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# 154
A DOR QUE SENTIMOS #154 ano XIII • out/13 • R$ 11,00
BUSCA DA FELICIDADE VIA CONSUMO E PRESSÕES PELA “PERFEIÇÃO” LEVAM MAIS PESSOAS À DEPRESSÃO
PRAGA A CIDADE DE FRANZ KAFKA E SEUS FANTASMAS CONTINENTE
Passeio de Buggy
Rede Hoteleira
OUT 13
Gastronomia
ADAPTAÇÃO EMPAREDADA DA RUA NOVA VIRA MINISSÉRIE DE TV
E MAIS GIL VICENTE | TATUAGEM, DE HILTON LACERDA | PIMENTA | CAU GOMEZ ALOISIO MAGALHÃES | AVALOVARA, DE OSMAN LINS | AS MODAS DO POP CAPA_3 edwardOUT.indd 5
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Ministério da Cultura apresenta:
IX Festa Literária Internacional de Pernambuco Homenageado: José Lins do Rego
14 a 17 de Novembro Praça do Carmo - Olinda
Estamos na rede
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SNOWSTORM, WILLIAN TURNER/ REPRODUÇÃO
outubro 2013
aos leitores “Tristeza, por favor vá embora. Minha alma que chora está vendo o meu fim. Fez do meu coração a sua moradia. Já é demais o meu penar. Quero voltar àquela vida de alegria. Quero de novo cantar.” Quem já passou uns dias cabisbaixo sabe bem a que a canção popular se refere. Por mais que esse estado seja indesejável, sabemos que ele vai ocorrer em alguns momentos da nossa vida. Vivê-lo é também superá-lo, compreendê-lo. Mas, e quando ele se torna intenso e propaga-se por mais e mais pessoas, subindo nas estatísticas das doenças mundiais e popularizando-se como um mal-estar conhecido como depressão? A matéria de capa desta edição indaga sobre os transtornos psíquicos que caracterizam a sociedade atual e que vêm sendo largamente discutidos pela mídia, sobretudo sob o ângulo da difusão científica com o objetivo de ajudar os indivíduos a encontrarem a cura, ou, ao menos, caminhos de cura. Como sabemos que a tristeza não é exclusiva do nosso tempo – basta procurar sinais dela na arte –, queríamos entender por que cresce o diagnóstico desse tipo de transtorno e o que ocasiona tal estado patológico.
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Algumas respostas foram encontradas e a síntese está nas pressões exercidas sobre o indivíduo. “O caso da depressão, bem como de outras doenças mentais em voga, a exemplo dos transtornos de ansiedade, é emblemático para compreendermos a singularidade da cultura contemporânea, que valoriza a felicidade como um ideal individual quase inatingível, especialmente pela via do consumo de bens materiais e/ou simbólicos”, escreve o jornalista Marcelo Robalinho, que, para a execução da reportagem, ouviu pessoas diagnosticadas com depressão e especialistas no assunto. Ao lado da ideia de felicidade vinculada ao consumo, somos coagidos a nos fazer perfeitos de corpo e alma, a não envelhecer, a não fracassar. Ou seja, ao projeto impossível, que, quando não adoece, leva ao sofrimento e à frustração. Nem todos aguentam a pressão, que pode ser mais intensa em momentos de fragilidade, e é por isso que, hoje, a depressão vitima 20% da população mundial. São 1,4 bilhões de pessoas, um bocado de gente sofrendo porque não está dentro de padrões sociais inventados, completamente discutíveis e dispensáveis.
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sumário Portfólio
CAu Gomez
6 Cartas
7 Expediente
8 Entrevista
+ colaboradores Gil Vicente Artista plástico aborda questões profundas da criação e de como a arte pode salvar do sofrimento
60 Palco
Estreia A lenda do Santo Fujão é a nova encenação do grupo Feira de Teatro Popular, de Caruaru
22 Balaio
O Poetinha Vinicius de Moraes foi um conquistador de mulheres e de amigos
34 Especial
Carneiro Vilela Romance A emparedada da Rua Nova serve de inspiração à nova minissérie de TV
40 Comportamento Cultura pop Por que itens que tinham muito prestígio num determinado momento entram em declínio?
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68 Sonoras
Gonzaga Leal De mim é obra em que o intérprete canta a saudade e acolhe as transformações
14 Conexão
Porta Curtas Site disponibiliza curtametragens e promove festivais online
Artista mineiro realiza desenhos e caricaturas em que se evidenciam o traço pessoal e o bom uso de cores e temas. Ele também tem se dedicado à pintura
72 Entremez
Ronaldo Correia de Brito O rifle e a lança
74 Leitura
Os escorpiões Romance do escritor e designer Gastão de Holanda é ambientado no Recife dos anos 1930
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Matéria Corrida José Cláudio Da vida feliz
86 Artigo
Hans da Nóbrega Waechter Iconografia do papelmoeda brasileiro
88 Criaturas
52 Cinemascópio
Cavalcante Vinicius de Moraes
Kleber Mendonça Filho Monga
Claquete Tatuagem
Ambientado no Brasil de 1974, longa de Hilton Lacerda discute interdições e liberdades a partir de experiências teatrais e do amor entre dois homens
54 Capa reprodução Automat, pintura de 1927 de Edward Hopper
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Capa
Viagem
Hoje, têm reincidido as doenças ligadas ao que antes reconhecíamos como tristeza, nomeadamente a depressão, que atinge 20% da população mundial
Uma cidade que atrai por sua arquitetura requintada e por ser o lugar onde nasceu Franz Kafka é também roteiro instigante pela “presença de fantasmas”
Cardápio
Visuais
Esse fruto colorido mostra versatilidade à mesa, adaptando-se a pratos salgados e doces, saladas e sobremesas, sendo fonte de vitaminas e tendo efeito antioxidante
Projeto de documentação pretende disponibilizar na web o múltiplo legado desse artista pernambucano que atuou nas artes plásticas, no design e na política
Transtornos
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Pimenta
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Praga
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Out’ 13
Aloisio Magalhães
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cartas e produções que voltem a circular pelo Brasil inteiro. Ópera parece, muitas vezes, coisa mofada porque a deixam mofar no cenário nacional das artes.
categoria “intelectual”. Não se questiona a ótima qualidade, mas a distância ao leitor. ARNAUD MATTOSO RECIFE–PE
CARLOS EDUARDO AMARAL RECIFE–PE
Colaborador Recebi há pouco o envelope com a revista e o suplemento de setembro. Lindo demais, dá prazer, descansa os olhos. Parabéns! Obrigado pelo convite, foi um prazer colaborar com vocês. RENATO PARADA
Ópera Gostei muito da entrevista de André Heller-Lopes (foto) a Josias Teófilo, tanto pela abordagem, creio que inédita na Continente, sobre a formação e a atuação de um diretor cênico de ópera, quanto pela argumentação do entrevistado em defesa de seus pontos de vista. Daí fica a torcida para que surjam, pelo resto do país, diretores que se aventurem no universo operístico
RESPOSTA DA REDAÇÃO Caro Arnaud, não temos um “texto padrão”. A revista possui vários colaboradores, de estilos diferentes. O resultado é inteligível para o leitor, de uma maneira geral; não trabalhamos com referências como “leitor comum” ou “intelectualizado” – preconceito muito propício a equívocos.
SÃO PAULO – SP
Sobre trens e textos Esse belo artigo do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho (Trens, na sua coluna Cinemascópio, edição de agosto) é a cara do que representa o evento Copa do Mundo no Brasil. Mas a revista Continente erra no pedantismo textual, tornandose inacessível ao leitor comum, segmentando seu material à
errata
Entrevista Na entrevista da edição de setembro (nº 153), o nome da ópera de Roger Waters, Ça ira, apareceu grafada de forma incorreta.
Crédito de imagem A foto de abertura da seção Palco, página 68, da edição de setembro (nº 153), é de Marcelo Cabrera.
Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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colaboradores
Paulo cavalcante
Fernando Augusto
Marcelo Robalinho
Márcio Padrão
Caricaturista, ilustrador, trabalha nos jornais O Globo e Valor Econômico
Artista plástico e professor da Universidade Federal do Espírito Santo
Jornalista, mestre em Comunicação, com estudos na relação entre comunicação e saúde
Jornalista e editor do blog Quadrissônico
e MAiS Alexandre Figueirôa, jornalista, crítico de cinema, autor de A onda do jovem cinema e sua recepção na França e coautor de Transgressão em três atos, nos abismos do Vivencial. cleodon coelho, jornalista. eduardo cesar Maia, jornalista, crítico literário, professor universitário, mestre e doutor em Teoria Literária. Hans da nóbrega Waechter, designer, mestre e doutor em Comunicação Audiovisual, pesquisador e professor da graduação e pós-graduação em Design da UFPE. Leidson Ferraz, jornalista e pesquisador de Artes Cênicas. Leo caldas, fotógrafo. Ricardo Melo, jornalista e ilustrador. Raimundo carrero, jornalista, escritor, autor de Tangolomango e O amor não tem bons sentimentos, entre outros. Schneider carpeggiani, jornalista, crítico literário, mestre e doutor em Teoria Literária. thiago corrêa, jornalista, mestre em Teoria Literária.
GoVeRno Do eStADo De PeRnAMBUco
SUPeRIntenDente De eDIÇÃo
contInente onLIne
atenDImento ao aSSInante
goVeRnaDoR
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Bráulio Mendonça Menezes
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Janio Santos, Hallina Beltrão e Karina Freitas
PUBLIcIDaDe e maRKetIng
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(paginação)
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Armando Lemos
Pedro Américo de Farias
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diagramação e ilustração)
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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE ReDaÇÃo, aDmInIStRaÇÃo e PaRQUe gRÁfIco Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br
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GIL VICENTE
“Usei o trabalho de modo terapêutico”
Em entrevista iniciada há uma década e encerrada em 2013, o artista fala de sua trajetória, de aspectos profundos relacionados à arte e de como seu trabalho o ajudou a superar um longo período de melancolia texto Fernando Augusto S. Neto
con ti nen te
Entrevista
Conheço Gil Vicente desde os anos 1980, participando dos famosos Festivais de Inverno da UFMG (juntamente com Marcelo Silveira, Alexandre Nóbrega e Rinaldo), a partir daí, sempre que nos encontramos tecemos boas conversas sobre arte, mercado e nossas agonias. Mas uma de nossas conversas mais marcantes se deu em 2001, em uma residência artística ocorrida no Paraná, denominada Faxinal das Artes. Esse evento, patrocinado pelo governo de Jaime Lerner, envolveu curadores como Agnaldo Farias, Moacir dos Anjos, Daniela Bousso, Cristiana Tejo, entre outros, e reuniu cerca de 100 artistas de todo o Brasil e alguns estrangeiros, no pequeno vilarejo de Faxinal do Céu, uma reserva florestal perto de Curitiba, para uma convivência de 15 dias, com o propósito de propiciar um diálogo maior entre os artistas brasileiros, troca de experiências e desenvolvimento de projetos possíveis naquele tempo e lugar. Embebido pela riqueza do encontro, resolvi entrevistar artistas
com os quais já tinha algum contato a fim de conhecer melhor suas poéticas, procedimentos e aflições. A ideia deu certo, assim, acabei tecendo longas entrevistas com artistas como Shirley Paes Leme, Emanuel Nassar, Francisco Farias, Eduardo Frota, Elida Tessler, Marepe, Marcelo Solá, Karin Lambrecht, Dulce Ozinsky e, claro, Gil Vicente. Essas entrevistas eram abertas; dado o primeiro passo, que era o próprio fato de nos encontrarmos ali disponíveis para uma convivência de duas semanas e participar de bate-papos, de palestras e também de trabalho de ateliê, a conversa tinha um direcionamento claro: mostrar a poética do artista e seus procedimentos, provocá-lo a falar sobre sua formação e produção, tecendo desse modo um olhar reflexivo sobre seu processo criativo e os trabalhos realizados. Passado o encontro do Faxinal das Artes, essas entrevistas foram guardadas em gavetas e caíram no sono. Gil Vicente, contudo, tem a capacidade de acordar fantasmas. Outrora, já havia lhe enviado o
texto digitado para pensarmos a possibilidade de publicação, mas foi por ocasião da sua participação na 27ª Bienal de São Paulo e de uma viagem minha ao Recife, que retomamos nossa conversa de Faxinal, passados mais de 10 anos, para vermos o que havia sido dito, o que não fora dito ainda e o que se poderia dizer. A conversa fluiu com naturalidade e interesse e chegamos ao texto que se segue. Gil Vicente, além de grande desenhista, é um bom contador de histórias, é divertido e enriquecedor ouvi-lo e saber como, em seu trabalho, ele sempre buscou o encontro com o outro. Seu exercício artístico tem algo do que fala Louise Bourgeois, ao definir a arte como “uma garantia de sanidade”. Poucos artistas têm a coragem de trilhar essa senda, a de aproximar sua arte das deambulações psíquicas e de ver nela uma promessa de sanidade ou, como queria Stendhal, “uma promessa de felicidade”. É este encontro, marcado pela convivência fraterna e espichado no tempo, que trazemos a público agora.
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luiz antônio araújo/ divulgação
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CONTINENTE Há um quadro trágico de sua autoria cujo título é Minha mãe morta. Como é a presença da morte em sua família e para você? GIL VICENTE Acho que a presença dos pais vivos é muito maior que a presença da morte, essa preocupação nunca foi um problema na família. Sempre tivemos canal aberto para dialogar sobre tudo. Meus pais respeitaram e incentivaram a personalidade de cada filho e também suas opções profissionais. O desenho Minha mãe morta mostra um cachorro lambendo o
fotos: reprodução
CONTINENTE Você é um artista plástico que vem de uma família de escritores, de um convívio com a literatura. Fale um pouco sobre essa convivência. GIL VICENTE Meu avô materno, João Vasconcelos, era escritor e critico literário. Foi membro da Academia Pernambucana de Letras e publicou dois livros de contos ambientados no interior do estado. Quando eu nasci, ele estudava a obra de Gil Vicente e sugeriu o nome à minha mãe. Vovô morreu quando eu tinha seis anos. Lamento, pois já éramos
con ti nen te
“Muitos dos meus desenhos são tentativas de acessar imagens das camadas mais internas e escuras. Não tenho interpretações para eles. Prefiro trabalhar assim, pois, se estou muito consciente, termino fazendo uma mera ilustração”
Entrevista bons amigos e, com certeza, teríamos trocado muitas figuras quando me interessei por arte. Depois de criar os filhos, minha mãe estudou Sociologia e Antropologia, com dissertação sobre a relação homem/mulher, na qual propunha redefinições nos papéis da convivência. Ela escreveu ensaios e tem vários livros publicados e premiados, principalmente de poesia, dos quais já ilustrei dois. Meu irmão mais velho é músico e sempre está envolvido com pesquisas ligadas à música pernambucana. Por outro lado, meu pai era muito amigo do escritor Osman Lins e de muitas pessoas da área cultural, como Jomard Muniz de Brito e outros. Nossa casa sempre abrigou boas discussões sobre arte e cultura.
CONTINENTE Certa vez você me mostrou uma pintura sua, uma natureza-morta com um cacho de bananas e uma flor sobre uma toalha de mesa em desalinho, e me disse que, psicologicamente, aquele trabalho representava bem uma situação que você passara. Esse fato me fez pensar na relação entre arte e psicanálise, como é essa questão para você? GIL VICENTE Trabalho com desenho e pintura usando técnicas convencionais, nanquim sobre papel, óleo sobre tela, e temas também convencionais, como a figura, o retrato,
corpo nu de uma mulher. Não aparece o rosto. É um corpo caído no chão, e eu não compreendo o que representa. A imagem e o título apareceram prontos e até hoje não sei o que significam. Muitos dos meus desenhos, principalmente os nanquins, são tentativas de acessar imagens das camadas mais internas, escuras e enlameadas, porém, desconheço interpretações para eles. Até prefiro trabalhar assim, pois, se estou muito consciente do que cada coisa representa, termino fazendo uma mera ilustração. Muitas pessoas acham esse desenho agressivo, mas outras o veem como uma coisa afetiva e muito carinhosa. Nessa mesma série, fiz outros desenhos pesados, nos quais a morte também é evocada.
a paisagem. Mas o que me interessa é estar mexendo comigo mesmo, estar me investigando, porque, no fim das contas, sempre usei o trabalho de modo terapêutico, para sobreviver como pessoa. Mesmo fazendo uma paisagem ou uma natureza-morta, como eu trabalho intuitivamente, os significados me escapam, há sempre certa narrativa que não consigo acessar racionalmente, mas que está na imagem. Certo dia, olhando distraidamente para uma naturezamorta, me dei conta, assustado, de que ela falava sobre uma namorada recente e me dizia muita coisa. Pouco depois, fui convidado para a mostra Imaginário e sexualidade, na Fundação Joaquim Nabuco, e enviei essa pintura.
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CONTINENTE Você estudou arte em diversos lugares, mas, como já disse, uma das figuras importantes nos seus estudos foi o artista José Cláudio. Como foi esse aprendizado? GIL VICENTE Comecei a estudar bem cedo, e logo fui participando de coletivas, salões, e a vender trabalhos. Estudei seis anos na Escolinha de Arte do Recife e três nos ateliês livres de extensão da UFPE, nos quais fiz desenho e pintura de observação. Depois estudei em Paris, com uma bolsa do governo francês,
de um debate com Marcos Lontra e Moacir dos Anjos, antes das falas dos curadores, Zé Cláudio, que estava na plateia, levantou-se e pediu para falar primeiro. Seu depoimento de improviso é um dos textos mais bacanas sobre meu trabalho. Por sorte, um jornalista gravou esse depoimento, que depois foi publicado na primeira edição da Continente. O então editor da revista, Mário Hélio, achou um ótimo título para o texto: Uma descida aos infernos. Ali, Zé Cláudio dá algumas chaves com as
Minha produção da década de 1980 foi quase toda a partir do real, quer dizer, feita de observação. Pintei figuras, paisagens e naturezasmortas. Meu círculo de amizades era pequeno, era mais familiar. Aos 23 anos, passei um período de grande melancolia. Meus relacionamentos eram muito atormentados, de todos eles eu saía me sentindo muito culpado. Tudo era para mim um tormento e a pintura ficava escura. A partir de 1982, fiz um esforço para sair dessa melancolia e também
“Muitas pessoas acham o desenho Minha mãe morta (ao lado) agressivo, mas outras o veem como uma coisa afetiva e carinhosa. Nessa mesma série, fiz outros desenhos pesados, nos quais a morte também é evocada”
onde também vi muitas exposições bacanas. Mas as minhas referências estavam sempre nos artistas daqui. Os artistas pernambucanos que mais me atraíam eram Reinaldo Fonseca, Cícero Dias, João Câmara, Ismael Caldas, Adão Pinheiro, Francisco Brennand, Vicente do Rego Monteiro, Zé Cláudio, Samico, Rodolfo Mesquita e outros. Em Zé Cláudio, me encantava o prazer dele com a pintura e o vivo caminho que escolhia para captar o popular. Além do respeitável exemplo profissional, ele escreveu textos sobre meu trabalho, que me abriram caminhos para a compreensão do que faço. Quando minha exposição Desenhos esteve no Mamam, em 1999, acompanhada
quais eu compreendo melhor o que faço. Não o significado das coisas, mas questões da minha relação com a expressão. Sou muito grato a ele e me comovo sempre que falo disso. Eu sempre quis pintar como ele, como Brennand, como Reynaldo Fonseca, e foi assim, perseguindo, correndo atrás de um e de outro, que fui construindo o meu trabalho. CONTINENTE O retrato é um gênero de pintura, de certa forma, obrigatório para todo pintor na história da arte, mas perdeu seu lugar na arte moderna e contemporânea. No entanto você assume esse desafio, nos anos 1980, ao fazer uma série de retratos de artistas do Recife. Como que foi esse projeto? GIL VICENTE Aconteceu por acaso.
já tinha começado a fazer terapia. Assim, fui construindo lentamente um equilíbrio e o trabalho foi imprescindível para eu sobreviver. Usei-o para me salvar. Passei a convidar outras pessoas para posarem pra mim. E também comecei a jogar futebol, um esporte coletivo (pois até então o esporte que eu praticava era natação, à noite, que é você sozinho com a cabeça dentro da água, uma coisa muito escura e uterina). Enfim, procurei ter mais contato com o mundo, porque era um desgaste muito grande estar com as pessoas. Acho que a necessidade que eu tinha de desenhar a figura e de aprender a retratar era, desde cedo, um caminho para me aproximar do outro.
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CONTINENTE Mas a série mostra também várias pessoas da cultura pernambucana. Como foi feita? GIL VICENTE Quando consegui clarear, esquentar as cores e dar mais contraste à minha pintura, fiz 10 retratos de artistas amigos. Cada um foi realizado em dois dias, no ateliê do retratado. Chegava sem nenhuma ideia definida e a pose era escolhida naturalmente, numa dinâmica descontraída entre mim, o artista e o espaço. Como de costume, começava desenhando na tela com a tinta mais
con ti nen te
buscando algo diferente do desenho e da pintura. Mas me dei conta, muito claramente, de que todas essas fotos eram de coisas bidimensionais com interesse gráfico e pictórico: portões, paredes, portas... Enfim, compreendi que só me interesso por coisas bidimensionais, pelo plano, e que nasci faltando a dimensão da profundidade. Essas fotos são, na maioria, registros de intervenções populares. Comecei pelas portas metálicas de estabelecimentos populares, que no Recife são pintadas
“Mesmo no meu trabalho fotográfico, compreendi que só me interesso por coisas bidimensionais. Essas fotos são, na maioria, registros de intervenções populares. Comecei pelas portas metálicas de estabelecimentos”
Entrevista rala, para acertar as proporções da figura. Se esse desenho estrutural saísse rápido, eu já começava a pintar no primeiro dia. Iniciava pelo rosto, pois sendo a parte mais difícil, preferia enfrentar logo e me livrar dela. No resto do quadro, ia me divertindo, me soltando. Dessa série, acho que no retrato de Samico foi onde me saí melhor. CONTINENTE E o seu interesse pela fotografia, como surgiu? GIL VICENTE Fotografo desde os 17 anos. Comecei registrando meus trabalhos para divulgação e arquivo, mas também clicava coisas de rua que me atraíam plasticamente. Em meados de 1998, voltei a fotografar
não estudei história da arte, estética, filosofia, nada disso. Sempre me abasteço mais pelo olho. Então, não sei discutir nenhuma questão social e política brasileira. Eu sou um ser social e participo da vida social do Brasil. Para minha formação como artista, dependi de outros artistas que foram generosos comigo. Da mesma forma, acompanho o trabalho de outros que estão começando. Isso é uma atuação social. Não vejo necessidade de trazer essa preocupação como tema do trabalho.
de maneira precária, com restos de tinta de cores quentes. Foi também uma forma de paquerar um pouco com a geometria. Depois de Portas, vieram as séries Passagens (paredes com aberturas que foram fechadas) e Desenhos, todas de origem popular. CONTINENTE Você fala do desenho e da sua pintura enfatizando o lado íntimo e pessoal, mas o que dizer do lado público desse trabalho? Quero dizer, como, em seu trabalho, você pensa o Brasil, a sociedade brasileira? GIL VICENTE Como falei, o meu trabalho sempre foi muito autorreferente, feito mais pra me salvar. Por isso nunca me ative à temática social. Não fiz universidade,
Mas, na medida do possível, participo de projetos e oficinas junto a grupos da comunidade. Comecei a me interessar por música em 1998. É uma coisa diferente do que eu sempre fiz, com outro sistema cognitivo que mexe com a minha cabeça de forma muito lúdica. Mas música é matemática também, e é outra forma de eu dar vazão à minha paquera com a geometria. Assim, acabei ingressando com outras pessoas no Maracatu Leão Coroado, em Águas Compridas, Olinda, e lá procuramos ajudar a comunidade. O grupo no qual entrei fez um site com a história do Leão, levou para a sede uma unidade do projeto CDI (Comitê de Democratização da
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Informática) e pedimos colaborações de outros profissionais, como o arquiteto Albérico Paes Barreto, que fez gratuitamente um projeto para a nova sede do Leão. Mas não tenho capacidade de dar uma opinião sobre o quadro social e político brasileiro. Muito menos que caminho o Brasil deve tomar, qual a importância das ONGs etc. Tenho feito a minha parte, na medida do possível. CONTINENTE Há 11 anos, no Faxinal das Artes, você disse que não entendia nada de
que for eleito fará obrigatoriamente o mesmo que seus antecessores: roubará para si e para o seu grupo. Um dirigente rouba cerca de dois terços da verba que passa por sua administração, e o resto é aplicado em projetos que beneficiam a classe média e a classe alta. Os pobres e miseráveis seguem sem estudo, sem saúde, sem direitos, sem oportunidades. E sabemos que os problemas sociais de cada estado do Brasil poderiam ser resolvidos apenas com o dinheiro público roubado
lei”. Estou fora. Não farei mais isso. O descaso com as questões sociais não ocorre apenas no Brasil. Os meus alvos na série Inimigos são governos ou instituições do Brasil e do mundo, representados por seus dirigentes. Eu quis mostrar que na minha região é assim, no meu país é assim e no resto do mundo também é assim. Em certo aspecto, a série Inimigos se parece com trabalhos anteriores, pois foi motivada por incômodos que eu não identificava com clareza. Foi um expurgo. Em julho de 2005, eu
“Os meus alvos na série Inimigos são governos ou instituições do Brasil e do mundo, representados por seus dirigentes. Eu quis mostrar que na minha região é assim, no meu país e no resto do mundo também”
política e que não vinculava seu trabalho a ela. No entanto, a sua série de desenhos Inimigos, de 2005-2010, é nitidamente ligada à política. Como você iniciou essa série? O que mudou nesse meio tempo? GIL VICENTE Continuo sem entender nada de política. O que mudou é que perdi a ingenuidade. Desde 1976, quando completei 18 anos, votava com muita esperança em mudanças sociais para o país. Seguidamente tive decepções, e seguidamente renovei as esperanças. Até compreender que a política é um ótimo negócio que faz milionários com o dinheiro público. Além disso, o sistema eleitoral é pífio e nulo. O voto, em si, não tem a menor importância, pois qualquer elemento
naquele mesmo estado. Nunca votei esperando mais verbas para a arte e a cultura, mas desejando que, finalmente, o país caminhasse para a justiça social. Como eu era ingênuo! Em 2005, caiu a ficha e compreendi que nada vai mudar, que sempre foi assim e a tendência é piorar. Movido por essa clareza decepcionante, fiz a série Inimigos, e nunca mais compareci em cabines eleitorais para votar. Se a classe política não cumpre o seu dever social, não me sinto obrigado a cumprir o meu “dever cívico” de escolher um entre vários ladrões. Votar é assinar um papel em que está escrito: “Autorizo Fulano de Tal a roubar dinheiro público durante quatro anos sob total proteção da
havia desenhado uma mão enfiando violentamente um revólver na boca de George Bush. No mês seguinte, fiz o primeiro desenho da série, Autorretrato matando George Bush, que foi exposto em Campinas-SP junto dos desenhos de Lula e Bento XVI. Ainda em dezembro de 2005, expus a série completa na Galeria Mariana Moura, no Recife. Em 2006, mostramos na Casa da Ribeira, em Natal, e, em 2008, no Atelier Subterrânea, em Porto Alegre. Na Bienal de São Paulo, em 2010, incluí o desenho matando Ahmadinejad. A série fala da minha raiva por ter sido enganado durante tanto tempo, e da minha descrença em qualquer alteração ética no quadro político brasileiro.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
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ALOISIO MAGALHÃES
GONZAGAL LEAL
Apesar de ter deixado um importante legado, com obras espalhadas em diversos locais, instituições e acervos particulares, Aloisio Magalhães ainda é pouco conhecido por parte do grande público. Foi com o intuito de catalogar a obra do designer pernambucano (que também foi pintor, gravurista e desenhista) que os pesquisadores cariocas Julieta Sobral e João de Souza Leite deram início ao Projeto Aloisio. Como complemento à matéria de Visuais, disponibilizamos no site reproduções raras de obras do artista, bem como a introdução do livro A herança do olhar: o design de Aloisio Magalhães, escrita por João de Souza.
Escute algumas faixas do novo álbum De mim, de Gonzaga Leal, feito após intervalo de quatro anos. Músico contou, entre outras, com colaboração da cantora carioca Marília Medalha.
Conexão
leitura Leia algumas páginas de Crônicas (Cepe Editora), uma compilação de textos do cronista pernambucano Joca Souza Leão, publicados semanalmente no Jornal do Commercio.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
andanças virtuais
IDEIAS
LEITURA
ILUSTRAÇÃO
RELACões
Excesso de informação leva jornalista a criar espaço virtual para guardar afetos
Devoradores de livros são mascotes que ajudam crianças a gostar de ler
Artista mineiro, fã de quadrinhos, cria longa história em aquarela
Amigos com problemas amorosos envolvem-se por 40 dias para testar resistência
umacapsula.com
devoradoresdelivros.com.br
mathiole.com/unicverse
fortydaysofdating.com
Diariamente, recebemos uma quantidade enorme de informações e esse volume parece aumentar a cada dia. Mesmo com diversas ferramentas nas redes sociais, principalmente para filtrar e préselecionar essas informações, elas se mostram um desafio de escolhas. Esquecer tudo que foi encontrado e que valeria a pena guardar é uma constante. Por conta dessas angústias, a jornalista Bárbara Buril montou Uma Capsula, blog onde descarrega o “HD cerebral” e armazena uma seleção de referências artísticas. Além disso, ela posta contos de sua autoria e algumas curiosidades do Recife “megalomaníaco”.
Jéssica Fonseca e Denise Vahrenkamp são duas mães apaixonadas por livros que desejavam mostrar esse universo da forma mais adequada aos seus filhotes. A saída foi, primeiro, apresentar os mascotes dessa brincadeira, os “devoradores de livros”, às crianças. Depois disso, tudo fica mais fácil. Basta você ler um livro e responder a um questionário elaborado pelos devoradores. Caso você se dê bem, ganha virtualmente um mascote e pode personalizá-lo à sua maneira. O Devoradores de livros conta com mais de 500 indicações de títulos e questionários elaborados por especialistas da área.
Nascido Matheus Lopes, em Belo Horizonte, o ilustrador Mathoile conquistou espaço com suas obras em aquarela e ecoline (espécie de aquarela líquida) finalizadas no computador. Inspirado principalmente pelos quadrinhos de super-heróis, é comum encontrar entre seus trabalhos algo que envolva personagens como Batman. Diferente do que já produziu, o projeto Unicverse é uma ilustração contínua, desenvolvida durante um mês, que representa a união entre o mundo de Mathoile e seu modo de ver o início e o fim das coisas. Uma longa história contada com as ideias e ideologias do ilustrador.
Timothy Goodman e Jessica Walsh são amigos que moram em Nova York e têm problemas nos relacionamentos. Tim, como é mais conhecido, encontra obstáculos em encarar namoros sérios e, normalmente, envolve-se com mais de uma pessoa. Jessica é uma romântica à moda atinga e, em busca do seu príncipe encantado, termina e começa namoros tão rápido quanto se apaixona. Solidários com o problema do outro, decidiram se ajudar. Em 40 days of dating, relatam o período que passaram juntos, como namorados, e as mudanças que podem acontecer nesse período para melhorar desempenhos em relacionamentos.
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blogs LÚDICO naramediz.tumblr.com
Nara é uma bebê que, com sua visão lúdica e ingênua do mundo, nos ensina o significado de novas palavras, como “nosco”, que é o mesmo que “a gente”, e também alerta para futuros problemas no radiador, caso você escute sempre rádio no carro.
TROCAS facebook.com/TrocaPorUmQuadro
CINEMA Além de divulgar notícias sobre editais e festivais de cinema, site disponibiliza curtas-metragens para serem assistidos gratuitamente e online portacurtas.org.br
Depois de alguns anos em banho-maria, o cinema brasileiro ganhou uma nova roupagem. Para começar, o eixo Rio-São Paulo passou a dividir o espaço das telonas com outros estados, principalmente com Pernambuco, que tem levado os principais prêmios de festivais, arrancado aplausos de plateias mundo afora e, recentemente, indicado a representar o Brasil na premiação do Oscar, com o filme O som ao redor, do cineasta e colunista da Continente Kleber Mendonça Filho. Dentre as mudanças, a principal talvez seja que, agora, o brasileiro vai ao cinema para assistir a produções nacionais com mais frequência. O Porta Curtas, projeto que disponibiliza curta-metragens e organiza pequenos festivais online, é prova do maior interesse pelo que produzimos. Entre os filmes há os de temáticas como: ditadura, prazer, preconceito, viagem, saúde, criatividade e cidadania. Com pouco mais de 200 mil pessoas cadastradas, uma média de 96 mil visitas por mês e 1.099 curtas disponíveis para visualização, o projeto também se envolve com questões pedagógicas. Desde 2006, o Curta na escola busca constituir uma comunidade nacional de aprendizagem em torno da construção colaborativa de conteúdos relacionados ao uso dos curtas-metragens brasileiros em escolas. GABRIELA ALMEIDA
O publicitário Pedro Melo teve a brilhante ideia de, em viagens, oferecer um quadro personalizado e feito na hora, em troca de pequenos serviços. Um prato de comida, um drinque, uma hospedagem. Depois de passar pela Europa, São Paulo e Maragogi, a próxima parada de Pedro será em Buenos Aires.
MÚSICA notocadiscosdaalice.tumblr.com
Com certeza, Alice daria um banho nas it girls que vestiam camisas do Ramones, no Rock in Rio. A menininha de 6 anos não sabe só os nomes e letras das músicas da banda, como toda a sua história. Em pequenos vídeos, supervisionados pela mãe, Alice apresenta músicas e bandas de que ela e sua família gostam. Além da Ramones, a garotinha também escuta: The Queers e Cólera.
sites sobre
Tatuagem Série de TV
Galeria
História
lc.com/tv-shows/miami-ink
tattooartists.org
mundodastatuagens.com.br/historiada-tatuagem
O Miami Ink Tatto Studio é um dos maiores estúdios de tatuagem do mundo. Uma tatuagem simples feita lá custa entre 300 e 800 dólares.
O Tattoo artists é um fórum que reúne trabalhos de profissionais do mundo todo. Tem espaço para os que querem se tatuar obter informações.
No portal Mundo das tatuagens, existe uma seção exclusivamente voltada para os que desejam conhecer a história dessa arte.
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Ilustração para o livro Pastinha: o menino que virou mestre de capoeira, de José de Jesus Barreto
CAu Gomez
Nestas páginas 2 características
TEXTO Ricardo Melo
3-5 Caricaturas Carlos Drummond de Andrade junto com os Beatles, Rubem Braga e Mao Tsé-Tung no traço de Cau Gomez
traço inteiramente pessoal Cláudio Antônio Gomes, ou Cau Gomez (assim mesmo, como ele assina), é de Belo Horizonte, Minas Gerais, o estado mais mineiro do Brasil, segundo Millôr Fernandes. O esclarecimento prévio é oportuno, para que desavisados não pensem que ele nasceu (ou estreou) baiano, pois jeitão, comprovante de residência e título de cidadão soteropolitano ele já tem. Esclarecida a origem, foi entre montanhas, final dos anos 1980, que ele estreou (ou nasceu) pronto e acabado para o desenho. O ainda adolescente Cauh (ele assinava assim) já exibia à época o traço solto, maduro e inteiramente pessoal que o distinguia de outros novos cartunistas, a maioria educada na escolinha do Pasquim. O Brasil vivia o renascimento da charge e da caricatura, com a abertura política e o fim da censura à imprensa. Cau é, de fato, um talento precoce. Aos quatro anos, já produzia suas primeiras calunguinhas; aos seis, participou de um concurso infantil de TV e, por pouco, não foi acusado de falsidade ideológica por assinar um desenho “feito por um adulto!”. Aos nove, ganhou uma bicicleta, o primeiro dos mais de 50 prêmios nacionais e internacionais que já conquistou. Salário mesmo, que é “bão” também, ele passou a receber aos 15, como chargista titular do extinto Diário de Minas. O espaço deste texto é pequeno para relacionar as honrarias que recebeu e publicações (jornais, revistas e livros) das quais participou e com que colaborou.
I lustração editorial para a página de opinião do jornal A Tarde: traço solto e forte
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Mesmo com passaporte carimbado para o sucesso profissional, frequentou os bancos da escola de arte Guignard, onde ganhou intimidade com outras técnicas, além da tinta nanquim empregada nas charges. Suas criações ultrapassaram o espaço limitado e descartável das páginas de opinião para alcançar a perenidade dos grandes formatos, em traços largos, expressivos, sem parcimônia no uso da cor. Torcedor fervoroso do Galo, Cau Gomez joga em qualquer posição: aquarela ou acrílica, lápis ou pincel, hidrocor ou esferográfica, com os pés nas costas. Desenha como quem brinca, feito criança, feito Garrincha. Em
outro portfólio, dessa vez publicado pela prestigiosa revista Gráfica, editada por Miran, também um grande nome do traço brasileiro, ele faz companhia a craques do nível de Saul Steinberg e do uruguaio Alfredo Sábat. Os trabalhos selecionados aqui são uma pequena amostra da exuberância artística de Cau Gomez, hoje quarentão, que há 13 anos dá expediente diário no jornal A Tarde, em Salvador, quando não está fora, a convite, para exposições e salões nacionais e internacionais de humor. E de lá volta com mais um prêmio para sua inesgotável coleção. Mineiramente ou ‘baianamente’, como lhe convém.
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6 Futebol Torcedor do Atlético Mineiro, usa seu talento para representar, sob encomenda, craques do time, a exemplo de Ronaldinho Gaúcho jornal 7 Em ilustração feita para o A Tarde, de Salvador, ele aborda problemas dos planos de saúde mostras 8 Ilustração selecionada para o catálogo do I Festival de Humor do Rio de Janeiro
9-11 técnica Além de ilustrações, Cau Gomez tem explorado a pintura, como nessas obras de médio e grande porte, utilizando tinta acrílica
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Fotos: divulgação
Cala a boca!
Sedutor, sem distinções Além de compositor e poeta, Vinicius de Moraes era, também, um sedutor profissional. No entanto, trata-se de uma injustiça vincular esse seu “apelo” apenas ao público feminino. Afinal, o Poetinha conquistava, além de mulheres, muitos amigos. Os homens que o circundavam não eram somente parceiros ou colegas de profissão, mas, sobretudo, fiéis companheiros, independentemente da diferença de idade entre eles, como no caso de Toquinho. Essas amizades, obviamente, foram alimentadas pela paixão em comum por música e bebedeiras. Chico Buarque, por exemplo, deu seus primeiros goles num copo de uísque por meio de Vinicius. Já Baden Powell costumava ser convidado para ir à residência do poeta para tomar algumas e lá passava dias seguidos. Outro grande amigo era Antônio Maria, chamado por ele de “o bom Maria”. Juntos, os boêmios varavam noites, mais bebendo que compondo. Desses encontros, nasceram só duas parcerias (Quando tu passares e Dobrado de amor a São Paulo), mas muitas travessuras. Numa delas, no final de uma farra, avistaram, de manhãzinha, um grupo de senhores de meia-idade fazendo atividades físicas na praia de Ipanema. Os dois não tiveram dúvidas, começaram a gritar: “Seus ridículos! Calhordas!”. Os episódios burlescos da trajetória de Vinicius mostram que ele levou para a realidade o lema da canção Como dizia o poeta: “Quem já passou por essa vida e não viveu/ Pode ser mais, mas sabe menos do que eu/ Porque a vida só se dá pra quem se deu”. DÉBORA NASCIMENTO
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Não são apenas os professores e palestrantes que sofrem com as “conversinhas paralelas” do público. Os cantores também enfrentam esse problema. Se a casa de shows tiver uma boa acústica e o som estiver alto, o burburinho pode até passar despercebido no palco. Mas, se for o contrário, alguns artistas chegam ao ponto de reclamar com a plateia, como aconteceu recentemente com Fiona Apple. A cantora norteamericana se apresentava numa festa da Louis Vuitton, no Japão, quando percebeu o alarido. Incomodada, tentou chamar a atenção de todos subindo no piano. Com o insucesso, perdeu a paciência e mandou um sonoro “Calem a boca!”, seguido de insultos. Saia justa de luxo. Já o líder do Wilco, Jeff Tweedy, em sua carreira solo, também se viu numa situação constrangedora como essa de ter que criticar a plateia – o “puxão de orelha” está registrado no documentário Sunken treasure live. Nos Estados Unidos, o exemplo mais famoso dessa falta de consideração dos espectadores se deu no do show dos Beatles no Shea Stadium. Os músicos não conseguiam sequer se ouvir no palco, tamanha era a gritaria das fãs. Por conta desse tipo de recepção, desistiram de se apresentar ao vivo, em 1966, no auge da fama. (DN)
Balaio mpb como bandeira Considerados dispersos, desorganizados e sem bandeiras aglutinadoras – por serem em poucos dias convocados através da internet –, os protestos e mobilizações que tomaram conta do país talvez se ressintam, também, da presença de uma canção que expresse os sentimentos e aspirações da sociedade. Como acontecia, por exemplo, nos tempos da ditadura militar, quando composições como Coração de estudante, de Wagner Tiso, transformaram-se em verdadeiros hinos – no caso, “hino das Diretas Já”. Levandose em conta a qualidade das músicas e letras que hoje chegam aos ouvidos brasileiros, qual canção estaria apta a exercer esse papel? Pensando bem, está mais que na hora de a população ir às ruas é pelo resgate da própria música popular brasileira... (Gilson Oliveira)
A FRASE
“Sempre peça emprestado a um pessimista. Ele nunca espera receber.” Roberto Dualibi, publicitário
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val twain O ator Val Kilmer, mais conhecido por sua marcante atuação como Jim Morrison no filme The Doors (1991), volta a interpretar um personagem real. Trata-se do escritor e jornalista norte-americano Mark Twain, num monólogo que está em cartaz nos EUA. O astro de 53 anos, que escreveu o roteiro, ainda pretende levá-lo às telas de cinema. O que chama mais a atenção nessa montagem são a maquiagem e o figurino, que deixam Kilmer realmente muito parecido com Twain, na fase da velhice. Resta saber se o ator terá crises de identidade com o novo personagem, como aconteceu quando interpretou o líder do Doors. Caso tenha, pelo menos, será ótimo para o seu humor, já que o engraçadíssimo Twain é reconhecido como o pai da stand-up comedy. (DN)
2o anos sem phoenix O cinema americano já perdeu muitas de suas jovens estrelas, mas poucas mortes geraram comoção como a de River Phoenix, em 31 de outubro de 1993, por overdose. Além de atuar, ele escrevia, desenhava, compunha e tocava guitarra. A ligação com a música surgiu antes do cinema. E boa parte das homenagens póstumas veio de bandas e cantores, como REM, Red Hot Chili Peppers e... Milton Nascimento. Após assistir a Conta comigo (1986), o cantor mineiro compôs River Phoenix (Carta a um jovem ator). Quando veio ao Brasil, em 1992, Phoenix conheceu o fã (foto). No ano seguinte, a morte de River causaria furor, pois se assemelhava à de James Dean. “Eu não quero morrer em um acidente de carro. Quando eu morrer, vai ser num dia glorioso. Provavelmente, será numa cachoeira”, afirmara River, que faleceu, aos 23 anos, na calçada da boate Viper Room, que tinha como sócio o seu amigo Johnny Depp. (DN)
Camille Claudel, interna Há 100 anos era internada como paranoica em um hospital psiquiátrico Camille Claudel, ex-discípula e amante do escultor francês Auguste Rodin. Nascida em 8 de dezembro de 1864, na cidade de Aisne, na França, rejeitada pela mãe, que queria um filho homem, teve em seu pai o apoio para a sua arte, à época, predominantemente masculina. Sua vida e seu trabalho ficaram ligados ao gênio Rodin, o que virou uma trágica história de criação, amor e loucura. Apaixonaram-se, e ela serviu de inspiração para muitas obras do mestre mulherengo, que se recusava a abandonar a mulher, Rose. Aos poucos, Camille tornou-se neurótica e obsessiva. Dentre as tragédias dessa relação, estiveram um aborto e seus primeiros surtos emocionais, que posteriormente a levaram à completa loucura; sua mania de perseguição, por exemplo, a fez cozinhar a própria comida pelo resto da vida. Morreu em 1943, aos 79 anos, de problemas cardíacos, pobre e abandonada no Hospício de Montdevergues. Em 30 anos de internamento, recebeu 12 visitas do irmão Paul Claudel, o grande poeta e diplomata, a quem escrevia fazendo pedidos, como chá, açúcar em cubos e até “ ...café do Brasil, que é de excelente qualidade...”, e mantinha a esperança de que ele aparecesse para libertá-la. A mãe nunca apareceu. Luiz Arrais
os oscars de fellini A categoria de Melhor Filme Estrangeiro foi criada em 1947, 19 anos depois da primeira edição do Oscar. No ano dessa estreia, quem fez o debut na premiação foi Vítimas da tormenta, de Vittorio De Sica. Desde então, a Itália é um dos países que mais arrebataram estatuetas. Das 13 que pararam nas mãos de diretores italianos, quatro foram conquistadas por Federico Fellini, com A estrada da vida (1954), Noites de Cabíria (1957), 8 ½ (1963) e Amarcord (1973). Estes e mais A doce vida (1960), Julieta dos Espíritos (1965) e Satyricon de Fellini (1969) estão na lista dos 1001 filmes que você deve ver antes de morrer, do crítico Steven Jay Schneider. “Eu sempre dirigi o mesmo filme. Não se pode distinguir um do outro”, afirmou Fellini, cuja obra se caracteriza pelo uso recorrente de histórias oriundas de sua memória e imagens oníricas. “Toda a arte é autobiográfica. A pérola é a autobiografia da ostra”, defendeu o cineasta, que faleceu há exatos 20 anos. (DN)
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Desde que foram encarados como problema de saúde pública, esses diagnósticos tornaram-se mais frequentes, correspondendo hoje a 12% das doenças mundiais, a maioria originada no estilo de vida atual texto Marcelo Robalinho
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con capa ti nen te Depressão, ansiedade, estresse, fobias, bipolaridade, autismo, esquizofrenia, transtorno obsessivocompulsivo, hiperatividade... Desde 1996, quando passaram a ser reconhecidos como um sério problema de saúde pública, os transtornos mentais vêm se tornando cada vez mais comuns na vida das pessoas. Hoje, eles respondem por 12% da carga mundial de doenças e 1% da mortalidade no planeta, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). Associados cientificamente a algum comprometimento funcional do sujeito, que resulta de disfunção biológica, social, psicológica, genética, física ou química, esses tipos de distúrbios são geralmente atribuídos ao estilo de vida, à cultura e à sociedade em que o indivíduo vive. Elementos que revelam o impacto da dimensão sociocultural na produção de adoecimentos. Dentre os transtornos mentais, a depressão é, sem dúvida, o principal na atualidade, atingindo 20% da população, o que representa algo em torno de 1,4 bilhão de pessoas. Caracterizada popularmente como uma tristeza que parece não acabar mais, ela varia de intensidade e duração, conforme a história de vida do paciente. Grande parte dos que sofrem, muitas vezes, nem se percebe como doente, especialmente na fase inicial do problema. Foi o caso do administrador de empresas Antônio Costa (nome fictício), 48 anos. Nele, a depressão foi desencadeada após um somatório de três fatores: a promoção a um cargo de muita responsabilidade na empresa em que trabalhava, uma crise conjugal que resultou depois em separação e uma dieta rigorosa sem o devido acompanhamento médico, na qual emagreceu 30 quilos. “Vinha sofrendo de insônia e instabilidade no sono há, pelo menos, oito meses sem saber o porquê. Num dia, chegando em casa da musculação, eu literalmente me joguei de costas na cama e fiquei prostrado durante quatro horas. Tive a sensação de que era o fim da linha de várias semanas intercaladas com falta de ar e preocupação em ter alguma doença pulmonar, como uma pneumonia, hipótese que foi descartada quando procurei ajuda médica”, conta. Devido à piora do quadro, Antônio chegou a se afastar
saturday afternoon, robert anderson/ reprodução
Dentre os transtornos mentais, a depressão é o mais frequente, atingindo 20% da população mundial, 1,4 bi de pessoas do trabalho durante 10 dias, a fim de descobrir o que tinha. “Consultei vários especialistas, sem sucesso. Só decidi procurar um psicanalista depois de uma crise de choro muito forte, na qual me senti aliviado da falta de ar. Tomei coragem para entrar na internet e descobri a depressão, a partir da descrição dos sintomas”, explica.
O tratamento com antidepressivos durou três meses. “Diagnosticar a depressão trouxe o meu problema para o nível da racionalidade, pois pude, enfim, descobrir o que estava acontecendo comigo. Para mim, a doença simbolizou a internalização de um sofrimento e uma angústia que estava contida durante muito tempo, e a cura, a libertação disso”, afirma o administrador carioca. Para preservar a sua imagem no trabalho, Antônio solicitou à Continente não revelar sua verdadeira identidade. Para a advogada Rosânia Cerqueira, 55, a primeira crise depressiva ocorreu há 10 anos, durante o processo de separação. “De uma hora para outra, perdi praticamente todos os bens e precisei assumir o comando da casa,
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ocular. “Algumas pessoas não acham que sou depressiva, pois sou muito ativa. Essa doença só ocorre com pessoas fortes quando elas se deparam com situações bastante turbulentas. Nunca achei que isso fosse ocorrer comigo um dia, mas sempre lutei e consegui superar as crises.” Atualmente, ela está fazendo pilates e shiatsu como alternativa para liberar emoções e buscar equilíbrio físico e mental, além de aprofundar sua espiritualidade no kardecismo. Os exemplos de Antônio e Rosânia apontam para a importância simbólica do diagnóstico. Por concretizar a doença, ele tem uma utilidade social. Diz o historiador da ciência norte-americano Charles Rosenberg, que, na nossa cultura, uma doença só existe como fenômeno social quando passa a ser convencionada e nomeada como tal. Nesse sentido, o diagnóstico representa o ponto-chave da experiência do homem com a doença, porque produz um significado social e desencadeia a necessidade de respostas específicas em uma dada sociedade. O tratamento seria uma delas.
CULTO À FELICIDADE
tendo de vender tudo que eu e meu marido tínhamos construído juntos. Isso mexeu muito com o meu estado físico e emocional. Tinha crises de vômito, diarreia e falta de sono constante e nada era diagnosticado. Quando meu neurologista me viu, só de olhar para mim ele detectou que eu estava com uma forte depressão. Passei a tomar remédio durante um tempo para levantar o humor e aí comecei a sofrer um processo violento de depressão, a ponto de me darem comida na boca no período de maior crise, pois tinha perdido todas as forças. Também desenvolvi, na época, algumas síndromes, como a de pânico. Felizmente, consegui me reestabelecer em função de minha filha, que era adolescente. Precisava cuidar dela, e isso
As doenças mentais contemporâneas esclarecem sobre uma cultura que enaltece a felicidade via consumo de bens me deu forças. Voltei a estudar e acabei passando num concurso, o que me fez readquirir autoestima e ficar boa”, relata. Desde então, Rosânia já passou por mais dois períodos de depressão, um em 2009, com a saída da filha de casa para morar no exterior, e outro, atualmente, depois de ser diagnosticada com uma isquemia
O caso da depressão, bem como de outras doenças mentais em voga, a exemplo dos transtornos de ansiedade, é emblemático para compreendermos a singularidade da cultura contemporânea, que valoriza a felicidade como um ideal individual quase inatingível, especialmente pela via do consumo de bens materiais e/ou simbólicos. O aparecimento de doenças mentais seria, então, consequência de uma “falha” temporária ou duradoura do indivíduo (a depender do tipo e do grau de distúrbio vivenciado por ele) na sua trajetória de sucessos, riscos e insucessos. “A felicidade representa, de certa forma, o final do arco-íris. Na prática, é algo que se deseja, mas nunca se chega lá realmente. Estudos indicam que há um nível de felicidade para cada um. Ela se define pelo grau de satisfação que a pessoa tem com a vida dela, que pode variar conforme seus desejos. Por isso, o contexto cultural no qual o sujeito está inserido é importante para compreendermos como isso pode influir em determinadas doenças”, considera o psiquiatra paulista Sérgio Tamai.
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Na opinião de Ednalva Maciel Neves, professora dos programas de pós-graduação em Antropologia e Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o diagnóstico crescente de sofrimentos mentais repercute sobre a vida dos indivíduos, na medida em que qualquer sentimento que não envolva o prazer e a felicidade é interpretado em termos de adoecimento. “Por consequência, o indivíduo fica cada vez mais à mercê ou refém das instituições que definem o que ele é e oferecem formas de tratamento, como os medicamentos antidepressivos. Trata-se de um processo de controle cada vez mais minucioso sobre o indivíduo, em todas as esferas da vida social”, constata.
Ao lado da ideia de obrigação da “felicidade”, Ednalva destaca as noções de “saúde perfeita” e de “velhice ativa” como modalidades sociais que ordenam e normatizam o sujeito, ou seja, criam normas de comportamento e de pensamento para controlar as individualidades e dar previsibilidade às situações, interações e processos vividos. Como conceito normativo, a ideia de “saúde perfeita” impõe um ideal que busca afastar o patológico da experiência humana. No âmbito do trabalho, exemplifica a professora, as novas formas de organização vêm provocando pressões de produtividade sobre o trabalhador, que resultam em sofrimento, como fadiga laboral e absenteísmo. “No campo
da medicina, esse processo significa um escrutínio crescente sobre o paciente e consequentemente a identificação de novas formas de sofrimento, dos quais o mental parece ser um dos domínios mais atingidos”, acredita. Para o professor Cleiton Branco, 33, a pressão se converteu em estresse há três anos. “Inicialmente, peguei uma turma pequena e boa de lecionar na escola. Mas, depois, tive uma experiência com uma turma maior, de 40 alunos, que acabou comigo. Era cheia de problemas, com alunos especiais e outros que só arrumavam confusão. Comecei a sentir uma angústia dentro de mim por não conseguir fazer com que as coisas saíssem como eu queria. Fui ficando mal, pesado. Tentei fazer de tudo para variar a aula, mas não deu certo. Ano passado, quando decidi trabalhar dois turnos para ganhar mais, o meu problema só piorou. Então, resolvi procurar ajuda psiquiátrica. Estou tomando remédio há três meses, o que vem me ajudando. Não faço mais hora extra. Também estou estudando para prestar novo concurso e pensando em fazer mestrado. Quero me sentir bem”, afirma. Na escola em que trabalha, no município de Teresópolis (RJ), Cleiton diz ter um aluno com diagnóstico de hiperatividade e outros 10 que ele suspeita sofrer do mesmo mal, bem como transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e apatia. “Por enquanto, é só achismo de minha parte. Tento inserir esses estudantes no grupo, mas não tenho como fazer um planejamento pedagógico para cada um. Preciso lidar de forma geral e isso é difícil, devido às diferenças”, atesta. A professora cearense Gizelle Sousa, 30, também foi acometida pelo estresse provocado pela vida corrida, o que lhe desencadeou uma enxaqueca permanente. “No colégio em que trabalho, sou professora polivalente. Trabalho com duas turmas. Acho que isso se agravou. De 15 em 15 dias, eu tinha crises. Como não gosto de remédios, só tomava comprimido para a dor à tardezinha, no final do meu expediente. Luz e conversas perto de mim me incomodavam. Hoje, consegui controlar um pouco mais isso”, diz. Apesar de estar melhor da enxaqueca, Gizelle reconhece a ansiedade
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como característica atual de sua personalidade. “Sou ansiosa. Isso me inquieta. Costumo fazer as coisas por impulso. Às vezes, gasto mais do que posso. Antes, eu me achava a pessoa mais controlada do mundo. Hoje, me sinto a mais descontrolada. Tenho medo de me apertar financeiramente. Quero investigar isso. Tanto que já consegui autorização do meu plano de saúde para atendimento psicológico”, adianta. Atualmente, Gizelle se tornou adepta da prática de atividade física para reduzir os níveis de ansiedade.
TRANSTORNOS COMUNS
Segundo Sérgio Tamai, o autismo e a hiperatividade são hoje os principais transtornos observados em crianças. Já na fase adulta, a depressão, os transtornos bipolares de humor e os transtornos de ansiedade (incluindo os estresses) são mais comuns. “Na prática clínica, os diagnósticos dos transtornos são lastreados em sinais e sintomas. Apesar dos avanços tecnológicos, ainda não contamos com marcadores biológicos para evidenciar a ocorrência de distúrbios dessa natureza. Por isso, a gente se baseia no exame do estado mental do paciente, na história clínica dele e nas informações que conseguimos com os familiares”, observa Tamai, que também é membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Na contemporaneidade, as doenças mentais sofreram uma mudança simbólica importante, não estando mais ligadas a um desvio de comportamento, como era no passado, e, sim, pelo estado mental. “Quando se define a normalidade de um transtorno pelo estado mental do indivíduo, como ele pode saber se seu estado é suficientemente normal? Não temos acesso à mente do outro, assim, não temos como comparar a qualidade do meu sofrimento com a qualidade do sofrimento do outro. Tendo a desenvolver, então, um jogo social de provocar efetivamente a inquietação dos indivíduos sobre a qualidade dos seus estados mentais, fazendo com que a sociedade se indague se é normal ou não”, analisa Paulo Vaz, filósofo e professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A ideia de “saúde perfeita” impõe um comportamento que busca afastar o patológico da experiência humana Essa mudança no padrão, diz ele, faz com que o indivíduo seja convidado a se descrever como doente a partir de uma comparação, não mais com o anormal, mas à distância de uma normalidade que se torna idealizada. “É uma transformação fundamental na nossa cultura. O normal, que antes era considerado o regular e a média da sociedade, hoje é o raro a ser conquistado, até porque é idealizado na forma. Acaba gerando um normal extremamente raro, no qual o indivíduo se vê como doente, e cuja possibilidade de superação da doença é o consumo de medicamentos, ou seja, cria-se a ideia de o indivíduo se conceber na distância do normal raro”, avalia Vaz.
SOMATIZAÇÃO
No tocante às doenças mentais, a transformação do sofrimento em dor é um ponto importante para compreensão delas na contemporaneidade. Em vez de experienciarmos o sofrimento como algo a ser elaborado de modo simbólico, na interseção entre um espaço subjetivo e coletivo, que demandam do homem tempo e autoconhecimento, nossa sociedade tem privatizado essas experiências, transformandoas em dor, aponta Jonatas Ferreira, professor dos programas de pósgraduação em Sociologia e Inovação Terapêutica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pânicos e depressões passam a ser percebidos como algo biológico, e as terapêuticas requeridas, longe de provocarem uma discussão acerca dos aspectos intersubjetivos e sociais do sofrimento, levam necessariamente à medicalização a fim de aplacar a “dor” imediata. “Para a teoria psicanalítica, o sofrimento é uma parte inerente à existência humana e condição para o seu desenvolvimento. Na sociedade do consumo, dos vínculos efêmeros e da
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busca incessante pelo prazer, entretanto, o sofrimento e sua elaboração existencial são percebidos como obstáculos à plena circulação das mercadorias, pois requerem tempo reflexivo para o sujeito elaborar os seus problemas. Temos pouca disponibilidade para esse tipo de reflexão, em grande parte decorrente da aceleração da vida, condição para o sofrimento. Assim, parece mais fácil tratar como dor e buscar medicamentos eficazes para algo que tradicionalmente seria entendido como sofrimento”, argumenta Jonatas. Jonatas é atualmente responsável pela realização de duas pesquisas simultâneas junto a 45 profissionais de saúde mental das cidades do Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP). Através da análise do discurso desses especialistas, ele e uma equipe de pesquisadores da universidade buscam entender o estatuto do sofrimento na contemporaneidade e a popularização do consumo de psicofármacos. “Queremos identificar o discurso que psicanalistas, psiquiatras e terapeutas cognitivocomportamentais estão construindo acerca desse sofrimento, da perspectiva de seu tratamento pela fala e através do recurso a esses medicamentos que atuam sobre uma gama de padecimentos que vão da ansiedade à depressão, examinando a forma como o saber científico legitima um novo lugar para o sofrimento”, explica. Embora ainda não tenha resultados, o professor vem percebendo, através das entrevistas, alguns aspectos interessantes. Um deles é o relato dos especialistas da transformação do sofrimento em dor por parte dos pacientes e a medicalização como forma mais prática e ágil para tratar todos os tipos de mal-estar. “A outra linha de argumentação que vem aparecendo nos discursos é uma preocupação maior dos terapeutas em relação aos chamados pacientes borderline, que se caracterizam por apresentar uma alteração na fronteira entre a neurose e a psicose, e costumam ser emocionalmente instáveis, com dificuldade de simbolizar seu sofrimento”, complementa Jonatas. Os resultados dos dois estudos devem ser divulgados no final deste ano, em revistas especializadas do Brasil e de Portugal, e transformados em livro, em 2014.
mídia Tristeza passa a ter nome O termo “depressão” começa a ser mecionado como transtorno psíquico, nos veículos de grande circulação nacional, a partir da década de 1990
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Embora a depressão esteja presente
na mídia nas últimas décadas, ela só se converteu, de fato, num tema relevante de saúde a partir da década de 1990. Antes, nos anos 1970 e 1980, a maior parte das matérias se referia ao assunto como um mal coletivo mais ligado à ditadura militar, à crise econômica mundial e a um contexto de pessimismo e frustração políticosociais. Só depois é que passou a ser mencionado como um transtorno psíquico dominado por um saber médico-científico. É o que revela a tese
de doutorado de Ericson Saint Clair, defendida ano passado na Escola de Comunicação da UFRJ. A partir da análise de 863 matérias publicadas na revista Veja e no jornal Folha de S.Paulo, entre as décadas de 1970 e 2010, mencionando o sentido psíquico da palavra, Ericson observou um gradual aumento do “protagonismo” da depressão como tema e uma ascensão do sentido científico da depressão. Nos anos 1970, a pesquisa verificou que a apropriação científica da palavra apareceu em
30% dos textos da Folha e 35% da Veja. Nos anos 2000, o percentual na Folha pulou para 78% e na Veja, para 81%. “Na década de 1990, a depressão muda de estatuto na imprensa brasileira, passando a ser compreendida como um mal tecnicizável, isto é, passível de ser conhecido e instrumentalizado por discursos de competência técnica, a exemplo da medicina, da psicanálise, da psiquiatria e das terapias alternativas”, aponta Ericson. Segundo ele, essa transformação no sentido
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“Os veículos passaram a ensinar o público a viver a partir de informações científicas” Ericson Saint Clair
midiático da depressão é acompanhada por uma reconfiguração da função social dos meios de comunicação a respeito dos problemas de saúde. “Na prática, os veículos passaram a ensinar o seu público a viver a partir das informações fornecidas pelo universo científico, especialmente aquelas atreladas à noção de risco, encorajando as pessoas a modificarem seus comportamentos diante das descobertas da ciência, num tom claramente pedagógico”, argumenta. Para tanto, Ericson recupera a noção de governabilidade do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), a fim de defender a mídia como um campo de práticas de conduta. “Não um campo no sentido imperativo,
que determina normas como mandamentos, mas como uma esfera que delimita possíveis práticas de saúde, cabendo ao leitor escolher o melhor caminho para si diante de um repertório de condutas”, explica.
LEVANTAMENTO
A partir de uma pesquisa feita especialmente para esta reportagem, nos arquivos online das revistas Veja e Época, a Continente listou 24 capas relacionadas, direta ou indiretamente, às doenças mentais. Na Veja, o destaque no regime enunciativo foi observado, pela 1ª vez, na edição de 31 de março de 1999, enquanto, na revista Época, na edição de 5 maio de 2003. A depressão teve seis capas nas duas publicações, sendo o transtorno campeão nas abordagens, seguido de fobias/pânico, estresse, manias e hiperatividade. As manchetes abordando mudanças de comportamento para combater os males da mente, sobretudo o estresse, foram identificadas em oito capas, de agosto de 2003 em diante, incluindo aí a felicidade e o relaxamento no rol das “boas práticas”
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que levam a uma vida saudável. Outra constatação curiosa é a ênfase dada pela Veja às neurociências (três capas) a partir de 2004, indicando o interesse pelas imagens cerebrais na busca pela origem biológica do pensamento e das emoções humanas. “A mídia tem um papel importante na divulgação dos transtornos
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mentais, ajudando a desmistificar o assunto. Nos Estados Unidos, sabese que metade dos americanos com depressão não se trata, e isso não se deve à falta de recursos”, aponta o psiquiatra Sérgio Tamai. Ele toma como exemplo o caso da atriz britânica Catherine Zeta-Jones, que admitiu publicamente em 2011
ser portadora de transtorno bipolar, problema de saúde bastante comum na atualidade, que se caracteriza por variações bruscas de humor (da euforia à depressão). Calcula-se que 1% a 5% da população seja acometida pela doença, que representa a 6ª causa de incapacidade no mundo e a 3ª entre as doenças mentais, depois da depressão e da esquizofrenia. “Ver pessoas públicas assumindo suas doenças é positivo, porque faz com que as pessoas com características semelhantes se identifiquem com o problema e busquem ajuda”, defende Tamai. No livro Temperamento forte e bipolaridade, lançado em 2004, pela editora Armazém de Imagens, o psiquiatra gaúcho Diogo Lara cita a cantora Elis Regina (1945-1982) e os roqueiros Cazuza (1958-1990) e Renato Russo (1960-1996) como potenciais exemplos de artistas brasileiros (antes considerados apenas temperamentais pela imprensa) que apresentavam formas leves da doença. “Vários outros talentos artísticos, alguns com histórias mais trágicas e
pablo picasso 1 Em Temperamento forte e bipolaridade, psiquiatra gaúcho aponta o artista espanhol como um possível “bipolar” catherine Zeta-jones 2 Atriz admitiu, em 2011, ser portadora de transtorno bipolar
3-4 revistas Semanários já deram várias capas sobre os transtornos da mente
conturbadas que outros, poderiam ser citados e analisados, como Pablo Picasso, Salvador Dalí, Mick Jagger, Janis Joplin e Rita Lee, cada um com expressões particulares do universo de seus temperamentos marcantes”, escreve. Na pintura, o neerlandês Vicent van Gogh (1853-1890) é apontado como um caso exemplar de personalidade bipolar. A intensidade das cores fortes nas suas telas revela a força de sua personalidade, marcada por violência e alucinações que culminaram em seu suicídio. MARCELO ROBALINHO
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CARNEIRO VILELA As paredes em torno de um autor Reedição de A emparedada da Rua Nova e adaptações para o teatro, cinema e para TV de obras de sua autoria recuperam nome do prolífico jornalista e escritor pernambucano, que conquistou o público novecentista com seu trágico folhetim texto Thiago Corrêa
Como toda cidade secular, o Recife
é cheio de segredos, com contradições guardadas em suas ruas e escândalos abafados rumo ao esquecimento. Nos nomes de uma estreita rua de paralelepípedos, ainda contornada por casas, no Bairro dos Aflitos, e do casarão que serve de sede à Academia Pernambucana de Letras (APL), escondem-se pequenas homenagens a um dos mais polêmicos e frutíferos intelectuais que já habitaram a cidade. Ainda que os efeitos do tempo tenham desvinculado o nome de Joaquim Maria Carneiro Vilela da sua trajetória intelectual, recontextualizando-o na política de tapinhas nas costas que se instalou na Academia Pernambucana de Letras (APL), a força da sua obra tem suportado as mudanças históricas, tal qual a rua que leva o seu nome vem resistindo à verticalização do Recife. E é através dessa obra que as paredes que decretavam o isolamento de Carneiro Vilela começam a ser derrubadas. Por ocasião do seu centenário de morte, completado em 1º de julho, parte do legado construído por Carneiro Vilela passou a emergir, com a publicação dos seus escritos. Primeiro, com Cartas sem arte (Editora Universitária UFPE, lançado no fim de 2012), volume organizado pela pesquisadora Fátima Maria Batista de Lima, que reúne crônicas publicadas
Nos seus 67 anos de vida, o escritor dedicou-se a várias atividades, inclusive às de cenógrafo, ilustrador e paisagista pelo autor na revista A Cultura Acadêmica e nos jornais Diario de Pernambuco e A Província. E, agora, com a reedição de seu livro mais famoso, o romance A emparedada da Rua Nova, que chega à quinta edição pela Cepe Editora (em versão impressa e e-book). Embora representem apenas a ponta do iceberg, considerando-se a volumosa obra de Carneiro Vilela, esses dois livros já oferecem uma ideia de sua produção. Nascido em 9 de abril de 1846, no Recife, Carneiro Vilela teve uma trajetória que custa caber nos seus 67 anos de vida. Formado pela Faculdade de Direito aos 20 anos, chegou a exercer a advocacia como juiz municipal em Natal (RN) e como juiz substituto em Niterói (RJ). Foi chefe de seção da Secretaria de Governo do Pará e, depois, assumiu a função de bibliotecário da Faculdade de Direito do Recife. Além disso, arranjou tempo para ser ilustrador, cenógrafo, pintor, paisagista e fabricante de gaiolas.
Foi no Recife que ele se estabeleceu como intelectual de grande influência, jornalista versátil e escritor de fôlego. Aos 18 anos, estreava na literatura publicando o poema Deus, no Diario de Pernambuco. Segundo o jornalista Mário Melo, no prefácio da segunda edição de A emparedada da Rua Nova, o autor era capaz de desenvolver, ao mesmo tempo, dois a três folhetins diários. Como jornalista, quase sempre era escolhido para preencher os espaços vazios do jornal A Província, segundo relata o médico e memorialista Rostand Paraíso. E o acadêmico Sebastião Vasconcelos Galvão, que foi contemporâneo do autor na APL, dizia que “ele poderia encarregar-se, sozinho, da confecção de um jornal inteiro, desde o grave e sisudo artigo de fundo, até a sátira mordaz, em verso ou prosa, desde o inocente folhetim, que faz as delícias das respeitáveis matronas e românticas moçoilas, até o bisbilhoteiro noticiário, a atrair a atenção dos que andam à cata de sensacionais acontecimentos”. Com todo esse gás, não é de espantar que Carneiro Vilela tenha contribuído com mais de 15 periódicos da época, e que do seu currículo constem 10 peças de teatro, cinco operetas, quatro traduções, 15 folhetins, o livro de poesia As margaridas (1872) e diversos artigos e crônicas. Apesar de tantas pistas
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deixadas, a língua ferina de Carneiro Vilela acabou sendo silenciada pouco a pouco. “Muito do que ele escreveu está perdido. Principalmente o que foi escrito para ser publicado em livro”, diz o professor do Programa de PósGraduação em Letras da UFPE Anco Márcio Tenório Vieira.
MEDIDA DO HOMEM
A leitura das crônicas reunidas em Cartas sem arte, porém, fornece material para contextualizar a figura de Carneiro Vilela na sociedade pernambucana do fim do século 19 e início do 20, localizando sua produção nas estantes da literatura brasileira. “Carneiro Vilela se inscreve numa tradição de grandes moralistas que escreveram na nossa língua e, particularmente, no Brasil. O primeiro deles foi Gregório de Mattos e o último Nelson Rodrigues. É verdade que cada um deles tinha princípios morais distintos, no entanto, o que há em comum entre eles é um certo modelo ideal de sociedade, ao mesmo tempo que tinham uma profunda compreensão da medida do homem”, analisa o professor. No prefácio produzido para Cartas sem arte, Anco Márcio observa que o cronista era um tipo de intelectual que não se omitia da função de provocar engasgos na sociedade. Membro da geração conhecida como Escola do Recife, Carneiro Vilela escreveu crônicas que revelam que ele foi um homem do seu tempo, influenciado pelas ideias de Tobias Barreto e pelo ceticismo religioso. Essa postura tinha a ver com a época e passava tanto pela liberdade de imprensa conferida pelo império de Dom Pedro II como pelos ideais iluministas do individualismo ético, que conferiam o poder do exercício à crítica contra as normas sociais. O autor usava suas crônicas para atacar tudo e todos, com uma escrita corrosiva, permeada por ironias que iam da galhofa à jocosidade, da paródia à sátira. Um impulso apresentado por ele já na sua crônica de estreia no Diario de Pernambuco, quando diz só ter aceito o convite para escrever no jornal “depois que daquela parte do velho e conceituado Diario foram varridos o enxame de mosquitos e a magna quantidade de teias de aranha, que o tornavam inabitável para quem adquiriu o hábito da boa sociedade”.
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Ao narrar sua experiência como pintor no Rio de Janeiro, ele diz que seus quadros foram expostos por seis dias numa galeria da Rua do Ouvidor e, embora as telas recebessem elogios por parte dos entendedores, não houve um comprador sequer. Ele então resolve adotar o nome inglês William Brotherood, volta a expor os mesmos
Carneiro Vilela pertenceu à geração da Escola do Recife e sua obra foi influenciada pelas ideologias do período quadros com a nova assinatura e, em apenas cinco dias, todos os quadros são vendidos. Ao que ele conclui, num chiste: “O público não queria quadros, o que queria era... inglês”. O mesmo espírito aguerrido que empregava nas crônicas, Carneiro Vilela aplicava nos assuntos pessoais. Em 1890, ao ser convidado para fundar a
Academia Pernambucana de Letras, ele recusa, alegando que “o elogio mútuo é mais do que prejudicial, é ridículo, além de ineficaz em seus intuitos” e que “para pertencer a uma associação qualquer, é preciso, antes de tudo, que essa associação nos inspire confiança, já pelo seu objeto, já pelo seu sujeito, isto é, pelos seus promotores”. Curiosamente, por algum motivo hoje desconhecido, ele volta atrás e se torna não apenas um dos fundadores, mas o primeiro presidente da APL, exaltando a importância de “uma agremiação forte, consciente e compacta, solidária e compenetrada da utilidade e da nobreza do seu ideal”, no seu pronunciamento de instalação da academia. Carneiro Vilela ficou apenas 11 dias à frente da APL, sendo citado como presidente provisório pelo Almanaque de Pernambuco. Mas os efeitos da sua recusa inicial já haviam sido registrados pela história, impedindo que a APL se tornasse a primeira academia a ser fundada no país. A espera por ele, no entanto, parece se justificar pela sua importância no meio literário da época. “Ele era muito conceituado, com vários livros, era um
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1 anco márcio Professor tem-se dedicado ao estudo da obra de Carneiro Vilela rostand paraíso 2 Pesquisador situa seus estudos no período histórico em que viveu o escritor
3-4 edições recentes Capas dos novos volumes do famoso romance e de coletânea de crônicas 2
intelectual de renome, por isso passou a ser um dos principais organizadores da Academia e foi nomeado como presidente enquanto se constituía a sociedade”, conta Rostand Paraíso. Um prestígio que contrasta com o esquecimento da sua obra, mas que se estendeu à sua morte, sendo nomeado patrono da cadeira 21 da APL e batizando a sede da instituição como Casa de Carneiro Vilela.
ROMANCE DE PRESTÍGIO
Ao que tudo indica, muito desse prestígio se deve ao romance A emparedada da Rua Nova, publicado inicialmente em livro no ano de 1886, embora sua fama ficasse restrita aos limites de Pernambuco. “Não temos nenhum registro de sua repercussão fora do Estado. Aliás, Vilela é um autor quase que ignorado pelos seus contemporâneos das hoje regiões Sudeste e Sul. O crítico José Veríssimo não o cita, e Sílvio Romero o cita sempre de modo vago, como representante desta ou daquela linha do romance oitocentista”, observa Anco Márcio. Mas, como o próprio Carneiro Vilela apontava: “o juiz que processa e julga
os literatos é o público e, em recurso de revista, o supremo tribunal que lhes dá a sentença definitiva, sem apelação nem agravo, é o futuro, é a posteridade, é a História”. Ele estava certo, tanto que, anos mais tarde, seu romance voltava a ser publicado, dessa vez como folhetim, no Jornal Pequeno, entre 1909 e 1912. “Quando uma obra não agradava, acontecia de ela ser retirada pelo editor e substituída por outra. A emparedada da Rua Nova ficou em ‘cartaz’ durante quase três anos. O que, para a época, era um tempo muito longo”, afirma Anco Márcio. A explicação para isso, e para a sua contínua reedição até hoje, está em cada uma de suas mais de 500 páginas. No plano estético, percebemos a capacidade do autor em envolver os leitores na narrativa, seja pelo uso de um narrador onisciente que muda de perspectiva a toda hora, promove avanços e retornos cronológicos para embaralhar os fatos e renovar as expectativas dos leitores, ou pela estrutura de romance policial, com a esperança de resolução do mistério de um assassinato motivando o avanço da leitura. A isso, some-se a complexidade com que Carneiro Vilela
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constrói os personagens, criando pontos de interseção com o moralismo de suas crônicas, ao revelar lados sombrios nos arquétipos do herói e da mocinha. Lucilo Varejão Filho observa, no prefácio da terceira edição, que a história insere uma trama de crimes no seio de uma família abastada: “O clima é outro: o de um lar burguês onde se respirava até então a tranquilidade de uma vida abastada e, ao que tudo indica, feliz”. Para tanto, não por acaso, Carneiro Vilela ambienta a história na Rua Nova. “O grande centro do comércio de Pernambuco, ali ficavam as melhores lojas, casas de lanche, cinemas e o sistema de bondes confluía para lá. Era famosa, ali moravam muitos comerciantes portugueses. Toda tarde, às 16h, a Rua Nova via um desfile de mulheres que iam às compras e andavam por ali para se exibir”, explica Paraíso, que é autor do livro A velha Rua Nova e outras histórias. Nesse cenário, Carneiro Vilela insere a família do comendador Jaime Favais, um imigrante português que adquiriu fortuna como comerciante no Recife. Casado com a prima Josefina, ele é pai de Clotilde e vivia tranquilo, até o jovem Leandro Dantas surgir em seu caminho. Galanteador, o rapaz moreno chama a atenção das damas da sociedade com sua elegância e põe em xeque a honra de famílias importantes. De acordo com a pesquisadora Helena Maria Ramos de Mendonça, em sua dissertação de mestrado, a trama é uma releitura do mito do Don Juan, incrementando o enredo com intrigas, ciúmes e traições.
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con especial ti nen te Mas o que parece ter contribuído mais para a fama de A emparedada foi a mistura de realidade e ficção promovida pelo autor, que se utiliza de fatos (a exemplo do corpo encontrado no Engenho Suaçuna, logo no início do romance) para desenvolver sua trama. Por integrar a Escola do Recife, Carneiro Vilela foi influenciado pelos ideais do Realismo e do Naturalismo, o que torna sua ficção um documento da época, registrando detalhes sobre a vida política, econômica e social do Recife. Segundo Anco Márcio, isso se traduz no romance com “a crença no determinismo, no evolucionismo social, na História como dotada de um sentido, no anticlericalismo panfletário, na defesa da república como mortalmente superior à monarquia, e, por fim, em uma certa crença de que entre a palavra e a coisa a ser narrada existe uma certa naturalização, isto é, a palavra não está no lugar da coisa em si, mas é como se ela fosse a própria coisa”. Resultado: com a mistura entre situações reais e imaginadas, até hoje a dúvida sobre o crime do romance ainda paira sobre a Rua Nova, cenário que guarda outras tragédias, como o assassinato de João Pessoa, então presidente da Paraíba, e o desabamento das lojas 4$400 e Maison Chic. “Muitos acham que foi um caso de ficção, mas o próprio Carneiro Vilela diz que a história foi baseada nos relatos de uma escrava. Outros dizem que o caso foi real, aconteceu num primeiro andar de uma casa entre a descida da ponte e a Rua da Palma. É possível que tenha sido, mas não há comprovação”, diz Paraíso. “Ela entrou no imaginário da população, como se os fatos ali narrados tivessem mesmo ocorrido”, diz Anco Márcio, que também assina o prefácio desta nova edição pela Cepe. E isso tem se comprovado com as sucessivas produções que tomam A emparedada da Rua Nova como inspiração, a exemplo do curta de mesmo nome de Marlom Meirelles e de adaptações teatrais recentes como O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas, encenada pela Trupe Ensaia Aqui e Acolá. Agora, está em fase de produção a minissérie da Globo Amores roubados, uma adaptação livre do romance de Carneiro Vilela, com estreia prevista para 2014.
adaptação lenda urbana do recife chega à tv O Recife sempre alimentou lendas
urbanas. Basta lembrar figuras como Biu do Olho Verde, a Loura do Banheiro e a Perna Cabeluda, habitantes do imaginário da cidade desde que o frevo é frevo. Mas, dentro da família das famosidades assombradas, uma personagem feminina vem ganhando cada vez mais força. É A emparedada da Rua Nova, que – depois de inspirar uma peça local de grande sucesso – vai chegar às telas de TV no comecinho de 2014, em forma de minissérie, com o nome de Amores roubados. Finalmente, o Brasil vai ter a chance de conhecer a trama criada pelo escritor Joaquim Maria Carneiro Vilela, fundador da Academia Pernambucana de Letras, morto há 100 anos. Criada ou perpetuada? Esse é um dos tantos mistérios que cercam a história da moça. A emparedada da Rua Nova retrata o drama de uma jovem, filha única de uma família abastada, que engravida de um malandro chamado Leandro – o mesmo que seduz sua mãe. Para não passar por constrangimentos (era o final dos anos 1800, não custa lembrar), Jaime, o poderoso chefão da família, tenta casá-la com um sobrinho seu. Mas, como o rapaz se recusa, ele condena a filha ao fim trágico: manda “emparedá-la”, viva, em seu próprio quarto. O sobrado da Rua Nova, no centro do Recife, onde a trama macabra foi ambientada, ainda está de pé. E, ao longo dos anos, não faltaram relatos de pessoas que dizem ter ouvido gritos, choros, móveis arrastados e batidas nas paredes. A adaptação de A emparedada da Rua Nova para a TV foi ideia do jornalista e roteirista George Moura, pernambucano radicado há 17 anos no Rio de Janeiro. Moura teve o primeiro contato com o livro nos anos 1980. Seu então sogro, o
médico, escritor e diretor do Teatro de Amadores de Pernambuco, Reinaldo de Oliveira, foi quem o apresentou à história. Quando caminhava pela Rua Nova, vez por outra George se pegava pensando na emparedada. “A hipótese de que o livro teria sido baseado em fatos ocorridos, quem sabe, nas redondezas, sempre me atraiu. Desde aquela época, havia um desejo de fazer algo com ela”, relata à Continente. O exemplar presenteado por Dr. Reinaldo, raríssimo nos dias de hoje, é guardado como um tesouro. Mas isso não o impediu de emprestar o volume ao diretor José Luiz Villamarim, há cerca de 15 anos, com a devida observação: “Aqui tem uma história que eu queria muito contar”. Na época, George era seu assistente de direção na novela O rei do gado. Zé Luiz leu e se apaixonou. “É uma história sem barriga”, atesta. Até sair do papel, no entanto, muitas águas rolaram. O pernambucano foi editor de texto do Fantástico, assinou os roteiros dos filmes Linha de passe e Gonzaga – de pai pra filho e recebeu seis indicações ao Emmy International Awards, o Oscar da televisão. “Só há cerca de dois anos levei o projeto ao Manoel Martins, diretor de entretenimento da Globo. Ao conversarmos sobre o meu desejo de adaptar o livro, ele perguntou: ‘Você já pensou em fazê-la contemporânea?’”. George Moura se entusiasmou com o desafio lançado. Transportou o folhetim do século 19, ambientado no Recife, para o sertão pernambucano do ano de 2014. “Essa conjunção se deu porque a história é universal. E o Sertão hoje se modernizou, do ponto de vista econômico, mas ainda é arcaico em muitos aspectos. É desse choque que nasce a ideia central da adaptação”, conta o roteirista, que teve como colaboradores Flávio Araújo, Sérgio Goldenberg e Teresa Frota. Os inúmeros ganchos da narrativa chamaram a atenção de George, desde que leu o romance pela primeira vez. “O caráter folhetinesco da trama, uma história de paixões e vingança, atual até os dias de hoje por seu ritmo trepidante, com certeza vai prender o telespectador, da mesma forma que prende o leitor”, aposta. E, assim, nasceu Amores roubados.
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5 Ísis Valverde Depois de viver heroína em Faroeste caboclo (ao lado), atriz será protagonista da minissérie global Amores roubados
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No início de 2013, José Luiz Villamarim e George Moura dividiram os créditos de outra adaptação: O canto da sereia, romance de Nelson Motta sobre uma cantora de axé assassinada em cima de seu trio elétrico, no meio do carnaval baiano. A mesma Ísis Valverde, que interpretou a irresistível maria-chuteira Suellen, na novela Avenida Brasil (que Villamarim dirigiu ao lado de Amora Mautner), e a cantora Sereia, está de volta em Amores roubados. Ela será Antônia, a moça bem-nascida que engravida e motiva a tragédia familiar. Nas gravações, realizadas durante dois meses em Petrolina, a mineira Ísis fez amizade com as meninas da cidade, para que o sotaque pernambucano seja o mais fiel possível. O elenco não economiza em nomes estelares. Ísis, Cauã Reymond, Murilo Benício, Patrícia Pillar, Dira Paes, Cássia Kis Magro... e Irandhir Santos. Sim, ele mesmo. Depois de sete anos, o ator pernambucano voltará à telinha, veículo em que estreou protagonizando A Pedra do Reino, microssérie adaptada do romance de Ariano Suassuna por Luiz Fernando Carvalho, cujo resultado dividiu opiniões. Cuidadoso com suas escolhas, Irandhir atravessa um momento de grande projeção no cinema e acaba de ganhar o Kikito de melhor ator por seu trabalho no filme Tatuagem, de
Hilton Lacerda. A atriz pernambucana Magdale Alves, protagonista do sucesso teatral Mamãe não pode saber e que atuou em minisséries como Amazônia – de Galvez a Chico Mendes, também está na trama. “Villamarim e eu conversamos muito até chegarmos à escalação final”, acentua George, ciente do ótimo elenco que tem à disposição de sua história.
A minissérie adaptou o folhetim do século 19, ambientado no Recife, para o sertão pernambucano do ano de 2014 Não custa lembrar que, nos últimos anos, o público pernambucano pôde acompanhar outra adaptação de A emparedada da Rua Nova. No entanto, a montagem teatral O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas optou por um tom farsesco, baseado nos melodramas que eram encenados em circos. O espetáculo rodou o Brasil, participando de festivais como o Porto Alegre em Cena e do projeto Palco Giratório, do Sesc. Mas, enquanto o público que vai ao teatro se diverte com a sátira da Trupe Ensaia Aqui e Acolá,
a versão televisiva promete muito mistério e um clima noir, mesmo num ambiente tão solar. “É uma linda história de amor e uma terrível história de vingança. E também uma geografia física e humana pouco vista na TV brasileira. Um sertão contemporâneo, onde existe a criação de bode, fabricação de vinhos e exportação de frutas para Europa, Japão e Estados Unidos”, detalha George. Mas é a história da jovem enganada e, depois, castigada pelo pai, que deve comover o público de Amores roubados. “A emparedada oferece uma imagem impactante de repressão ao universo feminino. Acredito que, por isso, ela ecoe ainda em nosso imaginário povoado de assombrações, cicatrizes do passado. Traz a medida da justiça que deve ser feita, está ali aguardando por ela em seu claustro eterno. A história registra muitos desses casos, as lendas não nos deixam esquecer”, reforça o autor e encenador pernambucano Newton Moreno, que levou Assombrações do Recife Velho, inspirado na obra de Gilberto Freyre, aos palcos. Lenda ou verdade, a história de A emparedada da Rua Nova segue seduzindo leitores e, brevemente, telespectadores.cleodon coelho
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pop Como uma onda no mar
Opiniões da crítica e do público, nem sempre afinadas, podem mudar de perspectiva ao longo do tempo. O que era bom vira lixo, o que era ruim vira joia. Tudo isso, por quê? texto Márcio Padrão
Em março deste ano, Caetano
Veloso deu uma declaração que motivou, em parte, a concepção deste texto. Ele foi convidado pelo portal Uol a dar um relato sobre o que testemunhou no início da beatlemania dos anos 1960, em virtude dos 50 anos do lançamento do Please please me, disco de estreia do quarteto de Liverpool. Caetano fez uma comparação da musicalidade dos Beatles em seus primeiros anos com a de um ídolo adolescente dos anos 2010. “Cara, em 1963, quando eles apareceram, e eu ouvi as primeiras vezes, era como hoje a pessoa ouvir Justin Bieber. Não era mais do que isso.” Difícil dizer se foi mais uma bravata do músico baiano ou apenas uma inocente comparação. O fato é que a frase de Caetano põe em debate uma série de pesos e medidas ao longo da história da cultura popular. Em uma primeira leitura, faz todo o sentido comparar o começo das trajetórias de Beatles e Bieber. Ambos investiram em canções de letras de amor pueril e arranjos de estrutura convencional e de fácil apelo ao público. Ambos causaram ondas de histeria em seus jovens fãs ao redor do mundo. Ambos apostaram na beleza física e no carisma como poderosas armas de marketing pessoal. No entanto,
a outra leitura salta rapidamente à memória: afinal, não seria um despropósito comparar a banda mais aclamada da música pop com um jovem artista que tem apenas seis anos de carreira, e portanto, um longo caminho pela frente? O cerne da questão está justamente em como as diferentes esferas de uma sociedade de consumo – o público, a crítica cultural, a imprensa – avalia e reavalia as próprias noções de cultura e arte, fazendo com que artistas outrora marginalizados ganhem os holofotes e vice-versa. É esquisito pensar nisso hoje em dia, mas o duradouro rock’n’roll já era considerado um gênero em baixa no começo dos anos 1960 e coube aos próprios Beatles resgatarem-no de uma vez por todas. A prova disso foi a famosa frase do executivo Dick Rowe, da gravadora Decca, dita ao empresário do quarteto, Brian Epstein, antes de seus clientes revolucionarem o mundo: “Bandas com guitarras estão fora de moda”. Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr tiveram uma década de discos aclamados pela crítica e público, cuja reputação permaneceu forte até hoje. Podemos voltar à entrevista de Caetano, porém, para chegar a outro bom exemplo do vaivém do chamado “bom gosto”.
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Em meados dos anos 1920 e 1930, na Lei Seca dos Estados Unidos, o jazz era difundido como um estilo marginal, em clubes que burlavam a lei vendendo bebidas alcoólicas. Uma situação bem diferente das décadas seguintes, sendo pouco a pouco alçado ao elitismo. Com a palavra, Caetano: “Achei bonitinhas as canções (dos Beatles), um negócio meio simplório assim, porque, veja bem, eu gostava do Thelonious Monk!”, justificou o tropicalista, citando um dos ícones do jazz contemporâneo como uma referência de bom gosto. Mas os exemplos não ficam apenas na música, é claro. No cinema, nomes como Alfred Hitchcock, Steven Spielberg, John Hughes e o nosso José Mojica Marins já foram considerados artistas medíocres, ou, se muito, realizadores apenas competentes que focavam no apelo popular. Com o tempo, passaram a ter seus méritos reconhecidos como cineastas autorais. Quando se fala em Van Gogh, logo é lembrado o fato de o pintor holandês somente ter ganhado reconhecimento após sua morte. Existem até casos de mídias inteiras que foram marginalizadas por muito tempo, como os quadrinhos e os video games. A primeira ganhou novo olhar, a partir de obras para adultos
de mestres do gênero, como Alan Moore e Neil Gaiman, nos anos 1980. Enquanto a segunda constitui-se, hoje, na indústria de entretenimento mais lucrativa do mundo, superando antigas campeãs, como a fonográfica e a cinematográfica, além de ter conquistado espaço nos circuitos de exposições de arte.
RESGATES
As motivações para essas marés de reconhecimento são de difícil identificação, e variam de acordo com cada caso. Até mesmo fatos aparentemente prosaicos podem ter alguma influência, como aconteceu aos Mutantes. Por anos relegados à nota de rodapé no movimento tropicalista, foram “redescobertos” com o relançamento do catálogo da banda em CD, nos anos 1990. E o curioso é que tiveram um impacto maior fora do país. Kurt Cobain, do Nirvana, deu entrevista no Brasil com os discos dos Mutantes em mãos. Também com ajuda externa, Tom Zé foi resgatado do limbo nos anos 1980, quando o ex-Talking Heads David Byrne o convidou para integrar o seu selo de world music, o Luaka Bop. Para o crítico de música Camilo Rocha, a idade do leitor/ espectador/ ouvinte é um dos fatores mais
importantes para a redefinição de valores culturais. “Ela tende a intensificar a acomodação e o conservadorismo, a noção de que ‘no meu tempo era melhor’ e, consequentemente, a incapacidade de apreciar o ‘novo’ como fazia anos atrás. Por outro lado, a idade também pode significar acúmulo de conhecimento, de referências, e isso pode mudar a maneira como se vê e ouve muita coisa”, pondera. Camilo também acredita que o futuro apresenta diferentes contextos e traz chances para artistas outrora marginalizados. “A estética e o som do Velvet Underground, totalmente desconhecidos em sua época, faziam sentido para o pós-punk. A disco music, repudiada nos anos 1980, tinha tudo a ver com a música eletrônica, que a revalorizou.” Mas será que há algum período médio para que um artista ou obra sejam redescobertos? A crítica de cinema Ana Maria Bahiana, que mora nos Estados Unidos, acredita que, no Brasil, há uma maior volatilidade nesse sentido. “Pelo que vejo de longe, o tempo médio (do brasileiro para redescobrir artistas) é uma semana, se tanto. Aqui, nos EUA, os gostos e preferências são claramente geracionais.” Ela não arrisca uma
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1-3 saco de gatos Em declaração ambígua e provocativa, Caetano Veloso (ao lado) disse que, no início dos anos 1960, ouvir os Beatles (E) era o mesmo que ouvir Justin Bieber (C)
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resposta definitiva sobre o que interfere no gosto das pessoas. “Para saber isso hoje, no Brasil, eu precisaria de uma bolsa de pesquisa. Nos Estados Unidos, o consenso criado pelas mídias digitais e sociais é, atualmente, o fator dominante.” O músico e professor do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP) Walter Garcia defende que o processo cada vez maior de massificação na indústria cultural, desde a década de 1980, nos grandes centros brasileiros, vem se tornando um fator definidor do gosto popular. Falando especificamente da música, Garcia aponta aspectos como a difusão massiva e descartável de canções no rádio e TV; o sucesso de vendas dessas canções por um curto período de tempo; a propaganda, positiva ou negativa, dessas mesmas canções na grande imprensa; a produção marginal de canções que, permanecendo à margem do mercado hegemônico ou nele se inserindo, está pautada em fórmulas comerciais já testadas e aprovadas; além do bom e velho boca a boca. No entanto, segundo o professor, o trabalho do grupo de rap paulistano Racionais MC’s é uma dessas exceções que abriu caminhos diversos nesse panorama e confundiu os parâmetros
pré-estabelecidos de gosto nos diferentes públicos. “Escutar a obra dos Racionais permite que qualquer ouvinte estimule sua sensibilidade e experimente como é sobreviver nas periferias dos grandes centros urbanos brasileiros, na virada do século 20 para o século 21. Se o ouvinte habita (imaginariamente ou não) no lado
Para o crítico musical Camilo Rocha, o avanço da idade é fator determinante para redefinição de valores culturais de fora das periferias, precisará ultrapassar determinações de classe, as quais muitas vezes se confundem com o chamado gosto pessoal, a fim de que a sua sensibilidade se aguce na audição dessa obra”, teoriza Garcia. Um caso como o dos Racionais põe em xeque o conceito difundido pelo sociólogo Pierre Bourdieu, um dos maiores estudiosos do gosto. O francês defendia que o gosto e as práticas de cultura de cada um de nós são resultados de um feixe de condições específicas de socialização.
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No livro A distinção – crítica social do julgamento, Bourdieu afirmava que o gosto cultural e os estilos de vida de classes sociais distintas – a burguesia, a classe média e os operários – estão profundamente marcadas pelas trajetórias sociais vividas por cada um deles. Assim, de um modo geral, os chamados “bom” e “mau gosto” eram resultado de diferenças de origem e de oportunidades sociais. O fenômeno dos Racionais e a popularização do funk carioca causam uma saudável bagunça nessa ideia, pois são modelos musicais nascidos na periferia que se tornaram amplamente aceitos nas classes econômicas mais altas. Com circunstâncias tão complexas, seria então virtualmente impossível chegar a uma conclusão além do “gosto não se discute”? Ana Maria Bahiana acha que, a esse respeito, uma ideia sempre prevalece: “O ser humano prefere o belo ao feio, o harmonioso ao desarmonioso, e adora uma história bem-contada. Isso vem das cavernas, e não creio que mude nos próximos séculos”. Se Caetano estiver certo em sua comparação, talvez Justin Bieber ainda esteja esperando para ter seu momento Beatles no futuro. Basta que as próximas gerações se deem conta disso... ou não.
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MoDA Clássicos de agora o termo “clássico” remete
ao latim classicus, que por sua vez vem de classis, isto é, “classe”, de classe social. No caso, classicus era algo “superior” e designava as classes mais altas da sociedade romana (como o exército). Essa ideia logo foi tomada por empréstimo pelo campo da estética, que a definiu como sinônimo de alto padrão. Devido à própria origem do termo, o chamado Classicismo acabou designando as manifestações artísticas provenientes da cultura greco-romana e/ ou aquelas diretamente influenciados por ela, como o Renascentismo. Alguns dos parâmetros dessa escola são a ordem, o equilíbrio e a harmonia. Como se pode perceber, o uso do termo foi se banalizando com o passar dos anos. Agora, um clássico pode designar até um jogo de futebol com equipes de grandes torcidas. Teóricos defendem que, atualmente, o valor sugerido pela palavra “clássico” pouco tem a ver com a obra em si, mas com quem faz tal enunciado. Ou seja, é puramente normativo e carregado dos conceitos de quem afirma que esta ou aquela coisa merece ser chamada de clássica. Ainda assim, o significado inicial não foi completamente perdido, pois os chamados “formadores de opinião” têm hoje função parecida com a alta classe romana: ditar o que pertence ou não ao chamado “bom gosto”. mÁrcio paDrÃo
Em alta Alfred Hitchcock o inglês era visto apenas como um diretor com grande tino para atender aos desejos do público médio e conseguir boas bilheterias. no entanto, críticos ligados à nouvelle vague usaram hitchcock como exemplo máximo da teoria do autor, segundo a qual um diretor é capaz de injetar sua visão artística em toda a sua filmografia, a despeito do trabalho de toda uma equipe ou de pressões comerciais do estúdio. desde então, hitchcock vem sendo considerado pela crítica como um dos maiores cineastas da história.
Disco music o gênero que fez o mundo dançar na segunda metade dos anos 1970 sofreu um sério desgaste na virada para os 1980. o radialista americano steve dahl, fã de rock pesado, foi um grande opositor: organizou um levante contra a disco,, chamado-a de disco suck.. Mas isso não foi capaz de destruí-la, pois é usada como pilar da house francesa, desde meados dos anos 1990. Justice e daft Punk são dois exemplos que justificam seu o atual status cool.
2001 – uma odisseia no espaço nem o prestígio de stanley Kubrick o protegeu das pedradas. apesar da boa aceitação do público da época, a crítica se dividiu. o respeitado roger ebert elogiou e deu ao filme quatro estrelas, mas a igualmente influente Pauline Kael disse que era um filme “monumentalmente sem inspiração”. outros críticos reclamaram do tom abstrato e da narrativa lenta. Porém 2001 resistiu ao tempo e se firmou como um clássico.
José Mojica Marins o criador de Zé do Caixão sempre teve muita dificuldade para ser reconhecido. ainda nos anos 1960, glauber rocha o citava como influência, mas Mojica penou para continuar na ativa, metendo-se em produções inexpressivas, além de banalizar seu maior personagem em participações cômicas na tv. À medida que seus filmes foram relançados, sua fama de artista cult cresceu, inclusive, fora do brasil, onde virou o “Coffin Joe”. bandas de metal como sepultura e White Zombie reverenciam publicamente o mestre do terror brasileiro.
Mutantes a banda de rock mais aclamada do brasil nem sempre teve essa aura. não raro, as estranhices dos Mutantes eram vaiadas em suas apresentações de tv. eles eram considerados coadjuvantes de luxo dos “cabeças” gil e Caetano. também nunca tiveram vendagens expressivas de discos. foram resgatados do ostracismo quando sua discografia foi relançada em Cd, no início dos anos 1990, e nomes como Kurt Cobain, beck e sean lennon mencionaram a banda como ícone do rock produzido aqui. nem mesmo o criticado retorno dos Mutantes nos anos 2000, liderados por sérgio dias, conseguiu diminuir a reputação do grupo.
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Histórias em quadrinhos Mídia surgida nas páginas de jornais no final do século 19, os quadrinhos eram apenas diversão barata. em 1954, sofreram um baque, nos eua, quando o psiquiatra fredric Wertham lançou A sedução do inocente, livro que identificava neles possíveis mensagens subversivas que ampliavam a delinquência juvenil. após anos de autocensura, as hQs ganharam força nos anos 1980, quando autores como neil gaiman e alan Moore trouxeram elementos adultos ao gênero de super-heróis, criando obras aclamadas pela crítica. hoje em dia, eles disputam a mesma vendagem de best-sellers em livrarias.
Video game Caso parecido com o dos quadrinhos. Quando a garotada jogava atari, nos anos 1980, ninguém achava que aquilo viraria coisa séria. Mas, na atual geração de consoles, os games ultrapassaram tanto fronteiras comerciais quanto narrativas. a franquia de guerra Call of duty é a mais rentável da história dessa mídia e seu jogo de 2012, Modern warfare 3, atingiu um bilhão de dólares em vendas antes de isso ocorrer ao filme Avatar. recentemente, instituições como o MoMa, de nova York, e o Museu da imagem do som, de são Paulo, promoveram exposições sobre a história dos games.
Velvet Underground reza a lenda que quem comprou o disco de estreia dos nova-iorquinos, The Velvet Underground & Nico (1967) montou uma banda após ouvi-lo. Mas, na época, lou reed e cia. só conseguiram algum burburinho principalmente por causa do apadrinhamento do artista plástico andy Warhol, que assinou a capa do disco e convidava o grupo para seus happenings. a velvet nunca teve sucesso comercial em sua curta carreira, mas é considerada hoje uma das mais influentes da história, célula-mater de boa parte do indie rock que os redescobriu a partir dos anos 1980. sem o velvet underground, bandas seguidoras como sonic Youth, Jesus & Mary Chain e r.e.M. dificilmente teriam espaço.
Jazz um dos gêneros mais reverenciados esteticamente hoje em dia, o jazz já teve seus períodos difíceis. na lei seca que assolou os eua nos anos 1930, o estilo predominava nos bares que confrontavam a norma vendendo bebidas alcoólicas. assim, foi rapidamente associado à marginalidade. além disso, como a maioria dos músicos era negra, também sofreu forte preconceito racial. só quando gênios como John Coltrane e Miles davis conseguiram vencer o conservadorismo, com suas obrasprimas nos anos 1950 e 1960, é que o jazz ganhou o devido respeito.
Hip hop o racismo também foi – e ainda é – um dos maiores problemas que afligiram a cultura hip hop, nascida nos guetos das metrópoles norte-americanas. sendo música – moda e atitude – predominantemente orquestrada por negros, o gênero demorou para ganhar espaço na grande mídia. Mas a vingança veio forte: o rap hoje conta com elogios de artistas do porte de Quincy Jones e bob dylan. Já os astros de hip hop desbancaram o rock e estão entre os de maior apelo popular dos eua, como Jay-Z, Kanye West e até o “branquelo” eminem.
John Hughes o rei das comédias adolescentes dos anos 1980 recebia, na época, críticas negativas, que consideravam seus personagens como jovens fúteis e mimados, à medida que retratava os adultos como caricaturas. as bilheterias também eram modestas, nunca alcançando o topo do ranking. hoje, entretanto, é tremendo o impacto de filmes como O clube dos cinco e Curtindo a vida adoidado. eles foram inspiração a séries e filmes como Community e as comédias do produtor Judd apatow, como Superbad e Se beber, não case.
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Em baixa Bossa nova Quando João gilberto e tom Jobim conquistaram o mundo com clássicos como Chega de saudade e Garota de Ipanema,, no início dos anos 1960, até frank sinatra se rendeu ao gênero que unia samba e jazz. no entanto, deixou de ser novidade e, na mesma década, a bossa nova foi pouco a pouco sendo encoberta por gêneros como a jovem guarda e o tropicalismo. ainda que os hinos dos tempos áureos continuem sendo respeitados, o estilo musical deixou um legado discreto de continuidade. Com a morte de alguns de seus expoentes – vinicius de Moraes, tom Jobim, baden Powell e nara leão – a bossa ainda manteve influência na geração atual da MPb, mas de forma diluída, sem seguidores diretos.
Cinema de terror stanley Kubrick, brian de Palma, William friedkin e John Carpenter foram alguns dos grandes cineastas que se arriscaram no terror com resultados aclamados, entre meados dos anos 1970 até a metade dos anos 1980. Passado esse auge, o gênero continuou com alguns sucessos comerciais aqui e ali, como A bruxa de Blair e as franquias Pânico e Atividade paranormal,, mas a maior parte de sua produção continua relegada ao nicho.
Videoclipes Quem tem mais de 30 anos lembra o período em que o “novo clipe de Michael Jackson” era um lançamento tão aguardado quanto um blockbuster dos cinemas. Mas veio a crise da indústria fonográfica e a ascensão do YouTube como plataforma de vídeos, que rapidamente transformaram a Mtv – a então casa oficial dos clipes – em algo obsoleto. ainda há muitos artistas apostando no formato, dos independentes aos astros como Justin timberlake e Madonna, mas é fato que o clipe não tem mais aquele peso que tinha como grande ferramenta de marketing aliada à criatividade artística.
Hard rock e heavy metal Por cerca de duas décadas – os anos 1970 e 1980 – esses gêneros musicais irmãos reinaram entre a juventude. led Zeppelin, black sabbath, Metallica e guns n’ roses foram responsáveis por iniciar muita gente nas guitarras. Mas esses sons acabaram implodidos por seus elementos mais negativos, como a megalomania de seus músicos e a resistência para se mesclar a outros gêneros. hoje, quem se arriscar a cantar de cabelos armados, bandana e calça de couro vai ser rapidamente tachado de cafona ou motivo de paródia, como no musical da broadway que virou filme Rock of ages.
Woody Allen o diretor nova-iorquino foi responsável por encantar cinéfilos por quase três décadas, com obras como Manhattan, Noivo neurótico, noiva nervosa, A rosa púrpura do Cairo e Desconstruindo Harry. Mas, nos últimos anos, obcecado por realizar pelo menos um filme por ano, allen viu seu estilo autobiográfico se tornar uma sátira ruim de si mesmo, repetindo à exaustão características de seus filmes mais importantes. o resultado é o gradativo desinteresse de crítica e público, apesar do sucesso de bilheteria de Meia-noite em Paris.. o cineasta vem transformando seus filmes em cartões-postais de luxo financiados por cidades turísticas como Paris, barcelona e roma.
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The Strokes a banda de nova York foi tão incensada no início dos anos 2000 por seu álbum de estreia, Is this it it, que era vista como a possível líder de um movimento da volta do rock ao topo – a essa altura, enfrentando concorrência da música eletrônica e do hip hop. a banda até continuou emplacando hits nos discos seguintes, mas a prometida revolução não aconteceu e os strokes perderam um pouco de seu brilho perante crítica e fãs.
Frank Miller o quadrinista chegou ao auge com Cavaleiro das trevas (1986), que trazia narrativa inovadora, com abordagem impactante do batman em um futuro distópico. Miller ainda lançou outras grandes obras, como A queda de Murdock Murdock, do herói demolidor, e Batman: ano um – ambas em parceria com o desenhista david Mazzuchelli – e 300 e Sin city city, que inspiraram filmes homônimos. no entanto, Miller entrou no terceiro milênio com o pé esquerdo: Cavaleiro das trevas 2, All star: Batman e Robin e Holy terror receberam pesadas críticas e reforçaram o caráter fascista de suas histórias.
Reggae a despeito do grande sucesso de bob Marley, nos anos 1970, e de ele ter inspirado nomes de relativo sucesso como Jimmy Cliff, gregory isaacs e ub40, o estilo jamaicano acabou tendo que se adaptar aos novos tempos para não envelhecer, criando subgêneros como o dancehall, raggamuffin e o recente reggaeton, mais próximos do hip hop que do reggae de raiz.
Filmes de luta e ação “brucutu” Quando Operação dragão (1973) transformou bruce lee num mito, os anos 1970 assistiram a uma overdose de filmes de kung fu, karatê e derivados. a safra continuou nos anos 1980, mas ganhou tons mais bélicos e anabolizados com sylvester stallone, bruce Willis e arnold schwarzenegger, além dos carismáticos atores-lutadores Chuck norris e Jean-Claude van damme. a crítica não gostava muito, mas o público respondia muito bem a essa moda. Porém a ação mano a mano foi sendo substituída por efeitos especiais em universos mais fantasiosos, como nos filmes de super-heróis e robôs. o nome da nova geração Jason statham até que tentou carregar a bandeira nos últimos anos, mas stallone precisou retornar do limbo para resgatar o gênero que o consagrou, com a franquia Os mercenários, que mistura jovens e velhos astros de ação.
pop “meloso” embora Mariah Carey ainda esteja firme e forte, está praticamente sozinha no front. nomes que consagraram os agudos nas baladas melosas, como toni braxton, Celine dion e Whitney houston, receberam as luzes da ribalta ao longo dos anos 1990. a moda passou. atualmente, a música romântica internacional deixou a suavidade de lado e precisou incorporar batidas eletrônicas, como em Fireworks, de Katy Perry, ou em Halo, de beyoncé.
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PRAGA À procura de fantasmas Passeios por cemitérios e casarões mal-assombrados são alguns dos principais atrativos da cidade tcheca onde nasceu Franz Kafka, autor de A metamorfose texto Schneider Carpeggiani 1
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Charles Bridge é um dos pontos de maior convergência de turistas da cidade. Sobre ela se difunde também uma história fantasmagórica
Assim que terminei de preencher a enorme ficha de hóspedes do Charles Bridge Hostel, fui avisado de que os fantasmas estavam incluídos no preço da hospedagem. O recepcionista, um senhor que parecia ter sido extraviado direto do século 19 para 2013, não parecia estar brincando. “Como assim... Fantasmas?”, perguntei, com a fisionomia de satisfeita admiração de quem, enfim, encontrara uma Macondo, uma Comala, bem longe da América Latina. “Os fantasmas... Você pode escolher entre um passeio pela cidade ou outro para conhecer nossos lugares assombrados.” Para quem pretendia deixar suas assombrações pessoais também de férias, a segunda opção foi aceita sem pestanejar. “Os fantasmas, é claro...”, agradeci satisfeito, agendando meu encontro com os mortos-vivos locais para uma noite de sexta-feira que, infelizmente, não era 13. O pacote turístico com assombração de brinde foi meu “seja bem-vindo” a Praga, espécie de Disneylândia para adultos do Leste Europeu, famosa por Franz Kafka, pelo açúcar fulminante do seu strudel, por sua belíssima arquitetura e, como acabara de aprender, por seus fantasmas (pela ênfase que os guias turísticos davam aos cemitérios, eu já deveria ter imaginado...). O Charles Bridge Hostel, minha casa pelos quatro dias seguintes, ficava aos pés da tal Charles Bridge, ponte 24 horas ocupada por turistas que fazem pose diante do ponto exato onde (dizem) uma mulher grávida se suicidara num ano em que o tempo “esqueceu” de demarcar no calendário. Reza a lenda que, se você se prostrar no local do suicídio, com muita fé, algum dia acabará retornando a Praga. E por fé leia-se: fotos, muitas fotos, com a cara mais feliz do mundo. Encontrar gente com fé em suicidas, coisa com que você só se depara quando decide ficar longe de casa por uns dias.
Além da suicida miraculosa, o Charles Bridge me localizava pertinho do Prague Ghosts and Legends Museum. Uma vizinhança e tanto! E convenhamos: o passeio com fantasmas era mesmo a melhor opção, já que, em Praga, você encontra inúmeros guias dispostos a lhe mostrar a cidade (sem fantasmas) gratuitamente, e em vários idiomas, a qualquer hora do dia. Esses tchecos sabem bem de onde vem o dinheiro! Mas, antes dos fantasmas “oficiais”, decidi sair em busca do meu morto tcheco favorito: Franz Kafka. (Parênteses necessários: é claro que se trata de uma tremenda ironia seguir um roteiro turístico kafkiano, se pensarmos que não estamos falando de um homem famoso por sua boêmia, e, sim, por suas histórias claustrofóbicas, incluindo gente transformada em inseto antes do café da manhã.) Nos textos pessoais do escritor, sua relação de amor-ódio com Praga é vibrante: ao mesmo tempo em que a cidade servia de palco à sua sensação de deslocamento do mundo, era justamente dela que Kafka retirava inspiração e foco para erguer uma obra que anteciparia a paranoia das décadas seguintes. Praga era a máscara de inseto que ele não conseguia tirar do rosto. Atualmente, o jogo se inverteu: é Praga que não consegue se livrar da máscara de Kafka. E nem quer!
KAFKIANO
O roteiro kafkiano é intenso e bem irregular. Minha primeira parada foi a casa de número 22 da Viela Dourada, onde Kafka se isolara para escrever obras como o assombroso conto Um médico rural. A construção fica na região do Castelo de Praga, este, sim, um espetáculo à parte! Mas a aura “literária” do local é perfurada pela quantidade de suvenires com a cara do autor disputando sua atenção. Após tropeçar numa caneca de
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chope lembrando uma das cenas de A metamorfose, bati em retirada e decidi que não visitaria a Franz Kafka Bookstore, onde, segundo o atendente do meu hostel, encontraria as mais “loucas lembrancinhas kafkianas”. Imperdível, no entanto, é o Museu Kafka, que faz questão de explicitar a relação dúbia do escritor com a sua terra a partir de uma incrível exposição em 3D, além de cartas e manuscritos. Detalhe curioso: logo na entrada, há uma estátua de dois homens urinando no mapa de Praga, com as feições mais estranhas que você possa imaginar. Como, freudianamente, urinar num objeto é estabelecer um comentário crítico, a “metáfora” da obra não poderia ter sido melhor idealizada. O Franz Kafka Café, que (juram, de pés juntos, os guias) o escritor costumava frequentar, é famoso por ter o melhor strudel de Praga. Mas, pelo nome do restaurante e pelos avisos (dos guias, claro) de que ali eu encontraria “a verdadeira atmosfera tcheca”, já podia ter imaginado o que me aguardaria: um sem-fim de gente tirando fotos de paredes, tirando fotos de outras fotos, de pratos, dos garçons. Depois de tentar, sem sucesso, ser atendido, vi que aquilo não era bem o que eu gostaria de ver (ou comer), sobretudo após
con ti nen te#44
Viagem perceber que o passeio pelo Franz Kafka Café não ficaria completo sem uma passada pela vizinha loja da Puma, que tocava uma house music animadíssima. Como os vivos eram muitos, e estavam vivíssimos e irrequietos, decidi por uma visita aos mortos. E corri para o cemitério. Como já havia “vivido” Kafka demais por um dia, decidi não ir visitar o seu túmulo, no Novo Cemitério Judeu, onde seus leitores/fãs (sabe lá Deus a razão!) deixam como prova do passeio o tíquete do metrô sobre a lápide. Troquei então de escritor e fui visitar o Velho Cemitério Judeu de Praga, cenário do romance O cemitério de Praga, de Umberto Eco, lido com muito prazer, ao menos até a metade.
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O Cemitério Judeu de Praga fica no centro histórico e é uma ótima pedida até para quem não tem queda alguma por roteiros lúgubres. Datado do século 15, é impossível saber a quantidade precisa de pessoas enterradas ali, já que ele abriga camadas e mais camadas de tumbas. Na tarde em que visitei o cemitério, para minha surpresa, havia tanta gente turistando, tanto Instagram sendo feito, e o nível da conversa estava tão alto e animado, que não me surpreenderia se algum dos presentes ligasse o som e começasse a dançar ali mesmo. Como já estava embalado, não voltei para o hostel sem antes visitar o Prague Ghosts and Legends Museum, que é uma daquelas
2 t umbas Movimentação de turistas é ruidosa no Velho Cemitério Judeu de Praga 3
ruela
Kafka morou na pequena casa azul à esquerda, número 22 da Viela Dourada
4 g rife Público vai ao Franz Kafka Café atraído pela memória do escritor e pelo famoso strudel lá servido
armadilhas pega-turistas de realmente assombrar pelo nível do charlatinismo aplicado. As “obras” do museu não esmiúçam a relação estreita que a capital tcheca teve com os grandes mestres alquimistas e suas poções mirabolantes, brindando-nos apenas com uma caveira aqui e um zumbique-pula logo ali adiante.
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O cardápio de assombrações era tão infantil, que desisti de visitar o museu de torturas, também na vizinhança. Já era o suficiente para um dia. Ou melhor, não era! Ao voltar para o hostel, pergunto ao recepcionista (ainda o mesmo) se ele podia me dizer onde ficava o restaurante Club Architects, onde pretendia jantar naquela noite. Após fazer um monte de rabiscos no meu mapa, ele me avisa sorrindo: “O lugar é lindo... É subterrâneo, parece uma catacumba”. E o pior que ele estava certo!
ESPANTA-FANTASMA
Enfim chega a esperada noite de sexta-feira, quando ocorreria o tal passeio para visitar os fantasmas. Passei o caminho inteiro até o ponto de encontro com o guia e meus futuros companheiros me perguntando que tipo de pessoa (além de mim) toparia um passeio assim. Minhas conjecturas foram logo arrefecidas pelo grau de normalidade do restante do grupo: umas sete pessoas, com idades entre o fim da adolescência e 40 e poucos anos, que não pareciam fazer lá muita questão de estar ali, algumas delas, inclusive, portando enormes pacotes de grifes de street wear. A guia era uma senhora americana baixinha, de vozeirão encorpado e fantasiada com um sobretudo negro e uma cartola que faziam com que parecesse perigosamente com Willy Wonka. O tour saiu de uma ruela do centrão histórico pontualmente às 21h, segundo a guia a hora exata em que “os fantasmas dão as caras”. Cheguei a perguntar a razão – como resposta, ela riu e mudou de assunto logo, logo. Os fantasmas, não sei onde estavam, mas a animação de Praga àquela altura era contagiante: bares cheios, jovens bêbados de um lado para o outro, artistas de rua fazendo malabarismos e excursões, muitas excursões. Em determinados pontos do roteiro, que consistia em duas ou três ruas da parte turística, era quase impossível entender o que a guia falava. Nos 40 minutos do passeio, ouvimos histórias de assombrações
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Entre os lugares de Praga que valem a pena visitar está o Museu Kafka, que esclarece a relação ambígua do escritor com a cidade com crianças órfãs, noivas abandonadas e jogadores compulsivos que seguem arrastando correntes. Em comum, todas elas traziam a macbethiana impressão de que fantasmas, no final das contas, são a nossa consciência querendo corrigir alguma coisa quando provavelmente já é tarde
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demais. “Espero que vocês tenham se assustado em algum momento, está cada vez mais difícil fazer essa rota de fantasmas com tanta gente na rua...”, desculpou-se a guia, ao final do passeio. Talvez nove da noite ainda seja cedo para os mortos-vivos, pensei, mas dessa vez em silêncio. O meu grupo, animado com os vivos ao redor, aproveitou para esticar a novíssima amizade feita num bar que avisava que a nona (!!!) rodada de cerveja era por conta da casa. Mas preferi declinar do convite, já que, a essa altura, havia compreendido que fantasmas são experiências privadas, nada aleatórias e talvez nem um pouco geográficas. Praga que me perdoe.
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Kleber Mendonça Filho crítico e cineasta
cinemascópio
MONGA
Proibiram máscaras nas ruas? A
verdadeira máscara não esconde, ela revela. A medida, que veio do Governo do Rio de Janeiro e foi imitada Brasil afora, na forma de uma tentativa de lei pós-manifestações, chega como uma intervenção política sem imaginação. Essa proibição é curiosa, pois incide num desdobramento da arte, aproximando-a da censura simples. Parece tanto desconhecer a democracia na sociedade como mostra que não há uma compreensão real do significado da máscara como expressão artística. A máscara como adereço afixado ao rosto inspira uma quantidade grande de tensões. Ao encontrar alguém mascarado, parece que o cérebro emite sinais de tensão e alerta, informando-nos que onde deveria estar um rosto há, agora, a simulação borrada de uma cabeça. Esse espaço normalmente reservado para a identificação do outro está coberto e estilizado, e a mensagem que a máscara nos passa é confusa. Nessa confusão, há espaço para qualquer coisa entre o erotismo, a graça e o terror.
Foi mais ou menos aí que achei que deveria contar a história recente, totalmente fabricada, de Daniel, amigo meu do cinema, parado por uma blitz da Lei Seca na Rua São Clemente, em Botafogo, Rio de Janeiro, central brasileira da CPI das máscaras. Daniel estava voltando para o set de filmagem de um curta-metragem, ele vestido de gorila. O curta, que se chama Parque de diversão, é uma produção feita entre amigos através do sistema de crowdfunding. Daniel dirigia o carro emprestado do diretor do filme, um Uno 2002. Ele tinha ido em casa, no Largo do Machado, abrir a porta para amigos estrangeiros que haviam ficado sem chave. No assento do passageiro, Martha, amiga de Daniel e também atriz do filme, vestida de macaca. Tanto Daniel como Martha não usavam as máscaras. Daniel foi abordado pelo policial militar na blitz. Assim que parou o carro e desceu o vidro: “Boa-noite, cidadão. Carteira de habilitação e documento do veículo”. Daniel apresentou os dois documentos.
O policial, branco brasileiro, hálito de tabaco e boné azul da corporação, comandou: “O cidadão pode sair do veículo e me acompanhar até a tenda, por favor”. Daniel alertou que ele estava fantasiado de macaco, “eu estou fazendo um filme, as pessoas estão me esperando...”. O policial pediu para ele repetir, pois disse não entender. “Eu estou no meio de uma filmagem, estou vestido de macaco...”. O policial fardado, provavelmente um sargento, repetiu como se fosse a primeira vez, “Positivo, o cidadão pode sair do veículo e me acompanhar até a tenda, por favor”. Daniel olhou para Martha, que começou a rir, e desejou-lhe boa sorte. “Fica aí”, disse ele, “Fico mesmo”, respondeu ela. Antes de ele abrir a porta do Uno, Martha perguntou se Daniel havia bebido alguma coisa. Ele respondeu: “Por sorte, não, só maconha ontem. Será que eles detectam?”. “Detectam nada”, disse Martha. Fora do carro, Daniel vestido de La Ursa começou a chamar a atenção dos outros motoristas ali parados, à espera do teste ou de táxis, pois foram pegos e seus
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cena do filme o iluminado, de stanley kubrick/ reprodução
1 máscara Diante desse objeto, reagimos entre a graça, o estranhamento e o terror
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carros apreendidos. Não é boa a cara de quem precisa abandonar seu carro numa blitz. Daniel foi a atração da blitz naquele instante, funcionários do Detran riram, policiais menos, motoristas enraivecidos pela blitz quiseram rir, sem sucesso. Aproximando-se da área reservada ao bafômetro, os plantonistas do Detran se animaram, pois o macaco seria claramente uma apreensão. Pegar alguém na blitz é infinitamente mais dramático e empolgante do que ver aquela pessoa suspeita revelar-se uma rotineira liberação. “Agora tem baile de carnaval em setembro, é?”, disse a senhora sentada na van sob luzes fluorescentes internas, responsável por administrar o bafômetro. “Eu estou no meio de uma filmagem no Jardim Botânico.” A mulher perguntou: “É na Globo? Sopre aqui até acender a luz”. Daniel soprou. Enquanto Daniel soprava, ele esperava a luz verde acender. Ela acendeu. “Tudo certo. Pode pegar seus documentos com o colega na outra mesa”, foi a dispensa concedida pela funcionária do Detran. Os outros funcionários começaram a
aplaudir o macaco sóbrio. Isso mexeu com o ego de Daniel, um ator, e ele olhou natural e bem humoradamente para o Uno para ver se Martha estava vendo. Martha parecia estar às gargalhadas dentro do carro. Voltando para o Uno branco, estacionado em posição perpendicular à pista de mão única, Daniel foi acompanhado pelo policial que o recebeu ao parar o carro. Danielmacaco abriu a porta e entrou, o policial ajudou a bater a porta, um pouco como a ajuda inútil de um flanelinha que nos auxilia a trancar a porta. Escorando-se na janela, o policial indagou: “Tem as máscaras?” “Como?”, surpreendeu-se Daniel. E Martha. Eles se olharam. “Estão aqui”, disse Daniel, que ficou olhando para o policial enquanto girava a ignição. “O cidadão pode colocar a máscara, por favor? E a pessoa no passageiro também?” “Eu não ‘tou’ entendo, meu amigo”. O policial retrucou, “Cidadão, eu sou tenente da PM e estou pedindo para o cidadão e a sua acompanhante colocarem as máscaras”.
As cabeças de macaco feitas de látex e cabelo grosso preto esvoaçado estavam murchas e sem vida no colo de Martha, que olha para Daniel apreensiva. “O senhor quer que a gente coloque as máscaras, é isso?”, pergunta Daniel, já com o motor ligado. “Sim, só isso, e peço que o cidadão desligue o motor”. Daniel desliga o motor e olha para Martha. “Me passa a minha…”. Martha procura a dele, diferente da dela por não ter batom vermelho no beiço avantajado de macaco. “Essa é a tua”. Daniel veste a máscara, Martha veste a dela, dois macacos dentro de um Uno. O policial saca seu celular, enquadra o casal dentro do carro e tira uma foto com flash à altura da janela. FLASH e imediatamente muda o tom. “Vou dar ordem de prisão para os dois. Podem sair do carro.” Os dois macacos, sem expressão facial visível, permanecem imóveis, até que se olham. O ar de perplexidade perfura o látex, até que o sargento da PM carioca completa: “Estou brincando. A foto é para meu Facebook, tenham uma boa-noite”.
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ESTREIA Desbunde, teatro e relações amorosas
1 atemporal Tratamento dado ao tema do longa transcende períodos históricos
Primeiro longa-metragem do roteirista Hilton Lacerda, inspirado no grupo Vivencial, Tatuagem discute o mundo partido entre liberdade e coação TEXTo Alexandre Figueirôa
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Em 1974, jovens de Olinda acreditaram
que o teatro, a poesia, o desbunde e o amor podiam ser um contraponto para as sombras lançadas sobre o Brasil pela ditadura militar e criaram o grupo teatral Vivencial. Em 2013, ainda existem artistas brasileiros acreditando que não só o teatro, a poesia, o desbunde e o amor, mas também o cinema podem ser armas para garantir a nossa sanidade afetiva e emocional. E uma prova disso chama-se Tatuagem. A estreia em direção de longametragem do roteirista Hilton
Lacerda, ganhador do último Festival de Cinema de Gramado, chega agora às telas nacionais e não é apenas um novo produto audiovisual feito em Pernambuco. Sincero, apaixonado, Tatuagem é um manifesto lírico/ amoroso feito sob medida para nos lembrar de que Eros e Dionísio nunca devem ser retirados de nossos altares. Em imagens marcadas pela delicadeza do olhar, eis uma obra para ser apreciada tanto pelo que nos toca como narrativa fílmica quanto pela visão atemporal de Hilton Lacerda e
sua equipe. Ela revela a permanente divisão que perpassa as nossas existências: um mundo repartido entre os que amam a liberdade e os que existem para tolhê-la. As duas sequências iniciais são paradigmáticas para apontar a sensibilidade no tratamento do tema e as escolhas feitas por Hilton. De um lado, um grupo mambembe formado por homens, mulheres, gays, travestis encenam um texto teatral num barraco de um bairro pobre. Do outro, jovens soldados enfrentam o dever apolíneo de aprender a defender a pátria na assepsia hospitalar de uma caserna. O roteirista de Baile perfumado, Amarelo manga, Baixio das bestas, entre outros filmes, já demonstrara sua compreensão das contradições e complexidades da alma humana, pela forma como constrói seus personagens. Em Tatuagem, essa ternura com suas criaturas ganha plenitude. Ao contrapor a alegria utópica dos integrantes do grupo teatral Chão de Estrelas à disciplina espartana e opressora do quartel militar, Hilton traz à tona uma questão essencial de nossas existências, quando o desejo de sexo e de afeto aparece, a forma de vivenciá-los e os espaços por onde eles circularão definirão a extensão de nossa humanidade e se seremos libertários ou autoritários. Partindo desse contraponto, a narrativa de Tatuagem, situada no ano de 1978, oferece uma interessante reflexão sobre os caminhos e descaminhos do amor, tendo como pano de fundo o Brasil dos governos militares. Clécio, líder do grupo teatral, e Arlindo, um recruta do exército – chamado pelos colegas de Fininha –, vivem um romance em que esses dois universos aparentemente excludentes se cruzam. O artista é um homem culto, que assume sua sexualidade de forma aberta e livre, o soldado é um menino do interior com 18 anos de idade, descobrindo o mundo e tomando consciência do seu corpo e de seus desejos. Juntos, eles conhecerão as nuances e contradições de suas próprias escolhas. Também perceberão como os conflitos internos dos nichos sociais em que estão inseridos e a tensão política
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que os coloca em trincheiras diferentes são indissociáveis na definição do rumo de suas vidas. Para contar essa história, que teve como uma das fontes de inspiração o Grupo Vivencial de Olinda, Hilton Lacerda optou por uma narrativa estruturada num ritmo suave, flagrando os percursos de Clécio e seu grupo, e de Fininha, nos seus atos cotidianos. Inicialmente, as ações correm como se fossem histórias paralelas para, em seguida, se intercambiarem. A direção orquestra o diálogo entre essas diversas situações com maestria. Aquilo que, num primeiro momento, parecem esquetes isolados, aos poucos, torna-se unidade densa e orgânica, entrelaçada por outro nível de articulação não mais guiado apenas pelos atos em si, mas pelos sentimentos que os norteiam e as consequências deles nos protagonistas. O recurso é extremamente feliz, pois faz emergirem, sem ser de forma panfletária ou como marcação temporal da trama, questões subjacentes ao contexto da época
– perseguição política, censura, repressão militar, discriminação sexual – das quais era impossível escapar. Elas são sentidas como uma ameaça invisível e estão ali presentes da primeira à última cena, interferindo nos mínimos gestos de todos os personagens. Quem viveu os anos de chumbo do regime militar lembrará essa sensação permanente de falta de liberdade pairando no ar.
SUPER-8
Apesar de falar de anos tão difíceis, Tatuagem não perde de vista a alegria. O desbunde, a irreverência, o humor rasgado e crítico dos espetáculos do Chão de Estrelas saúdam todos os atores, cineastas, poetas, músicos que, nos anos da ditadura, se colocaram em risco e se valeram de seus versos e atitudes para criarem ilhas de tolerância diante do fascismo e do conservadorismo reinante. O barracão transformado em cabaré pelo Vivencial, no Bairro de Salgadinho, foi um desses lugares onde objetos recolhidos no lixo foram reciclados e misturados a plumas e
paetês para adornar os atores que contestavam, madrugada afora, a caretice moral e a violência política do período. O filme de Hilton capta com precisão o clima dessas noites debochadas e irreverentes, e a direção de arte de Renata Pinheiro redesenha com originalidade os elementos dessas encenações sem necessariamente copiá-las. O uso de filmes super-8 é outro elemento fundamental na reconstrução dessa atmosfera. Mas esses filmes não estão restritos à condição de imagens projetadas no palco das apresentações dos esquetes do grupo teatral. Estão presentes como recurso narrativo, pontuando aspectos culturais e ideológicos sugeridos pela trama, indo além da condição de pretexto para evocar uma memória desbotada pelo tempo. O mesmo pode ser dito da excelente trilha sonora de Helder Aragão, ou DJ Dolores, que dialoga constantemente com o contemporâneo. É como se Tatuagem nos dissesse ser possível olhar para o desbunde dos anos 1970 sem
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2-3 contraste O enredo do filme gira em torno da relação amorosa entre o líder de um grupo teatral e um jovem soldado do exército
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saudosismo. Ou seja, hoje, com os fantasmas da repressão disfarçados de moralismo religioso e outros ismos, o desbunde pode ser uma opção expressiva e estética tão importante quanto foi no passado, quando artistas como os do Vivencial promoviam a fraterna convivência entre pessoas de diversos gêneros e opções sexuais, dividindo o mesmo teto e a mesma cama com intelectuais progressistas e gente de subúrbio. Toda a excelência narrativa, contudo, de nada valeria sem a entrega despojada do elenco. Tatuagem é um filme que se preocupa com o ator, desde a forma como ele é filmado até a montagem, que não sacrifica a presença física de seus corpos num momento de boa interpretação por conta de pequenas “irregularidades” técnicas. Está estampada em cada cena a alegria dos atores de comporem o projeto conduzido por Hilton, sobretudo nas ações que se desenrolam no casarão onde o Chão de Estrelas se instala. Para alcançar a integração da trupe, os atores, antes do início das
filmagens, viveram a experiência da moradia coletiva e, sem dúvida, isso contribuiu para o efeito obtido na tela, potencializado pela interpretação de Irandhir Santos, como Clécio, e Jesuíta Barbosa, no papel do soldado Arlindo. As sequências em que os dois atuam lado a lado são comoventes. Ambos expressam suas emoções
Tatuagem supera certas abordagens superficiais no cinema nacional envolvendo questões sobre sexo e política com uma segurança admirável, e a cena da primeira noite de amor entre eles é fascinante, pela maneira como a tensão erótica e a doçura de seus gestos são flagradas pela câmera. Com esse filme, Hilton Lacerda dá uma contribuição formidável ao cinema brasileiro, no sentido de superar certas abordagens
cristalizadas e superficiais envolvendo questões de sexo e política vistas em obras que se debruçaram sobre esses temas. Reforça também o caráter autoral das produções pernambucanas recentes, um caminho que tem seus riscos, mas, quando bem trilhado, resulta em obras fortes e contundentes. Tatuagem é também fruto da crença da Rec Produtores no cinema de autor. Completando 15 anos de existência, a produtora é uma das responsáveis pelo momento entusiástico do cinema em Pernambuco. São de seu portfólio obras premiadas e reconhecidas internacionalmente, como Cinema, aspirinas e urubus e Era uma vez, eu Verônica, de Marcelo Gomes; Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Karin Ainouz e Marcelo Gomes. Ao assinar a produção do longa de Hilton Lacerda, a Rec fortalece um eixo da produção cinematográfica cuja motivação maior está centrada na valorização da linguagem, da experimentação estética e da realização cinematográfica como exercício do prazer.
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INDICAÇÕES ana farache/divulgação
COMÉDIA
DRAMA
Direção de Harmony Korine Com Selena Gomez, James Franco e Vanessa Hudgens Universal
Direção de Richard Linklater Com Julie Delpy e Ethan Hawke Paris Filmes
SPRING BREAKERS
Claquete
ANTES DA MEIANOITE
Korine, conhecido como roteirista de obras densas como Kids, arrisca ao usar atrizes da Disney para contar a história de quatro amigas universitárias. Com o dinheiro roubado de uma lanchonete, elas decidem passar as férias de verão na Califórnia. Regado a sexo, drogas e Britney Spears, o longa se aproxima da proposta de filmes como The bling ring (Sofia Copolla), ao tentar debater o vazio existencial de jovens mergulhados num universo potencialmente efêmero.
Jesse e Celine se conheceram jovens na cidade de Viena, em 1994, filosofando sobre a vida e o amor no filme Antes do amanhecer. No fim da trilogia, os dois viajam pela Grécia. Aparecem como casal “estável” e pais de gêmeas. Quarentões, Jesse continua tentando ser um romancista e Celine pensa se aceita um emprego junto ao governo francês. As conversas intermináveis entre os personagens evidenciam as marcas que a vida pode deixar na personalidade de cada pessoa.
TERROR/COMÉDIA
DRAMA
Direção de Alejandro Bruqués Com Alexis Díaz de Villegas, Jorge Molina, Andrea Duro Imovision
Direção de Lorraine Levy Com Emmanuelle Devos, Pascal Elbé e Jules Sitruk Imovision
Vivencial
UMA FONTE DE INSPIRAÇÃO O Vivencial foi o grupo teatral mais transgressor da cena pernambucana até os dias de hoje. Surgido em 1974, dentro da Igreja do Amparo, em Olinda, integrava as atividades realizadas pela Pastoral da Juventude na Associação dos Rapazes e Moças do Amparo. A primeira peça, intitulada Vivencial, foi uma montagem feita a partir da colagem de textos diversos com o objetivo de comemorar os 10 anos da associação e estreou no auditório do Colégio São Bento. O espetáculo abordava assuntos polêmicos para o contexto no qual o grupo estava inserido: homossexualismo, drogas, política e violência. A repercussão foi tanta, que inviabilizou o vínculo do grupo com os beneditinos, e a trupe, comandada por Guilherme Coelho, Américo Barreto, Miguel Ângelo e Alfredo Neto, teve de migrar para outros espaços cênicos. Em 1978, o Vivencial agregava um número bem maior de atores e protagonizou uma iniciativa original ao instalar sua sede e abrir um café-concerto no Complexo de Salgadinho, em Olinda, à beira do mangue e dentro de uma das comunidades mais pobres da região. O Vivencial Diversiones era frequentado tanto pela classe média artística e intelectual quanto por moradores da comunidade que, inclusive, forneceu colaboradores e integrantes ao grupo. As montagens do Vivencial também subiam os palcos dos teatros do Recife e a postura anárquica de seus espetáculos provocava o regime militar. Os integrantes do grupo buscaram estabelecer relações com as vanguardas artísticas nas artes cênicas, na literatura, na música e nas artes plásticas. Ecos do Cinema Novo, do Teatro Oficina, do Teatro Jornal de Augusto Boal, da Antropofagia de Oswald de Andrade e do Tropicalismo surgem nas suas montagens, graças ao convívio com escritores e encenadores, a exemplo de Jomard Muniz de Brito e Antonio Cadengue, que não compactuavam com a conservadora cultura oficial pernambucana, marcada fortemente pelo regionalismo. Ao assumir sua condição à margem, o Vivencial abordava de maneira ousada e irreverente questões que inquietavam seus integrantes, sobretudo as relativas à liberdade sexual, ao uso do corpo e ao homoerotismo. O grupo levou a transgressão além do palco, transformando-se numa instância libertadora das pulsões do imaginário coletivo e apontando saídas de como lidarmos com nossas contradições e desejos. Algo que Tatuagem recupera com brilhantismo. (AF)
JUAN DOS MORTOS
Após uma infecção misteriosa transformar moradores de Havana em mortos-vivos assassinos, Juan decide vender seus serviços de matador de zumbis. O filme brinca com a ausência de acesso à cultura pop pelos moradores de Cuba. Assim, os monstros tão presentes em seriados e filmes aparecem como seres completamente desconhecidos e imprevisíveis pela população da ilha.
O FILHO DO OUTRO
De maneira curiosa, a delicada relação entre palestinos e judeus é abordada neste filme francês. Joseph, a ponto de entrar para o exército israelense, descobre que não é um semita de sangue. Ele foi trocado na maternidade pelo jovem Yancine, que mora com os supostos pais na Cisjordânia. A diretora mostra, sem cair no melodrama, a reação das duas famílias e de seus filhos diante das questões de choque cultural, identidades e valores humanos.
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samuel santos/divulgação
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COMÉDIA Poesia do Nordeste sobre o palco
1 MONTAGEM A lenda do Santo Fujão comemora os 45 anos da trupe
O grupo Feira de Teatro Popular estreia A lenda do Santo Fujão, peça totalmente interpretada em versos de cordel texto Leidson Ferraz
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A lenda do Santo Fujão Teatro João Lyra Filho caruaru
Out-nov Sex a dom 20h
Desde 1969, quando surgiu como dissidência do Teatro Experimental de Arte (TEA), a trupe, cujo nome inicial era Grupo de Cultura Teatral, vem realizando peças memoráveis como Feira de Caruaru, Rua do Lixo, 24, A noite dos tambores silenciosos, Olha pro céu, meu amor e Auto das sete luas de barro. Esta última, considerada obra-prima do teatro brasileiro, recebeu prêmios como Molière, Mambembe e APCA, entre outros. Dos quase 20 textos encenados, mais da metade foi escrita pelo dramaturgo caruaruense Vital Santos, diretor também de quase todas as montagens. Na mais nova realização, é o recifense Samuel Santos, assumidamente “cria de Vital”, quem assume o papel de autor e diretor no grupo. “Aprendi muito vendo Auto das sete luas de barro, um espetáculo de encantamento impactante. Tanto que me aproximei do grupo e cheguei a atuar em quatro espetáculos seguidos com Vital, em produções independentes, Concerto para Virgulino sem orquestra, O príncipe dos mares de Olinda contra a fúria das águas, Rua do Lixo, 24 e Uma canção para Othello, neste último, contracenando com os atores do Feira, em Caruaru. O grupo é uma de minhas bases”, conclui. O texto de A lenda do Santo Fujão nasceu de uma oficina teatral ministrada por Samuel em Taquaritinga do Norte.
Elementos da cultura nordestina, elenco numeroso e trilha ao vivo são algumas características do grupo teatral Nada de luxo e riqueza! A estátua de
um santo no município de Taquaritinga do Norte teima em não ficar na pomposa igreja recém-construída. Misteriosamente e diversas vezes, volta ao seu altar de origem numa pequenina capela. Esse foi o mote para o enredo da peça musicada A lenda do Santo Fujão, a mais nova produção do Grupo Feira de Teatro Popular, da cidade de Caruaru, uma das equipes mais longevas do teatro pernambucano, com história aclamada nacionalmente por público e crítica.
“Descobri essa lenda do padroeiro da cidade, escrevi a peça e, logo depois, percebi que somente o Grupo Feira de Teatro Popular poderia representála. As frases são todas rimadas como num grande cordel, difíceis, mas nem parecem na boca deste elenco, tamanha a verdade”, elogia. O projeto deveria ter estreado na comemoração dos 40 anos da trupe, mas, somente neste mês, com o incentivo do Funcultura, abre as celebrações dos 45 anos da equipe, conhecida por trazer a linguagem popular e musical ao palco.
“Vital é minha maior influência estética e de musicalidade. Ver como ele transformava o palco com o mínimo de elementos e sempre ligado às raízes nordestinas, inclusive no seu aspecto políticosocial, sempre me encantou muito. Quis dar esse presente ao grupo e prestar minha homenagem a ele”, revela Samuel Santos. A peça segue, propositadamente, o estilo que consagrou o Feira, com elenco numeroso de atores e músicos, trilha ao vivo, e atenção especial ao universo do Nordeste, “mas também ligado à commedia dell’arte, ao coro grego, ao circo, à farsa. É aquilo que Hermilo Borba Filho falou: está tudo atrelado a uma universalidade”, lembra o diretor.
BRINCANTES
No enredo, o casal Maria (a que vive de joelhos) e José (o descrente) encontra uma imagem de Santo Amaro e depositam-na em uma humilde capela. A fama de milagreiro desperta o interesse de alguns poderosos, que transferem a estátua para uma grande igreja dourada. Mas o santo personificado acaba fugindo e, no caminho, vai encontrando personagens das brincadeiras populares, como dois palhaços bêbados de um circo sem lona, alguns mamulengos, duas velhas despudoradas do cavalo-marinho e uma turma de saltimbancos. Nessa fantasia, discute-se o mau uso da fé, a ostentação da Igreja, o abuso de poder e a importância do brincar. “É um espetáculo híbrido, que mistura estéticas diversas”, lembra Samuel. William Smith interpreta o protagonista. “É um desafio imenso fazer uma personagem múltipla sendo 10 numa só. Esse santo é Mateus, Cancão, João Grilo, Trupizupe, Bastião, Macunaíma... Uma confusão deliciosa dentro de mim”, atesta. Se a trama e a estética são tão parecidas com o caminho trilhado por Vital para o Grupo Feira, qual a diferença que dá Samuel a essa montagem? “O uso de técnicas contemporâneas na nossa preparação. Samuel trouxe a possibilidade do quanto é infinda a pesquisa no universo artístico, um estudo físico e mental. É transpiração e conhecimento”, define o ator.
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imagens: arquivo projeto memórias da cena pernambucana/divulgação
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Com trabalho corporal de Helder Vasconcelos, direção de arte de Java Araújo e iluminação de O Poste Soluções Luminosas, A lenda do Santo Fujão estreará na programação do 23º Feteag (Festival de Teatro do Agreste), no dia 25 de outubro, no Teatro João Lyra Filho, em Caruaru, cumprindo temporada até final de novembro. O elenco conta ainda com Iva Araújo, Nadja Moraes, Marcelo Francisco, Gilmar Teixeira, Adeilza Monteiro, Jailton Araújo, Zi Rodrigues e Jô Albuquerque, além dos músicos Jadilson Lourenço, Vinícius Leite, Felipe Magoo, Carlinhos Aril e João Vitor.
MAMBEMBÃO
O Grupo de Cultura Teatral, como inicialmente se chamava o Grupo Feira de Teatro Popular, foi o coletivo pernambucano que mais circulou pelo país nas décadas de 1970 e 1980, graças ao Projeto Mambembão. Desde a estreia com Feira de Caruaru, a naturalidade dos artistas em cena chamou a atenção, com gente “do povo” compondo os elencos. O
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dramaturgo e diretor Vital Santos soube tirar proveito dos tipos e sotaques, em montagens que primavam pela inventividade do palco quase sempre nu, transformado em ambientes variados pelo mínimo de adereços e luz, valorizando os intérpretes pelo seu conjunto. A música ao vivo sempre se fez presente. Compositores como Onildo Almeida, Josias Albuquerque e Jadilson Lourenço, este último na direção musical de A lenda do Santo Fujão, foram parceiros imprescindíveis para a maior identificação das plateias. Em sua escrita,Vital Santos – além de abordar quase sempre a miséria humana, mas com humor e poesia – nunca esqueceu de pontuar questões político-sociais. Foi assim em A menor pausa, quando usou a menstruação como metáfora do sangue derramado no país em plena ditadura; ou n’Árvore dos mamulengos, em que desbanca a autoridade militar pela esperteza popular. Ou ainda em A noite dos tambores silenciosos, tratando das Ligas Camponesas e do direito do trabalhador
ter seu chão. Mas foi com Auto das sete luas de barro que Vital ganhou notoriedade no país inteiro, ao criar uma fantasia musical sobre a vida do Mestre Vitalino, denunciando a miséria do ceramista e, consequentemente, do próprio artista brasileiro. Hermilo Borba Filho o reconheceu como o “Molière do Sertão” e não lhe faltaram prêmios Brasil afora. Mas Vital não ficou preso apenas ao seu grupo caruaruense. Sua mais recente experiência foi com Cantigas do sol – Dom Quixote de cordel, de 2009, teatralização da vida de Luiz Gonzaga a partir de suas canções, parceria da Dramart Produções com o produtor Edgar Albuquerque. Hoje, Vital recupera-se de um problema na coluna, mas ainda com planos para novas obras.
O SEBA
O espetáculo A lenda do Santo Fujão presta homenagem a um dos mais conhecidos integrantes do Grupo Feira de Teatro Popular, o ator, mamulengueiro e produtor Sebastião Alves, o Seba. Ausente da cena por problemas de saúde, sua trajetória de vida daria não só
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2 acervo Entre as encenações do grupo, está Olha pro céu, meu amor, de 1983 HISTÓRICa 3 A árvore dos mamulengos critica a ditadura militar
4 estética Elementos da farsa e do circo estão em espetáculos como Rua do Lixo, 24
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uma peça de teatro, algo que já aconteceu na história da equipe caruaruense, mas um grande filme. Natural de Sertânia, desde pequeno trabalhou como catador de algodão, padeiro e entregador de pães. Não conhecia teatro, mas sabia que queria ser artista. “De tela grande”, lembra. Partiu para o Rio de Janeiro, mas só conseguiu emprego nas obras do metrô, como marteleteiro. Um dia antes de deixar o Rio para ir a Caruaru, dirigindo-se a uma praça conhecida como point de celebridades, foi atropelado por uma ambulância. “Queria ter certeza de que aqueles artistas eram reais”, recorda. O envolvimento com o teatro aconteceu na capital do Agreste. Paralelamente ao trabalho como fiador de aviamentos, foi chamado para atuar na peça Solte o boi na rua, de Vital Santos, com o Grupo de Teatro Ivan Brandão, dirigido por Nildo Garbo, em 1979. Numa ida ao Festival Nacional de Teatro Amador, em Ponta Grossa, ouviu de um jurado: “Sua expressão é muito boa. Onde aprendeu?”. “Assistindo à televisão!”, foi a resposta. Em 1980,
entrou como ator substituto n’Auto das sete luas de barro. “Estreei como um dos filhos de Vitalino no Feira, já circulando pelo país”, e não largou mais o grupo. Em 1981, no elenco de A noite dos tambores silenciosos, contou sua história de vida aos companheiros de cena. A experiência tragicômica em terras cariocas deu mote para Vital criar o espetáculo Olha pro céu, meu amor. Seba interpretava Bom Cabelo, um poeta popular que larga Caruaru e vai conhecer Roberto Carlos no Rio, com o sonho de se tornar famoso, mas só consegue ser funcionário das obras do metrô. Ao final, morre atropelado. A peça, com versões em 1983 e 2005, virou um grande sucesso. Graças a uma cena de A noite dos tambores silenciosos, com tenda de bonecos, apaixonou-se pelo mamulengo. O resultado foi a criação do Mamusebá, em 1985, um dos filhos do Grupo Feira. “Teatro feito ao sabor das circunstâncias. Tudo resumido no pobre, no rico e na autoridade”, revela. Nas apresentações para crianças ou adultos, muitas em aniversários ou eventos, o improviso é certeiro, reunindo
personagens divertidos como Benedito, Tenente Zeca Galo ou Filomena. O Mamusebá conquistou tanto o coração de Seba, que ele transformou a própria casa no Teatro Garagem Mamusebá (Rua Maria José de Souza, 200, Cidade Alta de Caruaru). Todo último domingo do mês faz sessão gratuita para crianças, sem ajuda alguma do poder público. “Somente quem pode leva alimento para doação à comunidade. O terrível é que, infelizmente, não existe política séria no país para manter seus artistas”, critica. Mesmo assim, criou também o núcleo Pernas Prá Circular, com encenações em pernas de pau. Nos últimos tempos, Seba diminuiu bastante sua participação em espetáculos do Grupo Feira por conta da luta contra um câncer. “Emagreci muito, fiz 28 sessões de radioterapia, diversas cirurgias, mas venci. E não vou parar”, diz, lembrando que apresenta o programa diário A casa do Benedito, na Caruaru FM, onde toca “forró sem maquiagem”. Como sempre, valorizando os autênticos artistas populares, seus pares!
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Pimenta Para todos os gostos e receitas
Elemento típico das culinárias baiana e mexicana, com saborosas variações, esse fruto pode trazer benefícios à saúde, se consumido com moderação texto Gabriela Almeida
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Assim como todo tempero,
a pimenta é, para a culinária, essencialmente um segredo. Por motivo claro aos que são conhecedores da arte de cozinhar, ela cai bem com tudo. Para uma massa italiana ou para uma sobremesa com chocolate e sorvete, não importa, a pimenta vai com toda comida. Sua ampla variedade, formas e cores ainda permitem sabores e aromas diversos, além de funcionar como uma ótima aliada na hora de decorar pratos.Você pode usar a pimenta-de-cheiro para aromatizar uma salada ou peixe, sem qualquer resquício de ardor; optar pela malagueta, quando for preparar a feijoada; ou usar pimentas de pouco ardor e com cores fortes para decorar um prato. A versatilidade da pimenta é tamanha, que ela ainda pode ser encontrada fora da cozinha, em cosméticos ou mesmo no ultimamente tão falado spray de pimenta. Mas não é de hoje que esse tempero conquista admiradores em toda parte. Segundo ingrediente culinário mais consumido do mundo, ficando atrás apenas do sal, a pimenta é “sagrada” desde o tempo da medicina tibetana, aiurvédica e também na Grécia antiga, quando os alimentos eram vistos como poderosos remédios pelo pai da medicina, Hipócrates. Mais tarde, com as Grandes Navegações e os descobrimentos, a pimenta volta a figurar como raridade. Categorizada como especiaria junto a outros produtos de origem vegetal, como a canela e o cravo-da-índia, ela se tornou produto de luxo na Europa, onde não se tem clima adequado para sua produção. Mas querer datar o primeiro contato do homem com a pimenta é uma tarefa impossível. O que se pode afirmar é que existem dois gêneros mais conhecidos, o píper e o Capsicum, sendo o primeiro utilizado no Oriente, antes de sua expansão mundial e o segundo encontrado com maior facilidade nas Américas. Apesar de sermos grandes produtores e consumidores de pimenta, quando se fala nela, na gastronomia, é comum pensar na comida mexicana, que tem como queridinhas a chili e jalapenõ. É quase como relacionar o Brasil ao futebol, carnaval e mulatas: instantâneo. Mas outras cozinhas
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1 vatapá De origem africana, é prato apimentado típico da culinária baiana geleia 2 Versátil, a pimenta também se mostra eficaz em receitas doces
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aderem ao uso da pimenta com gosto, como a tailandesa – na qual, mesmo quando se pede um prato usando a expressão my phet (sem pimenta), ele vem apimentado –, a culinária coreana e a turca, para dar alguns exemplos. Em terras canarinhas, a pimenta é regra na culinária baiana. Acarajé, vatapá, cururu e abará parecem não funcionar, se não estiverem apimentados. Comidas herdeiras da cultura africana, uma boa parte vinda da cozinha dos baianos, mas hoje comum a todos, foram adaptações dos escravos trazidos ao Brasil colonial à comida de terreiro. Com poucos recursos, eles tiveram que se moldar a alguns costumes dos seus senhores para continuar a oferecer alimento aos seus deuses. Contudo, a pimenta nunca faltou e, assim, junto com o azeite de dendê, foi considerada por Gilberto Freyre uma das maiores contribuições africanas no regime brasileiro. A presença da pimenta é tão marcante na comida de terreiro, que, entre todos os orixás, apenas Oxalá rejeita o tempero.
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benefícios
Há quem acredite ser mais forte por conseguir mascar pimenta como quem desfruta de um doce. Mas a verdade é que “estas pessoas não são melhores que as outras, apenas têm pouca sensibilidade à pimenta. Cerca de 50% da população possui um número menor de botões gustativos por cm3 em suas línguas”, garante o médico homeopata Marcio Bontempo, no livro Pimenta e seus benefícios à saúde. Esse mito de resistência à pimenta é acompanhado de outros. À mesa, é comum ouvir comentários de que a pimenta pode causar gastrite, hemorroida e pressão alta. Uma grande injustiça, já que ela é classificada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como alimento funcional – aqueles que
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fazem parte da elite dos nutrientes e “contêm também componentes de ação protetora, medicinal, terapêutica e curativa especial”. Não existem evidências que provem que a pimenta possa causar doenças como úlceras ou distúrbios digestivos, pelo contrário, estudos científicos e farmacêuticos no mundo inteiro vêm provando os benefícios que ela proporciona à saúde. Mas, claro, devem existir limites no consumo. “A pimenta não faz mal, se utilizada em quantidades sensatas. Ao contrário do que se propaga, em vez de irritar o estômago, a pimenta protege a mucosa estomacal, além de ser rica em propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias. No entanto, pessoas com problemas gastrintestinais devem consultar um médico experiente no assunto antes de consumir pimenta”, alerta Bontempo. Por outro lado, é provado que a pimenta vermelha é uma fonte rica em nutrientes antioxidantes, principalmente as vitaminas A e C. “Apenas 30g de pimenta contêm
70mg de vitamina C, mais que 100% das necessidades diárias (RDA), bem como cerca de 70% da RDA para a vitamina A, sob a forma de betacaroteno. A pimenta tem também seis vezes mais vitamina C do que a laranja.” Ela também pode ajudar na redução de coágulos no sangue, por ser vasodilatadora; estimular a produção
Ao invés de irritar o estômago, a pimenta protege a mucosa estomacal, sendo também antiinflamatória de endorfina no cérebro, hormônio que produz a sensação de bem-estar; e pode ser utilizada no tratamento para obesidade, já que é redutora de apetite. Os estudos mais ousados sobre tratamentos médicos que usam substâncias presentes na pimenta apontam também para a prevenção
no diabetes e câncer. Em 2002, pesquisadores da Universidade da Tasmânia, na Austrália, comprovaram, por meio de amostragem de sangue, que o consumo regular de um pimentão picante, parente próximo das pimentas, ajudou a equilibrar a insulina em 60% do grupo estudado, além de reduzir o nível de glicose e proporcionar uma menor secreção de peptídeo C (que elevado altera os níveis de glicose e de insulina). Já em Los Angeles, o doutor Akio Mori, da Universidade da Califórnia, publicou em 2006, no American Journal of Cancer Research, uma pesquisa que mostra os efeitos positivos da capsaicina (substância das pimentas vermelhas do gênero Capsicum) no combate ao câncer de próstata. Com todos esses índices satisfatórios e valiosas propriedades, a pimenta mostra que sua exuberância visual e seu sabor marcante não são apenas truques para atrair a atenção dos comensais, mas são indícios de que vale a pena cair na sua tentação, por puro estímulo à boa saúde.
receitas Vatapá ½ kg de camarão descascado e lavado, sem cabeça e rabo 2 cebolas médias 2 tomates 1 leite de coco 1 azeite de dendê Cheiro verde picado 10 pães 2 pimentas cheirosas Sal e pimenta (malagueta ou murupi) a gosto Refogue o camarão com três colheres de dendê junto com a cebola, o tomate, cheiro verde e pimenta. Reserve. Bata no liquidificador os pães com aguá (para cada 2 pães, 1 copo de água). Despeje o pão batido numa panela e leve ao fogo. Deixe ferver, mexendo sempre até engrossar. Quando começar a ferver, acrescente o restante do dendê e, depois, o camarão refogado. Adicione o sal e a pimenta, mexendo sempre para não grudar no fundo da
panela. Quando estiver quase pronto, misture o leite de coco. Tom Kha Gai (Sopa tailandesa) ½ colher (chá) de açúcar 4 colheres (chá) de suco de lima 5 pimentas vermelhas 5 cm de gengibre tailandês ralado 2 limas descascadas e picadas 100 g de champignons frescos e cortados em lâminas 400 g de peito de frango picado 750 ml de leite de coco 225 ml de caldo de frango Coentro a gosto 3 colheres (sopa) de molho de peixe 1 colher (chá) de sal Em uma panela, coloque o caldo de peixe, a lima e o gengibre tailandês e cozinhe em fogo médio. Após alguns minutos, adicione o frango, os champignons, o açúcar e o sal. Abaixe o fogo e acrescente o leite de coco e as pimentas
trituradas, continue a cozinhar, sem deixar levantar fervura, até obter uma consistência cremosa. Sirva bem quente com algumas folhas de coentro para decorar.
leve ao fogo, junte a gelatina, mexendo de vez em quando, até o ponto de geleia. Corte 2 pimentas bem fininhas e misture à geleia. Por último, coloque o adoçante.
Geleia de pimenta diet 66 pimentas dedo de moça 2 kg de maçãs vermelhas Fugi 2 colheres (sopa) de vinagre de maçã 1 colher (sopa) de gelatina incolor em pó sem sabor 4 colheres (sopa) de água quente para a gelatina 2 xícaras de adoçante granular ½ litro de água
Conserva de pimenta Pimentas selecionadas de sua escolha 2 copos de vinagre branco 1 colher (sopa) de açúcar 1 colher (chá) de sal
Corte as maçãs sem tirar as cascas. Coloque numa panela de pressão com a água e o vinagre e deixe cozinhar por 30 minutos. Tire da panela e bata no liquidificador. Passe por uma peneira e reserve. Bata 4 pimentas no liquidificador. Misture-as com as maçãs,
Coloque água numa panela e deixe que ferva. Em seguida coloque a pimenta e deixe por 20 segundos. Retire e transfira de imediato para uma tigela com água gelada. Separadamente, faça uma calda com o vinagre, o sal e o açúcar levando essa mistura para ferver por 2 minutos. Coloque as pimentas num vidro esterilizado e jogue a calda quente de vinagre por cima. Deixe esfriar. Conserve na geladeira.
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GONZAGA LEAL A saudade como trilha
Após quatro anos sem gravar, músico pernambucano lança De mim, álbum guiado por silêncios e mudanças texto Marina Suassuna
Sonoras Foi em seu apartamento, no Bairro de Boa Viagem, zona sul do Recife, que Gonzaga Leal desfrutou como nunca da presença da cantora, compositora e amiga Marília Medalha. Para ela, que vive praticamente reclusa, a permanência de uma semana na casa do músico, em maio deste ano, foi um êxito e tanto, visto que permitiu a sua participação no novo trabalho de Gonzaga, intitulado De mim, que estava sendo gravado naquele período. Parceira de Edu Lobo na interpretação de Ponteio, que conquistou o primeiro lugar no 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, Marília é considerada por Gonzaga uma das artistas mais nobres da MPB. Os dois já haviam trabalhado juntos em 2012, quando criaram o repertório em homenagem à Clementina de Jesus para a primeira edição do projeto Receita de samba, comandado por Gonzaga. Este ano, ele teve o prazer de acompanhá-la na gravação de Deusa da lua para seu novo trabalho. A música, um reisado que fala da saudade, reitera os temas de domínio público como marca da discografia de Gonzaga. Assim como Marília, Cida Moreira foi convidada a participar do novo CD. Conhecida por suas interpretações viscerais, a cantora paulista veio ao Recife gravar A janela da casa do tempo, que contou com a participação do Grupo Treminhão, e cuja letra é de autoria de Xico Bizerra, a quem Gonzaga atribui a maestria de traduzir imagens poéticas como ninguém. A melodia, por sua vez, foi assinada por Públius Lentulus, um dos músicos mais
requisitados em Pernambuco, que teve papel fundamental no repertório e no conceito que viriam a nortear De mim. “Costumo dizer que um disco é feito de conspirações, não de canções. As músicas foram chegando a mim e, quando me dei conta, o tema foi se costurando”, reflete Gonzaga, referindose, sobretudo, à primeira composição que recebeu, Da saudade, escrita e enviada por Públius. “Ele pediu que eu me encarregasse dela. Imediatamente, fiquei fascinado pelas imagens do texto. A música ativou uma saudade em mim de mim mesmo. Saudade do Gonzaga de outra época. Mas tudo isso com muito frescor, sem ressentimentos.” A chegada da canção de Públius coincidiu com a época em que Gonzaga completara 55 anos, quando vieram as indagações sobre o tempo, responsáveis por conduzir cada escolha de De mim. A começar pela voz que, segundo Gonzaga, está diferente em função da idade, avizinhando-se do tom grave, característica que ele respeitou. “O conceito de voz que usei no disco foi determinado por mim. Eu a queria menos emoldurada e mais despida.” O efeito do tempo na voz do artista é audível na faixa que abre o CD, Água serenada, composta por Déa Trancoso: “Eu não canto do jeito que eu já cantei. Bebi água serenada, até a voz eu mudei…”. O tempo também fez o músico questionar-se sobre o ofício de artista. Para ele, estar no palco é um misto de sofrimento e êxtase. Por isso a escolha de gravar a música Show,
de Luiz Tatit, que traduz a visão de Gonzaga sobre a experiência solitária e, ao mesmo tempo, contemplativa do artista diante do público. De mim é também um disco de memórias. A saudade que o permeia vem do Gonzaga, que experimentou o fundo dos rios e do mato intrincado em Serra Talhada, sua cidade natal, de onde saiu aos 13 anos para vir ao Recife. Apesar de ter vindo cedo para a capital, o “apetite pelo brejeiro, pelo agreste e pelo sertão”, como escreveu certa vez, nunca lhe foi arrancado. O espírito interiorano com sotaques de urbanidade está bemdelineado na canção Sonho imaginoso, na qual o intérprete se revela um exímio e lírico compositor. Aqui, ele teve a parceria de Guito Argolo e J. Veloso, neto de Dona Canô.
VIOLA ACOMPANHA
Olhando para suas raízes, Gonzaga também arquitetou a sonoridade do disco, elegendo, em meio a uma instrumentação pequena, a viola como principal condutor das melodias. “A viola brasileira tem várias afinações. Por isso quis reunir alguns amigos meus violeiros que representassem essa diversidade.” Para isso, convidou Jaime Além, representante da viola de 10 cordas do interior paulista, além de nomes da geração mais nova, como Juliano Holanda, com quem divide os vocais na mesma faixa, e Hugo Lins, correspondendo à viola dinâmica, de cantador de feira. A viola nordestina ficou a cargo de Cláudio Moura, produtor,
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helder ferrer/divulgação
diretor musical e regente do disco, que trabalha com Gonzaga há 15 anos. Moura também assinou o arranjo da faixa Arco do tempo, mas a função foi designada, na maior parte do disco, a Marcos FM e Nilson Lopes. “De mim é um disco que valoriza o silêncio, as pausas que, por sua vez, são tão musicais quanto o som. Trabalhar com poucos instrumentos é difícil. A sorte é que temos grandes músicos para dar conta do recado. Acho que esse disco reflete bem a maturidade musical de Gonzaga e de nós, músicos”, disse Mauricio Cezar, pianista e arranjador de uma única faixa, Show. Fiel à sua equipe, Gonzaga não abriu mão de trabalhar com os músicos que o acompanham nos últimos anos. São eles: Mauricio Cezar (piano), Tomás Melo (percussão), George Rocha (percussão), Adilson Bandeira (clarinete, sax e clarone), Alex Sobreira (violão de sete cordas) e Cláudio Moura (viola nordestina). O
Neste disco, Gonzaga Leal elegeu, em meio a uma pequena instrumentação, a viola como condutora das melodias sexteto revezou-se nas faixas com outros músicos convidados, entre eles Lucas dos Prazeres (percussão), Ricardo Fraga (bateria) e Julio Cesar (acordeon). “O resultado do álbum vai na direção das pessoas que se identificam com o meu trabalho. Gravar canções é diferente de gravar um disco. Este último requer pessoas especiais que tenham o dom da contemplação. Eu quis trabalhar com calma, no tempo de cada músico, caso contrário, seria um trabalho sem alma”, explica Gonzaga, que se recusa a trabalhar com pessoas “sem potência
criativa, sem histórias para contar e sem intimidade com o silêncio”. De mim nasce depois de um jejum de gravação que durou quatro anos. “É um disco de respiração do meu fazer artístico, no qual me indago como pessoa e como artista.” O último trabalho de Gonzaga foi E o que mais aflore (2010). Desde então, não viu sentido em entrar no estúdio apenas para gravar canções e, com isso, justificar mais um disco. “Não dá para brincar, ser irresponsável e negligente com a música. A música é da ordem do sagrado, é um dos grandes senhores.” Para não deixar dúvidas sobre as suas motivações, ele recorreu a Déa Trancoso como sua porta-voz no texto de apresentação do disco: “De mim é de dentro pra fora, é o auge do rigor gonzaguiano. Uma disciplina que ele traz de rigoroso convívio com a música, sua segunda expressão. A primeira foi e continua sendo a contemplação”.
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FESTIVAL Uma química que ainda funciona
1 produtores Ana Garcia e Jarmeson de Lima estão à frente do evento anual
Coquetel Molotov comemora uma década com incrementos, apesar da crise que afeta a área cultural texto Débora Nascimento
Em meados de setembro, o assunto
relativo à música que mais circulou na imprensa, nas TVs e nas redes sociais foi o Rock in Rio. Abordado através de notícias, imagens, críticas, postagens, era difícil imaginar alguém no Brasil que não soubesse da existência do evento. Mas não é todo festival de música que tem esse poder, que desfruta dessa fama. No país, há dezenas de outras realizações voltadas para a área que não dispõem de 1% do apelo do Rock in Rio, mas, mesmo assim, são peças importantes para a nutrição da cadeia produtiva da música
brasileira, principalmente a chamada “independente”, desatrelada de grandes produtoras e gravadoras. Parte desse desconhecimento do grande público se deve ao fato de que esses festivais ainda são jovens, como é o caso do No Ar Coquetel Molotov, que, neste 2013, completa 10 anos. Mas principalmente porque esses eventos trazem em sua programação exatamente o investimento em artistas novatos, ainda desconhecidos ou cujos estilos não são tão massificados. O Coquetel Molotov, quando surgiu, passou a
abarcar um gênero que não tinha muito espaço na mídia, o chamado indie rock ou – para ser mais justo com a realidade – o polêmico termo indie rock, que quer dizer independente, mas que, ao mesmo tempo, abrange uma variedade de bandas de subgêneros variados (noise rock, garage rock, new prog...), como Pixies, Sonic Youth, Pavement e Teenage Fanclub – esta que foi a atração principal da primeira edição, causando um impacto positivo e estabelecendo também um alto padrão para a iniciativa. Ana Garcia, a “mãe do festival”, atesta o golpe de sorte que tiveram com a escalação da banda escocesa. Naquele ano de 2004, ela, junto ao coletivo Coquetel Molotov, conseguiu fazer as primeiras captações para o futuro evento, que ainda não tinha um modelo definitivo. A produtora, que é filha do maestro Rafael Garcia e da pianista Ana Lúcia Altino, diretora-geral do festival de música erudita Virtuosi, já estava acostumada a ver os pais trabalhando em produção de evento, quando decidiu também promover um. “Quando foi aprovado na Lei Rouanet, achamos que tínhamos o mundo nas nossas mãos e não tínhamos ideia de como era difícil captar. Coincidiu que, na mesma época do Coquetel Molotov, ia rolar o Curitiba Rock Festival e conseguimos vender o Teenage Fanclub para eles e três noites no Sesc Pompeia”, lembra. Hoje, o Teenage Fanclub é uma das muitas atrações que se destacam na recente história do festival; e os produtores do evento já contam com diversos momentos memoráveis. “A edição de 2010 foi bem especial. Fizemos uma turnê incrível com o Dinosaur Jr. e eu nunca irei esquecer isso, como a banda é tão talentosa e tão humilde. Foi um prazer trabalhar com eles”, diz Ana Garcia. “Gosto muito da edição de 2006, quando o festival começou realmente a engrenar na cidade. Tivemos o CocoRosie, Tortoise, Móveis Coloniais de Acaju, em sua primeira vez no Recife, e ainda a vinda de gente como a Trama Virtual, que fez a melhor cobertura do evento já vista. Foram dois programas com reportagens sobre o festival que, apesar de não ter lotado, estava com um ótimo astral e ajudou a superar o trauma do ano anterior, quando tudo parecia que ia dar errado”, recorda o produtor Jarmeson de Lima.
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INDICAÇÕES Todo ano, os realizadores enfrentam o processo da montagem da grade, que nem sempre atende às ideias iniciais de trazer um ou outro nome. Os critérios são sempre os mesmos, mas o resultado pode ser imprevisível. “Sempre digo que é uma equação, em que a gente considera: gosto pessoal, ineditismo na cidade, qualidade de execução ao vivo, custos de produção e cachê. Quando tudo isso se acerta, é ótimo. Já em outras vezes, é difícil abrir mão de uma banda porque o cachê é caro ou porque tocou recentemente no Recife”, conta Jarmeson. Uma das atrações mais caras do evento foi o grupo norte-americano Beirut, cujo cachê ficou em R$ 90 mil, fora os custos com a estadia dos integrantes no Rio de Janeiro durante uma semana. Já a aclamada banda australiana Tame Impala, cujo pagamento ficaria bem abaixo daquele, foi convidada para tocar agora nesta edição de aniversário, mas não aceitou o convite, alegando a apertada agenda de shows na América Latina. Nesses 10 anos, já ficaram de fora nomes como Wilco, Joanna Newsom, Sonic Youth, Mogwai, Caetano Veloso... Além dos artistas que são contatados, há também o caminho inverso, que é a procura dos músicos para tocar no festival. Por ano, recebem material de todas as formas (por correio, e-mails, Facebook) e de vários lugares do mundo. “Geralmente, viajamos e entramos em contato com outros produtores e vemos muitos shows, meio que já sabemos o que poderíamos ou não chamar. Mas, ainda assim, mesmo sem abrir ‘inscrições’ para as bandas, o público costuma fazer campanhas
pra pedir atrações alguns meses antes do evento chegar”, conta Jarmeson. Apesar de se defrontarem com vários entraves em cada edição, os produtores afirmam que a questão financeira é sempre o maior calo para a realização do evento. “Está cada vez mais difícil captar. Tivemos um boom de 2008 a 2011 e, agora, os festivais estão sofrendo uma queda gigante. As empresas estão cada vez com menos lucro, os editais acabando... Foi uma grata surpresa conseguir o incentivo do Funcultura este ano e é uma pena que a maioria dos festivais pelo Brasil não possam ter esse tipo de apoio no seu estado”, avalia Ana. “Com essa crise, os festivais estão acabando. Teve uma redução enorme de dois anos pra cá e é uma pena que isso esteja acontecendo.” Segundo a produtora, embora o Coquetel Molotov tenha se firmado nessa primeira década, a captação de recursos continua sendo um processo difícil. “O setor empresarial ainda não consegue apoiar com afinco esse e outros projetos culturais. Seja por conta do desconhecimento das leis de incentivo ou por falta de verba para investir em eventos musicais”, avalia. Apesar disso, o festival cresceu. Começou com uma noite e quatro shows, hoje possui diversas prévias, mostra de cinema, debates e duas noites com oito shows por dia. Ana Garcia já pensa na década seguinte: “Vamos sair do Teatro da UFPE, que deve passar por uma grande reforma nos próximos dois anos. Isso vai ser um incentivo para tomarmos o passo que queremos e fazermos algo maior com o festival. Vamos trabalhar nisso”.
REGGAE
SAMBA
Loop Play Discos
Independente
CAFÉ PRETO Café Preto
ORQUESTRA CRIÔLA Subúrbio bossanova
Em seu projeto paralelo à Devotos, Cannibal se rende ao reggae roots jamaicano ao lado do DJ e produtor Bruno Pedrosa e do também músico PI-R. O disco de estreia da banda traz um repertório inspirado no modelo soundsystem, surgido na Jamaica. Programações e samples elaborados por Pedrosa servem de base para a voz de Cannibal, emoldurada por efeitos de delays e reverbs típicos do dub. O álbum, que este mês está sendo lançado em vinil, teve a mixagem assinada por Victor Rice, responsável pelo antológico disco The dub side of the moon.
Tendo como base o samba de gafieira, a Orquestra Criôla evoca, em seu primeiro CD, o espírito de pilantragem dos bailes cariocas dos anos 1960 e 70. Subúrbio bossanova mistura o samba com ritmos latinos e africanos, mesclando canções inéditas, em sua maioria, com releituras de clássicos da MPB como Carinhoso, de Pixinguinha, que contou com a participação de Luiz Melodia, e Mon amour, meu bem, ma femme, de Cleide. O disco merece ser ouvido, sobretudo pelo acabamento das canções, ricas em instrumentos de sopro.
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Independente
GRAXA Molho
Gravado no estúdio Pé de Cachimbo Records, o primeiro disco de Angelo Souza, nome por trás do Nego Graxa, é um mix de sonoridades. As letras autobiográficas falam de seu cotidiano no Recife, a exemplo da faixa Doutor, por favor, um blues bem-humorado, composto depois do músico ter machucado o pé e levado um chá de cadeira numa UPA. O CD é composto por 15 faixas divididas em dois volumes; lançado também em vinil – que já está à venda no site Media4music.
DESALMA Foda-se Na estrada desde 2007, a banda de death metal pernambucana Desalma lança seu primeiro registro em estúdio. Gravado no Estúdio Bigorna, o CD conta com uma bela arte assinada pelo designer Felipe Vaz e contém 11 faixas que se mesclam a outras vertentes, como o grindcore e o crossover, culminando num álbum fiel às suas bases musicais, mas com rompantes de experimentalismo. O quarteto é atualmente formado por Erick Dartelly (voz), Mathias Severien (guitarra), Pedro Diniz (baixo) e Renato Corrêa (bateria e voz).
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Ronaldo Correia de Brito médico e escritor
entremez
O RIFLE E A LANÇA
Acho que se chamava Otacílio
Valdevino, também poderia ser Vicente Moreno, o nome já não possui significado. As fitas cassete em que registrei sua voz foram esquecidas em gavetas ou tornaram-se impossíveis de reproduzir. Transcritas, suas histórias ganharam edição em livro, mas os gestos do narrador, as modulações da fala, as longas pausas com que deixava a plateia suspensa se perderam. Talvez. Muitos que o escutavam repetem movimentos de mãos, meneios de cabeça, tons de voz, sem reconhecer a genética dessa herança. Esqueceram Otacílio ou Vicente – o nome não importa –, mas o personagem continua neles, como os restos orgânicos de um mundo primitivo. Apressado e sem sutileza, eu queria registrar o máximo de narrativas, pouco ligando para as exigências do narrador. – Assim eu não consigo. De dia? Quem já se viu contar história de dia? E falando pra essa máquina? Tenho de relembrar coisas antigas, a memória cobriu-se de poeira. Eu insistia e ele emperrava. – Arranje um bando de meninos,
traga aqui em casa de noite, aí eu faço uns arremedos. De noite, havia apenas a luz de um candeeiro e tições acesos no fogão de lenha. O velho sentava na rede como se montasse um cavalo, os pés tocando o chão de leve, num impulso de balançar. Meninos e vizinhos chegavam atraídos pelo gravador – máquina precária, parando a intervalos para mudar a posição da fita ou substituí-la. – E quem falou que eu sei contar história? Era a fórmula do começo. A plateia se manifestava em vozes desencontradas, enfatizando as qualidades do narrador. A esposa, sem paciência com os adiamentos, implorava do seu lugar. – Vai homem, deixa de conversa fiada e conta logo! Ainda faltava enrolar o fumo em palha de milho, acendê-lo na chama do candeeiro, tragar fundo. – Vocês querem ouvir o quê? Nesse segundo prólogo, ouviam-se as sugestões. Arbitrário, o narrador não realizava desejos. Puxava o fio de uma história que havia preparado, acrescentava
detalhes e emendava pedaços de outras narrativas. Tinha sensibilidade artística, o narrar era também reflexão, não se confundia com o indefinível. Todas as dores tornam-se suportáveis, se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas. Nunca falou isso, mesmo que pensasse dessa maneira. Uma mulher que usava um nome falso de homem – Isak Dinesen – já escrevera a frase antes. Ela possuía uma fazenda no Quênia, onde plantava café. Quando seu amante a visitava, pedia que contasse histórias. FinchHatton, o amante, se afastava por longas temporadas, conduzindo caçadores em safáris. Nessas longas ausências, Karen Blixen – o nome verdadeiro da escritora – criava o que narraria no retorno dele. Desde a primeira metade do século passado, observou-se que as pessoas ditas civilizadas já não tinham paciência nem perdiam tempo narrando e escutando histórias. Preferiam a companhia solitária de um livro, assimilar o que fora registrado em caracteres escritos, supostamente fixos e imutáveis. Uma atitude bem estranha ao mundo africano, no
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hallina beltrão
qual os registros se faziam através da memória das pessoas, sendo passíveis de acréscimos e decréscimos. Karen Blixen, como os somalis, quicuios e massais do Quênia, Otacílio ou o Vicente do nordeste brasileiro, ou uma ancestral mais antiga, a Sherazade das Mil e uma noites, que barganhava a própria sobrevivência emendando fios de histórias, gostava de ouvir e narrar. Embora tivesse publicado um livro de contos aos 20 anos e fosse encorajada a continuar escrevendo, Karen “nunca quis ser uma escritora”, “tinha um medo intuitivo de ficar presa”, pois “qualquer profissão, por designar invariavelmente um papel definido na vida, seria uma armadilha, escudando-a contra as infinitas possibilidades da própria vida”. Quando publicou o segundo livro, estava perto dos 50 anos. Enquanto viveu na África, entre os nativos para quem o corpo e a fala representavam os mais perfeitos instrumentos de narração, ela acumulou a sabedoria, que transformou em linguagem. Karen Blixen mudou-se para a África num tempo de expansão colonialista, quando a Europa parecia esvaziada do
Karen Blixen mudouse para a África num tempo de expansão colonialista, quando a Europa parecia esvaziada de sentido sentido de sua existência, uma desordem que resultou nas duas grandes guerras. Primeiro ela busca viver intensamente sua aventura, para só depois narrá-la. O que sempre me pareceu contraditório na vida dessa escritora é que, apesar de sua sensibilidade, do requinte com que analisa as filigranas da alma e do comportamento humano, nunca discute sua ação colonizadora, o fato de apropriar-se de territórios e bens de povos milenarmente assentados e vivendo numa África transformada em território de caça. No capítulo Asas de seu livro mais famoso, A fazenda africana, ela confessa o sonho juvenil de abater um espécime de cada tipo de caça existente. E quando narra um voo de aeroplano com o
amante Finch-Hatton, sobrevoando uma manada de búfalos da montanha, não deixa de fazer um comentário predatório – “se quiséssemos, poderíamos abatê-los a tiros”. Os bens de cultura são comuns a todos os homens como os livros de uma biblioteca, que lemos ao nosso gosto. Mas apropriar-se de territórios alheios, no papel de colonizador, é sempre uma ação nefasta. Algumas sociedades primitivas evitam, outras buscam o contato com o mundo exterior, pelo qual se transformam ou extinguem Otacílio é um representante da sociedade onde nasceu e viveu. O jovem de gravador em punho já não pertence a essa sociedade, mas busca registrála e representá-la. Karen Blixen foi sensível à África, aonde chegou com seu projeto de colonizadora. As sociedades tribais levaram-na a repensar o papel do narrador, mas ela nunca chegou a ser uma voz da África, igual ao escritor nigeriano Chinua Achebe. Da mesma maneira que o sentido pelo qual matava leões, armada de rifle possante, não era o mesmo de um guerreiro massai, munido apenas de lança e escudo.
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Leitura GASTÃO DE HOLANDA A cidade e os escorpiões
Cepe Editora relança obra premiada, e há tempos esgotada, do escritor, editor e desenhista gráfico que foi um dos fundadores de O Gráfico Amador de Pernambuco texto Eduardo Cesar Maia
A reedição de Os escorpiões, romance do versátil Gastão de Holanda (19191997), pela Cepe Editora, é oportuna em diversos sentidos. Em primeiro lugar, a publicação da obra neste ano de 2013 (quase 60 anos após a primeira edição) enseja uma discussão a respeito de como temos – jornalistas e acadêmicos incluídos – reservado pouco cuidado com a preservação de nossa memória literária recente.
sebos que ainda não se renderam à lógica “best-sellers & didáticos”. Outra contribuição fundamental da editora através dessa publicação é apresentar, principalmente para os leitores mais jovens, o nome do próprio Gastão de Holanda. O escritor e desenhista gráfico, falecido no Rio de Janeiro há pouco mais de 15 anos, atuou como jornalista, professor, advogado, romancista, poeta, contista, editor e designer. Na área do desenho gráfico, por exemplo, destaca-se seu empreendimento cultural como fundador, em 1954, juntamente com Aloísio Magalhães, José Laurênio de Melo, Orlando da Costa Ferreira e Ariano Suassuna, da famosa editora O Gráfico Amador, que se notabilizou por publicar, em edições limitadas e artesanais, obras de autores como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Hermilo Borba Filho, Francisco Brennand, Carlos Pena Filho, Mauro Mota, entre outros. Nessas edições, a qualidade dos textos rivalizava, a cada obra, com o apuro e o experimentalismo da arte gráfica. Como editor, Gastão de Holanda encabeçou, no Rio de Janeiro, a importante Revista José – literatura, crítica & arte, que desempenhou relevante papel cultural na década de 1970. Por fim, ademais da já apontada relevância de Gastão de Holanda como intelectual e agitador cultural, cabe aqui nesta breve resenha apontar, ainda que rapidamente, o valor literário e histórico de uma obra literária específica: Os escorpiões, romance publicado em 1954, ganhador do importante Prêmio IV Centenário de São Paulo, no mesmo ano.
A OBRA Excetuando-se, obviamente, os autores canônicos de sempre (Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Ariano Suassuna, João Cabral e poucos mais), muitos daqueles escritores e críticos que fizeram do Recife uma referência intelectual nacional durante as décadas de 1950, 1960 e 1970 jazem em livros empoeirados e esquecidos em nossas malcuidadas bibliotecas e em alguns
O livro, antes de tudo, reflete um projeto literário ambicioso, tanto no conteúdo quanto na forma. A história da amizade entre dois jovens, Leopoldo e Frederico Sarmento, é transmitida por meio de estratégias narrativas diversas, como o relato em terceira pessoa através de um narrador onisciente, o diálogo direto, o fluxo de consciência, a transcrição epistolar e o relato onírico. À maneira da tradição do Bildungsroman (romance de formação),
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1 amigos Numa de suas raras fotografias no Recife, em reunião ocorrida no início dos anos 1960, na casa de Orlando da Costa Ferreira, Gastão está sentado à direita
a narrativa, ambientada na cidade do Recife da década de 1930, tem como preocupação central relatar o processo de formação intelectual, moral e emocional do jovem Leopoldo, filho de uma humilde viúva dona de um pensionato para estudantes localizado no centro da cidade. A primeira riqueza do livro é justamente a minuciosa representação do Recife daqueles tempos, não somente através da descrição das ruas, das festas, dos costumes, enfim, da “cor local”, mas principalmente por meio da existência concreta e palpável de personagens convincentes que vivem a cidade e nos transmitem uma sensação de memória autêntica de uma época. Literariamente, o ponto forte da obra está justamente na construção de seus personagens centrais. A “provinciana história”, como diz o narrador, de Leopoldo e Frederico – personagens eminentemente contemplativos –, tem algo de romance existencialista. Tal influência fica patente em trechos como o seguinte, que reproduz a fala de Leopoldo: “Eu, por minha vez, forço a minha liberdade. Todo homem força
O romance, lançado nos anos 1950, reflete um projeto literário ambicioso, tanto no conteúdo quanto na forma a sua liberdade. Estranho paradoxo. Não teremos, futuramente, outra saída senão pelo absurdo” (pág. 24). As preocupações e reflexões filosóficas do autor são expressas principalmente por esse personagem, que vive numa interminável angústia existencial, devida aos excessivos cuidados de sua mãe (“A infância dele fora banhada pelas lágrimas de uma viúva, como um vasto campo pelas chuvas de maio”), à ausência paterna e ao conturbado relacionamento amoroso com a judia Bertha, personagem que também merece destaque por sua complexidade e caráter ambíguo. Assim, apesar de desprovidos de qualidades excepcionais e de não terem vidas exteriormente
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interessantes, os personagens de Os escorpiões nos persuadem de suas existências – algo essencial para o êxito ficcional – exatamente na medida em que seus conflitos íntimos nos revelam preocupações humanas que transcendem as circunstâncias de época e lugar, e que, portanto, podemos ver refletidas, por vezes, em nós mesmos. Além de Os escorpiões, Gastão de Holanda escreveu ainda os romances Macaco branco (1955), O burro de ouro (1960) e A breve jornada de D. Cristóbal (1985); o livro de contos Zona de silêncio (1951); e as obras poéticas Eu te previno (1969), Capiberibe, o iceberg no ar (1977), O atlas do quarto (1978), Corpurificação (1979), O jornal (1981) e O dragão encurralado (1983).
Os escorpiões GASTÃO DE HOLANDA Cepe Editora Romance em que se destacam as descrições do Recife e a construção dos personagens
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Leitura OSMAN LINS Encontro com o autor de Avalovara
Há 40 anos, era lançado o romance que colocaria o escritor pernambucano entre os renovadores do gênero no Brasil texto Raimundo Carrero
Não nos tornamos amigos, mas ficamos muito próximos. Conheci Osman Lins numa tarde de julho de 1973, quando recebi a incumbência de entrevistá-lo. Na redação do Diario de Pernambuco, em que trabalhava como repórter, fui informado de que o escritor estava lançando o romance Avalovara, que revolucionaria a literatura brasileira e consolidaria seu nome. No 13º andar do edifício da AIP – Associação de Imprensa de Pernambuco –, encontrei Osman sentado numa poltrona larga, lendo um livro em
francês; ficou de pé e saudou-me com um aperto de mão. Logo em seguida, chegaria o repórter Tarcísio Pereira, então estudante de Jornalismo e estagiário do Jornal do Commercio, proprietário da recém-inaugurada Livro Sete e que mais tarde se tornaria marido de sua filha Letícia e pai dos seus netos. Logo começou a entrevista, com uma dificuldade: nenhum dos três levara um exemplar do livro. Com exceção de Osman, é claro, teríamos que conversar sobre um objeto que não conhecíamos. Foi um trabalho difícil,
com o escritor tentando ser o mais claro possível e recorrendo até mesmo a desenhos. Com uma esferográfica e papel-jornal, no formato de uma página comum, ele procurava ser objetivo, explicando a estrutura do romance e a trajetória dos personagens. Algo novo e surpreendente. Sobretudo para os dois jovens repórteres. Com a caneta azul, diante dos olhos ávidos dos entrevistadores, Osman traçou no papel um quadrado, uma espiral e as letras do texto em latim Sator arepo tenet opera rotas, que, traduzido a grosso modo, significa “o criador mantém cuidadosamente a obra em sua rota”. Cada letra significa o roteiro dos personagens, num romance extremamente complexo, que entrecruza oito narrativas circulando entre Amsterdã e o Recife, Roma Antiga e o Recife, São Paulo e Paris. Havia em Avalovara pequenos símbolos ou sinais que substituíam os nomes tradicionais dos personagens naquilo que se constituiria o mais inventivo romance da língua portuguesa, exigindo do leitor o máximo de cuidado e concentração, para entendê-lo em sua plenitude. Entusiasmado e aturdido com o encontro, dispensei o elevador do Diario e subi a pé os lances de escadas que levavam à redação. Tive um trabalho imenso para escrever o texto, de forma que ele ficasse claro para o leitor. Mesmo assim, o jornal publicou apenas os dois primeiros parágrafos, em uma coluna. Sem a ilustração – que era o desenho de Osman. O Diario perdia a ocasião histórica de publicar uma intensa entrevista do revolucionário criador brasileiro, dispensando a ilustração de próprio punho. Fiquei triste, muito triste e irritado, porque não podia fazer nada nem explicar o que acontecera ao próprio Osman, com quem troquei alguma correspondência. Foi ele, inclusive, quem me chamou a atenção para a obra de Lima Barreto, a quem dedicara muitos estudos acadêmicos, tornando-se um dos seus analistas mais lúcidos. Foi tema, sobretudo, de sua tese de doutorado, que lhe deu a oportunidade de ser professor de Literatura na Universidade de Marília, no interior de São Paulo, onde desenvolvia uma atividade próxima de sua obra literária.
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Na entrevista da AIP, Osman não falava apenas do romance, mas fazia graves críticas à ditadura militar que se instalara no Brasil desde 1964, dizendo, entre outras coisas, que era obrigação do escritor remover o que ele chamava de “lixo político”. Usava uma frase várias vezes : “Se o escritor não remove o lixo político, se mistura com o lixo”. Aí ele se defendia de uma possível acusação de escritor alienado, que poderia ser feita pela crítica. Na época, discutiam-se muito os conceitos de arte alienada e arte engajada. Sem um combate frontal à ditadura e aos regimes totalitários, o artista seria um escritor alienado e formal, portanto, dispensável, porque optara apenas pela forma, a arte pela arte, o que queria dizer, ausência do confronto humano. Esse tipo de acusação derrotava o artista, que passava a merecer um certo desprezo social, com a desconfiança de que apoiaria a ditadura brasileira. Osman Lins foi um homem de grande caráter, detestava a injustiça e nunca comungaria com desmandos políticos. Sua preocupação essencial era com a literatura, com o destino dela, e se envolvia ao máximo com sua trajetória. Desde cedo se uniu ao crítico Antonio Cândido, de quem ouviu lições de engajamento político e social na obra de arte. Aliás, foi Cândido quem assinou o prefácio de Avalovara, expondo não só o mérito literário, mas o método do romance revolucionário. Na verdade, o prefácio veio impresso em duas folhas à parte, porque Osman acreditava que uma obra de arte ficcional deveria vir sozinha, impondose pela sua grandeza, sem qualquer intervenção externa, nem mesmo um prefácio consagrador. O prefácio, aliás, era uma ideia dos editores da Melhoramentos, a que Osman aderiu, não sem um grande custo, até pelo grande respeito a Antonio Cândido.
ENGAJAMENTO
Havia, ainda, o agravante de que Osman se filiava literariamente ao nouveau roman, que na França significava alienação completa, ausência de preocupação política e social. Embora amigo de algumas figuras proeminentes desse movimento literário, o escritor pernambucano deu entrevistas e escreveu artigos explicando sua técnica
1 palíndromo Cada uma das letras escritas nesse quadrado com espiral representa o roteiro dos personagens na obra 1
e o seu distanciamento do movimento literário, apesar das aproximações estéticas. Tudo isso, é claro, durante a repercussão da obra. Mas a crítica universitária resolveu o problema criado pela patrulha ideológica, mostrando que não havia, em Avalovara, qualquer filiação ao nouveau roman. Em Pernambuco, o escritor Hermilo Borba Filho, radicalmente político e engajado, tratou de mostrar as qualidades políticas e sociais da obra, de modo a desfazer logo todos os equívocos. De forma que sobre Osman não caiu, de forma alguma, a acusação que ele tanto temera. Ele próprio ainda concederia outras tantas entrevistas e escreveria vários artigos mostrando-se um engajado político determinado e sério. Na verdade, o autor de Avalovara tinha grandes preocupações políticas, mas cuidava muito da forma literária, porque imaginava o romance como radical forma de arte, na sua mais expressiva manifestação. Depois da entrevista na AIP, voltamos a nos falar poucas vezes, quase sempre por telefone, sobretudo quando ele precisava de informações sobre política e literatura pernambucana. Nas décadas de 1960 e 1970, por exemplo, as chamadas interurbanas eram feitas com dificuldade, e Osman ligava para a redação do Diario de Pernambuco, onde me encontraria sempre, porque era
ali que eu trabalhava de domingo a domingo, sem intervalos. Dono de uma voz pausada, simples, sem nenhuma afetação, no princípio queria saber como andavam os escritores mais jovens, as aspirações, os planos, as publicações. Muito rigoroso com a atividade literária, dizia que o escritor não poderia perder tempo com empregos exigentes e nem mesmo com uma coluna em jornais e revistas, porque estaria jogando energia fora. Energia e tempo. Toda a vida teria de ser usada apenas para a literatura e para os planos de obra. Publicaria, mais tarde, A rainha dos cárceres da Grécia, com um conteúdo muito mais humano e político: a questão dos aposentados no Brasil, passando pelo drama psicológico das pessoas humildes e pela burocracia governamental que os envolve, sem cair no panfleto, mas sem ser também um livro fácil de ser lido, em que a narrativa apresenta trechos do diário da personagem principal. É preciso não esquecer, ainda, a construção revolucionária de Nove, novena, outro livro que marca, fundamentalmente, a obra de Osman e que solidifica a sua curta, mas profunda e inquietante, obra literária. Traduzido, ganhou os melhores e mais densos elogios da crítica internacional, destacando-se a versão francesa de Avalovara, muitas vezes considerada uma obra-prima de grandeza insuperável.
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divulgação
“Há um meio certo de começar a
Leitura
COLETÂNEA Nem parece que foi outro dia que ele virou cronista Publicitário aposentado, Joca Souza Leão lança Crônicas, livro composto por mais de 200 textos que revelam seu gosto por certos temas do cotidiano texto Olivia de Souza
crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.” Publicitário aposentado, Joca Souza Leão segue as orientações acima, reproduzidas do “escriba de coisas miúdas”, Machado de Assis, como o próprio se definiu nesse labor essencialmente jornalístico. E, da mesma forma que surge, a crônica – trivial, inesperada e pautada na banalidade do cotidiano – pode se esvair no dia seguinte, junto com o resto do jornal, pois “é leitura rápida, fugaz, consumida junto com as notícias do jornal”. Cronistas possuem um pé lá e outro cá: escrevem pautados na realidade, porém, abrindose para o “vazio” e suas diversas possibilidades: invenção, inspiração, opinião – no fim das contas, sua realidade pessoal. “Percepções, visões, opiniões, contemplações, alumbramentos e críticas. Pessoais. Coloquiais como uma conversa entre autor e leitor. Bem-humorada ou desaforada, refletida ou passional, isenta ou apaixonada, doce ou salgada. Ficção ou realidade”, define Joca, em um de seus textos. O gosto precoce pela literatura foi determinante para que Joca descobrisse a vocação para redator publicitário quando, aos 17 anos, teve um poema seu publicado no Jornal do Commercio e recebeu o convite para trabalhar numa agência. O mesmo periódico que serviu como pontapé inicial de sua carreira hoje divulga suas crônicas aos sábados. Motivado por uma cobrança cada vez maior de seus leitores para que compilasse esses textos em livro, Joca preparou uma antologia que abarca o período de 2006 a julho de 2013. O livro Crônicas, agora publicado pela Cepe Editora, é um apanhado dos textos que não se atêm a assuntos específicos, apesar de
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INDICAÇÕES temas cotidianos como urbanismo e preservação do patrimônio histórico serem bastante recorrentes entre os seus interesses. Organizado cronologicamente, o livro abre com a crônica Saravá, publicada em 2006, em que Joca se despede da propaganda e abre caminhos para outras vertentes de sua escrita, que não a de anúncios publicitários. “Eu tentei separar as crônicas por temas. Mas vi que não funcionava, porque alguns eram mais recorrentes que outros. Há um diálogo entre as crônicas que, de certa forma, impõe a cronologia. Muitas vezes um texto se relaciona com o outro, posso tanto anunciar no texto o tema da crônica seguinte, como também me reportar a assuntos publicados anteriormente”, comenta. Em outros momentos, Joca propõe reflexões acerca do próprio ofício, como em Só cronista se explica, sobre como este tem de se justificar o tempo inteiro, ou estabelecer distinções entre crônica, artigo e ensaio. “Minha pauta é tudo, sempre pela ótica do autor, e não pela da notícia. Articulista nunca precisa se explicar, mas o cronista, sempre. Porque a crônica publicada no jornal entra em notícias, e, de certa forma, ela tem um pé na realidade”, opina. Joca garante que não tem o famoso “medo do branco”. E assunto nunca lhe falta – reflexo disso é a quantidade de crônicas selecionadas para a antologia – mais de 200. Publicadas semanalmente, elas devem ser entregues impreterivelmente às quintas-feiras, até o meio-
dia (em jargão jornalístico, o famoso deadline). E, nesse contexto, Joca desenvolveu um método de trabalho bastante eficiente, que o livra de qualquer perigo de faltar texto na hora H. “Acho que eu e todos os cronistas trabalhamos com uma coisa chamada gaveta. Sempre tenho alguma coisa que já escrevi com antecedência, três, quatro, cinco textos. Quando tenho menos de quatro textos escritos, já vou ficando agoniado”, revela Joca. Ele diz que, a depender da iniciativa do escritor, o próprio “branco” pode virar de problema a solução: “O cronista gosta muito de escrever sobre o ‘deu branco’. Tem uma crônica maravilhosa de Rubem Braga sobre isso. O céu é o limite para ele”, garante. E quando faltar ideia para um título? Vale a receita de Para escrever uma crônica, texto que precede a antologia: “Não perca tempo. Bote um título qualquer, depois você muda. Escreva seu nome e logo abaixo o e-mail (se quiser). Pronto! Começar você já começou. Vamos ao texto.”
ENSAIO
DAVID LE BRETON Antropologia da dor Fap-Unifesp
“A atitude em relação à dor nunca é petrificada”, é com essa reflexão que o antropólogo e sociólogo francês inicia seu mais recente livro, no qual analisa a dor a partir das suas relações com o homem e sua estrutura social. Para o autor, a dor não é uma simples sensação, ela lembra o indivíduo, o valor e a vulnerabilidade de sua própria existência.
joca souza leão Cepe Editora Antologia reúne mais de 200 crônicas, publicadas entre 2006 e 2013.
FARAMERZ DABOHOIWALA As origens do sexo Biblioteca Azul
A obra alterna a perspectiva histórica com a individual para entender a maneira como o sexo foi tratado ao longo dos séculos. Ele mostra que quase todas as civilizações tinham leis muito duras contra a imoralidade no campo sexual. A obra aponta que no Iluminismo foram dados os primeiros passos para o avanço da liberdade sexual.
QUADRINHO
ROMANCE
Quadrinhos na Cia.
Cosac Naify
ALISON BECHDEL Você é minha mãe?
Crônicas
ENSAIO
Em 2007, Alison Bechdel recebeu o Eisner Awards por sua graphicnovel Fun home, um relato da artista, assumidamente homossexual, sobre sua relação com o pai, um professor de literatura e gay enrustido. Em Você é minha mãe?, Alison volta a trabalhar suas origens, descortinando seu relacionamento com a mãe e o abismo que surgiu entre as duas no decorrer dos anos.
SAMUEL BECKETT Murphy Samuel Beckett lançou em 1938 seu primeiro romance, em que conta a história de Murphy, um homem que tem como objetivo de vida unir seu corpo e espírito. As ordens da civilização são postas em xeque numa linguagem densa, próxima a James Joyce. Temos um Beckett de excessos, diferente, mas que abre espaço às suas obras posteriores e minimalistas como Malone morre.
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José Cláudio
artista plástico
matéria corrida
da vida feliz
Agora acordo feliz. Dava para
escrever a crônica somente com a frase. Ou cada palavra. Mas não vamos partir para excentricidades. “Agora acordo feliz” me lembra a época em que acordava infeliz, a pior da minha vida, nos meus vinte e poucos anos, na ressaca de todos os fracassos, no estudo, na loja de meu pai, em tudo, como registrado no livrinho Ipojuca de Santo Cristo: “Minha cor era de hidrópico e cada vez sentia mais preguiça de me levantar cedo e ir abrir a loja. Da cama ouvia a conversa dos fregueses, dos caixeiros, do meu pai, no balcão. (...) Me asilava no sono”. Tinha deixado de estudar, passado um tempo na Bahia, uns meses, e voltara a Ipojuca para trabalhar na loja de meu pai como seu possível sucessor, medíocre, desinteressado, “envergonhado” é o termo, depois de “acadêmico de Direito” como se dizia então. Voltara a Ipojuca como, desculpe o exagero, Modigliani a Livorno depois de uma primeira temporada em Paris, pensando poder escapar da pena máxima: a pintura. Sei, li em Santo Agostinho, não
existir felicidade completa nesta vida, porque efêmera, acabando na morte, e somente possível na eternidade. De fato não se pode chamar de “felicidade” uma coisa sujeita a interrupção, bastando a ideia dessa interrupção para acabar com qualquer presunção de felicidade. Acordar feliz, pois, só depois da morte. Resta-nos essa felicidade menor, circunstancial. Feliz, não se sabe até quando. Mas feliz, ainda assim. Nem que seja, no meu caso, por contraste, pelo oposto daquele outro acordar, em Ipojuca. De certo modo já morri, como morremos todo dia, e todo dia ressuscitamos. De mil formas. Somente acordar sem nenhuma dor física nos oitenta e um, já me dou por feliz. E apresso-me em comemorar. “Antes que seja tarde”, dirão. Também correto é dizer que já morri, pelo menos pedaços, como os dentes, por exemplo, ou o preto dos cabelos. Quanto aos dentes, implantes quebram o galho, o que não havia no tempo de Cervantes nem de Voltaire, e até com vantagens, como não doer, não precisar fazer canal, não
ter medo de abscesso numa raiz. No branco dos cabelos vejo também certa melhora: estou ficando com o cabelo bom, como já observara o poeta Daniel Lima no dele. E veja, raciocine comigo, eu era infeliz no auge da juventude, na maior forma física, tudo no lugar. Logo, não terá sido esse o ponto crucial, pelo menos no meu caso. Como disse Santo Agostinho, “todo mundo vive dizendo ‘ah como era bom quando eu era jovem’ mas ninguém quer voltar a ser mais jovem nem um dia”. Por outro lado, o fato de não possuir bens materiais, a começar pelo dinheiro, não creio ter sido fonte de angústia, porque, se não tinha do que viver, também não tinha despesas, ficando a conta pela receita. Nunca me preocupei em amealhar, havendo até de minha parte uma certa prevenção, um certo temor, de possuir seja lá o que for, sabendo que posses são encargos, avesso de nascença a qualquer tipo de responsabilidade. Sigo a lição de Axel Munthe, O Livro de San Michele: quando você ganhar um dinheiro, distribua imediatamente; se não tiver a quem distribuir, enfie na
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primeira sarjeta. Sempre fiz tudo para não ter nada. Deve ter sido incutido na senzala a doutrina de que tudo no mundo é dos outros, como se temesse ser dono até de mim mesmo. Não foi dito que devemos nos desapegar de nós próprios, que o inútil apego ao eu é fonte de infelicidade, que tudo pertence a Deus? Acordei feliz, primeiro pelo fato em si de acordar; depois, acordar sabendo o que fazer e gostando do que tinha a fazer; feliz porque meu olho abriu e viu a claridade no quarto entrando pelos vidros do alto das portas; porque a tela no cavalete me esperava para ser pintada, a vida aí para ser inaugurada por mim como se fosse hoje o primeiro dia da criação do mundo, o universo inteiro à espera de ser acionado pelo meu singelo ato de despertar, eu ali sentado na cama pronto para o fiat lux, para o pontapé inicial. Nenhuma dúvida no horizonte, nenhuns olhares recriminatórios a mim dirigidos, somente o espírito soberano na face da terra, na ópera do mundo. Naquele tempo em Ipojuca, tudo o que eu fazia parecia errado. Se
Tudo o que outrora eu queria fazer e não podia e por isso me infelicitava, agora me faz feliz. Só não se sabe até quando lia, romance, poesia, lia o que não devia, melhor os da faculdade, os livros do curso de direito que eu havia abandonado, por frouxidão, seguindo a tradição dos homens da minha família, dizia minha mãe, que nunca deram para nada. Escrevia sem necessidade, miolo de pote, desperdício de papel e tinta. Pintar, até que podia, nas horas vagas, contanto não pretendesse fazer disso finalidade. Eu pintava pintura, que não servia para nada (engraçado, mais adiante, mais amadurecido, já tendo largado tudo para pintar, dedicação exclusiva, sem volta, compreendi que nisso consistia a essência da arte: não servir para nada, não estar a serviço de coisa nenhuma, mas aí já é outra
1 jangadas ico de pena de Ivan B
Carneiro, com tinta sépia, 14,5 x 19,7cm, em álbum de Leonice Ferreira da Silva, 1955
discussão; como a de que o homem não serve para nada, a natureza melhor servida sem ele, sem a espécie humana, já houve quem chegasse a tal conclusão). Em todo lugar que estivesse, estava em lugar errado. Tudo que estava fazendo, devia estar fazendo outra coisa. Parecia os versos de Nicolás Guillén: “Se trabalho, me matam/Me matam se não trabalho/ Sempre me matam”. A comida que eu comia, parecia não merecer. A coisa passava até para o direito dos animais, de alimento e abrigo. Já agora é diferente. Tudo o que faço, e são as mesmas coisas, agora me parece certo. E não somente isso, mas o melhor, o máximo, o mais brilhante e curioso é que são as mesmíssimas coisas pelas quais ontem era execrado. Tudo o que outrora eu queria fazer e não podia, e por isso me infelicitava, agora me faz feliz. Só não se sabe até quando. E dependeu de eu encontrar por acaso um ex-colega do Colégio Marista, Ivan Carneiro, na Rua de Santa Cruz, e ele ter perguntado: “Você ainda gosta de desenhar?” .
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ALOISIO MAGALHÃES Vida dedicada à visualidade
1 Doorway to portuguese Livro foi produzido pelo pernambucano junto com Eugene Feldman aLOISIO MAGALHÃES 2 O artista faleceu muito jovem, aos 55 anos
Projeto Memória Gráfica Brasileira trabalha em proposta de reunir vasta documentação sobre o designer e disponibilizá-la em formato digital texto Mariana Oliveira
Pintor, gravurista, desenhista,
designer, ele dá nome a um museu no Recife. Criou a identidade visual de grandes empresas e eventos – a exemplo da Petrobras e da Bienal de São Paulo –, trabalhou incansavelmente pela preservação e reconhecimento da memória e da história cultural brasileiras, tendo papel essencial no reconhecimento de Olinda como Patrimônio da Humanidade pela Unesco. A despeito de todo seu legado, Aloisio Magalhães ainda é um figura relativamente desconhecida.
São poucas as publicações sobre sua trajetória. Talvez, a sua habilidade em trafegar por campos tão distintos como as artes plásticas e a política tenha impedido uma compilação mais simples e rápida de seu trabalho. A obra múltipla desse recifense está espalhada por diversas instituições e acervos particulares, principalmente entre o Recife, Rio de Janeiro e Brasília. Agora, mais de 20 anos depois da sua morte prematura, aos 55 anos, os pesquisadores e designers Julieta Sobral e João de Souza Leite começam
a tocar o Projeto Aloisio, patrocinado pela Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro, cujo objetivo é reunir vasta documentação sobre ele e disponibilizá-la de forma digital num site ligado ao Projeto Memória Gráfica Brasileira. Os dois pesquisadores estiveram no Recife, em setembro, visitando instituições para articular o processo de digitalização. Eles esperam que até o final de 2014 o material esteja disponível para o público. O Projeto Aloisio pretende apresentar a multiplicidade do personagem,
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reunindo sua atuação como artista plástico, designer, mas sem esquecer os documentos (inclusive escritos) de sua atividade política e do material catalogado pelas instituições criadas por ele. Sendo assim, além de encontrar peças de sua autoria, será possível conhecer, por exemplo, os rótulos de cachaça de caju produzidos em Alagoas e documentados por ele. “Esse projeto vai permitir que as pessoas possam visitar o personagem Aloisio nessa sua multidimensão”, resume João de Souza Leite, que atuou como assistente do pernambucano durante anos.
ARTE E DESIGN
Aloisio Magalhães nasceu no Recife, numa família abastada e cheia de políticos (era sobrinho de Agamenon Magalhães). Da mãe, Henriqueta, herdou os hábitos refinados, o prazer pelos sabores e a prática social. Do seu pai, Aggeu Magalhães, médico bastante influente, cuja família tinha origens em Serra Talhada, recebeu o elo com as tradições do Sertão. Desde cedo, Alosio demonstrava inclinação pelo campo artístico e interesse pelos
“Ele experimentou de tudo, fez poemas visuais, gravuras, litografias, pinturas... É um cara ímpar” Paulo Bruscky traços culturais de sua região. Ingressou na Faculdade de Direito, o que lhe garantiria a formação humanística que buscava. Logo se envolveu com o Teatro de Estudantes de Pernambuco, liderado por Hermilo Borba Filho, ficando responsável pela cenografia e figurino de vários espetáculos. Aloisio também pintava. Mantinha ateliê na Rua Amélia, no Recife, onde criava abstrações que buscavam as cores e formas nativas. Segundo Paulo Bruscky, um dos maiores colecionadores e admiradores do legado de Aloisio, ele foi pioneiro, por exemplo, na criação de livros de artistas. “Em 1958, produz o livro Improvisação gráfica, com capa de tecido e com uma experiência tipográfica em cada página.
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Anos mais tarde, em 1971, ele também cria 1/8/16 – a informação esquartejada, livro de artista formado por folhas de outdoor costuradas e encadernadas”, detalha. Outra experimentação muito interessante de Aloisio foi a produção de seus Cartemas, nos quais compunha uma imagem pelo uso de cópias do mesmo cartão-postal, dispostas em posições opostas, criando uma nova unidade visual. “Ele é, para mim, um dos artistas mais importantes. Experimentou de tudo, fez poemas visuais, gravuras, litografias, pinturas... É um cara ímpar”, opina Bruscky, afirmando ter sido influenciado por Aloisio. Entre as raridades colecionadas por Bruscky está o fac-símile do modelo de uma serigrafia produzida para um hotel. Segundo o colecionador, Aloisio recebeu a encomenda de produzir uma grande quantidade de serigrafias, que serviriam à decoração dos quartos do estabelecimento. O cliente se espantou com a rapidez do prazo prometido pelo artista, que disse que em 15 dias estaria com tudo pronto. No dia da entrega, Aloisio apresentou um modelo com algumas lâminas coloridas e móveis. Na
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3 cartemas Artista dispunha cópias de postais em posições opostas Sob encomenda 4 As lâminas coloridas e móveis permitiam múltiplas combinações
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Símbolos 5 Seu trabalho como designer de marcas teve grande repercussão
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medida em que se mexia em alguma delas, uma nova composição surgia. As combinações eram múltiplas e geravam uma infinidade de resultados, que davam conta de todos os quartos do hotel. Para Bruscky, Aloisio também teve um papel fundamental na manutenção de uma tradição gráfica em Pernambuco, quando se juntou aos colegas Gastão de Holanda, José Laurenio de Melo e Orlando da Costa Ferreira, para fundar, em 1954, O Gráfico Amador. O objetivo era “editar sob cuidadosa forma gráfica, textos literários cuja extensão não ultrapasse as limitações de uma oficina de amadores”. Segundo João de Souza Leite, a participação de Aloisio no grupo se dá majoritariamente no campo da ilustração. “Talvez ele tenha feito sozinho apenas dois livros n’O Gráfico Amador”, pontua. “O desenho a bico de pena, a experiência com o linóleo, enfim,
todas as técnicas de representação experimentadas por Aloisio Magalhães nos livros de que participou na primeira fase d’ O Gráfico Amador mais se aproximavam do mundo das artes plásticas, embora ensaiassem, em lúdico modo, a experimentação e as técnicas de impressão”, aponta o pesquisador Guilherme Cunha Lima. Ele e João acreditam que será a viagem aos EUA que mudará os rumos da sua trajetória. Foi durante uma exposição, em 1956, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, que Aloisio Magalhães conseguiu a bolsa do governo americano. Durante o tempo que circulou pelo país, ele se aproximou de Eugene Feldman, figura que vinha desenvolvendo importantes experimentos no campo do design – área que vivia um momento extremamente criativo nos EUA. Eles trabalharam juntos e fizeram duas interessantes experimentações: os livros Doorway to portuguese e Doorway to Brasília.
“Quando retorna dessa viagem, Aloisio decide abandonar o sucesso que estava tendo como artista plástico. Ele não reconhece validade na circulação da mercadoria de arte entre quatro paredes e quer dar um cunho mais social ao seu trabalho. Por isso, opta pelo design”, explica João de Souza Leite. É nesse momento que o pernambucano decide migrar para o Rio de Janeiro, onde fundará, junto com Artur Lício Pontual e Luiz Fernando Noronha, o escritório MNP, no qual atuou em todas as frentes: “arquitetura, exposição, símbolos, logotipos, impressos, embalagens, o que se apresentasse”. Porém, ainda que tenha se afastado das artes plásticas, Aloisio não deixou de estar ligado a ela. O pintor José Cláudio afirma, em texto publicado no livro A herança do olhar – o design de Aloisio Magalhães, que nenhuma de suas atividades estava afastada do seu talento para a pintura: “Do pintor de paisagens e abstrações que se transformou em artista gráfico e designer; do programador visual criador de logotipos e símbolos ao criador do novo padrão monetário brasileiro; desse criador de símbolos ao fundador do Centro Nacional de Referência Cultural, já preocupado com a identidade da cultura do país;
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e, finalmente, como secretário de Cultura, ao inspirador da reformulação da política cultural do Ministério da Educação e da Cultura. Essa evolução inclui um aspecto bem específico do homem Aloisio: visualidade”.
MEMÓRIA
O olhar sensível e o apreço pela visualidade fizeram de Aloisio um grande pesquisador da cultura e do patrimônio nacional. Já em seu tempo, ele fazia um trabalho parecido com o hoje feito pelo Memória Gráfica Brasileira, que agora busca reunir sua obra. Aloisio Magalhães talvez tenha sido um dos primeiros a lançar seu olhar sobre as peças produzidas espontaneamente pelo povo, percebendo que ali se encontravam elementos do design sendo produzidos por pessoas que talvez nem soubessem que “faziam design”. Aloisio tinha preocupação e atenção especial por essa produção, lutou para documentá-la e valorizála. Nesse processo, criou importantes órgãos, tais como o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), fundado em 1975, que tinha como principal objetivo mapear, documentar e entender toda a diversidade cultural do país. O CNRC reunia os bens e processos culturais brasileiros num grande banco de dados. A sua atuação também foi fundamental para a compreensão mais ampla e moderna do patrimônio histórico nacional, que abarcaria as contribuições de diferentes classes sociais e etnias formadoras do Brasil. Defendia que as variáveis quantitativas eram insuficientes para a criação de modelos de desenvolvimento, via que o crescimento econômico deveria estar aliado a objetivos socioculturais. “O verdadeiro processo, o verdadeiro desenvolvimento de uma nação baseia-se em, harmonicamente, dar continuidade àqueles componentes que lhe são próprios, aos indicadores do seu perfil ou da sua fisionomia e, portanto, identidade”, resumia. João de Souza Leite lembra que, numa reunião sobre obras do metrô de Brasília, Aloisio observou que uma determinada quantia financeira, numa obra como aquela, era irrisória,
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só conseguiria viabilizar 100 metros de metrô. Mas defendia que se essa mesma quantia fosse investida na cultura o retorno seria imensurável. Aloiso Magalhães lutava a favor de um desenvolvimento harmonioso e respeitoso da memória cultural. Já naquela segunda metade do século 20, destacava que era preciso atentar para as pequenas e médias cidades. Afinal, as grandes já viviam um certo descontrole. Nesses universos menores, porém, ainda era possível agir para que o desenvolvimento se desse de maneira mais harmoniosa. Foi ainda dentro dessa sua atuação voltada para o patrimônio que ele tornou-se figura fundamental para que Olinda recebesse da Unesco o título de Patrimônio Cultural da Humanidade. Para comprovar os atributos da cidade, montou um álbum de litogravuras – feitas na oficina Guaianases –, no qual
documentava as ruas, as vistas e paisagens da cidade. Aloisio pretendia utilizar o material durante a argumentação pelo título, que seria realizada em Paris, em junho de 1982. O álbum de fato foi peça importante para a conquista do título, mas ele faleceu em Veneza, pouco antes de seguir para Paris para defendê-lo. Por isso, Paulo Bruscky não entende como Olinda não presta homenagem a Aloisio. “Não tem um monumento, um marco, um registro. Até as matrizes do álbum foram perdidas”, lamenta. O artista prepara-se para lançar, este mês, o livro Arte e multimeios, no qual dedica um espaço importante ao legado do artista/designer e à memória gráfica pernambucana. Espera-se que a iniciativa de Bruscky somada ao Projeto Aloisio ajudem a lançar sobre ele o mesmo olhar generoso e sensível que lançou sobre a cultura brasileira.
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Artigo
colagem: janio santos
HANS DA NÓBREGA WAECHTER ICONOGRAFIA DO PAPEL-MOEDA BRASILEIRO Observar as imagens das cédulas
do papel-moeda brasileiro nos conduz a um passeio histórico e cultural por aproximadamente três séculos atrás. Com uma economia tradicionalmente instável, o Brasil registra muitas emissões de papel-moeda, diferentemente de outros países que produziram poucas emissões em decorrência de uma economia estabilizada. Mesmo circulando nas mãos da maioria das pessoas todos os dias, as informações contidas nas cédulas são minimamente observadas pelos usuários. As cores das cédulas é a linguagem visual mais memorizada, porque é através dela que muitas pessoas distinguem os valores das mesmas. O seu formato é outro recurso gráfico diferenciador dos valores, mas, se perguntarmos quais são as imagens presentes, provavelmente, poucos saberão responder. O papel-moeda, enquanto artefato gráfico, sempre apresentou propostas visuais elaboradas, indicando que houve uma coerente intervenção do design gráfico e da informação, mesmo em épocas em que o criador da proposta visual era um designer não especialista, sem formação técnica ou acadêmica, conhecendo os fundamentos da concepção do produto através da prática e da oralidade. No que se refere às imagens, elas sempre foram, considerando a hierarquia da informação, o elemento com maior destaque na cédula; geralmente presentes nas duas faces e, em alguns casos, em grande número. A área central da cédula é o seu lugar privilegiado e, muitas vezes, a imagem usada passa a ser o nome popular dado a ela em relação ao seu valor, como no
caso da cédula de mil cruzeiros com a imagem do barão do Rio Branco, que era chamada de “barão”. As imagens começaram a ser usadas no papel-moeda na medida em que a tecnologia gráfica para a produção do mesmo evoluiu. As primeiras emissões, em torno de 1810, apresentavam poucas imagens, produzidas em clichês tipográficos, mas havia uma predominância de ornamentos. As cédulas (bilhetes) para o troco de cobre, impressas em uma só face e em forma de talão com canhoto, apresentavam como única imagem o brasão do Brasil Império e pequenas imagens produzidas em clichês. Antes da efetivação da Casa da Moeda do Brasil como única responsável pela emissão do papelmoeda, por vários períodos, as cédulas foram impressas fora do Brasil, e as ilustrações criadas por artistas gráficos das casas americanas, francesas
e inglesas não eram relacionadas às marcas culturais, históricas, geográficas, étnicas ou políticas do Brasil. As imagens eram muito semelhantes às criadas para as cédulas dos países europeus, influenciadas pela estética dos movimentos artísticos romântico e realista.
PERSONAGENS HISTÓRICOS
As ilustrações principais mais recorrentes nas cédulas do papelmoeda são as personagens da história do Brasil. Também as deusas da mitologia grega, sabedoria, justiça. Governantes, mártires, políticos, escritores, pintores e músicos. Fatos históricos, paisagens nacionais, reproduções de obras de arte, etnias e animais. Quanto às ilustrações secundárias, existe uma grande variedade de temas e, geralmente, são integradas a vários ornamentos – moirés e guilhochés
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– e elementos esquemáticos (brasões, fitas, arcos, listéis etc.). A partir de 1942, inicia-se um período de emissões de muitas séries de papel-moeda, decorrentes dos altos índices de inflação, que não correspondiam aos valores presentes nas cédulas. Em 40 anos, foram cerca de oito emissões: Cruzeiro (1942/1967), Cruzeiro Novo (1967/1970), Cruzeiro (1970/1986), Cruzado (1986/1989), Cruzado Novo (1989/1990), Cruzeiro (1990/1993), Cruzeiro Real (1993/1994) e Real (1994/2013). Dadas todas essas emissões, o número de ilustrações usadas nas cédulas ganhou em diversidade, como também na qualidade da reprodução das ilustrações, graças ao avanço da tecnologia gráfica e do design da informação, que evoluiu com o
As ilustrações principais da maioria das cédulas de papelmoeda no Brasil são de personagens da história nacional tempo, situando adequadamente a ilustração na hierarquia das informações das cédulas. Nesse período, pinturas que registraram fatos importantes do Brasil, como “Lei Áurea”, “Grito do Ipiranga” e “Primeira Missa do Brasil” foram reproduzidas nos anversos das cédulas. Tiradentes e seu enforcamento e Santos Dumont e o 14 Bis também foram ilustrados nas notas, referendando o status das personagens que fazem a história do Brasil.
Em 1966, Aloisio Magalhães (1927-1982) vence o concurso das novas cédulas para o padrão monetário Cruzeiro e, em março de 1970, inicia-se uma nova fase de utilização de imagens no papelmoeda. As ilustrações são inseridas em medalhões e retratam desde personalidades, como Dom PedroI e II, Deodoro da Fonseca, a obras de Portinari e Aleijadinho. Uma das emissões mais criativas entre as realizadas nas quatro últimas décadas do século passado foi a série denominada “Carta de baralho”, de autoria do designer pernambucano Aloisio Magalhães, que propiciava a mesma imagem da cédula para quem a oferecia e para quem a recebia, através do rebatimento vertical das imagens e dos valores. As notas do padrão monetário Real, que circulam na atualidade, foram criadas em 1994 e têm como temática principal, para as ilustrações do verso das cédulas, as espécies de fauna brasileira em extinção (tartarugamarinha, garça, arara, mico-leãodourado, onça pintada e garoupa), em sintonia com viés da sustentabilidade. Elas chamam a atenção para um dos grandes problemas ambientais, que é o desaparecimento de vários animais em todo o mundo. Em todas as cédulas do Real, a imagem da face principal é a efígie da República, a informação de maior tamanho, que ocupa o seu lado direito. Poucas pessoas reconhecem a imagem que representa a República e, curiosamente, as do verso têm direção de leitura vertical, diferente da frente, que é horizontal. Na mais recente emissão do Real, a partir de 2012, as imagens do verso das cédulas voltam ao sentido horizontal. Se juntarmos em forma de bloco todas as cédulas emitidas no Brasil, de forma cronológica, teremos como resultado um livro de história do Brasil ilustrado. Tudo que mais se destacou na história da política, economia, turismo, música, literatura, artes plásticas, bem como as datas mais importantes para o país estão retratados ali. Frutos de uma economia pobre, mas rica na qualidade iconográfica, as cédulas constituem uma legítima memória brasileira.
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Criaturas
con ti nen te
Vinicius de Moraes por Cavalcante
Marcus Vinicius de Moraes (1913-1980) era conhecido como o Poetinha, pela amabilidade e por seus poemas e suas letras que exaltavam o amor. O diplomata e jornalista foi parceiro musical de Tom Jobim, Chico Buarque, Baden Powell, Carlos Lyra e Toquinho, com o qual compôs Tarde em Itapoã e Como dizia o poeta. Ganhou fama de boêmio, pelas farras frequentes em casa e nos bares, e também de conquistador, por ter se casado nove vezes. co n t i n e n t e o u t u b r o 2 0 1 3 | 8 8
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Ministério da Cultura apresenta:
IX Festa Literária Internacional de Pernambuco Homenageado: José Lins do Rego
14 a 17 de Novembro Praça do Carmo - Olinda
Estamos na rede
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PRAGA A CIDADE DE FRANZ KAFKA E SEUS FANTASMAS CONTINENTE
Passeio de Buggy
Rede Hoteleira
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Gastronomia
ADAPTAÇÃO EMPAREDADA DA RUA NOVA VIRA MINISSÉRIE DE TV
E MAIS GIL VICENTE | TATUAGEM, DE HILTON LACERDA | PIMENTA | CAU GOMEZ ALOISIO MAGALHÃES | AVALOVARA, DE OSMAN LINS | AS MODAS DO POP CAPA_3 edwardOUT.indd 5
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