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# 159
LUTA DESARMADA
#159 ano XIV • mar/14 • R$ 11,00
CONTINENTE MAR 14
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DISTENSÃO E ARTE
E MAIS WAGNER CARELLI | FÁBIO BAROLI | CAFÉS PORTENHOS | PAULO LEMINSKI | TERRA DO FOGO | MIRÓ DA MURIBECA | CHARLES CHAPLIN CAPA_MAR base 2.indd 1
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ACERVO ICONOGRAPHIA/REPRODUÇÃO
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aos leitores Em situações-limite e regimes de exceção, somos forçados a comportamentos extremados. Isso aconteceu com os brasileiros durante a ditadura militar (1964-1985), quando as liberdades foram suprimidas. Houve os executores do regime, os que a ele aderiram, os que foram acuados. Houve os que reagiram com veemência, os que se expuseram e os que se opuseram aos militares de forma mais cautelosa. Hoje, meio século depois, a história e a justiça buscam esclarecer acontecimentos que ficaram submersos durante anos, sacrifícios, torturas, mortes. Houve aqueles que se tornaram os mártires e heróis da ditadura e que hoje são ícones da resistência no país. Os 50 anos do golpe militar são uma data marcante, lembrada em várias instâncias pelo país. Quando sugerimos ao jornalista e escritor Samarone Lima abordar o tema para a Continente, ele nos propôs contar pequenas histórias de amor e solidariedade em meio a tantos episódios de perseguição, violência, injustiça. E assim fizemos. Nesta edição, abordamos a data a partir da perspectiva dos heróis “silenciosos”, aqueles que não estão registrados por grandes feitos, mas que viveram dramas e tragédias e foram capazes de superar o medo para ajudar pessoas que sofriam perseguições.
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Samarone encontrou na história de Sylvia Montarroyos um emblema das distorções reincidentes no período. Ela – como tantos outros jovens – queria “mudar o mundo”, estava apaixonada e fazia parte do que se chamava militância de base. Por ter conseguido escapar de uma prisão, enquanto seus amigos eram espancados em outra sala do quartel, ela foi caçada como uma inimiga feroz, transformada pela propaganda do regime numa figura de alta periculosidade. A história de Sylvia acabaria em morte, não fossem intervenções de pessoas que ela sequer conhecia. Gente que a ajudou por simples gesto de humanidade. A sua história é o elemento desencadeador da reportagem que você lerá a seguir. Um bem-vindo contraponto ao ambiente opressor que se instalara na ditadura foi o da reabertura política, sobretudo com a campanha pelas eleições diretas para presidente, em 1984. Naquele momento, a população sentia que a reabertura não recuaria e que havia o retorno à liberdade de expressão. Foi um momento especial para o humorismo e para as artes em geral, que – observadas à distância de 30 anos – manifestam com precisão a euforia então vivida.
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sumário Portfólio
Fábio Baroli 6
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
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Wagner Carelli Jornalista fala sobre a revista que fundou, a Bravo!, e de seus colaboradores
Conexão
Mais Gibis Site proporciona a compra de quadrinhos digitais sem restrições de uso
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Balaio
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História
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Matéria Corrida
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MPB Publicação defende por que 1973 foi um ano especial para a música no país
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Palco
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Entremez
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Leitura
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Criaturas
Pete Seeger Ele usou o folk como instrumento de luta pelos direitos civis
Bárbara Alencar Avó de José de Alencar foi heroína da luta pela independência do país
Sonoras
Com técnica hiper-realista, artista mineiro elabora pinturas que narram cenas do cotidiano em pequenas cidades. Erotismo também está presente em sua obra
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MITsp Mostra traz para o Brasil importantes montagens internacionais de teatro contemporâneo Ronaldo Correia de Brito A consciência do erro
Miró Coletânea reúne 178 poemas do Poeta da Muribeca Carlitos Al Hirschfeld
José Cláudio Casca de jaca
Cardápio
Buenos Aires Cafeterias de épocas e estilos distintos são pontos de parada em vários bairros da cidade, constituindo-se em lugares de referência para portenhos e visitantes
54 CAPA FOTO Arquivo/Agência O Globo
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Capa
Viagem
Aos 50 anos da ditadura e 30 das eleições diretas, o encontro com histórias de companheirismo entre militantes e a volta do humorismo com a distensão política
Também conhecido como o “Fim do Mundo” por sua posição geográfica, o arquipélago oferece aos visitantes o contato com a natureza selvagem
Visuais
Claquete
Composta de documentos, fotografias e objetos, a mostra destaca as múltiplas atividades do escritor curitibano, com destaque para o romance Catatau
Produtora de Leonardo Lacca, Marcelo Lordello e Tião completa 10 anos, com a perspectiva de mostrar ao público longas inéditos ou vistos apenas em festivais
Golpe e Diretas
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Leminski
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Terra do Fogo
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Mar’ 14
Trincheira
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cartas REPRODUÇÃO
Sexo no cinema
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE
A matéria de Luciana Veras (Claquete, edição 158) reflete, de modo interessante, sobre a permissividade de falar (e ver) sobre sexo que vivenciamos hoje, em especial no cinema. Arte que possibilita expressar nossos desejos, rediscutindo padrões, “minorias” e angústias.
O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões.
ROBERTA CARDOSO
A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140).
RECIFE – PE
Mais sexo no cinema Bacana a matéria e, como sempre na Continente, bem-diagramada, bonita. Vou aguardar o meu exemplar com ansiedade. JOÃO LUIZ VIEIRA RIO DE JANEIRO – RJ
Proposta editorial Gostei bastante da proposta editorial da Continente: boas reportagens, layout bonito. Adorei a seção Portfólio, principalmente a matéria com Efrain Almeida. Parabéns a todos que fazem a revista.
DO FACEBOOK
Teatro Inominável
Os trabalhos do Douglas Aguiar (assunto de matéria publicada na revistacontinente.com.br, em fevereiro) são refinadíssimos. Tenho um de uma série japonesa dos anos 1980 de que gostava muito. Para que ele fizesse os sketchbooks, disse-lhe: “Quero tal tema na capa, fica livre para criar”. E o resultado foi sem igual. Recomendo!
Estava em dias corridos e não fiz a devida mesura a essa importante matéria escrita pela jornalista Clarissa Macau para o site da Continente (dez/13) sobre o Teatro Inominável. Ela nos assistiu no Recife, durante as apresentações de Vazio é o que não falta, Miranda, no Trema!, Festival do nosso querido Grupo Magiluth Teatro. Obrigado, Clarissa!
Sketchbooks
ÉRICA ZOE
BRUNO EUGÊNIO
DIOGO LIBERANO
FORTALEZA – CE
JABOATÃO DOS GUARARAPES – PE
RIO DE JANEIRO – RJ
As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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colaboradores
André Telles
Josias Teófilo
Mona Lisa Dourado
Samarone Lima
Professor de Comunicação e Letras e pesquisador no programa de pósdoutorado da UFRJ
Jornalista, fotógrafo e mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília
Jornalista, fotógrafa amadora e viajante por convicção
Jornalista, poeta e escritor, autor do livro Zé – José Carlos Novaes da Mata Machado, uma reportagem
E MAIS Al Hirschfeld (1903-2002), ilustrador do jornal The New York Times. Cláudia Parente, jornalista. Diego Di Niglio, fotógrafo milanês radicado em Olinda. Marcos Lontra, curador carioca, ex-diretor do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam). Marina Suassuna, jornalista. Mariana Camaroti, jornalista radicada em Buenos Aires. Marcelo Robalinho, jornalista, mestre e doutorando em Comunicação. Pollyanna Diniz, jornalista, crítica de teatro e colaboradora do blog Satisfeita, Yolanda?. Renato Lima, jornalista.
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WAGNER CARELLI
“Hoje, o ensaio é o que há de mais interessante” Jornalista, fundador da extinta revista Bravo!, fala da sua formação profissional, do surgimento e fim dessa publicação, e de sua relação com intectuais polêmicos do Brasil, como Paulo Francis e Olavo de Carvalho TEXTO E FOTOS Josias Teófilo
CON TI NEN TE
Entrevista
Wagner Carelli tem uma trajetória
singular na história do jornalismo brasileiro: formou-se em Comunicação aos 17 anos, em 1974, foi aluno e colega de Vladimir Herzog e logo passou a trabalhar no maior jornal do Brasil àquela época: o Estado de S. Paulo, que se encontrava sob censura do regime militar. Era o tempo em que os repórteres brigavam pelas matérias que seriam censuradas, como ele diz: “O maior troféu que você poderia ter era escrever uma matéria excepcional, que seria substituída por um verso de Camões”. Demitido do Estadão após uma viagem a Cuba com Chico Buarque, Antonio Calado e Fernando Morais, entre outros, ele passou a colaborar para a revista Istoé, na qual logo chegou a ser editor de cultura. Lá, fez uma polêmica reportagem sobre o cotidiano dos exilados da ditadura que voltavam à convivência no Brasil, chamada Verão da anistia, provocando a ira da esquerda brasileira. Duas grandes personalidades ideologicamente opostas se posicionaram a seu favor: Luís Carlos Prestes e Paulo Francis. Este último
escreveu um artigo na Folha de S.Paulo defendo-o da enxurrada de críticas. O epsódio ligaria posteriormente Carelli ao seu “norte absoluto”, como ele escreveu, numa amizade que durou até a morte de Francis. Wagner Carelli foi o criador da revista Bravo!, uma das mais influentes publicações culturais do país, e da revista República – as duas pertencentes à Editora D’Ávila. República e Bravo! juntaram grandes personalidades da cultura nacional, figuras de pensamentos divergentes como Ferreira Gullar, Bruno Tolentino, Sérgio Augusto, Olavo de Carvalho, Daniel Piza, Reinaldo Azevedo; artistas como o compositor Hans-Joachim Koellreutter, o cineasta Rogério Sganzerla, escritores como Ariano Suassuna, Michel Laub, Fernando Monteiro, fotógrafos consagrados como Bob Wolfenson, Edu Simões, Cristiano Mascaro. Eles conviveram lado a lado na hoje histórica revista, que em tantos momentos deu aulas de jornalismo cultural e exemplo da cultura tratada “como sentido de vida, não como entretenimento, o que Aristóteles
propunha como única satisfação do espírito humano”, de acordo com as palavras de Wagner Carelli. Um ano após Carelli deixar a direção de redação da revista, ela passou ao grupo Abril, que alterou consideravelmente a forma e o conteúdo da publicação, perdendo seu caráter ensaístico e a ousadia na abordagem. A revista ficou no mercado por uma década, sendo encerrada no segundo semestre de 2013. CONTINENTE Como foi a sua formação em jornalismo? WAGNER CARELLI Entrei em Jornalismo na FAAP, uma escola muito boa, os professores excelentes. Àquela época, os professores eram Vladimir Herzog, Rodolfo Conder e a turma toda que acabou sendo presa pela ditadura. CONTINENTE Então a sua formação foi prática acima de tudo? WAGNER CARELLI Sim. Na FAAP, os meus professores eram também colegas nas redações em que trabalhei. É interessante porque o fato de meus professores serem também bons jornalistas, na ativa, fez com que, no
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JOSIAS TEÓFILO
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fundo, nós todos nos reuníssemos para estudar aquilo que estávamos fazendo. Era quase um laboratório. Mas tudo explodiu na tragédia que foram as prisões de todos aqueles jornalistas e o episódio de Vladimir Herzog.
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CONTINENTE E foi na oposição ao regime militar que as melhores mentes do país se juntaram? WAGNER CARELLI Exatamente. Quando houve a abertura, eu me lembro de Millôr dizendo: “Agora que estamos todos juntos outra vez
jeito e tive que dormir lá. No outro dia, na cobertura, havia vários jornalistas, entre eles Sonia Nolasco, mulher de Paulo Francis. Nós nos apresentamos e ela falou: “Você é Wagner Carelli, aquele que fez a matéria na Istoé? Francis te adora, você precisa conhecê-lo”. Falei que estava sem dinheiro e ela me convidou para ir para o apartamento deles, que era um palácio, de frente para a ONU. Imagina para mim o privilégio que foi estar na sua casa, com os seus gatos. Para ficar com Paulo Francis, eu ficava até na pocilga! E a gente se deu
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“Paulo Francis era um doce de pessoa, e tinha um carinho muito grande. Nós ficamos muito amigos, depois passamos a nos falar quase todos os dias. Quando ele viajava, eu cuidava dos seus gatos”
Entrevista
podemos dizer como nos odiamos!”. Foi exatamente o que aconteceu! CONTINENTE Como foi o seu primeiro contato com Paulo Francis? WAGNER CARELLI Naquela época, havia o debate sobre a dívida do Brasil em Nova York e fui mandado pela revista em que trabalhava para cobrir o assunto. Foi uma aventura porque você não podia carregar dólares, precisava mandar o dinheiro com certa antecedência e retirá-lo lá. O problema é que, chegando em Nova York, não tinha entrado dinheiro nenhum, e eu fiquei sem um tostão – estava exatamente como o Brasil naquele momento. Aí me hospedei na casa de um amigo, que era uma pocilga, uma coisa medonha. Mas não tinha
foi lançada em outubro, ele morreu às vésperas do Carnaval. Antes disso, eu estava com Mino Carta criando a Carta Capital, e estava muito bem lá. Só que, naquele momento, eu estava precisando de dinheiro. Apareceu uma amiga minha, Renata Rangel, e falou de um sujeito que queria fazer uma revista. Então ela me apresentou ao Luis Felipe D’Avilla. Ele tinha encomendado um projeto de revista para um designer, me mostrou, e eu falei: “Como assim, você encomenda um projeto de revista para um designer?”. Mostrei como primeiro
extraordinariamente bem. Ele era um doce de pessoa, e tinha um carinho muito grande. Nós conversamos e ficamos muito amigos, depois passamos a nos falar quase todos os dias. Quando ele viajava, eu ficava lá, cuidando dos gatos. Quando montei a República, eu o chamei para colaborar. CONTINENTE A Bravo! nasceu em 1997, ano da morte de Paulo Francis, isso é simbólico para você? Ele que era um erudito, amante e crítico de arte. Aliás sua erudição faz muita falta hoje em dia, especialmente na televisão. Podemos dizer que a revista ocupou esse vazio ou a morte de Francis foi um impulso para criá-la? WAGNER CARELLI Quando Francis morreu, nós já estávamos a meio caminho da criação da revista. A Bravo!
vinha um projeto editorial e o projeto gráfico se moldava a este. Estava tão à vontade para recusar qualquer oferta dele, que peguei o projeto gráfico e joguei numa lata de lixo. Por isso acabei causando uma profunda impressão nele. Em seguida, D’Avilla me ligou e propôs fazer uma revista como a (americana) George, oferecendo-me um monte de dinheiro, que era quase três vezes o que eu precisava naquele momento. Mas não aceitei, pensei que ele era um aventureiro, que o projeto não ia durar. Ele continuou me ligando e, quando vi que o dinheiro não ia sair de onde estava, acabei aceitando. Quando nós pusemos a República para andar, Luis Felipe deu a ideia de fazer uma revista cultural – e eu falei que já tinha o modelo. Então
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nós conseguimos a parte financeira, mas faltava montar a redação. Chamei o Daniel Piza para ser diretor de redação, ele não aceitou – foi uma dificuldade, porque ninguém queria aceitar uma responsabilidade daquelas. No final das contas, nós fizemos em 23 dias a Bravo!. A ideia toda era completamente maluca, se fosse levada para a Abril iam mandar prender. Ou seja, fazer uma revista com 154 páginas, quatro cores, papel couché, era impossível. Tanto que, quando nós mostramos aos patrocinadores o resultado final, eles ficaram preocupados,
se a matéria tivesse 14 páginas, entrava com 14 páginas... Usávamos as fotografias de forma bastante generosa, e o texto entrava inteiro. Era o total oposto do paradigma de revista. CONTINENTE Em 1997, quando a revista foi lançada, o cinema nacional estava reaquecendo depois da retomada, em 1995. A Sala São Paulo seria construída em 1999, que é a grande sala de concerto do Brasil. Você reconhece um alvorescer da cultura nacional naquela época? WAGNER CARELLI Claro, era não só o alvorecer da cultura nacional, como
que vendesse. Até hoje, não me lembro de um recital semelhante, foi uma epifania, uma coisa revelatória. CONTINENTE Nessas edições da Bravo!, nós vemos figuras com posturas ideológicas completamente diversas convivendo lado a lado, textos de Olavo de Carvalho, Bruno Tolentino, Sérgio Augusto, Ferreira Gullar, Fernando Monteiro... WAGNER CARELLI Bruno foi editor, imagina uma revista que tinha Bruno Tolentino como editor! A ideia toda era que, sem se comprometer, sem ceder
“No fim dos anos 1990, viviámos não só o alvorecer da cultura nacional, como a inclusão do país no cenário cultural internacional. Era o momento ideal para lançar a Bravo!”
dizendo que era muito mais do que tinha sido acertado inicialmente. Preocupados porque pensaram como seria possível sustentar aquilo tudo. CONTINENTE É verdade que cada edição custava uma fortuna? Escreveram: 250 mil reais... WAGNER CARELLI Era muito caro, mas não era 250 mil. Custava cerca de 115 ou 120 mil reais. Nós pensávamos que ia vender pouco, 5 mil exemplares. E nossa primeira tiragem foi de 40 mil exemplares. A revista foi concebida para ser uma agenda cultural, ela estava ligada aos acontecimentos daquele mês, só que aquilo era um pretexto para que a gente tratasse exaustivamente todo o assunto. E outra coisa: ela não tinha limite de páginas,
era a inclusão do país no cenário cultural internacional. O que me levou a acreditar que uma revista como essa seria adequada e estava no momento para que ela fosse feita: aqui, em São Paulo, a exposição do Rodin recebeu um milhão de pessoas. Depois, teve uma exposição de Monet de quinta categoria no MASP – público de 500 mil pessoas. Vladimir Ashkenazhy viria ao Brasil reger a orquestra de Israel, só que ele brigou com a orquestra e embarcou sozinho. E para ele não fazer nada, arranjaram o auditório da Hebraica para ele tocar. Minha esposa conseguiu o ingresso e estava completamente lotado, ofereceram-me 500 dólares por ele e eu não vendi, e não encontrei ninguém
absolutamente nada na qualidade da sua avaliação, da sua critica, do seu conteúdo, você poderia fazer um produto vendável. Obviamente, não venderia como o álbum de figurinhas da seleção brasileira. No dia seguinte à distribuição do primeiro número da revista, todas as bancas da região dos Jardins ligavam pedindo reposição. E vendeu tudo. Na segunda edição, com aquela capa de Caetano Veloso na famosa foto de Bob Wolfenson, a revista já tinha ganhado dois ou três prêmios. CONTINENTE E como foi a descoberta do escritor pernambucano Fernando Monteiro? WAGNER CARELLI Um dia, estou na redação e vejo um livro em cima da mesa, sozinho. O livro não tinha
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mandar, mas estou absolutamente certo de que vocês vão olhar como uma produção menor, de um escritor menor, de um lugar menor, e muito obrigado pela atenção ou pela desatenção, se é que você chegou a ler até o final”. É que eu era muito mais exigente com relação à literatura, que é a minha área, e o romance brasileiro recente está uma tragédia: não tem nada que te atraia, que te chame. Desde Fernando Monteiro até agora, acho que somente de um romance do Contardo Calligaris eu gostei, mas ele é italiano.
de coisa, não interessa que os artistas se pronunciem. Hoje, o ensaio é literariamente o que existe de mais interessante: por isso está havendo a fusão do ensaio com o romance, com a poesia, com a reportagem. Aquilo que você encontrava em se tratando de ensaio na revista encontrase hoje expandido em livros. CONTINENTE Na revista República foi publicada uma matéria sua de 10 páginas sobre O imbecil coletivo, livro de Olavo de Carvalho, junto a uma entrevista com ele. Você
DIVULGAÇÃO
nada de chamativo, eu o peguei e vi que havia sido editado em Portugal. Comecei a ler e era completamente diferente de tudo que lia no Brasil naquela época, porque, quando comecei a editar na Editora Globo, todos os originais eram escatológicos logo na primeira página, tinha alguém vomitando, passando mal, tinha alguma privada. Havia essa tentativa de ser verdadeiro, carnal, visceral. Mas não era um ou outro, eram todos! E aí aparece esse cara, escrevendo sobre um cineasta, que eu nem sabia se existia
“Desde o primeiro filme que assisti de Bertolucci, achava que ele fazia os filmes para mim. Então apareceu O último tango em Paris, que foi meu momento icônico. Segui para Itália para entrevistá-lo”
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Entrevista de fato ou não, e escrevia lindamente. Eu dizia: “Como é linda essa língua, quando se escreve bem!”. E, de repente, olho e está escrito: “Fernando Monteiro nasceu no Recife”. Mas mesmo assim eu pensei: “Ah, ele nasceu no Recife por acaso, e certamente agora mora em Portugal”. E não era por ser o Recife, eu não acreditava que de nenhum lugar do Brasil fosse sair um cara daquele. Quando olho, tem uma carta de Fernando dizendo mais ou menos assim: “Estou mandando esse livro porque minhas filhas me pediram pra
CONTINENTE Ainda sobre a revista, era comum artistas escrevendo sobre arte. É uma coisa muito incomum, não é? WAGNER CARELLI Esse território da opinião é muito complicado. O jornalista em geral é muito corporativista, ele odeia ver quem não é do ramo escrevendo qualquer coisa. Embora isso tenha mudado muito, ainda é uma atividade que alguns concentram e de que não abrem mão. Na Bravo! havia essa cultura de abertura. Também podia aparecer uma fotografia de alguém que não fosse fotógrafo, ou uma peça ilustrativa feita por um escritor. Mas, certamente, nenhuma publicação quer se meter nesse tipo
o descreve como “critico e intérprete de maior clareza da cultura brasileira e universal em atividade franca, incansável e produtiva”. Você reafirmaria isso hoje? WAGNER CARELLI Reafirmaria. Acho que nunca encontrei um cara que pensasse melhor do que Olavo de Carvalho. Fui ver uma aula dele sobre Kant, lembro que a exposição dele foi de uma clareza e de uma abrangência, que fiquei pasmo. E ele falava sobre Kant como se fosse um cara que estivesse ali no escritório, escrevendo e publicando na Folha de S.Paulo. Mas, para mim, Olavo tem a mania de se apequenar, acho que ele tinha que se poupar, tinha que ter mais cuidado com isso que lhe foi dado a compreender.
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CONTINENTE Olavo de Carvalho lançou recentemente O mínimo que você precisa saber pra não ser um idiota, que já está há várias semanas entre os mais vendidos, mas saiu pouca coisa sobre ele na grande mídia. Ninguém está fazendo por ele o que você fez naquela época. Seria o patrulhamento ideológico? WAGNER CARELLI O que denota isso: as pessoas estão comprando o livro dele, estão superinteressadas no que ele tem a dizer. As pessoas não estão nem aí para a mídia, porque a mídia não as representa mais. Esse é o grande problema de você não produzir mais bom jornalismo. As pessoas estão se aproximando do pensamento conservador porque ele é mais generoso atualmente. Até agora, não vi uma análise de por que as manifestações de junho rechaçam a grande mídia. CONTINENTE Qual foi a melhor entrevista que você já fez? WAGNER CARELLI Foi com Bernardo Bertolucci. Desde o primeiro filme dele a que assisti, O conformista, achava que ele fazia os filmes para mim. Então apareceu O último tango em Paris, que foi o meu momento icônico: fui totalmente abraçado pela obra. Segui para a Itália, eram os 100 anos da Fiat, e havia uma amiga que tinha contato com ele. Só que, naquela época, ele estava com uns problemas na coluna, que o deixariam paralítico. Liguei e atendeu a secretária eletrônica, então falei um absurdo: “Olha, eu sou jornalista brasileiro, você precisa me conceder uma entrevista porque eu sou o cara para quem você fez todos os seus filmes”. Aí me encontrei com a amiga que tinha me dado o contato de Bertolucci e com o marido dela, e contei o que eu tinha feito. À medida que ia falando, eles iam ficando envergonhados... No dia seguinte, Bertolucci liga para ela, e diz: “Tem esse jornalista aí que quer muito falar comigo, manda ele vir aqui, estou na minha casa, na Toscana”. Então fiz uma entrevista sobre o amor, foi uma coisa completamente subjetiva. Pedi-lhe para me explicar como fazia os filmes. E ele se abriu, contou como foram as filmagens de O último tango em Paris, sobre a sua relação com Marlon Brando. Disse que, pelas manhãs, iam com todos os atores ao museu ver uma exposição do pintor Francis Bacon. A entrevista foi feita numa das locações do filme dele, na Toscana.
você sabe o que é um abilocil? uma baldroca? uma cacerenga? um debo? um embeleco? e um fifó?
Passe o grau neste livro e fique por dentro!
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
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GOLPE E DIRETAS
LEMINSKI
Nestes 50 anos do golpe militar e 30 anos das eleições diretas, fizemos duas reportagens em tons divergentes, apropriados à tristeza e à alegria que cada um dos eventos trouxe à história do país. Complementando o material impresso, oferecemos online o depoimento de uma psiquiatra que esteve no Recife, nos anos 1960, e sentiu o clima pesado na cidade. Sobre as Diretas, foi marcante a euforia do retorno à liberdade de expressão. E isso incluiu o humor, então superdifundido. Reproduzimos alguns exemplares do jornal Papafigo, que aproveitou bem a distensão.
Faça um tour virtual pela mostra Múltiplo Leminski, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, e veja Polaco Loco Paca, documentário de João Knijinik, sobre o poeta.
Conexão
TRINCHEIRA Para sintonizar o trabalho da produtora, assista a alguns de seus filmes, além de trailers do longa Eles voltam, que estreia nacionalmente no dia 7 de março.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
ACERVO
IMAGEM
MÚSICA
MÍDIA
Instituto Paulo Freire reúne material sobre o pedagogo e ensaios a seu respeito
Fotojornalismo e história da fotografia em discussão
Uma enciclopédia com gravações e dicionário sobre vinil
Para garantir o amplo direito de todos à comunicação
acervo.paulofreire.org/xmlui
veja.abril.com.br/blog/sobreimagens
tenhomaisdiscosqueamigos.com
paraexpressaraliberdade.org.br
O site Tenho mais discos que amigos é uma enciclopédia de música. O diferencial é a variedade de formatos de conteúdo: listas, podcasts, rádio, entrevistas, resenhas e a amplitude do universo musical sobre o qual o site se concentra, levando em conta o tamanho de sua equipe. A página traz, ainda, gravações exclusivas feitas em estúdio próprio e um dicionário exclusivamente sobre o vinil. Nas últimas edições da seção Estúdio, apresenta-se o indie rock baiano da Vivendo do Ócio.
O Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática foi lançado em 2012, depois de uma série de diálogos entre movimentos sociais reunidos no Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). A campanha é apoiada por centenas de entidades da sociedade civil que buscam a efetividade do direito à comunicação e lançam propostas para, finalmente, regulamentarem os meios de comunicação eletrônicos. No site, detalhes do projeto e material de campanha para os interessados.
A obra e a produção de pesquisadores em torno de uma das maiores referências da pedagogia no Brasil estão disponíveis numa plataforma colaborativa de compartilhamento de arquivos organizada pelo Centro de Referência Paulo Freire (CPRF). O site divide sua biblioteca em iconografia, obra e produção de terceiros, reunindo charges, fotografias, artigos, entrevistas do educador e de pessoas que falaram sobre seus métodos. Os arquivos estão disponíveis para download.
O blog Sobre Imagens faz parte do portal online da revista Veja desde 2010 e, recentemente, ganhou novo visual. Atualizado semanalmente, o espaço é dedicado à discussão sobre fotojornalismo e a trajetória da fotografia. O autor, o recifense Alexandre Belém, divide a página em História, Mulheres, Brasileiros, Dedoc (que apresenta registros de pessoas conhecidas), Música e Natureza, e empresta suas impressões sobre o trabalho de outras pessoas. Belém é jornalista, fotógrafo e editor de imagens.
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blogs CONVERSA DE CINEMA milosmorpha.com
Criado em 2009 para divulgar lançamentos, o Milos Morpha já reúne mais de 400 postagens sobre cinema. A página conta com um alto número de críticas escritas pelos estudantes Cesar Castanha, Antonio Lira e Radamés Marques. Além de comentar filmes recentes, o blog revisita clássicos que são reexibidos em salas de cinema.
CULTURA POPULAR selomundomelhor.org
QUADRINHOS DIGITAIS Mais Gibis traz iniciativa inédita ao autorizar o comprador a emprestar os livros e permanecer com o arquivo das HQs por tempo indefinido maisgibis.com.br
A leitura de quadrinhos por meios digitais e as condições de
compartilhamento desses arquivos são polêmicas desde que essa prática começou. Com estreia em janeiro deste ano, o site Mais Gibis trouxe uma iniciativa inédita no Brasil: a compra de quadrinhos digitais sem restrições de DRM (Gerenciamento Digital de Direitos). Antes, um sistema monitorava o número de cópias e, às vezes, o tempo que o leitor ficava com o material. Neste caso, o comprador tem a possibilidade de emprestar os livros para qualquer pessoa, sem maiores complicações, e permanecer com o arquivo por tempo indefinido. O portal, que já conta com acervo considerável, busca incentivar a difusão da produção independente e o acesso às HQs com preços mais razoáveis. Outro ponto positivo é que a leitura pode ser feita em qualquer plataforma, como computador, tablet e celular. O site nasceu através de uma parceria entre a 2000AD, a Mythos Editora, a Balão Editorial e a Muzinga, que trazem publicações conhecidas como o futurista Juiz Dredd. Por ora, a página disponibiliza algumas HQs gratuitas, possibilitando ao leitor conferir o trabalho de editoração antes de efetivar a compra. PETHRUS TIBÚRCIO
O músico, pesquisador e produtor Alfredo Bello reúne áudios, vídeos e fotografias do que conhece de tradições e festas da cultura popular no Brasil. O selo Mundo Melhor nasceu em 2004, e, três anos depois, surgiu esse espaço virtual para disponibilizar parte do conteúdo. Entre a discografia do blog, os pernambucanos Maracatu Nação Encanto da Alegria e o Afoxé Oyá Alaxé.
ATIVISMO INTERSECIONAL incandescencia.org
Juno Cremonini descreve seu blog como um lugar de “material panfletário cheio de chavões”. Mulher trans, feminista radical e anarquista social, Juno fala de lutas sociais defendendo o princípio da intersecionalidade. Ela é coerente em seu discurso contra a propriedade intelectual e comercialização da cultura e monta uma vasta biblioteca de textos com temas como anticientificismo, libertação animal, entre outros.
sites sobre
ilustração OLAF HAJEK
STEPHEN WILTSHIRE
BENÍCIO
olafhajek.com
stephenwiltshire.co.uk
benicioilustrador.com.br
Numa atmosfera onírica e vibrante, o alemão Olaf Hajek abusa das cores e dá destaque à figura da mulher em suas ilustrações, sejam editoriais ou publicitárias.
Autista de memória fotográfica, Stephen Wiltshire ficou conhecido por sua capacidade de desenhar panorâmicas detalhadas de paisagens urbanas.
Mais de 1.500 capas de pocket books foram ilustradas por Benício, que tem no currículo diversas publicações e mais de 300 cartazes do cinema nacional.
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Fábio Baroli
PESQUISA, TRANSGRESSÃO E EROTISMO TEXTO Marina Suassuna
Há quem diga que nada é mais íntimo para um artista que seu ateliê. No entanto, o mineiro Fábio Baroli faz questão de desmistificar tal percepção. Ele, que sempre teve seus espaços de criação movimentados com música, festa, alegria e bastante frequentados por outros artistas, entende o ateliê não como um espaço de clausura, mas como um ambiente de troca e reflexão. “Claro que, em certos momentos, precisamos de um pouco de solidão. Contudo, isso é uma condição humana. As pessoas querem ver o artista em seu momento de criação quase divino, mas não tem mistério nenhum. Não vejo por que se isolar para produzir. A coisa acontece e o processo tem sua naturalidade”, diz o artista plástico de 32 anos, nascido em Uberaba, interior de Minas Gerais, cujo primeiro ateliê foi montado no fundo da casa dos pais, em 1999, logo após concluir o Ensino Médio. Na época, Fábio, que sempre estudou em escolas públicas, com pouco acesso à cultura e arte, decidiu buscar uma vivência nas linguagens de desenho, escultura e pintura sem muitas referências. “Acho que fui motivado mais por uma necessidade de fazer que pela consciência da razão.” Até perceber a necessidade de focar nos estudos de arte contemporânea, passaram-se cinco anos de experiência amadora no ateliê da casa dos pais, tempo que lhe forneceu a base necessária para decidir o caminho que seguiria. Foi quando, em 2004, ingressou no curso de bacharelado em Artes Plásticas da Universidade de Brasília (UnB). A partir de 2007, passou a se dedicar à pintura, sua principal linguagem artística.
Página anterior 1 RETRATOS
Na série Semblantes, o artista retoma a tradição do gênero
Nestas páginas 2-3 VENDETA
Pinturas de um grupo de jovens rebelados entre si e contra os espectadores
4 COTIDIANO Muitas vezes, o artista constrói relatos imagéticos 5 EROTISMO Tema é recorrente em seus trabalhos 6 REALISTA Baroli explora toda a crueza do corpo humano
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A intimidade que estabeleceu com os pincéis transgride noções de representação sob a lente subjetiva do lirismo. Seus traços largos, marcantes, enfatizam uma crueza realista, em especial a do corpo humano. Segundo o artista, a forma como conceitua, sistematiza e executa seu trabalho foi adquirida na academia, fruto de um processo infindo que exige empenho e pesquisa. Fábio costuma desenvolver suas obras em séries, utilizando apenas óleo sobre tela, sobre uma base
de gesso-cré. “Uma série é um conjunto de trabalhos que lidam com os mesmos questionamentos. Costumo escolher um assunto e desdobrá-lo ao máximo. Daí a particularidade de cada série.” Por outro lado, o artista percebe que os temas presentes em suas criações vão se fundindo num grande conjunto, que é a obra em sua totalidade. É o caso da arte erótica, que reincide em várias de suas séries como sintoma de uma pesquisa iniciada ainda nos tempos de graduação.
7 VEIA DICA Pintura de uma mulher interiorana traz em composição objetos icônicos da cultura tradicional
“Percebo meu trabalho em uma situação triangular: a pintura como linguagem, a apropriação como método e o erotismo como tema. Porém, em cada um desses pontos, há desdobramentos que fazem com que o processo aconteça de formas variadas.” Colecionador de imagens é como se define o artista, uma vez que se alimenta de referenciais imagéticos de fontes distintas: álbuns de família, sites pornográficos, blogs e redes sociais, como também de música, literatura e vivências cotidianas.
8-9 INTIFADA Série retrata a nova geração de crianças do bairro em que cresceu, em Uberaba (MG)
“Procuro juntar todas as imagens num mesmo plano, dentro de uma composição sob a forma de colagem”, diz ele, que não costuma fazer esboços nem voltar na pintura, obtendo no primeiro gesto o resultado final. Além do erotismo, foram temas de suas séries o regionalismo e o imaginário infantil em sua cidade natal. “De um modo geral, procuro sempre estabelecer diálogos com a tradição, mas com a preocupação da pertinência do trabalho na atualidade.”
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O MACHADO DE PETE
O decano da rebeldia Em 27 de janeiro deste ano, o mundo perdeu um dos seus artistas mais combativos. Nesse dia, se foi, aos 94 anos, o cantor e compositor Pete Seeger, um dos pilares do folk americano, que usou, até o fim da vida, a música como instrumento de luta pelos direitos civis. Felizmente, o ativista viveu tempo suficiente para estar presente num dos momentos históricos de seu país: a chegada do primeiro político negro à presidência dos EUA. No dia 18 de janeiro de 2009, ladeado pelo fã Bruce Springsteen, Pete cantou e tocou, com indisfarçável alegria, o hino This land is your land, do amigo e ícone do folk Woody Guthrie (1912-1967), na festa da posse de Barack Obama, transmitida ao vivo do Lincoln Memorial. O músico estava munido de seu mítico banjo, em cuja madeira está esculpida a frase “This machine surrounds hate and forces it to surrender”(Esta máquina enlaça o ódio e o força a render-se). Dois anos depois, o comunista, ex-vítima do macarthismo, participou dos protestos do Occupy Wall Street, sob um frio de 15 graus negativos. Militante das causas ambientais, o músico enviou, em novembro do ano passado, uma carta ao presidente Vladimir Putin cobrando a libertação de Peter Willcox, capitão do navio do Greenpeace, preso na Rússia. A trajetória de Pete foi tão bonita quanto suas canções. Uma delas, Turn turn turn, pode ser relembrada agora: “Para tudo há uma época/E um momento para cada propósito, sob o céu”. DÉBORA NASCIMENTO
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A FRASE
“O mais delicioso dos privilégios é gastar o dinheiro dos outros.”
John Randolph, político americano
Apesar da simpatia, da cara de bom-moço, do comportamento ameno e pacificador, Pete Seeger era bem firme na defesa de suas posições. Por isso foi personagem de uma das mais célebres celeumas da história da música americana. Responsável por aconselhar a Columbia a contratar o jovem talento do folk Bob Dylan, ele convidou, em 1965, o mais novo e promissor membro do gênero musical para se apresentar no Newport Folk Festival. Algo esperado. Afinal, Dylan, com três anos de carreira, já tinha cinco discos lançados e aclamados, com um punhado de canções emblemáticas que rementiam aos ideais do folk, como Blowin’ in the wind e Times they are a-changin. No entanto, o rapaz de 24 anos, que tocava com violão e gaita, resolveu mostrar, na ocasião, sua nova investida, o folk rock. Ao tocar plugado, com um acompanhamento de rock, quebrava, então, a regra básica do evento acústico. Pete, ao ouvir, dos bastidores, as vaias da plateia revoltada, teria pego um machado para cortar o fio do som do show. Até hoje, não sabemos se o fato realmente aconteceu, se ele desistiu de cortar o cabo ou se foi contido pelos presentes. O certo é que, depois disso, sua canção de 1950, If I had a hammer, ficou eternamente ligada ao episódio, que Dylan costuma relembrar com um sorriso peralta no rosto. (DN)
Balaio BOTA SARCASMO NISSO...
A adjetivação é muito precisa, por isso, vale a pena citar. Num texto em que homenageia o amigo Henfil (19441988), o jornalista Tárik de Souza define os seus personagens como: “agressivos, politizados, humanistas e iconoclastas”. O leitor brasileiro provou deles e aplaudiu as piadas politicamente (absolutamente) incorretas do cartunista, pela atuação de tipos como os Fradinhos (Cumprido e Baixinho), o cangaceiro Zeferino e a Graúna. Quando tentou fazer carreira nos EUA, entretanto, Henfil provou da caretice norte-americana (que não por acaso inventou o politicamente correto), quando teve vários dos seus trabalhos considerados sickies (doentios). Aqueles eram tempos “bicudos”, como se dizia, de repressão política braba, e a ironia cáustica foi a linguagem encontrada pelo artista mineiro, batizado Henrique de Souza Filho, de botar lenha naquele inferno. (Adriana Dória Matos)
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ARQUIVO NÃO VALE A PENA VER DE NOVO Aos bolorentos de plantão: existe alguém saudoso daquele 1º de abril de 1964? O regime dos generais alimentado a atos institucionais, roubos, torturas e assassinatos? Castelo Branco, o primeiro do cartum acima, de autoria de Nássara, com uma cara de primata, sem pescoço, devia ter levado muito cascudo quando pequeno. Costa e Silva, que levava mais chifre que pano de toureiro, decretou o AI-5 e acabou morrendo de um derrame cerebral. Veio uma junta militar, conhecida por Os 3 patetas, que botou no trono o pior de todos, Garrastazu Médici, a verdadeira besta fubana, que vivia com um rádio de pilha enfiado no ouvido, escutando futebol, talvez para abafar os gritos dos que eram torturados e mortos nos xilindrós da ditadura. Em seu rastro, veio Ernesto Geisel, o pastor alemão, que, a bem da verdade, deu um revestrel e começou a desatarrochar o frinfa da democracia à base de muito bate-boca e demissões de seus colegas de farda. Mesmo assim, elegeu como seu sucessor João Figueiredo, um ex-chefe do SNI que prendia e arrebentava quem fosse contra a abertura política e que preferia o cheiro de cavalo ao cheiro do povo. Seu conselho aos que ganhavam salário mínimo: “Dêem um tiro no coco”.(Luiz Arrais)
Os cachinhos imortais Se os termos “queridinha da América” e “menina prodígio” tivessem que ser atribuídos somente a uma pessoa nos EUA, a escolhida certamente seria Shirley Temple - principalmente se o contexto fosse a primeira metade do século passado. À época, a atriz mirim de sorriso extremamente cativante se tornou uma das principais válvulas de escape do povo americano, frente à Grande Depressão. A garotinha que sabia cantar, atuar, dançar e fazer rir é até hoje um fenômeno difícil de ser repetido. Aos seis anos de idade, ganhou um Oscar pelo “conjunto da obra”. Já havia feito simplesmente 20 dos 58 filmes de sua curta, mas intensa carreira. As equipes de filmagens costumavam impressionar-se com seu profissionalismo. Se ela recebia as falas num dia, no outro já as sabia de cor. E, ao contrário de outras crianças, nunca chorou nos sets. Não é à toa que os longas em que atuava eram campeões de bilheteria, o que salvou da falência o 20th Century Fox. O estúdio, a propósito, não a liberou ao MGM, para interpretar Dorothy, de O mágico de Oz, o que poderia ter sido o maior triunfo de sua carreira. Por tudo isso, é difícil imaginar que essa loirinha angelical, um dos ícones estampados na capa do Sgt. Pepper’s, morreu, no dia 10 de fevereiro, aos 85 anos, e que agora será apenas uma maravilhosa lembrança. DÉBORA NASCIMENTO
OS BRUTOS TAMBÉM AMAM
O MISTÉRIO CONTINUA
Guerra é guerra, dizem alguns para justificar atos impensados ou até mesmo extremados na luta pela sobrevivência. Na foto de março de 1923, soldados gregos comemoram o Dia da Independência, relaxando em dolce far niente talvez sob o slogan “Faça o amor, não faça a guerra”. Como diria Alexis Zorbás, personagem do filme Zorba, o grego – estrelado por uma lapa de bruto, Anthony Quinn: “Há em mim um diabo que grita, e eu faço o que ele diz. Cada vez que eu estou a ponto de sufocar, ele diz: dança, e eu danço. E isso me alivia!” A gente só não sabe o que diriam as namoradas ou esposas dessa turma. Ou a frase “amigo é pra acudir outro” estaria mais bem-colocada no cenário? Por último, sem querer interromper tão edulcorado momento, ainda resta uma dúvida ao vermos a foto: “Cadê os pratos?”(LA)
O filme mais popular sobre música erudita tem refutada a veracidade da história que narra. Amadeus (1984), de Milos Forman, inicia com o compositor Antonio Salieri, internado num manicômio, afirmando que matou Mozart. A ideia do assassinato permeia toda a narrativa, apresentando o italiano como um músico invejoso, que envenena o antigo aluno. No entanto, o Museu de Viena, dedicado ao legado do gênio austríaco, lançou campanha para limpar a reputação do suposto assassino, mostrando Salieri como um artista bem-humorado, talentoso e generoso com seus pupilos, tais como Beethoven e Schubert. Além disso, correspondências revelam que foi Leopold, pai de Mozart, quem viu em Salieri uma ameaça ao desenvolvimento musical do filho. Embora faça a defesa, a instituição confirma a declaração do mestre italiano, mas não a considera uma confissão. (DN)
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ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO/REPRODUÇÃO
A adolescente que virou “perigosa trotskista” O psiquiatra que se arriscou para salvá-la O irmão pequeno que via na irmã uma heroína A doméstica que ajudou a patroa na militância Seis irmãs unidas pela ação contra a ditadura
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REPRODUÇÃO
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“TATIANA” Guerilheira desarmada
Sylvia Montarroyos, garota da classe média recifense, de 17 anos, apaixonada e idealista, entra numa organização política durante o golpe militar e é transformada num “monstro” do comunismo. À beira da morte, chega ao Hospital da Tamarineira e é salva por Othon Bastos. Cinquenta anos depois, histórias como a dela se tornam públicas e revelam a humanidade dos pequenos gestos. TEXTO Samarone Lima
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No dia 2 de novembro de 1964, “Tatiana” tinha 17 anos, era uma simples “militante de base” de uma organização de esquerda, o PORT (Partido Operário Revolucionário Trotskista). Estava dormindo na casa de um operário, em Prazeres. Enquanto ela estava no quarto, o “Comitê Regional” da organização – do qual não fazia parte – se reunia na cozinha: o irmão Carlos, junto com outros companheiros, além de seu grande amor, o uruguaio Pedro Makovsky Clemenchveck, de 23 anos, que usava o codinome “Gustavo” e a chamava de “Petiza”. Tatiana não participava da reunião porque nela iam ser tomadas “resoluções altamente importantes e secretas”. Em seu livro de memórias, disse que “dormia tranquilamente o sono dos justos e dos inocentes, e tinha sonhos cor-de-rosa”. Ela foi acordada bruscamente por Gustavo. – “Estão atirando, Petiza.” Um infiltrado na organização tinha passado os dados à Polícia, que cercara a casa. Tentaram fugir, correndo por trás, e conseguiram chegar à praia, quando foram alcançados. Ela estava descalça e de camisola. Foram presos e levados para a Secretaria de Segurança Pública, comandada pelo secretário Álvaro da Costa Lima, na Rua da Aurora (centro do Recife). Nem em seus piores pesadelos, poderia imaginar que começaria uma descida aos infernos da ditadura, que acabara de nascer. Não imaginaria, também, que quase 50 anos depois voltaria de Portugal, onde vive há muitos anos, para contar tudo o que sofreu, pelo seu envolvimento político, à Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, criada em Pernambuco em 1º de junho de 2012, com a finalidade de investigar violações de direitos humanos em Pernambuco, praticados por agentes públicos, de 1946 a 1988. O foco da Comissão são as violações ocorridas durante o regime militar, a partir de 1964. Muito menos, que iria reencontrar um herói discreto, o psiquiatra Othon Bastos, que a livrou da loucura, quando foi internada no Hospital Psiquiátrico da Tamarineira, em pleno estupor, à beira da morte. De tantas torturas, ela chegou a pesar 23 quilos. O médico arriscou a pele e a levou da Tamarineira, da ala
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CLEMILSON CAMPOS/ JC IMAGEM
1-2 SYLVIA DE
MONTARROYOS Quando jovem, usou o codinome “Tatiana” na vida semiclandestina. Recentemente, em seu depoimento na Comissão da Verdade
Na sede da polícia, a primeira bofetada. Os homens foram levados para o andar de baixo. Ela ficou numa sala, sozinha onde estavam criminosos à espera de julgamento, em seu carro particular, para um atendimento-modelo em psiquiatria, no Hospital Pedro II. “No primeiro depoimento, a portas fechadas, ela estava muito nervosa, chorou, ficou desconfiada. Cada pessoa que abria a porta, deixava-a sem segurança. Estava com medo, ainda, de que acontecesse alguma coisa”, lembra a historiadora Socorro Ferraz, integrante da Comissão. O seu primeiro testemunho aconteceu em 24 de agosto de 2012. “Ela disse que estava escrevendo um livro e queria saber se a Comissão dava algum apoio.” Tatiana era o nome usado por Sylvia de Montarroyos na vida semiclandestina que mal começara a viver, naqueles primórdios do golpe. Já tinha retornado ao Recife algumas vezes, mas sua história permanecia em silêncio. Na última vinda, encontrou um cenário diferente – várias Comissões da
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Verdade funcionando, escutando depoimentos, esclarecendo casos obscuros do período. “Ela viu que era um momento novo, que as pessoas estavam falando. Depois do depoimento fechado para a Comissão, disse que queria falar em público”, conta Socorro. *** Tatiana chegou à Secretaria de Segurança como um ser à parte. Corpo franzino, olhos assustados, rosto delicado, cabelos longos. Carregava uma ingenuidade e uma inocência que vinham de uma criação extremamente protetora, típica de família de classe média do Recife da década de 1950. Estudara em colégio de freiras, com direito a aulas particulares de inglês, francês, canto e balé. “Nós éramos quase todos de famílias ricas ou abastadas, mas, por puro idealismo, havíamos largado tudo e estávamos ali, sem conforto e sem dinheiro, com uma vida toda feita de esperanças, lutas, amor e chimarrão”, lembra. Na sede da polícia, a primeira bofetada. Os homens foram levados para o andar de baixo, ela ficou numa sala, sozinha. Quando escutou os primeiros gritos das torturas nos companheiros, procurou um policial, aterrorizada. –“Estão batendo neles!”
–“Não estão, não”, respondeu um agente, com cara de enfado. –“Aqui não se bate em preso político.” O mesmo policial completou, com um sorriso de satisfação: – “Isso são só os ladrões que estão apanhando. Daqui a pouco param. Agora, vá para dentro da sala e durma.” Horas depois, já madrugada, Tatiana viu os companheiros passarem de volta pela porta, sangrando, cambaleantes, com as roupas rasgadas. Tentou falar com Gustavo, mas algo nele já estava quebrado para sempre. Sua geração assistia, da forma mais brutal, aos primeiros movimentos da ditadura. Deixada sozinha em uma sala, ela aproveitou a pouca importância que seu tamanho e tipo físico despertavam nos policiais. Saiu tateando no escuro, abriu uma porta, caminhou e passou pelo último guarda da Secretaria, que a viu, mas não deu atenção. Trêmula, ofegante, com o coração em disparada, ela estava livre. Aos 17 anos, era uma das primeiras presas políticas de Pernambuco. A partir daquele momento, a primeira fugitiva do regime. Correu para casa de um tio. A família, em desespero, providenciou um esconderijo, em Olinda. Durante um mês, ficou à espera de um plano de fuga, elaborado pela família, sob o comando do pai, Adeildo, conceituado chefe de gabinete da Assembleia Legislativa. Mas era tarde. No período em que ficou reclusa, quase sem contatos, ela não sabia que a meiga, delicada e ingênua Tatiana tinha se tornado outra mulher.
“FURIOSA TROTSKISTA”
Sob o comando de Álvaro da Costa Lima, Tatiana transformou-se no alvo número um da ditadura. As TVs começaram a exibir sua foto, em intervalos regulares, com o apelo: “Procura-se”, ou “Quem a viu?”.
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DIEGO DI NIGLIO
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Passou a ser descrita como “perigosa terrorista”, “criminosa sagaz e diabólica”. As estações de rádio reproduziam as informações. O passo seguinte foi a distribuição, em aeroportos de todos os estados, de cartazes com sua foto. “Mulher-chefe”, “mulher-chave” do Partido. “Furiosa trotskista, “elemento da mais alta periculosidade”. Os jornais seguiram à risca os informes da polícia, publicando matérias que exaltavam sua beleza, associada a uma alta periculosidade. O Diário da Noite estampou: “Tatiana: beleza também conspira”. No jornal carioca Correio da Manhã, ela se transformou na “Bela guerrilheira que fugiu da polícia”. A família preparou um detalhado plano de fuga. Saindo do Aeroporto dos Guararapes, um voo a levaria até Porto Alegre. O chefe da Panair, no Recife, estava no esquema. A carteira de identidade falsa, com o nome de Sandra, ficou perfeita. Um dos familiares de Gustavo, seu grande amor, o lado uruguaio de sua vida, estaria em Porto Alegre, ela seria levada a Paisandu, no Uruguai, onde
ficaria morando. Em troca, os pais de Tatiana cuidariam de Gustavo, dariam a ele assistência familiar e jurídica. Tudo estava pronto, mas Tatiana não sabia que agora era a “famosa terrorista”. Na véspera da viagem, escreveu um bilhete e fugiu novamente, dessa vez, da família. “Minha gente: Obrigada por tudo. Por mais que viva, nunca vou poder pagar a vocês o que têm feito por mim. Mas a minha vida não está aqui, e nem longe do Recife. Eu vou atrás dela. Por favor, não se preocupem comigo, e me perdoem se lhes faço mal. Vocês são maravilhosos, merecem só o melhor. Que Deus os abençoe. A prima e sobrinha que vai amar sempre vocês, e vai sempre lembrar de vocês com um carinho muito grande, e ser sempre muito grata a vocês todos, por tudo, e eternamente, Sylvia.” A “perigosa trotskista” saiu de Olinda e caminhou até o Recife. No mesmo dia da fuga, alguém a viu, telefonou para a delegacia mais próxima; minutos depois de chegar à casa de um amigo,
foi cercada e presa. Estava de volta à Secretaria de Segurança Pública. A recaptura foi transmitida pela TV. Sylvia relembra com detalhes: “Houve um corte na transmissão ao vivo que a televisão fez da minha recaptura, que Álvaro da Costa Lima tentava mostrar como uma vitória da polícia, quando ela apenas a recebera de bandeja, um presente que, por puro cansaço, eu lhe dera. Houve um corte, mas não a tempo de salvar a imagem do secretário de Segurança Pública. Ele estava dizendo cobras e lagartos sobre mim e, num dado momento, não aguentando mais tanta mentira, não me contive e lhe cuspi na cara.” O ato custou caro. A fúria dos torturadores começou na Secretaria e depois ela foi levada para o IV Exército. Ficou em uma jaula pequena no Quartel de Tejipió e deixada por vários dias em um subterrâneo escuro na floresta, nua e quase sem alimento. O sofrimento foi abrandado por “três anjos da guarda”, que a ajudaram de alguma forma (leia na página 31). Eram soldados simples, que não aceitavam aquele tipo de tratamento. Chamavam-na de “Mocinha”.
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OTHON BASTOS O psiquiatra se arriscou para salvar a vida de Sylvia de Montarroyos que chegou ao Hospital Ulysses Pernambucano em estado catatônico
ELE NEM IMAGINAVA QUE TRATAR A MULHER DO GENERAL TERIA TANTA SERVENTIA Jamais passaria pela cabeça do psiquiatra Othon Bastos que, um dia, ele iria viver uma situação-limite como aquela – salvar uma vida que estava sendo destruída pelas torturas. A vida formava um quebra-cabeça que parecia difícil de acreditar. Ele tinha concluído o curso de Medicina aos 23 anos, em 1959, mas, três anos antes, cumprira suas obrigações no CPOR, saindo como 3º sargento. A primeira oportunidade de trabalho que surgiu, no segundo semestre de 1959, foi uma vaga para a psiquiatria do Hospital Geral do Exército (HGR), onde estava o núcleo do IV Exército. Fazia atendimentos psiquiátricos e assinava laudos. Seu vizinho era um marechal conhecido pela baixa estatura, andar
desengonçado, ausência quase completa de pescoço, um cearense chamado Humberto de Alencar Castelo Branco. Estava em sua sala, quando recebeu um telefonema. Um dos assessores de Castelo Branco o convocava para uma missão delicada. A esposa do marechal, Argentina Castelo Branco, estava com câncer terminal e não conseguia dormir. Precisava de alguém que a fizesse relaxar. Foi a primeira vez que não estacionou seu carro no HGR, e, sim, defronte à casa do marechal. Fez uma avaliação e constatou rapidamente o quadro. “A ansiedade dela é natural, reativa à situação. O que cabe aqui é uma sedação, para tirar a dor. Ela não dorme porque está com muita dor.” O nome do remédio era morfina. Ela foi medicada, e o problema foi resolvido. Othon ainda voltou à casa do marechal mais uma vez, mas pouco tempo depois, o marechal ficou viúvo. “Ele tinha uma verdadeira adoração por ela. Ficou muito grato a todos os médicos que a acompanharam.” As pedras se moviam. Depois de alguns meses no HGR, Othon foi estudar na França, retornando ao Brasil no final de 1963, quando o clima político era de absoluta tensão. O golpe já estava sendo gestado. Othon passa a trabalhar como psiquiatra no Hospital Pedro II, tem seu próprio consultório, no centro do Recife, e também assume o posto de médico da assistência do “Hospital de Alienados”, antigo nome do Hospital Ulysses Pernambucano, a Tamarineira, no qual ficaria somente alguns meses. Do seu consultório, assiste a toda a movimentação do golpe. Nas primeiras horas do dia 1º de abril, procura os amigos que seriam fatalmente perseguidos. Leva para a casa de seu pai um grande amigo, Miguel Newton Arraes de Alencar, seu colega de faculdade. Alguns dias depois, usa seu fusca para levá-lo a Itabaiana, na Bahia. Num dia que não consegue precisar, em dezembro de 1964, chega para o plantão na Tamarineira e recebe uma informação. –“Doutor, tem uma moça que foi trazida ontem à noite pela viatura da Rádio Patrulha. Ela é estudante, está em estupor”, informou uma enfermeira. Othon foi ao encontro da jovem.
“Ela estava imóvel, mal abria os olhos, parada. Não comia nada, não bebia, estava com o corpo todo marcado. Estava catatônica, uma morte em vida. Dava pena. Ela fora deixada lá para morrer”, lembra Othon. O diagnóstico era “estupor pós-traumático por maustratos, sevícias sexuais, falta de alimentação”. Pesava 23 quilos. “Quando a vi, eu disse – se ela ficar aqui, vai morrer.” Sem pensar nas consequências do que iria fazer, assinou um laudo, transferindo-a para o Hospital Pedro II, onde também trabalhava, e que tinha um atendimento-modelo em psiquiatria. Com a ajuda de uma enfermeira, colocou Sylvia em seu fusca. Graças ao atendimento imediato, dois dias depois, ela retornou. Othon perguntou: –“Minha filha, o que houve com você?” –“Não me bata, não me bata”, pedia ela. –“Somos médicos, queremos saber o que houve com você.” –“Aqui é o Dops?” –“Não, aqui é o Hospital Pedro II.” –“Foi no Dops, na polícia...” –“Quem foi que te bateu?” –“Muita gente.” –“Mas... o seu carrasco?” –“Tinha um senhor, de olhos claros, que todo mundo abria as portas para ele.” Quase 50 anos depois, em depoimento à Comissão da Verdade, Othon Bastos recordou o delegado influente, que tinha olhos claros, e viria a ser secretário de Segurança Pública, em 1971, Armando Samico. Todos saíam da frente quando ele chegava. Sylvia foi tratada, voltou para a Tamarineira, mas ficou em outra cela, onde estavam os menos perigosos. Sobreviveu e conseguiu sair do Brasil em abril de 1966.
“VÃO PRENDER MEU PAI?”
Dois dias depois de atender Sylvia, um jipe estacionou defronte à casa de Othon Bastos, com dois soldados e um mensageiro. Quando um deles chegou à porta, o filho de Othon, de quatro anos, perguntou: –“Ô, senhor soldado, o senhor veio prender meu pai?”
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FOTOS: DIEGO DI NIGLIO
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Era uma intimação para comparecer ao IV Exército. Ao chegar à sala onde teria que prestar esclarecimentos, o médico se adiantou. –“Quero lhe comunicar que sou 2º tenente da R2, da reserva médica.” O oficial queria saber de tudo. Queria saber o motivo do tratamento à presa. –“O senhor sabia que ela era uma presa política?” –“Não. Nunca tive nenhuma participação política.” Numa das respostas, Othon foi direto. –“Foi uma das piores coisas que eu já vi como médico. Era uma morte iminente, e alguém iria responder por isso. O que fiz não tem caráter político. Foi um gesto humanitário, ético, de cidadania.” Ele foi liberado. Alguns anos depois, soube da “recomendação sigilosa” do marechal Castelo Branco, o primeiro a assumir o comando do país após o golpe. Todos os médicos e enfermeiros que tinham cuidado de sua mulher, Argentina Castelo Branco, deveriam receber um “tratamento
especial”. Como não sabia da recomendação, Othon foi ao IV Exército levando algumas roupas e coisas pessoais, numa sacola. “Pensei que iria ser preso”, lembra. O encontro de Sylvia com a Comissão da Verdade rompeu um silêncio público de quase cinco décadas. O psiquiatra que a livrou de uma morte iminente revelou publicamente ter sido um profissional que não se acovardou diante de um regime que dava início a torturas sistemáticas, que resultariam em assassinatos e desaparecimentos. Os heróis anônimos, que recusam este substantivo, foram muitos, num período em que a solidariedade poderia resultar em prisão, tortura, demissão do trabalho. “Parece um ato de bravura, mas foi de humanidade. Tive até medo de ficar lá, preso, mas fiz porque era um ato humano, de cidadania. Isso é a ética médica – o paciente está em primeiro lugar. Nas entrelinhas, tinha uma ação política, mas eu não era um militante. Muita gente ajudou”, lembra Othon.
PARA O IRMÃO DE NOVE ANOS, ELA ERA FAMOSA PORQUE SAÍA NO JORNAL Abelardo Montarroyos tinha nove anos, quando a irmã foi presa. Não entendia muito o que estava acontecendo. “Quando eu via a foto dela nos jornais, achava que estava famosa.” A mãe escutava o filho, e respondia: –“Quando você crescer, vai entender melhor”. A família Montarroyos foi duramente atingida pela ditadura. Carlos, o mais velho, era o que tinha maior envolvimento no PORT. Ficou preso no 14o R.I. Selma foi levada para o 7o R.O, em Olinda, para averiguação e “ficou lá por um tempo”. Sylvia, depois dos suplícios, conseguiu sair do Brasil em abril de 1966. “A rebordosa foi grande, nós sofremos muito. Só depois da Anistia, começamos a respirar.”
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ULYSSES PERNAMBUCANO
Comissão da Verdade investiga o uso do hospital para internar presos políticos
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ABELARDO MONTARROYOS
Ainda criança, acompanhou o sofrimento dos irmãos presos pela ditadura
Trecho
SYLVIA DE MONTARROYOS “UM SOLDADO ME DEU SUA CAPA DE CHUVA” Sylvia de Montarroyos contou
à Comissão da Verdade que foi levada para o Quartel do Exército, em Tejipió, e presa numa jaula cavada na mata. Um lugar escuro, onde ficou por cerca de 15 dias, nua e sendo alimentada com meio pão e meio copo de água. Em seu livro, ela cita um dos “três anjos” que a ajudaram a sobreviver.
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Por conta da repercussão do caso, o pai, Adeildo, que era chefe de gabinete na Assembleia Legislativa, passou a ser uma presença apenas decorativa. Não podia ser demitido, mas ficou com serviços burocráticos. Além disso, foi gastando tudo o que tinha para tentar salvar a filha. A mãe, Maria Viana, teve que passar por um tratamento psiquiátrico, que durou seis meses. Uma das coisas que mais preocupavam a família eram os livros e panfletos de Sylvia, o material considerado “subversivo”, que ficava escondido dentro de um sofá enorme, na sala. A polícia foi diversas vezes à procura desse material, mas nunca o encontrou. A cada investida, os agentes aproveitavam e levavam bens de valor da família. “Eles batiam a casa toda, depois sentavam em cima do sofá, desconfiados de alguma coisa. Eu ficava morrendo de medo de que eles descobrissem algo.” Numa das vezes que foi com a mãe à 2a Companhia de Guardas, os policiais mostraram um álbum de várias pessoas conhecidas da família e perguntaram se
dona Maria conhecia alguém. Ela olhou todas as fotos e não apontou ninguém. Depois, passaram o álbum para o menino, que viu vários conhecidos, mas disse que não reconhecia nenhum. “Já que minha mãe não disse nada, eu também fiquei em silêncio”, conta. “Um dos momentos mais dramáticos para a família foi quando uma pessoa chegou à nossa casa e disse que, se papai não conseguisse uma quantia em dinheiro, Sylvia iria para a ala dos indigentes.” Mais bens da família foram vendidos. Quando completou 17 anos e foi procurar emprego, Abelardo comecou a entender que o passado estava vivo. “Bastava eu dizer o sobrenome ‘Montarroyos’, que as portas fechavam.” Abelardo conseguiu um trabalho na loja Mesbla, como vendedor. O pai morreu há alguns anos, a mãe vive em Caruaru. Tem 95 anos. “Ela conta tudo o que passou, como foi. Está lúcida, muito lúcida”, diz Abelardo, que agora ajuda a vender o livro que a irmã escreveu sobre a própria história, Réquiem por Tatiana – memórias de um tempo de guerra e de uma descida aos infernos. SAMARONE LIMA
“E, de repente, junto ao ruído da chuva, ouvi passos, os passos ligeiros de um soldado que chegou correndo e me deu por entre as grades a sua capa de chuva, que me ajudou a vestir. Nada me disse com a voz, mas falou tudo com o Amor. Ele se arriscou para me ajudar. Infelizmente, eu nunca soube o seu nome para lhe agradecer agora esse seu gesto solidário. Abençoado seja. Mas, no outro dia, tão logo a sua ação foi descoberta, foi castigado com quatro dias de prisão. Foi ele que depois disso descobriu, não sei como, que a minha irmã trabalhava na Panair, e foi contar a ela o que se passava comigo. E a sua revolta e aflição eram tantas, que ele tinha, disse Fá, os olhos molhados e a voz embargada pelas lágrimas, e sua voz era trêmula de emoção, ao dizer: – Eu vim lhe contar isso porque também tenho irmãs. E não posso ver aquilo, me corta o coração. A sua irmã é só uma menina, e é uma coisa desumana o que estão fazendo com ela. Mas a sua capa de chuva ficou comigo, porque ele não foi buscá-la, e como deve ter deixado nela a sua luz de anjo, ninguém ousou tirá-la de mim. Ela ficou comigo, cobrindo a minha nudez, e Deus o abençoe muito por isso, faça ele hoje o que fizer, e esteja onde estiver.” Réquiem para Tatiana – memórias de um tempo de guerra e de uma descida aos infernos, Sylvia de Montarroyos. Recife: Cepe, 2013.
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CUMPLICIDADE Altiva e corajosa, a despeito de ideologias
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SOCORRO FERRAZ Historiadora teve várias pessoas da família presas durante a ditadura
A professora Socorro Ferraz contou com a ajuda de Maria das Dores de Oliveira, que trabalhava na sua casa, para encarar os primeiros anos do golpe
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Membro da Comissão da Verdade e professora de História da UFPE, Socorro Ferraz teve uma trajetória de militância política junto com o marido, Fernando Barbosa. Após o golpe, houve um momento em que estavam quatro pessoas da sua família presas: o pai, o irmão, o próprio marido e o cunhado. Mas uma recordação forte que ela guarda com especial carinho e respeito é a de Maria das Dores de Oliveira, uma mulher simples, de origem humilde, que trabalhou durante muitos anos em sua casa. Era 20 anos mais velha que
Socorro, tinha experiência no ramo de hotéis, era sindicalizada, não aceitava trabalhar aos finais de semana, muito menos no Carnaval. Nunca pertenceu a nenhuma organização que lutou contra a ditadura, certamente não imaginava quem era Karl Marx, o caráter da revolução brasileira, o que seria o “foco guerrilheiro”, o “cerco da cidade pelo campo”, motivo de discussões entre as organizações. Mas era altiva, corajosa. Começou a acompanhar, antes mesmo do golpe, as reuniões que aconteciam na casa de Socorro, com os camponeses, lideranças populares. Após o golpe, ficou chocada com o tratamento dado àqueles homens que lutavam por seus direitos e pela reforma agrária. Socorro e o marido ajudavam os que foram presos. Mantimentos, alguma roupa, material de higiene. Como Fernando e ela eram muito visados, quem poderia levar essas coisas às diferentes prisões do Recife? –“Pode deixar comigo, dona Socorro, eu resolvo isso”, disse Maria das Dores. Levava os mantimentos, dizia que era tia de um, prima de outro. Aproveitava para pegar informações, saber como estava a “barra” nas prisões, quem tinha sido torturado, o estado de saúde, necessidades urgentes, um recado para a família. Numa dessas viagens solidárias, levando frutas para o camponês Amaro Félix Pereira, o “Procópio”, preso em um quartel em agosto de 1973, foi informada de que ele tinha sido solto e “estava na casa da família”. Maria não perdeu tempo. Com o endereço, foi imediatamente à casa de Amaro. Ele não tinha aparecido. E nunca mais apareceu. No relatório da Comissão da Verdade, há o relato de um médico, informando que Amaro foi espancado até a morte por funcionários da Usina Central de Barreiros. A Comissão da Verdade está investigando o caso.
A “MALA SUBVERSIVA”
Socorro contou também com a solidariedade de Maria das Dores logo nas primeiras horas do golpe. Sabia que sua casa poderia ser invadida a qualquer momento. Os
livros, material de propaganda, revistas, papéis, seriam motivo para levá-la à prisão. “A polícia chegando aqui, era um prato cheio”, lembra Socorro. Numa rápida conversa, o destino do “material subversivo” foi resolvido. “Pode deixar, dona Socorro. Bote tudo numa mala, que eu escondo.” Maria morava numa pensão, na Rua Leão Coroado, na Boa Vista. Saiu do prédio com a mala enorme, cheia, chamou um táxi. Disse que estava indo embora da casa da patroa. Guardou tudo em seu quarto e foi se desvencilhando do material aos poucos. Se tivesse sido pega com aqueles livros e revistas, Maria teria passado por suplícios, para revelar onde os conseguira. Mas não teve tempo para ter medo. Numa das vezes em que a polícia chegou, Socorro e Fernando moravam numa casa na Várzea e já tinham as três filhas. Maria foi rápida. “Saiam, saiam, vão embora que me viro!”, disse, praticamente dando ordens aos patrões. Socorro saiu com uma das filhas e o marido, pelos fundos da casa. As outras duas, já maiores, ficaram com a cúmplice. Maria soltou imediatamente os dois cachorros, que ficaram perto do quarto das crianças. Quando os policiais entraram, disse que o casal tinha saído de casa logo pela manhã, numa viagem de emergência. –“Estamos aqui na frente desde cedo e não vimos ninguém saindo”, retrucaram os policiais. –“Então é porque não prestaram atenção”, respondeu ela. –“Num momento desses, ter em casa uma pessoa que é cúmplice, é algo muito importante”, lembra Socorro. Em 1973, Maria das Dores teve um AVC, e ficou em um abrigo da Igreja Católica. Socorro contratou uma mulher que tinha sido das Ligas Camponesas para cuidar dela. No ano seguinte, Socorro e Fernando foram estudar na Alemanha, levando as filhas. Na volta ao Brasil, em 1980, a historiadora visitou a amiga pela última vez. Pouco depois, ela morreu. Mas nunca foi esquecida. SAMARONE LIMA
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IRMÃS BRAYNER Um limite na militância
Mesmo participando de ações básicas, como panfletagem e pichações, elas evitaram a clandestinidade, quando o regime recrudesceu Cléa, Paula, Lourdes, Fátima,
Maria e Nadja*. Eram as “seis irmãs Brayner” que se dividiam na militância, em sonhos, esperanças e impasses, num tempo em que ser estudante era, essencialmente, participar da vida política do país. Mais especificamente, ocupar as ruas do Recife, engajarse em diretórios acadêmicos, pichar muros, distribuir panfletos. O tripé foi vivido intensamente – estudo, militância, trabalho. E havia tempo para os namoros. Três delas eram da militância no movimento secundarista, três eram do movimento universitário. O pai, José Brayner, definia-se como socialista. Tocava violino. Começou a trabalhar aos 11 anos. Depois de 25 anos na Fábrica
da Torre, pediu demissão para virar comerciante. Deu tudo errado. A família foi à bancarrota e a mãe, Zuleide, teve que vender as joias para sobreviverem. Nadja foi trabalhar no Banorte. Maria do Carmo, na Fábrica da Torre. No dia em que Lourdes nasceu, Zuleide não tinha como sair da maternidade, por falta de dinheiro para pagar a conta. Brayner jogou no bicho e acertou na cabeça. Pegava os pacotes de dinheiro e ficava chutando para o alto. Pagou o hospital, depois emprestou quase tudo aos amigos. –“Isso não vale nada”, dizia. Os pais olhavam o envolvimento das filhas na militância. Ele, que tinha um primo na polícia civil, amicíssimo do temido Álvaro da Costa Lima,
recebia informações sobre “certas coisas” que ainda não eram divulgadas. José avisava, sempre que podia: –“Não entrem nessa. A barra vai pesar. Se vocês quiserem seguir, a vida é de vocês, mas a barra vai pesar. Esses caras são uns bandidos.” A mãe ficava preocupada. A cada manifestação, quando as filhas demoravam, ficava tensa. Contava a chegada de cada uma. Só quando completava o número seis, sossegava. Todas se envolveram, participaram, lutaram, mas não deram o passo adiante, o da clandestinidade, das organizações revolucionárias. Talvez tenham gravado aquelas mensagens esporádicas que o pai repassava: –“A barra vai pesar. Esses caras são uns bandidos.” Maria do Carmo foi convidada para participar de uma reunião fechada de uma organização, recebeu um material e soube que “já era” do partido. “Já me entraram”, conta, repassando com as irmãs um período intenso, vivido até o limite. Tese do 5o Congresso. Organização da “Corrente”, dentro do “Partidão”. Comício-relâmpago que terminou com duas palavras: “Povo pernambucano...” Bolas de gude ou rolhas, para derrubar os cavalos da PM. O Núcleo Duro. Um rapaz que entrou na organização
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porque todo dia lia o Última Hora. Dissidência da Guanabara. O “Comitê Universitário”. AP. Povo da JUC. POC, Polop. Reorganização do Movimento Estudantil. Eleição na Faculdade de Direito. Aliado. A “Tarefa do pichamento”. Quase todo dia, elas estavam na rua. Pedágio para ajudar a UNE. Todos os amigos de militância passavam pela casa das seis irmãs. A memória escorre. O período vertiginoso de experiências e de um fervilhar de ações foi de 1964 a 1968. Depois, com o AI-5, a situação mudou. Passeata com 30 mil pessoas, após a morte de Edson Luís, no Rio de Janeiro. O fim do curso universitário chegando. “A opção, companheira, é profissionalizar. Vamos à luta clandestina”. As irmãs foram terminando seus cursos e ingressando no mercado de trabalho. Apoiariam, claro, no que fosse preciso. –“Me sugeriram ir para o campo”, conta Nadja. –“Estou fora. No campo, eu não fico uma semana”, respondeu Sônia. Era a “debreada”, a “desbundada”. “A pior ofensa que se podia dizer na época – fulano ‘debreou’. Mas o horizonte estava cada vez pior”, lembra Nadja. Até as secundaristas foram chamadas, mas não toparam.
A BARRA PESANDO
Nadja se formava em 1969, precisava da famigerada “folha corrida”, instrumento de controle e barganha da ditadura, para fazer um concurso da UFPE. Deu entrada no pedido, junto à Secretaria de Segurança Pública, mas não tinha resposta. E agora? Ir sozinha à sede do Dops? Invocou a amizade de um colega reconhecidamente de direita, que tinha bom relacionamento com “os homens da repressão”. Ele fez os contatos. –“Sua folha corrida está na mesa do delegado Silvestre, no Dops.” Ela já tinha “debreado”, mas era loucura, ir à toca do lobo. –“Eu vou com você”, disse o amigo. Nadja se arrumou toda, parecia uma madame. Foi ao Departamento de Ordem Política e Social suando frio. –“Silvestre, esta aqui é a Nadja, veio pegar a folha corrida.” Nadja deu a mão. Na outra mesa, Álvaro da Costa Lima. Silvestre: “Qual o problema?” Nadja: “Não tem problema nenhum. Dei entrada na minha folha corrida, mas ela não sai. Falei com o meu amigo da faculdade, ele me sugeriu vir aqui, para saber se tinha algum problema. Silvestre: Qual seu nome mesmo? –“Nadja Brayner.”
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IRMÃS BRAYNER Cléa, Paula, Lourdes, Fátima, Maria e Nadja dividiam os mesmos ideias no início dos anos 1960
–“A senhora conhece Yara Brayner?” (Era a prima distante Yara, militante do PCB, que já tiha sido presa.) –“Com esse nome, só se for alguma prima...” Silvestre olhou para a folha corrida. Estava com o nome de Yara. –“Pegue a folha dela.” Nadja pegou finalmente a folha. Álvaro da Costa Lima, que estava o tempo todo calado, falou: –“Nadja... Conheço seu pai. Como ele está?” – “Ele está bem.” Com a folha corrida na bolsa, Nadja deve ter lembrado do aviso fortuito do pai: “ A barra vai pesar! Esses caras são uns bandidos!” Hoje, Nadja Brayner faz parte da Comissão da Verdade. (SL) *Duas foram funcionárias da UFPE (Cléa e Paula), duas professoras da mesma instituição (Maria e Nadja), Fátima é sócia de uma consultoria e Lourdes, funcionária da Prefeitura do da Cidade do Recife.
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COMISSÃO DA VERDADE Herança para o futuro
Funcionando desde junho de 2012, grupo realizou 26 audiências, coletou 43 depoimentos e está investigando 51 casos de mortes e desaparecimentos em Pernambuco
Os nove membros da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara começaram a se reunir de forma tímida, após a cerimônia de sua criação, com a lei número 14.688, de 1º de junho de 2012. Mesmo com um propósito comum, o de investigar as violações durante a ditadura, nunca tinham trabalhado juntos. Em pouco tempo, formou-se uma equipe coesa, que analisa documentos, discute os dados, agenda depoimentos sigilosos ou abertos ao público. O resultado do primeiro ano de trabalho, segundo o presidente da Comissão, Fernando Coelho, é “aquém e além do esperado”. “Além” são as 26 audiências realizadas, a coleta de 43 depoimentos, o lançamento do primeiro de quatro volumes do Caderno Periódico da Memória e Verdade, 51 casos de mortes e desaparecidos sendo investigados, mais de 70 mil documentos digitalizados. Foram esclarecidos casos marcantes, como os do padre Antônio Henrique (morto em 1969), Anatália Alves (que teria se suicidado em 1973), Ezequias Bezerra da Rocha (que teria sido morto em suposto tiroteio, em 1972), além dos documentos oficiais que desmentem a versão sobre a autoria do atentado à bomba no Aeroporto dos Guararapes, em 1966. “São documentos comprobatórios. A certeza da impunidade era tão grande, que há documentos do próprio SNI (Serviço Nacional de Informação) sobre o caso do padre Henrique. Há um expediente do ministro da Justiça ao chefe do SNI. Um procurador veio ao Recife, mexer no caso”, observa Coelho. “O documento só foi localizado graças a um convênio que temos com
a Comissão Nacional da Verdade para a troca de informações. Estava no Arquivo Nacional, em Brasília, onde fica todo o acervo do SNI, digitalizado”, explica o sociólogo Manoel Moraes, integrante da Comissão. Foram também pesquisados arquivos públicos no Rio de Janeiro e São Paulo. Outra ação da Comissão comprovou que o militante Odijas Carvalho de Souza não morreu de “embolia pulmonar”, em 8 de fevereiro de 1972, nas dependências do Hospital da PMPE, como atestava o laudo do médico Ednaldo Paes Vasconcelos. A causa real foi “homicídio por lesões corporais múltiplas, decorrentes de atos de tortura”. Foi emitida uma nova certidão de óbito com a causa real no Cartório de Registro Civil do 6o Distrito Judiciário da Capital. A certidão de óbito retificada e com a verdadeira causa da morte do militante foi entregue à sua família. “Aquém”, segundo Fernando Coelho, são as dificuldades naturais para as investigações: o tempo, a morte de várias pessoas ligadas à repressão e a longa transição que permitiu a destruição e ocultação de muitos arquivos. Ele acredita, porém, que o banco de dados que está sendo montado pela Comissão será o “legado maior”. A ideia é que tudo seja, futuramente, armazenado em um “Memorial da Democracia”. “Meu trabalho na Comissão é como uma tarefa”, explica Socorro Ferraz. “Esclarecer como essas mortes se deram. E que a juventude saiba o que aconteceu no Brasil. Que a população saiba o que aconteceu. Que esse trabalho chegue às escolas. Até porque pode acontecer novamente.” (S.L.)
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1984 CON CAPA TI NEN TE
Toda a paixão reprimida desaguou nas ruas
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ROLANDO FREITAS/REPRODUÇÃO
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CON CAPA TI NEN TE RICARDO MELO
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DIRETAS O renascimento do Brasil Com a redemocratização, o desejo de liberdade se manifestava através do humorismo e da arte, expressões pelas quais se revive o espírito da época TEXTO Luciana Veras
Em 1984, os Titãs estreavam com um
álbum que levava o nome da banda. A quarta faixa se chamava Go back e, composta por Sérgio Britto, trazia a íntegra do poema homônimo de Torquato Neto (1944-1972). Os versos denotavam o pessimismo no Brasil, então sob o jugo da ditadura militar: “Não é o meu país/ é uma sombra que pende concreta/ do meu nariz em linha reta”. Torquato se suicidou durante o governo de Emílio Garrastazu Médici, 28º presidente e o mais incisivo e violento no combate às guerrilhas urbanas e rurais que ousavam se contrapor ao regime. Doze anos após a sua morte, uma banda novata usava suas palavras para sugerir outro diagnóstico do mesmo país: “... de repente a madrugada mudou/ e
certamente aquele trem já passou/ e se passou, passou daqui pra melhor, foi!/ só quero saber do que pode dar certo/ não tenho tempo a perder”. A ditadura ainda persistia, encabeçada pelo general João Baptista Figueiredo, mas a campanha pela realização de eleições presidenciais diretas, abraçada pela nação no mote Diretas Já, mobilizava milhares de pessoas e repercutia nas rotinas e na cultura que se produzia e se consumia por quem passara duas décadas sem o direito de votar. “Havia um sofrimento acumulado de 20 anos, as pessoas tinham sido alijadas de tudo, invadidas dentro do seu próprio país, mas já não havia o medo. Figueiredo era péssimo e a ditadura, uma farsa com hora para
acabar. O Rei da Notícia nasceu nesse clima e com a pretensão de criar os próprios enunciados”, conta Clériston Andrade, cartunista, professor universitário e fundador do jornal lançado no Recife em outubro de 1983. O Rei da Notícia durou até 1987, com uma tiragem “mais ou menos” mensal de mil exemplares, a influência do carioca O Pasquim e uma equipe que incluía Geneton Moraes Neto, Amin Stepple Hiluey, Paulo Santos de Oliveira, entre outros. Era um jornal que “não queria derrubar o regime, não era ligado a nenhum partido e dava liberdade total aos colaboradores”. “Mas o próprio fato de termos nos reunido e bolado um jornal já indica que os tempos eram outros. Por isso, escolhemos este símbolo, um macaco com a coroa na bunda, que achamos em um livro velho, de autoria desconhecida. A ironia de um rei que não sabia onde colocar a coroa é uma crítica ao poder ilegítimo, um rei que no título do jornal verbalizava a figura do general Figueiredo”, relembra Clériston. Na época, ele trabalhava como chargista do Diario de Pernambuco, no qual também publicava quadrinhos problematizando questões da época, e era segundotenente da reserva do CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Recife), “lugar onde passei anos sem
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
1-2 HUMOR
Na charge de Ricardo Melo e no cartum Graúna de Henfil, a pressão política descontraída
3-4 IMPRENSA NANICA
Na metade dos anos 1980, surgiram, no Recife, o Papa-Figo e O Rei da Notícia, períodicos que tinham o deboche como princípio
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consciência do aviltamento que era a ditadura”, afirma ele. Em agosto de 1984, a Emenda Dante de Oliveira já havia sido derrotada, adiando o desejo de ir às urnas para escolher o presidente. Contudo, a nova configuração política e social do Brasil era irrevogável. Daí o escracho do número inaugural (bem como das edições subsequentes) do Papa-Figo, outro periódico surgido no Recife. “O humor foi a grande saída para driblar a censura da ditadura. Quando os jornais adotaram a charge, isso ficou ainda mais evidente. Henfil dizia: ‘é a mão do povo que desenha’”, afirma Manoel Bione, psiquiatra, médico do trabalho e um dos três pais do Papa-Figo, ao lado do cartunista Romildo Alves Lima, o RAL, e do jornalista José Teles. Bione diz que sua “veia de humor e ânsia de liberdade” acompanham-no desde sempre. Conheceu RAL em 1974; juntos criaram A Xepa, outro humorístico. “Foi a pré-história do Papa-Figo. Depois, publicamos uma página no Jornal da Semana. Durou 33 números, morreu com a idade de Cristo”, recorda. RAL não esconde que a vontade era emular o emblemático hebdomadário de Jaguar, Sérgio Cabral, Ivan Lessa e Millôr Fernandes, do qual tanto ele como Bione eram colaboradores e admiradores. “A gente queria fazer O Pasquim daqui. Fazíamos uma sátira aos jornais locais e aos políticos porque já era possível, já tínhamos essa liberdade. O Papa-Figo era feito numa mesa da churrascaria em frente à minha casa”, rememora. “Virou uma coqueluche. A gente chegava na Livro 7, na sexta-feira, para distribuir e já tinha gente esperando. Quem viveu a ditadura sabia o que significava ter os ventos da liberdade soprando no país”, acrescenta Bione, uma vez admoestado por um político local não por tê-lo achincalhado e, sim, por nunca tê-lo mencionado no jornal. Ser vítima da mordacidade do Papa-Figo era símbolo de
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status, prova do quão revigorantes eram os idos de 1984. Em todas as regiões e searas artísticas brasileiras. “Em 1984, o cinema brasileiro viveu um ano de ouro. Eduardo Coutinho venceu o internacional FestRio com Cabra marcado para morrer. Nelson Pereira dos Santos causava sensação com Memórias do cárcere. Sílvio Tendler lotava salas com Jango, um documentário visto por quase 800 mil pessoas. As sessões de Jango, e fui a várias delas, eram missas leigas, atos de civismo. Na saída, as pessoas se abraçavam, conversando sobre o ‘mundo novo’ que chegaria com o fim da ditadura militar. Os três filmes foram para o Festival de Havana e venceram os prêmios principais: Memórias ganhou o Coral de melhor ficção, Cabra, o de melhor documentário, e Jango, o prêmio especial do júri. Nunca mais isso se repetiria, em Havana, para o Brasil ou para outra cinematografia latinoamericana”, testemunha a jornalista, pesquisadora e escritora Maria do Rosário Caetano. Morando em Brasília, Rosário encarou a estrada para participar de dois lendários comícios em prol das Diretas na capital paulista; um, na Praça da Sé e, outro, no Vale do Anhangabaú. No ocaso da ditadura e sem o temor da repressão, a política era o “alimento cotidiano”. Ali, Cabra marcado para morrer irrompe nas telas com uma força até hoje impressionante. “A principal personagem era dona Elizabeth, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira, mãe de quase uma dúzia de filhos, que saía das Ligas
REPRODUÇÃO
Quando viajavam em busca da produção contemporânea, os curadores perceberam que havia um massivo retorno à pintura Camponesas, na Paraíba, para viver como lavadeira, sob nome falso, no Rio Grande do Norte. Além de ser nitroglicerina pura para nossas vidas politizadas, o filme de Coutinho realizava um potente inventário do Brasil de 1964 até 1984, personificado na imagem miúda e aparentemente frágil de dona Elizabeth. Fertilizou nosso imaginário de tal forma, que, hoje, tempo de descrença política e fragmentação cultural, poucos podem entender”, argumenta. Não era apenas o cinema que expressava a ânsia de transformação. Na música, Os Paralamas do Sucesso bradavam em Fui eu, do disco O passo de Lui: “os carros passam – vêm e vão/ Eu dobro a esquina/ Eu vou na onda/ Pego carona na multidão”. Havia o sentimento de coletividade. Para artistas e público, após as trevas, era hora de buscar a luz.
GERAÇÃO 80
Nada mais solar do que Como vai você, geração 80?, coletiva aberta no Parque Lage (RJ), em julho de 1984, reunindo 123 artistas no que o curador Marcus Lontra descreve como “a primeira grande instalação artística do Brasil”.
“Era um clima de festa, uma lufada de juventude numa época em que a gente tinha mais é que se expor, botar a cara nas paredes. Na mostra, a gente queria todas as tribos, os punks e os panquecas, e isso só foi possível menos por causa da luta pelas Diretas Já e mais pela eleição do Brizola, em 1982. Só pudemos fazer essa exposição porque o Brizola era o governador e o vice era o Darcy Ribeiro”, aponta o carioca, que aos 28 anos assumiu o Parque Lage por incumbência de Darcy (1922-1997), que também era o secretário de Ciência, Cultura e Tecnologia do governador Leonel Brizola (1922-2004). Ele, Paulo Roberto Leal (1946-1991) e Sandra Magger assinaram a curadoria de Como vai você, geração 80?. No ano anterior, Lontra e Leal haviam sido jurados do Salão Nacional de Artes Plásticas. Outro curador, Paulo Herkenhoff, era diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas da Fundação Nacional das Artes – Funarte. “Num determinado momento, durante nossas viagens, reparamos que o fenômeno que víamos no Rio de Janeiro, que era de um retorno à pintura, estava, no Brasil todo. Eram vários artistas começando a trabalhar com mídias tradicionais e a discutir gênero, etnias. Um belo dia, a gente viu que tinha que fazer uma exposição”, narra Lontra. Daniel Senise, Beatriz Milhazes, Leda Catunda, Luiz Pizarro, Victor Arruda, Luiz Zerbini, Leonilson (1957-1993), Jorge Guinle (1947-1987) e Alex Vallari (1949-1987) foram alguns dos artistas
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PARQUE LAGE Escola de arte localizada na zona sul do Rio de Janeiro abrigou, em 1984, a antológica mostra Como vai você, geração 80?
selecionados e cujas carreiras foram impulsionadas pelo evento. O alagoano Delson Uchôa foi um dos participantes. “A exposição cobriu a produção dos jovens artistas brasileiros e foi surpreendente descobrir a diversidade e a qualidade do que era feito naquele momento. O Brasil parecia ter acertado o passo com a arte contemporânea universal, começávamos a viver intensamente a pós-modernidade”, considera. Suas duas obras estavam em consonância com o espírito livre intrínseco à mostra. “A festa no céu era uma pintura no teto da escadaria que dava acesso para o terraço, e Você prefere Zorro ou dom Diego? propunha um diálogo, um jogo, uma guerra com os adereços dos dois personagens que eram o mesmo sujeito: espada, bengala, capa, luva, máscara. Ação e processamento intelectual lutando eternamente entre si, em torno da marca do Zorro, com rasgo em Z no centro da tela”, detalha. Como vai você, geração 80? fez mais do que compilar artistas, atestar possibilidades estilísticas ou apontar caminhos para as artes visuais. Como é impossível não perceber na arte uma tradução do espírito do tempo, naquele ano, o Brasil, prestes a se despedir da ditadura, refletia-se nas pinturas, nos filmes, nas músicas, no humor e, principalmente, na acolhida por um público carente, a quem a fruição artística na sua inteireza havia, de várias formas, sido negada por duas décadas de censura. A arte, talvez como em nenhum outro período da história recente do país, catalisava um sentimento de união. Afinal, era o fim do tempo em que “dormia a nossa pátria mãe tão distraída/ sem perceber que era subtraída/ em tenebrosas transações”. Também de 1984, Vai passar, de Chico Buarque, tornou-se hino da redemocratização, uma convocação para que os brasileiros, em uníssono, saíssem de casa para reencontrar o país. “Meu Deus, vem olhar/ vem ver de perto uma cidade a cantar/ a evolução da liberdade/ até o dia clarear”.
Depoimento
MARCUS DE LONTRA COSTA 1984/2014 – ARTE E DEMOCRACIA NO BRASIL “A gente não quer só comida/ a gente quer comida, diversão e arte.” (Titãs, Comida, hit dos anos 1980)
Há 30 anos, o Brasil vivia a euforia
da retomada democrática. Apesar da resistência dos militares e a conivência da grande imprensa, a sociedade civil bradava “Diretas Já!” e esse grito ocupava as ruas e avenidas das cidades brasileiras. No Rio, a festa da democracia havia começado com a eleição de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro para o governo estadual. Para nós, jovens cariocas acostumados à sisudez dos governantes da ditadura, parecia um sonho ver o grande líder trabalhista, de lenço vermelho no pescoço e sotaque gaúcho, saudar o povo que o elegeu. Mais que isso, tínhamos Darcy Ribeiro, a contagiante inteligência a serviço da alegria, da coragem, da vontade de viver e de um profundo amor ao Brasil de verdade, aos índios, aos negros, aos pobres, aos jovens, para os quais ele se dirigia com afeto e empolgação. Nesse clima, surgiu a ideia de se fazer uma exposição sobre a jovem produção artística brasileira, até então desconhecida do público. No ano anterior, Paulo Leal, Paulo Herkenhoff e eu havíamos viajado por todo o Brasil para a seleção de artistas do Salão Nacional. Surgia, então, uma nova produção artística identificada com o Brasil que acreditávamos poder construir: festiva, colorida, tendo a coragem de se expor pelas telas e pelas ruas das cidades. Essa nova geração acreditava nas técnicas tradicionais e, diferentemente da anterior, investia na força das imagens, nas pinceladas generosas, nas relações
diretas com os ícones da mass media. O mais importante, entretanto, era a valorização da diversidade estética. A tal “vocação construtiva brasileira” estava sendo implodida juntamente com seu caráter ditatorial. Ainda bem que o Brasil, terra da mestiçagem, é complexo e rico para não ter vocação alguma ou, talvez, ter todas as vocações. Por isso, os curadores escreviam na abertura da mostra: “Gostem ou não, queiram ou não, está tudo aí, todas as cores, todas as formas, quadrados, transparências, matéria, massa pintada, massa humana, suor, aviãozinho, geração serrote, radicais e liberais, transvanguarda, punks e panquecas, pós-modernos e pré-modernos, todos enfim iguais a qualquer um de vocês. Talvez um pouco mais alegres e corajosos, um pouco mais... Afinal, trata-se de uma nova geração, novas cabeças. E, se hoje, ninguém alimenta o pedantismo de ‘entrar para a História’, de ser o tal, o que todos esperam é poder fazer alguma coisa sem os pavores conceituais. Trata-se enfim, de tirar a arte, donzela, de seu castelo, cobrir os seus lábios com um batom bem vermelho e com ela rolar pela relva e pelo paralelepípedo...” Trinta anos depois, esse pequeno texto juvenil e apaixonado acabou entrando para a história. A arte e o Brasil, apesar de todas as dificuldades, são bem melhores do que eram nos anos 1980 e, sem dúvida, uma pequena parcela dessa melhora tem a contribuição de uma geração de agentes e produtores artísticos que acreditaram no Brasil como fonte de inspiração e de trabalho. Nesse sentido, a geração 80 continua atual, a luta continua, os dragões da maldade continuam à espreita e nós continuamos com o santo guerreiro a lutar para que este nosso canto no planeta seja verdadeiramente democrático e independente. Marcus de Lontra Costa foi curador, junto com Paulo Roberto Leal e Sandra Mager, da mostra Como vai você, Geração 80?, que reuniu 123 artistas.
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KARINA FREITAS
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História
BÁRBARA DE ALENCAR Uma guerreira da “legião de sonhadores” Avó de José de Alencar foi uma insurgente que confabulou pela independência e pela república, podendo ser considerada a primeira presa política do Brasil. Sua atuação se deu no Crato, mas ela nasceu na cidade pernambucana de Exu TEXTO Claudia Parente
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Ela levou a Revolução
Pernambucana de 1817 para o estado vizinho, o Ceará, aderiu ao movimento republicano denominado Confederação do Equador (1824), pode ser considerada a primeira presa política do Brasil e é avó de um dos ícones da literatura brasileira. Apesar desse currículo, Bárbara Pereira de Alencar é uma ilustre desconhecida em sua terra natal. Os poucos que já ouviram falar da matriarca de uma das mais importantes famílias do sertão nordestino acreditam que ela é cearense. Mas Bárbara nasceu em Exu, na Fazenda Caiçara, mesmo local onde, 152 anos depois, outro expoente da cultura e história pernambucanas viria ao mundo, o cantor Luiz Gonzaga. Em 1760, ano de seu nascimento, o povoado ainda se chamava Várzea Grande e a Caiçara pertencia a Leonel de Alencar Rego, avô de Bárbara. Primeira dos nove filhos de Joaquim Pereira de Alencar e Teodora, ela já nasceu num campo de batalha, segundo assevera Juarês Ayres de Alencar, no livro Dona Bárbara do Crato, escrito na primeira metade do século 20. O autor é trineto de Luiz Pereira de Alencar, irmão mais novo de Bárbara, e compôs a obra a partir de relatos do bisavô dele, colhidos por Luiz Ayres de Alencar, pai do escritor. Além da seca que crestava o Sertão e de um parto difícil, que quase mata mãe e filha, Bárbara ainda foi saudada por um ataque de índios à Fazenda Caiçara. Por pouco não morreu na casa incendiada. Aos 22 anos, já casada com o comerciante português José Gonçalves dos Santos, com quem teve cinco filhos, Bárbara mudou-se para o Curato de São Fidelis (atual Crato), no Ceará. Essa mudança e o fato de a sua luta política ter se passado quase completamente no estado vizinho podem explicar a confusão que a sua naturalidade provoca. “Toda movimentação dela foi no Cariri. Por isso, ficou esquecida em Pernambuco”, acredita o promotor aposentado Givaldo Peixoto de Alencar, descendente e estudioso da história da mulher que considera uma heroína. “Bárbara viveu entre pessoas cultas. Não era dama apenas para servir café e jantar”, assegura. Enviou dois filhos – o primogênito Carlos José dos Santos e o mais moço, José Martiniano de Alencar – para
estudar no Seminário de Olinda. Carlos voltou padre e empolgado com os ideais republicanos, que também acabaram conquistando o irmão José, subdiácono. Começava aí o sonho da independência, reforçado pela abertura dos portos do Brasil ao mundo e mudança da família real portuguesa para o Brasil, em 1808. No dizer do escritor Juarês Ayres, “dona Bárbara incorporou-se à legião dos sonhadores”. Viúva, a essas alturas, começou a confabular com os amigos padres e o botânico Manoel Arruda Câmara sobre independência e república. Bárbara e os filhos resolvem se integrar ao Partido Liberal. Quando a notícia de que os pernambucanos tinham se levantado contra a Coroa, em março de 1817, chegou aos ouvidos do jovem José Martiniano, ele se apressou a instigar o Cariri a seguir o exemplo. Ao tomar ciência das intenções do filho, Bárbara mobilizou a família. No dia 3 de maio, José Martiniano de Alencar proclamou a independência na Casa da Câmara do Crato e uma bandeira branca foi hasteada em frente ao órgão. Mas o sonho de liberdade só durou oito dias. Quando os revolucionários pernambucanos foram vencidos, os olhos do império se voltaram ao Cariri. Bárbara e seus filhos padre Carlos, José Martiniano e o aguerrido Tristão Gonçalves foram presos e enviados, em lombo de burros, para Fortaleza. Da capital cearense, ainda foi mandada a julgamento no Recife e transferida para um presídio em Salvador, Bahia. Ficou três anos, sete meses e dois dias encarcerada até conseguir anistia em 1820. Ela e os filhos só escaparam da pena capital porque os documentos da proclamação da República no Crato, que podiam comprovar a conspiração, foram destruídos antes que os partidários do império pudessem alcançá-los. Mas o risco de morte e as agruras da prisão não dobraram o espírito altivo de Bárbara nem esmaeceram seus ideais republicanos. Em 1824, dois anos depois de D. Pedro I proclamar a independência do Brasil, mas mantendo o país nas mãos dos portugueses, a família Alencar se preparou novamente para luta. Mais uma vez o referencial foi pernambucano: o movimento republicano denominado Confederação do Equador, que teve
em Frei Caneca o seu grande mártir. Para evitar identificações futuras, resolveram usar codinomes. Alguns se transformaram em sobrenomes conhecidos, como Araripe, adotado por Tristão em homenagem à chapada. Dessa vez, Bárbara e os filhos pagaram um preço ainda mais alto por sonhar com a república. Depois de vitórias, derrotas e traições, o movimento foi reprimido pelos portugueses e a revolucionária perdeu mais que a liberdade. Seus filhos padre Carlos e Tristão Gonçalves (que chegou a ser aclamado presidente da Província Confederada do Ceará), o irmão Leonel e o filho dele, Raimundo, foram mortos. Bárbara de Alencar ainda viveu até 1833, quando já contava 73 anos de idade. Morreu na Fazenda Alecrim, no Piauí, e está sepultada onde hoje é o município de Campos Sales, no Ceará. Seu filho mais famoso, José Martiniano, veio a ser senador da república e legou ao Brasil outro tesouro, além da disposição de lutar pela liberdade: seu filho, o escritor José de Alencar.
ANDROCENTRISMO
O papel de Bárbara nos movimentos revolucionários de que participou poderia ter sido ainda mais relevante. Segundo as escritoras Rachel de Queiroz e Heloísa Buarque de Hollanda, “ela também assumiu o comando do movimento (de 1817), deixando a liderança apenas para que seu filho José Martiniano de Alencar subisse no púlpito em frente à igreja e proclamasse a república na região, a República do Jasmim, nome de uma propriedade sua. Bárbara se viu impossibilitada de fazer a proclamação ela mesma. Não era atitude própria de uma senhora”. Seguindo linha semelhante de raciocínio, a professora de literatura hispano-americana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Claudia Luna acredita que a matrona sertaneja foi ofuscada pelo filho José Martiniano, cuja carreira política teve repercussão em todo o país. “Sabemos que a escrita da história é feita pelos historiadores segundo alguns modelos consagrados e, geralmente, nela tem imperado uma perspectiva androcêntrica, isto é, uma história escrita por homens, que valoriza os grandes heróis e os grandes feitos. Podemos acrescentar que essa escrita
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CLAUDIA PARENTE
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geralmente é feita pelos vencedores e é sob perspectiva deles que os fatos são selecionados”, explica. Esse fenômeno, segundo a professora, que está pesquisando a trajetória de Bárbara de Alencar para um pósdoutoramento em História da América, não aconteceu somente no Brasil. É um padrão que se repete em toda a América Latina. “A participação das mulheres geralmente é obscurecida, colocada em segundo plano em relação aos homens mais próximos: maridos, filhos, amantes”, revela. No caso de Bárbara, a destruição deliberada dos documentos do movimento de independência de 1817 pelos próprios participantes, para se protegerem de uma possível devassa, comprometeu a definição do papel efetivo que ela desempenhou. Claudia Luna diz que não é possível afirmar que Bárbara de Alencar foi a primeira presa política do Brasil porque a escrita da história é dinâmica e novos documentos podem ser encontrados. “O que podemos assegurar é que sua prisão foi decretada por motivos políticos: a participação na Revolução de 1817”. Para a professora, Bárbara de Alencar pode não ser uma heroína porque esse é um conceito relativizado. “Há personagens que foram punidos como traidores em sua época, mas, para a posteridade, transformaram-se em
Segundo a pesquisadora Claudia Luna, a atuação de Bárbara foi ofuscada pela do seu filho José Martiniano
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heróis por sua atuação firme e corajosa em defesa de seus ideais, resistindo à repressão”, argumenta. “Bárbara é uma figura emblemática, uma mulher de grande visão, uma autêntica matriarca nordestina, uma mulher ‘ilustrada’, que encaminha os filhos para o Seminário de Olinda, trava contato com os círculos maçons e as ideias iluministas ainda no período colonial, que abre sua casa para os insurgentes, tem poder de liderança e participa ativamente do movimento de 1817. Se pensamos de novo na escrita da história, verificamos que são poucas as mulheres de poder que ocupam o panteão dos grandes heróis.”
LIVRO DOS HERÓIS
No intuito de mudar essa realidade e tirar Bárbara de Alencar da invisibilidade, a então deputada federal Ana Arraes (hoje ministra do Tribunal de Contas da União) elaborou um projeto de lei, propondo a inscrição do nome da matriarca nas
FAZENDA CAIÇARA
A casa onde nasceu, em Exu, foi transformada num museu para preservar sua memória
páginas de aço do Livro dos Heróis da Pátria, guardado no Panteão da Pátria e da Democracia, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Tataraneta de uma irmã de Bárbara de Alencar, a deputada argumentou que quis fazer justiça a uma mulher que, no início do século 19, lutou por um país justo e democrático. O projeto foi aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados, em junho de 2012. “A lei já reconheceu o patriotismo e heroísmo de Bárbara. Resta, agora, que os historiadores registrem a sua história para que o povo brasileiro possa conhecer melhor esse período”, diz Ana Arraes. Por enquanto, o registro mais conservado da vida de Bárbara é a casa onde ela nasceu na Fazenda Caiçara, a 14 km da cidade de Exu. O imóvel foi recuperado e transformado em museu, para tentar preservar a memória da heroína esquecida. A diretora, Amparo Alencar, descendente de um dos seus irmãos, explica que as peças não são originais. Servem apenas para reconstruir o ambiente da época. Mas há uma réplica do retrato falado de Bárbara, pintado por Ernani Pereira, fixado numa das paredes. “Os únicos pertences que restaram dela são um par de luvas e algumas xícaras que estão em um museu do Crato”, informa. Na cidade cearense, a casa onde a matrona viveu foi demolida. No lugar, funciona a Secretaria da Fazenda. Também não há nada além de ruínas onde outrora era o Sítio Pau Seco, hoje município de Juazeiro do Norte (CE). Na opinião de Amparo Alencar, os pernambucanos não conhecem Bárbara porque não estudam sobre ela na escola. “Estudamos Frei Caneca, mas ela não, apesar de ser um vulto muito importante na história do Brasil. Alguém que, há quase 200 anos, lutou por uma forma de governo que persiste até hoje”, completa. Apenas o conterrâneo mais famoso não a esqueceu. Na música Meu Araripe, Luiz Gonzaga canta “quero louvar os grandes desse lugar, Luiz Pereira, dona Bárbara de Alencar...”. Que a história faça o mesmo.
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TERRA DO FOGO Perto do fim do mundo Conta-se que o nome desse arquipélago, localizado na extremidade sul da América do Sul, originou-se nas imensas fogueiras acesas pelos nativos para amenizar o frio cortante TEXTO E FOTOS Mona Lisa Dourado
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GLACIARES
Ao entrar nesta avenida, no braço noroeste do Canal Beagle, visitante avista imensos blocos de geleiras
resguardar as riquezas desse território selvagem por mais de três séculos. Devido também à resistência da população indígena, a região foi uma das últimas domadas pelo homem branco no hemisfério. Apenas em 1881 demarcou-se a divisão do território (de dimensões semelhantes à da Irlanda) entre Argentina e Chile. O importante patrimônio histórico-cultural já seria suficiente para justificar a longa viagem até lá. Generosa, a Terra do Fogo oferece mais. Paisagens policromadas congregam o azul intenso de geleiras milenares com o verde de bosques intocados e o ocre de estepes intermináveis, atravessadas por rios e lagos prateados. A povoar terras e mares do seu entorno está uma fauna diversificada: desde pinguins, baleias e elefantes-marinhos a guanacos, raposas e pica-paus. Quem decide se aventurar por essas longínquas paragens tem a promessa de integração com todos os elementos da natureza. Pelo mar, o visitante pode refazer a rota dos descobridores; por terra, seguir os passos dos colonizadores; e, pelo ar, incorporar o conquistador moderno em avionetas bimotoras. O fogo não está só no nome da ilha, mas se reflete nas cores quentes do céu.
PELO MAR
É manhã do dia 1º de novembro
de 1520. Depois de navegar por quase um ano em busca de uma rota alternativa para o Oriente, o capitão português Fernão de Magalhães finalmente encontra a passagem que liga o Atlântico ao novo oceano de águas tranquilas, que ele batizaria de Pacífico. Prova incontestável do formato esférico do planeta, a descoberta não seria a única a mudar radicalmente os contornos do mapa-múndi. Na margem sul do estreito, que anos mais tarde receberia o seu nome, Magalhães e seus marinheiros são arrebatados por uma imagem mística. Milhares de fogueiras ardiam sobre um pedaço ainda desconhecido das
Américas. Nascia ali, aos olhos europeus, a Terra do Fogo. Desde então, o grande arquipélago que demarca o fim do continente sulamericano atrai desbravadores de todas as latitudes. Mas Karukinka (“nossa terra”, como os nativos a chamavam) não se entrega fácil. É destino para persistentes. Basta dizer que as chamas que hipnotizaram os primeiros navegadores eram o recurso utilizado pelos povos originários, Yámanas e Selknams, para se proteger do rigoroso frio austral. Foram essas mesmas condições extremas do clima, aliadas à localização remota e à geografia entrecortada dos seus canais, que dificultaram o acesso de exploradores. Ajudaram, em contrapartida, a
Sob esse horizonte alaranjado, o barco Stella Australis parte da cidade chilena de Punta Arenas, às margens do Estreito de Magalhães, rumo ao Canal Beagle. O caminho natural entre fiordes e geleiras foi nomeado pelo capitão inglês Robert Fitz Roy em alusão ao veleiro HMS Beagle. Entre 1826 e 1836, a embarcação participou de dois dos mais importantes mapeamentos hidrográficos feitos na região. Na segunda viagem (18311836), que circum-navegou o globo durante cinco anos, estava outro ilustre passageiro: o então jovem e desconhecido naturalista Charles Darwin. Dessa expedição, foi elaborada parte do conteúdo da sua teoria sobre a origem das espécies, que o tornaria célebre 23 anos depois. Conhecer a Terra do Fogo a partir da perspectiva desses pioneiros é aventura que hoje pode ser feita com
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conforto e segurança impensáveis no século 16. Já a emoção permanece a mesma. Isso porque a região continua quase tão virgem quanto no passado. Com a diferença fundamental de que os indígenas foram quase todos exterminados. Parte dessa história o turista conhece em palestras, exibição de documentários e bate-papo com especialistas a bordo, uma vez que o conhecimento é tão valorizado nesse cruzeiro de expedição quanto a paisagem que se vê lá fora. Ponto alto do roteiro são os desembarques. O primeiro permite observar o azul translúcido do Glaciar Marinelli, além da vegetação de lengas, coigues e
ñires típica dos bosques austrais. Na Baía Aisworth, elefantesmarinhos aproveitam o banho de sol, alheios ao vaivém de curiosos. Ao contrário da ruidosa colônia de cormorões e gaivotas austrais das Ilhotas Tuckers, que recebem os visitantes com algazarra. Enquanto isso, os simpáticos pinguins-demagalhães posam para as fotos. O Glaciar Pía é a próxima parada. O desprendimento de blocos da geleira - que “ribombam como o canhoneio de um navio de guerra pelos canais”, teria dito Darwin - paralisa o visitante. Só não provocam mais alvoroço que a entrada na Avenida dos Glaciares, no braço noroeste do Canal Beagle. Desfilam numa bela
sequência numerosos ventisqueiros, que avançam em direção ao verde escuro das águas frias, vindos do cume da Cordilheira Darwin. A navegação a latitudes cada vez mais altas rumo ao sul segue em busca do último vestígio de terra do continente. Ventos inclementes e mar agitado denunciam a proximidade com o Cabo de Hornos. Dali em diante, abre-se o temido Mar de Drake, que separa a Terra do Fogo da Antártida. A passagem transoceânica foi descoberta em 1616 pelos holandeses. Antes e depois de Willem Schouten e Jacob Le Maire terem êxito na empreitada, pelo menos 10 mil homens pereceram em mais
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de 800 naufrágios registrados nas águas revoltas do Cabo de Hornos. Em memória deles, a ilha abriga um monumento com a escultura de um albatroz em voo. Segundo a lenda, a ave encarna a alma dos marinheiros mortos. Para visitar esse marco históricogeográfico, hoje território do Chile, é preciso enfrentar uma escadaria de 160 degraus. Viajantes e aventureiros marcam a passagem por ali deixando bandeiras e bonés de seus lugares de origem. Em troca, levam suvenires da lojinha mais austral do continente. Quem administra o “negócio” é o faroleiro que, por um período de um ano, chama o Cabo de Hornos de lar. Alguns levam a família para amenizar
Em 1881, demarcouse a divisão do arquipélago entre Argentina e Chile, depois de lutas com a população nativa o isolamento dos mares do sul. Nem sempre as ilhas do extremo da Terra do Fogo foram desabitadas. É o que se descobre na Baía Wulaia, onde Yámanas viveram durante oito mil anos até as primeiras tentativas de colonização. Quem admira a placidez do lugar não imagina os episódios épicos ocorridos ali.
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BAÍA WULAIA
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MOTIVAÇÃO
Paisagem de pampa predomina no interior Os Yámanas viveram oito mil anos aqui, até o extermínio O contato com a natureza preservada é uma das razões para se ir ao “fim do mundo”
Na sua primeira passagem pela Terra do Fogo, Fitz Roy levou quatro índios à Inglaterra, com a intenção de “civilizá-los”. Devolveu três deles (um morreu na Europa) na viagem de regresso, para que influenciassem os demais a autorizarem a presença de catequizadores anglicanos. A missão revelou-se um fracasso, quando, anos mais tarde, constatou-se que os índios estavam readaptados à vida selvagem e ainda mais avessos aos intuitos civilizatórios. Entre os eventos sangrentos desse período está a matança em Wulaia, de sete dos oito tripulantes de uma fragata missionária enviada das Ilhas Malvinas. Talvez a grande falha dos ingleses tenha sido subestimar o poder de resistência de homens e mulheres que eram capazes de enfrentar, sem roupa, temperaturas negativas, transportarse em canoas por milhares de quilômetros e caçar a nado lobosmarinhos em mares gelados. O fato é que os Yámanas resistiram, mas não por muito tempo. O inevitável contato com o “homem branco”, que começou a se instalar na Terra do Fogo a partir de 1869, dizimou a população indígena. De três mil pessoas estimadas no século 19, resta apenas uma descendente pura da etnia. A “abuela” Cristina Calderón, 85 anos, também é a única a falar a língua originária. Por isso, foi declarada em 2003 Tesouro Humano Vivo pelo Conselho Nacional da Cultura e das Artes da Unesco. Hoje, a derradeira Yámana vive na Villa Ukika, um dos atrativos da Ilha Navarino. Ali, Cristina e descendentes mestiços dos nativos dedicam-se à pesca e ao artesanato, com destaque às peças em junco e madeira. A Vila Yámana está a apenas dois quilômetros de Puerto Williams, o último povoado do continente. Fundado em 1953, para firmar a soberania chilena no Canal Beagle,
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CON TI NEN TE#44
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coleção etnográfica inclui mapas, objetos, fotografias e recursos audiovisuais, entre eles testemunhos e registros do idioma Yámana. A viagem no tempo se completa em frente ao museu, onde está a Casa Stirling. De arquitetura modesta, a habitação poderia passar despercebida, não fosse sua importância antropológica. É a mais antiga da região, enviada da Inglaterra a Ushuaia para abrigar Thomas Bridges, o primeiro missionário anglicano a estabelecer-se definitivamente na Terra do Fogo, em 1871. Depois de ser desarmada e reconstruída outras duas vezes, chegou a Puerto Williams em 2004. Hoje, cumpre a missão de enriquecer a experiência dos visitantes.
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o lugar rivaliza com a cidade argentina de Ushuaia pelo título de “fim do mundo”. Uma conferida no mapa não deixa dúvidas de que Puerto Williams está mais ao sul. A natureza prodigiosa é a principal razão para ir ao “fim do mundo”. Os mais dispostos podem encarar o Circuito Dientes de Navarino, um trekking pelas montanhas pontiagudas de granito, em meio a lagoas congeladas e ao ecossistema único dos bosques subantárticos. Menos puxado é o passeio ao Parque Etnobotânico
Omora, laboratório natural para milhares de espécies vegetais. A melhor síntese sobre o povoamento da Terra do Fogo se encontra no Museu Antropológico Martín Gusinde, no centro de Puerto Williams. Moderno e multimídia, o espaço equivale aos grandes equipamentos do gênero de qualquer metrópole. Sob o teto que reproduz o céu estrelado dos mares austrais, o museu privilegia a interatividade, ao narrar a trajetória de índios e colonizadores da região. A vasta
POR TERRA
Depois de cruzar o Seno Almirantazgo (fiorde entre o arquipélago e o continente), a aventura na Terra do Fogo segue em veículos 4x4 pela Ilha Grande. Refazemos os passos dos colonizadores, que só começaram a chegar no fim do século 19. O convite é para abrir a janela, sentir o vento que ricocheteia no rosto e admirar a vasta planície dourada. No interior da Terra do Fogo, o cenário muda radicalmente. Bosques úmidos dão lugar à imensidão dos pampas, de
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vegetação rasteira e lagos habitados por cisnes de pescoço negro, flamingos e patos. Aqui e ali, às margens de rios entrecortados, rebanhos de ovelhas são guiados por gauchos. Desde o descobrimento geográfico, no século 16, essa parte do território fueguino havia permanecido intacta. Até a Armada do Chile iniciar o mapeamento das terras austrais e encontrar jazidas de ouro, que logo despertaram a cobiça do explorador. A partir de 1882, começaram a chegar mineiros dos mais remotos países da Europa, especialmente da Croácia. Testemunha desse período é a Draga Aurífera Russfin. Restos da maquinaria utilizada na extração industrial do ouro também podem ser vistos na área do Cordón Baquedano, próximo a Porvenir. A capital da província da Terra do Fogo, fundada em 1894, surgiu no apogeu da exploração aurífera e guarda resquícios dessa opulência, muitos deles reunidos no Museu Fernando Cordero Rusque. Um passeio pela cidade ainda permite conhecer a casa onde funcionou o primeiro cinema do Chile. Embora tenha provocado mudanças sócioeconômicas irreversíveis, a extração do ouro durou pouco. Logo no início do século 20, percebeu-se que o valor do minério não justificava os
No final do século 19, houve a corrida pela extração do ouro no lugar, que não durou muito: o esforço não se justificava investimentos necessários para extraílo. Além das minas abandonadas, a exploração deixou um triste legado: a matança de índios Selknam, caçadores terrestres que povoavam a Ilha Grande há mais de 10 mil anos. O genocídio seria concluído até a extinção da etnia com a nova atividade econômica estabelecida na região. Às custas de quase quatro mil vidas, a criação de gado trouxe desenvolvimento à Terra do Fogo e a consolidação de sua atual identidade. Muitas das grandes fazendas desse período podem ser observadas pelas estepes fueguinas, caso das Estâncias Vicuña e Caleta Josefina. Já na Estância Villa Cameron, que abriga uma pousada homônima, é possível se hospedar e acompanhar as atividades de pastoreio, tosa das ovelhas e produção de lã, com direito a chimarrão, cordeiro assado e cavalgada. Às margens do Rio
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LAGO DESEADO
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HOSPEDAGEM
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FAUNA
Protegido por um bosque, o lugar sugere silêncio e reverência Muitas das fazendas locais foram transformadas em pousadas Pinguins estão entre a variedade de aves que habitam o arquipélago
Grande, o lugar também atrai os que praticam pesca esportiva. Seguindo o curso de seus rios sinuosos, a Terra do Fogo ainda revela recantos, até recentemente, só alcançados em longas viagens a cavalo. Protegido pelo bosque, desponta o Lago Deseado. Os desbravadores agora contam com uma estrada de terra, aberta em 2005. O caminho encurtou o tempo, mas não diminuiu o impacto de quem chega a esse lugar de águas prateadas e ar aboslutamente puro, onde as horas parecem amansar. O silêncio é quebrado pelo ruído de caiquenes ou pica-paus que bicam os janelões da pousada à beira do lago. A partir deles, pode-se admirar a beleza agreste resguardada dos humores do clima, que varia de uma paisagem ensolarada a outra, coberta de neve. Passeios de caiaque, caminhadas e pesca fazem parte da programação outdoor, com destaque às incursões ao cristalino Río Azopardo ou ao caudaloso Lago Fagnano, de onde parte um caminho recémconstruído rumo à Caleta María. A natureza aqui protagoniza outro de seus feitos, ao exibir na praia uma surpreendente colônia de pinguins-rei, naturais da Antártida.
PELO AR
Ao contrário dos pioneiros, os atuais conquistadores da Terra do Fogo podem ter a exata dimensão do arquipélago a partir do alto. Sobrevoos panorâmicos decolam de Punta Arenas e Puerto Williams em direção à Ilha Grande, numa aula de geografia 3D. A avioneta passa rente a encostas escaparpadas, mergulha em direção aos mantos de gelo glacial e serpenteia pelos canais. Bela maneira de começar ou terminar a viagem por esse território de extremos.
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WIKICOMMONS
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CAFÉS PORTENHOS Lugares de memória
Além de servirem aos momentos de pausa, essas casas e seus variados estilos são pontos de referência na paisagem de Buenos Aires
1-2 TURISMO O mais antigo da cidade, o Café Tortoni era frequentado por personalidades como Jorge Luis Borges, Carlos Gardel e Alfonsina Storni, reproduzidos em esculturas
TEXTO Mariana Camaroti, de Buenos Aires
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Um dos maiores prazeres da cidade
de Buenos Aires é caminhar pelas suas ruas sem horário nem roteiro, deixar-se seduzir pelo cheiro que transborda pelas calçadas e sentar-se nas cafeterias para, simplesmente, tomar um café, apreciar a bebida, folhear um jornal ou revista, jogar conversa fora e provar as iguarias servidas ali. Uma saborosa opção para quem visita a cidade e quer fugir dos roteiros turísticos, vivendo momentos como um autêntico portenho. Curiosamente, nesta terra de chimarrão e chá em horário inglês –
influências da cultura gaúcha e das invasões inglesas –, deter-se para tomar um cafezinho na rua é um costume a qualquer hora do dia. Quem já esteve na capital argentina certamente provou do clássico “café com leite com três medialunas”, os tradicionais croissants do país, combinação sugerida em todos os cardápios. E é preciso dedicar tempo a esse ritual. Os amantes da bebida não têm pressa nem o hábito de tomá-la no balcão, em pé. Ao contrário disso, aproveitam o momento para dar uma pausa no ritmo frenético vivido nesta metrópole de 3 milhões de habitantes – um total de 13 milhões em sua região metropolitana. Os cafés da capital argentina abundam por todos os bairros e não obedecem a um padrão. Tradicionais, modernos, decadentes, com ar vintage, afrancesados, velhos, surpreendentes, sofisticados, jovens, chiques, seculares, descolados. Suas existências conferem charme às ruas de arquitetura e costumes europeizados, despertando romantismo nos passantes. Nos sensíveis, provoca nostalgia, assim como sugere semelhança com outras belas cidades conhecidas por seus cafés, Paris e Roma. “A vida desses estabelecimentos anda de mãos dadas com a história cotidiana da cidade. Falar de um café, bar, confeitaria, é falar um pouco da nossa essência cidadã e do nosso patrimônio”, diz o coordenador do programa de Extensão Cultural de
Buenos Aires, o arquiteto Horacio Spinetto. “Os cafés estão em nossa memória coletiva e fazem parte da paisagem urbana”, acrescenta. Presentes em letras de tango, em poesias, testemunhas de encontros literários e de importantes reuniões culturais, muitos deles fazem parte do Patrimônio Cultural e Histórico da cidade, sendo declarados Cafés Notáveis pela prefeitura. Neles, famílias desfrutam a primeira refeição do dia nos finais de semana, jovens estudam, empresários fazem reuniões e alguns trabalham com seus laptops. Houve uma época em que a rede McDonald’s repunha gratuitamente o pedido de café dos que estavam estudando nos horários fora de pico.
VIAGEM NO TEMPO
Inaugurada em 1884, com inequívocos sinais de distinção, em uma área de fazendas e fincas, a Confeitaria Las Violetas é um dos mais elegantes locais do ramo em Buenos Aires. Abriu suas portas para atender a alta sociedade que frequentava o então rural bairro de Almagro – fazendeiros, comerciantes e políticos. Seus clientes chegavam em carruagens vestindo fraques, cartolas, bengalas, enquanto as distintas senhoras trajavam vestidos longos e elegantes chapéus. Na história da casa, consta que até o então presidente Carlos Pellegrini participou da inauguração. As fotos da época podem hoje ilustrar livros de História.
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FOTOS: MARIANA CAMAROTI
3-4 LAS VIOLETAS A elegante confeitaria, inaugurada em 1884, tem clientes fieis como Lidia Esther Mariosa (D) 5 TIENDA DE CAFÉ Especializada na bebida, principalmente nos blends
O cenário ao redor não é mais aquele. O bairro urbanizou-se, virou zona residencial e comercial, e o metrô passa perto dali. No entanto, o tempo deteve-se portas adentro. Imponentes colunas, detalhes dourados do salão e paredes revestidas de madeira remetem aos anos áureos da economia e da alta sociedade argentinas. “Os vitrais e luminárias de inspiração francesa, comuns naquele período, são originais. Foram restaurados, junto com um trabalho de recuperação e reforma que o lugar recebeu para reabertura em 2001, após os dois anos em que esteve fechado”, conta o gerente, Abel Vitienes. Poucas coisas mudaram, como o balcão, os toldos e a entrada, antes pela esquina. “Aqui há muitas histórias e os clientes que frequentam assiduamente nossas mesas mantêm alguma relação com este ambiente”, revela. É o caso de Lidia Esther Mariosa, que se sente profundamente ligada à Confeitaria Las Violetas. Seus pais eram do bairro, encontravam-se na confeitaria e celebraram não apenas o casamento, mas também batizado, aniversário e eucaristia das filhas no requintado salão, entre outras datas. “Venho aqui desde que estava na barriga da minha mãe. Este lugar é emblemático. Há muito o frequento todos os dias com a minha irmã. Aqui me sinto em casa”, conta esta senhora, que, como muitas pessoas da sua geração, prefere o chá com leite e torradas no lugar da dupla café com leite e medialunas. A elaboração de todos os produtos de pastelaria e sanduíches do local acontece no subsolo, numa área tão grande quanto as dimensões do salão. A joia da casa é o café colonial Maria Callas, que traz uma variedade de sanduíches, tortas, torradas, medialunas, café ou chá com leite, queijo, geleia, docinhos e outras delícias para três ou quatro pessoas. Mais antigo café aberto da cidade e destino certo dos turistas, o Café Tortoni conserva, na fachada e no interior, a elegância de um estabelecimento outrora frequentado por importantes artistas, jornalistas, músicos de tango e escritores
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como Jorge Luis Borges, Federico García Lorca e Astor Piazzolla. O chocolate quente com churros recheados de doce de leite é um clássico neste lugar inaugurado em 1858, assim como tirar fotos em seu salão, biblioteca e antiga barbearia. No passado, suas mesas eram montadas também na calçada da Avenida de Mayo, elegante via de influência arquitetônica espanhola, no centro histórico de Buenos Aires. Mas o costume perdeu-se com o alargamento do asfalto para dar passagem aos carros na via que liga a Casa Rosada, sede do governo, e o monumental Congresso Nacional. Dispor as mesas na calçada é um charme à parte, ainda hoje cultivado pelos cafés da capital argentina, apesar da modernidade. Sob o sol, toldos, guardasóis, árvores ou pérgulas, as mesinhas em meio ao passeio são convidativas. No inverno, alguns usam aquecedores na calçada para não perder os clientes. Numa esquina do turístico Bairro de San Telmo, o Café e Restaurante El Federal é uma pedida acertada para quem quer unir informalidade a antiguidade. O arco de vitral, as propagandas e fotos do início do século passado e a madeira “de sempre” se somam às velhas garrafas, oferecendo um ar de taverna. O cliente pode sentar-se na calçada, no salão principal, estreito com
Embora a cidade tenha crescido bastante, ainda é hábito dos cafés dispor suas mesas nas calçadas mesinhas na janela, ou em alguma das duas salas mais reservadas. Nestas, quadros com fileteado – técnica de pintura decorativa típica portenha – e duas grandes máquinas registradoras retrôs compõem o ambiente. Portas altas, móveis originais e vidros bordados são detalhes que não passam desapercebidos. No passado, funcionou ali um armazém de bebidas e comidas e, anteriormente, um prostíbulo. Cliente assídua do El Federal, a arquiteta chilena radicada em Buenos Aires, Paula Araya, diz por que cultua os cafés antigos. “Neles, existe um público de todas as idades e tipos. Você pode estar tomando um cafezinho e a pessoa do lado, um gim. Esses encontros é que me fazem gostar de lugares assim”, revela, enquanto escolhe com amigos o que vai tomar no final da tarde. Olhando rapidamente para as mesas e as pessoas que entram e saem, é fácil confirmar o que diz o
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gerente Samuel Gonzales: “O forte aqui são os turistas, principalmente estrangeiros”, diz detrás do balcão, enquanto prepara os pedidos das mesas.
CAFÉS NOTÁVEIS
Assim como Le Procope, o Café de Flore e o Les Deux Magots, de Paris; o Gijón e o Comercial, de Madri; o Greco, de Roma; e o Girondino, de São Paulo, os cafés de Buenos Aires são verdadeiros pontos de reunião e convocatória, criação e canalização de sonhos. “Os cafés notáveis fazem parte do patrimônio cultural da cidade e requerem um constante trabalho de proteção edilícia, difusão e recuperação”, afirma a subsecretária de Cultura da Secretaria de Cultura da capital argentina, Josefina Delgado. O que ela chama de cafés notáveis são, como o Tortoni, o Las Violetas e tantos outros antigos – sejam eles elegantes ou não –, os que resistiram ao tempo, têm um valor arquitetônico e são importantes para a história cotidiana do bairro em que estão localizados. Muitos, em algum momento, tiveram uma representatividade para vida cultural da cidade, foram tombados e recebem apoio financeiro da prefeitura. A essa lista pertence o Café de los Angelitos, em Balvanera, fundado em 1890. Com suas pequenas mesas
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FOTOS: MARIANA CAMAROTI
6 TRADIÇÃO A combinação café com leite com medialunas é sugerida em todos os cardápios 7 DULCE BUENOS AIRES Aposta no estilo caseiro, com produtos o mais naturais possível
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crus pendurados do teto, completam a originalidade deste café notável.
MODERNOS
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redondas no centro do salão e janelas de vidro bordado, encimadas por toldos, pé direito alto e piso de ladrilho hidráulico, ele cumpre verdadeiramente o requisito de referência do dia a dia portenho. No que por muito tempo foi a estação ferroviária mais importante da América Latina, o Café Retiro, de mesmo nome do terminal, provoca uma irrefutável viagem no tempo. Colunas jônicas, mezanino com grade de desenho rebuscado, cúpula e luminárias penduradas do alto teto caracterizam um elegante salão de chá e café. Com bem menos glamour, mas capaz de despertar o prazer de ser bem atendido, encontra-se o Ocho Esquinas, no Bairro de Chacarita. O lugar não é grande, mas lindo, com mobiliário original, de 1939. “A luz entra pelos vidros grossos amarelos, embelezados por desenhos geométricos. Uma luz especial que dá ao ambiente uma atmosfera suave e aveludada. Parece uma foto sépia”, escreveu o pesquisador de cafés, bares e cardápios Pietro Sorba, em seu livro Bodegones de Buenos Aires (Editora Planeta).
A proprietária, Lucia de Bálsamo, revela com orgulho que as mesas são servidas com uma louça de quatro décadas e que ela repõe as avariadas com peças conseguidas com muita procura nas casas de leilão e antiguidade. “As últimas comprei em San Telmo, algumas com falhas, mas para manter a mesma linha. Tudo aqui é muito cuidado”, afirma. Entre as peculiaridades do lugar está oferecer comida alemã no almoço e no jantar, com direito a shows de tango e milonga nas noites de quinta a sábado, e permitir ao cliente escolher o que deseja nas bandejas que circulam, como a medialuna ou factura (delicioso brioche argentino). “Estava acostumado a servir em uma churrascaria. Ao ser contratado, tive não só que estudar a história deste lugar como também me acostumar com o ritmo mais lento dos clientes”, conta o garçom Gustavo Angel. As duas fileiras de mesas e bancos fixos nas laterais do salão e as mesinhas apertadas no centro, junto com os frascos de petiscos do balcão e os presuntos
Mas a charmosa princesinha do Rio da Prata também conta com modernidades. Impossível não se sentir atraído pela bela casa antiga de esquina, pintada de vermelho e com janelões, onde funciona a Tienda de Café do Bairro de Belgrano. Realmente especializado na bebida – principalmente blends –, o Tienda de Café oferece ainda o produto em grãos ou moído na hora e outros mimos no seu empório, como cafeteira italiana, xícaras grandes e frascos. Este é o mais lindo da rede de mais de 20 sucursais, que continua crescendo. Olhando o cardápio, o cliente que não é habitué se confunde com tantos nomes para um único produto. Café, café doble (duas vezes a medida do expresso), café con leche, em pocillo (pequena xícara) ou jarrito (um pouco mais que o anterior), cappuccino, cappuccino italiano, macchiato (expresso forte com espuma de leite) mocha (expresso com espuma de creme de leite), cortado (pingado com leite), lágrima (leite pingado de café), além das versões geladas oferecidas no verão. É preciso entender os códigos portenhos ou perguntar desinibidamente ao garçom para se arriscar nas diferentes opções. Para cada uma delas, uma xícara com forma e tamanho diferente. Mas todos servidos, como é costume em Buenos Aires, com um copinho de água com gás e/ou suco de laranja e um biscoitinho. Vale saber que, na cultura local, ao pedir un café, o que o atendente trará será o expresso, em xícara diminuta. Na Tienda de Café, os cookies, scons, torradas, tortas doces e salgadas, muffins de baunilha ou chocolate com castanha e sanduíches são algumas das ofertas do cardápio para acompanhar a especialidade da casa, que também funciona como restaurante no almoço e no jantar. No aconchegante primeiro andar, antigas chaminés e a luz natural criam um clima tentador para um encontro de amigos.
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“Somos uma cafeteria de bairro que, embora tenha turistas, é mais voltada para os clientes fixos. E são tantos, que vendemos 2 kg de café expresso por dia, ou seja, uns 350 cafés diários (uma média de 8 g cada), além de mais de 200 medialunas”, revela Nestor Daniel Quirola, responsável pelo lugar, que tem um Starbucks ao lado como concorrência – mas que não lhe faz sombra. No mesmo bairro, está o Dulce Buenos Aires, especializado, como o próprio nome diz, em doces. A vitrine refrigerada tem uma variedade de tortas que, junto com as opções secas exibidas no balcão, são de dar água na boca. As porções são generosas e é tudo feito no local, estilo caseiro, e com produtos o mais naturais possível. A casa, que tem apenas cinco anos, possui um ambiente vintage, com mesas e cadeiras antigas compradas em leilões e casas de antiguidade. A louça delicada é um capítulo à parte: cada peça – xícara, pires, prato, bule e prato, também distintos entre si – foi adquirida em locais especializados em objetos antigos. O conjunto da
Os cafés notáveis são os que resistiram ao tempo, têm um valor arquitetônico e são importantes para a história do seu bairro obra resulta em um lugar romântico, onde as pessoas jogam conversa fora ao gosto de café e delícias. “Os cafés de Buenos Aires têm um não sei quê que atrai as pessoas”, comenta a proprietária, Paula Mudric, parafraseando o famoso tango de Astor Piazzolla Balada para un loco. “Nossos clientes trazem seus computadores e passam horas trabalhando ou estudando, amigos se reúnem, casais vêm tomar café da manhã. Sentemse em casa e esse é o nosso objetivo, desde a elaboração da comida à criação do ambiente”, acrescenta. Tratando-se de delícias, o Nucha não poderia ficar de fora. Impossível não se entregar aos prazeres do paladar nessa rede especializada em
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doces com elaboração artesanal. Os chocolates, tortas, macarrons (biscoito recheado francês), alfajores e scons, entre outros deleites, são visualmente sedutores e surpreendem no sabor. Seu bom atendimento e delicada beleza tornam a Nucha do Bairro de Palermo imprescindível no roteiro de quem prima por uma cafeteria especial. A mistura de café com leitura, tão característica da capital argentina, encontra seu romance perfeito na Livraria El Ateneo Grand Splendid, apontada pelo jornal inglês The Guardian como a segunda mais bonita do mundo. Neste teatro transformado em bookstore no Bairro da Recoleta, o antigo palco abriga o Impresso Café, as estantes de livro ocupam o lugar das fileiras de poltronas e os camarotes viraram espaço de leitura. As cortinas foram mantidas e adornam o ambiente de mesas, sofás e piano onde leitores ávidos sorvem letras e bebidas. Nesta joia da leitura mundial, um simples cafezinho ganha um sabor sublime. Ou um modesto livro deriva em um prazer inesperado. Café e leitura, um casamento perfeito. Porém ainda mais encantador quando o cenário é Buenos Aires.
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
CASCA DE JACA
“Tenho uma coisa para lhe dizer/ mas não digo não/porque faz mal ao coração”, mas eu digo sim, que já passei, e muito, del mezzo del camin di nostra vita, o tempo está se apertando e o mais danado é que não sei quando termina (é praxe traduzir termos de língua estrangeira: mas quem é que não sabe que se trata do primeiro verso da Divina Comédia de Dante “no meio do caminho de nossa vida” e que apenas troquei o nel (no) pelo del (do) e que ele escreveu isso porque tinha trinta e cinco anos e a Bíblia estabelece setenta para a vida humana?). Quanto aos versos que abrem esta croniqueta, são de um frevo-canção mais ou menos antigo: tudo que faz parte de mim é mais ou menos antigo; mas vige, justamente porque faz parte de mim, que inda não morri; e como sei que inda não morri?: porque estou escrevendo isso aqui, tanto quanto Dante quando escreveu nel mezzo del camin. Ai, Dante, já vou singrando os oitentas e a comédia inda não terminou. Escribir, por ejemplo: “La noche está estrellada,/y tiritan, azules, los astros, a lo
lejos” (escrever por exemplo a noite está estrelada e tiritam azuis os astros à distância); eu sempre grafei “à distância”, com crase, porque é assim que eu ouço, como em espanhol, a preposição a e o artigo los; já discuti outro dia com um amigo, ele dizendo que não existia essa crase; sem crase era como se dissesse “o longe” em vez de “ao longe”. Escrever, por exemplo, que achei uma maravilha o disco Sítio de Pai Adão/ritmos africanos no Xangô do Recife que recebi de Ivânia Barros Melo com a dedicatória “Para José Cláudio com os agradecimentos de Ivânia e família, 05/06/06”, toadas africanas e respectivas traduções em português, obra de grande valor dessas que surgem de raro em raro e nos dão fé no Brasil. Boto na vitrola, ou que outro nome tenha o toca-CD, com medo de gastar. Não posso mais viver sem esse disco. Os seus autores deveriam ter sido condecorados, receberem do governo um ordenado para o resto da vida. Só não sei a razão dos agradecimentos, quando eu é que
tenho de agradecer e o faço agora. Com “algum” atrasado. Mandei um exemplar do disco para minha filha Maria Júlia, professora de música nos States, para ela lançar a semente lá entre os tejanos (mexicanos que nascem no Texas). Alguns até nem falam inglês, como uma senhora amiga da mesma Maria Júlia, hermana de la Rosa, páreo para Raul Souza Leão no fabrico de pimenta caseira. Maria perguntou a ela: “Hermana de la Rosa, quanto tempo faz que a senhora não vai ao México?” Ela respondeu: “Nunca fui”. Não sabe uma palavra de inglês. Até “dólares” ela diz “pessos” (pesos). Mudando de pau pra cacete, a maioria das reportagens sobre artistas não fala nesse ponto crucial: de onde tiram o necessário para se manter, como se artista vivesse de brisa. Antigamente, aqui pelo menos, artista vinha de família rica, não precisava de vender quadro para comer. “Quadro era para dar”, me disse Cícero Dias. “E era difícil.” Era difícil porque o fato de receber um presente pressupunha uma
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REPRODUÇÃO
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certa intimidade, e nem sempre o presenteado se sentia à vontade para recebê-lo. Significava até um julgamento, um atestado de apreço, como quando hoje se diz que o artista tem quadro na coleção Fulano de Tal, no Brasil ou Exterior. Uma ocasião o escritor Gastão de Holanda pensou em criar currículos fictícios para artistas daqui, inventando museus de nomes impressionantes, cidades de nomes difíceis, de outros continentes, prêmios no Sul do País. Ainda sobre presentes. Está havendo agora também o inverso, o indivíduo dar presente para receber de volta um quadro do pintor, pintor este que não tem dinheiro nem para pagar o aluguel do tugúrio onde mora, ou precisa de exercer outra atividade para sobreviver, sobreviverem, ele, mulher e filhos quando é o caso, pagar colégio, médico, dentista, para não falar da
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Antigamente, aqui pelo menos, artista vinha de família rica, não precisava de vender quadro para comer aula de natação ou karatê. Eu mesmo, fico com um pé atrás ao receber presente, como se a pessoa quisesse criar um elo, uma obrigação, um voto de lealdade, uma dívida. Para não ser mais grosseiro recusando o presente, o que seria tido como uma afronta, mesmo que eu estivesse quieto no meu canto sem propósito de afrontar ninguém, que tenho mais com que me ocupar, procuro, o mais delicadamente possível, dizer que não posso retribuí-lo. Muitas vezes querem que eu dê
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Ilustração, sem indicação do nome do autor, da capa do libreto que acompanha o disco Sítio do Pai Adão/ ritmos africanos no Xangô do Recife
um quadro, eu agora nos meus últimos lampejos, que me custam os olhos da cara e o fígado, o coração e a cabeça, uma vida de pobreza minha e de meus filhos, em troca de casca de jaca. Me lembro de um judeu riquíssimo, amigo de Renato Magalhães Gouvêa, que devolveu na hora um relógio que valia uma fortuna, dizendo ao presenteador: “O senhor não tem intimidade para me dar este presente”. Não no caso de Ivânia, vale lembrar, que tem quadro meu, grande, e até escultura em madeira, que é mais caro, bem antes de quaisquer presentes: e esse presente dela é uma coisa que dignifica, acima de valor material. Tem presente que sabe a suborno mas desse não falo por não ser o destinatário indicado. Às vezes fico besta de ver a quantidade de gente boa com quem convivi e convivo que nunca quiseram nada de mim, nem precisam. Conheci, conversei, até tive intimidade, gente muito acima de mim na escala social ou outras escalas. O único mérito que encontro em mim para ser digno de tanto privilégio é a coragem, digo, a consciência, de não ser nada, que nunca me faltou. Eu nunca “avancei”. Sempre soube que não sabia latim, ou sabia o suficiente para saber que não sabia, nem nunca li as obras completas de Calderón de la Barca.
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SAL MARINHO/DIVULGAÇÃO
Visuais
LEMINSKI Imagens de um homem de texto
O sobrenome vem da Polônia, mas
Exposição composta de documentos, fotografias e objetos procura abarcar as múltiplas atividades do escritor, com destaque para o romance Catatau TEXTO Luciana Veras
ele nasceu em Curitiba e lá escreveu, traduziu, compôs, inventou poemas, criou neologismos na prosa, treinou caratê, foi faixa preta de judô, pai, parceiro musical, professor e crítico. Era muitos num só e talvez por isso tenha partido cedo, em junho de 1989, aos 44 anos. Múltiplo Leminski, exposição que chega à Torre Malakoff no dia 29 deste março, ostenta um nome fidedigno às descrições de Paulo Leminski e de sua obra tão refratária a rótulos ou tentativas de enquadramento. Após amealhar 200 mil visitantes entre outubro de 2012 e junho de 2013 no Museu Oscar Niemeyer, na capital paranaense, e outros 130 mil no Ecomuseu de Itaipu, em Foz do Iguaçu, a mostra sai completa
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Múltiplo Leminski De 29/3 a 30/5 ENTRADA GRATUITA
Torre Malakoff, Bairro do Recife
do Museu de Arte Contemporânea de Goiânia para o antigo observatório astronômico sediado no Bairro do Recife, porém com um enfoque especial para o público pernambucano. São estes os espaços de Múltiplo Leminski: linha da vida e obra; poesia; música; prosa; Catatau; tradução; biografia; HQs; haikaista e judoca; publicidade; jornalista; professor; escritório; e biblioteca. A diferença na exposição, aberta à visitação até 30 de maio, é o destaque para Catatau, um “romance-ideia”, nas palavras do próprio autor, escrito por Leminski em 1975 e protagonizado por um René Descartes que teria vindo ao Brasil na comitiva de Maurício de Nassau, nobre a serviço da Companhia das Índias Ocidentais que se torna um
dos expoentes da invasão holandesa a Pernambuco (entre 1630 e 1654). Descartes nunca esteve em Olinda, a Vrijburg, “cidade livre” ocupada pelos batavos; contudo, para Leminski, ele não apenas cá viveu, como, sob a alcunha latinizada de Renatus Cartesius, apreciou a flora, admirou-se com a fauna e provou uma “erva de negros” que libertou sua consciência. Em Descordenadas artesianas – um livro e sua história, 23 anos depois, texto acrescido à segunda edição da obra, publicada em Porto Alegre no mesmo ano de sua morte, Leminski diz que “a multiplicidade de leituras do Catatau já traz inscrita na própria multiplicidade de sentidos de que é portador seu próprio nome, uma das palavras mais polissêmicas do idioma”. Ele acrescenta, já em outro apêndice, intitulado Quinze pontos nos IIs: “No Catatau, a expectativa é sempre frustrada. O leitor jamais sabe o que deve esperar: rompe-se a lógica e as passagens de frase para frase são regidas por leis outras que não as normas da sintaxe discursiva ‘normal’. Existe literalmente um abismo de frase para frase, abismo esse que o leitor deve transpor como puder (como na TV, entre ponto e ponto)”. Catatau, em suma, é uma provável síntese do que há de mais complexo, e repleto de significados, na literatura de Leminski. “É um livro emblemático. Queremos dar um grande destaque justamente por essa relação com a cidade e com a própria localização da mostra. Vamos marcar isso bem na montagem”, resume Aurea Leminski, uma das curadoras, coordenadora geral da itinerância da exposição e filha do escritor. Sua mãe, a poetisa Alice Ruiz, e a caçula, a cantora e compositora Estrela, dividem com ela a curadoria de Múltiplo Leminski. “Calculamos em torno de mil peças, entre documentos originais e peças de ambientação. Tem papéis, guardanapos, fotografias, equipamentos multimídia, projetores, monitores, vitrines e painéis, tudo para criar ambientes muito diferentes. Afinal, estamos falando das várias facetas do Leminski. Podemos brincar de encontrar uma identidade própria para apresentar a obra dele”, acrescenta Aurea. Pode-se tecer um paralelo entre a amplitude de leituras sobre o homem e seu trabalho, que é a razão de ser
de Múltiplo Leminski, e Catatau – cuja “estripulia final”, segundo o autor, “levou nove anos se fazendo, pólipo, politropo, aberração, inchando, proliferando, intumescendo, fermentando, esbanjando-se em bizarrias excêntricas até os últimos limites lógicos e sintáticos do lúdico e do travesti, máscara Nô, maquilagem do caboclo-kabuki, estados caógenos, crepusculares na fronteira entre o inteligível e o enigmático provável, um tratado de Medicina Legal da lógica e da linguagem, museu de cera, um Circo dos Horrores linguísticos”.
TODOS OS LADOS
A exposição se assemelha a um periscópio para se observar nuances extremas, variadas e intensas, com o diferencial de que será possível ir além do olhar e assim interagir. “A ideia é mostrar todos os lados do Leminski. Há aqueles nem tão conhecidos, como o publicitário, o tradutor e o músico. Tem muita gente que conhece suas músicas sem saber que são criações dele. Queremos abranger todas as áreas em que ele atuou. Como era muito versátil, ia desde a arte marginal, de rua, com grafite e cultura pop, até o rigor do erudito, do conhecimento dos clássicos. Ele transitava dentro de tudo. Se um jovem torce o nariz para um lado mais erudito, com certeza vai se identificar com a poesia rápida, que tem tudo a ver com as redes sociais, por exemplo”, ilustra Aurea. Tal variedade de linguagens, tão inerente a Catatau e a outras obras dele, propiciará uma avalanche de Paulo Leminski ao visitante. Dessa forma, qualquer um poderá cotejar o poeta que adorava haicais com o biógrafo de Cruz e Sousa e Bashô ou ainda com o fã de James Joyce, Samuel Beckett e John Fante, que, de tanto gostar dos originais, se aventurou pela tradução de modo a garantir, não apenas para si, uma fruição mais acurada dos autores que admirava. “Ele acabou virando poliglota porque queria ler os clássicos e se incomodava muito com a tradução, pois era sempre a tradução da tradução. Leminski se dedicou muito a isso, a ser extremamente fiel aos originais e virou um grande estudioso de outros autores. Para se ter uma ideia, ele aprendeu latim quando decidiu traduzir
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Satiricon, de Petrônio, um livro mais antigo e extremamente erótico, uma característica que as traduções davam uma amenizada. Ele queria traduzir sem deturpar a realidade da obra”, conta a filha e curadora. As “mil capacidades que ele tinha para lidar com a linguagem”, nas palavras dela, são, portanto, esteio e norte de Múltiplo Leminski. Sua relação com a arte oriental, suas preferências estilísticas, os livros que colecionava, seu processo criativo, suas publicações voltadas para os guris (Guerra dentro da gente e A lua foi ao cinema) e ainda sua produção jornalística interligam-se na ambientação e cenografia propostas pelo designer Miguel Paladino. Superlativos são melindrosos, mas o fato é que essa é a maior exposição sobre Paulo Leminski já idealizada, montada e apresentada. “Em 2009, aconteceram duas mostras em São Paulo, uma no Itaú Cultural e outra no Sesc Consolação. Minha mãe não foi a curadora, mas foi consultora da curadoria. Isso já foi um primeiro passo para resgatar o legado do Leminski, pois começou a mexer com todo esse acervo. Essas exposições, no entanto, eram mais
A mostra já teve três montagens, a primeira no Museu Oscar Niemeyer, e conta com eventos paralelos focadas na produção do poeta, escritor, músico. Quando chamaram a Alice em Curitiba, ofereceram a ela a maior sala do Museu Oscar Niemeyer, com 1,7 mil metros quadrados de área expositiva. Parecia ser um problema, mas aí é que foi a grande virada: pudemos pensar em uma exposição para resgatar a vida e a obra, para fazer um pout-pourri de tudo e para aproveitar a área extensa e colocar todas as facetas dele. Até então, nenhum artista da palavra tinha exposto nessa sala mais nobre. O desafio era transformar a palavra e a música em algo a ser visto e absorvido pelas pessoas”, relembra Aurea. É inegável que a compilação de documentos, objetos e raridades de uma figura há muito ausente e o ato de revirar
memórias de um cotidiano familiar tendem a uma catarse anunciada. Dez anos mais velha do que Estrela, e a segunda filha do casal (Miguel, o primogênito de Paulo e Alice, faleceu ainda criança, vitimado por leucemia), Aurea reconhece o aspecto emocional do envolvimento das três mulheres: “Juro que, se isso tivesse acontecido há 20 anos, ia ser mais difícil transformar a dor, a saudade e a falta em algo criativo. Mas é mesmo algo catalisador, que nos alimenta e nos faz cada vez mais unidas. Creio que aconteceu uma coisa inversa com o que aconteceria antes. Lidando com uma carga emocional muito forte, aprendemos a ter um distanciamento, aprendemos a perdoar e a ser bastante pragmáticas umas com a outras. Quando fazemos as visitas guiadas, há um cansaço que não é só o físico, o mental, o intelectual, mas o emocional por estar lidando com as formas todas, por estarmos mais próximas dele”. A família Leminski entende que um espólio artístico como o do cidadão que se orgulhava em ser metade polaco, metade índio e português nunca deveria ficar restrito a coleções, bibliotecas ou acervos
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ORIENTAL nfluência da cultura japonesa na sua obra, sobretudo pela criação de haicais, está presente na mostra
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MONTAGENS Os variados ambientes procuram ressaltar as diferentes instâncias da obra do escritor, do pop ao erudito
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CATATAU A obra terá destaque no Recife pelas referências geográfica e histórica do romance, que imagina a vinda de um certo Descartes ao Pernambuco holandês
particulares. “A exposição nos propicia um jeito de estar perto dele e de fazer uma coisa bacana, que é disponibilizar para todo mundo esse legado que acabamos herdando. As pessoas, assim como nós, ficam superentusiasmadas e motivadas”, afirma. Por acaso, Múltiplo Leminski ocorre em concomitância com a reedição da obra literária pela Companhia das Letras, o que aumenta a oferta para leitores, aficionados e afins. “O curioso é que vêm acontecendo juntas, mas não dentro de uma ação que foi pensada em conjunto. Sabíamos que a obra poética dele tinha que ser relançada. Passamos um bom tempo vendo a possibilidade de reunir tudo num volume só, pois tinha livros com uma editora e outros espalhados por aí, então foram anos para desatar esse nó e unir tudo. E depois veio a exposição e tudo caminhou para isso”, situa Aurea Leminski. Agraciada com recursos do programa Petrobras Cultural, a mostra circulou em Goiânia e aporta no Recife por exigência do edital, que prevê a itinerância por várias regiões do país. De Pernambuco, migra para a Bahia, já sob patrocínio da Caixa Econômica Federal. Antes, entretanto, compõem sua estada na Torre Malakoff palestras, oficinas, uma mostra audiovisual (em que será exibida uma versão de Catatau dirigida por Cao Guimarães e protagonizada por João Miguel) e o show Essa noite vai ter sol, comandado por Estrela Ruiz. “Ela vai sempre com a banda e convida artistas que foram parceiros dele. Em Curitiba, por exemplo, foi o Arnaldo Antunes, que foi amigo pessoal e gravou composições do Leminski. Para o Recife, estamos estudando ainda, mas vai ser uma noite de festa e grande celebração”, adianta a curadora e coordenadora geral. Se o verbete catatau designa ainda “zoada”, “discussão”, como ensina Paulo Leminski, nada mais adequado, então.
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Sonoras MPB Um ano como marco
Livro faz apanhado dos principais lançamentos ocorridos em 1973 e discorre sobre a importância do período para a evolução da música no país TEXTO Marcelo Robalinho
O ano de 1973 foi bastante frutífero para a MPB. Apesar de finda a fase dos movimentos e festivais de música, que tiveram seu fulgor na década de 1960 e revelaram boa parte dos artistas hoje consagrados, aquele ano foi marcado pelo lançamento de nomes importantes, tais como Fagner, João Bosco e Aldir Blanc, Gonzaguinha, Luiz Melodia e o grupo Secos e Molhados (que revelou ao país o cantor Ney Matogrosso). Também representou a estreia fonográfica de artistas já em carreira, a exemplo de Francis Hime e Elton Medeiros, e o lançamento de álbuns considerados referência, como Milagre dos peixes, de Milton Nascimento, Matança de porco, da extinta banda Som Imaginário, Matita Perê, de Tom Jobim, e Satwa, dos pernambucanos Lailson e Lula Côrtes. “Passados 40 anos, podemos perceber o quão profícuo foi o ano”, constata o jornalista Célio Albuquerque. Ele é o organizador do livro 1973: o ano que
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reinventou a MPB, recém-lançado pela Sonora Editora (431 páginas, R$ 59,90). Embora o título da obra pareça um tanto pretensioso à primeira vista, a leitura revela a cada capítulo a riqueza musical produzida em 1973, pela visão de repórteres, críticos, músicos, compositores, produtores e historiadores. Essa diversidade de formações e experiências entre os profissionais que assinam os textos conferiu um caráter interessante ao livro, notadamente memorialista. É o caso da resenha do gaitista e arranjador Rildo Hora, que conta sobre o contexto de gravação de Origens, de Martinho da Vila. Como coordenador artístico e diretor de estúdio do disco na época, Rildo fala sobre a necessidade de Martinho de buscar sempre, nos seus LPs, um conceito temático para relacionar as músicas, como um samba-enredo, aliando isso também à concepção gráfica. No
caso de Origens, cuja capa foi feita por Elifas Andreatto, um dos interesses de Martinho foi voltar aos princípios do samba, homenageando a África. Outro exemplo desse viés da memória pode ser conferido no texto do jornalista Danilo Casaletti. Como fã da cantora Elis Regina, e por não tê-la conhecido pessoalmente, ele conta que pesquisou em matérias de época e se baseou em conversas que teve com o compositor Aldir Blanc para escrever a resenha sobre o LP Elis, um disco que refletiu um momento de mudança na carreira da gaúcha, depois de romper um contrato com a TV Globo e vir de um disco bemsucedido no ano anterior. “Tentei trazer para este livro uma reflexão do que teria levado a Elis a fazer um disco tão diferente do anterior, o de 1972, e quais consequências o de 1973 teria trazido para a carreira da cantora, o que, a meu ver, foi o total entrosamento com o
seu marido na época, o pianista César Mariano, e uma grande cumplicidade com os músicos, o que possibilitou, em 1974, que ela produzisse um dos melhores discos da música mundial, o Elis & Tom”, comenta Casaletti. Célio Albuquerque afirma que grande parte dos discos escolhidos fez ou faz parte do dia a dia de quem gosta de MPB. A ideia do livro partiu da percepção da grande quantidade de lançamentos importantes em 1973 e da constatação de que vários deles estavam presentes em listas feitas em diversos períodos. Uma delas é a do livro 300 discos importantes da música brasileira (Ed. Paz e Terra), que destaca 18 títulos daquele ano dentre os 104 selecionados só para o período de 1970 a 1979. “O critério para escolha foi a qualidade identificada nos discos lançados à época. Não havia a preocupação de ter ou não determinado artista. O disco deveria ter um grau de importância para o segmento que ele ocupava no mercado. Tanto é que não há o disco de Roberto Carlos simplesmente porque naquele ano o seu disco não estava entre os mais criativos”, explica Albuquerque à Continente. Segundo ele, os autores das resenhas foram convidados tendo como critério a intimidade, o carinho e a identificação deles com os discos. Um dos casos de maior empatia ocorreu com o percussionista Marcos Suzano, escalado para escrever sobre Amazonas, segundo LP do percussionista pernambucano Naná Vasconcelos. Por já ter tocado e gravado com Naná, Suzano relatou como funciona o processo criativo do colega, que mistura elementos de percussão e voz. “O que mais impressiona é que, na época, a coisa era gravada na fita, então o cara tinha que tocar mesmo. Atualmente, o computador facilita as coisas.”
UDIGRÚDI PERNAMBUCANO
Além de Naná, o livro reserva um espaço para Pernambuco no capítulo Psicodelia arretada: uma nova era. Escrito pelo jornalista José Teles, o texto destaca os álbuns Satwa, de Lula Côrtes e Lailson, e Marconi Notaro no sub-reino dos metazoários, de Marconi Notaro, dois importantes discos do chamado udigrúdi, movimento ocorrido no Recife no início da década de 1970 e ligado à contracultura e ao underground. Mesmo reconhecendo a
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controvérsia sobre o fato de Satwa ter sido feito às próprias custas, Teles afirma que Lula e Lailson seriam, na verdade, os primeiros a lançarem no Brasil um disco sem vínculos com gravadora, neste caso, a Fábrica de Discos Rozemblit, no Recife, onde foi realizado. Isso teria ocorrido três anos antes do famoso Feito em casa, do pianista Antônio Adolfo, considerado oficialmente o primeiro. “Lailson e Lula chegaram com temas pré-gravados, mas a música de Satwa foi criada ad lib, com improvisos em cima de um tema. Nada de letras. Nem Lailson nem Lula tinham intenções, nem paciência de dar explicações à Polícia Federal, à qual seriam obrigados a submeter as letras, para aprovação ou não. Isso foi o que facilitou a liberação do LP”, relata Teles. No quesito censura, o livro guarda boas histórias, justamente pelo fato de o país viver, naquele período, o ápice do sufocamento artístico, com diversos cantores e compositores tendo suas músicas vetadas. Chico Buarque e Taiguara foram dois dos artistas mais censurados. Em 1973, Chico teve a peça Calabar, o elogio da traição (escrita com Ruy Guerra) interditada. E metade das canções do disco teve as letras vetadas de forma parcial ou integral. Originalmente intitulado Chico canta Calabar, o título do LP foi
reduzido pelos censores a apenas Chico canta, por não gostarem da palavra “Calabar” e da capa, modificada, conforme contam os jornalistas Nilton Pavin e Sílvio Atanes no texto, sob o irônico título Quase que Chico não canta. No caso de Taiguara, que teve ao longo de sua carreira 146 canções proibidas, o repórter José Maria dos Santos tenta dar um “tratamento prioritariamente político” para ressaltar a importância do disco Fotografias e do próprio artista no cenário musical, “ainda hoje malcompreendido”, como destaca. “A partir desse disco ele iria se autoexilar na Europa, farto dos aborrecimentos, como se quisesse fechar para sempre uma porta atrás de si”, afirma José Maria.
MERCADO FAVORÁVEL
Mesmo num contexto de fechamento político, o ano de 1973 conta com uma peculiaridade que justifica, em parte, o tempo de efervescência cultural. Foi um período marcado por um forte desenvolvimento econômico, conhecido como Milagre Brasileiro, que fez do Brasil a 10ª economia mundial. Com um crescimento de 14% do PIB naquele ano, o país vivia uma pretensa ideia de progresso. É o que informa Washigton Santos, jornalista especializado em Políticas Públicas e Governo, no capítulo Tempos de milagre,
CÉLIO ALBUQUERQUE Jornalista defende que, em 1973, o mercado fonográfico investiu na inovação
anos de chumbo, que busca contextualizar o país daquela época. Nesse cenário, o mercado fonográfico brasileiro ainda vivenciava um período de expansão, iniciado nos anos 1960, fazendo do disco um produto bastante rentável. “Como o disco ainda dava muito dinheiro diante daquele cenário de crescimento, as gravadoras investiam num artista, às vezes durante quatro a cinco anos, até ele dar dinheiro”, revela à Continente o músico Roberto Menescal, na época diretor artístico da Philips. Isso, diz ele, permitia o risco tanto na contratação de nomes novos pelo feeling no talento quanto na experimentação dos veteranos. “O nosso cast chegou a 158 artistas. Contratávamos com base no talento e na música das pessoas. Depois, com a crise do petróleo, no final dos anos 1970, as gravadoras pararam de investir em gente nova, reduziram drasticamente o seu elenco de artistas, diminuíram os gastos na produção de um disco e começaram a lançar mão do jabá, comprando espaço nas rádios para tocarem as músicas, algo bastante questionável. Foi também um momento em que a presidência das gravadoras deixou de ser dirigida pelo pessoal da música, dando lugar aos controllers, com visão menos artística e mais administrativa e empresarial”, pontua Menescal. Para Célio Albuquerque, a riqueza da música brasileira de 1973 tem a ver com o contexto político, a maneira como as gravadoras viam o mercado, não se preocupando apenas em vender, mas em criar catálogos e apostar em inovações. “Era um período extremamente produtivo, de muita variedade de talentos e com a indústria de discos em franca ascensão, começando a faturar com trilhas de novela e sambas-enredo também”, complementa Marcelo Fróes. Ele assina com Célio um artigo relembrando a gravação do projeto Phono 73, um festival não competitivo que reuniu o elenco da Philips, em maio de 1973, no Centro de Convenções do Anhembi (SP), para apresentações históricas, como a de Gil e Chico Buarque, que tiveram os microfones desligados durante a música Cálice.
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INDICAÇÕES REPRODUÇÃO
PSICODÉLICO
WARPAINT Warpaint
As 10 faixas que compõem o álbum de estreia dos Boogarins reacenderam a atenção internacional para o cenário psicodélico do Brasil. As músicas da banda goiana têm um toque contemporâneo que não desconstrói, mas se soma ao som herdado dos anos 1960. A faixa Lucifernandes, que abre o disco e ganhou videoclipe em lançamento mundial pelo Stereogum, é a apresentação perfeita para um disco instigante e bastante adolescente – na melhor conotação possível da palavra.
As meninas californianas da banda Warpaint chamaram muita atenção após o lançamento do álbum de estreia The Fool, mas é apenas com seu homônimo segundo álbum que os elogios e apostas parecem justos. Faixas como Love is to die e Biggy mostram a pegada mais trip-hop dessa fase, com loops e acordes densos. O disco traz o quarteto se distanciado de seu primeiro trabalho, com um resultado mais expansivo (apesar de tranquilo e minimalista em vários pontos) e capaz de cativar novos públicos.
Other Music Recording
CURIOSIDADES
TUDO ACONTECEU EM 1973 - Elis Regina (acima) e Beth Carvalho vivenciaram um imbróglio em torno da música Folhas secas, de Nelson Cavaquinho. Entregue a Beth para gravar, a canção foi lançada primeiro por Elis, que soube da sua existência através do pianista César Mariano e pediu a música a Nelson. Beth não engole a história até hoje e prefere classificá-la como roubo. - Walter Franco (Ou não) e Caetano Veloso (Araçá azul) ficaram conhecidos por lançarem os mais anticomerciais álbuns. Ambos de 1973, tiveram vários de seus exemplares devolvidos nas lojas pela pouca aceitação do público, não acostumado com experimentalismos. - Milton Nascimento foi um dos notáveis sobreviventes da censura naquele ano. Milagre dos peixes foi alvo de severa censura, tendo as letras vetadas em oito das 11 faixas. Milton decidiu então gravar as músicas apenas modulando a voz para imprimir as emoções contidas nas letras vetadas, rendendo-lhe um dos discos mais célebres da sua carreira e da MPB. Milagre também manteve o crédito dos parceiros nas faixas censuradas e divulgou os nomes de todos que participaram das gravações –tornando-se o álbum com a ficha técnica mais detalhada da discografia brasileira até então. - Considerado um fenômeno, o grupo Secos & Molhados foi lançado em 1973. O LP vendeu 800 mil cópias, com várias das músicas do disco se tornando sucessos, estremecendo o trono do rei Roberto Carlos. O êxito do grupo foi coroado com um show no Maracanãzinho (RJ), com público de 25 mil pessoas, em 1974. - O primeiro LP de Gonzaguinha, de 1973, envolve um fato inusitado. Convidado para cantar no Programa Flávio Cavalcanti, , ele teve seu disco quebrado diante das câmeras pelo apresentador, acusando-o de terrorista e de estar prestando um desserviço à nação depois de cantar a música Comportamento geral. Uma semana depois do ocorrido, ele havia vendido 20 mil cópias. - Considerado um dos grandes da música cafona, Odair José sofreu com a censura. Seu hit de trabalho, a música Uma vida só, foi vetada pelo governo da época em função dos versos: “Pare de tomar a pílula/ Porque ela não deixa o nosso filho nascer/ Pare de tomar a pílula/ Porque ela não deixa sua barriga crescer”. Na época, a ditadura militar patrocinava a campanha nacional de controle de natalidade. - O experimental Prelude, gravado nos EUA por Eumir Deodato, ganhou o Grammy Latino de 1973. A sua versão de Also Sprach Zarathrusta, de Richard Strauss, tornou-se a faixa mais célebre e fez parte da trilha do filme Muito além do jardim (1979). O álbum chegou à marca das 5 milhões de cópias vendidas, rendendo ao disco um dos primeiros lugares no ranking da Billboard do mesmo ano. MR
DREAM POP
BOOGARINS As plantas que curam
POST-ROCK
Rough Trade Records
DOOM
MOGWAI Rave tapes
NECRONOMICON The queen of death
Na ativa desde 1995, a banda escocesa Mogwai é conhecida por suas melodias caóticas, bonitas e cheias de sentimento. Rave tapes, o oitavo disco da banda, mantém a tradição do barulho pós-rock, só que com uma textura mais pop – como se as experimentações da banda continuassem, mas partindo de elementos já bastante familiares ao público. Traços eletrônicos do krautrock permeiam o disco. Entre as faixas de destaque, estão Remurdered e No medicine for regret.
O álbum conceitual The queen of death é baseado num conto de Pedro Ivo Araújo, cantor multi-instrumentista da banda. Oriundo de Maceió, o trio doom com distorções psicodélicas conquistou o selo italiano Hydrophonic, mas disponibiliza o álbum também pelo bandcamp. A faixa de abertura Holy Planet Yamoth prepara para os destaques do disco: The assassins’s song e Dreaming of the old ones.
Rock Action Records
Hydrophonic Records
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DAVID RUANA/DIVULGAÇÃO
Palco
CONTEMPORÂNEO Teatro do mundo inteiro
1 GÓLGOTA PICNIC Espetáculo dirigido pelo argentino Rodrigo García aborda questões de fé e provocou polêmicas, sobretudo na França
Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, idealizada por Antonio Araujo e Guilherme Marques, leva 11 espetáculos para a capital paulista, além de atividades de reflexão e crítica TEXTO Pollyanna Diniz
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Os trabalhos do Teatro da Vertigem
são fundamentais na historiografia do teatro brasileiro contemporâneo. Desde 1992, quando estreou Paraíso perdido, as montagens dirigidas por Antonio Araújo investigam procedimentos teatrais e se debruçam sobre problemas e temáticas coerentes com o cotidiano de uma metrópole e do homem circunscrito nesse espaço. Já Guilherme Marques, produtor, gestor cultural e ator, é o idealizador e diretor-geral do Centro Internacional de Teatro Ecum (CIT-Ecum), um dos
espaços mais profícuos na atual cena paulistana. Inaugurado em 2013, o local abriga espetáculos e projetos que relacionam arte e pedagogia. Há alguns anos, Antonio Araújo e Guilherme Marques discutem o fato de São Paulo não possuir um festival internacional de teatro. Mesmo sendo destino de muitas produções estrangeiras, inclusive por conta do apoio e do trabalho de instituições como o Sesc, a cidade não contava com uma mostra específica. “As pessoas sempre me dão motivos para isso. Dizem que São Paulo é uma cidade desagregadora, grande, de deslocamento difícil. Não discordo desses argumentos, mas, para mim, não há justificativa”, avalia Antonio Araújo. “Nós tínhamos, até os anos 1990, os festivais promovidos por Ruth Escobar, e depois ninguém assumiu essa função”, comenta Guilherme Marques. A atriz e produtora cultural realizou o 1º Festival Internacional de Teatro em 1974, quando vieram ao Brasil trabalhos de nomes como Jerzy Grotowski (1933-1999), dramaturgo, diretor e teórico polonês; e Bob Wilson, diretor americano. O último foi em 1999, dedicado à cultura cigana. Nesse cenário, Araújo e Marques idealizaram a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, marcada para acontecer entre 8 e 16 de março. Tudo indica que será o evento de artes cênicas mais importante do ano no país, ao menos no que diz respeito ao teatro contemporâneo – mesmo que programações de relevância como a do festival Porto Alegre em Cena ainda não tenham sido divulgadas. A MITsp apresentará 11 espetáculos, todos inéditos na cidade. Apenas quatro deles – Sobre o conceito da face no filho de Deus, De repente fica tudo preto de gente, Eu não sou bonita e Gólgota picnic – já foram vistos noutros locais do Brasil. Nenhum esteve em Pernambuco. A mostra não está vinculada a nenhum tema específico. “Não queria esse formato porque muitas vezes o tema acaba virando uma camisa de força”, explica Araújo. Ao invés disso, eram a cena e o teatro contemporâneo que interessavam. “Preferi pensar uma curadoria em rede, procurando criar diálogos entre os diferentes
trabalhos. São questões e eixos que aparecem em algumas montagens. É uma curadoria polifônica”, avalia.
FÉ E CULPA
Os espetáculos Sobre o conceito da face no filho de Deus e Gólgota picnic, por exemplo, discutem questões ligadas à fé, mas de formas bastante distintas. O primeiro, da companhia italiana Societas Raffaello Sanzio, carrochefe da programação do Festival de Porto Alegre, no ano passado, traz para o palco uma reprodução da face de Cristo, obra renascentista criada pelo pintor italiano Antonello da Messina (1430-1479). Numa das cenas, crianças arremessam granadas de alumínio contra a imagem. Mas, segundo Paula de Renor, atriz e produtora do Janeiro de Grandes Espetáculos, é a figura de um pai que sofre de incontinência fecal que, realmente, causa o maior desconforto na plateia. “É um espetáculo muito forte, que trata da chamada ‘culpa cristã’. Com toda paciência do mundo, o filho limpa o pai, veste, arruma. Minutos depois, o pai está todo sujo novamente. O cheiro insuportável toma conta da plateia. O pai sofre por fazer o filho passar por aquilo e o filho sofre pelo pai, mas também por se sentir culpado de não aguentar aquela situação. Quantos de nós não passamos por isso?”, comenta a produtora, que viu o espetáculo concebido e dirigido por Romeo Castellucci durante o Festival Internacional de Buenos Aires. Já Gólgota picnic é uma montagem dirigida por Rodrigo García, argentino que vive na Espanha desde 1986, e tem um trabalho vinculado às artes visuais e à música. No caso de Gólgota, o cenário é composto por cerca de 25 mil pães de hambúrguer. O local de suplício de Cristo se transforma em espaço para piquenique e o elemento sagrado da ceia cristã, que simboliza o corpo de Cristo, está no palco, mas ali fazendo referência a ideias de consumo e mercantilização. A sinopse da peça também adianta que a ação inclui a “crucificação” de uma atriz. Tanto Sobre o conceito... quanto Gólgota foram alvo de polêmicas e insatisfações na Europa, especificamente na França. O site da BBC noticiou que protestos contra Gólgota estavam sendo planejados na cidade de Toulouse por fundamentalistas cristãos.
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CLAUS LEBFEVRE/DIVULGAÇÃO
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FREDERICO PEDROTTI/DIVULGAÇÃO
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Outros dois espetáculos, entre os quais podem ser traçados paralelos, são Ubu e a Comissão da verdade, da Handspring Puppet Company, da África do Sul, e Escola, do dramaturgo e diretor chileno Guillermo Calderón, reconhecido como um dos nomes mais expressivos do teatro latinoamericano. Ubu é uma releitura do texto de 1888, de Alfred Jarry, colocado em diálogo com o trabalho da Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul. Escola traz ao palco um grupo de militares de esquerda que recebe treinamento para resistir e derrubar Pinochet e a ditadura militar no Chile. “Tanto no apartheid quanto na ditadura militar estamos falando de perdas de direitos civis. De morte, de violência, de falta de liberdade. E claro que essas montagens também nos fazem lembrar a ditadura militar no Brasil, que está completando 50 anos agora em 2014”, avalia Antonio Araújo.
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SÉRGIO CADDAH/DIVULGAÇÃO
Se uma das críticas aos festivais espalhados pelo país é de que eles não fomentam a reflexão de maneira mais efetiva, mas apenas a circulação de espetáculos, a MITsp tem como um dos seus pilares justamente o pensamento e os diálogos construídos a partir do fazer teatral. Fernando Mencarelli, diretor e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, e Silvia Fernandes, dramaturga, professora do Departamento de Artes Cênicas da USP e uma das principais estudiosas do teatro contemporâneo no país, realizaram a curadoria de uma série de atividades intituladas Olhares críticos.
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CENOGRAFIA Espetáculo Sobre o conceito da face no filho de Deus usa pintura clássica de Antonello de Messina
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UBU E A COMISSÃO DA VERDADE Peça sul-africana é releitura de texto de 1888, de Alfred Jarry
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CORPO De repente fica tudo preto de gente, dirigido pelo coreógrafo brasileiro radicado na Europa, conta com a interação da plateia
Logo depois das sessões, por exemplo, pensadores e artistas, grande parte não diretamente ligados às artes cênicas, terão o desafio de criticar os espetáculos. O escritor e religioso Frei Betto vai tratar de Escola; já Vladimir Safatle, filósofo, professor e colunista trará suas impressões sobre Ubu e a Comissão da Verdade; a psicoterapeuta, professora e crítica Suely Rolnik comentará Eu não sou bonita, solo de Angelica Liddel; e assim por diante. Também fazem parte dessa série de ações textos escritos por um coletivo de críticos formado por profissionais de sites, blogs e revistas, que viram na internet a possibilidade da manutenção do espaço de reflexão sobre o teatro. Além de terem suas resenhas numa publicação idealizada pelo evento, os críticos participam de uma ação que envolve o Facebook, na tentativa de levar para a escritura a polifonia de sentidos que podem ser derivados de um espetáculo. “Talvez o grande mérito do MITsp não seja a circulação de espetáculos, mas o espaço de discussão, reflexão, pensamento. Tenho a impressão de que o pensamento crítico sobre teatro aqui, em São Paulo, perdeu espaço na mídia formal, mas está nas revistas de pós-graduação. Só que para um público muito especializado. Como ter ações que aproximem essa crítica do público? Queremos discutir questões como essa”, propõe Antonio Araújo.
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Performance
O MOVIMENTO DAS MASSAS O único representante do Brasil na programação é o espetáculo De repente fica tudo preto de gente, um trabalho que apresenta muitas intersecções com artistas estrangeiros. A concepção e a direção são de Marcelo Evelin, coreógrafo, pesquisador e intérprete piauiense que mora há 28 anos na Europa. A montagem reúne performers do Japão, da Holanda e do Brasil. “Fui encontrando essas pessoas por conta de viagens, das aulas que ministro. Alguns, nunca tinha visto. Então havia uma estranheza, além da questão da língua”, explica Marcelo Evelin, que estava em Amsterdã quando conversou com a Continente. Os artistas se falavam basicamente em inglês. Mas a linguagem mais importante era a sensorial, a prática dos corpos. De repente fica tudo preto de gente, que foi visto em Teresina, no Rio de Janeiro e em Santos, e passou pelo Japão, Inglaterra, Holanda e Bélgica, foi idealizado depois que Marcelo Evelin entrou em contato com Massa e poder (1960), livro de Elias Canetti. “Estive em Tóquio e fiquei impressionado com aquela massa gigante, aquele número de pessoas atravessando as vias sem ao menos se tocar”, relembra. A partir daí, Evelin decidiu questionar em cena o que pode acontecer quando as massas se juntam e, além disso, as razões e consequências do medo que temos do outro. A ação cênica se desenvolve dentro de um ringue, sem palavras. Os performers estão cobertos por uma mistura de óleo de cozinha e carvão. Os espectadores têm a liberdade de interagir, ou não, com os artistas; e a movimentação das pessoas determina em muito a iluminação do espetáculo, criando penumbras ou abrindo feixes de luz no espaço. “A reação no Japão, por exemplo, me surpreendeu. As pessoas entraram na performance, se abraçaram, se beijaram na boca. Aqui, no Brasil, especificamente em Santos, a reação foi muito retraída. É difícil julgar esse comportamento da plateia e nem é nossa intenção. O público tem total liberdade para só assistir. Mas é uma experiência sensorial”, explica Evelin. O coreógrafo já está mergulhado no próximo trabalho, que discutirá questões como massa e singularidades, o desaparecimento dos corpos e das identidades – contará com 50 pessoas em cena. POLLYANA DINIZ
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LARYSSA MOURA/DIVULGAÇÃO
Como a Lua De 15/03 a 12/04 Teatro Barreto Júnior, Sáb-Dom, às 16h
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INFANTIL Como a Lua discute morte e nascimento
O diretor José Manoel Sobrinho propõe outro olhar para o espetáculo, com texto de Vladimir Capella, um dos principais dramaturgos do gênero no Brasil
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Em 1984, ano em que o povo brasileiro
foi às ruas pedir eleições diretas para presidente da República, a peça Como a Lua, com direção de José Manoel Sobrinho e música de João Falcão, estreava na capital pernambucana. Até 1989, a montagem voltada para crianças e adolescentes circulou por vários estados. No ano seguinte, ganhou novo elenco, mas a encenação foi mantida tal e qual a anterior. Agora, passadas três décadas da estreia, José Manoel Sobrinho volta a se debruçar sobre o texto de Vladimir Capella, um dos principais dramaturgos para infância e juventude no Brasil. “O convite foi do produtor Carlos Lira que, à época, interpretou o personagem principal, o índio Payá. Aceitei, mas ponderei algumas questões. A primeira delas é que ele não esperasse elementos que o remetessem ao trabalho anterior”, explicou o diretor. O discurso de que não haverá pontos de convergência entre as duas montagens é radical; serve muito mais, na realidade, como um desafio proposto a si mesmo pelo encenador. De que forma abordar temas, como nascimento e morte, que parecem chegar com muito mais rapidez ao universo infantil, pensando numa realidade que inclui televisão, internet e tablets para acalmar as crianças e dar sossego aos pais? “O que importa é que essas perguntas sobre nascimento continuam sendo feitas pelas crianças. Como estamos respondendo? Para algumas delas, como a morte, nem temos respostas suficientes”, comenta. O enredo da montagem traz o índio Payá apaixonado por Colom. A indiazinha, no entanto, parece não corresponder ao sentimento; ela espera por alguém que saiba pescar, caçar. Payá consegue apenas diverti-la com suas brincadeiras. Não é o bastante para Colom. Rudá, deus do amor, decide então adormecer Payá por 100 anos, para que ele esqueça a garota. Essa narrativa é entremeada por outra, com um grupo de crianças da cidade, que brinca de salada mista, conversa sobre mentiras e encara a morte. Estão no elenco Sandra Rino, Luiz Veloso, Pascoal Filizola, Tiago Gondim, Geysa Barlavento, Kamila Souza, Samuel Lira e Marinho Falcão. A iluminação é de Luciana Raposo. A direção de arte ficou por conta de Claudio Lira e a
produção é de Carlos Lira e Elias Vilar. A música de João Falcão continua sendo um dos principais meios de trazer o espectador para junto da encenação. Na primeira versão, a execução não era ao vivo. Mas a peça podia se gabar de ter sua trilha gravada por Walmir Chagas, Antúlio e Antero Madureira, que formavam o Trio Romançal Brasileiro, além do maestro Egildo Vieira no sopro. Agora, novos arranjos foram feitos, sob direção de Samuel Lira. Os próprios atores tocam as músicas utilizando diversos instrumentos, como o violão, a flauta e o teclado. Além das canções de Falcão, estão na peça duas composições do diretor André Filho, da Companhia Fiandeiros de Teatro. Uma delas também tem autoria de
A história de amor do índio Payá e da índia Colom é entremeada por outra, sobre um grupo de crianças da cidade Alan Sales e estava na peça O menino do dedo verde; a outra entrou em Cantigas ao Pequeno Príncipe, duas montagens que tiveram direção de José Manoel.
AFETIVIDADES E MEMÓRIA
Se, no teatro contemporâneo, as vivências dos atores se tornaram fundamentais ao processo colaborativo de construção da dramaturgia e da encenação, na nova versão de Como a Lua, que conta com o patrocínio do Funcultura, esse era um dos caminhos pelos quais o diretor desejava enveredar. Experiências dos próprios intérpretes também são levadas à cena, mesmo que, no resultado final, seja bastante difícil – e nem seria essa a intenção – fazer aproximações entre ficção e vida real. “Queria trabalhar a memória, como esse lugar em que todas as histórias estão contidas. A memória que se mostra, neste tempo, tão instável, tão mutante. O que é nossa memória hoje?”, questiona. A encenação também foi alinhavada a partir das improvisações com o elenco durante os ensaios. Alguns dos atores já haviam trabalhado com o diretor. Sandra
Rino, por exemplo, estava em Cantigas ao Pequeno Príncipe e Opereta de cordel; Samuel Lira fez O cavalinho azul; Geysa Barlavento, Opereta de cordel; e Tiago Gondim foi dirigido por José Manoel na leitura dramática de O amor do não, texto de Fauzi Arap. Alguns deles também passaram pelo Sesc, instituição à qual o diretor é vinculado há 37 anos. Atualmente, ele ocupa o cargo de gerente de cultura do Sesc Pernambuco. “Vivo um momento de me repensar como encenador”, avalia José Manoel. Assim como vários outros nomes ligados ao teatro e às artes em geral, o acúmulo de gestão e criação se mostra um binômio complicante. “Fico horas soterrado de papel. É difícil se desvencilhar dessa realidade para chegar ao teatro. A atividade de criação também é exaustiva e requer tempo”, explica. Mesmo assim, com mais de 100 espetáculos no currículo, José Manoel não estava há muito tempo longe das encenações. Em 2012, dirigiu a leitura de O amor do não; em 2011 assinou a peça Circo de pano de roda lona estrelada, boca calada, montagem da Cia. 2 Em Cena de Teatro, Circo e Dança. Por coincidência, a última remontagem que fez foi exatamente de um texto de Vladimir Capella: Avoar. Do dramaturgo paulista, aliás, José Manoel já assinou diversos espetáculos. Além de Avoar e Como a Lua, dirigiu Com panos e lendas, Píramo e Tisbe e O dia de Alan. “Quando disse ao Capella que iria fazer novamente Como a Lua, ele ficou preocupado. Principalmente que o texto, escrito em 1981, fosse encarado como velho. Isso, na minha visão, vai depender da abordagem. As temáticas continuam fazendo sentido”, avalia. Logo que escreveu, o próprio dramaturgo também montou Como a Lua. O papel principal era de Marcos Frota e a peça ganhou vários prêmios, como o APCA de melhor espetáculo, autor e ator, e o então prêmio Molière para Marcos Frota. “Marcos Frota viu a primeira versão e comentou como era diferente. E assim será agora também. Tenho recebido muitas mensagens de pessoas que dizem o quanto essa montagem marcou época e como querem revê-la. Não será bem assim. As pessoas verão um novo espetáculo em cena”, ressalva. POLLYANNA DINIZ
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PRODUTORA Três realizadores na Trincheira Há 10 anos, Leonardo Lacca, Marcelo Lordello e Tião criavam o próprio espaço para discutir e fazer cinema TEXTO Priscilla Campos
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Numa noite de 1990, ia ao ar, nos Estados Unidos, o segundo episódio de Twin Peaks, série televisiva assinada por David Lynch e Mark Frost. Nele, o agente Dale Cooper, interpretado por Kyle MacLachlan, protagonizou uma das clássicas cenas lynchianas: enquanto tomava seu café em uma lanchonete e dialogava com a garçonete, o policial do FBI cunhou a frase: “This is a damn fine cup of coffee!”. Entre as abstrações de um processo criativo, está o momento primeiro de qualquer ideia: tudo o que aconteceu antes, pode, de alguma forma, ser o propulsor do que vem depois. A ligação ainda não reconhecida que determinada obra vai estabelecer, no futuro,
para outras criações, traz consigo certa beleza às vezes esquecida. Em 2003, na década posterior à maioria das produções dirigidas por Lynch, alguns jovens pernambucanos escolheram um apartamento no Bairro da Torre, zona norte do Recife, para realizar encontros em que os objetivos eram assistir a filmes, escrever e tomar café. Na lista: Estrada perdida, Cidade dos sonhos, Eraserhead, de Lynch, além de Adaptação e Quero ser John Malkovich, de Spike Jonze. Ali surgiam os primeiros contornos da Trincheira Filmes, produtora formada pelos cineastas Leonardo Lacca, Marcelo Lordello e Tião, que completa 10 anos no auge de sua produção cinematográfica e
que trazia, ali no inconsciente, as influências do “maldito” Lynch. Na iminência de lançar três longametragens, Permanência, Animal político e Seu Cavalcanti; um curta-metragem, Sem coração; um DVD com curtas e material exclusivo em comemoração ao aniversário; além da estreia comercial de Eles voltam, primeiro filme da produtora que entra em distribuição nacional; a Trincheira parece, enfim, consolidarse como voz coletiva sólida no cenário do audiovisual pernambucano. “É uma força mútua”, afirma Lordello sobre o cinema realizado pelo trio. Uma definição que se torna palpável quando os três estão juntos, apesar das piadas e brincadeiras – que só eles entendem e acham graça – entre si.
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1 ELES VOLTAM Maria Luíza Tavares protagoniza primeiro filme do coletivo lançado nacionalmente
“Eu acho que a produtora só sobrevive por uma questão de transformar isso em algo familiar, a gente não é só amigo. Para mim, a Trincheira é uma base segura. Acontece entre a gente um processo de contribuição artística e de conhecimento pessoal, íntimo, aprofundado, no sentido extra-filme. Talvez, uma vontade de estender essa condição nossa para o ‘fazer cinema’ entre amigos. É muito difícil, nem todos os filmes necessariamente vão ser feitos por todos juntos, mas a gente tem essa vontade de ficar confortável”, explica Lacca. “Isso tudo está relacionado com aquela pergunta ‘o que faz você sair de casa para fazer um filme?’ É muito esforço, você tem que se sentir bem”, conclui Tião.
A Trincheira integra geração de realizadores que se beneficia com as facilidades do fazer cinematográfico atual A relação de amizade e cumplicidade parece, de fato, ser levada ao set. O paraguaio Pablo Lamar, diretor e engenheiro de som, trabalhou em Permanência e Animal político. Ele conta que sua experiência com uma equipe pequena fez com que o ambiente de filmagem fosse mais tranquilo. “Dessa forma,
existe uma troca entre as pessoas. A Trincheira mantém esse clima de parceria, mesmo quando o tempo para a gravação é mais curto”, afirma. Porém, segundo Pablo, do ponto de vista estético, não existe uma homogeneidade entre as produções. Isso pode ser apontado como uma das qualidades do grupo. “Eu não consigo achar um denominador comum estético entre os filmes. Isso é muito bom, pois, quando tudo começa a ficar parecido, fica também esgotado. Acho que a produção atual de Pernambuco vem conseguindo se diferenciar entre si, embora exista um grito comum contra a verticalização indiscriminada da cidade, por exemplo, há também diferentes propostas estéticas e de temas. Na Trincheira, observo que um mesmo diretor tem filmes variados entre si, desde uma procura mais experimental até propostas mais convencionais. Esse tipo de liberdade é o que renova o cinema”, afirma Pablo. Já o professor de Cinema e Televisão da Universidade Católica de Pernambuco, Cláudio Bezerra, observa certa unidade temática e de proposta estética no trabalho do trio. “Muro, Décimo segundo, Eles voltam são filmes que apostam na indeterminação, uma espécie de cinema de não ditos, ou ditos pelo silêncio, pelo cansaço, pela espera. A meu ver, são filmes que apresentam os impasses das relações humanas, sobretudo dos jovens, das dificuldades de eles se colocarem no mundo, de estabeleceram relações”, explica. Apesar do início oficial do coletivo ter acontecido com o curta-metragem Ventilador, parceria entre Leonardo e Tião, exibido no Cine-PE em 2004, é em Einsenstein, com direção e roteiro conjunto entre Lacca, Tião e o designer Raul Luna, que o método de criação e as referências do grupo
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MARCELA WERNICKE/DIVULGAÇÃO
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PERMANÊNCIA
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PRODUÇÃO
Filme foi um dos 10 longas escolhidos por programa Encontros com o Cinema Brasileiro, da Ancine Pôsteres dos filmes realizados pela Trincheira
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se distinguiram. “A gente sempre falou que Eisenstein era nossa faculdade, é impressionante a importância dele na nossa formação, não só a técnica, mas como tudo estava lá: de quem a gente é até hoje”, reflete Tião. Depois de quase três anos escrevendo, filmando e montando o curta, eles organizaram uma cabine de imprensa no Cinema da Fundação. “A gente queria que ele fosse visto e analisado”, conta. Para Raul, era uma forma completamente livre de fazer cinema. “Mesmo realizando vídeos e ideias mais experimentais, sempre foi muito claro que a Trincheira é o lugar do cinema, o lugar da narrativa mais robusta e mais clássica até. Tentávamos trabalhar a metalinguagem, como botar o filme dentro do filme e problematizar a
questão do cinema, como em Einsenstein. Acho que esse tipo de proposta, que vem também do cinema de subversão, continua até hoje.” Para a professora do PPGCOM da Universidade Federal de Pernambuco, Angela Prysthon, os filmes da Trincheira estão relacionados de maneira muito forte com o gênero da poética do banal. “As obras condizem com uma tendência geral do cinema contemporâneo – cinema do fluxo, do minimalismo expressivo. Acho que eles (principalmente Lordello e Lacca) vêm adensando as preocupações com os detalhes do cotidiano, com os tempos estendidos e alongados do real e com as minúcias das pessoas comuns”, explica. De acordo com Prysthon, as produções do grupo aparecem, junto com outros filmes da ‘nova safra’ do estado, como uma espécie de reação ao barroquismo e ao excesso da geração Baile Perfumado. “Os filmes da Trincheira são importantes dentro desse movimento de adesão ao cinema mundial contemporâneo que aconteceu aqui em Pernambuco. Eles romperam não somente com certos tiques do cinema regionalista, mas também consolidaram a nossa ‘indústria cinematográfica’ – que alguns chamam de “cinema de garagem” – um cinema
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INDICAÇÕES artesanal, reflexivo, que outros dizem ser pósindustrial”, pontua. Em contraponto a essa afirmação, Lordello pondera: “A gente não se considera uma reação. É tudo natural. Era uma época diferente, eles tinham outro tipo de vínculo com a cultura regional. Temos outra forma de existir, um jeito mais ‘ameno’”. Para Lacca, existe uma diferença importante na maneira de filmar. Ele lembra também da presença, antes temida, do digital. “A geração anterior negou isso, talvez eles vissem o vídeo como uma ameaça. Acompanhamos essa transição (de película para projeção digital). Acho que nós somos um pouco mais bem resolvidos com as possibilidades de filmar”, observa. “Na verdade, eles lutaram muito para fazer filmes e era tudo muito caro. Os filmes também soavam isso, essa luta, era como uma celebração”, aponta Tião. O diálogo presente entre a geração dos anos 1980 e produtoras como Trincheira, Simío e Cinemascópio parece não se estender aos mais jovens. “Eu ainda não vejo surgindo uma geração nova. É como se estivéssemos sem um equivalente para dialogar no momento, porque o fluxo de ideias está indo para outros meios, não para o cinema.” afirma Lacca. “Acho que o pessoal, às vezes, não espera o momento ideal e sai fazendo qualquer coisa. A gente era doido por cinema e artes em geral, estava sempre produzindo, criando um elo, encontrando apoio um no outro. E quebrando a cara
também, trabalhando muito para entender o quanto é difícil”, completa Lordello. No que diz respeito à sua produção recente, a Trincheira está trabalhando em três filmes. Dirigido e escrito por Leonardo Lacca, Permanência foi um dos 10 longa-metragens escolhidos pelo programa Encontros com o cinema brasileiro, organizado pela Ancine e direcionado para a seleção oficial e a Quinzena de Realizadores do Festival de Cannes 2014. O filme, projeto que teve como “manifestação precoce”, segundo Lacca, o curta Décimo segundo, conta a história de um fotógrafo pernambucano que vai expor seu trabalho em São Paulo e reencontra um amor antigo. Filmada na capital paulista, e com um elenco de caras novas para os espectadores pernambucanos, a produção mostra-se leve e sóbria diante da temática política e analítica preponderante nos filmes feitos no estado. Ainda no primeiro semestre, Lacca deve lançar também Seu Cavalcanti, ficçãodocumentário que relata a vida de seu avô. Outra estreia aguardada para os próximos meses é a de Animal político. Assinado por Tião, o filme narra a vida de uma vaca – vivida, de fato, por um mamífero quadrúpede – que passa por conflitos pessoais e sai em busca de uma jornada espiritual. Questionado sobre a sua vertente nonsense e chocante, do ponto de vista imagético, presente também em Muro, Tião afirma que, para ele, o seu cinema é, antes de tudo, intervenção e lugar de encontro para várias ideias.
TERROR
DRAMA
Dirigido por Marco Dutra Com Marat Descartes, Antônio Fagundes, Sandy Leah Vitrine Filmes
Dirigido por Spike Jonze Com Joaquin Phoenix, Amy Adams, Scarlett Johansson Sony Pictures
QUANDO EU ERA VIVO
ELA
Com roteiro adaptado de A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli, o segundo longa de Marco Dutra renova o gênero do terror no Brasil. As preocupações de Júnior (Descartes), que está desempregado e volta a morar com o pai após sua separação, são apenas a superfície dessa história cheia de terror no melhor estilo Hitchcock. Dutra dirigiu também o suspense Trabalhar cansa.
As relações quase interpessoais entre o homem e os mecanismos eletrônicos (smarthphones, notebooks, tablets) é um dos pontos discutidos no filme. Spike Jonze aprofunda a reflexão desde do momento em que o protagonista cria um sistema com inteligência artificial e, aos poucos, constrói uma ligação afetiva com aquela voz sem corpo. Além de diálogos líricos bem desenvolvidos, trilha sonora, figurino e fotografia complementam certeiramente a narrativa.
COMÉDIA
DOCUMENTÁRIO
Dirigido por Alexander Payne Com Bruce Dern, Will Forte, June Squibb Sony Pictures
Dirigido por Joshua Oppenheimer Com Anwar Congo, Herman Koto, Syamsul Arifin Independente
NEBRASKA
Em ótima atuação, Bruce Dern interpreta Woody Grant, idoso que acredita ter ganho um prêmio de US$ 1 milhão. Junto com seu filho mais novo, ele inicia uma road trip até Lincoln (Nebraska), para pegar a quantia. Melancólico e cômico, o caminho até a recompensa leva Woody a reencontrar sua família e seu passado, ao som da trilha sonora intimista assinada por Mark Orton. Com um elenco inspirado, o filme, em preto e branco, deixa no espectador uma sensação de vazio.
O ATO DE MATAR
Joshua leva o espectador para uma realidade arrasadora: a Indonésia pós-massacre anticomunista, ainda dominada pelo terror dos milicianos. Convidados pelo diretor, membros do governo de Suharto são instruídos a encenar as mortes que provocaram de maneira hiper-realista. Um dos maiores assassinos do país, Anwar Congo não esconde seu orgulho e demonstra com afinco os instrumentos e golpes que utilizava. As cenas são de doer o estômago.
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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
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A CONSCIÊNCIA DO ERRO
A história de Édipo, todos
conhecem. Talvez seja a obra teatral mais perfeita entre as escritas por Sófocles. Há quem a compare a um drama policial moderno, pela maneira como se investiga a morte do rei Laio de Tebas. Partindo desse mito fundador da cultura ocidental, em que o filho assassina o próprio pai e casa com a mãe – gerando nela quatro filhos –, Freud criou as bases de sua psicanálise, generalizando que toda criança deseja sexualmente a mãe e é um potencial assassino do pai. As neuroses surgiriam na infância, desse triângulo amoroso malresolvido. Acabo de praticar o que chamam de psicanálise selvagem, tentando resumir em poucas linhas os fundamentos do complexo edípico, coisa que custou uma vida a Freud, entre cachimbadas e sessões de divã com pacientes histéricas.
Édipo Rei é também a peça que melhor ilustra os fundamentos da tragédia. Os gregos acreditavam que vez por outra a ordem do mundo, que eles chamavam cosmos, era ferida por algum crime e dava-se início ao caos. Tornavam-se necessárias a expiação do crime e a consciência do ato praticado, para que o cosmos se restabelecesse. O oráculo do deus Apolo, em Delfos, previra que, se Laio e sua esposa Jocasta tivessem um filho, o rei seria morto pelas mãos dele. Temendo a profecia, o rei se afasta da esposa. Porém, não resistindo ao desejo, procura-a e gera uma criança. Quando o menino nasce, Laio e Jocasta mandam perfurar seus pés e abandonálo, no monte Citéron. O pastor encarregado de executar o crime se compadece e entrega o menino a outro pastor, que o leva aos reis de Corinto, que não possuíam herdeiro.
Édipo sente-se amado pelos pais adotivos e vive feliz até o dia em que escuta de um intrigante que não é filho legítimo dos monarcas. O rei e a rainha negam a intriga, mas a dúvida se apossa de Édipo. Ele viaja a Delfos e consulta o oráculo, o mesmo que Laio consultara. A sentença proferida não poderia ser mais terrível: “Você há de matar seu próprio pai, casar-se com sua mãe e deixar uma descendência vergonhosa”. Édipo não ousa retornar à sua casa, temendo que o oráculo se realizasse com os pais que ele supunha verdadeiros. Decide fugir e toma o caminho da Beócia. Numa encruzilhada, encontra um carro com um velho desconhecido, acompanhado de mensageiro, condutor e dois servos. Era o rei Laio, que viajava sem nenhuma pompa a Delfos. O condutor agride Édipo e este revida: mata Laio e mais três pessoas do cortejo. Apenas um homem consegue escapar e foge.
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KARINA FREITAS
Chegando à Tebas, enlutada pela morte do rei, onde uma esfinge se instalara matando as pessoas que não resolviam seus enigmas, Édipo se aventura ao prêmio oferecido por Creonte, irmão da rainha: casar com Jocasta e ganhar o reino, caso derrotasse o monstro alado. Édipo decifra a esfinge, casa com a mãe, tem quatro filhos, cumprindo seu destino. Anos depois, Tebas sofre uma epidemia e longa estiagem. O oráculo diz que é necessário banir de Tebas o responsável por um crime monstruoso. Como num inquérito policial, investiga-se e descobrese que o criminoso é o próprio rei. A rainha não suporta a revelação e se enforca. Édipo fura os olhos e perambula como mendigo, na companhia da filha Antígona. No final da vida, busca exílio em Colona e chega ao santuário das Eumênides, onde, depois de mais dramas e
Nas novelas da TV brasileira, o modelo da tragédia foi abandonado, por conta, talvez, de uma nova moral sofrimentos, encontra um merecido sossego, descendo ao reino dos Ínferos. Expia-se o crime e o cosmos se restabelece. Na verdade, uma ordem aparente, se considerarmos todas as tragédias posteriores. Mas interessa à interpretação do conceito de tragédia que assim seja e não serei eu a negar tais postulados. Ordem – desordem – ordem ou cosmos – caos – cosmos compõem, nesta sucessão, a trilogia de acontecimentos da tragédia. É o modelo das peças de Ésquilo
e Sófocles, e seria também de Eurípides se ele não questionasse a autoridade do destino, introduzindo a psicologia nos seus dramas, o que é estranho ao mundo trágico. Somente pela consciência do ato que feriu a ordem do mundo, e através de sua expiação, a ordem será restabelecida. Esse modelo serviu a Dostoievski no romance Crime e castigo. O pobre estudante Raskólnikov decide roubar duas mulheres idosas e durante a ação termina por assassiná-las. Apegado ao discurso de que Napoleão Bonaparte levara milhares de pessoas à morte sem causa justa e sem sofrer punição, o rapaz considera seu crime insignificante, justificável pela necessidade de amenizar a pobreza. Por mais racionalista e embasado na lógica, Raskólnikov não sossega e vive cheio de remorso. Ele conhece Sônia, uma jovem que se prostitui para ajudar a família. Raskólnikov decide confessar o crime a Sônia e termina ajoelhado aos seus pés, revelando que se curva diante do grande sofrimento humano. Sônia o convence a entregar-se à justiça e ele é condenado à Sibéria. O romance segue o modelo clássico da tragédia: o homem comete o crime, reconhece o ato, sofre o castigo e se apazigua pela consciência do erro. Na dramaturgia das novelas brasileiras para a TV, o modelo da tragédia foi abandonado, por conta, talvez, de uma nova moral. Os crimes não são castigados, os criminosos não sofrem remorso, ninguém busca a consciência e a expiação do seu delito. Na novela Amor à vida, uma personagem confessa um crime e fica impune. Outro é beneficiado com um final feliz, depois de cometer horrores. O autor distribui benesses arbitrariamente, sem qualquer julgamento ético. Talvez isso reflita uma sociedade de personalidades psicopatas, sem registro afetivo, e um país onde dificilmente os crimes são julgados e punidos. Se não há justiça humana nesta vida, nem um Deus que condene ao inferno noutra vida, para que percorrer o duro caminho da consciência e expiação? Os olhos de Deus foram trocados pelas câmeras do Big Brother, que só premiam a hediondez.
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Leitura
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POESIA Miró, enfim, num livro que fica de pé
Compilação reúne 178 poemas que exibem o humor, a sensibilidade e a contundência da obra do Poeta da Muribeca, publicado antes em 11 livretos TEXTO André Telles do Rosário
“Vai aqui um simples passeio/ Um bicicletar/ Um piscar de olhos/ Um entra e sai de becos e bares/ Desse mundo bêbado/ Um copo ali de lirismo/ Outro aqui de veneno/ Mortos e vivos/ Nesse passeio de mãos dadas/ Deus de bicicleta/ E vocês no bagageiro/ Podem ir/ Bom passeio” (primeiro poema de Quase crônico, de 2010). Quem conhece Miró, mais de perto, deve lembrar-se de tê-lo ouvido, em alguma conversa, dizendo que nunca havia publicado um “livro que ficasse de pé”. Pois bem, desde o fim do ano passado, o camelô da poesia já não pode mais repetir tal fala. Miró até agora é o “primeiro livro” – propriamente dito, com lombada e tudo o mais – de João Flávio Cordeiro, o Miró da Muribeca. São 220 páginas, reunindo 178 poemas de 11 obras, publicadas entre 1985 e 2012. Posta em ordem cronológica inversa, a antologia acaba formando uma obra nova, a partir das antigas – um delicioso percurso de leitura, em que o humor, a sensibilidade e a contundência, suas marcas registradas, vão dando conta de um mundo como só Miró é capaz de perceber e traduzir. O livro foi publicado pela Interpoética, a editora do maior site de poesia pernambucana na internet (www.interpoetica. com), e a edição foi capitaneada por Sennor Ramos, através de projeto aprovado no Funcultura.
Além da iniciativa e da poesia de Miró, o prefácio de Wilson Freire é outro dos pontos fortes do projeto editorial, traçando os momentos mais significativos da vida (e da luta por viver) do poeta, desde sua infância na favela onde hoje se encontra o Hospital Oswaldo Cruz, ao lado do cemitério de Santo Amaro, até a dolorosa partida de sua mãe, dona Joaquina, há dois anos. “Providências da vida: Olho pra mim/ torno a olhar,/ a morte toca/ em meu ombro direito./ Rapidamente/ guardo todos os meus segredos/ no bolso esquerdo da calça/ no direito/ alguns cruzeiros/ e pra não morrer/ feio/ beijo o espelho” (de Quem descobriu o azul anil?, 1985). Miró até agora parte de um título que revela sua própria transitoriedade. Como quem sempre lutou contra a loteria da morte dos poetas marginais do Recife (o que o prefácio de Wilson Freire deixa claro), Miró segue vivo. Este “até agora” começa dizendo isso do livro – que não se pretende um trabalho definitivo. O poeta, além do fato de estar vivo, produzindo, principalmente sua poesia está e é, por condição, viva. E ela nunca foi tão querida quanto o é hoje. Tanto no Recife, como em São Paulo, suas principais bases afetivas e editoriais, mas além delas, pela internet, sua poesia é admirada e repercute mais, ano após ano. “Até agora”, então, porque Miró continua criando. Criando poemas novos, e recriando sua poesia já
publicada, sempre que recita algum poema antigo. Continuamente viva e nascente, sua voz é que amarra o encanto de suas crônicas em seus espectadores. A poesia de Miró continua nascendo toda vez que ele se apresenta e mais alguém se admira. É ali que está sua maior potência. Quem já o viu performar sabe da força desse encontro. E todos seus livretos, cartões, panfletos e camisetas, ou seja, as versões impressas para venda durante sua vida, também foram e são performáticos a seu modo, com imagens, fontes e tamanhos diferentes, tentando traduzir a corporalidade da sua poesia. “Eu juro que vi./ Era quase detardezinha./ Esquina da Rua da Aurora,/ de quina com o São Luís./ Não foi filme não. Eu juro que eu vi./ Aconteceu a dez passos de mim./ Ali, na lata!/ Cacos de vidro pra tudo que é lado,/ difícil dizer quantos eram./ Não foi delírio febril./ Eu juro que eu vi./ Pensei ser um sonho,/ porra nenhuma./ Real como um tijolo./ Corra meu filho./ Nem perguntei,/ corri./ Até hoje não sei/ o que de fato aconteceu.” (Ilusão de ética, 1995).
FORÇA DA POESIA
Por outro lado, o livro acabou “aplainando” a performaticidade impressa de Miró. Movimento meio inevitável, que afastou sua poesia da cultura de impressos de baixo custo que tem lhe dado forma. O
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Leitura resultado proporciona a leitura linear de uma “artevida” fragmentária. E surpreende perceber que é muito bela, igualmente desse ponto de vista. Uma compilação de obras que se tornou uma nova, em novo meio. E que oferece para leitura uma atenção especial ao texto, mais que à página ou ao impresso (ou ao corpo). Pode-se até dizer que é um livro que acredita mais na força da poesia de Miró, mesmo impressa, por dispensar explicativos. E crê, principalmente, na força de sua presença. Tanto aquela presença que está incorporada ao texto de suas criações, quanto aquela que as vende e ventila pelo mundo, já que é através da interação com o poeta que sua poesia é comunicada. Dessa forma, o contexto em que se obtém o livro acaba servindo de prólogo à obra. Na verdade, no caso de Miró, a presença do poeta é o que motiva a venda do livro. É sempre através do contato com o poeta que se consegue sua mais recente publicação. “Outras ostras:/ Lá vai Recife/ Num mais um fim de tarde/ As águas do Capibaribe cor de sangue/ Nos ombros dos negros/ que moram nos Coelhos/ Unhas na lama e a classe média/ comendo ostras/ de frente ao Acaiaca” (Onde estará Norma?, 2006).
Esta compilação da poética de Miró permite observarmos as mudanças ocorridas em sua lírica-crônica A pesquisa trouxe a maior parte da sua obra, mas deixou vazios. Além da ausência de poemas, de livretos diversos, que não foram incluídos, existem algumas poucas imprecisões, segundo a dissertação de mestrado Corpoeticidade, Poeta Miró e sua literatura performática, o principal estudo sobre sua obra, defendida na UFPE em 2007 (disponível em: http://www.pgletras.com.br/2007/ dissertacoes/diss-andre-teles.pdf). O livreto São Paulo eu te amo mesmo andando de ônibus, de 2000, não está citado. É uma obra importante, a mais performática de suas publicações, a primeira feita e inicialmente impressa em São Paulo, e que sustentou financeiramente sua permanência na capital paulista por um bom tempo. Quebra à direita, segue a esquerda e vai em frente é de 1999, e não de 2000 (foi lançada em 7 agosto de 1999, no Bar do Microfone, no
Mercado de São José, com show do Cordel do Fogo Encantado – e logo depois em Fortaleza). O Ilusão de ética, que aparece como publicado em 1987, é de 1995, com segunda edição na capital do Ceará, em 1998. E o zine Flagrante deleito é de 1998, e não de 1990. Corrigidos na sua perspectiva histórica, esses dados são detalhes que não ofuscam o mais fundamental em Miró até agora: o poder de passar uma visão panorâmica de sua poesia. Ponto de vista para observar as mudanças que aconteceram com sua lírica-crônica. E capaz também de mostrar a obra do poeta em todos os seus temas, estilos e humores. Miró é uma figura única no universo da poesia. Ele trouxe para ela muita dose de corpo, de humor, de prazer. E também uma perspectiva renovadora, na mirada sobre a sociedade e no uso da língua e da interação pessoal. Para quem o ouviu recitar, durante a leitura os versos têm som, os refrões não saem do ouvido e da lembrança. Miró até agora traz o registro, a pauta, por assim dizer, dessa arte. Mas uma pauta que ultrapassou sua condição e vale por si, com vida independente da apresentação de seu criador. Como são os livros, afinal.
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JEFF BEZOS O dono da Amazon Sai nos Estados Unidos a biografia do ex-operador de mercado financeiro que criou, em 1994, a empresa hoje líder no comércio eletrônico de livros TEXTO Renato Lima, de Cambridge, Massachusetts
Em 2004, o presidente e fundador da
Amazon, Jeff Bezos, confiou a um dos seus executivos mais próximos a missão de criar uma plataforma para leitura de livros digitais. Alguns poucos aparelhos já existiam, mas o mercado era totalmente incipiente e raríssimos livros eram lançados no formato eletrônico. Ainda assim, quando o executivo Steve Kessel perguntou qual o prazo que teria, Bezos lhe respondeu: “Você está basicamente atrasado”. Pressa e inovação são características definidoras da Amazon, essa gigante do comércio digital, que desde 2013 também opera no Brasil. De uma empresa que começou na garagem do seu fundador, em 1994, até a multinacional que vende milhares
de produtos e serviços com um faturamento superior a US$ 60 bilhões, a Amazon se reinventou diversas vezes. Comprou e vendeu empresas, registrou patentes, lançou serviços em áreas como computação nas nuvens e trabalhos descentralizados, e revolucionou a forma como livros são vendidos, publicados e lidos. A despeito da sua onipresença no mercado digital, só agora uma publicação narra a história da Amazon, do seu começo heroico até o gigantismo ameaçador. Essa saga comercial é contada pelo jornalista de negócios Brad Stone em The everything store: Jeff Bezos and the age of Amazon (A loja de tudo: Jeff Bezos e a era da Amazon, em tradução livre), ainda sem lançamento no Brasil,
mas facilmente disponível para leitura através de um clique na (adivinhem!) loja da Amazon de livros eletrônicos. Stone, que cobriu empresas do Vale do Silício para publicações como The New York Times, centra a sua narrativa na vida de Jeff Bezos, o fundador da loja virtual. Bezos está para a Amazon como Steve Jobs para a Apple – com a diferença de que Jobs teve um cofundador, Steve Wozniak, e chegou a ser demitido da própria empresa. Na Amazon, Bezos não deixa ninguém lhe fazer sombra. Ele dirige a empresa desde o primeiro dia, quando começou a vender livros pela internet, mas já com vistas a criar uma loja de todos os produtos, como a Amazon se tornou nos Estados Unidos.
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1-2 TUDO É VENDA
De leitores eletrônicos de livros, como o Kindle, a livros usados, a Amazon fecha negócios e abocanha todo o mercado
Kessel foi encarregado de desenvolver o leitor Kindle, Jeff Bezos lhe confiou a missão de quebrar o seu principal negócio, a venda de livros pelo correio. “Eu quero que você trabalhe com o objetivo de fazer todo mundo que vive de vender livros físicos ficar sem emprego”, disse. Bezos estava influenciado por um livro de um professor de Harvard que pregava que organizações falhavam ao deixar de investir nas inovações que colocariam em risco o seu próprio modelo de negócio. A Kodak é um desses exemplos. A empresa desenvolveu a tecnologia de foto digital, mas resolveu não explorar esse negócio para não pôr em risco o lucrativo mercado de revelações. A Amazon não iria ser uma Kodak; o Kindle seria a aposta da empresa no então incipiente mercado de livros digitais.
1
LIVRO ELETRÔNICO
Leitura 2
Bezos é um ex-operador do mercado financeiro de Nova York que cresceu longe do seu pai biológico e que, aos 30 anos, abandonou um bemremunerado emprego numa financeira para investir tudo numa ideia que na época parecia maluca: vender livros por uma rede de computadores que apenas engatinhava. Contou com o dinheiro próprio, capital dos familiares e alguns investidores. A empreitada tomou forma na garagem de sua casa, mas nascia com mania de grandeza: levava propositadamente o nome do maior rio do mundo, o Amazonas. Inicialmente, a Amazon trabalhava sem estoque. Apenas quando um livro era vendido em seu site é que a equipe de Bezos contatava distribuidores de livros e faziam a compra. Dessa forma, sem um único exemplar na prateleira, a empresa estreou na internet em 1995, oferecendo um milhão de títulos a preços baixos.
A estratégia foi bem-sucedida e contava com a simpatia de distribuidores e editoras, receosas do poder de mercado de grandes livrarias como a Barnes and Nobles e a Borders. Grandes cadeias do varejo de livros impõem o seu poder de compra a editoras e distribuidoras, reduzindo margens e exigindo melhores condições de pagamento. Alimentar o sucesso da Amazon era oferecer uma alternativa ao poder de mercado dessas livrarias de shoppings. Ironicamente, a Amazon cresceu tanto, que ela se tornou, sozinha, mais poderosa do que as grandes livrarias, e algumas delas chegaram mesmo a falir, como a Borders. Para isso, a Amazon explorou o seu poder de mercado e inovou com truques tecnológicos, o que a fez comprar brigas com o conservador mercado editorial. Um dos sucessos da Amazon é não ter receio de se reinventar e explorar novas tecnologias e formas de comercialização. Quando o executivo
Enquanto entrava num segmento em que tinha experiência zero – hardware de computador para leitura –, a Amazon pressionou editoras a digitalizarem o seu estoque de livros. Uma das principais razões do insucesso dos aparelhos digitais de leitura que existiam era a ausência de best-sellers publicados no formato digital. Livro eletrônico era coisa de geek e nerd, não do leitor do dia a dia. Por isso, para popularizar a nova forma de ler livros, era preciso desenvolver uma oferta de títulos que fosse atrativa para ser lançada junto com o hardware. Foi assim que a Amazon concebeu o Kindle como um modelo de negócio, e não como um aparelho (que muitos suspeitam que alguns modelos chegam a ser vendidos abaixo do custo). O Kindle iria demorar ainda alguns anos para ser lançado no mercado americano, chegando apenas em 2007, já com uma grande oferta de títulos. As editoras foram parceiras da Amazon no processo de digitalização, mas rapidamente perceberam que estavam levando o que seria uma facada nas costas (e não a única). Quando, finalmente, o Kindle foi lançado, a Amazon anunciou a venda de best-sellers a US$ 9.99, valor abaixo do preço de compra dos títulos. Esse dumping virtual
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INDICAÇÕES canibalizava a versão em capa dura dos livros, que tem maiores margens para as editoras. A Amazon perdia dinheiro a cada livro que vendia, mas consolidava a sua posição entre os consumidores e num novo mercado. O usuário de um Kindle tende a comprar livros digitais sempre da Amazon, o que lhe confere uma escala crescente. Essa não foi a primeira das brigas entre a varejista e editoras. Quando a Amazon passou a vender livros usados ao lado de edições recentes em seu site, editoras e autores protestaram porque edições usadas não geram vendas para editoras ou royalties para autores. O mesmo grupo reclamou ao ver a liberdade com que a Amazon permite a usuários fazerem resenhas de livros, incluindo muitos comentários classificando obras com poucas estrelas (afinal, quem gosta de ver o seu livro malpontuado?). E, ao informar o ranque de venda de todos os títulos, a Amazon incentivou uma disputa instantânea e global. Da oferta de livros usados a preços mais baixos para obras digitais, a Amazon costuma responder que apenas oferece as melhores condições para os consumidores. De fato, em muitas dessas batalhas, ela esteve do lado inovador e de preços mais baixos para o consumidor final. Só que a Amazon também se utiliza da inovação e algoritmos próprios para retaliar fornecedores. Um dos seus diferenciais é personalizar a página da loja para o histórico de compras de cada consumidor. Por exemplo, ao procurar por um autor, o usuário recebe também sugestões de outros livros semelhantes, baseadas no histórico de compras de outros consumidores.
Mas, quando em disputa com um fornecedor, a Amazon exclui das recomendações os títulos que não quer promover, de forma a forçar para baixo as vendas de uma empresa em particular. Após constatar o prejuízo por não querer seguir alguma política que a Amazon quer impor – como preços mais baixos para edições eletrônicas –, as editoras voltam para mesa de negociação, agora com a cabeça baixa. Brad Stone retrata bem uma certa tensão que existe à medida que a Amazon cresce. O leitor vibra com a história de uma empresa que nasceu do zero e foi crescendo num mercado então dominado por poucas grandes empresas com modelos de negócio conservadores. Só que a Amazon, ao crescer, impõe a sua força sobre os fornecedores, tal como outras gigantes. Ainda que ela repasse preços menores para os consumidores, como faz o Wal Mart nos Estados Unidos, há quem receie estar alimentando um monstro que vai se virar contra o consumidor e novos parceiros amanhã. Bezos é ciente dessa possível contradição e quer continuar com a imagem de uma empresa cool e inovadora, em vez de uma monopolista malfalada como a Microsoft. Hoje, a Amazon é muito mais do que livros, mas esse foi o mercado mais afetado pela expansão da varejista virtual. E a missão confiada a Steve Kessel, de destruir o modelo de negócio tradicional de venda de livros, está apenas começando no Brasil. Baseado na experiência americana, dá para aguardar novas quedas de braço com editoras nacionais e reações dos livreiros.
BIOGRAFIA
CLÁUDIO PORTELLA Cego Aderaldo – A vasta visão de um cantador Escrituras
REVISTA
VÁRIOS AUTORES Outros críticos – Cenas musicais ed. 1 Funcultura
O autor traça um panorama da vida e obra do cantador e versejador Aderaldo Ferreira de Araújo, conhecido como Cego Aderaldo. Da sua sofrida infância no interior do Ceará, quando chegou a sustentar pai e mãe, até o seu primeiro contato com a poesia e o encontro com ícones como padre Cícero.
O projeto de crítica cultural na internet, desde 2008, lança a primeira versão impressa. Bimestral, a publicação conta com a participação de vários colaboradores e visa debater questões relacionadas à cena musical contemporânea de Pernambuco. Além de artigos, traz uma seção de entrevista e um espaço reservado para resenhas.
CRÔNICAS
POESIA/ENSAIO
ALDO PAES BARRETO Casos, causos e repentes EBGE
Coletânea de causos políticos do jornalista pernambucano. Embasada num humor astuto e sutil, trabalha situações cotidianas, abrindo espaço para uma visão singular sobre aquilo que é rotineiro, especialmente no dia a dia jornalístico. Publicado originalmente há 20 anos, o livro volta agora em sua segunda edição, ampliada e atualizada.
INÁCIO FRANÇA, TUCA SIQUEIRA, ALEXANDRE RAMOS, CIDA PEDROSA O rio que não passa Interpoética
Um apanhado de histórias e um panorama da vida dos poetas que vivem às margens do Rio Pajeú, afluente do São Francisco que banha diversas cidades no interior do estado de Pernambuco. Realizado a partir de uma pesquisa feita entre 2010 e 2011, une textos e imagens.
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Criaturas
CON TI NEN TE
Carlitos
por Al Hirschfeld
Há 100 anos, surgia no cinema um clown que tinha, na medida exata, candura e rebeldia. Criado e interpretado
por Charles Chaplin, Carlitos capturou o público. Num longo canto para ele, Carlos Drummond escreveu: “Para dizer-te como os brasileiros te amam/ e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece/ com qualquer gente do mundo/(...) vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem/ nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas”.
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www.revistacontinente.com.br
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LUTA DESARMADA
#159 ano XIV • mar/14 • R$ 11,00
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DISTENSÃO E ARTE
E MAIS WAGNER CARELLI | FÁBIO BAROLI | CAFÉS PORTENHOS | PAULO LEMINSKI | TERRA DO FOGO | MIRÓ DA MURIBECA | CHARLES CHAPLIN CAPA_MAR base 2.indd 1
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