Continente #170 - Qualquer maneira de amar

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# 170

QUALQUER MANEIRA DE AMAR #170 ano XV • fev/15 • R$ 10,00

JÀ DÀ PRA SENTIR O CORAÇÃO AQUECENDO.

CONTINENTE

INSETOS GAFANHOTOS, LARVAS E BARATAS VÃO À MESA EM GRANDE ESTILO AUTORRETRATO DAS ORIGENS NA PINTURA À SELFIE FAMIGERADA

FEV 15

O verão chegou. E com ele, o sol. E com o sol, a luz chamando as pessoas pra que vivam as ruas, as praias e os parques. O coração do Recife bate em baque virado. Sinta sua cidade como o calor de um abraço apertado.

ARTISTAS E ATIVISTAS PÕEM EM DISCUSSÃO AS DEFINIÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE

CATALINA ESTRADA | BANDA DE IPANEMA | DAVID COPPERFIELD FLAIRA FERRO | TEATRO DE RUA | GRUPO DE PERCUSSÃO DO NORDESTE CAPA_fevereiro flag.indd 1

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PICNIC ON THE ESPLANADE/NAN GOLDIN/REPRODUÇÃO

FEVEREIRO 2015

aos leitores A arte tem sido um excelente meio de observação das mudanças sociais, ela mesma com o poder de provocá-las. Dentro do assunto que nos mobiliza nesta edição, sexualidade e novas afirmações de gênero, os artistas que mencionamos são basilares, pois suas obras e experiências são indispensáveis à discussão. Aqui, estamos na companhia da fotógrafa norte-americana Nan Goldin que, embora seja cultuada no campo da arte, permanece ignorada ou malentendida fora desse segmento. Nos anos 1970, quando feministas e gays punham em xeque tradições que os oprimiam, Goldin vivia muitas das questões em debate, convivendo e fotografando pessoas postas à margem, como as travestis registradas na obra The other side, da qual foi reproduzida a foto acima, que bem pode nos remeter ao Almoço sobre a relva (1863), revolucionário em seu tempo, pelas mãos de Manet. Estamos na companhia, também, de gente como Jean Genet e Oscar Wilde, escritores cujas escolhas pessoais tiveram imensa repercussão social e política, levando a sociedade a discutir paradigmas, dentro e fora da literatura. Contemporaneamente, há o inquietante trabalho da artista

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baiana Virginia de Medeiros, que coloca suas experiências artísticas e de vida no mesmo patamar, o que podemos aferir em obras como Studio Butterfly, com instalação realizada a partir da convivência com travestis, e Jardim das torturas, em que registra o período no qual integrou uma família sadomasoquista. Hoje, ela pretende, como declarou à jornalista Luciana Veras, influir no próprio corpo, tomando testosterona, sendo guiada por um homem trans nesse processo. Para além do campo da representação artística, há a vida de pessoas que, no anonimato ou no ativismo político, requerem nosso olhar, nossa sensibilidade para as novas acepções de gênero e sexualidade. Na reportagem realizada por Chico Ludermir, defrontamo-nos com pessoas que não se reconhecem dentro das categorias binárias que resultam da definição de um corpo sexual: masculino e feminino. Elas militam hoje pelo reconhecimento de que esses são valores historicamente arraigados e que não correspondem à realidade dos desejos individuais. Militam pela liberdade de viver esses desejos no próprio corpo, sem serem violadas por isso.

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sumário Portfólio

Catalina Estrada 6

Cartas

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Expediente + colaboradores

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Matéria Corrida

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Leitura

82

Entremez

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Claquete

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Criaturas

Entrevista

Liliana Weinberg Pesquisadora mexicana discorre sobre o gênero ensaio, essa “prosa de ideias”

Conexão

Guia Kinoforum Site mapeia festivais nacionais e internacionais de cinema

20

Balaio

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Perfil

64

Palco

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Sonoras

Mário de Andrade Celebrizado por sua verve, poeta modernista morreu amargurado, aos 51, há 70 anos

Flaria Ferro Bailarina dedicada ao frevo desde criança agora se lança na carreira de intérprete musical

José Cláudio Num reino à beira-mar

David Copperfield Relançamento do romance de Dickens vem acrescido de fortuna crítica que inclui ensaio de Virginia Woolf

Designer colombiana, radicada em Barcelona, tem sofisticado trabalho de composição de temas e cores, que resulta em estampas alegres e vibrantes

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Ronaldo Correia de Brito Narrar de qualquer maneira, sempre narrar Antologia do cinema pernambucano Mais de 200 filmes, produzidos entre os anos 1920 e 2000, são lançados em caixa de nove DVDs

Elke Maravilha Por Sávio Araújo

Teatro de rua Grupos que utilizam o espaço público para criação e atuação defendem seu caráter empático Grupo de Percussão do Nordeste Reunidos desde 1997, músicos lançam primeiro CD, Território XXI, em que alçam ao protagonismo instrumentos percussivos

História

Autorretratos Gênero clássico na história da arte, quase sempre ligado a uma autorreflexão do artista, ganha versão contemporânea, mais narcisista e exibicionista, a selfie

54 CAPA FOTO Catherine Leblanc/Godong/Corbis/Latinstock

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Capa

Tradição

Na vida e na arte, cada vez mais o binarismo masculino e o feminino é posto em xeque e sua imposição, questionada. Artistas e ativistas apontam esse estado

Ao completar 50 anos, instituição do carnaval carioca que reúne povo e nata da intelectualidade sai às ruas em homenagem ao Rio de Janeiro

Cardápio

Visuais

Ainda cercados de preconceitos e com restrições de comercialização, eles ganham aos poucos o interesse de comensais e chefs

Com um trabalho focado na crítica à violência social, artista mexicana apresenta no Recife a exposição Enquanto for necessário

Sexualidade e gênero

22

Insetos

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Banda de Ipanema

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Fev’ 15

Teresa Margolles

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cartas 15 anos I

Parabéns Continente por possuir colaboradores de alto nível!

Da vida em Marte ao simbolismo do fogo, do romantismo amoroso à expansão dos espaços de opinião, tive a sorte de assinar muita coisa nesses 15 anos numa revista que dá orgulho de ler, imagina escrever. Além de um monte de gente bacana entrevistada. Parabéns ao timaço de diretores, editores, fotógrafos, diagramadores e colaboradores da revista Continente!

ROMUALDO VERAS NATAL – RN

FÁBIO LUCAS RECIFE – PE

15 anos III Parabéns!!! Um prazer fazer parte desta revista desde o início.

15 anos II Parabéns a todos que hoje fazem a Continente. Estou, em pensamento e coração, nessa festa. Lembro bem as primeiras ideias/conversas de Mario Hélio com a diretoria da Cepe para a criação de “uma revista de cultura”. Lembro a preparação e o lançamento do primeiro número – número zero –, cuja capa, se bem lembro, foi João Câmara. E depois da número 1 (acho que com Brennand) e depois de todas elas. Parabéns a todos que hoje fazem e mantêm essa ideia. WEYDSON BARROS LEAL RIO DE JANEIRO – RJ

MARIANA CAMAROTI BUENOS AIRES – ARGENTINA

Parabéns para minha revista do coração! Muito orgulho de ter dedicado quatro anos a ela e, de retorno, ganhar uma das melhores experiências da minha carreira – e pessoas especiais na minha vida. Que ela continue linda e desbravando com sucesso esse caminho árduo da cultura regional e nacional. Obrigado, Continente, pelo que sou hoje! Sucesso a todos!

O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140).

GIL CANTO FELISBERTO

15 anos IV

SÃO PAULO – SP

Orgulho de ter trabalhado (e continuar colaborando) com todos vocês!. EDUARDO CESAR MAIA

Parabéns para a melhor revista cultural brasileira, amo a Continente, vida longa! SÃO PAULO – SP

DO FACEBOOK Pense num lote de jornalistas especial de luxo e deveras criadores e competentes!

As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

LUCY FRANCO

RECIFE – PE

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE

(81) 3183 2780

Fax

(81) 3183 2783

Email

A melhor revista cultural pernambucana e brasileira.

redacao@revistacontinente.com.br

Site

CHARLES MORAES

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LUZIANIA – GO

Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:

PROGRAMAÇÃO

Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco

fevereiro 2015

A programação de verão do Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco traz alguns dos principais nomes e tendências do que vêm acontecendo na música brasileira.

PATROCÍNIO

PRODUÇÃO

7/02 • SÁBADO • 17H RECITAL COM MARIO ULLOA

14/02 • SÁBADO• 17h SHOW COM JULIANO HOLANDA APOIO

SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE

Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$ 5,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 2,50 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander tem entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.

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REALIZAÇÃO

MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sab e dom 14h as 17h

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colaboradores

Chico Ludermir

Eduardo Cesar Maia

Márcio RM

Matheus Torreão

Jornalista e fotógrafo

Jornalista e doutor em Teoria da Literatura

Fotógrafo, com projeto de mapeamento das festas populares

Jornalista e músico

E MAIS Diego José Sousa Lemos, advogado, mestrando UFPE, militante LGBT e dos direitos humanos. Christianne Galdino, jornalista e mestre em Comunicação Rural (UFRPE). Clarissa Macau, jornalista. Guilherme Novelli, jornalista. Pablo Lovato, ilustrador e caricaturista. Rhemo Guedes, advogado, especialista em Direitos Humanos (UFPE) e gerente do Sistema Estadual de Proteção a Pessoas – SEPP. Sávio Araújo, ilustrador e caricaturista.

GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO

CONTINENTE ONLINE

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GOVERNADOR

Adriana Dória Matos

Olivia de Souza (jornalista)

0800 081 1201

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Juan Ropero (webdesigner)

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Sóstenes Fernandes

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ARTE

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E PARQUE GRÁFICO

Lourival Holanda

Janio Santos e Karina Freitas (paginação)

E CIRCULAÇÃO

Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro

Nelly Medeiros de Carvalho

Pedro Ferraz (tratamento de imagem)

Daniela Brayner

Recife/Pernambuco

Pedro Américo de Farias

Joselma Firmino de Souza (supervisão de

Gilberto Silva

CEP: 50100-140

Tarcísio Pereira

diagramação e ilustração)

Rafael Lins

Fone: 3183.2700

Rosana Galvão

Ouvidoria: 3183.2736

CONSELHO EDITORIAL:

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO

ouvidoria@cepe.com.br

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LILIANA WEINBERG

“Buscamos no ensaio um estilo do pensar e do dizer” Pesquisadora mexicana que tem se dedicado à compreensão do ensaísmo fala sobre as origens do gênero inaugurado por Miguel de Montaigne, as principais características dessa “prosa de ideias” e sobre sua produção no mundo atual TEXTO Eduardo Cesar Maia

CON TI NEN TE

Entrevista

Reconhecida como uma das

maiores autoridades acadêmicas nos estudos acerca do ensaísmo hispanoamericano, Liliana Weinberg, nascida em Buenos Aires e naturalizada mexicana, tem se dedicado, entre outras coisas, à compreensão desse gênero híbrido, ao mesmo tempo tão rico e tão polêmico, que é o ensaio. Por se situar numa zona cinzenta, entre o filosófico e o literário, esse “centauro dos gêneros”, como propôs Alfonso Reyes, é tema até hoje de controvérsias, principalmente no âmbito acadêmico. Na entrevista a seguir, a pesquisadora fala sobre as origens históricas do ensaio, aponta alguns possíveis precursores, discorre sobre as principais características que identificam esse tipo tão peculiar de escrita e mostra que ele está muito bem adaptado aos nossos tempos, ditos “pós-modernos”. CONTINENTE É possível determinar com precisão a origem histórica do gênero ensaio? LILIANA WEINBERG Considero que Miguel de Montaigne é o inaugurador por excelência do gênero. Um autêntico “instaurador de discursividade” no

sentido foucaultiano. Apesar de ser possível rastrear muitos antecedentes do ensaio na prosa não ficcional – e alguns críticos, como György Lukács, consideram que foi Platão mesmo o primeiro grande antecessor do ensaio –, sem dúvida quem realiza as operações discursivas decisivas para o gênero é Montaigne. CONTINENTE Que características podem determinar se um texto é ou não um ensaio? LILIANA WEINBERG O ensaio é prosa de ideias, escritura de interpretação, estilo de reflexão, que nos oferece uma perspectiva do mundo e convida o leitor a participar, como dizia Ortega y Gasset, de novas maneiras de ver as coisas. O primeiro traço que o caracteriza é que se escreve a partir de um eu que pensa e sente o mundo. O ensaio está sempre assinado, porque evidencia a responsabilidade pela palavra. O que buscamos no ensaio é um estilo do pensar e do dizer, um modo expressivo, uma escritura, um tom conversacional que inclui o leitor. Nele há uma apaixonante combinatória entre o fator pessoal, subjetivo, e o

interpessoal. O ensaio é um gênero que, para dizê-lo com Pierre Glaudes, mostra-se, ao mesmo tempo, “egoísta e cívico”, ao vincular o íntimo, privado, particular, peculiar, próprio de um autor, com um alcance geral, destinado a interpretar e valorar distintos aspectos do mundo, conversar com os leitores e não só convencê-los, mas seduzi-los, aproximá-los não somente das ideias senão também da escritura. Quando nos aproximamos do ensaio, buscamos uma visão ou uma versão de distintas questões a partir do ponto de vista pessoal. Como disse Adorno, no ensaio não só se apresentam temas, problemas, conteúdos, senão o processo mesmo de pensá-los e o modo como o ensaísta nos inclui – seus leitores amigos – no processo de pensamento: convencenos, faz-nos partícipes, como amigos aos que – como em uma conversação – deve-se ao mesmo tempo saber convencer e seduzir com suas intuições, imagens e demonstrações. Alguns leitores podem fazer uma abordagem superficial, pragmática, instrumental, interessada, coisificadora, do ensaio – que só busque unidades informativas

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DIVULGAÇÃO

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ou atenda só aos conteúdos. Por exemplo, posso ler Casa grande & senzala porque quero extrair dados sobre certa etapa da vida do Brasil. Fazê-lo assim implicaria um tipo de leitura que Paulo Freire – e depois dele José Luis GómezMartínez – considerava instrumental, interessada. Mas também lemos um ensaio para alcançar uma experiência plena, desinteressada, conversacional, interpretativa, que nos permita dirigir nossa atenção à escritura, ao estilo, à experiência estética e ética. Regressando ao meu exemplo, posso ler através do ensaio de Gilberto Freyre um modo de interpretar a vida do Brasil, de descobrir estrategicamente certas zonas da cultura que podem ser chave para apoiar tal interpretação. A esse tipo de leitura

Entrevista

IMAGENS: REPRODUÇÃO

CON TI NEN TE

nada e nem tampouco por esgotar os temas. Como o ensaio pode desenvolver-se sem levar em consideração essas “regras” filosóficas? LILIANA WEINBERG Um tema que me obseda é precisamente o da boa fé e da verdade no ensaio: o ensaísta fala de boa fé ou de má fé? O ensaísta busca a verdade? E de que tipo de verdade se trata? Porque não é efetivamente uma certeza de caráter positivo, ou uma verdade popperianamente falseável. Em primeiro lugar, como diz Tomás Segovia, o ensaio se nutre precisamente dessa inadequação básica entre verdade e sentido na linguagem. É uma permanente busca de sentido guiada por uma fidelidade à verdade. Empregando uma imagem muito expressiva, Segovia diz que a verdade não é nem a inquilina

podemos denominar “humanística”. Desse modo, posso chegar a ver como, graças ao prodigioso enfoque de G. Freyre, a “casa grande” e a “senzala” se convertem em um par de opostos que estabelecem entre si uma relação dialética que acompanha a interpretação de uma matriz cultural básica do Brasil, e funcionam em vários níveis ao mesmo tempo: literalmente, como formações culturais descritíveis por um historiador ou um antropólogo, mas também metaforicamente, inclusive como personificações e como chaves capazes de condensar diversos níveis de sentido. CONTINENTE Um valor filosófico central na modernidade foi o da “certeza”. O ensaio, não obstante, caracterizar-se-ia por não garantir

nem a caseira da linguagem, nem a arrendadora nem a arrendatária: é sua fiadora. O ensaio lida com a verdade em um mundo feito valor, feito sentido. Por outra parte, diferentemente do que demanda a Lógica, que persegue univocidade e desambiguação, o ensaio trabalha com as línguas naturais, e é dentro delas que busca sentido: dentro da ambiguidade e da polissemia. O uso da linguagem que faz o ensaio não é meramente instrumental, não aspira só fixar significados em um domínio específico da realidade, como exigem, por exemplo, as perspectivas positivistas e cientificistas – são aproveitados os níveis expressivos, figurativos, simbólicos, como também as operações poéticas, para esclarecer o sentido e

religar domínios. Em minhas aulas, quando procuro mostrar a diferença entre discurso científico e discurso ensaístico, sempre evoco o fato de que Florestan Fernandes declarou que Casa grande & senzala era um grande “antecedente” do conhecimento científico da sociedade. O ensaio de interpretação foi, assim, no momento da normatização das ciências sociais, convertido em um avô venerável, mas que devia ser mantido calado e tratado como familiar distante: um antecedente impressionista, um parente incômodo… E, contudo, sobreviveu à própria crise das ciências sociais. CONTINENTE Muitos pensadores (como Ernesto Grassi ou José Ortega y Gasset)

“O surgimento do ensaio coincide com o projeto humanista: uma recuperação das fontes clássicas, relidas com interesse de fazer conversarem os grandes mortos gregos e latinos com os vivos que querem incidir na consciência humana” assinalam um vínculo forte entre o ensaísmo e a tradição de pensamento humanista. A senhora está de acordo? Que tipo de relação seria essa? LILIANA WEINBERG Estou de acordo. O surgimento do ensaio coincide em boa medida com o projeto humanista: uma recuperação das fontes clássicas, relidas com um enorme interesse de trazê-las ao presente e fazer conversarem os grandes mortos gregos e latinos com os vivos que querem incidir na consciência humana. No ensaio, evidenciamse muitas das características do melhor humanismo: maior interesse pelo homem, reconhecimento da história como disciplina formativa, renovado interesse pela leitura e pelo livro, apropriação das fontes com um sentido de atualização, enorme

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atenção aos valores e interesse pela redefinição do conhecimento humano. O ensaio surge num momento chave, em que coincide a expansão do humanismo europeu, assim como também sua entrada em crise. CONTINENTE Que papel joga a metáfora – recurso muito comum no ensaísmo – no conhecimento filosófico? LILIANA WEINBERG Sempre considerei a metáfora como uma figura ligada àquilo que os antropólogos estudam como “participação”, isto é, a possibilidade de enlaçar mundos e realidades diferentes através da postulação de uma analogia e uma afinidade qualificada entre mundos e níveis aparentemente diversos e

falar de uma ou de várias Américas Latinas, também é possível perguntar sobre se devemos falar de ensaio ou ensaios, e examiná-los efetivamente à luz de distintas tradições. Por exemplo, considero que a tradição latino-americana do ensaio não coincide com a peninsular. Para começar, vejo no Padre Bartolomé de Las Casas um antecedente do gênero, que se constitui como tal precisamente enquanto Las Casas toma uma distância crítica da cultura na que ele mesmo nasceu – agora convertida em cultura de conquista – e a denuncia. Por outra parte, o ensaio latino-americano do século 18 tem uma enorme proximidade com o ensaio da Ilustração, e a riquíssima prosa da

“A riquíssima prosa da independência se nutre de autores como Voltaire (à esq.), Rousseau, assim como também da prosa que começa a circular a partir da França revolucionária e das ex-colônias norte-americanas” impossíveis de combinar. O ensaísta amplia as dimensões do nominável e do inteligível; diz de maneira nova coisas novas, mas também se atreve a estabelecer relações impensadas por outros atores culturais. Gosto de dizer que o ensaísta converte os temas em problemas e os problemas em temas. Coincido também com aqueles que veem nas metáforas a possibilidade de modelar a realidade: aqui também nos aproximamos ao labor do ensaísta. CONTINENTE É possível falar de tradições ensaísticas diferentes de acordo com épocas ou países? Ou o gênero possui uma história única e continuada? LILIANA WEINBERG Assim como Renato Ortiz se pergunta se é possível

independência se nutre de autores como Voltaire, Rousseau, assim como também da prosa que começa a circular a partir da França revolucionária e das ex-colônias norte-americanas. CONTINENTE Há espaço para o ensaio no ambiente filosófico pós-moderno? LILIANA WEINBERG Não só há espaço, senão que grande parte do modo como se conforma o pensamento pósmoderno é já, em si mesmo, ensaístico. Contudo, há várias mudanças importantes entre a concepção moderna do ensaio no que se refere ao estatuto de verdade e ficção, ou ao estatuto de subjetividade etc.; e, sobretudo, quanto ao conceito mesmo de verdade, que se transformou muito – de maneira

excessiva – na pós-modernidade. Desde meu ponto de vista isso deve ser repensado. A partir do momento em que a crítica da cultura e dos valores passa a ser considerada, com pleno direito, como instância filosófica da maior importância, o ensaio deixa de ser algo auxiliar para se converter em central. Considero que com Nietzsche se abrem as comportas que dividiam filosofia e literatura, e o ensaio alcança uma nova etapa na qual já não se pode separar a dimensão epistemológica da dimensão criativa. CONTINENTE E quem são os grandes ensaístas hoje em dia? LILIANA WEINBERG Aqueles que são capazes de levar o ensaio a dimensões criativas e críticas cada vez mais audazes e sugestivas. Aqueles que seguem tentando reunir mundos e tarefas neste momento de especialização e coisificação. Na América Latina contamos com figuras-chave como Borges, Lezama Lima, Sarduy, Paz, Zambrano, que estabeleceram novos vínculos e cruzes entre ensaio e ficção, ensaio e narrativa, ensaio e poesia, ensaio e filosofia. Ou narradores que a partir do romance se avizinharam abismalmente do ensaio, como Clarice Lispector. E entre aqueles que levaram a própria crítica a novas dimensões que superam em muito o exercício meramente profissional para honrar a leitura e a interpretação, como não pensar no próprio Antonio Candido ou em Ángel Rama, figuras que, ademais, começaram a construir pontes entre o Brasil e a América Espanhola. Penso no ensaio sociológico de Renato Ortiz. Nos cruzamentos entre arte, estética e literatura por parte de John Berger. No resgate da experiência estética por parte de Muñoz Molina. Nos luminosos ensaios críticos – que ele provocativamente chama “formas breves” – de Ricardo Piglia. Na relação entre ensaio, moral e crítica política de Tomás Segovia. Nos ensaios de poética histórica de Derek Walcott. E acaba de morrer minha admiradíssima Nadine Gordimer, grande novelista, grande ativista sul-africana contra o apartheid, e também grande ensaísta. E cito só uns escassos nomes de uma lista infinita, a partir dos textos que eu mesma mais frequento como leitora.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

CON TI NEN TE

AUTORRETRATO E SELFIE

FLAIRA FERRO

Na seção História deste mês, debruçamonos sobre a história do autorretrato e seu percurso até a prática tão contemporânea da selfie, que toma conta, sobretudo, das redes sociais. Como complemento a esse material, resgatamos na íntegra as matérias especiais da Continente sobre Van Gogh (nº 27), Rembrandt (nº 63) e Frida Kahlo (nº 28), célebres autorretratistas, publicadas há alguns anos. Também vinculada a esse material, oferecemos ao leitor uma entrevista com o fotógrafo, pesquisador e professor da UFPE José Afonso Jr., sobre o fenômeno das selfies.

Confira algumas faixas do disco de estreia da bailarina, Cordões umbilicais, lançado no início do ano e com composições de forte cunho autobiográfico.

Conexão

CINEMA PE Assista ao filme Até o sol raiá e ao documentário Menino Aranha, que compõem a Antologia do cinema pernambucano, assunto de Claquete.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

ANDANÇAS VIRTUAIS

HISTÓRIA

COMUNICAÇÃO

FOTOGRAFIA

MEMÓRIA

Período da ditadura militar no Brasil é tema de novo site

Monitoramento de veículos da grande mídia é foco do colaborativo OmbudsPE

Família argentina constrói linha do tempo através de fotografias

Site divulga cadernos e rascunhos do compositor paulista Itamar Assumpção

memoriasdaditadura.org.br

ombudspe.org.br

cadernosdoitamar.com

A Vlado Educação, em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e o PNUD-Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, lançou na internet o portal Memórias da ditadura. A ideia é divulgar informações sobre a história brasileira no período entre 1964 e 1985, quando o Brasil esteve sob regime militar. O site traz informações relevantes sobre, por exemplo, os movimentos de resistência de trabalhadores rurais, mulheres, estudantes e operários.

O OmbudsPE é um espaço destinado a produzir conteúdos que discutam a mídia regional, em especial a pernambucana. O site faz, ainda, análises sobre a impressa local e nacional, praticando um monitoramento dos grupos e profissionais de comunicação. Editado por Ivan Moraes Filho, o OmbudsPE é aberto a colaborações, recebendo conteúdos de jornalistas e acadêmicos que se interessem por assuntos como regulamentação e democratização da comunicação.

zonezero.com/open/158-the-arrowof-time

O The Arrow of Time é um projeto fotográfico do argentino Diego Goldberg, iniciado em 1976 e que ainda está em andamento. A ideia é simples: todos os anos, no dia 17 de junho, ele reúne a família – Diego, Susy, Nicolás, Matías e Sebastían – para um ritual no qual eles fotografam uns aos outros e preenchem uma linha do tempo na qual eles percebem “a flecha do tempo passando”. O resultado é emocionante e compartilhado na internet.

O músico Itamar Assumpção ficou mais conhecido em São Paulo, a partir da década de 1980, quando se envolveu com outros artistas da Vanguarda Paulistana e se tornou um dos nomes de maior visibilidade do movimento. O cantor, conhecido por dar voz a músicas como Que tal o impossível e Nego Dito, colecionou uma série de cadernos pessoais, nos quais juntou poemas, haicais, lembretes, desenhos, roteiros de shows. O site Cadernos Inéditos de Itamar Assumpção reúne esses rascunhos e os disponibiliza abertamente.

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blogs EDITORA BOITEMPO blogdaboitempo.com.br

O Blog da Boitempo compartilha notícias relacionadas aos lançamentos e autores da casa, eventos e artigos relacionados à sua atividade. Tem 17 colaboradores regulares que escrevem colunas e seções especiais, como a recente Charlie Hebdo, com reflexões de uma série de autores acerca do atentado ocorrido na França, no dia 7 de janeiro deste ano.

CINEMA PERNAMBUCANO

MAPEAMENTO DE FESTIVAIS

vimeo.com/cinemascopio

O Guia Kinoforum é um espaço que facilita o trabalho de difusão das obras audiovisuais produzidas no circuito nacional kinoforum.org.br

O Guia Kinoforum de Festivais Audiovisuais é um espaço importante

para realizadores e produtores do mercado de cinema brasileiro. Desde 1999, o site mapeia festivais nacionais e internacionais a fim de conectar os filmes com esses importantes espaços de difusão. Reunindo diferentes formatos, gêneros, temáticas e segmentos, o site mapeia continuamente mais de 150 eventos brasileiros, além de outros 120 internacionais. As informações online são atualizadas diretamente pelos produtores e organizadores, que modificam as notícias e datas ao longo do ano. A partir do fórum, as distribuidoras ficam cientes dos prazos de inscrição e datas de realização de forma mais ordenada, o que facilita a inclusão das obras nos eventos. O Guia reúne, ainda, listagens das produções feitas nos últimos anos, dicas de especialistas em exibição digital, análises sobre o mercado exibidor comercial brasileiro – feitas pela equipe do site Filme B –, o ranking de bilheteria dos filmes nacionais do último ano, além de informações sobre cursos, faculdades e oficinas de capacitação. O Guia participa, ainda, de um projeto chamado Kinooikos, que, desde 2007, procura dar mais visibilidade a produções audiovisuais populares. PETHRUS TIBÚRCIO

O Vimeo é uma rede social destinada ao compartilhamento de vídeos. Na conta do cineasta Kleber Mendonça Filho, autor de O som ao redor (2012), ele disponibiliza pelo menos dois títulos de sua filmografia: Vinil verde (2004) e Eletrodoméstica (2005). O primeiro é uma “adaptação livre de uma fábula russa”, enquanto o segundo tematiza “sexo, controle e prazer no Brasil dos anos 1990”.

CRAIG THOMPSON dootdootgarden.com

Craig Thompson é um dos escritores de histórias em quadrinhos contemporâneos mais bem-sucedidos. Estado-unidense, coleciona alguns prêmios em sua bibliografia, sendo os títulos mais famosos Retalhos e Habibi. O blog Dood Doot Garden, existente desde 2007, é o espaço pessoal do autor, no qual ele divulga bastidores e trabalhos que ainda serão lançados.

sites sobre

premiações GLOBO DE OURO

OSCAR

GRAMMY

goldenglobes.com

oscar.go.com

grammy.com

O Globo de Ouro é o primeiro da temporada de premiações. Em 2015, o prêmio de Melhor Filme foi para Boyhood, de Richard Linklater.

O Oscar será no dia 22 de fevereiro, quando concorrerão indicados como Birdman, Selma e O Grande Hotel Budapeste.

A premiação deste ano do Grammy tem data marcada para 8 de fevereiro. Os troféus são entregues aos profissionais da música.

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CON TI NEN TE

Portfólio

Catalina Estrada

UTILITÁRIOS ALEGRES E OTIMISTAS TEXTO Laís Araújo

A arte de Catalina Estrada tem sempre algo de alegre, otimista e delicado. Ela, colombiana, desde a infância teve contato intenso com a natureza e insere a vivência dessa época em sua arte (seria difícil não ficar marcada pelas fantasias infantis geradas numa casa em meio a tantas flores, frutas, casa na árvore). Ao realizar seu trabalho, adiciona às suas memórias de infância tudo o que vê em suas viagens, no seu atual cotidiano em Barcelona e a inspiração das texturas e dos padrões do Sudeste Asiático. A vontade de se expressar artisticamente, que hoje define seu trabalho e dia a dia, parece ter estado sempre ali: criança, costumava pedir pincéis e lápis de cor como presentes de aniversário, e passava horas observando os mínimos detalhes do que havia ao redor, com uma lupa. Essa propensão foi decisiva para que estudasse Design Gráfico em Medellín, sua cidade natal. Depois dos anos de graduação, foi a Paris por alguns meses e, de lá, em 1999, para a Espanha, onde estudou litografia na Escuela de Artes Llotja. Ela mora no país, desde então. Como profissional freelancer, encontrava tempo para fazer ilustrações para projetos voluntários, majoritariamente para a Colômbia. Os trabalhos desse período receberam a atenção da mídia, e também de contratantes. “Foi quando eu encontrei na ilustração um intermédio entre o design e a arte, no qual eu me senti bastante confortável em trabalhar”, explica. Aos poucos, com a sua expressão autoral mais forte e conhecida, a vocação comercial de sua produção foi se destacando e companhias passaram a convidar Catalina para produzir linhas assinadas de produtos. Nesse contexto, estão capacetes, guarda-chuvas, material escolar e papéis de paredes – que não necessitam de mais nada para deixar o cômodo extremamente vibrante –, com seus padrões construídos sempre digitalmente (diferentemente dos seus projetos pessoais de arte, que costumam ser feitos com CONTINENTE FEVEREIRO 2015 | 16

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Páginas anteriores 1-2 PAPÉIS DE PAREDE

Criações de Catalina deixam os ambientes vibrantes

Nesta página 3-8 VESTUÁRIO

Designer tem feito padrões de estampas para a marca brasileira Anunciação

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CON TI NEN TE

Portfólio

9-11 COMERCIAL Seus desenhos estão em roupas de cama e acessórios

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tinta acrílica e aquarela sobre papel e madeira). Atualmente, Catalina está trabalhando em produtos para o Brasil: padrões de roupas para a marca Anunciação, assim como a criação de estampas para acessórios, como maletas, mochilas e cadernos. É notável a importância da harmonia das cores em suas criações – ela conta

que passa tanto tempo pensando e aprimorando a composição de cor quanto na composição estrutural de cada imagem. O balanço encontrado transforma seus trabalhos, repletos de informação e detalhes, em obras vívidas e marcantes, sem a sensação de sufocamento que o excesso pode trazer. “Eu acredito fortemente no

poder da cor, e em como ela afeta as nossas emoções e humores.” A atenção aos detalhes tem sintonia com o movimento britânico arts & crafts, em que, para ela, destacamse William Morris e Christopher Dresser. As expressões artísticas populares, definidas por Catalina como repletas de “humildade, força e espontaneidade”, também fazem parte de suas referências essenciais. O trabalho da designer, realizado em sua casa ou em espaços disponíveis durante suas viagens, é definido por tudo que “toca suas emoções”, independentemente da motivação para que seja produzido. “Quando os projetos são comerciais, eu preciso pensar sobre o cliente e o público, o que querem, suas necessidades – assim todo mundo fica feliz. Nos projetos pessoais, penso apenas no que quero transmitir com a minha arte, não muito em relação ao que querem ver, mas ao que eu quero expressar”, conta. “Geralmente,trabalho em muita coisa ao mesmo tempo, tanto comercial quanto pessoal, e ambos me dão extrema satisfação.”

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12 COMPOSIÇÕES Catalina conta que dedica tanto tempo à criação de padrões quanto à harmonização das cores

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O VALOR DO RISO

O ocaso do modernista Talvez por uma estratégia de (auto)preservação, costumamos ressaltar os melhores momentos dos nossos heróis mortos. Assim fazemos com o genial Mário de Andrade, enaltecido pela verve, sobretudo por sua entrada triunfal no Movimento de 22, com a leitura de Ode ao burguês, poema de Pauliceia desvairada (“Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!/ Oh! purée de batatas morais!/ Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!”, esbraveja o nosso poeta), e pelo romance Macunaíma. Mas, sem querer botar sal no bolo, quase nunca lembramos que, no fim, aquilo que nos atiçava esmaece. Quando morreu, há 70 anos, com apenas 51 anos, Mário andava desencantado, escanteado pelo getulismo, e desiludido das próprias escolhas (logo ele, de tão imenso legado). Em seu poema de estertor, A meditação sobre o Tietê, ele indaga: “É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado/ É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana./ Meu rio, meu Tietê, onde me levas?/ Sarcástico rio que contradizes o curso das águas/ E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,/ Onde me queres levar?”. No longo poema, ele inquire: “Onde estão os amigos? Onde estão os inimigos?/ Onde estão os pardais? e os teus estudiosos e sábios, e/ Os iletrados?/ Onde o teu povo? e as mulheres!” Que solidão, Mário! ADRIANA DÓRIA MATOS

CON TI NEN TE

A FRASE “Perder-se também é caminho.”

Clarice Lispector, escritora

Num breve texto de 1905, simples e despretensioso, Virginia Woolf destaca O valor do riso (que foi lançado há pouco, junto com outros ensaios, pela Cosac Naify). Sua abordagem está muito afinada à crítica da sociedade sob dois pontos de vista: a excessiva sisudez de seus contemporâneos, e a desimportância das mulheres e das crianças na predominância masculina. “O riso puro, tal como o ouvimos nos lábios das crianças e de mulheres bobas, anda em descrédito. É tido por ser a voz da tolice e da frivolidade, não se inspirando nem em conhecimento nem em emoção”, escreve. Mas ela dá uma rasteira em quem supõe que ali está a defesa do status quo. “Toda a capa de riqueza e posição e saber que uma pessoa possui, na medida em que é uma acumulação superficial, não deve embotar a lâmina do espírito cômico, que opera ao vivo” - depois dessa frase, a escritora parte em defesa do riso das crianças e das mulheres, os “principais ministros do espírito cômico” e, por extensão, da honestidade. (ADM)

Balaio CRIANÇAS DE HOJE

Aelita Andre é uma garotinha australiana de 8 anos, daquelas com olhinhos de anjo e jeitinho sapeca. Nada de extraordinário, até descobrirmos que ela também é uma pintora abstrata com obras expostas em Londres e Nova York. Aelita começou a pintar quando tinha apenas um ano, acompanhada de perto pelos pais, que, embora permaneçam longe dos holofotes, demonstram grande sapiência. Papai e mamãe Andre são os responsáveis pela concepção de diversos filmes que mostram o processo criativo da menina artista. Neles, o fascinante é que a garota, mesmo exercendo um domínio apurado e uma sensibilidade incomum para a composição das cores e das formas de seus quadros, age como uma criança igual a outra qualquer. Para ela, são apenas unicórnios, bichinhos falantes, campos de força e muitas, muitas tintas. Para o mundo, fica uma crônica sobre o talento e a pureza que permeia a infância. (Fernando Athayde)

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ARQUIVO

VOZES NA BRITISH LIBRARY Mais de seis milhões de gravações – entre elas, vozes da enfermeira Florence Nightingale, James Joyce e de soldados da Primeira Guerra Mundial – estão no limbo do desaparecimento iminente. O acervo faz parte da British Library, uma das maiores bibliotecas do mundo, com cerca de 150 milhões de itens no seu catálogo. Devido a adversidades tecnológicas – deficiência nos armazenamentos e deterioração de fitas –, as gravações podem sumir em menos de duas décadas. Na tentativa de reverter a perda, a instituição lançou um ambicioso financiamento coletivo online, com o qual pretende arrecadar 40 milhões de libras (aproximadamente R$ 160 milhões). Além de vozes importantes para a história, áudios de valor imponderável, como o canto de pássaros perdidos do bando, extintos em 1966, encontram-se em risco. (Priscilla Campos)

Malcom X morre no Harlem

Nascido em maio de 1925 em Nebraska, EUA, Malcom Little, ainda criança, teve o pai, um pastor batista, assassinado por membros da Ku Klux Klan. Com a mãe internada por insanidade, passou a infância junto aos sete irmãos em orfanatos. Adulto, foi morar no Harlem, bairro de maioria negra em Nova York, onde conhece a vida programada para os de sua pele no país dos brancos: empregos fuleiros, pequenos delitos e prisões. Em 1946, pega o xilindró por roubo e receptação. Foi aí que, no isolamento da penitenciária, ao ler o Alcorão e escritos filosóficos, descobre o islamismo e torna-se orador fervoroso, discípulo de Elijah Mohammed, ativista do Islã. Incorpora o “X” ao nome, dizendo que a letra significava a rejeição do nome de escravo. Destila uma doutrina de ódio contra os brancos até que, anos depois, em uma peregrinação à Meca, abranda suas convicções. Nessa época, converte-se ao islamismo, mudando o nome para El-Hajj Malik Al-Shabazz. Em 21 de fevereiro de 1965 é morto com 13 tiros na caixa dos peitos, quando discursava no bairro negro. Não pelos “branquelos” que combatia, mas por gente da própria cor. LUIZ ARRAIS

ARQUIVO X

ANITA AIRBAG

O “X” pode voltar a ser marcado na janela. Mais de 10 anos depois de Arquivo X ter exibido aquele que seria seu último capítulo, eis que tomam corpo de real possibilidade os rumores de que os agentes Fox Mulder (David Duchovny) e Dana Scully (Gillian Anderson) possam voltar a trabalhar juntos. Isso porque o presidente da Fox TV, Gary Newman, disse pensar em produzir novos episódios da série que marcou os anos 1990 com suspeitas de conspirações alienígenas. A lembrar que Chris Carter, criador da série, chegou a mencionar algo como um reencontro dos personagens em 2014, mas, na época, o que se falava era de um terceiro filme com os agentes do FBI. Caso você nunca tenha visto esse clássico, fica a dica: o Netflix está aí pra lhe ajudar. Quanto à verdade sobre esse retorno, bem, ela continua lá fora. (Carol Almeida)

Morreu mês passado a atriz sueca Anita Ekberg, a loira platinada de sobrancelhas pretas, curvas exuberantes e um par de airbags que enfeitiçaram Marcello Mastroianni e o público no filme A doce vida (1960). Vencedora de concursos de beleza, chegou aos EUA para competir pelo Miss Universo. Não venceu, mas deixou os estúdios de Hollywood alvoroçados para contratá-la. Fez vários filmes, passando da comédia ao western, da ficção científica à aventura, até se mandar para a Europa e se destacar no clássico de Fellini. Sua carreira, calcada em seus atributos, foi murchando com a idade. Fora das telas, o público não acompanhou sua amarga vida, como uma senhora fragilizada, com sérios problemas financeiros e de saúde, pedindo ajuda para se manter em seus últimos anos de existência.(LA)

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JIMMY PAULETTE ON DAVID’S BIKE (1991)/NAN GOLDIN/REPRODUÇÃO

EXPRESSÕES A potência da transformação na arte CON TI NEN TE

CAPA

A ampliação dos debates, na contemporaneidade, sobre identidades sexuais, liberdade de escolha e de atuação sobre o próprio corpo reflete-se claramente nas representações artísticas TEXTO Luciana Veras

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Em 2000, a filósofa espanhola Beatriz Preciado divulga, em Paris, a primeira edição de Manifiesto contrasexual, livro que, dois anos depois, seria publicado em seu país natal e que inscreveria seu lugar na teoria queer contemporânea e nos estudos de gênero. Nele, ela propõe um “contrato contrassexual”, em que as pessoas se reconheceriam não como “homens ou mulheres, e, sim, como corpos falantes”, trazendo em si “a possibilidade de acessar a todas as práticas significantes, assim como a todas as posições de enunciação dos sujeitos que a história determinara como masculinos, femininos ou perversos”. Por conseguinte, “renunciam a uma identidade sexual fechada e determinada naturalmente”. Sua tese é ratificada no artigo Cartografías quer: el flâneur preverso, la lesbíaca topofobica y la puta multicartográfica, compilado no livro Cartografias dissidentes, (2008). Partindo da noção de identidade sexual como “um feito natural ou biológico incontestável ou como o produto de um processo de construção histórica ou linguística que uma vez constituído funciona como um núcleo duro e invariável cuja trajetória pode ser traçada e descrita como a física de um sólido”, a autora discorre sobre uma cartografia que “começa por ser uma taxonomia de identidades sexuais e de gênero – masculinas ou femininas, heterossexuais ou homossexuais – que se apresentam como legíveis na medida em que são mutuamente excludentes”. Nessa perspectiva, o cartógrafo ideal seria alguém que abstrairia sua “própria posição identitária, aparecendo como neutro e capaz de registrar os movimentos das diferentes identidades sexuais e dos usos do espaço e das práticas urbanas ou artísticas que emanam destas”. O mundo, porém, mudou. Na arte, espelho/tradução/ recriação maior da vida, não haveria como ser diferente. “Não é difícil reconhecer que, até pouco tempo, a maioria das historiografias da arte moderna e contemporânea não eram senão cartografias identitárias dominantes que registravam práticas masculinas e heterossexuais como se estas, por si só, pudessem esgotar a geografia do visível”, prossegue Preciado. Surgem “detetives do invisível”, como ela própria e a fotógrafa norte-americana Nan Goldin, capazes de “jogar luz em CONTINENTE FEVEREIRO 2015 | 23

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CON CAPA TI NEN TE

REPRODUÇÃO

Página anterior 1 NAN GOLDIN

Já nos anos 1970, a artista concentrouse no universo das travestis; The other side reúne imagens feitas entre 1972 e 1992

2 GIUSEPPE

CAMPUZANO

Artista peruano utilizou personagens transgêneros, transexuais, andróginos e intersexuais na crítica à história de seu país

3 VIVIANE

VERGUEIRO

Ativista e pesquisadora dedica-se aos estudos das identidades de corpos e gêneros sob o foco da pós-colonização

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geografias até agora ocultas embaixo do mapa dominante”. Já nos anos 1970, Goldin mergulhava no cotidiano de travestis em The other side, colocando, quando da publicação em livro em 1992, que “as imagens nesse livro não são de pessoas sofrendo de disforia de gênero, mas, sim, expressando euforia de gênero… Essas pessoas são verdadeiramente revolucionárias e venceram a batalha dos sexos porque desceram do ringue”. Não eram figuras esdrúxulas que ela ousava captar pelo exótico, eram companheiros seus.

“Em uma primeira aproximação, a obra de Nan Goldin pode ser entendida como um extenso diário ‘escrito’ por meio dos retratos que faz de seus amigos – que, desde quando frequentava uma escola comunitária e livre nas cercanias de Boston, são pessoas que, como ela, nunca se acomodaram às regras normatizadoras do comportamento individual, e para quem a liberdade de uso do próprio corpo é afirmação de alteridade (…) e que a fascinavam justamente por desclassificarem, com as próprias vidas, o conceito estanque de

gênero”, analisa o curador Moacir dos Anjos, em texto publicado em Fronteiras: arte, imagem e história (Azougue Editorial). Portanto, com o alargamento da discussão sobre identidades sexuais, liberdade de escolha e de atuação sobre o próprio corpo, ampliou-se o reflexo nas representações artísticas. Há outros caminhos perceptíveis, novas possibilidades de trazer o direito à (auto) afirmação, a independência para se (re) definir e os meios para compartilhar tudo que se questiona, se confunde e se legitima no zeitgeist – ideia de “espírito do

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tempo” cunhada pelo filósofo alemão Georg Hegel (1770-1831). Uma obra de arte, afinal, deglute e reprocessa o discurso social, enfatizando a necessidade de se ir além.

NO PRÓPRIO CORPO

“As expressões artísticas carregam uma potência muito grande de transformação social”, observa a ativista transfeminista e pesquisadora Viviane Vergueiro, mestranda no Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades da UFBA, em que estuda identidades de corpos e gêneros sob o foco da pós-colonização. “Preciado diz que vivemos numa era pós-sexual e que há contradição em estar nessa época e seguir vivendo com vários ‘circuitos de opressão, exclusão e normalização’. É difícil mensurar no calor do momento, até porque tudo tem andado rápido, mas fico feliz com esses fortalecimentos de um discurso como o dela para além da academia, embora ainda exista dificuldade em perceber o impacto disso em políticas públicas, nas instituições, por uma questão de rigidez das estruturas de poder para incorporálo”, sustenta. Paulistana de nascimento, Vergueiro é formada em Economia, há três anos mora em Salvador e defende um olhar mais agudo sobre imprescindibilidade da autonomia sobre corpos e gêneros: “No meu mestrado, utilizo estudos póscoloniais, feministas e queers e pessoas trans que escrevem academicamente para pensar na colonialidade além das relações estatais, de territórios, na dimensão cultural e em outras dimensões dominadas pela cultura eurocêntrica, que institui uma visão binária do corpo. Somos colonizados pelo sistema médico, pelo discurso que normatiza os corpos. A medicina é uma construção da colonização europeia, não é um sistema neutro. Outras sociedades possuem outras perspectivas de gênero. Na nossa, apenas homens ou mulheres. Por exemplo, o atendimento a pessoas trans no sistema de saúde está atrelado a uma ideia de transtorno mental. Isso é constrangimento. Quero falar do meu corpo como eu quiser, andar e construílo como eu quiser”. Esse desejo ganha força em trabalhos de artistas contemporâneos, ainda mais expressivos, quando reunidos em

“As expressões artísticas carregam uma potência muito grande de transformação social” Viviane Vergueiro mostras como a recente 31ª Bienal de São Paulo (2014) ou Perder la forma humana, ocorrida entre outubro/12 e março/13, no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, em Madri, citadas pela curadora e pesquisadora pernambucana Cristiana Tejo. “Talvez pudéssemos localizar no cerne das próprias vanguardas históricas a tentativa de discutir questões de sexualidade, como no quadro A origem do mundo, de Courbet, ou mesmo Olympia, de Manet. Entretanto, a discussão fica mais adensada nos anos 1960 com a eclosão da contracultura e dos movimentos sociais, principalmente do feminismo e dos direitos dos homossexuais. Nesse momento, há o empoderamento das artistas mulheres de tratarem da questão usando seus próprios corpos, reivindicando um discurso e uma prática até então encabeçada pelos homens.” Assim, os artistas passaram a perseguir, na pele que habitavam ou em seus trabalhos, outras decodificações para o binômio “homem/mulher”. O peruano Giuseppe Campuzano (1969– 2013), filósofo e drag queen presente nas duas exposições mencionadas acima, fez do seu Museo Travesti del Perú, no qual

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interliga personagens transgêneros, transexuais, andróginos e intersexuais, uma irônica e crítica revisão da trajetória do seu país. Outra sul-americana a operar nessa interseção é a chilena Paz Errázuris, cujo La manzana de Adan, livro com imagens de travestis feitas entre 1982 e 1987, ainda sob a ditadura do general Augusto Pinochet, joga luz na sexualidade que teimava em florescer na clandestinidade. Na mesma época, Nan Goldin mostrava The ballad of sexual dependency pela primeira vez na Whitney Biennial, em 1985, conferindo status artístico a diversos tipos de “marginais” que orbitavam o submundo artístico de Nova York. Como o ensaio The other side, tornou-se influência imediata.

FORA DO PADRÃO

“Nomes como Paz Errázuris e Nan Goldin já surgem a partir dos anos 1980, num contexto complexificado pelo aparecimento da aids e o fim da Guerra Fria, quando grande parte da produção artística começa a lidar mais sistematicamente com noções de identidade, seja cultural ou sexual”, lembra Cristiana Tejo. No Brasil, ela pondera que a “tradição modernista” é um entrave para o aprofundamento da temática. “Há um certo receio no campo da arte brasileira de lidar com essas questões. Por isso, é importante destacar Virginia de Medeiros, uma artista mais jovem. Quando ela começou seu trabalho com as travestis de Salvador, pouquíssimos artistas lidavam com o tema. Ela era uma exceção em sua

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CON CAPA TI NEN TE EVERTON BALLARDIN/REPRODUÇÃO

geração”, pontua a curadora. Talvez essa baiana de Feira de Santana, de uma certa maneira, ainda o seja. Obras como Studio Butterfly (2004–2006), fruto de convivência intensa e mergulho no universo das travestis, e Jardim das torturas (2012–2013), imersão nos rituais de dominação e submissão de uma família sadomasoquista de Campinas, evidenciem o interesse de Virginia por tudo que está “fora da linearidade, da binariedade, do padrão normativo das sociedades patriarcais”, como resume em entrevista à Continente. “Foi muito espontâneo meu encontro com as travestis. Em 2000, quando as conheci, eram marginalizadas, mais do que hoje. Eu não estava levantando bandeira, não era uma ativista. Foi uma identificação no microuniverso, nesse lugar de transgressão, a partir de uma transgressão que eu estava vivendo comigo mesma, ao experimentar a atração por um corpo igual ao meu. Porque o corpo é político, é uma manifestação política. Aquilo foi me fortalecendo também. A partir da experiência que estava vivendo, sentia uma força semelhante a delas, esse impulso de experimentar o que estava fora do padrão heteronormativo. Não houve crise, me senti forte”, recorda. Vinda de uma família “católica, castradora, que negava o corpo”, ela tem buscado provocar sua própria constituição física e inseri-la em sua obra – atuando, assim, como personificação de ideias que a psicanalista Tania Rivera defende nos ensaios de O avesso do imaginário – arte contemporânea e psicanálise. “Ainda que diversas manifestações presenciais do artista possam pretender uma afirmação identitária com, por vezes, ressonâncias políticas, o essencial é que o corpo se dá a ver. ‘Toda carne’, escreve Merleau-Ponty, ‘e mesmo a do mundo, irradia-se fora de si mesma’”, deslinda. Alteridade é a palavra-chave, não apenas para Virginia, mas para artistas que repercutem essas questões em todas as linguagens. Ou, como também argumenta Rivera, “na performance, trata-se de ‘dar-se a ver’ ao Outro”.

SÉRIES DE TV

E quando o Outro são muitos? Como reverberar o debate sobre liberdade de gênero, emancipação do corpo e choque de normas vigentes em veículos

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4 JARDIM DAS TORTURAS

Na obra, Virgínia de Medeiros fez parte de rituais de dominação de famíla sadomasoquista 5 MODERN FAMILY Seriado traz um casal gay que adota um bebê e é aceito pela família 6 LADY GAGA Estrela pop propaga o discurso do “ame o feio”

sexo, muitas vezes pelas razões erradas. Lena Dunham, criadora da série e atriz principal, escapa dos padrões de beleza da televisão e do cinema. Orange is the new black traz um elenco majoritariamente feminino, em que muitas personagens têm relações entre si, dos mais diversos tipos. E Masters of sex trata a sexualidade feminina de forma mais moderna – e é Virginia Johnson, o personagem de Lizzy Caplan, que se posiciona como a mais liberada sexualmente, mesmo que a história se passe na década de 1950. O reprimido é o médico William Masters, vivido por Michael Sheen”, comenta Mariane, referindo-se, por último, à série exibida no Brasil no canal pago HBO, baseada na história real dos responsáveis pelo primeiro estudo científico sobre sexualidade humana. Décadas antes dos verdadeiros Masters e Johnson começarem a documentar atos sexuais e catalogar os estágios de excitação de homens e mulheres em um hospital em Saint Louis, no meio-oeste americano, testando em si os critérios adotados para avaliar os outros, um escritor britânico ascendia à posteridade por O retrato de Dorian Gray (1890) e por ser preso, acusado de manter relações homossexuais.

CASOS LITERÁRIOS

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pensados para atingir milhares, como o cinema e a televisão? “Essa abordagem tem ganhado força na televisão contemporânea americana, espaço audiovisual muito mais avançado do que o cinema de Hollywood. O país é grande, retrógrado e progressista ao mesmo tempo, mas creio que a televisão reflete o pensamento de boa parte dos americanos e sinto um desejo dos produtores de avançar nas discussões”, opina a jornalista Mariane Morisawa, colaboradora em Los Angeles de vários veículos brasileiros. “É na TV que há uma presença bem maior de personagens homossexuais de vários tipos, diferentemente do que geralmente se vê no Brasil, por exemplo, que tende a mostrar

gays com características parecidas: são ‘engraçados’, ‘fofoqueiros’, ‘espalhafatosos’. Na série Transparent, que acaba de ganhar dois Globos de Ouro, o pai de família é transgênero. Modern family também é importante por ser uma sitcom mainstream e trazer um casal gay, formado por dois homens de personalidades distintas, que adotam um bebê e são aceitos pela família”, acrescenta. Seriados como Girls (2012), Masters of sex (2013) e Orange is the new black (2013), para se ater a exemplos mais recentes, evocam mulheres de força e com poder decisório, contrariando a lógica machista. “Sex and the city foi um marco, na época, por trazer mulheres falando de sexo, mas Girls leva a premissa muito adiante – mostra as mulheres fazendo

“Afora o escândalo que Oscar Wilde protagonizou em 1895, o único livro dele que é explicitamente de temática homossexual é De profundis, uma carta dirigida ao lorde Douglas. Wilde coloca na ordem do dia a questão homossexual antes por suas ações, por sua orientação sexual e por infringir as leis inglesas, do que por meio da sua obra. O que a sua prisão pode ter suscitado, creio, foi colocar em discussão a criminalização ou não das orientações sexuais, foi mostrar que um respeitável pai de família e um escritor festejado da era vitoriana podiam ser gays. Ou seja: a moral vitoriana podia agir no campo das aparências, ao tentar construir uma imagem social de como as pessoas deviam pautar as suas vidas, mas não moldava a essência da natureza humana. Nesse ruído entre essência e aparência, calçava-se uma sociedade hipócrita, construída em cima da mentira e do medo, antes do que uma sociedade sadia e oxigenada”, contextualiza Anco Márcio Tenório Vieira, professor do Departamento de Letras, da UFPE.

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CON CAPA TI NEN TE À luz da literatura moderna, outros autores possuem relevância na verbalização de afetos outrora proibidos. “Acredito que o primeiro grande escritor a expor a sexualidade humana por meio das suas pulsões mais recônditas foi o Marquês de Sade. Sua obra é um divisor de águas nesse campo, mas encerra um viés fortemente moralista. E se, em Wilde, o amor homossexual é aquele ‘que não ousa dizer o nome’, para o hoje quase esquecido André Gide, em Córidon (1911), uma defesa da pederastia grega, não só se deve dizer o seu nome, como deve ser defendido. Não podemos esquecer Alexis, ou o tratado do vão combate, de Marguerite Yourcenar, publicado em 1927, uma longa carta de despedida de um homem para a sua esposa, em uma espécie de autoanálise da sua condição homossexual”, aponta o professor da UFPE, que inclui a inglesa Virginia Woolf (1882-1941) e o francês Jean Genet (1910-1986) na lista dos pioneiros. “Ela trata do tema explorando certa ambivalência sexual, e o seu romance Orlando (1928) parece-nos o melhor exemplo disso. Genet é central, por trazer ao universo literário a marginalidade. Com ele, os submundos da sociedade entram na literatura não por meio do olhar de quem está no centro da sociedade — o burguês ou o pequeno-burguês —, mas pelo olhar de quem é sujeito desse universo. Ele expõe um submundo social até então ausente da literatura, que tinha como temática o universo gay. O que há em comum nesses autores é a ausência de palmatória, de julgamento moral — seja ele burguês ou religioso —, e a busca por naturalizar as orientações sexuais da natureza humana. Isso os diferencia dos autores do século 19”, situa o professor.

APARÊNCIAS DO POP

Tal “busca por naturalizar as orientações sexuais” é, hoje, combustível usado em larga escala na música, por exemplo. Prega-se a diversidade sexual em reality shows, cultua-se a androginia, apregoa-se a anulação das fronteiras entre gêneros. Contudo, não ocorre sem tensões a indexação de uma agenda de afirmação da liberdade sexual, da autonomia do corpo, por parte da indústria cultural. “A cultura pop é, em si, contraditória. Há espaço para artistas defenderem

REPRODUÇÃO

7 JEAN GENET Francês trouxe o submundo e a marginalidade para o universo da literatura 8 BEATRIZ PRECIADO A partir do seu Manifiesto contrasexual, Testo yonqui e Pornotopía, passou a se autodenominar Paul B. Preciado

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plataformas, mas como o pop está dentro dos sistemas econômicos e financeiros, isso cria uma ambiguidade. Até que ponto é marketing, ou um discurso para venda e consumo? Se pegarmos uma figura emblemática como Adam Lambert, vencedor do último American idol, vemos que ele está dentro dos padrões hegemônicos de beleza, que não foge, mesmo com seu visual andrógino, de uma normatividade heterossexual. Ou seja, a liberdade de expressão, da sexualidade, da escolha, atende a uma plataforma de marketing e posicionamento das indústrias atentas a esse zeitgeist, e mesmo vivendo um momento de reordenamento, não se trata de um debate exatamente novo. O que talvez esteja em jogo é uma pragmática desse discurso”, deduz o professor de Comunicação da UFPE Thiago Soares. É como se, no pop, não se verificasse a noção de queer preconizada por Judith Butler em Gênero em disputa: o feminismo e a subversão da identidade (1990), indispensável nos estudos feministas e de gênero. Lambert – como tantos outros – aparenta o desajuste, mas, na prática, não o vivencia. “O queer traz o conceito de corpo abjeto. O que é o queer? É o diferente, o estranho, o abjeto. Na cultura pop, temos os discursos que operam em cima

de padrões libertários, que pregam a fuga de modelo, mas que desaparecem quando vamos para a corporalidade, para as inscrições do corpo”, raciocina Soares, que ainda levanta restrições ao retrato de gays, lésbicas, transexuais, transgêneros e drag queens pintado em humorísticos televisivos. “O humor é ambíguo porque, ao se colocar no risível, há uma suspensão da realidade. Você acha que é inclusivo, mas muitas vezes contribui para perpetuar estereótipos. Por exemplo, as drags são vistas como os palhaços da cultura gay. E o que é o palhaço? Algo sem sexualidade. Sou reticente em relação a isso, pois, se elas são os palhaços, então o gay continua sendo o ‘estranho’, o ‘queer’, e assim se legitima a lógica da heteronormatividade”, compreende Soares. Essa visão é partilhada pela ativista transfeminista e pesquisadora Viviane Vergueiro. “Nesse processo, tudo é sujeito a cooptações. Não posso, por exemplo, pensar em avanços, e por isso não endosso o discurso governamental e nem me aproximo dessa retórica, quando pessoas trans são assassinadas com frequência no Brasil. Ao mesmo tempo, vejo o impacto da arte, mas é preciso cuidado para que não se crie um queer de butique. Como pode

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SEBASTIEN DOLIDON/DIVULGAÇÃO

um artista falar de subversão e, na sua prática política, referendar o discurso heteronormativo e binário?”, questiona a mestranda da UFBA. Para ela, vêm do funk de Valeska Popozuda e do baiano MC Xuxu atitudes que intrigam, embaralham e questionam. Para Thiago Soares, além de Lady Gaga (que difunde o discurso do “ame o feio”, se assume como mother monster dos seus fãs monstros e transparece, na pele, no corpo e nos gestos, toda inclusão que prega), é o universo brega que surpreende. “Faço minha leitura do brega como artefato queer e subversivo. No momento em que os programas de TV expõem os corpos das cantoras gordas, feias, de roupas estridentes, aquilo causa repulsa por romper com os padrões de representação hegemônica. Mas o que acontece quando MC Sheldon vai tocar para a classe média? Quando a Musa do Calypso e a banda Kitara começam a ser ouvidos pela adolescente que mora em Boa Viagem? O riso e o estranhamento, de repente, dão lugar à incorporação. Aquilo em que a menina branca via feiura passa a ser corporificado. O que antes gerava ojeriza, gera beleza. É o turning point, o ponto de virada de que fala a teoria dos afetos”, opina Thiago Soares.

A busca pela naturalização das orientações sexuais é hoje elemento bastante utilizado também na música BEATRIZ É PAUL

Na Espanha, em 18 de janeiro deste ano, o diretor/a do Programa de Estudos Independentes do MACBA/Museo de Arte Contemporáneo de Barcelona divulgou um texto intitulado Catalunya trans. Nele, citava o atentado à sede do semanário Charlie Hebdo, em Paris, como um “assalto, uma batalha perdida, uma contrarrevolução, mas também quem sabe como uma possibilidade de construir alianças novas que protejam e acolham quem amamos”. E aproveitava a oportunidade para falar de si. “De minha parte, comecei o ano pedindo a meus amigos próximos, e também aos que não me conhecem, que troquem o nome feminino que me foi designado no nascimento por outro nome. Uma desconstrução, uma revolução, outro duelo. Beatriz é Paul”, comunicava o autor/a de Manifiesto contrasexual, Testo yonqui e Pornotopía. “O homem

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encontra sua casa num ponto situado no Outro além da imagem de que somos feitos”, define Lacan, citado por Tania Rivera, em O avesso do imaginário. Nasceu, assim, Paul B. Preciado, antes conhecido como Beatriz Preciado. No Brasil, em fevereiro de 2015, Virginia de Medeiros vislumbra a experimentação com testosterona, como Preciado fez antes de cambiar de gênero. “Jardim das torturas me abriu esse campo. Quando condensei no meu corpo a experiência vivida, foi muito potente. Como desdobramento, e influenciada demais por Paul/Beatriz, quero experimentar novamente, falar através do corpo. Como em todos os meus processos, não tenho nada ainda, não sei aonde vou chegar. Quero trabalhar a afirmação do corpo como espaço de experimentação; a sexualidade é levada pelo desejo, então sigo a política do desejo e sinto a densidade desse universo. E quero ser guiada por um homem trans para construir um lugar a partir desse encontro e fazer o trabalho, rompendo barreiras rumo a diferentes modos de existência”, antevê a artista. Dela, de todos os artistas que forjam, na carne, a luta pela autonomia de si, pela liberdade de ser quem se quer e se pode, e de todos os cidadãos, a vida quer mesmo é coragem, como dizia Guimarães Rosa.

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CON CAPA TI NEN TE

COMPORTAMENTO A multiplicidade dos gêneros e sexualidades

Ainda que continue como referência, a união heterossexual convive com relacionamentos que questionam o status quo, como os casamentos poligâmicos e transgêneros TEXTO Chico Ludermir

Caio não se identifica como ser

binário, Maria Clara é uma mulher transbissexual. Artur milita pela possibilidade de ser gay afeminado e Juliana tensiona lugares comumente ocupados por homens. Situações como essas indicam que certas categorias não são suficientes para classificar nossas preferências sexuais e identidades de gênero. No fértil terreno dos comportamentos humanos, não existe assunto mais inquietante do que a sexualidade. A

expressão sexual e as identidades de gênero são plurais, conflituosas, diversas e, ao mesmo tempo, fontes de prazer e sofrimento. Como algo intrínseco à nossa existência – e a de todos os animais –, o tema está posto e sempre presente. É verdade, no entanto, que as questões referentes ao sexo são fruto de um contexto histórico e social, assim como sua abordagem e teorias respectivas. A concepção moderna de sexualidade, segundo Michel Foucault, nos três volumes de A história da

sexualidade, designa uma série de fenômenos que englobam tanto os mecanismos biológicos da reprodução como as variantes individuais e sociais do comportamento. Da mesma forma, relaciona-se com a instauração de regras e normas apoiadas em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas, e também com as mudanças no modo pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres, prazeres e sonhos. Ao longo da história, a atividade sexual sempre foi objeto de preocupação moral e, por isso mesmo, submetida a normas de controle das suas práticas e de seus comportamentos. Como esses dispositivos são construídos com base nos valores e ideologias predominantes na sociedade, eles assumem formas diferentes, à medida que mudanças ocorrem. “Foucault nos mostra como o mecanismo da incitação ao discurso como a prática confessionária, por exemplo, é reformulada por várias instituições, como a ciência, a psiquiatria, a medicina, para controlar

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FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

heterossexual e fora dele. O casamento entre pessoas de sexos opostos continua sendo referência importante, mas convive com outras formas de relacionamento conjugal – as uniões consensuais, os casamentos sem filhos e as uniões homossexuais, poligâmicas e transgêneras. Nesse processo de transformação da intimidade, dos valores e das mentalidades, a tendência da sociedade é tornar-se cada vez mais flexível para acolher essas novas configurações das relações amorosas. “A luta e a visibilidade da população LGBT é imprescindível para repensarmos as formas duais de pensamento que estão em vias de extinção. Nada é definitivo, tudo está em constante transformação, e a sexualidade humana não foge disso. Quem sabe, em um futuro breve, poderemos ter uma sociedade mais plural e igualitária em suas diferenças”, complementa a socióloga.

DESNATURALIZAÇÕES

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e regular as atividades sexuais dos indivíduos”, explica a socióloga Fernanda Ribeiro (UVA–CE), que tem a sexualidade e o gênero como objetos de pesquisa. Ela diz que essa incitação ao discurso do sexo cria mecanismos cada vez mais sutis do poder, em que sexo, corpo e prazer se tornam constitutivos da subjetividade dos indivíduos. “O poder não está nas mãos de um ou mais indivíduos e de uma ou mais instituições; o poder está difuso pela sociedade e é nela em que as relações pelo poder têm lugar. Nas palavras de Foucault, onde há poder, há resistência”, completa Ribeiro. A história da sexualidade, vista como uma construção social, aponta mudanças importantes tanto no comportamento sexual como no significado que lhe atribuímos. Por isso não se pode explicar suas formas e variações sem examinar o contexto em que se formaram. A construção de relações amorosas e sexuais mais democráticas e igualitárias é uma conquista que tem permitido o surgimento de outras formas de relacionamento amoroso, no contexto

Caminhando lado a lado com as discussões de sexualidade, a temática do gênero levanta outra gama de reflexões – em especial, evidencia as possibilidades de desnaturalização das masculinidades e feminilidades hegemônicas. Segundo Denise Silva Braga, autora da tese em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Novos/outros corpos, gêneros e sexualidades: experiências de lésbicas, gays e transgêneros no currículo escolar, trabalhar com a categoria gênero implica rever sua gênese no movimento feminista, principalmente no final da década de 1960, quando elas incorporaram às discussões políticas e sociais as primeiras construções teóricas nas quais seria forjado o conceito de gênero. “Partindo da denúncia da segregação social e política a que as mulheres estavam submetidas, estudiosas, docentes e pesquisadoras feministas enunciaram em seus trabalhos no campo acadêmico a ausência das mulheres como sujeitos ativos da história”, contextualiza. A proposição desse conceito, a partir das ativistas das décadas de 1960-1970, realçava que o gênero não poderia ser restrito a uma ligação direta com o sexo biológico, mas com aquilo que socialmente se construiu e representou sobre os sexos. Nesse

sentido, centrava-se em pensar os sujeitos – masculinos e femininos – como produtores dos processos históricos. A rigidez dos “papéis” de homem e de mulher, ainda presente na sociedade, fixou essa oposição binária entre um e outro. Portanto, desconstruir o gênero impõe rever os conceitos de masculinidade e de feminilidade. “A estratégia adotada por Foucault e Judith Butler problematiza as construções identitárias binárias, colocando em relevância o poder e as normas sociais na constituição da subjetividade dos indivíduos na sociedade atual”, explica Fernanda Ribeiro. Quando tinha 6 anos, Caio de Oliveira (nome fictício) costumava usar, escondido no banheiro, as roupas e maquiagens da mãe. Certa vez, pintou as unhas de esmalte vermelho e, sem saber como tirar, foi flagrado por ela. Ao encontrar o filho chorando, a mãe perguntou se ele gostava de meninos ou meninas. “Eu lembro que percebi na hora que não era sobre isso. Ela estava confundindo minhas questões de gênero com minhas questões de sexualidade”, relata. A confusão da mãe de Caio é bastante comum. Mesclar gênero e sexualidade talvez seja dos enganos mais recorrentes. Por isso, cabe uma explicação. A sexualidade se refere à atração sexual. Se gostamos de alguém de um gênero diferente, somos heterossexuais; se gostamos de alguém de gênero semelhante, somos homossexuais. Se gostamos dos dois, somos bissexuais. Já em relação à identidade de gênero, o que importa é com qual gênero nos identificamos: com o feminino, mulheres; com o masculino, homens. Se a autoidentificação de gênero entra em confronto com o que o sexo representa socialmente, a pessoa é trans, podendo se identificar com o gênero oposto ou com nenhum (neste caso, trans não binária). Se a pessoa se identifica com o gênero designado quando nasceu, é cisgênera. Caio tem 23 anos e já se relacionou com pessoas de vários gêneros (ele acredita que existem mais do que os instituídos). Além de bissexual, definese como uma pessoa trans não binária, o que significa dizer que não se vê encaixado em nenhum dos gêneros preconcebidos. “É frequente escutar que nós somos uma comunidade indecisa,

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CON CAPA TI NEN TE FOTOS: CHICO LUDERMIR

que temos vergonha de sermos gays, que somos uma população promíscua, mas não é isso. Acredito que a sexualidade é mais complexa que o momento presente que estamos vivendo”, afirma. Para ele, viver sem rótulos é uma forma de viver com “fluidez” e “intensidade”. Maria Clara é mulher trans e se relaciona com mulheres e homens. Aos 18 anos, combina diversas questões em sua existência. Por vivenciar o amor sem padrões estabelecidos, já protagonizou, por exemplo, relações com homens trans – o que se configura como uma relação heterossexual – e poderia, portanto, engravidar o parceiro. “Não interessa com quem eu me relaciono, sou uma mulher e quero ser tratada e respeitada como tal”, exige ela, que sempre se viu como menina. A mudança, que já estava na sua cabeça, se deu no seu corpo aos 16, quando mudou seu nome no Facebook e começou a tomar hormônios femininos.

AFEMINADOS E MASCULINAS

Quando, em 2014, o produtor cultural cearense Thomas Saunders, 25, voltou a paquerar depois de um ano e meio de relacionamento, reconheceu uma nova cena gay – a dos que gritam aos quatro ventos que não são e nem curtem afeminados. Em conversa com amigos, Thomas percebeu que o preconceito entre os próprios homossexuais contra os afeminados, como ele, estava mais forte do que nunca. “Nos aplicativos de encontro, é sempre aquele texto de perfil: ‘não fico com afeminado’.” Incomodado com a situação, o produtor cultural postou no Facebook: “Sou afeminado, sim, curto afeminado, sim. Mas, além de tudo, sou humano”. Ao fazer o protesto na rede social, Thomas descobriu que não estava sozinho. Outros gays partilhavam o mesmo sentimento. Além de receber muitos comentários, o post foi compartilhado 367 vezes, o que deu início a uma página na mesma rede social. “Sou/Curto Afeminados”, iniciada em abril daquele ano, hoje conta mais de 7 mil seguidores. Artur Maia, recifense de 19 anos, não é um dos curtidores da página, mas também se sente incomodado com esse preconceito que os afeminados sofrem. Aluno da Faculdade de Direito do Recife e militante do Coletivo LGBT Toda Forma

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A atividade sexual sempre foi objeto de preocupação moral e, por isso, submetida a normas de controle das suas práticas

e do Movimento Zoada, acredita que a discriminação tenha uma herança muito forte no patriarcado e no poder do homem na nossa sociedade. “O conceito de masculino está atrelado à virilidade, à negação e à inferiorização do feminino. Por isso, ‘dar pinta’ seria um ato político e contra-hegemônico, no momento em que nega o masculino padrão. Isso tem um potencial combativo, revolucionário e de desconstrução da hierarquia de gêneros”, defende. Ele acrescenta que a opressão de gênero incide também no campo das práticas sexuais. No caso do homem, especificamente, isso resulta no que chama de “castração anal”, “uma lógica que proíbe e abomina o prazer anal, por estar relacionado à submissão, sendo esta uma característica do feminino”. No blog Os entendidos, referência internética na discussão de assuntos de sexualidade, o autor Fabrício Longo adiciona alguns elementos que

ajudam a compreender a inaceitação do afeminado, mesmo entre homossexuais. “Que ‘gosto’ é esse, que se molda em uma cultura de opressão?”, questiona retoricamente, preparando suas hipóteses. Segundo ele, a busca por “machões, bem-dotados, dominadores” faz jus à criação dos homens. “Somos criados para continuar comandando o mundo. Da mamãe que faz questão de estender a toalha largada na cama, passando pela educação sexual que manda ‘pegar geral’. Pelo salário superior no mercado de trabalho, até o ‘direito’ de reagir violentamente, quando suas vontades ou crenças são desafiadas. Tudo gira em torno do macho.” A construção da masculinidade segue padrões rígidos que, segundo ele, vão da primeira roupinha azul até a obsessão pelo tamanho do pênis. O problema é que essa construção é frágil, ameaçada por qualquer demonstração de “fraqueza”. E nesse idioma, o afeto – e qualquer coisa que seja lida como “feminina” – vira sinal de fragilidade ou emasculação. “É por isso que o papel da ‘bicha’ é tão ‘baixo’ e tão ofensivo. É como se a bicha desafiasse a estrutura de poder somente por existir”, argumenta. Também desafiando as normas, Juliana Carvalho se deparou com

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Página anterior 1 MOBILIZAÇÃO

A luta LGBT dá cada vez mais visibilidade às suas demandas, com alguns avanços concretizados

Nestas páginas 2 ANDROGINIA

A socióloga Cristiana Cavalcanti transita por identidade híbrida

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a resistência de homens ao seu comportamento. Desde pequena, a estudante adorava ir a estádios de futebol e fazia parte de torcidas organizadas. Relacionava-se com meninos e era vista apenas como acompanhante deles, jamais como torcedora de fato. A partir do momento em que passou a ir aos jogos sozinha, não era tratada com respeito. “Ficavam me olhando como se eu só estivesse ali para paquerar.” Mas Juliana insistiu em fazer parte do grupo. Quis tocar bombo na banda da Torcida Brava da Ilha do Sport Clube do Recife e teve que “falar grosso” para poder ser escutada. “Me mostrei extremamente masculina e, só assim, consegui permanecer. Ainda hoje, em certos lugares, só homens são aceitos.” Passando na rua, a socióloga Cristiana Cavalcanti atrai olhares. Por transitar numa identidade híbrida, é muitas vezes confundida com homens, mesmo não se percebendo encaixada nesse papel. “Não quero ser menino, nem estou em processo de transformação. Apenas transito nessa androginia que talvez ainda não tenha um nome ou categoria definida”, diz. Ela tampouco se incomoda com a confusão que causa em alguns. Militante do movimento feminista, acredita no corpo como agente político no processo de aceitação de cada um como é. “As

A rigidez dos papéis de homem e de mulher fixou a oposição binária entre o masculino e o feminino posições de gênero e de sexualidade são múltiplas. É impossível lidar com elas, apoiadas em sistemas binários. O lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira”, diz. Apesar de não se referir diretamente às mulheres, o blogueiro Fabrício Londo expressa uma preocupação comum a todos os gêneros: para ser “aceito” como homossexual, ainda é necessário encaixar-se em um padrão. “Reprimir trejeitos, não fazer alarde e jamais ofender a sociedade com demonstrações públicas de afeto”, ironiza. Segundo ele, a homofobia é a culpada por privar os sujeitos de sua identidade. “Ninguém foi educado para aceitar o diferente. Fomos educados para temer e reprimir – às vezes com violência – o que ameaça a nossa zona de conforto. É por isso que nem os próprios gays aceitam sua diversidade. Acontece que nós somos muitos, todos diferentes.”

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ARTUR MAIA

Estudante se incomoda com o preconceito que os afeminados sofrem entre os próprios gays

A não aceitação das diferenças coloca o Brasil no ranking dos países que mais matam lésbicas, gays, travestis e transexuais no mundo. O relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), de 2013/2014, revela que um LGBT é assassinado a cada 28 horas, no país. Pernambuco lidera, ao lado de São Paulo, a lista dos estados onde mais LGBTs foram assassinados. É nesse contexto que se insere a discussão de políticas públicas voltadas para tal segmento da população. Ao lado das demandas afirmativas, como o casamento igualitário, a aceitação do nome social de travestis e transgêneros e uma série de inovações propostas pela prefeitura de São Paulo – que incluem, por exemplo, bolsas para travestis voltarem a estudar e inserção de gays expostos a situação de violência e travestis moradoras de albergues nas prioridades programa Minha Casa Minha Vida – está a questão da criminalização da homofobia. A lei ainda não foi sancionada, mas já tem apoio declarado da presidenta Dilma Roussef. Se, de um lado, existe uma corrente conservadora empenhada em negar direitos aos homossexuais, do lado da militância LGBT, dois grupos se diferenciam. Um defende que a punição pode atenuar o problema, o outro acredita que muito se gasta e pouco se resolve com essa estratégia. Esses são alguns dos embates que ocorrem neste momento histórico, em que as várias representatividades de gênero e sexualidade ocidentais põem em xeque valores há muito arraigados.

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CON CAPA TI NEN TE

Artigo

ARTE SOBRE REPRODUÇÃO DE JORNAIS

RHEMO GUEDES CRIMINALIZAR PARA SALVAR VIDAS Diante do bárbaro legado cultural,

machista e discriminatório, que oprime e incita o ódio em razão da orientação sexual e identidade de gênero, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) são vítimas de intenso preconceito e violência. Isso faz da homo-lesbotransfobia uma das realidades que resistem e desafiam a Justiça e os Direitos Humanos na atualidade. As mortes do jovem Kaique Augusto Batista dos Santos1 e Alexandre Ivo2 revelam a dimensão da discriminação experimentada por homossexuais na tradição brasileira, através de sucessivos e cruéis crimes. Essas histórias têm em comum com as situações de discriminação vivenciadas no dia a dia dessa população o discurso fundamentalista e conservador. O preconceito contribui para a vulnerabilidade social LGBT. São muitas as mortes com um padrão de ódio motivado por crenças culturais ou preconceitos, como um caso em que a vítima foi assassinada com 24 tiros, sendo a maioria na região das nádegas e um disparo identificado no ânus. Vinte e quatro é um número que representa a homossexualidade para o senso comum – referente ao “veado”, no jogo do bicho. Assim, o princípio da igualdade, por mais amplo que seja, não garante, por si só, a cidadania material da população LGBT. A lei é esvaziada pela invisibilidade do direito à livre orientação sexual no imaginário da sociedade. A ausência de uma postura afirmativa da lei brasileira perante esse direito tem contribuído para que a homo-lesbo-transfobia não seja reconhecidamente proibida pela sociedade e, muitas vezes, sequer considerada uma forma de violência. Sabe-se que a reprodução das tradições judaico-cristãs pelo mundo ocidental também fundamentou

codificações repletas de valores morais religiosos e heteronormativos. A Constituição Brasileira seguiu essa tendência. Portanto, não é suficiente afirmar que “todos são iguais perante a lei” para o combate efetivo do preconceito e da discriminação. O (re)conhecimento detalhado dos assassinatos contra LGBTs é um instrumento para o estabelecimento de indicativos da aprovação de um dispositivo legal que criminalize esses atos violentos no país. A reflexão aqui proposta tem como base os 122 casos de assassinatos contra LGBTs que foram registrados pelo Movimento Gay Leões do Norte (20022010). A pesquisa considerou matérias dos principais jornais de Pernambuco e outros meios de comunicação, destacando-se, entre as múltiplas faces da homo-lesbo-transfobia, aquela em que se chega a matar. No âmbito nacional, pesquisa equivalente é realizada pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). Segundo o Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais no Brasil (LGBT), relativo a 2013, escrito pela entidade, “o Brasil é campeão internacional de homicídios de gays, travestis e lésbicas. Em 2013, foram registrados 312 assassinatos, incluindo uma transexual brasileira morta no Reino

Unido e um gay morto na Espanha. Um assassinato a cada 28 horas”. Está aí o grande desafio para o enfrentamento da vulnerabilidade social LGBT no Brasil: quanto mais o país estiver imunizado contra a interferência fundamentalista e conservadora, mais preparados estaremos para responder ao preconceito e à discriminação. 1. Adolescente de 16 anos que foi encontrado morto na madrugada do dia 11 de janeiro de 2014 (sábado), na Avenida 9 de Julho, região central de São Paulo-SP. Segundo pessoas da família de Kaique, que fizeram o reconhecimento do corpo, não havia dentes na boca do garoto, que tinha sinais de tortura, como uma barra de ferro dentro da perna. Dados disponíveis em <http://jornaldehoje.com.br/adolescente-gaye-achado-morto-e-desfigurado-apos-se-perderem-festa/>. Acessado em 21 de janeiro de 2014. 2. Alexandre Ivo Rajão, de 14 anos, morreu no dia 21/06/2010, depois de participar de uma festa. Ele voltava para casa sozinho, quando desapareceu. O corpo foi encontrado horas depois num terreno baldio, com marcas de espancamento e tortura. No laudo pericial, consta que ele foi morto por asfixia mecânica, enforcado com sua própria camisa, com graves lesões no crânio, provavelmente causadas por agressões com pedras, pedaços de madeira e ferro. Dados disponíveis em <http://www.gay1.com.br/2011/06/ um-ano-sem-alexandre-ivo-jovem-de-14.html#. UuCIj9JTtkg>. Acessado em 21 de janeiro de 2014.

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Artigo

DIEGO JOSÉ SOUSA LEMOS CRIMINALIZAR NÃO É A SOLUÇÃO! A criminologia crítica denuncia a deslegitimação estrutural do sistema penal. As funções declaradas que o sistema promete garantir, como a igual proteção dos cidadãos e a punição, prevenção e ressocialização de criminosos, não são cumpridas. Em seu lugar, são desempenhadas, em silêncio, funções reais de construção seletiva da criminalidade (alguns, como negros e pobres, são mais “criminalizáveis” do que os brancos e ricos) e proteção do patrimônio e do status quo. A inoperância do sistema é geral. Ele atua sobre um número reduzido de casos, deixando claro que a regra não é a punição, mas a impunidade. A partir dessa fundamentação, a contrariedade à criminalização da LGBTfobia se impõe. O grave problema da rejeição individual e da hostilidade geral contra pessoas LGBTs não será solucionado pela

criminalização do fenômeno, que é excessiva ou simbólica. Digo isso porque os dois projetos criminalizadores da LGBTfobia, o PL 122/2006 e o mais recente PL 7.582/2014, protocolado pela Deputada Maria do Rosário (PT/ RS), trazem inovações penais que poderiam ser melhor tratadas por outros ramos do Direito, ou criminalizam coisas que já são sancionadas penalmente, apenas lhes atribuindo qualificadoras ou causas de aumento de pena. Há, nos projetos, neocriminalizações para situações de preconceito em contexto trabalhista, de lazer, da escola e do comércio em geral. Situações que poderiam ser abarcadas com mais eficiência e menor dano por outros ramos do Direito, como o Trabalhista, o Cível e o Consumerista, e não com uma nova lei penal. Já as situações que envolvem violência real (homicídios e lesões corporais), tradicionalmente apropriadas pelo movimento LGBT para lastrear suas demandas criminalizadoras, já são passíveis de punição. Daí vem o simbolismo que está ao lado do excesso penal retratado acima. Ora, se a existência do tipo penal que pune o homicídio

no art. 121 do seu respectivo código não impede alguém de cometer um homicídio LGBTfóbico, não será um simbólico aumento de pena que dissuadirá o agressor. Acreditar que o instrumento penal pode ter, nesses casos, um efeito simbólico virtuoso, é paradoxal, tendo em conta o caráter marcadamente machista, racista e LGBTfóbico desse mesmo instrumento. Precisamos deixar de pensar a criminalização da LGBTfobia e nos concentrar no que realmente interessa: a proteção das pessoas LGBT. A Lei do Racismo, que seria ampliada pela PL 122/06, nunca protegeu negros e negras da violência racial. Ela se preocupou, então, com o simbolismo da criminalização de condutas e se esqueceu de proteger as pessoas. É necessário que politizemos a LGBTfobia, em lugar de policializála. Para ser incluída na pauta da segurança, uma conduta não precisa ser classificada como criminal. Precisamos pensar no problema não reativa e incidentalmente, mas de forma preventiva e global. Por exemplo: se a escola é um tradicional ambiente de bullying LGBTfóbico, melhor do que criminalizar os agressores e/ou seus responsáveis seria garantir o estudo de gênero e sexualidade nas escolas, atuação preventiva e coordenada. O movimento LGBT e a luta contra a LGBTfobia devem deixar de lado os imediatismos que requerem a criminalização e reacender os ideais transformadores sobre os quais foram erigidos. A busca por reconhecimento de direitos via sistema penal é um equívoco e está fadada a fracassar, tendo em vista que esse sistema é, em si, também um fracasso. Com imaginação e muito debate, encontraremos os meios compatíveis com os fins. O primeiro passo é, como diz Maria Lúcia Karam,“estabelecer os compromissos e deles não se afastar”. O segundo é “não hesitar em desejar o que pode parecer impossível”.

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CON CAPA TI NEN TE

RELATOS Eles só queriam ser elas Segundo relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB) de 2013-2014, o Brasil

é o país que mais mata travestis e transexuais do mundo. Considerando a violência nos assassinatos, a pesquisa não deixa dúvidas de que as mortes estão relacionadas à intolerância e transfobia. O preconceito revela uma aversão àqueles com os quais não nos identificamos. “Eles acham que somos coisas. Que não sentimos dor. Que se bater não sangra, não mata e nem faz falta”, relata Brenda Bazante, em entrevista para o livro A história incompleta de Brenda e de outras mulheres, que Chico Ludermir pretende lançar neste semestre, com a história de 10 mulheres. O fotógrafo e jornalista preparou para a Continente uma síntese do que ouviu no encontro com essas pessoas.

FOTOS: CHICO LUDERMIR

BRENDA Atracaram o navio da marinha para um serviço de sondagem na entrada do Porto de Aracaju. A embarcação enorme chamava a atenção na cidade e sua chegada tinha sido até noticiada no jornal local. Dia de domingo era quando o navio ficava aberto para visitação. Dentre diversos visitantes, um casal e uma filha, que rodaram por todo o navio e fixaram os olhos especialmente no marinheiro Bazante. Aproximaram-se do capitão do navio para tirar algumas dúvidas. – É que minha filha tem muita vontade de entrar na marinha. Ela tem 16 anos e está interessada em servir no navio com vocês. – Sua filha será muito bem-vinda em terra, mas acontece que em navios só servem os homens, respondeu o capitão Gomes. – Ah é? – perguntou a mãe, quase que indignada. – E como eu vi uma marinheira de fuzil ali atrás? – completou a filha. O capitão empalideceu. E tentou explicar, com uma gagueira, o que nem sabia nominar. Brenda, que não estava na hora, ouviu o relato do capitão com todo o orgulho que podia. Tinha sido confundida com uma mulher. O que, para ela, era sinal de que estava no caminho certo. Para o capitão, era a prova que faltava para determinar a saída imediata de Brenda do navio e, posteriormente, da Marinha Brasileira.

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FRANCINE “Se vingar, vai carregar meu nome pelo resto da vida”, disse o pai, assim que viu seu filho recém-nascido. Francisco vingou. Mas carregou o nome do pai apenas por 18 anos. A partir daí, só apareceu nos documentos e assinaturas e, mesmo assim, a contragosto. Não combinava mais com a imagem afeminada pelos hormônios que Francine injetava.“Não quero viado em casa!”, disse seu pai. “Filho viado eu não crio!” E não adiantaram os apelos. A partir desse dia, aos 13 anos, deixou de ser filho. Para visitar a família, só na ausência do pai. Nem na mesma calçada andaram os Franciscos, durante 20 anos.

LUCIANA Luciana estava presa por “vadiagem”. Prestes a ser liberada, sentiu uma mão que a forçava. Procurava o zíper de sua calça com brutalidade, virava-lhe de costas, e obrigava que sua mão tocasse o que não gostaria. Resistiu, gritou, mas não adiantou. Apelou para um recurso que já se tornara hábito entre as travestis em desespero. Buscou o primeiro objeto cortante que encontrou e, com a gilete que recebera para se barbear, cortou-se na altura dos pulsos. Se alguém tinha que machucá-la, que fosse ela mesma. Com o sangue pulsando para fora, livrou-se. Salva, mas não sã.

MARIA CLARA As primeiras lembranças da vida estão povoadas de nãos: era interditado brincar com as meninas, constrangedor usar o banheiro dos meninos, e até a cor de roupa azul o incomodava. Tinha que trabalhar, ter namorada, jogar bola. Quando os irmãos iam para um lado e as irmãs para o outro, Roberval sentia que seu lado era nenhum. Por tudo isso, escolhia ficar só. Brincava de ser mulher em quadrilhas e no teatro. Mas cansou de brincar e foi para João Pessoa, longe de tudo – do que era e não queria ser. Aos 25 anos, Roberval implodiu. Maria Clara escolheu seu próprio nome. Talvez pelo hábito, um paradoxo com sua pele.

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FOTOS: CHICO LUDERMIR

MARIANA Era tardinha, e Dinho brincava de pai e mãe com um colega de bairro. Como sempre, assumia a figura materna. Na fantasia, cuidava de suas irmãs como uma mãe e beijava o coleguinha como marido. Como no Alto da Brasileira nada se esconde, antes anoitecer, seu Edson já estava sabendo que “Dinho tava brincando de viado”. Dinho também já sabia o que estava por vir. Quando chegou em casa, seu pai o esperava com um cipó arrancado do pé de araçá. Sem dizer nada além de xingamentos, bateulhe até deixá-lo em brasa. Em seguida, levou o filho para bacia de água de sal. Os gritos se ouviram em todo o bairro. Dinho só tinha seis anos.

DEUSA Deusa tem quase 17 anos, reclama das espinhas e do tamanho do corpo, que acha desproporcional. No dia da entrevista, descreve o que andou fazendo: saiu do curso profissionalizante no começo da noite, comprou um litro de vinho Carreteiro, bebeu todo para se preparar; encontrou-se com um cliente, fez sexo em um motel, comeu, cochilou, acordou, fez sexo outra vez. Recebeu R$ 50. Voltou para casa. Comprou outro litro de vinho, dessa vez para se limpar. À noite, quando sai sem destino, anda com medo de reencontrar algum cliente que já roubou. Mas o medo não lhe paralisa. Morrer para ela é só mais uma experiência de transformação.

WANESSA De um ângulo, nada do que vive Wanessa está subordinado à sua escolha de virar mulher. Não conhecer o pai e não ter escolaridade não são singularidades de ninguém. Querer ser feliz e ter um amor são desejos unânimes. Mas existe, sim, outro ângulo que segrega. Ela se defronta com a dureza de gente que não reconhece o universal e que exclui, violenta, mata. Um terceiro ângulo mostra Wanessa única. Só ela tem aquele tom de vermelho no cabelo, só ela tem aquele sorriso estridente, só Wanessa fez tantas mudanças de casa e de corpo, que nos lembram o quanto é necessário mudarmos também.

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LUANA Não foi fácil para Altair amar Luana, depois de ter amado oito anos Andinho. Sentia como se formassem um novo casal. E eram. Não mais dois homens. Um homem e uma mulher. Apesar do apoio e do companheirismo, as mudanças físicas de Luana trouxeram novidades. Se já era uma pessoa extremamente sensível, os hormônios, somados a toda pressão interna de renascer aos 30, fizeram dela uma mulher numa constante tensão pré-menstrual. Chorava diariamente, fosse vendo a novela, em discussões bobas, por nada, por tudo. Só haviam se passado três meses desde a retomada da hormonização. Mas ela já sabia que, dentre as outras tantas intensas mudanças, uma das mais importantes era como ficaria o futuro do seu casamento. Altair nunca havia se relacionado com nenhuma mulher, nem trans, nem cis. Deixaram de gozar juntos porque Luana demorava mais. O centro do sexo não era mais o pênis dela, que até tinha mudado de forma e tamanho. Ao ser penetrada, sentia orgasmos mesmo sem ejaculação. “Ele dizia que me amava, mas me amava enquanto menino. Quando fazia sexo comigo, parecia que estava com nojo.”

CHRISTIANE FALCÃO “Você é o amor da minha vida, mas nunca vai poder me dar um filho”, dizia Maílson em tom agridoce. Mas, incrivelmente, a barriga cresceu. Dos peitos dela saía leite. Chris estava grávida! E ficou plena por saber que por dentro existia uma mulher completa. Para ter certeza, investigou, viu que não era parasita, vírus ou bactéria. Era, sim, gravidez. Psicológica. A mulher interna era tão forte, que proporcionou uma das maiores alegrias de sua vida, por poucas semanas. Das maiores tristezas por quase toda a vida. O parto não teve dor física, só emocional. “Nenhuma travesti é feliz”, confidencia, com sofrimento que se sente no ar. “Sempre viveremos em conflito. Sempre me faltará alguma coisa.”

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FOTOS: CHICO LUDERMIR

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RELIGIÃO Deus é amor

Igrejas inclusivas, como a Comunidade Cristã Nova Esperança, têm acolhido grupos LGBT, propondo diferente interpretação dos textos bíblicos

Era noite de domingo e Rayanne

fazia recepção na porta de uma casa no início da Avenida Caxangá, zona oeste do Recife. Calça jeans colada às pernas, blusa branca estilo bata e um colete azul por cima. Estava do lado de fora da porta de vidro de um imóvel que em nada se destacava dos vizinhos, numa das vias mais movimentadas da cidade. Obreira da Comunidade Cristã Nova Esperança, tinha como missão dar boas-vindas a todos aqueles que, como ela, não eram aceitos nas igrejas cristãs convencionais.

Foi por amor ao ex-marido, Rafael, que Rayanne entrou pela primeira vez na CCNE. Quando ele a chamou, achou o convite ridículo e riu, imaginando padres vestidos de batina rosa, coral com danças escandalosas. O estereótipo, no entanto, se desfez, logo que percebeu que lá era aceita. Simplesmente aceita. Desde então, a transexual se filiou à igreja porque, junto a outros 85 fiéis – em sua maioria gays e lésbicas –, sentiu-se acolhida. Rafael deixou de frequentar a igreja, assim como também deixou de ver Rayanne, quando teve

que optar entre viver um casamento sem esconderijos ou permanecer num falso heteronormatismo. Até então, mantinha em sigilo para a família que Rayanne tinha nascido Henrique. Enquanto a jovem recebia as pessoas na porta da igreja, na sacristia, o presbítero Hillario organizava os envelopes que seriam distribuídos aos fiéis para a doação. Mesmo sem precisar, repassava mentalmente as palavras que usaria para pedir às pessoas a contribuição para manter o templo. “Irmãos, é com a graça de Deus que conseguimos manter esta casa. Mas somos todos voluntários e precisamos pagar o aluguel e as contas da igreja. Portanto, contamos com a colaboração de todos aqueles que puderem. Amém.” Recebeu um coro de améns de volta e recolheu um a um os envelopes que ajudariam a manter viva a instituição. Hillario está na congregação há aproximadamente dois anos e já entrou como presbítero por ter experiência – ocupara o mesmo cargo em uma igreja não inclusiva, a poucos passos da CCNE. Durante quatro anos, dedicava quase todo o seu tempo livre à organização

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1-3 COMUNIDADE

Reunidos na CCNE, Berg (esq.), Rayanne (dir.) e Hillario (à frente, na foto abaixo) podem viver sua religiosidade sem os interditos impostos pela maioria das congregações

dos eventos do templo vizinho. A maré mudou, quando ele conheceu aquele que seria seu primeiro namorado. Ciente de que sua sexualidade e o cargo de presbítero eram incompatíveis, pediu para se desfiliar de suas funções e da instituição. Conversou com a pastora e, ao contrário do que imaginava, a saída se deu de forma tranquila. Hillario ainda tem vários amigos em sua antiga congregação e cruza com eles muitas vezes, quando vai à CCNE. A Comunidade Cristã e a vizinha Renascer convivem cordialmente e, mediante as diferenças, se respeitam. Num domingo, os cultos ocorrem simultaneamente e encontros fortuitos acontecem na entrada e na saída dos dois lugares. Em uma visão panorâmica, não se percebem diferenças físicas entre os fiéis. São homens, mulheres e crianças que vão juntos louvar o Senhor. A tolerância mútua foi acordada após um incidente: em um desses finais de culto, os dois grupos se encontraram e, assim que passou um casal da CCNE, duas seguidoras da Renascer debocharam dele, gesticulando caricaturalmente, em rebolado e trejeitos escandalosos. O resultado foi uma retaliação imediata e uma conversa entre os pastores das duas congregações. “Todos somos cristãos e devemos nos respeitar”, argumentou Wandeberg Torres – ou apenas Berg –, da igreja inclusiva. E recebeu do pastor da Renascer um pedido de desculpas e a garantia de que essa não era uma prática estimulada por ele. “Todos somos cristãos e devemos nos respeitar”, concordou. Esse não foi o pior dos episódios de intolerância que viveu a CCNE, em seis anos de funcionamento no Recife. Assim que chegou a Pernambuco, em 2008, a Comunidade Cristã recebeu diversas ameaças e tentativas de interdição. Uma delas veio em forma de um cartaz colado em sua porta: “Deus não ama vocês”. Quando a sede ainda era no Cordeiro, chegaram a ouvir ofensas de diversas pessoas. “Acham que vão para o céu?”, resmungou uma senhora de meia-idade,

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O conceito de igreja inclusiva surgiu nos Estado Unidos, na década de 1960, durante as revoluções feminista e sexual enquanto puxava o neto para longe. “Jesus não está aí”, ouviu-se outra vez, vindo de um rapaz que gritou de dentro de um carro. “O trabalho é gradual”, explica Berg, que, além de pastor, é também aluno de Teologia na Faculdade Metodista. “Começamos muito pequenos, na casa de um pastor em São Paulo, e hoje temos sedes nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste e células em Londres, Buenos Aires e Pisa, na Itália.” O conceito de igreja inclusiva surgiu nos Estados Unidos, na década de 1960, no contexto das revoluções feminista e sexual. Tido como criador desse tipo de congregação, o reverendo americano advindo da Igreja Apostólica Romana, Troy Perry, incluiu pessoas

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que até então não eram aceitas em sua congregação: mulheres divorciadas, adúlteras, negros e homossexuais. A Comunidade Metropolitana (ICM) nasceu em 1968, na cidade de Los Angeles, e serviu como propulsora para o nascimento de outras instituições de igual natureza no mundo ocidental. Perry e seus seguidores buscaram na Bíblia a justificativa para a aceitação irrestrita. “Deus é amor” (João 4.16) inicia qualquer explicação da inclusão dos homossexuais no cristianismo. Outras passagens compõem o vasto repertório dessa tese. “Porque Deus tanto amou o mundo, que deu o seu Filho Unigênito para que todo que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.16). Sendo assim, o fato de serem homossexuais é irrelevante, diante de uma premissa maior, que seria a própria crença nesse Deus. No mesmo caminho indutivo, recorrem à citação do livro dos Romanos 8.1 – “Nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” – e Atos 10.34, que diz: “Então Pedro, tomando a palavra, disse: na verdade reconheço que Deus não faz acepção

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CON CAPA TI NEN TE de pessoas; mas que lhe é aceitável aquele que, em qualquer nação, o teme e pratica o que é justo”. No caminho inverso, rebatem acusações das igrejas convencionais sobre Sodoma e Gomorra, além de versículos do Levítico. “Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. Isso é abominável” (Levítico 18.22). “De fato, está escrito na Bíblia. Mas ler qualquer afirmação fora de contexto é pretexto”, argumenta o pastor Berg, completando que é preciso situar historicamente o texto sagrado. “Existem outras 629 regras no mesmo livro que incluem a proibição de comer mariscos e crustáceos, de raspar a barba, de tocar em carne de porco e de tocar (não apenas ter relação sexual) em qualquer mulher que esteja no período menstrual.”

RECONCILIAÇÃO

No Brasil, o conceito inclusivo só chegou em 1982, quando, em São Paulo, teve início a ICM. As congregações, segundo o sociólogo Carlos Lacerda, em sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal de Alagoas, já somam mais de 40 denominações diferentes. No Recife, a CCNE é a única em atuação. Também surgida na capital paulista, em 2005, a Comunidade Cristã Nova Esperança foi criada, da mesma forma que a ICM, por um religioso vindo de uma congregação tradicional. Divorciado de um casamento heterossexual e pai de dois filhos, Justino Luiz começou recebendo os fiéis em seu próprio apartamento, até que, com mais 40 frequentadores, o espaço se tornou pequeno. O nome, segundo o fundador, vem de um trecho do livro de Romanos 12.12: “Alegrai-vos na Esperança, sede paciente na tribulação e perseverai em oração”. Berg complementa: “Aqui temos alegria, temos comunhão, aqui não há hipocrisia, é o lugar que o próprio Deus separou para nos reconciliar com Ele mesmo”. Para o pastor Berg, a descoberta da igreja inclusiva foi uma reconciliação sua com Deus. Como a maioria dos outros pastores e fiéis da CCNE, ele também tinha vivido experiências nas congregações convencionais e entrado em conflito com seus desejos e escolhas. Aos 14 anos, começou a namorar

FOTOS: CHICO LUDERMIR

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A CCNE tomou para si a função de militância e incluiu momentos para reflexão sobre a temática LGBT

uma companheira da igreja batista. Casou-se e manteve o relacionamento até os 22 anos, fazendo todo tipo de concessão à sua sexualidade. Quando, aos oito meses de casado, expôs na igreja que tinha desejo por outros homens, foi recebido de braços abertos para a libertação e o exorcismo daquele demônio que, segundo seus companheiros de congregação, estaria no seu corpo. “Ficava no meio de uma roda e os pastores liam a Bíblia, enquanto faziam imposição de mãos sobre a minha cabeça. Em nome de Cristo pediam que aquele espírito saísse do meu corpo” – descreve Berg o seu processo de sofrimento intenso. Chegou a fazer jejuns, sete orações diárias por sete semanas. Durante anos, acreditou que estava possesso, frustrando seus sonhos de felicidade. Mas, apesar de os pastores prometerem, a suposta libertação não acontecia. Ano após ano, durante cinco anos e meio, o desejo pelo mesmo sexo não desaparecia ou diminuía. Até que se pôs um dilema: ou o nome de Cristo não tinha poder – tese em que jamais acreditou – ou

não havia demônio nenhum para ser libertado. Qualquer uma das respostas revelaria uma incompatibilidade entre Berg e sua antiga congregação. “Fizeram-me acreditar que aquilo que eu estava vivendo era algo demoníaco. Quando cheguei à fase adulta, pude perceber que não era nada de demônio, era a minha essência que eu precisava e queria viver e não esconder mais de ninguém.” Sentenciou o pastor da batista: “Não podemos manter uma pessoa homossexual. Não é de Deus”. Ele passou alguns anos longe dos templos. Circulou por bares e boates, achando que poderia vir daí sua aceitação. Não veio. Nunca conseguiu beijar alguém em uma balada, e voltava para casa sentindo falta do seu espaço religioso de origem. Conheceu a CCNE assim que ela estabeleceu sede no Recife, em maio de 2008. Emocionouse ao entrar em contato com a cartilha explicativa da igreja. Pensou que, enfim, encontrara seu Deus, o inclusivo. Desde 2009, é líder da congregação em Pernambuco. Trabalha como pastor em dois cultos semanais, sem receber salário. Assim como ele, todos os obreiros são voluntários.

O RITUAL

Rayanne, que recebeu os fiéis na porta da Igreja, e o presbítero Hillario só conseguiram se acomodar quando Berg já ocupava o púlpito. Sentaram-se lado a lado no culto daquele domingo. Na fileira de três cadeiras, a última era ocupada por uma jovem senhora

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CULTOS Como em outros templos pentecostais, os fiéis reúnem-se semanalmente para adorações

loura de óculos. “Quando eu tinha 12 anos”, começou Berg, “Jesus me curou de uma enfermidade no coração, decorrente da febre reumática. Parei de tomar os remédios e minha fé me salvou, não foi mãe?”, perguntou, olhando do altar para a mulher loura. Obteve um sim e um sorriso como confirmação. “Se Deus me curou dessa doença, por que ele não me curaria da homossexualidade, se doença fosse?”, questionou, retoricamente. Afora alguns poucos momentos de referência a temas especificamente do mundo LGBT, o resto do culto é seguido exatamente como ocorre em qualquer igreja pentecostal. No coral, pessoas de vozes afinadas cantando os hinos de louvor e uma solista de talento. Diversas passagens bíblicas do Antigo Testamento e um fervor que contagiava as mais de 60 pessoas. Na plateia, gritos de “Glória a Deus”, “Amém” e “Aleluia”, além de alguns dizeres intraduzíveis, no que se chama de “línguas” – palavras faladas em uma espécie de transe de contato direto com Deus, próprio das igrejas

pentecostais, que acreditam nos dons espirituais de cura e em profecias. Questionado sobre o ritual que reproduz literalmente a liturgia das mesmas igrejas que oprimem e renegam os homossexuais, Berg retruca com segurança. “Não é a liturgia que oprime, mas, sim, a forma como se interpreta a palavra de Deus. A gente só se sente dentro de um culto, se tiver liturgia. Se não houver uma regra de sequência, não.” O ritual inclui uma oração inicial e momentos de louvor, palavra e ofertório. Há cerca de um ano, a CCNE tomou para si a função de militância e incluiu momentos para reflexão através de textos e, especialmente, vídeos ligados à temática LGBT. Naquele domingo, os fiéis assistiram a um vídeo em que o médico Drauzio Varella explicava a homossexualidade, um depoimento de um gay para a novela Amor à vida (Rede Globo) e uma reportagem sobre a transexual Rafaela. “Trabalhamos uma cartilha porque as pessoas chegam aqui ainda muito oprimidas. Somos uma igreja cristã, sim. Mas não só isso. Somos uma igreja cristã homossexual.” Essa afirmação fica evidente durante o culto. O pastor não tem ressalvas para usar até mesmo um linguajar queer, que se aproxima do mundo real de muitos gays, lésbicas e trans. Mas isso não significa que haja permissividade, como já foi veiculado na imprensa – o que causou indignação na comunidade. “O que não pode?”, pergunta o pastor. “Não pode não amar a Deus, não respeitar as diferenças. Não pode não amar o próximo e nem ferir ou denegrir a imagem de outra pessoa.” CHICO LUDERMIR

TOLERÂNCIA AVANÇOS EM OUTRAS RELIGIÕES O Papa Francisco fez os católicos voltarem a falar do tema da intolerância sexual, tão evitado. Depois do papado conservador de Bento XVI, em seu primeiro ano no cargo, Francisco não fugiu do tema da sexualidade. Na viagem de volta de sua visita ao Rio de Janeiro, em julho de 2013, onde foi realizada a 28ª Jornada Mundial da Juventude, o papa concedeu a primeira entrevista coletiva a jornalistas de veículos de todo o mundo. “Se uma pessoa é homossexual e procura Deus e a boa vontade divina, quem sou eu para julgá-la? Os homossexuais não devem ser marginalizados por causa de o serem, mas devem ser integrados à sociedade”, afirmou. Em setembro do mesmo ano, Francisco voltou a surpreender, quando se declarou outra vez aberto aos homossexuais, assim como aos divorciados e às mulheres que realizaram aborto. Em entrevista à revista italiana La Civiltá Cattolica, declarou que “a religião tem o direito de exprimir sua opinião própria a serviço das pessoas, mas Deus, na criação, nos fez livres: a ingerência espiritual na vida das pessoas não é possível”. Segundo Frei Betto, ativista e assessor de movimentos sociais, “nunca antes na história da Igreja um papa ousou colocar a sexualidade no centro do debate eclesial”. Em seu comentário semanal na Rádio Brasil Atual, o sacerdote afirmou: “quem há muito transita na esfera eclesiástica sabe que é significativo o número de gays entre seminaristas, padres e bispos. Por que eles não gozam, no seio da Igreja, do mesmo direito dos heterossexuais de se assumirem como tal? Será que é justo que permaneçam ‘no armário’, vitimizados pela Igreja e supostamente por Deus, por uma culpa que não têm?”. Frei Betto sugere a necessidade de se reler o evangelho pela ótica homossexual, assim como foi feito, nos últimos anos, pelo prisma feminino. Ele ressalta que a unidade na diversidade é uma característica da igreja católica e diz que “basta lembrar que são quatro os evangelhos, e não um só, ou seja, quatro enfoques distintos sobre o mesmo Jesus. A igreja católica não pode de maneira alguma continuar cúmplice desse mundo homofóbico, dessas tendências violentas de discriminação daqueles que não seguem uma orientação heterossexual”. CANDOMBLÉ Diferentemente das religiões cristãs, os rituais de matriz africana têm uma tradição de aceitação das diferentes orientações sexuais e identidades de gênero. Como uma religião que não orienta sua prática no sentido do “pecado”, o candomblé tampouco mantém leis de discriminação de homossexuais e transgêneros. “Se comparado a outras crenças, o candomblé tem se mostrado mais aberto aos homossexuais, permitindolhes ocupar todos os postos previstos na hierarquia ritual”, explica Milton Silva dos Santos, no artigo Sexo, gênero e homossexualidade, desdobramento de sua dissertação de mestrado no Departamento de Antropologia da PUC–RJ. Não é possível provar, no entanto, que as devoções afrobrasileiras são as mais procuradas pelos homossexuais. Pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, com participantes da Parada do Orgulho Gay de São Paulo, em 2005, revela que, do total de 303 entrevistados (apenas gays e lésbicas), 36% se disseram católicos; 19% espíritas; 18% sem religião; 4% evangélicos pentecostais. Juntos, candomblé, umbanda e “outras devoções afro-brasileiras” totalizaram 6% dos participantes. (C.L.)

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FOLIA Carnaval em ritmo apologético

A Banda de Ipanema, que ajudou a resgatar a festa popular na capital carioca, chega aos 50 anos como patrimônio imaterial do Rio de Janeiro e homenageando a cidade que reverencia TEXTO Matheus Torreão FOTOS Marcio RM

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Tradição

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“Em 2015, comemoramos 500 anos.

Os 450 do Rio de Janeiro e os 50 da Banda de Ipanema.” A máxima é de Claudio Pinheiro – cofundador, atual diretor do grupo e o único ser humano a jamais ter faltado a um desfile da Banda desde a sua fundação, em 1965. Uma vez que não seria exagero enxergar a aniversariante cinquentenária como parte inexpurgável da história do Rio de Janeiro, tampouco honesto imaginar um outro lugar em que ela poderia ter se tornado o que se tornou, basta um breve apanhado histórico para chegar à conclusão de que Claudio tem razão. Em 1959, o artista plástico Ferdy Carneiro convidou alguns amigos para passar o feriado em Ubá (MG) – dentre eles, o irmão mais velho de Claudio

e futuro patrono da banda, Albino Pinheiro. Deslumbrados ficaram com o que lhes apresentou a irreverente Philarmônica Em Boca Dura, grande atração do carnaval local: cavalheiros de ternos brancos surrados e damas em vestidos senhoriais ostentavam instrumentos que não faziam a mais vaga ideia de como tocar (uma outra banda “verdadeira”, discretamente, fazia o trabalho). Capitaneados por Ferdy e Albino, seis carnavais mais tarde, uns 30 gatos pingados – dentre eles Jaguar e a turma do Pasquim – se inspirariam na verve zombeteira e anárquica da Philarmônica para fundar a Banda de Ipanema. Se as circunstâncias de gênese podem parecer pouco grandiloquentes 1

REGRA Para o desagrado dos foliões mais exibidos, a banda não permite circulação de trios elétricos e carros de som

para aquilo que viria a se tornar o primeiro patrimônio imaterial tombado do Rio de Janeiro, vale lembrar, antes de tudo, o marasmo em que vivia o carnaval de rua carioca naqueles tempos. Afora o solitário e tradicional Cordão da Bola Preta, que se consagra centenário em 2018, os festejos momescos que não aconteciam nas grandes passarelas de samba enredo limitavam-se aos clubes privados e bailes oficiais. “O mais importante deles – veja que absurdo! – acontecia nas dependências solenes e históricas do Theatro Municipal. Os blocos tinham sumido das ruas, até mesmo nos subúrbios”, conta Ziraldo, outro ilustre cofundador da Banda de Ipanema. “Antes da Banda, não tinha %&#$ nenhuma”, reitera Claudio.

YOLHESMAN CRISBELLES

Dada a carência, não foi preciso muito para que os ipanemenses passassem a seguir adoidadamente aquela procissão indecorosa. E como era para o bairro que estavam voltados todos os olhos do país naquela época, eis que não tardou que se desse uma grande explosão de bandas carnavalescas pelas ruas de todo o Brasil. “Logo apareceram de volta os blocos, e o Simpatia é Quase Amor, também de Ipanema, abriu caminho para o tipo de bloco que existe hoje no Rio”, explica Ziraldo. O lema “Uma banda em cada bairro”, erguido em faixa desde os primórdios da Banda de Ipanema, tornou-se rapidamente realidade. Mas a mais célebre faixa – assim como Claudio Pinheiro, presente em todos os desfiles da banda – traz os dizeres Yolhesman Crisbelles. Trata-se de uma aleatoriedade: um cidadão de cunho messiânico, que fazia discursos em cima de um caixote na Central do Brasil, costumava terminar suas frases, geralmente incompreensíveis, com essa expressão igualmente indecifrável – acontecido que Ferdy Carneiro não deixou passar. Todavia, se a primeira faixa trouxe de volta os blocos à rua, a segunda arregalou os olhos paranoicos da ditadura militar. O SNI (Serviço Nacional de Informações) teve certeza de que estava diante de um código subversivo. Há rumores de que

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escalou agentes infiltrados nos desfiles, na tentativa de desvendar o mistério. Embora essa suposta operação tenha resultado em nada, os contratempos dos foliões ipanemenses com os militares estavam longe do fim. Yolhesman Crisbelles não era o único mote da Banda a alertar os militares contra a ameaça subversiva iminente. De acordo com o relatório do comissário Deuteronômio da Rocha Santos, que tentou encerrar as atividades carnavalescas da Banda de Ipanema em 1974, também se evidenciavam temerários os chavões: “a. – ‘a praça é do povo’, utilizado por elementos comunistas; b. – ‘República Livre de Ipanema’, sinônimo da ‘comuna’, isto é, circunscrição territorial dentro de um estado; nesse caso, o bairro ficaria sob administração desses elementos; c. ‘esquerda festiva’, designação dos elementos comprovadamente de

Entre padrinhos e madrinhas, a Banda de Ipanema contou com gente como Cartola, Clara Nunes, Grande Otelo e Tom Jobim ideologia alienígena, mas de conduta ‘burguesa’, frequentadores assíduos dos bares e cervejarias do bairro’”. Apesar dos alertas de Deuteronômio, a Banda passou e agigantou-se em progressão desgovernada. “No primeiro ano, tinham 30. No terceiro, 1.800”, conta Claudio Pinheiro, que hoje se prepara para administrar algo em torno de 60 mil foliões. Além de fiéis seguidores, a Banda de Ipanema também acumulou, ao longo das décadas, um currículo mais que respeitável

de padrinhos e madrinhas. Dentre os que compõem a lista, estão Bibi Ferreira, Cartola, Tom Jobim, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Grande Otelo e Leila Diniz, primeira e eterna rainha da Banda. Mas a mais ilustre e imodesta das condecorações acontece mesmo este mês: para a ocasião dos “500 anos” celebrados, quem fará as honras simultâneas de padrinho e madrinha será a cidade do Rio de Janeiro. “Rio, logo existo” é o novo a entrar para o outrora famigerado hall dos chavões da Banda e estampa a camisa oficial do cinquentenário. Mesmo com tanta carioquice ostentada, não seria desvario chamar a maior das instituições ipanemenses de patrimônio imaterial brasileiro. Em parte, porque seu repertório atual de 100 músicas de quase quatro horas é uma verdadeira cartografia da música popular do país – ciranda,

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REPRODUÇÃO

2 CLAUDIO PINHEIRO Cofundador e atual diretor da banda orgulha-se de nunca ter faltado aos seus desfiles 3 LEILA DINIZ Atriz é eterna musa do grupo carnavalesco 4 FRASES CÉLEBRES Entre as faixas empunhadas pela banda, a mais famosa é a que traz escrito o enigmático dístico Yolhesman Crisbelles 5 FERREIRA GULLAR Poeta está entre os intelectuais que deram prestígio ao desfile

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marchinhas, samba-enredo, bossa-nova, choro, valsa, carimbó, maxixe, frevo, baião, forró e até a Suíte de Villa-Lobos já entraram na trilha do passo (vale até aproveitar o assunto para esclarecer que a ausência de sinônimos genericamente carnavalescos para “banda”, neste texto, se deve à clara distinção defendida por seus fundadores: um bloco é majoritariamente percussivo, enquanto uma banda dá destaque aos sopros). Em outra parte, porque suas tubas e trombones transcendem os contornos da cidade de São Sebastião – só este ano foram convidados para os carnavais de Juiz de Fora, Fortaleza e São Paulo. “E estou esperando o convite para o Recife, $#%&!”, cobra Claudio, que, em delírios de grandeza, professa superar o Galo da Madrugada.

PERSONAGENS

Albino Pinheiro, considerado por Fausto Wolff “o maior prefeito que o Rio já teve, sem jamais ter sido prefeito”, é um dos principais responsáveis por promover o encontro da Zona Norte com a Zona Sul da cidade – popular e nobre, respectivamente –, e pela fama de farra democrática que a Banda de Ipanema até hoje carrega. Conhecedor de cada gafieira, botequim e roda de samba da cidade maravilha, precisava de muito mais que uma quarta-feira de cinzas para desmanchar sua verve de agitador cultural – façanha que só mesmo a morte, em 1999, conseguiria fazer, embora parte de suas crias siga vivendo por ele. Como secretário de Turismo da prefeitura local, Pinheiro

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Tradição

CON TI NEN TE

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revitalizou a tradicional Festa da Penha e criou o projeto Seis e Meia, que se mantém desde 1976. “Era dificílimo encontrar alguma manifestação cultural de massa no Rio de Janeiro que não tivesse um dedo dele. Seu maior pecado foi jamais ter escrito um livro”, lamenta Claudio, que pensa em assumir o registro histórico, enquanto enfrenta rodeios da municipalidade para erguer uma estátua do irmão na praça General Osório – tradicional ponto de concentração e chegada da Banda. No cinema, o documentário Folia de Albino (2000), do também cofundador e falecido Paulo Cesar Saraceni, traz uma série de depoimentos sobre aquele que talvez desbanque Vinicius de Moraes do lugar de “branco mais preto do Brasil”. Mas Claudio e Saraceni não foram os únicos que se preocuparam com a preservação da memória do

A fama de banda democrática está relacionada ao seu potencial de unir as diferenças bairristas dos cariocas patrimônio imaterial carioca. Marcio RM, que assina as fotos desta matéria e há 32 anos fotografa todos os desfiles, espera aproveitar a ocasião do aniversário da Banda e da cidade para publicar um livro com todos os registros que acumulou. “É uma vontade muito antiga, sigo em busca de algum patrocínio”, explica. Marcio começou com a tradição aos 20 anos, quando arrumou o primeiro emprego no Jornal de Ipanema, antes dos antigos diários de bairro darem lugar aos grandes veículos de imprensa. “Fotografar é sair para

pescar, e a Banda de Ipanema tinha vários cardumes.” Dos personagens célebres, Marcio rememora as folclóricas travestis que passaram a povoar a Banda, com grande representatividade a partir dos anos 1980. Destacam-se, entre suas lembranças, Lola Batalhão, lembrada pelo título de rainha dos gogo boys e por extravagâncias, como desfilar carregada em uma bandeja e servida qual leitão; a Sereia Splash, interpretada por um chapeleiro cuja elasticidade fônica tornava a voz de sua personagem muito diferente da sua habitual, e a Mulher da Mala, que há três décadas desfila e tem circunstâncias de nascimento que caberiam em um romance de realismo fantástico. “Minha tia morreu e ganhei de herança um apartamento dela em São Paulo. Quando o adentrei, descobri que estava repleto de malas e mais

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6 EVOLUÇÃO De um início com 30 foliões, o grupo estima para este ano 60 mil participantes 7 TRAVESTIS É notória a presença da diversidade sexual no desfile da Banda de Ipanema

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malas do mundo todo, todas cheias com roupas que remetiam aos países mais improváveis, da Escócia ao Japão!”, conta Eduardo Rasberge, ator e artista plástico com quem a Mulher da Mala divide as honras de ter sido rainha da Banda em 2002. Rasberge, contudo, não é muito simpático à diretoria atual, apesar de sua coroação só ter vindo na era pós-Albino. “Tio Ferdy e Tio Albino eram alegres, mas a diretoria atual é desagradável. Os seguranças são uns brutos. E, como a Banda cresceu, já está em tempo de arrumarem carros de som”, critica. O incômodo da Mulher da Mala com os rumos recentes dos desfiles, vale dizer, é partilhado com algumas das suas figuras mais antigas e notórias, ainda que por razões bastante distintas. Para o cartunista Jaguar, o próprio predomínio de travestis e a transformação da folia em patrimônio já foram motivos

Antigos frequentadores da banda, como o chargista Jaguar, reclamam da superpopulação atual do desfile para protestar – na ocasião, chegou a dizer que era um despropósito “tombar uma molecagem”. Ferreira Gullar, outro ilustre folião, queixouse na crônica E a banda passou da superpopulação carnavalesca que tornara quase impossível sambar nas sufocantes avenidas cariocas e acabara por descaracterizar o cortejo. Já Ziraldo aparenta ter uma percepção mais ponderada dos novos tempos, embora concorde que os velhos nunca voltarão. “A presença do que chamam de Banda de Ipanema hoje não tem

nada a ver com a banda original. Mas eu não fico deprimido como o Jaguar, porque tenho a vaga impressão de que o mundo se move e a felicidade vem acompanhada da ‘obsolescência planejada’. Quer dizer, a felicidade tem seu tempo de uso”, avalia. Para Claudio Pinheiro, todavia, é preciso despir-se de saudosismos e enxergar o presente em seus avanços: “A Banda sempre fez apologia ao carnaval de rua: uma banda em cada bairro. Agora o pessoal vai à rua e reclamam? Isso é tacanho, tem de ficar feliz”. No entanto, mesmo admitindo que é impossível manter o formato de cinco décadas atrás, quando 30 pessoas podiam desfilar na Vieira Souto sem serem engolidas por uma multidão interminável, Claudio se mantém fiel às cláusulas pétreas. São elas: entra quem quiser, a música é brasileira e o pé é no chão – nada de trios elétricos nem carros de som, para o infortúnio da Mulher da Mala. O certo é que, se os tempos mudaram, a Banda de Ipanema foi protagonista da própria transformação. Chamou as pessoas para a rua e elas vieram. Hoje, desfilam os filhos e netos dos casais que ajuntam há 50 anos, e que devem seguir se multiplicando. Afinal, uma vez tombada, no Carnaval em que a última das diretorias resolver cruzar os braços, restará ao prefeito a obrigação de empunhar seu estandarte. Mas é improvável que isso se dê na gestão de Claudio Pinheiro, cuja paixão pela folia o impede de enxergar muita fundamentação retórica no coro nostálgico dos descontentes: “Tem gente que não gosta até de sorvete de caju, %&$#!”.

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FLORA PIMENTEL/DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

Perfil

FLAIRA FERRO Uma moça com o passo acertado

Bailarina, que iniciou sua carreira na infância com o frevo, superou estereótipos da modalidade, avançando também no campo da dança contemporânea e na interpretação musical TEXTO Christianne Galdino

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Hiperativa. Essa é a palavra que ela

usa para se apresentar. Em seguida, com surpreendente maturidade, Flaira Ferro, 25, complementa: “Eu me defino na ponte, completamente na ponte, porque sempre tive muitos canais de manifestação criativa. Desde criança, a arte faz parte do meu cotidiano. Minha mãe, Thereza, muito atarefada com seu ofício de médica, optou por matricular os filhos em atividades culturais e esportivas. Aos sete anos, eu já fazia aulas de canto, pintura, e outros cursos na Escola Dom Bosco. Consolidei uma memória corporal na dança, mas desde cedo transitava por várias linguagens artísticas”. Nascida no Carnaval, ela parece ter herdado da folia a agitação, a versatilidade e a alegria contagiante que caracterizam suas criações. A dança foi o lugar em que sua hiperatividade logo tomou forma, forma de frevo, “essa foi a porta de entrada”. E depois de forjada passista pelas mãos do Mestre Nascimento do Passo (morto em 2009), com apenas 10 anos, ganhou os primeiros concursos de frevo e abriu portas no seu caminho.“Quando ganhei o título de Princesinha do Recifolia, no ano 2000, Fátima Freitas fazia parte do júri, e me convidou para ser aluna bolsista de balé clássico na sua escola. Com a turma da Academia Fátima Freitas, levamos o frevo pela primeira vez para as competições do Festival de Dança de Joinville, conquistando, três vezes seguidas, o primeiro lugar da categoria dança popular.” Mantendo relação ininterrupta com o mais pernambucano dos ritmos, há pelo menos 15 anos, Flaira conquistou uma intimidade ímpar com o frevo, fazendo dele a matriz de suas criações e revelando uma faceta a cada trabalho apresentado. Num primeiro momento, a rotina de passista levou-a ao público turístico e, nesse “lugar-comum do frevo”, ganhou o mundo, divulgando o Recife nas principais feiras e eventos nacionais e internacionais do setor. O receio do empobrecimento artístico, que a permanência prolongada nessa seara turística poderia ocasionar, levou a jovem artista a questionar o sentido e a validade da experiência que preencheu os anos iniciais da sua carreira. “O objetivo era atrair turistas para cá, e esse tipo de público não

quer ver ninguém em processo de questionamento profundo, quer ver a alegria bonita e festiva do Carnaval. É muito ruim quando os artistas ficam dependendo exclusivamente dessa estrutura mercadológica para divulgar seu trabalho, porque vão se engavetando em um estereótipo, limitando seu campo de atuação, e restringindo as possibilidades criativas. Por outro lado, viver artisticamente do frevo é quase impossível. Com exceção dos poucos que conseguem aprovar projetos culturais esporadicamente, a maioria dos passistas profissionais precisa do mercado turístico para sobreviver.”

INQUIETAÇÕES

Esses questionamentos inauguraram uma nova fase na carreira de Flaira Ferro. Em 2010, a bailarina ingressou no Curso de Formação de Intérprete Pesquisador em Dança, realizado pelo Acupe Grupo de Dança, e encontrou eco às suas inquietações nas aulas de professores como Marcelo Sena, Maria Eduarda Gusmão e Isabel Marques. Naturalmente, a dança contemporânea surgiu como direção, porque era o lugar “em que havia mais gente pesquisando, mais gente interessada nessas questões”. A rotina de passista virtuosa, treinando incansavelmente para elevar o nível de execução e o grau de dificuldade dos movimentos, foi então substituída por um cotidiano de artista pesquisador, instigado e acompanhado pelas amigas Bella Maia, que acabava de regressar do Rio de Janeiro onde concluíra graduação em Dança, e Camila Moraes, que cursava Jornalismo na mesma turma de Flaira. Dessa união nasceu a Untanto Cia de Dança, que, apesar do curto período de existência, foi responsável pelo primeiro solo em dança contemporânea da passista. “Esse trabalho é um divisor de águas no meu percurso profissional. A vida começou a me jogar em lugares em que eu precisava ampliar a consciência sobre o meu dançar. Queria entender melhor o que eu fazia, e por que fazia. Quais eram as questões por trás desse corpo que foi construído na dança popular? Qual era o meu frevo?” O espetáculo O frevo é teu? estreou em 2011, em resposta às inquietações, mas como não queria nem podia negar

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SILVIA MACHADO/DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

Perfil

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aquela dança que tinha dado forma aos seus movimentos até então, decidiu manter o frevo no papel de protagonista das suas criações. “Até mesmo porque acredito que as danças populares têm muito a oferecer às outras linguagens e formas de dança, pois possuem uma riqueza incrível de vocabulário gestual e rítmico, de direção, intenção, e qualidade de energia. Não vejo sentido em não continuar utilizando esse material, até mesmo para que outras pessoas vejam o quanto essas danças são poderosas.” Desse rico vocabulário do frevo, Flaira extraiu também seu mais recente experimento cênico, Trajetos e trejeitos, e um vasto material para alimentar a pesquisa teórico-prática O espaço do passo, realizada em parceria com a bailarina e jornalista Valéria Vicente. “A intenção era analisar quais os espaços de atuação e formação dos passistas de frevo em Pernambuco, e discutir essas relações, utilizando um blog para todos poderem acompanhar o passo a passo da nossa pesquisa.

Junto com Valéria Vicente, Flaira desenvolve pesquisa teórico-prática sobre espaços de atuação e formação de passistas Mas, como fizemos muitos laboratórios e vivências práticas, acabamos construindo também uma performance. Então, convidamos o Maestro Spok e o percussionista Lucas dos Prazeres, e assim surgiu o espetáculo Frevo de casa, com o desejo de reaproximar músicos e passistas de frevo que pareciam desconexos nos concursos e apresentações que vimos durante a pesquisa”, explica Flaira, enquanto informa que esse trabalho vai cumprir uma minitemporada no Centro Cultural da Caixa, no Recife, este ano, mas ainda sem data definida. O trabalho de Flaira continuava frutificando. Mas tudo indicava que a caçula do engenheiro e político

Fernando Ferro e da doutora Thereza não se satisfazia com o que muitos chamam de “zona de conforto”. O gosto por desafios fez com que ela, aceitando um convite de Rosane Almeida e Antonio Nóbrega, se mudasse para São Paulo. Na capital paulista, dividia seu tempo entre os ensaios da peça Amado, uma homenagem ao escritor baiano Jorge Amado no ano do seu centenário (2012); o trabalho como bailarina do espetáculo Húmus (da Antonio Nóbrega Cia. De Dança) e as aulas de danças brasileiras, que passou a ministrar no Instituto Brincante. “Longe de casa e da família, começando a lidar com algumas dimensões da solidão e tendo que me reinventar em uma cidade onde ninguém sabia quem eu era, acabei entrando em um caminho de intensa autorreflexão, que me levou de volta à música”, conta Flaira, que acaba de iniciar sua carreira de cantora e compositora, lançando no começo deste ano, no Teatro Santa Isabel, o seu álbum de estreia, Cordões umbilicais.

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JU BRAINER/DIVULGAÇÃO

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MÚSICA

O disco, com viés autobiográfico, tem 10 faixas autorais (duas em parceria com Igor Bruno, uma com a amiga Camila Moraes e outra com Ulisses Morais) e mais uma música-bônus, composta e cantada à capela pelos pais da artista. A irmã mais velha, Flávia Ferro, entrou como parceira em uma das composições. “Ninguém na minha família é artista profissional, e sempre tive dificuldade em aceitar que ser artista era minha profissão. Incluí-los foi uma forma de me sentir incluída”, conta. O desejo de cantar veio, segundo ela, mais de motivações pessoais do que profissionais. “Eu era uma criança muito chorona, berrava por tudo, tanto que acabei ficando com calo nas cordas vocais. Acho que meus medos e muitos traumas eu guardei na garganta. Essa região do meu corpo é meu lugar de emoção. O lugar simbólico de expressão da minha vida. Tive vontade de cantar exatamente para desatar esses nós da garganta.” Para dar forma às suas ideias musicais, ela contou com a

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FREVO DE CASA

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ATUAÇÃO

Espetáculo busca reaproximar músicos e passistas

Bailarina utiliza-se do repertório vasto do frevo na criação de coreografias

Hoje, Flaria está morando em São Paulo, onde trabalha em projetos com Rosane Almeida e Antonio Nóbrega, no Brincante experiência de dois amigos músicos, que conheceu no processo criativo da peça Amado, Leonardo Gorosito e Alencar Martins. Quando o processo estava finalizado, a artista percebeu uma unidade conceitual que permeava as faixas e chegou ao título. “Minha mãe é obstetra e, por causa disso, assisti a vários partos. Naquele momento, essas imagens dos cordões umbilicais vieram muito fortes e se transformaram na música-título do CD – Somos tantos mundos dentro de outros mundos mais e estamos ligados por cordões umbilicais. Com esse disco, eu volto para o ventre da minha família, só que de outro lugar e de outra forma, mas sempre ciente do quanto, sozinha, eu não sou nada, preciso do outro para

me manifestar. Necessitamos de um suporte emocional comunitário, familiar, para nos ajudar a tomar nossas decisões individuais, e fazer as escolhas certas.” Na vida real, esse regresso não tem data marcada, mas é uma certeza. “Ficar aqui, para sempre, não. E, para minha sanidade mental, tenho que ir ao Recife pelo menos uma vez por semestre, para beber na fonte das minhas memórias, dos meus afetos, e não correr o risco de me perder de mim mesma.” Então, Flaira vai continuar em São Paulo por tempo indeterminado, desenvolvendo trabalhos de atriz, cantora e dançarina, e fugindo dos engavetamentos e dos rótulos.“O regionalismo das minhas composições está mais no meu sotaque pernambucano do que na musicalidade. Cada faixa tem um mote inspirador, um ritmo da cultura popular como ambiência sonora, seja maracatu, cavalomarinho, batuque paulista, e, é claro, o frevo. Mas tudo dissolvido, tudo bem-misturado”, comenta. Sobre suas referências musicais, Flaira diz que, mesmo sendo clichê, reconhece em Elis Regina a máxima excelência artística, na voz preciosa, na presença cênica e na interpretação dramática. Ao lado da eterna musa da Música Popular Brasileira, ela cita nomes como Gilberto Gil e o próprio Antonio Nóbrega, com quem trabalha há três anos. “Me interessa quem está fazendo fusão de linguagens, porque unir dança, música e teatro é o que me dá mais prazer. É muita crueldade com o ser humano querer que ele seja uma coisa só pelo resto da vida. A vida é muito grande para você querer colocar tudo numa gaveta, muito grande para você ser uma coisa só”, argumenta. Mesmo nessa fase, em que a ênfase é musical, Flaira Ferro mantém o teatro e, principalmente, a dança, muito presentes na sua cena, até porque, como ela faz questão de afirmar, não se trata de uma transição, uma troca ou predileção por uma determinada linguagem artística, mas de uma multiplicidade consciente. “Eu me sinto plena fazendo isso, deixando a arte me tomar por todos os poros.”

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KARINA FREITAS

CON TI NEN TE

História

IMAGEM Do autorretrato às selfies Gênero responsável por obras memoráveis da História da Arte chega ao século 21 numa perspectiva mais popular e menos autorreflexiva TEXTO Olivia de Souza

É difícil compreender por que o gênero autorretrato (self-portrait), na pintura e na fotografia, permaneceu até pouco tempo um tópico pouco discutido fora do âmbito artístico e acadêmico, ainda que reúna alguns dos melhores exemplares da História da Arte. Para o artista, historiador e curador Lawrence Gowing (1918-1991), há de se reconhecer sua importância: “The moment when a man comes to paint himself – he may do it only two or three times in a lifetime, perhaps never – has in the nature of things a special significance” (“O momento em que um homem vem a pintar a si mesmo – e ele pode fazê-lo apenas duas ou três vezes em vida, ou talvez nunca – tem na natureza das coisas um significado especial”). Gowing, ele próprio autor de muitos autorretratos, afirmava que a opinião do artista sobre si mesmo é parte de seu equipamento. Esse gênero surge, então, como um exercício de descoberta de si mesmo e experimentação de diferentes técnicas.

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Antes de se tornar um gênero fotográfico, o retrato já fazia parte do legado artístico. Os primeiros registros datam do Egito Antigo, em que faraó e família gozavam do privilégio de terem suas imagens eternizadas. Na Grécia Antiga, as moedas eram cunhadas com a imagem dos soberanos, e, entre os romanos, retratos eram utilizados como culto aos antepassados. Mas o conceito de retrato só foi popularizado a partir do século 15, durante a Renascença italiana, período marcado por importantes mudanças de caráter sociocultural, com o aumento da riqueza decorrente da ascensão da burguesia e a valorização do homem no sentido individualista. Jacob Burckhardt, no ensaio A cultura do Renascimento na Itália (1860), afirma que o período caracteriza-se pelo surgimento do culto à personalidade: “Desconhecendo limites, milhares de rostos adquirem feição própria (…); ser humano algum receia sobressair, ser e parecer diferente dos demais”.

“A priori, não havia, na antiguidade, essa compreensão do ‘eu’. Basta ver, por exemplo, como eram as representações plásticas do corpo na Idade Média. Eram sofridas, oprimidas, os corpos eram mirrados. Quando você sai daquilo e parte para o Renascimento, percebe toda uma mudança de característica, de posicionamento do que passa a ser um homem em sociedade. O corpo não é visto mais como um problema”, afirma o fotógrafo e pesquisador da UFPE, José Afonso Jr. É também nessa época que se refinam as técnicas de fabricação dos espelhos, e sua manufatura ganha escala comercial. Os espelhos passam a fazer parte da composição de pinturas, sendo integrante delas o reflexo do artista enquanto trabalha na concepção da obra, como nas pinturas de Jan van Eyck e Velázquez – O casal Arnolfini (1434) e As meninas (1656), respectivamente. Aproximadamente uma centena de autorretratos foram produzidos por Rembrandt (1606–1669), que, pintando-se obsessivamente e sem vaidades, produziu uma biografia visual única. Compondo o filão de prolíficos autorretratistas, está o pós-impressionista Vincent van Gogh: o Autorretrato com a orelha cortada (1889) é uma das famosas obras de sua vasta produção (foram mais de 30 autorretratos produzidos pelo holandês entre 1886 e 1889). Entre os exemplos mais contemporâneos, impossível não citar a mexicana Frida Kahlo (1907-1954), em que a vasta obra compreende, quase que em sua totalidade, autorretratos. Seus quadros refletem uma vida conturbada, marcada por dores e tragédias, mas também por superações, muita intensidade e paixão. “Pinto a mim mesma porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.” Seu marido, o muralista Diego Rivera, afirmou que Frida era “um exemplo único na história da arte de alguém que abre seu peito e seu coração para mostrar sua verdade biológica e como se sente com isso”.

FOTOGRAFIA E AUTORREFLEXÃO

Antes da consolidação do retrato como algo popular, o homem obtinha acesso à própria imagem apenas através do espelho ou da pintura, recurso

limitado aos aristocratas. Seu domínio público se dá no século 19. Em 1838, Louis Daguerre capturava com seu daguerreótipo a primeira imagem humana (um homem tendo seus sapatos engraxados), na famosa fotografia do Boulevard du Temple, em Paris. No ano seguinte, outro pioneiro da fotografia, o químico norte-americano Robert Cornelius, fotografava a própria imagem através de um daguerreótipo aperfeiçoado. O feito originou o primeiro retrato bem-sucedido de um ser humano, na América. Para reduzir o tempo de exposição, Cornelius optou por fotografar do lado de fora de sua casa, com luz natural. Depois, colocou a câmera num suporte firme e removeu a tampa da lente, permaneceu parado por alguns minutos, e depois a colocou de volta. A obra, que hoje faz parte da coleção da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, é reconhecida como o primeiro autorretrato fotográfico – a primeira selfie – e o ato foi reproduzido ao longo dos anos, tanto pelos grandes nomes da fotografia contemporânea, como pelos anônimos. No âmbito artístico, o autorretrato é uma manifestação que consiste em aprofundar a reflexão do sujeito fotógrafo/fotografado sobre si mesmo. Nesse sentido, ao longo da história da fotografia, transformou-se numa de suas principais formas de expressão, bem como de composição da imagem que o observador tem da personalidade do autor. Pioneiro de diversas técnicas fotográficas, o famoso retratista parisiense Félix Nadar (1820-1910) produziu uma extensa coleção de autorretratos, que o permitiu testar poses, gestos e posicionamento da câmera antes de virá-las para seus clientes, entre os quais estão Victor Hugo, Charles Baudelaire e Eugene Delacroix. No entanto, observando atentamente seus autorretratos, percebe-se que tal experimentação não se restringia meramente à técnica, segundo a descrição do J. Paul Getty Museum (Los Angeles) para uma de suas obras: “Talvez Nadar estivesse apenas olhando para um assistente que o ajudava a fazer a exposição, mas ele claramente pretendia projetar uma imagem de si mesmo como um artista romântico e intenso. (…) Essa fotografia foi feita no meio de sua carreira; Nadar já era um célebre escritor,

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

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CON TI NEN TE

História

caricaturista e fotógrafo de retratos. Ele estava, portanto, livre para brincar com a autorrepresentação, explorando as muitas personas que compunham um homem complexo e talentoso”. Devido à forte carga de temas sexuais explícitos, e ao envolvimento com a subcultura gay sadomasoquista de Nova Iorque, a obra de Robert Mapplethorpe (1946–1989), mesmo depois de sua morte, foi envolta em polêmicas que visavam diminuir sua importância. A provocação oriunda da sexualidade, tema recorrente em seu

trabalho, permitiu a Mapplethorpe ultrapassar os limites da fotografia convencional, tanto pelas escolhas estéticas, quanto pela técnica. Além de ser um excelente retratista (entre seus trabalhos de destaque, estão fotos de importantes ícones da cultura pop, como Andy Warhol, Keith Haring, Iggy Pop e Patti Smith), ele ficou famoso nas décadas de 1970 e 1980 por fotografar o nu masculino e o imaginário gay sexualmente explícito, uma ode à liberdade individual. O Tate Museum faz uma descrição exata de sua obra: “Elas não foram feitas para serem excitantes, chocantes ou obscenas, mas bonitas de uma forma tradicionalmente clássica”. Notório também por seus autorretratos, ele usava o próprio

corpo para pôr em questão gênero e sexualidade. O bad boy com cigarro na boca, expressão fechada e jaqueta de motoqueiro faz contraste à delicadeza e feminilidade de um Mapplethorpe travestido e sorridente – duas imagens que compõem capa e contracapa de um de seus livros, Certain people: a book of portraits. Tal dualidade o colocava em dois extremos, duas possibilidades opostas para a época – o Mapplethorpe censurado e isolado no submundo gay e o fotógrafo renomado que fazia fortunas –, enquanto refletia sua obra, na qual ele fotografou de tudo, de membros da realeza a prostitutas e transexuais. Indo de encontro à ideia tradicional, de que um autorretrato seria o ato de voltar-se para si, num exercício constante de introspecção, a norte-americana Cindy Sherman usou seu trabalho para explorar outras perspectivas. Protagonista de todas as suas fotografias, ela incorpora diversas personas em seus ensaios, com o objetivo de levantar uma série de reflexões e questionamentos. Sua performance não é, a priori, a respeito de si: em sua obra, põe em discussão vários estereótipos femininos, numa crítica ácida, irônica, por vezes grotesca, à visão da cultura ocidental a respeito do papel da mulher na sociedade. Na famosa série Untitled film stills (1977–980), graças à sua habilidade camaleônica, ela reproduz, de maneira bastante fiel, cenas cinematográficas (ou publicitárias) que compõem o imaginário produzido pela indústria cultural, nas sociedades de consumo. Por trazer à tona diversos personagens, facetas – e um distanciamento do “eu” fotográfico, do subjetivo –, muitos apontam que a obra de Cindy Sherman não se enquadra no gênero autorretrato. Já outros creem

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1-2 JAN VAN EYCK

Na pintura O casal Arnolfini (1434), pintor compõe seu reflexo no espelho, como se vê no detalhe

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FRIDA KHALO Artista mexicana afirmava que se retratava porque era sozinha e esse era o “assunto” que mais conhecia

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AS MENINAS No quadro de 1656, Velázquez cria reflexo improvável de si mesmoa

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VINCENT VAN GOGH Foi um prolífico autorretratista com obras importantes como Autorretrato com a orelha cortada (1889)

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que sua reflexão vai além de uma suposta “verdade individual do autor”, dirigindo-se a uma verdade coletiva.

SUJEITO-ESPETÁCULO

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“As primeiras câmeras, produzidas na França e Inglaterra, no início de 1840, tinham apenas seus próprios inventores para operá-las. Uma vez que não havia fotógrafos profissionais, não poderiam também haver os amadores, e o ato de fotografar ainda não compunha um ‘ato social’. Uma atividade artística, sim, mas com poucas pretensões de ser uma arte.” Publicado originalmente no Brasil em 1983, Sobre a fotografia, de Susan Sontag, do qual o trecho acima foi extraído, reúne seis ensaios escritos na década de 1970 pela filósofa e crítica de arte, em que ela analisa a fotografia como o fenômeno de uma civilização, desde a invenção do daguerreótipo, no século 19. Nele, Sontag anuncia uma fotografia cada vez mais desligada de uma expressão artística, e mais vinculada ao entretenimento de massa: “(…) como toda obra de arte produzida em massa,

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

CON TI NEN TE

História

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a fotografia deixa de ser praticada como uma forma de arte, pela maioria das pessoas. Faz parte, principalmente, de um rito social, uma defesa contra a ansiedade, e um instrumento de poder”. Se, nos anos 1970, Sontag alertava para uma possível utilização excessiva do aparato fotográfico, causada pela industrialização (e a consequente

popularização) do mesmo, atualmente, com a simplificação dos processos, resultado da digitalização da fotografia a partir dos anos 2000, da consolidação da internet banda larga e do surgimento das redes sociais, não mudou apenas o instrumento, que se multiplicou em diversos aparelhos. Mudou também o suporte, que migrou da cópia em papel

para as telas dos computadores, dos smartphones e tablets. Para o fotógrafo e pesquisador da UFPE José Afonso Jr., o advento das redes sociais multiplica as formas de construção da subjetividade, através do Facebook, dos blogs, dos sistemas de compartilhamento de imagens como Flickr, Instagram e tantos outros. “É natural que as pessoas estabeleçam uma narrativa da própria vida ‘editando’ esse cotidiano. Ou seja, fotografando e mostrando aquilo que lhe interessa. Do mesmo modo que um álbum de fotografia familiar é uma edição da vida privada em forma de imagem”, aponta. De acordo com o Oxford Dictionary, que em 2013 elegeu selfie como a palavra do ano, o tão inflamado termo define “uma fotografia que uma pessoa tira de si mesma, através de um smartphone ou webcam, que é compartilhada através das mídias sociais”. A selfie se afasta da noção tradicional do autorretrato por adquirir características menos comprometidas com a autorreflexão e mais engajadas com a escolha da imagem e seu compartilhamento. Suscitando, por exemplo, mais questionamentos acerca do narcisismo, expressão de si e objetificação. Segundo a concepção freudiana sobre narcisismo, para o sujeito conseguir estabelecer bons vínculos sociais, é necessário que, durante a infância, ele tenha sua afetividade estimulada, sobretudo pelas figuras familiares, de forma a se sentir amado. O modo de ele experienciar isso irá posteriormente

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6-7 MAPPLETHORPE Fotógrafo usava o próprio corpo para pôr em debate gênero e sexualidade 8 FÉLIX NADAR Retratista parisiense testou poses e posicionamento da câmera 9 CINDY SHERMAN Incorpora variadas personas em seus autorretratos 10 SELFIES Francamente narcísicas, mobilizam dos autores o imediato compartilhamento das imagens

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exercer influência nas relações que estabelece com as pessoas e consigo mesmo. Trazendo para o contexto contemporâneo o mito de Narciso – que sucumbiu à própria imagem ao apaixonar-se por seu reflexo nas águas de uma fonte –, essas relações que se estabelecem através das redes sociais não apenas estão ligadas ao simples ato do indivíduo de se expor; há também uma expectativa pela contrapartida do “outro”, através de comentários, elogios e curtidas. “Nós saímos um pouco da ideia das mídias de massa para as massas com mídia, e isso é algo forte, ou seja, a possibilidade e o poder de estabelecer

um registro, um comentário, um ponto de vista, e também a possibilidade de construir a nossa própria imagem de maneira permanente (não só a imagem visual, mas, através dela, a característica de uma imagem pública), esse aspecto está absolutamente atado, linkado com o que a gente pode entender de uma pessoa urbana, contemporânea. Esse fenômeno é tão forte, que fico imaginando como conseguimos viver tanto tempo sem isso”, indica Afonso. Já o jornalista e curador de fotografia Diógenes Moura aponta a proliferação das selfies como uma patologia dos tempos modernos. “Não é fotografia, é imagem. A questão do autorretrato

para mim, nesses 30 anos que escrevo e pesquiso, nasce sobretudo de uma pesquisa dos próprios fotógrafos, de uma sequência de descobertas, muitas vezes, imagino, ligada à lembrança. A diferença do selfie para isso é que a imagem do homem contemporâneo se transformou, se tornou fragmentada. A abundância de informações e de imagens no nosso cotidiano é tão grande, que nos fazem cegar, perder a sensibilidade do olhar. Essa necessidade de perpetuar algo que somos nós mesmos vem da nossa própria fragilidade, de um mundo cada vez mais fragmentado, frágil e violento”, opina.

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JOSH EVANS/DIVULGAÇÃO

Cardápio 1

INSETOS Vai uma baratinha crocante aí?

Chefs e pesquisadores combatem a fama negativa desses animais e defendem que eles podem ser iguarias sustentáveis e saborosas TEXTO Clarissa Macau

Num prato de macarrão com curry,

o chef Mauricio Santi, especialista em comida tailandesa, coloca larva de besouro, tenébrio gigante, baratas, grilos, casulo e larva de mosca, ao lado dos noodles. Todos fritos e temperados com ervas thai e chilli seco. Os ingredientes dessa versão do chamado maelang ruan tod ainda assusta muita gente. Quem nunca fez cara de nojo, ao ver na TV alguém mordendo insetos, como quem sacrifica a vida, em troca de um prêmio qualquer? “Há 20 anos, ouvíamos sobre promoções em shoppings. O participante ganhava carro se comesse baratas vivas. Mas o estigma está mudando”, aponta o zootecnista Gilberto Schickler, um dos fundadores da Nutrinsecta, maior produtora de

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GOURMET

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NA RUA

Larvas doces de abelha são ingredientes de ceviches Os insetos também podem dar novo sabor a sanduiches e pratos menos pretensiosos

consciência, decide ingerir a inimiga artrópode, inquieta os leitores. “Eu soube que o erro básico de viver era ter nojo de uma barata”, refletiu G.H.. No Oriente, esses insetos são consumidos sem cerimônia pela população, principalmente na Tailândia, onde os imigrantes da zona rural disseminaram o hábito nas capitais do Tigre Asiático. O chef Mauricio Santi estuda a cozinha desse país há 14 anos, trabalhou tanto em restaurantes locais da alta gastronomia, como o Nahn, de Bancok, quanto em barracas de rua, preparando espetos de inseto. “Lá, eles comem grilos e gafanhotos como petiscos. A alimentação mudará nas próximas décadas. Não é só uma moda e, sim, necessidade. São sustentáveis, ricos em proteínas, vitaminas, sais minerais – e éticos na sua produção, num mundo que em pouco tempo terá mais gente do que alimento ‘convencional’ para oferecer”, aposta. Os seres mais abundantes da terra – 80% dos animais são insetos – podem ser ingeridos de diversas formas. “De algumas espécies, comem-se os ovos; de outras, as larvas, ou só os adultos. Mas nem todos são comestíveis. A lagarta de fogo, por exemplo, produz toxinas”, pondera o biólogo Eraldo. O sabor do inseto pode ser salgado, ácido, aromático ou gorduroso, e delicado. Às vezes, associado ao gosto de camarão ou peixe. Animais, como o grilo, absorvem bem o sabor do tempero; os tenébrios têm um aroma

terroso; as larvas possuem sabor leve de cereais; e a barata possui um gosto forte, de frescor incomum. Segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), quase um terço da população mundial consome insetos por prazer. Mexicanos usam percevejos como condimentos e comem escamoles ou ovas de formigas vermelhas, uma especiaria local de luxo. Moscas trituradas em Uganda, na África, lembram o gosto de caviar. No interior do Brasil, formigas tanajuras são deglutidas cruas ou fritadas na farofa.

CONDICIONAMENTOS

“Será muito difícil convencer uma sociedade inteira de que os insetos são adequados ao consumo”, pensa Eraldo. O biólogo lembra que, nos países latino-americanos, mesmo com a presença da entomofagia, parte da população despreza o consumo e o associa à pobreza. “Há casos de pessoas que têm o hábito de consumi-los e que o abandonam por vergonha, para não serem categorizadas como índios ou pobres. Essa é a ideia dominante imposta sobre a cultura”, acredita. Para ele, a inserção dos insetos no mundo da gastronomia de luxo é a possibilidade de revalorizar o costume. “Todo mundo já comeu inseto, seja através de um cuscuz ou de uma farinha na qual fragmentos vêm inevitavelmente processados de fábrica. O corante natural do iogurte é feito de insetos, as cochonilhas. Mas podemos DIVULGAÇÃO

insetos do Brasil e a única do meio a possuir certificação de Fabricante de Ingredientes para Alimentação Animal. “Insetos comestíveis estão ganhando espaço na mídia, que ainda os retrata com certo sensacionalismo. A verdade é que práticas públicas de entomofagia estão se tornando comuns”, observa o biólogo especialista em entomologia, o baiano Eraldo Medeiros Costa Neto. Para a maioria dos ocidentais, comer insetos é ato culturalmente alienígena, repugnante. É assim que ele é expresso na grande mídia e mesmo nas artes. A barata, por exemplo, é metáfora de inferioridade e angústia em clássicos literários como A paixão segundo G.H (1964), de Clarice Lispector. A passagem na qual a protagonista, num fluxo de

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3 MAURICIO SANTI Especialista em comida tailandesa, ele tem usado os insetos, comuns nessa culinária, em pratos que inventa 4 PANQUECA O chef Chris Tonassen criou o prato utilizando gafanhotos 5 ENTOBOX Quatro estudante londrinos criaram o projeto no qual os insetos são introduzidos, de maneira abstrata, nos pratos

comê-los bem-feitos. Ninguém comerá barata doméstica, pelo meio que ela vive. É preciso saber a procedência, higiene e se são bichos bem-alimentados. Para a primeira degustação, é legal fritar o inseto, pois fica desidratado, crocante. A constituição do animal é a mesma do camarão, a quitina. Podemos temperálo, como fazemos com qualquer proteína, colocando limão, alho, ervas, ou macerá-lo em massas de bolos e pães”, diz Thiago Alves, presidente do grupo de entomologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Ele faz parte da equipe do 4º Simpósio de Entomologia Aplicada, evento recifense que, em 2014, discutiu, com a presença de especialistas do mundo inteiro, sobre Implicações econômicos da entomologia: do consumo ao controle de insetos. Na palestra de abertura do simpósio, ocorrido em novembro, histórias, receitas e o potencial econômico desse nicho culinário foram abordados pelo chef especializado em insetos, o gaúcho Rossano Linassi. “O maior entrave é a falta de legislação que permita o comércio formal. Isso dificulta a difusão, o desenvolvimento de tecnologias para a produção em massa e os custos do produto. Criar massivamente é diferente de criar para consumo próprio, o que é bem mais fácil”, comenta Linassi. Por exemplo, um casal de artrópodes é capaz de dar cria a 15 gerações, que podem ser guardadas em caixas e alimentadas com frutas e vegetais. O consumo humano de insetos é esporádico, por isso, o preço de um quilo de vermes sai, em média, por R$ 150, sete vezes mais do que a mesma quantidade de carne bovina. “Eles se comportam como produto artesanal e se inserem no contexto das produções de queijos frescos, mel e derivados que não são registrados pela legislação, mas que não proíbe o comércio. Para atender esse mercado em amplo

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Cardápio 4

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desenvolvimento, entretanto, são necessários parceiros que invistam em tecnologia, para redução de custos”, lembra Gilberto Schickler.

DEFENSORES

Esses exóticos alimentos são objeto de pesquisa há mais tempo do que se imagina. Em 1885, o inglês Vincent M. Holt escreveu o manifesto Why not eat insects?. Segundo Holt, durante o Império Romano, os epicuristas consideravam delicioso comer larvas de escaravelho com farinha e vinho. Ele resgata da época: “Um dia, os porcos foram tão rejeitados como os insetos são hoje. Porco era o animal sujo das escrituras bíblicas. (...) É preciso um grande esforço para superar o preconceito impregnado há eras”. No Brasil, já em 1587, o português Gabriel Soares redigiu sobre a formiga içá, em seu Tratado descritível do Brasil: “A estas formigas comem os índios torradas sobre o fogo; e alguns homens brancos que andam entre eles (...) o gabam de saboroso”. O mundo avança e as crenças mudam, é o que acredita o chef Rossano Linassi: “A maior resistência se dá a insetos tidos como transmissores de doenças. É mais psicológico que propriamente pelo sabor ou aroma”. O dono do restaurante D.O.M, Alex Atala, nas mesas-aulas que costuma apresentar, divulga a importância das formigas saúvas. Na Amazônia, um prato regional de tucupi preto com forte gosto de ervas chamou a sua atenção. “As ervas do tucupi eram a saúva. Tinha

Especialistas acreditam que o preconceito contra os insetos será vencido e, em 2020, será normal degustar a iguaria gosto de capim-santo, gengibre ou cardomomo, sem nenhum deles estar presente”, disse, em palestra de 2011 para o primeiro Simpósio MAD, promovido pelo restaurante Noma, na Dinamarca. Foi Atala quem apresentou o ingrediente para René Redzepi, o influente chef do Noma. O europeu incrementou o cardápio do estabelecimento com formigas e gafanhotos, além de organizar um grupo de estudos sobre o tema no seu instituto de pesquisa, o Nordic Food Lab (NFL).

UMA DELÍCIA

“Como tornar um inseto delicioso? Isso depende para quem estamos cozinhando e das propriedades do alimento”, afirma o responsável pelo projeto Finding the Deliciousness of Insects do NFL, Josh Evans. No laboratório, jovens cozinheiros testam uma cozinha sustentável e criativa. Larvas doces de abelha são ingredientes de ceviches, e gafanhotos compõem panquecas refinadas. “O sabor também depende da espécie, forma de crescimento e alimentação do animal. Um grilo alimentado com todo tipo ervas, plantas

de qualidade, num jardim florido, será mais saboroso que um grilo comendo ração de peixe e cenouras velhas”, diz. Não muito tempo antes da febre de temakerias e rodízios de sushi no Ocidente, a culinária japonesa era vista com desconfiança. “Peixe cru?”, era o que a maioria dos ocidentais se perguntava nos anos 1990. Aquilo era exótico e bizarro, mesmo após décadas da chegada dos japoneses em várias partes do mundo. Levou tempo para que a “moda” se tornasse cotidiana. Em Londres, inspirados nesse patinho feio gastronômico, quatro estudantes de design, culinária e engenharia desenvolveram o projeto Ento, no qual os insetos são introduzidos nos pratos de maneira abstrata. Os rolls e canapés misturando ervas frescas e vegetais lembram a comida nipônica. Os produtos são oferecidos em feiras gastrô e restaurantes no formato pop-up. Aran Dasan, um dos sócios do Ento, sugere: “Insetos estão numa posição única, na qual não temos preconcepção da forma de comê-los. É desafiador tentar construir algo que faça sentido às nossas mentes ocidentais”. Como qualquer alimento, insetos são ingredientes harmonizáveis. O chef Linassi observou que a acidez de um canapé de tanajuras combina com espumante brut, demi-sec e cerveja pilsen encorpada. Grilos cobertos com chocolate harmonizam melhor com cervejas escuras de amargor acentuado, como a Stout. Omelete de larvas combina com um vinho chardonnay reservado ou com cervejas suaves como a kolsh. “Tanajuras imergidas por alguns meses dão um sabor especial a cachaças ou outros destilados”, completa o chef. O NFL testa a fusão de artrópodes e bebidas. “Elaboramos um gim destilado com formigas para obter sabor cítrico e bem picante”, conta Evans. Especialistas acreditam que, em 2020, será normal degustar insetos. Estamos prontos para nos livrarmos de preconceitos? “O que era preterido no passado pode ser o alimento do futuro. Tudo é uma questão de quando, onde e a forma como se interpreta o que foi escrito ao longo dos séculos”, diz Linassi. Aran Dasan prevê: “Um dia, comer insetos será um programa atraente e divertido de se fazer com os amigos”.

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NA RUA O teatro fora da caixa

Encenadores que optaram pelas áreas abertas de atuação defendem o caráter empático e libertário do espaço público, em oposição às convenções da dramaturgia tradicional

SILVIO BARRETO/DIVULGAÇÃO

TEXTO Guilherme Novelli

Palco 1

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1 CAFURINGA Espetáculo é encenado na Praça do Carmo, no centro do Recife

A rua absorve tudo. Ambiente rápido

na resposta, crítico no olhar. Na rua, o que manda é o popular, porque o erudito afasta, joga contra o espaço e o tempo presente. Quem está à margem também tem lugar, tanto como artista quanto como espectador. Hamir Haddad, ator, diretor, referência como pensador do teatro de rua brasileiro, fundador do grupo carioca Tá Na Rua, em 1980, e que já trabalhou com os grandes grupos brasileiros, como o Teatro Oficina, costuma dizer que essa modalidade propõe uma mudança social no sentido da igualdade. “Ninguém é melhor que ninguém. Se um bêbado ou um mendigo vier, vai entrar na minha peça. A ética que é própria da rua me impede de agir como uma figura iluminada, que é superior aos outros porque faz arte”, explica Natália Siufi, artista fundadora do Coletivo Parlendas, grupo da cidade de São Paulo atuante nos protestos que irromperam na capital paulista em junho de 2013. O fenômeno brasileiro atual é complexo, formado por redes, como a Rede Brasileira de Teatro de Rua, o Movimento Escambo Livre de Rua e o Movimento de Teatro Popular de Pernambuco, que se articulam na defesa de causas sociais, como a reforma agrária, o direito à moradia, à saúde, à educação, num intercâmbio de ideias que perpassam o fazer teatral e um projeto social em prol da redução das desigualdades sociais brasileiras. Sempre foi considerado como uma arte abaixo dos grupos fechados, dos que fazem teatro para poucos. Nos tempos atuais, ainda é marginalizado e sobrevive sem uma política pública. O crescimento do teatro de rua se acentuou quando se descobriu que esse tipo de comunicação no espaço público faz muito bem à saúde de quem o exerce e de quem o assiste. Também cresceu pela falta de equipamentos para as apresentações. “Descobriu-se, também, que é um ato político tirar o espetáculo teatral de um público seleto, detentor do capital, estabelecido academicamente, para trazer de volta ao povo esse espetáculo que, na verdade, sempre foi dele”, defende Júnio Santos, ator, diretor que atua em Natal (RN) e articulador do Movimento Escambo Livre de Rua. No final da década de 1970, poucos grupos tinham alguma expressão

nacional: Alegria Alegria (RN), Imbuaça (SE), Tá na Rua (RJ), Ó nois aqui outra vez (RS), Galpão (MG). Agora, são centenas que cooperam uns com os outros e são influenciados pelos princípios de Amir Haddad. “Hoje, nós nos consideramos cenopoetas, ou seja, nos nossos espetáculos, a música não é maior do que a cena, que não é maior do que o figurino, o adereço, que não é maior do que a interpretação, que não é maior do que o brincante. Todos os elementos estão em papel de igualdade, numa cena poética, de força, a serviço de uma mesma causa”, argumenta Júnio. A partir de trocas em que os grupos se ajudam com alojamento e alimentação, há um desejo de levar a arte a locais descentralizados, como quilombos, assentamentos, seringais, pelas cinco regiões do Brasil, com um viés cênico orientado pela cultura popular.

INFLUÊNCIAS

Teatro mais antigo da humanidade, o de rua nasce como rito, comunicação, paródia, brincadeira, em lugares públicos, nas feiras, praças. “Quem constrói uma arquitetura teatral delimita paredes para a encenação, preços de ingressos e até mesmo categorias de pensamento (drama, comédia, tragédia); é uma classe interessada, ideologicamente, no tipo de comunicação que ele produz”, continua Natália Suifi. Desde os gregos e os romanos, sempre houve o interesse do estado e o de classes em utilizar o potencial comunicativo do teatro para algum fim. Esse teatro que existe desde os primórdios chega ao Brasil, nos dias de hoje, perpassado, principalmente, pela influência dos tipos cômicos da commedia dell’arte (Itália, séc. 19) e pelo teatro épico ou dialético de Bertolt Brecht (Alemanha, séc. 20), que advogava em favor de uma encenação que rompesse com a quarta parede criada pelo teatro burguês. “Os grupos que fazem parte das redes querem interlocução, diálogo, uma arte que comunique. Querem criticidade, uma diversão no sentido brechtiano da palavra: deleitar e instruir. Bem diferente do simples entretenimento”, explica a atriz.

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LUIZ FIALHO/DIVULGAÇÃO

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Palco

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Walter Benjamin, em seus textos sobre o teatro de Brecht, argumenta que, quando o rico e o pobre estão na plateia em posições iguais, isso é muito determinante. No teatro fechado, a plateia está escura e o artista ignora qualquer diferença de classe. A plateia é uma massa, simplesmente assiste ao pensamento do artista. Quando a iluminação clareia a plateia – e na rua a plateia é sempre vista –, abrese um diálogo com a mesma. O rico e o pobre estão em posições iguais, mas eles se colocam, e isso faz

aparecerem as diferenças de classe. “Benjamin fala disso: uma plateia que eu veja como uma grande audiência, uma assembleia que se diferencia. Aí, o ator passa a ser interlocutor, mediador, não mais alguém que quer falar para uma massa disforme.” Como costuma dizer Amir Haddad, “para se fazer um bom teatro de rua, você tem de ir primeiro ao Nordeste ver como é que se brinca”. No Nordeste, os atores de rua sonham em um dia chegarem a ser brincantes, ou seja, em voltar às origens. Mergulhando nessas

origens, conseguem se manifestar de forma a ter um diálogo aberto com a plateia. “Procuramos fazer espetáculos não apenas para assistir, mas para interagir. Os nossos mestres são os mestres populares. Eles nos dão elementos fantásticos para que possamos transformá-los dentro da linguagem do teatro de rua, mas sempre com uma certeza na cabeça: nós, na rua, não nos concentramos. A concentração não é própria do nosso teatro. Nele, nós nos manifestamos. A concentração separa, isola o homem, o ator nele mesmo. A manifestação envolve”, argumenta Júnio Santos. A maioria dos que hoje atuam no espaço aberto tem como formação o teatro convencional, chamado “teatro de caixa”, “da quarta parede”, que isola o ator da plateia, atribuído à escola russa de Constantin Stanislavski. As teorias do mestre russo preconizam a concentração do ator. “O ator se concentra para que possa entrar no personagem e para que possa sentir a dor e chorar por ela. Nós começamos a perceber que o brincante popular faz a mesma coisa, da mesma forma, mas ele não se concentra; ele manifesta a sua arte, deixa a sua arte clara, porque na rua nós estamos nus, abertos, envoltos por um público ávido por estar ali no lugar

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BANDO LA TRUPE Assim como outros grupos, este traz influências do teatro popular e das artes circenses

3-4 PROPOSTA

O Grupo Teatral Parlendas tem a preocupação de recuperar a história oral em seus espetáculos

da gente, ávido por aquela brincadeira”, diz o ator e diretor potiguar.

MEMÓRIA ENCENADA

Mestre Cafuringa ocupava o Pátio do Carmo, no Centro do Recife, com ervas, o boneco Joaozinho, outros bonecos e uma cobra. Esteve por lá durante 20 anos, até que um dia a igreja, em conjunto com a polícia militar, resolveu fazer uma faxina naquele pátio. Cafuringa foi um dos primeiros a serem varridos. Sendo expulso, entrou em processo de depressão, teve aneurisma cerebral e acabou morrendo. Havia sido proibido de apresentar-se no espaço público. O espetáculo Cafuringa, montado em parceria pelo Grupo Cafuringa (Recife), Bando La Trupe (Natal) e Cervantes do Brasil (Fortaleza), é fruto de uma ideia coletiva surgida em rodas de conversa do Movimento Escambo, a partir de 2010, com o intuito de preservar a memória dos mestres da cultura popular nordestina. “Quando começamos a nos apresentar no Pátio do Carmo, o público dizia: ‘Eu lembro dele aqui’. Quando viam os bonecos dele, diziam: ‘Ele voltou? Ele não morreu?’. Para muitos, ele desapareceu daquela praça, mas continuava vivo. É uma forma de

Anos atrás, a maioria das encenações de rua era adaptação de textos tradicionais. Hoje, existem autores para esse espaço preservarmos a memória histórica e cultural de uma pessoa, uma cultura, uma cidade, um povo”, diz Felippo Rodrigo, do Bando La Trupe, filho de Júnio Santos. Dessas histórias se revela o preconceito que existia contra esses artistas populares, a forma como viviam, as mentiras que contavam, como paqueravam, e isso vira teatro. Quando começa a ser representado, o público reconhece a importância cultural desses personagens. “É a história sendo contada a partir dos que vencem, mas são considerados perdedores. Quem se acha vencedor é quem está no poder, mas vencedores somos nós, o povo. Por isso é tão importante essa pesquisa: para mostrarmos os dois lados, já que os livros contam apenas a história do ponto de vista do poder, das figuras ilustres”, defende Júnio Santos. Os protagonistas do teatro de rua

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funcionam como anti-heróis da história contada nos livros didáticos. Uma simultaneidade: música, atores, o cachorro que passa, uma dramaturgia que é a própria cidade; e isso afeta linguagem e estética. No final da década de 1970, a maioria das peças encenadas na rua era adaptação de textos do teatro convencional. Hoje, existem em todos os lugares autores específicos do teatro de rua. Eles escrevem de forma mais livre: os textos não têm rubrica, nem determinação de cena. São atemporais. “Nós nos descobrimos enquanto dramaturgos a partir do momento em que nos libertamos da regra da escrita que nos limitava. A nossa dramaturgia não é apenas o texto. É o todo. Estar na rua numa roda significa que o lugar passa a fazer parte da minha dramaturgia”, diz Júnio Santos. Na rua, há uma liberdade para mudar o curso do seu espetáculo, transformar a dramaturgia naquele momento. “Quando descubro um prédio em que posso fazer uma cena e depois voltar ao espaço cênico, quando saio de um local e depois volto para ele, começo a dizer que não tenho grades, não estou preso numa regra estabelecida pela dramaturgia. A dramaturgia se libertou e agora faz parte de uma grande manifestação”, afirma Júnio Santos.

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Sonoras EXPERIMENTAL Raro estudo de percussão

Em Território XXI, o Grupo de Percussão do Nordeste realiza trabalho em que instrumentos coadjuvantes na música exercem protagonismo com excelência TEXTO Fernando Athayde

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Formado em 1997, na Paraíba, durante o 2º Encontro Nordestino de Percussão, o Grupo de Percussão do Nordeste acaba de lançar o primeiro disco de carreira, o álbum duplo Território XXI, um apanhado de temas musicais centrados na exploração do ritmo e da percussão erudita. O lançamento, gravado inteiramente no Recife, ao longo de 2013, divide a experiência do ouvinte entre a contemplação de belas melodias e a provocação a compreender, de fato, até onde vão os limites da composição. Ao todo, são 11 faixas, das quais sete foram compostas especialmente para o grupo e quatro são resgates de peças clássicas para o gênero no Brasil. Encabeçado pelo músico e professor-assistente da UFPE, Antônio Barreto, o projeto é surpreendente, à medida que faz uso exclusivo de instrumentos

Destaca-se na gravação a busca pela reprodução fiel dos timbres naturais de todos os instrumentos utilizados de percussão para dar forma e linearidade às melodias e harmonias. A primeira faixa do segundo disco, Circuloníricos, de autoria de Silvia de Lucca, é um exemplo perfeito disso. Composta para septeto de percussão e piano, a música traz arranjos assobiáveis, ainda que formados apenas por instrumentos rítmicos. Ao longo de seus oito minutos e meio de duração, são recorrentes os sentimentos de singeleza e alegria causados pelas escolhas harmônicas que a formam. Por outro lado, instrumentos notórios da percussão erudita, como a caixa branca, a marimba e o vibrafone, aparecem pontualmente como solistas no álbum. Assim, atuando tanto sob complexidade da harmonia quanto no minimalismo da performance solo, Território XXI possui uma gama de texturas sonoras ampla e intrigante. Em

Ensaio 79, peça do compositor brasileiro Mário Ficarelli (falecido em maio de 2014) para quinteto de piano e tambores, é notável como está disposta a presença dessa dinâmica. Nela, o virtuosismo rege a composição delimitada pela oscilação de andamento, intensidade e tonalidade. Outra observação interessante é que o Grupo de Percussão do Nordeste buscou reproduzir com fidelidade os timbres naturais de todos os instrumentos utilizados. Dentro do meio erudito, isso é algo imprescindível para a apreciação das obras. Mesmo hoje, época em que o mundo da música vive um efervescente desenvolvimento das tecnologias de gravação e tratamento de áudio, a utilização de tais recursos só aparece em Território XXI, quando há a necessidade. Gravado no Estúdio Carranca e no Estúdio do Departamento de Música da UFPE, tanto a mixagem quanto a masterização do projeto buscam permitir que cada peça soe exatamente como ela soaria ao vivo. Essa escolha atinge a presença das dinâmicas sonoras ao longo da obra, o que significa que o nível de compressão aplicado na pósprodução de cada elemento gravado é bastante suave. Como consequência disso, estão preservadas todas as variações de timbres provenientes da força com que foram tocados os instrumentos abordados em Território XXI. Num trabalho do gênero, em que o virtuosismo técnico é o núcleo da performance, esse cuidado é fundamental, pois faz com que o ouvinte tenha acesso pleno à interação entre o músico e a percussão tocada por ele.

ESTUDO DO RITMO

Presente na vida do homem desde o período paleolítico, quando começou a ser explorada através dos batuques feitos a partir de bastões de madeira e pedra, a percussão só veio ganhar espaço dentro da música erudita em meados do século 17. A princípio, foram instrumentos de marcação rítmica, como os tímpanos, os primeiros elementos percussivos incorporados ao universo sinfônico.

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Sonoras Gradualmente, porém, o desenvolvimento da experimentação sonora e a busca natural por novos timbres e sons levaram outros instrumentos a dar vida às composições eruditas, como a caixa clara e os pratos. Enfim, na década de 1940, a percussão passou a atuar como solista, servindo de base para um complexo estudo acerca das propriedades rítmicas do som. Na música popular, o ritmo é associado quase sempre aos compassos quaternários, em que o andamento de uma música é contado de quatro em quatro tempos. Na música erudita, porém, esse padrão rítmico é apenas um dentre tantos outros recorrentes. No trabalho do Grupo de Percussão do Nordeste, a marcação do andamento dos temas musicais leva a possibilidade ao limite e aparece configurada nas mais diversas formas. Um aspecto digno de atenção dessa característica reside no fato de que, quando um instrumento de percussão aparece isolado no disco, possui uma função ao mesmo tempo rítmica e melódica, afinal, ele é o acompanhamento de si mesmo. É algo tão complexo, que acaba soando apenas como um conjunto de frequências sem nenhuma conotação musical aparente. Graças a isso, algumas das

composições de Território XXI – como é o caso de Sorriso bonito, terceira faixa do álbum, da autoria de Tiago Lima e composta para quinteto de percussão – podem soar estranhas ao grande público, habituado a ouvir apenas os moldes rítmicos mais difundidos na música popular. John Cage, compositor norte-americano pioneiro do gênero da música aleatória e estudioso da música erudita do século 20, afirmou que “a maioria das pessoas escuta o som esperando escutar mais que o próprio som. Elas esperam ouvir o significado contido nele”. Tal análise traduz em poucas palavras os porquês que envolvem essa possível dificuldade de assimilação das peças solo para percussão erudita hoje. E, mesmo sendo incorreto afirmar que a música apresentada em Território XXI habita o mesmo campo conceitual que a obra de Cage, o raciocínio dele pode ser aplicado a essas circunstâncias facilmente. Assim, é fundamental notar que grande parte das pessoas, ao ouvir uma música, espera encontrar uma interação entre os arranjos dela, como se a composição fosse obrigatoriamente formada pelo agrupamento coeso de mais de um som. Na prática, esse pensamento é uma herança da música popular, algo distante de um trabalho como o realizado pelo Grupo de Percussão do Nordeste, em que o foco é o estudo aprofundado sobre como os elementos percussivos podem integrar o ato de compor. Sejam eles parte de algo maior, ou o próprio núcleo da composição.

Päntano EP

LISÉRGICO, SOMBRIO E INSTIGANTE Päntano EP é o nome dado à união das sete composições que formam o disco de estreia da banda pernambucana Päntano, lançado na internet recentemente. O álbum, que poderia ser dividido em duas faces, surge da fusão entre três canções e quatro temas instrumentais, no mínimo, encantadores. Conceitualmente, o trio formado por Daniel Barreto (cordas, vocais), João Leal (bateria) e Diego Dornelles (cordas, teclas) articula a junção de sonoridades e simbologias presentes na história do século 20, muitas vezes postas nas entrelinhas entre aquilo que aprendemos na infância e o que conhecemos depois, na vida adulta. Lisérgico, sombrio e instigante, Päntano EP resgata o som do mellotron eternizado pelos Beatles, e soma a ele a poesia marginal de quem vive a experiência do dia a dia como uma constante busca pelo prazer. Econômico, o disco possui arranjos construídos minuciosamente. Dessa forma, cada solo de guitarra ou intervenção harmônica de teclas soa especial. O cuidado com os timbres, com a mixagem e a masterização, que ficou a cargo de Djalma Rodrigues e Bruno Freire, é louvável e dá personalidade às canções. Um bom exemplo disso pode ser observado no tratamento de áudio de todos os vocais do disco, cuja gama de frequências ressaltadas e compressão nos sugerem ser exatamente aquilo de que a música precisava. Incorporando a ideia de que o som está vivo e em constante transformação, a banda lançou Päntano EP num formato audiovisual. Cada faixa foi disponibilizada através de montagens em vídeo. “Nós temos um cuidado grande em relação à nossa estética. Nos inspiramos muito em assuntos que beiram a ficção e o misticismo, assim como a relação de lugares, povos, figuras e instrumentos que proporcionaram experiências únicas em seus tempos”, afirma Daniel. (F.A.)

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INDICAÇÕES POP ROCK/ALTERNATIVO

INDIE ROCK

IDM/ AMBIENT

Pop Fuzz

Warp Records

PATO FU Não pare pra pensar

SUPER AMARELO For your babies

No décimo disco de carreira, o Pato Fu retorna ao gênero que o consagrou. Depois de mergulhar no experimentalismo e revisitar os clássicos do rock’n’roll em Música de brinquedo (2010), a banda volta a unir melodias assobiáveis à loucura digital da música eletrônica. Não pare pra pensar é um disco divertidíssimo, tanto para quem só espera poder cantar junto com as vozes de John Ulhoa e Fernanda Takai quanto para aqueles interessados em escutar um belo trabalho de engenharia de áudio.

Banda alagoana de rock sujo, “garageiro”, intenso e romântico. Levou alguns anos para que o primeiro disco de carreira ficasse pronto, mas enfim ele chegou. São 10 canções que trazem consigo a alma do indie rock da década de 1990 e uma crônica da intrigante cena independente de Maceió. Entre dissonâncias, distorções e letras centradas naquele amor ingênuo que permeia a passagem da adolescência para a vida adulta, For your babies pode ser somente um disco pop, mas também é sensível e contagiante.

Rotomusic/Sony

AUTECHRE Exai

HIP HOP

Décimo primeiro disco do duo britânico de música eletrônica. Acompanhando de perto o desenvolvimento da tecnologia de manipulação de áudio, o Autechre traduz o futuro em som. Ao escutar o novo álbum, que não passa de uma ordenação equivalente de texturas sonoras eletrônicas e analógicas, a sensação que fica é a de estarmos diante de algo à frente do próprio tempo. Exai é um disco que remete à meditação e ao equilíbrio, mas dentro de uma nova era, em que o virtual e o real coexistem.

Ninja Tune

THE BUG London zoo O artista britânico Kevin Martin ataca com o pseudônimo The Bug e dá à luz a um disco interessantíssimo. Ritmicamente eletrônico, o álbum conta com um trabalho de programação apurado, em que cada nova faixa instiga o ouvinte à próxima. Além disso, Martin faz parcerias com diversos artistas ao longo da obra, dinamizando a mixagem e masterização de cada música. O destaque é para a faixa Poison dar, criada em conjunto com a cantora Warrior Queen.

Disco solo

MÚSICA COMO NUM SONHO

Há mais de uma década atuando como baterista, o pernambucano Arthur Azoubel acaba de lançar seu primeiro trabalho solo, o disco The dream fabric, em que não há sequer um som de bateria acústica. Conhecido na noite recifense pelo domínio

apurado do jazz e do blues, o músico de 27 anos surge agora representando ritmos menos conhecidos do público, como o dream pop e o shoegaze. À frente das baquetas da banda recifense de indie rock, Team.Radio por sete anos, Azoubel conheceu e lapidou as sonoridades etéreas e cativantes desses gêneros, cuja influência apreendida está em peso no álbum recém-lançado. As sete faixas que o compõem aparecem entrelaçadas, convergindo para um significado singular, no qual som e ideia estão unidos. É um estudo sobre o universo onírico sob o qual repousa o cotidiano das pessoas. “O sonho foge totalmente aos padrões sequenciais e à linearidade de nosso mundo consciente. Os únicos cortes que temos no dia a dia ocorrem exatamente ao adormecermos e acordarmos. Embasado nessa reflexão, criei as músicas do meu disco, cujo mote é ‘ilustrar’ um ambiente

subjetivo através do som”, conta Arthur. Assim, The dream fabric é, sobretudo, uma representação sonora do ato de sonhar. À medida que uma música vai terminando, a próxima começa sem que haja um silêncio entre elas. Como num sonho, onde as situações mudam radicalmente, sem que o processo da mudança seja notado, as composições de Azoubel são quase como uma faixa única de áudio, regida discretamente pelas mudanças de dinâmica e tonalidade. Produzido com cautela pelo conterrâneo Roberto Kramer e gravado ao longo de 2013, o disco de Arthur Azoubel tem uma sonoridade singela. Abusando de sintetizadores, drum machines e reverbs, The dream fabric é um trabalho que vai além das estruturas básicas da canção. Texturas sonoras servem para dar a forma e a suavidade necessárias à proposta do compositor. Predominantemente instrumental, o álbum utiliza vocais pontualmente e se define como um trabalho situado entre o equilíbrio trazido pela meditação e a beleza que a melodia pode ter. FERNANDO ATHAYDE

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TERESA MARGOLLES/DIVULGAÇÃO

Visuais

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TERESA MARGOLLES Desejo de poetizar as tragédias cotidianas

Mexicana toma partido das linguagens artísticas para expôr situações de violência e morte no seu país, mas acaba discutindo processos semelhantes mundo afora TEXTO Luciana Veras

“Em outubro, também, foi encontrado o cadáver de outra mulher, no deserto, a poucos metros da estrada que une Santa Teresa a Villaviciosa. O corpo, que se encontrava em avançado estado de decomposição, jazia de boca para baixo, vestindo moletom e calça de material sintético, em cujo bolso se encontrou um crachá segundo o qual a morta se chamava Elsa Luz Pintado e trabalhava no hipermercado Del Norte. O assassino ou os assassinos não se deram ao trabalho de abrir uma cova. Tampouco se deram ao trabalho de penetrar muito no deserto. Simplesmente arrastaram o cadáver uns tantos metros e lá o deixaram.” As frases iniciais da página 378 de 2666, livrosíntese do escritor chileno Roberto Bolaño, publicado no Brasil em 2010, poderiam pertencer a alguma obra da artista mexicana Teresa Margolles, exposta em Enquanto for

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1 DESTROÇOS A artista registrou fachadas de edificações abandonadas por conta da violência em Ciudad Juárez

embora existam diversas hipóteses acerca do sumiço, as autoridades policiais e o governo não ofereceram uma explicação oficial. “Penso que Bolaño morreu antes do tempo. Se ele estivesse vivo, e seguisse escrevendo, ficaria horrorizado”, comenta Teresa, em entrevista à Continente. Nascida em Culiacan, no estado de Sinaloa, há 52 anos, “uma zona tão quente como o Recife”, Teresa Margolles trabalha e mora em Ciudad Juárez, colada na fronteira com os Estados Unidos (bem próxima a El Paso, no Texas). É Ciudad Juárez que aparece, por exemplo, em Esta finca no será demolida, que reúne dezenas de fotografias de edificações abandonadas, tiradas entre 2009 e 2013, documentando o êxodo dos moradores diante da violência calamitosa. Há cinco anos, 3,7 mil pessoas foram assassinadas na localidade, como atesta uma outra obra, PM 2010, em que a artista apresenta, em ordem cronológica, as capas de um periódico local com o costume de estampar, na primeira necessário, em cartaz até 8 de março na Galeria Vicente do Rego Monteiro, na Fundação Joaquim Nabuco, no Derby. Por que a insinuação entre ficção e realidade? Difícil seria não conjurá-la ante semelhanças bizarras. Em A parte dos crimes, uma das cinco subdivisões de 2666, Bolaño descreve com minúcias milhares de assassinatos de mulheres, transcorridos na cidade de Santa Teresa e nos municípios vizinhos do estado de Sonora, no norte do México. Iniciados em 1993, e continuando na crônica policial urbana e bolaniana ao longo de vários anos, os crimes ficcionais prescreveram, após pouco ou nenhum avanço nas investigações. Mas os feminicídios que outorgaram uma fama indesejada a Ciudad Juárez persistem, assim como outros assombrosos atos. Em setembro de 2014, desapareceram 43 estudantes mexicanos em Iguala, cidade ao sul do país. Até hoje,

“Utilizo a arte como uma trincheira, para possibilitar que tudo qualquer um possa ver, sentir e se emocionar” Teresa Margolles página, imagens de cadáveres e fotos de mulheres em poses sensuais. Estaríamos anestesiados frente a tanta violência? “Não creio que estamos anestesiados, mas o que fazemos? Como trabalhamos a memória? Não encontramos como transmitir isso. Como artista, sirvo como uma peneira para converter uma tragédia, para que todos que não têm relação com Ciudad Juárez, por exemplo, possam ver. Como fazer com que alguém que não esteja ligado à tragédia a rechace? O PM é um

periódico que você, que mora aqui, não pode ver, mas esse cadáver está na sua capa. É muito forte em um dia, imagine então todos os dias. Durante um ano, houve 3,7 mil assassinatos em uma única cidade. Utilizo a arte como uma trincheira, para possibilitar que tudo qualquer um possa ver, sentir e se emocionar”, responde Teresa Margolles. Em Trepanaciones (sonidos de la morgue) – trabalho de 2003 que consiste exclusivamente da audição da gravação do ruído que uma serra faz, durante uma autópsia, ao abrir um crânio humano (no caso, de uma pessoa assassinada) –, Teresa Margolles traz um pouco da sua experiência nos necrotérios. Formada em Ciências da Comunicação pela Universidad Nacional Autónoma da Cidade do México, ela também estudou Medicina Forense. “Sou artista e entrei no morgue não apenas para saber anatomia, mas para poder compreender o corpo. Quanto ‘vive’ um cadáver? Aprendi o que é o corpo social, o que significa esse corpo que está ali, sem vida, enquanto alguém o espera lá fora. O necrotério me ensinou que, dentro daquelas paredes, está um corpo que tem lá fora uma família, uma composição familiar que nunca mais será a mesma. Dimensione isso para um país. Você acha que o México vai ficar igual, depois do sumiço desses 43 estudantes? Que país queremos que siga adiante?”, questiona. Para o curador da mostra, Moacir dos Anjos, Enquanto for necessário expande essas indagações e faz o espectador cotejar o que é visto com a realidade de seu próprio lugar. “O que move esses trabalhos não é a mera vontade de causar um mal estar no outro, mas o desejo de, por meio do oferecimento de algo que é próximo da matéria morta, avizinhar fatos, gentes e lugares que são arbitrariamente distanciados pelas narrativas oficiais da violência. Talvez sugerir que não há quem não esteja de algum modo implicado no estado de coisas que leva tanta gente à morte abrupta no México”, observa. “No entanto, o trabalho de Teresa mais e mais alcança lugares afastados de Ciudad Juárez e mesmo do

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

2 ANTONIO DE LA ROSA/DIVULGAÇÃO

2-4 BORDADEIRAS Mulheres são convidadas a participar de produção de peça, enquanto discutem as circunstâncias de violência a que estão submetidas 3 MARGOLLES Além de Comunicação, a artista mexicana também estudou Medicina Forense, trabalhando em necrotérios

Visuais 3

México, mas que com essa cidade e seu país partilham a necessidade de tornar visível e de lidar com a violência que atinge, em particular, populações que não possuem o que tantas outras já têm, como direitos mínimos assegurados. Por exemplo, ela desenvolve uma série de ações, em localidades diversas, com grupos de mulheres bordadeiras que conversam sobre o medo e o risco que habitam suas vidas, ao mesmo tempo em que trabalham sobre um tecido previamente embebido em sangue de uma pessoa assassinada na cidade onde moram”, completa.

TRAGÉDIAS BORDADAS

No Recife, Teresa foi ao Alto José do Pinho para reproduzir o ritual que encenara no Panamá, na Nicarágua, na Guatemala e em Ciudad Juárez, com as indígenas tarahumaras. No adensado bairro da Zona Norte

5 PM 2010 Na videoinstalação, Teresa registra capas de tabloide sensacionalista que exibe imagens de crimes ao lado de mulheres sensuais 4

A exposição não visa causar mal-estar, mas evidenciar a proximidade que há em realidades de países diferentes do Recife, deu às bordadeiras um lençol que tocou a cabeça de um jovem assassinado a tiros, mas o que se ouve no registro audiovisual é diferente. “O que escutamos, e por quem aquelas mulheres trabalhavam, é a história de uma mulher de 28 anos que foi assassinada e era prima de uma bordadeira. Vivia na rua, não possuía documentos, embora tivesse filhos e familiares que a reconheceram. Mas o estado não a reconheceu, era o momento da Copa do Mundo, e ela passou nove dias no

IML, antes de ser enterrada. Eu disse que elas tinham ampla liberdade para costurar suas ideias no lençol como se fosse um mural, e aí uma delas começou a dizer o que se passou com sua prima. Então as demais começam a desenhar com o que ouviram de sua amiga, e é a história desse feminicídio que está ali. O corpo foi colocado em um lugar com pouca profundidade, um córrego de água suja, e a ideia é pensar em como a memória está curta… Passa um papel de jornal, passa uma laranja, passam folhas, ou seja, nada se detém. A memória é tão curta, que uma tragédia tapa a outra”, explica a artista mexicana. Na abertura da exposição, em dezembro passado, as bordadeiras finalizavam o mural, emocionando Teresa: “O cuidado e a delicadeza com que estavam honrando a memória de uma mulher desconhecida me tocaram

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muito. Qual o propósito de desenterrar essa história? Ao falar dela, elas a tornaram pública, devolveram sua identidade. Qualquer morte é uma tragédia e isso tem que ser falado”. É sobre a banalidade com que se lida com a violência cotidiana, com os crimes contra mães, esposas e amantes, que também versa a exposição, a primeira individual dela no Brasil. “Quando eu fui à Guatemala, havia 600 mulheres assassinadas em um ano. Quem sabia disso? Ninguém. É um embargo, não se fala, não se conhece. Desgraçadamente, a violência é agora um elo, é algo que nos une. Quando se pensa no México, é tequila e mariachis; quando se fala do Brasil, é samba, Carnaval, futebol, biquínis, mas nós sabemos o que está acontecendo nas ruas. Que país permite que se matem 3,7 mil pessoas em um único ano? Por que em 2010 ninguém se indignou? Agora o México está indignado por causa de 43 jovens, cujo único delito era ser pobres e querer aprender”.

Fazer arte, para Teresa Margolles, é prosseguir na tentativa de poetizar e dar visibilidade às tragédias do cotidiano – enquanto for necessário. “Aquelas casas retratadas em Esta finca no será demolida já não existem mais. Foram abandonadas pelo medo, pelo temor. E agora a especulação imobiliária as derrubou de vez. Quem sabe dentro de alguns anos não surjam essas grandes edificações de 30 andares como existem no Recife? As pessoas que moram nesses prédios acham que não têm nada a ver com a violência. Mas, quando assassinam alguém na rua, e o corpo é removido, o sangue fica na areia. Esse sangue seca, o vento o leva, viajando quilômetros, e faz esse pó cair na nossa cara. E esse vento nos toca… Estamos todos conectados. Se não fizermos nada, esse vento estará cada vez mais próximo. Só vou parar quando nascer um menino que não tiver seu pai e sua mãe assassinados, que possa olhar para trás e ver sua família inteira lá”, arremata a artista.

Marginais heróis

TRÊS VEZES CARTAZ O cartaz como centro dos debates. Da simbólica resistência (física ou afetiva) de uma peça que traz consigo uma efemeridade natural às mudanças e possibilidades provocadas pelos avanços tecnológicos, a exposição Marginais heróis, que acontece na Galeria Amparo 60, inspira-se no lema do tropicalista Hélio Oiticica (“Seja marginal, seja herói”) para dialogar sobre linguagens, técnicas e tempo. As obras, apresentadas inicialmente em Londres, com passagens por Berlim e Buenos Aires, são dos artistas Rico Lins, designer, diretor de arte e também curador do projeto; J. Borges, mestre em cordel e reconhecido xilogravurista nascido em Bezerros, Pernambuco; e H.D. Mabuse, pesquisador e consultor em design do C.E.S.A.R. A abertura e o debate com os artistas acontecerão no dia 5 de fevereiro, às 19h, enquanto a visitação segue até 7 de março, de segunda a sexta-feira (9 às 13h; 14 às 19h), e aos sábados, com agendamento prévio. O projeto conta com recursos do Funcultura, produção-executiva de Ticiano Arraes e coordenação de produção de Renata Gamelo, e mistura as diferentes dinâmicas dos artistas, reforçando a estética de cada um. Rico Lins discute mudanças e hibridismo, a partir da criação de cartazes com impressões em três camadas: a primeira impressa digitalmente, a segunda, em tipografia, e a terceira, em serigrafia (imagem acima). J. Borges incorpora suas tradicionais matrizes de xilogravura à exposição, enquanto H.D. Mabuse realiza instalação digital que permite composição do público (usuários do Instagram podem participar enviando imagens com a hashtag #marginaisherois). A intenção da mostra é gerar um espaço que demarque cada técnica, provocando um diálogo entre elas, uma fluidez de tecnologias e técnicas. A Galeria Amparo 60 está localizada na Av. Domingos Ferreira, 92, Boa Viagem. LAÍS ARAÚJO

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José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

NUM REINO À BEIRA-MAR

Não gosto de matéria que não diga logo na primeira linha sobre quem se fala. Gosto dos russos que começam assim: “Ivan Ivanitch Lapkin, jovem cavalheiro de aspecto agradável, e Ana Semiônovna Zamblítzkaia, jovem senhorita” (Lendo Tchekov, tradução de Tatiana Belinky, Ediouro, 2005) ou “Evguêni Ivânovitch Irtênev tinha uma brilhante carreira pela frente” (Tolstói, O diabo, tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, L&PM, 2010). Neste caso especial, porém, não me posso permitir, nomeando-a, expor a pessoa de quem falo, moça exemplar, que tanto prezava a discrição. Até na morte. Naquela época, início da década de 50, morte aqui no Recife não era coisa tão banal como hoje e, com certeza por isso, para mim nunca foi nem será banal. Tratava-se de criatura de nossa idade, vinte anos no máximo, e que não demonstrava conflito nenhum. O mundo era outro. Qualquer pessoa aqui no Recife podia andar de noite na rua, até a noite toda se quisesse, sem medo de assalto. Não havia a indústria de horrores.

Uma morte se sentia, agregava-se ao nosso íntimo criando uma espécie de parentesco até entre desconhecidos. Ainda mais pessoa com quem se conviveu, que se tornava parte do nosso ser, ficando aquela dor muda dentro de nós até hoje. O tempo não pesa, o tempo não passa, em relação a isso. Agora, os anos chegando, os conhecidos morrendo, sinto essa pessoa (como gostaria de dizer o nome dela!) cada vez mais perto. Com a proximidade da minha própria morte, que ninguém vive para sempre, me sinto capaz de falar quase de igual para igual, como se o fato de ela ter morrido não contasse, não fizesse lá grande diferença; também porque dentro de nós ela não morreu. Nós é que morremos todos os dias: não é verdade, Octavio? não é verdade, Egydio? E outro fenômeno. Como ela estava com vinte anos ou menos, eu, nos meus oitenta e dois, quando penso nela fico com os mesmos vinte ou menos dela, ela intacta, bela e risonha depois de mais de seis décadas do

seu suicídio. Como não vi a velhice dela nem ela a minha, continuamos, um para o outro, jovens. Isso além de eu garantir, enquanto existir, a sua existência, garantindo-lhe também a juventude, a jovialidade, a beleza, a inteligência e tudo o mais que era dela e continua sendo. De quebra, também salvo a minha juventude, pois não conseguiria falar-lhe na postura de velho. Nem imaginá-la, de jeito nenhum, velha: nem fisicamente, na face, nos gestos, no andar, nem portadora de currículo carregado de títulos e outras importâncias inalcançáveis. Devo isso a ela, a obrigação de continuar jovem, limpo, requisito indispensável para falar com ela. Caso contrário ela não me reconheceria. Fazíamos o curso clássico no Colégio Osvaldo Cruz. Te lembra, Terezinha? Te lembra, Alencar? Fizemos vestibular no mesmo ano para a Faculdade de Direito do Recife (aposto como ela tirou a melhor nota). Você sabia que eu de nada sabia mas me tratava como se eu fosse alguém, como se eu não fosse qualquer um

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REPRODUÇÃO

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(e eu exatamente era o rapaz sem parentes importantes, sem dinheiro no bolso, vindo do interior, como diz a música). Você não se pintava. Ou talvez alguma vez usasse batom (acho que as moças naquela época não se pintavam nem pintavam as unhas, não lembro). Naquela época as saias eram abaixo dos joelhos (e moças, algumas, usavam calças compridas pelo carnaval). E (me perdoe a falta de respeito, de jeito nenhum falaria disso em sua presença) acho que você não raspava as pernas: não combinava com o seu sorriso. Nunca a vi rir, dar risada de boca aberta. Falava baixo, educadamente (não lembro de sua voz a não ser isso, que falava baixo, educadamente). Seus dentes eram perfeitos e, pelo que guardo na lembrança tão distante e juntando com a memória fraca, um pouco miúdos, dando um ar um tanto infantil em contraste com a sua lucidez, seu aprumo, combinando com a discrição do sorriso sempre na hora certa sem um segundo a mais. Não sei de ninguém que lhe tenha tido maior aproximação além da

Você sabia que eu de nada sabia mas me tratava como se eu fosse alguém, como se eu não fosse qualquer um cordialidade. Vejo você passando, num dos corredores do colégio, de vestidinho leve, verde, com uma braçada de livros (seu sorriso nos dizia que você sabia de coisas que a gente não alcançava). Em quem será que Mozart Siqueira pensava quando levantava os olhos para reverter as lágrimas ao recitar obsessivamente Annabel Lee de Edgar Allan Poe? A bunda no chão no meiofio do Pátio da Santa Cruz, ou melhor, um degrauzinho curvo do Centro Gouveia de Barros, ele recitava verso por verso em inglês e traduzia para português, que o meu inglês nunca deu para nada: “Há muitos e muitos anos/num reino à beira-mar/conheci uma linda moça/que bem se poderia/

UMA NOITE

Nanquim e acrílico sobre papel, 38 x 57 cm, 1985, sem título, de Solange Magalhães

Annabel Lee chamar”. Eu morava na Rua de Santa Cruz 220 e ele na Barão de São Borja (que fazem esquina). Ele sempre de paletó e gravata apesar de bem à vontade, hábito da Faculdade onde só se assistia aula de paletó e gravata (por isso eu era “convidado a me retirar da classe” porque ia com a camisa por fora das calças, sem paletó nem gravata). Nós éramos do primeiro ano e Mozart do quarto. Uma noite ela pegou um carro de aluguel (ainda não existia táxi aqui) e pediu para deixá-la em Piedade. Piedade quase não tinha casa. Boa Viagem só na beira-mar. Lembro da igreja, isolada, e a certa distância uma casa dos jesuítas que nos serviu de retiro, aos internos do Colégio Marista. O mar era violento. Nem banho de mar tomávamos. Imagino a decisão de ficar lá de noite, uma moça, na areia. Acho que nem postes de iluminação existiam. Nunca soube o lugar exato onde o motorista a deixou para ir buscar dentro de determinado tempo. O barulho do mar, as ondas, a companhia exclusiva das forças irracionais da natureza, o vento emendando com o estampido.

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IMAGENS:REPRODUÇÃO

DAVID COPPERFIELD O filho dileto de Dickens

Romance, que é considerado o mais autobiográfico do autor inglês e foi publicado em folhetim, recebe nova edição nacional, acrescida de textos analíticos TEXTO Priscilla Campos

Leitura

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1 CHARLES DICKENS Escritor publicou este oitavo romance em jornal, entre 1849 e 1850 2 NOVA EDIÇÃO Pesquisa para capa buscou tipologia dos cartazes teatrais

Quando alguém se dedica à

literatura e reconhece a palavra como obsessão, aceita, sem avisos prévios, certo feitiço que converte escritores em personagens. Charles Dickens e Fiódor Dostoiévski, por exemplo, foram atingidos pelo tal encantamento narrativo. Durante mais de um século, jornais, publicações acadêmicas e, posteriormente, biografias voltadas para a vida do vitoriano propagaram seu encontro com o escritor russo em 1862. Contudo, a correspondência na qual Dostoiévski contava os pormenores da conversa para um amigo nunca apareceu. Após árdua pesquisa acadêmica, a história revela-se, afinal, como ficção: nas últimas décadas, o historiador britânico A.D. Harvey – e suas múltiplas identidades – foi o responsável pela disseminação da narrativa. Para além do imaginário que envolveu a falsa notável reunião, Dostoiévski era, de fato, um dos entusiastas leitores de Charles Dickens. De suas leituras, a mais importante (e comentada em seus escritos pessoais) foi a de David Copperfield (1850), escolhido pelo russo como companheiro literário em uma fria prisão siberiana. O romance – lido também por Henry James, Franz Kafka e D. H. Lawrence – ocupa lugar central na obra de Dickens. Em uma bonita nova edição assinada pela Cosac Naify, com tradução de José Rubens Siqueira, David Copperfield volta às livrarias brasileiras e ao debate crítico de forma estimulante. Após as 1.238 páginas narrativas, o leitor ainda tem pela frente outras 40 com textos analíticos, entre eles, um ensaio de Virginia Woolf. “Quando lemos Dickens, reformulamos nossa geografia psicológica (...)”, afirma a escritora, e continua: “Com

o exercício de uma linguagem urbana – apesar de o escritor ter vivido muitos anos no interior da Inglaterra – e a estrutura folhetinesca. Nos primeiros capítulos, Dickens investiga com primor a infância. A constante postura inocente diante dos fatos cotidianos e a devoção a figuras femininas, como sua mãe Clara, a governanta Peggotty, a tia-avó Betsy Trotwood, marcam a fase inicial do narrador. Ritos de passagem e os chamados coup de théâtre (viradas narrativas), característicos da literatura dickensiana, aparecem continuamente nessa fase, porém, sem causar cansaços significativos no ritmo da leitura. 2

tamanha força nas mãos, Dickens fez seus livros se inflamarem, não apertando a trama ou afiando a fala, mas atirando mais um punhado de gente no fogo”. Essa imagem da fogueira à espreita permanece durante todo o livro: os mais de 30 personagens (todos memoráveis à sua maneira) são rodeados, em algum momento, pela angústia e beleza das chamas dickensianas. O que não quer dizer que o leitor fique incólume à calorosa cerimônia. Em Romance das origens, origens do romance, a escritora e tradutora francesa Marthe Robert define os escritos de Flaubert como uma bela “frigideira, onde o leitor encontra tanto prazer em tostar”. Do romantismo que cerca o fogo primitivo à informalidade do alumínio queimando, Dickens arremessa todos sem piedade, pois como sentenciou Georg Lukács: “O romance é a epopeia do mundo abandonado por Deus”. Através do relato detalhista de David Copperfield, o leitor captura com facilidade alguns elementos gerais do texto, como o tom melodramático, a temática burguesa,

ESTIMA PELA MEMÓRIA

Ao fugir a pé do precário cargo que ocupava na empresa londrina do Sr. Murdstone (seu terrível padrasto), David passa por diversas provações. Logo no começo da empreitada em busca do reencontro com sua tia, moradora da cidade de Dover, ele é vítima de um assalto que o obriga a desfazer-se de suas roupas em troca de algum dinheiro. Obstáculos físicos estão presentes: o garoto dorme sem nenhum conforto nas ruas, passa fome e enfrenta mudanças climáticas. Os infortúnios emocionais e materiais são superados um a um com a esperança e a determinação características do herói romântico. Tais rituais também representam o passeio por diferentes britanismos: dos costumes à geografia, as terras da rainha tornam-se bússola para a navegação em David Copperfield. Compreendida por pesquisadores como a publicação mais autobiográfica de Dickens, a narrativa tem pela memória grande estima. Em A teoria do romance, Lukás reflete sobre a eterna batalha travada no espaço romanesco entre o real e o

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IMAGENS:REPRODUÇÃO

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Leitura

imaginário: “(...) a objetividade do romance, a percepção virilmente madura de que o sentido jamais é capaz de penetrar inteiramente a realidade, mas de que, sem ele, esta sucumbiria ao nada da inessencialidade – tudo isso redunda numa única e mesma coisa, que define os limites produtivos, traçados a partir de dentro, das possibilidades de configuração do romance (...)”. A palavra sentido é aqui muito bemvinda. Ao render-se ao ficcional, o romancista procura a ressignificação de certa existência. Novas representatividades são construídas ao longo do processo de escrita de um romance. Na psicanálise lacaniana, escrever é uma maneira de estar em contato com o sinthoma, expressão que engloba o simbólico, o real e o imaginário do sujeito. Ao grafar “Fui filho póstumo. Os olhos de meu pai estavam fechados para a luz deste mundo havia seis meses, quando os meus se abriram para ele. Há algo de estranho para mim, mesmo hoje, na ideia de que ele nunca me viu (...)”, Dickens ingressa no procedimento analítico, procura para o seu sinthoma um lugar antes desconhecido. De acordo com

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Todas as personagens em David Copperfield possuem algum desvio, seja ele neurótico, histérico, comportamental Marthe Robert, o escritor, por meio do romance, “exprime um desejo de mudança que tenta realizar em duas direções, pois ou ele conta histórias, e muda o que é, ou busca casar-se acima de sua condição, e muda o que ele é”. A expressão “turma dickensiana de grotescos” está no livro The english novel: an introduction, importante fortuna crítica assinada pelo filósofo britânico Terry Eagleton. Em capítulo dedicado a Charles Dickens, Eagleton faz uma análise cirúrgica dos personagens, sempre tão contrários à perfeição. Para ele, todos são realistas, humanos e “fiéis a um novo tipo de experiência social”. A partir dessa noção de “novo tipo”, é pertinente observar aspectos que estão entrelaçados na formação dos indivíduos dickensianos. Todas as personagens em David Copperfield possuem algum desvio, seja ele neurótico, histérico, comportamental. A submissão de Clara às maldades

e imoralidade do Sr. Murdstone; a impassibilidade egoísta de Steerforth; a inocência doentia do Sr. Dick. Tal desorientação pessoal – presente no cotidiano de todos nós – é disseminada pelo escritor com capricho nas descrições. Essa esgotante revelação de indivíduos às vezes pouco desenvoltos em suas ações, idiotas, insistentes em seus erros, passa longe da ideia de personagens ricos e versáteis que se sustentou até ali na literatura. Ao apresentar um amplo conjunto bizarro de pessoas, Dickens traz a consolidação de “sociedade” até então estranha para os romances. A certeza de que o incomum também pode ser encontrado nos heróis e nos vilões é triunfante em David Copperfield. A partir da exposição dos personagens, é fácil constatar que o escritor possuía senso estético muito poderoso em conceber imagens. Certa noção de posicionamento do “olho do espírito”, surpreendente para aquela época, pode ser observada em trechos como este: “Se eu pudesse associar a ideia de um touro ou de um urso a alguém tão brando como o sr. Mell, eu pensaria nele, com relação àquela tarde em que o tumulto chegou ao ápice, como um desses animais, açulado por 10

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INDICAÇÕES 3-4 ILUSTRAÇÕES

Hablot Browne criou desenhos para 10 novelas de Dickens, entre elas, David Copperfield

mil cães”. Ao debruçarse tão exaustivamente sobre seus personagens, Dickens explora, talvez, todas as suas habilidades linguísticas e narrativas, tornando David Copperfield seu “filho predileto”, como afirma no prefácio da edição de 1867.

MINÚCIAS GRÁFICAS

Assinado pelos designers Paulo André Chagas e Nathalia Cury, o projeto gráfico da nova edição (com 1.303 páginas) oferece um relacionamento livro x leitor interessante para um calhamaço. A escolha pelo formato pocket em capa dura trouxe para o clássico manuseio mais fácil e, ao mesmo tempo, elegante. “Levamos em consideração a economia na produção para baratear o preço de um livro desse porte. O pocket é um formato que estamos acostumados a usar aqui na Cosac, não só na linha Portátil. Ao mesmo tempo, no caso do David Copperfield, gostaríamos que tivesse capa dura, para, além de estruturar melhor o objeto (que, por conta do menor tamanho versus grande número de páginas, parece um cubo), resultar em uma encadernação que valorizasse o livro

– promovendo uma distância dos pocket books convencionais – e privilegiar sua abertura, facilitando a leitura”, explica Paulo André. De acordo com o designer, a ideia para a capa e organização gráfica (títulos dos capítulos, estilo de fonte, artes) surgiu da pesquisa realizada por ambos, dos impressos ingleses da época em que o romance foi escrito. “Foi um período interessante na comunicação visual, na qual os cartazes de teatro eram bem característicos, com suas misturas quase esquisitas de estilos de fontes. Isso era feito para chamar a atenção de quem passasse na rua e para ‘espremer’ a maior quantidade de informação possível em um mínimo espaço – o que, para mim, os tornava bizarramente atraentes. Esse universo dos cartazes teatrais também faz menção às leituras públicas dramatizadas que Dickens fazia de seus livros. Outra coisa que levamos em consideração foi que os livros do autor saíam em capítulos ilustrados mensalmente. Isso nos fez procurar ilustrações da época e tentar usá-las para contar um pouco da história já na capa, como vinhetas”, relata Paulo. Anna Grigorievna, mulher de Dostoiévski, conta em seu diário que o russo lhe apresentou as novelas de Charles Dickens como parte de sua “educação literária”. Complexo em sua infinidade de vertentes esperando para ser discutidas, David Copperfield faz parte da biblioteca estelar na qual todos os apaixonados por literatura devem fazer uma visita.

MEMÓRIA

VÁRIOS AUTORES Nicolau Biblioteca Pública do Paraná

FOTOGRAFIA

VÁRIOS AUTORES Olinda memórias fotográficas

O editor Rogério Pereira, hoje diretor da Biblioteca Pública do Paraná, reedita – em versão fac-similar – todos os números do jornal literário Nicolau, que foi publicado entre 1987 e 1996. Editado pelo escritor Wilson Bueno, o mensário teve como colaboradores escritores do naipe de Paulo Leminski e João Antônio, publicando textos literários, resenhas e entrevistas.

O Norte Oficina de Criação

JORNALISMO

AUTOBIOGRAFIA

LUCAS COLOMBO (ORG.) Os melhores textos do Mínimo Múltiplo Bartlebee

O site Mínimo Múltiplo completa seis anos e, para marcar a data, seu editor selecionou 26 textos ali publicados para esta edição. O material é dividido nas categorias artes, jornalismo/ comunicação, política, mundo e entrevistas. Os leitores vão encontrar textos inteligentes.

São 104 imagens, que foram selecionadas em acervos privados e retratam paisagens, pessoas e festas populares circunscritas ao sítio histórico de Olinda, antes de ter sido declarado Patrimônio da Humanidade, portanto, até 1982. O livro pretende mostrar um cenário que antecede o processo de especulação imobiliária na cidade.

MATHIEU LINDON O que amar quer dizer Cosac Naify

Quando esteve na Flip, em 2014, Mathieu Lindon baseou sua fala na premissa romanesca: a liberdade é fundamento do relacionamento amoroso. Neste livro, relata sua convivência com o filósofo Michael Foucault, entrelaçada à conturbada relação com o pai, num belo manuscrito contemporâneo sobre O que amar quer dizer.

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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

NARRAR DE QUALQUER MANEIRA, SEMPRE NARRAR O conto é um vértice de ângulo da memória e da imaginação. A memória conserva os traços gerais, esquematizadores, o arcabouço do edifício. A imaginação modifica, ampliando pela assimilação, enxertias ou abandonos de pormenores, certos aspectos da narrativa. (...) É preciso que o conto seja omisso nos nomes próprios reais, localizações geográficas e datas fixadoras do caso narrado no tempo. (...) Os contos variam infinitamente, mas os seus fios são sempre os mesmos. A arte de narrar vai dispondo-os diferentemente. E são incontáveis e com a ilusão da originalidade. O texto acima não foi escrito por Ricardo Piglia, refletindo sobre a arte de escrever. Ele está no prefácio dos Contos tradicionais do Brasil, livro de 1946, de Luiz da Câmara Cascudo. Referese, portanto, à narrativa oral. Ao estilo dos velhos contadores de histórias, eu o editei, retirando a palavra popular, deixando que o leitor imaginasse que se tratava de mais um ensaio sobre a narrativa contemporânea.

Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Câmara Cascudo e alguns intelectuais brasileiros achavam que no Brasil ainda não havíamos resolvido a questão entre a oralidade e a escrita. Na época em que a discussão estava levantada, mais de meio século atrás, o Brasil era um país de muitos analfabetos. Hoje, ainda temos os analfabetos funcionais, pessoas que não são capazes de compreender e interpretar o que lêem. Portanto, vivemos num país fortemente vinculado à narrativa oral, mesmo que não se trate mais de contar histórias de encantamento, de exemplos, facécias ou adivinhações. Reconhecemos a presença da oralidade nos escritores referidos e também em Jorge Amado, José Lins do Rego e em Graciliano Ramos. De que modo ela ainda se manifesta na nova geração de escritores? A narrativa oral sempre foi associada às pessoas que vivem no interior do país, como se os centros urbanos não possuíssem uma oralidade própria. A partir do fim da Segunda Guerra, quando se

inverteu a densidade demográfica brasileira, o campo se esvaziou e as cidades incharam, chegando-se aos últimos dados do IBGE: 85% de moradores nas cidades e apenas 15 % na zona rural. O problema levantado por Cascudo, Mário e Rosa parecia resolvido: Bom, não existe mais campo, apenas a cidade e suas periferias, portanto, a narrativa oral morreu, já se acabou e está resolvida a questão. Estará mesmo? Talvez o nosso preconceito com a literatura oral, imaginando ser a produção de camadas incultas do povo, nos impeça de refletir com mais serenidade sobre essa matéria antiga. Não precisamos desejar como Jorge Luis Borges que a escrita retorne ao estágio de oralidade, podendo ser lida em voz alta. Basta dar a cada uma das formas narrativas seu devido lugar e valor. Tenho escutado a fala de vários escritores. Alguns buscam escrever distanciados de uma geografia pessoal, de nacionalidade, engajamento político ou causa. Essa procura de universalidade tem

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KARINA FREITAS

levado esses escritores a paisagens estranhas aos lugares onde nasceram e vivem. Os deslocamentos lembram a mobilidade e a falta de raízes das histórias populares de tradição universal: é preciso que o conto seja omisso nos nomes próprios, localizações geográficas e datas fixadoras do caso narrado no tempo. Um mesmo objetivo em comum? Mas também há ritmo, vocabulário, gíria, modos de construir falas e musicalidade nos autores urbanos, sobretudo nos mais periféricos, reconhecendo-se a influência de uma narrativa oral, que denuncia quem eles são e de onde vieram. Muitos poetas e escritores se afinam com outras premissas do conto popular, que revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica e social; um documento vivo, denunciando costumes, ideias, mentalidade, decisões e julgamentos. Buscar lugares diferentes como cenário é tão antigo, Shakespeare praticava isso ao escrever comédias e tragédias ambientadas na Itália, na Dinamarca ou na Inglaterra, embora

Meus escritos quase sempre remontam a um mesmo lugar, o sertão. Embora os personagens trafeguem por Nova Iorque, Toulouse, Paris seus dramas se ocupassem da eterna questão do humano. Meus escritos quase sempre remontam a um mesmo lugar, o sertão. Embora os personagens trafeguem por Nova Iorque, Toulouse, Paris, Londres, São Francisco, sintam-se deslocados, não pertencidos, eles retornam para onde os seus umbigos foram enterrados. De tempos em tempos surgiram livros sobre o sertão, marcos a partir dos quais seria necessário inventar um novo modo de chegar ao Brasil profundo, às terras de trás. Desde o romântico O Sertanejo, de José de Alencar; passando pela crônica da Guerra de Canudos, no Os Sertões, de Euclides da Cunha; migrando

com os retirantes de Vidas Secas, de Graciliano Ramos; reinventado em idioma, poesia e metafísica no Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa; mítico e épico no O Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Através desses escritores e de muitos outros, o sertão se criou e se desfez, ganhou concretude e transformou-se em assombração. Com Galileia, romance de 2008, tentei plantar novo marco, fincar um mourão nas terras secas do universo sertanejo, inventando um pós-sertão, pós-pó, periférico e arruinado. Sim, eu havia frequentado uma universidade formal, mas bem antes eu me formara dentro de uma rica cultura de tradição oral, na academia sertaneja dos Inhamuns e do povo caririense de Juazeiro do Norte, Barbalha e Crato, com mestres analfabetos, que praticavam o hábito de pensar. O meu projeto de escritor não abria mão de nada do que eu ouvira e aprendera. Não seria eu a resolver os impasses entre a tradição oral e a escrita. Desejava apenas torná-los mais agudos e dilacerados.

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ARTE SOBRE CAPAS DA COLETÂNEA

Claquete

COLETÂNEA Para entender uma filmografia

Em uma caixa com 20 DVDs, Antologia do cinema pernambucano reúne 200 filmes de momentos históricos importantes da cinematografia local TEXTO Luciana Veras

Em A misteriosa chama da rainha Louana, publicado em 2005 no Brasil pela editora Record, o escritor italiano Umberto Eco descreve a trajetória de Yambo, um livreiro que, aos 60 e poucos anos, descobre-se portador de uma condição tal, que lhe surrupia a memória mais recente – nome da mulher, das filhas, endereço, ocupação, amigos próximos e mesmo seus flertes – e lhe deixa apenas com parcas recordações da infância. Em determinado instante de sua busca pelas lembranças, e numa espécie de cruzada para recuperar, e emular, a sensação de frescor e descoberta do primeiro amor, o protagonista vaticina: “quem não tem memória não tem alma”. E é da preservação do que já foi feito, de tudo que já é história, que se erige o projeto Antologia do cinema pernambucano, uma caixa com 20 DVDs a reunir pouco mais de 200

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DIVULGAÇÃO

1 PRODUTORAS Isabela Cribari e Germana Pereira aprovaram o projeto em Lei de Incentivo

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Spencer (entre eles, Vivencial I, de 1974, Recinfernália, de 1978, e Olho neles, de 1982, do primeiro; e RH positivo, de 1978, e Almery e Ary: Ciclo do Recife e da vida, de 1981, do segundo). O box traz o raro curta Elástico (1992), um registro da parceria criativa entre Lírio Ferreira e Paulo Caldas que desembocaria naquele considerado o marco zero da retomada do cinema pernambucano - Baile perfumado, de 1996. E nele também encontram seu lugar o experimentalismo de Paulo Bruscky e Daniel Santiago no final dos anos 1970, início dos anos 1980, a estreitar as relações entre artes visuais e cinema; e os curtas de cineastas já acostumados aos sabores e dissabores da direção de um longafilmes rodados no estado, em vários momentos dessa pluralidade que é o audiovisual local. São duas centenas de obras que radiografam desde o período do Ciclo do Recife – os clássicos Aitaré da praia (1925), de Gentil Roiz, e A filha do advogado (1926), de Jota Soares, estão lá – à produção contemporânea, com curtasmetragens que incitaram reflexões e/ou saíram angariando troféus em diversos festivais, a exemplo de Até o sol raiá (2007), de Fernando Jorge e Leandro Amorim; Superbarroco (2008), de Renata Pinheiro; Recife frio (2009), de Kleber Mendonça Filho; Aeroporto (2010), de Marcelo Pedroso; Mens sana in corpore sano (2011), de Juliano Dornelles; A onda traz, o vento leva (2012), de Gabriel Mascaro; e Au revoir (2013), de Milena Times. Mais: a explosão do super-8 é documentada com diversos títulos de Jomard Muniz de Brito e Fernando

Embora não tenha ordenação cronológica, a antologia percorre do Ciclo do Recife, dos anos 1920, a 2013 metragem, como Adelina Pontual, Camilo Cavalcante, Cláudio Assis, Daniel Aragão, Daniel Bandeira e Marcelo Gomes. Ou seja, ao descortinar reminiscências e histórias recentes, a Antologia, tal qual foi pensada pelas produtoras Germana Pereira e Isabela Cribari (à frente, respectivamente, da Tangram Cultural e da Set Produções Audiovisuais), funciona para injetar um pouco mais de “alma” nessa instituição apreciada e discutida que é o cinema pernambucano.

“Precisamos olhar para os elos mais enfraquecidos da cadeia produtiva”, acredita Cribari, que produziu vários filmes, como Entre paredes (2005), de Eric Laurence, presente na coletânea. “Temos que tirar o foco da produção e pensar na exibição, na difusão e na preservação. As pessoas só querem fazer filmes, sem se preocupar onde exibir e, principalmente, onde guardar”, complementa. Em 2012, ela e Germana aprovaram a criação do site Cinema pernambucano no Funcultura, mecanismo de incentivo do Governo de Pernambuco. “Começamos a cadastrar os filmes, porque vimos que ninguém se lembrava mais de nada. Como assim? O cinema pernambucano está na maior visibilidade, em alta, e ninguém sabe quem faz o quê? Tinha cineasta que nem lembrava onde estavam seus primeiros curtas. Por outro lado, quantas vezes eu, como produtora, recebia um telefonema de gente de fora que vem filmar aqui e queria indicação de profissional para trabalhar?”, recorda Cribari. Partindo desse propósito funcional, o site cresceu para se tornar uma janela para essa produção mal-arquivada. De um outro projeto inscrito e aprovado no Funcultura, sua subsequente injeção de recursos e uma parceria com a Ateliê Produções (também com o selo do governo estadual), nasceu a Antologia do cinema pernambucano. A tiragem, de mil caixas, será distribuída gratuitamente e não comercializada. “A ideia sempre foi não comercial, mas de preservação da memória e democratização do acesso a essa produção. Queremos municiar todos os cineclubes do

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REPRODUÇÃO

2 AITARÉ DA PRAIA Clássico do Ciclo do Recife integra a caixa

Claquete

3 PAUSAS SILENCIOSAS Filme se insere no eixo Câmera/cidade 4 SUPERBARROCO Curta de Renata Pinheiro está entre os contemporâneos

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GILVAN BARRETO/DIVULGAÇÃO

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REPRODUÇÃO

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estado, que são mais de 150, para que possam exibir – e as pessoas possam conhecer –, e também distribuir para os cursos de cinema, cinematecas do país, Ministério da Cultura e Socine”, detalha Isabela Cribari, aludindo à Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. A curadoria do acervo é de Rodrigo Almeida, que mergulhou nas centenas de filmes já telecinados e passou “meses e meses assistindo a esse material para selecionar as produções mais representativas de cada período – Ciclo do Recife, Super 8, Retomada”, como descreve no texto do encarte. “Terminei optando por separar em três blocos os resultados desse imenso material de referência”, acrescenta. Os três eixos começam com Cinema/transcinema, com incursões metalinguísticas, experimentações estéticas e intercâmbios com outras linguagens artísticas – entram aí desde filmes de Vincent Carelli, mais conhecido pelo projeto Vídeo nas aldeias, até uma parcela representativa da obra da Telephone Colorido, produtora que se destacou no início dos anos 2000, em especial pelo iconoclasta Resgate cultural – o filme (2001). O segundo eixo, Câmera/cidade, traz olhares sobre o Recife, suas periferias, contradições urbanas e conflitos entre marginalidade e violência – Veneza americana, joia de Ugo Falangola e Jota Cambieri, rodada em 1924, encabeça a lista, que inclui ainda Recife 0 km (1980), de Celso Marconi, A perna cabiluda, de Beto Normal, Gil Vicente, João Junior e Marcelo Gomes, de 1995, e Pausas silenciosas (2013), de Mariana Lacerda. O terceiro é Áridos movies, cujo foco se afasta da capital para incidir sobre cultura popular, Zona da Mata, Sertão e reflexões sobre aspectos regionais. Desse último subgrupo constam tanto Oh, segredos de uma raça (1979),

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INDICAÇÕES de Fernando Monteiro, como Acercadacana (2010), de Felipe Peres Calheiros, passando por Sertão de acrílico azul piscina (2004), de Marcelo Gomes e Karim Ainouz, Ave maria ou a mãe dos sertanejos (2009), de Camilo Cavalcante, tendo Jurando vingar (1925), de Ary Severo, como uma das maiores preciosidades. Realizadores louvam a oportunidade de aproximação com esse extrato significativo do conteúdo produzido no estado. “Achei superinteressante a recente discussão proposta pela Continente sobre o que seria o cinema pernambucano (edição de janeiro/15). Ter um monte de filmes relevantes à disposição é um passo para perceber coisas em comum, o que antes não seria possível”, aponta Chico Lacerda, diretor, membro do coletivo Surto e Deslumbramento e pesquisador, na compilação com quatro curtas – Hipnose para leigos (2005), O incrível trem que alçou voo (2008), A banda (2010) e Estudo em vermelho (2013). Eisenstein, curta de 2006 dirigido por Leo Lacca, Tião e Raul Luna, é o representante da Trincheira Filmes na Antologia do cinema pernambucano. Para Tião, que reservou outros curtas seus (a exemplo de Muro, de 2008) para o DVD de comemoração dos 10 anos da produtora, a iniciativa merece aplausos. “Além de ser abrangente, trazendo muitos filmes de diferentes épocas, o projeto dá a chance de qualquer um acessar boa parte de uma produção que é muito falada, mas nem sempre muito vista. A maioria desses filmes

não pode ser encontrada. Agora, podendo ser vistos, é como se existissem de novo”, comenta. Já Tuca Siqueira, que contribui para a coleção com Homine – costurando identidades urbanas (2003) e O caso da menina (2008), sente-se honrada por participar. “Esses filmes são meu primeiro documentário e minha primeira ficção. Tenho a leitura e a clareza de que são muito verdes, de descoberta de cada linguagem, de começo de tudo, da minha descoberta de que audiovisual é uma construção coletiva. Fora isso, tenho um enorme sentimento de curiosidade pelo conjunto, de expectativa até, para ver filmes que nunca vi”, diz. A realizadora Mariana Lacerda atenta ainda para a relevância material desse “gesto de salvaguarda”. “Nossos arquivos digitais são tão frágeis”, lamenta. “Gosto também da reunião de títulos distintos, porém postos lado a lado, pois acho que quando duas narrativas se intercruzam há uma possibilidade de surgir uma terceira narrativa. A coleção cede espaço ainda para filmes pequenos, como os meus, que tocam em questões pertinentes e caras à nossa sociedade”, ilustra a diretora. Em tempos de excesso de imagens, de profusão de prêmios e de constantes debates sobre convergências e divergências do cinema pensado e produzido em Pernambuco, ter acesso a esse material catalisa a preservação da memória e, como diria o Yambo de Umberto Eco, afaga a alma.

COMÉDIA

NÓS SOMOS AS MELHORES!

Dirigido por Lukas Moodysson Com Mira Barkhammar, Mira Grosin e Liv LeMoyne Film i Väst/ Memfis Film

THRILLER

O ABUTRE

Dirigido por Dan Gilroy Com Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Bill Paxton Diamond Filmes

Bobo e Klara são garotas suecas que, aos 13 anos, pregam que o punk não morreu e formam uma banda sem saberem tocar nenhum instrumento. Conquistam a recatada Hedvig, que compõe o grupo e dá aulas de música para as meninas. O filme mostra as dificuldades do crescimento sem subestimá-las ou ridicularizá-las, mas construindo um tom de rebeldia e cumplicidade. O diretor é conhecido por filmes como Para sempre Lilya (2002).

Dan Gilroy fez uma boa estreia como diretor em O abutre (2014). A narrativa tem como mote o jornalismo sensacionalista – especialmente aquele focado em crimes sangrentos –, a partir da história de Lou Bloom, um jovem ex-presidiário que, com dificuldades para conseguir emprego, decide filmar acidentes de trânsito, incêndios e latrocínios, e vender para os noticiários. Por sua atuação, Jake Gyllenhaal recebeu merecidamente indicações de Melhor Ator.

DRAMA

DRAMA

Dirigido por Ruben Östlund Com Johannes Kuhnke, Lisa Loven California Filmes

Dirigido por Matthew Warchus Com Imelda Staunton, George MacKay, Bill Nighy Calamity Films/ BBC Films

FORÇA MAIOR

Indicado ao Globo de Ouro como Melhor Filme Estrangeiro, o sueco Force majeure foi um dos melhores longas-metragens de 2014. Nas primeiras cenas, uma família jovem e harmônica aproveita as férias de inverno nos Alpes. A reviravolta, porém, acontece ainda nos primeiros minutos: enquanto almoçavam na beira das cordilheiras, uma avalanche acontece e dá um susto nos clientes do restaurante. Esse momento inicia um drama familiar sobre instinto e autopreservação, que discute noções dos papéis matrimoniais.

PRIDE

Pride mostra o momento em que gays e lésbicas ativistas se juntaram, em Parada Gay de 1984, para arrecadar dinheiro para os mineiros grevistas do regime de Margaret Thatcher. A contradição do filme está na rejeição da União Nacional de Mineiros em receber o dinheiro do grupo, que chegou a se tornar o maior de seus doadores. Eles vão a uma aldeia escondida no País de Gales onde encontram novamente tentativas de expulsão por motivações homofóbicas.

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CON TI NEN TE

Criaturas

Elke Maravilha por Sávio Araújo

Elke Maravilha (1945), nasceu em Leningrado (hoje São Petersburgo) e chegou ao Brasil aos 6 anos. Antes de

transformar-se na personagem escandalosa, foi professora de línguas, bancária, secretária e modelo. Depois, fez sucesso como jurada do Cassino do Chacrinha e do Show de Calouros. Completando 70 anos este mês, afirmou em entrevista recente: “Uma coisa que não quero jamais é que não me notem”. Impossível que isso aconteça, Elke.

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FEV 15

O verão chegou. E com ele, o sol. E com o sol, a luz chamando as pessoas pra que vivam as ruas, as praias e os parques. O coração do Recife bate em baque virado. Sinta sua cidade como o calor de um abraço apertado.

ARTISTAS E ATIVISTAS PÕEM EM DISCUSSÃO AS DEFINIÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE

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