Continente #157 - O Brasil em Hollywood

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# 157

#157 ano XIV • jan/14 • R$ 11,00

continente

O BRASIL em hollywood

a pernambucana rebecca da costa é uma das novas promessas da meca do cinema

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REPRODUÇÃO

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aos leitores Por mais que os cinemas italiano, francês, alemão e espanhol exerçam grande fascínio sobre os espectadores, o norte-americano ainda é o que, sem dúvida, tem mais potência como máquina de produzir sucessos. Por isso é de se esperar que o maior número de títulos em listas dos “melhores filmes de todos os tempos” pertença aos Estados Unidos, assim como a maior quantidade de renomados diretores, roteiristas e atores. Mas esse poderio não surgiu agora. Vem da primeira metade do século 20, época em que o mundo aprendeu a idolatrar a cultura americana, sua língua, música, moda, seu comportamento, estilo, tudo “vendido” a partir do cinema e sua difusão mundial através das telonas. Foi nesse ambiente que se passou a venerar artistas – seus rostos, corpos, vozes, gestos, atitudes –, algo que ia além do que o rádio proporcionara até então. A sedução exercida pelo cinema norteamericano atraiu, claro, profissionais de diversas partes do mundo. Para Hollywood, a meca do cinema industrial, migraram cineastas como os ingleses Alfred Hitchcock e Charles Chaplin, atores como o alemão Conrad Veidt, o mexicano Anthony Quinn, a sueca Liv Ullmann...

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Hoje, o Brasil é um dos países que exportam talentos para aquela indústria cinematográfica, relação que começou com o ator Raul Roulien, nos anos 1930, e a cantora e atriz Carmen Miranda, nos anos 1940. O trânsito dos nossos profissionais em Hollywood aumentou nas últimas décadas, possivelmente impulsionado pela ótima safra do cinema nacional, na qual se insere Cidade de Deus, presente em várias listas dos best movies of all times. Uma das novas apostas do nosso país a pisar em Los Angeles é de Pernambuco, a atriz e modelo Rebecca da Costa, que acaba de atuar com John Cusack e Robert De Niro no suspense The bag man, previsto para estrear neste semestre. Rebecca tem agora a sorte de estar numa Hollywood com bem menos preconceito, estereótipos e clichês, no que se refere à atuação de seus elencos, sobretudo os atores estrangeiros. Não foi por outro motivo – que a manutenção de estereótipos – que Carmen Miranda tentou tirar, em vão, turbante e balangandãs. Agora, os intérpretes egressos da América Latina, como Rodrigo Santoro, já sentem os bem-vindos sinais de mudança.

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sumário Portfólio Imarginal

6 Cartas

7 Expediente

8 Entrevista

58 Leitura

Zé Limeira Poeta do Absurdo continua absurdo e inventivo, 60 anos depois de sua morte

+ colaboradores Aurora Dickie Bailarina clássica brasileira conta os passos dados até chegar ao The Washington Ballet

64 Entremez

20 Balaio

Pobres películas! O estudo A sobrevivência dos filmes mudos norte-americanos: 1912-1929 dá conta da baixa preservação da memória fílmica

36 Perfil

Jean-Louis Comolli Crítico francês, que já comandou o Cahiers du Cinéma, fala do papel das imagens na atualidade

56 Cardápio

Inglaterra País tem feito o possível para desconstruir o mito de que se come mal na terra da rainha

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Ronaldo Correia de Brito A metafísica da porta

70 Sonoras

Pará Intercâmbio musical entre o estado do Norte e Pernambuco tem rendido a projeção de talentos como a bela Lia Sophia

12 Conexão

Iberê Camargo Dos mais renomados artistas plásticos brasileiros, gaúcho ganha exposição virtual no Google Cultural Institute

Contradizendo as tendências individualistas de hoje, os desenhistas Fernando Moraes e Raone Ferreira trabalham a quatro mãos em grandes desenhos e na body art

78

Matéria Corrida

José Cláudio Gilvan Samico (1928-2013)

80 Visuais

Estudo No livro O avesso do imaginário – arte contemporânea e psicanálise, pesquisadora analisa relações entre os dois campos

86 Artigo

Amanda Martinez Elvir A cidade dos mortos e o processo de favelização

88 Criaturas

Nássara Lamartine Babo

Pernambucanas Polytheama

Enquanto a cidade se industrializa, os moradores de Goiana lutam pela manutenção de instituições ligadas à sua história, como o centenário cinema

48 Capa foto Morgan Chapman/Divulgação

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Especial

Viagem

Não é de hoje que artistas brasileiros buscam projeção na indústria do cinema norte-americana. A diferença é que agora é possível atuar sem cair em estereótipos

Parte das Ilhas Canárias, este território vulcânico ganhou destaque no mapamúndi depois que o escritor português José Saramago elegeu-o como sua casa

Claquete

Palco

Filmes que combinam forma documental e conteúdo ficcional de terror são um subgênero de sucesso mundial, cujo centro produtor é o cinema independente dos EUA

Janeiro de Grandes Espetáculos completa 20 anos com o mérito de ter promovido o retorno do público local aos teatros e ter feito circular produções do estado e do país

Hollywood

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Found Footage

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Lanzarote

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Festival

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cartas gosto e produzindo coisas muito bacanas. Para todos os designers, artistas, pintores, gente que apenas rabisca e amantes da arte em geral vale muito dar uma lida e se inspirar. Parabéns pelo trabalho e pela matéria. BRUNO PARMERA RECIFE–PE

Dezembro

DO INSTAGRAM

Bel Andrade Lima Corri para a banca de revistas mais próxima aqui de casa, quando soube que a seção Portfólio da Continente era com Bel Andrade Lima. Quem viveu o Carnaval de 2013 viu o quão as incríveis ilustrações dela contribuíram para deixar uma festa linda ainda mais bonita. Tenho o trabalho de Bel Andrade Lima como referência e sempre que posso o acompanho. Fico ainda mais feliz de ver gente da mesma terrinha com tanto bom

Gostaria de parabenizar a todos que fazem a Continente pela excelente edição de dezembro. Fez-nos questionar sobre o que queremos para 2014, do que realmente precisamos. Do editorial às matérias, ótimos textos. ROBERTA CARDOSO RECIFE–PE

Sugestões Ficaria muito satisfeito de ver, em futuras edições da Continente, mais espaço para a poesia nordestina. Acho, ainda, que a revista poderia lançar alguns concursos literários. UBIRACY OLÍMPIO RECIFE–PE

resposta da Redação Anotamos a sugestão, Ubiracy, e aproveitamos para lembrar duas coisas. Todo mês, na seção Leitura, comentamos a produção literária em geral; nesta edição, por exemplo, nosso assunto é a poesia de Zé Limeira, o Poeta do Absurdo. Também, que a Companhia Editora de Pernambuco, responsável pela publicação da Continente, realiza, há três anos, o Concurso Cepe de Literatura Infantil e Juvenil. O resultado da terceira edição já foi anunciado e, em breve, será lançado o edital da quarta edição. Mais uma: os assinantes da revista recebem, gratuitamente, todo mês, junto com ela, um exemplar do jornal Pernambuco, este, totalmente dedicado à literatura. ERRATA O nome da repórter Isabelle Câmara, que assinou a matéria sobre o Maracatu Leão Coroado, na edição de dezembro (nº 156), foi grafado de maneira incorreta na seção de Colaboradores.

Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

(81) 3183 2780

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Site

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colaboradores

Frederico Feitoza

Ricardo Viel

cleodon coelho

Rodrigo Salem

Jornalista, especialista em jornalismo cultural, doutor em Comunicação

Jornalista, colabora com diversas publicações brasileiras, entre as quais Valor Econômico e O Globo

Jornalista, roteirista de TV e biógrafo da novelista Janete Clair e da atriz Lilian Lemmertz

Repórter de cinema da Folha de S.Paulo, colaborando de Los Angeles

e MAiS Alexandre Figueirôa, jornalista, crítico de cinema. Amanda Martinez elvir, arquiteta, formada no México e nos EUA. Ana Maria Bahiana, jornalista, vive há cerca de 20 anos em Los Angeles de onde faz reportagens e comentários sobre cinema. chistianne Galdino, jornalista, produtora e professora universitária. Daniel Buarque, jornalista e autor do livro Brazil, um país do presente. Fellipe Fernandes, jornalista. Gilson oliveira, jornalista. iezu Kaeru, fotógrafo. nássara, in memoriam, artista gráfico. pollyanna Diniz, jornalista, crítica de teatro e colaboradora do blog Satisfeita, Yolanda? Rodrigo carreiro, jornalista, crítico de cinema e professor universitário.

GoVeRno Do eStADo De peRnAMBUco

SUPeRIntenDente De eDIÇÃo

contInente onLIne

atenDImento ao aSSInante

goVeRnaDoR

Adriana Dória Matos

Olivia de Souza (jornalista)

0800 081 1201

Eduardo Henrique Accioly Campos

SUPeRIntenDente De cRIaÇÃo

Juan Ropero (webdesigner)

Fone/fax: (81) 3183.2750

SecRetÁRIo Da caSa cIVIL

Luiz Arrais

assinaturas@revistacontinente.com.br contatoS com a ReDaÇÃo

Francisco Tadeu Barbosa de Alencar ReDaÇÃo

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(editoras-assistentes), Luciana Veras

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Bráulio Mendonça Menezes

(repórter)

DIRetoR De PRoDUÇÃo e eDIÇÃo

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PRoDUÇÃo gRÁfIca

Ricardo Melo

Clarissa Macau, Gabriela Almeida, Marina

Júlio Gonçalves

DIRetoR aDmInIStRatIVo e fInanceIRo

Suassuna e Laís Araújo (estagiárias)

Eliseu Souza

Bráulio Mendonça Menezes

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

Sóstenes Fernandes

Everardo Norões (presidente)

aRte

PUBLIcIDaDe e maRKetIng

e PaRQUe gRÁfIco

Lourival Holanda

Janio Santos e Karina Freitas (paginação)

e cIRcULaÇÃo

Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro

Nelly Medeiros de Carvalho

Sebastião Corrêa (tratamento de imagem)

Armando Lemos

Recife/Pernambuco

Pedro Américo de Farias

Joselma Firmino de Souza (supervisão de

Alexandre Monteiro

CEP: 50100-140

diagramação e ilustração)

Rosana Galvão

Fone: 3183.2700

Gilberto Silva

Ouvidoria: 3183.2736

Daniela Brayner

ouvidoria@cepe.com.br

conSeLHo eDItoRIaL:

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE ReDaÇÃo, aDmInIStRaÇÃo

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AURORA DICKIE

“A opção da maioria ainda é a carreira internacional” Pernambucana lembra a sua trajetória profissional até chegar ao The Washington Ballet, avalia o complicado mercado da dança clássica no Brasil e fala de sua experiência em palcos estrangeiros texto Christianne Galdino

con ti nen te

Entrevista

No imaginário popular, a figura da bailarina continua sendo ícone de beleza, delicadeza e romantismo. Desejo de gerações inteiras de meninas, o balé clássico chega ao século 21 conservando uma aura de glamour, inevitavelmente associada ao nem sempre confortável rótulo de arte elitista. Porém, a realidade de quem vive profissionalmente o sonho de ser bailarina vai muito além desse luxuoso estereótipo. A busca da excelência técnica já seria motivo suficiente para explicar a rotina de tanto esforço dos que decidem levar a vida sobre as sapatilhas. “E, no caso da dança, é preciso começar bem cedo, pois estamos lidando com habilidades corporais ligadas ao desenvolvimento físico do ser humano”, comenta a experiente professora de dança clássica Jane Dickie, mãe de Aurora, destaque no elenco principal do The Washington Ballet – TWB. “Nunca interferi na sua decisão em ser ou não uma bailarina profissional, apenas fazia questão de orientá-la, dizendo sempre: se você vai fazer algo para construir o futuro, que seja bem-feito desde o início”, recorda

ela, que também deu aulas à filha no Studio de Danças do Recife, onde hoje atua como professora, coordenadora pedagógica e diretora artística. Do Recife, Aurora guarda boas lembranças de uma infância feliz nas areias da praia de Boa Viagem, nas “festas de São João, com direito a fogos de artifício e traque de massa”, e, é claro, das aulas de balé; tudo regado “a bolo de rolo e tapioca”, as suas iguarias preferidas do cardápio local. Uma vez por ano, Aurora vem descansar e matar as saudades, mas ainda não teve a chance de se apresentar em solo pernambucano e parece que o Brasil não é um destino habitual das turnês do TWB (a companhia norte-americana nunca se apresentou no país). Aurora esteve recentemente apresentando-se no Teatro Alfa, em São Paulo, dançando em evento comemorativo do Youth America Grand Prix, concurso que, em 2007, serviu-lhe de passaporte para a carreira internacional. Alvo de muitas críticas e polêmicas discussões, esse tipo de evento competitivo continua servindo de vitrine para os tantos

talentos da dança clássica que o Brasil tem produzido nos últimos anos. “Dançamos muito bem neste país, me refiro à qualidade técnica do nosso bailarino que almeja ser um profissional de carreira. Temos excelentes escolas e mestres para isso”, declara Jane. “A qualidade técnica dos bailarinos brasileiros está muito alta, tanto que podemos ver o destaque que temos nos principais concursos internacionais de dança”, endossa Aurora. Mas, apesar desses indicativos positivos, tanto filha como mãe acreditam que ainda falta no país uma política cultural transparente e sólida, capaz de abrir um mercado de trabalho estável para os bailarinos e outros artistas profissionais. “É difícil viver da arte em um país marcado por histórias de corrupção, despreocupação com a estética, e carente de uma política educacional consistente. A tal da economia criativa, que é atualmente uma poderosa força global, ainda não se consolidou por aqui. Dentro da nossa realidade cultural, a criação de companhias de balé profissional

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andré ferreira/divulgação

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e decidido por essa carreira foi, sem dúvida, uma escolha muito pessoal. CONTINENTE Como foi sua formação até chegar ao The Washington Ballet? Quais suas principais referências e mestres? AURORA DICKIE Foi uma longa estrada. Como sabe, eu comecei com a minha mãe Jane Dickie, no Recife. Quando ainda era criança, mudamos para o Rio Grande do Sul para ficar mais perto da nossa família. Continuei as aulas de balé com minha mãe e também fiz ginástica rítmica por uns dois

fotos: divulgação

infelizmente ainda é vista como despesa, e não como investimento. O que temos, há muitos anos, são escassas iniciativas privadas, que oferecem condições de profissionalização a um número bem reduzido de companhias que, na maioria das vezes, trabalha por um tempo determinado, sem uma estabilidade efetiva para os seus bailarinos”, analisa Jane Dickie, que já testemunhou a luta e a partida de muitos alunos rumo a uma carreira internacional de balé clássico, como fez sua filha Aurora.

con ti nen te

o Youth America Grand Prix em Nova York, em 2007, que ganhei a medalha de bronze e fui convidada, pelo diretor Septime Webre, a integrar a companhia pré-profissional do The Washington Ballet, chamada de Studio Company. No ano seguinte, fui promovida para o elenco principal do The Washington Ballet e comecei a minha carreira profissional propriamente dita. Na época, eu estava com 19 anos. CONTINENTE Durante muito tempo, a carreira internacional era a única

“Comecei com minha mãe Jane Dickie (à dir.), no Recife. Aos 11 anos, entrei para a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil. Estudei lá cinco anos e considero a minha principal formação”

Entrevista Em entrevista à Continente, Aurora Dickie fala sobre sua carreira, a formação, a rotina na companhia americana, e analisa o panorama brasileiro para os profissionais de dança, comentando sobre a rotina de trabalho. CONTINENTE Filha de uma bailarina e professora de balé clássico, você se decidiu por essa carreira profissional desde a infância? AURORA DICKIE Sim. Desde a infância, o balé era meu mundo: frequentava a escola de dança da minha mãe quase todos os dias, assistia a vídeos, escutava música clássica e dançava até sozinha em casa. Ter tido minha mãe como exemplo certamente me ajudou a entrar nesse meio, mas ter continuado

anos. Quando completei 11, entrei para a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, no ano da sua inauguração (2000). Estudei lá por cinco anos consecutivos e considero a minha principal formação. Tive como mestra a professora Galina Kravtchenko, e também fui selecionada para um estágio no Teatro Bolshoi de Moscou, quando pude fazer aulas com a companhia e conhecer mais de perto o dia a dia de bailarinos profissionais. Fiquei fascinada ao conhecer pessoalmente a bailarina Nina Ananiashvili, que eu acompanhava e admirava por vídeos. Sempre tive como ídolo a bailarina Sylvie Guillem que, para mim, é referência e inspiração constante. Depois de concluir a formação na Escola do Teatro Bolshoi, cheguei a dançar em algumas outras escolas no Rio de Janeiro e em São Paulo, e comecei a participar de alguns concursos de dança no Brasil e no exterior. Foi num desses concursos,

possibilidade para os brasileiros que queriam ser bailarinos clássicos. Você acredita que essa realidade mudou? Por quê? AURORA DICKIE Eu acredito que para os brasileiros que querem seguir carreira como bailarinos clássicos essa realidade, infelizmente, ainda não mudou totalmente. Apesar de o balé ter crescido muito no Brasil nesses últimos anos, o número de companhias clássicas profissionais ainda não cresceu o suficiente para suprir a demanda de bailarinos que o país tem e para mudar esse cenário. O que existe são escolas que criam grupos com os alunos mais avançados e fazem uma ou duas produções clássicas por ano, mas, infelizmente, esses grupos não podem oferecer condições adequadas para o bailarino se sustentar financeiramente. As companhias clássicas profissionais que pagam salário mensal são raríssimas, limitando o número de bailarinos que

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conseguem permanecer trabalhando no Brasil, por isso a opção da maioria é a carreira internacional mesmo. CONTINENTE Você acompanha a realidade da dança no Recife e no Brasil? O que destacaria de positivo nesse cenário? AURORA DICKIE Acompanho o que posso, geralmente pelas mídias sociais e internet. No geral, a dança está ganhando mais espaço no Brasil, não só entre os amantes dessa arte, mas entre a população em geral. Hoje, acho que existem não só mais

é muito intenso, estamos sempre em ensaios ou em temporada. CONTINENTE Quem financia e como é a estrutura administrativa da companhia? AURORA DICKIE A companhia é uma associação sem fins lucrativos, coordenada por um quadro de diretores cuja principal função é angariar fundos para o financiamento das atividades. Esses fundos são arrecadados por meio de doações de pessoas físicas e jurídicas; venda de assinaturas e ingressos para os espetáculos; ou

oportunidade de mostrar seu talento e habilidades aos diretores das principais companhias profissionais do mundo. É um meio de conquistar bolsa de estudo, contrato de estágio ou trabalho e, também, do bailarino poder ver o que acontece no panorama internacional da dança, fazendo intercâmbio e trocando informações com outros profissionais da área. Na vida do bailarino, principalmente do estudante, o concurso deve servir como um meio para iniciar ou impulsionar uma carreira profissional.

“O concurso deve ser um meio para iniciar ou impulsionar uma trajetória profissional. Mas esses eventos competitivos não devem ser o objetivo principal da carreira de um bailarino” bailarinos, mas também um maior e mais diverso público para a dança no Brasil. E isso é muito animador! CONTINENTE Como é sua rotina no The Washington Ballet? AURORA DICKIE Começamos o dia às 9h30, com uma aula de balé, e depois temos seis horas de ensaios, com um intervalo de uma hora para o almoço. Montamos e apresentamos cerca de cinco programas diferentes por ano, além da temporada do espetáculo Quebra-nozes, que acontece todo mês de dezembro. Agora, por exemplo, acabamos de emendar a temporada do Giselle com os ensaios e apresentações do Quebra-nozes. Geralmente, temos apenas cinco semanas para preparar cada programa e apresentamos, em média, oito vezes cada obra, com exceção do Quebra-nozes, cuja temporada inclui 35 apresentações. Ou seja, o ritmo

através de festas e eventos de gala, promovidos pela diretoria com essa finalidade. A companhia já chegou a receber apoio financeiro da prefeitura de Washington há alguns anos, mas não recebe mais, então, investe nessas estratégias e assim se mantém, realizando suas turnês internacionais com os recursos levantados por meio dessas ações, sem depender de incentivo do governo ou de algum edital específico. CONTINENTE Você acumula no currículo pelo menos dois grandes prêmios, a medalha de bronze no Youth America Grand Prix (2007), e no Capetown International Ballet Competition (2012). Na sua opinião, qual a importância e o papel desses eventos competitivos para a dança? AURORA DICKIE Na minha opinião, esses eventos continuam sendo muito importantes para o cenário da dança. Eles funcionam como uma vitrine para os bailarinos serem vistos, terem a

Mas, de jeito nenhum, esses eventos competitivos devem ser o objetivo principal da carreira de um bailarino. Ganhar um prêmio ou medalha deve ser só um meio de dar visibilidade, e nunca a finalidade da sua arte. CONTINENTE Que recomendações você daria a alguém que sonha com a carreira de bailarino clássico? AURORA DICKIE Procure uma boa escola de balé e um professor competente com experiência comprovada, boa formação e em quem você confie. Feito isso, é só estudar e trabalhar muito! Sua dedicação, disciplina, estudo, suor e força de vontade é o que determina 99% do seu sucesso profissional. Por isso, não tem jeito, tem que trabalhar muito e sempre. O caminho é longo e demorado, mas se é esse o seu objetivo, e sua paixão, tudo vale a pena, tudo será possível.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

con ti nen te

MARIANNE PERETTI

PARAENSE

Desde dezembro, quem vem ao Recife tem a oportunidade de conhecer um pouco do trabalho da franco-brasileira Marianne Peretti. Há 50 anos radicada no país, a artista, considerada uma mestra na arte do vitral moderno, ainda não foi devidamente reconhecida. Para atuar na reversão desse quadro, além da matéria desta edição, disponibilizamos para os internautas reportagem especial sobre vitrais publicada em dezembro de 2011 ( nº 132). Nela, apresentamos a técnica e detalhamos a trajetória de Marianne Peretti.

Assista aos clipes de músicas de sucesso da nova geração de músicos e intérpretes do Pará Lia Sophia (Ai, menina), Gaby Amarantos (Xirley) e Felipe Cordeiro (Legal e ilegal).

Conexão

TEATRO Confira a programação completa do festival Janeiro de Grandes Espetáculos, que, em sua vigésima edição, fica em cartaz entre 8 e 26 de janeiro.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais

TECNOLOGIA

MOBILIDADE

MISSIVAS

ARQUITETURA

Site pode ser utilizado como sistema de busca para materiais didáticos

É por aí é um projeto que une audiovisual e transporte público

Maratona de relatos chama a atenção para os direitos humanos

Projetos construtivos contemporâneos são destaque neste portal

escoladigital.org.br

eporai.com

maratonadecartas.org.br

archdaily.com.br

Os avanços tecnológicos têm se tornado aliados da educação. Não é mais espantoso ver uma criança de um ano brincando com um tablet ou smartphone. A educação tira proveito disso para elaborar ensino interativo que prenda a atenção dos estudantes. Na Escola digital, é possível realizar uma busca por materiais didáticos que utilizem as novas tecnologias por matéria, assunto ou mesmo por tipo de plataforma que se deseje utilizar. Aplicativo para aprender verbos em inglês, vídeos interativos sobre a história da Segunda Guerra Mundial ou um minijogo para memorizar a tabuada estão entre as possibilidades.

Quão paradoxal é um motorista de ônibus – que tem direito à gratuidade no transporte público – optar pela bicicleta como meio de transporte? Eis uma justificativa para a escolha: um percurso que levaria de uma a uma hora e meia, se percorrido de carro ou ônibus, não ultrapassa os 30 minutos, de bicicleta. O Projeto É por aí pretende apresentar ao público pessoas como o motorista Djalma José. Dividide-se em 10 capítulos, tendo já sido publicados no site quatro deles e seis exibidos na estreia do projeto. Nesses episódios, a cidade e as possibilidades de transportes serão o mote de uma discussão importante para todos.

Considerado o maior evento de direitos humanos do mundo, o Maratona de Cartas acontece uma vez ao ano desde 2001, quando um grupo polonês de ativistas decidiu, durante 10 dias do mês de dezembro, relatar histórias de comunidades e indivíduos que têm seus direitos violados, para chamar a atenção das autoridades. Em 2013, 60 países participaram do evento. No Brasil, 13 cidades receberam atividades e programação específicas, mas pessoas de outras partes do país podem participar enviando cartas para o site. O evento é organizado pela Anistia Internacional.

Fundado em 2008, o ArchDaily é um portal formado por arquitetos do mundo todo, que divulgam trabalhos de outros arquitetos e escritórios renomados. Disponível em quatro versões (Mundo, México, Brasil e HispanoAmericano), nele, é possível ter acesso a notícias sobre projetos de habitação, mobilidade e urbanismo que tiveram sucesso, entrevistas com os melhores arquitetos do ano, além de obter informações sobre concursos para estudantes e profissionais da área, e publicações de livros e artigos. Nomes como os de Frederico Negro, Thomas Phifer e Hani Rashid são uma constante no site.

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blogs GLAMOUR E DECADÊNCIA bibliadascelebridades.tumblr.com

A dicotomia entre sucesso e fracasso cai bem em certas celebridades. O tumblr Bíblia de celebridades é, na verdade, um lugar em que se veem antigos conhecidos do público sendo rememorados. Uma foto de um momento peculiar e uma descrição minimalista nos reaproxima de Sergio Malandro, Júnior (irmão da Sandy), o boneco Fofão e a inigualável Narcisa Tamborindeguy.

IBERÊ CAMARGO EM VERSÃO ONLINE

HISTÓRIA ILUSTRADA

Considerado um dos maiores artistas brasileiros do século 20, Iberê Camargo ganha exposição virtual fixa com 95 obras, no Google Cultural Institute

No universo das histórias em quadrinhos, as mulheres ainda são minoria. Não só como público, mas principalmente como autoras. Fugindo à regra, a ilustradora de Porto Alegre Samanta Floor mantém em seu blog resultados de trabalho em parceria com outros ilustradores, como é o caso do quadrinho Gibão, do Coletivo 5, e seus trabalhos individuais, como a Toscomics.

google.com/culturalinstitute/collection/fundaçao-ibere-camargo

“Arte, para mim, foi sempre uma obsessão. Nunca toquei a vida com a ponta

dos dedos. Tudo o que fiz, fiz sempre com paixão”, afirmou o gaúcho Iberê Camargo, um dos maiores artistas brasileiros do século 20. Não poderia ter prova maior dessa máxima do que o resultado de seus anos de trabalho e as mais de 7 mil obras concluídas, expostas na fundação que leva seu nome, na cidade de Porto Alegre. De fato, essa coleção, que foi herdada por sua esposa, Maria Coussirat Camargo, não pode – e nem deve – ser associada a um único movimento ou escola. O único ponto de encontro em Camargo é a dissolução da forma. Apesar de ter começado com desenhos de paisagens e não “entender” as “linhas tortas” de artistas modernos como Cândido Portinari, Camargo se consagrou com a obra Ciclistas (1989), em que observamos contornos dissolutos e cores frias. Hoje, além de ser possível prestigiar seus trabalhos na Fundação porto-alegrense, inaugurada um ano após seu falecimento, também podemos visualizar, em alta qualidade, 95 de suas obras no Google Cultural Institute, ferramenta que agrupa coleções e exposições fixas de fundações e instituições culturais do mundo. Além disso, também é possível conhecer as instalações da Fundação utilizando a mesma tecnologia no Street Views. GABRIELA ALMEIDA

samantafloor.blogspot.com.br

CORES DA LOMBRA iacopoapps.appspot.com/hopalongwebgl

A polêmica em torno das chamadas drogas ilícitas é antiga, e muitos sites e aplicativos tentam reproduzir os efeitos de drogas como LDS e ecstasy. Para os que acreditam no poder das cores e dos sons, o aplicativo do Chrome Iacopo é ideal (para os que não acreditam, ele pode ser um bom passatempo ou exercício de 3D).

sites sobre

Breaking bad SaUL GOODMAN

SAVE WALTER WHITE

OFICIAL

bettercallsaul.com

savewalterwhite.com

amctv.com/shows/breaking-bad

Advogado de porta de cadeia que vira o favorito dos grandes traficantes de Breaking Bad ganha, em janeiro, série exclusiva.

Ao descobrir que seu pai está com câncer de pulmão, Walter Jr. cria um site para arrecadar dinheiro para o tratamento.

No site oficial, é possível encontrar o making off de cada episódio, além de curiosidades da época das gravações do seriado.

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divulgação

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Imarginal

EXPLOSÃO DE INFORMAÇÃO TEXTO Olivia de Souza

Praticar o desapego pode ser difícil no universo criativo das artes visuais, em que artistas, apesar de admirarem uns aos outros, optam por não interferir no trabalho alheio, seja por preciosismo, vaidade ou ciúme mesmo. No entanto, há aproximadamente dois anos, essa barreira vem sendo quebrada por dois jovens artistas pernambucanos, que têm realizado, juntos, um trabalho autoral. Fernando Moraes e Raone Ferreira se conheceram em 2011, cursando Design Gráfico na Faculdade Aeso Barros Melo e, entre conversas com amigos e trocas de sketchbooks, perceberam referências e estilos de desenho similares. Não demorou muito até que Raone viesse com um papel tamanho industrial e convidasse Fernando para um desenho a quatro mãos, sem rascunho, direto na caneta preta. Acabaram por fundar o projeto Imarginal. Unindo surrealismo e megalomania, com painéis e cartazes de grandes proporções que, por vezes, demoram três meses para serem finalizados, o duo utiliza técnicas de pontilhismo e tracejado para criar, com detalhe e profundidade, desenhos de criaturas imaginárias e híbridas em tons monocromáticos, com texturas e pouquíssimo (ou nenhum) uso de cores. A dupla deslanchou depois de os primeiros trabalhos terem sido exibidos em sites conceituados, como o da revista Zupi e os portais estrangeiros Daily Inspiration, This Is Colossal e Juxtapoz Magazine. O que deu origem à exposição Animal vs Deus, em abril de 2012, e, logo em seguida, o convite para participar do Festival Abril Pro Rock, ocasião em que puderam vender os produtos da Margin (linha de camisetas estampadas com desenhos da dupla), realizar um live painting durante os dias de shows, e uma oficina de desenho colaborativo. “O que acho legal, com a experiência que a gente vai ganhando, é a liberdade de um interferir co n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 4 | 1 6

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4 Páginas anteriores 1-2 MEGALOMANIA

cão e a porca O e Rei da fome são parte de um projeto de 10 ilustrações feitas em papel tamanho industrial. A dupla atualmente trabalha no quinto desenho

Nesta página 3 PONTILHISMO

Fernando e Raone utilizam nanquim em desenhos que primam pelo detalhe

4-5 HIBRIDISMO Criaturas imaginárias, desenhadas a quatro mãos, resultam de um desapego da obra

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no traço do outro. São dois artistas pensando juntos, interagindo entre si, finalizando o trabalho do outro. Esse desapego da obra abre muito a cabeça da gente”, afirma Raone.

TATUAGEM

A partir de 2013, Fernando e Raone investiram no universo da tatuagem, uma paixão compartilhada. Em outubro do ano passado, fizeram parte da II Mostra de Sketches de Pernambuco, realizada n'A Casa do Cachorro Preto, em Olinda, ocasião em que puderam entrar em contato com outros nomes da tatuagem pernambucana. “O trabalho do Imarginal busca muita textura, pontilhismo, rachaduras, linhas. E, na tatuagem, a gente não consegue chegar ao nível de detalhe que consegue no papel. Então, a princípio, um dos desafios era esse: poder transpor para a pele, sem esse enorme nível de detalhes, o nosso estilo”, comenta Raone.

No campo das artes gráficas, bebem na fonte de artistas como o norte-americano Geof Darrow (concept artist do filme Matrix), e o cearense Bruno 9li, que atualmente reside em São Paulo e que, assim como a dupla, busca criar imagens únicas, não definíveis numa escola específica. Já no campo da tatuagem, Fernando e Raone comentam o trabalho de artistas como o paulistano Gregório Marangoni e o inglês Thomas Hooper. “Já existe uma escola do pontilhismo na tatuagem, da qual estamos começando a fazer parte agora, pois usamos essa técnica. Mas ela não é o que mais nos influencia na hora da criação, apesar de observarmos e admirarmos trabalhos como o de Marangoni e o de Hooper. Buscamos passar para a pele o estilo que criamos no papel”, comenta Fernando. Apesar de não dialogar com o estilo “imarginal”, o grafiteiro e tatuador pernambucano Paulo Victor Skaz tornou-se o primeiro e o maior contato da dupla no universo da tatuagem. Juntos, eles dividem aprendizados e o local de trabalho no recém-aberto Corvo

6 produção Por conta dos detalhes, trabalhos chegam a levar três meses para ficarem prontos 7-12 RISCO NA PELE Com o recém-aberto Corvo Estúdio, o duo resolveu investir na tatuagem

Estúdio. Ao contrário de Fernando e Raone, Paulo usa uma apurada técnica de espirro de tinta, que faz com que os desenhos se assemelhem a verdadeiras aquarelas eternizadas na pele. “Paulo é nosso contato direto com a tatuagem aqui em Pernambuco. Ele nos passa toques sobre aplicação, uso de tinta, indica novidades pra gente, e não é à toa que estamos trabalhando juntos agora. Hoje, no campo da tatuagem, é possível ver muita gente com um trabalho mais autoral, sem copiar as escolas consagradas, como a oriental, a oldschool, a newschool. Lógico, são artistas que as usam como referências, mas você vê que essas pessoas estão tentando imprimir um estilo próprio. Acho que a tendência é essa”, opina Fernando.

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Salvem as películas! Muito se fala que a preservação de filmes mudos no Brasil é um terror, com a sobrevivência de apenas 5% do material filmado na época. Mas um anúncio feito no mês de dezembro revela que não estamos sós, a maior indústria cinematográfica do mundo também sofre a falta de cuidados com as antigas películas de nitrato, de alto poder corrosivo. O estudo A sobrevivência dos filmes mudos norte-americanos: 1912-1929, com organização do historiador David Pierce, informa que, de 11 mil títulos de ficção realizados no período, somente 14% (1.575 títulos) resistem em seu formato original de 35mm. Para o pesquisador, fora a questão da fragilidade do material fílmico, essas obras também foram vítimas da “falta de valor comercial e de um grande período de desinteresse tanto por parte de seus donos quanto por parte do público”. “Este informe é de um valor inestimável, posto que o cinema mudo é essencial para nossa cultura”, afirmou, em comunicado, o cineasta Martin Scorsese, criador da The Film Foundation, entidade responsável pela restauração de cerca de 500 títulos de autores como Elia Kazan, Alfred Hitchcock, Jonas Mekas, Frank Capra, Robert Wise e Gláuber Rocha. Deste diretor brasileiro, Scorsese já recuperou e produziu cópias especiais em 35 mm de Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em transe e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Débora nascimento

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A FRASE

“O segredo da felicidade é liberdade e o segredo da liberdade, coragem.” Tucídides, historiador

Uma das notícias relativas ao cinema mais comentadas em 2013 foi o anúncio do “novo Batman”. A preferência pelo ator Ben Affleck (na montagem ao lado) desagradou a maioria dos fãs do querido super-herói das HQs. Até abaixo-assinado virtual contra a escolha do nome foi feito, com mais de 60 mil assinaturas, e houve gente que chegou a solicitar no site da Casa Branca que o presidente dos EUA interviesse no assunto, tornando ilegal a contratação do galã para o papel. Mas nem Barack Obama nem a Warner Bros acataram a grita dos eleitores-espectadores-nerds. Enquanto isso, alguns atores de Hollywood foram questionados sobre a polêmica, entre eles o antecessor no papel, Cristhian Bale. O ator apenas informou que desejava sorte a Affleck e que lhe aconselhara: “A única coisa que eu disse foi para ele garantir que conseguirá fazer xixi sem ajuda. É um pouco humilhante quando se precisa de alguém para ajudá-lo a sair da armadura para fazer isso”. (DN)

Balaio amizade literária Paul Auster e J.M. Coetzee são dois dos mais importantes escritores em atividade hoje. Encontraram-se pela primeira vez em fevereiro de 2008 (o sul-africano Coetzee já havia recebido o Nobel de Literatura, o norte-americano Auster dava continuidade a uma prolífica carreira de prosa, poesia e cinema). Pouco tempo depois, Coetzee escreveu uma carta de próprio punho (raridade em tempos de comodidade virtual) propondo que ali fosse fundado um intercâmbio epistolar. Here and now: letters 2008-2011 (Viking Adult), cuja edição em brochura sai em março nos Estados Unidos, documenta três anos de missivas que abragem temas como morte, casamentos, amor, paternidade, filosofia e as próprias definições de amizade. Mais: propicia ao leitor um mergulho na relação de admiração mútua entre dois sofisticados e sensíveis autores em consonância com o que há de efêmero e perene na vida de hoje. (Luciana Veras)

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pinochet, o “intelectual” O empresário e bibliófilo José Mindlin, que reuniu ao longo de 80 anos a Brasiliana, a maior coleção privada do Brasil, com cerca de 40 mil livros e manuscritos, deve ter-se mexido na cova, ao saber que o ditador chileno Augusto Pinochet amealhou uma coleção bem maior que a sua, com 55 mil volumes. Claro que à base de falcatruas. O curioso é que nunca se viu o alma sebosa dos Andes com algum livro nas mãos, ou falar que gostava de ler. Talvez, na hora de fazer força no banheiro, lesse algum manual de inquisição ou Mein Kampf, biografia autorizada do autor, Hitler (daquelas que o Procure Saber adoraria), candidato forte ao seu livro de cabeceira. O que surpreende é que, na biblioteca de Pinochet, há livros sobre o comunismo e até obras de Salvador Allende, presidente eleito do Chile que foi deposto no 11 de setembro chileno em 1973, liderado pelo salafra, que, no momento, deve estar nas profundezas do inferno, dando aulas de maldade a Satanás. (Luiz Arrais)

Os muitos Mandelas Se pudéssemos escolher apenas um ex-presidente de país para ser alvo do clichê “sua vida daria um filme”, o mais forte concorrente seria certamente Nelson Mandela, líder sul-africano falecido no mês de dezembro, aos 95 anos. Não é à toa que o ativista inspirou diversas produções cinematográficas que mostraram períodos específicos de sua longa trajetória. A mais recente delas deve estrear no Brasil neste mês, Mandela: long walk to freedom. A obra já é considerada a mais completa cinebiografia do ícone, englobando todas as fases de sua vida, inclusive sua missão como dirigente do partido Congresso Nacional Africano (CNA), comandando atos de reação à violência contra negros, vítimas, então, do apartheid. Quem vive “o mais novo Mandela do cinema” é o ator britânico Idris Elba, cuja atuação certamente será comparada à aclamada interpretação de Morgan Freeman no emocionante Invictus (2009). Antes deste, o artista que melhor encarnou Madiba foi Sidney Poitier, em Mandela and De Klerk (1997), cuja narrativa se baseia no processo de transição do país à democracia racial. Poitier, a propósito, durante uma entrevista coletiva na Cidade do Cabo, ladeado pelo próprio Mandela (foto acima), ao ouvir um “senhor presidente” de um repórter, respondeu com um “diga”. Ou foi uma brincadeira do ator americano ou ele vestiu demais o personagem. Débora Nascimento

são paulo de miró

cartas do cárcere

Então o poeta Miró foi para São Paulo e lá fez o que faz muito com o Recife: cantou a cidade. “Cantar” não significa “encanto”, vale destacar. Os versos que compôs vão do fraseado cortante – “São Paulo trafega/ entre o moderno/ e o fiasco” – de Dizcrição, a paródias à Geografia paulistana (“Ana Rosa mora na Vila Mariana/ e assim como eu não acredita/ nessa história de paraíso/ nem tão pouco na liberdade qual aí está”) até o desencanto social, como nos versos deste poema sem título: “As calçadas de São Paulo já não suportam/ o peso de tantos bêbados/ de seres esquecidos/ tudo aqui é tudo muito grande/ daí ficamos pequenos/ rascunhos de gente”. (Adriana Dória Matos)

É com a expressão “saudações do camarada” que se despede o filósofo pop Slavoj Zizek da russa Natasha Nadezhda, a mais emblemática integrante do grupo punk Pussy Riot. Presa na Sibéria por causa das performances que desagradaram o governo de Putin, suas correspondências do cárcere vazaram e versões em português já podem ser encontradas sem dificuldade pela internet. Em discussões cada vez menos formais, a dupla disserta sobre a situ ação atual da Rússia, táticas de luta anticapitalista, o distanciamento entre a teoria e a prática e Natasha recebe até um pedido de desculpas de Zizek têla respondido com um “chauvinismo masculino profundamente enraizado”. (Laís Araújo)

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CINEMA Três passos e… Hollywood

1 Rebecca da costa Pernambucana começou a carreira internacional como modelo e agora está em produções de cinema

Cresce o número de brasileiros que estão investindo suas carreiras, sejam na frente ou atrás das câmeras, na indústria cinematográfica norte-americana TEXto Rodrigo Salem

Há 30 anos, Chico Buarque já avisava: “Hollywood fica ali bem perto/ Só não vê quem tem um olho aberto”. Tudo bem que o autor da letra – que estourou no clássico do cinema nacional Os saltimbancos trapalhões (1981) – foi morar em Paris, longe das paranoias e desejos consumistas americanos e perto das padarias charmosas e dos restaurantes disputados. Mas vários atores e cineastas brasileiros decidiram seguir as palavras (e não as ações) de Chico e provar que Hollywood, o distrito de Los Angeles conhecido por ser a capital do cinema mundial, é realmente bem mais perto do que imaginamos. O primeiro a romper a barreira foi Raul Pepe Acolti Gil, que se mudou para os Estados Unidos no início da década de 1930, onde se tornou um dos principais galãs latinos de Hollywood. Estourou com a interpretação de Delicious, música de George and Ira Gershwin que batiza o longa de David Butler. Atuou ao lado de Ginger Rogers e Fred Astaire, em Voando para o Rio (1933), e foi dirigido por John Ford, em A marcha dos séculos (1934). Nos cinco anos em Hollywood, Raul, descendente de espanhóis, ganhou o sobrenome artístico Roulien e perdeu a mulher, a também atriz Diva Tosca, atropelada por John Huston em 1933, quando ele ainda era um roteirista inexpressivo. Morreu

em 2000, em São Paulo, aos 94 anos, depois de dirigir alguns filmes no Brasil. Já a luso-brasileira Carmen Miranda, até hoje, é o nome mais importante a sair do Brasil para uma carreira nos estúdios americanos. Bem-sucedida no Rio de Janeiro, onde cantava no Cassino da Urca ou em cruzeiros marítimos, transformou-se no símbolo de latinidade e sensualidade na década de 1940, quando participou de musicais na Broadway, programas de televisão e foi contratada pela Fox – recebendo o maior salário de Hollywood. Em uma época na qual os produtores reinavam sobre as estrelas de cinema, a brasileira passou a protagonizar sucessos como Uma noite no Rio (1941) e Aconteceu em Havana (1941), mas não conseguia se desvencilhar da imagem estereotipada da latina sexy e exótica, que chama a atenção pelas roupas coloridas e turbantes floridos e frutais. Passou a morar em Beverly Hills e ganhou a estrela na calçada da fama em Hollywood (a única brasileira até hoje). Depois de namorar com astros do quilate de John Wayne, Carmen casou com David Alfred Sebastian, que virou seu empresário. As crises no casamento e um aborto espontâneo levaram a artista ao vício em antidepressivos. Em 5 de agosto de

1955, Carmen Miranda morreu em Los Angeles, vítima de um ataque cardíaco. Há um vácuo de quase 30 anos entre Carmen e outra atriz brasileira a conquistar Hollywood. Sônia Braga, musa consagrada no Brasil pelos papeis em filmes de sucesso como Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto, A dama do lotação (1978), de Neville de Almeida, e Gabriela (1983), também de Barreto, tornou-se o novo retrato da mulher latina, morena e sensual, com sua participação em O beijo da mulher-aranha (1986). Sônia foi indicada ao Globo de Ouro de atriz coadjuvante em 1986, pelo papel, e o longa foi indicado ao Oscar, nas categorias de filme, diretor (Héctor Babenco), roteiro adaptado e ator, rendendo a estatueta para William Hurt. No ano seguinte, Sônia tornou-se a primeira brasileira a anunciar um prêmio no Oscar, convocada pela atriz Goldie Hawn sob o adjetivo de “uma das mulheres mais glamourosas do mundo”. Ao longo dos anos, já morando nos Estados Unidos, a paranaense ligouse romanticamente a Robert Redford, com quem fez Rebelião em Milagro (1988), e Clint Eastwood, seu diretor em Rookie – um profissional do perigo (1990). A década seguinte não foi tão brilhante para a brasileira em Hollywood. Apesar da indicação ao Globo de Ouro por

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Amazônia em chamas (1994), novamente ao lado de seu grande amigo Raul Julia, ela se dividiu em filmes televisivos de terceira categoria e participações em séries menores – ao ponto de ter passado um tempo no Brasil fazendo as novelas Tieta do Agreste e Força de um desejo. Voltou a ganhar destaque em 2001 com a personagem Maria Diega Reyes, a amante lésbica da “devoradora de homens” Samantha Jones, de Sex and the city. Morando entre Nova York e Los Angeles, Sônia Braga ganhou papéis em outras séries importantes, como Lei e ordem e Alias: codinome perigo. Hoje, voltou a aparecer apenas em longas televisivos de pouca expressão. Nessa mesma época, o cineasta Bruno Barreto fixou residência em Los Angeles e tentou repetir em Hollywood seu sucesso no Brasil. Não deu muita sorte. Seus Assassinato sob duas bandeiras (1990), em que conheceu a mulher, a atriz Amy Irving (de quem já se divorciou), Atos de amor (1996), One tough cop (1998) e Voando alto (2003), com Gwyneth Paltrow, não repercutiram bem nas bilheterias – tanto que, mesmo morando boa parte do tempo nos EUA, Barreto dedica-se às produções brasileiras, como o drama Flores raras e a comédia Crô, ambos de 2013. Em 1998, Central do Brasil revelou Walter Salles e Fernanda Montenegro

Cidade de Deus alavancou a carreira de alguns integrantes da produção nos EUA, como o autor da trilha e o seu montador para a indústria americana, mas nenhum dos dois mostrou interesse em manter proximidade intensa com Hollywood. Fernanda só trabalhou no esquema de “primeiro mundo” com Mike Newell, na adaptação O Amor nos tempos do cólera (2007), ao lado de Benjamin Bratt e Javier Bardem. De sua parte, Salles sofreu com a experiência em Água negra (2005), protagonizado por Jennifer Connelly, e só retornou ano passado para os EUA, em um esquema mais alternativo e com mais controle para filmar Na estrada, adaptação do clássico beatnik de Jack Kerouac.

NOVA SAFRA

Tirando uma aparição ocasional, equivocada aqui (Murilo Benício, em Sabor da paixão, ao lado de Penélope Cruz) e ali (Seu Jorge, em A vida marinha com Steve Zissou, Gero Camilo e Charles Paraventi, em Chamas da vingança), nenhum ator brasileiro conseguiu virar

uma presença constante em Hollywood até 2003, quando Rodrigo Santoro fez a famosa participação “entrou mudo e saiu calado” em As panteras: detonando. Em 10 anos, Santoro construiu uma carreira sólida, trabalhando com diretores do primeiro time, como Steven Sodebergh (Che), Richard Curtis (Simplesmente amor), Zack Snyder (300). Entrou e saiu (odiado) de Lost, uma das séries mais importantes da TV moderna e atuou ao lado de Jim Carrey (O golpista do ano) e Arnold Schwarzenegger (O último desafio). Ultrapassando a ideia de galã latino estereotipado, o brasileiro começou a ganhar trabalhos que normalmente iriam para atores americanos. “Quando recebi o roteiro de O que esperar quando você está esperando, a primeira coisa que fiz foi procurar o personagem latino chamado Raul ou José”, brincou Santoro, em entrevista à Folha de S.Paulo, ano passado. “Mas não encontrei nenhum estereótipo. Bem diferente de quando eu comecei, em 2003.” Santoro ainda se mantém em Hollywood sem precisar apelar ao passado noveleiro na Globo. Já está confirmado em Jane got a gun, primeiro filme de Gavin O’Connor desde o sucesso de Guerreiro, agora com Natalie Portman e Ewan McGregor no papel principal, e Focus, com Will Smith.

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2 SÔNIA BRAGA Estrela do cinema e da TV nacionais nos anos 1970, a atriz seguiu para Los Angeles em meados da década de 1980 3 RODRIGO SANTORO (À ESQ.) Ator superou os clichês associados aos atores latinos e hoje tem participado de projetos de bons diretores

E aposta em duas sequências para 2014: 300: a ascensão do império e Rio 2. Mas o galã não está sozinho em Hollywood. Wagner Moura teve uma atuação destacada em Elysium, de Neill Blomkamp (Distrito 9), que rendeu cerca de US$ 290 milhões no mundo inteiro. O New York Times o comparou a Raul Julia (talvez na falta de um exemplo mais conhecido entre atores latinos). Mesmo dedicado ao cinema nacional, Moura volta a uma superprodução estrangeira, em Trash, de Stephen Daldry (As horas), que foi filmado no Brasil recentemente. “A diferença está na grana, no quarto maior e na janela de frente para o mar”, disse o ator, quando o encontrei em Cancún, México, em um evento da Sony Pictures, que reuniu os maiores astros de seus lançamentos de 2013 em um hotel de luxo. “O resto é parecido. Eu posava com banners e tinha a mesma agenda intensa de entrevistas com Tropa de Elite 2 no Festival de Berlim, por exemplo.” Alice Braga, sua amiga e colega de set em Elysium, já sabia disso há algum tempo. Depois de ser revelada em Cidade de Deus, em 2002, Alice, que é sobrinha de Sônia Braga, passou a ser cortejada por Hollywood. Em 2006, fez 12 Horas até o amanhecer, produção americana com locações em São Paulo e protagonizada por Brendan Fraser. Em um espaço de quatro anos, ela virou a brasileira mais disputada da indústria cinematográfica americana – já que Gisele Bündchen falhou rigorosamente em sua tentativa como atriz na péssima comédia Táxi, de 2004. No cardápio, muita ficção científica (Eu sou a lenda, O resgate de órgãos, Predadores), um terror (O ritual) e longas mais “sérios” (Território restrito). Em 2008, voltou a filmar com Fernando Meirelles, que a descobriu em Cidade de Deus. Assumiu um dos papéis de Ensaio sobre a cegueira, adaptação do romance de José Saramago, que não teve o filme transformado em sucesso – de público ou crítica. Apesar do contratempo, Meirelles até hoje é o diretor brasileiro com melhor trânsito em Hollywood.

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Não é o mais bem-sucedido, porque Carlos Saldanha assumiu esse posto, ao dirigir as animações A Era do Gelo 2 e 3 e Rio, cuja sequência está prevista para este ano. Mas, certamente, Fernando Meirelles é o mais prestigiado. Após ser indicado como melhor diretor em 2004 por Cidade de Deus, o cineasta acertou em cheio com outra ótima adaptação: O jardineiro fiel, sua estreia em Hollywood, que rendeu o Oscar de melhor atriz coadjuvante para Rachel Weisz. O diretor perdeu um pouco do brilho depois de Ensaio sobre a cegueira, mas foi 360 que colocou uma nuvem de dúvida sobre sua capacidade de escolha de um projeto tão ousado quanto Cidade de Deus. O drama, estrelado por Anthony Hopkins e Jude Law, foi direto para video on demand nos Estados Unidos e não chegou aos US$ 2 milhões nas bilheterias mundiais. Talvez isso explique os constantes adiamentos nas filmagens de Nemesis, sobre o magnata grego Aristóteles Onassis – além da pressão da família Kennedy, que não gostou do roteiro de Bráulio Mantovani retratar Jackie, a viúva de JFK e ex-mulher de

Onassis, como uma interesseira. Mas o prestígio de Cidade de Deus, ignorado pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2003, mas aclamado pela Academia no ano seguinte, indicado a quatro Oscar (direção, fotografia, roteiro adaptado e montagem), permanece intocável. O maestro Antonio Pinto, responsável pela trilha, ao lado de Ed Côrtes, passou a trabalhar para longas de Mel Gibson (Plano de fuga) e fez a música de A hospedeira, baseado no livro homônimo de Stephenie Meyer, autora da saga Crepúsculo. O montador Daniel Rezende aproveitou a indicação ao Oscar com louvor, passando a editar filmes com Terrence Malick (A árvore da vida, ganhador da Palma de Ouro em Cannes) e o remake RoboCop, capitaneado por um brasileiro. No caso, José Padilha, responsável por Tropa de elite, chamado pela Sony para trazer o policial do futuro criado nos anos 1980 para o cultuado longa de Paul Verhoeven. Padilha, que filmou no Canadá com orçamento de US$ 100 milhões, enfrenta o fato de não poder exagerar

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na violência (ao contrário do original, o novo RoboCop é apropriado para adolescentes desacompanhados) e a ira dos fãs radicais. No entanto, o brasileiro está à vontade em Hollywood, tendo poderes até sobre o pôster da produção e já preparando o futuro, assumindo um projeto sobre o czar das drogas colombiano, Pablo Escobar, para o Netflix. Hoje, a “comunidade brasileira” vive um de seus melhores momentos em Hollywood – ou nessa definição etérea do que é Hollywood. Affonso Beato, que já foi o fotógrafo preferido de Pedro Almodóvar (Carne trêmula, Tudo sobre minha mãe) e trabalhou em A rainha, de Stephen Frears, prepara Mis-fits, novo filme protagonizado por Guy Pearce (Amnésia). Na mesma área, Adriano Goldman é um dos cotados ao Oscar 2014 por sua direção de fotografia em Álbum de família, com Julia Roberts e Meryl Streep. Falando em premiação, Mauricio Zacharias, roteirista brasileiro de Deixe a luz acesa, de Ira Sachs, foi um dos indicados ao Spirit Awards, maior prêmio do cinema independente americano. Mas é na direção que o país tem mais representantes. Se o pernambucano Heitor Dhalia (Serra Pelada) sofreu com a interferência do estúdio na sua estreia hollywoodiana em 12 horas, com Amanda Seyfried, ao ponto de pensar em desistir do longa em plena filmagem, o paulista Afonso Poyart, que só tinha o hit jovem 2 Coelhos no currículo, está preparando o thriller Solace sem pressão de estúdio, mesmo tendo os pesos pesados Anthony Hopkins e Colin Farrell no elenco. “Não posso falar sobre a experiência dos outros, mas a minha tem sido a melhor possível”, confirmou o cineasta em seu apartamento/escritório em São Paulo (no momento, ele está em Los Angeles, finalizando a produção, ao lado do montador gaúcho Lucas Gonzaga). Entre as atrizes, a concorrência é pesada e o resultado nem sempre é satisfatório. A maioria das brasileiras que tentam a vida em Hollywood é mais conhecida pela beleza do que pelo talento – mesmo quando ele existe. Jordana Brewster cresceu no Rio, apesar de ter nascido no Panamá, filha de carioca, e ainda depende da franquia Velozes e furiosos para projetar

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Na direção, destacamse, nos EUA, trabalhos de Walter Salles, Fernado Meirelles, José Padilha e Carlos Saldanha

sua carreira, hoje mais dedicada à TV. Caso parecido é o de Camilla Belle, que nasceu em Los Angeles, mas é filha de mãe brasileira e fala português fluentemente: fez superproduções como 10000 a.C. (2008), mas hoje só consegue filmes independentes, como o drama gay Love is all you need?. Entre as novatas, a moça da vez é a carioca Morena Baccarin, que foi descoberta por Joss Whedon (Os vingadores), na série Firefly, que foi cancelada. Vagou anos de programa em programa pelos canais americanos, inclusive como a vilã de V, mas só teve reconhecimento pelo papel de mãe de família e mulher de um terrorista em Homeland, pelo qual foi indicada ao Emmy de atriz coadjuvante, em 2013.

REBECCA DA COSTA

A atriz serve de modelo para outras novatas. Como a pernambucana Rebecca da Costa, que acabou de filmar com Robert De Niro e John Cusack. Nascida e criada no Recife, Rebecca já pensava em ser atriz desde pequena, quando dirigia, escrevia e atuava em peças escolares. Mas outros fatores a tiraram do caminho por um tempo. “Com meus 1,80m, era a mais alta da escola. Nem queria seguir esse caminho, mas fui selecionada em um concurso e me mudei para São Paulo”, conta ela. Na capital paulista, aos 14 anos, terminou o segundo grau enquanto se destacava nas passarelas. Dois anos depois, foi morar em Milão e desfilou para Yves Saint Laurent, Giorgio Armani e Missoni. Foi o início dos sete anos em solo europeu, chamando a atenção por sua beleza morena em países como Alemanha, Áustria e Grécia – experiência que a deixou fluente em alemão, espanhol, italiano e inglês. Em 2008, decidiu morar em Nova York e, então, sua vida deu uma guinada. “Foi a época em que a crise econômica bateu forte. Mesmo

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4 ALICE BRAGA Atriz revelada em Cidade de Deus atua nos EUA desde 2004 MORENA BACARIN 5 Carioca vem se destacando com papéis em séries, como Homeland

estando na capital mundial da moda, ficamos meses sem testar para desfiles ou trabalhos. Comecei a ficar desesperada”, recorda-se Rebecca, que já tinha feito uma economia na Europa, que possibilitou a compra de um apartamento em Nova York e as aulas no HB Studios, um dos primeiros colégios de arte dramática da cidade. “Já que tinha bastante tempo livre, aproveitei para retomar a paixão pela dramaturgia.” No meio da crise como modelo, Rebecca encontrou uma colega que estava em Los Angeles trabalhando como atriz. “Ela me chamou para uma visita e duas semanas depois estava lá. Adorei o clima da cidade e nunca mais a deixei. Aluguei meu apartamento em Nova York e fui morar em Los Angeles.” Apesar de sua beleza e da prática de passarela, ela não saiu correndo atrás de qualquer papel e buscou “ganhar experiência” antes de tentar o primeiro teste como atriz. “Eu queria estar preparada, fui muito focada”, admite. Em seis meses, conseguiu o primeiro papel no longa de horror Trick of the witch, ironicamente sobre

As atrizes da nova geração que estão trabalhando em Hollywood têm diferentes perfis e biotipos

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modelos que caçam uma bruxa. “Eu nem achava que ia conseguir o papel, então nem fiquei nervosa. Ninguém consegue um trabalho de primeira, mas comigo foi diferente.” Em três anos em Hollywood, Rebecca conseguiu formar um bom currículo para uma modelo brasileira que não para de estudar dramaturgia e não deixa o treinamento para falar inglês sem o menor sotaque. Filmou com Val Kilmer em Sete almas (seu único filme lançado no Brasil), fez ponta na série Entourage e filmou, ano passado, o ainda inédito The bag man, com John Cusack e Robert De Niro. “Eu e John chegamos três semanas antes das filmagens. Ele me deu dicas, trouxe o livro no qual o filme é baseado. Foi bastante generoso”,

conta a pernambucana, que faz o misterioso par romântico do assassino em vias de se aposentar de Cusack. De Niro faz o chefe que envia o matador para o último trabalho no motel em que a personagem de Rebecca trabalha, com a seguinte ordem: proteger uma sacola com a vida e não olhar o conteúdo dela. “Na véspera de filmar, fomos jantar com De Niro e sua mulher. Conversamos sobre o Brasil e, depois, eles me chamaram para uma festa de premiação do Sindicato dos Atores”, conta a atriz. “Ele fala tão baixo e é tão delicado, que é difícil imaginar que é realmente De Niro. No ensaio, ele simplesmente tinha um monólogo de sete páginas e não errou uma palavra. É muito profissional.” Apesar do lado fã, Rebecca diz que sonha com uma carreira rica como a de Daniel Day Lewis (Lincoln), mesmo que não tenha a ambição de virar uma atriz de método, incorporando o personagem 24 horas por dia. “Acho lindo, mas não é para mim. Já tentei. Quanto mais relaxada, melhor faço a cena”, revela ela, que tem Clint Eastwood, Marc Foster e Quentin Tarantino na lista de desejos para trabalhar no cinema internacional. “No Brasil, queria fazer um filme com Walter Salles.” O sucesso inicial em Hollywood – não esqueçamos que George Clooney já fez O Retorno dos tomates assassinos no começo da carreira – não deixa Rebecca deslumbrada. “É tudo uma ilusão”, diz ela, que hospeda o irmão mais novo – prestes a tentar a sorte como lutador de MMA (o outro faz Publicidade, no Recife). “Nunca me esqueço de onde vim. Quando converso com minha mãe, meu sotaque volta forte.” Ao contrário da música de Chico Buarque, em que o saltimbanco não “sonhava conhecer o tal Recife”, Rebecca da Costa conhece bem a capital, volta sempre que pode, para visitar a família, mas hoje pelo menos pode cantar (sim, ela faz aulas semanais de canto): “Hoje sou mocinho/ Sou vizinho do xerife/ Dou rabo de arraia em tubarão”.

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A vida de Juliana de Morais

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PRODUÇÃO Carreira on the road

Em lances rápidos e reviravoltas, a pernambucana Juliana Guedes constrói currículo sólido nos EUA TEXTO Luciana Veras

Guedes daria um filme. Talvez até um road movie, tantos foram – e ainda são – os deslocamentos. Nascida no Recife em janeiro de 1978, tinha 10 anos quando a mãe, Rosa, levou-a junto com seu irmão caçula Marcelo para os Estados Unidos, onde faria doutorado em Athens, no estado da Geórgia. Cinco verões depois, Juliana voltou a Pernambuco, estudou Artes Plásticas na Universidade Federal de Pernambuco, deu aulas de inglês e aqui permaneceu até 2000. Outra viagem, dessa vez para o Rio de Janeiro, colocou-a no caminho que singraria pelos anos seguintes. No curso de cinema na Estácio de Sá, entrava em cena a produtora, a assistente, a faztudo que entende o funcionamento e conhece as variáveis essenciais para o êxito de um set de filmagem. Cinema, porém, era amor antigo, conta Juliana, numa série de entrevistas concedidas à Continente entre Los Angeles e Londres, por e-mail, Whats App e FaceTime, ferramentas tecnológicas que facilitam seu trabalho e mitigam os efeitos de viagens, jet lags, saudades e afins. “Sempre gostei muito de ir ao cinema. Lembro-me de ir com meus pais e eles traduziam praticamente o filme todo, bem baixinho, no meu ouvido. Cresci querendo ser atriz de filmes antigos, profissão meio impossível, porque para isso teria que voltar no tempo. Quando me mudei para os EUA, fiz coleção de VHS dos clássicos americanos e italianos. Tinha uma paixão secreta por Montgomery Clift e queria morar na casa de Donna Reed”, confessa. A página dela no site Internet Movie Database – IMDB, bíblia para aficionados, profissionais e jornalistas, testemunha que o envolvimento prático com o audiovisual logo substituiu a relação afetiva. Em 2004, atuou como supervisora de set em A máquina, longametragem dirigido por João Falcão, a partir de peça homônima, dirigida por ele e de autoria de Adriana Falcão. No mesmo ano, outra mudança súbita, como as que ocorrem nas tramas de ação de Hollywood. “Tinha acabado uma série de trabalhos no Rio e só queria ir para São Paulo, passar um tempo com o namorado. Recebo uma ligação do meu chefe pedindo para

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6 JULIANA GUEDES Após gradução em Cinema, mudou-se para EUA e está radicada em Los Angeles 7 MIAMI VICE Filme foi o primeiro em que a produtora trabalhou ao lado do diretor Michael Mann

ir a Foz do Iguaçu, mas sem me dizer o porquê ou qual era o trabalho. Me senti a própria femme Nikita, em uma missão secreta”, relembra, fazendo alusão a um personagem televisivo inspirado, por sua vez, na espiã do filme dirigido por Luc Besson em 1990. Não tardou para Juliana ser apresentada a Michael Mann, cineasta americano que, àquela altura, acabara de lançar Colateral (2004), com Tom Cruise e Jamie Foxx, e tinha dirigido Ali (2001), O informante (1999) e Fogo contra fogo (1995). “Ele chegou num avião fretado para fazer um scout (visita para pesquisa de locações) para Miami vice. O scout foi uma verdadeira loucura… cinco cidades em quatro dias. O dia em que a equipe foi embora foi um dos mais felizes da minha vida. Uma semana depois, recebo uma ligação na minha casa do próprio Michael Mann. Ele dizia que estava voltando para um segundo scout e me perguntou se eu não queria fazer o filme todo. Dias depois, estava na Flórida filmando as primeiras cenas”, recorda. Miami vice, remake da série exibida na TV na década 1980, trazia Jamie Foxx e Colin Farell como os policiais Tubbs e Crockett, respectivamente, e um elenco que contava com Gong Li e Ciarán Hinds. As jornadas de trabalho de Juliana consumiam quase o dia inteiro, em especial quando sua função migrou de assistente de set para assistente do próprio diretor. Isso significa que ela estava sempre colada a Michael Mann, que o precedia no set para checar se tudo estava OK com as cenas a ser rodadas no dia; e que passava o tempo inteiro ao lado dele, de prancheta e walkie-talkie, sem hora para dormir ou largar. “Foi uma loucura. Ainda tivemos furacões, um destruiu nosso set inteiro. Mas fiz grandes amigos e ainda tive uma ponta no filme”, diz. Ela pode ser vista como a secretária de Isabella, personagem de Li, em uma cena no aeroporto.

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Após nove meses de filmagens, entre Uruguai, Paraguai, República Dominicana e Estados Unidos, Juliana voltou ao Brasil. Em janeiro de 2006, resolveu espairecer na Califórnia. “Queria passar duas semanas, para esquecer um namoro. Saindo do aeroporto, pedi para o motorista do táxi me levar de volta, porque tinha mudado de ideia. Como estava muito nervosa, ele me largou num hotel, na Sunset Boulevard, e disse que, se no dia seguinte eu acordasse com vontade de voltar, ele me levaria de graça. Isso foi há oito anos”, rememora. Não demorou nem dois dias no ócio. Entrou no time que rodava um comercial e, algumas semanas na frente, foi procurada pelo antigo chefe: “Fui visitar o escritório de Michael Mann em LA e ele me propôs ser full-time assistant. Assim, passei três anos e meio com ele”. Foram mais três longas na bagagem: O reino (2007), Hancock (2008) e Inimigos públicos (2009) – dos dois primeiros, Mann era o produtor, do último, assina a direção. Will Smith, Johnny Depp, Charlize Theron, Jennifer Garner, Christian Bale, Marion Cotillard, Billy Crudup e Carey Mulligan são atores de alto quilate com os quais Juliana conviveu. Sem deslumbre ou afetação, porque ela logo aprendeu que tais verbetes não rimam com expertise, no léxico hollywoodiano. “É um trabalho intenso, estressante e exigente, e você precisa estar sempre atento.

Tenho a sorte de fazer o que gosto e ter a oportunidade de conhecer muita gente talentosa. Pessoas que cresci assistindo no telão, hoje, são meus companheiros de trabalho.” Em Nightcrawler, com direção de Dan Gilroy, Juliana Guedes assumiu uma nova tarefa. “Agora, meu nome vai aparecer logo no início dos créditos”, brinca. Ela é produtora associada de Jake Gyllenhaal, o protagonista do filme, rodado entre setembro e novembro de 2013. Tantas temporadas em Los Angeles lhe deram cancha para perseguir objetivos mais autorais. “Comprei os direitos do livro Venceremos, de Howard Waxman, para transformá-lo em filme.” Filha do jornalista e autor Lula Falcão, ela não descuida da escrita. “Estamos atualmente na fase de ajustar o script, enquanto vamos escolhendo o elenco e levantando dinheiro. Já que a trama se passa na Cuba dos anos 1960 e tem muitas cenas em canaviais, adoraria poder filmar no Brasil”, adianta. Como toda produtora que se preze, ela desenvolve várias ideias em simultaneidade. “Em 2012, lancei pela Ecstatic Civilians, minha produtora, o clipe de Jam da Silva. Agora, tenho um projeto de televisão com a Laura Malin, chamado Valentina, que estamos adaptando para o mercado americano”, antecipa, despedindo-se, porque chegou a hora de voltar para o set. A julgar por sua rotina, conclui-se que é dedicação, e não glamour, a palavra que melhor define a vida de qualquer profissional dos bastidores em Hollywood.

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NOS EUA Sem bancar a diva over

8 CARMEN MIRANDA Hollywood disseminou mundialmente a imagem da cantora, nos anos 1940

Nova safra de atrizes e atores latinos no exterior se beneficia com a interpretação de papéis variados e menos atrelados à origem étnica ou a estereótipos TEXTO Alexandre Figueirôa

Na Polinésia, um jovem cai no mar e é salvo por uma bela nativa de pele morena. Eles se apaixonam, mas o amor entre os dois tem como obstáculo o vulcão da ilha. Por ameaçar entrar em erupção, os habitantes do local iniciam um ritual para acalmar os deuses, cujo ápice será o sacrifício da moça. Com esse enredo rocambolesco, Bird of paradise, filme de romance e aventura, de 1932, dirigido por King Vidor, colocava nas telas, como atriz principal, a mexicana Dolores Del Rio, uma das várias atrizes latinas a fazerem sucesso em Hollywood nos anos áureos do star system, interpretando papéis que quase obrigatoriamente as apresentavam como personagens exóticas e sedutoras. A presença de atores e atrizes nascidos abaixo da Califórnia nos filmes hollywoodianos não é novidade e acontece desde a fase muda do cinema. Pela proximidade geográfica, os mexicanos estão entre os mais assíduos integrantes do cast dessas produções, mas não faltam portoriquenhos, cubanos e brasileiros, cujas carreiras foram marcadas por encarnarem tipos de origem latina, mas também figuras que de alguma forma estavam associadas ao imaginário construído sobre a América Latina, região considerada, principalmente nas décadas de 1920 a 1950, ainda quase selvagem, com florestas e montanhas a serem desbravadas e de uma cultura marcada

por danças e músicas pitorescas e práticas religiosas primitivas. Dessa forma, em filmes de aventura e musicais, mesmo que não fossem ambientados em países latino-americanos, era comum que atores dessas regiões interpretassem dançarinos, ciganos, aventureiros. Nos anos 1940, por exemplo, a atriz Maria Montez, nascida na República Dominicana, ganhou popularidade em filmes de aventuras com sua imagem de latina sedutora de cabelos vermelhos, vestida com roupas sensuais e joias reluzentes. Mas ela foi também uma mulher-serpente em Cobra woman (1944), de Robert Siodmak, outro filme ambientado numa ilha no Pacífico com nativos adoradores de vulcão, e uma mulher árabe em Ali Babá e os quarenta ladrões (1944), de Arthur Lubin. Na verdade, atores e atrizes latinas serviam para encarnar tipos físicos que não correspondessem ao padrão de beleza anglo-saxão e do norte da Europa. Quando iniciou sua carreira, ainda no cinema mudo, a mexicana Lupe Velez especializou-se em viver mulheres de grande beleza, de diversas etnias. Em seus primeiros filmes, ela representou hispânicas, indígenas, russas e até mesmo asiáticas. Com a chegada do cinema sonoro, Lupe acabou ficando mais conhecida por personagens cômicos. Entre os homens, o mexicano Anthony Quinn construiu sua fama pela grande quantidade de papéis

de personalidades famosas, mas também tipos étnicos. Ele viveu um toureiro em Sangue e areia (1941), de Rouben Mamoulian; foi grego em Zorba (1964), de Michael Cacoyannis, e em Onassis (1978), de J. Lee Thompson; e até esquimó, em Sangue sobre a neve (1960), de Nicholas Ray. Atores latino-americanos também se prestaram a encarnar galãs latin lovers, seguindo o caminho aberto pelo italiano Rodolfo Valentino. Um deles foi o mexicano Ramon Novarro. Ele começou a fazer sucesso ainda durante a fase muda do cinema, como protagonista da primeira versão de Ben-Hur (1925), de Fred Niblo. Com a morte de Valentino, em 1926, Novarro ocupou o espaço dele nos meios de comunicação e se tornou o ator latino mais importante de Hollywood. Quando o som chegou, dedicou-se aos filmes musicais, um gênero que sempre abriu espaço para os latinos. A música foi, assim, o passaporte para a entrada no cinema norteamericano do cubano Desi Arnaz. Ele tinha uma banda que executava músicas latinas e com a qual participou de diversos filmes e musicais. Arnaz, porém, tornouse mais conhecido pela série para televisão I love Lucy, em que atuou ao lado da esposa Lucille Ball, além de produzi-la. Na série, Arnaz fazia o papel do cubano Rick Ricardo, maestro de uma orquestra dançante de night clubs.

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9 DOLORES DEL RIO Mexicana interpretou mulheres exóticas e sedutoras 10 RAUL ROULIEN Carioca (à dir.) foi o primeiro ator brasileiro a migrar para os EUA, em 1931 11 LUPE VELEZ Atriz mexicana viveu mulheres de grande beleza, de variadas etnias 12 MARIA MONTEZ Ganhou popularidade em filmes de aventura, como Ali Babá (1940)

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Também foi na televisão que o mexicano Ricardo Montalbán se consagrou, após trabalhar em vários musicais da Metro Goldwyn Mayer. Ele interpretou o Sr. Roarke do seriado A Ilha da Fantasia, que foi ao ar de 1978 a 1984, tanto nos Estados Unidos quanto na América Latina. O professor da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do cinema latino-americano Tunico Amancio observa que a existência de atores e atrizes latinas de sucesso em Hollywood é circunstancial e fruto de políticas de casting muito específicas, mas nem por isso as morenas latinas deixaram de concorrer com loiras, negras, ruivas, recrutadas para ampliar o brilho das produções cinematográficas norte-americanas. Segundo Amancio, os requisitos para entrar nos estúdios eram bem simples: “Um pouco de talento, um tipo exótico, um bom inglês falado, um bom agente e um bom filme estrelado em seu país de origem”. Ele lembra Katy Jurado, que depois do sucesso em uma película mexicana, Nosotros, los pobres (1948), de Ismael Rodriquez, foi para Hollywood, onde fez, entre outros, High noon (1952), de Fred Zinnemann, pelo qual ganhou Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante, e Broken lance (1954), de Edward Dmytryk, quando recebeu uma indicação ao Oscar também de atriz coadjuvante pelo papel de uma índia casada com um rancheiro poderoso.

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BRASILEIROS

No caso de atores brasileiros, o pioneiro foi o carioca Raul Roulien. Ele chegou a Nova York em 1931 e conseguiu assinar um contrato com a Fox, fazendo diversos filmes até 1934. Seu trabalho de maior sucesso foi Voando para o Rio (1933), de Thornton Freeland, quando atuou ao lado de Dolores Del Rio, Ginger Rogers e Fred Astaire e cantava a canção Orquídeas ao luar. Conta-se que Roulien teria sido o descobridor de Rita Hayworth e quem apresentou Ginger Rogers a Fred Astaire. Nesse período, porém, ninguém bate em popularidade e reconhecimento, no cinema internacional, a portuguesa naturalizada brasileira Carmem Miranda. A cantora, conhecida no Brasil como a Pequena Notável, ganhou projeção em filmes como Alô Alô Carnaval (1936), de Adhemar Gonzaga, e por suas apresentações no Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, em Buenos Aires, na Argentina, e shows em transatlânticos de luxo. Acabou

“Fórmula” para ser aceito nos EUA incluía talento, tipo exótico, bom inglês, bom agente e já ter estrelado filme nacional

sendo convidada para ir aos Estados Unidos, onde se apresentou na Broadway com muito sucesso. Ao desembarcar no cinema hollywoodiano, contratada pela Fox, Carmem Miranda não escapou do estereótipo de mulher latina. A roupa de baiana, o turbante com frutas tropicais e os balangandãs tornaramse sua marca registrada. Embora ela falasse inglês fluentemente, os produtores a forçavam a mostrar um sotaque carregado e, nos musicais, ela tanto podia ser uma brasileira quanto uma mexicana, cubana ou porto-riquenha. Carmem atuou ao lado de Groucho Marx, Dean Martin, Cesar Romero e chegou a ter um dos mais altos salários de Hollywood.

Também foi a primeira brasileira a gravar as mãos na calçada da fama do Teatro Chinês, em Los Angeles. Entre seus sucessos no cinema, destacam-se as comédias musicais Uma noite no Rio (1941) e Minha secretária brasileira (1942), dirigidos por Irving Cummings; Entre a loura e a morena (1943), do diretor Busby Berkeley e Copacabana (1947), de Alfred E. Green. Conhecida como “The Brazilian Bombshel”, sua imagem latina foi explorada exaustivamente pelos estúdios norte-americanos, para reforçar a política de boa vizinhança entre os Estados Unidos e a América do Sul, o que a levou a receber críticas no Brasil de setores contrários a essa aliança, que a acusavam de “americanização”. Contudo foi com sua imagem exótica e extravagante que Carmem se transformou num símbolo de latinidade lembrado até hoje. O tipo moreno e sedutor foi também o que garantiu a entrada da brasileira Sônia Braga no cinema norte-americano. Sua aparição no filme O beijo da Mulher-Aranha, produção brasileiro-estadunidense de 1985, dirigida pelo cineasta Hector Babenco, projetou a atriz internacionalmente. O filme teve uma excelente carreira nos Estados Unidos, recebeu quatro indicações ao Oscar e levou Sônia Braga a tentar a sorte naquele país. Em 1986, ela conseguiu um papel na televisão no Cosby Show, programa de grande sucesso na época, e um convite para ser uma das apresentadoras do Oscar. Sônia Braga, contudo, impôs-se como atriz dramática e não teve seu tipo latino explorado para personagens caricatos e exóticos. Nos 14 anos em que permaneceu nos Estados Unidos, ela atuou em filmes relevantes como Rebelião em Milagro (1988), de Robert Redford; Luar sobre Parador (1988), de Paul Mazursky; Rookie, um profissional de perigo (1990), de Clint Eastwood, e seriados da televisão como CSI Miami e Sex and the city. Sinal dos novos tempos de Hollywood que, percebendo a crescente população de origem latina no país, tem garantido à recente geração de atores latinos, incluindo os brasileiros Rodrigo Santoro e Alice Braga, papéis diversificados e menos atrelados à sua origem étnica.

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Artigo

ANA MARIA BAHIANA MINHA VIDA EM HOLLYWOOD Quando eu vim para cá, nos idos

tempos de 1987, sem conhecer ninguém e sem saber dirigir, e ligava para algum divulgador ou executivo de um estúdio para me apresentar como correspondente para o Brasil,

em geral, ouvia uma grande silêncio antes da resposta. E a resposta, muitas vezes, incluía coisas como “hã… onde mesmo é que fica?” e “prefere falar em espanhol?”. Havia certa surpresa em saber que o Brasil tinha tantos jornais e revistas, que se interessava por cinema, música, livros… Pessoas do setor criativo, às vezes, tinham algumas referências cinematográficas: Pixote era a mais comum (mais tarde, Denzel Washington e os diretores Spike Lee e John Singleton se revelaram fãs do filme de Hector

Babenco); alguns mencionavam Dona Flor e seus dois maridos. Mas o espanto, cercado de ignorância por todos os lados, era o mais comum. Muitos fatores contribuíam para isso. Na década de 1980, na verdade até o final do século passado, a indústria de cinema e TV estava voltada prioritariamente para o mercado interno norteamericano. Projetos eram idealizados, desenvolvidos e realizados para atender esse mercado, o maior do mundo em consumo de produtos

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13 TROCAS As relações entre imprensa e artistas, em Hollywood, são medidas pelo mercado. Se o jornalista representa um veículo ou território de exibição rentável, seu prestígio cresce

me possibilitado a entrevista ou cabine. Muitas conversas explicando o país, o público, as preferências, o mercado editorial. Muitas brigas, também: aprendi desde muito cedo que, aqui, ninguém dá respeito de graça, é preciso se impor, se fazer valer. Para muita gente, eu sei, criei fama de carne de pescoço, complicada, marrenta. Uma vez, fiquei “de castigo”, na geladeira, sem ser incluída em atividades de imprensa, porque não aceitei que se negassem materiais de divulgação ao Brasil por, nas palavras do divulgador, “não ser um país importante”. (George Clooney me tirou do castigo. Mas isso já é outra história…) Aos poucos, algumas coisas importantes foram acontecendo. No meu universo micro, fui aprendendo por que Los Angeles é conhecida como a “cidade das

Foi um trabalho de água mole em pedra dura. Muitos telefonemas, contatos. Muitas conversas explicando o país

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audiovisuais. O que viesse do exterior era um extra, um bônus. E, quando os estúdios falavam de exterior – ou “os territórios”, no vocabulário da indústria –, estavam se referindo aos “oito grandes” da época: Japão, Alemanha, GrãBretanha, França, Itália, Espanha e Austrália-Nova Zelândia. Foi um trabalho de água mole em pedra dura. Muitos telefonemas. Muitos contatos. O envio regular de minhas matérias para cada pessoa que tinha

redes” – porque os contatos, as amizades, parcerias e alianças que se fazem aqui são para valer, duram a vida toda e se tornam o maior capital que uma pessoa pode ter. No mundão lá fora, a saturação do mercado norte-americano, combinada com o estilhaçamento das mídias, além do “ir ao cinema” e o crescimento de novos mercados consumidores de tudo – inclusive entretenimento –, fora das fronteiras dos Estados Unidos, gradualmente inverteu a ordem de prioridades da indústria. Os “territórios” ficaram primeiro visíveis, depois desejados e, finalmente, indispensáveis. Segundo o mais recente relatório da Motion Picture Association of America, no ano de 2012, 69% da receita de filmes realizados nos Estados Unidos vêm do exterior – 23.9 bilhões de dólares. Nesse universo, duas áreas

apresentaram maior crescimento de consumo nos últimos três anos: Ásia/Pacífico e América Latina. Na Ásia/Pacífico, os mercados que mais cresceram foram China, Índia e Coreia do Sul. Na América Latina, um domina todos os outros: o Brasil. O oposto se passa, agora: projetos são pensados, desenvolvidos e criados para atender primeiro os mercados exteriores (ou você acha que aqueles Velozes e furiosos no Rio de Janeiro foi coincidência?). Campanhas de divulgação planejam cuidadosamente a escalada no exterior. Todo mundo sabe onde o Brasil fica, que idioma fala, quantas telas tem, quando são os feriados, que tipo de filmes, atores e diretores fazem sucesso. O passo seguinte, acredito, é um diálogo maior, mais inclusivo, que saia apenas da área do consumo e inclua a criação, a troca, a parceria. Filmes como Central do Brasil, Cidade de Deus e Ônibus 174 recolocaram o Brasil nas conversas como um lugar onde se faz bom cinema e lançaram, acima de qualquer dúvida, as carreiras internacionais de Walter Salles, Fernando Meirelles e José Padilha. Infelizmente, foram arrancos individualizados, isolados, sem a continuidade e a sustentação que outros países, como Chile, Argentina, México, Espanha, Dinamarca, Coreia do Sul e Bélgica, tiveram e têm. Quando me perguntam “o que falta para o Brasil…. (aqui pode ser: ganhar um Oscar, ser mais conhecido lá fora, fazer sucesso lá fora etc.)?”, eu respondo: esta indústria aqui, já faz algum tempo, está esperando pelo Brasil, tem enorme curiosidade sobre o Brasil, gostaria de ser parceira do Brasil. É como uma grande festa, um jantar, com uma linda mesa posta cheia de gente em volta e com lugar reservado, mas, por enquanto, vazio. Acho que essa minha vida de desbravadora das selvas hollywoodianas vai ficar completa quando eu puder, afinal, ver o Brasil tomar seu lugar à mesa, dialogando de igual para igual, em todas as frentes, criando junto, produzindo junto, intercambiando, trocando, mostrando sua cara. Vou ficar bem feliz Missão cumprida.

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JEAN-LOUIS COMOLLI Os limites do visível 1

Teórico francês, que pertenceu à segunda geração de críticos da Cahiers du Cinéma, investiga as estruturas da sociedade contemporânea, a partir da reflexão sobre as relações que ela estabelece com as imagens TEXTO Fellipe Fernandes

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São Paulo havia amanhecido com o sol que desaparecera por trás de nuvens durante a semana anterior. Mas a temperatura não estava muito alta. Sentado no café do hotel, JeanLouis Comolli, 72, vestia um blazer com um lenço em volta do pescoço. Tomava um copo d’água e, através da parede de vidro, observava o Bairro dos Jardins. Sem falar português, ele presta atenção no que acontece à sua volta. Ainda não tivera tempo de conhecer bem a capital paulista. E provavelmente não o faria nessa estada. Chegara na noite anterior para a palestra que daria no dia seguinte. Era sexta, voltaria a Paris no domingo: uma viagem de trabalho sem muitos momentos ociosos. Veio ao Brasil para participar da mostra Os sentidos da imagem: produção e memória. A parceria entre o Institut National de l’Audiovisuel (INA) e o Itaú Cultural levou para São Paulo obras produzidas para a televisão francesa, como Horror da luz, de George Didi Huberman e André Fieschi, e Um dia Pina pediu, de Chantal Akerman. No texto de apresentação, a curadora da

"Poderíamos dizer que reduzir o mundo à dimensão do visível é reduzi-lo à sua dimensão mercantil" Jean-Louis Comolli 1 COMOLLI

Para teórico, é difícil separar atividades de crítico, realizador e pesquisador

mostra, Daniela Capelato, ressalta que a filmografia do evento “é exemplo de que a televisão, como veículo de massa e meio de comunicação, pode produzir conteúdo de relevância histórica e artística”. Na palestra que aconteceria no dia seguinte, Comolli falaria sobre como a construção da sociedade contemporânea passa pela questão das imagens: quem as produz, quem as vê e quais as negociações simbólicas estabelecidas a partir delas. Não foi a única vez em que esteve no Brasil em 2013. Meses antes, aportou na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para participar de um seminário. Mantém uma relação de proximidade

intelectual com pesquisadores daquele centro universitário, no qual participa de congressos, palestras e aulas especiais. Seus escritos sobre cinema-documentário são bibliografia quase obrigatória para estudos do gênero. Mas, a partir da reflexão sobre as relações estabelecidas com a imagem, Comolli vai além da arte cinematográfica e investiga as estruturas da sociedade contemporânea. Quando me aproximo das mesas de café do hotel, ele está terminando de conversar com outro jornalista. No fim da conversa, os dois apertam as mãos. O jornalista deixa uns papéis com Comolli. Ele dobra e guarda dentro de um livro que leva à mão. Somos então apresentados. Com um ar bemhumorado e olhar atento, ele desfaz qualquer estereótipo que relaciona a figura de um intelectual a alguém sisudo e longe da realidade. Vez por outra, abre um sorriso meio rouco. Senta e pede água.

DA CINEFILIA À CRÍTICA

O teórico francês pertence à segunda geração de críticos da Cahiers du Cinéma, revista expoente do cinema francês fundada por André Bazin (junto com Jacques Doniol-Valcroze e Joseph-Marie Lo Duca). Comolli foi um dos líderes intelectuais da publicação parisiense entre 1966 e 1971, período em que atuou como seu redator-chefe. Confessa que, quando jovem, não pensava em trabalhar com cinema em nenhuma das frentes em que atuou ao longo da vida (crítica, produção e pesquisa teórica). As coisas foram acontecendo por acaso, atendendo menos a um plano e mais aos desejos que surgiam. “Antes de qualquer coisa, somos todos espectadores”, lembra, apontando a posição como ponto inicial de qualquer trajetória. Diante da espetacularização da sociedade, aspecto bastante debatido em seus textos, de fato, somos todos espectadores. Hoje, no entanto, mais que isso, somos também produtores de imagem. Ele costumava frequentar assiduamente a cinemateca francesa, na época dirigida por Henri Langlois. Era início da década de 1960. Quando

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2-3 CINEFILIA

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Perfil

Comolli costumava frequentar assiduamente a cinemateca francesa, na época dirigida por Henri Langlois

4 CAHIERS DU CINÉMA rítico atuou como C redator-chefe da revista entre 1966 e 1971

Eric Rohmer, então redator-chefe da Cahiers du Cinéma, pediu a Langlois indicação de pessoas que pudessem substituir os colaboradores que deixavam a redação para se dedicar à realização cinematográfica (o que incluía boa parte da geração nouvelle vague, como Truffaut, Godard e Chabrol), seu nome foi sugerido. “A gente estava sempre ali, assistindo aos filmes. E Langlois acabava conhecendo todo mundo que aparecia constantemente na sala de cinema.” Assim passou da cinefilia à crítica, em 1962. Alguns anos depois, chegaria também à direção, estreando com um documentário sobre Maio de 1968. “Com a realização, compreendi coisas sobre o cinema que, até então, não tinha compreendido. E, nesse sentido, foi importante ter escolhido o documentário, porque é uma produção mais simples. Tem um número menor de técnicos e pessoas envolvidas, então fica mais fácil refletir sobre o ato e a linguagem cinematográfica.” A experiência prática o levou para a produção teórica. Hoje, professor das universidades Paris 8 (França) e Pompeu Fabre (Espanha), além de colaborador das revistas Trafic e Images documentaires, ele diz que é difícil separar as atividades de crítico, realizador e pesquisador. Elas fazem parte de um mesmo todo: fazer cinema. “Fazer filmes e pensar cinema é a mesma coisa”, garante. “A gente pode pensar com as palavras, mas também pode pensar com os gestos, com os atos, com as escolhas... E eu acredito que o cinema é uma máquina de pensar, para o realizador e para o espectador, porque a todo

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REPRODUÇÃO

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momento somos obrigados a fazer escolhas e tomar decisões diante da imagem que fazemos ou vemos.”

O ESPECTADOR

Parte fundamental do pensamento expresso nas obras de Comolli gira em torno da figura do espectador. A partir da reflexão sobre como são vistas as imagens produzidas pela sociedade contemporânea, sejam elas cinematográficas ou não, compreendemos um pouco das forças estéticas e políticas envolvidas em sua produção e exibição. Em seu livro mais popular, Ver e poder – a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário (lançado no Brasil em 2008 pela Editora UFMG, uma compilação de artigos e discursos em palestras e debates), ele discute a própria crença nas imagens e o posicionamento do espectador em relação a elas. Publicados juntos em 2004, pela primeira vez, os textos investigam as relações estabelecidas na imagem do cinema-documentário, bem como na televisiva, numa tradição analítica que remete a pensadores como Karl Marx e Guy Debord. O livro, por pouco, não testemunha fenômenos que centralizam discussões presentes em seus escritos, como o YouTube. O site de compartilhamento de vídeos foi criado um ano após a primeira edição francesa de Ver e poder. A popularização de celulares com câmeras capazes de gerar vídeos com imagens bem-definidas também é mais recente. Juntos, os vídeos produzidos por celular e o compartilhamento online ecoam profundas transformações na relação do espectador com a imagem, já anunciadas por Comolli. “Com a multiplicação das telas,

passamos a acreditar que tudo é visível.” A inocência em relação à imagem é cada vez mais rara e o espetacular parece alcançar de vez sua máxima expressão, superando publicidades e programas televisivos, com os posts e compartilhamentos de vídeos na internet. “Para além da capacidade de registrar, o cinema inventou a capacidade de transportar a vida filmada. Essa foi uma grande novidade”, lembra o pesquisador. Esse fato ganhou outros contornos e potências ainda mais

"As nossas lutas, então, não ganham sentido pleno, se não são filmadas e mostradas" Jean-Louis Comolli delineados com a simultaneidade gerada pela televisão. Uma imagem passa a ser transmitida para vários lugares ao mesmo tempo. E a internet nos insere num novo cenário: “Estamos todos ligados, espectador e realizador. Era o que sonhava Dziga Vertorv, ligar toda a população russa através das imagens”. Vemos, então, ao esforço de um clique, o vídeo de um bebê que se emociona ao ouvir a mãe cantar, de um tsunami que devasta uma cidade, ou de um policial militar que arbitrariamente ataca pessoas com gás lacrimogênio, num dos episódios das manifestações ocorridas nas capitais brasileiras, em junho do ano passado. Registrada e passível de ser transportada, a imagem se torna memória. Assim, ao olharmos

imagens dos protestos, é possível que lembremos não apenas aquilo que presenciamos, mas também as cenas às quais assistimos pelo computador, televisão ou celular. E essas talvez nos passem tanta sensação de realidade quanto as testemunhadas pessoalmente. “Estamos reduzidos à dimensão do visível. Só existiu, só é real, aquilo que pôde ser registrado”, pontua Comolli. Diante disso, uma questão pode ser elaborada: existe algo irrepresentável, algo que não pode ser mostrado? Para o teórico francês, isso nos leva a dois pontos. Primeiro é preciso lembrar que nem tudo referente ao poder é acessível e, portanto, mostrável. “Quanto mais a sociedade se espetaculariza, mais os segredos são reforçados.” O segundo ponto que impõe limites ao visível é a ética. Não a do espectador, pois esse responde a uma pulsão escópica. Mas a do produtor da imagem. “Há uma responsabilidade no gesto de mostrar, assim como há no de esconder, no de escrever, no de falar... E, nesse momento em que há uma abundância de imagens, a responsabilidade de mostrar alguma coisa é ainda maior”. Depois de uma hora de conversa, Comolli finalmente está livre dos compromissos oficiais, o jornalista que falaria com ele na sequência desmarcou. Ele avisa à assessora que vai voltar para o quarto, está cansado. Os cabelos grisalhos, penteados para trás, parecem arrumados com um tipo de creme que não deixa fio algum fora do lugar. Cortês, despede-se sorrindo. Na saída do hotel, lembro que não tiramos fotos da entrevista. Nenhuma imagem daquela manhã. Lamento. Lá fora o sol está ainda mais forte e faz a temperatura subir.

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IVISON/ITAÚ CULTURAL/DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

Perfil Entrevista

JEAN-LOUIS COMOLLI “NÃO EXISTE MAIS REALIDADE, A NÃO SER AQUELA QUE É FILMADA” CONTINENTE Nos protestos de junho, no Brasil, os manifestantes usavam câmeras para filmar agressões e, dessa forma, defender-se das ofensivas da polícia. O que essa espécie de instrumentalização da imagem reflete? JEAN-LOUIS COMOLLI Precisamos nos remeter a um evento histórico de grandes dimensões, que se produziu no curso do século 20: o poder de produzir e mostrar imagens passou de uma casta de técnicos, especialistas e empresários para todo mundo. Ou seja, hoje, as imagens são do povo. O povo tem o direito e a possibilidade real de fazer imagens, porque os celulares filmam, as câmeras não custam muito caro... E isso é uma revolução. Não uma revolução pontual, no sentido de haver um antes

e um depois desse fato. Mas uma revolução lenta. Ela interfere muito na maneira como vemos, como nos relacionamos com as imagens. Não há uma barreira que relega a produção de imagens a uma elite. Elas são de todos. Esse é um acontecimento político bem importante, que podemos observar nos eventos de junho no Brasil. Outra coisa que esses vídeos me fazem pensar é que não existe mais realidade, a não ser aquela que é filmada. Se alguma coisa não é filmada, é menos real, existe menos. Ao mesmo tempo, quanto mais a gente filma, mais substitui o mundo pela sua representação. Paradoxal, não? As nossas lutas, então, não ganham sentido pleno, se não são filmadas e mostradas. Se não filmamos, é como se elas não existissem para o mundo. CONTINENTE Hoje em dia, temos uma série de curtas-metragens que são feitos para serem difundidos na internet e assistidos pelo computador. Como determinar, com todas as mudanças envolvendo a produção, exibição e distribuição de filmes, se uma obra é ou não cinematográfica? JEAN-LOUIS COMOLLI A grande diferença, na verdade, é apenas a

questão do espaço, a sala de cinema. E não tem a ver com a tela exatamente, mas com a escuridão ao redor dela. Na sala de cinema, há a tela, e tudo em volta é escuro. No computador, no celular, temos o contrário. Vemos o filme, mas também vemos todo o entorno da tela, o nosso entorno... Nós não vemos aquilo que está no escuro. E isso muda muita coisa. A multiplicação das telas nos diz que tudo é visível: tudo está passível de ser mostrado. Assim, o visível se torna a totalidade da nossa relação com o mundo. Isso pode ser observado desde a própria captura da imagem. Quando enquadramos com o celular ou com uma câmera digital menor, nós registramos uma parte, mas no momento da captura enxergamos o todo, um todo que é completamente visível. Enquanto que, com a câmera de cinema tradicional, as coisas são bem diferentes. Antes de mais nada, tem o fato de que filmamos com apenas um olho aberto. E o quadro nos impede de ver o que está ao redor. Vemos apenas o que está no quadro, assim como na sala de cinema. Lá, o espectador é confrontado com uma experiência sensível em que fica óbvio que nem tudo é visível, pois há o escuro. CONTINENTE E como isso altera a relação do espectador com a imagem? JEAN-LOUIS COMOLLI Gerar a ideia de que tudo pode ser mostrado reduz o mundo à dimensão do visível. E essa redução – que é falsa, obviamente – não é neutra. Marx já estabelecia uma relação entre o visível e a mercadoria. E, de maneira simplificada, poderíamos dizer que reduzir o mundo à dimensão do visível é reduzi-lo à sua dimensão mercantil. Se tudo é visível, eu posso me apropriar de tudo. Uma ideia completamente falsa e que carrega também um paradoxo. Guy Debord já mostrava que quanto mais a sociedade se espetaculariza, o que é o caso atual, mais os segredos ganham força, o que também é o caso atual, vide todos os processos contra o Wikileaks. E aí fica claro o jogo de poder implícito na visão: não só o poder de mostrar, mas também o poder de esconder.

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DIVULGAÇÃO

Viagem

CON TI NEN TE#44

LANZAROTE A ilha de Saramago

Lugar atrai tanto pela paisagem excepcional, moldada por erupções vulcânicas, quanto pela casa onde viveu o autor português, e que foi transformada em museu TEXTO Ricardo Viel, de Lanzarote

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

Era comum que ao correio de Lanzarote chegassem cartas dirigidas a José Saramago; apenas isso, sem o endereço, nem mesmo um ponto de referência para facilitar a vida dos carteiros. E, ainda assim, as mensagens acabavam sempre por chegar ao destino. Na ilha canária de cerca de 140 mil habitantes, todos sabiam onde vivia o Prêmio Nobel de Literatura de 1998. Para muitos, aquele pedaço de terra entre a Europa e a África só passou a existir quando o escritor português para lá se mudou. Saramago chegou a Lanzarote em 1993 e permaneceu até sua morte, em 2010. “Lanzarote não é minha terra, mas é terra minha”, disse o morador mais ilustre da ilha, certa vez. Em junho do ano passado, a frase foi gravada na base de uma escultura de seis metros, dedicada ao escritor e colocada em frente da casa e da biblioteca construídas pelo autor de Memorial do convento. O encanto de José pela ilha foi amor à primeira vista. Em 1992, vindo de uma conferência na vizinha ilha de Las Palmas, o escritor e a companheira CON TI NEN TE#44

Viagem Pilar del Río fizeram uma visita de menos de dois dias a Lanzarote, onde morava (e ainda mora) uma das irmãs da jornalista espanhola. Ficaram impressionados. De volta a Lisboa, onde viviam, decidiram que construiriam uma casa e se mudariam para a ilha, o que aconteceu alguns meses depois. Em Portugal, Saramago havia sido censurado pelo governo ao ter o Evangelho segundo Jesus Cristo proibido de representar o país em um concurso. Saiu de um ambiente asfixiante e mudou-se para uma ilha vulcânica, onde a paisagem é essencialmente mar e lava e onde 60% do território é preservado – em 1993, o lugar foi declarado Reserva de Biosfera da Unesco. Lanzarote foi, para o escritor, o ambiente ideal para criar. Ali encontrou tranquilidade, beleza e paz. “O prazer profundo, inefável, que é andar por estes campos desertos e

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varridos pela ventania, subir uma encosta difícil e olhar lá de cima a paisagem negra, escalvada, despir a camisa para sentir diretamente na pele a agitação furiosa do ar, e depois compreender que não se pode fazer mais nada, as ervas secas, rente ao chão, estremecem, as nuvens roçam por um instante os cumes dos montes e afastam-se em direção ao mar, e o espírito entra numa espécie de transe, cresce, dilata-se, não tarda que estale de felicidade. Que mais resta, então, senão chorar?”, escreveu Saramago na entrada do dia 24 de junho de 1993, no primeiro volume dos seus Cadernos de Lanzarote.

ESPETÁCULO DO MUNDO

Embora pertencente à Espanha, Lanzarote fica a mais de 1.000 quilômetros de Madri e a pouco mais de 100 do Marrocos. É uma ilha de cerca de 850 km2 (duas vezes

Florianópolis, por exemplo), dividida em sete municípios, que tem no turismo sua principal atividade – seguido da pesca e da agricultura (o vinho branco de Lanzarote é muito apreciado). Tem esse nome em homenagem ao conquistador genovês Lanceloto Malocello, que, no começo do século 14, aportou por aquelas terras. Das três fases geológicas pelas quais passou a ilha, a mais recente data dos séculos 17 e 18, quando décadas de erupções moldaram o lugar como hoje está. “Tinha pensado que Sebastião Salgado seria pouco sensível às lavas e vulcões de Timanfaya (os olhos dele já viram tudo...), mas enganeime. ‘Estou assombrado’, disse, e a expressão do rosto confirmava as palavras. ‘Hei de voltar e fazer umas fotografias’, disse. Se ele puder cumprir a promessa, Lanzarote poderá gabar-se da sorte que tem”,

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Página anterior 1 A ILHA Território espanhol, Lanzarote tem 850 km2, sendo dividida em sete municípios. O turismo é sua maior fonte de renda Nestas páginas 2 SARAMAGO Escritor português mudou-ser para a ilha em 1993 e lá faleceu em 2010

3 CALETA DE FAMARA Pequena vila localizada ao norte do arquipélago, distante da zona turística 4 A CASA Residência de José Saramago foi construída por ele e sua esposa, Pilar del Río

escreveu Saramago nos seus Cadernos de 1996. Em junho daquele ano, o fotógrafo brasileiro viajara de Paris para mostrar ao escritor as fotos de seu livro Terra, e pedir-lhe um prefácio. No pouco tempo livre que tiveram, visitaram o Parque Nacional de Timanfaya, uma cadeia de vulcões que formam um cenário apocalíptico. Os olhos que já haviam visto de tudo se depararam com camadas de lava que lembram enormes chapas de aço retorcido. Salgado não viu vegetação ou animal, porque ali praticamente não há vida, mas contemplou o mar azul no horizonte e assistiu como a luz em Lanzarote, por conta do vento constante que arrasta as nuvens, muda a paisagem a cada instante. A beleza dura e agressiva que havia enamorado o escritor era por ele mostrada, com orgulho, aos amigos. Quando recebiam visitas (Carlos Fuentes, Almodóvar, Baltazar Garzón

“O prazer profundo, inefável, que é andar por estes campos desertos e varridos”, escreveu Saramago sobre o lugar foram alguns dos que passaram por ali), Saramago e Pilar percorriam a ilha, mostrando-a aos convidados: os miradouros, as pequenas vilas de pescadores, as muitas criações do arquiteto César Manrique... Mas havia um lugar que o escritor se recusava a pisar: Playa Blanca. No final dos anos 1990, uma série de construções foi erguida naquela zona para atrair turistas. As casas brancas (a grande maioria das casas de Lanzarote é pintada da mesma cor) de um só nível deram lugar

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a edifícios, hotéis e restaurantes de luxo que descaracterizavam a paisagem. Até o último dia de vida, Saramago alertou para a ganância que colocava em risco o paraíso que escolheu como morada.

A CASA

No dia 18 de junho de 2010, por volta das 11h15, Saramago morreu. Despediu-se do mundo aos 87 anos na casa, em Lanzarote, lugar que um dia comparou com sua aldeia natal. “Será Lanzarote, nesta altura da vida, a Azinhaga recuperada? As minhas deambulações inquietas pelos caminhos da ilha, com o seu quê de obsessivo, não serão repetições daquela ansiosa procura (de quê?) que me levava a percorrer por dentro os olivais desertos e silenciosos ao entardecer?”. Nove meses depois da partida de Saramago as portas da casa foram abertas para visitação pública.

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Fotos: DIVULGAÇÃO

5 geografia Os vulcões de Timanfaya são dos elementos peculiares locais

fica um pequeno e aconchegante apartamento com dois quartos, uma cozinha e um banheiro. Foi construído para as visitas, mas o adoecimento de Saramago e sua posterior morte fizeram com que o espaço praticamente não fosse usado.

A ideia da fundação que administra o legado do escritor é possibilitar que o apartamento seja usado por acadêmicos interessados em pesquisar sobre o autor e por escritores, como uma residência literária. A casa segue com vida, embora talvez um pouco mais triste sem seu morador ilustre. “Diga ao Sebastião que volte à ilha, que venha fazer essas fotos. Estamos esperando ele”, diz Pilar, quando pergunto sobre a visita de Salgado.

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Viagem Desde então, a residência do escritor em Lanzarote é uma casamuseu. Ali estão o escritório onde trabalhava, a sala de televisão onde cochilava depois do almoço, a cozinha onde se reunia com as visitas, a pedra e a cadeira do jardim onde se sentava para ver terminar o dia. É muito mais uma casa do que um museu. Ali moram pessoas – o cunhado e a cunhada continuam a viver na residência – e animais (um gato e uma cadela). As fotos familiares continuam na geladeira da cozinha, lugar onde o visitante é convidado a tomar um café e ler trechos de algum livro do dono da casa. Na biblioteca, no terreno do outro lado da estreita rua, está a oliveira trazida pelo escritor de sua Azinhaga, e cerca de 20 mil livros – com duas prateleiras dedicadas à literatura brasileira. Estão também Jorge Amado, representado por um pequeno e simpático bonequinho, e Drummond, em um quadro que retrata seu rosto. Na parte de cima da biblioteca

o homem que projetOu lAnzarote Lanzarote não se parece com as demais ilhas canárias. Não há parques temáticos, gigantescos complexos hoteleiros, nem torres de apartamentos. A preservação da ilha se deve ao trabalho do escultor, arquiteto e pintor César Manrique, que nasceu (1919) e morreu (1992) em Lanzarote, embora tenha viajado o mundo e morado em Nova York. Graças à sua visão ecológica e de sustentabilidade, além de seu talento, a ilha vulcânica conseguiu ser preservada e valorizada ao mesmo tempo. Um plano paisagístico iniciado há meio século conseguiu fazer do lugar uma zona turística, sem depredá-la. As intervenções de Manrique deram ao lugar características únicas: ele soube combinar as belezas naturais da ilha com uma arrojada arquitetura. Os principais pontos turísticos de Lanzarote contam com projetos do artista. Uma de suas criações mais impressionantes é a intervenção nos Jameos del Agua, túneis naturais criados por lava “jovem” que correram em direção ao mar e assim abriram, na lava mais

antiga, essas passagens subterrâneas. Nos anos 1960, o lugar, que tinha se tornado um vertedouro clandestino de lixo, foi transformado em um centro de cultura. Antes de morrer, Manrique criou uma fundação (foto) que leva seu nome e está sediada em uma mansão construída pelo artista com amplas janelas para as montanhas vulcânicas. O objetivo da entidade, além de cuidar do legado do artista, é lutar pela preservação da ilha. Não é um trabalho fácil. A briga contra a especulação imobiliária é cada vez mais desigual, e recentes mudanças de leis permitiram a construção de hotéis monstruosos e campos de golfe que exigem irrigação diária – a escassez de água é um dos problemas mais graves de Lanzarote. Por se tratar de uma ilha, há um equilíbrio frágil que precisa ser mantido: os turistas são bem-vindos, mas há um limite que, se desrespeitado, ameaça o futuro do lugar. Agora a fundação preparase para travar uma outra batalha, contra a prospecção petrolífera que, autorizada pelo governo, deve começar a ser realizada na costa da ilha no começo deste ano. “Vocês têm que fazer o possível para que a segunda morte de César, a espiritual, não se produza. Se perderem o espírito dele, esta ilha estará acabada”, disse certa vez Saramago, em um evento que recordava Manrique. (Ricardo Viel)

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POLYTHEAMA O cinema à espera de espetáculos Diante do crescimento econômico da cidade de Goiana, na Zona da Mata de Pernambuco, o centenário cineteatro tenta reerguer sua história e a de seus espectadores TEXTO Clarissa Macau FOTOS Iezu Kaeru

Era noite de Sexta-Feira da Paixão

na cidade pernambucana de Goiana, em meados de 1940. O cinema Polytheama, na época chamado Nacar, estava lotado. O padre, o prefeito e toda a vizinhança goianense assistiam ao clássico da Semana Santa, A paixão e a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, dirigido pelo francês Ferdinand Zecca. Quem podia pagar o ingresso ficava nas convencionais poltronas de madeira e os menos apossados se dirigiam à “geral”, por trás da tela, de onde, consequentemente, as legendas apareciam ao contrário. Seu Lourival Preto, pipoqueiro, tinha o dom de sempre as traduzir para o povo – na ocasião, explicando a história de sacrifício mais famoso do Ocidente. A hora mais tensa do filme era chegada, Jesus estava a caminho da cruz, sendo covardemente açoitado pelos soldados romanos. Indignado, alguém grita: “Tanto homem aqui e ninguém ajuda esse rapaz! Será possível? Tenham vergonha nessas caras!”. Conhecido como Billy Elliot, um dos espectadores do setor mais barato não aguentou as imagens do homem sofrendo, e atirou, em direção

à cena, o banco no qual estava sentado. O assento perfurou a tela e acertou em cheio um homem do público “rico”; só se escutaram os gemidos de dor. Foi um pastelão cinematográfico. Dos mais antigos cineteatros do Brasil, o Polytheama é do tempo em que as pessoas viviam o cinema de forma tão profunda e lúdica, que, no escuro da sala de exibição, tudo se tornava realidade. A casa foi inaugurada em Goiana, na Rua Marechal Deodoro da Fonseca, em 1914. Já passou por vários nomes e eras, quando se chamou Cine Nacar (1950-1960), com o melhor das chanchadas e dos filmes românticos, e Cine Rex (1960-1982), ao apresentar os mais picantes filmes pornôs nacionais e a ação de filmes de caubóis. Em 1982, voltou a ter sua denominação original, o sinônimo, em latim, de “vários espetáculos”, os quais simplesmente não aconteciam naquele período. Pela falta de atenção, na década seguinte, o edifício desabou, sendo ameaçado de demolição completa para se tornar um shopping. Só em 2010 foi restaurado pela Fundarpe, por R$ 1, 2 milhão.

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Página anterior 1 ANTIGUIDADE

Cinema foi inaugurado em 1914

Nestas páginas 2 ENTUSIASTAS

Idealizador da Mostra Canavial de Cinema, Caio Dornelas, e o locutor Vilmar Gomes

BOCHINCHO 3 Moçada local prestigiou a Mostra Canavial de Cinema

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Pernambucanas Quase quatro anos depois, Goiana passa por mudanças profundas com a chegada de grandes empresas como a Fiat, Hemobrás, e o polo farmoquímico, firmando-se como um dos 10 maiores centros econômicos do estado. Enquanto isso, prestes a completar seu centenário em novembro deste ano, o espaço artístico do Polytheama está ocioso boa parte do ano, salvo exceções como a Mostra Canavial de Cinema, que acontece todo mês de novembro, um cineclube mensal e alguns shows musicais. O pipoqueiro da cidade, José Benigno, anda pela vizinhança levando seu carrinho de pipoca, há mais de 40 anos. Quando sabe de alguma sessão de filme, corre para a porta do cineteatro. “Esse é um velho companheiro nosso. Ficou um bom tempo parado. Voltou a funcionar, mas está um pouco maltratado no meio dessa cidade que parece estar sendo pintada de ouro. Tudo é caro, e a cultura está ficando em último lugar”, opina. “O Polytheama começou sem dono específico. Foram pessoas de posses que se juntaram para construí-lo. Cada um ficou responsável por uma parte. Um pelo projetor, outro pela tela. E

assim foi. Até que Lourival Ferreira conseguiu as ações junto à prefeitura e firmou-se como o primeiro dono desse que veio a se chamar Nacar. Depois, a prefeitura local se tornou a proprietária”, conta o publicitário e locutor Vilmar Gomes. Ele viveu boa parte dos seus 75 anos anunciando em carros de som – o principal veículo de comunicação de Goiana – os filmes em cartaz na cidade. “Ringo não perdoa, mata. Hoje, no Cine Rex, sete e meia da noite. O melhor filme do banguebangue italiano. Em cada cena, um tiro; em cada tiro, uma queda”, relembra a chamada de um dos filmes de faroeste mais famosos nos anos 1960. “Agora, não se passa mais nada regularmente por lá, virou palco de palestra, de distribuição de diploma, formaturas, requisição de salário! Existem alguns shows musicais. Mas raramente se tem cinema, tanto que faz um bom tempo que não ponho os pés lá. Minha época era dos seriados, aquela história do ‘volte na próxima semana’ e todo mundo voltava. Das chanchadas de Oscarito, Grande Otelo, de filmes como ‘mais uma criança que

morre no morro, é mais um anjinho no céu’, durante os domingos.” Perguntado sobre uma obra que mexeu com a cidade, Vilmar lembrou a ficção científica estrelada por Tyrone Power Veneno lento, filme sobre um parto cesariana. “Uma obra proibida para menor de 18 anos. O maior detalhe era que, nesse tipo de película, mulher não podia se sentar perto de homem. Existiam sessões para cada um, tudo vigiado pela polícia federal”, relembra Vilmar. Junto a ele, os brasileiros O ébrio e a novela Direito de nascer, da TV Tupi, também movimentaram as bilheterias e o burburinho dos goianenses. Como em toda cidade do interior que se preze, além do citado Billy Eliot, os personagens cotidianos do cinema eram muitos. Zefa Deão só aparecia durante a noite. Dona da última cadeira do lado esquerdo do Polytheama, era uma figura incógnita, mas inesquecível. “Ninguém sabia se era homem ou mulher. Mas ai de quem sentasse no seu lugar, ela sempre andava com uma bengala para acertar os infratores”, conta Vilmar. Havia, ainda, na lista de excêntricos, a Beata, “com seu bumbum enorme”; Miss Inês, “autointitulando-se de rainha da beleza, mas era feia que só vendo” e o Garajuba, que toda a noite, antes da sessão, ligava para uma noiva que nunca aparecia, enumera Vilmar.

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RIVALIDADES

Na terra dos caboclinhos e guaiamuns, não foi só o Polytheama que reinou no cinema local. Além dele, existiam o Cine Operário, o Cine Sesi e o monumental Cine Urubatã, criado nos anos 1950. A aposentada Pamela Rabelo, de 83 anos, mora na frente do Polytheama, porém sempre se recusou a ir ao local. “Goiana é uma cidade extremamente cultural e ligada à sétima arte. Mas eu, pessoalmente, não gostava do Cine Rex, como se chamava na época. Um lugar onde tudo era misturado, e nada prestava. Filme bom passava no Urubatã, um belo cinema de primeiro andar. A noviça rebelde sempre estava em cartaz. Uma pena que tenham demolido no anos 1980, para construir um supermercado”, diz, saudosa. O locutor Vilmar Gomes está ao lado dos que preferiam o Cinema Polytheama. “Pra mim, esse, sim, foi um lugar de bons filmes. O Urubatã era de quem gostava de namorar, conhecido por ser comparado ao São Luiz do Recife, de tão luxuoso. Depois, foi se vulgarizando, tinha tanto barulho, que mal se ouvia o filme”.

Pamela aponta uma característica dos goianenses: “Em Goiana, tudo é muito dividido. Como eu, existia muita gente que se recusava a entrar no Cine Rex e existiam os que não iam ao Urubatã. Isso podia depender do pastoril de que você fazia parte, se era azul ou vermelho, ou da banda musical à qual você tinha ligação”, conta,

Prestes a completar seu centenário em novembro deste ano, o espaço artístico está ocioso boa parte do ano, salvo exceções remetendo à existência das duas mais antigas bandas musicais da América Latina: as conterrâneas Saboeira, relacionada ao partido liberal, à qual se costumava vincular ao Polytheama, e a Curica, mais conservadora, identificada ao Cine Urubatã. O secretário de Políticas Sociais e Desportes da cidade, Ricardo de

Sá Torres, tinha apenas oito anos de idade quando foi pela primeira vez ao Polytheama. “O Poly sempre foi mais ligado a uma classe mais pobre. Como tinha a chamada ‘geral’, o setor mais barato, todo mundo se sentia convidado a entrar nele, não somente os menos afortunados financeiramente, mas também os menores de idade, desejando assistir aos filmes proibidos. Por isso era dito ‘misturado’.” E completa: “O Urubatã já tinha um ar imponente e elitizado, com suas três cortinas e holofotes. Dia de domingo, eu escolhia o Poly, para assistir aos filmes de Roberto Carlos, que começavam a passar no cinema. Depois da sessão, todo mundo ia tomar sorvete na lanchonete que tinha aqui perto, a Frateli Vita”. Nos finais de semana, o local também foi usado para ensaios e apresentações de teatro, dança e grupos estudantis. Os dois cinemas faziam sucesso por apresentarem shows de cantores conhecidos da época. No auge do iê-iêiê, o músico Luciano Albertine tocou em várias bandas locais. “O Urubatã tinha estrutura. Mas o Rex trouxe nomes grandes, a exemplo de Waldick

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Soriano, Nelson Gonçalves e Ângela Maria”, recorda ele. Albertine chegou a se apresentar no Cineteatro da Rua Marechal, que, segundo ele mesmo, era sempre um fracasso. “Santo de casa não faz milagre. Sempre acham que artistas locais são doidos, malucos. O engraçado é que, se vier um doido de fora, aí, sim, é gênio”, opina Albertine. Havia ainda os que frequentavam os dois cinemas sem nenhum problema. Para o fotógrafo Carmelo Antonio Oliveira, as programações se diferenciavam. “As pessoas assistiam à primeira sessão em um e, depois, trocavam de estabelecimento, para ver o que estava passando no outro. O final de semana era todo dentro dessas casas.”

CHEGADA DA TV

O cinema foi, para gerações, a principal forma de lazer. Nos anos 1970, as televisões chegaram para ficar nas pequenas cidades brasileiras, e não seria diferente em Goiana. “Por muito tempo, minha casa foi a única a ter TV na cidade, e virou uma espécie de novo cinema, cheia de pessoas para ver novela. Depois, cada um comprou a sua, e deixamos de socializar, em nome do conforto”, conta Ricardo Sá. No lugar de Oscarito e Grande Otelo, os filmes do Cine Rex ganharam novas protagonistas. As deusas do sexo, como

as atrizes Vera Fischer e Elena Ramos, invadiam as telas de cinema goianenses. “Foi na época do boom do videocassete. Ver filme repetido não fazia mais graça. O povo se afastou do cinema, e deu brecha para os filmes proibidos, a cultura do filme pornô”, diz Vilmar. Essa transformação, segundo o locutor, aconteceu através do gerente do período,

filmes preferidos conversavam com a situação do Brasil, como Amor comanda o cangaço, de Carlos Coimbra, e Deus e o Diabo na Terra do Sol, do grande Glauber Rocha.” Longas que raramente lotavam uma sessão, a não ser que fossem apresentados durante o final de semana.

“Já quiseram demolir o Polytheama para construir algo mais rentável que um ‘mero’ cinema”

“Hoje, tudo aqui está numa logística de novos empreendimentos. Já quiseram demolir o Polytheama para construir algo mais rentável que um ‘mero’ cinema. A população, felizmente, não deixou isso acontecer”, afirma Vilmar Gomes. Foram 30 anos de portas fechadas. O teto precisou desabar, na década de 1990, para chamar a atenção das autoridades. Tombado como patrimônio histórico em 2010, o Polytheama passou por uma reforma completa, com o objetivo de receber a classe artística da Zona da Mata Norte. Caio Dornelas, um dos criadores do único cineclube da cidade, o Iapôi, e idealizador da Mostra Canavial de Cinema, recorda o dia da inauguração: “Ficamos muito felizes, o clube foi convidado para fazer a sessão de abertura. Toda a cidade veio conferir. Mas, hoje em dia, não existe protocolo claro para o uso das pautas. Ainda há a velha conotação política. Nessa gestão, estamos acessando o espaço sem

Vilmar Gomes o já falecido Teófilo Dias Neto, o Doca. “Doca começou a trazer não só filmes, mas também o teatro pornográfico. Chegaram a apresentar até sexo ao vivo”. Apesar de as pornochanchadas serem o carro-chefe do Polytheama da época, havia espaço para as novidades intelectuais. O guarda municipal Josedemir de Gomes, atualmente responsável pelo estabelecimento, alargou seus horizontes sobre o mundo na frente da telona. “Nos anos 1970, aprendi a falar inglês com Star trek e O massacre da serra elétrica. Porém os meus

CULTURA CINÉFILA

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4 CONTRABAIXO Luciano Albertine tocava no cinema SESSÃO 5 Exibição de Curica, de Hanna Godoy

6 DOCUMENTÁRIO Personagens do Garotas da moda

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problema, mas, em anos passados, chegamos a ser cobrados para usar o local, que é um bem público. A prefeitura alegava não ter como pagar alguém para cuidar do ambiente”. Atualmente, o Polytheama possui um gerente responsável por toda a manutenção do espaço. A única máquina de projeção está quebrada, obrigando os usuários a possuírem equipamento próprio. O conserto foi prometido para a comemoração dos 100 anos. A favor da cultura cinéfila, a Mostra Canavial de Cinema, ocorrida no segundo semestre do ano passado, atraiu pessoas ao cineteatro que ora assistiam aos filmes, ora se dispersavam, conferindo seus smartphones, e, em outros momentos, chegavam a filmar com seus celulares as obras exibidas. A chegada de grandes empresas em Goiana motivou a vinda de pessoas de todo o país, além de uma exacerbada

especulação de imóveis, que ameaça de demolição patrimônios históricos. “Vivemos uma mudança de ares. Através de um processo educativo, podemos conscientizar nossa população sobre a conservação e revitalização de nossa história”, opina Vilmarzinho, filho de Vilmar Gomes, membro do cineclube Iapôi e diretor de um dos filmes apresentados na seleção. Seu curta Zé Mateo mostra a rotina de um feirante goianense. “É uma tentativa de mostrar alguém invisível ao atual crescimento econômico, mas que, ao mesmo tempo, contribui com ele à sua maneira”, conta. As travestis goianenses Pamela de Andrews, Amora Souta e Joyce Meneguel foram protagonistas do curta-documentário Garotas da moda (2012), de Tuca Siqueira. O filme rodou o país, mas só na Mostra Canavial elas tiveram a chance de ver suas histórias retratadas na telona. “A cidade também tem que mostrar o

lado da gente, a cultura LGBT. Fico emocionada que isso aconteça através do cinema. Poderíamos ter visto antes, mas nunca havia passado por aqui. Esperamos um dia fazer um show no Polytheama”, diz Pamela, que mantém com as amigas um grupo de dança, no qual faz cover de cantoras pop. O artesão Edilson Oliveira trabalha no mercado de artesanato ao lado do cinema. Fã dos filmes que passam no Pollytheama, ele acredita que o espaço tem muito potencial, mas falta uma divulgação específica: “Não adianta anunciar em outdoors. Nossa memória é auditiva. Os carros de som são nosso principal meio de comunicação. Por ser cidade de interior, até nota de falecimento sai por lá. As chamadas de filmes deveriam voltar a acontecer por esses veículos, como antigamente”. Vilmarzinho, filho do homem que mais chamou filmes na cidade, o locutor Vilmar Gomes, diz:“Existe uma hábito de dizer que o cinema é público. As pessoas, hoje em dia, têm dificuldade de acreditar nesse discurso. Será que é do povo mesmo, ou só do governo? É necessário que as pessoas comecem a adotar o Polytheama. E que a prioridade no seu cuidado não seja apenas eleitoreira, mas para firmar a importância da arte e da história de nossa cidade nas pessoas.”

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HULTON DEUTSCH COLLECTION/CORBIS

INGLATERRA Correndo da má fama à mesa Nas últimas décadas, o país trabalha para desconstruir a imagem negativa de sua gastronomia, investindo em comidas de várias etnias e no seu tradicional café da manhã TEXTO Daniel Buarque, de Londres

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O aclamado chef francês Joel Robuchon causou surpresa entre os amantes da boa comida, ao afirmar, em 2011, que Londres, e não Paris, seria a capital mundial da gastronomia. Robuchon, que tem restaurantes nas duas capitais europeias, não se referia exatamente à comida tradicional inglesa, mas à diversidade de etnias e tipos de comida encontrados na cidade, além de uma proposta de vanguarda na abordagem da produção de alimentos na Inglaterra. Enquanto chefs reconhecidos internacionalmente

atuam em Londres, apostando em receitas com alguns dos ingredientes mais requintados, como foie gras e trufas, até mesmo o tradicional café da manhã britânico – com feijão, ovos, bacon e linguiças – busca o aperfeiçoamento e o status de iguaria. A declaração do francês foi o ápice de um processo de décadas em que a gastronomia inglesa tenta superar um passado obscuro para se tornar o epicentro da alta gastronomia. Durante muito tempo, uma famosa piada sobre os estereótipos europeus dizia que “o

inferno é um lugar onde os cozinheiros são ingleses”. Mas, nos últimos anos, com a consolidação de Londres como um dos centros mais cosmopolitas do mundo, a cidade vem se transformando em polo gourmet. O Reino Unido já figura entre um dos cinco lugares com mais restaurantes estrelados no prestigioso Guia Michelin de gastronomia e é possível experimentar mais de 240 comidas étnicas diferentes, somente em Londres. “O bom gosto voltou a se fazer presente à mesa inglesa”, explicou o pesquisador Colin Spencer, autor de

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1 LORDES Garçons vestem-se a rigor para servir oficiais em Woolwich, em Londres, nos anos 1970

uma extensa obra sobre a história da alimentação britânica. “Agora, acho que se come melhor aqui do que em qualquer outro lugar do mundo”, alegou, ecoando Robuchon. Segundo ele, a gastronomia inglesa começou a melhorar por volta dos anos 1960, mas demorou cerca de 40 anos para a notícia se espalhar pelo mundo, e a ideia de que se come bem na Inglaterra ainda causa surpresa. O país das batatas cozidas sem sabor e do feijão servido no café da manhã começa a se afastar da imagem

negativa criada ao longo de quase 200 anos. “Existe um forte movimento em Londres, liderado por mercados, pelos pubs gastronômicos (os gastropubs) e por novos chefs, que buscam celebrar a comida e os ingredientes britânicos. Isso está acabando com a má reputação da comida inglesa”, explicou Laura Siciliano-Rosen, autora do livro London food and travel guide, uma obra bem completa de comidas na capital inglesa. O movimento de celebração da comida inglesa é tão forte, que até alguns dos símbolos da falta de talento

dos cozinheiros ingleses estão sendo habilitados ao status de iguaria. Por exemplo, querem transformar o (mal) afamado café da manhã britânico em “prato nacional”. Segundo a English Breakfast Society, não há nada mais inglês que acordar pela manhã para comer um enorme prato com feijão, linguiça, bacon, ovos, cogumelos, tomate e uma torrada com manteiga para acompanhar. Segundo essa sociedade de proteção do café da manhã, criada em 2012 por voluntários que querem manter a tradição, entretanto, a popularidade do prato vem diminuindo entre os ingleses. Enquanto metade da população do país começava todos os dias com o desjejum completo, em 1950, o número vem caindo vertiginosamente nos dias atuais. “Infelizmente, o consumo do café da manhã inglês caiu a ponto de apenas 1% da população comê-lo diariamente”, diz o grupo. A associação chegou a criar uma campanha para a promoção do desjejum inglês ao título de especialidade tradicional reconhecida pelo selo TSG (Traditional Speciality Guaranteed) da União Europeia. A história da ascensão do pesado café da manhã inglês acompanha a história da decadência da gastronomia britânica, uma lacuna de quase dois séculos na qualidade da comida do país, que afeta a forma como a sua culinária é pensada até hoje. Na mesma época em que surgia a combinação famosa do desjejum britânico, as transformações pelas quais passava a sociedade inglesa levaram a um declínio duradouro na gastronomia nacional do país.

HIATO INDUSTRIAL

Segundo Colin Spencer, a comida da Inglaterra tinha uma boa fama internacional até o século 19, mas a ideia de que se come mal no Reino Unido tem seu fundo de verdade histórica. “O que as pessoas comem é determinado pela classe social delas. Em países industrializados, a classe trabalhadora e os pobres comem mal

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porque estão separados dos recursos e da terra em que os alimentos são produzidos”, disse. Desde o século 11, a comida consumida pela elite britânica impressionava o resto do mundo pela influência de temperos internacionais. “Até o século 18, a comida inglesa era muito boa, mas a Revolução Industrial afetou a dieta e transformou o país inteiramente.” O pesquisador diz ser possível destacar vários motivos que levaram a comida inglesa a conquistar o rótulo de “pior do mundo”, que predominou até poucos anos atrás. Quase todas as razões têm relação com as transformações culturais e sociais por que o país passou no século 19, a começar por reformas no sistema de

propriedade de terras e urbanização por conta da Revolução Industrial, que cortaram a raiz da alimentação britânica, que era a culinária camponesa. A urbanização do país levou a práticas mais simplificadas de preparo alimentar. Tudo começou, segundo ele, porque a Era Vitoriana, no século 19, foi um momento em que a Inglaterra vivia um período de fortes transformações sociais, com grande fluência entre as classes e espaço para a ascensão social. Enquanto isso acontecia, a elite passou a obedecer a uma série de regras de etiqueta e comportamento que deixava todas as pessoas do grupo parecidas. “Havia verdadeiro medo da diferença”, ele conta, e isso gerou um

movimento rumo a uma alimentação com base em comidas simples e sem gosto. “A aparência da comida era mais importante do que o sabor”, diz. A classe média surgida na Era Vitoriana, explicou, tinha pavor de demonstrar prazer em qualquer situação, o que acabou afetando também a alimentação. “A comida deveria ser consumida com demonstração de decoro; se tivesse fome, a pessoa nunca deveria demonstrar isso; carnes tinham que ser fatiadas finamente; as pessoas precisavam comer lentamente. Uma boca cheia de comida era algo nojento.” Junto a isso, um forte zelo religioso fazia a má gastronomia ser aceita, valorizando a baixa sensibilidade ao prazer. Segundo Spencer, a sociedade vitoriana sobrevalorizava a gastronomia francesa, em detrimento da culinária tradicional inglesa, e “nenhum cozinheiro era incentivado a desenvolver receitas britânicas”. Além disso, uma nova arquitetura da urbanização da época separou a cozinha da sala de jantar, transformando a culinária em um trabalho “mercenário”, realizado por trabalhadores sem educação e sem preparo na cozinha, desenvolvendo pratos sem sabor. Dois últimos motivos completam o cenário de desolação para a gastronomia: o desenvolvimento da tecnologia de enlatados, de embalagem e de congelamento ajudou a padronizar os sabores e as texturas. E, por último, o Reino Unido se envolveu numa série de guerras no século19, o que causou o bloqueio do suprimento de alimentos de fora da ilha para o consumo dos ingleses, alterando definitivamente o perfil alimentar. “Ao final do século 19, todos esses fatores se combinaram para atingir a qualidade da culinária britânica, sem que o povo tivesse noção do que estava acontecendo”, diz Spencer.

FEIJÃO AO ACORDAR

Foi nessa mesma época que surgiu o hábito de incluir feijão, linguiças e ovos no café da manhã. O desjejum britânico surgiu como um ritual das classes mais altas da sociedade de

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2 JOEL ROBUCHON Para chef, Londres supera Paris na diversidade gastronômica TRADIÇÃO 3 Café da manhã britânico foi adotado por hotéis nos anos 1960

fazer uma longa refeição ao acordar, com uma grande variedade de pratos usando ingredientes do Império Britânico, além de chá e café. Era um costume considerado como a forma mais civilizada de se começar o dia. O café da manhã completo foi então incorporado pelas classes médias que surgiam na Inglaterra, e foram elas que popularizaram o que viria a se tornar a tradição na refeição matinal do país. Em um livro que servia à educação das administradoras do lar inglês no século 19, a escritora Isabella Beeton promovia a ideia de que um café da manhã cheio era a melhor forma de se preparar para um longo dia de trabalho. À época, as refeições matinais já incluíam bacon, presunto, tomates fritos, cogumelos fritos, ovos, pão, linguiças, black pudding (linguiça preparada com sangue de porco), manteiga, geleias e frutas. Para os mais ricos, havia ainda mais pratos compondo a mesa matinal, com mais tipos de carnes, frutas e pães. Foi no século 20, entretanto, depois da Primeira Guerra Mundial,

Fatores históricos explicam como a culinária britânica chegou ao ponto de se tornar uma das piores do mundo que a tradição das casas inglesas passou a ser incorporada por bares, restaurantes e hotéis do país, ajudando a divulgá-la internacionalmente. Turistas que viajavam a Londres encontravam a estranha combinação matinal e passavam a considerar parte do contato com a cultura britânica. Segundo o pesquisador Simon Majumdar, a fama e a tradição do café da manhã inglês se devem justamente à enorme presença de turistas internacionais em Londres desde a década de 1960, quando o breakfast passou a ser adotado por hotéis e turistas passaram a incluir o prato na lista de coisas a fazer. Tradição que dura até hoje.

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A imagem do famoso desjejum está espalhada por Londres. É comum ver fotos do enorme prato cheio de comidas estranhas ao paladar matinal brasileiro, em que o feijão tem gosto adocicado, em cada quarteirão com um pub da cidade. O prato é oferecido por preços que variam entre cinco e 10 libras (R$ 20 e R$40), e continua sendo uma das melhores formas de conhecer a história da gastronomia inglesa, mesmo que seja o representante de seu pior momento. Para o visitante, encarar o café da manhã que corporifica a alimentação do país pode ser uma forma de entender melhor a cultura local. “Claro que muitas pessoas ainda relacionam a comida inglesa à gororoba de microondas servida em pubs”, explicou Laura SicilianoRosen, autora do London food and travel guide. Mas mesmo alguns pratos tradicionais, como o café da manhã, estão sendo revalorizados. “Clássicos estão recebendo tratamento de qualidade atualmente. Ingredientes são selecionados especialmente, tudo é feito à mão”, disse.

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KARINA FREITAS

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ZÉ LIMEIRA O repentista que ouvia a lua cheia

Definido como “surrealista bárbaro” e outros conceitos capazes de entortar cabeças, o Poeta do Absurdo continua vivo 60 anos após sua morte TEXTO Gilson Oliveira

Se “ouvir estrelas” é próprio dos

amantes, dos poetas e dos loucos, como querem o parnasiano Olavo Bilac e o cantor Belchior, na música Divina comédia humana (“Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso”), qual seria o astro que falava aos ouvidos do repentista paraibano Zé Limeira? Provavelmente, a lua, ou melhor, a lua cheia, que, de acordo com multimilenar crendice popular, afeta profundamente o juízo das pessoas, concepção aproveitada até por William Shakespeare, que escreveu na peça Otelo: “Ela (a lua cheia) aproxima-se mais da Terra agora do que de hábito e deixa os homens loucos”. Essa é uma das conclusões a que se pode chegar quando os versos limeirianos são lidos, como esses em que narra um episódio que seria inusitado para a maioria dos seres humanos, mas é encarado por ele com a maior das naturalidades: “Um dia eu tava acordado,/ no mais rancoroso sono,/ passou uma cobra azul/ falando num microfono,/ e um mudo gritando em baixo:/ – ‘Vim buscar o meu abono!’”. Ou esses outros, exaltando a beleza de uma mulher: “Ela parece um limão/ Rodeado de cebola,/ Uma goiabeira verde/ Enfeitada de ceroula,/ com dentadura de pau/ eu elogiá-la vô-la”. Ou, ainda, a estrofe a seguir, na qual ele, no bojo de uma tradição típica da peleja

entre cantadores, derrama-se em autos e altos louvores: “Eu sou açude corrente/ dentro da mata bravia,/ gramática azul, beiçuda,/ queijo de leite de jia,/ rincho de burra cardan/ e haja festa na Bahia!”. Os autoelogios eram, na verdade, típicos de sua esdrúxula forma de ser: “Cantador pra cantar com Limeirinha/ é preciso ser muito envernizado,/ ter um taco de chifre de veado/ e saber decorado a ladainha,/ ter guardado uma perna de andorinha,/ condenar para sempre o Carnaval/ guardar terra de fundo de quintal/ e é preciso engrossar o pau da venta,/ beber leite de peito de jumenta,/ ediceta, pei-bufo e coisa e tal!”. Nascido em um dos grandes centros da poesia popular nordestina, a sertaneja cidade de Teixeira, na fronteira entre a Paraíba e Pernambuco, Zé Limeira veio ao mundo (ou melhor, ao seu particular universo) em 1886, em dia e mês desconhecidos. Como para aumentar a sua misteriosa aura, não se sabe também dia e mês de seu falecimento, ocorrido no ano de 1954. O que, talvez, para muitos, signifique que este seja o Ano Zé Limeira, cuja morte completa 60 anos em um dos 365 dias de 2014. Para avaliar esse seu prestígio e popularidade, é bastante ver a forte presença do poeta, por exemplo, na internet, em que é expressivo o número

de sites e blogs que a ele se referem, o que pode ser facilmente conferido através de uma consulta ao Google: lá, existem em torno de 550 mil ocorrências sobre o repentista. A música popular brasileira é outro espaço em que, de várias maneiras, a figura do poeta está altamente inserida. Caso de Pilogamia do baião, disco do Quinteto Violado lançado em 1979, cujo título utiliza uma palavra inventada por Zé Limeira, autor também de outros intraduzíveis vocábulos, como grodofobia, prodologicalidade, gordosopria e fulupafilutupeia. Em anos mais recentes, o cantador serviu de inspiração para outros trabalhos musicais, como o show e CD Oropa, França e Bahia, de Alceu Valença (título que reproduz um pouco da geografia limeiriana); a canção Se Zé Limeira sambasse maracatu, do grupo Mestre Ambrósio; e a composição Zé Limeira.com, da banda de forró As Bastianas. Um artista associado ao autor de alguns dos maiores disparates épicos e líricos do mundo é Zé Ramalho, que não apenas compôs e gravou a música Visões de Zé Limeira sobre o final do século XX, como se tornou, junto com ele, personagem de um folheto de cordel: Peleja de Zé Limeira com Zé Ramalho da Paraíba, de Arievaldo Viana. Disponível no site oficial do cantor, o cordel tem texto de

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apresentação do próprio Zé Ramalho, que nele diz: “Fico lisonjeado pelo modo como apareço nesse libreto numa peleja ‘virtual’ com o lendário Zé Limeira, personagem que tanto me inspirou (...)”. Outros setores que acolheram com entusiasmo o improvisador de versos sem pé nem cabeça foram o cinema, com o documentário de longametragem Na estrada com Zé Limeira, de Douglas Machado, e o teatro, através da peça O mundo louco do poeta Zé Limeira, de José Bezerra, que, encenada no Rio de Janeiro e em São Paulo, obteve grande cobertura da mídia do Sudeste, fazendo o cantador ser descoberto por um público jovem que não tinha a mínima ligação com o repente.

ABSURDO REAL

Verdadeira celebridade nos meios rurais do Nordeste, o repentista chegou aos círculos artísticos e culturais de grande parte do Brasil depois da publicação, em 1973, do livro Zé Limeira, poeta do absurdo, do jornalista e também poeta paraibano Orlando Tejo. Ao ganhar o país, a poesia limeiriana ganhou também uma série de análises, sendo o seu autor classificado por alguns críticos como “abstracionista rústico”, “ultrassincretista”, “nítido-abstracionalimpressionista”, “surrealista bárbaro”, “futurista-nitidista” e outros conceitos capazes de destrambelhar até a cabeça do próprio poeta, que, hoje, segundo

1-2 COMPILAÇÃO O poeta Orlando Tejo teria conhecido Zé Limeira nos anos 1940 e, a partir disso, reunido seus poemas em livro

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algumas fontes, teria os seus repentes estudados até na França. Lendo-se o livro de Tejo, percebese que conjuntos de palavras pouco convencionais também poderiam ser usados para definir a figura de Zé Limeira, cuja aparência e comportamento pareciam uma extensão de sua poesia e que, se hoje não passariam despercebidos em nenhum lugar do mundo, imagine-se nos grotões sertanejos do início do século passado... Assim o descreve Orlando Tejo: “Caboclo de quase dois metros de altura, trajava mescla rústica de um azul vivíssimo a contrastar com o vermelho aceso da flanela que lhe envolvia o pescoço, onde se via um tosco anelão de pedra azul pendurado. Exageradas lentes pretas guarneciam os olhos (...). Quinze anéis grotescos reluziam nos dedos possantes e ágeis, enquanto dezenas de fitas multicores esvoaçavam nas clavículas da viola festiva. (...). Nunca utilizou o automóvel ou outro meio de transporte motorizado. (...) A pé venceu o mapa da Paraíba e deslocouse ao Ceará, ao Rio Grande do Norte, a Pernambuco e a Alagoas”.

TOLFUS DOS ALDÍACOS

Considerado um precursor dos hippies, Zé Limeira – segundo alguns registros sobre esse que se tornou o mais mitológico dos poetas brasileiros – chegava a andar 60 quilômetros por dia, para participar de desafios em quase todo o Nordeste. Onde aparecia, era recebido como

verdadeiro pop star pelo povão, que virava a noite, nas festas e feiras, ouvindo e rindo com seus versos malucos, os quais eram divulgados e preservados à base do boca a boca. Alguns, repletos de pornografia. A paixão que o homem simples do interior tinha pelo Poeta do Absurdo deixava em maus lençóis todos os cantadores que ousavam desafiálo, porque, por mais talentoso que fosse o adversário de Zé Limeira, na avaliação popular, este era sempre o vencedor, chegando, muitas vezes, a deixar o outro repentista totalmente confuso com versos como: “Peço licença ao prugilo/ dos quelés da juvenia,/ dos tolfus dos aldíacos,/ da baixa da silencia,/ do genuíno da Bríbia,/ do grau da grodofobia!”. Uma das grandes vítimas de Limeira foi o também famoso Anastácio Mendes Dantas, que o enfrentou numa peleja no Sertão do Cariri. Uma pessoa da plateia sugeriu o mote “Vou fazer serenata na calçada/ da menina que amei na minha vida” e Anastácio não teve dúvida: “Venho amando do tempo da infância/ uma linda menina que ainda prezo,/ inda quase maluco eu não desprezo/ sua imagem e sua rutilância./ Desprezá-la seria ignorância,/ minha deusa bonita e preferida/ que por Deus para mim foi escolhida/ minha estrela brilhante e consagrada.../ Vou fazer serenata na calçada/ da menina que amei na minha vida”. O público reconheceu a criatividade e capacidade de improvisação do poeta, mas os mais duradouros e ardentes aplausos tinham sido reservados para Zé Limeira, que assim desenvolveu o mesmo tema: “Quando a guerra zuou dentro da França eu ouvi os estrondos do Sertão./ Gosto muito de fava e de feijão,/ a muié que eu quiri tinha uma trança./ Japonês e alemão entrou na dança,/ a estrada do Brejo é tão comprida,/ é pecado matar vaca parida,/ a Alemanha da China tá tomada.../ Vou fazer serenata na calçada/ da menina que amei na minha vida”.

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REPRODUÇÃO

No prólogo do caderninho de

POETINHA O tradutor do amor

Caderno de poemas inéditos de Vinicius de Moraes, principal item da coleção Arquivinhos, apresenta o surgimento do artista que levou sua vida aos versos TEXTO Débora Nascimento

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poemas dedicado aos amigos do Colégio Santo Ignacio, o jovem de 16 anos, aspirante a poeta, desculpa-se lírica e antecipadamente com seus possíveis leitores pelos versos das páginas seguintes. O manuscrito, de caligrafia bem-cuidada, denuncia que foi feito num tempo em que os adolescentes não viviam com os dedos em teclados de computadores, perdendo, assim, o jeito de lidar com a escrita em papel. Era o final dos anos 1920, uma época em que os garotos costumavam suspirar de paixões idílicas e platônicas e escreviam versos que adormeceriam em suas gavetas ou nas de suas musas. No entanto, alguns desses ganhariam vida pública, principalmente porque seus autores “vingaram”, a exemplo de um dos mais populares do nosso país, Vinicius de Moraes, cujo centenário de nascimento se deu em outubro do ano passado. Dentre as homenagens rendidas ao Poetinha, está o relançamento, agora mais arrojado, da pasta que inaugurara, em 2002, a coleção Arquivinhos de escritores brasileiros, da editora Bem-Te-Vi, que recebe o acréscimo do tal caderno com 14 poemas manuscritos do artista, sendo 13 inéditos. O caderninho é o carro-chefe do pacote, que inclui minibiografia, um belo retrato de Vinicius feito por Portinari, fotos, seu primeiro registro como letrista, Loira ou morena (de 1928, gravado em 1932), cartões-postais e cartas que levam a assinatura de personalidades como Orson Welles, Manuel Bandeira, Pablo Neruda e Charles Chaplin, tudo isso em versões fac-símiles, com direito a manchinhas amareladas “pelo tempo”, mas sem o cheiro de guardado, claro. O objetivo do lançamento é que se estabeleça uma sensação de proximidade afetiva com o artista, a partir das cópias de algumas relíquias do seu acervo pessoal. O conjunto ainda inclui o CD Miúcha canta Vinicius & Vinicius. A duplicidade do nome no título se explica porque a intérprete escolheu músicas em que não somente a letra é de autoria do artista, mas também a melodia. A cantora registrou 14 das 20 canções compostas

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

3 Página anterior 1 VINICIUS DE MORAES Na fase da adolescência, época em que já aspirava ser poeta Nestas páginas 2 COLÉGIO SANTO IGNACIO Vinicius (quarto à direita, da fileira abaixo) dedicou caderno de versos aos colegas

Leitura

3 POEMA Em Soneto, de 1931, surge a resignação do sofrimento por amor 2

apenas por Vinicius, sem seus mais famosos parceiros (Tom Jobim, Baden Powell, Carlos Lyra, Toquinho e Chico Buarque). O disco traz algumas participações especiais, como as do citado Chico, Bebel Gilberto, Zeca Pagodinho e Yamandu Costa. Vinicius, a propósito, é um dos poucos letristas da música brasileira (bem) tratado como poeta, apesar de haver quem o considere um poeta menor – talvez o fato de ser tão popular colabore com essa controversa ideia. Ele soube traduzir, como poucos poetas/letristas de seu país, em linguagem acessível, sincera, plena, a sensação de estar apaixonado e de sofrer por amor, trabalhando com emoções tão conflitantes e, ao mesmo tempo, tão correlatas, como paixão, solidão, tristeza, esperança, superação, desejo. As 250 canções compostas por Vinicius, quando juntas, podem formar o que seria um tratado para se compreender o amor romântico. Muitas delas se tornaram clássicos e algumas das músicas mais tocadas no Brasil e até no mundo, Se todos fossem iguais a você, A felicidade, Eu sei que vou te amar, Insensatez e Chega de

saudade, que, em 1958, lançou a bossa nova, e Garota de Ipanema, que, em 2005, foi eleita uma das 50 Grandes Obras Musicais da Humanidade, pelo Congresso norte-americano. Fora as canções, também se tornaram bastante populares poemas como o Soneto de fidelidade (declamado junto com a música Eu sei que vou te amar), Poema de Natal e Soneto do amor total. Os versos do caderno, contidos na coleção Arquivinhos, revelam esse poeta ainda imberbe, entre 1929 e 1931, dando seus primeiros passos também como homem que ama (Vinicius se casaria nove vezes). Num poema, Confissão, ele registra o começo de um romance, depois, em Desdém, sua desilusão, e em Soneto, a resignação, seu destino seria sofrer (“No masoquismo do bom sofrimento”, termina, ensaiando a sentença que faria futuramente em Canto de Ossanha: “O amor só é bom se doer”). Dois anos depois de encerrar esse caderno, Vinicius fez sua estreia em livro, com O caminho para a distância. O segundo, Forma e exegese, veio em 1935. Três anos mais tarde, estreou na editora José Olympio, consolidandose como um dos principais autores

da geração de 30 do Modernismo. Já Cinco elegias, de 1943, é considerado o trabalho que marca sua maturidade. O livro de sonetos saiu em 1946. Em 1962, Rubem Braga e Fernando Sabino, proprietários da Editora do Autor, publicaram o livro de crônicas Para viver um grande amor. Em 1970, foi lançado o livro de poemas Arca de Noé. No total, foram 12 publicações. O lírico pedido de desculpas do jovem Vinicius, naquele seu longínquo prólogo, antecipa o retrato do que seria a trajetória de sua alma de poeta até 9 de julho de 1980, quando partiu, aos 66 anos: “Não repares se a forma é apurada/ Ou se a métrica foi talvez torcida/ Olha somente a vida dos meus versos/ Que a vida do meu verso – é a minha vida!”

Coleção Arquivinhos VINICIUS Editora Bem-Te-Vi Pacote de documentos fac-símiles, incluindo cartas, postais e caderno

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INDICAÇÕES CONTOS

POEMAS

Edições Bagaço

Editora Escrituras

ROBERTO BELTRÃO Na escuridão das brenhas Nessa compilação de contos de horror com sotaque pernambucano, o jornalista utiliza seus 15 anos de pesquisa sobre o misticismo no estado, para narrar histórias que misturam o gênero fantástico com regionalismo. O espanto e o mistério do malassombro moldam tramas com sentimentos humanos.

IACYR ANDERSON FREITAS Ar de arestas As fotografias de Ozias Filho intercalam os versos de dor do poeta Iacyr Freitas, que se permite tratar do soterramento em si de forma dura, sem amenidades. A poética desencantada foi traduzida para a linguagem corporal e o registro dessa interpretação é o que ilustra o livro. Cru e belo.

ARTIGOS

GUSTAVO VENTURI E TATAU GODINHO Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privados Editora Fundação Perseu Abramo

Ainda são veladas as desigualdades de gênero no país. Com análise de dados, artigos de pesquisa e reflexões, a publicação escancara as distintas dinâmicas sociais que devem ser compreendidas e enfrentadas para diminuir a opressão contra as mulheres brasileiras.

MEMÓRIA

KATE SARAIVA Cinemas do Recife Funcultura

O nascimento e declínio dos cinemas de rua do Recife contam a história de uma efervescência cultural ocultada pelo descuido com o patrimônio e a memória locais. Com o intuito de lembrar o passado e preservar o que ainda é presente, a autora resgata, com fotografias, projetos arquitetônicos e pesquisa documental, o passado da “Hollywood do Nordeste”.

Cidades Rebeldes

NO CALOR DA HORA, A INTERPRETAÇÃO DOS PROTESTOS

“Tenham cuidado não só com os inimigos, mas também com falsos amigos que fingem nos apoiar e já fazem de tudo para diluir nosso protesto. Da mesma maneira que compramos café sem cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, eles tentarão transformar isto aqui em um protesto moral inofensivo.” No discurso proferido durante o Occupy Wall Street, em 2011,

o filósofo esloveno Slavoj Žižek parecia antever certas polêmicas que permeariam os acontecimentos de junho de 2013 no Brasil, denominados “Jornadas de Junho”: ondas de protestos que tiveram início nas reivindicações do Movimento Passe Livre de São Paulo e, alimentadas pelas redes sociais, espalharam-se rapidamente por vários estados

brasileiros. Com proporções gigantescas, geraram, em muitos casos, perda de foco e suspeitas (alimentadas por uma imprensa perplexa) de “pseudomanifestantes” infiltrados para manchar as manifestações, promovendo baderna e vandalismo. Polêmicas à parte, tais acontecimentos tiveram sua importância no sentido de dar luz a muitas questões e demandas da sociedade, e acenderem debates calorosos, tanto por parte da mídia quanto de intelectuais e pessoas ligadas aos movimentos. No calor do momento, a editora Boitempo lançou a primeira publicação sobre os protestos que abalaram o país em 2013. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Editora Boitempo) reúne textos de autores nacionais e

internacionais, como o próprio Žižek – um dos intelectuais mais inquietos e influentes da atualidade –, David Harvey, Raquel Rolnik, Ruy Braga, Leonardo Sakamoto, Venício Lima, Movimento Passe Livre (MPL-SP), entre outros autores. Além de um ensaio fotográfico dos protestos (cedido pelo coletivo Mídia Ninja), o livro é composto por ilustrações de Laerte, Rafael Coutinho, Rafael Grampá, entre outros. Todo o material foi cedido gratuitamente, como forma de baratear o custo da publicação, tornando-a mais acessível. A coletânea faz parte da combativa coleção Tinta vermelha e foi concebida como forma de analisar as causas e consequências desses acontecimentos e que tipo de herança os mesmos deixam para a democracia do país. (OLIVIA DE SOUZA)

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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

A METAFÍSICA DA PORTA Os brincantes se aproximam da casa que os receberá para a festa. Escutam-se longe o tropel de passos, o canto a duas vozes das marchas de estrada, as crianças respondendo num tom agudo, acima do vozeirão adulto. São homens, rapazes e meninos, embora usem vestidos pregueados, anáguas de renda, fitas e espelhos. As roupas imitam as cotas de malha dos cavaleiros andantes. Um capacete confeccionado com papelão, vidrilhos e areia prateada – do qual pendem fitas das mais diversas cores –, e uma espada de aço na mão direita completam o figurino medieval. O campo de batalha a que se dirigem é a porta de uma casa e o terreiro em frente. Irão representar um auto de reisados, que dura a noite toda, à mercê dos improvisos e da cachaça que os anfitriões oferecem. O número de cantos de um reisado, antes dos brincantes chegarem à casa onde acontecerá a festa, depende do repertório do mestre, contramestre e violeiro. O valor do brinquedo se mede pelos entremezes que ele representa, pelos

improvisos do mestre, pela graça dos Mateus, pelas coreografias e afinação das vozes nos cordões de figuras. E por muitas habilidades, como a destreza em jogar as espadas simulando uma batalha, a imitação de mulheres nos papéis femininos, a dança com ritmo e cadência. Mas não é sobre esses valores que desejo escrever. Dividido em cinco partes – marcha de estrada, abrição da porta, divino, chamada das figuras e despedida – o reisado me interessa pela metafísica do segundo entremez. Quando os brincantes chegam à casa para celebrar a festa, encontram todas as portas e janelas fechadas, num ato de interdição à festa. Entristecidos e surpresos, eles cantam: Abra a porta gente que eu venho ferido pela falsidade tão grande dos meus inimigos. Se tu vens ferido chega pra dentro sangue do meu peito jorrando serve de alimento.

De nada vale o rogo para que a porta se abra; ela continua fechada. Sucedem-se loas, rezas, cantigas épicas, sortilégios, tudo em vão. Apelam aos Mateus, os palhaços da brincadeira, tratados com desprezo por “meus negos”. De rostos encarvoados, roupas grosseiras, rosários extravagantes cruzando o corpo e cafuringas nas cabeças, os dois correm de um lado para outro, entre os brincantes e a plateia. O mestre ordena que os Mateus rezem. Eles não se fazem esperar e declamam uma enfieira de versos sem pé nem cabeça, baboseiras de duplo sentido, cheias de palavrões e apelos eróticos. A cena pode durar uma hora. O mestre busca trazer os Mateus para a ordem do sagrado, porém os safados apelam ao burlesco e ao profano. As pessoas já assistiram à representação uma centena de vezes, conhecem o desfecho da farsa, e mesmo assim riem e participam. Sabem que as rezas do mestre jamais abrirão a porta. São os dois sujeitinhos sem valor, os Mateus, com suas orações atravessadas, contrapondo o profano

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COLAGEM DE KARINA FREITAS/FOTOS DIVULGAÇÃO: FUNDARPE

ao sagrado, invertendo a ordem do mundo celestial e terreno, que alcançam o milagre de abrir a porta da casa para o ato seguinte da celebração: o divino. O sortilégio miraculoso, que faz a porta se abrir, é quase sempre um trava-língua de duplo sentido: Eu vi o velho Felix com um fole velho nas costas. Quando mais fede o fole velho, mais fede o velho Felix. O resto vocês imaginam, misturando às pressas fede, fole, Felix... Também podem imaginar a transgressão da rígida hierarquia social, política e religiosa, alcançada pela linguagem do teatro popular de rua, com seus valores comuns, terreais, erotizados. A subversão dos Mateus abre a porta. De nada valem as lamúrias do rei: Olha a porta e até se atreve A ver que já se trancou Para além de toda verve Do seu sangue lutador

Velha reza ainda lhe ferve Sangue de velho fervor*. Uma representação da quarta sequência do auto de reisados – a chamada das figuras – é especialmente curiosa: a morte e ressurreição do Boi. Torna-se fácil descobrir nesse entremez os vários motivos, egípcios, gregos, mesopotâmios e de outras culturas, tomados de empréstimo pela mitologia cristã. Num primeiro ato, o Boi se apresenta dançando, supostamente na companhia de pastoras. Por algum motivo, ele adoece. Em alguns reisados, o Boi é sacrificado: o mestre representa enfiar um punhal no seu peito e um brincante recolhe o sangue que jorra da ferida (outro brincante, que se esconde debaixo da armação do boi, carrega um botijão de vinho) e o distribui entre os que assistem à peça. Vemos aí o mesmo tema da missa católica: esse é o meu sangue, tomai e bebei-o... Que por sua vez remete ao sacrifício de Ampelo, o amado do deus grego Dioniso, morto

pela chifrada de um touro, e cujo sangue transformou-se no vinho que o deus orgiástico distribuía entre as suas bacantes. Chega a hora de repartir a carne do boi: esse é o meu corpo, tomai e comei-o. Só que é feito verbalmente, distribuindo as partes do animal sacrificado com o público assistente. Um dos Mateus da brincadeira assume a divisão do corpo, e o caráter sagrado da morte sacrifical do Boi cede lugar ao tom jocoso, debochado e profano de uma farsa. E do Boi a tripa? Pro doutor Futrica. E do Boi a mão? Pro padre João. Pra quem vai o rim? Vai pra seu Toim. E a tripa gaiteira? Pra moça solteira. A tripa mais fina? Para a Carolina. E do boi a Língua? Vai pra Catarina. E o cupim de fora? Vai pra Teodora. Todos são agraciados, conforme o ponto fraco de cada um. Até você, leitor, receberia uma parte desse Boi sacrificado, se estivesse na farra. *Assis Lima

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DIVULGAÇÃO

Claquete 1

FOUND FOOTAGE O ataque dos falsos documentários de horror

Baixo custo de produção, popularização da tecnologia e consumo de vídeos amadores são ingredientes que alimentam fenômeno do mercado cinematográfico TEXTO Rodrigo Carreiro

Ficção e documentário são

as duas categorias amplas que dividem a produção internacional desde o nascimento do cinema. Aparentemente, constituem filões excludentes entre si. Só aparentemente. Ao contrário do que pode parecer, o espaço limítrofe entre ficção e não ficção nem sempre é claro. Existe

consenso entre críticos e pesquisadores de cinema em torno da ideia de que uma pequena porção de filmes pode apresentar dificuldades de indexação. O mais significativo exemplo disso está num subgênero do cinema de horror contemporâneo: o falso documentário. Esses filmes são parte integrante de um ciclo de produção chamado

(de forma inexata, aliás) pela crítica norte-americana de found footage (em português, algo como “filmagens encontradas”). Eles consistem em realizações que combinam forma documental e conteúdo ficcional. Em outras palavras, os found footage de horror são construídos, parcial ou totalmente, a partir de falsos registros amadores de fatos extraordinários. A estilística documental utilizada nesses filmes valoriza certa imperfeição formal, de modo a gerar no espectador a ilusão (muitas vezes consentida) de que cada um deles constitui um documento histórico – um registro não encenado de um pedaço de realidade. Entre os títulos mais conhecidos do subgênero estão A bruxa de Blair (Eduardo Sánchez e Daniel Myrick, 1999), [Rec] (Jaume Balagueró e Paco Plaza, 2007), Cloverfield (Matt Reeves, 2008), Diário dos mortos (George Romero, 2007) e Atividade paranormal (Oren Peli, 2007). Mas o

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1 CLOVERFIELD Filme de 2008 é um dos mais conhecidos do subgênero

lançamentos com extravagantes estratégias de marketing e são exibidos em cinemas de luxo; outros têm sido disponibilizados timidamente através da internet, quase sem divulgação. O que mais impressiona é o tamanho do fenômeno: cruzando dados obtidos em bancos de dados de registro cinematográfico (Internet Movie Database, Box Office Mojo e Amazon) com consultas ao vasto fórum de discussão do IMDB (frequentado virtualmente por 17 milhões de usuários), é possível confirmar o lançamento, de 2007 em diante, de pelo menos 250 falsos documentários de horror em longa-metragem. Quatro minisséries de TV e dois games eletrônicos também recorreram a essa estratégia narrativa nesse período

PIONEIRISMO

fenômeno extrapola em muito essa meia dúzia de títulos famosos. Graças a uma série de razões que incluem o baixíssimo custo de produção, a proliferação de dispositivos de registro de imagem e som a preços acessíveis, e a toda uma cultura audiovisual contemporânea que combina o consumo regular de vídeos amadores e a exposição da intimidade, através de plataformas como o YouTube, os filmes de found footage caíram nas graças de produtores e cineastas e têm sido lançados às centenas. Seja com milhões de dólares financiados por grandes estúdios de Hollywood ou com a câmera emprestada por um amigo, falsos documentários de horror vêm sendo feitos em países como Índia, Brasil, Noruega, Espanha, Dinamarca, Austrália, Costa Rica, França, Alemanha, México e Bélgica, além dos Estados Unidos. Alguns títulos ganham

O uso da forma documental acoplada a enredos ficcionais inseridos no gênero horror existe historicamente desde 1980, ano em que foi lançado o pioneiro filme italiano Holocausto canibal, de Ruggero Deodato. Nos 20 anos que se seguiram, meia dúzia de lançamentos ocasionais deu sequência ao formato, que ainda não podia ser considerado um subgênero fílmico. Estatisticamente, a produção desse tipo de filme só veio a ganhar esse status a partir do sucesso conquistado por A bruxa de Blair, em 1999. Combinando a textura estilística típica dos documentários observacionais dirigidos por norteamericanos e franceses na década de 1960, com uma estratégia de marketing engenhosa, que usou a internet para reforçar o caráter de registro documental das imagens e sons do filme e, assim, apagar os indícios capazes de auxiliar os espectadores na indexação da obra como uma ficção, A bruxa de Blair se tornou o quarto filme de horror mais assistido de todos os tempos. Realizado por um grupo de estudantes de cinema, pelo custo minúsculo de US$ 30 mil, ele inspirou tanto grandes estúdios de Hollywood quanto cineastas independentes de todo o mundo: sim, era possível filmar com equipamento e atores amadores, ter o resultado exibido em grandes cadeias de cinemas, chamar a atenção da crítica e fazer muito dinheiro.

Parte do segredo do sucesso do longa-metragem – e também da onda de curiosidade que envolve hoje o lançamento sucessivo de tantos found footages – tem a ver com a estratégia usada para promover aquele título. Nem a bruxa do título e tampouco o sumiço dos protagonistas eram reais. No entanto, os diretores não queriam que seus futuros espectadores soubessem disso. Dessa forma, ajudaram a planejar uma campanha de marketing viral que tinha a intenção de confundir uma parte do público a esse respeito. Meses antes do lançamento de A bruxa de Blair, um site construído por eles alimentou a suposta veracidade do enredo. Jornais reproduziram a história e, a partir daí, a confusão quanto ao caráter ontológico do seu conteúdo ganhou vida própria, espalhando-se pela internet. O filme seria uma edição (um letreiro exibido no início da projeção

De 2007 para cá, são contabilizados, pelo menos, 250 falsos documentários de horror em longametragem explicita isso, mas não explica quem seria responsável pela montagem do material, o que evidencia a tentativa deliberada dos diretores do filme no sentido de escamotear a instância narradora) dos registros brutos captados pelas duas câmeras que estiveram em poder deles durante o desaparecimento. Os registros – rolos de celuloide no formato 16 mm e fitas de vídeo – teriam sido encontrados pela polícia, durante buscas na floresta, um ano depois do sumiço. A estratégia alcançou o resultado desejado. Muitos espectadores pagaram para assistir ao que pensavam ser um documentário real. Essa parte da plateia não sabia que o filme era, de fato, uma ficção produzida, encenada e editada usando convenções estilísticas do documentário – e, para aumentar a confusão, promovida como um. Aí veio a maior surpresa para os

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

Lista

FOUND FOOTAGE EM 10 FILMES

Claquete

Canibal holocausto (1980) Antropólogo encontra material filmado por documentaristas desaparecidos na Floresta Amazônica e descobre o segredo sangrento que envolve o lugar. Foi censurado porque muita gente acreditou que os atores tinham sido mortos de verdade durante a filmagem.

2

2 A BRUXA DE BLAIR Sucesso mundial de filme de 1999 estabeleceu novo status ao gênero 3 ATIVIDADE PARANORMAL Franquia norte-americana, que estreou em 2007, já está na quarto lançamento

envolvidos: depois que a “farsa” foi revelada, curiosamente, o interesse do público não diminuiu. A atenção despertada pela estratégia fez o lançamento alcançar índices inéditos de arrecadação para um filme independente. O sucesso comercial de A bruxa de Blair não passou despercebido por diretores e produtores. A proliferação de câmeras de vídeo analógicas de baixo custo e a rápida evolução dos equipamentos digitais de gravação de imagens (inclusive telefones celulares) ajudaram a baixar ainda mais os custos de realização. Sem necessidade de usar dispendiosas câmeras de 35 mm, sem altos salários de atores famosos, sem necessidade de construir cenários e outros fatores que encarecem o orçamento,

torna-se possível realizar um found footage de horror com valores acessíveis à maioria dos cineastas, nos mais variados países.

FILMES SUJOS

Essas condições incentivaram a produção e lançamento de ficções codificadas como documentários no mundo inteiro. Cineastas respeitados, como George Romero, embarcaram na tendência. Um estúdio norteamericano de pequeno porte, chamado Asylum, passou a lançar regularmente falsos documentários no mercado estadunidense de vídeo doméstico, sempre com orçamentos inferiores a US$ 100 mil. Entre 1999 e 2007, a produção de falsos documentários no estilo found footage tornou-se regular, explodindo de uma vez por todas a partir daquele ano, quando foram lançados dois filmes de grande sucesso realizados dentro do formato narrativo: Cloverfield e Atividade paranormal.

Aconteceu perto da sua casa (1992) Produção belga de baixo orçamento acompanha o trabalho de equipe de filmagem que documenta crimes cometidos por um serial killer. Filme pioneiro, cerebral, mais preocupado em discutir a escalada de permissividade moral na sociedade do que em dar sustos. A bruxa de Blair (1999) Três estudantes desaparecem numa floresta enquanto filmam documentário sobre uma bruxa lendária que teria vivido no lugar. Produção independente de US$ 30 mil, tornou-se o quarto filme de horror mais visto da história do cinema e provocou a explosão comercial do gênero. The last horror movie (2003) Assassino serial entediado apaga conteúdo de fita VHS em locadora e coloca, em seu lugar, filmagens dos crimes cometidos por ele, enquanto ameaça perseguir quem assiste ao conteúdo. Produção independente inglesa realizada no rastro do sucesso de A bruxa de Blair. Atividade paranormal (2007) Câmera de vigilância registra manifestações sobrenaturais dentro da nova casa de casal jovem. Filmado quase sem orçamento, foi descoberto por Spielberg e resultou na mais famosa franquia do gênero, com seis continuações.

Diário dos mortos (2007) Incursão do veterano George Romero no gênero, mostra estudantes de cinema fugindo de um apocalipse zumbi (e, ao mesmo tempo, registrando-o). Metáfora inteligente para a proliferação de dispositivos de filmagem e a consequente cultura do vídeo amador. [Rec] (2007) Equipe de TV fica de quarentena em prédio onde se alastra um vírus que transforma pessoas em zumbis. Sangue, sustos e final surpreendente no filme que definiu novos paradigmas técnicos de som (imperfeição calculada) e imagem (planossequência) do gênero. O caçador de trolls (2010) Estudantes rodam documentário sobre um misterioso caçador de ursos que revela ser, na verdade, um agente secreto autorizado a exterminar criaturas lendárias nos fiordes noruegueses. Roteiro criativo e efeitos especiais de primeira em produção do gênero da Noruega. El sanatorio (2010) Grupo de amigos filma documentário dentro de um hospital psiquiátrico abandonado que tem fama de mal-assombrado. Mistura de suspense com alguns sustos e humor em produção independente rodada, quase sem dinheiro, na Costa Rica. Desaparecidos (2011) Primeira realização brasileira em longa-metragem dentro do gênero, mostra o suposto conteúdo de câmeras que filmaram o desaparecimento de jovens durante uma festa em uma ilha particular no litoral de São Paulo. Roteiro fraco, som de primeira qualidade.

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INDICAÇÕES COMÉDIA

DRAMA

Dirigido por Evan Goldberg e Seth Rogen Com Seth Rogen, James Franco, Danny McBride Sony

Dirigido por Peter Landesman Com Paul Giamatti, Billy Bob Thornton, Jacki Weaver Sony

É O FIM

JFK – A HISTÓRIA NÃO CONTADA

Seguindo o raciocínio dos stoner movies – filmes americanos que incorporam festas e drogas num sentido cômico –, É o fim conta a história de dois amigos que vão a uma balada na casa do ator James Franco (interpretado por ele mesmo). A ocasião se torna num pesadelo, quando um terremoto anuncia o dia do apocalipse. Agora, só resta esperar que o fim do mundo termine. Uma paródia acertada dos filmes-catástrofe.

Baseado num grande acontecimento da história, a morte do presidente americano John F. Kennedy, o filme de Landesman observa os bastidores do Hospital Parkland, em Dallas, no dia daquele assassinato, no ano de 1963. O roteiro explora, entre o drama e o suspense, as repercussões no cotidiano de pessoas comuns e da imprensa diante do fato rodeado de mistérios e interditos.

FANTASIA

FICÇÃO CIENTÍFICA

Dirigido por Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro Com Dominique Pinon, Karin Viard, Ticky Holgado Flashstar

Dirigido por Neill Blomkamp Com Matt Damon, Jodie Foster, Wagner Moura Sony

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Além desses dois filmes, um criativo longa espanhol chamado [Rec], dirigido por Paco Plaza e Jaume Balagueró, introduziu planos-sequência inovadores de até 17 minutos e mixagem de som calculadamente elaborada para “sujar” a trilha de áudio em pontos específicos do enredo, de forma a não atrapalhar a exposição da estória narrada. [Rec] estabeleceu o paradigma a partir do qual títulos como Filha do mal (espécie de variação do clássico O exorcista refeito em estilo found footage) e Apollo 18 (que levou os falsos documentários de horror até a Lua) levaram multidões de cinéfilos ao cinema. Pesquisadores tentam explicar esse sucesso por uma teoria que tem a ver com o efeito de real produzido por imagens e sons realizados sob os estímulos do amadorismo e da intimidade. Via de regra, um falso documentário de horror adota o ponto de vista narrativo de alguém que testemunha o acontecimento

extraordinário. A posição do observador pode variar (em alguns filmes o ponto de vista é da vítima; em outros, de uma testemunha; há casos em que o registro é providenciado pelo agressor, e filmes em que o ponto de vista transita entre as três opções anteriores), mas algo nunca varia: o dispositivo de registro (a câmera e o gravador de sons). Dessa forma, o estatuto de documento agregado aos registros imagéticos e sonoros pela estilística do documentário não apenas adiciona nova dose de realismo à trama, mas também sugere a ilusão de que o espectador presencia um recorte da intimidade de alguns personagens ao qual normalmente não deveria ter acesso. A identificação do espectador com esses últimos é, assim, reforçada. Esse desejo voraz e voyeur, estimulado pela cultura de consumo do vídeo amador desta época, pode ajudar a explicar a proliferação em massa desse subgênero.

DELICATESSEN

Relançado pela Flashstar, o primeiro longa do diretor de O fabuloso destino de Amélie Poulain retrata um tempo em que a comida virou moeda de troca. O ex-palhaço Louison, sem muita opção de trabalho, arranja emprego num prédio que abriga o açougue Delicatessen. Seus proprietários assassinam pessoas para vender suas carnes. Envolvido com a filha do açougueiro, Louison se sente seriamente ameaçado de se tornar a próxima vítima.

ELYSIUM

Do mesmo diretor de Distrito 9, Elysium se passa em 2159, quando o mundo está radicalmente dividido entre ricos e pobres: os primeiros, numa estação espacial, os últimos, incapacitados de fugir do caos que se tornou o planeta, permanecem na Terra em estado de decadência. O subtexto político é presente em toda a trama, guiada pelo personagem de Matt Damon, que tenta criar um plano de guerra para devolver a igualdade entre as pessoas.

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DIVULGAÇÃO

Sonoras

DO PARÁ Carimbó com o tempero de Lia

Sucesso da cantora, que foi uma das atrações do Carnaval do Recife de 2013, confirma a cidade como local de acolhida e até projeção de artistas paraenses TEXTO Cleodon Coelho

Ao longo dos anos, a cena musical pernambucana foi celebrada por sua inventividade. Ainda na primeira metade do século passado, o mestre Luiz Gonzaga deu ao baião e ao xote status de música pop, levando os ritmos até então regionais para rádios de Norte a Sul do país. Nos anos 1990, foi a vez da turma liderada pelas bandas Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A chacoalhar o modorrento cenário em que a MPB se encontrava. De lá para cá, nomes como Mombojó, Eddie, Tibério Azul

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1 LIA SOPHIA Mesmo se orgulhando de ser apresentada como paraense, a cantora nasceu na Guiana Francesa e foi criada no Amapá. Pará, só na adolescência

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e Karina Buhr – que nasceu na Bahia, mas cuja formação é genuinamente pernambucana – ajudam a manter a aura novidadeira que sempre acompanhou a música local. Curiosamente, o Recife vem revelando outra faceta, quando o assunto é sonoro. A cidade virou uma espécie de talismã para a nova cena paraense. O sucesso atual de Lia Sophia, que mostrou o carimbó eletrônico Ai, menina pela primeira vez na praia de Brasília Formosa, no Carnaval de 2012, sem nem sonhar

que a canção viraria um hit nacional, só comprova esse bem-sucedido intercâmbio Pará-Pernambuco. Lia estava no Recife para acompanhar duas colegas de canto: Gaby Amarantos e dona Onete, um patrimônio da Terra do Açaí, que lançou seu primeiro CD aos 73 anos. “A ideia era cantar com elas, que tinham shows marcados em polos distintos, e curtir um pouco da cidade, conhecer o Carnaval. Mas, logo que cheguei, senti um troço diferente, como se já conhecesse o Recife de longa data. A identificação com a cultura local foi imediata. Acho que os dois estados se parecem no amor pela música que produzem”, opina a artista. “A reação calorosa à música Ai, menina me deu muita confiança. Era o meu carimbó caindo no gosto de um povo tradicionalmente exigente.” E, entre uma apresentação e outra, foi se aproximando de artistas locais, como Nena Queiroga, Almir Rouche e André Rio. “Já estive em vários outros lugares do Brasil e poucas vezes me senti tão integrada. Foi impactante”, completa ela, que só agora – depois de uma avalanche de participações em programas de TV e shows Brasil afora – lança o esperado novo disco. Na verdade, o quarto da carreira, mas o primeiro com distribuição nacional. Apesar de não fugir dos ritmos característicos da região Norte, ainda que reprocessados à sua maneira, Lia Sophia logo caiu de amores pelo frevo. “Tem um fraseado lindo, cheio de força, sofisticadíssimo”, pontua. No Carnaval de 2013, com sombrinha em punho, a moça voltou decidida a jogar seu encanto pelos quatro cantos da folia. Enfrentou os frequentadores do Siri na Lata, dividiu com Otto e o Maestro Spok o tradicional palco do Marco Zero e peitou a multidão do Galo da Madrugada, em cima do trio de Almir Rouche. Passou nas provas com louvor. Antes de Lia, outros talentos paraenses já tinham experimentado a Veneza Brasileira como trampolim para o sucesso. Polêmicas atuais à parte, a batida original da Banda Calypso, do casal Joelma e Chimbinha, só ficou realmente conhecida depois que a capital pernambucana foi escolhida como base. “É uma cidade

mais aberta e mais centralizada. A partir do Recife, nossa música foi se espalhando pelo resto do Brasil”, situa o guitarrista. O crítico musical José Teles lembra que – por volta dos anos 1970 – importantes fatores, como a presença da gravadora Rozenblit e uma rede de comunicação fortíssima, contribuíram para o constante trânsito de artistas da música nacional. Mas o que tem acontecido com os paraenses é algo realmente curioso.

XIRLEY, DANADA

A esfuziante Gaby Amarantos é outro bom exemplo. Atração do Rec-Beat de 2010, ela quase viu sua apresentação naufragar, à beira do Capibaribe. Seu computador, com todas as programações das músicas que iria cantar, pifou diante de um assombroso público de 30 mil pessoas. O jeito foi improvisar. E, no meio da noite, surgiu até uma divertida versão de Single ladies, o megahit de Beyoncé, que virou Hoje eu tô solteira. A brincadeira repercutiu nacionalmente e, pouco tempo depois, ela era apresentada como a Beyoncé do Pará, no palco do Domingão do Faustão. Não ficou só nisso. Nessa primeira vinda ao Recife, Gaby ouviu no CD player da van que a buscou no aeroporto uma música que acabaria

Na primeira vez que Lia Sophia esteve no Recife, acompanhava apresentações de Gaby Amarantos e dona Onete marcando sua carreira: Xirley, de Zé Cafofinho e Suas Correntes. “Fiquei enlouquecida, querendo saber que som era aquele. O motorista me deu o CD de presente. Voltei para Belém já pensando em gravá-la”, relata a artista. Em outubro de 2011, Gaby surgia no palco do VMB (premiação da MTV) cantando a versão tecnobrega endiabrada de Xirley, vestida com um figurino luminoso e avisando que “chegou para abalar”. A Beyoncé do Pará saía de cena. O resto é história.

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JULIA RODRIGUES/DIVULGAÇÃO

DANIEL ARATANGY/DIVULGAÇÃO

Sonoras

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“Posso dizer que a presença ininterrupta da música paraense no Rec-Beat é resultado da nossa busca incansável por novidades. Depois de Pernambuco, com o manguebeat e toda sua tradição, acho que o Pará é o estado que produz a melhor música do país. O que aproxima os dois estados são a inquietação, a riqueza sonora e a procura incessante por uma identidade musical”, analisa Antônio Gutierrez, o Gutie, organizador do festival, que também trouxe para a folia pernambucana de Pinduca e Carimbó Uirapuru a Gang do Eletro e Felipe Cordeiro. “Amo os ritmos paraenses. Acho que, de uma forma geral, eles caem no gosto do público pela ginga, pela sensualidade, pelo ritmo dos trópicos mesmo. É música sem mistério. E quando se tem uma band leader do porte da Lia Sophia, da Gaby ou da Joelma, aí é que levanta geral”, atesta a DJ Allana Marques.

FRENTISTA VOZEIRÃO

A trajetória de Lia é das mais curiosas. Apesar de se orgulhar de ser

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Antônio Gutierrez diz que a aproximação entre PE e PA são a inquietação, a riqueza sonora e a busca de identidade musical apresentada como cantora paraense, ela nasceu na Guiana Francesa e foi criada em Macapá. A cidade de Belém só passou a fazer parte de sua vida na adolescência. Para sobreviver longe da família, foi frentista de posto de gasolina e vendeu enciclopédias Barsa de porta em porta. “Só conheci a chamada MPB depois que cheguei a Belém. Quando descobri João Gilberto e Marisa Monte, pirei. Aprendi a tocar todas as músicas deles em dois dias”, relembra a cantora. A partir daí, Lia juntou as influências familiares (bolero, merengue, brega, zouk e carimbó) com a possibilidade de escrever sobre o que pensava/ sentia, assim como fazia Marisa. “Anos depois, ela foi ver um show

que fiz com a Gaby, no Rio de Janeiro. Quando apareceu no camarim, não consegui falar nada, fiquei meio anestesiada. Ela nem imagina a importância que teve na minha vida. Mas um dia eu conto”, brinca. Quem vê a desenvoltura de Lia no palco, nem imagina qual foi o primeiro local em que fez uma temporada de sucesso. Um puteiro! Sucedeu assim: ela soube que estavam precisando de um músico para fazer apresentações estilo voz e violão num bar de Belém e foi atrás. Mas só percebeu qual era o tipo de “empreendimento” quando chegou lá. Como precisava de dinheiro, fez um acordo com a dona do pedaço para que ficasse claro que ela não fazia programa. O cachê inicial era de R$ 50,00 por duas horas de show. Mas os clientes gostavam tanto da voz daquela garota, que ela se enchia de gorjetas. “Saía de lá com 300, 400 reais por dia. Achei que ficaria rica”, diverte-se. E o repertório não tinha nada de Ai, menina. Ia dos bregas de Alípio Martins aos hinos dos times do futebol local. “Comecei a ganhar tanta

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INDICAÇÕES 01-2 felipe cordeiro

Compositor, intérprete e guitarrista, ele se apresentou no Rec-beat

01-3 gaby amarantos

Cantora conta que “enloqueceu” quando ouviu a música Xirley, de Zé Cafofinho, para a qual gravou uma versão tecnobrega

grana, que a dona queria que eu pagasse uma taxa de 20% pelo apurado, como as meninas da casa faziam. Aí, eu pulei fora”. Foram-se as gorjetas, mas os bregas paraenses, que tanto sucesso faziam entre os frequentadores, permaneceram no repertório. Quando lançou o CD Amor amor, há quatro anos, ela deixou muita gente surpresa ao dar um banho de bossa a vários clássicos do gênero. “O mais interessante é que pessoas que só gostavam de Caetano Veloso ou de Chico Buarque sabiam todas as letras”, frisa Lia. Já o recém-lançado disco, apesar de enfatizar o lado compositora, também traz pelo menos uma pérola: Quero você, de Carlos Santos, sucesso nas rádios populares do Recife nos anos 1980. “Quero você,

quero você, quero você, todinha pra mim”, implora a letra. E a moça nascida em Cayena ainda acrescenta trechos em francês. “Não dá para ter preconceito. Música tem que tocar o coração, não importa se é uma letra política, cheia de referências, ou uma canção de versos simples”, defende. “O que é bacana na Lia é que, mesmo com aquele porte de diva, ela não se importa se alguém taxa suas músicas de brega. O novo hit, Amor de promoção, tem um clipe ótimo, que se passa dentro de um ônibus, no maior calor. Essa é a realidade do povo que gosta de ouvir suas músicas, sempre alegres e festivas”, afirma o ator Reyson Santos, criador da diva drag Jurema Fox. E Reyson, em breve, poderá reencontrar a musa. Contrariando a máxima de que amor de Carnaval nunca dura, Lia Sophia já está com a passagem comprada para a folia deste ano. A maratona começa cedo, na prévia do bloco Imprensa Que Entra, dividindo o palco com Almir Rouche. E, se depender dela, só acaba novamente na Quarta-Feira de Cinzas. “Quem sabe não ganho um título de cidadã pernambucana?”, brinca.

INSTRUMENTAL

REGIONAL

Independente

Tratore/Vai Ouvindo

PROJETO SAMSARA Projeto Samsara

PAULO FREIRE Alto grande

Formado em 2007 pelos pernambucanos Rama Om e Vlad Negrão, o Projeto Samsara, trio instrumental e experimental, faz jus à proposta de uma música espiritual de expansão e alteração de consciência. Sons ancestrais, mesclados com elementos da música contemporânea, estão no EP de estreia do grupo, que só teve a ganhar com as participações de Júlio Castilho, mais conhecido pelo seu trabalho com o Feiticeiro Julião, e Isaar. Entre as cincos faixas, destaque para Nyabinghi e a adaptação de Greensleeves.

O nono disco de estúdio de Paulo Freire traz 11 faixas que, segundo o violeiro, intensificam a relação texto-música. Em Alto grande, ele se transforma num contador de causos musicados. A começar pela faixa-título, que conta a história do local onde as mulheres, no sertão mineiro, esperavam seus maridos que viajavam nas comitivas de gado. Freire faz uma homenagem a Chet Baker, na faixa Pintando o Chet. Entre as regravações estão A cobra e a onça e Bom-dia. Destaque ainda para as participações de Benjamin Taubkin e Mauricio Pereira.

VÁRIOS

INSTRUMENTAL

ONDA VAGA Magma elemental Independente

As 13 músicas que compõem o terceiro disco do quinteto argentino comunicam, com mais intensidade, a espiritualidade e o sentimento folclórico que permeiam os hermanos desde a estreia com Fuerte y caliente (2008). Cem por cento acústico, Magma elemental, assim como os trabalhos anteriores, dispensa instrumentos elétricos. Rumba, cumbia, reggae, folk e tango aparecem no repertório em seu estado mais orgânico. O disco traz o quinteto em sua melhor performance, apostando ainda mais na tradição de seus instrumentos.

AMILTON GODOY E LÉA FREIRE Amilton Godoy e a música de Léa Freire Maritaca/Tratore

A coisa ficou russa, Caminhos das pedras, Vento em madeira e Brincando com Theo são algumas das composições de Léa Freire que o pianista Amilton Godoy revisita neste álbum. A profunda admiração que os amigos músicos nutrem um pelo outro é o fio condutor do disco, cujas composições, já mostradas pelo Quinteto Vento em Madeira, do qual Leá faz parte, vão do erudito ao improviso de ritmos brasileiros. As partituras em piano estão em www. maritaca.art.br/leafreire/partituras.

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divulgação

Palco

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FESTIVAL Duas décadas de artes cênicas

1 premiado O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas ganhou visibilidade nacional após participação no evento

Janeiro de Grandes Espetáculos completa 20 anos incentivando a circulação de montagens pernambucanas por outros locais do Brasil texto Pollyanna Diniz

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1994, o Teatro do Parque funcionava (agora, aguarda, há quatro anos, por uma reforma), e a propaganda repetitiva e de apelo popular tinha razão de ser. Era uma época em que o público brigava por ingressos para peças do tipo “besteirol”, em filas quilométricas no Teatro Valdemar de Oliveira, enquanto o restante da produção cênica da cidade amargava pouca visibilidade e casas vazias. “Não foi uma reação ao ‘besteirol’, mas havia uma efervescência na criação de obras não comerciais, mal recepcionadas na cidade. Além disso, este era um mês de muitos turistas no Recife, mas os teatros estavam fechados, entrávamos em recesso. Então, o festival foi criado a partir dessas duas arestas: aproveitar esse período de grande fluxo de pessoas e mostrar uma produção com perfil diferenciado”, explica o idealizador do projeto, Romildo Moreira, que ocupava o cargo de coordenador de Artes Cênicas da Fundação de Cultura do Recife. A ideia logo ganhou o apoio da classe artística. Em menos de dois meses, o festival era realizado com 17 espetáculos, 40 sessões e mais de oito mil espectadores. “Peças que tinham ficado três meses em cartaz foram apresentadas durante um fim

O festival é o momento de entrar em contato com o discurso produzido pelas artes cênicas de Pernambuco O carro de som que circulava pela cidade diariamente, durante duas horas, anunciava: “Agora você pode frequentar os teatros de Santa Isabel, do Parque e Apolo pela bagatela de R$ 2 e assistir a grandes espetáculos de teatro e dança no projeto Janeiro de Grandes Espetáculos. Não perca a oportunidade de se divertir com o que há de melhor na produção de teatro e dança por apenas R$ 2. Eu disse R$ 2 para assistir a grandes espetáculos. Vá conferir”. Estávamos no fim de

de semana e tiveram mais público do que na temporada inteira”, relembra Moreira. “É como se a classe artística tivesse acordado para a necessidade do Janeiro e celebrado a própria arte. Os artistas não recebiam cachê, ganhavam percentual de bilheteria, o que mostrava, na prática, o nosso apoio. Essa parceria foi a base de construção do festival e continua sendo até hoje”, comenta Paula de Renor que, ao lado de Paulo de Castro e Carla Valença, assina a produção atual do Janeiro de Grandes Espetáculos.

Autonomia

Em duas décadas, que estão sendo comemoradas agora em 2014, foram muitas mudanças na mostra. A primeira delas veio após três anos: quando a prefeitura local apostou na criação do Festival Recife do Teatro Nacional e a própria classe artística, através da Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe), decidiu que levaria adiante a realização do evento, já que eles tinham perfis diferentes e esse último se mostrava sobretudo importante para os espetáculos do estado. “Enquanto os eventos culturais promovidos com incentivos públicos ou privados tendem a prestigiar mais as atrações de fora, o Janeiro de Grandes Espetáculos sublinha e põe em evidência os profissionais locais e suas obras. É hora de olhar para si e entrar em contato com o discurso produzido pelas artes cênicas de Pernambuco em determinado ano. Sempre um momento para apreciar, avaliar, discutir e fazer reverberar o resultado dessas reflexões”, comenta o ator e diretor Jorge de Paula. A montagem O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas, da Trupe Ensaia Aqui e Acolá, dirigida por Jorge de Paula, foi vista por curadores de todo o país em 2011, quando recebeu os prêmios de melhor montagem pelo júri oficial do Janeiro e pela votação popular. Embora faça restrições com relação ao seu caráter competitivo (que premia dança, teatro adulto e teatro infantil em várias categorias), o diretor afirma que a visibilidade garantida pelo evento, ao trazer para cá organizadores e curadores do país inteiro, foi fundamental para que a carreira da montagem deslanchasse. “Depois disso, participamos de mostras de teatro pelo Brasil. Foi o pontapé para uma trajetória no país afora”, avalia. Nesta 20ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos, estão sendo esperados pelo menos 10 curadores, inclusive internacionais. “Conseguimos estruturar uma ação concreta de circulação dos nossos espetáculos. Ano passado, seis grupos pernambucanos participaram de festivais a partir de conexões que foram travadas durante o Janeiro”, comenta Paula de Renor. “Nosso objetivo não é trazer para

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grão de areia

O festival tem programação infantil

Texto francês 3 Montagem de Na solidão dos campos de algodão está na programação deste ano

4 abertura Dzi Croquettes em Bandália – 40 anos de história vai abrir o evento

a programação obras de grandes companhias, de nomes já consagrados. Se temos essa possibilidade, ótimo. Mas não é o nosso foco. Estamos mais interessados nas trocas entre os grupos, nos intercâmbios entre as realidades de diversas cidades e no que isso politicamente agrega para as artes cênicas em Pernambuco”, reflete. “Na medida em que sentimos que determinado evento ou cidade investe na visibilidade e na exportação de sua produção cênica, isso é valorizado por todos os outros festivais do país. Cria-se certo comprometimento e crescem as possibilidades de circulação da produção local. Nenhum programador vai ao Recife, ou a qualquer cidade, com a obrigação de selecionar ali o que quer que seja. Mas é claro que essa ação gera oportunidades para os grupos e os artistas”, comenta Guilherme Reis, do Cena Contemporânea, de Brasília.

Palco jorge clésio/divulgação

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INTERNACIONAL

Desde 2011, o Janeiro de Grandes Espetáculos participa do Núcleo de Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil, que conta com oito mostras do país inteiro. “Aos poucos, fomos trazendo grupos internacionais para participar da programação. No início, dois ou três. Depois, resolvemos assumir que o festival também tem esse caráter internacional”, explica Paula de Renor. Este ano serão seis apresentações internacionais, tanto de dança quanto de teatro e ainda um show feito em parceria entre músicos brasileiros e portugueses. “Acredito que a entrada do Janeiro no Núcleo trouxe um ganho para esse coletivo por conta da capacidade do festival de mobilização e de dar visibilidade a grupos e artistas de Pernambuco

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DEPOIMENTOS “O festival apresenta uma característica interessante: por não ser temático, os espetáculos que se apresentam mostram uma cartografia bastante verossímil da produção cênica local. Acho isso muito positivo, porque nos permite um olhar analítico do nosso fazer teatral. Creio que essa seja a sua maior contribuição, colocar-nos diante de nossa própria realidade, para que possamos repensá-la não apenas sob a ótica da organização e da produção, mas também a partir do ponto de vista estético e de troca.” André Filho, diretor

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e do Nordeste como um todo. O Janeiro ainda contribui bastante para a articulação em rede e para as ações políticas desenvolvidas pelo Núcleo”, complementa Guilherme Reis. Uma das principais dificuldades que todos os integrantes do Núcleo enfrentam é com relação à manutenção financeira. “Temos eventos realizados por prefeituras, como as de Porto Alegre, Belo Horizonte e São José do Rio Preto, e outros feitos pela iniciativa privada. Mas todos vivem o mesmo problema de ter que recomeçar praticamente do zero a cada ano”, afirma Reis. Se, no ano em que foi criado, o Janeiro foi realizado com um orçamento que girava em torno de R$ 5 mil, hoje, uma planilha razoável para que as ações idealizadas pudessem realmente ser colocadas em prática seria de R$ 1,4 milhões. “Este ano conseguimos R$ 950 mil e só temos as respostas das verbas que serão liberadas com pouquíssima antecedência, o que dificulta a produção, conseguirmos garantir grupos, passagens em alta estação, hospedagem”, diz Paula de Renor. Ano passado, o Janeiro teve um público de quase 30 mil pessoas. A programação desta 20ª edição será aberta no dia 8, no Teatro de Santa Isabel, com o espetáculo Dzi Croquettes

em Bandália – 40 anos de história, um musical que retoma a linguagem cênica irreverente e libertária que marcou a trajetória desse coletivo, nos anos 1970. Entre as presenças nacionais, há ainda alguns destaques, como a Cia. Teatro di Stravaganza, de Porto Alegre, com as peças Estremeço e Príncipes e princesas, sapos e lagartos; a companhia Alfândega 88, com A negra felicidade e O controlador de tráfego aéreo, ambas direções de Moacir Chaves; e, ainda, a montagem À primeira vista, com direção de Enrique Diaz, e que traz no elenco as atrizes Drica Moraes e Mariana Lima. Entre as montagens locais, o público poderá conferir, por exemplo, Terra, espetáculo do Grial, pelo qual a coreógrafa e bailarina Maria Paula Costa Rêgo acabou de vencer o prêmio de melhor criadora-intérprete pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), as quatro montagens da trajetória do Angu de Teatro (Angu de sangue, Rasif – Mar que arrebenta, Ópera e Essa febre que não passa), comemorando os 10 anos do coletivo, peças como Na solidão dos campos de algodão (texto do francês BernardMarié Koltés, com Edjalma Freitas e Tay Lopez no elenco, e direção de Antonio Guedes) e estreias como Anjo negro, direção de Samuel Santos para o texto de Nelson Rodrigues.

“O Janeiro de Grandes Espetáculos tem crescido a cada ano e se tornado um evento de referência e importância para as cenas local e nacional. No início, era mais voltado para o Recife, mas hoje apresenta um panorama bastante interessante da cena local e da cena nacional e tem ampliado ano a ano a participação dos grupos internacionais. Essa fruição e acesso dos artistas, dos formadores de opinião e da população de uma maneira geral a bons trabalhos é uma missão importante para festivais do seu porte e do Festival Recife do Teatro Nacional.” André Brasileiro, produtor, ator e diretor “O Janeiro me proporcionou maturidade. Isso é: ensinou-me a ter certo distanciamento diante da minha obra coreográfica. A premiação é a busca por reconhecimento, mas se isso não acontecer, a luta continua, a obra segue se apresentando noutras praças.” Maria Paula Costa Rêgo, coreógrafa e bailarina “Desde o fim da década de 1990, acompanho o Janeiro de Grandes Espetáculos. Participei com o Teatro de Amadores de Pernambuco, depois em 2000, com a peça Inês, sob direção de Jorge Clésio, com a Cia. Versos de Teatro. Tenho a recordação do dia em que ganhei prêmio com Inês, e como isso foi de grande importância para mim como atriz, alavancando minhas perspectivas e meus desejos de continuar no teatro, tendo visto um longo trabalho sendo reconhecido simbolicamente. Também foi nele que estreei uma direção para crianças, em 2006, com Pequenino grão de areia, texto de João Falcão. Também aí foi um momento superespecial em minha trajetória, ratificando minhas experiências e dando possibilidade de colocar na prática o que já vinha trabalhando no meu mestrado em Teatro, que havia terminado em São Paulo.” Luciana Lyra, atriz e diretora

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José Cláudio

artista plástico

matéria corrida

gilvan samico (1928-2013) Não estava nos meus planos

faturar a morte de Gilvan Samico. Até disse isso há algum tempo, que por favor não morressem, Samico, Guita, Corbiniano, para não me obrigarem a derramar minha sub-literaturazinha aproveitando o ensejo. Para chamar atenção para mim próprio afinal de contas. Eu também falava em intromissão, invasão de privacidade, em invadir a área sagrada da dor alheia, de quem sofreu diretamente e de fato e muito essa perda e não da boca para fora. De quem não saberá como, sem ele, será o dia de amanhã. De quem, com ele, foi arrastado ao fundo da cova ou queimado no crematório, tendo virado cinzas junto com ele. Não é o meu caso. Estou ficando meio insensível depois de velho. Até me admira a frieza diante da morte dos que me são próximos. Me espantei por não ter sofrido o tanto quanto deveria com a morte de meu pai, não ter sentido o vazio que esperava: eu ia dizer isso a Milton Hatoum, que escreveu sobre a morte de meu pai (e que saiu recentemente em 2013 no livro Um

solitário à espreita, Companhia de Bolso, crônica inicialmente publicada no O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 07/01/2011, com o título Uma pintura inacabada). Também quando minha mãe morreu fui lá, ela ainda em casa, vi-a morta, que de fato eu queria vê-la morta, porque isso amanhã talvez me fosse fazer falta ou não sei por que, mas nem cheguei a ir ao cemitério. De lá para cá, me prometi não ir a cemitério mais nunca nem a hospital, só quando chegar a minha vez. Espero de todo coração morrer antes de meus filhos e netas. Minha mãe dizia somente querer viver até a morte de um filho e o mesmo digo eu. Sem, no entanto, como disse, querer “faturar” a morte de Samico, como não faturei a de Paulo Vanzolini, e ele iria detestar, por um lado sinto uma expectativa ao redor sobre o que penso, o que sinto, o que tenho a dizer sobre a morte de Samico, como pintor saído da mesma fornada, vivendo aqui no Recife, ou melhor, Olinda, nós dois, etc. etc.; e também, ao mesmo tempo, sem que eu queira, o meu ego, ou superego, o que diabo seja começa

a soprar no meu ouvido as ideias e lembranças. Por exemplo, quando meu pai morreu eu fui dormir naquele dia sem ter caído a ficha (como ainda se diz mesmo não existindo mais telefones de ficha); somente no outro dia, quando acordei, antes do amanhecer, mas já o dia se anunciando, aqui nesta casa onde moro, isso em 1979, olhando maquinalmente o horizonte arroxeado, me ocorreu: “Hoje é o primeiro dia que não tenho pai”. Meu pai morrera no começo da tarde do dia anterior e de noite fomos enterrá-lo no cemitério de Ipojuca porque a última frase que ouvi dele foi: “Quero voltar para Ipojuca. Para dormir”. Já no caso de Samico, que morreu hoje de manhã às 10h, já agora, de noite mas ainda no começo da noite, isto é, no mesmo dia, me veio que é a primeira noite que vou dormir sem Samico, sem Samico em vida quero dizer. Ou seja, uma antecipação em relação à morte do meu pai! Eu tinha acabado de dar uma entrevista em Ponte d’Uchoa num leilão organizado pelo pintor Armando Garrido onde eu haveria de expor dois

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reprodução

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antigos quadros cuja origem me era desconhecida e fui lá para ver, aliás excelentes dentro do meu padrão, e de casa ligaram para o celular do taxista com quem ando sempre, quer dizer, uma coisa assim por tabela, como se distante. Ele próprio Samico, a última vez que liguei, semanas antes, me disse que andava tão abatido, ou cansado, que até agradecia a quem não lhe fizesse visita. Eu próprio telefonei pensando em coisa desse tipo, e disse a ele, que achava uma sacanagem o indivíduo com saúde exibir-se diante da criatura ali prostrada, ali sofrendo, como ele já vinha sofrendo havia tempo, de doença grave e que castiga, que dói, que cerceia. Pior do que torturado numa prisão por não ter a quem imputar tal sofrimento, acrescento agora. Seria preciso o estoicismo de um Marco Aurélio; e mesmo assim, como bom romano, adepto do suicídio; suicídio tranquilo, sem nada de desespero, consciente, estoico enfim. A religião cristã nos tirou essa possibilidade, talvez resto de barbárie do paganismo, embora num homem superior como Marco Aurélio,

Ele próprio Samico, a última vez que liguei, me disse que andava tão abatido, que até agradecia a quem não lhe fizesse visita de quem leio sempre Meditações (tenho três traduções em português, duas do Brasil e uma de Portugal, Pensamentos; outras em espanhol, Soliloquios, italiano, Ricordi, e francês, Pensées, trazendo esta de quebra uma maravilha, o Manual de Epiteto, mestre de Marco Aurélio). Estarei me transformando num estoico, deixando-me penetrar pelas ideias de Sêneca, inconscientemente me preparando para enfrentar o sofrimento mesmo que não tenha grandeza para isso? Às vezes penso que essa minha aparente invulnerabilidade não passará de superficialidade, devido ao fato de não ter, por acaso, sido atingido por maiores sofrimentos nem físicos nem morais, nunca ter sido submetido a

1 olindenses a esq. para a dir., D

José Cláudio, Guita Charifker e Gilvan Samico, casa de José Cláudio, 2012.Foto de Vera Magalhães

grandes tensões, embora da maior delas, a da consciência da morte, ninguém escape; e este discurso todo já bem o demonstre. Talvez uma arte, praticada em tempo integral, como Samico lá no seu sobrado cortando madeira com seus ferros de gravura e eu cá à sombra das sucupiras do quintal das freiras do Monte pelejando com meus pincéis, sejam nossas matinas, laudes, vésperas, sextas e noas; mesmo que não nos comunicássemos, um sabia perfeitamente o que o outro estava fazendo, ainda que nem eu nem ele nunca pensássemos nisso. Apesar da rigidez, do racionalismo na execução das gravuras de Samico, da ausência de improviso, da limpeza de seu corte, a perfeita simetria a afirmar cada vez mais essa racionalidade, a absoluta premeditação, o declarado horror ao expressionismo, a arte dele e a minha têm, ambas, a inspiração popular proveniente das lições de Abelardo da Hora. Sua obra, logo sua presença, continuará dialogando comigo tanto quanto quando ele vivo.

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PSICANÁLISE O artista livre do “eu” na arte contemporânea

reprodução/ Maurits Cornelis Escher

Obra publicada pela pesquisadora Tania Rivera reconvoca as teorias de Freud e Lacan para discutir premissas do objeto artístico “des-representado” texto Frederico Feitoza

Visuais Nos anos finais de sua carreira e de sua vida, aproximadamente entre 1976 e 1988, Ligia Clark resolveu elevar a sua arte a um novo status, diluindo-a numa grande obra “terapêutica” chamada Estruturação do self. No seu apartamento em Copacabana, realizava sessões individuais, nas quais o cliente experimentava as relações entre o seu corpo e o mundo por meio do uso de objetos simplórios organizados por ela, como sacos de isopor, conchinhas e almofadas. Esses “objetos relacionais” – referência ao termo usado em psicanálise para descrever aquilo através do que o sujeito articula seus desejos e pulsões – tinham o objetivo de elaborar uma fantasmagoria inerente a cada um. Para Clark, a experiência estética ali gerada, e a posterior descrição das sensações plásticas que seus clientes relatavam, funcionavam de forma análoga a uma análise. A

encenação da fantasia colocaria em ato a natureza cindida entre corpo e ser, constituinte de todo sujeito, como defende a Psicanálise. Anos antes, em Paris (1972-1974), Ligia passara por uma instigante análise com o reconhecido psicanalista francês Pierre Fédida: “Uma costura do meu corpo”, como escrevera em carta a Helio Oiticica. As relações entre arte contemporânea e psicanálise vão além. Elas superam remanejamentos conceituais e colocam em evidência afinidades que podem ser embaraçosamente complementares. Ambas seriam capazes de fazer o sujeito “perceber percebendo-se” ou, ainda, sentir-se “des-representado no tempo e no espaço”. Mas o que significaria isso tudo? É o que a professora Tania Rivera, do Departamento de Artes da Universidade Federal Fluminense, tenta explicar em seu livro O avesso do imaginário – arte contemporânea e psicanálise (Cosac Naify).

Tania afirma que prefere pensar tais relações a partir de uma figura topográfica que foi utilizada tanto pela psicanálise quanto pela arte contemporânea: a fita de Moebius. Velha conhecida de Jacques Lacan, e utilizada para explicar a relação do sujeito do inconsciente com o objeto que causa o desejo (reduzido à expressão “objeto a”), essa superfície dobrável e desdobrável permitiria pensar as relações de sequência e deslizamento entre esses dois campos culturais. Tanto Ligia Clark, em seu Caminhando (1963), quanto Cildo Meireles, em Mebs/Caraxia (1971), até os Parangolés de Hélio Oiticica (descritos por Ligia Pape como uma fita de Moebius engolfada em si mesma) se utilizaram dessa forma para expressar a sequência entre interioridade e exterioridade do eu, algo sem um dentro e sem um fora, mas, ao mesmo tempo, dotado dos dois. Com a fita de Moebius seria finalmente possível ilustrar um dos

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1 Fita de Moebius Figura topográfica serve tanto à arte contemporânea quanto ao ensino

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grandes dilemas postos em pauta pela arte contemporânea: nem o autor, nem a obra, o verdadeiro valor daquilo que se apresenta como arte diria respeito à sua capacidade de agenciar no sujeito algo que a psicanálise chamaria de uma operação significante, uma incidência capaz de gerar no mundo natural a própria cultura, incerta e caótica, como um espelho trincado, inviável de conserto. Esse momento de estranhamento do sujeito consigo e com o mundo seria uma de suas grandes características. No âmbito da arte contemporânea, a máxima freudiana, que dita que o “eu não é mais o senhor da sua própria casa”, será finalmente traduzida (e diluída) na cultura. Não se deve pensar, no entanto, que apenas artistas que tomam a fita de Moebius como referência conceitual ou que trabalham diretamente com a psicanálise, como se pode observar nas obras de Louise Bourgeois (O

Na performance, o corpo se dá a ver cruamente na sua dimensão de dependência em relação ao outro retorno do desejo proibido; Abuso infantil) ou Joseph Kosuth (Zero & not; O.&A./F!D!) são capazes de articular arte e inconsciente. Dispositivos como performances e videoartes são bastante evocativos desse sujeito que se desconhece, que se vê fraturado e avesso à própria imagem.

CORPO

Na performance, expressão dominada pelo feminino em nomes como Marina Abramovic, Sophie Calle ou Yoko Ono, o corpo se dá a ver cruamente na sua dimensão de dependência constitutiva

em relação ao outro. Situação que revela quão perigosa pode ser a oscilação entre sujeito e objeto, a exemplo do que Abramovic realizou em Rhythm O, de 1974, ao entregar o próprio corpo à manipulação dos espectadores, por meio de uma diversidade de objetos, dentre os quais uma arma carregada, que acabou sendo apontada para a sua cabeça. Ao finalmente expor que esse sujeito só se dá em ato passageiro, a potência da performance se encontra na reflexão poética que o engata à sua condição contemporânea de inapreensível. No caso da videoarte, o agenciamento de imagens e palavras serviria enquanto “significância”: forma de resistência aos sentidos estabelecidos no universo simbólico da linguagem. Artistas como Gary Hill e Nam June Paik seriam capazes de gerar um curioso efeito de escrita imagética similar ao trabalho dos sonhos. Na sua linguagem arbitrária e móvel, os objetos ganham

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Fotos: reprodução

Visuais

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2 Rhythm O Na obra, Marina Abramovic trata do apelo ao Outro e a alteridade radical Hélio Oiticica 3 O seu Parangolé expressa a operação significante em trânsito entre sujeitos, cujo circuito só se completa com o público

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significados incompatíveis, subvertendo aquela imagem homogênea e sem falhas comum à televisão, e fazendo entrever o estranho ponto – ou o ponto cego, como diria Lacan, em que a imagem se engancha ao irrepresentável. Em outra seção, devotada à reflexão sobre a crítica artística e à estética, Tania fornece uma possibilidade de se pensar a dimensão ética e os valores na arte contemporânea. O valor da transitoriedade do belo, conforme explorado por Freud em 1915, como condição para a sua experiência, nos serviria para pensar que a aura não declinou com o avanço da reprodutibilidade técnica, mas foi redimensionada segundo uma nova noção de temporalidade na era multimidiática. Como dirá o psicanalista dentro de sua lógica econômica: “a limitação da possibilidade de uma fruição eleva o seu valor”. A radical abertura ao Outro como característica ética mais presente na arte contemporânea é, por fim, explorada por meio do pensamento do pernambucano Mario Pedrosa, principalmente através da sua experiência com internos da instituição psiquiátrica do Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, a qual frequentou por anos. A ele interessava entender a distância de “si a si mesmo”, que percebia tão claramente no devaneio psicótico, e que favorecia a construção de uma obra com uma linguagem própria, justamente no ponto em que o “eu” se diluía. A intrincada explicação da arte contemporânea, como a da própria psicanálise, torna-se uma eficiente marcadora da postura do sujeito, ora como aquele que sucumbe aos imperativos do eu e aos seus receios identitários, ora como aquele que encara a sua inapetência diante do real, como o impossível da apreensão total da existência. Na arte, todo um espaço para esse sujeito perdido é criado, ele mesmo se tornando capaz de “espaçar”. Como torna clara a experiência heideggeriana, que Tania descreve com a obra Através, de Cildo Meireles, exposta no Instituto Inhotim, entre homem e espaço existe uma misteriosa relação de constituição mútua. Espaço que liberta, desbrava e abre.

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paulo melo jr/ divulgação

joelson Em busca da simplicidade

Seis anos depois de ter coberto parte de sua casa-ateliê de papel de seda verde, artista leva a proposta para dentro da Galeria Janete Costa texto Mariana Oliveira

As ruas do Bairro do Poço da Panela,

zona norte do Recife, ainda preservam o clima bucólico de outras épocas, com o predomínio de casas em detrimento dos espigões que se espalham ao redor. É na tradicional Rua dos Arcos, nº 270, que vive Joelson. A casa, além de abrigar sua família, funciona como ateliê e galeria. Ao entrar, o visitante percebe a identidade e a memória daqueles que vivem ali. Seus gostos estão expressos nos copos, na forma de dispor as luminárias, nas obras do artista que ocupam todos os recantos do espaço. Tudo isso dá uma enorme personalidade à casa. Nada parecido com as residências hermeticamente projetadas e padronizadas que dizem tão pouco sobre seus donos.

Em 2007, quando o artista repensava sua inserção no mercado da arte e sua relação com as galerias, ele decidiu fazer uma intervenção que representasse sua busca incessante pela simplicidade e, ao mesmo tempo, criticasse a padronização e a falta de personalidade dos ambientes residenciais. “Para mim, ser familiar é ser simples”, pontua. Ele cobriu toda a sala de estar e cozinha de papel de seda verde, empacotou cada um dos objetos, um a um, inclusive aqueles que estavam dentro dos móveis. Durante dois meses, recebeu amigos e público nessa intervenção que batizou de Casa simples. “Essa mostra foi muito reveladora, me fez refletir sobre meu trabalho, minhas escolhas, a decisão de permanecer

sem uma galeria que me representasse. Enfim, é um marco na minha carreira.” Agora, seis anos depois, Joelson vai levar sua sala de estar (e praticamente tudo que está nela) para dentro da Galeria Janete Costa, no Parque Dona Lindu, na mostra Demasiadamente simples. Apesar de ter uma série de pinturas prontas, o artista optou por retomar o trabalho anterior, pensando na harmonia com o espaço físico da galeria. Essa transposição das peças e objetos de um ambiente íntimo para um público, onde poderão ser vistos por todos, funciona como uma negação da “galeria”. Quem visitar a mostra vai entrar na intimidade do artista, em que ele vive sua privacidade com sua família. Contudo, ao mesmo tempo em que revela, Joelson também esconde. O papel de seda entra como uma fina e delicada “barreira”. Arte e vida se embaralham naquele espaço homogeneamente verde. O papel tenta tornar todos os objetos iguais, mas sua delicadeza não permite. Mesmo embrulhada, cada peça continua sendo única. Em Casa simples, ele, a mulher e o filho também se cobriram com papel de seda verde durante a abertura e tiveram que mudar sua rotina familiar, já que o coração da casa estava embalado, tornando atividades corriqueiras, como cozinhar, impossíveis. “Minha ideia é que as pessoas tenham uma experiência sensorial com aquele ambiente”, afirma. Com a instalação de Demasiadamente simples na Galeria Janete Costa, ele pretende novamente se cobrir de verde junto com sua família e terá sua rotina residencial alterada, já que boa parte dos seus objetos estarão fora da casa, fora de sua rotina. A opção pela cor verde se explica por sua adoração pelas plantas, que se espalham pelo jardim e quintal da casa no Poço da Panela, muitas delas semeadas por ele, que instalou ali um pequeno roçado de macaxeira e também alguns pés de cana-de-açúcar. No vernissage (com performances de Daniel Santiago e Gentil Porto Filho), no próximo dia 23, o coquetel também será verde: pães, sucos, frutas, tudo terá a tonalidade e o sabor do ambiente. Nada mais natural para um artista que afirma estar em busca da felicidade, como qualquer ser humano, mas que tem percebido que ela está quase sempre nas coisas mais simples.

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Breno Laprovitera/ divulgação

VITRAL Marianne Peretti e sua obra moderna

Mostra em cartaz no Recife revela uma pequena parte do trabalho da artista franco-brasileira, realizada em mais de 60 anos de atividades texto Mariana Oliveira

Visuais Os turistas que vão à capital federal têm a Catedral Metropolitana de Nossa Senhora Aparecida, mais conhecida como Catedral de Brasília, na lista de lugares a visitar. O projeto arquitetônico arrojado parece ter sido pensado para receber os vitrais em tons brancos, verdes e azuis que cortam as laterais e o teto do templo – tamanha a comunhão entre eles. Porém pouca gente sabe que, quando ela foi inaugurada, em 1970, era revestida de vidro transparente. Os vitrais só foram idealizados na década de 1980, quando Niemeyer convidou sua amiga Marianne Peretti para projetálos. Foi um casamento perfeito.

Não há, hoje, como imaginar a catedral sem aqueles vitrais. Apesar de ter seu nome atrelado a uma obra tão grandiosa e de ter diversos trabalhos monumentais espalhados por Brasília – no Palácio do Jaburu e no Supremo Tribunal Federal, entre outros –, o nome da franco-brasileira Marianne Peretti ainda não foi devidamente reconhecido. Isso se dá, em certa medida, pela falta de interesse dos pesquisadores brasileiros pela arte vitral, em especial por sua produção moderna. Outra questão que talvez tenha influenciado essa baixa valorização é o fato de boa parte de sua produção ser de propriedade

privada, sejam vitrais, painéis, esculturas, pinturas, gravuras... Percebendo esse vácuo, a produtora Tactiana Braga se uniu ao crítico e curador Laurindo Pontes para realizar o projeto Documento Marianne Peretti, iniciado há três anos, cujo objetivo é revelar a grandiosidade do trabalho dessa artista. “Quando se pesquisa sobre o modernismo brasileiro na arte, as referências são Tarsila do Amaral, Volpi, não há qualquer registro do nome de Marianne Peretti em um livro que trate de arte moderna no Brasil. Isso é um absurdo. Nossa ideia é justamente alçar o seu nome e sua produção ao lugar de destaque que merecem”, comenta a produtora.

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dela a qualquer um. Procurávamos alguém que fosse especialista e chegamos a Véronique David, do Centro André Chastel – Sorbonne/INHA, que não conhecia o trabalho de Marianne. Mandamos um portfólio e depois ela veio ao Brasil conhecer a artista e suas obras”, conta Tactitana Braga. “Ela considerou a Catedral de Brasília uma obra-prima mundial do vitral do século 20. Agora, na França, no Centro André Chastel, já temos pesquisas sobre o trabalho de Marianne”, complementa Laurindo Pontes. Durante a execução do projeto, foi localizado o primeiro vitral feito por Marianne, em Paris, numa empresa ligada ao setor elétrico. A obra, que não tinha assinatura, foi restaurada e a

Projeto em torno da obra da artista inclui a realização desta mostra, de documentário e livro, estes, para 2014 artista esteve no local para assiná-la. O mesmo processo deve acontecer com o vitral em três dimensões da capela do Palácio do Jaburu, o qual também não tem qualquer registro de autoria. A equipe do Documento Marianne Peretti já está articulando a ida da artista a Brasília para deixar sua assinatura nesse e em outro vitral colocado na residência do vice-presidente. O projeto dará origem a três produtos diferentes: a exposição Marianne Peretti: 60 anos de arte, que está em cartaz na Caixa Cultural do Recife até o próximo dia 19; um documentário (em fase de edição); e um livro – o primeiro dedicado à artista – que faz um amplo registro de seu trabalho, catalogando mais de 600 obras. Ambos têm lançamento previsto para este ano. Para respaldar o projeto, Tactiana e Laurindo buscaram um especialista em arte vitral moderna que pudesse avaliar com propriedade o trabalho de Marianne. Não foi tarefa fácil, uma vez que a maioria dos pesquisadores de vitrais se especializam nos do medievo. “Não fazia sentido apresentar o trabalho

EXPOSIÇÃO

A mostra Marianne Peretti: 60 anos de arte, em cartaz desde o início de dezembro, faz um breve recorte dos 60 anos de carreira da artista, com trabalhos antigos e outros mais recentes. Mas como trazer para uma galeria a monumentalidade de boa parte dos vitrais e painéis produzidos por Marianne? Para conceber a mostra, os produtores chamaram dois experientes fotógrafos, Breno Laprovítera e Jarbas Jr., que registraram toda essa produção, com destaque para as obras da capital federal. Ao invés das fotos de cartão-postal da catedral, por exemplo, eles buscaram novos ângulos, novas iluminações,

ressaltando os detalhes e a beleza dos vitrais. Essas imagens foram ampliadas em grandes painéis, afinal, não seria possível dar a real dimensão desses projetos em fotos de tamanho reduzido. Segundo o curador, o pé direito alto da Caixa Cultural mostrou-se adequado para a ideia de dar uma dimensão maior às fotos. Os vidros que se espalham pelo chão e a claraboia do prédio dialogam com os trabalhos ali apresentados. “A luz entra no espaço. E, para apreciarmos um vitral, precisamos da luz. Achei isso interessante, apesar de aqui eles serem apresentados em fotografias”, comenta a artista. O átrio central do espaço foi semifechado para receber as imagens dos vitrais da Catedral – uma forma de estabelecer uma relação com o próprio formato do templo. Além das mais variadas imagens, dessa que é sua obra-prima, vemos ampliado o projeto feito por Marianne na década de 1980, sem a ajuda de qualquer ferramenta tecnológica. Mas o mais impressionante é o registro da artista ajustando os traços e as linhas, num desenho já em tamanho real, colocado no chão de um estádio. Essas imagens, juntas, mostram o esforço e a dedicação dela ao projeto. Há ainda uma área voltada às obras esculturais de Marianne, que utilizam ferro laqueado e vidros. Nessa retrospectiva, é apresentada ao público a série Objetos úteis e agradáveis, que reúne o trabalho no campo do Design. São mesas, cadeiras, desenhos e pinturas do acervo pessoal da artista, criados por ela. Fora da exposição, é possível encontrar obras de Marianne Peretti em diversos edifícios e residências do Recife: na Catedral de Boa Viagem, no Tribunal Regional Federal, no Fórum Thomaz de Aquino e na Igreja Nossa Senhora da Piedade, em Jaboatão dos Guararapes. Aos 85 anos, a artista – filha de mãe pernambucana e pai francês, radicada no Brasil desde os anos 1950 – segue trabalhando intensamente em sua casa, no Sítio Histórico de Olinda. Havia sido em Olinda, há 15 anos, que Peretti realizara sua última individual, no Museu de Arte Contemporânea (MAC). Um hiato muito grande para uma artista que ainda precisa ser devidamente reconhecida.

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Artigo

divulgação

AMANDA MARTINEZ ELVIR A CIDADE DOS MORTOS E OS PROCESSOS DE FAVELIZAÇÃO Há 42 anos, o arquiteto norueguês

Christian Norberg-Schulz falava que a casa continuava sendo o lugar central da existência humana, o espaço em que a criança aprende a compreender sua existência no mundo e o lugar de onde o homem parte e regressa. Neste momento, a construção de um edifício de apartamentos está sendo concluída. Uma família está se mudando para uma casa, enquanto outras famílias se preparam para sair em busca de uma. Os processos de urbanização nas grandes cidades geram enormes quantidades de complexos habitacionais, vendendo o sonho da casa ideal para milhares de famílias. Na publicidade desse sonho, o lar está rodeado de áreas verdes e dos elementos que constituem, na sociedade atual, a moradia ideal para formar um lar. Aqueles que não têm recursos suficientes são forçados a abandonar as áreas urbanizadas e se lançar à moradia ilegal. Os expulsos, na sua maioria desempregados, migrantes, pessoas sem documentos, são levados a habitar na periferia das cidades, nos morros e, no caso deste relato, nos cemitérios. A Cidade dos Mortos, no Cairo, é a maior necrópole do mundo. Nela, 1 milhão de pobres usa as sepulturas como módulos habitacionais. O teórico urbano Mike Davis cita o pesquisador da American University do Cairo, Jeffrey Nedoroscik, no que este observa: “Os invasores adaptaram os túmulos com criatividade para atender às necessidades dos vivos. Os cenotáfios e placas fúnebres são usados como escrivaninhas, cabeceiras, mesas e estantes. Barbantes amarrados entre as lápides servem para secar a roupa”. O Cairo já foi uma cidade de 29 sinagogas, e grupos menores de

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invasores ocuparam cemitérios judaicos abandonados. Numa visita a essa cidade, na década de 1980, o jornalista Max Rodenbeck escreveu como encontrou um jovem casal com quatro filhos instalado com todo o conforto num sepulcro neofaraônico de especial esplendor. “Os moradores do túmulo tinham aberto o clumbário e viram que era um prático armário embutido para roupas, panelas e um televisor em cores”, disse. Conforme o cemitério foi sendo povoado, surgiram pequenos prédios ao redor das tumbas. Logo apareceram padarias, cafés, um mercado, escolas para as crianças e oficinas mecânicas. Por fora, as tumbas são vistas apenas como um espaço vazio, onde descansam os restos mortais de seres humanos. Por dentro, milhares de famílias ocupam esses espaços, criando neles um lar no qual os vivos moram com os mortos. Segundo a tradição cairota, os antigos cemitérios eram construídos com quartos e terraços para receber as famílias dos falecidos. Por essa razão, aqueles que fugiram do alto custo do aluguel e da vida urbana foram povoar

aquele cemitério. Em algumas tumbas, chegam a dormir 10 pessoas. Entre o ano 2007 e 2009, o cineasta português Sérgio Tréfaut realizou um documentário sobre a Cidade dos Mortos, e entrevistou alguns de seus moradores. Dentre os relatos capturados por Tréfaut, observam-se distintas posturas e reações sobre a vida num ambiente fúnebre. Uma mulher que foi levada para morar no cemitério, quando ainda era uma adolescente, fala como seu coração foi ficando duro, ao conviver com enterros na cotidianidade do “bairro”. A mulher conta que há ocasiões em que o cheiro nas tumbas é insuportável. São várias as razões pelas quais esse cemitério está povoado. Algumas famílias moravam no centro do Cairo ou em prédios caindo aos pedaços. Muitos foram expulsos das suas antigas moradias, pelo perigo que representavam ou por causa dos projetos urbanos que embelezavam o centro da cidade e encareciam o custo de vida, de serviços e de aluguel dos seus antigos moradores. No entanto, morar no cemitério não foi a opção mais econômica ou mesmo gratuita. Alguns proprietários permitem

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1 Necrópole No Cairo, 1 milhão de pobres usa as sepulturas como residências

que as famílias vivam sem custo em seus mausoléus, mas nem todos tiveram a mesma sorte, pois há os que cobram aluguel. O problema foi que, depois das expulsões, ninguém encontrou lugar para morar na região. A ocupação da necrópole é ilegal. Por causa disso, centenas de moradores vivem sem eletricidade, água potável e serviços públicos, como esgoto ou coleta de lixo.

SEGREGAÇÃO

A professora Ermínia Maricato, da Universidade de São Paulo, explica que, com o pretexto do saneamento e da modernização das cidades, são expulsas massas de população, que constroem moradias em terrenos irregulares, como morros, beiras de rios e, como vimos, nos cemitérios. “Esse processo segregacionista que expulsa diversas camadas sociais da cidade formal não só ocorre nas camadas mais pobres. Empregados de indústrias também se veem forçados a morar em favelas e assentamentos irregulares, já que os salários pagos pela indústria e as políticas públicas de habitação

não são suficientes para garantir as necessidades de moradia desses grupos sociais”, disse a urbanista. Por motivos semelhantes, o cemitério de Navotas, em Manila, Filipinas, está habitado. Suas ruas são delimitadas por linhas de tumbas e, nelas, entre uma alta acumulação de lixo, nascem pequenas casas de papelão.

De acordo com Mike Davis, ao invés de vidro e aço, as cidades do futuro serão de tijolo aparente, palha, plástico e restos O Brasil não é uma exceção, no que diz respeito aos pobres construírem moradias ilegais e em condições adversas. Em outubro de 2013, um jornal gaúcho publicou matéria sobre um grupo de moradores de rua que invadiu um cemitério em Sapucaia do Sul, na região Metropolitana de Porto Alegre. “Para escapar do frio do

inverno gaúcho, homens e mulheres fizeram dos jazigos e túmulos uma casa improvisada”, dizia a notícia. Como descreveu, em Planeta favela, Mike Davis: “As cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e aço, como fora previsto por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas, em grande parte, de tijolo aparente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e restos de madeira. Em vez das cidades de luz arrojando-se aos céus, boa parte do mundo urbano do século 21 instalase na miséria, cercada de poluição, excrementos e deterioração”. A professora Maria de Lourdes Zuquim, da Universidade de São Paulo, explica que o problema da moradia dos pobres nos países periféricos guarda semelhanças e diferenças. Entre as diferenças, podemos observar os processos de construção social e histórica do Egito e do Brasil. Ainda que diversos, os países se assemelham ao gerar condições de pobreza que convertem um cemitério numa grande vizinhança. A doutora em Arquitetura diz que basta olhar para as dinâmicas de exclusão à terra urbanizada e moradia digna. Se consideramos a informalidade e a precariedade como características da ausência do estado de bem-estar social, poderíamos concluir que essa situação se agrava quando operários recebem baixos salários em troca de prolongadas horas de trabalho em empresas e indústrias que não reconhecem a dignidade dessa produção. Noberg-Schulz afirma que o interior de uma casa funciona como um lugar próprio para os seres humanos somente quando o lar é aquele espaço que sustenta nossos mundos particulares. A Cidade dos Mortos e as milhares de favelas do mundo desafiam esse conceito. Apesar da pobreza a que tem sido condenada grande parte da população urbana, surgem testemunhas das tentativas de transformar a cidade e criar um espaço digno nos lugares mais impensáveis. É como se essas populações reinventassem o espaço, em que a tumba já não é só um lugar no qual descansa o morto, mas também onde nasce uma criança, constrói-se uma família e, dentro do ambiente fúnebre, cria-se também um lugar de convivência tal como uma grande sala de estar para passar os domingos.

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con ti nen te

Criaturas

Lamartine Babo por Nássara

Lamartine Babo (1904-1963), além de ser talentoso compositor, tinha grande senso de humor. Certa vez, numa agência dos Correios, o telegrafista, referindo-se a ele, disse ao colega, usando o Código Morse: “Que sujeito mais magro, feio e de voz fina”. Lamartine, então, tirou um lápis do bolso e bateu numa madeira: “Magro, feio, de voz fina e ex-telegrafista”. c o n t i n e n t e ja n e i r o 2 0 1 4 | 8 8

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continente

O BRASIL em hollywood

a pernambucana rebecca da costa é uma das novas promessas da meca do cinema

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