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E MAIS
# 161
MORAES MOREIRA MARROCOS KARIM AÏNOUZ HEAVY METAL TELLES JÚNIOR
#161 ano XIV • mai/14 • R$ 11,00
CONTINENTE
ARQUITETURA
MODERNA EMBORA CONTE COM ACERVO SIGNIFICATIVO DE EDIFICAÇÕES NO ESTILO, O RECIFE NÃO PRESERVA ESSE PATRIMÔNIO CONSTRUÍDO
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Da sua estante para o toque na sua tela Conheรงa nossos E-books na Cepe Digital
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MAIO 2014
TIAGO LUBAMBO
aos leitores Houve uma época em que andar pelas ruas do Bairro do Recife dava pena. Ali pelos anos 1990, os imensos edifícios ecléticos, desabitados ou feitos cortiços, decadentes prostíbulos, estavam em ruínas. Mas, num sopro, houve um reinteresse pelo lugar, que esteve muito relacionado com sua arquitetura, com as edificações, o patrimônio. Evidência disso foi o surto “Curaçao” que ali se deu, com os prédios pintados em cores berrantes e variadas (claro, havia um impulso turístico, mas essa é outra história...), como que a torná-los outdoors de suas potencialidades. Nesse tempo, a arquitetura eclética dominante no lugar foi revalorizada. Havia uma nostalgia, também, pelos “tempos áureos” da cidade, de quando aquela ilha era o “centro” do Recife, na primeira metade do século 20 e antes. À Rua Marquês de Olinda, localizava-se o Edifício Luciano Costa, que, no final dos anos 1950, em plena “modernização” do Recife, passou por uma intervenção que tornou sua fachada gritantemente diferente do entorno. Aquela malha de cobogós criada pelo arquiteto Luiz Nunes foi então questionada. E deu-se o debate: manter, demolir ou demolir parcialmente o revestimento? Na discussão, pesava o prestígio que a arquitetura
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eclética mantinha em relação à moderna. Embora parecesse mais coerente com a história da arquitetura manter os cobogós – ou ao menos parte deles, como que num diálogo entre diferentes tempos construtivos –, a malha de elementos vazados ruiu, revelando novamente o edifício eclético original aos passantes. Quantos edifícios modernos – hoje tornados também parte do patrimônio arquitetônico – estão mantidos em seu projeto original no Recife? Por que a arquitetura moderna parece em desvantagem aqui, sendo constantemente demolida ou descaracterizada? Quem mora na cidade e mantém qualquer interesse por esse assunto, percebe facilmente essa realidade. É ela que nos motiva, nesta edição, a uma “defesa” do acervo moderno. Na catalogação, tivemos dificuldade de encontrar casas – e não prédios, como se verá nas páginas adiante – modernas no Recife. Simplesmente porque várias delas deixaram de existir, ou não podem assim ser chamadas, tal a degradação ou descaracterização por que passaram. Concordamos com o que disseram vários entrevistados da reportagem: a valorização dessa arquitetura passa essencialmente pela conscientização e apreço dos moradores da cidade. Caso contrário, ela será apenas parte de um “obituário”, como já observou o arquiteto Luiz Amorim.
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sumário Portfólio
Gabriel Azevedo 6
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Palco
Entrevista
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Leitura
Conexão
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Entremez
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Visuais
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Matéria Corrida
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Criaturas
Moraes Moreira Prestes a completar 40 anos de carreira solo, compositor faz uma análise do mercado da música popular no Brasil
Arquitetura sustentável Site mostra exemplos de moradias e objetos feitos com pouco custo e reaproveitamento de material
Balaio
George Lucas Cineasta completa 70 anos, neste mês, no lado obscuro da força da indústria cinematográfica
Cardápio
Salga Método de conservação de alimentos pelo uso do sal também é uma forma de preservar sabores
Dança Três bailarinas apontam para a força expressiva da maturidade no palco
Estética tropicalista e kitsch, baseada na ideia de excesso, marca o estilo do artista, ilustrador e designer, que consegue manter linguagem autoral mesmo sob encomenda
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Livro-brinquedo Técnica de recortes e montagens que oferece tridimensionalidade aos impressos está cada vez mais sofisticada
Ronaldo Correia de Brito O mito do trabalho
Telles Júnior Centenário do pintor como mote para reavaliar contextualmente a importância de sua obra
José Cláudio Gravadores e papeleiros Salvador Dalí Por Zenival
Sonoras
Pesado Publicação faz apanhado sobre o cenário metaleiro em Pernambuco
Comportamento
Álbuns de figurinhas Copa do Mundo traz nova corrida por esse tipo de colecionismo, que faz parte da memória afetiva de vários adultos e das brincadeiras de crianças
46 CAPA ILUSTRAÇÃO Arte sobre imagem do Instituto de Arquitetos do Brasil / IAB-PE
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Capa
Pernambucanas
Edificações modernas, construídas no Recife entre 1950 e 1970, vêm sendo demolidas ou radicalmente modificadas, o que pode significar seu desaparecimento futuro
Elemento construtivo do modernismo arquitetônico é produto típico do estado, tendo sido criado por dois comerciantes e um engenheiro, para ventilar e iluminar
Viagem
Claquete
Patrimônio mundial, a cidade portuária ao norte da África é exemplar das camadas de ocupação territorial ao longo da história por vários povos, como árabes e portugueses
Seis anos após Tropa de elite conquistar o Urso de Ouro, o cinema nacional volta ao Festival de Berlim, com filme de Karim Aïnouz, numa coprodução Brasil/Alemanha
Arquitetura
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Essaouira
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Cobogó
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Praia do Futuro
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cartas DO FACEBOOK
Estadual no Inventário do Patrimônio do Sertão do São Francisco, desde 1987. Caboclo possui o Museu Pai Chico, que lembra os modos e costumes do povo sertanejo, e tem muitos atrativos para o turismo ambiental e histórico. Curiosamente, Petrolina (a 129 Km) já pertenceu a Caboclo, em 1864 – segundo livro de Sebastião Galvão.
Perfil
“Queria saber onde é que o meu sonho cabe dentro da sociedade.” Quando falei isso, quase me acabei em lágrimas, mas segurei a onda e prossegui respondendo às perguntas certeiras e profundas que eram feitas a mim durante horas. Este é o retrato de um dos momentos mais lúcidos da minha vida: quando fui entrevistado (e fotografado) por Débora Nascimento. Só posso chamar de lucidez aceitar ser entrevistado por ela. Afinal, quem me conhece sabe que tenho um pé bem atrás com jornalistas e que facilmente recuso entrevistas. Acabei de comprar e de ler a Continente com a matéria “Evandro Sena - o inquieto da Rua do Sossego”. Fiquei imensamente feliz com o que li: uma breve trajetória sobre alguns passos que dei em meus quase 40 anos e uma desmistificação (ou elucidação) sobre o Iraq. Sinto-me honrado de ter sido entrevistado por uma das pessoas mais feras do
COSME CAVALCANTI PRESIDENTE DA COMISSÃO DE REVITALIZAÇÃO DO CABOCLO
Golpe de 64 jornalismo que escreve sobre música no país. Detalhe: a versão impressa tem fotos históricas do Iraq!!! Vale a pena comprar, viu? EVANDRO SENA RECIFE–PE
Povo sertanejo Como assinante, leitor e admirador desta revista, sugiro uma matéria sobre o Sítio Histórico do Caboclo no Sertão de Pernambuco, que teve proposta de Tombamento
A edição de março da Continente estava excelente, com destaque para as matérias “Luta desarmada” e “Diretas: O renascimento do Brasil”. Como só consegui comprar a revista no mês seguinte, resolvi evitar as leituras atrasadas: assinei a Continente, o que, aliás, recomendo a todos, pois a revista sempre chega com redação e produção gráfica excelentes. BRENO PEREZ
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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RECIFE–PE
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colaboradores
Guilah Naslavsky
Luís Patriani
Tiago Lubambo
Weydson Barros Leal
Arquiteta, professora e autora do livro Arquitetura moderna no Recife 1949-1972
Jornalista, especialista em viagem, cultura e meio ambiente
Fotógrafo, sócio da Pick Imagem
Escritor, dramaturgo, poeta e crítico de arte
E MAIS André Dib, jornalista e crítico de cinema. Christianne Galdino, jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural. Eduardo Sena, jornalista. Fernando Martinho, fotógrafo. Marcelo Abreu, jornalista, autor de livros-reportagem como De Londres a Katmandu - aventura na estrada do Oriente. Marcelo Robalinho, jornalista, mestre e doutorando em Comunicação. Rogério Mendes Coelho, professor de Literatura e Cultura Hispano-americana da UFRN. Zenival, ilustrador.
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MORAES MOREIRA
“Continuo o mesmo viciado por música” Um dos artistas-ícones da Bahia, ele avalia o mercado fonográfico hoje, no Brasil, critica o modelo do carnaval de sua terra e lembra o período pré e pós-Novos Baianos TEXTO Marcelo Robalinho
CON TI NEN TE
Entrevista
Prestes a completar 40 anos de
carreira solo, em 2015, Antonio Carlos Moreira Pires, 66, esbanja vitalidade. Atualmente em fase de gravação, com o filho e guitarrista Davi Moraes, de CD com canções inéditas, duas das quais homenageando Pernambuco (Salve Pernambuco e Frevo capoeira), ele se mostra o mesmo apaixonado pela música, como quando criança, em Ituaçu, no interior da Bahia, ao acompanhar bandas pelas ruas da cidade. Aproveitando o lançamento de caixa com os seus quatro primeiros álbuns solo, pela Discobertas, a Continente entrevistou Moraes Moreira. A conversa ocorreu no Restaurante La Fiorentina, onde tradicionalmente se reúnem artistas, jornalistas e intelectuais no Bairro do Leme, zona sul do Rio de Janeiro. O compositor fez uma retrospectiva da sua vida e carreira. Único integrante da família a se interessar pela carreira musical, contou que aprendeu a tocar sanfona com um músico do interior, nas visitas que lhe fazia na prisão, tendo descoberto e se apaixonado depois pelo violão. Lembrou a formação dos
Novos Baianos, a importância de João Gilberto para eles e o período difícil vivido, depois que resolveu se desligar do grupo para seguir carreira solo. Além disso, revelou seu amor por Pernambuco e a influência do frevo na sua carreira. “Ouvia as orquestras de frevo na Rádio Clube de Pernambuco, lá em Ituaçu, e ficava pirado”, conta. Também conversamos sobre a independência dos artistas em relação às gravadoras, sua apresentação no último carnaval do Recife e as críticas ao atual modelo de festa adotado pela Bahia. “Não pensem que o carnaval é só aquilo que se vê na televisão. A Bahia é muito mais”, afirmou. Dizendo-se mais tranquilo na vida artística, Moraes assegurou ter disposição e vontade de continuar a carreira por muito tempo. CONTINENTE Como foram seus primeiros contatos com a música? MORAES MOREIRA Eu sou de uma cidade pequena do interior da Bahia, chamada Ituaçu, que fica na Chapada Diamantina. Vivi lá até os 17 anos. Tive uma infância de jogar futebol na praça, tomar banho de rio, totalmente ligada
à natureza. Era uma cidade ingênua, tinha seresteiros, sanfoneiros, o rádio, o alto-falante na rua. Era nesse ambiente que a gente tomava contato com o mundo, principalmente o das emoções, através dos artistas da época, como Luiz Gonzaga, Cauby Peixoto, Ângela Maria, Nelson Gonçalves e Jackson do Pandeiro. A banda de música era uma coisa que me encantava bastante no interior. Eu sempre estava atrás dela, admirando, sonhando um dia tocar. Tive a sanfona como primeiro instrumento. Depois, peguei o violão e me apaixonei, sendo meu preferido até hoje. CONTINENTE Por que você optou pela sanfona? É verdade que aprendeu a tocar com um sanfoneiro que se encontrava preso, na época, por ter cometido um crime? MORAES MOREIRA A sanfona é o instrumento do interior. Um sanfoneiro bom faz a festa. Tinha um músico famoso na minha terra, chamado Fidélis, que me influenciou bastante. Houve um episódio em que ele se aborreceu com um cara que veio de fora, e acabou matando-o. No interior, as pessoas usavam arma
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abertamente. Hoje, menos. Então, Fidélis foi julgado e ficou preso um tempo. Durante o período em que ele esteve na prisão, eu ia visitá-lo regularmente, aí aproveitava para vê-lo tocar e ele ainda me ensinava um pouco. Tinha 12 anos. A sanfona representou um período curto na minha vida, cerca de três anos. Tocava em festas de batizado e casamento. Mas não era um sanfoneiro maravilhoso. Quebrava o galho.
IMAGENS: REPRODUÇÃO
CONTINENTE Você não pensava inicialmente em ser músico. Quando mudou de ideia? MORAES MOREIRA Fui para Salvador depois de concluir o científico – o equivalente ao Ensino Médio. Minha intenção era fazer Medicina, foi o
CONTINENTE Como o grupo surgiu? MORAES MOREIRA A gente foi se formando entre 1966 e 1967, na Bahia. Todos do interior se encontraram em Salvador para formar os Novos Baianos. Galvão veio de Juazeiro, eu vim de Ituaçu e Paulinho Boca de Cantor, de Santa Inês. Baby era do Rio de Janeiro. Ela tinha fugido de casa e foi para a Bahia. Nós a achamos muito interessante e resolvemos botá-la no grupo. Fizemos um show chamado Desembarque dos bichos depois do dilúvio, em Salvador, que foi praticamente a nossa despedida, de 1968 para 1969. Os tropicalistas estavam exilados em Londres e nós não queríamos deixar esse vazio na música brasileira, que era a bandeira da liberdade.
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e Noel Rosa. A gente sabia desse universo, mas estávamos embevecidos pelo rock. Então, incorporamos essa influência de João sem perder a vitalidade do rock. Assim começou a formação da sonoridade dos Novos Baianos, que levou ao disco Acabou chorare, lançado em 1972. João se tornou o nosso guru. Costumo dizer que ele foi o produtor espiritual do Acabou chorare. Nessa época, João aparecia lá na nossa casa e ficava tocando a noite toda. No outro dia, mandava comprar pão para a gente tomar café. Ele tomava o dele e voltava para casa. Isso aconteceu muitas vezes e foi uma aula para nós. Eu e Pepeu roubamos vários acordes dele.
“Nosso primeiro LP era meio roqueiro. Um dia, João (Gilberto) chega e chama a atenção da gente para as coisas do Brasil. Daí surgiu a sonoridade dos Novos Baianos”
Entrevista que tinha falado para meus pais. Mas a música já estava tomando conta de mim. Aí, consegui uma vaga no Seminário de Música da Bahia. Não tinha violão, então optei pela percussão, só para entrar em contato com o universo musical da Bahia. Nisso, conheci o Tom Zé, que foi uma luz na minha vida. Ele viu que eu tinha algum talento e foi me incentivando. Estudei um pouco de violão com ele. Às vezes, eu até dava aula para os seus alunos, quando ele não podia. Depois vieram os Novos Baianos.
Chegamos a São Paulo em 1969, e conhecemos o produtor musical João Araújo – pai do Cazuza e fundador da gravadora Som Livre, falecido em 2013. Ele ouviu as nossas músicas e topou gravar o primeiro disco, É ferro na boneca. CONTINENTE Qual a importância de João Gilberto para a sua carreira? Que lembranças você tem dele, na fase dos Novos Baianos? MORAES MOREIRA João Gilberto teve uma importância enorme. O primeiro disco dos Novos Baianos era meio roqueiro. Um dia, João chega e muda tudo, chamando a atenção da gente para as coisas do Brasil, o samba. Mostra música de grandes autores, como Assis Valente, Herivelto Martins
CONTINENTE A sua saída do grupo foi tranquila? MORAES MOREIRA Não existe saída tranquila. Se você sai de um lugar, é porque não está bem. Saí sofrendo. Chegamos a ter discordância porque os Novos Baianos exigiam que todo mundo do grupo morasse junto, e eu queria que houvesse uma abertura, que pudesse morar em outro lugar e ser do grupo. Mas isso não foi aceito. Na época, eu era casado e tinha dois filhos. A situação era dificílima. Não tinha como criá-los dentro daquela estrutura precária em que a gente estava vivendo, sem fazer muito show. Empresário que entrava não organizava nossa carreira. Era uma situação artística muito
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desorganizada. Quando se está só, tudo bem. Mas quando começa a ter criança, tem de ter leite, escola, saúde, educação, aí você começa a pensar mais. Foi muito crítico esse recomeço, porque tudo o que fiz ficou com o grupo e eu saí sem nada, praticamente. Com o tempo, as pessoas foram acreditando no meu trabalho. A Som Livre me deu a chance de fazer um disco e eu fui me reconstruindo aos poucos. CONTINENTE Os seus quatro primeiros álbuns da fase solo – Moraes Moreira (1975), Cara e coração (1977), Alto-falante (1978) e Lá vem o Brasil descendo a ladeira (1979) – foram agora relançados pela Discobertas. Como você avalia esses discos na sua discografia?
gravarem comigo. Um produtor ouviu o meu trabalho e gostou da performance da banda e os convidou para fazer um disco. Dadi, músico que também tinha saído dos Novos Baianos, pediu licença ao grupo para usar A cor do som, pois o nome era de lá. Brinco dizendo que quem inventou a banda fui eu. A partir do segundo LP, Cara e coração, os novos parceiros foram chegando e eu já me sentia mais seguro e menos solitário. Nele, já havia mais samba. Meu primeiro grande sucesso foi Pombocorreio, letra minha e música da dupla Dodô e Osmar. Foi quando deixei de ser um ex-Novo Baiano e passei a ser apenas Moraes Moreira. Já Alto-falante foi uma referência às minhas memórias do alto-falante de Ituaçu. “Eu tenho no
diferente em determinadas composições, como Acordei, gravada por você e por Zizi Possi; Sede, registrada por Nana Caymmi e César Camargo Mariano; e Sonhei que estava um dia em Portugal, com versões suas e de Maria Bethânia. Você acha que o público conhece esse seu lado? MORAES MOREIRA Hoje em dia, ouço o público cantar tudo comigo no show, desde Meninas do Brasil, que é um samba-canção, até Lá vem o Brasil descendo a ladeira, Bloco do prazer, que é um frevo, e Sintonia, uma canção flertando com o popular. Eu coloco tudo no show. Se não conhecem, é outra história. Dessas canções que você citou, o meu maior desafio foi compor para a Nana. Ela vivia lá em casa, a gente tocava violão junto.
“Os Novos Baianos exigiam que todo mundo do grupo morasse junto. Eu era casado e tinha dois filhos. A situação era dificílima. Foi muito crítico esse recomeço (na carreira solo)” MORAES MOREIRA São discos de consolidação da minha carreira. O primeiro, Moraes Moreira, foi o mais roqueiro de todos. Tinha pitadas de um rock inocente, quase nativo, regado a guitarras, solos, riffs, mesmo com toda nordestinidade. Depois que eu saí dos Novos Baianos, voltei para as raízes interioranas. Foi uma forma de encontrar a minha personalidade, fincando os pés na regionalidade universal. Nesse primeiro disco, tinham composições criadas por mim, ainda para os Novos Baianos. Fizemos uma divisão e eu peguei aquelas com as quais me identificava mais, para poder gravar. Fui acompanhado nesse disco pelo embrião de A cor do som, ainda sem nome. Juntei os rapazes para
coração uma voz de cristal de alguém para alguém com amor e com carinho.” Compus com Fausto Nilo, que também é interiorano e viveu essa mesma experiência. Esse volume inaugurou a parceria com Abel Silva, além da retomada na amizade e na parceria com Pepeu Gomes, um pouco afastado depois da minha saída dos Novos Baianos. Em 1979, Lá vem o Brasil descendo a ladeira consolidou de vez a minha carreira. Além da música-título, que se tornou um grande sucesso, tiveram outras, como Chão da praça, Assim pintou Moçambique, Pelas capitais. Foi um trabalho que me acrescentou bastante. CONTINENTE Você é muito ligado ao samba e ao frevo. Entretanto existe um lado
Quando ela me pediu uma música, pirei, porque a considerava meio sofisticada. Aí eu comecei a fugir. Lembro que Nana chegava lá em casa e começava a me xingar, pedindo a música. Ela é meio desbocada, né? Até um dia em que ela falou uma frase assim: “Eu, quando canto, eu tenho sede”. Aí eu falei: agora eu tenho a música. Em menos de duas horas, ela estava pronta. Eu me realizei porque tive uma canção gravada por ela, completamente fora do meu universo. CONTINENTE Observando sua discografia, percebi que existem, pelo menos, oito composições mencionando Pernambuco, como Tapioca de Olinda (1980), Pernambuco meu (1982),
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CONTINENTE É verdade que tem gente que pensa que você é o Alceu Valença, como diz a música Pernambuco é Brasil? Como começou essa história com o Alceu? MORAES MOREIRA Começou há muito tempo. Em 1995, no disco Acústico MTV, quando gravei a música, já estava no auge de vários fatos curiosos entre a gente. Teve uma vez que o Alceu foi chamado numa casa e a pessoa mostrou o meu disco e ele assinou como Moraes Moreira. A mim também, no aeroporto e em outros lugares, algumas vezes, as pessoas já me confundiram, pensando que eu era o Alceu. Aí, isso virou brincadeira. Eu não estou nem aí. Eu adoro o Alceu e está tudo certo.
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Parafraseando o frevo (1984), Petrolina e Juazeiro (1987) e Spok Frevo Spok (2009). De onde é que surgiu essa sua relação? MORAES MOREIRA Eu já gostava de Pernambuco há muito tempo, porque ouvia a Rádio Clube de Pernambuco no interior da Bahia. Ouvia as orquestras de frevo e ficava pirado. Quando comecei a carreira solo, me voltei para o Carnaval. Queria fazer como Braguinha e Lamartine Babo: músicas que ficassem por muitos carnavais. Fui então beber na fonte do frevo porque, já no contato com o Osmar, que foi um dos criadores do trio elétrico e é filho de pernambucano, ele me mostrou tudo. Foi aí que tomei contato com Capiba, Nelson Ferreira e Duda, e fui gostando
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Houve um imbróglio político entre o estado e a prefeitura, que o impediu de tocar? MORAES MOREIRA Eles estão politizando a festa. Em vez de unir as secretarias de Turismo do estado e do município para viabilizar as coisas, eles quiseram fazer separado. Para eu fazer o meu carnaval lá, levando várias pessoas, com passagem e hospedagem, precisava das duas. Aí ficou aquela confusão e resolvi cancelar, porque não queria pedir nada a ninguém. Para mim, ou é ou não é. A gente teve um pouco de prejuízo, mas preferi assim que ficar pedindo pelo amor de Deus para conseguir as coisas. Tanto que eles quiseram fazer um desagravo e me chamaram para o aniversário de Salvador, em março passado. Foi lindo.
“Eu já gostava de Pernambuco há muito tempo, porque ouvia, na Bahia, a Rádio Clube de Pernambuco e pirava com o frevo. No começo da carreira solo, me voltei para o Carnaval”
Entrevista daquilo e arranjando uma forma de fazer do meu jeito. Duda, um dia, me disse: “Vou lhe dar um diploma de frevista”. Isso é um reconhecimento grande para mim. Briguei com a Bahia uma época, nos anos 1980. Critiquei o carnaval baiano, quando começou a ter esse carnaval de corda e de abadá. Eu achava que não podia ser só isso, e começou a ser só isso. Eles me alijaram do carnaval de lá. Fui para Pernambuco, que me recebeu de braços abertos e aí comecei essa relação maravilhosa.
CONTINENTE Você e o Davi Moraes tocaram pela primeira vez, juntos, no carnaval do Recife. Como foi a experiência? MORAES MOREIRA Foi ótimo. Depois de já ter passado por Natal e Curitiba e fechando o terceiro dia no Marco Zero, que mais eu posso querer da vida? Acho o carnaval do Recife lindo. Tudo é forte e preservado, os frevos de bloco, os maracatus, as orquestras, está tudo lá. Você não vê abadá no carnaval do Recife, você vê fantasia. Não vê corda, mas o povo livre na rua, pulando.
CONTINENTE O que houve com a sua apresentação na Bahia durante o Carnaval?
Meu público na Bahia está consolidado. Tem uma pesquisa da prefeitura de lá apontando que o que as pessoas mais reclamaram e pediram em relação ao carnaval foi Moraes Moreira. A única coisa que me interessa é o povo. CONTINENTE Você falou que o carnaval da Bahia teria de caminhar para um lugar mais bonito, mais essencial? Qual seria essa essência? MORAES MOREIRA Primeiro, resgatar o Carnaval como uma festa do povo. Considerando isso, a princípio, o resto você salva, entendeu? Agora, aconteceu lá na Bahia o fenômeno dessa privatização do espaço público. Com isso, aumentou muito o número de turistas, os hotéis gostaram muito porque tiveram suas lotações
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esgotadas. Mas começou a ficar uma burrice, porque os próprios blocos na Bahia começaram a virar só de turista, porque o cara de Salvador mesmo não quer mais aquilo. Ele quer botar a sua fantasia e pular no folião pipoca, sem corda e sem nada. Não quer se padronizar. Então, hoje em dia, o carnaval da Bahia chegou a um impasse. Ninguém tem coragem de mexer. Não vejo mudar nada, muda uma coisinha aqui, outra ali. Muda um pouco o corpo, mas não muda a alma do Carnaval, para buscar aquele seu sentido democrático e de diversidade. Dificilmente, você vê na televisão o Ilê Ayê ou o Filhos de Gandhi passando. Você só vê os mesmos blocos de sempre. É Durval, Ivete,
MORAES MOREIRA Será um trabalho de Moraes Moreira e Davi Moraes assinando parceria, tocando e cantando junto. Terá três canções nossas, pelo menos, sendo duas instrumentais. Músicas novas dele e outras minhas. Pode ter a releitura de algum clássico. Vai ser um disco mais voltado para o samba e o choro. Deve sair no segundo semestre. A gente vai ver se faz independente, se lança pelo nosso selo ou por alguma gravadora. Não queremos gravadora grande, não acreditamos mais nisso. CONTINENTE Como é hoje, para você, que já passou por gravadoras grandes, ter de se produzir?
e eu não pago isso. Tem a internet para divulgar. A gente sobrevive de show e do direito autoral. CONTINENTE Os fãs podem esperar um novo encontro dos Novos Baianos? MORAES MOREIRA Não, pelo amor de Deus. Para que isso? Cada um segue fazendo o que aprendeu e deixando viva a escola. Não precisa mais reunir, sabe, aquele folclore de voltar. A Baby está cantando as músicas, Pepeu e eu, também. Isso é uma nostalgia boba. Já fizemos uma vez. Isso é coisa para empresário ganhar dinheiro. Novos Baianos não é isso. Se um dia voltar, que eu acho quase impossível, não é porque empresário pensou numa jogada de marketing, mas
“Ninguém mexe no carnaval baiano para que volte a ser democrático. Dificilmente, você vê na TV o Ilê Ayê ou o Filhos de Gandhi (foto). Só Durval, Ivete e Chiclete” Chiclete. É um carnaval de carta marcada, em termos de transmissão para quem está fora da Bahia. Aviso aos navegantes: não pensem que o carnaval é só aquilo. A Bahia é muito mais. Não é terra de uma coisa só, de música de sacanagem e de beijinho na boca. Tem muita coisa que está sendo eclipsada por essa comercialização que está acontecendo e que começou a ser feita no auge das gravadoras. CONTINENTE Poderia adiantar um pouco do novo disco que você está gravando com o seu filho Davi? Além das canções Salve Pernambuco e Frevo capoeira homenageando Pernambuco, o que se verá nesse trabalho?
MORAES MOREIRA Acho legal, mas você tem de se organizar, principalmente para poder financiar o disco, pagar músico e estúdio. Hoje em dia, eu banco minha produção. O artista que não faz isso hoje não sobrevive. Gil fez um CD agora homenageando João Gilberto. Ele gravou no seu estúdio e depois ofereceu à Sony. Se tivesse sido feito direto na gravadora, era capaz de pedirem a ele um sucesso novo. Não quero mais isso para mim. Embora eu tivesse liberdade para gravar, sempre tinha uma opinião dentro da gravadora. No meu último trabalho, eu fiz o que quis. Fui premiado, graças a Deus. Não toca no rádio, porque tudo é jabá
porque tivemos vontade. Enquanto não tiver essa vontade, não vai rolar. CONTINENTE Como você vê o Moraes de hoje em relação ao de 40 anos atrás? MORAES MOREIRA Mais experiente, mais tranquilo, mais calejado da vida artística, sabendo onde pisar, o que quer, mas sem perder a vontade de continuar fazendo, apesar da idade. Comigo não tem aposentadoria. Enquanto eu puder, vou cantar. Continuo compondo sempre e tocando todos os dias. Continuo o mesmo viciado de antes em música. Às vezes, na estrada, as pessoas até se assustam um pouco comigo. Com 66 anos de idade e viajando muito, alguns músicos com 40 anos já parecem cansados. Então, não tenho do que me queixar.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
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ARQUITETURA MODERNA
MORAES MOREIRA
A revista Continente tem tratado com frequência o tema arquitetura, mais especificamente, a moderna. Para complementar o material desta edição, oferecemos online a íntegra de duas reportagens que realizamos sobre o assunto: os edifícios Acaiaca e Pirapama (foto), dois marcos do estilo no Recife, ambos assinados pelo português Delfim Amorim (o segundo projeto em parceria com Lúcio Estelita). Ambos expressam com clareza conceitos do Modernismo, como uso de materiais e relações com o meio ambiente e com o ser humano.
Confira a resenha do box lançado pela Discobertas, que reúne os quatro primeiros álbuns da fase solo do músico baiano, e escute algumas de suas faixas.
Conexão
LEITURA As obras construídas sob as orientações da engenharia do livro são capazes de entreter crianças e adultos. Confira mais imagens de publicações que usam a técnica.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
ANIMAÇÃO
ARTE
MÚSICA VISUAL
CINEMA
Estilo experimental marca o trabalho de Becky Sloan e Joseph Pelling
Galeria virtual reúne obras de artistas, decoradores e colecionadores a bons preços
Cores, sons, formas e movimentos criados com ajuda de teclado
Filmes em domínio público estão disponíveis para visualização online
beckyandjoes.com
www.democrart.com.br
www.patatap.com
www.cinemalibre.com.br
O trabalho da dupla Becky Sloan e Joseph Pelling engloba a produção de música eletrônica e de um estilo de animação apresentado como experimental. Os artistas já acumulam uma série de prêmios com suas realizações, a exemplo do Digital Artist Award, de 2010. Entre as produções mais famosas da dupla, o curta-metragem Don’t hug me I’m scared, disponível no site. Além deste, o clipe Feels like we only go backwards baby, da banda australiana Tame Impala. No site, é possível comprar uma dos mais de mil reproduções de cenários em plasticina, usados para fazer o vídeo.
A DemocrArt é uma galeria online que reúne artistas, decoradores e colecionadores em uma proposta de oferecer obras de arte a preços acessíveis. O site justifica o preço dizendo que as produções são feitas em série, o que baixa o custo. Apesar disso, as obras mais baratas superam os R$ 250, chegando a alcançar R$ 10 mil. Qualquer artista pode enviar fotos de seu trabalho para o site, que passará por uma curadoria antes de ser exposto. As peças à venda são fotografias, esculturas e até acessórios para celular.
O Patatap é uma experiência, no mínimo, interessante. Ele consiste numa junção de criação melódica e imagética a partir da combinação de movimentos no teclado do computador. Além dos sons, cada letra elabora cores, movimentos e formas diferentes. Criado por Jono Brandel, o site oferece uma experiência sinestésica que vicia. Além da visual music, o criador diz que se inspirou em artistas como o pintor Piet Mondrian, os cineastas Viking Eggeling e Norman McLaren e também nas animações contemporâneas de Oskar Fischinger.
O Cinema libre é um portal que procura reunir todos os filmes que já estão em domínio público no território brasileiro. A maioria está disponível para visualização online em alta qualidade e possui legendas em português. As listas estão divididas por gênero, país de origem, diretores, atores ou atrizes. Alguns dos artistas listados são ninguém menos que Bette Davis, Greta Garbo e os cineastas Luis Buñuel e George Méliès. O catálogo de filmes, por sua vez, junta clássicos como Cleópatra, de Cecil B. De Mille, e O circo, de Charlie Chaplin.
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blogs NAS DELEGACIAS apreensaoearte.tumblr.com
O tumblr Apreensão e arte ironiza as famosas imagens dos programas policias que expõem os produtos apreendidos pela polícia. Clássicos como as siglas das corporações formadas com pacotes de drogas e personagens como a Mônica Plesa (do artista plástico Lobo) fazem parte do repertório.
COLUNAS DISTORCIDAS
ARQUITETURA E SUSTENTABILIDADE Buscar soluções e apresentar projetos de cidades e pessoas que criaram espaços mais sustentáveis é o objetivo deste site, que existe desde 2012 arquiteturasustentavel.org
O site Arquitetura sustentável existe há cerca de dois anos, com o lema “arquitetura e meio ambiente ocupam o mesmo espaço”. Os temas das publicações variam e unem arquitetura, design, decoração, tecnologia e, claro, sustentabilidade. A página mostra exemplos de objetos e moradias feitos com reaproveitamento e pouco custo. Na seção Faça você mesmo, dicas simples de como utilizar materias de descarte na decoração do ambiente. O portal também dá exemplos de cidades que adaptaram seus edifícios de modo a construir espaços mais bonitos e menos danosos. A Avenida Crozet, em Genebra, por exemplo, é inteiramente construída com hortas comunitárias e um sistema de troca de alimentos entre os vizinhos. Como contraponto, as cidades que seguem uma lógica prejudicial de desenvolvimento também são apontadas, como Hong Kong, Nova York e São Paulo. Um exemplo é a lista de 25 municípios que possuem a maior quantidade de prédios no mundo. O site contempla, ainda, as novas tecnologias que seguem os princípios ali defendidos: bateria para smartphone que recarrega em 30 segundos, tinta solar usada em bicicleta para passeios noturnos e uma garrafa que transforma água do mar em água potável. PETHRUS TIBÚRCIO
oipeaapurou.tumblr.com
“95% dos 65% dos 32% das descrições são feitas por 23% das pessoas que não, pera...” é o texto de introdução ao tumblr O Ipea apurou. Criado depois das últimas notícias que envolviam o instituto – a divulgação de números errados sobre o percentual (ainda absurdo) de pessoas que acham que mulheres de roupa curta merecem ser estupradas –, o site forja pesquisas para ironizar a credibilidade do órgão.
ESPELHOS VISUAIS illusioncinematographique.tumblr.com
Locações iguais, ângulos parecidos, gestos que despertam a memória são parte de um ciclo de referências que são influenciadas pela produção passada. Esses elementos se misturam em remontagens que mostram os intercâmbios entre filmes contemporâneos ou não. Jean-Luc Godard em diálogo com Dario Argento, que dialoga com David Lynch... e por aí vai.
sites sobre
hospedagem barata COUCHSURFING
WORLDPACKERS
WWOOF
www.couchsurfing.org
worldpackers.com
wwoof.net
O couchsurfing é uma rede social que consiste em criar conexões para receber pessoas (e ser recebido) em suas casas sem gastos.
De DJ a recepcionista, passando por professor de línguas e barman, o Worldpackers tem a proposta de trocar trabalho voluntário por hospedagem grátis.
Vinte ou 30 horas de trabalho semanais em troca de cama e três refeições por dia. A diferença é que a experiência acontecerá em fazendas orgânicas ao redor do mundo.
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REPRODUÇÃO
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FOTO: OSMÁRIO MARQUES | DESIGN: GABRIEL AZEVEDO // gabriel-az.tumblr.com
TEXTO DE BOSCO BRASIL | DIREÇÃO DE FAUSTO FILHO COM SANDRA POSSANI E KLEBER LOURENÇO 19 DE AGOSTO A 01 DE OUTUBRO DE 2010 | QUINTAS E SEXTAS ÀS 22H ESPAÇO MUDA | RUA DO LIMA, 280 – AO LADO DA TV JORNAL ESPETÁCULO COM PLATÉIA LIMITADA PARA 35 PESSOAS. BILHETERIA ABERTA UMA HORA ANTES DE CADA SESSÃO.
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APOIO:
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Espaço Muda Galeria.Teatro.Moda.Bistrô 3032.1347 Rua do Lima, 280, Santo Amaro (ao lado da TV Jornal) http://espacomuda.blogspot.com http://twitter.com/espacomuda
Gabriel Azevedo
O CAOS TROPICAL TEXTO Mariana Oliveira
Uma das principais preocupações de Gabriel Azevedo é aproximar seu
trabalho das pessoas. Daí ele – que foi uma criança introspectiva que encontrou no desenho uma forma de se expressar – ter optado pelo curso de Design. O ingresso na universidade foi fundamental para abrir caminhos para o pernambucano, hoje com 26 anos. “A surpresa para mim foi ter sido aprovado no campus de Caruaru e ter que me mudar para lá. Esse fato foi importante para me dar uma nova visão de mundo, para o meu amadurecimento e futuro profissional”, conta, lembrando que foram os contatos que fez na cidade agrestina que o levaram para São Paulo, onde está desde 2011. Sua atuação se dá na intersecção entre a arte e o design, deixando de lado possíveis barreiras entre os dois campos. Por isso, ele prefere não ser chamado de artista plástico, mas de artista visual. Isso faz sentido diante da variedade de trabalhos realizados pelo artista/ilustrador/designer, e pelo fato de seus traços aparecerem tanto em desenhos autorais quanto em produtos feitos sob encomenda, capas de celular, blusas, vestidos, pôsteres. Não é à toa que Gabriel tem conseguido aliar de forma harmoniosa sua produção autoral àquela feita sob encomenda. Mesmo no início da carreira, quando dava expediente em agências de publicidade e empresas de branding (gestão de marcas), encontrava tempo para desenvolver atividades mais
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Trabalho criado com colagens e desenhos a mão, finalizado no computador
Nestas páginas 2-3 CARTAZES
Desde o início da carreira, Gabriel Azevedo trabalha com peças gráficas para música e teatro
4 ESTAMPA Com desenhos manuais, traz referências tropicalistas
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livres, nas quais podia dar vazão à criatividade, como nos cartazes que produziu para peças de teatro de um grupo de amigos. Hoje, sua aproximação com a cena cultural se consolidou e lhe rendeu projetos com artistas como Karina Buhr, Jards Macalé, Los Sebosos Postizos e a cantora e atriz portuguesa Maria de Medeiros. A estética tropicalista e kitsch, embasada numa ideia de excesso, seja de cores ou de elementos, marca seu trabalho. “Claro que minha produção como designer atende a uma demanda do mercado e do cliente, e, por isso, nem sempre posso fazer como quero. Porém, acredito que consigo deixar minha cara em tudo que faço.” O universo invocado por ele é caótico – traço refletido no próprio uso de técnicas distintas num mesmo trabalho, como o desenho manual e digital,
5 DESENHO MANUAL Composição feita para o show de Karina Buhr
6 CROMATISMO Cores fortes são uma recorrência
a colagem, os recortes – e tropical, com referências à natureza e suas cores. “O figura humana também é recorrente. Acho que isso tem relação com esse meu desejo de me aproximar das pessoas”, diz. Um recorte interessante de sua produção autoral é a sua primeira exposição individual Caos navalha, que passou pelo Recife (na Casa do Cachorro Preto) no início do ano, seguindo depois para Buenos Aires. Nos trabalhos, ele lança um olhar sobre o contexto desordenado do Carnaval. Segundo ele, essa característica desfaz divisores sociais importantes como sexualidade, política, status financeiro, formação intelectual e religião. A ideia de caos pode ser associada ainda às técnicas utilizadas pelo artista, que foge do clichê, desconstruindo figuras típicas dos festejos de Momo com o uso de
7 PAPA.ANGU Em Caos navalha, releituras de figuras do Carnaval
texturas, recortes e colagens sobre os desenhos. Aparentemente, o seu desejo é apresentar as coisas fora da ordem natural, sem o uso de referências óbvias. “Essa exposição diz muito sobre o meu local. O Recife é meu ponto de partida”, comenta. Ainda na universidade, Gabriel ensaiou uma entrada no campo da moda, fazendo aí trabalhos pontuais. Já em São Paulo, os detalhes de seus cartazes chamaram a atenção de uma grande empresa têxtil, que produz estampas para diversas marcas nacionais. Foi assim que seus desenhos viraram estampas. Hoje, ele produz padronagens exclusivas para uma marca. Com um trabalho consolidado no campo do design, Gabriel deseja encontrar espaço no mercado da arte, e um dos seus recursos, nesse sentido, é fazer Caos navalha circular em terras brasileiras.
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
NARCISO NO CELULAR
Espírito Jedi para George O diretor, roteirista, produtor e empresário George Lucas completa 70 anos no dia 14 deste mês. Da sua estreia em 1971, com o filme THX 1138, ao presente, foram longos 41 anos de carreira e três bilhões de dólares na conta. No auge, Lucas, além de duplamente indicado ao Oscar nas categorias de melhor diretor e melhor roteirista por American Graffiti (1973) e Star wars IV — uma nova esperança (1977), criou símbolos fundamentais para a consolidação da cultura pop. O vilão Darth Vader, por exemplo, tornou-se tão famoso quanto os Beatles. Mas, como nem tudo são flores e o tempo passa para todos, o pai da ficção científica contemporânea aos poucos se entregou ao lado obscuro da força, no que parece ser uma tentativa de enterrar de uma vez por todas sua ligação com a efervescente cultura geek. A primeira pá de terra foi a nova (e dispensável) trilogia Star wars, lançada entre 1999 e 2005, seguida da venda da franquia para a Disney, em 2012. Agora, nas mãos do Mickey e do Tio Patinhas, parece que o universo habitado por Luke Skywalker e sua trupe vai de mal a pior... Já estão prometendo um novo filme por ano, a partir de 2015. Dessa forma, o que resta é a esperança de que, assim como em sua obra, George Lucas incorpore o Espírito Jedi e busque a redenção, mesmo aos 45 do segundo tempo. FERNANDO ATHAÍDE
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Após recusa de tirar uma selfie com a equipe de uma sessão fotográfica no festival Coachella, Katy Perry escreveu no Twitter: “Amigos festivaleiros, fazer selfies é uma doença”. Quem não está vivendo numa caverna, sabe que a fotografia de si mesmo se tornou, nos últimos anos, uma praga. Até Obama e Hillary Clinton já fizeram as suas, e a imagem mais compartilhada do ano foi a “selfie do Oscar” (acima). A coisa está ficando tão séria, que, em março, um jovem de 19 anos tentou se matar porque não conseguia a foto perfeita. O britânico Danny Bowman chegou a sair da escola e passou seis meses apenas fazendo cliques de si. O suicídio foi frustrado pela sua mãe. Ele agora faz terapia para reverter o quadro de vício em tecnologia e o Transtorno Dismórfico Corporal, ansiedade excessiva com a aparência. Atualmente, essa dependência tecnológica atrelada à vaidade está sendo considerada pelos psiquiatras um problema grave. (Débora Nascimento)
Balaio A SEQUÊNCIA NÃO SE COMPRA Uma das manobras mais arriscadas da indústria cinematográfica é fazer a sequência de um filme. A quantidade de fiascos é imensa. Citemos a continuação de Psicose, clássico de Hitchcock que ganhou quatro sequências bem longe do nível da obra-prima de 1960. Agora, Hollywood ameaça a continuação de A felicidade não se compra (foto), um dos melhores filmes de todos os tempos. Para tentar barrar a (péssima) ideia, a Paramount, que detém os direitos da história, afirmou que vai entrar na justiça contra a continuação, prevista para 2015. O drama de 1946 tem um emocionante final, quando o protagonista George Bailey (James Stewart), que pensava em suicídio por conta de dificuldades financeiras, é salvo por amigos. Não se sabe qual é a trama da sequência, mas a crise financeira seria suficiente para perturbar o sossego de vários netos do protagonista original. (DN)
A FRASE
“Senso comum num grau incomum é o que o mundo chama de sabedoria.” Samuel Taylor Coleridge, poeta
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TEMPO DE VIOLÊNCIA Aumentou a quantidade de armas de fogo nos filmes. Segundo uma pesquisa realizada por especialistas norte-americanos e holandeses, a incidência duplicou, de 1950 a 2012, enquanto triplicou, a partir de 1985, nos lançamentos destinados à faixa etária acima dos 13 anos. “Nós não estabelecemos uma conexão direta com o aumento de tiroteios em escolas e outros locais públicos, mas o crescimento da violência armada em filmes certamente coincide com esses eventos”, observou Daniel Romer, um dos pesquisadores e diretor do Instituto de Comunicação Adolescente da Universidade da Pensilvânia. O estudo analisou a violência em 945 obras, em listas das 30 mais assistidas de cada ano. Entre os filmes recentes que foram considerados com conteúdo de “muita violência com armas” estão Batman – o cavaleiro das trevas, Capitão América: o primeiro vingador e Os vingadores. (DN)
O TEMPO E O VENTO A cidade de Garanhuns, Pernambuco, possui, segundo pessoas que a visitaram, uma curiosidade decorrente da ação do tempo: uma placa identificatória da Avenida General Costa e Silva foi tendo várias letras apagadas e terminou homenageando uma cantora brasileira: Gal Costa. Fenômeno semelhante teria acontecido em Salvador, onde a Rua Padre Nóbrega transformou-se em Rua Brega. Como o logradouro era área de baixo meretrício, a música tipo “dor de corno” que predominava no local passou a ser conhecida como “brega”. (Gilson Oliveira)
Arauto do homem-máquina Este ano, o mundo chorou os 25 anos da morte do deus do mangá Osamu Tezuka – ou, pelo menos, deveria ter chorado. Fato é que, deste lado do Meridiano de Greenwich, a vasta obra desse singelo japonês não é lá muito conhecida. Com exceção do Astro Boy e de Kimba, o leão branco, pouco se sabe sobre o incomensurável trabalho realizado por ele entre a primeira e a segunda metade do século 20. Nascido em 1928 e desde a infância um artista talentoso, Tezuka desenvolveu, ainda muito jovem, uma técnica de desenho única, cujo traço estilizado e a utilização de hachuras ditou a forma de ser fazer o mangá a partir de então. Além disso, foi dessa mesma cabeça que saiu o conceito do homem-máquina, fundamental para a cultura pop japonesa. Mesmo sendo um dos precursores do anime no mundo, Osamu Tezuka só teve oito títulos publicados no Brasil, uma afronta à produção do artista, que transgrediu a marca de 150 mil páginas. O quadrinista nos deixou em 9 de fevereiro de 1989, vítima de câncer. (FA)
EXPROPRIAÇÃO EDITORIAL
O CORAÇÃO DO REI
Mônica Bérgamo, da Folha de S.Paulo, conta, em sua coluna de 20 de março passado, que nenhuma loja da Livraria da Travessa do Rio de Janeiro conseguiu vender o livro O homem que amava os cachorros, do escritor cubano Leonardo Paduro. Apesar de marcado o lançamento, não havia um exemplar para dar conta. A explicação para a falta de exemplares é que um caminhão carregado de livros da editora foi assaltado na Via Dutra e toda a carga levada. A direção da editora do título, a Boitempo, dirigida por Ivana Jinkins, filha do militante comunista Raimundo Jinkins, não deve ter encarado a “expropriação” com serenidade. E ainda teve que imprimir, às pressas, 300 exemplares para não prejudicar o lançamento do romance. (Luiz Arrais)
Bem antes de morrer, Elvis Presley revelou em uma entrevista a desconfiança de que morreria precocemente e de ataque cardíaco, pois sua mãe havia partido dessa maneira aos 46 anos. Infelizmente, o cantor estava certo. Faleceu da mesma causa, com apenas 42 anos, em 17 de agosto de 1977. Desde então, muito se propagou uma overdose como causa mortis. Numa revisão histórica, o programa Dead Famous DNA, do britânico Channel 4, confirmou que o Rei do Rock tinha cardiomiopatia hipertrófica. O responsável pela análise, Stephen Kingsmore, afirmou ser injusto culpar possíveis excessos na alimentação e consumo de drogas (como os corticoides que contribuíram para o aumento do peso), porque o artista já possuía um “defeito em seu DNA”. (DN)
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TETURA Desprestígio do projeto moderno
Edificações construídas no Recife nos anos 1950-1970, a partir dos pressupostos do movimento, foram destruídas ou estão malpreservadas, diminuídas na memória da cidade TEXTO Luciana Veras FOTOS Tiago Lubambo
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Em 2009, o artista visual Jonathas
de Andrade, alagoano radicado há uma década em Pernambuco, percebeu que uma casa no Bairro da Torre, abandonada e quase toda em ruínas, havia se tornado uma espécie de ponto de encontro da vizinhança. Não era uma construção qualquer, ele constatou; havia nela inconfundíveis traços do Modernismo, corrente arquitetônica que ditou o desenho urbano de boa parte do mundo no século 20 e que, no Recife, difundiuse com maior força e escala nos anos 1950. Em Projeto de abertura de uma casa, como convém, obra integrante da exposição Ressaca tropical, Jonathas reproduziu em uma maquete a residência onde ele e os amigos
Um dos problemas desse patrimônio é o fato de ele não ser antigo o bastante para ser considerado de preservação chegaram a organizar um café da manhã para congregar os visitantes que lá iam em busca de algum azulejo ou outro suvenir. Acrescentou fotografias da casa destroçada e fez surgir uma obra de arte a partir do ocaso de uma arquitetura que existe no Recife, bem como em outras metrópoles brasileiras.
O cerne da questão, aquilo que capturou o olhar de Jonathas e que preocupa diversos pesquisadores e professores, é a condição em que tal patrimônio se encontra. Casas e edifícios modernistas já não existem mais ou foram adulterados por completo. “Na capital paulista, a paisagem do entorno das casas modernistas projetadas por Gregori Warchavchik está ameaçada pela construção de um edifício-torre”, alertou o escritor manauara Milton Hatoum, em artigo publicado em dezembro de 2013. “Na verdade, sentimos horror à memória urbana. Casas e edifícios históricos de municípios e capitais brasileiros foram e estão sendo desfigurados ou
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4 Página anterior 1 EDIFÍCIO CAETÉS
De 1955, projeto de Acácio Gil Borsoi faz parte da paisagem do centro da cidade
Nestas páginas 2-4 SANTO ANTÔNIO
Edifício tem fachada ventilada em concreto préfabricado e explora formas curvas em seu interior e na cobertura
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destruídos; somos impotentes diante da avidez de algumas construtoras, que demolem a arquitetura histórica e erguem torres de 40 andares”, lamentou o autor de Dois irmãos (2000), que é arquiteto de formação. “O problema é a noção de que o patrimônio moderno não é novo suficientemente para ser encarado como representante da contemporaneidade e não é antigo o bastante para ser preservado. Entre alguns setores que estudam e trabalham com a preservação do patrimônio cultural, isso persiste e leva ao reconhecimento e à salvaguarda só de algumas obras mais notáveis. Mas a cidade não precisa só da conservação dos marcos. É
Os projetos modernos tinham formulações inéditas na maneira de construir e usavam a técnica do concreto armado interessante a preservação de áreas que possuem uma certa unidade em um determinado período, tanto de um passado mais longínquo como também de uma época mais recente”, observa Luiz Amorim, professor do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco e filho do arquiteto português Delfim
Amorim, um dos expoentes do modernismo arquitetônico no Brasil. Luiz Amorim é autor de Obituário arquitetônico – Pernambuco modernista (2007), em que mapeia dezenas de construções “falecidas” e substituídas por exemplares de novas linguagens arquitetônicas. “Seria esse o ciclo vital da arquitetura, ou das cidades, como lugar por excelência da arquitetura em suas formas edilícias, urbanas e paisagísticas? Transmutar-se continuamente, para atender aos desejos dos homens? Se sim, por que lamentar os desaparecidos, se os nascituros abrigarão novos usos, novos sujeitos?”, indaga em Os sentidos da morte e da vida na arquitetura, um dos capítulos do livro, atualmente esgotado. A
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CON CAPA TI NEN TE proteção da cultura arquitetônica, na visão de Amorim, permitiria que o Recife revelasse “as diversas temporalidades vividas, impregnadas na matéria própria da arquitetura”; tornar essa mesma cultura imortal é “criar elos no espaço no tempo, e é o elo moderno que agora precisa ser devidamente constituído”. O que torna a arquitetura moderna especial? “Nos preceitos construtivos, as novas formulações de maneira de construir e, especialmente, a revolução da técnica do concreto armado. Como o esqueleto estrutural poderia ser aparente, a fachada tendia a ser mais livre, mais vazada, com mais abertura. Quando essa visão ficou instituída, estabeleceuse um campo enorme para o desenvolvimento da arquitetura, com novas possibilidades. O vidro passou a ser desejado, pois permitia muita luz dentro. Aqui, com o clima tropical, houve a ideia de criar varandas grandes para separar o vidro do chão, com um brise-soleil ou um cobogó, por exemplo”, pontua Marco Antônio Borsoi, filho de Acácio Gil Borsoi, sinônimo de arquitetura moderna no Brasil e principalmente no Nordeste, que perseguia uma integração espontânea entre o edifício, seus habitantes e seus arredores. Ao lado de Amorim, foi um dos responsáveis pela criação de um léxico arquitetônico que disseminava a nova ordem modernista preconizada, no Brasil, por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.
INFLUÊNCIA MUNDIAL
“Oscar Niemeyer e Lúcio Costa influenciaram a arquitetura contemporânea do mundo inteiro”, resume o arquiteto Wandenkolk Tinoco, mais de cinco décadas de profissão, aluno de Delfim Amorim e Acácio Gil Borsoi na Escola de Belas Artes e, depois, ele mesmo professor da UFPE por 30 anos. “Niemeyer explorava, de forma magistral, a submissão do concreto armado. Com suas linhas poéticas, sinuosas e sensuais, criou uma arquitetura que era uma poesia. Mas Borsoi e Amorim também eram mestres. Borsoi tinha uma capacidade de articular os espaços e de dar fluidez
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a cada ambiente de uma casa. Sua arquitetura era uma sinfonia. Já Amorim se destacava pela composição volumétrica da sua obra e ainda era um excelente construtor, que entendia da construção como ninguém”, acrescenta Tinoco, que é enfático ao aludir à importância do movimento ao qual até hoje se filia. “Não é e nunca foi modismo, e, sim, uma necessidade funcional. A qualidade da arquitetura está diretamente ligada às dificuldades de enfrentá-la. Os obstáculos do terreno, da topografia, da vegetação são inspiradores do espaço arquitetônico e o modernismo acompanhou a evolução dos materiais e da tecnologia e mudou a fisionomia
da arquitetura. Hoje, ela é moderna para ser contemporânea”, defende. Ele define seu estilo como “nordestinismo”, ou seja, a aplicação das diretrizes modernistas em respeito ao clima, aos costumes e às tradições do povo nordestino, de modo a propiciar o conforto ambiental em um clima tropical. Não por acaso, o Edifício Villa Mariana, no Parnamirim, projeto seu de 1976, hoje um Imóvel Especial de Preservação (IEP), na classificação da Prefeitura do Recife, é um perfeito exemplar do “edifícioquintal”. “A ideia era trazer para dentro da casa um pouco da natureza, levar os jardins ou mesmo os quintais para os edifícios, propondo uma arquitetura de vanguarda que buscasse
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o conforto e o abrigo do homem, não a ostentação. Ao contrário do ecletismo, que era uma falta de estilo, ou mesmo do que se convencionou chamar de pós-modernismo, para mim, uma falta de competência arquitetônica, o modernismo tinha personalidade e adaptabilidade”, comenta Tinoco. É essa personalidade que sobressai, até hoje, nas construções de Luiz Nunes (o primeiro modernista em Pernambuco, contemporâneo de Lúcio Costa no Rio de Janeiro), como no prédio onde hoje funciona o Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB, seção Pernambuco, no Derby, datado de 1935; na obra de Amorim e Borsoi, cujos edifícios erigidos, de 1950 até hoje, definem a paisagem urbana recifense,
Nesses projetos, predomina a preocupação com a integração entre o edifício, seus habitantes e o entorno a exemplo do Caetés (1955), Pirapama (1956), Acaiaca (1957), Santo Antônio (1960) e Barão de Rio Branco (1969); e no que sobrou dos projetos de Mario Russo, um italiano que durante sete anos atuou na capital pernambucana, onde fez o plano urbanístico do campus da UFPE, outros prédios na cidade universitária e várias residências.
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EDIFÍCIO BRAGANÇA O vidro é elemento recorrente por permitir melhor iluminação natural
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VILLA MARIANA Perfeito exemplar do “edifício-quintal”, que pretende trazer para dentro de casa o contato com a natureza
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Uma dessas casas, na Avenida 17 de Agosto, nº 675, em Casa Forte, é emblemática. Erguida para abrigar a família de um médico, permaneceu inalterada até 1997, quando, adquirida por um banco, sofreu um processo que corrompeu e, por fim, aniquilou sua essência. “Embora fosse uma arquitetura mais dura do que a de Luiz Nunes, por exemplo, Mário Russo trazia para a escala residencial uma modernidade ímpar. Ainda criança, eu já achava essa casa impactante, diferente das outras. O que me leva a constatar que, na maioria das cidades onde se tem um patrimônio de valor, os arquitetos estão trabalhando muito mais em ‘re’ – requalificar, recuperar, reconstruir – em cima
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do patrimônio já construído do que em edificar propriamente. No Recife, a questão não é ter que conservar o moderno contra o contemporâneo, mas da repercussão da implantação do contemporâneo na agressão às cidades”, analisa Sônia Marques, professora da UFPE e atual coordenadora brasileira do Docomomo (Documentação e Conservação do Movimento Moderno), comitê internacional voltado para a preservação e salvaguarda do patrimônio moderno. Para Roberto Montezuma, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco – CAU/ PE, a modernidade já é um patrimônio e, como tal, deve ser resguardada,
Especialistas defendem que a modernidade deve ser preservada pela riqueza formal e peso simbólico não apenas por sua riqueza formal, mas também pelo peso simbólico. “O edifício moderno precisa ser respeitado. O novo tem que entrar em um colóquio com o que já existe. Afinal, a cidade é como um palimpsesto, feita de vários tempos. O valor da arquitetura moderna é o valor social do edifício no tempo.
Independentemente do próprio estilo ou da maneira de ser do edifício, aquilo carrega um valor social. A preservação do patrimônio não é só pela dimensão artística, mas também por essa dimensão. Macular essas experiências é uma insensibilidade. Essas experiências resistentes registraram um momento histórico e carregam a força da história econômica, ambiental e artística dos homens”, acredita. Ele cita como melancólico exemplo a casa que Borsoi construiu para viver com a família, no Bairro de Boa Viagem. “A casa dialogava com a vizinha e com a esquina de forma tão profunda, que deixava de ser uma peça individual para ser uma peça de valor urbano. Na hora em que transcende
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JONATHAS ANDRADE Em Nostalgia, sentimento de classe, o artista discute a degradação do patrimônio moderno
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EDIFÍCIO MIRAGE No projeto de 1967, Acácio Gil Borsoi utilizou geometrias marcadas por escalonamentos e pelo uso de ângulos obtusos
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o valor, incorpora um tecido urbano, como uma peça importante dele, que é a própria cidade. Para transformar numa lanchonete, cometeram um crime: esfaquearam e destruíram a casa. Deixou de ser um elemento dessa costura e passou a ser coisa banal, um edifício qualquer”, lastima. Desenhado em 1954 e concluído em 1957, o número 4.270 da Avenida Conselheiro Aguiar foi propriedade da família até 1968. “Ela foi comprada por um senhor que entendia o valor da casa e foi o primeiro a se interessar quando meu pai quis vendê-la”, recorda Marco Antonio Borsoi. Quando o proprietário morreu, os herdeiros optaram por alugar o imóvel. A metamorfose completa ocorreu em 2007; tamanha
foi a desfiguração, que nela já não se enxergam quaisquer resquícios do projeto original. Em Nostalgia, sentimento de classe, de 2013, mais uma vez Jonathas de Andrade assinala a degradação de um patrimônio que lhe é caro. Ao reproduzir, em 345 peças coloridas em fibra de vidro, um painel existente em um conjunto de casas modernistas localizado na Avenida Rosa e Silva, zona norte do Recife, ele cria um diálogo entre a obra, que sugere outra representação da memória, e um texto disposto na parede adjacente. Nos escritos sobre temas como arquitetura, história, vida em sociedade e civilização, algumas palavras são substitutídas por peças oriundas do
painel – subtraindo, propositalmente, um e outro do seu sentido original. “Talvez, para algumas casas como essas, a melhor maneira de protegêlas fosse esquecê-las. Mas a ideia de nostalgia se reporta a um passado como perfeito, sem reconhecer que o hoje é muito potente com todas as suas contradições. Não adianta sonhar com o Recife da década de 1950. É preciso pensar num tombamento possível, dentro da nossa condição latino-americana de precariedade, nessa condição tropical. O que não pode é a cidade descartar coisas que são da sua alma, da sua porosidade social, sob o risco de ficar enclausurada, triste, menos saborosa e mais rude”, pontua o artista.
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PRECEITOS MODOS RACIONAIS DE CONSTRUIR A arquitetura moderna difundiu-se pelo mundo inteiro no século 20, assumindo vocabulários distintos em cada país, mas mantendose fiel aos preceitos estabelecidos pelo franco-suíço Charles-Edouard Jeanneret-Gris, conhecido como Le Corbusier (1887-1965). Em suas origens, havia o claro ímpeto de se contrapor aos excessos do ecletismo e o tino para propor uma nova relação entre o homem e o espaço a ser construído.
MULLEROVA VILA, DE ADOLF LOOS
1. ANTECEDENTES
No século 19, vivia-se o ecletismo arquitetônico, que não traduzia as modificações da revolução industrial. Em 1908, o arquiteto tcheco Adolf Loos (1870-1933) redigiu o manifesto Ornamento é crime, uma crítica ao que ele reputava como excessivo na arquitetura europeia. Um dos principais nomes da art nouveau na década de 1890, o belga Victor Horta (1861-1947) abandonou as formas orgânicas após a 1ª Guerra Mundial e adotou o concreto armado, pregando o racionalismo. No período, também surgiram Walter Gropius (1883-1969) e Ludwig Mies Van der Rohe (1886-1969), idealizadores da Bauhaus, escola que pregava a limpeza visual e ausência de ornamentos.
VILLA SAVOYE, LE CORBUSIER
3. LE CORBUSIER
Para o arquiteto, a casa era uma “máquina de morar”. A Casa Citrohan (cuja primeira versão data de 1920) e a Villa Savoye (1928) são algumas de suas obras mais conhecidas. Em 1933, ele escreveu a Carta de Atenas, resultado do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) ocorrido a bordo de um navio. Sua versão do documento só seria publicada uma década depois. Os princípios por ele defendidos são identificáveis em projetos como o de Brasília.
PROJETO DE LE CORBUSIER PARA O MES
2. CINCO PONTOS PARA UMA NOVA ARQUITETURA
Coube a Le Corbusier esboçar o contorno definitivo da arquitetura moderna. Seguindo os princípios da Bauhaus, ele expôs ao mundo seus elementos essenciais nos Cinco pontos para uma nova arquitetura, publicados em 1926, na revista francesa L’esprit nouveau. Ei-los: uso de pilotis, pilares que elevam a construção do chão e criam um espaço para uso e circulação; planta livre, propiciando uma nova configuração espacial dos cômodos da casa; fachada livre e independente da estrutura; terraço/teto jardim, transferindo o verde para o topo do edifício; e janelas em fita/corridas, valorizando a ventilação, a iluminação e a relação com a paisagem.
CASA DA CASCATA, DE FRANK LLOYD WRIGHT
4. FRANK LLOYD WRIGHT (1867-1959)
O norte-americano foi outro grande expoente do modernismo arquitetônico, com uma linguagem de traços marcantes, influenciada pela natureza do seu país. Suas prairie houses, contemporâneas às primeiras obras de Le Corbusier, caracterizavam-se pela horizontalidade, pela liberdade na planta e pela integração com a paisagem. Entre seus trabalhos mais famosos estão a Casa da Cascata (1934) e o prédio do Museu Guggenheim (1959).
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PALÁCIO GUSTAVO CAPANEMA
PLANO PILOTO
5. BRASIL
Em 1928, o russo Gregori Warchavchik (1896-1972) ergue em São Paulo a “primeira casa modernista do Brasil”, na Vila Mariana. No Rio de Janeiro, Lúcio Costa (1902-1998) comanda a equipe que entra para a história com o Palácio Gustavo Capanema. Sob consultoria de Le Corbusier, Costa trabalha com Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos, com o então estagiário Oscar Niemeyer e com o paisagista Roberto Burle Marx. Até hoje, o prédio, com sua “imensa praça pública” de pilotis, é uma referência mundial.
6. BRASÍLIA
“No final dos anos 1950, em seguida à construção de Chandigarh por Le Corbusier, a cidade de Brasília aparece como o ponto culminante da Gesamtkunstwerk moderna, a ‘obra de arte total’ das vanguardas europeias lida por Mário Pedrosa como ‘síntese ou integração das artes’: uma comunhão entre as diversas esferas artísticas através do urbanismo”, definiu Guilherme Wisnik na apresentação do livro O concurso de Brasília, de Milton Braga. A “cidade-parque” virou símbolo do país desenvolvimentista da era Juscelino Kubitschek. HOSPITAL DAS CLÍNICAS
IAB/PE
7. PERNAMBUCO
Luiz Nunes (1909-1937) foi o pioneiro no modernismo pernambucano. O carioca veio ao Recife em 1934, a convite do governador Carlos de Lima Cavalcanti. Ele ficou até 1937 como chefe da Diretoria de Arquitetura e Urbanismo, quando concebeu e executou o prédio da Caixa d’Água no Alto da Sé, em Olinda, o Pavilhão de Verificação de Óbitos (atual sede do IAB-PE) e o reformatório de menores, hoje Reitoria da UFRPE. Usando a simplicidade dos recursos e os materiais existentes, criou prédios que possuem caráter vanguardista.
8. MARIO RUSSO
O arquiteto italiano Mario Russo (1917-1996) chegou ao Recife em 1949. Até 1956, participou da formação de uma geração de arquitetos “alfabetizados” na escola modernista. São de sua lavra o plano urbanístico do campus da UFPE e os projetos da Faculdade de Medicina, do Instituto de Antibióticos e do Hospital das Clínicas, ainda no âmbito da universidade. Desenhou, também, várias residências com aspectos do racionalismo e do modernismo de seu país de origem.
EDIFÍCIO CALIFÓRNIA
9. ACÁCIO GIL BORSOI
Em 1951, o carioca Acácio Gil Borsoi (1924-2009) e o português Delfim Fernandes Amorim (1917-1972) foram convidados a lecionar no curso de Arquitetura. Por 23 anos, Borsoi seria titular da disciplina de Grandes Composições de Arquitetura, tendo Amorim como assistente. De Borsoi, destacam-se os edifícios União (1953), Califórnia (1953), Caetés (1955), Santo Antônio (1960) e o Mirage (1967), bem como sua residência, na Avenida Conselheiro Aguiar (hoje desfigurada).
EDIFÍCIO PIRAPAMA
10. DELFIM AMORIM
São de Amorim os projetos dos edifícios Pirapama (1956) e Acaiaca (1957, em parceria com Lúcio Estelita), Santa Rita (1961), Barão do Rio Branco (1969) e Duque de Bragança (1970) – este último já na fase em que ele era sócio de Heitor Maia Neto. Nesses projetos, Amorim lançou mão dos brises-soleil, de cobogós ou peitoris elevados, para garantir iluminação e ventilação, de azulejos, para embelezar a fachada e de plantas com liberdade funcional.
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Artigo
GUILAH NASLASVSKY UM OLHAR SOBRE O PASSADO ARQUITETÔNICO MODERNO DO RECIFE Os moradores da cidade provavelmente se lembram do glamour dos tempos áureos da sede do Sport Clube do Recife, com amplos espaços, superfícies de mármore branco polidas, grandes panos de vidros transparentes, tubos de aço inoxidável brilhantes, amplas escadarias e elegantíssimo bar. Ou assistiram a um dos clássicos jogos de futebol no Clube Náutico Capibaribe, sobre as arquibancadas cobertas por delgadas lajes em concreto. Quantos dos recifenses não assistiram a programas de rádio ao vivo, no Antigo Palácio do Rádio à Avenida Cruz Cabugá? Quem não se deslumbrou com os filmes americanos exibidos no glamoroso Cine Art Palácio, com
tapetes vermelhos, vasos dourados e grandes painéis espelhados? A Praia de BoaViagem também oferece testemunhos, pois muitos verões foram ali passados na presença de postos salva-vidas – delgados tubos cilíndricos cobertos por lajes do tipo cogumelo, tudo em concreto – em residências pitorescas de veraneio, quase folclóricas, que representavam nossas várias modernidades, muitas delas herdeiras dos estilos difundidos pelo cinema americano. Eram verdadeiras “casas de cinema”, nas palavras de dona Marta Maia (esposa do arquiteto Heitor Maia Filho), como a famosa Casa Navio, ancorada no recém-ocupado Bairro de Boa Viagem. No centro de negócios da cidade, a Avenida 10 de Novembro, atual Guararapes, foram construídos arranha-céus, cartão-postal da cidade nos anos 1940, marcos de nossa modernidade, assim como o Terminal Rodoviário do Cais de Santa Rita, com formas e linhas aerodinâmicas. O Cassino Americano, também do período, ainda resiste à especulação imobiliária, mas pode estar com
dias contados, destino da antiga sede do Aeroporto dos Guararapes e do Hotel de Boa Viagem, quando Pernambuco “falava para o mundo”, slogan de programa da Rádio Jornal do Commercio, cuja antiga sede, no Parnamirim, também foi demolida. Espaços do Recife moderno que não existem mais e que hoje engrossam a lista dos “óbitos arquitetônicos”, na expressão de Luiz Amorim, sem ao menos terem sido registrados. Outros ainda resistem e são provas das técnicas construtivas, das novas demandas programáticas e das vanguardas estéticas que fizeram do Recife uma das pioneiras da modernidade arquitetônica nacional. Isso se deve, sobretudo, ao fato de o então governador Carlos de Lima Cavalcanti ter contratado, em 1934, o arquiteto moderno Luiz Nunes, formado na Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro (1933), que havia presenciado a visita de Le Corbusier ao Brasil e participado da greve em favor das reformas modernas no ensino nessa escola. Luiz Nunes – juntamente com um
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EM 1949 Plano Urbanístico da Cidade Universitária, de autoria de Mario Russo
Museu de Arte Moderna de Nova York (1942). Essa exposição e o seu catálogo (Goodwin, 1943) percorreram todos os EUA. A Caixa d’Água de Olinda foi um dos mais emblemáticos edifícios da exposição, publicado por diversas revistas internacionais.
MAIS MODERNO
Essa história não fica por aí. Em 1949, com o objetivo de modernizar o ensino e o curso de Arquitetura na recémcriada Universidade do Recife, foi contratado o arquiteto italiano Mario Russo, que projetou o Plano Urbanístico da Cidade Universitária, além de vários edifícios do campus. Em 1951, chegaram à cidade o arquiteto carioca Acácio Gil Borsoi e o
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grupo de modernistas, entre eles o engenheiro calculista Joaquim Cardozo (que posteriormente trabalhou ao lado de Oscar Niemeyer nas obras de Brasília), o paisagista Burle Marx (que aqui fez os seus primeiros jardins modernos), os desenhistas Hélio Feijó e José Norberto, Gauss Estelita, os engenheiros-arquitetos João Correa Lima e Fernando Saturnino de Brito (vindos do Rio de Janeiro), além dos, na época, estagiários Antônio Bezerra Baltar e Ayrton da Costa Carvalho – organizou a Diretoria de Arquitetura e Urbanismo. Nesse período, foram construídos hospitais, escolas, postos policiais, pavilhão de verificação de óbitos e a famosa Caixa d’Água de Olinda, nos quais foram desenvolvidas técnicas modernas de construção. Falecido em 1937, Nunes deixou alguns discípulos na Secretaria de Viação e Obras Públicas que, liderados por Baltar, projetaram o Palácio da Fazenda, exemplar que, juntamente com a Caixa d’Água e o Pavilhão de Verificação de Óbitos, fizeram parte, em fotografias, da exposição: Brazil builds. Architecture new and old. 1652-1942, no
O patrimônio moderno aqui edificado teve Le Corbusier como patrono e Luiz Nunes como precursor arquiteto português Delfim Amorim. Cada um trouxe na bagagem seu legado, seja o racionalismo italiano, o moderno carioca ou a herança portuguesa. Foram os ingredientes para criarem uma suposta, ou melhor, inventada Escola do Recife ou Escola Pernambucana, maneira de fazer local, segundo os estudiosos Yves Bruand (1981) e Luiz Amorim (2001) afirmaram existir, conciliando adequação ao clima tropical e à herança do passado colonial. Esses arquitetos fizeram casas belíssimas, com pilotis integrados a amplos jardins de Burle Marx, com esculturas de Corbiniano, vitrais e esculturas de Marianne Peretti, telhados levemente inclinados, grandes beirais, varandas e terraços, grandes panos de esquadrias protegidas por treliças de madeira (espécies de muxarabis). Também usaram painéis de azulejos decorados por Lula Cardoso Ayres, Francisco Brennand, Hélio Feijó, como também pelo arquiteto Delfim Amorim, que costumava revestir as superfícies dos edifícios com grandes painéis de azulejos com motivos geométricos, a exemplo do Edifício
Acaiaca, verdadeiras obras de arte integradas ao espaço urbano. O Edifício Califórnia é um dos que ainda resistem. Ele foi projetado com um programa moderníssimo, que previa, além de comércio e serviços, um cinema. Na Conde da Boa Vista, foram construídos edifícios também de uso misto com programas que conciliavam novas formas de morar, a exemplo do Pirapama. A proteção ao sol também foi motivo de criativas soluções. No Edifício Santo Antônio, Borsoi elaborou elementos vazados de proteção solar numa verdadeira renda em concreto, que contrasta com belas superfícies em tijolos aparentes. No interior, as escadarias em formas elípticas permitem ao observador apreender o espaço segundo a famosa promenade architecturale (passeio arquitetônico), tão característica dos espaços modernos. Evidencia também a criatividade do exímio arquiteto o projeto do Hospital da Restauração, cuja malha em brisessoleils de concreto marcam a paisagem na Avenida Agamenon Magalhães. O moderno também esteve presente nas sedes de grandes instituições, como aquelas que buscaram o desenvolvimento da região. A exemplo da Sudene, cujas fachadas curvilíneas de elementos vazados são marcantes, e as amplas plataformas são cobertas por grandes marquises, criando verdadeiros espaços públicos no interior do edifício. A Celpe, a Chesf, as antigas sedes do Bandepe, do Inamps, da Casa da Indústria (atual Fiepe) são alguns dos edifícios modernos que ainda resistem, mas precisam ser preservados. O mesmo se dá com os edifícios Barão do Rio Branco, projeto dos arquitetos Delfim Amorim e Heitor Maia Neto, premiado na época de sua construção, o Villa Mariana, projeto do arquiteto Wandenkolk Tinoco (um dos únicos protegidos), o Edifício Portinari e o Mirage, pérola da arquitetura de Borsoi. Essas são exceções que podem desaparecer, se a população e as autoridades não perceberem a riqueza da arte e arquitetura modernas presentes nesses espaços ou aprenderem a apreciá-los e preservá-los. Protegêlos seria um grande legado para as próximas gerações de recifenses.
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PRÁXIS O papel do cidadão
Arquitetos apontam que a preservação do acervo moderno depende da valorização e tomada de consciência de sua relevância pela população CONTINENTE MAIO 2014 | 36
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“Nossas sociedades ainda não consolidaram a ideia de que a arquitetura moderna é um produto cultural e que deve ser protegida para as futuras gerações. O reconhecimento de um edifício como bem cultural de uma comunidade leva certo tempo. Muitos edifícios modernos estão sob o risco de descaracterização ou demolição, mas vários deles ainda não tiveram seus valores reconhecidos pela sociedade”, expõe Fernando Diniz, arquiteto, professor do programa de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE e diretor-geral do Centro Avançados de Estudos da Conservação Integrada, no artigo Os desafios postos pela conservação da arquitetura moderna, resultado de uma pesquisa realizada no ICCROM – International Centre for the Study of Preservation and Restauration of Cultural Properties. A preservação do patrimônio, portanto, é indissociável do envolvimento dos cidadãos. De uma maior aproximação entre a arquitetura moderna e a população também se ocupa o Docomomo, coordenado no país pela professora e arquiteta pernambucana Sônia Marques. “Qualquer pessoa pode se filiar ao Docomomo. Aqui no Brasil, por vários fatores, é ainda basicamente um movimento acadêmico, um encontro de pesquisadores. Mas precisamos ir além, usar diferentes linguagens para atrair as pessoas. Porque, enquanto ficarmos nisso, não se conserva mais nada. Cai casa, cai igreja, cai prédio, cai tudo. O serviço do Docomomo é tentar mostrar essa importância a quem não está vendo e tornar esse patrimônio moderno visível e, se possível, amado. Através dessa visibilidade, poderemos salvar e preservar algumas coisas”, afirma. Esforços para ampliar o interesse pelo tema têm sido empreendidos também no âmbito institucional. Em 2010, o 19º Congresso Brasileiro de Arquitetos foi realizado no Recife sob o lema Arquitetura em transição e com uma homenagem a Acácio Gil Borsoi. Organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB, o encontro levou a seção local da entidade a discutir as ações de preservação. “A nossa própria sede fica em um prédio tombado, de autoria de Luiz Nunes, um dos primeiros expoentes
do modernismo. Entendemos que um dos papéis do IAB é atuar também na educação dos arquitetos e contribuir para diminuir o distanciamento entre a academia e o mercado. Nossas ações voltadas para a preservação passam por esse viés da formação. Tanto que, para o congresso, reeditamos o clássico livro de Armando de Holanda, Roteiro para construir no Nordeste, distribuído entre todos os participantes”, diz Vitória Régia Andrade, presidente do IAB-PE. Vitória Régia considera essencial que o debate sobre arquitetura ultrapasse as fronteiras universitárias. “Creio que em 2013 avançamos muito nesse sentido, com a atuação de grupos como o Direitos Urbanos. É preciso envolver sociedade, poder público e academia nesse debate, porque o que entra em jogo não são apenas o modernismo e as lições que o movimento deixou, mas a própria história da cidade”, complementa, citando o Direitos Urbanos/Recife (direitosurbanos.wordpress. com), grupo de discussões surgido para se opor ao projeto Novo Recife, iniciativa que construirá edifícios residenciais na área do Cais José Estelita, e que propõe um olhar vigilante sobre os rumos do desenvolvimento urbano na capital pernambucana. “Se estamos destruindo as marcas do passado, temos que repensar a política de patrimônio, enquanto cuidamos do que ainda está aí, a exemplo dos edifícios-sede da Celpe e da Sudene”, emenda Vitória Régia.
SUDENE
Construído por uma equipe técnica coordenada pelo engenheiro Pedro Gorgônia, da qual faziam parte os arquitetos Maurício Castro, Paulo Roberto de Barros e Silva, Pierre Reithler e Ricardo Couceiro, num terreno de 7,6 hectares doado pela UFPE, o edifício-sede da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene foi inaugurado em janeiro de 1974. Quatro décadas depois, no último mês de abril, o seminário Um prédio fantástico... foi organizado pela UFPE, pela Sudene e pelo Docomomo Brasil para marcar o início do processo de tombamento do prédio, seus anexos e jardins, concebidos pelo arquiteto e paisagista Burle Marx, junto ao Instituto do
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Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. “Começamos a discutir as características, a importância do prédio no contexto da arquitetura moderna, o panorama do pensamento arquitetônico e as edificações institucionais naquele período. Estamos levantando as informações sobre o conjunto. Haverá outras atividades e a ideia é preparar uma documentação para encaminhar o pedido de tombamento aos diversos órgãos municipal, estadual e federal”, comenta Luiz Amorim, professor da UFPE e integrante do Docomomo Brasil. Se, por um lado, deve-se salientar a importância de preservar o conjunto da Sudene, por outro, é crucial perceber a necessidade de conservação de outros prédios, isolados e menores. Em setembro de 2013, a demolição do número 375 da Rua do Futuro, nos Aflitos (zona norte do Recife), fez com
Numa lista de 395 imóveis de preservação no Recife, de 1997, restam 154, os demais foram destruídos que moradores da área recorressem às redes sociais para externar sua tristeza. Em menos de duas semanas, desaparecia outra casa moderna. “Aquela casa fazia parte da memória, do imaginário do Recife, cidade em que o modernismo teve uma concepção forte, regionalizada, com competência. Infelizmente, grande parte já foi perdida”, atesta Lorena Veloso, diretora da Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural – DPPC, órgão vinculado à Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife.
Responsável, na instância municipal, por reconhecer e salvaguardar tudo que deve ser protegido, a DPPC atualmente comanda uma revisão na relação dos IEPs – Imóveis Especiais de Preservação, instituídos pela Lei 16.284, publicada no Diário Oficial, em 23 de janeiro de 1997. No seu artigo segundo, o texto define os IEPs: “Exemplares isolados, de arquitetura significativa para o patrimônio histórico, artístico e/ ou cultural da cidade do Recife, cuja proteção é dever do Município e da comunidade, nos termos da Constituição Federal e da Lei Orgânica Municipal”. “Quando essa lei foi pensada e fechada, a lista inicial era de 395 imóveis, contemplando principalmente exemplares ecléticos. Por quê? Naquela época, pensava-se que a arquitetura moderna ainda era muito recente para preservar. A visão de patrimônio era muito encaixotada. Hoje se tem uma visão mais ampla, já se consegue
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MARIANA GUERRA
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discernir que aquele imóvel, não interessa se ele é bonito, feio ou se pertence a este ou àquele estilo, tem relevância para a cidade. Talvez, se tivéssemos esse discernimento não teríamos perdido tantos espécimes da arquitetura moderna”, aponta Lorena. Desse primeiro quantitativo de quase 400 IEPs, sobraram 154. Sobre esse contingente tem atuado a DPPC, em parceria com professores da UFPE. “Muitos desses são exemplares do modernismo, alguns projetados por Delfim Amorim ou Acácio Gil Borsoi. Nossa ação consiste em definir essa lista, o que é dificílimo, porque houve uma dilapidação muito grande”, explica a diretora da DPPC. Ela defende uma atualização da legislação, para que estímulos mais eficazes sejam oferecidos aos proprietários dos imóveis. No artigo 14, a Lei 16.284 institui as seguintes compensações: “Isenção parcial ou
total do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU; direito de construir na área remanescente do terreno do IEP; transferência do Direito de Construir”.
DESCARACTERIZAÇÃO
Lorena Veloso conta que, ao visitar um conjunto de casas modernas, ouviu a seguinte frase de uma moradora antiga, em diálogo com uma sobrinha: “Eu bem que avisei que a prefeitura vinha tombar essa casa e que deveríamos ter descaracterizado”. Meses depois, ao conseguir uma reunião com representantes da família proprietária, escutou piadas e recebeu cobranças. “Eles me disseram que aquilo tinha sido construído pelos pais deles, que eles poderiam fazer o que bem entendessem e que, se a prefeitura quisesse tombar, tinha que dar algo em troca. Eu respondi que não era hipócrita para não compreender esse direito. O cidadão tem o direito de propriedade assegurado.
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SEDE DO IAB-PE Projeto de 1937, de Luiz Nunes, funcionou primeiramente como Pavilhão de Verificação de Óbitos
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SUDENE Edifício-sede do órgão foi inaugurado em 1974 e é marcado pela monumentalidade
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DEMOLIÇÃO Exemplar moderno que se localizava à Rua do Futuro, nos Aflitos, seguiu o destino de várias outras casas do estilo
No entanto, pela Constituição Federal, esse mesmo cidadão deve reconhecer o que faz parte da memória da sua cidade. Direito de preservação contra o direito de propriedade: essa é a confusão jurídica que muitas vezes atrapalha a salvaguarda. É preciso criar uma sensação de pertencimento nessas pessoas para que elas se envolvam no processo, para que saibam que aquela casa é importante para a cidade”, situa. A reconfiguração da lista dos IEPs segue até setembro deste ano, quando será pedida uma nova salvaguarda dos imóveis escolhidos. Até lá, nada impede que alguns deles sofram descaracterizações ou venham ao chão. Talvez, o maior “desafio” seja engajar as “novas gerações” na causa da preservação. “Mentalidade não é chip de telefone, que podemos tirar e botar. Não acredito em catequese, nem em incutir nada na cabeça de ninguém, mas acredito em tornar os valores da arquitetura mais próximos do cidadão comum e que alguns setores poderiam ser mais sensibilizados. Os jovens, por exemplo, estariam aptos a criar uma consciência mais crítica”, argumenta a arquiteta Sônia Marques. “Não existe nada nem ninguém sem tempo e espaço”, resume Roberto Montezuma, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU/ PE. “Se você não se sente pertencendo a uma cidade, vai migrar para outra. Porque essa cidade formata algo em você, que é um citadino. O Recife é um conjunto de valores que pouco se tem levado a sério. Para ser essa cidade contemporânea que pretende ser, é preciso respeitar o conjunto arquitetônico do passado e incorporálo ao meio ambiente, às águas, às matas. A cidade contemporânea precisa respeitar seus legados. Uma cidade que não se respeita não é respeitada”, condensa. LUCIANA VERAS
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muitos edifícios foram construídos com meios baratos, na pressa do pós-Segunda Guerra, com boas ideias, materiais econômicos e bons arquitetos. Mas depois veio uma época muito rica – les temps glorieux – e as pessoas passaram a considerar esses edifícios não tão bonitos e não tão bons de olhar. Porque o concreto, por exemplo, não envelhece muito bem. E porque há também uma mudança de escala. Aí, as pessoas que não querem ou não podem mais ficar nesses lugares, decidem demolir. Elas querem tirálos do mapa, mesmo sabendo que há cidadãos que ficam tristes quando veem esses prédios explodidos, demolidos, porque sentem falta daqueles lugares.
Entrevista
AGNÈS CAILLIAU “QUANDO A ARQUITETURA É PERDIDA, ESPAÇO E LUZ DESAPARECEM” Ela é a presidente da filial
francesa do Docomomo, organização internacional fundada em 1990 com o propósito de catalogar, divulgar e proteger o patrimônio da arquitetura moderna. Como tal, Agnès Cailliau esteve em março no Recife para participar de encontro do Docomomo Brasil. A arquiteta é professora da École Nationale Supérieure d’Architecture de Normandie e possui um escritório voltado para a restauração de monumentos históricos. Em poucos dias na capital pernambucana, constatou a necessidade de um plano mais eficaz de defesa patrimonial. “Vi a
arquitetura moderna em todo lugar, mais até do que a arquitetura barroca do século 19. Isso torna as ações de preservação ainda mais urgentes e importantes”, comentou. CONTINENTE No Brasil, observa-se uma gradual destruição do patrimônio arquitetônico modernista. Como o Docomomo atua na sua preservação na França? AGNÈS CAILLIAU Na França, infelizmente, não é tão diferente. Não se preserva como se deveria. Não sabemos bem o porquê, mas não se quer proteger esses edifícios e monumentos. Talvez lá seja melhor do que no Brasil, mas não tanto. Creio que há algumas razões. A primeira é que o modernismo é uma arquitetura muito nova, bastante diferente do período anterior, principalmente nos materiais utilizados, como concreto e aço. São, de fato, dois períodos distintos e as pessoas não sabem como olhar para essa arquitetura diferente. Como não foram educadas para entendê-la, preferem não considerá-la. Uma outra razão é que
CONTINENTE Por que acontece isso? AGNÈS CAILLIAU Esses edifícios, em princípio, eram ótimos. Mas é claro que, com o tempo, passaram a ter problemas com elevadores, com reformas, e também a sofrer questões de segregação social. Ou seja, são condições não ligadas à arquitetura, até porque, na verdade, são prédios bons, integrados à paisagem, com ótimas vistas. Mas algo já não funciona mais. O Docomomo da França tem lutado contra a demolição desses prédios, alguns dos 1950, mas a maioria da década de 1970, todos com varandas com plantas, como se fossem jardins selvagens, e de altura de três ou quatro pavimentos, no máximo. Acontece que os prefeitos de algumas cidades recebem propostas vultosas, através da Agência Nacional de Renovação Urbana (ANRU) – um órgão criado em escala nacional para ajudar a abater completamente esses conjuntos arquitetônicos –, e preferem demoli-los. CONTINENTE Nesse contexto, qual o principal desafio do Docomomo? AGNÈS CAILLIAU O grande desafio é que as pessoas sejam instruídas, principalmente os mais jovens, que cada um possa ser educado sobre esse período interessante e importante da arquitetura, sendo capaz de perceber suas qualidades. A arquitetura modernista é tão ou mais interessante quanto a arquitetura
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medieval, a renascentista, a gótica ou mesmo a eclética e a barroca. Mas, como podemos educá-los? Creio que, a cada duas gerações, existe uma espécie de lacuna: as pessoas tendem a não gostar do que se construiu nos últimos 30 anos e querem seguir em frente. CONTINENTE Mas o lógico não seria aprender a olhar para trás e entender o passado enquanto cobiçamos o novo? AGNÈS CAILLIAU Sim, mas para isso é preciso que as pessoas com expertise, com conhecimento, estejam no centro das instituições estatais, ocupando cargos com poder de dizer “não” e de impedir alguma demolição. Porque o patrimônio arquitetônico, quando se perde, se perde. Não é como pintura ou mobília, que você pode colocar em outro lugar, esquecerse, e depois olhar de novo e dizer: “Oh, é interessante, quero usar de novo”. Quando a arquitetura é perdida, espaço e luz desaparecem. Não se pode colocar num CDROM. Aliás, o triste é que as pessoas, mesmo na França, quando querem demolir, dizem “Ah, não é problema, vamos fazer um filme e vai para o YouTube”. É preciso educação e profissionais no serviço público, no ministério, no governo, para proteger esses edifícios e monumentos. Durante um tempo, isso funcionou, mas o problema é que o governo socialista disse que não pode mais fazer isso. Eles já gastaram dinheiro para os estudos, as demolições, para essa nova arquitetura, e se acham no direito de ir à justiça e pedir de volta, caso alguém os queria impedir. CONTINENTE Como se posiciona o governo de François Hollande sobre a preservação arquitetônica? AGNÈS CAILLIAU Hollande é assim (faz um gesto com o polegar para baixo), igual à ministra da Cultura e das Comunicações, Aurélie Filippetti. Em pouco tempo, perdemos muitos lugares. Por exemplo, havia um mercado em Fontainebleau com uma fachada de concreto, que foi demolido. Em um primeiro momento, ficamos
felizes quando o governo disse que ia protegê-lo, e classificou a construção como um monumento histórico. Mas, depois, o prefeito da cidade decidiu que não e a ministra Filippetti disse “Bem, não temos o que fazer, vamos desistir”. Aquele mercado era um lugar real, com pessoas que trabalhavam nele, que vendiam seus produtos, que o frequentavam e que não queriam seu desaparecimento. Só que a burguesia não se importa com isso e não quer manter um mercado de concreto. CONTINENTE Houve outros casos de omissão do governo francês? AGNÈS CAILLIAU Infelizmente, sim. Em Rueil-Malmaison, região a oeste de Paris, havia um conjunto
“Esses edifícios eram ótimos, mas, com o tempo, passaram a ter problemas com reformas e também de segregação social” de escritórios construído nos anos 1960 para a Sandoz, uma companhia farmacêutica. O projeto era de Bernard Zehrfuss (1911-1996), um dos arquitetos do Palácio da Unesco, em Paris, com janelas e estrutura de metal de Jean Prouvé (19011984) e a participação do suíço Martin Burckhardt (1921-2007), que compreendia a sede e os laboratórios da companhia. Era um perfeito conjunto modernista, meio tardio, de 1968. Agora, já não existe mais nada. Foi demolido. Mais uma vez, o prefeito venceu o Ministério da Cultura e a ministra não ousou desafiar a prefeitura. Obtivemos muitas assinaturas de arquitetos e o apoio do International Council on Monuments and Sites (Icomos). Colocamos um alerta no site do Conselho, fizemos um dossiê no do Docomomo e, durante dois anos, tentamos combater essa iniciativa, porém não conseguimos. No fim, eles alegaram que o edifício não estava em boas condições, o que não era verdade, e que o novo arquiteto era bom também.
CONTINENTE Como o Docomomo estabelece as estratégias de preservação? AGNÈS CAILLIAU Na França, tentamos fazer com que todos saibam que esse é um período relevante no mundo inteiro, em que tivemos muito movimento. Arquitetos viajavam, deslocavam-se, e as revistas começavam a ser lidas em todos os países. Foi assim que a arquitetura moderna do Brasil influenciou a França, por exemplo. Em Royan, ao sul de Bordeaux, os arquitetos encarregados da reconstrução depois da guerra foram completamente influenciados por Oscar Niemeyer. Eles viram uma edição da L’architecture d’aujourd’hui – AA com o trabalho de Niemeyer e essa revista influenciou definitivamente os desenhos, os projetos, o planejamento urbano e os conceitos dos edifícios. Hoje, Royan é uma bela cidade. CONTINENTE Que outros exemplos franceses podem ser citados nesse processo de salvaguarda da arquitetura moderna? AGNÈS CAILLIAU Dez anos atrás, Le Havre foi classificado como patrimônio mundial pela Unesco. É uma cidade modernista por excelência. As pessoas que viviam lá, e nada sabiam, ficaram completamente estupefatas com a notícia e mudaram de ideia a respeito de sua própria cidade. Repare que, antes da classificação pela Unesco, elas não conseguiam enxergar a importância do conjunto arquitetônico da cidade. Agora, sendo Le Havre um patrimônio mundial, todos estão orgulhosos. Há um imenso outdoor na autoestrada dizendo isso. Como isso foi feito? O professor Joseph Abram, um especialista na obra de Auguste Perret (1874-1954), ajudou a mostrar aos moradores como o projeto de Perret da reconstrução da cidade no pós-guerra possuía extrema relevância. Hoje, existe, inclusive, um apartamento original projetado por Perret que serve de testemunha, com mobília doada pela população. Acredito que iniciativas assim ajudariam muito o Recife. De repente, um apartamento neste prédio (o Edifício Barão de Rio Branco, na Boa Vista) contribuiria para reconhecer e manter o espírito arquitetônico daquela época.
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Pernambucanas COBOGÓ O elemento chave da construção moderna 1
1 SERVIÇO Os elementos vazados são encontrados com frequência em áreas de circulação
Usado para facilitar a ventilação e a iluminação de edificações, esse objeto genuinamente pernambucano encontra usos na arquitetura assinada e na vernacular, em que se aclimatou bem TEXTO Adriana Dória Matos FOTOS Josivan Rodrigues
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Alguns fatos transformam a
nossa vida e deixam testemunhos. Isso aconteceu a Josivan Rodrigues, Antenor Vieira e Cristiano Borba que, juntos, realizaram o belo Cobogó Pernambuco, livro sobre o encontro entre um comerciante português, um importador alemão e um engenheiro pernambucano que engendrou a criação do elemento construtivo tornado marca registrada da arquitetura moderna brasileira e, por extensão, tropical: o cobogó. A ideia de encontro fica mais evidente quando sabemos que o nome de tal objeto resulta da junção das primeiras sílabas dos sobrenomes de cada um deles: Amadeu Coimbra, Ernst Boeckmann e Antônio de Góes.
Bem podemos imaginar, naqueles fins dos anos 1920, o alemão suando com o calor das terras daqui e matutando duas coisas: como atenuar aquela situação desagradável e ainda ganhar algum dinheiro. Em conversa com o português – que ele tinha conhecido ainda na Europa e de quem se tornara sócio –, Boeckmann lembra uma viagem à Índia, quando pôde observar certos balcões (conhecidos como jharokas) com elementos vazados (as treliças), que ajudavam na ventilação e resguardo das casas. Aquilo levou Coimbra à memória dos muxarabis árabes, tão bem apropriados pela arquitetura portuguesa. Quase ao mesmo tempo, os dois concluíram: eram recursos muito
semelhantes aos usados em duas casas de influência moura localizadas na Cidade Alta de Olinda. Bastava adaptar essas boas ideias dos árabes e indianos – que bem conheciam o calor – aos materiais de então. O alemão importava cimento, estruturas de ferro, entre outros produtos da industrialização, que serviriam perfeitamente àqueles fins. Era encontrar alguém que pusesse em prática a proposta. O terceiro elemento viria a ser o engenheiro pernambucano Antônio de Góes, que concebeu os tijolos vazados fartamente apropriados pela arquitetura moderna, numa invenção com carimbo pernambucano. A patente do “novo systema de blocos de concreto para construção denominado ‘blocos perfurados
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2-4 DOCUMENTAÇÃO No livro Cobogó Pernambuco, Josivan Rodrigues empreende vasto registro do elemento 5 CAIXA D’ÁGUA À época em que foi construído, em 1934, o edifício recebeu críticas 6-7 MATRIZES Formas de metal em desenhos variados recebem o preparo de cimento, que se tornará cobogó
Como sintetiza o arquiteto Cristiano Borba, na introdução ao Cobogó Pernambuco, os profissionais se apropriaram de elementos da tradição arquitetônica associados às características climáticas locais (sobretudo considerados os fatores luz e vento), à redução de custos e à industrialização dos processos construtivos, numa correlação que resultou numa “linguagem própria para a arquitetura moderna local, sintonizada com o discurso da modernidade brasileira deflagrado desde a Semana de Arte Moderna de 1922”. Se, de início, o cobogó foi utilizado em edificações “luxuosas”, assinadas por arquitetos renomados, com o tempo, ele foi ganhando popularidade, porque cumpria exatamente as funções a que se destinava desde o início: sendo barato, ajudava o cidadão comum a iluminar e ventilar sua residência com o simples recurso de aplicar no muro, na fachada e nas paredes da casa aqueles tijolinhos de diferentes tamanhos, materiais e formas geométricas que, ainda por cima, permitiam certa abertura entre o ambiente privado e o público (aliás, como observamos nos muxarabis árabes e jharokas indianas, cujo princípio era o de também “ver sem ser visto”). E mais, não esqueçamos, os cobogós poderiam servir a fins estéticos, compondo ricos adornos e paisagens construídas.
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Pernambucanas COBOGÓ’” foi registrada em 1929 e, cinco anos depois, o elemento construtivo seria usado de forma plena e extravagante em projeto do arquiteto carioca, radicado no Recife, Luiz Nunes. Se a Caixa D’água de Olinda contrasta hoje com as edificações coloniais do Alto da Sé, dimensione isso nos anos 1930... Foi um projeto tão
criticado, à época, como têm sido hoje os de espigões envidraçados erguidos prodigiosamente no Recife. Mas, como tudo está relacionado às circunstâncias políticas e econômicas, o cobogó foi se firmando entre os construtores e especialistas hegemônicos do período, a despeito das reações negativas iniciais à Caixa D’Água.
CATALOGAÇÃO VISUAL
Motivado pela “estética do cobogó”, o fotógrafo Josivan Rodrigues deu início à pesquisa imagética, que resultou em Cobogó Pernambuco. O projeto foi iniciado formalmente em 2010 (o livro foi lançado no segundo semestre de 2013), mas desde 2005 Josivan “anotava” mentalmente os lugares onde havia exemplares atraentes, no que se refere aos padrões gráficos e às tipologias. Ele só passou a fotografá-los quando encontrou o arquiteto Antenor Vieira (falecido antes da impressão do livro),
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que trabalhava em preservação de sítios históricos, com quem estabeleceu os critérios da publicação. Com uma favorável propensão colecionista, Josivan Rodrigues passou um ano e meio registrando variados tipos de cobogós no Recife e em Olinda, no centro e na periferia. As duas ocorrências lhe interessavam: tais elementos aplicados na arquitetura vernacular e na arquitetura assinada, nos marcos arquitetônicos da cidade. Com o material registrado em mãos, a edição foi dividida em duas narrativas distintas e complementares, a fotográfica e a textual. Assim é que esse trabalho atingiu objetivos oportunos diante da escassez de publicações do gênero. Primeiro, pelo destaque do objeto e pela qualidade das fotografias, evidencia a função estética do cobogó, sua “poética”, com escreve Borba. Depois, serve como um testemunho inequívoco sobre a invenção pernambucana, esclarece
Embora outros revestimentos sejam predominantes hoje, o cobogó surge em projetos vintage e em casas populares
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sua origem, seus usos (a propósito, os pesquisadores encontraram, registraram e reproduziram no livro cópia da patente do produto), isto, por especialistas, os autores arquitetos. Em suas andanças e registros, Josivan foi percebendo as idas e vindas no uso do elemento vazado na arquitetura local, durante o século 20. Ele constatou, por exemplo, que raras vezes o cobogó encontra protagonismo, sendo mais comumente encontrado nos bastidores, em corredores, áreas de serviço, em escadas de edifícios.
Também de uma coisa se sabe: muitas casas do Recife que destacavam o cobogó em suas fachadas e varandas foram demolidas. Um exemplo recente de desvalorização do cobogó foi a demolição do revestimento, conhecido como “Véu de Noiva”, que Luiz Nunes realizou – sob encomenda dos proprietários –, em 1959, para o edifício Luciano Costa, localizado à Rua Marquês de Olinda, no Bairro do Recife. Hoje, o prédio ostenta sua fachada eclética original, malconservada. O olhar crítico do fotógrafo o levou a considerações sobre como a arquitetura atual contrasta com aquela de baixo impacto ambiental que estava sendo proposta pelos modernos. Ele classifica a contemporânea como uma “arquitetura de confinamento” em estufas de vidro e ar-condicionado. Então quer dizer que o cobogó é um elemento histórico em vias de extinção? Podemos dar uma resposta negativa a essa pergunta, quando observamos que há pessoas interessadas no uso desse material construtivo e que é possível encontrar fabricantes do produto, as duas pontas fundamentais para que ele continue a existir. Seja apropriado por populares ou por aqueles que querem dar às suas edificações um ar vintage, o cobogó persiste também entre pesquisadores e curiosos que – com a contribuição de gente como os autores de Cobogó Pernambuco – encontram nesse simples elemento vazado uma relação com a história e a arquitetura do Brasil antigo e de várias culturas que nos são relacionadas.
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COLEÇÕES O universo mágico das figurinhas
Mania pelos álbuns de cromos se mantém entre crianças e adultos; entre os temas reincidentes estão personagens de animações e times de futebol. Em ano de Copa, aumenta a corrida às bancas de revistas em busca das novas edições TEXTO Marcelo Abreu
Na manhã de um sábado recente,
um garoto de 10 anos chegou à Banca Yale, no Bairro do Rosarinho, no Recife, acompanhado do avô. Estava colecionando três álbuns de figurinhas (Brasil de todas as Copas, Liga dos Campeões da Europa e Copa do Nordeste) e procurava trocar os cromos repetidos. Já tinha cumprido sua missão, quando, na hora de ir embora, enxergou numa prateleira no interior da banca mais um álbum de futebol, o da Premier League, o principal campeonato da Inglaterra. Pediu ao avô para comprar mais aquele e não aceitou a negativa baseada no argumento de que ele já estava colecionando, simultaneamente, três livros ilustrados. Chorou e esperneou. Insistia em ter também mais um álbum porque, além da paixão pelo futebol, era irresistível a sensação de abrir pacotes e colar figurinhas. As pequenas fotos que surgem dos pacotes rasgados vão, aos poucos, ao serem coladas, compondo um quadro maior nas páginas, retratando ídolos do esporte, do cinema ou da TV, automóveis, monstrinhos
ou princesas. A beleza e o colorido são os principais componentes do deslumbramento que toma conta dos colecionadores de todas as idades. Mas, ao lado do prazer visual, há também uma forte sensação olfativa e tátil. Impossível não pensar no cheiro agradável de papel novo e da tinta de impressão que se sente ao abrir o envelope, como também não dá para esquecer o prazer que se tem ao manusear a superfície deslizante da figurinha, o contato das mãos com a textura das páginas do álbum, repletas de adesivos. Numa época em que muitos propagam a iminente desmaterialização da cultura e a virtualização de quase tudo na área do entretenimento, o ato de colecionar figurinhas de papel, um resquício do mundo moderno, pré-digital, sobrevive com grande vigor. É uma atividade típica da cultura de massa do mundo industrial, uma brincadeira infantojuvenil que remete aos tempos das matinês de cinema, revistas em quadrinhos, pipocas, sorvetes, chicletes, brincadeiras com bola
de gude, peão, bonecas, patins e bambolês. Todos são produtos que, apesar de definirem a experiência de ser criança, continuam fascinando muitos na vida adulta. Nas bancas de revistas, as figurinhas autoadesivas apaixonam as crianças. Entre os adultos, são objetos antigos guardados e mostrados aos filhos ou aos netos. Esses itens da memória afetiva, lembranças e vivências que levam de volta à infância (no caso dos colecionadores adultos), ou reforçam a infância ainda presente, fazem girar também a economia. Somente no Brasil, pelo menos oito editoras lançam dezenas de livros ilustrados a cada ano. A editora italiana Panini é a multinacional que domina o mercado de álbuns esportivos. Apesar de invisível para muitos, é um setor que envolve toda uma rede de editores, distribuidores, bancas de revistas e consumidores. A Panini, sozinha, imprime, em várias partes do mundo, entre cinco e seis bilhões de figurinhas ao ano, quase uma para cada habitante do planeta.
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CROMOS ROUBADOS
Todos os anos em que se realiza a Copa do Mundo é a mesma história. Colecionadores correm às bancas de revistas em busca dos pacotinhos de figurinhas dos jogadores das 32 seleções participantes. Este ano, com a copa sendo realizada no Brasil, espera-se uma movimentação ainda maior por aqui. Na Copa de 2010, as figurinhas foram parar até nas páginas policias dos jornais, quando cinco homens armados invadiram uma distribuidora em Santo André, na Grande São Paulo, renderam 30 funcionários e levaram 135 mil cromos. A polícia recuperou parte do roubo, mas, dias depois, um novo assalto a um caminhão de distribuição levou mais 200 mil cromos. As ações demonstram o valor econômico da aparente brincadeira de criança. Para alguns, os roubos lembraram o enredo de um livro infantojuvenil lançado em 1969, e ainda hoje em catálogo, com mais de 60 edições publicadas. Em O gênio do crime, o autor João Carlos Marinho conta a história de um álbum de figurinhas que estava sendo colecionado por garotos. Naquela época, era muito comum que os álbuns dessem prêmios – como aparelhos de TV, rádio ou liquidificador – a quem completasse cada uma das páginas. Para dificultar a tarefa dos
Editoras garantem que não existem mais figurinhas raras, que todas são fabricadas e distribuídas na mesma quantidade colecionadores, os editores costumavam prender a circulação de algumas figurinhas – que ficavam sendo consideradas raras ou difíceis –, para que somente poucos conseguissem completar. Só que, na história inventada por Marinho, uma gráfica clandestina decide imprimir os cromos raros e colocá-los no mercado. Um grande número de crianças começou a completar o álbum e a exigir os prêmios. A editora original foi à falência e teve de requisitar os serviços de um garoto com jeito de super-herói para resolver o problema. Atualmente, no mundo real, as editoras garantem que não existem mais figurinhas raras, que todas são fabricadas e distribuídas na mesma quantidade. Mas persiste o mito de que algumas – as cromadas, por exemplo – são mais valiosas do que outras. A internet, em vez de prejudicar, neste caso, ajuda os colecionadores. As editoras
incentivam as pessoas a encaminhar, pelo site, pedidos de cromos que faltam, permitindo que todos possam completar suas coleções. Além disso, o site Troca figurinhas tornou-se uma plataforma útil para encontrar cromos do presente e do passado. Há quase 1.600 álbuns cadastrados, alguns exemplares até da década de 1950. Mesmo no caso dos mais antigos, tem sempre gente querendo trocar ou comprar, para conseguir talvez aquela raridade que ficou faltando no álbum da Copa de 1970, por exemplo.
ESPECIALISTA
No Recife, a Banca Zapp, no Bairro do Derby, acabou se especializando nesse mercado. Num único dia, é possível encontrar por lá até 20 álbuns diferentes sendo vendidos simultaneamente, com temas para todos os gostos. Além dos populares sobre futebol, recentemente têm sido comercializadas figurinhas com temas de filmes de animação como Aviões, Peabody e Sherman e Smurfs 2, desenhos da TV como Bob Esponja, novelas juvenis como Violetta 2 e Chiquititas, personagens como Chaves, Tartarugas Ninja, Ben 10 e Angry Birds e Galinha Pintadinha. Há também livros ilustrados com ídolos musicais, filmes de Hollywood e até sobre religião.
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1 DIVERSÃO Álbuns são incrementados com passatempos 2 CLÁSSICOS Figuras de jogadores sãos as mais procuradas durante campeonatos
Jesus dos Passos, dono da banca, diz que vem investindo no segmento há 12 anos, para ocupar um nicho de mercado. Todos os sábados, ele monta um toldo para abrigar a turma que chega para trocar repetidas. E, uma vez por mês, leva a iniciativa ao Recife Antigo de Coração, evento que ocorre no Bairro do Recife. De acordo com Passos, a popularização dos gadgets digitais não prejudicou este tipo de colecionismo. “Pelo contrário, só tem crescido o movimento e tenho vendido até para pessoas do interior onde não há bancas”. Ele acrescenta que a tentativa das editoras de fazer álbuns virtuais não tem dado muito certo, tanto que, ao abrir os pacotes da Liga dos Campeões, por exemplo, as crianças abandonam no chão, imediatamente, o cartão com o código que dá direito a colecionar o álbum virtualmente e concentram-se nos cromos em papel. “Elas querem mesmo é pegar nas figurinhas físicas.”
O PRECURSOR ITALIANO
No Brasil, atuam editoras como a Abril (no segmento de álbuns sobre filmes), a Topps, a Kromos, a Alto Astral, a Online Editora, a Deomar, entre outras. Mas é a multinacional Panini que domina o mercado brasileiro e mundial. O italiano Giuseppe Panini, ex-dono de banca de revistas, que havia se tornado distribuidor, fundou a editora em 1961, quando decidiu comprar um lote de cromos inutilizados e inventar um álbum para eles. O empresário não foi o criador da figurinha nem dos livros ilustrados de futebol, mas foi quem, junto com quatro irmãos sócios, transformou a brincadeira numa indústria mundial. Em cinquenta anos, o grupo mudou de dono cinco vezes e expandiu-se para outras áreas editoriais. Hoje, tem filiais em 10 países e vende seus produtos em mais de 100. Com 900 funcionários, teve em 2012 um faturamento de 637 milhões de euros (cerca de R$ 2,1 bilhões). E, principalmente, detém os direitos exclusivos da Fifa para os álbuns de
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futebol das competições oficiais – além de contratos com as ligas nacionais de futebol em muitos países. A força dos cromos na Itália é tanta, que existe até um museu especializado no assunto, em Modena, cidade onde fica a sede da Panini e que é considerada a “capital mundial da figurinha”. Aberto ao público desde 2006, o Museo della Figurina é baseado no acervo doado por Giuseppe Panini, em 2002, à municipalidade de Modena. Até então, a coleção era mantida fechada no interior da empresa. O atual acervo do museu tem mais de 500 mil itens, entre figurinhas, cards e outros objetos afins. As exposições contam a história do hobby desde o seu surgimento, na França. Considera-se que as primeiras
figurinhas foram impressas em 1867, em Paris, pela Lithographie Bognard, para a revista Au Bon Marché, que tratava dos pavilhões montados para a Exposição Universal da Arte e da Indústria, realizada em Paris naquele ano. Durante décadas, as figurinhas serviram para a promoção de produtos comerciais. Elas são consequência do surgimento da cromolitografia, processo gráfico que permitia imprimir rapidamente grandes quantidades de imagens a cores. Foi uma revolução, no século 19. De repente, as pessoas tiveram acesso relativamente barato à reprodução gráfica de imagens de boa qualidade, antes só acessíveis aos ricos, através de pinturas. Tudo isso veio numa época de rápida industrialização
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3 JESUS DOS PASSOS Dono da Banca Zapp especializou-se na venda de álbuns de figurinhas
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e transformação urbana na Europa. As figurinhas se tornaram imediatamente um tema que não podia ser ignorado em qualquer sociologia da infância ou história do cotidiano.
CARÁTER IDEOLÓGICO
Os álbuns de figurinhas são retratos preciosos das épocas em que foram publicados e refletem a ideologia dominante. Eles acompanharam de perto todo o século 20, a era de ouro do cinema de Hollywood, a difusão das histórias em quadrinhos, a retomada dos filmes de animação nos últimos 20 anos, a música pop, a transformação do futebol numa indústria bilionária mundial. Até os anos 1970 (ainda com figurinhas que precisavam de cola para serem afixadas), eram comuns, além do futebol e da cultura pop, os álbuns sobre figuras ilustres e vultos históricos. Havia uma certa preocupação didática que, evidentemente, refletia posições políticas dominantes na época em que circularam. No Brasil, de onde saíram vários álbuns generalistas que misturavam um pouco de tudo – de ídolos do automobilismo a animais
Até os anos 1970, eram comuns, além do futebol e da cultura pop, os álbuns com figuras ilustres e históricas exóticos – havia espaço, no começo da década, para cromos que retratavam o chamado “Brasil grande”, defendido pelo regime militar, com figurinhas que comemoravam obras como a construção da Transamazônica e da ponte RioNiterói, ou que mostravam o generalpresidente Emílio Garrastazu Médici.
GRANDES ACERVOS
O desembargador paulista Moacir Andrades Peres é conisderado o maior colecionador do país. Ele diz ter cerca de três mil álbuns diferentes, entre os quais 200 realmente valiosos. Além de colecionador contumaz, Peres adquiriu acervos de outras pessoas para aumentar o seu e exibe, como troféu, a primeira figurinha de Pelé,
em 1957, ainda como um adolescente magro, usando um bigodinho. No Recife, um dos colecionadores mais assíduos nas bancas em que há troca de cromos é Geraldo André da Silva, de 68 anos. Ele tem cerca de 60 álbuns completos – sem contar alguns que foram perdidos numa chuva que invadiu sua casa. É absolutamente eclético em seu gosto. Coleciona de futebol a princesas, passando por animais selvagens e carros. Tem, entre seus trunfos, o livro ilustrado completo de As Aventuras de Perna e Buco, uma curiosa campanha feita pelo governo do estado para estimular as crianças a trocar notas fiscais pelas figurinhas e que foi um sucesso em Pernambuco, com mais de 400 mil exemplares distribuídos, no início da década de 1980. Silva é um daqueles colecionadores natos, pessoas que sentem prazer em guardar tampinhas de garrafa, moedas, cards, chaveiros, selos, latas de cerveja, tudo o que possa ser catalogado, uma verdadeira testemunha da paixão humana pelas coleções. As figurinhas representam um universo supostamente infantil que nunca abandona as pessoas. Ao conversar com os pais e avós que acompanham as crianças às bancas onde são realizadas trocas nos fins de semana, é comum ouvir histórias que dão conta da retomada da paixão na idade adulta, quando os filhos estão aí, por volta dos seis, sete anos e começam a se interessar por esses objetos. Mas os filhos crescem, abandonam o hábito na adolescência e alguns pais, no embalo, continuam as coleções, decididos a não mais esquecer a antiga curtição de infância. Avós relatam a frustração de não terem tido dinheiro para colecionar cromos quando eram crianças e, hoje, para compensar, investem o que podem nos álbuns dos netos. Quanto às crianças, elas não tiram os olhos dos maços de figurinhas repetidas dos colegas de troca-troca. Não perdem tempo com divagações. Curtem a atividade de forma visceral e imediata, ainda sem nostalgia e sem o sentido do tempo que passa.
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Viagem
ESSAOUIRA A fortaleza do Marrocos
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CIDADE-PATRIMÔNIO Localizada na costa atlântica do país, Essaouira tem na pesca uma de suas fontes de renda
Conhecida pela diversidade cultural e religiosa, cidade foi cenário para Otello, de Orson Welles, e, nos anos 1960, entrou no roteiro turístico de estrelas do rock TEXTO Luís Patriani FOTOS Fernando Martinho
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Dominada por diferentes povos
e fonte de inspiração de muitos artistas, a antiga Mogador se revela o epicentro criativo no norte da África. Na costa atlântica do Marrocos, uma ensolarada cidade tombada como Patrimônio Histórico da Humanidade, chamada Essaouira, parece lançar algo de diferente no ar. O aroma, tal qual o cheiro exalado por qualquer outra comunidade do planeta que sobreviva da pesca, é de peixe fresco, de maresia. A atmosfera desse distinto recanto marroquino, no entanto, por onde já passaram fenícios, romanos, portugueses, berberes e árabes, está carregada de elementos multiétnicos e culturais a inspirar quem entra em contato com seu espírito criativo. Particularmente, os artistas.
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Assim como a força dos ventos alísios do Atlântico Norte, que atraem kitesurfistas, ou a abundância dos cardumes de atum retirados do mar, Essaouira – cujo porto de Timbuktu, no século 19, aglutinava povos como epicentro da rota comercial entre a África subsaariana, o Marrocos e a Europa – transborda história e arte. Orson Welles foi um dos célebres impregnados pelo ambiente instigante e irradiante da cidade, que se chamava Mogador (nome português derivado do vocábulo fenício migdol, que significa pequena fortificação), no fim do período em que era dominada pelo reino de Portugal. O autor de Cidadão Kane filmou grande parte de Othello, o mouro de Veneza, na fortaleza lusitana do século 16 que, em meados do século 18 – já dominada pela Dinastia Alauíta – foi reconstruída pelo engenheiro francês Théodore Cornut sob os princípios da arquitetura militar europeia. Detalhe: tudo projetado em harmonia com os padrões estéticos e urbanísticos árabes-muçulmanos, a exemplo da pequena medina (cidade murada) erguida junto ao porto e ao forte. O orçamento baixo, os improvisos e a falência, durante as filmagens, do patrocinador do projeto encaminhavam a obra de Welles, baseada na peça teatral de William Shakespeare, ao fracasso. A vocação cinematográfica de Essaouira, contudo, ajudou o diretor a explorar todos os seus ângulos e a extrair uma intensa profusão de contrastes de luz e sombra. Basta lembrar a cena de abertura do filme (na peça, é seu epílogo), em que o cortejo fúnebre do general veneziano e sua esposa (ele a matara por ciúme e, em seguida, suicida-se, ao saber da sua inocência) acontece sobre a muralha defensiva em frente ao oceano. O vigor da relação dos atores com o cenário revela o poder expressionista de Orson Welles, marcado pelas cenas dramáticas de ciúme, inveja, racismo e traição da obra shakespeariana. Mesmo com todos os contratempos, Otello conseguiu ganhar a Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 1952. Na década seguinte, no auge da contracultura dos anos 1960 e início dos 1970, foi a vez dos hippies elegerem Essaouira como sua meca no norte da África. Mick Jagger, Paul Simon, Frank Zappa, a banda Jefferson Airplane, Cat
Stevens, que, por coincidência ou não, depois de usufruir muitos verões na cidade, adotou o nome Yusuf Islam e se converteu ao islã, são alguns exemplos. Julian Beck e Judith Malina, fundadores do grupo nova-iorquino de teatro experimental Living Theatre, que misturavam palco com arte visual, também se renderam à ebulição da antiga Mogador, alugaram uma casa, onde passavam longas temporadas, e deixaram para trás quadros psicodélicos pendurados nas paredes que inspiraram artistas locais. A presença de Jimi Hendrix, por sua vez, rende até hoje muitas lendas. A mais notória diz que o músico teria composto a clássica Castles made of sand, do álbum Axis: bold as love, depois de conhecer a ruína de um forte próximo a uma praia em Essaouira. Apesar de falsa, já que a canção foi gravada em 1967 e ele esteve na região em 1969, a história faz parte dos contos do universo onírico e inebriante da cidade.
VIELAS
Venerações hippies à parte, o encanto de andar pelas vielas da pequena e preservada medina é tão real quanto a constatação de que a herança multiétnica está por toda parte. Descendentes de escravos da chamada África Negra, cujos antepassados vieram para cá na época em que o porto escoava produtos da rota transaariana, vendem roupas coloridas, máscaras e colares usados no passado em ritos e festas tribais de países como Mali, Senegal e Burkina Faso. Junto a eles, nos chamados souks (mercados), povos berberes e árabes comercializam seus tradicionais tapetes, cada um com técnica própria, textura, forma e cor. Alguns feitos com lã de camelo e mais de nove mil nós chegam a custar 600 euros e levam 10 meses para ficarem prontos. Em meio a barracas de especiarias e oficinas de madeira (Essaouira é famosa pela marchetaria de tuia, uma árvore típica da região), pintores e escultores de arte naïf (caracterizada pelo autodidatismo, traços ousados e uso de cores vivas e primárias) expõem suas obras nas ruas. Nas galerias de arte, a exemplo da Damgaard, o espaço é para artistas mais famosos, como Mostafa Assadeddine e seu simbolismo africano, que já
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CON TI NEN TE#44
Viagem expôs em Paris e ganhou prêmios de arte primitiva na Suíça, e Mohamed Erraad, com seus personagens animalescos e fantasmagóricos. A diversidade religiosa, por sua vez, evidencia-se no Mellah, o bairro judeu, cuja comunidade, que chegou a representar 40% da população no século 18, desempenhou um importante papel, quando o sultão Mohamed Ben Abdallah fez uso dela para estabelecer relações com judeus na Europa e organizar as atividades comerciais com o velho continente.
Apesar da maioria da comunidade judaica ter ido embora para Israel, França e Canadá, ao fim da Segunda Guerra Mundial, é possível ver sinagogas, em especial a de Simon Attias, do século 19, lado a lado com igrejas católicas portuguesas e mesquitas muçulmanas. O convívio pacífico, assim como a estabilidade social, política e econômica do Marrocos, é uma das marcas dessa monarquia constitucional islâmica, reestabelecida em 1957, após conseguir a independência da França.
MÚSICA DE TRANSE
De volta à cena multicultural da cidade, a partir do final do século 20, o auge da efervescência artística em Essaouira acontece no mês de junho, quando é
realizado o festival internacional de música gnawa, chamada de música de transe, que atrai milhares de pessoas do mundo todo no evento que é considerado um dos maiores do Marrocos. Durante os quatro dias do festival, as vielas da cidade fortificada servem de palco para diversos shows e jam sessions de gnawa music, originária da combinação de elementos da tradição de descendentes das irmandades negras de escravos (que foram tomadas a partir de Mali, Guiné e Gana para ser transportados no porto de Essaouira) com o folclore islâmico. Os rituais noturnos de transe geralmente duram toda a noite e são marcados pela dança, cantos e outras cerimônias para incentivar os espíritos que habitam um corpo humano a se
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SOUKS
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GRAFITES
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HERANÇAS
Nesses mercados, berberes e árabes comercializam artesanato Arte de rua expressa o destaque que a música encontra na cidade Povos que habitam a cidade vivem em diferentes estratos culturais e temporais
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conectar e curar a alma. Marcada pelo caráter religioso e por uma frase musical repetida inúmeras vezes (pode durar horas, sem interrupções), a música gnawa é tocada por instrumentos peculiares. O hajhuj, um baixo de três cordas, e o hajhouj, uma guitarra feita de couro de camelo e cordas de raízes de árvores secas, são acompanhados por tambores chamados de ganga e grandes castanholas de ferro. O tempo, no entanto, trouxe um aspecto profano para a espiritual tradição e hoje apresenta fusões que misturam jazz, rap, blues, música eletrônica e reggae. Os shows são divididos em programações diferentes, mas complementares. Na primeira parte, a
Elementos multiétnicos marcam esta cidade, que já foi habitada por fenícios, romanos, árabes e portugueses partir das 23h, os Maalem Gnaoua e suas bandas tocam entre seis e nove horas a versão pura e tradicional de gnawa music. No meio da madrugada, começam as apresentações de grupos, muitos deles de países da Europa e dos Estados Unidos, de jazz e outros gêneros. Uma curiosidade em torno da música gnawa e um artista do Brasil: durante o
Festival de Música Gnawa de 2012, o ministro da Cultura de Essaouira, Mohamed Amine Sbihi, e o ministro da Habitação, Nabil Benabdellah, assinaram um acordo para a criação de um centro cultural na cidade e convidaram o arquiteto Oscar Niemeyer para desenvolver a proposta. Esse foi o último projeto dele. Inspirado na figura de uma gaivota voando sobre a orla de Essaouira, Niemeyer fez uso das formas curvilíneas e arredondadas que caracterizam seu estilo, para desenhar o prédio que será composto por uma biblioteca de literatura e um anfiteatro para 300 pessoas. Após a morte de Niemeyer, que já havia finalizado a planta, o arquiteto marroquino Rachid Andaloussi irá gerenciar o andamento da construção.
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BELLA CARDIM/DIVULGAÇÃO
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DESIDRATAÇÃO Técnica antiga (e eficaz) de preservar alimentos
A humanidade encontrou no uso do sal a melhor forma de conservar comidas, hábito que vem sendo mantido, mesmo depois do surgimento da refrigeração TEXTO Eduardo Sena
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CARNE DE SOL Apesar do nome, o seu processo de conservação é feito mais pela combinação do ar e do sal do que pela luz solar
O sociólogo da alimentação Mássimo Montanari nos lembra que “Em caso de penúria ou carestia, quando o habitual repertório de produtos repentinamente se reduz, são colocadas em ação sofisticadas estratégias de sobrevivência, diversas entre si, mas unidas por uma regra geral: mesmo no afastamento forçado das práticas costumeiras, deve-se permanecer o mais próximo possível da própria cultura”. O tratado do escritor italiano, registrado no livro Comida como cultura, é uma das chaves da porta que dá acesso ao porquê da técnica milenar de desidratação ser usada com recorrência até hoje. Pode conferir. Está registrado na História. A primeira geladeira surgiu apenas no século 19, em meados de 1834, nos Estados Unidos, pelas mãos do inventor Jacob Perkins. No Brasil, só chegou em 1934. Mas, antes desse período, muito antes, aliás, a humanidade já tinha os seus artifícios para dar conta de seu instinto primitivo – a fome. Por meio do sal, obteve a técnica da desidratação e secagem, na qual se procura remover ou diminuir a quantidade de água no alimento. Como o líquido, formado pelas moléculas H²O, é essencial para a vida, evitava-se que fossem criadas condições para o desenvolvimento de bactérias e micro-organismos. Devido à importância da comida para a sobrevivência humana, o método de conservação por meio do sal é uma das tecnologias mais antigas usadas pelos humanos. Dois mil anos antes de Cristo, o tempero já era utilizado na China, Babilônia e no Egito com essa finalidade. Bem antes das primeiras fábricas de processamento de pescados surgirem na Noruega, no século 9, os romanos já salgavam peixes em tanques no Mediterrâneo, e os vikings desidratavam o bacalhau com a especiaria e deixavam-no secar ao ar livre. Pelas terras tupiniquins, a técnica só chegou com os portugueses, que, rapidamente, a implantaram na Colônia, como registrou o poeta viajante Pyrard de Laval, na Bahia, em 1610, no artigo Na Bahia colonial: “É impossível terem-se carnes mais gordas, mais tenras e de melhor sabor.
Salgam as carnes, cortam-na em pedaços bastante largos, mas pouco espessos. Quando estão bem salgadas, tiram-nas sem lavar, pondo-as a secar ao sol; quando bem secas, podem conservar-se por muito tempo”. Desse tempo, e falando especificamente da Região Nordeste, herdamos a carne de sol. “Na verdade, deveria se chamar de carne de vento, uma vez que o controle de sua transformação é muito mais feito pela combinação do ar e do sal do que propriamente pelo sol”, sugere o pesquisador e sociólogo em alimentação Raul Lody. Bisneto de um produtor de carne de sol do interior da Paraíba, que passou a tradição para a família, o cozinheiro Wanderson Medeiros carrega 122 anos de expertise na produção do insumo e explica com legítimo empirismo: “Leva o sobrenome ‘de sol’, porque era retirada da cura, feita nos próprios quintais das casas, nos primeiros raios da manhã”. Como era uma fórmula executada no interior de estados do Nordeste, durante a noite e na madrugada, horários nos quais a carne ficava curando, a temperatura era bastante fria, o que potencializava a técnica. Com o advento da geladeira, e até mesmo do condicionador de ar, a técnica continua a mesma, mas muda o artefato tecnológico – o que não deixa de alimentar uma identidade comestível. Wanderson conta que produz mensalmente cerca de uma tonelada de carne de sol no próprio restaurante de selo regional, o Picuí, na capital alagoana. “Utilizamos os cortes do contrafilé e filé mignon, e, para cada quilo deles, usamos 40g de sal fino para curar a carne, que deve estar com cortes, para que o sal penetre com mais facilidade”, explica. Em seguida, a carne é deixada durante quatro horas em uma câmara fria, tal qual uma geladeira. Após esse tempo, verifica-se se existe algum ponto vermelho na peça, já que o sal escurece a proteína. Se houver alguma área não curada, identificada pelo tom rubro, põe-se mais sal na região e leva-se a carne para o congelador por cinco dias. “Depois desse tempo, a carne de sol já está pronta. Para o consumo, é necessário lavar a carne,
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IMAGENS: ANDRÉ NERY/DIVULGAÇÃO
2 CHARQUE Na sua produção, para evitar que a carne fique seca, são sempre escolhidos cortes com gordura
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3 MANJUBA Após ser pescada, é salgada e depois vendida nas feiras do interior 4 MOQUÉM Os indígenas brasileiros assavam a carne como um método de desidratação e conservação
e deixá-la repousando em uma tigela com água por 30 minutos. Faça isso três vezes, e finalize da forma que quiser: na brasa, no forno, frita na manteiga de garrafa”, sugere o chef. Pode-se dizer que a propriedade conservante do sal foi um fator que influiu decisivamente na ocupação do território brasileiro. “O charque, outro resultado dessa técnica, junto à farinha de mandioca, foi a base da alimentação dos boiadeiros nordestinos que avançaram pelo interior em direção ao sul do país, prospectando terras, bem como dos bandeirantes paulistas que seguiram pelo noroeste em busca de novas riquezas”, lembra Lody. Ao contrário da carne de sol, o charque não necessita de refrigeração para sua desidratação. O montante produtivo também se destaca, é feito em larga escala e transportado por longas distâncias. No preparo, a carne bovina é desossada, cortada em largos e delgados pedaços, conhecidos como mantas, salgada com bastante sal (cerca de 2 cm por cima das peças), empilhada e posta em galpões arejados. Sempre se escolhem cortes ricos em gordura para evitar que a carne fique seca. Para facilitar o processo, é constantemente mudada de posição. Após essa etapa, é rapidamente lavada para retirada do excesso do sal, seguindo para exposição solar.
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DO MOQUÉM AO PIRAÉN
Mas nem sempre é necessária a combinação sal e sol para desidratar.
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REPRODUÇÃO
Quando escreveu História de uma viagem à terra do Brasil, o intelectual francês Jean de Léry tornou mundialmente pública a técnica indígena do moquém. “Colocam a carne cortada em pedaços, acendendo um fogo lento por baixo, voltando a carne e revirando de quarto em quarto de hora até que esteja bemassada. Como não salgam suas viandas para guardá-las, como nós fazemos, esse é o único meio de conservá-las”, escreveu. O viajante, que veio registrar os hábitos e as particularidades da terra recém-descoberta, inclusive (e sobretudo) os de mesa, fazia menção ao moquém, esboço de churrasqueira composto por grelhas de varas utilizado pelos índios para “moquear” (assar) os peixes na brasa. Três séculos depois, o aventureiro italiano Conde de Stradelli, que passou 43 anos morando na região amazônica, detectou em suas pesquisas a técnica do piraén, que nada mais é do que o peixe salgado e seco ao sol. Ou seja, nesse hiato de três séculos, ficou claro que a influência portuguesa se disseminou nas aldeias, agregando um novo tipo de preparo culinário voltado à conservação. No caso dos pescados, existem três métodos de salga: a seca, na qual o peixe é coberto de sal; a úmida, imerso em uma salmoura; e a mista, quando o processo começa seco e termina úmido. Em ambos, o sal consegue penetrar nas fibras, expelindo a água. Bom exemplo do tipo seco são as piabas e manjubas, que, após serem pescadas, são imediatamente salgadas (cerca de 30% de sal para o peso do peixe) e postas para secar ao sol. Dali em diante, resistem dias a fio, sem apodrecerem, e chegam às feiras públicas e mercados do interior dos estados. Depois de serem fritas, viram proteínas de subsistência para o homem sertanejo. “Normalmente se come com farinha. E, como é salgada, dá logo sede. A água faz volume no estômago com a farinha e o cidadão fica satisfeito”, conta o pescador e ambulante Carlos do Camarão, que vende o peixe salgado, e o crustáceo que lhe rende a alcunha nos arredores do Mercado de São José, no Recife. Já as sardinhas salgadas (também chamadas de sardinha de cambiteiro), bastantes recorrentes nos mercados
O bacalhau é fruto da técnica milenar de salgar e secar os peixes da família dos gadídeos, conhecidos por sua pouca gordura públicos, são frutos do método misto. São, primeiramente, desidratadas a seco em tanques, e depois completam a “cura” na salmoura que se forma naturalmente. “Ainda assim, se você quiser um maior tempo de conservação, é bom colocá-la no sol para secar depois, para perder um pouco da água que fica”, recomenda o pescador.
BACALHAUS
Do mar também vem o bacalhau. E aqui é bom dar razão ao ditado português que diz: “Bacalhau não é peixe nem é carne. Bacalhau é bacalhau”. Bacalhau nada mais é que a técnica milenar de salgar e secar os peixes da família dos gadídeos, conhecidos por não terem muita gordura. O mais famoso (e mais nobre) é o Gadus morrhua, do Atlântico Norte, seguido do Gadus macrocephalus, do Pacífico, do zarbos, do ling e do saithe.
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O Brasil também tem sua versão de “bacalhau”, o pirarucu, das águas doces da Amazônia, conhecido como “bacalhau amazônico”, que, por conta do baixo teor de gordura na carne, passa pelo mesmo processo de maturação. Todos eles são curados pelo método seco, já que são peixes magros. Segundo o autor Harrold McGee, na obra Comida e cozinha, é preferível salgar peixes magros a seco e os gordos em barris, por conta do ranço causado pela gordura. “Por meio do contato com a luz e o oxigênio, a tendência da gordura é oxidar. Com a oxidação, naturalmente, virá o ranço. Por isso o motivo de preferência em salgar peixes gordos com métodos que os protejam desses fatores, como os barris”, esclarece o escritor. Com os pés nas raízes nortistas, mas também de olho nos novos aparatos tecnológicos, o chef Thiago Castanho, à frente do Remanso do Peixe e Remanso do Bosque, em Belém do Pará, resolveu esse entrave, curando o pirarucu a vácuo. “Sem ar, o peixe fica protegido do ranço, mas tem o sabor alterado pelo processo de desidratação que ocorre em baixa pressão. No final das contas, a salga acontece de forma mista, já que a salmoura também atua dentro do vácuo”, explica o cozinheiro.
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Claquete PRAIA DO FUTURO Um homem partido ao meio Numa coprodução Brasil/Alemanha, o novo longa de Karim Aïnouz explora o ponto de vista estrangeiro num universo predominantemente masculino TEXTO André Dib
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O litoral nordestino e a capital da Alemanha parecem não ter nada em comum. No entanto, ambos guardam espaços e lacunas à espera de personagens, histórias e sentidos. Se a Praia do Futuro vive à sombra de um projeto desenvolvimentista abandonado, Berlim sobreviveu a duas guerras mundiais, ao nazismo, ao comunismo soviético e, agora, ao capitalismo que se apropria dos terrenos baldios gerados por tudo isso junto. Como a cidade que escolheu para viver, dividida por um muro por quase 20 anos, Donato é apresentado como “um herói partido ao meio”. Impossível olhar para a foto escolhida para o cartaz e não lembrar do Capitão Nascimento, o emblemático personagem vivido por Wagner Moura. No entanto, as semelhanças param por aí. De pai de família e líder de um destacamento militar ultraviolento em Tropa de elite, o ator passa a imigrante que assume a homossexualidade do outro lado do mundo. Como Karim falou em entrevista à Continente, é interessante observar essa inversão pelo viés político. Enquanto o próprio Wagner Moura pediu à imprensa do Festival de Berlim para que não tratasse a homossexualidade como uma questão, o filme o mostra em tórridas cenas de sexo gay. “Não sei o que vai acontecer. Vamos ver”, diz o cineasta.
ESTRANGEIRO
Em fevereiro passado, a agenda de Karim Aïnouz esteve mais apertada do que o usual. O motivo se chama Praia do Futuro. Desde 2008, quando Tropa de elite ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, nenhum filme brasileiro havia sido selecionado para a competição oficial. Com lançamento comercial confirmado para 15 de maio, Praia do Futuro leva o ator Wagner Moura para a Alemanha, de forma bem diferente do trabalho que o revelou para o mundo. Encontrei Karim dois dias depois do festival, em restaurante próximo
de onde ele mora, no Bairro de Neukölln, para conversar sobre o novo filme. Na última década, o diretor cearense dividiu seu tempo entre o Brasil e a Alemanha. Da experiência, nasceu essa obra sobre mistérios, fugas e recomeços. Recorrendo à mitologia do herói contemporâneo, os irmãos protagonistas Donato (Wagner Moura) e Ayrton (Jesuíta Barbosa) se aventuram em quadrantes vazios ou subaquáticos, sob os sugestivos codinomes de Aquaman e Speed Racer.
No início de Praia do Futuro, encontramos Donato debaixo d’água, tentando salvar um banhista do afogamento. Esforço em vão – o bombeiro interpretado por Wagner Moura amarga a primeira vida perdida de sua carreira. No entanto, Konrad, o amigo da vítima, interpretado pelo alemão Clemens Schick, surge como paixão que arrebenta laços, certezas e outras acomodações. De carona nesse sentimento, Karim fez um filme marcado por uma atmosfera de fascínio e estranhamento, própria do ponto de vista estrangeiro, mais ligado à leveza, à intuição e ao descompromisso do que à cartilha do cinema convencional. Em termos práticos e econômicos, o filme é uma coprodução oficial
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Claquete Brasil/Alemanha (a primeira dentro de um novo acordo de cooperação estabelecido entre os dois países). No entanto, em sua essência, Praia do Futuro não tem lugar definido, ao menos, não geograficamente. A beleza plástica, garantida pelo fotógrafo Ali Olay Gözkay, é mais um ponto forte. A luz, ora buscada em ambiente tropical, ora na neblina invernal do Mar do Norte alemão, torna o filme uma peça única na filmografia de Karim, que já trabalhou com Walter Carvalho em Madame Satã e O céu de Suely, Heloísa Passos, em Viajo porque preciso, volto porque te amo, e Mauro Pinheiro Jr., em Abismo prateado. De origem turca e formação cinematográfica alemã, Ali acrescenta a esse trabalho uma experiência anterior marcada pela poesia e pelo existencialismo, o que lhe confere uma nova e poderosa dimensão. Por exemplo, na segunda sequência subaquática, feita em domo cilíndrico de 30 metros de altura e elevador panorâmico, um rigoroso movimento vertical seduz e confunde a percepção de tempo e espaço, dando início ao bloco mais intenso e dinâmico do longa. Fazendo jus à fama de extrair ótimas performances dos atores, Karim dessa vez foi além com Jesuíta Barbosa, talento premiado pelo papel do soldado Fininha, em Tatuagem, atualmente popularizado pelo trabalho na TV. No papel de irmão abandonado, Jesuíta cumpre a função de catalisar uma trama, acima de tudo, existencial. Como nos quadrinhos de superheróis, nos quais busca inspiração pop (além da boa trilha sonora, que inclui Heroes, de David Bowie), Praia do Futuro compõe um universo predominantemente masculino, em que as poucas mulheres são coadjuvantes (a colega de trabalho, a balconista) ou ausentes (a mãe). Por outro lado, ao contrário das aventuras de Aquaman e Speed Racer, em Praia do Futuro não existem vilões definidos. “Não acredito em vilões”, diz Karim. Se existem inimigos, eles são internos.
Entrevista
KARIM AÏNOUZ “AQUI SOU UM COMPLETO ESTRANGEIRO” CONTINENTE O personagem Donato abandonou tudo para viver em outro país. Quais são as suas motivações? KARIM AÏNOUZ São milhões de razões, mas é importante não deixar claro o motivo da mudança. A falta de resposta pode causar frustração em parte do público, mas é preciso haver um lugar no cinema contemporâneo onde se possa imaginar, em vez de ter uma resposta clara. No caso do Donato, o que me interessa é mostrar um personagem que pertence a um lugar de maneira tão forte, que, para poder existir, ele precisa se desenraizar completamente. Isso para mim é uma questão central, no sentido
psicológico, do personagem. Donato pertence muito àquela água, àquele pedaço de praia. Mas, como salvavidas, fica 80% do tempo olhando para o horizonte. Ele é um cara calado, não articula o que sente. Faz e depois tenta entender, de maneira atrapalhada. Mas, como explicar por que se apaixona por alguém? São razões que não se podem articular. CONTINENTE Talvez essa seja uma das condições do imigrante. KARIM AÏNOUZ É a condição de quem se desarvora de um lugar e se enraíza em outro. Achei importante falar do desconforto de estar em algum lugar e de como isso pode se resolver com a travessia, com a viagem. De como essa inquietude tem um preço. CONTINENTE Considerando a sua história, essa parece ser uma questão bastante pessoal. KARIM AÏNOUZ Depois que vim para cá, tive uma sensação muito
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próxima vez, seria bom contar com um agente de vendas desde a largada, observando o que pode funcionar em cada país. Em Praia, a Match Factory entrou depois do filme pronto. CONTINENTE Como Wagner Moura se inseriu no projeto? O fato de ele ter interpretado o Capitão Nascimento influenciou em algo? KARIM AÏNOUZ Tenho vontade de trabalhar com ele desde Abril despedaçado, no qual fui roteirista. Mas não tinha surgido um papel em que ele fizesse sentido. Quando Praia começou a tomar forma, ele já era um ator famoso. E surgiu a excitação de tirar um personagem de um contexto e colocar em outro, completamente diferente. Claro que não foi por conta da bilheteria de Tropa de elite, seria muito ingênuo da minha parte. Criar esse “ruído” foi bonito e muito produtivo, pois precisamos de uma provocação política para que o discurso avance.
próxima de quando morei na França. Lá, eu era tratado como argelino, por isso fui embora, pois era algo que eu não sabia o que era. Depois, fui fazendo as pazes, isso deixou de ser um problema, para ser parte de mim. Em Berlim, o que me interessa é que eu não tenho lastro. O máximo que pode acontecer é alguém achar que sou turco, e fica por aí. Aqui, sou um completo estrangeiro, estou em outro lugar do mundo. Para quem procura sensação de casa pode parecer estranho, mas tenho a noção de que esta é uma cidade que nunca vai me pertencer. Não sei até quando isso vai me inspirar, mas hoje é algo que me dá muito prazer. CONTINENTE Quais os prós e contras em trabalhar no sistema de coprodução? KARIM AÏNOUZ Realizamos algo que nunca foi feito antes, que envolve mecanismos precisos e complexos. Por outro lado, é sempre bom contar com o olhar crítico lançado de ambos os lados. Quero fazer de novo, mas, da
CONTINENTE A dinâmica do filme fica mais intensa na parte final, quando entra Jesuíta Barbosa. KARIM AÏNOUZ Fiz isso de propósito. Até certo ponto, há uma construção clássica, um personagem que não se define, outro sem curvas dramáticas. No momento em que Jesuíta entra, com um registro de interpretação completamente diferente, ele assume função de vetor dramático. Para você ter uma ideia, coloquei-o para fazer boxe por quatro meses. CONTINENTE Esse é seu primeiro trabalho com o fotógrafo turco Ali Olay Gözkaya. Como isso influenciou a parte criativa? KARIM AÏNOUZ Estamos construindo uma colaboração. Ele admira Fassbinder como eu, temos um filme em comum, O medo devora a alma, e, a partir daí, encontramos uma série de coincidências, como a vontade de trabalhar com melodrama. O que foi bonito no trabalho do Ali e que, enquanto eu estava no caminho de certo naturalismo, ele foi buscar um registro próprio para o filme. Foi um diálogo complexo, que começou bem, mas, no processo, passou por
atritos, com ele buscando algo mais formal enquanto eu queria a impureza. Ali foi formado na Escola de Berlim, em que a precisão é tanta, que filmar um ator e uma cadeira parece a mesma coisa. É um projeto de dramaturgia que eu não dou conta, me interesso por outras coisas. Não estou acostumado com o rigor, costumo buscar o erro, o acidente cinematográfico. Brigamos muito, sempre com o objetivo de chegar a um lugar que faça sentido para o filme. CONTINENTE O que você considera um acidente cinematográfico? KARIM AÏNOUZ É quando não tem aposta clara de cena, ou um plano definido. No Praia, tem uma cena toda vermelha, com os personagens dançando. Ali quis fazer em tripé, e eu disse a ele: “Sem chance”. Levaria mais de um mês para desenhar aquela cena e entrar no modo de produção Kubrick, o que não era o nosso caso. A busca pelo acidente foi colocar os personagens naquela situação e ver como eles vivem a ação. E fazer isso foi complicado, pois Ali aposta em cenas muito precisas e eu acho que, às vezes, é necessário um certo frescor no ato de filmar, que é também o de documentar. CONTINENTE Por outro lado, você trabalha com preparadora de elenco, a Fátima Toledo, o que demonstra algum desejo de controle. KARIM AÏNOUZ Pelo contrário, ela fez uma preparação para o descontrole, de deixar o ator em carne viva, cansá-lo, para ficar à flor da pele e não pensar muito. Isso deixa o ator zerado, desconstruído. E quando se trabalha com uma mise-enscène predefinida e colocamos um ator, ele até pode sair de quadro, mas não há o que ser descoberto visualmente, em termos de espaço. Por isso nossa decupagem foi planejada, mas a movimentação dos atores, não.
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INDICAÇÕES DIVULGAÇÃO
GUERRA
A VOZ ADORMECIDA Dirigido por Benito Zambrano Com María León, Miryam Gallego, Inma Cuesta Imovision
As irmãs Pepita e Hortênsia são marcadas pelo regime franquista: a primeira é militante de esquerda, está grávida e detida; a outra é ingênua e foi presa apenas pela ligação familiar. O cotidiano das detentas é de espera angustiante. Um dos momentos mais marcantes da história espanhola, a Guerra Civil, é tratado com a sensibilidade necessária para revisitar um momento histórico a partir do drama individual. Grandes atuações e bom roteiro.
DRAMA
BALADA DE UM HOMEM COMUM
Dirigido por Ethan e Joel Coen Com Oscar Isaac, Carey Mulligan, Justin Timberlake Paris Filmes
Llewin Davis é um músico folk de talento que sonha, naqueles anos 1960, em poder viver de música. A forma como Davis deposita dor e frustração em suas músicas é seu destaque. O longa, com ótima fotografia (cheia de frieza e solidão), narra os infortúnios e prazeres de um homem ordinário, reconhecida qualidade dos diretores Ethan e Joel Coen. Balada de um homem comum é um filme atual sobre pessoas ofuscadas.
Claquete Entre vales
BARCINSKI RETOMA DISCUSSÃO DE MORTE E LUTO Temas como perda, seguida de luto, parecem ser assuntos recorrentes na filmografia de Philippe Barcinski. Carioca radicado em São Paulo, o diretor lança este mês seu segundo longa-metragem, Entre vales. Estrelado pelo ator Ângelo Antônio, o filme conta a história de Vicente, um economista que, ao lado do filho Caio e da esposa Marina, leva uma vida confortável, até que uma sucessão de acontecimentos trágicos o levam a uma trajetória de desapego, que chega ao ponto de o protagonista viver como catador de lixo num aterro sanitário. No curta Palíndromo (2001), Barcinski se vale de um recurso não linear para provar que uma narrativa também pode ser compreendida de tal forma, como que se fosse contada cronologicamente. No novo filme, esse artifício também se faz presente, e, desta vez, cenas do passado são mescladas às do presente para contextualizar a tragédia – a bela fotografia de Walter Carvalho nos transporta às doces lembranças, bem como à dura realidade de Vicente, como num sonho alegre que se metamorfoseia num pesadelo sem fim. Assim como no longa de estreia Não por acaso (2007), temos aqui mais uma fábula da tragédia humana e o que acontece quando o homem perde tudo o que há de mais precioso, reduzindo-se a nada, a um ser descartável e esquecido. Nesse sentido, a metáfora do lixo cai perfeitamente, pois a presença dele é tão forte quanto à do personagem principal, tanto para ambientar toda a desgraça vivida por ele quanto para mostrar sua renovação. Mas até mesmo a agridoce reconstrução de Vicente não surge como uma mensagem de esperança de dias melhores: ele precisa juntar os cacos para conseguir sobreviver, mas não mais para ser feliz. A própria reciclagem do lixo. OLIVIA DE SOUZA
COMÉDIA/DRAMA
OS SABORES DO PALÁCIO
Dirigido por Christian Vincent Com Catherine Frot, Jean d’Ormesson, Hippolyte Girardot Europa Filmes
O longa apresenta a chef Hortense Laborie no momento em que é convidada para trabalhar com o presidente da França. O luxo exacerbado do Palácio do Eliseu e a relação de Hortense com ele são mostrados em ritmo forte, no começo, substituído pela contemplação. A cozinha em que a chef realiza seu trabalho fica num local simples, que ignora a ostentação ao redor. Ótima atuação de Chaterine Frot e boas reflexões.
DRAMA
PHILOMENA
Dirigido por Stephen Frears Com Judi Dench, Steve Coogan, Sophie Kennedy Clark Paris Filmes
A jovem Philomena engravida. Na Irlanda da década de 1950, a reação de seu pai é enviá-la a um convento, onde seu bebê é entregue para adoção, fato que ela nunca aceita. Meia década depois, com a ideia fixa de um rencontro, ela divide sua história com um jornalista, que resolve ajudá-la. Baseado no livro The lost child of Philomena Lee, o longa tem atuações comoventes de um elenco em sintonia, além de roteiro e direção que enxergam a história com delicadeza.
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DIVULGAÇÃO
Sonoras
HEAVY METAL A redenção de um gênero musical
Livro faz levantamento da história do estilo em Pernambuco, acompanhando o seu desenvolvimento até o ingresso do Recife na rota internacional TEXTO Rogério Mendes Coelho
É notável o espaço que o heavy metal
passou a ocupar nas últimas décadas em Pernambuco. Considerado por muitos um gênero musical hostil, em virtude da agressividade e ortodoxia de suas propostas, acreditou-se que ele estaria fadado ao ostracismo. Entretanto, recentemente, músicos e produtores locais tomaram iniciativas que promoveram formas mais objetivas de pensar e desenvolver o estilo. Alheios a editais públicos de financiamento e contrariando uma prática comum entre os artistas
independentes de Pernambuco, músicos e produtores de heavy metal investiram em projetos que fizeram do estado um dos principais polos da música pesada no país. Distante de apoios oficiais, a livre-iniciativa passou a orientar um processo de maturação empreendedora interessada em gerar público, profissionalizar músicos e eventos, e buscar parcerias com pessoas e coletivos de outras regiões. Foi dessa forma que produtores tiveram uma contribuição significativa na maneira de (re)
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1 IRON MAIDEN Banda britânica reuniu um total de 30 mil pessoas nos shows que fez no Recife em 2009 e 2011
pensar a logística e apresentação da música “pesada” local. Os fãs acenaram de maneira positiva à iniciativa, e projetos engavetados, ambicionando protagonismos, começaram a sair do papel no interesse de atender aos anseios de uma demanda periférica reprimida. O resultado é que os metalheads cada vez mais empreendem e conquistam espaços e reconhecimento. Além de festivais independentes, como o Abril Pro Rock – a exemplo do que ocorre em grande parte do mundo –, passaram a dar maior atenção às bandas de metal. Produções desse tipo têm acontecido com frequência, a ponto de colocar o Recife na rota internacional de turnês de artistas relevantes. O resultado é que a maior abertura da mídia e das produções têm sido importantes para a maturação do underground local.
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
Sonoras
2 HEADBANGER Casa de Humberto Brito foi um dos pontos de encontro do metal 3 MORBID ANGEL Show da banda americana no Clube Português, em 2009 4 TRASH Cartaz de um dos projetos musicais promovidos no estado
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Aos poucos, o “patinho feio” da indústria cultural local, não muito silenciosamente, ganha evidência, por mais que isso ainda pareça estranho a muitos. Mas quem são essas pessoas? O que querem? O que fazem? Como pensam? Essas e outras perguntas justificam a pertinência e receptividade do livro Pesado – origens e consolidação do metal em Pernambuco (Funcultura) que, depois de um mês do lançamento, já tem praticamente esgotada a primeira edição. A concepção e planejamento da obra possuem natureza acadêmica, resultado de pesquisas desenvolvidas por um grupo formado pelos sociólogos e professores Daniela Maria Ferreira e Amílcar Bezerra, ambos da Universidade Federal de Pernambuco, e pelo etnomusicólogo Jorge de la Barre (Sorbonne/UFF), que já desenvolviam estudos sobre o metal como estética e comportamento. De eventual consultor,
de 25 anos, participou ativamente do processo de desenvolvimento da cena, atuando como músico – atualmente é vocalista das bandas Cruor e Câmbio Negro HC – e editor de fanzines. Mais: na condição de testemunha e cúmplice dos marcos e acontecimentos descritos, acrescentou à narrativa um tom memorialístico que proporcionou ao texto equilíbrio entre o pragmatismo acadêmico e o discurso afetivo, que tornou a leitura acessível.
ARTESANIA
A pesquisa realizada aponta para modos de produção da cena metal bem diferentes dos praticados atualmente o jornalista e autor do livro Wilfred Gadêlha passou a participar das reuniões periódicas do grupo, até ser convidado para apresentar o resultado das investigações em publicação. O livro fundamenta-se em relatórios de uma pesquisa anterior – A cena metal no Recife pós-mangue – iniciada em 2009, com apoio da Fundarpe, e pesquisas qualitativas posteriores, voltadas para as percepções do gênero musical nas cidades do interior do estado. Contar com Wilfred Gadêlha como o mediador do projeto foi oportuno, já que, ao longo
Da inocência das origens à ambição do “protagonismo outsider” dos tempos atuais, o livro, numa estrutura que contempla três partes distintas e complementares – O som, O espaço e A imagem –, explicita uma genealogia composta por ações de jovens e condições de produção bem diferentes das atuais para desenvolver música. O livro descreve uma época em que não havia internet e assessores de imprensa e contava-se com fanzines, feitos em ofícios datilografados e ilustrados por colagens e artes em caneta esferográfica, que eram fotocopiados e comercializados a preços módicos para divulgarem releases, reviews e entrevistas. Relata um tempo em que não havia streamings e redes sociais e reproduziamse vinis em fitas cassetes, que se multiplicavam entre os amigos. Nesse contexto, era muito comum entre os headbangers não haver recursos nem acesso a lojas para
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INDICAÇÕES POST-ROCK
INSTRUMENTAL
Independente/Sinewave
Independente
KALOUV Pluvero
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comprar camisetas de suas bandas preferidas. Por isso, pintavam à mão logotipos e ilustrações das bandas dos amigos, que orgulhosamente eram exibidas em dias de trabalho e lazer. A artesania era uma marca valorizada que sempre acompanhou os metallers, na intenção de viabilizar projetos, quando nada parecia mais importante do que ouvir e tocar música. Os espaços e as condições para desenvolver música não existiam. Tocava-se em pequenos bares de subúrbio e cada instrumento servia muitas vezes para vários músicos ensaiarem e se apresentarem. A história das origens e consolidação do metal em Pernambuco confunde-se com a história de um romantismo que se caracterizava pela inocência e improviso, em que a amizade e a partilha eram fundamentos importantes, não apenas porque eram convenientes, mas sobretudo porque havia a crença de que o sentido da liberdade e rebeldia deveria ser compartilhado e mantido.
MABOMBE Udúbio
Segundo disco da banda pernambucana, que faz post-rock na terra do frevo. Uma evolução em relação ao primeiro álbum Sky swimmer (2011), Pluvero mostra músicos mais confiantes e composições ousadas. Trabalhando texturizações e dissonâncias, o grupo cria profundas dinâmicas e abre espaço para que o pianista Bruno Saraiva componha temas e fraseados. Além disso, o lançamento conta com participações de artistas locais, começando pelo duo de ilustradores Imarginal, responsável pela parte gráfica do projeto.
Trio pernambucano de música experimental lança seu primeiro disco, um trabalho conceitual e autêntico. Gravado ao longo dos últimos três anos, Udúbio é composto por quatro longas músicas e traz uma quantidade de símbolos raramente vista num álbum do gênero. Trabalhando numa ótica subjetiva, o grupo não mede esforços, fazendo uso de instrumentos exóticos como o teremim e a cítara. O projeto gráfico é um capítulo à parte, interessante à medida que evoca o eixo temático sob o qual orbita a obra.
ROCK
INDIE
Independente
Joyful Noise Recordings
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O livro Pesado – origens e consolidação do metal em Pernambuco chega em boa hora, para contar a história de quem parecia não ter nem saber contar a sua própria história. As memórias contidas na edição luxuosa deixam um legado importante, ao recordar que, na construção do labor artístico, o protagonismo também pode ser coletivo e que ainda não podem ser considerados piegas valores como a amizade entre pessoas, cuja música é medida de distância que as une e distancia de mundos que as cercam.
PANDA EYES Dream police
PESADO WILFRED GADÊLHA Funcultura Pesquisa mapeia o cenário heavy metal em Pernambuco
O primeiro disco do quinteto pernambucano é sensível o bastante para emocionar até o pior dos facínoras. Gravado e produzido pela própria banda, o álbum soa atemporal – a realização de um desejo esporádico que tem a própria música de ser preenchida por belas canções. O guitarrista e vocalista Daniel Sultanum, que assina as oito composições que formam Dream police, coloca em palavras as dores de uma geração criada sob as transformações sociais que passou o Recife nas últimas décadas.
SEBADOH Defend yourself O oitavo álbum de estúdio do clássico trio norte-americano de indie rock foi lançado ano passado, após um intervalo de 14 anos. Composto por 13 canções, o disco, mesmo advindo dessa longa pausa, é uma continuação natural do trabalho da banda, liderada pelo músico Lou Barlow desde sua gênese, em 1986. Abraçando o noise e uma sonoridade mais experimental que de costume, Defend yourself se destaca por conseguir inserir belas melodias e bons arranjos num universo musical já explorado à exaustão.
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YÊDA B. DE MELLO/DIVULGAÇÃO
MATURIDADE Senhoras da dança
Bailarinas veteranas, Maria Paula Costa Rêgo, Cecília Brennand e Mônica Lira superam tempo e dificuldades, permanecendo no palco TEXTO Christianne Galdino
Palco Parece que foi ontem, mas já se passaram décadas desde que elas deram os primeiros passos e começaram a imprimir suas marcas na história da dança do Recife. Cecília, Mônica e Maria Paula, como tantas outras meninas, aprenderam ainda na infância ou adolescência as lições iniciais da arte do movimento e, aos poucos, foram se tornando bailarinas profissionais. O caminho natural iria levá-las aos bastidores, após alguns anos de ribalta, mas, por diversas razões, essas artistas decidiram continuar em cena, vivendo a plenitude da sua maturidade nos palcos. “No começo da minha carreira, eu não podia imaginar que ainda estaria dançando aos 50 anos de idade. Até fiz algumas pausas, nas fases de mudança de elenco da companhia, mas senti uma necessidade irresistível de voltar à cena, que eu não sei explicar direito”, afirma Mônica Lira, que tem cerca de 30 anos de carreira e há 20 está na direção do Grupo Experimental, do qual também é fundadora. Com forte atuação no âmbito político, como
ativista do Movimento Dança Recife, ela já ocupou quase todos os lugares da cadeia produtiva da dança e, na maioria das vezes, simultaneamente. É também professora, coreógrafa e diz que todas essas funções “sempre me preencheram, me deixaram feliz. Nunca me senti frustrada por estar fora dos palcos”. Natural de Fernando de Noronha, Mônica percebeu que não poderia se manter nos bastidores na atual empreitada, já que a pesquisa coreográfica iria tratar das memórias da sua infância vivida na ilha e do sentimento particular que diferencia os ilhéus dos continentais. Assim surgiu Ilhados – encontrando as pontes, primeiro resultado cênico de pesquisa do Grupo Experimental, no qual Mônica dança ao lado de sua filha Rafaella Trindade. É com esse trabalho que a dupla está circulando por cidades do interior de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Arquipélago de Fernando de Noronha – como parte das comemorações pelos 20 anos do Grupo Experimental, importante companhia de dança contemporânea do Nordeste.
TERRA
Maria Paula foi muito longe com sua dança, inclusive no sentido geográfico, seja pelas tantas viagens que fez como integrante do Balé Popular do Recife, na década de 1980, seja quando morou na França, ou nas recentes apresentações do Grupo Grial mundo a fora. Quem a vê em cena, com movimentação original e vigorosa, surpreende-se ao saber de sua idade. “Me acostumei a trabalhar a partir das minhas possibilidades, sempre foi assim. Por isso, não tive que mudar
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minha rotina. O músculo flácido tem outras qualidades, outros caminhos de criação”, diz ela, aos 50 anos. A Associação Paulista de Críticos de Arte – APCA acaba de reconhecer o seu talento, concedendo a Maria Paula Costa Rêgo o prêmio de melhor intérprete-criadora em dança do ano de 2013, pelo solo Terra, no qual ela coassina a direção, junto com Eric Valença. A mais recente montagem do Grial também conquistou cinco prêmios de dança no 20º Janeiro de Grandes Espetáculos,
incluindo o de melhor espetáculo e melhor bailarina. Terceira parte de uma trilogia baseada em “contações de histórias”, Terra é um mergulho profundo na linguagem armorial de dança, que surgiu da parceria entre ela e o escritor Ariano Suassuna. Maria Paula explica que, no início, seria um espetáculo para o grupo, com a intenção de falar sobre o genocídio dos índios brasileiros, mas que, durante o processo, decidiu inaugurar uma “fase solo”. Com trilha original de Naná Vasconcelos, figurino de
1 MARIA PAULA Criadora do Grupo Grial afirma os méritos da maturidade em cena
Gustavo Silvestre e luz de Luciana Raposo, Terra, que estreou em São Paulo no ano passado, volta a ser apresentado nos dois primeiros finais de semana de maio, agora ao ar livre, no Sítio da Trindade, no Recife. Estar sozinha em cena deu à Maria Paula a possibilidade de investir na composição de uma personagem,
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FERNANDO AZEVEDO/DIVULGAÇÃO
Palco
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concentrar-se integralmente na atuação, ao contrário das montagens anteriores, em que era consumida a maior parte do tempo pela preocupação em criar para o corpo do outro, no caso, para o elenco de bailarinos e/ou brincantes do Grial que ela ajudou a formar. Outro ganho da experiência solo foi o fato de poder deixar algo do espetáculo reservado à improvisação. “Isso faz parte do meu saber, é parcela essencial na minha formação como bailarina. A idade ajuda, porque hoje tenho plena consciência desses saberes, sei mais do meu corpo e da minha dança. Não há espaço para o medo, me sinto mestra em improvisação.
Existem dois tipos de dança: o que é baseado na técnica clássica e outro, com ênfase na expressividade. Esse é mais amplo na relação com o envelhecimento. Quanto mais maduro, mais o corpo fala. O corpo inteiro é muito expressivo, quando estamos nesta fase da vida.”
SOPRO DE ZÉFIRO
Também foi nas veredas da dança expressiva, na qual a emoção fala mais alto, que Cecília Brennand construiu sua trajetória, guiada por bailarinos como Mônica Japiassú e Zdeneck Hempl. Hoje, 37 anos depois, ela está nos palcos mais uma vez, orientada pelo olhar da primeira coreógrafa com quem trabalhou naquele já distante
ano de 1977. Ao som do Trenzinho caipira, Cecília Brennand dá vida à “guardiã da natureza”, em um solo especialmente criado por Mônica Japiassú. “A emoção é a mesma, não sinto diferença pela idade que tenho, mas sinto que a falta de tempo para me dedicar à função de bailarina, depois que criei o Ária e me tornei empresária, interfere, sim, na minha experiência cênica”, esclarece Cecília, 54. Ela acaba de reativar a Cia. Sopro de Zéfiro – Cecília Brennand para intensificar a presença da dança em sua vida. “Recomendações médicas”, avisa. “Não posso parar de me movimentar. Estava com princípio de artrose e, quando pensei que os especialistas iam me pedir para
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CAMILA SÉRGIO/DIVULGAÇÃO
diminuir ou parar de dançar, recebi a receita contrária”, complementa. O Villa – um musical Villa-Lobos, que acaba de estrear, marca também o reencontro de Cecília com outra personagem dos primórdios da sua carreira, Beth Gaudêncio, responsável pela concepção e direção de arte do espetáculo. Vida e obra do compositor Villa-Lobos servem de enredo para a montagem, que tem direção musical e regência de Rosemary Oliveira. Ana Emília Freire e Carla Machado estão no comando da coreografia e direção de cena. A iluminação é de Saulo Uchôa e há ainda a participação de mais uma coreógrafa convidada, Maria Inêz Lima. Cecília assina também a direção-geral.
O corpo não define, a priori, a relação que a bailarina tem com a dança. Mas, sim, a compreensão do que pode fazer com ele
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Ainda insatisfeita com o pouco tempo que tem para a dança, ela diz que precisa se disciplinar para imprimir a rotina de exercícios que deseja e de que necessita. “Mas, pelo menos, já estou frequentando algumas aulas de Mônica Lira. E isso me faz um bem enorme. Não pretendo parar de dançar nunca.”
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CECÍLIA BRENNAND Proprietária do Ária Espaço de Dança e Arte, ela diz que sente a mesma emoção de estar em cena, ontem e hoje
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MÔNICA LIRA Diretora do Grupo Experimental afirma que “liberdade” é a melhor palavra para definir sua relação com a dança e o palco
Mônica, Maria Paula, Cecília. Percursos diferentes e a mesma vontade de continuar “na dança”. Disposição e talento não faltam a essas bailarinas. Ouvindo o discurso das suas vozes e dos seus corpos, fica claro que o principal desafio não tem a ver com técnicas ou criações coreográficas, mas com a luta pela sobrevivência como artista, que as obrigou a assumirem outras funções tão imprescindíveis como estar em cena. Diz Cecília: “Ficar sem dançar é como estar anêmica. Eu me realizo muito vendo os bailarinos do Ária em cena, mas é como se me faltasse algo, como se estivesse sem sangue”. Maria Paula também não consegue se imaginar fora do ambiente dos palcos. “O bom de estar vivendo a experiência de ser bailarina na maturidade é que agora sinto que sou integralmente o que estava tentando ser em toda minha vida profissional. Qual o lado ruim disso? Não tem.” Liberdade: é essa a palavra que Mônica escolheu para definir seu momento atual na dança. “O palco é meu lugar de liberdade, nele me sinto em total intimidade comigo mesma. Liberdade plena, de corpo e alma, que me deixa completamente feliz. Por isso, continuo dançando e querendo fazer com que os outros também dancem. Gostaria que, um dia, todos pudessem experimentar a dança e a leveza que ela traz.” No palco, a experiência artística acumulada em muitos anos de dedicação transcende a realidade difícil, e a dança de excelência dessas “senhoras” se impõe soberana, como exemplo de perseverança. Da plateia, não temos tempo ou espaço para observar “a idade” daqueles corpos, pois o movimento intenso, a força e a verdade daquela maturidade cênica nos capturam e comovem.
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BRENO LAPROVITERA
Leitura 1
BRINQUEDO Um livro para montar
Por conta da engenharia do papel, técnica já esboçada no século 13, essa peça de leitura torna-se também atraente objeto de manuseio, sobretudo para crianças TEXTO Priscilla Campos
1 MOB DICK Versão de Sam Ita propõe ao leitor aventuras e surpresas no manuseio 2 SAM ITA O nova-iorquino especializou-se em engenharia do papel, técnica que intuitivamente desenvolveu desde criança
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SHEENA KIN/DIVULGAÇÃO
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Cascas de árvores, fibras de
caules de trigo, extremidades de cânhamo e farrapos de algodão. Tritura tudo, mistura e coloca em cima de um tecido trançado, de preferência, uma rede de pesca. Qual não foi a felicidade do cortesão chinês Cai Lun, no ano 105 d.C., ao finalizar essa receita no seu belo jardim oriental e se deparar com uma superfície lisa, fina, maleável e pronta para ser manuseada por mãos e pincéis. Ali, nascia uma forma mais refinada e definitiva do papel, item
primordial para o desenvolvimento da arte e da cultura em diversos países ao longo dos séculos. Da China para a Alemanha do século 15. O papel se encontra com as letras e a prensa móvel de Gutenberg, formando um trio imbatível para a impressão em massa. Tipografia, projeto gráfico, texto, imagens e, aos poucos, os livros ocupam o posto de importante plataforma bidimensional para disseminação do conhecimento. Porém existem algumas técnicas e informações que parecem ter sido constantemente esquecidas nessa linha histórica do saber. De acordo com o designer britânico Mark Hiner, foi no século 13 que os primeiros livros com elementos interativos começaram a surgir. Escritos à mão, eles possuíam discos com mecanismos rotativos, utilizados para revelar símbolos e palavras ao longo da narração. Essa ideia lúdica, de provocar certa “mágica” bem na frente do leitor, configura o primeiro registro da engenharia do papel, método tridimensional ainda pouco explorado no Brasil e bem-assimilado pela literatura infantil. “Os livros pop-ups, como nós conhecemos hoje, com o papel ‘pulando’ para fora da página, surgiram no final do século 18, na Inglaterra. Esses tipos de livros eram, geralmente, utilizados como manual de instruções, para que os estudantes de arte aprendessem perspectiva. As publicações pop-ups infantis, assim
como a expressão pop-up book são datadas da década de 1920. A primeira aparição desse tipo de produto nos Estados Unidos foi a da série Bookano books, de S. Louis Giraud”, explica o designer e engenheiro do papel Robert Sabuda, um dos nomes atuais mais famosos e conceituados da área. O norte-americano, responsável por construir belos cenários dobráveis para clássicos como A pequena sereia, A bela e a fera, entre outros livros infantis, conta que ficou apaixonado ainda criança pela mecânica do papel. “Quando eu era menino, adorava os pop-ups e, sozinho, dei um jeito de aprender alguns exemplos simples de como fazê-los. Até hoje, não perdi o amor pelo manuseio do papel”, lembra Robert. De acordo com o designer, a arte tridimensional necessária para realizar a técnica está presente desde o início do processo de criação. “Eu nunca desenho o que pretendo fazer em pop-up na segunda dimensão, porque não existe garantia de que aquilo vai funcionar na terceira! Começo a cortar e dobrar o papel para ver quais ideias podem sair interessantes dali. Claro que, na minha cabeça, tenho uma ideia básica de como eu queria que ficasse, mas não posso ter certeza da funcionalidade do projeto, até que ele esteja, de fato, na terceira dimensão”, esclarece. Existem diversas maneiras de aplicar a ilusão tridimensional em livros, desde mecanismos mais elaborados e elegantes até as
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FOTOS: BRENO LAPROVITERA
Leitura 3
3 AVENTURA O clássico Vinte mil léguas submarinas em sua versão livro-brinquedo 4 A PEQUENA SEREIA Livro é repleto de instigantes cenários e cores 5 POP-UPS Os livros desenvolvidos por Erick Vasconcelos trazem temática da cultura popular
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práticas que envolvem o trabalho com planos e falsos volumes. Porém é na montagem final das publicações que residem o mistério e a alquimia da engenharia do papel. A maioria dos livros pop-ups criados por designers norte-americanos e europeus tem sua execução na China (eles, de novo!), por uma mão de obra especializada. Esse sistema de mercado parece funcionar para os profissionais gráficos das terras alémmar, que, apesar de não possuírem preocupações financeiras, ainda encontram algumas barreiras entre os pop-ups e o público, como explica o designer e engenheiro do papel novaiorquino, Sam Ita. “O pessoal aqui, nos Estados Unidos, adora os livros interativos. Mas, em minha opinião, existe um problema recorrente para os pop-ups: muita gente passa desatenta por eles nas livrarias (pois a capa é normal, em segunda dimensão) e perde a chance de abri-los e ver o outro universo tão vivo lá dentro”, observa Sam. No Brasil, esse tipo de trabalho é conhecido por custar muito caro
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e poucos são os que se aventuram ou possuem expertise para realizálo. Porém, há nove anos, um pernambucano decidiu iniciar um caminho de investimento e dedicação à engenharia do papel.
POP-UP NORDESTINO
Assim como Robert Sabuda, o designer gráfico Erick Vasconcelos viu-se envolvido pela mágica oriental durante a infância. “Desde o tempo em que eu nem sonhava em ser designer, já gostava de brincar com o papel. Quando criança, criava personagens a partir do material e acabava usando-os como brinquedos. Na universidade, conheci e me aprofundei na técnica de engenharia do papel, e acabei decidindo por abordá-la no meu trabalho de conclusão de curso”, conta. A partir de sua pesquisa acadêmica, Erick iniciou a coleção intitulada A cultura pernambucana em 3 dimensões, série de livros que associam a cultura popular do estado com a técnica do pop-up. “Essa ideia de ligar o conteúdo regional à engenharia do papel surgiu
Mesmo que passem por processos industriais de impressão, os livros animados requerem artesania na própria universidade. Nós estávamos estudando e experimentando as diversas técnicas de ilusão tridimensional aplicadas a livros, e o objetivo final da disciplina era desenvolvermos um livro interativo, cujo tema deveria ser algum elemento da nossa cultura local. Foi aí que, sem grandes pretensões, nasceu o esboço de Os gigantes de Olinda. Após reconstruílo e desenvolvê-lo como projeto de conclusão da graduação, consegui publicá-lo, através de incentivo. O resultado foi tão positivo, que resolvi amadurecer e expandir o projeto, criando a coleção que resultou em mais dois livros: O pipoco dos bacamarteiros (lançado no ano passado) e o É frevo no pé (ainda em processo)”, explica.
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Para construir o fio narrativo do projeto mais recente, O pipoco dos bacamarteiros, Erick convidou a redatora e roteirista Flavinha Marques, que realizou uma vigorosa investigação itinerante até chegar ao texto que conta a história de Zé Pipoco e Maria Fumaça. “Não existe muito registro histórico impresso sobre os bacamarteiros. Na época, Erick estava na África, então iniciei sozinha uma pesquisa de campo pelo Agreste, para entender com mais precisão aquele cotidiano, os detalhes das roupas, as minúcias das apresentações”, explica Flavinha. Moradias e paisagens do interior, como a Igreja de São João e a Feira de Caruaru, serviram de inspiração para os cenários dos personagens. Paralelamente à concepção da narrativa, Erick já havia definido o método de engenharia do papel a ser utilizado nos livros. “Eu optei pelo mecanismo de ‘cenário’. Escolhi essa técnica por achar que o resultado final ficaria mais interessante. No ‘cenário’, através de facas complexas de cortes (máquina motorizada
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6-7 TRANSPOSIÇÃO Para a criação dos desenhos de O pipoco dos bacamarteiros, a roteirista Flavinha Marques realizou pesquisa de campo
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decisiva para os bons resultados da engenharia do papel), o livro apresenta diversas camadas, uma sobreposta a outra, originando a ilusão de tridimensionalidade, tal qual o cenário de uma peça de teatro”, explica o designer. O resultado final é um formato que possibilita ao livro a transformação, quando completamente aberto, em um móbile supercolorido. “Acreditei também que, por não ter alavancas ou abas escondidas, seria mais fácil de viabilizar a sua produção e reduzir os custos da sua execução. Hoje, já na preparação para o terceiro livro, peguei um pouco o jeito de como deveria construir as ilustrações, de modo que elas funcionassem
Esse tipo de livro traz diversas camadas sobrepostas, o que lhe confere a ilusão de tridimensionalidade, como no teatro bem na montagem. Levo em consideração o tamanho, a posição, a visibilidade de cada elemento e a interação entre eles”, conclui. Quando chegou o momento mais delicado do processo, a produção manual da tiragem, Erick esbarrou em algumas dificuldades. De acordo com o designer, o primeiro volume
(fabricado em 2006/2007), por se tratar de um material novo tanto para ele quanto para as gráficas pernambucanas, que, na época, ainda não estavam acostumadas a trabalhar com facas complexas de cortes em um material que exigisse tanto manuseio, foi o mais complicado. No segundo, fabricado em 2012, Erick encontrou uma gráfica que dominava os conhecimentos de impressões especiais e possuía ferramentas importantes para o desenvolvimento das técnicas. “A experiência adquirida anteriormente também foi determinante para a evolução da qualidade do trabalho”, afirma. Diante de uma arte que requer tanto empenho, tato e atenção pessoal, é inevitável não escutar o eco midiático e acadêmico tão insistente nos últimos anos: o papel vai acabar. Para os mais pragmáticos, então, todos esses mecanismos aperfeiçoados pelos engenheiros de papel, ao longo de séculos, não passaria de uma engrenagem obsoleta na máquina do entretenimento. Nesse ponto, o designer pernambucano tem um pensamento bem próximo da ousadia e imaginação daquele milenar cortesão chinês. “Eu acho que, com essa recente obsessão pelo digital, o inusitado do objeto feito de papel salta aos olhos e torna-se cada vez mais fascinante e inesperado. Na verdade, acredito no seguinte: futuramente, essas duas coisas (papel + plataformas eletrônicas) poderão se combinar de alguma forma. Imagine, por exemplo, um livro pop-up feito com algum tipo de papel digital, que seja sensível ao toque. É digital, mas, ainda assim, manuseável como papel. Parece viagem, eu sei, mas se hoje já é possível encontrarmos livros com dispositivos que emitem sons e luzes, amanhã poderemos ter livros capazes de armazenar e exibir conteúdos que possam ser atualizados. Acho tudo isso uma possibilidade.”
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INDICAÇÕES ROMANCE
PSICANÁLISE
POESIA
MEMÓRIAS
Companhia Editora de Pernambuco
Arquipélago
Confraria do Vento
Escrituras
FERNANDO MONTEIRO O livro de Corintha Estamos diante de uma narrativa sobre um escritor cego e sua datilógrafa, Corintha. Mas o que estamos lendo é mesmo isso, ou o romance que o escritor cego escreve? Ou será que lemos o livro que Corintha lê, enquanto é observada pelo narrador-voyeur? O que é “realidade” nesta narrativa pode não ser. Um romance bemurdido e repleto de boas reflexões.
ABRÃO SLAVUTZKY Humor é coisa séria Se o autor fosse um historiador, este seria outro livro, claro. Mas ele é um psicanalista, então, sua relação com o humor passa por esse campo de conhecimento, fato que diferencia a leitura. Sendo também judeu, Slavutzky agrega esse traço às suas inquietações. Um livro que resulta de três décadas de amorosa pesquisa chega ao leitor de forma leve, porém rica em informações.
SAMARONE LIMA O aquário desenterrado Terceiro livro de poesias deste também cronista e jornalista, O aquário desenterrado dá um salto à frente dos antecessores. As relações familiares, os (des)afetos e memórias continuam a motiválo, mas chegam em poética mais estruturada. O poema que nomeia o livro traz a síntese desse encontro do autor com um passado que, embora sépia, continua a inquietar e açoitar.
MANOEL DE ANDRADE Nos rastros da utopia Variadas têm sido as publicações sob o marco dos 50 anos da ditadura militar no Brasil. Manoel de Andrade optou pela primeira pessoa. Neste caudaloso volume, ele faz um apanhado do que viveu naqueles anos, desde que saiu do Brasil em exílio voluntário, percorrendo vários países da América Latina, indo encerrar a aventura na Califórnia. O livro descansou 15 anos na gaveta.
Autobiografia
A MEMÓRIA EMBAÇADA DE UM DESTRUIDOR DE GUITARRAS Segundo o “comedor de morcegos” Ozzy Osbourne, do Black Sabbath, quem viveu os anos 1960 não se lembra de nada. Pelo menos em relação às lembranças do líder de The Who, em seu livro Pete Townshend - a autobiografia (Globo Livros, 488 págs.), a frase tem tudo a ver. Tal um autista que não fala, não ouve, não vê, nem sente nada, como o seu personagem Tommy da ópera-rock lançada em 1969, Pete narra de forma distanciada e omite fatos importantes de quando iniciou a carreira. Ele mal fala dos Beatles ou Stones, superconhecidos naquela época em todo o mundo. Nascido em Londres, em uma família de músicos, em maio de 1945, Townshend passou a infância com uma avó, baranga mal-humorada que o espancava e o fazia passar fome, cujo furor uterino por desconhecidos deixou-o indefeso a abusos sexuais. Essa é a sua desculpa
por todas as bobagens que fez pela vida. Quanto à banda, conhecida pela performance explosiva e pela destruição dos equipamentos ao fim de cada show, Pete discorre muito pouco. Do baixista John Entwistle, aparecem elogios à sua postura com o instrumento e elogios à música Boris, the spider. Keith Moon, o baterista chegado a um mereré pesado, coitado, o tempo todo é escorraçado e criticado – ele chega a insinuar que, em alguns discos, Keith atuou desafinado, fora de tom e ritmo, acusação que os críticos musicais rejeitam. Ao contrário, sempre foi elogiado como um dos maiores bateristas de sua era. Sobre a morte de Moon, um depoimento frio em apenas uma página. Em compensação, apenas para falar da aquisição de uma casa, a que usou para escrever a autobiografia, ele dedica alguns capítulos, detalhando idas e vindas para a compra.
Sobre Roger Daltrey, boxeador na juventude, ele até que fala bem, talvez encagaçado por viver levando uns tapas toda vez que discutia com o cantor metido a Muhammad Ali.
O livro é bem escrito, apesar de tudo. De forma sóbria e sem restrições aos seus problemas afetivos, emocionais e psicológicos. Não deixa de ser uma leitura instigante, desde que o leitor releve as omissões e a eventual falta de apuro histórico em determinadas situações. O criador de Tommy e Quadrophenia é conhecido no meio musical por escrever em grandes publicações e por ter sido editor de livros. Escorrega um pouco na defesa contra a acusação de pedofilia, quando usou um cartão de crédito para acessar sites de pornografia infantil. E ele iria dizer o quê? Para quem vivia cantando que queria morrer jovem – lembre-se, My generation – o sr. Townshend, aos 69 anos, parece querer continuar dando seus pulinhos na estrada. Não com a mesma energia da foto, claro. Insinua que talvez venha tocar no Brasil. Esperemos que a Arena PE esteja em sua agenda. LUIZ ARRAIS
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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
O MITO DO TRABALHO
O comentário de Dostoiévski está em Recordações da casa dos mortos, um livro de memórias do período em que esteve preso na Sibéria. Condenado por atividades revolucionárias e ligações com um grupo literário russo – O Círculo Petrashevsky –, que fora banido pelo Tzar Nicolau I, o escritor recebeu indulto quando se encontrava em frente ao pelotão de fuzilamento. A pena de morte foi trocada por quatro anos de trabalhos forçados e seis de serviço militar na fronteira da Mongólia. O sofrimento do cárcere serviu para que aprofundasse suas investigações sobre a alma e a psique, e estudasse os tipos humanos que seriam reproduzidos em romances como Crime e castigo, Os irmãos Karamazov e Os possessos. É quase certo que me escaparão detalhes das questões levantadas por Dostoiévski, como também é certo que acrescentarei pontos de vista que se tornaram meus, de tanto pensar sobre o assunto ao longo dos anos. Dizem que a memória histórica é capaz de narrar os fatos sem alterá-los – o que considero improvável –, e que
a memória literária se apropria dos acontecimentos, reinventando-os de acordo com o gosto e a necessidade do narrador. Na Sibéria, os prisioneiros se encaminhavam a uma progressiva anulação da individualidade, até serem completamente destruídos com o passar dos anos. Num sistema carcerário semelhante ao do Brasil, ninguém se recuperava para um retorno à sociedade. Criminosos hediondos conviviam com homens simples, presos por motivos banais ou políticos. Dostoiévski observou que, apesar de humilhações e castigos, isolamento e privações, muitos prisioneiros sobreviviam graças ao trabalho: ao que eram forçados a realizar e ao que faziam de maneira clandestina, durante a noite, nos pavilhões frios e insalubres em que tinham sido confinados. Mesmo com o desconforto e a carência de recursos materiais, burlavam a guarda e se dedicavam aos seus antigos misteres de artesãos livres. Na Casa dos Mortos, existiam gatunos, batedores de carteira, vagabundos, vigaristas, assassinos
ocasionais, matadores de profissão e gente que não se sabia por que estava ali. Havia homens das mais variadas profissões – sapateiros, remendões, ferreiros, marceneiros, ourives, escribas –, que buscavam dar continuidade ao que faziam lá fora no mundo dos vivos, por necessidade econômica ou por outras necessidades. Mesmo quando consertavam ou erguiam as muralhas do presídio, alguns se empenhavam nas tarefas, buscando alcançar o melhor resultado. Dostoiévski sugere que a crença no trabalho e o esmero em realizá-lo bem mantinham esses homens vivos. Quando decidiam castigar algum desses infelizes, levá-lo à doença, à morte ou ao suicídio, ocupavam seus dias com tarefas inúteis e absurdas. Mandavam, por exemplo, que carregasse água de um poço para outro e, no dia seguinte, repetisse a mesma tarefa, ao contrário. Assim, dias a fio. Igual ao Sísifo grego, condenado no Hades a rolar uma grande pedra até o topo de uma colina, que, quando
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COLAGEM: KARINA FREITAS
atingia o ponto mais alto, rolava novamente para baixo. O esforço de carregar água se tornava a maior de todas as punições, pela falta absoluta de sentido. Os condenados enlouqueciam ou se matavam. Quando Albert Camus escreveu sobre o suicídio – um universo privado de ilusões ou de luzes –, chamou o ensaio de O mito de Sísifo. Todos os heróis de Dostoiévski se questionam sobre o sentido da vida, escreve Camus. Nisto são modernos: não temem o ridículo. O que distingue a sensibilidade moderna da sensibilidade clássica é que esta se nutre de problemas morais e aquela de problemas metafísicos. Nos romances de Dostoiévski, a questão é colocada com tal intensidade, que só admite soluções extremas. A existência é enganosa ou é eterna. O trabalho que supostamente dá sentido à existência seria enganoso? Ou seria um castigo eterno, moral, como a maldição de Iahweh Deus? “... Maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida.
Sísifo foi condenado a rolar uma pedra até o topo de uma colina, que, quando atingia o ponto mais alto, rolava novamente para baixo Ele produzirá para ti espinhos e cardos, e comerás a erva dos campos. Com o suor do teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado”. Segundo o relato da Casa dos Mortos, há uma lógica existencial que sustenta esses homens que erguem ou consertam muralhas e paliçadas, mesmo que para se encarcerarem dentro delas. Por mais doloroso que pareça, eles podem esmerar-se na lapidação de pedras, no preparo de argamassas, no corte de madeiras, e até esculpirem detalhes, enfeitando a prisão. Porém é inteiramente absurdo carregar água de um poço cheio para outro poço igualmente cheio. O trabalho careceria de uma
justificativa lógica, que cada um pode engendrar de acordo com sua necessidade e crença. Sísifo poderia encontrar um sentido na sua condenação. Os monges tibetanos gastam os dias criando mandalas de areia, que desfazem logo após terminá-las. Creem na eternidade impregnando o ato de criação, e que o exercício de fazer os liberta. Por isso eles não se preocupam com a sobrevivência do que criam. “Trabalho é liberdade”, escreveu Mira Alfassa, conhecida por A Mãe, mística do Ashram de Sri Aurobindo, em Auroville, na Índia. Em que consiste a liberdade do trabalho? Criar pode significar tornar-se igual a Deus, apoderar-se do conhecimento. Ou um modo de romper com a ordem aprisionadora do mundo, estabelecendo uma desordem, que é o estado embrionário de uma nova criação. Muitas pessoas costumam pôr no trabalho a mesma fé que têm na imortalidade. E, segundo Dostoiévski, a fé na imortalidade é necessária para o ser humano (que sem ela acaba por se matar) porque se trata do estado normal da humanidade.
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REPRODUÇÃO
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TELLES JÚNIOR Centenário de um esquecimento
Artista plástico pernambucano, cujos 100 anos de morte são lembrados agora, foi um dos nomes ilustres da virada do século 19 para o 20 que se perderam entre as tendências que o sucederam TEXTO Weydson Barros Leal
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1 VENTANIA Tela de 1902 colaborou com a sua fama de “intérprete da paisagem nordestina”
O calendário das efemérides está
cheio de nomes desimportantes. Alguns, que em séculos passados teriam o peso de uma estátua de bronze, hoje são apenas o pretexto para uma nota de jornal ou nem isso. Assim acontece com mártires civis, santos populares e heróis militares. Muitos ignorados ou simplesmente esquecidos. A maioria, claro, fazendo jus ao esquecimento. Líderes de conflitos como a Guerra dos Mascates, a Revolução Praieira e outros capítulos de nossa história são hoje defuntos
anônimos, sem mesmo uma lápide como endereço. Alguns escritores, pintores e poetas gozam do mesmo vazio. Raros batizam uma rua – com muita sorte, uma avenida –, e correm o risco de, no século seguinte, a nova geração renomear o logradouro. Neste maio de 2014, por exemplo, ocorre o centenário de morte do pintor pernambucano Telles Júnior. Poucos saberiam dizer quem foi o artista, talvez nem mesmo os moradores da rua que tem o seu nome, no Recife. Mas, mesmo na cidade, a desinformação sobre quem foi Joaquim Nabuco ou Telles Júnior é generalizada. Historiadores e curadores de museus – esperamos – não entram nessa contagem. Mas serão sempre poucos. O caso do pintor Telles Júnior é particular. Ele foi um daqueles artistas que, vivendo a virada do século 19 para o 20, se perderam na poeira das novas tendências ou sucumbiram ao próprio gênio ou à falta deste. No caso, havia talento, gênio jamais. Numa chamada de artistas ilustres de sua época, estaria de ombro com Antonio Parreiras, Aurélio de Figueiredo, Lucílio de Albuquerque, Augusto Luis de Freitas, Agostinho da Motta e Rodolfo Amoedo. Claro que essa não foi a mais longa lista de desconhecidos que o curioso leitor já leu em sua vida, mas, acredite, no começo do século 20 eram todos considerados grandes pintores em suas cidades ou entre os amigos. O tempo, enfim, é a mais pesada pedra no campo do esquecimento. Jerônimo José Telles Júnior nasceu em 1851, no Recife, onde morreu no dia 1º de maio de 1914. Entre essas duas datas viveu algum tempo no Rio Grande do Sul e depois no Rio de
Janeiro, em virtude de transferências profissionais do pai, que era comandante de navio. Aos 18 anos, no Rio de Janeiro, ingressou na Marinha e começou a estudar desenho. Por um breve período frequentou o Liceu de Artes e Oficios da então capital do país. Mas logo voltou ao Recife, onde continuou a estudar pintura e começou a trabalhar no comércio. Também no Recife, ainda foi professor numa certa “Sociedade dos Artistas, Mecânicos e Liberais” e no Liceu de Artes e Ofícios – onde chegou a ser diretor – e, por fim, ingressou na política, sendo eleito deputado estadual uma vez. O seu interesse pela fotografia, de certa forma ainda uma novidade na época, talvez explique sua pintura excessivamente acadêmica, tendo a representação clássica da natureza – como qualquer pintura de 100 anos antes de sua existência – tomado o traço de sua pouca ou nenhuma invenção. Se comparadas às paisagens de um Cézanne – praticamente seu contemporâneo –, Telles Júnior seria um pintor sem expressão, um dos milhares que foram engolidos pelo olho criador do gênio de Aix-en-Provence. As suas “especialidades” eram as marinhas e as “paisagens de florestas”, estas últimas válidas para um público com pouca ou nenhuma informação, mas tudo quase sempre distante do mínimo vestígio de cidade ou de seus tipos humanos, o que nos dá a certeza de que o autor não tinha habilidade suficiente para o retrato. Mesmo as suas marinhas, pelas quais era aclamado por resenhistas, tinham o mar apenas como pano de fundo ou coadjuvante menor, preferindo justificar o tema pelo traço
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bucólico de uma linha de coqueiros. Com relação ao oceano propriamente dito, ou a enfrentá-lo como tema de uma pintura, seria colegial, se comparado a um Gericault ou a um Turner. Pode-se dizer que, no Brasil de Telles Júnior, praticamente toda a pintura realizada em solo nacional estava presa a algum tipo de escola acadêmica ou Classicismo, haja vista a sua premiação num Salão de Arte, no Rio de Janeiro, em 1890. Ainda assim, pintores como o imigrante italiano Eliseu Visconti (1866-1944) ou o paulista Almeida Júnior (1850-1899) estavam à frente do contemporâneo pernambucano. Poderíamos sugerir, em defesa do academicismo de Telles Júnior, a enorme distância e as dificuldades de comunicação do Brasil com a Europa. Mas, de qualquer maneira, em 1900, pintores como Van Gogh, Seurat, Gauguin, Renoir e principalmente Monet já tinham revolucionado havia algum tempo a arte de representar a luz e o visível – e até o invisível ao olho comum. De todo modo, não há que se retirar o mérito de Telles Júnior
No Brasil de Telles Júnior, praticamente toda a pintura realizada estava ligada ao Classicismo ou à escola acadêmica como artista que conseguiu um lugar ao sol de sua época. O artista teve grandes admiradores entre críticos e intelectuais importantes. Sobre isso, o crítico Walmir Ayala (1933-1991), ao comentar sobre Telles Júnior, revelou, talvez sem perceber, que também na época do pintor já havia um certo bairrismo ou preconceito regional, pois ele foi elogiosamente reconhecido como “intérprete da paisagem nordestina (...) com a atenção para os detalhes mais rudes da paisagem interiorana”. Quem sabe, em virtude desse curioso exotismo, Telles Júnior participou de diversas exposições em salões de arte do Rio de Janeiro e, em 1891, de uma exposição internacional, em Chicago, nos Estados Unidos.
Uma ressalva em defesa da pintura de Telles Júnior pode ser a formação do artista num período tutelado pelos gostos imperiais. Até os seus 34 anos, auge de sua atividade como pintor, o Neoclassicismo europeu, com defasagem, era o parâmetro de gosto e de ensino nas escolas por onde Telles Júnior passou. Na corte de D. Pedro II, especificamente, o gosto pelas pinturas de temas religiosos ainda tinha um público cativo.
PAISAGEM
Sobre o tema da paisagem, que definitivamente marcou Telles Júnior, talvez a maior influência tenha sido a missão artística francesa no Brasil (1816), cujos resquícios eram fortes quase um século depois, quando obras de Debret e Taunay eram exemplos à altura de Frans Post (1612-1680). Isso não significa que aqueles mestres seriam alcançados – por imitação ou admiração – por artistas brasileiros como Telles Júnior. A escola da qual fazia parte o pernambucano, patrocinada por D. Pedro II, visava uma arte oficial tentando a inserção
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2-3 ACADEMICISMO O Araguaia no Lameirão e a natureza-morta de 1900 são exemplos do estilo do pintor
do país em um mundo moderno. Infelizmente, na arte, esse mundo estava muito à sua frente.
REGIONALISTA
Admirar ou defender hoje a pintura de Telles Júnior seria um anacronismo estético. Mas, em 1905, isso era compreensível, se assinando a sua defesa estivesse o escritor Oliveira Lima. Não sabemos se pela conterraneidade – o grande escritor também era pernambucano do Recife – ou por não se tratar de um crítico de arte especializado, os comentários elogiosos de Oliveira Lima não passaram despercebidos por um especialista de olhar aguçado. Pouco depois do comentário de Lima ser publicado, Gonzaga-Duque – provavelmente o precursor da crítica de arte profissional no Brasil, autor do livro Arte brasileira (primeira publicação especializada em arte no país) – fez os seguintes comentários: “Do paisagista pernambucano Telles Júnior, de quem se ocupou nesta revista, há um ano, o Sr. Oliveira Lima, encontramos um quadrinho que se nos afigura
No Manifesto Regionalista, Telles Júnior foi lembrado por Gilberto Freyre como o “pintor de paisagem tropical” insuficiente para constatar o mérito que esse escritor lhe deu. O seu acabamento acusa maneirismo e, nos detalhes, vemos persistências que denotam dificuldades”. A partir daí, até a sua morte no Recife, em 1914, Telles Júnior produziu pouco, sendo gradativamente esquecido nos principais salões de arte. Uma lembrança do seu nome, quase como um renascimento para sua reputação, deu-se numa citação de outro pernambucano ilustre – o maior dos pensadores brasileiros – Gilberto Freyre. É claro que, como historiador e sociólogo da cultura brasileira e de suas especificidades regionais, Gilberto encontrou em seu antigo professor de desenho um nome
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importante a ser incluído no famoso Manifesto Regionalista, publicado em 1926. Citado ao lado de outros nordestinos indiscutivelmente geniais, como José de Alencar, Augusto dos Anjos e Joaquim Nabuco, o então já falecido Telles Júnior foi lembrado como “pintor da paisagem tropical de Pernambuco com suas palmeiras e coqueiros”, ilustrando a cultura e o espírito brasileiros. Mas Freyre não era um crítico de arte, e, embora seu gênio e inteligência o autorizassem a qualquer citação, o elogio tinha muito mais o intuito de conformação e embasamento de um argumento sociológico para seu Manifesto do que propriamente de uma análise estética da pintura moderna que partisse de Telles Júnior. Lembremos que, na data dessa publicação, a arte moderna e a literatura brasileiras haviam passado pela revolução da Semana de Arte de 1922, e entre os nomes dessa lista freyriana, poucos representavam um princípio de ruptura com a arte bemcomportada, acadêmica, no sentido do que era conhecido e reconhecível como arte até ali. O próprio Manifesto Regionalista era uma reação a um tipo de internacionalização da arte e dos artistas brasileiros, o que hoje seria uma tentativa de reserva de mercado no mundo das bienais e feiras de arte internacionais. De qualquer maneira, todos aqueles artistas citados por Freyre, ou sua maioria, haviam sido formados sob a estética do século anterior, e estavam distantes do olho do furacão que revolucionara a Europa antes da Primeira Guerra. Nesse quesito, e naquele momento, os dois únicos nomes da pintura pernambucana que haviam compreendido a chegada de uma nova arte e nela se desenvolveram com linguagem forte e original foram Vicente do Rêgo Monteiro e Cícero Dias, e por isso, em 1926, os dois já haviam deixado o Recife para estudos e estadias no Rio de Janeiro e em Paris, mesmo com idas e vindas.
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FOTOS: FRANCISCO MOREIRA DA COSTA/DIVULGAÇÃO
Visuais A argumentação de alguns críticos de que a insistência de Telles Júnior como pintor de paisagens nos serviria como registro de uma época não se sustenta. Por isso, a comparação do pintor pernambucano com grandes retratistas do Brasil colonial, como Frans Post, por exemplo, é quase absurda. Post realizava uma crônica pictórica a serviço de um governo (Holanda) ou como “cronista particular” do governador Maurício de Nassau em suas viagens pelo território conquistado. No que concerne à pintura nessa comparação, temos uma distância de mais de dois séculos como justificação dos registros de Post e a enorme superioridade técnica do holandês – para não citar toda a tradição da escola holandesa de pintura – que não cabe aqui questionar. Um dado final, para situar a pintura de Telles Júnior no mapa do seu tempo, é o fato de que entre 1905 e 1910, enquanto o nosso artista pintava florestas e marinhas, na França, Picasso já pintara Les demoiselles d’Avignon (1907) e, junto com Braque, liquidaria a fatura do Cubismo até 1914, ano da morte de Telles Júnior. Imagino Telles Júnior numa tarde de abril de 1914, na sala de sua casa, no Recife. Ele está sentado no camafeu de jacarandá com recostos de palhinha, a olhar na parede uma de suas pinturas, poucos dias antes de sua morte. Veste um impecável terno negro – colete de cetim brocado. As últimas luzes de abril acentuam os verdes e os ocres daquela paisagem. Ele fecha os olhos e pensa nas cidades onde morou. Lembra o Rio de Janeiro, seu pai levando-o para as aulas no Liceu, e adormece. Em um de seus últimos sonhos, imagina que irá morrer em breve e duvida de que dali a 100 anos seja lembrado de alguma maneira. Assim, a autocrítica teria sido um de seus últimos talentos, e talvez por isso lembremos com algum carinho do pintor Telles Júnior.
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POPULAR Um mapeamento dos escultores do estado
Livro Nova fase da lua ganha edição de luxo, dando voz a 85 artistas de 13 municípios pernambucanos, que falam sobre sua vida e obra TEXTO Mariana Oliveira
Em 1975, o artista pernambucano
Nhô Caboclo usou a expressão “reinado da lua” para designar o universo do artista popular. À época, as pesquisadoras Sílvia Rodrigues, Maria Letícia Duarte e Flávia Martins utilizaram o termo para dar título ao livro O reinado da lua – escultores populares do Nordeste, cujo objetivo era documentar a realidade (estilo de vida, formação, criação e produção) dos escultores populares brasileiros. Nhô Caboclo, falecido em 1976, foi um dos personagens ouvidos. O sucesso dessa publicação, que chegou à quarta edição em 2010, despertou em Flávia Martins o desejo de retomar a pesquisa, de revisitar os escultores populares, num contexto distinto daquele encontrado na década de 1970. Ela se juntou a Rogério Luz e Pedro Belchior numa nova empreitada, cujos focos passaram a ser os escultores pernambucanos e as suas realidades no século 21. Nova fase da lua – escultores populares de Pernambuco foi lançado em 2012, num projeto da empresa OAS, e, agora, chega à
sua segunda edição – com o mesmo conteúdo e projeto gráfico –, com o apoio do Funcultura. Os pesquisadores – juntamente com o fotógrafo Francisco Moreira da Costa – visitaram 13 municípios do estado e conversaram com 85 artistas de todas as regiões, com o objetivo de fazer o mapeamento da escultura popular local. A escolha dos personagens tomou como critério sua representatividade e prestígio nas próprias comunidades, nos meios institucionais e no circuito artístico. No livro, eles aparecem catalogados por região: Metrópole, Mata, Agreste e Sertão. Nas entrevistas, o trio teve como base um roteiro de tópicos a serem tratados, como conceituação do trabalho artístico, trajetória de vida e da arte, relação com os outros artistas, difusão e comercialização das peças, e processos de trabalho. Os encontros foram gravados em áudio e, a partir desse material, foi feito um texto para cada escultor, intercalado por suas falas. “O dono da voz é o artista,
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seus depoimentos são o âmago do livro”, pontua Flávia Martins. Ela lembra, ainda, que a proposta da obra não é fazer uma tipologia dos estilos encontrados. Contudo o leitor perceberá certas semelhanças entre os artistas de uma determinada região e/ou cidade. A exceção fica com os artistas da metrópole, que, devido às múltiplas influências, têm produções mais diferenciadas entre si, seja na técnica ou no material utilizado.
PROTAGONISTAS
Na leitura, percebem-se alguns pontos em comum entre a maioria dos escultores, sejam eles da cidade ou do interior. As memórias de infância narram histórias dos primeiros objetos moldados, no barro ou na madeira, para brincadeiras e também para ajudar na produção dos familiares. Fica muito clara a ligação da escultura popular pernambucana com o entorno familiar, com o contato com gerações anteriores que passam os ensinamentos dessas técnicas aos jovens. Em Caruaru, todos os escultores com os quais os pesquisadores conversaram eram ligados às famílias dos mestres Vitalino, Zé Caboclo, Manuel Eudócio, Luiz Antonio, Manuel Galdino. Nas outras regiões, essa tradição familiar também é perpetuada. É o caso de Maria Amélia, escultora de Tracunhaém que, aos 89 anos, encontrou no filho Ricardo um parceiro para o seu trabalho com o barro, ou mesmo de Nuca e seu filho Marcos, no mesmo município, e também de Biu dos Anjos e seu filho Tiago, em Petrolina. Ao mesmo tempo em que seguem as influências dos mestres, esses discípulos, cujos vínculos nem sempre são sanguíneos, têm procurado um estilo próprio. “Somase a essa segunda geração gente que não contou com nenhuma tradição familiar expressiva, mas chega à atividade por influência de fatores relacionados à própria expansão do ofício: possibilidades de realização pessoal e de ganho abertas pelas novas condições econômicas da criação de arte e de artesanato na região”, pontuam os autores na introdução do livro.
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TRACUNHAÉM Marcos de Nuca segue a tradição de esculpir leões iniciada por seu pai
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VITALINO NETO A obra do avô serve de inspiração para suas criações
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ZÉ ALVES DE OLINDA A influência de Nhô Caboclo fica clara em peças como Navio
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Pelos depoimentos, algumas mudanças importantes são percebidas, como uma maior consciência por parte dos escultores da importância dos seus trabalhos, a ideia de preservação do patrimônio cultural, bem como a necessidade de impor um estilo, uma marca aos seus trabalhos. Nesse sentido, os próprios artistas têm se organizado para criar memoriais, casas de arte e projetos diversos que possam ajudar na preservação e valorização dos seus trabalhos. Os pesquisadores constataram também que, hoje, existe um
investimento em duas linhas de produção. A primeira, de peça única, feita à mão, dirigida a um segmento de apreciadores e críticos; a segunda, de peças feitas em série, em grandes quantidades, com etapas terceirizadas, vários auxiliares e uso de máquinas, destinadas a um público de gosto popular, com retorno financeiro imediato. Não é necessário voltar ao livro O reinado da lua – escultores populares do Nordeste para entender que, apesar de manter uma forte tradição, o universo dos escultores populares está mudando, reinventando-se diante das exigências.
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
GRAVADORES E PAPELEIROS
Primeiro, meu xouzinho de erudição
para impressionar, o que é besteira: é só copiar nos livros, como faço aqui com a frase do pintor francês Maurice Denis (Granville, 1870-Saint-Germainen-Laye, 1943): “Lembrem-se que antes de ser uma representação de um cavalo de guerra, de uma mulher nua ou ainda de uma anedota, um quadro é por essência uma superfície plana ocupada por cores arrumadas numa certa ordem”. Estava descoberta a materialidade do quadro. E ele disse isso aos 20 anos de idade, em 1890, ano da morte de Van Gogh, que também aludira em carta a uma pintura que não representasse nem cavalo nem mulher nua nem nada, a arte abstrata enfim. Mas Denis inda foi mais longe, falando da matéria física de que é formado o quadro, como na tela do italiano Alberto Burri (1915-1995) Sacco (saco) de 1954 em que a própria estopa rasgada e suja já contém em si toda a dramaticidade
da representação com uma intervenção mínima, mas suficientemente modificadora, da mão do artista; estopa nua aliás material que já tinha sido usado em quadros de Gauguin mas servindo de tela para a pintura. Quando estava na Itália em 1957-58 falava-se muito de pintura polimatérica, vários materiais acoplados, e eu mesmo fiz uma exposição na galeria da prefeitura, Recife, 1961, por aí, algo parecido com umas peças de Antônio Hélio Cabral que aparecem no livro A natureza na arte brasileira, ps. 78-79 e 73 (depois da exposição joguei tudo no Capibaribe, ali mesmo da galeria, ao lado do prédio dos Correios, alguém deve se lembrar). Nesse livro da Volkswagen do Brasil, com obras de 25 artistas escolhidos por Jacob Klintowitz, 1989, compareço com uma escultura em pedra (granito) do lado de Paulo Dias (Recife, 1960), um dos atuais expositores do Museu do Estado, mostra Impressões,
maio/14, enquanto escrevo dia ainda não definido. Os outros artistas são Suzana Azevedo e Ypiranga Filho. Paulo Dias fabrica o suporte sobre o qual imprime suas estampas, digamos assim, por não se tratar de gravura no sentido de chapa gravada, metal, madeira, pedra, mas de recortes entintados e pressionados sobre esse tipo de papel artesanal que ele próprio produz com formatos diversos, bordas incertas e até vazados É a vitalidade do Pernambuco Experimental, para lembrar a bela exposição do MAR, Museu de Arte do Rio, feita recentemente por Paulo Herkenhoff e Clarissa Diniz. Mas deixemos que o artista fale: “Nessa mostra assim intitulada ‘Rios, pontes e overdrives’ (viadutos) parto de uma canção ritmada de Chico Science e da Nação Zumbi que fala de nossa cidade e suas ribeirinhas, bem como oceânica, costurada pela necessidade e vontade dos homens com pontes e viadutos,
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1 PERNAMBUCO EXPERIMENTAL
1 Ypiranga Filho,
Jaqueira-corte, gravura em madeira, 45 x 75cm, 2014
2 Suzana Azevedo, O rei está nu (pormenor). Monotipia, 80cm de diâmetro, 2014
3 Paulo Dias, Rios,
pontes e overdrives/O caranguejo. Impressão em carimbos sobre papel de bananeira, fabricado pelo autor, 76 x 76cm, 2014
3
envoltos pelo manguezal onde a vida aflora. (...) A mostra é composta de 14 papéis artesanais (feitos em fibra de iuca, agave, bananeira, algodão e rami) pintados em terras naturais e acrílica. As composições são feitas com impressões de carimbos de E.V.A. [“espuma vinílica acetinada”, como me explicou, parecida com sola de sandália japonesa], e sua repetição e superposição imitam e compõem a trama urbana, como a reunião de notas musicais compõem a música”. Nos três artistas se nota um grande refinamento, como se o processo de fazer tivesse tanto ou mais importância na obra do que o resultado visual, ou dependesse este crucialmente da invenção do método ou do uso dos materiais, mesmo no caso de Ypiranga Filho, mais próximo da gravura em madeira tradicional. A papeleira Suzana Azevedo (Recife, 1950) alega que mesmo antes da
Quando estava na Itália em 1957-58 falava-se muito de pintura polimatérica, vários materiais acoplados fabricação do papel, já adotara esse tipo de figuração que aparece nas atuais gravuras, como nos mostrou dois exemplos. O que é inegável é que a tatilidade das atuais obras ganhou tamanha importância a ponto de nos atraírem tanto pela vista quanto pelo tato, como se um sentido tivesse de ser completado pelo outro. Vejo pelos seus catálogos que já fabricou objetos, “artefatos”, cajus, colares, ao lado das “paisagens impressas” (exposição no Museu Murillo LaGreca, sem data no catálogo). Essa ligação do
sentido da vista e do sentido do tato está bem expressa nessa sua frase no folderzinho sem data Oficina do tempo, fazendo até lembrar a “arte corporal” (body art): “Com a planta do seu pé veja o chão do seu barro”. Trabalho curioso é o de imprimir num tecido de linho branco encontrado entre os despojos do seu pai como emendar peças de renda que pertenceram às suas avós. Há nela um forte sentimento preservacionista, nativista. Ypiranga Filho (Recife, 1936) cujas origens artísticas remontam ao Movimento da Ribeira, Olinda, sempre se interessou por todas as técnicas, mas nos limitemos à gravura com que se apresenta nesta exposição. Sua curiosidade universal não deixou escapar um tronco de jaqueira que foi derrubada porque estava doente e logo o corte da serra lhe sugeriu essas xilogravuras de topo em que as intervenções do artista respondem à textura pouco compacta da madeira. Adão Pinheiro, no artigo Às margens plácidas, 1987, diz: “Ora, se diria que a produção da pintura pernambucana estaria voltada muito mais, hoje, em adquirir uma marca ou em formar uma tradição e menos em enveredar pelos caminhos da experimentação”. Ora, caro Adão, essa luta nunca esmoreceu e parece que cada dia começa de novo. Ou são as duas coisas numa. “Ypiranga”, continua Adão, “sempre utiliza os materiais com que trabalha, os motivos em que se inspira, como forma metafórica para falar de si mesmo, como se as folhas dessas gravuras fossem páginas de uma grande narração sobre si mesmo.”
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CON TI NEN TE
Criaturas
Salvador Dalí por Zenival
O espanhol Salvador Dalí completaria 110 anos neste mês. Em 1929, engajou-se no movimento Surrealista e criou
aquilo que ficou conhecido como “código Dalí”, uma série de figuras como relógios, ovoides e rinocerontes que marcam seu trabalho. Entretanto, foram seus bigodes, sua maneira de agir, seus deboches, suas declarações e excentricidades que deram origem à sua mais importante obra: o Dalí-personagem, que segue intrigando a imaginação das pessoas.
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