho domado”. Ele defende sua crítica com o seguinte raciocínio: “Se a gente pensar que existem mais assessorias de comunicação que veículos (como jornais e revistas), então encararemos o fato de que hoje existe mais notícia sendo fabricada que apurada”. Ele mesmo se diz vítima da negligência: “Já caí numa dessas com a história de que a Associação da Indústria Fonográfica Americana havia proposto pena de morte para quem baixa música. Não apaguei o post, só risquei e acrescentei embaixo que era tudo enrolação. Bastava uma busca no Google, para checar
a veracidade da informação, e eu, mesmo sem deadline, não fui atrás”. Foi com o intuito de despertar críticas e autocríticas que o jornalista Ricardo Kauffman filmou Abraço corporativo, em que faz um tipo de mea culpa. Kauffman é o criador de Ary Itnem, o citado consultor de recursos humanos que fez sucesso no Youtube (já contabiliza 750 mil acessos). Itnem (interpretado por Leonardo Camilo) é um simpático executivo, a serviço da fictícia Confraria Britânica do Abraço. A empresa implanta mundo afora o “Minuto do Abraço”, uma solução prática para o esgotamento profissional. O assédio no Youtube foi tamanho, que a imprensa logo procurou Itnem. Ainda está disponível uma matéria com o “consultor” no site de O Globo. A “vítima”, na ocasião, foi a jornalista Fabiana Parajara. Ela tentou contato com a suposta sede londrina da Confraria, por e-mail e telefone, tendo de se contentar com uma informação, fornecida pela “assessoria” de Ary Itnem, de que os executivos britânicos estariam numa viagem à Índia.
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pela checagem, isso sempre me incomodou”, recorda. Abraço corporativo (em breve em DVD) disseca e satiriza o cotidiano esgotante das redações e a fome de pauta que geram notícias irrelevantes. Kauffman, inclusive, lançou pistas (Ary Itnem é um anagrama de mentira), mas a pegadinha não foi descoberta a tempo. Seu personagem já tinha convencido canais de rádio e televisão, além de jornais. Pelo fato de o documentário não ter “fulanizado uma questão que, a meu ver, é sistêmica”, Kauffman ressalta que pôde manter uma relação posterior saudável com a imprensa.
“BOIMATE”
Mas ele teve sorte. Veículos como o Diário do Nordeste e a revista Época perderam a esportiva, após serem pegos em outros trotes. Ambos publicaram editoriais irados. O jornal cearense tinha publicado, em página cheia, uma entrevista com um tal de Souzousareta Geijutsuka. Levado a sério, o falso japonês foi apresentado como “um dos nomes mais importantes quanto à interface entre
1 ABRAÇO CORPORATIVO Vídeo aborda a teoria que curaria males no ambiente de trabalho
2 TROTE A suposta Revolta do Acaju teria inspirado o nome do grupo Móveis Coloniais de Acaju
arte contemporânea, ciência e novas tecnologias”. O propósito daquele japonês ambicioso era confundir quem tentasse acreditar na proposta. Interpretado pelo artista plástico cearense Yuri Firmeza, Geijutsuka concedeu uma entrevista tão desconexa, que incomoda. Mas ela era o de menos. Ainda havia a exposição Geijitsu Kakuu, amplamente divulgada pela imprensa local que acreditava poder prestigiar aquele “convite a reflexões sensoriais sobre a fragilidade da vida”, como escreveu Dawlton Moura. À época jornalista do Diário do Nordeste, Moura mencionou os conceitos a serem contemplados por Geijutsuka: “operação em tempo real, simultaneidade, supressão do espaço e imaterialidade”. Se você não entendeu, o mesmo se passou com Dawlton Moura, quando chegou ao espaço cultural Dragão do Mar, em Fortaleza. A exposição
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“A explicação soa como ironia, afinal, como adeptos da teoria da inércia do afastamento, eles acreditam que as novas tecnologias afastam as pessoas. Talvez por isso estejam incomunicáveis”, atestou Parajara, no desfecho da matéria. Via Facebook, Parajara se defende: “Acho que cumpri meu papel. Fui ver quem era, chequei todas as informações disponíveis sobre ele e mostrei ao leitor que não era digno de confiança”. Como boa repórter, desconfiou, mas muito tempo se passaria até que a farsa fosse revelada. Ironicamente, Kauffman também sai em defesa dos profissionais. O autor do doc-trote (só os jornalistas apressados e enganados são reais no filme, que consiste num apanhado de entrevistas e palestras de Itnem) recorre a seu tempo de jornalismo diário. “Sofri com pautas direcionadas, sustentadas unicamente por declarações e personagens que não param em pé, como grande parte dos colegas. Como muitos da minha geração, que foram educados em redações um tanto neuróticas, no bom sentido,
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O ator norte-americano conseguiu enganar a imprensa, ao afirmar que abandonaria a carreira para virar rapper. A “transformação” virou documentário
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A revista Época foi um dos veículos que caíram na “pegadinha”, ou marketing viral, do grupo candango Móveis Coloniais de Acaju simplesmente não existia, tampouco o oriental. O que havia não era mais que uma placa com os dizeres “Exposição em desmontagem”. E um texto jocoso sobre “a ‘ficção’ de se fazer arte na atualidade”. Moura não tardou em redigir um editorial atacando Firmeza. Foi seguido por outros jornais, um deles (O Povo) chegou a tachar a intervenção de “molecagem”, sem poupar a “classe artística boçal”. No mesmo editorial, O Povo citou o antológico caso do “boimate”. O rebento de um boi com um tomate foi notícia numa Veja de 1983. Piada de 1° de abril da revista inglesa New Science, o boimate foi anunciado como um divisor de águas da ciência. De acordo com a Veja, poderíamos nos deslumbrar
com “um tomate do qual já se colhe algo parecido com um filé ao molho de tomate”. O texto do jornal cearense, porém, frisava que a falha da revista não servia “de consolo”.
INVOLUÇÃO
Outra revista semanal, a Época, foi um dos veículos que também caíram numa pegadinha contemporânea. A “intervenção”, dessa vez, ficou a cargo do grupo Móveis Coloniais de Acaju. Por meses, os candangos enganaram a imprensa com a “fabulosa história” da Revolta do Acaju. Os relatos curiosos da suposta revolta, como a “união dos índios javaés com os portugueses para combater invasores ingleses”, imagine, foram insuficientes para que a mídia desconfiasse a tempo. A despretensiosa Revolta do Acaju não chegou a figurar entre os assuntos mais debatidos nos Trending Topics do Twitter, mas se revelou uma grande estratégia de marketing viral, discutida amplamente tanto em jornais diários quanto na mídia especializada. A resposta mais incisiva ao “trote grosseiro” partiu da revista, para a qual
“muitos jovens estão acostumados a tomar como verdade tudo o que leem na internet”. De fato, a Época é uma revista jovem. Foi fundada em 1998. Mas que jovem nunca se rendeu aos fáceis Ctrl+C (copia) e Ctrl+V (cola)? A doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Adriana Santana, referiuse a essa prática, hoje corriqueira, de copiar e colar acriticamente informações para desenvolver sua dissertação de mestrado, defendida em 2005. Naquele ano, realizou seu estudo frequentando a assessoria de comunicação (Assecom) da UFPE e, posteriormente, visitando a redação de um jornal diário recifense. Descobriu que 66% das menções feitas à universidade no veículo eram pautadas pela Assecom. Segundo a pesquisadora, nenhuma das matérias foi crítica. Eram apenas textos neutros ou positivos. Tão positivos quanto os releases que, em alguns casos, foram copiados e reproduzidos integralmente, como se fossem matérias apuradas, ainda de acordo com Santana, fazendo coro com o exemplo de Bruno Nogueira. Passados mais de cinco anos, como Adriana Santana observa o jornalismo 2.0? “O que houve foi uma involução”, opina. Reconhece, porém, “focos de resistência” nas redações. Exceções que muitas vezes esbarram em limitações estruturais, gerando uma situação que ela define como “autonomia relativa”. Continuando suas pesquisas, ela está em vias de defender sua tese de doutorado, intitulada Jornalismo possível. De certa forma, fazer jornalismo nunca foi tão “possível”, dada a expansão massiva da web, e sua inerente rapidez. Mas isso em detrimento da análise e da precisão. A discutida Era da Informação ainda está sendo assimilada por suas testemunhas. “Manter credibilidade e checagem nesse espaço infinito que temos hoje é um desafio sem resposta, por enquanto”, aponta Ricardo Kauffman. “Ninguém sabe o que fazer com tanto espaço”, completa.
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QUILOMBOLA Remanescentes do tempo brando
Isolada numa distante serra do brejo paraibano, comunidade de 128 famílias mantém a herança cultural negra, que sobrevive há quase três séculos TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa
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Vinte quilômetros de terra, pedra e praticamente nenhuma alma no caminho me levam até a sala de dona Edite José da Silva, uma negra de 67 anos, mãe de 23 filhos e atual guardiã da tradição cultural da comunidade quilombola de Caiana dos Crioulos. Chegar a esse isolado recanto do brejo paraibano, habitado desde o século 18 por escravos fugidios, é tarefa penosa. Apenas um ônibus diário – metade ferro, metade poeira – faz o trajeto entre a feira de Alagoa Grande (município onde Caiana está localizada) e a comunidade que abriga 128 famílias remanescentes de quilombolas espalhadas entre as serras que se desdobram à vista. Dona Edite é a porta-voz da memória desse povo, uma espécie de relicário da tradição oral e empenhada defensora da cultura popular local. Em Caiana dos Crioulos, como se costuma dizer por ali, a vida segue no ritmo cadenciado da ciranda,
no batuque ritmado do coco de roda e ao inconfundível e afinado som de um pífano de taboca. Depois de chacoalhar por mais de uma hora para vencer a distância que separa Caiana do resto do mundo, encontro dona Edite percorrendo uma trilha, na caatinga, em pleno pingo do meio-dia. Reconheço a cirandeira pelo típico vestido azul, quase varrendo o chão de barro vermelho. Antes de o sol se pôr, veremos a mulher em outros dois coloridos figurinos. Dona Edite está sempre em movimento. Nascida entre as serras do quilombo e “jurando de pés juntos” jamais abandonar o rincão natal, a brincante se ilumina ao falar sobre a tradição cultural da sua terra. “Lembro, como se fosse hoje, as primeiras vezes que eu vi minha mãe dançar o coco de roda. Era a novena de Nossa Senhora da Conceição.” Ela explica que, naquela época, a manifestação possuía uma naturalidade que está sendo perdida com o tempo. “Não era uma apresentação, era a vida real, mesmo. A gente começava a rezar, daqui a pouco chegava a banda
de pífano pra tomar café, ia tocando e, quando a gente via, tava o terreiro cheio e o coco estrondando”, relembra. Da tradição que reunia centenas de pessoas e mobilizava praticamente toda a comunidade, hoje restam pouco mais de 20 bravas mulheres e alguns homens que executam os instrumentos musicais durante as brincadeiras. Das bandas de pífano, antes marcas registradas do lugar, além das fotografias em preto e branco que dividem espaço com os santos nas paredes, sobrevive a esperança depositada no talento de alguns jovens que ainda resistem ao velho apelo de migrar para o Sudeste em busca de melhores condições de vida. De uns anos para cá, tornaram-se comuns as casas fechadas, em função do êxodo, principalmente, de jovens à procura de melhores oportunidades. Enquanto converso com Dona Edite, um de seus filhos finaliza a arrumação das malas. Está de partida para o Rio de Janeiro. Com a experiência conformada às dificuldades, Edite enxuga as lágrimas e desabafa: “Não é de hoje, não, meu filho, que a gente sofre”. Com mais de 90% de seus habitantes
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Página anterior 1 CIRANDEIRA
ona Edite é a porta-voz D da memória cultural de sua comunidade
Nestas páginas 2-3 remanescentes
aiana dos Crioulos é uma C das 14 áreas oficialmente reconhecidas, na Paraíba, como de origem escrava
4 transporte O único meio regular de chegar ao quilombo é através de um ônibus velho e desconfortável
Hoje, restam pouco mais de 20 mulheres e alguns homens que executam os instrumentos musicais nas brincadeiras com ancestralidade africana, Caiana dos Crioulos é uma das mais de duas mil comunidades remanescentes de quilombos espalhadas por todo território nacional e uma das 14 áreas oficialmente reconhecidas, na Paraíba, como de origem escrava.
FUNDAÇÃO
Os historiadores não são unânimes quanto à origem do quilombo. Em uma das versões, os negros que fundaram Caiana teriam vindo de Palmares, famoso refúgio escravo da Capitania de Pernambuco, hoje pertencente ao município de União dos Palmares, em Alagoas. Uma outra hipótese, mais romântica, aponta para uma violenta rebelião ocorrida em um navio negreiro aportado na Baía da Traição, litoral norte do estado da Paraíba, lotado de escravos africanos. Os sobreviventes teriam atravessado as falésias e se embrenhado mata adentro até penetrar nas íngremes serras do brejo paraibano. De acordo com Dona Edite, nem seus pais nem seus avós comentavam sobre a origem do lugar. “Ninguém falava nisso, não; acho que tinham medo.” Já em relação ao nome, ela explica que é uma referência à espécie de canade-açúcar conhecida como caiana, cultivada desde épocas remotas na
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região. Hoje em dia, não existem mais engenhos no quilombo, apenas algumas poucas casas de farinha sobreviveram como testemunhas da época em que a comunidade era 100% autossuficiente e politicamente independente do resto do estado. Enquanto aprecio a sala de dona Edite, decorada com dezenas de imagens de santos católicos e figuras emblemáticas, como o Padre Cícero Romão, tento decifrar o som que sobe a serra empurrado pelo vento. “É a difusora daqui, e essa é a minha voz”, diz, orgulhosa. No alto-falante instalado na única igreja do quilombo, Dona Edite entoa seus cânticos de referências religiosas. Um dos seus filhos rapidamente liga a televisão e
“Hoje, as jovens só querem saber de novela. Ciranda e coco, que é bom, não tão nem aí” Dona Edite
coloca um DVD, no qual o grupo de ciranda liderado por Edite faz uma apresentação na feira da cidade de Guarabira (a 100 km de João Pessoa). “Tá vendo, meu filho? Hoje, nós temos energia elétrica, televisão, mas as jovens só querem saber de novela. Ciranda e coco, que é bom, não tão nem aí.” Para a cirandeira,
as mudanças recentes em Caiana, como tudo na vida, tem dois lados. O ônibus que me levou até ali, por exemplo, caindo aos pedaços e pintado de poeira por dentro e por fora, é para Dona Edite uma verdadeira bênção. “Antes, a gente não tinha, hoje ele vem todo dia. É meio velhinho, mas não tem tempo ruim pra ele.” Essa capacidade de se contentar com pouco e ver sempre o lado bom das coisas parece ser algo natural no povo de Caiana. Para dona Maria Nascimento, conhecida como Luzia, duas conquistas recentes são comemoradas com um largo sorriso no rosto. “Antes, a missa era realizada uma vez por mês; hoje, o padre vem toda semana. Se a gente precisava cuidar da saúde, tinha que
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6 decoração Sala da casa de Dona Edite é repleta da imagética cristã RÚSTICO 7 Ônibus que vai à cidade é considerado pela comunidade uma “bênção”
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sair nas carreiras pra Alagoa Grande; hoje, tem um posto de saúde. O que é que eu quero mais? Dançar, né?”, diz a cirandeira de 61 anos, enquanto se espreme numa kombi, que levará o grupo para João Pessoa, a 140 quilômetros dali. Com uma agenda que inclui apresentações em várias cidades da Paraíba, as cirandeiras de Caiana dos Crioulos já gravaram um CD, em 2003, no qual registraram boa parte das canções de domínio público que animam as brincadeiras do grupo. “Vai buscar o zabumba, menino!”, grita o motorista, enquanto as mulheres vão se acomodando no veículo. Nem todas vão à capital. Dessa vez, é uma apresentação rápida e, antes de meianoite, já devem estar de volta.
FILHO ILUSTRE
Ajeito-me num cantinho da kombi e embarco com as cirandeiras no rumo de Alagoa Grande. Entre uma e outra curva, aproveito para extrair mais algumas informações. Pergunto à dona Luzia se Jackson do Pandeiro, filho ilustre de Alagoa Grande, teria visitado o quilombo. “Quem? Jackson do Pandeiro? Não. Que eu saiba, ele foi mesmo é para o Rio de Janeiro. Agora, Lampião e seus cangaceiros, esses, sim, passaram por aqui algumas vezes.” Alagoa Grande é uma das muitas cidades históricas do brejo paraibano que ainda resguardam um rico patrimônio colonial, com ruas inteiras de casas decoradas com azulejos portugueses, teatro do século 19 e antigos engenhos de cana-de-açúcar. Anos atrás, foi construído um memorial em homenagem a Jackson do Pandeiro, com fotos antigas, discos originais e roupas do músico. Foi ali, na mesma feira onde tantas vezes as cirandeiras se apresentaram, que o Rei do Ritmo começou sua carreira artística.
Sentada nas raízes de uma mangueira, com um vestido cor de prata e a característica sandália decorada com uma rosa – parte integrante do figurino das cirandeiras –, dona Edite nos espera para a viagem até a capital do estado. “Esse ano (2010), já perdi a conta de quantas vezes fomos nos apresentar fora de Caiana. Graças a Deus!”, agradece a mulher, que, além de cirandeira, é parteira (segundo seus cálculos, trouxe ao mundo mais de 40 crianças), rezadeira (“quando é preciso, eu mesmo rezo”) e agricultora. Entre gargalhadas e ao som dos instrumentos que balançam instalados no bagageiro, desço a serra imaginando a época em que os escravos fugidos teriam desbravado pela primeira vez essas paisagens. Vinham eles tocando seus instrumentos? Costumavam dançar o coco debaixo dessas grandes árvores nos momentos de descanso? Antes que consiga verbalizar as perguntas, encontro o olhar da matriarca como que a adivinhar meus pensamentos. “Essa ciranda não é de hoje, não; ela é minha, ela é nossa, e vem de muito, muito longe.”
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IRANDHIR SANTOS “É aqui onde vivo, aqui me fortaleço” O premiado ator pernambucano, um dos nomes mais requisitados do cinema brasileiro contemporâneo, atesta a importância das raízes culturais no seu trabalho texto Dora Amorim
No dia desse encontro, Irandhir
Santos estava prestes a deixar a cidade. Estava de férias, visitando a família e amigos, mas logo viajaria à Paraíba, depois ao Rio de Janeiro e, no final do mês de janeiro, estaria em Minas Gerais, onde receberia uma homenagem no Festival de Cinema de Tiradentes. O ator, nascido na cidade de Barreiros, agreste pernambucano, está habituado à rotina das viagens. Durante a infância, mudou constantemente de endereço, pois seu pai, gerente de banco, era transferido para uma nova agência a cada dois anos. Aos 32 anos, Irandhir é saudoso ao falar do primeiro contato com o teatro, ainda criança, na cidade de Limoeiro. Foi na 7ª série que entrou em cena, atuando numa adaptação do Pai-nosso: “Lembro a sensação de ser visto em um palco. Houve o prazer de estar ali apresentando algo”. Após essa experiência, Irandhir nunca deixou de atuar. Dono da voz de José Renato, geógrafo do premiado longa-metragem Viajo porque preciso, volto porque te amo (Marcelo Gomes e Karim Airouz), e do papel do deputado Fraga, de Tropa de Elite 2 (José Padilha), obra mais vista do cinema nacional, Irandhir Santos é considerado um ator destacado em sua geração. Em 2011, vai estrelar mais quatro filmes, atualmente em fase de pós-produção: A febre do rato (Cláudio de Assis), O som ao redor (Kleber Mendonça Filho), A luneta do tempo (Alceu Valença) e A hora e a vez de Augusto Matraga (Vinícius Gentil Coimbra).
Desde 2005, quando entrou pela primeira vez num set de filmagens, Irandhir participou de 14 filmes e ganhou nove prêmios Desde 2005, quando entrou pela primeira vez num set de filmagens (de Cinema, aspirinas e urubus), Irandhir realizou 14 trabalhos no cinema e ganhou nove prêmios. Acostumado com o ritmo e a estética teatral, o seu primeiro teste foi um pouco desastroso: “Achei que ia ter tempo para aquecimento”, relembra. Por sorte, tinha à sua frente o diretor Marcelo Gomes, que lhe deu o papel e o levou a uma carreira promissora. Longe do teatro há seis anos, o ator está desenvolvendo um novo projeto para marcar sua retomada, ao lado do amigo e também ator Kleber Lourenço. Incentivado pelos pais, Irandhir, o mais jovem de três irmãos, chegou ao Recife ainda adolescente, para estudar para o vestibular. Na cidade, fez parte do grupo teatral Somente, no colégio CPI, liderado por André Cavendish. Se a capital pernambucana era intimidadora para um jovem do interior, nesse período, ele reencontrou o teatro e, nos palcos, aprendeu a gostar da cidade, dos companheiros, da escola e da rotina no Recife. “A experiência com o André foi importante, porque ele não só trouxe
o contato com a arte da interpretação, mas com tudo que envolve o teatro, a política de construir um grupo, a imersão nos textos. A partir daí, você pensa figurino, iluminação, som”, lembra o ator.
ANOTAÇÕES
Com o grupo Somente, Irandhir ficou um mês em cartaz, no Teatro Barreto Júnior, atuando no espetáculo A importância de ser prudente, de Oscar Wilde. Nessa ocasião, conheceu o ator e pesquisador teatral Leidson Ferraz, que, um ano depois, o convidou a fazer parte da peça Alheio, (2000), sob sua direção. Aos poucos, Irandhir integrou outros projetos, viajou pelo Brasil e aprimorou técnicas de interpretação. Como aluno do curso de Artes Cênicas da UFPE, ampliou seu olhar sobre o teatro contemporâneo e pôde aprimorar os próprios métodos. Nas aulas com o professor Marcondes Lima, por exemplo, ele diz que “encontrou” uma das suas principais ferramentas: o caderninho de anotações. Irandhir carrega consigo, nos sets de filmagem, um caderno, no qual desenvolve e constrói, através de textos e desenhos, o seu personagem. “Marcondes fazia questão de a gente escrever, desenhar, levar em consideração os nossos primeiros traços, guardar aquilo. O que me levou ao que hoje chamo de ‘minha maneira de trabalhar’: os meus desenhos, anotações.”
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Quando estava em Taperoá, sertão paraibano, filmando a série televisiva A Pedra do Reino (dirigida por Luiz Fernando Carvalho e baseada na obra de Ariano Suassuna), o psicanalista Carlos Bayton conversou com a equipe sobre símbolos e signos e alertou os atores a prestarem atenção aos seus sonhos, através dos quais eles também criavam. Depois desse encontro, Irandhir passou a dormir com o caderninho ao lado da cama. Uma noite, sonhou com uma imagem que desenhou e apresentou ao diretor no dia seguinte. Ela foi transformada no figurino da fase madura de Quaderna. Estimulado pelo contato com a obra de Ariano Suassuna, Irandhir teve, através de Quaderna, um reencontro com suas origens. “Foi um trabalho de descobrimento para mim, porque o personagem tem uma postura de olhar para o mundo e para as questões da vida através da religiosidade e da natureza sertaneja. Deve ser por isso que hoje não saio do Recife, é aqui onde vivo, aqui me fortaleço. O Quaderna veio à minha vida para me ensinar isso.”
ENTREGA ABSOLUTA
Irandhir não tem planos de deixar o Recife. Como no título da obra que o consagrou como um dos melhores atores da sua geração, Viajo porque preciso, volto porque te amo, Irandhir precisa voltar para casa após cada trabalho. “É fundamental para mim estar aqui, como artista e ator que utiliza o corpo para ser outra pessoa. Tenho que ter o máximo da vivência do meu corpo sendo eu nos meus lugares.” Nesse road movie, ele precisou “abdicar” de uma grande ferramenta: o seu próprio corpo. Essencialmente narrativo, o filme de Marcelo Gomes e Karim Ainouz estimulou Irandhir a trabalhar outro instrumento igualmente importante: a voz. E foi sem um corpo materializado em cena que o ator interpretou a passagem do personagem José Renato pelas estradas do Nordeste brasileiro. Para fazê-lo, Irandhir recorreu às suas lembranças e acabou por reconhecer aquela paisagem árida das memórias de sua infância, quando viajava com o pai. “Nada se compara à emoção que tive ao assistir ao filme. Em nenhum
outro trabalho fiquei tão emocionado quanto em Viajo.” Elogiado pelos diretores com quem já trabalhou e pela crítica especializada, Irandhir foi várias vezes chamado de “gênio” pelo cineasta José Padilha, quando trabalharam juntos em Tropa de elite 2. A sua absoluta entrega aos personagens e a meticulosa preparação fazem dele um artista diferenciado. A cada filme, realiza pesquisas intensas para compor o personagem e, durante o período de filmagens, não se afasta da história: “O caderno me ajuda muito, porque coloco tudo lá e, uma vez concluído o trabalho, só é fechá-lo e pronto”. Influenciado pelo teatro, especialmente pelo método de interpretação criado por Stanislavski, Irandhir conseguiu criar personas que são completamente diferentes umas das outras. Além da versatilidade dos papéis, o ator se destaca pelo apelo cênico de suas interpretações, renuncia à voz, ao corpo e às suas próprias características para viver um personagem. Ele atribui a boa recepção às suas atuações ao trabalho intenso que realiza durante
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1 A FEBRE DO RATO
No papel de Zizo, poeta revolucionário e anárquico do filme de Cláudio Assis
2 QUADERNA
Irandhir teve, através do personagem, um reencontro com suas origens
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Desde a época do teatro, Irandhir adotou o procedimento de tomar notas e desenhar para compor personagens
os ensaios e à experiência nos palcos. Enquanto em Viajo porque preciso, volto porque te amo, ele constrói José Renato através da sua voz, em A Pedra do Reino, Quaderna dependia essencialmente do corpo para se expressar.
POETA E DEPUTADO
Fã do diretor Cláudio de Assis, Irandhir fica entusiasmado ao falar do cineasta. Juntos fizeram Baixio das bestas (2007), uma obra sobre os desencantos da Zona da Mata de Pernambuco, e A febre do rato (em pós-produção). Em seu novo filme, Assis reflete sobre os padrões e preconceitos da sociedade contemporânea, pelos olhos de um poeta que criou um universo particular no Recife.
No papel de Zizo, poeta revolucionário e anárquico, Irandhir lidera um grupo não aceito pela sociedade. “Walter Carvalho, o fotógrafo do filme, falou que queria captar, com a câmara, a reação das pessoas ao poeta e aos seus amigos, quando estivessem na cidade”, disse o ator. E foi exatamente isso que aconteceu no dia 7 de setembro de 2010. Após gravarem uma cena na qual os personagens de Irandhir Santos e de Nanda Costa tiravam as suas roupas, a Polícia Militar chegou ao set de filmagens, atendendo a uma denúncia de atentado ao pudor. Durante a preparação, e ainda nos sets de filmagem, Irandhir teve contato com vários artistas pernambucanos, especialmente com o poeta-declamador Miró: “Ele tem uma escrita que funciona muito bem no papel, mas ganha corpo quando falada, principalmente, por ele mesmo. O meu Zizo, escritor do jornal A febre do rato, também declamava o que escrevia, então procurei fazer com que o seu declamar fosse tão forte quanto o de Miró”. Antes de participar de A febre do rato, o artista estava envolvido em
outro projeto do também cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho: “Hoje, Recife é diferente para mim, em função dessas duas experiências. Elas me fizeram olhar o meu lugar de outra forma”. Em O som ao redor, Kleber continua sua investigação sobre as questões urbanas e as mudanças da estruturação física e social das cidades, como fez no curta-metragem Eletrodoméstica. Nessa produção, o personagem de Irandhir é Clodoaldo, chefe de segurança. Para construí-lo, o ator mudouse para Setúbal, bairro da zona sul do Recife, e passou 40 dias acompanhando um grupo de segurança privada. “O Clodoaldo é interessante porque a relação dele com a cidade dá-se através da noite.” Irandhir observou como esses homens acompanhavam as mudanças urbanas e quais as suas funções dentro da nova ordem social. “São pequenas coisas que você observa no comportamento deles, como a relação com a tecnologia, com os muros que cada vez mais sobem e isolam. Ao mesmo tempo, você acha que está só, mas as janelas o observam o tempo todo; foi uma forma diferente de perceber a cidade, importante para eu entender o filme.” Ao aceitar o papel de Diogo Fraga, em Tropa de Elite 2, Irandhir Santos pressentia o grande sucesso da produção. Mas não poderia prever os mais de 11 milhões de espectadores que fizeram do filme o mais visto na história do cinema nacional, ultrapassando o êxito de Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto. Inspirado no deputado carioca Marcelo Freixo, do PSOL, o seu personagem foi construído com a ajuda da preparadora de elenco Fátima Toledo. Confrontando o herói nacional Capitão Nascimento (Wagner Moura), o deputado Fraga representa a luta de várias organizações e entidades em favor dos diretos humanos. O “professorzinho de esquerda”, descrito por Nascimento, logo no início do longa, é um elemento fundamental dentro do universo social reproduzido no filme. Com Tropa de Elite 2, o ator tornou seu rosto conhecido em todo o país e deu um grande passo em sua promissora carreira.
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KARINA FREITAS SOBRE REPRODUÇÃO DE FOTOS
Palco ESTUDO A estreita relação entre escrita e encenação
Livro de Raymond Williams, Drama em cena, discute as convenções que giram em torno dos textos teatrais e de suas possíveis montagens ao longo da história TEXTO Raquel Monteath
Quando o assunto é artes cênicas,
citar as peculiaridades de Brecht pode hoje parecer um lugar-comum. Mas, quando o escritor Raymond Williams o fez em Drama em cena, livro originalmente publicado no início dos anos 1950 e agora lançado no Brasil pela Cosac Naify, não estava sendo arbitrário. Ao analisar dramas experimentais
modernos como os de Eliot, Beckett e Brecht, o autor referiu-se, por exemplo, ao método incomum desse dramaturgo fazer anotações práticas em seus textos, destacando a forma como ele “orientava” os encenadores a desconstruir tanto seus personagens quanto a redoma que envolve a ilusão teatral.
“A ação aberta e versátil é, de muitas maneiras, um retorno aos métodos teatrais de um drama mais antigo, especialmente o drama elisabetano”, escreve Williams, a respeito da montagem de 1943 da brechtiana Vida de Galileu, ao que prossegue: “Ao mesmo tempo, há uma ênfase em um tipo de atuação e de presença histórica que pertence ao teatro moderno, o que também é modificado pelo elemento mais característico de Brecht: a apresentação crítica – no lugar da ilusão teatral”. O exemplo de Brecht, que expôs ao público a maquinaria cênica de seus espetáculos, ilustra um ponto crucial proposto por Williams ao longo do livro: historicamente, qual a relação entre texto dramático e suas representações? Movido por esses dois elementos (texto e encenação) que simbolizam o ciclo de um drama,
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as análises do autor estão voltadas para as relações de tensão geradas entre a literatura e a ação dramática: são, antes, focadas no hiato criativo que se forma entre os espaços cênicos, a fala dos personagens, o movimento em cena e o som, enquanto elementos instáveis que constituem a encenação. As peças analisadas por Williams são Antígona, de Sófocles; algumas representações do teatro medieval inglês; a peça Antônio e Cleópatra, de Shakespeare; algumas obras da fase de transição do drama inglês medieval (William Wycherley, George Lillo e Tom Robertson); a primeira
encenação da peça A gaivota, de Tchekhov, feita por Stanislavski (representando o apogeu do naturalismo); o citado drama experimental moderno de T.S.Eliot, Brecht e Beckett, e o curioso longa-metragem Morangos silvestres, do cineasta Ingmar Bergman, que contempla a única análise fílmica do livro. A edição conta com reproduções de desenhos de plantas teatrais e com um caderno de imagens que ajudam o leitor a compreender o contexto social e físico no qual essas manifestações ocorreram. Para nortear essa e futuras leituras, há um rico acervo bibliográfico – tanto aquele usado por Williams, capítulo a capítulo, quanto títulos sobre teatro escritos pelo autor – e um índice remissivo. De maneira bastante didática, como se fosse apontamentos para aulas (“Nessa obra encontramos”, “Podemos examinar três exemplos”, “Vamos aqui nos referir à”, “Examinaremos agora alguns exemplos”, “Analisaremos a peça tal como apresentada” são frases que abrem alguns dos capítulos), o livro reúne análises de obras de diferentes períodos, ilustrando o que seria convencional, cenicamente, e o que se torna também convencional, na medida em que os espetáculos vão sendo encenados. Um olhar bastante ousado para a época em que a obra foi escrita e publicada, visto que as análises teatrais eram basicamente fixadas no texto cênico, o que aponta uma orientação marxista da análise, por observar a realidade a partir do materialismo histórico.
Dança
O HOMEM EM MOVIMENTO Naturalizamos tanto conceitos de masculino e feminino, que eles podem permanecer em nosso inconsciente, sugerindo representações sociais que vão sendo retroalimentadas pela sociedade, e promovendo discussões longe de serem esgotadas. É o que ocorre em Representações de masculinidade na dança e no esporte: Um olhar sobre Nijinsky e Jeux, estudo do bailarino e pesquisador pernambucano Cláudio Lacerda, que investiga gêneros e sexualidade a partir do corpo e suas manifestações. Lacerda observa que o corpo – ou a experiência corpórea – existe a partir da linguagem, passando a ser o canal principal de comunicação humana, o que se torna mais evidente no esporte e na dança. O interesse no cruzamento desses dois campos se deu quando Lacerda participou do grupo de pesquisa Esporte e arte: Diálogos, durante a sua graduação em Dança na UFRJ. Durante a catalogação das obras de dança que se referiam de algum modo aos esportes, ele se deparou com Jeux, espetáculo coreografado por Vaslav Nijinsky (foto) em 1912 para a companhia Diaghilev, com música especialmente criada por Debussy. Era a primeira vez na história da dança que o tema esporte era encenada. Esses elementos e mais a temática do espetáculo – em que se estabelece um triângulo amoroso entre duas mulheres e um homem num jogo de tênis, cujo clímax dramático se dá com um beijo trocado entre eles – pareceram ideais para Cláudio Lacerda discutir os temas que o inquietavam. “Em busca pela(s) genealogia(s) do desconforto”, escreve o autor em sua apresentação ao estudo, “eufemismo para preconceito, causado pelo homem que dança, tive que visitar várias disciplinas e entrecruzá-las para tentar chegar aos pontos a partir dos quais se faz uma ideia tão forte de maneira a estigmatizar o homem ocidental que dança”. Por conta dessa busca, a bibliografia usada pelo pesquisador contempla várias esferas das ciências humanas.
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CUPCAKES A sensação dos bolinhos enfeitados
Esses doces são fofos, coloridos, açucarados e estão em superevidência. Mas qual o motivo que os faz vedetes cobiçadas: a aparência ou o sabor? texto Renata do Amaral Fotos Isabella Valle
Preocupada com a diminuição
repentina de sua estatura, Alice fica em dúvida se come ou não aquele pequeno bolo com as palavras “coma-me” escritas com groselha. A receita dentro da caixinha de vidro, embaixo da mesa, ao contrário do conteúdo da garrafinha, bebido antes, faz com que ela cresça. Fosse o escritor Lewis Carroll nosso contemporâneo, é provável que essa guloseima do país das maravilhas tivesse a forma de um irresistível cupcake confeitado. Parte da culpa pela atual febre açucarada dos bolinhos pode ser atribuída a uma velha conhecida das mulheres na faixa dos 30 e poucos anos: Carrie Bradshaw, a personagem do seriado Sex and the city que catalogou em uma seção de jornal todo o comportamento amoroso de sua geração. Bastou a moça aparecer com a amiga Miranda Hobbes, em um banco de praça, lambendo os lábios sujos de glacê e falando de pretendentes, para a mania estourar. Mas aquele não era um bolinho qualquer. Instalada há 15 anos em Greenwich Village, em Nova York, a doçaria Magnolia Bakery virou o símbolo da era do cupcake. Com uma mãozinha da TV e do cinema, os cobiçados doces da loja são motivo para filas de espera à porta. Foi assim que a massa fofinha com cobertura de buttercream (uma mistura de manteiga e açúcar que não
resistiria ao calor pernambucano) em tons pastéis ganhou o mundo. Não foi apenas o seriado, extinto em 2004, que ajudou a colocar a marca da Magnolia – e, de resto, os cupcakes – na boca do povo. Ela também aparece no filme O Diabo veste Prada (de David Frankel, 2006). Em Terapia do amor (de Ben Younger, 2005), o uso é menos lisonjeiro – um personagem compra bolos na casa para um fim inusitado: jogá-los na cara das meninas que dão o fora nele, sem nenhuma sutileza. Se a culpa é de O Diabo veste Prada. com Meryl Streep no papel de Miranda Priestly, editora da revista Runway, não se sabe. Mas o fato é que os blogs de moda aderiram ao culto do cupcake e, entre uma roupa e outra, fogem do tema e terminam falando do bolinho. Sua presença é garantida nos encontros em salões de beleza regados a um inevitável prosecco. Eles também são frequentes em blogs de gastronomia, claro, mas ali sua presença não é estranha. Aliás, seria mesmo esquisita essa associação com a moda? Quando o cupcake vira fetiche, não tanto. É o que diz o colunista Marcelo Coelho, em artigo publicado na Folha de S.Paulo: “Não como, mas já passei pelas lojas especializadas no produto; são verdadeiras butiques, com seus bolinhos coloridos expostos como se fossem anéis ou relógios de pulso numa joalheria”. Mais do que comida, o bolo virou bibelô.
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Afinal, agora ele não é até lembrancinha de casamento? “São, na verdade, bolos de brinquedo, apelando para cores suaves: o rosa-fitade-cabelo, o azul-xampu, o brancopompom. Correspondem não mais a um doce real, mas à guloseima do conto de fadas. ‘João e Maria’, eis um bom nome, quem sabe, para uma loja dessas”, ironiza. Tanta perfeição em miniporções
Cardápio acaba virando um passo no caminho da individualização da nossa vida gastronômica, conclui Coelho.
DEUSA DOMÉSTICA
Como nem todo mundo tem uma loja especializada em cupcake ao lado de casa, às vezes é preciso colocar a mão na massa. Para isso, pode-se contar com a ajuda das divas televisivas da cozinha. Não é por acaso que o livro de Nigella Lawson – cujo título promete ensinar as mulheres a serem deusas domésticas (How to be a domestic goddess) – traz na capa um singelo exemplar. De açúcar com afeto ela entende. Mas quem publicou um verdadeiro tratado sobre a arte dos cupcakes foi Martha Stewart. Lançado em 2009, seu livro sobre o tema traz nada menos do que 175 receitas. Sim, aquela mesma, a apresentadora que ficou presa durante cinco meses, entre 2004 e 2005, acusada de crime no mercado financeiro. Por que será que a prisão feminina Alderson Federal Prison Camp, onde ela ficou, foi apelidada pela mídia americana de “Camp Cupcake”? A estudante de administração Bruna Siqueira gosta tanto dos bolinhos, que comprou assadeira de teflon para 12 unidades, forminhas coloridas e confeitos de estrelinhas. Não é receita para o dia a dia, mas para ocasiões especiais, como aniversários. Chocolate com brigadeiro e chocolate branco com doce de leite são as versões favoritas. “Acho que eles fazem tanto sucesso porque são um mimo!”, opina. Luís da Câmara Cascudo não chegou a conhecer os cupcakes, mas faz coro ao teor festivo dos bolos no livro História da alimentação no Brasil: “A presença dos bolos sugere recepção,
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Em Pernambuco, é comum que o cupcake seja confundido com outro bolinho que faz sucesso desde muito antes: o bolo de bacia
visita, novidade social. Comparecem à ceia cerimoniosa ou à sobremesa do jantar solene. Sempre houve intenção ornamental no acabamento boleiro. Enfeitavam-no com arabescos de açúcar, flores de papel, a linda ciência do papel recortado, dando maravilhas.” Num passado bem recente, Bruna tinha dificuldade para encontrar os
apetrechos necessários à confecção do bolinho. A loja Irmãos Haluli, fundada em 1962 no bairro de São José, centro do Recife, teve de se adaptar aos novos tempos. Segundo o gerente David Haluli, eles já tinham alguns produtos, mas a demanda começou a crescer há seis meses, quando os cupcakes começaram a aparecer mais na mídia. A casa vende forminhas coloridas, assadeiras, caixinhas e confeitos em formato de coração, estrela, confete. Alguns itens só agora passaram a ser fabricados no país. Mas ainda falta muita coisa para o comerciante e a moda tem muito a se desenvolver. “Ele é agradável aos olhos do consumidor”, diz Haluli, que avisa que a loja promove até cursos específicos sobre o assunto.
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Página anterior 1 “DE BRINQUEDO”
ores lúdicas, como C o azul-xampu e o branco-pompom, fazem do cupcake uma espécie de guloseima de conto de fadas
Nestas páginas 2 TIETE
Bruna Siqueira comprou acessórios para confeccionar os seus bolinhos
PAVLOVA 3 A loja surgiu com o intuito de satisfazer quem deseja comer cupcake a qualquer hora
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BOLO DE BACIA CHIQUE
Em Pernambuco, é comum que o cupcake seja confundido com outro bolinho que faz sucesso por essas bandas, desde muito antes: o bolo de bacia. O sociólogo Gilberto Freyre, no livro Açúcar, conta que o modo de preparo aparece no primeiro livro de receitas português, Arte de cozinha (1680), de Domingos Rodrigues. Levava manteiga, ovos, farinha e amêndoas, além de uma tal “água de flor” que, provavelmente, era de laranjeira. A obra de Freyre traz duas receitas de bolo de bacia à moda de Pernambuco, ambas com ovos, massa de mandioca, açúcar, manteiga e leite de coco. Nem essas fórmulas nem a anterior se assemelham ao que hoje conhecemos com esse nome: um bolo branco e fofo, vendido em um saco plástico transparente. O mais famoso era servido na Cristal Bar e Lancheria (1955-2009), no Bairro de Santo Antônio, que, desde janeiro deste ano, deu lugar a um banco de crédito. Já o pesquisador Roberto Benjamin atribui, no artigo Doçaria e civilização: a preservação do fazer, a origem do bolo à
influência inglesa, responsável por “uma contribuição marcante de sua malfalada culinária, tanto nas chamadas ‘comidas de panela’ em que se salientam o rosbife e os cozidos e assados de carneiro, como nos pudins e bolos (de bacia, inglês, de frutas)”. De fato, é com o bolo inglês que ele mais se parece. Segundo a professora de pâtisserie Tânia Bastos, o bolo de bacia era feito com 50% de massa de mandioca e 50% de trigo. Como a mandioca foi se valorizando em relação à farinha, passou a ser feito só de trigo mesmo. Quanto à origem dos cupcakes, Alan Davidson e Tom Jaine afirmam, no livro The Oxford companion to food, que eram apenas bolos feitos na xícara ou que a usavam como medida. O nome surge no século 19, na Inglaterra e nos EUA. Não ouse, porém, fazer esse tipo de comparação na frente de uma cupcakeira. “O cupcake só lembra o bolo de bacia no formato”, afirma Tânia, que prepara a iguaria sob encomenda. Ela faz bolos há 10 anos, mas entrou na onda dos bolinhos há dois. O tamanho e a beleza são os atrativos principais, em sua opinião.
Chocolate com ganache é a receita mais pedida, mas morango, Nutella e Ovomaltine também fazem sucesso.
ESTRELA DA FESTA
Casamentos, aniversários e festas infantis são o habitat ideal do doce. Por isso mesmo, ele quase sempre é pedido por encomenda. As doçarias tradicionais já começam a vendê-lo, ao lado das tortas maiores. Mas uma pequena casa no Bairro do Pina nasceu, há um ano e quatro meses, com o intuito principal de abrigar quem deseja comer cupcake a qualquer hora. A Pavlova, de Sandra Massa e Tatiana Peló, mãe e filha, é vintage até no nome, que remete a uma sobremesa neozelandesa cheia de merengue, criada para homenagear a bailarina russa nos anos 1920. Sandra fez um curso nos EUA para aprender a receita, mas adaptou-a ao paladar local, já que o creme de manteiga tradicionalmente usado na cobertura derrete com o calor. Apesar de também servir tortas, o foco é no bolinho em miniatura. As misturas propostas pelos clientes geram o milagre da multiplicação dos
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4 TOPS Na Cuppies, os sabores de chocolate, baunilha e red velvet (de cacau avermelhado) são os mais encomendados
sabores. O creme de chocolate, por exemplo, pode vir com banana, damasco ou ameixa. Se a pedida é a bonitinha, mas pouco saborosa pasta americana, ela toma cuidado para não diminuir o recheio – nem o sabor. Em uma rua escondida, a casa ganhou fama depois de firmar parceria com um site de compras coletivas, quando foram vendidas 800 caixas com seis unidades. Também há histórias de quem largou tudo para fazer encomendas em casa ou em ateliês. Adriana Diniz era advogada tributária e deixou o emprego depois dos preparativos do seu casamento, quando resolveu levar os bolos a sério. Hoje, oferece mais de 70 combinações. Metade dos pedidos é para festas, metade para presentes. “Muitas adolescentes compram para dar ao namorado”, afirma. Brigadeiro é o campeão de vendas, numa adaptação bem brasileira. A publicitária Gabriela Breckenfeld foi outra que decidiu trabalhar apenas com os doces, junto com a mãe, Branca Viriato. A Love Cakes já fazia brownie há dois anos e vende cupcakes há seis meses, em sabores
como baunilha com creme de frutas vermelhas e laranja com ganache de chocolate. A dupla, que também faz oficinas para crianças em festas infantis, se prepara para abrir uma loja em Casa Forte, em maio. Professora de inglês, formada em Comunicação, Natalie Estrela caiu de amores pelos “bolinhos fofinhos”, depois de tanto vê-los no cinema. Há dois anos, abriu a Cuppies, na qual chocolate, baunilha e red velvet (de cacau avermelhado) são os mais encomendados. Como substituto para o buttercream, ela usa um tipo de marshmallow feito com leite. “Cupcake mexe com o lúdico, com o imaginário”, diz. As irmãs Laura Campelo e Catarina Santos moraram nos Estados Unidos e tiveram contato com o bolinho desde a infância. Abriram o ateliê Dona Cupcake e elaboraram 2 mil unidades só em dezembro. As mulheres respondem por 90% das encomendas. “Mais que um bolo, o cupcake é quase um bombom”, afirma Laura. Ela acha que a mania não vai cansar, por causa da variedade de opções – algo que não existe nos EUA, onde as receitas são mais básicas. Na Cups n’ Cakes, a professora de inglês Tatiana Roldan confeita suas encomendas nas horas livres. São 14
opções de massa, 15 de recheio e 10 de cobertura. “É claro que dou dicas para que os sabores não fiquem estranhos ao paladar”, ressalta. Como a maioria das colegas, ela não crê que seja uma moda passageira. “Bem-adaptados ao paladar brasileiro, os cupcakes vieram, sim, para ficar. Afinal, o que é um cupcake, senão um bolo delicioso na medida certa?”
onde encontrar Algumas cupcakeiras do Recife
Adriana Diniz www.adrianadiniz.com
Cuppies www.cuppies.com.br
Cups n’ Cakes www.cupsncakesrecife.blogspot.com
Dona Cupcake www.donacupcake.com
Love Cakes www.lovecakesrecife.blogspot.com
Pavlova www.pavlova.com.br
Tânia Bastos www.taniabastos.com.br
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LIVRO Uma visão espetacular do cotidiano em lixão
Em projeto artístico envolvendo catadores do maior aterro sanitário da América Latina, Vik Muniz prossegue com seu comentário à história da arte e uso de materiais inusitados texto Mariana Oliveira reprodução
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Há anos, o artista plástico Vik Muniz faz sucesso no mercado de arte internacional – é o artista brasileiro mais caro no exterior – com suas obras utilizando materiais “estranhos”, tomando como base, quase sempre, trabalhos de artistas anteriores, num processo contínuo de releituras. Recentemente, Muniz chamou a atenção da cena cinematográfica por ser um dos protagonistas do filme Lixo extraordinário, indicado ao Oscar deste ano na categoria Melhor Documentário. O longa é uma das vertentes do projeto desenvolvido por ele junto aos catadores de lixo do Aterro Sanitário de Gramacho, no Rio de Janeiro, o maior da América Latina. Com título homônimo, a editora G. Ermakoff faz chegar ao mercado o livro, cujo foco também é registrar a passagem do artista pelo lixão e o desenvolvimento das obras junto aos catadores. Vik Muniz construiu sua trajetória artística trabalhando em fotografia com materiais inusitados. Usualmente partindo de uma imagem preliminar,
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As sete obras foram comercializadas em leilão e tiveram todo o valor arrecadado destinado aos catadores o artista compõe a obra utilizando um material efêmero e depois a eterniza através do registro fotográfico. Nos trabalhos criados junto aos catadores, Muniz não foge à regra e – assim como utilizou açúcar para retratar imagens de crianças filhas de cortadores de cana-deaçúcar no Caribe, ou recolheu toda a poeira retirada do Whitney Museum, em Nova York, para a partir dela compor um ensaio – faz do lixo matéria-prima para retratar os próprios catadores. Fotografou cada um dos sete personagens em posições e movimentos similares ao de sete obras da história da arte (numa associação nem sempre feliz, mas que faz sentido dentro
da sua proposta de trabalhar com a questão da “cópia”, do pastiche e da releitura), e, depois, tendo essas imagens como base, montou o rosto de cada um com o material recolhido e reciclado por eles do lixão. O livro pouco conta sobre a vida dos sete catadores, que foram selecionados entre mais de 5 mil para representar o todo. Na verdade, o leitor tem acesso ao registro fotográfico feito pelo artista durante os mais de três anos de convivência com o espaço, com as pessoas e com o cotidiano naquele ambiente hostil. A estrutura da obra faz referência ao livro Os sertões, de Euclides da Cunha, pela divisão temática em capítulos intitulados A terra, O homem, A luta, à qual Muniz acrescentou A arte. Quem assina os textos que apresentam A terra e O homem é o poeta Alexei Bueno. Com várias citações ao campo literário, ele traça as características daquele ambiente inóspito, no qual se reúne, tonelada a tonelada, tudo aquilo que foi rejeitado na grande metrópole que o cerca. Para ele, os catadores poderiam ser
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comparados à casta dos intocáveis, representados por aqueles que fazem os trabalhos de cremação e que cuidam dos cadáveres na Índia, tamanha a exclusão em que vivem. Boa parte daquelas pessoas passa não apenas seu expediente de trabalho no local, elas alugam barracos, parecidos com os dos garimpos em início de atividade, para economizar as passagens de ida e volta para casa – o que só acontece nos finais de semana.
O VALOR DAS COISAS
Do ponto de vista das artes plásticas, os dois últimos capítulos são os mais interessantes. Em A luta, Vik Muniz assina o texto, um relato pessoal que vai além do projeto em si – o artista parece ter se afeiçoado ao universo das letras após o lançamento da obra Reflex – Vik Muniz de A a Z, na qual narra suas experiências e detalha seu processo de criação. Aqui, ele volta a fazer o mesmo, de forma mais resumida. Segundo Muniz, o desejo de voltar a se relacionar com o Brasil, depois de anos vivendo nos EUA, surgiu num momento da
reflexão sobre o seu trabalho. Ele conta que começou a questionar valores. Muitas pessoas estavam comprando suas obras por telefone, sem ao menos olhar, o que começou a gerar uma grande pressão das galerias e de todo o mercado da arte. O artista passou a viver um dilema. Apesar das vantagens financeiras, percebia a qualidade da obra de arte estava sendo roubada, quando chegava a vendê-las por preços que não pagaria. Na busca por encontrar o que ele chamou de real valor das coisas, Vik Muniz abraçou o projeto em Gramacho. “Eu faço algo que custa muito caro, e passo a realizá-lo com pessoas que não têm a menor noção do valor disso. Inicia-se um trabalho com indivíduos que estão do lado oposto da sociedade de consumo, numa escala de valores completamente invertida. Tudo o que se joga fora eles aproveitam com valor, e não dão importância alguma a certas coisas às quais todos dão valor”, escreve. Na última parte, não há textos, apenas a reprodução das obras
1 a 3 mulher passando roupa Tomando como referência a obra homônima de Picasso, Vik Muniz fotografou a catadora Ísis e depois montou a obra com os materiais retirados do lixão 4 a TERRA O ambiente hostil do Aterro Sanitário de Gramacho foi documentado pelo artista e compõe um dos capítulos do livro
finalizadas junto às fotografias que serviram como base para sua concepção. Os sete trabalhos foram comercializados em leilão e tiveram todo o montante arrecadado destinado aos catadores. Em declaração registrada no documentário, o artista deixa claro quais eram suas intenções com o projeto: “O que eu realmente quero fazer é mudar a vida de um grupo de pessoas com o mesmo material que eles usam todos os dias”. Talvez, após o final desse ciclo, não seja possível perceber uma mudança radical na condição de vida dos sete catadores, mas, seguramente, do contato com a arte ninguém saiu imune.
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delano (1945-2010)
matéria corrida José Cláudio
artista plástico
Franklin Delano de França e Silva
(Buíque, PE, 29/abril/1945-Recife, PE, 17/dez./2010). Oh, Delano, eu tinha até um quadro para te mostrar, uma tela de eucatex já preparada que me mandaste de presente, no verso uma poesia toda em caixa-alta, inclusive a assinatura “DELANO 9/5/78”. Oh, rapaz, isso é lá hora de morrer? Você, camarada, nem esperou pela saideira. Se foi silenciosamente tanto quanto entrou nas nossas vidas. E sem saber se entrou e talvez nós também não soubéssemos, se e até que ponto. No meu caso, por exemplo, cabal mesmo, sentindo que estávamos amarrados pelo rabo, ou pelas tripas, só vim a perceber de fato na tua exposição do MAC, Olinda, que era como se me mostrasses o quanto eu poderia ter andado, como se fosses meu irmão mais velho. E quanto aos outros? Meu filho, Mané, disse, naquela manhã triste, “ele foi
Você, camarada, nem esperou pela saideira. Se foi silenciosamente tanto quanto entrou nas nossas vidas meu professor de desenho” num tom que queria dizer tanta coisa! Quantos não se darão conta de quão poucos momentos ou poucas vezes puderam gozar da tua presença, esse teu riso como se desculpando, essa tua inata fidalguia: haverá no mundo alguém que tenha alguma queixa de Delano? Mas ninguém confundisse a sua doçura natural com fraqueza: era de firmeza inabalável como sua obra demonstra, um caminho dificílimo de que somente ele tinha o segredo, nos deixando muitas
vezes surpreso, tão fino o fio de navalha por onde medrava. Ai, as exigências da tela! As exigências de nós. Onde orgulho e presunção e vaidade extremos são sinônimos de humildade também tão extrema nesse mundo de extremos a que nos convida a sua brancura de donzela indefesa, submissa até o assassínio. Como a vida é injusta e curta. Ou sábia. Por ter percebido, com seu olho sábio, a completitude da obra, o legado em sua inteireza, o fruto em seu melhor ponto de colheita, para espanto do autor. E só nos resta, incluir-se-ia aí o mesmo autor, olhá-lo, ao fruto, ou olhá-la, à obra, como se fazendo parte de outra existência. No máximo, tirar partido deste para outros quadros, desta para outras vidas: sim, porque o quadro, ou a obra como um todo, continuará florando através, ou por excelência, na obra de outros autores,
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1-2 A bela faxineira
José Cláudio, óleo sobre eucatex, 65 x 54cm, 1983, e poema de Delano no lado posterior do quadro
pintores ou não (lembrando-me agora do belíssimo romance A menina morta, de Cornélio Pena, inspirado num quadro), clima propício, terra fecunda, semente sempre pronta à germinação, o que equivale a comê-lo, a esse fruto ideal, alimentarmo-nos dele. A arte é uma nave em que nos alimentamos uns dos outros, não somente a antropofagia modernista de o nativo devorar o europeu ou estrangeiro mas nós próprios nativos nos alimentarmos uns dos outros como os próprios índios faziam entre si. A arte brasileira, graças a pintores como você, Delano, já tem carne. “Ele tinha um quadro de uns lutadores de boxe que toda vez que eu ia na casa dele pedia pra ver”, disse Marcos, que faz molduras. “Um branco e outro preto. Eu achava arretado.” Lembrou-se e riu. “Delano me contou que uma noite já estava deitado quando ouviu aqueles gritos de uma mulher na rua: ‘Me acuda! Me acuda!’ Ele foi
1á ver. Era um cara querendo estuprar uma mulher, a mulher derrubada no chão na calçada. Delano foi lá dentro, ele disse que tinha uma espingarda de ar comprimido mas com um tiro forte que parecia um revólver quando disparava. Abriu a janela e deu um tiro. E disse: ‘Deixe a moça aí, cabra safado! Vá simbora agora!’ O cara tomou um susto, saiu correndo. Delano disse à mulher: ‘Vá simbora também, corra pro outro lado pra ele não lhe encontrar!’ A moça levantou-se de um salto e se escafedeu ladeira abaixo que não se via nem o vulto.” Voltando à tela com o teu poema atrás, de que falo no início: Carlos Pena, no soneto Para fazer um soneto, dá a receita, não para um quadro, para um soneto, também para um quadro, desde o primeiro ingrediente, coisa de pintor, “Tome um pouco de azul, se a tarde é clara”, passando por cada um dos segredos de uma possível culinária
da poesia e, no final, o pulo do gato: “ponha tudo de lado e então comece”. O problema era que, assim que eu pegava na tela, ia ler a poesia. Isso me inibia. Formato diferente dos meus habituais, em pé ficava baixa e, deitada, estreita. Agora me vem que dava bom para natureza-morta mas, como já está pintada há 28 anos, me doía pintar por cima (A bela faxineira, 65x54cm, 1983) embora não tivesse coragem de mostrá-la a Delano: só ousei pintá-la porque um belo dia precisei de uma tela mais ou menos desse tamanho e não tinha outra no momento, sem me dar conta de que era a tela de Delano. Anos depois, notei o poema escrito nas costas, não correspondendo a pintura nem às exigências da tela nem às minhas nem às de Delano. Por aí se vê o respeito que lhe tinha. Vou dá-la a Macira, sua mulher, como flor singela jogada junto com a terra na hora do enterro em cima do caixão.
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divulgação
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memória O tesouro escondido de uma eterna majestade
Cantor Geraldo Maia lança oitavo disco da carreira, Ladrão de purezas, que resgata obra do compositor Manezinho Araújo, o Rei da Embolada texto Débora Nascimento
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1 TRIO Geraldo Maia, Vinícius Sarmento e Lucas dos Prazeres assinam a produção musical do CD
Em setembro de 1973, um dos
convidados especiais do Ensaio, da TV Cultura, foi Manezinho Araújo. O artista somente aceitou participar do programa por causa do insistente convite do diretor Fernando Faro, um dos maiores entusiastas da música popular brasileira e de suas figuras legendárias. Naquela época, aos 63 anos, Manezinho já havia se desencantado com a música, ou melhor, com o meio musical. Dentre os seus (poucos) lamentos estava também o fato de ser ignorado em sua
terra natal: “Eu tenho muito amor por Pernambuco. Apesar de que tenho uma mágoa muito grande, porque eu, hoje em dia, talvez pra minha sorte, minha felicidade, sou muito benquisto, muito mais benquisto em São Paulo do que na minha própria terra”. Quase 40 anos depois desse depoimento e 18 após a morte de Manuel Pereira Araújo, o cantor pernambucano Geraldo Maia vai ao mesmo televisivo para interpretar as músicas de Ladrão de purezas, CD que cumpre a missão de refazer as pazes póstumas entre a obra do Rei da Embolada e o seu berço. Lançado de forma independente (apenas com a renda arrecadada junto a 58 pessoas, que compraram antecipadamente, cada uma, cinco cópias do CD), o disco foi a forma escolhida por Geraldo para celebrar o centenário de nascimento do compositor, ocorrido em 27 de setembro de 2010, e que acabou por promover um rico apanhado de algumas das melhores composições de Manezinho Araújo, atestando a diversidade de estilos pela qual transitou o autor, ultrapassando os limites do gênero musical que lhe deu fama. “Minha escolha do repertório foi pelo lado mais intuitivo, pessoal, da emoção mesmo, daquilo que, em Manezinho, me soa mais íntimo, familiar. Mas confesso: não tive a menor dificuldade quanto a isso; difícil foi decidir quais as que ficariam de fora, pois tenho uma profunda identificação com o seu trabalho. Só deixei de fora as emboladas. Propositadamente. Isso porque eu fiquei mais interessado em mostrar as outras facetas menos exploradas da obra dele”, afirma Geraldo, sobre o processo de seleção das 12 faixas. Para realizar o oitavo título de sua carreira de mais de 20 anos, Geraldo Maia optou por fazer um registro bem próximo da atmosfera dos álbuns ao vivo, registrando todo o material instrumental e os vocais ao mesmo tempo. Gravado em apenas dois dias, no Estúdio Carranca, o trabalho
apresenta um acompanhamento musical minimalista, com a voz do intérprete contornada por dois excelentes músicos da nova geração, o percussionista Lucas dos Prazeres e o violonista Vinícius Sarmento. O trio assina os arranjos e a produção musical do álbum, que dá espaço à graça brejeira das criações de Manezinho. “Desde o início da pesquisa, não tive dúvida: queria fazer esse disco com essa formação bem básica, orgânica, sem truques, evitando, ao máximo, os artifícios tão comuns hoje em estúdio (loops, overdubs etc.) e que estiveram presentes, por exemplo, no CD Peso leve (2008), que é meu primeiro disco autoral. Mas nada contra tecnologias e tal”, afirma Geraldo, que revelou ter usado só um pouquinho de overdubs em Ladrão de purezas, que será lançado no dia 30 de março, na loja Passa Disco, no Parnamirim.
O disco foi a forma escolhida por Geraldo Maia para celebrar o centenário de nascimento de Manezinho Araújo O disco abre com a suingada Vatapá, uma ode, no estilo de Dorival Caymmi, ao prato que era um dos hits do cardápio do Cabeça Chata, restaurante gerido por Manezinho, no Leme, no Rio de Janeiro, e, posteriormente, na rua Augusta, em São Paulo. A partir dessa primeira faixa, o CD se alterna em dois climas: um, mais melodioso e lírico, como nas faixas Adeus, Pernambuco (em parceria com Hervê Cordovil), Beata Mocinha, Novo amanhecer e Nana roxa; e, outro, mais divertido e empolgante, com Juntou a fome, Mulher rendêra (versão da música de domínio público) e os sambas Seu Dureza da Rocha Pedreira (que se assemelha às letras irônicas de Noel Rosa, um de seus “cupinchas” no Rio), Quando a rima me fartá, Seu Mané é um homem e Jogado fora (em parceria com Aldacir Louro e Dadivid Raw), que encerram o disco em alto astral.
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Nessas músicas se destacam as letras bem-humoradas e cheias de achados poéticos, como “Sacou um dia um conto/ só pra fazer farol/ O Cabral ficou foi tonto/ Quando viu a luz do sol”, de Seu Dureza da Rocha Pedreira. “Penso que o bom, o melhor de Manezinho, está exatamente na simplicidade, na forma direta como ele diz as coisas, sua pureza inata. Mas tudo com muito charme, com um incrível senso rítmico, uma perspicácia ímpar, uma sutileza no humor. Tudo nele é de muita delicadeza, apesar de, às vezes, parecer exatamente o contrário”, analisa o intérprete. O esmero de Geraldo Maia em apresentar às novas gerações o trabalho de Manezinho Araújo como exímio compositor popular ainda teve o
Sonoras mérito de também recuperar o talento do compositor como artista plástico. A capa e o encarte do disco são ilustrados com imagens (reproduzidas de catálogos) de belíssimas telas do compositor, em estilo naïf, sobre as quais há uma afetuosa declaração do escritor Jorge Amado: “Toda a vida brasileira está fixada nesses quadros tão nossos, trabalhados com tanto amor. Sim, eis a arte feita com amor, amor de um homem bom, cujo talento e cujo ofício foram colocados a serviço do maior conhecimento da paisagem física e humana de nossa terra, talento e ofício exercidos na paixão do Brasil”. Para uma exposição que realizou em 1987, Manezinho escreveu: “Um dia, minha mulher querida colocou pincéis em minhas mãos. Pincéis que explodiram num ingênuo festival de cores vivas. Exultaram as crianças traquinas que carrego no peito. E, com elas, fui pintando nas telas as cantigas do meu povo, guardadas, amorosamente, na garganta”.
Ladrão de Purezas GERALDO MAIA Independente CD resgata obra de Manezinho Araújo
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talento Manezinho atuou em diferentes áreas
Se você buscar no Youtube o nome “Manezinho Araújo”, vão aparecer poucas opções de resultado: dois vídeos com o registro de um show da Orquestra Sapucaia, em homenagem ao centenário de nascimento do compositor, promovido pelo governo municipal do Cabo de Santo Agostinho, sua terra natal; a música Saudade de Manezinho Araújo, do grupo Forró in the Dark, e um vídeo de um programa televisivo de culinária. Nesse último, uma apresentadora fala: “Hoje, vou fazer uma torta de banana com suspiro.
Muita gente conhece como ‘Manezinho Araújo’. É uma torta antiga, uma torta muito gostosa”. A cozinheira não fala mais nada sobre o tal nome do prato, mas o “muito antiga” e o “muita gente” comprovam o êxito que o compositor pernambucano teve também como dono do restaurante de comida nordestina, o Cabeça Chata, lugar que vivia lotado, tanto no Rio de Janeiro, quanto, depois, em São Paulo. O estabelecimento foi montado pelo pernambucano com o dinheiro arrecadado com seu último show,
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1-2 versátil Além da música, artista trabalhou no rádio, TV, cinema, jornal, montou um restaurante e pintou quadros
os soldados conseguiram embarcar para o Rio de Janeiro. Na viagem marítima, da volta ao Nordeste, conheceu Carmen Miranda, Almirante (este, na época, detinha o título de Rei da Embolada) e os violonistas Josué de Barros e Betinho. Convidado a cantar uma “música do norte”, o promissor rapaz recebeu elogios de Carmen e Josué de Barros – que prometeu ajudá-lo, se resolvesse morar na então capital federal. Manezinho regressou a Pernambuco, voltando, pouco tempo depois, ao Rio, onde se hospedou na casa de Barros, em abril de 1933. O amigo violonista conseguiu uma apresentação na Rádio Mayrink Veiga e, logo em seguida, o jovem seria contratado pelo Programa Casé, do radialista Adhemar Casé, na Rádio Philips. Nesse período,
A performance cheia ritmo e simpatia, aliada ao pleno domínio da plateia, levou-o a ser denominado de O Rei da Embolada
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realizado no Tijuca Tênis Clube, no Rio, em 1954, quando reuniu mais de 15 mil pessoas para sua despedida dos palcos. Ali, o artista encerrava precocemente a bem-sucedida carreira musical de 20 anos, na qual foi, também, autor de músicas gravadas por grandes nomes da música popular brasileira, como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Dircinha Batista, Cyro Monteiro, Dalva de Oliveira, Carmélia Alves e Aracy de Almeida. O sucesso de Manezinho no Sudeste era tão grande, que ele tinha programa de rádio, aparecia na TV e no cinema; foi um dos primeiros garotos-propaganda do Brasil, cantando jingles do sabonete Lifebuoy e do Óleo de Peroba, além de ser o elogiado intérprete das próprias composições – a sua performance cheia de vigor, ritmo, simpatia, gestos e expressões faciais cômicas, aliadas ao pleno domínio da plateia, levou-o a ser denominado de O Rei da Embolada.
O talento para cantar músicas de versos rimados, cadenciados e ininterruptos foi desenvolvido a partir da convivência com o cantor e compositor Minona Carneiro, um dos maiores mestres da embolada, que morava em Casa Amarela – bairro da Zona Norte do Recife, onde Manezinho residiu após sua família sair da sua cidade natal Cabo de Santo Agostinho. O caminho para a vida artística surgiu de forma inesperada. “Deixei Pernambuco porque entrei em incompatibilidade com meu pai. Eu era muito boêmio e meu pai me empregava e eu perdia o emprego. Aliás, só tive um. Perdi esse emprego por causa da boemia”, lembrou, no programa Ensaio. Triste com as repreensões paternas, decidiu dar um rumo à vida, engajandose na revolução de 1930. Mas, quando o pelotão chegou de navio à Bahia, já tinham sido encerrados os eventos no Sul. Mesmo assim, como compensação,
gravou também o primeiro disco pela Odeon, e passou a atuar no cinema como cantor. No Youtube, é possível assistir a uma preciosidade, sua participação no filme Amor para três (1960), cantando Pra onde vai, valente? De 1933 a 1956, o artista gravou diversos discos de frevos, cocos, sambas e emboladas. Dentre os seus sucessos estão Segura o gato, Sá turbina, Como tem Zé na Paraíba (com Catulo de Paula), Cuma é o nome dele?, O carrité do coroné, Tadinho do Manezinho e Quando eu vejo a Margarida, todas de sua autoria. Apesar de ser um homem ponderado, Manezinho também tinha suas idiossincrasias. Por exemplo, resolveu deixar o rádio sob o seguinte argumento: “(...) a idade pesa, porque, quando aparece um velho, dizem: ‘Ih, lá vem esse velho. Lá vem ele’. O sujeito já perde o nome”. Faleceu em 23 de maio de 1993, aos 83 anos, “muito bemvividos”, como dizia. (dn)
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Sonoras Brega rock
ORTINHO abre O CORAÇÃO
Sonoris Fábrica
REFERÊNCIAS NA TRADIÇÃO Apesar do reinado da canção popular, a música instrumental no Brasil resiste e vem revelando bons nomes, como o trio matogrossense Macaco Bong e os pernambucanos Joseph Tourton e o Sonoris Fábrica. Ao contrário dos dois primeiros, esse último não foca no rock, mas na mistura de música ibérica, nordestina e jazz. Desde que surgiu, em 2002, o grupo, formado pelos músicos Sérgio Ferraz (violino elétrico), Leonardo Melo (violão), Cláudio Negrão (baixo) e Márcio Silva (bateria), realizou diversos shows e participou de importantes eventos na capital pernambucana, como o Recife Jazz Festival e o Festival de Inverno de Garanhuns, tocando tanto composições próprias quanto de renomados autores da música instrumental, como Paco de Lucía, Al Di Meola, John McLaughlin, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Guinga e Villa-Lobos, colhendo elogios da crítica. Esse talento pode ser apreciado no novo CD do grupo, Sonoris Fábrica. Com um repertório de 11 faixas, o disco trafega por uma sonoridade encorpada, inspirada na música ibérica, no jazz e na música brasileira popular e erudita (como a Armorial). Boa parte das composições são assinadas por Leonardo Melo, como a empolgante Bonança, um forró com influência jazzística, um “forró atonal”. Entre os destaques do disco estão três composições de Leonardo Melo, o choro Sossego, Baião do Bob Ivo e Passo à frente (um frevo que tem o violino e a guitarra ocupando o lugar dos metais); Zumbi (Sérgio Ferraz), música com ritmo de maracatu nação que traz o diálogo entre rabeca e violão, e Mestre Salu (Sérgio Ferraz), um cavalo-marinho misturado com forró, que é um tributo ao rabequeiro, falecido em 2008. A “embalagem” dessa sonoridade não poderia ser mais condizente: a ilustração e a tipografia do CD foram assinadas pelo artista plástico Romero Andrade Lima. (Débora Nascimento)
Em 1975, Raul Seixas lançava um de seus hits, Tu és o MDC da minha vida, música que inaugurava um subgênero que podemos chamar de brega rock, ao misturar elementos do rock`n`roll com a Jovem Guarda, mais uma pitada de humor e cafonice. O estilo foi abraçado posteriormente por gente como Wander Wildner e, agora, pelo cantor Ortinho, em algumas faixas de seu quarto disco solo, Herói trancado. Neste CD, o compositor deixa de lado os temas sociais e se joga nas letras românticas, com tons irônicos – assinadas por ele ou com parceiros (Arnaldo Antunes, Mauro Finni e o novo darling Marcelo Jeneci) e embaladas em agradáveis arranjos retrô. O disco, como todo bom lançamento descolado dessa safra, traz a presença de um integrante da Nação Zumbi e da Mombojó, do pianista Vitor Araújo e do guitarrista Edgar Scandurra.
Arranjos e efeitos
FEIJÓ REGRESSA AO POP Depois de um disco dedicado ao samba (Sambasala, de 2005), o pop volta no terceiro CD solo da cantora Mônica Feijó, A vista, no qual a artista investe na sua faceta compositora, assinando cinco das 12 músicas. O estilo musical aparece em faixas como A flor cabaninha (Tom Rocha), Um par (Mônica Feijó/Areia) e O medo da dor (Areia). Produzido pelo baixista Júnior Areia, o disco faz uma leve mistura de gêneros (carimbó, brega, bossa nova…) em arranjos elaborados e cheios de efeitos de estúdio, a exemplo das faixas Água (Kassin), Porque hoje é dia (Mônica/Publius Lentulus) e Cross to my heart (Tim Maia) – essa é uma das quatro regravações, junto a Não deixe o samba morrer (Edson/Aloísio), Easy to be hard (Three Dog Night) e Mundo colorido (Vanuza).
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INDICAÇÕES POP
JAZZ
MICHAEL JACKSON Michael
CHICO PINHEIRO Flor de Fogo
Assim como o triste rumo que a vida de Michael Jackson seguiu, sua carreira também declinou nos últimos discos. O derradeiro e póstumo Michael deve ocupar as prateleiras dos fãs mais fiéis, mas está a léguas de distância do brilhantismo da fase do Jackson Five e dos álbuns Off the wall (1979) e Thriller (1982). De atrativo, o CD traz as primeiras inéditas em nove anos, nas quais o artista estava trabalhando e algumas participações, como as de Lenny Kravitz, Dave Grohl, Akon e 50 Cent.
De vez em quando, a crítica se depara com o “novo salvador” de algum gênero musical. Tempos depois, a verdade vem à tona, para o sim ou para o não. Em 2003, quando lançou seu primeiro disco, Meia-noite, meio-dia, o compositor, instrumentista e cantor Chico Pinheiro foi aclamado pela imprensa especializada. Agora, em seu quarto CD, Flor de fogo, o músico não decepcionou seus entusiastas e lançou um dos melhores discos do ano, apesar de ainda não ser um intérprete e um letrista acima de qualquer crítica.
Sony Music
Atração
ROCK
A CARAVANA DO DELÍRIO Delirius tremens Independente
A marca registrada da jovem banda pernambucana não parece estar vinculada a nenhum gênero musical, mas, sim, ao humor que percorre grande parte de suas composições. Melancólicas ou animadas, as músicas, assinadas pelo vocalista Matheus Torreão, chamam a atenção pelas letras criativas, como é o caso de Hino do vegetariano e Pervertido. No entanto, o risível não é regra, pois no CD também tem espaço para temáticas mais sóbrias, como em Esperando a volta do Mecenas.
FREVO
SÉRGIO DE ANDRADE Frevo Independente
Como diz a canção de Moraes Moreira: “Quem disse que o frevo já era/ quem disse, não sabe onde fica Recife/ Quem disse que ficou caduco é maluco/ não sabe onde é Pernambuco”. O segundo CD solo do cantor Sérgio de Andrade, vocalista da Banda de Pau e Corda, está aí para provar isso. O álbum reafirma o flerte do artista com a cultura popular e reúne nove canções inéditas e duas regravações. No tom da nostalgia carnavalesca, o projeto renova o repertório de composições desse ritmo.
Harmônico
NANÁ VASCONCELOS PÕE BATUQUE NA SINFONIA O percussionista Naná Vasconcelos criou a imagem mental de uma orquestra sinfônica ensaiando e sendo inesperadamente acompanhada por um grupo de maracatu nação, que estaria por ali de passagem. O resultado desse encontro imaginário foi a música Sinfonia & batuques, composição que intitula seu novo disco, lançado com recursos do Funcultura. O álbum é permeado por misturas de percussão de ritmos nordestinos, como maracatu, baião e samba, com instrumentos mais harmônicos, principalmente cordas. Um dos mais bemsucedidos resultados é o da música de abertura, a épica Mãe Menininha, um maracatu sinfônico com coral infantil, em homenagem à mãe de santo baiana. Segundo o instrumentista, ele atendeu a “um pedido espiritual para fazer uma música a essa rainha negra nagô”.
O repertório abrange 12 faixas, sendo 11 inéditas e mais a regravação de Recife nagô, do hitmaker J.Michiles. Seu filho, César Michiles, assina dois arranjos com Naná em Santa Maria (Kituxi) e Batuque nas águas, acompanhado pela flauta de César e percussão na água – o som da substância aparece mais uma vez na música Lamentos, que faz uma reconstituição sonora da viagem ao Brasil dos escravos africanos nos navios negreiros. César ainda assina e faz arranjo sozinho da faixa Pó de chinelo, uma interessante amálgama de choro com baião. O disco traz ainda a participação da filha de Naná, a pianista Luz Morena, meninaprodígio que apresenta três composições suas, Mistério, Pedalando e Canção para Nanili. (Débora Nascimento)
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COLETIVO “A amizade é a matéria-prima”
1 ESTRADA PARA YTHACA
o filme, os N diretores também dão vida aos personagens afligidos pela morte de um amigo em comum
Alumbramento Filmes, produtora que se consolida no mercado cinematográfico nacional, ratifica potencial do audiovisual cearense
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texto Gianni Paula de Melo
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Durante muito tempo, o audiovisual foi um campo de produção instável e escasso no Ceará. Assim como em Pernambuco, as articulações políticas e culturais favoráveis a esse campo surgiram paulatinamente e o que movia os realizadores, a princípio, era nada mais que a sincera vontade de filmar, mesmo com pouca ou nenhuma verba. Com o surgimento do Cine Ceará, em 1991, inicialmente chamado de Vídeo Mostra Fortaleza, houve uma ampliação do espaço para debates e exibição. No entanto, apesar dos anos 1990 também
marcarem a retomada da produção cinematográfica nacional, pode-se dizer que pouca coisa havia mudado para os estados do Nordeste, já que os investimentos ficaram centrados no eixo Rio-São Paulo, num primeiro momento. A despeito das dificuldades, surgiram importantes diretores cearenses, como José Lopes Araújo, Wolney de Oliveira, Glauber Filho e Karin Ainouz. Ao mesmo tempo, veteranos como Jefferson de Albuquerque Jr. e Rosemberg Cariry se estabeleciam no cenário audiovisual do país. Esse último é a maior referência do cinema cearense, autor de uma filmografia premiada, formada por obras que lançam um olhar sobre as raízes culturais de sua região, como Caldeirão da Santa Cruz do deserto (1986), A saga do guerreiro aumioso (1991), Corisco & Dadá (1996) e Lua cambará, nas escadarias do palácio (2003). Para a sorte dos entusiastas do cinema cearense, assistimos ao surgimento e/ou consolidação de um conjunto de fatores estimulantes às novas produções, a partir dos anos 2000: os projetos puderam ser barateados devido às novas tecnologias; a internet viabilizou o compartilhamento de filmes raros, o que ajudou a formar o olhar das novas gerações, assim como facilitou a divulgação de seus trabalhos; os editais públicos estaduais estimularam o surgimento de produtoras e foram criados cursos superiores para formar profissionais do audiovisual. O Ceará vislumbrava, portanto, o surgimento de um novo capítulo na história do seu cinema.
ALUMBRAMENTO
Entre os “filhos” desse contexto favorável, o grupo numeroso de cineastas que forma a produtora Alumbramento Filmes vem se destacando em importantes festivais do país. O coletivo, tal qual existe hoje, foi criado no ano de 2006, na época em que ganhou o incentivo do DocTV para filmar o longa-metragem Sábado à noite. Naquele momento, os integrantes perceberam a necessidade de ter uma produtora para organizar ações, buscar investimentos, disputar incentivos. Ao todo, a Alumbramento é composta, atualmente, por 13 pessoas: Luiz e Ricardo Pretti, também conhecidos como os Irmãos Pretti, Guto Parente,
Ivo Lopes Araújo, Fred Benevides, Danilo Carvalho, Mariana Smith, Maíra Bosi, Ythallo Rodrigues, Themis Memória, Rúbia Mércia, Thais de Campos e Glaucia Soares. “Foi um encontro de pessoas muito próximas, amigas, que já estavam produzindo juntas, pensando cinema juntas.” É dessa forma que Luiz Pretti avalia o surgimento da produtora, que mantém laços afetivos e profissionais com outros realizadores, como Pedro Diógenes e Uirá dos Reis. Essa afinidade prévia entre os membros da Alumbramento parece uma fórmula certeira para intensificar a criação audiovisual, a partir de procedimentos de valorização mútua das produções de cada um dos componentes do grupo. Quando assistem e avaliam o trabalho uns dos outros, a vontade é de potencializar a expressividade cinematográfica. “Não há egos. A gente decidiu se acompanhar; então,
Com a chegada do Cine Ceará, em 1991, houve ampliação dos debates e das exibições naquele estado a competição não tem sentido”, comenta Fred Benevides. O grupo parece ter levado ao pé da letra o comentário do diretor Rogério Sganzerla, quando afirmou que “a amizade é a matéria-prima de qualquer cinema de envergadura”. Assim, o resultado dessa parceria é uma inquietude estética que está se alastrando não só pelo Ceará, mas por todo o país. “Outras pessoas fazem filmes que acham que se comunicam com a nossa proposta, e divulgam como um ‘filme alumbramento’, às vezes à revelia da produtora”, conta Fred. Mas, ao contrário do que se pode imaginar, esse fenômeno não agride ou incomoda os integrantes do coletivo: “Alumbramento é um estado de espírito e a ideia é espalhar, não fechar num grupo para legitimar uma estética”, completa. Também é importante ressaltar a não restrição geográfica para o
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2 PRODUTORA
Desde 2008, quando Sábado à noite foi premiado na 11ª Mostra de Cinema de Tiradentes, a Alumbramento se tornou assídua do festival
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estabelecimento de identificação com outros filmes. A nomenclatura “cinema cearense” menciona, sim, o cinema produzido em uma localidade específica do país, mas não pretende estabelecer um conceito uno da manifestação audiovisual desse lugar. Tampouco obriga os realizadores a estarem necessariamente (e exclusivamente) em sintonia com seus conterrâneos. No caso da Alumbramento, destaca-se o diálogo que estabelece com as produtoras pernambucanas Símio Filmes e Trincheira Filmes e com a mineira Teia, no tocante à experimentação da linguagem cinematográfica, na direção de um “cinema de risco”.
TRAJETÓRIA
Desde 2008, quando o filme Sábado à noite, de Ivo Lopes Araújo, foi premiado pelo Júri Jovem na 11ª Mostra de Cinema de Tiradentes, a produtora cearense pautou muitas discussões audiovisuais no país. A partir de então, seus integrantes se tornaram habitués do festival mineiro. Na edição de 2010, o coletivo saiu consagrado com os prêmios do Júri da Crítica e do Júri Jovem pelo longametragem Estrada para Ythaca. Em Tiradentes, eles também exibiram, nos últimos três anos, os curtas-metragens Às vezes é mais importante lavar a pia do que a
Com as novas tecnologias, editais e cursos superiores na área, aumentaram os números de projetos de audiovisuais louça ou Simplesmente Sabiguaba, Azul, Flash happy society e As corujas. Em janeiro deste ano, Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes, os mesmos nomes que partilham a concepção do filme Estrada para Ythaca, voltaram à mostra para exibir o seu mais novo projeto, Os monstros. Na ocasião, o cineasta Ythallo Rodrigues também apresentou o curta-metragem Lampião. É de se esperar que esses projetos cheguem ao público recifense pelo IV Janela Internacional de Cinema, já que o festival, sob direção artística de Kleber Mendonça Filho, vem acompanhando a trajetória do coletivo desde sua primeira edição, em 2008, quando exibiu e concedeu menção honrosa ao filme Longa vida ao cinema cearense, dos Irmãos Pretti. Quando o assunto é a produção da Alumbramento, fica difícil estabelecer os limites estilísticos e técnicos das
obras. Mais frustrante é tentar classificar ou categorizar o trabalho dos cineastas sem soar redutor. A produção do coletivo possui um conjunto de aspectos recorrentes, porém não obrigatórios. A preocupação em transmitir sentimentos e retomar ambientações percorre a trajetória do grupo, principalmente explorando um modo operacional de observação minuciosa do mundo, das pequenas ações. Outra característica presente em vários filmes é certa dilatação do tempo, resultado de uma desaceleração na representação das experiências. Mas, como dito anteriormente, é difícil imaginar esses elementos como obrigatórios. O essencial de sua produção, ao que parece, é o compromisso e o manifesto por um cinema afetivo e incerto, como avaliou o próprio Fred Benevides: “O que os trabalhos têm em comum é o risco, eles nunca surgem de uma ideia cômoda. Nunca é um projeto que, a priori, a gente já sabe que vai dar certo”. Outra peculiaridade da Alumbramento Filmes é a economia de diálogos, muitas vezes combinada a minimalismos estéticos. Os filmes – que para alguns podem parecer herméticos – estão na maioria das vezes falando de nós mesmos, de impasses, assombrações e conflitos íntimos.
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INDICAÇÕES FILMografia Alguns dos títulos produzidos pela Alumbramento Sábado à noite Direção Ivo Lopes Araújo, 2007
O dispositivo do documentário é simples: pedir carona a desconhecidos e ser levado pelas ruas da capital cearense. Mas também se apresenta falho ainda no início: alguns personagens se negam a colaborar com a produção. O resultado é um documentário inventivo, no qual a cidade é revelada sob olhar delicado.
Praia do Futuro Direção coletiva, 2008
O longa-metragem, formado por 15 episódios, tem como fio condutor a popular Praia do Futuro, em Fortaleza. O resultado evidencia divergências e convergências de olhares dos 18 diretores envolvidos no projeto e sem restrições para a abordagem da temática comum.
DRAMA
COMÉDIA
Direção de Cacau Amaral, Luciana Bezerra e outros Com Vitor Carvalho, Márcio Vitor, Gregório Duvivier, Silvio Guindane Sony Pictures
Direção de Lisa Cholodenko Com Julianne Moore, Annette Bening, Mia Wasikowska, Mark Ruffalo Swen Filmes
5 X FAVELA, AGORA POR NÓS MESMOS
MINHAS MÃES E MEU PAI
Produzido pelo cineasta Cacá Diegues, o filme de 2010 (o original é de 1962) foi resultado de várias oficinas de capacitação, ministradas por nomes como Fernando Meireles, para jovens que habitam as favelas do Rio de Janeiro. Eles puderam escrever e dirigir cinco filmes, sob a ótica de quem conhece de perto uma temática exaustivamente abordada pelo cinema nacional.
Surpresa do circuito “alternativo” hollywoodiano, a obra foi feita com pouco dinheiro, mas contou com um elenco de estrelas. A diretora evitou estereótipos ao retratar uma família não tradicional: com duas mães e nenhum pai. Quando os filhos adolescentes do casal Jule e Nic decidem conhecer o pai biológico, a harmonia do lar entra em colapso. Annete Bening encontra o tom certo para a sua personagem: uma mãe que vive uma crise no lar.
DRAMA
DRAMA
Direção de Semih Kaplanoglu Com Erdal Besikçioglu, Tülin Özen, Alev Uçarer Paris Filmes
Direção de David Fincher Com Jesse Eisenberg, Andrew Garfield, Justin Timberlake, Armie Hammer Sony Pictures
Rumo
Direção Luiz Pretti e Ricardo Pretti, 2009
Fazer bons filmes com celular é mesmo possível? O dispositivo que viabilizou registros caseiros poderia ser levado às salas de cinema? Neste filme, os Irmãos Pretti encaram o desafio de elaborar um longa de ficção com imagens captadas unicamente por celular. A experiência torna evidente o potencial e a fragilidade inerentes às novas tecnologias.
Tem que ent. Sum fuga. Turit, sam Flash Happy Society conseque excerum Direção Guto Parente, 2009 explitem exceped Inteligente recorte da apologia da imagem própria de nosso qui omnis As cenas de elitatquam um show musical, iluminado por tempo. flashs fotográficos, combinadas à tensão agregada pelo vellenitis dolest, áudio (que discutem o estatuto da imagem na sociedade contemporânea), dão ao curta um caráter levemente hipnótico, que é conduzido até o último minuto.
UM DOCE OLHAR
Supermemórias
Direção Danilo Carvalho, 2010
Verdadeiro mosaico de recordações, organizado a partir de registros pessoais de famílias cearenses filmados em Super-8. O curta transporta o público para uma temporalidade bastante íntima. As imagens promovem uma comoção que é de nós todos.
Estrada para Ythaca
Direção Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes, 2010
O road movie contempla dois temas caros ao coletivo: a amizade e o cinema. Mais que oferecer o resultado fílmico, Estrada para Ythaca convida à reflexão sobre o processo, o percurso e a entrega por algo em que se acredita. Nele, os diretores também são os personagens, afligidos pela morte de um amigo comum.
“Não espalhe os seus sonhos por aí”. A frase que inicia o filme do diretor turco, ganhador do Urso de Ouro de 2010, é a síntese da sua obra. A relação de carinho e dependência entre pai e filho é o que mantém a criança conectada ao resto do mundo. Com uma bela fotografia, Semih criou uma joia do cinema turco. O lançamento em DVD deve ser comemorado, pois a obra faz parte de uma trilogia “inversa” e os outros filmes não foram ainda distribuídos no Brasil.
A REDE SOCIAL
Um dos destaques de 2010, a obra aborda a turbulenta criação do Facebook, por Mark Zuckerberg. David Fincher e o roteirista Aaron Sorkin construíram um filme sobre a quebra de laços afetivos, a partir do desenvolvimento do site de relacionamentos, baseado na troca de informações entre amigos. Apoiado no slogan “Você não consegue 500 milhões de amigos, sem fazer alguns inimigos”, o longa retrata uma geração vitimizada pela própria ambição.
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Leitura
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SEQUENCIAL Viagem narcísica e perturbadora
Em 676 aparições de Killoffer, autor francês narra a experiência de uma temporada em Quebec, a partir de uma abordagem surreal e escatológica TEXto Diogo Guedes
O título é provocativo: o autor Patrice Killoffer de fato aparece 676 vezes no seu livro? O que parece apenas um jogo com o leitor é, na verdade, uma narrativa angustiada sobre um homem fora de sua cidade obrigado a refletir sobre sua viagem. 676 aparições de Killoffer, obra de referência para a linguagem dos quadrinhos, ganhou tradução nacional e chega às livrarias depois de ter sido lançada na Rio Comic Con, no final do ano passado. Um dos nomes mais experimentais da área, Killoffer não é importante para os quadrinhos contemporâneos apenas pela própria obra. O autor é um dos fundadores da editora francesa L’Association, marcada por sua atuação de vanguarda no mercado e responsável por publicar duas das mais elogiadas graphic novels dos últimos anos: Persépolis, da iraniana Marjane Satrapi, e Epilético, de David B., um dos principais lançamentos de 2010. Além dos dois autores, o selo também é o responsável por levar para a língua francesa obras de Chris Ware, um dos que mais inovam dentro das HQs. Como os próprios autores que publica, Killoffer não está muito interessado em criar uma narrativa convencional. Com uma abordagem
Autor é uma das figuras de proa dos quadrinhos experimentais, tendo sido fundador da editora L’Association surreal, sua matéria-prima é a mesma de boa parte dos quadrinhos atuais: a própria experiência. O livro foi, na verdade, uma obra feita sob encomenda para uma bolsa de estudos, que exigia que o beneficiado morasse por um período no Canadá – o francês escolheu a francófona Quebec – e escrevesse um livro sobre a experiência. A narrativa angustiada e escatológica de Killoffer foi recusada, saindo em 2002 pela editora L’Association. Isso porque ele rejeitou sua ideia inicial, a de fazer um diário de viagens, por achá-la entediante. “Na verdade, a repugnância pela autobiografia foi o que levou a esse resultado”, disse o autor ao jornal Estado de S.Paulo. O livro é centrado em si, mas se nega a ser uma mera junção de anotações e reflexões de uma passagem por um país diferente, com o olhar forçado
de um estrangeiro que procura o pitoresco no que não é espelho. A pequena quantidade de texto do livro – toda letreirada pelo autor para a versão em português – , concentrada nas primeiras páginas, questiona justamente a inutilidade de se pensar em diferenças entre os países e de contar “historinhas” sobre isso. “Eu me pergunto se eu não sirvo apenas para isso: defecar um pouco da França na América, digerir um pedaço do Quebec, para levar uma amostra para Paris em forma de merda”, escreve. O enredo é surreal, mas sua premissa é simples. Killoffer foi para Quebec, deixando uma pendência em Paris: uma pia cheia de pratos, talheres e copos sujos. “Não tenho a consciência tranquila”, diz a primeira frase da obra, logo após o pesadelo em que o personagemautor é atacado pela gosma que apodrece dentro da sua casa na França. O livro, todo ambientado no clima de um sonho ruim, é movido pela angústia de Killoffer, agravada pela obrigação de estar numa cidade desconhecida e simbolicamente insignificante para ele. O percurso do autor por Quebec parece desinteressado, mas seu estranhamento surge aos poucos. De repente, ao contrário de um
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om a ausência de quadros, C Killoffer faz o leitor confundir o que é sequencial com o que é simultâneo na narrativa
Nesta página 2 Metáfora
As louças sujas que deixou em Paris refletem o estado mental do personagem-autor
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Killoffer caminhando pela cidade, vê-se Killoffers, no plural, dividindo ações entre si. A pia suja, metáfora da incapacidade de esquecer e abandonar repentinamente sua Paris e sua vida, agora é um sintoma externo: a fragmentação (ou multiplicação) do eu.
SEM QUADROS
O nome em português brasileiro da nona arte – história em quadrinhos ou quadrinhos – é, sem dúvida, um dos mais precisos. A alcunha francesa band dessinè (ou banda desenhada, no português europeu), dando a mera ideia de coletivo de desenhos, só não é mais pobre que a expressão inglesa comics, marcada pela origem humorística dos quadrinhos. O termo história em quadrinhos tem um significado próximo ao conceito de arte sequencial, cunhado por Will Eisner, concebendo justamente o que é definidor da linguagem:
um conjunto de quadros que constitui uma narrativa. Killoffer, aparentemente insatisfeito com os limites da forma, ataca justamente esse aspecto dos quadrinhos. Com exceção de meia dúzia de páginas, a sua narrativa é construída sem diferenciação evidente entre os quadros. A subversão do autor tem relação direta com a sua participação no OuBaPo, acrônimo em francês para Workshop de Quadrinhos em Potencial, o equivalente quadrinístico do OuLiPo, movimento literário de Raymond Queneau, François Le Lionnais e Georges Perec, baseado na criação de condições e limites para a produção de uma obra. Fã dos jogos de restrições característicos do grupo, Killoffer busca eliminar os quadros para propor uma narrativa sem a definição exata do movimento dos personagens – cabe ao leitor
supor quando se encerra uma cena e quando começa outra. O recurso se encaixa com maestria na história, porque ressalta o clima de dissolução sentido pelo próprio personagem, que passa a ocupar o mesmo local duas, três, oito vezes, nas grandes páginas de 25 x 37 cm do livro. O que era apenas a sucessão de cenas sem limites demarcados transforma-se no retrato de um evento simultâneo, caótico. O Killoffer “original”, se é que há um, vê suas cópias encarnarem seus piores desejos e instintos. São eles que sujam a casa e a enchem de fumaça de cigarro para sair à noite atacando mulheres e brigando em bares, diante da expressão atônita, mas kafkiana, do personagem – que cozinha, arruma, lê, desenha e bebe conformadamente. Mas, se em Kafka a presença do absurdo é algo externo, em Killoffer ela é pessoal e intransferível, em sua forma física e psicológica. Por fim, o egocentrismo da obra, cujo único personagem é o autor francês, impressiona. Ele aparece mesmo 676 vezes, em meio a alguns coadjuvantes sem nome, o que rende do próprio quadrinista uma brincadeira na dedicatória: “Para Killoffer, sem quem esse livro não seria possível”. Mergulhado em um narcisismo às avessas, Killoffer não tem outra saída senão combater a si mesmo de alguma forma, nem que seja transformando perturbação em quadrinhos.
676 aparições de Killoffer Killoffer Barba Negra A graphic novel é um mergulho na pertubação kafkiana do autor francês
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desenho Clássico da poesia em narrativa gráfica
Morte e vida severina ganha nova adaptação para quadrinhos pelo cartunista Miguel Falcão
Um dos usos dos quadrinhos é servir como adaptação de obras de outros gêneros. O processo, por exemplo, transforma tomadas cinematográficas em imagens fixas e o texto corrido de romances em uma seleção ilustrada de descrições e diálogos, na maioria
dos casos, preocupada em manter a fidelidade do enredo. Adaptar poemas compostos quase totalmente por imagens e sonoridades de difícil transporte para essa linguagem parece um projeto ambicioso. A poesia dialoga razoavelmente bem com a ilustração,
basta lembrar autores, como Manoel de Barros, que costumam inserir desenhos nas edições de seus livros. Fazer imagens poéticas, no entanto, virarem narrativas gráficas sem se tornarem vagas ou redundantes é uma tarefa hercúlea. Foi justamente essa a proposta do quadrinista e chargista Miguel Falcão em Morte e vida severina (Auto de natal pernambucano). A obra em quadrinhos, lançada em edição não comercial em 2005, ganhou nova versão no final de 2010, mais uma vez pela editora Massangana (Fundaj). A publicação agora é acompanhada de um DVD com a adaptação de Morte e vida severina para desenho animado, dirigida por Afonso Serpa e realizada em parceria com a TV Escola. Os textos de apresentação da diretora de cultura da Fundaj, Isabela Cribari, e do coordenador da Massangana, Mário Hélio Gomes, lembram a data que originou a primeira versão do quadrinho, os 50 anos da institucionalização das Ligas Camponesas, cuja luta está presente na obra com a crítica ao latifúndio. Pensando na dificuldade de uma adaptação, a escolha do poema de João Cabral de Melo Neto pode ser considerada desde o início um acerto. Além de conter um fio narrativo claro, o que dá à história personagens e um desenvolvimento lógico, Morte e vida severina é todo composto por versos em formato de diálogo ou discurso, permitindo que o texto seja inserido no balão dos quadrinhos, sem a necessidade de se cortar parte da obra ou de transcrever descrições de cenário. Assim, a concisão e controle do poema são um ponto libertário para
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a adaptação. Miguel pôde representar livremente sua visão poética dos cenários do Sertão, do Agreste, da Zona da Mata e da capital do Estado, acrescidos de humanidade e crueldade, a partir do uso progressivo de linhas paralelas e sobrepostas, no belo traço do pernambucano. Na busca por ser didático – claramente uma das intenções da publicação - sem ser óbvio, o autor representa com propriedade os personagens. No momento da apresentação de Severino, no início do poema, Miguel desenha um carpinteiro comum, cartunesco, mas com o rosto que sugere as marcas da vida severina que é obrigado a levar. Os outros Severinos, “iguais em tudo e na sina”, também aparecem, com o mesmo rosto e os mesmos traços, ainda que exista alguma sutil diferenciação entre cada um deles, que é difícil de descrever – e é esse o
A atual adaptação da obra cabralina vem acompanhada de um DVD com animação realizada por Afonso Serpa exato sentido do adjetivo “severino” que João Cabral cria na sua obra. Personagem tão importante quanto o retirante Severino é a Morte severina. A representação original de um esqueleto coberto com um manto preto e carregando uma foice é habilmente adaptada ao cenário da história. O rosto não traz um crânio humano, mas, sim, bovino, referência à imagens dos boi que falecem famintos e esturricados na seca. Nas mãos, a Morte leva machados ou espingardas, também assumindo
o papel de mulher, padre e até do balseiro Caronte, da Divina comédia. As imagens que Miguel acrescenta à história, sem deturpá-la, não se encerram aí. Severino encontra uma rezadeira, que sobrevive à custa do único mercado que nunca escasseia no Sertão, o da morte. Enquanto o diálogo entre os dois ocorre, o quadrinista mostra a senhora plantando pequenos crânios humanos e vendo esqueletos florescerem deles, representação da crueldade do seu ofício. Por fim, Miguel também achou espaço para algumas curiosidades e homenagens. Personagens, como os coveiros e Seu José, o mestre carpina, recebem rostos baseados em figuras importantes da cultura pernambucana, como o geógrafo Josué de Castro, o sociólogo Gilberto Freyre e o ex-governador Miguel Arraes, esse encarnando a resposta final, otimista, do poema. DIOGO GUEDES
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INDICAÇÕES INFANTIL
GOIMAR DANTAS Quem tem medo de papangu? Cortez Editora
Na obra, ilustrada por Cláudia Cascarelli, a autora resgata as origens dessa tradição carnavalesca nordestina, profundamente ligada à sua infância na cidade de Japi, no interior do Rio Grande do Norte. Seu avô costumava vestir-se de papangu e ganhar as ruas, assustando e atraindo a criançada. De forma divertida e ritmada, em versos, Goimar Dantas explica aos leitores como os primeiros papangus surgiram no Recife, ainda no século 19, com o intuito de organizar as procissões católicas de Cinzas – nas quais a garotada sempre fazia muita confusão –, como eles foram banidos anos depois, acusados de tiranos, e como eles ressurgiram com toda força, em cidades como Bezerros.
ROMANCE
COLETÂNEA
BRUNO PIFFARDINI, WELLINGTON DE MELO, ARTUR ROGÉRIO (ORGS.) Tudo aqui fora escrito, tudo fora escrito ali Grupo Paes
Os editores desta antologia de autores pernambucanos – cinco poetas e cinco ficcinistas, todos surgidos na última década – atestam que ela foi pensada para afirmar a liberdade criativa da literatura contemporânea, no que concerne à expansão dos gêneros, que nesses tempos pós-modernos escapam cada vez mais dos compartimentos dos gêneros. Todos são autores pernambucanos ou radicados no estado. Destaque para a revisão cuidadosa, o charmoso projeto gráfico e, claro, a seleção equilibrada dos textos a partir do recorte pretendido.
JUSTO NAVARRO Irmã Morte Record
Neste segundo romance, o poeta e romancista espanhol aborda a temática da morte a partir da experiência de dois irmãos que perdem o pai e, órfãos, devem seguir as próprias vidas. O personagem narrador é o irmão mais novo, que retarda psicologicamente a realidade da morte. Ele nutre pensamentos mórbidos em relação à irmã, enquanto comenta as transformações urbanas que se processam no entorno da casa que compartilham, num contexto de decadência. Navarro nos coloca diante de perdas e memórias, de como em nossa mente se expressam as relações e as mudanças às quais somos expostos; a maioria, entretanto, indesejável aos nossos sentimentos.
CRÔNICA
ANTONIO PRATA Meio intelectual, meio de esquerda Editora 34
A tradição de comentar com graça as pequenezas do cotidiano, característica da crônica brasileira, está plenamente mantida nesses textos do jovem autor paulista, que tem escrito regularmente na imprensa nacional. São cerca de 80 pequenas crônicas, que tratam dos mais prosaicos assuntos e sob diversificados estados de espírito. Da emoção do relato de uma “promessa” de amor, da galhofa quanto a uma reincidência de nomes absurdos de pet shops à originalidade de observação quanto à assepsia sombria das lojas de colchões. Ideal para proporcionar riso e relaxamento.
Antropologia
OS DESAFIOS À DEFINIÇÃO DE “CULTURA” É admirável observar em Roy Wagner a desenvoltura de raciocínio e a liberdade de interpretar seu campo de conhecimento, neste seu “clássico” A invenção da cultura. Só mesmo um estudo assim, que se desprende das amarras impostas pela rigidez acadêmica, poderia se tornar um “divisor de águas” na Antropologia. “O que é essa tradicional ‘ciência do homem’, com suas reificações da tradição e dos costumes, sua evolução, seu ‘superorgânico’ e sua visão de mundo sintética de fenômenos
‘culturais’ precariamente equilibrados sobre um castelo de cartas acadêmico com estampas como ‘química’, ‘biologia’, ‘psicologia’, ‘ciência política’?”, nos indaga o autor. Publicado em 1975, com reedição revista e ampliada em 1981, A invenção da cultura (Cosac Naify, 2010) recebe sua primeira tradução para o português, constituindo-se uma fonte de pesquisa facilitada para antropólogos brasileiros da cultura que, neste volume, contam também com um posfácio escrito especialmente
para a edição pelo autor, sua bibliografia completa e índice remissivo de nomes e ideias. A partir de estudos de campo entre os daribi, Roy Wagner desenvolveu uma teoria geral sobre a invenção de significado e sobre a noção de cultura. “A inovação do argumento wagneriano”, aponta a editora, “é a sua afirmação de que a cultura é uma ilusão: o antropólogo, atuando no modo de simbolização generalizante e convencional, constitui as ‘culturas’ de outros povos”. Ao mesmo tempo que explicita
as bases epistemológicas do conceito de cultura, o livro aponta para como ocorrem os modos de simbolização ocidental e os de sociedades tribais. Nascido em Ohio, em 1938, Roy Wagner fez pósgraduação em Antropologia pela Universidade de Chicago, realizou seus estudos de campo em Nova Guiné, foi professor universitário em Illinois nos anos 1960 e 1970, e leciona na Universidade da Virgínia, desde que, em 1974, foi convidado para chefiar o departamento de Antropologia da instituição.
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Artigo
COLAGEM: KARINA FREITAS
NELLY CARVALHO QUAL O SENTIDO DAS PALAVRAS DE PLÁSTICO? A língua materna é um bem pessoal,
na medida em que é um bem coletivo, diz a romena Slama-Cazacu. Seguindo essa linha, Celso Luft dizia que a língua é vida, faz parte de toda a gama de comportamentos sociais, como comer, morar, vestir-se, não sendo algo postiço, nem uma realidade à parte. É um saber cultural, vital e expressivo, que faz parte da forma de ver o mundo. As palavras não são rótulos de objetos. Elas têm um sentido um tanto volátil que se modifica de acordo com a ocasião de uso, e constitui-se uma das formas de liberdade de expressão que o falante tem à sua disposição. Em seu livro 1984, George Orwell conta que a ditadura do Grande Irmão (origem equivocada do Big Brother) proibia o uso das palavras polissêmicas, que pudessem ter várias referências, para ter o poder de aprisionar o pensamento dos cidadãos. Como o sentido múltiplo é regra geral nas línguas, cassava-lhes a liberdade de expressão. Nem a ditadura de 1964 no Brasil conseguiu esse feito. Ao contrário, propiciou que se compusessem obrasprimas de sentidos múltiplos, como Cálice e muitas outras mais. Há dois princípios contraditórios que, no momento, estão exercendo pressão sobre a atividade linguística falada ou escrita no Brasil. O primeiro seria o conceito – importado dos EUA – do politicamente correto (Será que tudo que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil?). Diz Cecília Meireles: “A liberdade das almas é frágil, frágil como um vidro”. Assim, frágil, também é a liberdade de expressão, que periga no momento de ser cerceada. Proibir usos linguísticos consagrados pelo povo, que fala, como diz Bandeira, a língua certa, o português gostoso do Brasil. Mais uma vez, procuramos, equivocadamente, copiar a cultura americana, na qual se desenvolveu esse conceito. As substituições eufêmicas se tornam inadequadas ou ridículas:
muitas vezes, contaminam-se do sentido anterior. Não deixa de ser falsidade ou hipocrisia refletida na linguagem. Por isso, T. Bolinger considera difícil estabelecer os limites entre eufemismo e engano ou mistificação. Nada se presta mais como instrumento paradoxal de libertação ou repressão do que a língua materna, cerne do nosso eu pensante. O segundo princípio é o da substituição por termos generalizantes que não modificam nem acrescentam nada ao sujeito ou objeto renomeado, na maioria, vindos do inglês, para dar modernidade à fala e status ao que é citado. É a linguagem enquadrada que, nessa era de massificação e produtos em série em que vivemos, é constituída de clichês e chavões que procuram trazer uma conotação modernosa e tecnocrática, como “teto” e “piso” salarial. Alguns vêm do inglês: trade, stand by, taking off, delivery, upgrade.
O uso abusivo de termos equivocados para antigas profissões, como hair designer ou “arquiteto capilar” para cabeleireiro. Surgem ainda na fila outras, como designer gráfico, designer de sobrancelhas, designer publicitário. Em fevereiro, na TV, ouvimos o termo cake designer, para referir-se ao prosaico e antigo confeiteiro. Será que dá mais prestígio? Personal entrou para ficar: personal trainner, personal stylist, personal teacher, personal chef, personal card, personal diet e até personal sex trainer (aconselhadoras sobre a arte do sexo para mulheres). Um linguista alemão, Pörksen, denomina “palavras de plástico”, as que entram na moda com sentidos imprecisos, servindo para tudo. São expressões novas da linguagem midiática, que resultam de mudança de significado criadas por especialistas de diversas áreas e caem no gosto do falante comum, sem entender bem o significado, pelo teor de modernidade.
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Outro alemão, Werner Ludger Heiderman, denominou-as palavraschiclete, porque depois de muito usadas são jogadas fora. Ao perder o sabor de novidade, saem de uso. A publicidade, a moda, o jornalismo social, constituem-se áreas em que as “palavras de plástico” são bemvindas. O termo “plástico” é adotado pela capacidade que possui esse material de adaptar-se às variadas formas de que o homem necessita: como o plástico, o termo se torna elástico, mas perde sua capacidade de precisão denominativa. Como o vocabulário reflete o cotidiano e modifica a visão de mundo, essas palavras e expressões penetram sorrateira ou repentinamente na língua e passam a ser insubstituíveis por algum tempo. Depois somem. Atualmente, desenvolvimento, comunicação, sustentabilidade, responsabilidade social, adquiriram tons outros, simulando
Hair designer é uma das expressões novas e equivocadas que costumam cair no gosto do falante comum novidade. E, que dizer dos verbos em “izar”, ícones numa prosa informativa que se pretende atual? Agilizar, socializar, otimizar, disponibilizar, politizar, customizar. Culpar cedeu a vez a culpabilizar. Outra palavra que se tornou plástica foi cidadania, outrora sem brilho e sem destaque, com bolor burocrático. Parece conquista recente, mas não fomos sempre todos cidadãos brasileiros? Outras surgem na fila e vemos, à frente, sexualidade e desenvolvimento sustentável. O próprio termo sexo tornou-
se uma palavra mágica, abrindo portas e trazendo sugestões. De tabu passou à banalização do uso. Para Fairclough, linguista inglês, desenvolvimento sustentável é uma contradição em termos, um paradoxo, usado como panaceia para diferentes regiões do globo, parecendo ser a chave de todos os problemas, sem definir nem agente, nem beneficiado, nem como será possível. Apreender, no sentido de prender (um menor) talvez seja uma palavra de plástico esdrúxula, pois, na língua portuguesa, apreendidas são coisas ou mercadorias. É mais ofensivo que prender. As palavras de plástico desautorizam as demais. Ninguém fala mais em pobres, mas em população de baixa renda; em subúrbio, mas em periferia. Mocambo sumiu da língua sem sumir da realidade. Por último, queremos lembrar uma dupla que não sabemos dizer a que veio: requalificar/ requalificação. Não consta no Aurélio e, no Houaiss, é um pequeno verbete que significa mudar de qualidade: o termo é ambíguo. Pode ser para melhor ou para pior. Que se quer dizer, afinal, com requalificar em relação a um espaço público? Palavras de plástico apagam os significados cristalizados, tornando-se agentes da globalização por colonizar a linguagem comum pela linguagem da técnica: mas, dentro em breve, muitas delas serão cuspidas como chicletes usados, quando perderem o frescor da novidade, por nada significar. De acordo com Umberto Eco, as pessoas podem ser classificadas em apocalípticas e integradas, pela forma como aceitam ou não as mudanças sociais. Apocalípticos seriam os que não as aceitam e os integrados seriam os que aceitam sem questioná-las. As mudanças na língua e na vida devem ser aceitas, mas o senso crítico pode funcionar também nas escolhas linguísticas para que não fiquemos repetindo termos inadequados, apenas por modismo. Língua e sociedade, língua e cultura, língua e vida, afinal, caminham juntas, sem que saibamos antecipadamente em que direção. Por isso, podem nos surpreender.
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Lúcia Bettencourt
O LIXO DA CINDERELA
Andei assistindo ao documentário Lixo extraordinário, que
Lúcia Bettencourt
é contista carioca
j. egberto/divulgação
conta a experiência do Vik Muniz no Aterro de Gramacho, no Rio de Janeiro. Lá, ele encontrou pessoas que vivem do que conseguem extrair das montanhas de despojos, e, usando essas pessoas como modelos fotográficos, colocou-as em posições que lembram quadros famosos, recriando, depois, essas imagens com os fragmentos recolhidos pelos próprios catadores. O resultado final é impactante. Um diálogo através do espaço, do tempo e do estrato social. O documentário, porém, me causou um certo estranhamento, pois é todo falado em inglês, embora passado aqui no Brasil. Vik fala um inglês razoável, já que vive nos Estados Unidos há alguns anos, mas estava conversando com outros brasileiros em uma língua estrangeira sobre um problema brasileiro. Essa alienação linguística incomoda quase tanto quanto a situação das pessoas retratadas. Lixo extraordinário comove e nos faz pensar. São muitas as questões que o filme suscita, mas quero me deter em apenas uma: mexer com a vida das pessoas, tirá-las de seu (péssimo) ambiente de trabalho por duas semanas, levá-las a Londres ou mesmo apenas ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e depois deixá-las no ponto de partida, com uma visão crítica de seu cotidiano – isso traz algum benefício para essas pessoas ou só faz com que os idealizadores do projeto durmam um pouco mais felizes, sentindo-se os benfeitores de um pequeno grupo? Essa questão é levantada no próprio filme, pelos seus empreendedores, mas é deixada em aberto, após a afirmação que o artista faz, e que eu tento transcrever aqui: “Se fosse eu que estivesse ali e alguém me perguntasse se eu queria sair do aterro e viajar para o estrangeiro e depois voltar, eu ia adorar”. Não discuto isso. Acho que todos nós optaríamos por ter nosso momento cinderela, ao invés de passarmos a vida como meras borralheiras. Concretizar um sonho, mesmo fugazmente, ainda assim é uma realização. O que talvez precise ser discutido é a história da própria Cinderela. Com seu final feliz e clichê, com o príncipe que a resgata da miséria e lhe oferece um final “feliz para sempre”, chegamos à principal ansiedade de nossa vida moderna: uma felicidade que nunca se acabe. Temos que ser felizes a qualquer custo, e por toda a nossa vida. Acontece que a felicidade é uma coisa relativa: precisamos não ser felizes, para podermos compreender que somos felizes. Senão, passamos a ter uma vida tediosa e repetitiva, como a retratada no filme de Sophia Coppola, Um lugar qualquer. Mas aí já é outro filme, assunto para outra crônica…
con ti nen te
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