www.revistacontinente.com.br
FRANCISCO
# 192
BRENNAND DIÁRIO REVELA SUA VIDA E SUAS IMPRESSÕES SOBRE O MUNDO
#192 ano XVI • dez/16 • R$ 13,00
CONTINENTE
ESPECIAL
GONZAGÃO EM QUADRINHOS E MAIS
ERIK SATIE MANOEL DE BARROS PATTI SMITH TODO DURO E HOLYFIELD
DEZ 16
Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:
PROGRAMAÇÃO
novembro e dezembro
Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco
2016
Seguindo com a programação musical do Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco, os meses de novembro e dezembro trazem novos nomes da música brasileira nas mais diferentes tendências e estilos.
ROMERO FERRO 05/11 • SÁBADO• 17h
DJAMBÊ 12/11 • SÁBADO• 17h
BARBARA EUGÊNIA 26/11 • SÁBADO• 17h
ARRANHA CÉU QUARTETO 10/12 • SÁBADO• 17h
ROGERIO SAMICO 19/11 • SÁBADO• 17h
PATROCÍNIO
PRODUÇÃO
SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE
APOIO
Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.
MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sáb e dom 14h as 17h
REALIZAÇÃO
MINISTÉRIO DA CULTURA
DEZEMBRO 2016
aos leitores Muitos de nós nem vivemos 64 anos, somos abreviados antes. Mas é este tempo que está registrado num projeto soberbo de Francisco Brennand: a produção de um diário. Ao longo desse período, de 1949 a 2013, o artista anotou em cadernos impressões, ideias, inquietações, não apenas sobre si mesmo, a vida íntima e familiar – como é peculiar aos diários pessoais –, mas relativos à arte, à literatura, ao cinema… enfim, aos hábitos culturais e intelectuais do grande criador que é Brennand. Esse material valioso e imenso está sendo lançado agora numa caixa com quatro volumes que somam, no total, 1.992 páginas. Imagine, leitor, que este material (que, claro, conta com todo o aparato de edição textual e design gráfico, com sumários, índices remissivos, fac-símiles, reproduções de obras do artista, entre outras belezas) não contempla tudo que Francisco Brennand escreveu ao longo destas seis décadas. E sabe por quê? Porque ele literalmente queimou páginas e páginas que não queria eternizar; também editou – reescreveu, reviu – vários dos escritos, para que eles chegassem a uma forma literária adequada aos seus propósitos. O artista intitulou a edição do seu diário O nome do livro, considerado pelo poeta e ensaísta Alexei Bueno, que prefacia o primeiro volume do diário, “o maior do gênero diário já aparecido na literatura brasileira”. Há meses, a Continente vem cortejando esta edição, realizada pela Inquietude, com o apoio da Cepe Editora (que publica a revista). Agora, com o lançamento da obra, oferecemos uma interpretação do diário, tarefa para a qual convidamos a jornalista Bárbara Buril, que esteve com Brennand meses atrás, em sua Oficina na Várzea. Cada um de nós, leitores, será tocado de forma diferente por esse encontro com o texto de Brennand e, possivelmente, essa experiência nos enriquecerá acerca da obra em pintura e cerâmica desse artista que teve coragem e determinação para nos dizer profundezas de modos tão diferentes e complementares.
REPRODUÇÃO
sumário Portfólio
Dora Longo Bahia
6 Colaboradores
66 Entremez
7 Cartas
76 Sonoras
8 Entrevista
+ Continente Online + Expediente
Severino Dadá Montador de cinema pernambucano, radicado no Rio de Janeiro desde final dos anos 1960, conta do seu ofício e rememora juventude no Nordeste
20 Balaio
Leonard Cohen Falecido em novembro, aos 82 anos, músico esbanjava elegância e distribuía observações perspicazes
61 Claquete
Todo Duro e Holyfield Em A luta do século, diretor Sérgio Machado resgata rivalidade entre os lutadores nordestinos
Ronaldo Correia de Brito Quero meu baião de dois
Erik Satie Há 150 anos, nascia o compositor francês, que nos legou as belas Gymnopedies
82
Artista faz críticas às formas de vida no capitalismo, através de obras que lidam com o corpo e a mente humana, e evidenciam a destruição do mundo
14
Matéria corrida
José Cláudio Onde ficou meu coração
84 Palco
Negros Mesmo sendo um espaço aberto à diversidade, em sua história, o teatro aponta a exclusão dos afrodescendentes
88 Criaturas
Steven Spielberg Por Fraga
HQ
Luiz Gonzaga No mês de seu aniversário, contamos em desenho um pouco da infância e adolescência do filho de Exu, antes de ele se tornar o Rei do Baião
42 CAPA FOTO Daniela Nader
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 4
Francisco Brennand
História
Textos escritos pelo artista desde os 22 anos são reunidos em edição especial com quatro volumes, publicada pela Inquietude, com o apoio da Cepe
Pesquisadores resgatam, em livro, a trajetória sui generis de mulheres que ganhavam a vida se apresentando em provas de jejum abertas ao público
Cardápio
Leitura
Gastrônomos defendem seu uso como ingrediente, contrariando as normas sanitárias que dificultam seu emprego em receitas tradicionais e contemporâneas
Poeta telúrico, cujo centenário se comemora este mês, lançou um olhar sobre a vida comum e fez um mergulho na linguagem da infância
Diário
22
Sangue
56
Faquiresas
38
Manoel de Barros
68
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 5
Dez’ 16
colaboradores
Bárbara Buril
Celso Hartkopf
Daniela Nader
Paula Reis Melo
Jornalista, mestranda em Filosofia na UFPE
Designer, ilustrador e pesquisador, mestrando em Design na UFPE
Jornalista e fotógrafa com foco na área cultural e socioeconômica
Jornalista e professora do Depto. de Comunicação Social da UFPE
E MAIS André Nery, fotógrafo. Breno Laprovítera, fotógrafo. Bolívar Torres, jornalista. Eduardo Sena, jornalista com ênfase em gastronomia . Fábio Andrade, escritor e professor de Literatura da UFPE. Fraga, ilustrador, caricaturista e artista plástico. Fiorina Mongiovi, escritora, especialista em psicologia clínica de orientação psicanalítica e mestre em História da Arte pela Universidade de Leiden (Holanda). Lucas Colombo, jornalista. Márcio Bastos, jornalista, colunista e crítico teatral do Jornal do Commercio e no blog Terceiro Ato. Matheus Calafange, designer e ilustrador. Rodrigo Casarin, jornalista, mantém no UOL o blog de literatura Página Cinco.
FRANCISCO BRENNAND
PORTFÓLIO
Quem acessar o site da Continente deste mês poderá conferir mais alguns trechos do diário mantido há mais de 60 anos pelo artista. Estará disponível a matéria de capa da Continente número 6, de junho de 2001, que reúne escritos do próprio artista revelando aspectos inusitados de suas obras, de sua vida em Paris e divulgando poemas e um conto erótico inéditos, à época. Também está disponível, integralmente, a edição da Continente Documento número 20, de março de 2004, dedicada ao mestre da Várzea. Ambas as edições estão esgotadas.
Assista ao vídeo Desterro, realizado em 2007, no qual a artista Dora Longo Bahia direciona a câmera para o céu, captando uma confusão de cabos elétricos e postes de luz.
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 6
PATTI SMITH Em comemoração aos 70 anos da cantora e compositora norteamericana, disponibilizamos no nosso site o show que ela realizou no Festival de Montreaux, em 2005.
cartas
EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO HALLINA BELTRÃO
GOVERNADOR Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses
ARTES VISUAIS E MÚSICA
DO FACEBOOK
A INFÂNCIA E A TV É bem verdade isso tudo que foi colocadopublicada na edição 190), mas também é verdade que a TV funciona como uma espécie de babá para muitas famílias. Bota a criança na frente da TV e pede para ela ficar ali, assistindo quietinha, e nem cuida de observar o que é que ela está vendo. Aqui em casa, eu conheço a programação de que eles gostam, mostro programas interessantes, como os da Futura e da própria TV Cultura, e eles vão flanando pelos temas que interessam a eles. Não se pode culpar apenas a TV, há alternativas, mas os pais precisam acompanhar isso.
Que encanto! Pesquiso sobre as relações entre línguas e outros eixos artísticos, levando essas reflexões para a sala de aula. Observar mais casos de amor entre esses eixos só faz me reafirmar que as artes são irmãs e dialogam entre si. ALINE MOTA RECIFE–PE
Novamente tive o prazer de constar numa matéria de capa da revista Continente (dessa vez, não só com meu trabalho musical, mas também com o meu lado “autista visual”). Neilton Carvalho, que capa ducarai ! D MINGUS PORTO RECIFE–PE
GABRIELA KOPINITS RECIFE–PE
Que alegria ter colaborado para uma revista tão bacana quanto a Continente com um assunto que amo tanto: pensar a infância e a produção de conteúdo de qualidade para nossas meninas e meninos. Obrigada a quem me ajudou a costurar essas ideias, em especial à querida Beth Carmona, que labuta há anos por essa causa tão importante. MARIA EDUARDA ANDRADE
OS CINCO ELEMENTOS DA COZINHA Esse Artigo tá uma delícia!!! Muito bom !!!
Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Maria Helena Pôrto (revisão) Olívia Mindêlo (Continente online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação) Agelson Soares Santana (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) Eduardo Montenegro, Maria Luísa Falcão, Marina Moura e Paulo Ricardo Mendes (estagiários) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br
ANTONIO CARLOS ALBERT LEITÃO RECIFE–PE
MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão
CERÂMICA
e- mail: marketing@cepe.com.br
Ficamos muito felizes pelo reconhecimento do trabalho dos nossos artesãos apresentado na matéria da revista Continente. Obrigado a todos que sonham junto conosco!
RECIFE–PE
CERÂMICA DO CABO
ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se
compromete a publicar todas as cartas enviadas à redação. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, redes sociais e correio. As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone.
REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PARQUE GRÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 - (81) 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 7
SEVERINO DADÁ
“Aprendi tudo na prática, no set”
Montador, natural do município de Pedra, radicado no Rio de Janeiro desde 1969, recorda seu contato inicial com a sétima arte e fala sobre sua trajetória no cinema brasileiro TEXTO Paula Reis Melo
CON TI NEN TE
Entrevista
“Eu me tornei Severino Dadá através de Nelson Pereira dos Santos…”, recorda, com os olhos marejados, o montador dos filmes Amuleto de Ogum (1974) e Tenda dos milagres (1977), e de outros cerca de 340 entre curtas, médias e longas. Dadá é daquelas pessoas que logo no primeiro contato demonstram o amor pela profissão, a gratidão aos que o ajudaram, e a irreverência de um anarquista. Um apaixonado pela montagem e edição de som: “Na minha veia, corre gelatina!”. Radicado no Rio de Janeiro desde 1969, o pernambucano do município da Pedra, no Sertão, recorda sua trajetória feita de folheto de cordel, rádio, cinema e política. “Sou o único Severino que não foi para a construção civil, e, sim, para a construção fílmica”. Aos 74 anos e cheio de vida, trabalha como consultor de montagem e acompanha a produção dos filmes do filho cineasta, André Sampaio. Em setembro, ele esteve em Arcoverde (PE) para assistir ao lançamento do documentário Uma balada para Rocky Lane, de Djalma Galindo, sobre um de seus grandes amigos e compadres, no qual dá depoimento e recorda parte de sua vida. No retorno, passando pelo Recife,
aproveitou para prospectar um curta que vai dirigir na Pedra (PE), gravou um programa na TV Universitária e fez uma palestra para o Curso de Cinema da UFPE, ocasião em que deu esta entrevista à Continente. CONTINENTE Quando foi o seu primeiro contato com o cinema? SEVERINO DADÁ Na Pedra, não tinha cinema. Em 1947, eu era muito criança, isso era por volta desse ano. Chegou um grupo de ciganos que negociavam com cavalo e teve um que alugou um armazém que estava fechado e chamou o povo da cidade para ver o cinema. Ele botou um cobertor branco na parede e tinha um projetor portátil de 16mm, nessa época não havia energia elétrica na cidade, tinha um motor que era ligado às 18h e desligado às 22h. Mas o cigano andava com bateria e um bocado de filmes mudos. Era um projetor de manivela com aquelas bobinas de 10, 15 minutos. Cada um levava seu banquinho, as crianças ficavam de cócoras. As primeiras imagens que tenho na cabeça eram: Tarzan brigando com o leão, matando crocodilo, pendurado
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 8
no cipó; Chaplin com Carlitos, depois eu descubro quem é quem… Filme de caubói trocando tiro, Tom Mix, tudo filme mudo de 10, 15 minutos. Aquilo mexeu comigo, eu não consegui dormir na primeira noite. A cada semana, mudava o programa e eu estava lá todo dia e não pagava, porque o dono do armazém era um parente meu. Vi muita coisa, Chaplin, Buster Keaton… O cinema sonoro já existia, começou em 1929, mas aquele era mudo. Depois disso, um senhor da Pedra chamado José Costa montou o cinema Cine São José, passava filmes de bangue-bangue em preto e branco, seriado. E com isso eu já fiquei maluco, porque já era numa tela maior e já tinha som, era o cinema falado. CONTINENTE Além dos primeiros contatos com o cinema, o que marcou sua infância com relação à cultura? SEVERINO DADÁ Aprendi a gostar de ler desde pequeno. Na feira, eu era o garoto que lia os folhetos de cordel para os moradores da redondeza, os pequenos proprietários que eram amigos de meu pai, os compadres, os vaqueiros. No Grupo Escolar Maria Cavalcanti, em que
CAMILLA LAPA/DIVULGAÇÃO
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 9
em Direito, que me alimentou muito de livro, Romildo Vale de Oliveira. Ele me incentivava. Meu pai, então, vendeu a propriedade que tinha na Pedra e comprou outra em Arcoverde. Transportou o gado dele e continuou com a fabricação de queijo e venda de leite. E minha mãe continuou com a costura, se firmou em Arcoverde com a freguesia que também vinha da Pedra, e inclusive colocou várias auxiliares, ensinou muita gente a costurar. Ela começou a ser elogiada e a clientela cresceu. Fazia batina, bata de médico,
por Giovanni Pôrto, que chegou a ser prefeito de Arcoverde, para ser locutor do Cine Rio Branco, para anunciar os filmes. Quem trabalhava no Rio Branco não pagava para entrar no Bandeirante, então, eu assistia a um filme inédito num cinema e, no outro dia, assistia a um outro filme inédito no outro cinema. Aí começa meu envolvimento com o cinema. Isso era 1957. Depois fui trabalhar no serviço de alto-falante do Bandeirante, que era uma espécie de rádio, tinha uma média de 30 aparelhos espalhados pela cidade. O rádio, na
FOTOS: DIVULGAÇÃO
fiz o primário, eu era o garoto escolhido para declamar aqueles poemas nas festinhas. Havia um teatrinho na escola e lembro que, na peça infantil Chapeuzinho Vermelho, fui o chefe dos caçadores. Eu tinha uma tia que era dona de uma pousada e, quando os hóspedes chegavam para as festas da cidade, como a Festa de Reis, que era tradicional, ela me enchia de guaraná para eu declamar para o pessoal. Sempre fui preguiçoso e tinha a cabeça meio ruim para matemática, mas aprendi muito cedo a leitura de português, comecei com gibi, folheto.
CON TI NEN TE
“Meu grande sonho de ser radialista em Arcoverde foi interrompido devido à minha pequena e humilde participação na campanha de Miguel Arraes em 1962 para governador” (Dadá é o 1º à esq. na foto ao lado)
Entrevista Declamava cantando: “Riachão tava cantando na cidade do Exu/ Quando apareceu nego, uma espécie de urubu…” Era a peleja de Riachão com Zé Pretinho! Meu pai tomava umas biritas e ficava feliz quando batiam palmas para mim! CONTINENTE Por que você foi para Arcoverde? SEVERINO DADÁ Minha família foi para Arcoverde em 1955, para eu fazer o ginásio. Meu pai tinha uma pequena propriedade de gado, vendia queijo e leite, e minha mãe era costureira. Na Pedra, eu fiz o curso primário e as pessoas lá diziam: “Esse menino vai longe! Esse menino é inteligente!”, porque desde pequeno eu era muito curioso. Tinha um primo que se formou
costurava muito. É tanto, que, na minha vida, como editor de som, têm dois sons que nunca me saíram da cabeça: o som da máquina de costura da minha mãe e o som de chuva no lajedo da Pedra. CONTINENTE Quando você chegou a Arcoverde, já existiam dois cinemas, o Rio Branco e o Bandeirante. Como se envolveu nessa área? SEVERINO DADÁ Os cinemas tinham projeção diariamente. O Cinema Rio Branco vai completar 100 anos no próximo ano, foi inaugurado em 1917. Era um telão que não tinha tamanho! Em Arcoverde, dois cinemas! Inclusive, o Cinema Bandeirante tinha 1.200 lugares, era o gigante da Praça da Bandeira. Quando assisti a filmes lá, fiquei deslumbrado! Então, eu fui chamado
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 10
época, era o serviço de alto-falante. Eu abria a programação, que começava às 9h, parava ao meio-dia, depois retomava às 15h e ia até 20h, porque às 20h30 começava a sessão de filme. Nos finais de semana, havia duas sessões e ainda tinha uma matinê. Eu me tornei locutor oficial, mas nunca fui escalado para rezar a ave-maria às 18h porque não tinha um vozeirão, minha voz era de taboca rachada (risos). Eu apresentava show de artistas. CONTINENTE Então, na sua vida profissional estava se encaminhando para ser radialista? SEVERINO DADÁ Sim, mas o meu grande sonho de ser radialista em Arcoverde foi interrompido devido à minha pequena e humilde participação
na campanha de Miguel Arraes em 1962 para governador do estado, e as minhas relações de amizade. Meu pai era ligado à esquerda e tinha amizade com a família Pôrto, que era a grande representação da esquerda daquela região. O meu primeiro voto foi Marechal Lott para presidente e João Goulart para vice, em 1960. Então, na campanha de Arraes, fui apresentador de comício na região de Arcoverde, Pedra, Buíque, Pesqueira, Sertânia. Andava numa kombi com alto-falantes, convocando o povo para o comício.
de Casa Forte, não fui torturado, não vou mentir! Quando fui fichado na Secretaria de Segurança Pública, levei uns tabefes. Não teve processo e fui liberado. CONTINENTE Depois que saiu da prisão, como reconstruiu a vida? SEVERINO DADÁ Voltei para Arcoverde e não tinha trabalho. Teve a inauguração da Rádio Bandeirante como emissora de rádio, e eu fui o único que não foi aproveitado, porque fui considerado um elemento de alta periculosidade para o regime. Imagine, eu era magro,
quem retrata bem essa época é o falecido Stanislaw Ponte Preta, com O festival de besteira que assola o país. Essa era uma das grandes besteiras que não foi retratada. Aí, o diretor da rádio chegava para mim: “Dadá, cuidado, essas suas amizades…”. Eu bebia cerveja nos bares com meus amigos e esse capitão ficava de longe no bar me fuzilando com o olhar. Eu sabia que ele pressionava o diretor da rádio. Mas continuei com minhas amizades sinceras, porque é o seguinte: quem tem medo de cagar, toma sorvete! Você tem que ser você de qualquer maneira! Até
DIVULGAÇÃO
“O que me encantava como assistente de direção era acompanhar a prémontagem dos filmes. Quando eu vi aquilo, disse: ‘Pô! É aqui que se define o filme! É na sala de montagem!’”
Na hora do palanque, eu apresentava as pessoas que iam falar e segurava o microfone. Tem até uma foto minha bem novo, segurando o microfone para dr. Arraes. No seu governo, fui trabalhar na CRC – Companhia de Revenda e Colonização, em Cabrobó. Depois do golpe de 1964, como eu tinha relações de amizade com pessoas de esquerda na cidade de Arcoverde, principalmente meus amigos filhos do velho e grande lutador pelas causas populares e que era considerado o líder comunista da região, o dentista Wilson Pôrto, fui considerado figura perigosa. Havia muita gente que dedurava os outros, gente que não gostava de você, aí lhe dedurava como elemento perigoso. Passei três meses preso no Recife, no quartel motorizado
um cancãozinho, mas era considerado perigoso, mesmo sem ter tido processo! Mas o povo queria que eu voltasse e, depois de um tempo, fui chamado para a emissora. Eu abria a rádio às 5h30 da manhã com o programa Bom-dia, Nordeste, de forró, depois Postal Sonoro, e chegaram a criar um programa patrocinado pelo guaraná Fratelli Vita que era o Teatrinho Infantil Bandeirante e me escalaram para ser o apresentador. Era para ler os textos e interpretar, o Tio Dadá conta histórias. O programa começou a ter projeção, a fazer sucesso! Eu continuava com as minhas amizades e o capitão que tinha mandado me prender falava com o diretor da rádio: “Olha, tem que ver se ele não passa mensagens para as crianças!”. Aquelas imbecilidades da época! Aliás,
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 11
que um dia o diretor me disse: “Dadá é o seguinte, não vou poder aproveitar você porque você não deixa suas amizades”. Aí, eu disse: “Olha, se deixar minhas amizades por causa dessa pressão, acaba minha carreira no rádio, eu finalizo aqui. Não vou morrer rastejando, vou morrer de pé como uma vela acesa até o último piscar”. Aí me dispensaram e encerrou minha carreira no rádio. CONTINENTE Sua ida ao Recife o ligou novamente ao cinema. Como foi essa chegada à cidade? SEVERINO DADÁ Tempos depois, um radialista amigo meu conseguiu uns bicos numa agência de propaganda no Recife. Quando cheguei, descobri logo um cineclube no Bairro de Casa
Amarela, que passava uns filmes fora do circuito comercial. Eu já era um cinéfilo apaixonado, ia assistir, curtia e acompanhava os debates. Aí, um dia, olhando o sebo no Mercado de São José, no centro do Recife, descobri um livro de Georges Sadoul sobre o cinema, sua história, sua linguagem. Comprei o livro! E esse livro era todo ilustrado, cheio de desenhos! Foi quando eu descobri o que era o enquadramento cinematográfico, o que é um close, o que é um plano geral, um primeiro plano, um plano americano, a finalidade do
SEVERINO DADÁ Em 1967, George Jonas veio a Pernambuco filmar a primeira versão de O auto da Compadecida, em Fazenda Nova. O pessoal da produção precisava de alguém para assistente de produção e um dos diretores do cineclube me recomendou. Aí eu perguntei: O que é assistente de produção? O cara falou: “Você vai para Fazenda Nova pegar o material filmado e trazer, e também pegar as correspondências dos atores e atrizes, organizar o malote e despachar”. Eu falei:
LEGENDA À ESQUERDA O NOME DA ROSA
CON TI NEN TE
Entrevista plongé e contraplongé, o que é o travelling de avanço e de recuo. Eu memorizei aquilo tudo e já via o filme diferente: Já sei! Aqui é um primeiro plano! Cortou do plano geral! Aí descobri que a montagem era o corte! Fui descobrindo a linguagem cinematográfica! É tanto que, nas reuniões no cineclube, quando tinha aquele debate filosófico, intelectual, e me pediam opinião, eu dizia: “Pois é, aquele enquadramento do contraplongé no interrogatório do personagem…”, de repente, eu era um extraterrestre no meio daqueles intelectuais e teóricos intoxicados com Godard, com Truffaut (risos). CONTINENTE Como você começou a trabalhar no cinema?
“Isso é assistente de produção? Isso eu faço!”. Depois, também fui assistente de produção do filme Riacho de sangue, produzido por uma pernambucana, Aurora Duarte, também no Recife. Fiz amizade com o pessoal da produção, que me incentivou a ir para o Rio de Janeiro. CONTINENTE No Rio de Janeiro, já foi trabalhar com cinema? SEVERINO DADÁ No Rio de Janeiro, consegui um emprego num posto de gasolina para tirar a temperatura de combustível, mas só passei três meses, porque eu queria mesmo era trabalhar no cinema. Ia sempre à Cinelândia, onde encontrava os técnicos de cinema e logo me envolvi
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 12
como assistente de câmera. Aprendi a carregar chassi, a fazer foco. Aprendi tudo na prática, no set de filmagem. Fui assistente de produção, depois, segundo assistente de direção, continuidade, um bocado de coisa. CONTINENTE Como você se tornou montador? SEVERINO DADÁ O que me encantava como assistente de direção era acompanhar a prémontagem dos filmes que eu tinha acompanhado, conferindo as
“Comecei a trabalhar com Nelson, fazendo o sincronismo de um documentário que ele tinha feito na Amazônia, e depois montei O amuleto de Ogum. Na minha vida profissional, eu considero o antes e o depois de Nelson Pereira dos Santos”
claquetes, as folhas de continuidade. Geralmente, era o assistente de montagem que fazia comigo esse processo; quando eu vi aquilo, disse: “Pô! É aqui que se define o filme! É na sala de montagem!”. Eu saquei aquilo e disse: “É isso que vou fazer!”. O tempo passou e fui chamado para ser assistente de montagem do editor argentino Nello Melli, a quem dediquei o meu documentário Geraldo José, o som sem barreira (2003). Aí aprendi o sincronismo e fui pegando a prática, porque montei dois filmes de longametragem. Em 1973, fui trabalhar fazendo “varejão” numa agência de publicidade, eram comerciais em 16mm. A essa altura, eu já pegava
filme para sonorizar. Fiquei expert em sincronização, tinha paciência para acertar o sincronismo. Diziam que eu lia lábio. Nunca li lábio, mas para não perder a fama, dizia: “É, eu fiz um estágio no instituto de surdos e mudos…” (risos). Nunca entrei no instituto de surdos e mudos (risos). CONTINENTE E como você foi trabalhar com Nelson Pereira dos Santos? SEVERINO DADÁ Eu me correspondia com Socorro, que era um namoro parado por causa do golpe militar, escrevi uma carta para ela e nós casamos. Foi nessa época que surgiu Nelson Pereira dos Santos. Recebi um recado de que ele queria falar comigo. Aliás, fui recomendado pela “máfia nordestina”, por Jofre Soares, grande ator que foi revelado em Vidas secas. Daí, comecei a trabalhar com Nelson, fazendo o sincronismo de um documentário que ele tinha feito na Amazônia, e depois montei O amuleto de Ogum. Na minha vida profissional, eu considero o antes e o depois de Nelson Pereira dos Santos. Depois de Nelson Pereira, mudou tudo, inclusive foi aí que nasceu o Severino Dadá. Quando assisti a primeira cópia do Amuleto, apareceram nos letreiros finais: montagem de Severino Dadá e Paulo Pessoa, que era o cara que montou o negativo, eu pensei: “Pô, Severino Dadá…?” Mas fiquei quieto, né? Quando terminou a projeção, nós fomos para o bar, toda a equipe vibrando, aí eu falei assim: “Nelson, eu só acho que teve um probleminha nos letreiros”. “Problema no letreiro, por quê?”, perguntou ele. Eu falei: “É que eu sempre assinei Severino de Oliveira”. “Pô, Dadá! Mas todo mundo te conhece por Dadá, então eu botei Severino Dadá, não me lembrei que tinha esse Oliveira”, disse Nelson. Aí, o Jofre me deu um esporro: “Porra, Dadá! Tu foi batizado pelo Nelson Pereira dos Santos. A partir de agora, tu és o Severino Dadá! Está reclamando de quê?”. “Não, não é nada disso, não! Eu apenas estava acostumado porque todos os trabalhos meus tinham Severino de Oliveira! Foi legal botar o Dadá!”(risos). Aí pronto, começou o Severino Dadá a partir dali!
NAS MELHORES LIVRARIAS
“Joca Souza Leão, sem favor, faz parte de um time que elevou a crônica à altura da melhor literatura. Publicitário bem-sucedido, amarrou as chuteiras no auge da profissão e dedicou-se com afinco ao ofício de ‘pensar em voz alta’, como tão bem o definiu o cronista-mor, o velho Braga.” Homero Fonseca, jornalista e escritor
O livro reúne 60 crônicas, escritas entre 2014/2016, e 50 histórias miúdas.
www.cepe.com.br
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 13
DIVULGAÇÃO
1
FOTOS: DIVULGAÇÃO
2
CON TI NEN TE
Portfólio
Dora Longo Bahia
A POLÍTICA NO CERNE TEXTO Bárbara Buril
Uma artista começa a falar, no divã, sobre acontecimentos aleatórios que a
têm comovido nos últimos dias. Ela não se sente confortável no próprio papel de artista por diversos motivos e, com frequência, escuta a voz de um intruso, um estrangeiro ou um parasita. Sente-se amarrada e distante da liberdade. A mulher parece estar alienada de si mesma e na eterna perseguição pelo “inútil sonho de ser. Não parecer, mas ser”, como confessa a personagem Elisabeth Vogler, do filme Persona (1966), de Ingmar Bergman, que sugere sofrer de um mal-estar semelhante. No longa-metragem O caso Dora, lançado em maio deste ano, a artista paulista Dora Longo Bahia, que também é professora no Departamento de Artes Visuais da Universidade de São Paulo (USP), evidencia uma política que afeta a existência dos indivíduos. Não se trata exatamente daquela política de que se fala, como um mero assunto, mas daquela política que se é quando simplesmente somos – uma espécie de política constitutiva do sujeito. Se algo não vai bem com ela (no longa, questiona-se o capitalismo, a capacidade transformadora da arte, o caráter fetichista das mercadorias, o caráter dominador da cultura, o papel dos movimentos sociais), o sujeito sente-se fatalmente afetado. É um pouco como podemos definir Dora Longo Bahia: alguém cuja constituição é política. Como ela mesma diz, não houve um momento no qual ela “se interessou” pela política como tema ou assunto a ser tratado em suas
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 16
Páginas anteriores e acima 1-2 O CASO DORA
o filme, artista N toma partido da teoria social e da psicanálise para discutir o sujeito
P ágina ao lado 3 LILITH
No vídeo, mulher e homem discutem em paisagem desértica
4 LÚCIFER Em outro vídeo, encapuzados tentam sobreviver em lugar hostil
3
4
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 17
FOTOS: DIVULGAÇÃO
5
CON TI NEN TE
Portfólio
criações. Parece que, para a artista, a política faz parte de sua existência, por uma espécie de motivo insondável, porque não houve um “divisor de águas” na sua vida que a tivesse levado a pensar em política, ou pelo que ela considera um motivo óbvio: os artistas, assim como todos os indivíduos imersos em sociedade, deveriam se posicionar politicamente. Desse modo, Longo Bahia tem se voltado para questões que hoje movem o Brasil politicamente. É o caso dos protestos e manifestações de rua, que foram homenageados na exposição Black bloc, inaugurada no ano passado na Galeria Vermelho (SP). Na obra que dá o nome da mostra, vê-se uma série de 126 silhuetas de garrafas de vinagre, impressas em placas de fibrocimento. As imagens das silhuetas das garrafas nos remetem aos manifestantes que têm tomado o Brasil desde junho de 2013, com capuzes pretos e garrafas de vinagre, utilizadas para conter os efeitos das bombas de efeito moral usadas pela polícia. Uma das garrafas tem a forma de um coquetel molotov e, justamente ela, anuncia a iminência
de um conflito entre policiais e manifestantes. Nos vídeos Lúcifer e Lilith, que compuseram a exposição, a artista também estabeleceu um paralelo entre os integrantes do movimento Black Bloc e as muçulmanas que vestem burca – para ela, dois sujeitos sem lugar na contemporaneidade. Embora Longo Bahia evidencie, neste trabalho, questões com as quais o feminismo se ocupa, a artista reitera que “não existe arte feminista. Existe arte. E ponto”. Também, para a artista, não existe arte política. Existe arte. E ponto. Assim como a política é constitutiva do sujeito, ela também pode ser vista como constitutiva de toda e qualquer arte. Mas é inegável que, de fato, o conteúdo político é saturado nas criações da artista. Depois de O caso Dora, resultado de uma pesquisa de pós-doutorado em Filosofia sob a supervisão de Vladimir Safatle, na qual a psicanálise e a teoria social cumprem papel fundamental nas provocações sobre a influência da sociedade na constituição dos desejos, Longo Bahia volta-se para um outro tipo de colapso causado pela civilização: as catástrofes ambientais. “Já realizei uma série de 58 pinturas sobre papelão com imagens de barcos encalhados em lugares que ficaram
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 18
5 LOVE CANAL Recente série de pinturas aborda a destruição ambiental
6-7 BLACK BLOCS Silhuetas de garrafas remetem aos recentes protestos de rua
sem água. Também estou produzindo uma série de imagens de peixes em extinção”, relata. A questão ambiental também será o tema de Brasil x Argentina (Amazônia e Patagônia), projeto vencedor da 4ª edição da Bolsa de Fotografia de 2016, concedida pela revista de fotografia Zum através do Instituto Moreira Salles. O projeto de instalação visual, que ainda está em processo de criação, retratará o derretimento das geleiras de Perito Moreno, na Patagônia, e as queimadas da Floresta Amazônica. Mais uma vez, o que fica claro é que Longo Bahia dedica-se, em seus trabalhos, a tecer críticas ferrenhas às formas de vida no capitalismo, através de obras que ora mostram o corpo e a mente humana a se retorcer, como efeito de formas de violência física ou psíquica, ora evidenciam a destruição do mundo, como consequência da construção de um mecanismo de reprodução social em si insustentável. Questões que, ao versarem sobre a degeneração do sujeito e do meio ambiente, no capitalismo, mostram-se constitutivamente políticas.
6
7
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 19
FOTOS: DIVULGAÇÃO
PESADELO AMERICANO Desde o dia 9 de novembro, Donald Trump é o nome que predomina o noticiário. Candidatura mais estapafúrdia da história da eleição presidencial nos Estados Unidos, sua vitória, que contrariou pesquisas, previsões e vontade da maioria da população norte-americana e internacional, chocou o mundo. No entanto, sua surpreendente ascensão à presidência já tinha sido prevista, há 16 anos, pelos Simpsons. O título do episódio, Bart to the future, faz menção ao filme De volta para o futuro (1985), cujo vilão, Biff, foi inspirado em Trump e se torna, além de empresário, político. Em outubro deste ano, Matt Groening, o criador da série, falou ao Guardian: “Trump era claramente a piada tapa-buraco mais absurda que podíamos pensar na época, e isso ainda é verdade”. Nos próximos quatro anos, o mundo poderá se acabar de vez, mas, segundo Groening, temos um consolo: “A eleição do Sr. Trump, por mais horrível que fosse (que seja), seria (promete ser) ótima para a comédia”. (DN)
Elegante até o fim No dia 13 de outubro, em que foi anunciado o polêmico “Nobel de Bob Dylan”, Leonard Cohen concedia aquela que seria sua última entrevista coletiva – os jornalistas presentes ainda não sabiam disso. O compositor estava lançando seu 14º disco, o aclamado You want it darker, cuja letra da canção-título contém uma frase de uma triste resignação “I’m ready, my Lord”. Durante a conversa com os repórteres, o assunto veio à tona e ele afirmou: “Recentemente, eu disse que estava pronto para morrer, mas isso foi um exagero. Tenho tendência à autodramatização. Minha intenção é viver para sempre.” Todos riram, inclusive seu filho e coprodutor do disco, Adam Cohen, que estava ao seu lado. Um jornalista perguntou ao “Bob Dylan do Canadá” sobre a mais alta honraria literária recebida pelo colega a quem sempre era comparado. “É como dar uma medalha ao Everest por ser a maior montanha do mundo”, respondeu Cohen, que acumulava 27 prêmios literários, dentre eles o Príncipe das Astúrias de Literatura. Seu nome, inclusive, foi levantado em meio à polêmica da escolha do nome de Bob Dylan, por ser talvez melhor como poeta. No dia 10 de novembro, quase um mês após essa coletiva, em que Leonard Cohen, aos 82 anos, ainda esbanjava elegância e distribuía observações perspicazes com sua voz divina, chegou ao mundo a notícia de seu falecimento. De seu primeiro sucesso, Suzanne, ao último, You want it darker, sua intenção de viver para sempre encontra agora abrigo no terreno da arte. DÉBORA NASCIMENTO
CON TI NEN TE
A FRASE “Quero só comer gostoso e bonito” Nina Horta, jornalista de gastronomia
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 20
Balaio PESADELO AMERICANO 2
Outra rara pessoa a prever a eleição do alaranjado foi o documentarista Michael Moore (na foto, com o cartaz “Somos todos mulçumanos”). Em julho, ele escreveu um artigo em que dizia “Esse palhaço desprezível, ignorante e perigoso, esse sociopata será o próximo presidente dos Estados Unidos” e listava os motivos: os votos do MeioOeste, machismo, impopularidade de Hillary Clinton, o apático eleitorado de Bernie Sanders e o senso de humor distorcido do eleitor. A propósito, após o resultado das urnas, Moore afirmou que o Partido Democrata deveria contra-atacar em 2020 e lançar Oprah Winfrey como candidata. Alguma dúvida de que ela ganharia? (DN)
ARQUIVO
“IT’S THE END OF THE WORLD…” Out of time, do REM, está completando 25 anos. Esse disco tem importância para além da música. O encarte trazia um cartão-postal para ser enviado ao senado norte-americano, exigindo que o governo federal dispusesse o registro eleitoral em diversos órgãos públicos. Após três semanas de lançamento, os políticos já tinham recebido 100 mil mensagens. A petição ultrapassou o quórum suficiente e a lei foi aprovada. Agora, na última eleição, o ex-vocalista do REM, Michael Stipe, entusiasta de Bernie Sanders, incentivou seus seguidores no Instagram a irem às urnas. Um dado curioso: Muitos eleitores de Trump “denunciaram” que foram impedidos de votar. Descobriram, somente nos locais de votação, que precisariam estar registrados. Ou seja, ele não foi eleito pelos fãs saudosos do REM. (DN)
ARTIVISMO NOS EUA “Descolonize este lugar”. A partir do mote, ativistas, artistas e organizadores têm se reunido nos EUA para debater e realizar ações públicas contra o que eles chamam de “sistemas opressores” – sexismo, racismo e gentrificação, por exemplo, e ainda seus respectivos locais de expressão (de museus a imobiliárias). O “artivismo” norte-americano do projeto DTP (Decolonize This Place) vem sendo realizado, sobretudo, por meio de intervenções urbanas em Nova York. As ações parecem sintetizar o espírito de resistência à onda de direita que vem mostrando a cara, ou diríamos, o cara. Após a vitória de Trump, frases como “Vidas negras importam”, “Dia dos Povos Indígenas”, “Abaixo a supremacia branca”, além do próprio “DTP”, poderão ganhar mais força nas ruas e talvez ajudar as pessoas a atentar para o simples fato de que “Quando respiramos, respiramos juntos”, como alerta outra frase do coletivo. (Olívia Mindêlo)
Disney: 50 anos depois Segundo relatos, após a morte de Walt Disney, em 15 de dezembro de 1966, os membros da Walt Disney Company foram convocados para assistir a um filme. Não era nenhuma das centenas de obras produzidas pela empresa. Mas um pequeno registro audiovisual em que o chefe, recém-falecido de câncer, aos 65 anos, referia-se aos integrantes do alto escalão, um a um pelo nome, e fazia recomendações. A “reunião” foi encerrada com um aviso: “Estarei observando vocês”, mas o certo é que a companhia, àquela altura uma das maiores do mundo, conseguiu superar-se. O diretor, porém, não viveu para ver esse crescimento, como o incremento das atrações da Disneyworld, a inauguração dos parques aquáticos e dos canais de TV, a aquisição da Pixar, dos Muppets e da Lucasfilm, detentora da franquia Star Wars. O despertar da força, primeiro título da nova trilogia, lançado em dezembro de 2015, tornou-se o longa de maior sucesso da história da Disney, com quase US $ 2 bilhões em arrecadação de bilheteria, sem contar com os US$ 700 milhões com a venda dos brinquedos. Cinquenta anos depois da morte de Disney, sua empresa é a marca mais poderosa do mundo. Fazem todo o sentido os versos de When you wish upon a star (“Quando você deseja uma estrela lá de cima / Não faz diferença quem você é / Qualquer coisa que o seu coração deseje / Irá se tornar realidade”), do tema da vinheta da Disney, para quem começou a vida como entregador de jornal e construiu um império a partir de lápis e papel. DÉBORA NASCIMENTO
FALSA MORAL FACEBUQUIANA A nudez está longe de ser uma novidade entre os humanos, tampouco entre os que circulam pelo mundo da arte. Claro, parece óbvio, mas também parece que em redes sociais como o Facebook, o nu, mesmo representado em pinturas, esculturas e fotografias, tem sido encarado como a grande “novidade”; leia-se: uma afronta, um tabu. Além das denúncias de usuários a imagens de nudez, os perfis têm sido todos rastreados pela própria empresa, a ponto de fotografias postadas há anos estarem sendo agora banidas dos álbuns dos “facebuquianos”, para atenderem à política de “bom uso” da mídia. Enquanto isso, imagens e vídeos que incitam a violência seguem aparecendo na timeline sem restrições, mesmo após denúncias. Por coincidência ou não, há artistas valendo-se da criatividade para driblar proibições como essas, a exemplo de Stephanie Sarley, que publicou, no Instagram, vídeos que viralizaram: neles, ela enfia o dedo em frutas de formatos sugestivos. (OM)
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 21
DIÁRIO Como um “homem da Renascença” A voracidade intelectual de Francisco Brennand evidencia-se nos quatro volumes de um diário que mantém desde os 22 anos e que ganha agora publicação pela Inquietude com apoio da Cepe TEXTO Bárbara Buril
CON TI NEN TE
CAPA
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 22
DANIELA NADER
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 23
CON CAPA TI NEN TE AUTORRETRATO COMO CARDEAL INQUISIDOR, 1948/REPRODUÇÃO
“Uma vez, chegaram uma socióloga e uma antropóloga paulista aqui e meu diário estava aberto em cima da mesa. Uma delas me perguntou: ‘Mas, Brennand, você risca tudo o que escreve?’ Eu respondi: ‘Ora, a minha vida é toda rasurada, quanto mais um diário!’”, conta o artista Francisco Brennand, em tom de humor, sobre o diário mantido por ele há mais de 60 anos. Os cadernos – que foram não só rasurados, como rasgados, queimados e até abandonados por anos – ganham publicação em quatro volumes pela Inquietude, empresa de Marianna Brennand, sobrinha-neta do artista e diretora do documentário Francisco Brennand (2012), com o apoio da Cepe. A obra O nome do livro, considerada a maior do gênero diário já aparecida na literatura brasileira pelo poeta e ensaísta Alexei Bueno, que prefacia o primeiro volume do diário, mostra as inquietações de um artista e intelectual preocupado principalmente com questões estéticas, humanas e filosóficas. Como sugere Bueno tão adequadamente, Brennand se exibe, nos diários, com a “curiosidade múltipla e insaciável do homem da Renascença”. Por se tratar de um diário e não de uma obra de caráter unicamente aforismático e teórico, é possível encontrar, nos escritos, acontecimentos insólitos e cômicos da vida do autor, como a visita dos filósofos Jean PaulSartre e Simone de Beauvoir ao Engenho São Francisco, na Várzea, em 1960; confissões de um amor profundo e duradouro pela poeta Deborah Brennand, com quem esteve casado por décadas; e também escritos que mostram a admiração de Brennand pelas mulheres, que se concretizou em experiências afetivas e sexuais que extrapolaram as fronteiras do casamento. As frustrações e decepções amorosas de relacionamentos com outras mulheres, contudo, não aparecem no diário, pelo simples fato de que o artista se encarregou de queimar todos os escritos que tratavam desses assuntos. É por isso que há lapsos nos diários entre 1963 e 1964, e em 1976, por exemplo. Ecos de anos que não foram contados – não porque não houvesse nada interessante ou importante a ser dito, mas porque Brennand, durante esse período, escreveu o que ele julgava necessário abandonar.
1
“Quando vim para cá, fiquei fascinado com o fogo nos túneis onde você coloca as peças. Os vagonetes vão andando pelo fogo por 12, 16 horas, mas sai tudo lá fora. Que coisa maravilhosa! Eu tinha uma série de diários que me desagradavam enormemente! Então, eu tive o prazer de vê-los serem queimados. Vi os livros se retorcerem como almas penadas”, conta Brennand, com humor. Na verdade, o artista não queria guardar súplicas e falar mal de alguma mulher após um rompimento, por isso resolveu queimar todas as lamúrias amorosas, que se tornavam tão pouco caras a ele
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 24
quando perdiam a sua saturação, graças à passagem do tempo. “Escrevia como se eu tivesse razão, mas, na maior parte das vezes, não é você que tem sempre razão, só que você precisa viver 80 anos para descobrir isso. Você não deve absolutamente nem se explicar, nem se queixar, isso é um conselho de Disraeli, um político e escritor que sabia das coisas. Achei por bem queimar uma série de coisas”, justifica o artista. Já o amor por Deborah é evidente nas narrativas iniciais de Brennand, em trechos como “gostaria de ter Deborah ao meu lado, cujos olhos sabem, com
1 EM 1948 Autorretrato como Cardeal Inquisidor é uma das várias pinturas que o artista fez de si
certeza, ver bem mais do que os meus…” e em outros momentos em que o artista mostra a admiração por quem ele considerava uma grande poeta. Segundo Brennand, ela, porém, não tinha consciência da própria grandiosidade como artista. A devoção por Deborah se harmoniza muito bem, no entanto, com trechos como “alguém pisa com sapatos femininos de salto alto no andar de cima e isso me predispõe ao amor” ou “mal levanto os olhos para apreciá-las e, quando o faço, é com a consciência de cometer grosseiro sacrilégio diante de tanto esplendor e tanta perfeição”, neste último trecho referindo-se às mulheres naturais de Gênova, na Itália, consideradas por ele “belíssimas mulheres, cujos perfis e olhos rasgados lembravam os frisos etruscos, pintados em Tarquínia, nas tumbas dos Leopardos e das Leoas”. Sobre o seu nada secreto interesse por prostitutas, Brennand chega a se referir a alguns encontros, mas sem entrar em detalhes. O meu relógio anda certo, o que é de espantar. São 18h51min10s. Aguardo Janine. Ela mesma acaba de confirmar a sua aventura. (Seguramente, ela pensa assim, que está metida numa aventura.) Afinal de contas, a moça não passa de uma grue, mas que importa? Jamais tratei senão com rameiras. Tem sido o meu destino, a minha escolha perversa, o meu supremo deleite. (Vol. 3, p. 18) É interessante perceber como o amor do artista pela poeta entra em uma equação harmoniosa com o interesse dele por outras mulheres, narrado de maneira mais explícita no documentário Francisco Brennand. A princípio, parece ser uma grande decisão publicar diários que revelam ao público essas intimidades não monogâmicas, mas Brennand as toma como parte de uma história de vida inevitável na construção da própria obra artística. “Essa minha relação com Deborah foi muito especial, atravessou a minha vida toda. Deborah foi a pessoa que me estendia a mão do perdão. Ninguém era capaz de me perdoar, nem minha família. Ela foi a única pessoa que conheceu a minha
família de muito perto. Enfim, eu sempre a chamei ‘a minha mulher’. Agora, se eu não tivesse ‘abandonado o lar’, na verdade (para não ficar muito novela da Rede Globo), se eu não tivesse ‘arribado’, eu não teria realizado minha obra de artista. Talvez tivesse feito outra coisa, mas não aquilo que me exaltava. Foram importantes a liberdade, as extravagâncias, a libertinagem”, conta, sobre a sua licença para “pular a cerca”. O lado “amante das mulheres” do ceramista nunca foi propriamente um segredo e pode-se dizer que esse comportamento foi elemento catalisador e motor criativo para o trabalho artístico de Francisco Brennand. Não é por acaso que a figura feminina é um elemento central de suas pinturas
O poeta Alexei Bueno considera O nome do livro o maior no gênero diário no Brasil. São quatro volumes, no total e obras em cerâmica: na série de 40 pinturas dedicadas à Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, mulheres com chapéus vermelhos se insinuam para um lobo mau interessado, numa representação pictórica de uma espécie de jogo psicológico lascivo entre os dois personagens do conto de fadas; nas obras em cerâmica, as mulheres aparecem como seres nus, volumosos, de seios pontudos, quadris largos, de sexos proeminentes e nádegas agigantadas. Elas podem estar de pernas abertas em direção ao céu, na Oficina Cerâmica. Sem dúvidas, seria possível pintar e moldar tantas mulheres sem propriamente “vivêlas”, mas é importante questionar se as pinturas e esculturas, resultantes de um modo de vida contido por questões morais, não seriam medíocres do ponto de vista artístico.
O PAI
Brennand também revela um lado afetuoso de pai no terceiro volume dos diários, escritos entre 1990 e 1999. Por compreender a infância de sua filha mais nova, Helena Viktoria, o
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 25
10 de janeiro de 1949 RIO DE JANEIRO Não foi a ideia da viagem que me imobilizou. Antes, o propósito de ser obrigado a descrever, palmo a palmo, os meus dias e, evidentemente, aqueles que corresponderem a viagem de barco, que só acontecera no próximo mês. Com muita antecedência, resolvemos eu e Deborah que a nossa mala – da qual dependeremos para tudo, contendo toda espécie de utensílios, roupagens e ate alimentos –, seguisse de navio ate aqui. Dado o volume, como ja me explicaram na alfândega, ela devera ficar armazenada no porto a espera do dia definitivo da viagem. De certo modo, esse detalhe sem importância e ate mesmo ridículo, eu suponho que por fidelidade ao meu objetivo de tudo registrar, não poderia ser omitido. Cheguei por duas vezes a pegar o caderno verde, onde havia colado a palavra journal, embora não tivesse anotado coisíssima nenhuma. Por que não me restringia a escrever cartas a maneira de outros pintores, tendo exemplos notáveis como os de Van Gogh e Gauguin? Uma carta tem sempre a intenção direta de informar e, ao mesmo tempo, pedir resposta. Todavia, o journal estava definitivamente adotado como o meu futuro meio de expressão. Quantas vezes abro este caderno, aturdido pelas lembranças e pronto para iniciar o que tantos outros artistas, escultores e pintores fizeram em grande parte de suas vidas! Talvez o impasse fosse resolvido no momento em que saíssemos de nossa cidade. Mas o que fazer se os navios de grande percurso não tocavam no porto do Recife? Por esta razão, foi escolhido o R.M.S. Alcântara, navio da Mala Real Inglesa, que desatracara do porto do Rio de Janeiro em demanda ao porto de Cherbourg, na Franca, nos primeiros dias do mês de fevereiro próximo.
volume conta com uma série de breves relatos sobre as pequenas descobertas da filha e as frases extraordinárias que só as crianças sabem dizer com naturalidade. Como escreve no dia 9 de abril de 1991: “Todas as vezes em que se pronuncia a palavra culpa na frente de Helena Viktoria, ela diz: ‘Culpa? Não há culpa!’ Quem ensinou a filha a reproduzir um conceito tão temerário?”. As engrenagens de um sentimento tão devastador parecem desativadas, ainda que momentaneamente, na paisagem interna de um pai que percebe quanto vão é carregar um peso nas costas pelo
CON CAPA TI NEN TE REPRODUÇÃO
8 de março de 1979 PROPRIEDADE SANTOS COSME E DAMIÃO Mefiéz-vous des mes jugements. Camille Pissarro Em geral, só no começo do ano ou quando tenho oportunidade de reler alguns trechos dos meus inúmeros cadernos é que verifico que, na sua maior parte, predominam os fragmentos. Na realidade, os meus propósitos se dirigem a uma espécie de coletânea de anotações esparsas, como alguém que, procurando não esquecer, anota de qualquer maneira o seu pretendido informe. Com o passar do tempo, no correr da pena, de uma escrita cada vez mais dolorosa (mecanicamente dolorosa), a minha letra se deteriora a olhos vistos. Suponho que nestes primeiros dias de março continuarei nos meus vícios de apontamentos. Não que não existam textos mais longos e até alguns pretensos ensaios, mas sempre fazendo uma exceção à regra. As coisas se agravam. Vocês são fracos. Enquanto durar essa fraqueza, ninguém os ouvirá. Aiatolá Khomeini Tema para um conto: narrar a história de uma mulher que teve vários amantes e encontra mais um. A diferença para os outros é que o meu desespero vem sempre a galope. Gostaria de gravar em cerâmica um poema de Deborah e colocá-lo na casa de Mata Redonda para não esquecê-lo nunca mais, ou melhor dizendo, para começar a aprender, enfim, a esquecer, sempre esquecer. Sempre Esquecer Para esquecer, sempre esquecer, vejo a luz cair no Pátio e rezo as contas do mistério em ter um rosário nas mãos. Mas, se por acaso um Juiz me indagar sobre as coisas que eu já vi, volto a face para um lado e se o réu também insistir sobre o destino dos pássaros, volto a face para outro lado. Para esquecer, sempre esquecer, já com os dedos calejados sem ter o rosário nas mãos, vejo a sombra derramar-se. E, sem poder contê-la, esqueço o Pátio.
2
que se fez. Através do amor pela filha também a ele se revelam os limites de sua capacidade de protegê-la de todo mal, devido à inevitável separação de ambos diante da morte. De pronto, coloquei-a no meu colo, abraçando-a demoradamente com muita força, como se tentasse protegê-la de todo mal, para sempre. E, no entanto, eu não podia ignorar que o inferno não tardava a desabar sobre as nossas cabeças. Até quando eu estaria apto a reagir, ter voz ativa, presença física, enfim, permanecer a seu lado, defendendo-a no que fosse preciso? (Vol. 3, p. 16) Outro episódio com a filha mais nova também revela um lado afetuoso paterno que é comovido – e desconstruído – pela criança. Narra em terceira pessoa: “Apontando para o vermelho, o azul e o amarelo, Helena Viktoria indaga se ele reconhece essas cores. ‘São
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 26
cores primárias’, ela diz sorrindo”. Ensimesmado, ele não sorri, no entanto explica à filha que não se recordava de que alguém na sua idade (seis anos) tivesse lhe falado de um assunto tão importante. De modo ingênuo e desinteressado, a filha mais nova lembra a Brennand que, como pintor, ele jamais deveria se esquecer as cores primárias, lembrando-o que as elaborações sempre vêm dos princípios mais básicos. É claro que a criança também não eximiria Brennand de desenhar Os três porquinhos. Ele ainda os transforma em versões em cerâmica, para que neles a filha guarde moedas.
NARRATIVAS DE FORMAÇÃO
Os diários de Brennand – embora tratem de questões afetivas múltiplas que dão pistas para que a obra do artista seja compreendida de modo mais profundo – concentram-se principalmente no que se mostra como uma narrativa de
REPRODUÇÃO
formação de um artista e intelectual dinâmico e voraz. Pode-se dizer que os diários lembram um bildungsroman (em português, “romance de formação”), um tipo de romance de tradição germânica que desenvolve, de modo detalhado, o processo de desenvolvimento filosófico, social, político, físico, moral ou psicológico de um personagem, geralmente desde a sua infância ou adolescência até um estado de maior maturidade (Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, e A montanha mágica, de Thomas Mann, são exemplos de Bildungsroman). Diferentemente dos diários pessoais, que muitas vezes se restringem a registros prosaicos do cotidiano ou a desabafos, os diários de artistas como estes de Brennand se inserem numa tradição do relato de formação, como é possível observar na história da arte. “Há uma certa contradição nesse tipo de diário escrito por artistas, ligada ao fato de que, embora a maior parte desses diários sejam escritos para serem publicados na posteridade – e o artista, nesse caso, se considera alguém cuja vida merece ser lida –, há um certo segredo essencial nos diários. Nem no caso dos diários de pessoas anônimas, nem nos diários de artista se quer que alguém, a princípio, os leia. A contradição é que, quando chega a hora de ser publicado, o artista parece que se desapega desse pudor dos acontecimentos secretos da própria vida”, interpreta o crítico literário e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Anco Márcio Tenório Vieira. Outras questões interessantes podem ser pensadas a partir dos diários de artistas: “Se o sujeito pensa em publicálo logo no início, ele já não o escreveria dando uma forma e um estilo para que ele se torne agradável a terceiros? Já não haveria um certo pudor e uma certa censura nos relatos pessoais? E no momento da digitalização que sempre há uma revisão e edição?”, problematiza Anco Márcio. Nos diários de juventude de Gilberto Freyre, por exemplo, há claramente uma revisão. No momento da digitalização, Freyre acrescentou partes, retirou outras e alguns nomes que, no original, estavam completos, ficaram apenas com as iniciais quando os diários foram
2 COMPANHEIRA Francisco e a poeta Deborah Brennand, no dia do seu casamento. A presença dela é marcante no diário CHAPEUZINHO 3 VERMELHO
Desenho em técnica mista integra série produzida em 2003
Francisco Brennand escreve que, se não tivesse vivido aventuras fora do casamento, não teria realizado sua obra publicados. Essas transformações do original e o possível pudor inicial na escrita dos relatos pessoais parecem atestar que, no final das contas, o gênero diário, mesmo quando publicado, mantém irrevogavelmente o pacto de confidencialidade do sujeito consigo mesmo.
TOLSTÓI, PICASSO, GAUGUIN
Assim, os diários de Brennand se voltam principalmente ao relato do papel dos grandes mestres em sua formação, como normalmente se vê nos diários de artistas. As obras literárias dos russos Gógol, Dostoiévski e Tolstói, as pinturas de Picasso e de Balthus, as cerâmicas de Gauguin, as cores e as cartas de Van Gogh cumpriram papel fundamental na formação de Brennand. Inclusive as mulheres e os soldados de Guerra e paz, de Tolstói, lidos por Brennand durante a sua viagem de navio em 1949, do Brasil à Europa, parecem anunciar a existência
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 27
3
futura das mulheres e soldados que ocupam hoje os terrenos da Oficina Cerâmica Francisco Brennand. A leitura de Guerra e paz situou-me em regiões fora do tempo, não só pela paixão que me é peculiar ao ler um livro, como também pela força narrativa de Tolstói, me fazendo voltar no tempo e no espaço a um mundo que eu já adivinhava eterno na sua servidão e horror. (…) As últimas considerações de Tolstói sobre a história, tendo como objeto a vida dos povos e da humanidade, são verdadeiramente obra de um gênio. (Vol. 1, p. 55) As cerâmicas de Gauguin e de Picasso também foram fundamentais na guinada do artista da pintura à cerâmica. Embora tenha nascido em uma família de empresários do ramo da cerâmica e de colecionadores de arte, Brennand, quando jovem, nunca manifestou interesse em trabalhar com o material, apesar dos incentivos do pai. “Isso era uma herança de conceitos do século XIX que designava a arte como arte maior e menor. Tudo que não fosse pintado a óleo sobre tela era um ato invulgar, porque quem fez isso foram os pintores da Idade Média. Eles pintavam em retábulo, não em tela”, conta o artista. Apesar dos incentivos do pai e do contato próximo com Abelardo da Hora, que
CON CAPA TI NEN TE REPRODUÇÃO
17 de fevereiro de 1990 PROPRIEDADE SANTOS COSME E DAMIÃO Ontem, bem na frente da porta do meu ateliê, apareceram as três Parcas. Acontece que não eram três, e, sim, quatro bruxas. (Não sei calcular a idade das mulheres quando não são muito jovens. Sempre me dificulta situá-las no tempo.) Uma delas, uma espécie de porta-voz do grupo, talvez Átropos, aquela que cortava o fio, pergunta: “O senhor é Rosa-Cruz?”. Como Balzac, eu poderia ter dito em seguida: “Senhoras, tudo é verdade”. Se calei, foi porque o terreno ali não era firme, e muito menos propício a cultivos literários. A categórica aridez do coração dessas “senhoras” não me animava a prosseguir. Com firmeza, dei meia-volta e fechei abruptamente a porta. Ainda pude escutar uma terrível gargalhada que se alojou nos meus ouvidos e encheu a nave do templo. Elas devem ter saído murmurando, certas de que tinham reconhecido o meu “destino”, e não demoraria muito para que eu viesse a ter suas notícias. Não posso compreender por que havia uma quarta mulher, se as Parcas são apenas três irmãs: uma que preside o nascimento, outra o matrimônio e a terceira a morte. Talvez elas necessitassem, nesses tempos tão agitados quanto populosos, de uma ajudante para que jamais uma só criatura pudesse escapar do destino que elas tecem. 4 ANOS 1980 Artista é fotografado com obra na oficina
5 OFICINA A partir dos anos 1980, a fábrica de cerâmicas passa a ser local de visitação turística
trabalhou na fábrica de cerâmica entre 1942 e 1944, Brennand, quando jovem, só se dedicou à pintura. Foi a Paris em busca dos mestres da pintura. Como escreve no diário durante os primeiros meses na capital francesa: “É como se o restante da cidade não existisse, a não ser em função da pintura”. Devido às tortuosidades da vida, que parecem levar o sujeito exatamente a se defrontar com o que deve ser sua missão de vida, o que aconteceu foi que Brennand foi convidado pelo artista pernambucano Cícero Dias a ir a uma exposição de Picasso, logo nos primeiros dias em Paris. Sem saber do que tratava a exposição, Brennand se deparou com 300 peças de cerâmica de Picasso, que já era considerado um verdadeiro “monstro sagrado” na França. “Era como
4
se eu estivesse diante de um tesouro desconhecido, porque as cerâmicas brilham, são esmaltadas e tinham formas lindas. Fiquei maravilhado e profundamente humilhado. Tinha 22 anos, trabalhava desde os 17 pintando e sempre menosprezei a cerâmica”, narra Brennand. A possibilidade de trabalhar com cerâmica se transformou em decisão, após a descoberta pelo até então jovem pintor dos vasos de Gauguin, cujas raízes peruanas o teriam levado a fazer “cerâmicas maravilhosas”,
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 28
como descreve Brennand. A admiração por Courbet, De Chirico, Delacroix e, principalmente, Balthus, é manifestada no diário. “Como um indivíduo que pode ter Gauguin como o máximo da pintura poderia gostar de Balthus, que reverenciava toda uma tradição da pintura italiana renascentista e deixavase contaminar pelo mundo clássico? Era uma contradição! Apesar de mim, eu sou um espírito profundamente contraditório”, diz Brennand, tentando justificar os interesses múltiplos por diferentes tradições estéticas que só
REPRODUÇÃO
denunciam o aspecto voraz de um “homem da Renascença”, sujeito que vê na amplitude, e não na restrição, uma qualidade. O que mais me agrada nos meus cadernos, nos quais tenho (talvez por razões obscuras) me empenhado, é a evidente e contínua acumulação de apontamentos contraditórios. Essas incoerentes narrativas devem confirmar um estado de espírito em sucessivas e quase infinitas mutações, logo – pelo menos em parte – são verdadeiras. Arruínam e sobretudo acusam a minha retidão, mas não destroem de todo o meu humor; antes o comprovam. (Vol. 1, p. 171)
CINEMA E MEMÓRIA
Além da pintura, escultura, literatura e filosofia, o cinema também se mostra como um objeto de reflexão do artista. Brennand problematiza a falta de cuidado com a preservação de filmes, após ler uma notícia que dizia que cerca da metade dos filmes produzidos no mundo, desde a invenção do cinema até 1950, havia desaparecido. Escreve: “De há muito que eu desejava comentar o estranho desígnio das criaturas que, ao mesmo tempo se ocupando com esse tão antigo como inexplicável ritual das artes, implacavelmente contribui para destruí-lo”. Refletindo sobre a mesma questão da falta de cuidado com a preservação de obras de arte, em outro momento do terceiro volume dos diários, Brennand remete a uma cena do filme A barriga do arquiteto, de Peter Greenaway, que mostra um maníaco polonês que sistematicamente golpeava e arrancava os narizes das estátuas romanas para, em seguida, jogá-las no interior de uma sacola. “Ali estava expressa, em toda a sua terrível e patética contundência, a inutilidade de qualquer esforço em preservar as obras de arte num mundo de paixões insanas”, escreve. Ou, como escreve o historiador Luíz Nazário no artigo Holocausto da memória, também citado por Brennand, “A destruição sistemática do cinema revela tragicamente o desprezo que os homens em geral manifestam em relação aos seus próprios sonhos”. Em outro momento, Brennand também lamenta o fato de que, no cinema, geralmente a ênfase da
5
4 de fevereiro de 1992 PROPRIEDADE SANTOS COSME E DAMIÃO Para quem olha em direção ao Sul, o galpão é o último da esquerda (logo encostado ao Grande Pátio), exatamente aquele que ainda necessita de reformas no telhado e em todo o seu madeirame que, na sua maior parte, carcomido ao extremo, poderá ruir a qualquer momento. Foi necessária muita coragem para reiniciar as obras da Castelania, levando em conta toda a sujeira que representa, acrescida do deslocamento de peças e a insistência das visitas em transitar pelos arredores. De certa forma, o ruido do serrote, do martelo, do madeirame podre tombando no chão com um barulho seco e a poeira acumulada que se espalha por toda parte fazem-me lembrar com toda a intensidade os tempos heroicos da construção iniciada há vinte anos no meio dos escombros, quando tudo ainda restava por fazer e meu coração parecia leve e arrebatado. Não ignoro que toda a fachada frontal deve ser revestida (representando uma área de 400 m²) com uma cor verde como o das cúpulas das basílicas de Veneza – um verde peculiaríssimo. Após inúmeras experiências cerâmicas, este verde foi dominado. O desenho do projeto está pronto, incluindo algumas variações de cor nos portais e nas colunadas. Posso imaginar que, levando em conta a parte já revestida do Grande Pátio, veremos nascer um conjunto que se aproximara muito da cor de certos templos hindus.
criação se dê apenas aos “mestres admiráveis atrás das câmeras”, sem que, nos créditos, se dê devida atenção aos outros profissionais que colaboram “para a expressividade de todo e qualquer bom cinema”. Para o artista, havia fotógrafos de primeiríssima categoria que ele sequer sabia quem eram, porque mal apareciam nos créditos. Além dessas problematizações acerca do fazer e do preservar cinematográfico, Brennand destila um vasto repertório que só atesta uma
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 29
cinefilia bastante refinada, sem deixar de dar o seu veredicto sobre cada obra fílmica citada: Piquenique na montanha misteriosa, de Peter Weir, é excelente; O idiota, de Akira Kurosawa, inspirada na obra homônima de Dostoiévski, só atesta que os japoneses podem e conseguem entender Shakespeare, mas não percebem nada do espírito russo; e Maluco genial, de Ronald Neame, cujo título em português viria, na sua opinião, de uma tradução cretina, conta com a atuação admirável de Alec Guinness. Brennand também
CON CAPA TI NEN TE REPRODUÇÃO
6 LUCRÉCIA Nu integra série realizada em 2003
27 de março de 1992
MANUSCRITOS 7 Anotado em vários cadernos, o diário passou por diversas reescrituras
De manhã, muito cedo, com Deborah na Fazenda São Francisco. Preciso falar-lhe com urgência, mas ela já se encontra na sua faina diária de administração da propriedade. Constantemente, entram e saem empregados da sala: vaqueiros, lavradores etc. Daí porque a minha palavra é sempre cortada. Que beleza quando o tratador Cuíca avisa, com emoção, que a jumenta Cigana pariu aquela noite um jumentinho extraordinário. Depois fala em Dama – uma outra jumenta. E, finalmente, muito orgulhoso, comunica a venda de um animal efetuada ontem à tarde. “O preço não foi lá essas coisas, mas valeu”, Deborah disse. Pela primeira vez, ela olhou para mim e sorriu. Melissa pretende visitar-me hoje, caso o dilúvio que se abate sobre a cidade permita. Mas o que impede uma mulher de realizar o que lhe apetece, sobretudo quando está em busca do ouro? Embora o sábio Pavese tenha dito – com muito mais conhecimento da natureza feminina – que “nenhuma mulher faz um matrimônio por interesse: tem toda a habilidade, antes de casarem com um milionário, de se apaixonarem por ele”. Não sou milionário, mas compulsoriamente tenho o hábito da prodigalidade quando junto às mulheres que ficam a meu serviço. Talvez para que me deixem em paz e não sonhem com o matrimônio. Sou casado. Pavese não fez sua observação só pelo profundo conhecimento da mulher. Há no cerne do seu sarcasmo um forte contingente de misoginia. Deveria ter me lembrado hoje de responder a uma carta do meu amigo, o critico Frederico Morais, e não me acumpliciar, torpemente, com a mais perigosa, senão suicida, atividade humana de nossos dias, ou seja, o intercurso sexual com mulheres mais ou menos desconhecidas, como a esperta Melissa.
não poupou Sociedade dos poetas mortos, também de Peter Weir. Para ele, uma disfarçada apologia do homossexualismo nos meios universitários anglo-americanos. Embora a voracidade intelectual que absorve gregos e troianos como partes importantes de um todo seja positiva, e não necessariamente uma contradição, o que ocorre é que Brennand realmente se considera um ser contraditório, em diferentes aspectos além dos intelectuais. A referência
6
O diário do artista concentra-se, sobretudo, na narrativa de formação de um intelectual dinâmico e voraz
ao seu signo astrológico sugere que os astros cumpriram um papel em sua personalidade. Como ele diz no diário: “é a minha sina e não há como consertar as minhas desigualdades, ou melhor dito, ambiguidades. Sou um geminiano”. Não é por acaso que, no terceiro volume dos diários, surge um alter ego chamado Nonato, que o contraria em tudo e que o chama de impostor. Além de Nonato, Brennand apresenta outros dois personagens imaginários: Viriata e o Dr. Intruso.
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 30
ESTRATÉGIAS LITERÁRIAS
Por sempre ter tido o hábito de reescrever os diários, Brennand os modificava com a intenção de contar os acontecimentos da própria vida a partir de recursos literários. Nonato surge no início do terceiro volume dos diários para solucionar o que parece ser um conflito insolúvel vivido por Brennand entre vida e ficção, pois, para o artista, parece que a sua vida passa a depender das palavras, e não o inverso. Diz Nonato a Brennnand, como um conselheiro: “uma lhe veste melhor que a outra. As palavras são o seu uniforme habitual, ou melhor, são a sua máscara, a capa negra e o florete…”. Conflito resolvido, ainda que momentaneamente. O alter ego Nonato se caracteriza, então, como uma pessoa que não só deseja contrariar Brennand, como também busca evitar o pior nas andanças “nem sempre muito seguras” do artista. “Nonato preenche de uma
REPRODUÇÃO
Diários
A HISTÓRIA DAS NARRATIVAS PESSOAIS
7
maneira exemplar este vazio que pode me levar, se não ao desastre, pelo menos ao descrédito”, escreve Brennand. E mais: Nonato chama-o de parvo, idiota, questiona-o sobre os diários, chama-o de alguém do século passado, com sarcasmo e “intrujice”. As incursões sobre as vidas fictícias de Nonato (que acaba se transformando em Renato), Viriata e Dr. Intruso ficam ainda mais intensas no quarto volume dos diários, escrito entre 2007 e 2013, no qual eles parecem ganhar proeminência sobre a vida do até então protagonista Francisco Brennand. Outro recurso literário se vê no primeiro volume
dos diários. É interessante perceber, por exemplo, que a mala enorme que o artista levou do Brasil à França em 1949, com panelas, víveres e roupas de inverno (Paris ainda passava por necessidades de abastecimento após a Segunda Guerra Mundial), tornou-se um fio condutor da narrativa que só encerra no final do primeiro volume dos diários. Uma saga que durou 10 anos. Tratava-se de uma mala enorme que não podia subir as escadas dos edifícios parisienses, que foi extraviada na ida para a França e que ganha um final imprevisível no desfecho do primeiro volume dos diários.
O gênero diário como conhecemos hoje – uma narrativa pessoal sobre acontecimentos prosaicos e extraordinários de uma vida humana, ao qual a obra de Francismo Brennand aqui tratada se filia – se firmou no período romântico, como aponta Leyla Perrone-Moisés, livre-docente pela Universidade de São Paulo. A virada para a interioridade trazida pelo Romantismo, em uma espécie de reação crítica ao excesso de exterioridade e de espírito científico das Luzes, se manifesta não apenas na disseminação do gênero romance, mas também no surgimento de uma forma muito particular de narrativa pessoal – o diário. Os valores humanísticos que permearam os séculos XV, XVI e XVII chegam ao ápice no século XVIII, com a consolidação do que ainda pode se chamar hoje de “visão de mundo moderna”, graças a diversos fatores cujo catalisador maior foi o Iluminismo e seu projeto de racionalidade. O Romantismo cumpriu o papel de problematizar a distância do homem de si mesmo, o espírito de cálculo e de lucro, a submissão do sujeito a um tempo contado, a falta do espírito de solidariedade e o abandono do sentimento a um universo isolado de uma mística que não caberia em um mundo cuja intenção é progredir, por exemplo. Os diários surgem, então, como uma tentativa de apreender um tempo que passa velozmente, e podem até ser interpretados como uma ilha de vazão livre de pensamentos, sentimentos e desejos – praticamente um lugar de resistência no auge da racionalidade moderna. O Iluminismo surge como radicalização de um humanismo que já se delineava desde o século XVI, com as grandes navegações e as descobertas científicas e astronômicas, que situavam o homem, e não mais Deus, como medida de todas as coisas. Como movimento “moderno antimoderno”, como descrevem Michael Lowy e Robert Sayre na obra Revolta e melancolia, o Romantismo defende a essência da modernidade – o homem como medida de todas as coisas –, mas critica os percursos da modernidade que levavam a isso. É possível interpretálo como um movimento de “correção” de percursos. Há quem relativize este marco do gênero no Romantismo. Para o professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Pernambuco e crítico literário Anco Márcio Tenório Vieira, os diários como narrativas pessoais não nascem exatamente no período. “Os diários surgem no mundo moderno, mas não no mundo moderno consolidado do século XIX. Trata-se daquele mundo que já vai se formando durante o Renascimento, no século XVI. É preciso lembrar que as anotações de Leonardo da Vinci, por exemplo, são formas de diários. Nelas, você consegue, por exemplo, acompanhar o dia a dia dele”, defende. A virada para o individualismo vai se constituindo desde quando a hegemonia da Igreja e da religiosidade na vida social da Idade Média perde protagonismo para a crescente preponderância do valor humano, que norteia as grandes navegações, as novas pesquisas científicas, o despontamento das noções de perspectiva, volume e proporção do corpo humano na arte, entre outras sinalizações. No contexto das navegações, Anco Márcio lembra que Cristóvão Colombo escreveu diários, que a Carta de Pero Vaz de Caminha também pode ser vista como uma espécie de diário, assim como dois documentos de viagem de Pedro Álvares Cabral, com anotações pessoais sobre a vida na colônia. Apesar dessas ponderações, parece não restar dúvida de que o tipo de texto de alta subjetividade que lemos como diários, com descrições, impressões e reflexões sobre o cotidiano, as relações, a vida, enfim, surge no Romantismo. E esse tipo de narrativa pessoal ainda importa. O individualismo contemporâneo, cujas raízes também remontam aquele período artístico, tem produzido uma série de obras que PerroneMoisés agrupa no gênero “autoficção”. A pesquisadora não deixa de problematizar, no entanto, que a autoficção que interessa ao leitor é aquela que leva o mundo em consideração, em que o sujeito se relaciona com o mundo de modo engajado. A autoficção que cai em um mero solipsismo e em um narcisismo vazio só interessa a quem a escreve. (BB)
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 31
CON CAPA TI NEN TE AUTORRETRATO AOS 70 ANOS, 1997.
2007-2012 [CAPÍTULO 4] O Mestre costumava achar divertido quando as pessoas reclamavam dos governos, da deficiente atuação policial, das forças de segurança, do permanente caos dos serviços urbanos e dos índices crescentes de criminalidade nas grandes cidades. Ninguém governa ou polícia uma cidade com mais de um milhão de habitantes (Atenas, no século de Péricles, não chegava a cem mil pessoas e era o centro do mundo). O filósofo e urbanista franco-italiano Paul Virílio de há muito nos advertia sobre a futura catástrofe urbana, referindo-se às megalópoles. “Não são mais cidades, mas fenômenos de mutação, catástrofes que se preparam. O século XXI terá que reinventar a relação do homem com a Terra. A paz civil é o primeiro dever de uma cidade. A palavra ‘urbanista’ vem do domínio militar. O urbanista era aquele que trabalhava com as muralhas. Na verdade, foi a circulação da tropa que determinou a dos carros.” Certa vez, o argentino Jorge Luis Borges previu que “no futuro nos defrontaremos com dois tipos de pessoas: ou soldados ou bandidos”.
Bom, isso são considerações de alguém que se acha na obrigação de escrever um diário, cujo clímax foi alcançado no início desta narrativa com a preocupação do destino de sua grande mala, que no momento deve repousar no mais profundo dos porões desse navio. Em que posição foi colocada? Será que está na vertical ou na horizontal? De qualquer forma, ela ainda me incomoda. Em todos os instantes na presumível chegada definitiva a Cherbourg e na ação de retirada desse volume em direção ao comboio, que nos levará a Paris, recomeça a minha ansiedade de perder essa mala para sempre, como alguém que carrega escrupulosamente um morto querido, o qual, mesmo a distância, tem de chegar ao seu destino e à consumação das exéquias, enfim, às cerimônias necessárias a um último adeus. (Vol. I, p. 40) Ao narrar os acontecimentos da própria vida, Brennand consegue criar tensões e ressaltar o caráter imprevisível e insólito de alguns eventos, mostrando uma habilidade literária praticamente desconhecida pelo grande público. É o caso da
9
visita dos filósofos e escritores JeanPaul Sartre e Simone de Beauvoir ao Engenho São Francisco, na Várzea. Ambos estavam no Recife em 1960, devido a um congresso de crítica literária que acontecia na capital pernambucana, e, no mesmo período, Carlos Pinto Alves, amigo de Brennand e admirador de Beauvoir, estava hospedado na casa do ceramista. Carlos Pinto Alves decidiu convidar Sartre e Beauvoir para um encontro dominical na casa do Engenho São Francisco, mas, devido ao atraso dos filósofos para o encontro, agendado para a manhã, o amigo, que era muito católico e já tinha perdido a missa da manhã, resolveu ir a uma missa
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 32
vespertina na Igreja do Espinheiro. Francisco Brennand, por achar que a ida à missa seria breve, resolveu acompanhá-lo. O resultado foi que, ao voltarem ao engenho, a comitiva dos filósofos estava de saída e o contato longo e profundo que deveria ocorrer entre os anfitriões e os visitantes foi tão breve e inusitado, que Carlos Pinto, articulador de todo o encontro, não disse uma palavra sequer aos visitantes, segundo narra Brennand. A excentricidade do episódio – é curioso o fato de a filósofa e escritora feminista Simone de Beauvoir ter visitado um engenho, um dos maiores símbolos arquitetônicos do patriarcalismo nordestino – atinge o ápice quando, no final do dia, todos
LILITH, [DA SÉRIE] ESTUDO PARA CERÂMICA. AQUARELA S/ PAPEL, 37 X 18CM, 1977.
2007-2012 [CAPÍTULO 6] Eu não temo a exiguidade de alguns desses capítulos, como se nada eu tivesse para revelar. Acontece exatamente o contrário, eu teria muito a contar e, na maior parte das vezes, policio-me para evitar a prolixidade, aliás, muito comum nos escritos do Mestre, haja vista o seu enorme diário (não contando com tudo aquilo que ele veio a destruir). Vejam bem, neste exato momento me encontro de posse de uma anotação não só curiosa como também muito próxima de um despropósito. É muito comum, embora um tanto estúpido, indagar de um artista quando é que ele se apercebeu de sua vocação, qual foi o seu primeiro quadro realizado etc. ... Seria o equivalente de se perguntar a um santo qual o momento ou data ou hora em que ele distinguiu a tendência à santidade. Como se fosse perceptível a um santo avaliar a natureza de sua bem-aventurança sem que, de imediato, não a perdesse de todo. Na referida nota, o Mestre afirma numa redação prolixa e confusa (?) o seu primeiro contato com o mundo nebuloso da pintura: Foi na casa de meu padrinho Antonio e de minha tia Alice, irmã de minha avó materna, ainda muito jovem, com seis ou sete anos que, de súbito, me deparei com o enigma. Dentro de uma sala penumbrosa, onde jamais se costumava abrir portas e janelas, havia um único quadro pendurado, muito alto na parede, ligeiramente inclinado para frente à maneira antiga de se mostrar pinturas nos Salons franceses. A tela agigantada e numa bela moldura de estilo representava, em meio corpo, a solene figura do Cristo com suas mãos erguidas à altura de seu iluminado coração. Aliás, é preciso frisar a total inexistência de qualquer outra pintura em toda aquela casa. Quanto a fotografias e espingardas de caça, sobravam visíveis por todos os cômodos no primeiro andar, depois de se subir uma escada em caracol com degraus muito estreitos que rangiam ao menor toque. Inclusive, em um dos quartos, jazia empilhada a maior coleção da revista Fon-Fon, que jamais foi possível alguém adivinhar tão abundante. Certamente, leitura diária e apaixonada da minha madrinha. Meu padrinho, um requintado fotógrafo, possuía o equipamento necessário para exercer com sucesso a sua profissão de amador. Além disso, era um caçador fortuito nas suas não muito escassas sortidas nas florestas da Alemanha. A casa, mais alta que larga, ficava de esquina no extremo da praça do Bairro da Várzea. Não muito longe, portanto, das terras do Engenho São João pertencentes ao meu pai. Fazíamos fronteira, poder-se-ia dizer.
se reúnem para conversar sobre os momentos em que Beauvoir e Sartre estiveram no engenho. Durante a visita, Deborah, que tinha ficado na casa, ofereceu uma série de iguarias pernambucanas para os visitantes, inclusive uma grande fruteira, “repleta de frutos tropicais, arranjada com toques de um Gauguin e de requintadas naturezas-mortas flamengas, onde se misturavam as mais variadas espécies”, como narra Brennand. Para sua surpresa, o que aconteceu é que esse arranjo, que não era para ser tocado, “apenas apreciado de longe, como quem visualiza um quadro ou uma vitrine” (prossegue o autor dos diários), foi devorado pelas celebridades francesas. Como disse um dos empregados do engenho à noite, na hora da ceia: “Meus amigos, eles comeram até a decoração!”. Um final surpreendente para um acontecimento que já
No terceiro volume, surge o alter ego Nonato. Brennand também cria dois outros personagens imaginários se anunciava, desde o início, o episódio de um livro de ficção. Os diários de Brennand apresentam-se como um espaço de fermentação de ideias, de reflexão sobre questões humanas e de desabafos sobre os caminhos e descaminhos do próprio trabalho. Mais, muito mais isso que um lugar para contar desventuras amorosas, segredos familiares e grandes crises internas. Não porque ele tivesse a intenção de esconder de si ou de um possível público essas questões, mas
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 33
10
9 EM 1997 Autorretrato aos 70 anos 10 ESTUDO PARA CERÂMICA Lilith, aquarela s/papel, 1997
porque o artista colocou – e ainda coloca – seu trabalho como projeto e centro de sua vida. Talvez, neste caso, os diários tenham servido como um espaço de reafirmação do que ele já sentia como missão. Como escreve: “o que existe é a ordem do artista, que significa dizer: trabalho doloroso e sacrifício. Enquanto não colocar a pintura na frente de tudo, nada irá bem, assim como jamais alcançarei a almejada ordem”. Os diários atestam, portanto, que, assim como um “homem da Renascença”, Brennand também tem buscado a perfeição e a ordem que vêm de uma dedicação e uma absorção completa àquilo que se credita não só como missão, mas também como fonte de vida, a arte.
Entrevista
MARIANNA BRENNAND “ELE TINHA UMA CULTURA IMENSA E ISSO ME IMPRESSIONOU” No final de 2002, após quatro anos
estudando Cinema na Califórnia, a brasiliense radicada no Rio de Janeiro, Marianna Brennand, voltava ao Brasil com um projeto em mente: dirigir um documentário sobre seu renomado tio-avô. No regresso, aos 22 anos, veio direto ao Recife para contatar o parente e, então, recebeu em mãos um tesouro: o diário dele. A partir desses escritos, construiu a narrativa de Francisco Brennand (2012), vencedor de duas honrarias na 36ª Mostra Internacional de Cinema: Melhor Filme Brasileiro da seção Novos Diretores da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) e o Prêmio Itamaraty de Melhor Documentário. Durante a realização da obra, a roteirista, produtora e diretora descobriu o acentuado interesse do artista em publicar esses textos. Nesta entrevista concedida à Continente, na Oficina Brennand, ela fala sobre o processo de edição e publicação do diário, ao lado do pintor e ceramista.
CONTINENTE Como surgiu a ideia de fazer essa publicação? MARIANNA BRENNAND Brennand escreve esse diário desde 1949. E, alguns anos depois que começou a escrever, já esboçava o desejo de publicá-lo. O próprio diário tem o registro dele mostrando esses escritos para editores e amigos com esse intuito. Acabou não acontecendo. Quando eu vim fazer o documentário sobre a vida e a obra dele, descobri o diário. CONTINENTE Qual foi o ano em que você começou a realizar o documentário? MARIANNA BRENNAND Cheguei aqui no final de 2002. Eu me formei em cinema na Califórnia e vim direto para o Recife, para fazer o documentário. Nas conversas, ele me mostrou o diário e me
entregou os manuscritos. Na verdade, eram transcritos. Ele já tinha passado tudo para o Word, com a ajuda de uma secretária. Após uma pré-edição, me entregou esse material, que serviu como guia para mim, como um mapa para construir a história de Brennand e contar um pouco sobre sua vida e obra no filme. Nas nossas conversas, ele me demonstrou que o seu grande sonho era que esse diário fosse publicado em vida. Eu acabei assumindo esse compromisso, que, quando eu terminasse o filme, esse seria um projeto que levaria à frente. CONTINENTE E já ali você leu todo esse material? MARIANNA BRENNAND Li muito. Na época do filme, para construir o documentário, a narração, que é toda baseada no diário. Ela não tem nenhum trecho literal, mas usei o conteúdo do diário, o espírito do Brennand que está ali dentro para construir uma narração que é muito íntima, que tenta fazer um retrato psicológico dele, sentimental. Tem trechos que sei de cor. E agora, para editar, a gente passou por um
“Brennand se editou ao longo da vida. Esse processo de supressão, a grande parte aconteceu antes da diagramação” processo de dois anos editando o livro, inúmeras revisões, formatação. CONTINENTE Como foi esse processo? MARIANNA BRENNAND Foi um processo em conjunto. Sempre consultando. Brennand me deu muita liberdade. Mas, ao mesmo tempo, deixou muito claras as coisas que ele queria. Ele queria manter fiel que era uma obra literária. Às vezes, as pessoas perguntavam, “mas não tem desenho no diário, não tem ilustração?”. A gente tem isso tudo no projeto gráfico. A capa tem um design lindo, uma estampa gráfica que a gente fez a partir de obras dele, mas o miolo do livro, mesmo, ele queria que fosse fiel ao diário. É literatura, realmente. Então,
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 34
não tem ilustração. Só no volume quatro, mas faz parte da narrativa. O narrador encontra os manuscritos. Por isso que eles estão lá no meio do diário. Sabia que não podia ilustrar o discurso dele. E eu queria fazer uma coisa que remetesse um pouco ao passado, que remetesse às referências dele, dos livros, dos diários que ele leu. Mas que, ao mesmo tempo, tivesse uma pegada contemporânea, moderna. As ideias que eu tinha, preparava alguma coisa, mostrava para ele. Geralmente, ele aprovava. Tivemos um designer maravilhoso, que trabalhou comigo, que é o Flavio Flock, que tinha feito toda a arte gráfica do documentário. Ele conhecia o universo de Brennand e o diário. CONTINENTE Quando você fala em edição, a parte em que ele participou foi a do texto, ou ele chegou a suprimir trechos? MARIANNA BRENNAND Na verdade, Brennand se editou ao longo da vida. Esse processo todo de supressão, a grande parte aconteceu antes de a gente começar a fazer a diagramação, mas, ao longo dos dois anos, ele mexeu numa coisa ou outra, sempre que fazíamos uma revisão, ele dava uma lida, fazia um ajustezinho. Agora, como editora, “acho que a gente tem que cortar isso”. Isso eu não fiz. O diário é o que ele escreveu e o que não existe no diário foi também ele que cortou. CONTINENTE Você tem ideia do quanto já foi descartado por ele do que escreveu? MARIANNA BRENNAND Na verdade, os originais ainda existem. Quando ele se edita, corta no próprio caderno, tem folha dele mesmo riscando, mas isso num processo de escrita diária, quando você escreve, “ah, não quero mais isso”. A partir do momento em que ele passou para o computador, que já foi transcrito, acho que pouca coisa, o que ele eliminou mesmo, o grosso, foram esses anos, de 1963 a 1974 – ele pegou esses cadernos e queimou num fogo de cerâmica, para não ter nenhum vestígio do que ele tinha escrito nessa época. CONTINENTE Agora, você já está acostumada com essa obra. Mas qual foi a impressão que teve dessa pessoa, que é da sua família, que você conhecia pelo lado afetivo, ao ler esse diário pela primeira vez?
JORGE BISPO/DIVULGAÇÃO
CONTINENTE Há um volume de que você goste mais? MARIANNA BRENNAND Para fazer o documentário, dividi o diário em temas, “mulheres”, “citações”, “sexualidade”, “sagrado”, “pintura”, “escultura”, e o bom do diário é que ele é episódico, então é uma leitura muito densa, mas, ao mesmo tempo, é leve, porque você pode ler um pedacinho aqui, se você não quiser seguir uma cronologia.
MARIANNA BRENNAND Um grande artista. Fiquei impressionada. Primeiro, com a dedicação de uma pessoa muito fiel, muito certa do que quer, custe o que custar, apesar de todas as dificuldades, de todas as dúvidas que teve. Mas a certeza de que ele tinha de persistir nesse ideal, que era o fazer artístico, fosse pintando, fazendo cerâmica, restaurando a fábrica que pertenceu ao pai dele, de uma dedicação, de uma lucidez impressionante, e uma cultura que me deixou quase constrangida. Quando Brennand começou a escrever o diário, tinha 22 anos. Eu tinha 22 anos, quando voltei da Califórnia e comecei a ler. Fiquei me sentindo completamente iletrada, ignorante, porque ele já começa o diário com o volume de Guerra e paz, fala sobre o livro, disseca, tem o poder de associação, de crítica, do que lia, tudo o que já tinha lido, todos os escritores, todos os pintores, artistas que conhecia. Ele tinha uma cultura imensa e isso me impressionou. E impressionou também a maneira verdadeira como
ele se colocou no diário. Eu senti uma grande responsabilidade de ter ali, em mãos, esse material. Na primeira vez em que eu li, tive certeza de que não poderia fazer um documentário sem incorporar alguma coisa do diário. Uma coisa é o depoimento dele, a obra dele, outra é o sentimento dele, o que ele escreveu. CONTINENTE Qual é o diálogo dessa publicação com o documentário? MARIANNA BRENNAND O documentário foi todo inspirado pelo clima do diário, pelo Brennand que eu vi ali, como a narração do filme foi construída a partir disso, do que eu sentia que eram as preocupações dele, que eram as suas questões. Então, desde o início, em que ele inaugura uma obra e não tem ninguém, e aí ele entra num táxi e foge para a oficina, que é o refúgio dele, e o taxista diz que isso aqui parece o Egito, um lugar misterioso; o sonho dele de que a oficina foi alagada e de que vai perder tudo. Todas essas coisas são dilemas, preocupações e questões existenciais que eu senti que existiam no diário.
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 35
CONTINENTE Ele voltou a escrever depois desse processo todo da publicação? MARIANNA BRENNAND Ele continua escrevendo. Para em 1999, porque já tinha escrito muito, durante 50 anos. Nos anos 1990, decide que vai escrever praticamente todo dia. Então, ele está numa atividade literária muito intensa. E já disse isso para mim, que isso o afastou da pintura, porque estava escrevendo demais e pintando menos. Mas acredito que ele termina realmente o diário. Ele dá o fechamento, não simplesmente para de escrever. E aí ele termina em 1999. Em 2006, que foi quando eu fiz o documentário, quando a gente terminou, ele voltou a escrever em 2007. Então, esse revirar, esse cascavilhar na vida dele de novo, ele repensando tudo, foi um processo muito intenso. CONTINENTE O leitor pode entender esse livro também como uma autobiografia? MARIANNA BRENNAND No caso de Brennand, é uma escrita reflexiva. Ele reflete sobre tudo, arte, pintura, a própria existência, a condição humana, os relacionamentos, é bem profundo. Se ele fizesse uma autobiografia, não iria conseguir colocar tanto. O gênero diário é muito raro. Tem muito do conhecimento dele. O Brennand é muito erudito e, ao mesmo tempo, é muito jovem. Sempre que alguém vem aqui pra entrevistá-lo, falar com ele, todo mundo sai com essa sensação. Ele já leu o livro novo de Ian McEwan, Enclausurado. Está assistindo a uma série de TV. Ele é muito atual. Olha para o passado, mas também tem os livros dele, tem as preferências dele, os escritores dele, aos quais sempre volta, mas ele é muito atual, lê o jornal todos os dias, assiste à televisão, vê filme. Todo mundo fica chocado, porque ele é muito atualizado. DÉBORA NASCIMENTO
BRENO E GABRIEL LAPROVITERA
Artigo
FIORINA MONGIOVI A JUNÇÃO INCONCEBÍVEL Quando se vai à Oficina Cerâmica
Francisco Brennand, o impacto se dá antes mesmo de se chegar a ela. O longo caminho por uma estrada de barro cercada pela mata já prepara a atmosfera do que está por vir. A oficina fica recolhida nessa região distante do centro da cidade, no Bairro da Várzea, e impõe sua grandiosidade já durante o percurso silencioso e em meio a uma vasta natureza. O impacto segue ao entrarmos na oficina e nos depararmos prontamente com um caminho de esculturas, uma organização que não remete a um ateliê artístico, mas a um cenário mitológico: um caminho protegido lado a lado por diversos pássaros, uma espécie de caverna com um grande ovo de cerâmica pendurado e a citação de Heráclito em uma pedra: “Tudo flui…”. Logo se compreende que não estamos só adentrando no mundo de Francisco Brennand, mas também no mundo arquetípico a que ele nos reporta, para além da temporalidade, ao que há de essencial no humano, pois ali não temos uma arte de questões contemporâneas, mas uma arte atemporal e universal. Essa atmosfera mítica se dá devido a esse encontro com um local que se assemelha a um templo, mas um templo que seria demasiadamente humano: figuras fálicas, pernas de mulheres, ovos de cerâmica, representações de pedaços do corpo que remetem imediatamente ao mais primário na constituição da subjetividade, que é a relação com meu corpo e com o corpo do outro, pois as primeiras percepções de um bebê não são de inteireza, mas de se relacionar com partes: o seio, um olhar, o próprio pé. Devido a essas características das esculturas, a Oficina de Francisco Brennand remete a um verdadeiro “inconsciente a céu aberto”, para usar uma expressão da psicanalista Colette Soler, não apenas no sentido da temática presente, mas também na transparência com que ela se apresenta: “posso prosseguir na minha aventura
cerâmica, sem jamais deixar de lado as esculturas que representam uma espécie de hipertrofia do meu processo habitual de criação: deformar de mil maneiras o corpo disponível”, comenta Brennand, em um dos escritos de seu diário. Partes do corpo separadas e unidas de formas variadas, transformadas pelo processo de criação, dando origem a um outro tipo de corpo: nem o meu, nem o do outro, o corpo que é toda obra de arte. A arte assume o lugar que torna possível o que seria impossível, na qual qualquer tipo de formação ou deformação pode ser feita; diante do encontro do sexo, da reprodução da vida, da origem e da morte. O espaço da arte é onde se pode rearrumar esses impossíveis de serem compreendidos através da metáfora dos corpos: “Mesmo que as mulheres careçam de realidade, apenas valendo o ligeiro corpo a corpo e certos traços imprecisos de sua silhueta (que apanho no outro dia, riscados no papel ou nas fotografias), mesmo assim, diante dessa
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 36
dispersão, a arte seria o poder que realiza a junção inconcebível”, escreve o artista sobre esse processo. Todo esse cenário é construído com a matéria-prima da terra, a cerâmica, e Brennand tem uma bela história com relação à escolha dela para produzir suas obras. A intenção primeira do artista era trabalhar com pintura, considerada uma arte “maior”. Porém, na sua visita à França, ele se depara inúmeras vezes com exposições de arte em cerâmica feita pelos seus mais admirados pintores. Aqui, não podemos deixar de rir ou de nos maravilharmos com as ironias que a vida oferece: tudo apontava para que ele voltasse ao Brasil, para a fábrica de cerâmica da família e utilizasse essa íntima matéria para criar a sua arte. Aquela que, a princípio, não queria utilizar. Não é preciso saber as particularidades da relação do artista com sua família, mas não podemos deixar de lembrar de todo o movimento
psíquico constitutivo de uma trajetória de busca de autenticidade: negar o familiar, as raízes, o que até então fez parte de sua história, muitas vezes é importante para, quem sabe, retornar a elas de uma forma diferente. Embora o desejo do sujeito seja sempre do Outro, como afirma o psicanalista Lacan, no sentido de que não existiria um desejo partindo do vazio, mas sempre dentro da estrutura linguística em que o indivíduo está inserido, existem, sim, o formato, as nuances, as particularidades que um desejo pode assumir, e isso é pessoal. No caso de Brennand, essa reapropriação do uso da matéria-prima que já lhe era familiar se torna ainda mais interessante, pois aqui se trata do barro, algo que nos remete às origens: um material rústico, maleável, mas que, após levado ao fogo, se torna pesado, forte, concreto, produzido a partir de gestos e rituais. O fogo, que dá consistência e certeza da durabilidade, da força e da manutenção
Todo o cenário da Oficina tem a terra como matéria-prima, da qual o artista se apropria para construir sua obra da pedra; o fogo que pode destruir, também pode criar e fortalecer. E aqui nos remetemos novamente a Heráclito, que afirmava ser o fogo o começo de toda as coisas, esse elemento tão essencial para transformações. Do fogo que tudo origina ao fogo que remete à sexualidade, esse parece ser o principal elemento para criação das obras do artista, tanto em sua forma real quanto em sua forma metafórica. A obra feita de cerâmica, que traz algo de tão primitivo, liga-se à temática de uma sexualidade mitológica, como percebemos nessa passagem do diário:
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 37
“Conforme penso, ao completar dentro de poucos dias cinquenta anos, deixarei assinalado, aqui, na Oficina Cerâmica, como em alguns templos gregos, um espaço reservado a algumas esculturas homenageando a grande prostituta”. A impressão é que essa via inconsciente se expressa sem restrições, e todo artista tem mesmo a função de mostrar o que existe para além do conhecido e familiar. Na expressão artística, não é necessário que os conteúdos passem pela consciência, eles podem se manifestar diretamente na arte. Como afirma Lacan (aliás, em uma metáfora do vaso), a arte, assim como o vaso, faz aparecer o vazio enquanto o contorna. Francisco Brennand aponta para esse contorno, quando coloca que “a arte seria o poder que realiza a junção inconcebível”: o vazio ou o inconcebível se torna, assim, não só o centro propulsor da criação da arte, mas também o seu resultado.
HALLINA BELTRร O
CON TI NEN TE
Histรณria
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 38
FAQUIRISMO Um estranho universo Em Cravo na carne – Fama e fome, Alberto de Oliveira e Alberto Camarero resgatam a trajetória das “bailarinas exóticas”, mulheres que se destacaram em meados do século passado por jejuar em público TEXTO Bolívar Torres
A Galeria Ritz se parece hoje com
a maioria dos centros comerciais de Copacabana. Pequenas lojas, brechós, um futuro restaurante a quilo com preços modestos… Enquanto cabeleireiros abordam os visitantes oferecendo cortes e lavagens, alguns comerciantes colocam suas cadeiras de praia em frente às vitrines e jogam conversa fora, em clima de informalidade. Nenhum deles, nem os mais velhos, sabe que a estreita galeria em forma de T, com suas paredes emboloradas e sua decadência típica do bairro, foi outrora um dos principais palcos de uma arte perdida: o faquirismo feminino. Foi lá que, no final dos anos 1950, período de ouro da atividade, a “bailarina exótica” e faquiresa Georgina Pires Sampaio – conhecida pelo nome artístico Suzy King – realizou a mais polêmica de suas provas. Trajada num biquíni sumário, encerrou-se em uma urna de vidro repleta de cobras para um jejum que deveria durar 110 dias, recorde mundial da categoria. O episódio causou comoção pública,
rendeu inúmeras manchetes nos jornais, mas terminou em polêmica e confusão, sem que a faquiresa conseguisse atingir a marca. Suzy não é a única expoente da categoria, que, apesar de ter influenciado a cultura das celebridades no Brasil nos anos seguintes, desapareceu a partir de 1960. Nomes como Verinha, Rossana e Marciana – que, no passado, enfeitiçaram o público com sua beleza e mistério e desafiaram normas e convenções – foram até aqui desprezados pela história cultural do país. Só agora, mais de cinco décadas depois, o estranho universo do faquirismo volta a ser dissecado na obra Cravo na carne – Fama e fome, dos pesquisadores Alberto de Oliveira e Alberto Camarero, que conta a trajetória de 11 mulheres que ganharam notoriedade por jejuar em público na primeira metade do século passado. “Até a publicação do livro, a existência de mulheres que se dedicavam ao faquirismo no Brasil estava esquecida”, explica Alberto Camarero. “Estivemos na maior parte
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 39
dos lugares onde aconteceram provas de jejum realizadas por faquiresas no passado, mas encontramos apenas algumas pessoas da época que tinham a vaga lembrança de terem visto uma faquiresa. Na Galeria Ritz, por exemplo, não encontramos o menor vestígio ou lembrança da tumultuada passagem de Suzy King por lá.” Mesmo tendo caído em um ostracismo geral, o faquirismo permanecia vivo na memória de Camarero. Ele era criança quando, em 1958, presenciou, por trás de uma vitrine, a performance de uma faquiresa chamada Verinha. A imagem da mulher corajosa, que “desafiava a morte em uma prova de jejum e suplício” (como dizia um sensacionalista anúncio no local), marcou-o para sempre. Já adulto, intrigado com a falta de informação sobre o assunto, passou a investigar pistas de Verinha e, depois, sobre o faquirismo de forma geral. Pesquisando em jornais e revistas da época, mas também registros e documentos em arquivos históricos, bibliotecas e cartórios, além de
REPRODUÇÃO
MARGINAIS
CON TI NEN TE
História
1
localizados alguns raros sobreviventes que conviveram com algumas das faquiresas, Camarero e o historiador Alberto de Oliveira realizaram um verdadeiro trabalho de detetives. As trajetórias muitas vezes clandestinas de suas personagens aumentaram as dificuldades. Uma delas trocou de identidade e morreu sem que isso jamais fosse descoberto em vida; outra, condenada à prisão pelo sequestro de três irmãos, fugiu e nunca foi encontrada pela polícia, embora tenha continuado raptando outras crianças (a pesquisa de Oliveira e Camarero permitiu, inclusive, que uma das vítimas desaparecidas reencontrasse, décadas depois, sua mãe biológica, como mostrou uma reportagem no Fantástico). A dupla monta uma cronologia do faquirismo do Brasil, desde as pioneiras da década de 1920 até a – segundo eles – última grande
expoente da categoria, Suzy King. Todas elas compartilham histórias de vida erráticas e tumultuadas, quase sempre com fim trágico. Conflitos violentos com os homens são regra, sejam eles maridos, empresários, fãs ou policiais. A francesa, radicada no Rio, Rose Rogé foi atacada sexualmente por um padre – e depois desmoralizada e arruinada ao denunciá-lo. Yvone foi assassinada pelo marido, o faquir e mentor Lookan. Rossana se suicidou por uma desilusão amorosa e Suzy King acabou espancada duas vezes no mesmo dia: primeiro, ao ser denunciada por trapacear em seu jejum; depois, na delegacia onde tentou… prestar queixa pela agressão. No fim da vida, destruída com o desaparecimento de seu filho esquizofrênico, faleceu sozinha em um trailer estacionado em uma área de prostituição nos Estados Unidos.
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 40
O faquirismo não era exatamente uma vocação. Suas representantes abraçavam a atividade num ato de desespero, quando nada mais havia em seu horizonte. Enterradas em urnas debaixo da terra ou expostas em público, encerradas na companhia de serpentes, superando os limites da fome, suas proezas as colocavam facilmente nas manchetes de jornais sensacionalistas. Assumindo-se como faquiresas, conseguiam se reinventar depois de experiências fracassadas e começar do zero sob o disfarce de um personagem misterioso. Mesmo que hoje pareça insólito, o faquirismo foi uma atividade realmente levada a sério até o final dos anos 1950, principalmente no que se referia aos recordes mundiais de jejum. Quebrando tabus e contradizendo o estigma do “sexo frágil”, as mulheres que tentaram vencer nessa área fizeram mais do que buscar holofotes: também contribuíram para a luta feminista em seu tempo. “As primeiras faquiresas que se apresentaram no Brasil foram aclamadas pela imprensa e pelo público por, na visão da época, estarem conquistando um espaço importante dominado por homens”, observa Alberto de Oliveira. “A coragem de uma mulher ao tornar-se faquiresa em uma época em que a escolha por profissões como a de atriz ou cantora já era vista com grande preconceito, contribuía, claro, ainda que de forma simbólica, à independência da classe feminina.” Especialmente a partir dos anos 1950, quando os trajes de suas representantes começaram a diminuir e o universo do faquirismo apropriouse de elementos da cultura pop e ganhou contornos erótico-marginais, a atividade parece ter antecipado a contracultura, numa época em que não se falava disso no país. Essa é a principal sacada de Oliveira e Camarero, que descobriram na figura de suas personagens as verdadeiras pioneiras do underground nacional. Num contexto bem brasileiro, eram praticamente superstars da Factory avant la lettre. “Os faquires e faquiresas apresentavam comportamentos marginais e desafiadores até mesmo dentro dos meios artísticos e circenses
REPRODUÇÃO
1 SUZY KING Vedete e cantora fracassada, foi a grande estrela da era de ouro do faquirismo RELEVÂNCIA 2 Na década de 1950, o faquirismo era uma prática que atraia um bom público, interessado em ver mulheres que desafiavam a morte num prova de jejum
de então”, lembra Oliveira. “Envolvidos por elementos da cultura mística oriental, que se tornaria moda anos mais tarde, levavam uma vida cigana e sem limites, extrapolando para fora do palco a excentricidade e a tragédia de suas exibições artísticas. Foram os primeiros artistas realmente malditos do Brasil, no melhor sentido. Ao mesmo tempo, tinham grande apelo popular. A forma como a maior parte deles vivia, acima do certo e do errado, acima da lei, acima dos limites físicos e divinos, não se parece com nada contemporâneo a eles.”
MUSA-MOR
De todas essas pioneiras, nenhuma delas foi mais radical do que Suzy King. Vedete e cantora fracassada, ganhou holofotes flertando com a infâmia. Uma subcelebridade que se alimentava do factoide pelo factoide, muito antes que existissem reality shows e chamadas online da revista Ego. Intervenções urbanas em trajes sumários e escândalos em jornais populares fizeram dela a musamor de uma certa era de ouro do
A prática não era uma vocação. As faquiresas abraçavam a atividade num ato de desespero, quando não havia mais opções no horizonte faquirismo, da qual sua figura é uma espécie de símbolo e definição. “Foi a faquiresa que mais ganhou as páginas dos jornais na época em que o faquirismo, não apenas por suas exibições artísticas e provas de jejum, mas, principalmente, pelos sucessivos escândalos nos quais se envolveu, como em 1959, quando cavalgou seminua na avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, para divulgar uma prova de faquirismo que iniciaria em breve”, explica Camarero. “Embora cada uma conservasse suas peculiaridades, a trajetória de Suzy King é a que representa melhor o que é uma vida de faquiresa, com todos os elementos sensuais, transgressores e trágicos que envolvem esse universo.”
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 41
2
Os autores decidiram terminar o livro com Suzy porque seu jejum na Galeria Ritz foi a última prova de uma faquiresa que ganhou grande destaque nos jornais brasileiros. Depois disso, até surgiram notinhas na imprensa aqui e ali, e algumas apresentações dispersas por todo o Brasil, mas nada que se comparasse à comoção das exibições de faquirismo realizadas entre 1955 e 1959. “Houve desmoralização do faquirismo por conta dos escândalos de fraudes no jejum, mas o fato é que o olhar do público também mudou”, aponta Oliveira. “As pessoas ficaram menos crédulas. Além disso, a televisão ganhou força a partir dos anos 1960 e o circo, o teatro de revista, o cinema, o rádio, várias formas de arte, perderam bastante o espaço que tinham junto ao público. Havia também uma onda de modernidade na época, uma mudança de mentalidade, e talvez não coubesse mais um espetáculo como o das faquiresas no novo mundo que se formava. Com o passar do tempo, conforme os faquires e faquiresas foram morrendo, a arte deles acabou se perdendo.”
CON TI NEN TE
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 42
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 43
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 44
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 45
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 46
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 47
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 48
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 49
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 50
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 51
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 52
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 53
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 54
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 55
Cardápio SANGUE Alerta vermelho para o ingrediente
Proibição do seu uso para fins culinários desencadeia reação de gastrônomos no Brasil, que pleiteiam, sobretudo, a permanência das tradições alimentares TEXTO Eduardo Sena FOTOS André Nery
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 56
emblemáticas receitas do que se entende por cozinha tradicional pernambucana, a galinha de cabidela. Penosa devidamente encaixada entre as pernas. Centímetros à frente, um prato fundo com vinagre medido a olho – mérito que só as grandes cozinheiras conseguem alcançar. Uma pequena raspagem de penas no pescoço da ave, três batidas com a própria faca (“é para ‘chamar’ o sangue”, defendia), seguidas por um corte delicado que lançava sangue na louça embriagada de acidez. Enquanto isso, outra mão, tão habilidosa quanto, misturava os líquidos em batidas de garfo para evitar coagulações. No fogão, a chaleira apitava anunciando a fervura da água que seria jogada sobre o animal já sem vida para retirar-lhe as penas. Quem ousasse sentir aflição, logo ouvia: “Não tem pena que não saia com água quente”. Era dona Edna. Arquétipo de milhares de cozinheiras que seguiam, e ainda
O uso do sangue em alguns pratos regionais brasileiros teve influência de receitas tradicionais da Península Ibérica
Bairro de Maranguape 2, Paulista, Pernambuco. A faca amolada no meiofio, que divide a calçada da casa nº 860 da Avenida A, era um dos primeiros passos para o almoço familiar de qualquer domingo dos anos 1980 e 1990 na casa de dona Edna. Era a partir dali que a avó da chef de cozinha e iabassê (pessoa responsável pelo preparo dos alimentos sagrados no candomblé) Carmem Virgínia seguia com o objeto perfurocortante para a área de serviço em busca da ave que, algumas horas depois, se tornaria uma das mais
seguem, o mesmo ritual, mantendo viva a tradição da receita que traz pedaços de galinha envolvidos em molho escuro e aveludado à base do seu próprio sangue. Mas aqui vale evidenciar a perspectiva do sociólogo da alimentação italiano Mássimo Montanari: “Nossa raiz está no outro”. “As ‘cozinhas de sangue’ estão em muitos povos e culturas, mostrando aspectos culinários funcionais, econômicos e, especialmente, simbólicos. A técnica culinária da cabidela mostra a necessidade de se aproveitar tudo o que os animais possam oferecer como alimento e, com isso, retomam-se os princípios ancestrais das cozinhas do mundo”, atesta o antropólogo Raul Lody, representante brasileiro na Comissão Internacional de Antropologia de Comida. Ele cita o caso da Península Ibérica, em que a cabidela, seja de galinha, pato, coelho, porco ou cabrito, é consumida de forma que tudo do
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 57
animal é aproveitado. “Desde o Império Romano, de maneira muito tradicional, e de alto valor simbólico, as vísceras dos animais estão nos cardápios da cozinha da nobreza, dos generais e dos sacerdotes. Línguas, cristas, vísceras, peles, cartilagens e o sangue ainda hoje são aproveitados na Europa”, pontua Lody. Da Itália medieval, por exemplo, ele cita o rigaglie, molho feito à base de miúdos de frango. Da Alemanha, o thüringer rotwurst; na França, o boudin, ambos embutidos feitos com sangue. Mas vem de Portugal o embrião das cozinhas regionais brasileiras, principalmente a pernambucana, na qual são encontradas receitas que trazem o insumo como um notável ingrediente que compõe os sistemas alimentares. “Os preparos típicos das mesas dos espanhóis e dos portugueses estão presentes em receitas e conceitos de nossa mesa. Os chouriços de sangue, por exemplo, mostram a proximidade e as relações culinárias com a Europa. Nesse repertório, embutidos de sangue como a morcilla, e o sarrabulho (sopa de sangue), creditado à origem do emblemático sarapatel”, pontua Lody. “Em Pernambuco, algumas receitas permanecem ainda hoje como eram feitas originalmente na dieta portuguesa: bolo de bacia, canja de galinha, galinha de cabidela, pão de ló, sarapatel”, lista a pesquisadora gastronômica Maria Lecticia Cavalcanti, no livro Esses pratos maravilhosos e seus nomes esquisitos.
CULTURA X LEGISLAÇÃO
Trazendo no próprio nome a noção de comida como um fato social total, o restaurante Altar – Cozinha Ancestral é um dos endereços do Recife no qual essas tradições são exploradas. Com dona Carmem Virgínia à frente das panelas, a casa tem justamente na galinha de cabidela o seu carrochefe. “Apesar de o restaurante ser reconhecido como um local de comida afro-brasileira, a receita não poderia faltar no cardápio, porque o prato traduz ancestralidade. Me remete à comida que veio antes de mim. Os artifícios e técnicas orgânicas de minha avó, dona Edna, para prepará-lo. É um prato que me diz quem sou e relata a vida que tive, quando digo de que forma comi cabidela”, relata a cozinheira, que
Cardápio
1
prepara semanalmente mais de 40 kg da receita, utilizando mais de seis litros de sangue fresco da ave. O Altar fica no Bairro de Santo Amaro, região central do Recife, cidade na qual ainda se pode ir a restaurantes para prestigiar o prato típico. Verdadeiras embaixadas da cozinha regional, o Restaurante da Mira e o Bar da Geralda, ambos em Casa Amarela, e o Bar do Luna, no Ipsep, são outros endereços nos quais a receita é referência de primeira ordem na capital pernambucana. Se o mercado local leva adiante a tradição, no ambiente doméstico, ela vem sendo cada vez menos executada. “Preparar receitas à base de sangue já não é uma realidade para uma nova geração na cozinha. E é preciso ter um cuidado muito grande com esse fato, que pode resultar na extinção da receita”, afirma Carmem Virgínia. O depoimento da iabassê está em consonância com o Manifesto Regionalista de 1920, assinado por Gilberto Freyre. No texto, de quase 100 anos, o sociólogo advertia que “toda essa tradição está em declínio ou, pelo menos, em crise no Nordeste. E uma cozinha em crise
Para as entidades sanitaristas, o sangue seria um resíduo animal e não um produto destinado à alimentação significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se”, lembrando a importância da comida como uma das maiores expressões do comportamento humano. “Muito do saber humano está naquilo que você come”, complementa Carmem. A perda dessa referência já é fato nos estabelecimentos de comida da Grande São Paulo e da capital do Rio de Janeiro, que proíbem a comercialização de sangue para uso culinário, ancorados nas recomendações do Decreto 30.691, de 29 de março de 1952. Na lei, consta o “novo” Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtores de Origem Animal, que, em seu artigo 417, prevê brevemente a temática. Para o advogado Lucas
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 58
Braga, existe atualmente no país um grande descompasso entre uma questão cultural e regulamentar. “Enquanto, de um lado, temos um contexto histórico e cultural, no qual são abarcadas inúmeras tradições de família, preservando o costume, na outra ponta, a Anvisa, bem como o Ministério da Agricultura, mesmo que não proíbam expressamente o uso de sangue animal para fins culinários, são extremamente rígidos com relação às condições de extração, conservação e comercialização desses recursos animais.” As entidades sanitaristas, por sua vez, reforçam nos seus argumentos que o sangue consistiria em resíduo animal, e não um produto destinado à alimentação. “O entrave está no selo de Serviço de Inspeção Federal (SIF) do sangue, já que o do animal os frigoríficos não emitem. Os restaurantes não têm volume significativo de uso de sangue, para que seja viável comercialmente para os frigoríficos custear essa emissão, que é cara. O que inviabiliza a compra do mesmo”, relata a chef paulista Janaína Rueda, uma das líderes do movimento nacional Sangue é Ingrediente.
DIVULGAÇÃO
3
1-2 ALTAR Dona Carmem Virgínia comanda as panelas do restaurante, cujo carro-chefe é a galinha de cabidela JANAÍNA RUEDA 3 Chef criou o movimento nacional que defende o uso do sangue como ingrediente
2
Outro entrave reside na insegurança jurídica causada pela ausência de definição na lei, permeada por lacunas. “Temos uma fiscalização que raramente permite a concessão de sangue animal para fins alimentícios, o que não é proibido, desde que siga as diretrizes do Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (RIISPOA). Falta regulamentação definitiva que garanta maior segurança legal aos produtores, norteando-os nos limites previstos”, atesta o advogado Lucas Braga. Ainda segundo o jurista, ao analisar a questão em âmbito nacional, é observada uma relatividade em torno das necessidades e da força cultural que tem o hábito alimentar em cada região.
Em São Paulo, por exemplo, como o sangue colhido não tem regulamentação federal para ser vendido como insumo culinário, não pode ser comercializado. Já em Pernambuco, que possui um forte consumo de produtos e derivados animais, aplica-se a legislação federal, que julga não existir maneira para certificar o produto legalmente. Em Belo Horizonte, a fiscalização não é tão rígida, pois, para a produção de produtos como a morcilla (embutido de sangue de porco), os abatedouros e frigoríficos possuem autorização para a coleta e industrialização, desde que seja feita imediatamente após o abate. “A tendência é que a Anvisa flexibilize a norma. Mas é preciso que sejam pesadas as questões envolvidas: culturais,
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 59
econômicas e regulamentais. O papel do direito é moldar-se às tratativas e costumes da sociedade, a questão cultural vem se sobressaindo, ainda que considerada irregular”, explica Braga.
#SANGUEÉINGREDIENTE
Enquanto há brechas na legislação, o setor gastronômico, assim como outros segmentos culturais, também corre atrás de suas definições, agendando a problemática no debate político. Liderado pelos chefs Jefferson e Janaína Rueda, nasceu o movimento #SangueÉIngrediente, que conta com a participação de mais de 40 chefs de cozinha respeitados em todo país, que atuam na execução e defesa dos receituários típicos que usem o insumo em suas respectivas regiões. “Nosso intuito é lutar pelas tradições, fazer uso de todo o animal, já que isso também é sustentabilidade. O conceito nose to tail, ou do focinho ao rabo, é uma forma de garantir o uso total do animal”, argumenta Janaína. A mobilização começou há dois anos, quando o próprio Jefferson, que à época comandava a cozinha do restaurante Attimo, de bandeira ítalo-caipira, foi proibido de comercializar galinha ao molho pardo (de cabidela) pela Vigilância Sanitária da capital paulista, sob ameaça de fechar o estabelecimento.
4 LA CAMIONETA Food truck oferece uma croqueta feita a partir do cozimento da galinha com seu sangue
Cardápio
4
“Passei a usar uma linguiça, feita com sangue de porco, comprada pronta para mimetizar o sangue na receita e aí me dei conta do tamanho do problema.” Foi quando levou a questão para sua aula no maior congresso gastronômico da América Latina, o Mesa Tendências, em São Paulo. “No palco, ensinei o passo a passo da receita da galinha ao molho pardo, matando a ave ao vivo. ‘Tem que cortar o pescoço dela, deixar o sangue escorrer e imediatamente batê-lo com vinagre para não coagular’”, reproduz. Estava lançado o movimento Sangue é Ingrediente para cozinheiros, foodies, pesquisadores, historiadores e entusiastas do segmento no país. “Buscamos uma revisão de leis e normas sanitaristas que impedem práticas tradicionais da cozinha brasileira”, defende Rueda, que viaja por vários estados brasileiros em busca dos pratos tradicionais feitos com sangue e verificando a forma de armazenamento e modos de preparo. Mas nem tudo é só tradição. Para hastear a bandeira ainda mais alto, cozinheiros vêm usando o ingrediente em preparos, digamos,
Além dos pratos tradicionais, alguns chefs têm utilizado o ingrediente em preparos mais autorais mais autorais, buscando gerar essa sensação de pertencimento. É o caso do chef Bruno Didier, do food truck La Camioneta, instalado no Parque da Jaqueira e especializado em cozinha espanhola. Realidade também na cozinha daquele país, a ave cozida junto ao seu sangue se transformou em croquetas, outro receituário típico da Espanha. “Buscamos fazer uma alusão ao prato-referência em uma proposta que dialogue com a comida de rua, que se possa comer com a mão, tornar a receita mais curiosa do que costuma ser”, situa Didier. A poucos metros dali, também na zona norte do Recife, André Saburó, referência entre profissionais de cozinha japonesa no Brasil, criou o
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 60
sarapatum para o cardápio do nipônico Quina do Futuro. Conhecedor da anatomia do atum, ele utiliza a espessa linha de sangue que alimenta a musculatura do animal, mais membrana, cartilagem, coração, músculo e barbatana do peixe para mimetizar o sarapatel. “Responsabilidade é a palavra de ordem na cozinha moderna hoje. É preciso fazer o uso responsável do ingrediente, extraindo o máximo do produto que você tem em mãos. E, se esse valor ajudar em movimentos com esse, melhor ainda”, anota Saburó. Para Carmem Virgínia, esse movimento de voltar ao antigo, à tradição como base para técnicas e referenciais de preparo é o futuro da gastronomia. “Tudo o que tinha de ser inventado já foi, a última grande revolução na cozinha foi a molecular. Vamos nos voltar ao que nos pertence, às receitas de família, que serão vistas como joias. Vamos retornar para o bom e velho caderno de receitas como forma de imortalizar tradições”, sugere, com a convicção de que falar de receituários no Brasil é falar de hábitos, de rotinas e, sobretudo, de identidade.
FRAME DO FILME A LUTA DO SÉCULO/DIVULGAÇÃO
Claquete
DOCUMENTÁRIO O duelo entre Todo Duro e Holyfield
A luta do século, de Sérgio Machado, rememora a disputa histórica entre o pernambucano e o baiano, tendo como ápice o último confronto, em 2015 TEXTO Luciana Veras
Corria a tarde de um domingo
de outubro e havia várias filas num shopping onde seis salas de exibição abrigavam a programação da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Dezenas de pessoas esperavam a vez de comprar ingressos, outras tantas aguardavam o início da sessão e duas delas fincavam posições diametralmente opostas,
como se fossem duelistas a esperar a hora de desembainhar as espadas. O pernambucano Luciano Torres, 51, pernambucano, trajando terno escuro e gravata estampada em tons vermelhos, era assediado por fãs, que pediam autógrafos em pares de luva de box. A 10 metros de distância, o baiano Reginaldo Andrade, 50, vestindo camisa polo
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 61
azul-marinho um tanto apertada nas mangas, fazendo sobressair os músculos do braço, era festejado por conterrâneos e paulistanos. Se alguém os chamasse pelos nomes de batismo, podia ser, até, que eles nem atendessem; mas, aos gritos de Todo Duro e Holyfield, os protagonistas de A luta do século (Brasil, 2016) tinham um momento de celebridade para além dos ringues. No filme do baiano Sérgio Machado, exibido na mostra paulistana e também no Festival do Rio (de onde saiu com o prêmio de melhor longa-metragem documental), os dois pugilistas são, ao mesmo tempo, personagens principais e inimigos figadais. A luta do século resgata uma rivalidade que, em Pernambuco, na Bahia e em todo Nordeste, é legendária: entre o início dos anos 1990 e 2015, Todo Duro e Holyfield se enfrentaram sete vezes, com quatro vitórias para o pernambucano e incontáveis episódios nos quais os boxeadores trocaram tapas em público – ou, como explicita a sequência de abertura, atropelando apresentadores em estúdios de televisão, em frente a câmeras e “ao vivo e a cores”, como
FRAMES DO FILME A LUTA DO SÉCULO/DIVULGAÇÃO
1-2 DISPUTAS Holyfield e Todo duro se enfrentaram sete vezes, com quatro vitórias do pernambucano
Claquete
“Para mim, eles são heróis. Cresci acompanhando essa rivalidade, Wagner também, e chegamos para Sérgio com essa ideia. Eu adoraria ter interpretado Holyfield. Estava animado para isso. Mas aí Sérgio começou a pesquisar e percebeu que a história era rica demais. Surgiu o documentário. Várias pessoas chegaram a mim para dizer ‘ah, tenho curiosidade para ver como os dois vão se comportar sem ser diante das câmeras de Tv’. Eu respondia que eles eram exatamente daquele jeito, como o filme mostra”, diz o ator e produtor baiano à Continente.
APRESENTAÇÃO
1
HOLYFIELD “Essa história que agora o Brasil todo vai poder ver, não só o povo da Bahia e de Pernambuco, é engraçada, é divertida, é sobre o boxe e também sobre as vitórias e derrotas de nós dois. O esporte é difícil no nosso país. Patrocínio? Nunca tive isso. As pessoas só se lembram quando estamos ganhando. Tive a ajuda de amigos para continuar no esporte, sou empregado da Prefeitura de Salvador, nunca fiquei rico, qualquer um pode ver onde moro com a minha família. O filme mostra como tem essa rivalidade entre a gente – onde a gente vai, até hoje, tem problema, né? Dá pra ver que eu não quero muita conversa com esse pernambucano (risos). Mas a nossa história também tem muita resistência, porque a gente segue lutando. Inclusive, vou conversar com Todo Duro para ver quando pode ser a nossa próxima luta. Lá para março ou abril de 2017, eu acho. E dessa vez vai ser na minha terra, em Salvador. Quero minha revanche. A filha dele pode até chorar, mas não vai sobrar nada desse pernambucano.”
repetia Todo Duro enquanto a sessão na 40ª Mostra de SP não começava. Durante a projeção, era possível ouvir o pernambucano repercutindo as cenas que se encadeavam na tela. “Tu vai apanhar de novo, baiano”, gritou Todo Duro, para gargalhada da sala. Ao término, Holyfield provocou: “A filha dele está apaixonada pelo negão. Ela quer casar comigo. Ela vai me ligar pedindo ‘por favor, não bata tanto em meu pai’”. Nova rodada de risadas e aplausos. Para ir embora, os dois mobilizaram os esforços da equipe de produção porque não aceitaram dividir o mesmo veículo. “A Mostra ofereceu um carro para levá-los, mas quem é que ficaria de costas para o outro? Tivemos que arranjar um carro para cada. Não é teatro ou marketing, eles são assim o tempo inteiro”, comentaria, dias depois, o diretor Sérgio Machado. A luta do século nasceu da admiração que os atores baianos Lázaro Ramos e Wagner Moura têm pela dupla de boxeadores. Conta Lázaro, um dos produtores do longa, que a ideia inicial era que ele interpretasse Holyfield e Wagner fizesse o papel de Todo Duro.
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 62
O documentário foi rodado entre 2014 e 2015, a partir de prêmios amealhados em editais da Bahia, do Rio de Janeiro e de São Paulo (o orçamento final, segundo o diretor, gira na casa dos R$ 600 mil). Não foi por acaso que Sérgio Machado optou por dotar a narrativa de um certo didatismo. “Fora da Bahia e de Pernambuco, as pessoas não têm a menor ideia de quem eles são. Muitos nunca tinham ouvido falar em Todo Duro ou em Holyfield. Para mim, não tinha outro jeito. Primeiro, quis fazer uma espécie de curta, para recontar essa rivalidade, e depois enveredar na vida pessoal, no cotidiano desses personagens comoventes”, expõe o cineasta, que se interessou, de imediato, pelo arco dramático que unia os dois rivais. “Como é chegar perto do topo, mas não conseguir se sustentar ali? Esses homens eram ídolos. Lembro que uma vez fui ao estádio para um jogo entre Bahia e Vitória e todo mundo se levantou para aplaudir Holyfield. No Recife, quando eu cheguei para visitar Todo Duro, perguntei se ali era a casa dele e um rapaz que passava me respondeu: ‘Todo Duro é orgulho de Pernambuco, devia ter uma estátua dele no centro da cidade, que nem a de Rocky Balboa’.” O que me impressionou muito é que o primeiro approach que fiz com os dois foi na véspera do segundo turno da eleição presidencial, em 2014. E os dois estavam distribuindo santinhos.
TODO DURO “Eu vi o filme primeiro no Rio de Janeiro, e depois em São Paulo. O ‘10’ é para o filme, o ‘100’ é para o povo dessas duas cidades, que conheceu essa história que vai emocionar todo o país. Vai mesmo, porque é uma história que aconteceu e que acontece. Nossa rivalidade está vivinha. Eu mesmo, que nunca dou as costas a ele, pode ter certeza disso. Nem ando no mesmo carro que ele. Mandar um carro para buscar eu e ele no aeroporto em São Paulo, quem disse que eu ia entrar nesse carro? Ele que vá em outro (risos). Pois o filme mostra a quantidade de vezes que ele me apanhou. Não posso fazer nada, se sou Todo Duro, o matador de baiano. Sou da Ilha das Cobras, até hoje moro lá, treino lá, todo o pessoal me conhece e está comigo. Quero mesmo é que esse filme passe lá, que o meu pessoal possa ver essa história. Agora o baiano está com medo que a gente lute de novo. Eu quero mesmo que ele marque logo essa outra luta, que eu vou matá-lo na Bahia. Todo Duro é o matador de baiano. Ele sabe disso.” 1
Todo Duro no Recife, Holyfield em Salvador, homens muito queridos em suas cidades, que ganharam dinheiro e reconhecimento, naquele momento, faziam aquele bico para sobreviver. Filmei com a ideia de abrir o filme com essa cena”, recorda o diretor. Contudo, o que ele descobriu, ao acompanhar os dois pugilistas nordestinos é que a capacidade deles para surpreender é tão diversa quanto o arsenal de golpes que desferem no ringue. O segundo documentário de Sérgio Machado já estava quase todo pronto, marcando seu retorno ao gênero que o lançara em Onde a Terra acaba (2002), depois de três ficções – Cidade baixa (2005), Quincas Berro D’Água (2010) e Tudo que aprendemos juntos (2015), quando um coadjuvante apontou um novo rumo. Em uma sequência-chave do filme, o empresário Raimundo Alves de Souza, o Ravengar, solto após cumprir pena por tráfico de drogas na Bahia, reencontra Holyfield e sugere que uma nova luta com Todo Duro seja marcada. O baiano topou na hora, o pernambucano se empolgou ao receber o telefonema e o diretor ganhou um
A ideia de promover uma nova luta entre os dois pugilistas surgiu com a produção do documentário em curso problema. “Eu tinha certeza de que seria mais uma provocação, uma galhofa, e achei que eles não teriam poder de mobilização para lutar. Já não tinha mais grana, tinha acabado todo o dinheiro da filmagem”, recorda Sérgio Machado. “Como eles foram em frente, eu pedi a amigos que filmassem a preparação de Todo Duro no Recife enquanto eu me virava para filmar Holyfield em Salvador. Até câmera emprestada eu pedi para filmar a luta”, acrescenta. A luta do século virou, portanto, o mote para o confronto ocorrido em 11 de agosto de 2015, no Clube Português, na região central da capital pernambucana. Entre os cinegrafistas presentes naquela noite de terça-feira, quando cinco mil pessoas urravam em êxtase,
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 63
estava o próprio diretor. “Foi a cena mais difícil que já filmei. Na época, eu também estava escrevendo um roteiro para Walter Salles sobre Popó e tinha visto muitos documentários de boxe, várias ficções e lido vários livros, um deles sobre Muhammad Ali voltando a lutar já velho. Fiquei com muito medo dessa luta. Já tinha me afeiçoado aos caras e ficava agoniado só de pensar em ver um batendo no outro. Para mim, foi violento demais. Era como se estivesse vendo dois amigos trocando socos. Na madrugada depois do combate, saí do Recife e embarquei para Locarno, pois tinha que participar de um festival, mas fui vomitando o voo inteiro, com febre e dor de cabeça”, rememora. É interessante cotejar o espetáculo midiático armado para essa revanche, 11 anos após a última disputa, e os próprios registros dos primeiros conflitos. Entre a batalha que inaugurou a rivalidade, em 1996, e “a luta do século”, ambas vencidas por Todo Duro, decorreram 19 anos. Se as revanches iniciais aparecem em cena por meio dos recortes de jornais e de imagens precárias da época, a luta de 2015, filmada para o
MARCOS FINOTTI/DIVULGAÇÃO
Entrevista
SÉRGIO MACHADO “A HISTÓRIA VIROU COMPLETAMENTE, À MINHA REVELIA” Da Bahia, onde trabalha na
3
Claquete documentário com cinco câmeras, virou febre de audiência na internet. Esse percurso ao longo de quase duas décadas é explorado com minúcias por Sérgio Machado. Assim, entre uma luta e outra, o público aprende, por exemplo, que Todo Duro foi campeão mundial pela World Boxing Federation e Holyfield foi campeão brasileiro, sul-americano e mundial na categoria supermédio; que, após anos de estrelato, os dois atletas enfrentaram o ocaso, com o pernambucano chegando a ser preso no Recife e o baiano quase morrendo ao salvar dois sobrinhos em um incêndio; e que, embora sem o mesmo vigor de outrora, devotaramse aos treinamentos a fim de vencer o conflito que dá nome ao filme. “Muita coisa mudou no Brasil nesse tempo todo”, observa o produtor Lázaro Ramos. “Mas vejo o filme também como a possibilidade de fortalecer uma reflexão sobre o que não mudou: é preciso olhar para os brasileiros que estão nessa luta de Todo Duro e Holyfield a cada dia, a cada semana. E olhar com afetividade para a complexidade que têm esses brasileiros das classes populares, esses homens negros, pobres, periféricos que não desistem. O filme, para mim, é também uma metáfora do papel do esporte no país, do que é capaz de fazer, mesmo em condições adversas”, reforça o ator,
3 SÉRGIO MACHADO O diretor reacendeu a disputa entre os dois, que não lutavam há 11 anos
“Condições adversas” não assustam Luciano Torre e Reginaldo Andrade, descritos na agitada sessão da 40ª Mostra de São Paulo como “dois grandes boxeadores, dos maiores que a América do Sul já viu”, na visão do técnico de boxe aposentado Ademar Justo. “Sou Todo Duro, o matador de baiano. Ganhei dele no Recife, na última luta, e vou estraçaiar de novo em Salvador. Cuidado para ele não sair no caixão”; “Até hoje não entendo como ele ganhou no Recife se passou a luta inteira apanhando. Vamos lutar de novo na Bahia e quem vai sair num caixão é ele”, fizeram questão de ressaltar à Continente, entre risos e autógrafos, entre mugangas e fotografias. A luta do século entra em cartaz, com distribuição da Vitrine Filmes, em março de 2017, mesmo mês no qual, em tese, acontecerá a oitava luta entre Todo Duro e Holyfield. “Queremos lançar com estardalhaço em Salvador e no Recife, ao mesmo tempo, também, em que estamos fechando a distribuição internacional. Apesar de ser um filme bem local, tem uma pegada internacional que é curiosa; essa mistura de rivalidade, amizade e inimizade tem algo de mitológico. Quantos jovens lutadores não têm esses dois como mentores?”, indaga Sérgio Machado.
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 64
escrita de um novo roteiro, o cineasta Sérgio Machado falou à Continente por telefone sobre A luta do século, seu primeiro longa documental depois de Onde a Terra acaba (2002), no qual radiografava a figura do diretor Mário Peixoto (1908-1922) e o impacto de Limite (1931) no audiovisual brasileiro - até hoje, é tido em diversos fóruns como o melhor filme já rodado no país. Foram duas experiências distintas, como ele mesmo aponta: “No primeiro, havia o controle de tudo: o personagem principal estava morto, eu já não tinha mais história para contar. Parti para A luta do século muito preparado, já sabia que filme eu queria fazer: contar a história de dois homens, duas pessoas que se odeiam, mas que se necessitam, que não existem sem o outro, e falar de um país que esquece e não dá chance. Mas veio a vida e tudo saiu completamente do controle”. CONTINENTE Logo após a sessão na 40ª Mostra de Cinema de São Paulo, Lázaro Ramos nos relevou que, em princípio, o filme seria uma ficção. Como nasceu o documentário? SÉRGIO MACHADO Estávamos jantando um dia, eu, ele e Wagner Moura, procurando uma história para fazermos juntos, repetindo a parceria de Cidade baixa (2005), e alguém falou sobre Holyfield e Todo Duro. Lázaro disse que queria fazer Holyfield, Wagner faria Todo Duro e eu, que não sabia de nada daquela rivalidade, pedi um tempo para fazer uma pesquisa. Decidi fazer um pequeno documentário sobre os dois e Lázaro até brincou:
INDICAÇÕES “você vai se empolgar com o documentário e vai esquecer a ficção”. Foi o que aconteceu. CONTINENTE Foi aí que veio a certeza de que ficção alguma seria melhor do que eles próprios? SÉRGIO MACHADO Na verdade, à medida que fui aprofundando, o documentário foi crescendo. A ideia era fazer um filme sobre dois lutadores famosos, que caíram no ostracismo, para falar também do Brasil, das impossibilidades de mobilidade social. A história virou à minha revelia em Salvador, no último dia de filmagens, quando o traficante Ravengar, que tinha acabado de sair da prisão, veio com essa ideia de fazer uma nova luta. CONTINENTE Diante das câmeras, ele veio com essa “cartada surpresa”, do nada? SÉRGIO MACHADO Tudo que eu queria era que não tivesse uma luta. Estávamos filmando, ele chega, pede o meu celular, liga para Todo Duro e inventa a luta. Obviamente, o documentário influenciou. Se não estivesse com aquela câmera ali, acho que Ravengar não teria dito aquilo. Então, é claro que o filme tem uma relação direta com a luta. A ideia original era que, no final, eles se encontrassem para uma conversa. Eu não queria terminar com nenhum dos dois vencendo. Pensava que eles poderiam se machucar – afinal, já são dois caras com mais idade, que subiriam ao ringue para trocar socos, e aquilo não poderia ser um bom final.
CONTINENTE Como incorporou essa novidade ao filme? SÉRGIO MACHADO Quando surgiu isso, joguei fora quase 90% do que tinha filmado. Fiz mais de 40 entrevistas das quais entrou quase nada. O filme virou completamente. Antes, A luta do século era a luta contra a pobreza, contra a ignorância, era um documentário sobre dois homens que foram tão famosos, mas talvez justamente por serem analfabetos, pretos e nordestinos, caíram no ostracismo. Era um filme pessimista, de certa forma, na largada, mas com a luta, virou outra coisa. Me mostrou, inclusive, que quando se trata de dois homens pretos, pobres e nordestinos, não dá para ser determinista em nada. Eu não fazia ideia, por exemplo, de que quando Holyfield se acidentou no incêndio, foi Todo Duro que fez uma campanha para arrecadar dinheiro, mesmo com aquele ódio todo. Quem acreditaria nisso? Mas eles podem e vão te surpreender. Há uma resiliência forte. Na teoria, o filme era uma coisa, e na prática virou outra CONTINENTE E se de fato houver a nova luta, para quem você torcerá? SÉRGIO MACHADO Puxa...Para ninguém. Não posso torcer para nenhum dos dois. Me afeiçoei demais a eles para torcer para um machucar o outro. LUCIANA VERAS
FICÇÃO CIENTÍFICA
DRAMA
Dirigido por Denis Villeneuve Com Amy Adams, Jeremy Renner Sony Pictures
Dirigido por Sandra Kogut Com Carla Ribas, Rayane do Amaral Imovision
A CHEGADA
CAMPO GRANDE
Há uma invasão alienígena na Terra e 12 estações extraterrestres pairam sobre os assombrados humanos. A linguista Louise Banks (Amy Adams) é chamada para ajudar na comunicação com os seres interplanetários. Será ela capaz de desvendar o que eles querem? Mais interessante do que as respostas visuais é a premissa sobre a qual se estrutura o filme – o brilhante conto Story of your life, de Ted Chiang. É esse o estofo que garante uma ficção científica com metafísica, como as melhores do gênero.
Carla Ribas é atriz de alto quilate, vide sua participação luminosa em Aquarius. Pouca gente viu Campo Grande nos cinemas e é tempo de reparar essa injustiça, não apenas com a monumental performance de Carla, mas com esse belo longa de Sandra Kogut. Quando duas crianças aparecem no apartamento de Regina, uma mulher de classe média de Ipanema, e quando essas crianças não têm para onde ir, a jornada que se inicia é tanto deles como das metrópoles brasileiras e o do país – contraditório e desigual.
AVENTURA
DOCUMENTÁRIO
Dirigido por Isabel Coixet Com Juliette Binoche, Rinko Kikuchi Mares Filmes
Dirigido por Mikhail Romm CPC Umes Filmes
NINGUÉM DESEJA A NOITE
Josephine Peary (Juliette Binoche) é uma nobre que, em 1908, se afasta da alta sociedade para rastrear o marido no Polo Norte. Ao chegar àquela paisagem inóspita, ela conhece Allaka (Rinko Kikuchi), uma esquimó que, de certa forma, também aguarda o homem que ama. É da relação entre as duas que se erige esse delicado filme dirigido por Isabel Coixet (Minha vida sem mim); Binoche, atriz consagrada, encontra em Kikuchi uma parceira à altura, em presença física e carisma.
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 65
O FASCISMO NOSSO DE CADA DIA “Fascismo” é palavra de ordem nos dias atuais e o fascínio deste documentário, lançado em 1965, é construir, a partir de imagens coletadas no arquivo do Ministério de Propaganda do III Reich e na coleção pessoal de Adolf Hitler e de fotografias pertencentes a soldados alemães, uma reflexão sobre a essência da intolerância, da opressão e da brutalidade que caracterizam os regimes fascistas. A voz soturna do diretor/narrador serve de guia por uma viagem tão assustadora quanto necessária no mundo de hoje.
Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
QUERO MEU BAIÃO-DE-DOIS
Havia um jeito simples de se preparar o baião-de-dois, prato da culinária cearense em que se misturam o arroz e o feijão. Muito antigamente ele era cozinhado em panelas de barro, no fogão a lenha. Segundo os mais puristas, o barro e a fumaça da lenha queimada acrescentavam um sabor especial à comida. O escritor Junichiro Tanizaki, autor do ensaio Em louvor da sombra, defensor fanático da culinária japonesa tradicional, talvez sugerisse que o baião-de-dois fosse servido num jantar às cinco da tarde, como antigamente, com as pessoas sentadas numa mesa ao pé da janela, de onde fosse possível apreciar o por de sol e o gado voltando aos currais. Mesmo cozinhado em panela de alumínio, num fogão a gás, e servido num restaurante de cidade, o baiãode-dois pode manter suas qualidades culinárias. O feijão ou a fava devem ser de preferência verdes, temperados com coentro. O arroz precisa ficar bem solto. O queijo, de prensa ou coalho, cortado em cubos, é enfiado na mistura, quando o baião já está
secando. Para os que apreciam nata de leite ou de coalhada, sugere-se que ela seja misturada bem antes do queijo. Eu prefiro uma camada fina de toucinho torrado, espalhada sobre o baião, quando a panela vai saindo do fogo. Come-se o baião-de-dois com vários acompanhamentos. Se ele for preparado com bastante coentro, nata e queijo, o ideal é servi-lo sem mistura, bem quente, um pouco molhado. Se esses ingredientes ficaram de fora, deixa-se o baião secar um pouco mais no fogo e come-se misturado com paçoca, carne de sol assada ou frita, linguiça caseira, costeletas de porco fritas no toucinho, ou simplesmente com ovo estrelado e torresmo. De qualquer maneira, desde que seja bem feito e com os ingredientes adequadamente escolhidos, o baiãode-dois é uma iguaria sofisticada. Tornou-se quase impossível comer um clássico baião-de-dois no Ceará. Pelo menos, nos restaurantes. Com a nossa vocação antropofágica, fomos incorporando os mais exóticos ingredientes à mistura, de modo que já nem reconhecemos os antigos
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 66
sabores. É verdade que a rica culinária brasileira criou-se nas substituições, graças às cozinheiras que trocaram a farinha de trigo pela goma, massa de mandioca e fubá de milho; o leite de vaca por leite de coco; a manteiga do reino por manteiga da terra; as nozes e amêndoas pelo gergelim, amendoim, ou castanha. Porém, às vezes exageramos na dose. O desejo de criar pratos que se assemelhem à culinária internacional leva a adulterações grosseiras de quitutes testados e aprovados ao longo dos anos. Baião-de-dois com creme de leite e queijo catupiry não combina. Nem é necessário lembrar o japonês citado, pois seria o mesmo que fazer sushi com macaxeira. As bordadeiras desenvolveram técnicas para o labirinto, a renascença e a renda de bilros, trabalham com habilidade, precisão e rapidez. A culinária também exige conhecimento e prática. Do mesmo modo que se escolhe um tecido fino e linhas adequadas para os bordados, a culinária se faz com bons ingredientes, temperos certos, receitas e tradição. Cozinhar não significa
MARIA LUÍSA FALCÃO
misturar ingredientes aleatoriamente, como está na moda fazer. Até inventou-se nomes para isso: cozinha experimental, cozinha conceitual. Os restaurantes modernos abusam dos sucos de manga e maracujá nas carnes e peixes, do mel de rapadura enfeitando os pratos e misturado aos risotos, das castanhas de caju, dos abacaxis, cocos, bananas e por aí afora. E tome folha de erva-cidreira, capim santo, manjericão, endro, semente de coentro, em pratos que terminam adquirindo um sabor abominável. Tudo simulando sofisticação e requinte. E as tapiocas? As iguarias que herdamos dos nossos antepassados indígenas tornaram-se o laboratório das mais abomináveis misturas.
O que é antigo não precisa ser deformado e assim parecer contemporâneo. Sobretudo na culinária chamada de arte Ficaram piores do que os crepes franceses servidos nos casamentos. Existe uma ambiguidade em relação ao passado. As pessoas temem que as julguem conservadoras, se demonstram algum apego à tradição. Tenho plena consciência dos benefícios da modernidade e não creio que no passado as coisas fossem
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 67
bem melhores do que as atuais. Não se trata disso, embora reconheça que há um favorecimento dos jovens e certa tirania contra os idosos. O que é antigo não precisa ser deformado e assim parecer contemporâneo. Sobretudo na culinária chamada de arte, porque ela possui fórmulas testadas, que passaram de geração a geração. Nessa recusa à tradição botaram catupiry no baião-de-dois, maionese na tapioca e calabresa na paçoca. É verdade que foi misturando que chegamos aos grandes inventos culinários, como a feijoada. Mas, uma vez experimentado e aprovado, vamos deixar algumas receitas como faziam nossas avós. O baião-de-dois, por exemplo.
Leitura MANOEL DE BARROS Uma lição de como amar coisas ignoradas
O poeta, que faria 100 anos este mês, construiu seu projeto literário sobre a vida comum, combatendo o “sublime” como um valor imprescindível da poesia TEXTO Fábio Andrade ILUSTRAÇÕES Matheus Calafange
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 68
escolha rigorosa de palavras, a utilização de determinados lugarescomuns etc. Em resumo, foi um tempo em que a linguagem literária e a poesia, consequentemente, eram reguladas por um conjunto de regras e preceitos. O que não impediu que surgissem grandes obras. Com o Romantismo, no século XIX, essa tradição foi questionada. Novos assuntos, novos estilos, novos modos do falar poético desafiaram a tradição. Processo que culmina com o Modernismo do início do século XX, momento em que a literatura conquistou uma liberdade sem precedentes. As vanguardas foram a principal manifestação desse espírito de liberdade radical. E o caráter
É na culminância do processo de rebaixamento do tom poético que se encontra o mais original nesta poesia
A poesia pode falar de qualquer coisa? O que seria “assunto” ou “tema” próprio da poesia? O nosso tempo conheceu algumas respostas a essas questões. O que implica em dizer que nem sempre foi assim. Houve uma época em que havia, sim, temas mais apropriados à poesia e, em consonância com esses temas, uma linguagem igualmente “adequada”. A tradição clássica que dominou a literatura ao longo de muitos séculos previa esse ajuste entre um assunto ou tema e o tipo de discurso escolhido, o mais apropriado para exprimir o objetivo do autor, do poeta. Essa primeira distinção entre os modos de discurso e as suas respectivas possibilidades trazia consigo uma
experimentalista – de valorização do novo, do inesperado, do incomum e do original – foi a materialização coletiva dessa postura iconoclasta. Qualquer coisa podia se converter em matéria de poesia. Não há palavras poéticas e palavras não poéticas. Todas as palavras, sem exceção, podem participar do poema e contribuir para exprimir o mundo e a vida social moderna com todas as suas contradições, misérias e iluminações. Uma forma de entender a poesia moderna, ou ao menos parte dela, é a recusa ao “sublime”. E aí pesaram tanto a liberdade criativa, que passou a ser cultivada a partir do Romantismo, como a ironia. Muitas vezes, a junção desses dois traços é comum e não faltariam exemplos disso em alguns dos nossos grandes poetas modernos. É o caso de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Ao mesmo tempo em que essa liberdade de temas, assuntos, formas e modos de composição alargam a ideia do que é poético, a ironia investe contra a antiga ideia do sublime na forma de uma distância que é a marca de toda ironia.
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 69
Assim, por exemplo, a linguagem quase infantil de Bandeira ao tratar das paisagens da infância, ou o tom “melodramático” de vários dos seus poemas. Ou ainda, a fina ironia de João Cabral que justapõe flor e fezes como símbolos da poesia: “Poesia te escrevia: / flor! Conhecendo / que és fezes! Fezes / como qualquer”. Mesmo num Drummond ou num Mário Quintana é possível encontrar exemplos desses golpes contra a pretensa poesia “profunda”. É na culminância desse processo de rebaixamento do tom poético que se encontra o mais original e interessante da poesia de Manoel de Barros. Em dezembro de 2016, completam-se os 100 anos de nascimento desse menino dono de saberes de chão e de coisas. Na medida em que uma voz inconfundível foi se construindo, mais luz foi sendo projetada sobre o poeta, quase um outsider. Avesso aos holofotes e à vida literária – o que, segundo alguns, teria retardado uma recepção mais justa de sua obra – parecia preferir o camarim ao picadeiro. Na intimidade úmida do pantanal, ele concebeu seus poemas, ou antipoemas, cada vez mais impregnados de um olhar e de uma linguagem entranhada no universo fértil das várzeas e vadiações. O início da trajetória se dá com o livro Poemas concebidos sem pecado (1937), iniciando uma fase sintonizada com o Modernismo de segundo momento. Ela se estende até Gramática expositiva do chão (1966), que apresenta boa parte dos ingredientes que se transformaram no tempero inconfundível de sua poesia. Elementos que atingem grande amplitude e lhe conferem, a partir de O livro das ignorãças (1993) e Livro sobre nada (1996), grande popularidade. No projeto literário do poeta Manoel de Barros, três aspectos sempre me chamaram a atenção, pela força com que eles configuram certo “primitivismo”, e sua maneira especial de combater o “sublime” como um valor imprescindível da poesia: o olhar sobre a vida comum; a valorização de bichos, coisas e objetos; e o mergulho na linguagem da infância.
Leitura
VIDA COMUM
O olhar sobre a vida comum é uma característica que une a poesia de Manoel de Barros a alguns dos nossos grandes líricos modernos: Drummond, Bandeira e Quintana, por exemplo. Esse canto do seu canto, em que o colorido da vida pantaneira vai deixar também seus ovos, integra um mundo familiar e conhecido: “A de muito que na Corruptela onde a gente / vivia / Não passava ninguém / nem mascate muleiro / nem anta batizada / nem cachorro de bugre. / O dia demorava de uma lesma”. É perceptível também nesse trecho do poema outro ponto de coligação entre Manoel de Barros e nossos grandes líricos modernistas: o uso da linguagem de apropriação regionalista – mais em alguns livros do que em outros. Apropriação estimulada muito mais por uma reflexão metalinguística do que por um projeto nacionalista. O próprio poeta define exemplarmente essa relação com a palavra: “A palavra garça em meu perceber é bela / não seja só pela elegância da ave. / Há
também a beleza letral. / O corpo sônico da palavra / e o corpo níveo da ave / se comungam”. No caso de Manoel de Barros, a aproximação da poesia com a vida comum desencadeia uma simbiose entre o sujeito lírico e a paisagem. Essa paisagem pantaneira se manifesta através e elementos claramente identificáveis, mas, principalmente, através de uma linguagem que exprime esse universo não de maneira simplesmente temática, mas isomórfica; ou seja: através de um princípio de identidade entre o modo linguístico do poema e o universo que ele – mais do que exprimir – simboliza. É o que o leitor encontra num poema como Maçã: “Uma palavra abriu o roupão para mim. / Vi tudo dela: a escova fofa, o pente a doce maçã. / A mesma maçã que perdeu Adão. / Tentei pegar na fruta / Meu braço não se moveu. / (Acho que eu estava em sonho) / Tentei de novo / O braço não se moveu. / Depois a palavra teve piedade / E esfregou a lesma dela em mim”. O erotismo verbal tem uma
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 70
umidade, um langor que é próprio do ritmo e da vida anfíbia do universo pantaneiro e que se potencializa na imagem invertebrada da “lesma”. Além da paisagem, há o evento miúdo, corriqueiro, que conquista a atenção da poesia. Brincadeiras de meninos, causos, tipos curiosos, práticas seculares ditadas pela vida comum que estabelece igualmente uma espécie de simbiose com a paisagem: “Araras cruzavam por cima dos ranchos / conversando em ararês. / Ninguém de nós sabia conversar em ararês. / Os maridos que não ficavam de prosa na porta / da venda / Iam plantar mandioca / Ou fazer filhos nas patroas. / A vida era bem largada. Todo mundo se ocupava da tarefa de ver o dia / atravessar”. A poesia de Manoel de Barros parece nos falar constantemente desse transitar através das fronteiras dos reinos. Bichos, plantas, pedras, homens… tudo isso parece namorar incessantemente, mesclar-se, confundir-se. Confirmando, inclusive, o dito de um tipo muito próximo ao “menino” de Manoel
de Barros, que é o Riobaldo de Guimarães Rosa: “No mundo, tudo é misturado”. É esse olhar impregnante que compõe a figura arquetípica do “menino” e a linguagem infantil, que o próprio poeta chamará, mais apropriadamente, num de seus poemas de “infância da língua”.
OLHAR INFANTIL
A figura do menino aparece constantemente na poética de Manoel de Barros. Representa metaforicamente o poeta e, através dele, do menino, emerge muito da infância que o tempo naturalmente submergira. O valor das coisas imprestáveis, a simbiose entre os seres e a paisagem, entre linguagem e coisa, tudo isso está associado a essa matriz metafórica do olhar infantil: “O menino podia ver até a cor das vogais – / como o poeta Rimbaud viu. / (…) Mas ele mesmo, o menino / Se ignorava como as pedras se ignoram”. Não é casual a referência a Rimbaud, seja pela celebração da lógica sinestésica e sensorial da poesia simbolista, que permitiu a associação
A figura do menino é metaforizada na poética de Manoel de Barros e faz emergir uma infância que o tempo submerge das vogais com cores e sensações, seja pelo fato de ser um poeta menino. Como bem se sabe, Rimbaud escreveu toda sua obra até os 17 anos. Assim, o menino adquire grande protagonismo no universo poético de Manoel de Barros. Ele é responsável pelo potencial imaginativo, logo criativo, da vida. Dono de um saber imediato e fértil que insiste em apresentar a infância como a idade essencialmente inaugural: “Por forma que nossa tarefa principal / era de aumentar / o que não acontecia. / (Nós era um rebanho de guris) / A gente era bem-dotado para aquele serviço / de aumentar o que não acontecia”. Esse saber é, por sua vez, uma forma de
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 71
ignorãça, para usar a feliz expressão do próprio poeta e que intitula um de seus livros mais importantes. O oposto desse saber direto que a vida comum proporciona é a explicação racional que, entretanto, é apresentada com muita ironia, porque impotente contra a força com que esse conhecimento nasce da experiência do viver. A explicação racional apenas arranha a superfície irregular dessa beleza inexplicável – imprestável – das coisas pequenas e nossas: “E aquele colega que tinha ganho um olhar / de pássaro / Era o campeão de aumentar os desacontecimentos. / Uma tarde ele falou para nós que enxergara um / lagarto espichado na areia / a beber um copo de sol. / Apareceu um homem que era adepto da razão / e disse: / Lagarto não bebe sol no copo! / Isso é uma estultícia. / Ele falou de sério. / Ficamos instruídos”. O mesmo movimento se encontra no arremate do poema Vento. A ironia frente ao conhecimento formal só parece insistir que o mundo continua dotado de um encanto que, na infância, não
Leitura
se domestica: “Hoje eu tasquei uma pedra no organismo / do vento. / Depois me ensinaram que o vento não tem / organismo. / Fiquei estudado”.
POESIA DAS COISAS
Outra característica importante da poética de Manoel de Barros é a valorização das coisas imprestáveis. O precursor moderno dessa tendência de dar voz aos objetos, às coisas, aos seres inanimados e – mais do que isso – ao que não tem valor, é o poeta Francis Ponge, autor de Le parti pris des choses (O partido das coisas, na edição brasileira). Ponge escreveu sobre uma infinidade de quinquilharias, coisas e seres minúsculos: o camarão, a lata de conserva, o pingo da chuva, a crosta de pão, o cigarro gasto, a bicicleta etc. Na poesia de Manoel de Barros, lê-se exatamente a lição do poeta francês: dar voz às coisas, deixar que elas falem através de nós, dar voz àquela parcela muda do mundo. Nas palavras da crítica Leda Tenório da Mota, grande estudiosa da poesia pongiana: “Desaforadamente, pois, dizer as coisas é tomá-las em sua
Dar voz a objetos e seres inanimados é característica da obra do poeta, numa valorização de coisas “imprestáveis” existência insondável. É fazer falar o que não dá sinal de si”. Esse dar voz ao mundo mudo é muito frequente na poesia de Manoel de Barros, como se lê no poema Poste: “Eu quis filmar o abandono do poste. / O seu estar parado. / O seu não ter voz. / O seu não ter sequer as mãos para se pronunciar com / as mãos”. Os objetos, os animais, os seres minúsculos, compõem uma galeria de motivos que enfatizam o caráter concreto e sensorial da experiência poética que, carregada de ironia, pode afirmar preferir latas – “essas pessoas léxicas pobres porém concretas” – às ideias que, por serem abstratas, não podem ser reaproveitadas, se jogadas fora por “motivo de traste”.
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 72
Tal tendência pode ser encarada como um verdadeiro anti-intelectualismo da poesia e negativa do sublime. É algo que pode, por exemplo, ser encontrado na poesia de Alberto Caeiro. Negação do caráter “profundo” da atitude filosófica ao tentar esquadrinhar o mundo com o racionalismo. Racionalismo que amortizaria o caráter inaugural da experiência ao abstraí-la. O saber que a poesia oferece é um saber profundamente mundano, assistemático. Tem a força e a volatilidade do olhar infantil, sempre assediado, encantado pela própria curiosidade. O reconhecimento de um deslocamento fundamental do poeta, esse porta-voz das coisas desutilizáveis, em relação ao mundo contemporâneo, é algo marcante na poesia de Manoel de Barros e tem ressonâncias políticas muito fortes, para além dos credos e ideologia do autor. Resíduos, trastes, restos e refugos não contribuem para a marcha do mundo tecnocrata, estão à margem. São tão inúteis quanto os passarinhos. Mesmo que eles, os passarinhos, sejam capazes de botar “primavera nas palavras”.
BRUNO VINELLI/DIVULGAÇÃO
1 DÉBORA FERRAZ Na narrativa Enquanto Deus não está olhando, personagem busca pai desaparecido
ROMANCE Em busca de alguém, ou de si mesmo
1
Obras recentes de Débora Ferraz, Rafael Gallo e Paula Fábrio têm como base de suas narrativas desaparecimentos, deslocamentos e crises pessoais TEXTO Rodrigo Casarin
Em Enquanto Deus não está olhando, que
valeu o Prêmio São Paulo de Literatura a Débora Ferraz, uma filha busca seu pai desaparecido. Em Rebentar, de Rafael Gallo, uma mãe procura o filho. Em Um dia toparei comigo, de Paula Fábrio, a narradora viaja para encontrar a si mesma. Os dois títulos – de Gallo e Fábrio – estiveram entre os finalistas de 2016 do prêmio vencido por Débora em 2015. Gallo ganhou o de Autor
Estreante. Esses livros despontam entre os mais importantes da nossa produção contemporânea e, como foi apontado, retratam buscas. Buscas familiares. Buscas por gente querida. Buscas pelo eu perdido ou um novo eu. E, se há busca, há perda. E por que tanta gente tem se perdido pelas nossas letras? “Sempre gostei da explicação que há no livro de Maria Valéria Rezende (outra autora que abordou o tema
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 73
recentemente, em Quarenta dias, vencedor do Jabuti de 2015), não é exatamente nessas palavras, mas ela diz que o mundo se divide entre os que procuram e os que precisam ser encontrados. A literatura é apenas um meio de ver o mundo e, no mundo, o fato é que as pessoas realmente se perdem umas das outras”, diz Débora, remetendo à colega de escrita. De sua parte, Paula coloca o tema como algo tão antigo na arte quanto a morte e o amor. “No fundo, parece que as três ideias andam de mãos dadas, na vida e nos livros”, afirma ela, que elenca uma série de exemplos. “Orfeu buscou Eurídice no mundo dos mortos; Proust buscou o tempo (perdido); Vicente, do conto Busca, de João Antônio, também procurava a si próprio ou, pelo menos, buscava sentido para uma vida sem perspectivas, entediante, típica do homem-máquina das grandes cidades. Por sua vez, os irmãos órfãos de Os Malaquias, de Andrea Del Fuego, buscavam-se uns aos outros. Em síntese, eu não saberia responder por que tantos personagens se perdem ou se deixam perder. Na verdade, talvez estejamos diante de um movimento que nunca cessou. Mesmo porque a literatura é busca. Mas, de modo evidente, de tempos em tempos, certos temas irrompem com mais destaque.” Gallo, por sua vez, levando em conta as obras citadas, acredita que a busca pelo outro é, em grande parte, uma busca por si mesmo, por se descobrir. “Talvez, no mundo de hoje, as pessoas sintam que têm menos raízes firmes, o que pode ser bom por um lado – a redução nos controles opressores ou nas obrigações sociais e familiares –, mas, por outro, pode proporcionar alguma carência de se estar mais conectado a um universo próprio, a vínculos mais seguros, que reforcem traços identitários comuns.”
BUSCA PELO FILHO
Olhando com mais cuidado para Rebentar, Enquanto Deus não está olhando e Um dia toparei comigo, cada um, evidentemente, apresenta nuances bem distintas para a busca empreendida pelos personagens.
WILIAN OLIVATO/DIVULGAÇÃO
DIVULGAÇÃO
Leitura
3
2 RAFAEL GALLO Autor constrói história de mãe que procura filho desaparecido
PAULA FÁBRIO 3 No seu romance, autora mergulha nos deslocamentos
2
No romance de Gallo, talvez a mais cruel das procuras: a de uma mãe que perde o rebento – e perder não significa vê-lo morrer ou saber que ele morreu, veja bem, quer dizer não saber onde e como ele está. O escritor alerta, contudo, que tanto no romance quanto em outros textos seus o avesso da questão acaba sendo também retratado: a importância de se estar junto. “O que é amar uma pessoa? O que é amar um filho? Do que são feitas realmente as costuras da trama do vínculo? Rebentar as desmancha para tentar encontrar a resposta, como uma espécie de engenharia reversa do amor.” Voltando ao cerne da questão, Gallo concorda que talvez seja mesmo a perda mais cruel de todas. “Dizem que a perda de um filho amado é a maior dor emocional possível e eu consigo compreender essa ideia. O desaparecimento tem outro aspecto, mais difícil de se lidar do que a morte, porque ele não te permite realizar e encerrar o luto. Quando um filho morre, é terrível, mas há um ponto final, de onde só resta recomeçar. Com um filho desaparecido, não há esse ponto de onde você segue adiante. Os pais de um filho desaparecido não têm o direito de recomeçar, porque precisam se manter presos àquilo que nunca teve encerramento. Além do mais, essa possível reversão da perda
– o reencontro – parece depender, em grande parte, de seus esforços, do acerto deles. Ou seja: ainda há uma demanda sobre os pais, que não podem nem mesmo se deixarem derrubar. Tudo isso em meio ao sofrimento da ausência, a qual é tão completa quanto a da morte: você não tem mais seu filho com você, não tem nada dele, nenhum dia a seu lado. É terrível, talvez seja mesmo a perda mais cruel que pode existir.”
BUSCA PELO PAI E POR SI
No movimento contrário, em Enquanto deus não está olhando, é uma filha que busca pelo pai que desaparece. O sumiço acaba por alterar radicalmente a maneira como a menina encara seu progenitor. Érica enxergava no homem uma pessoa rude e alcoólatra, mas o desaparecimento repentino faz com que, aos poucos, a imagem de seu pai em sua cabeça se transforme, ou seja, a ausência física acaba por impactar diretamente na formação de uma memória afetiva. “No caso do livro, acredito que isso vem da interrupção no diálogo, na perda da continuidade. A personagem tinha uma relação difícil com o pai, mas isso não era um problema enquanto a relação estava em curso. Só a ausência física dele, no momento em que ele desaparece, é o que congela as coisas e torna-as definitivas. É aí que a memória
C O N T I N E N T E D E Z E M B R O 2 0 1 6 | 74
começa, que o passado é criado, narrado, lembrado… passa a ser responsabilidade dos afetados fazer com que a pessoa exista”, comenta Débora. A vida da própria escritora é pontuada por sumiços, aliás. Conta que a história de sua família no sertão é marcada por desaparecimentos, de gente que sumiu na época da ditadura “por nada, só porque era muito fácil alguém desaparecer ali, por ser gente sem documento, sem ter quem fosse procurar…”, de gente que some por conta de crises econômicas, tenta buscar outra vida em outro canto e acaba nunca mais voltando ou sequer se comunicando. Já como leitora, Débora recorda que a primeira vez em que viu uma pessoa sob risco de sumir foi lendo Vidas secas, de Graciliano Ramos. “Quando o Fabiano sai sozinho e sem ter documentos, sem saber escrever ou ler, vai preso e nem sabe como avisar pra ninguém onde está. Isso foi algo muito potente de encontrar num livro e que me fez pensar no desaparecimento como uma possibilidade tão incontornável quanto uma bala perdida.” A narrativa de Paula, enfim, apresenta uma busca bastante corriqueira nos nossos dias. Quantas pessoas não se queixam de aspectos da vida e vislumbram em uma viagem – normalmente longa, para um lugar
INDICAÇÕES distante – a solução para os seus problemas? Seria como se apenas o deslocamento e a experiência estrangeira permitissem ao indivíduo voltar o olhar para si mesmo e, quem sabe, topar consigo. A própria autora lembra que a literatura de viagem tem muito a ver com esse tipo de busca. Cita Viagem ao redor do meu quarto, do francês Xavier de Maistre, como um exemplo de deslocamento confinado, sem sair fisicamente do lugar. Já se assemelhando ao seu trabalho e apresentando uma travessia tal qual costumamos imaginar, lembra o clássico As vozes de Marrakech, no qual o búlgaro Elias Canetti relata uma viagem que fez ao Marrocos e mostra como o confronto com o outro, com uma cultura distinta, contribui para a autobusca. Ela pontua: “Creio que o deslocamento represente nosso melhor espelho, uma vez que promove a oportunidade do questionamento: por que nos vestimos com esta ou aquela roupa, por que preparamos um legume deste ou de outro modo? No meu livro, também há o diálogo com a leitura, outro modo de viajar e de autoconhecimento. Esse negócio de inserir um livro para cada cidade visitada, no caso de Um dia toparei comigo, também é uma busca da personagem narradora pelo conflito, pelo confronto, mesmo que ela não perceba essa opção de maneira clara”.
BUSCA POR UM PAÍS?
E, olhando para a realidade, a impressão é de que o próprio Brasil anda um tanto perdido. Num diálogo com a realidade, as buscas literárias poderiam oferecer alguma luz, ainda que metafórica, para a atual situação nacional?
“Buscar desaparecidos é um esforço de ter diálogo sem que o outro esteja ali para contra-argumentar, para que se continue, se chegue a algum lugar. As pessoas se movem em seus dramas privados enquanto as leis são feitas, causas se perdem…”, comenta Débora. “Uma das primeiras leituras do romance foi de um colega escritor que apontou algo assim. Ele viu Rebentar como uma espécie de alegoria do fim da utopia. Ou seja, esse momento no qual você precisa encarar que algo ao qual você estava apegado se foi, perdeu o sentido. O livro, assim, aborda um processo de superar algo nostálgico para encarar o presente e tentar descobrir como se adaptar a ele”, diz Gallo. Algo semelhante ao ponto de partida do que pensa Paula: “Fico tentada a responder que os brasileiros estão em busca de uma identidade nacional. Mas como sabemos que identidade é uma construção cultural, uma ideia fabricada, torna-se bem mais difícil e perigoso fazer uma formulação desse tipo. Eu também poderia falar que algumas personagens são movidas, como as pessoas, pelo desejo de desaparecer, de não serem encontradas, e assim teríamos um prato cheio para a metáfora de deixar o país, por exemplo. Mas não sei. Por ora, opto por dizer que a desestabilização da literatura, a fuga-busca dos personagens estejam a postos para dar uma rasteira no leitor. Essa é nossa busca primordial. E ele, na maior parte das vezes, nos agradece”.
POESIA
ÁGNES SOUZA re-cordis Editora Moinhos
O livro de estreia da pernambucana Ágnes Souza reúne pequenos poemas que exploram a potência do cotidiano e prezam por uma dicção coloquial. Escrever em cadernetas traz uma poeta que cultiva o hábito de rememorar, em versos, algo explícito já no título: o termo latino recordis significa “voltar a passar pelo coração”. A temática amorosa é uma das mais evidenciadas aqui.
DIÁRIO
TERESA DE LA PARRA Ifigênia: diário de uma jovem que estava entediada Carambaia
A personagem María Eugenia Alonso, após 12 anos morando em Paris, retorna a Caracas, para viver com a família. A narrativa em formato de diário trata justamente das impressões da protagonista e das discrepâncias de costumes entre a cidade francesa e a capital da Venezuela.
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 75
FOTOGRAFIA
ANA FARACHE Vivencial: imagens do afeto em tempos de ousadia Editora Massangana
A fotógrafa e jornalista Ana Farache documentou o grupo Vivencial entre 1979 e 1983. Foram mais de 400 negativos mostrando bastidores, ensaios e espetáculos do coletivo. Parte desse acervo fotográfico, com cerca de 100 imagens, foi reunido em fotolivro. Há ainda depoimentos, como o do ator Henrique Celibi .
ROMANCE
ARNON GRUNBERG O homem sem doença Rádio Londres
O arquiteto Samarendra Ambani, suíço e filho de indianos, é apresentado ao leitor como quase apático, politicamente neutro e neurótico por limpeza. Após aceitar um estranho convite para projetar um teatro em Bagdá, Sam é confundido com um espião, é torturado, sem que saibamos exatamente os motivos que desencadearam tal circunstância.
ARTE SOBRE IMAGENS DE DIVULGAÇÃO
Sonoras ERIK SATIE Sensibilidade e leveza
Música do compositor francês, nascido há 150 anos, transcende o Impressionismo ao qual se filia, sendo a sua atualidade atestada pela constante presença em trilhas cinematográficas TEXTO Lucas Colombo
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 76
“Erik Satie era um homem inenarrável. (…) Mantinha uma excentricidade solene. (…) Egoísta, cruel, meticuloso, ele não escutava nada que não decorresse do seu dogma e ficava com uma raiva terrível do que o atrapalhasse. Egoísta, porque ele só pensava na sua música. Cruel, porque ele defendia a sua música. Meticuloso, porque ele aperfeiçoava a sua música. E a sua música era delicada. Ele também o era, à sua maneira.” As palavras do poeta e dramaturgo francês Jean Cocteau (1889–1963),
artística. A de Satie, depois de todos os usos feitos dela, permanece lindíssima. A música desse “homem inenarrável” carrega algumas características do Impressionismo, de que Debussy e Ravel são os maiores expoentes, porém transcende escolas. Dizê-la apenas uma precursora do chamado Minimalismo, devido ao despojamento e complexa simplicidade, igualmente não satisfaz. Satie era… Satie, por mais bobo que escrever isso pareça. E por ser tão pessoal e, ao mesmo tempo, universal, é que sua obra foi um achado para uma arte a que seu amigo Cocteau também se dedicou: o cinema, maior responsável pela disseminação das Trois Gymnopédies, de 1888, e Trois Gnossiennes, compostas por volta de 1890. Parte proeminente do trabalho do compositor francês, autor ainda de música para balé e experimentalismos importantes, essas breves peças para piano já foram trilha sonora de filmes de todo mundo, desde documentários até comédias. Alguns usos guardam pontos de contato com o universo do músico francês ou com o que as composições pretendem evocar; outros se dão em contexto muito distinto. O jornalista e crítico Daniel Piza observou, certa vez, que Satie era “a tristeza pontilhada”. De fato, as três Gymnopédies caracterizam-se pela
Sua música, que pode ser vista como precursora do Minimalismo, tem características do Impressionismo extraídas de A dificuldade de ser, seu livro de memórias, referem-se ao artista que ele tinha por mestre, e de quem era amigo. Erik Satie, nascido há 150 anos, em 1866, e morto em 1925, é dono de uma obra que se tornou das mais admiradas e executadas da música de concerto, fato que ele, se vivesse hoje, provavelmente reprovaria, tendo em vista o grande zelo que mantinha sobre suas criações e o emprego delas, conforme atesta Cocteau. Mas isso quase não importa. Ser muito reproduzida não elimina a qualidade de uma produção
atmosfera melancólica e pela melodia econômica. A de número 1, a mais conhecida, é uma valsa feita quase só de notas semínimas, aquelas de duração de um segundo, e que se executa, de acordo com a instrução dada por Satie na partitura, de maneira “lent et douloureux” (“lenta e dolorosa”). Daí sua utilização em Trinta anos esta noite, de 1963, estar “aprovada”. O filme do grande diretor francês Louis Malle relaciona-se espiritualmente com Satie, ao processar questões existenciais e religiosas com que o
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 77
músico também se ocupava, e ao exalar melancolia. Ali, a presença da Gymnopédie nº1 contribui para compreendermos o estado emocional do protagonista Alain (Maurice Ronet), um alcoolista suicida. Numa sequência noturna, a música soa enquanto ele olha Paris, ensimesmado, através da janela de um bonde. A trilha inteira do longa é satiniana: as Gnossiennes e as Gymnopédies 2 e 3 acompanham diversas outras cenas. Casamento perfeito de imagem e som acontece, de igual modo, em O equilibrista (2008), de James Marsh, documentário sobre a proeza do francês Philippe Petit, o homem que, em 1974, conseguiu atravessar de uma torre para outra do World Trade Center, sobre um cabo de aço, a 400 metros de altura. A narrativa parte do planejamento do funâmbulo para aquela manhã em Nova York, vai à explicação de como ele, ajudado por um amigo, burlou a segurança para instalar o cabo entre os terraços dos prédios e chega literalmente ao ápice com o momento exato da travessia, mostrado por fotos, tiradas de vários ângulos, a se sucederem na tela tendo a Gnossienne nº1 e, em especial, a Gymnopédie nº1 a tocar. A ação do equilibrista francês é, para repetir os adjetivos de Cocteau, meticulosa e delicada tal qual a música de seu conterrâneo. Ver Philippe lá no alto com uma vara de equilíbrio, em um dia nublado numa das maiores cidades do mundo, fica mais comovente com a trilha sonora. Refletimos sobre a beleza que o ser humano é capaz de produzir – e a barbárie, pois é impossível não lembrar que o mesmo local foi alvo dos atentados de 2001, ainda que o episódio não seja citado no documentário.
MINIMALISTA
Há casos, no entanto, em que se ouve o trabalho de Satie em cenas com as quais ele nada ou pouco tem a ver. Com as Gnossiennes, isso já ocorreu. Um exemplo de combinação que, apesar de estranha, está em Fatal, de 2008, adaptação fraca de Isabel Coixet para o romance O animal agonizante, de Philip Roth. A Gnossienne nº 3 acompanha cenas de nudez e sexo dos personagens de Ben Kingsley, um professor culto, e Penelope Cruz, a aluna altiva por quem ele se vê obcecado. Embora não contenha carga erótica, a música é bem-vinda ali, por outras razões.
FOTOS: DIVULGAÇÃO
Sonoras
1
Satie, em atitude coerente com sua “excentricidade solene”, evitava formas tradicionais de peças para pianistas. Elaborou pouquíssimos prelúdios, noturnos e sonatas, aos quais dava rubricas e títulos geralmente inusitados e engraçados. Inventou, com as Trois Gnossiennes, um novo tipo de composição para piano, em que não há indicação de compasso, de marcação de tempo, apenas instruções de execução – a primeira é Lent, a segunda, Avec étonnement (“Com espanto”), e a terceira, de novo, Lent. De poucas notas, sem floreios, só o essencial, cada uma constitui-se uma singela ideia harmônica e melódica que vai sofrendo uma série de mudanças sutis, modelo deveras próximo ao que os minimalistas praticariam a partir dos anos 1960. Como tinha de ser, o compositor cunhou também o nome delas. Dizem analistas que Gnossienne vem de “gnosis”. Satie interessava-se por esoterismo, fez músicas para cerimônias da Ordem Rosacruz e chegou a fundar uma seita (da qual foi o único adepto). Em Trinta anos esta noite, a mesma Gnossienne nº 3 que toca em Fatal roda numa cena de tédio e introspecção do protagonista, em que ele lê no jornal notícias de morte, essa desconhecida
A simplicidade das composições de Satie foi, na sua época, considerada pobreza musical por alguns colegas e críticos a que quer se entregar. Tem mais a ver com a obra satiniana que a cena de Coixet. Mas, em Fatal, o intimismo da Gnossienne nº 3 contribui para o clima das ações que embala, ainda que não dialogue com as ações em si. Ademais, as cenas, como o autor da música, igualmente transmitem o que querem com contenção de recursos: luz, atuação simples dos atores e trilha. A não grandiloquência de Satie, inclusive, foi na sua época considerada pobreza musical por alguns colegas e críticos. Em Muito além do jardim (1980), de Hal Ashby, comédia irônica, do tipo que Hollywood quase não produz mais, ouvimos composições não exatamente de Satie, mas inspiradas nele. São dois temas de piano que o americano Johnny Mandel escreveu a partir das Gnossiennes 4 e 5, compostas pelo francês no mesmo período das Trois Gnossiennes, todavia publicadas
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 78
1 O EQUILIBRISTA
Gnossienne nº1 e Gymnopédie nº1 estão na trilha do documentário
com as de número 6 e 7, somente em 1968. As releituras de Mandel respeitam o universo misterioso, esotérico, de Satie. Rodam em momentos de atmosfera enigmática, como moldura para o personagem de Peter Sellers, um jardineiro simplório, educado pelo que vê na TV, que, sem intenção, vira conselheiro político e celebridade nacional. Essa história de um grande mal-entendido se desenrola numa clave deliciosamente sutil, em economia de ferramentas e ações. Muito próximo de Satie. Em Elisa, vida minha (1977), de Carlos Saura, numa cena noturna de memória e introversão; em A outra (1988), de Woody Allen, numa cena de sonho, de inconsciente; em As confissões de Schmidt (2002), de Alexander Payne, numa sequência de viagem e reflexão… A relação de usos acurados das Gnossiennes e Gymnopédies em filmes poderia seguir. A presença forte delas no cinema é uma prova de que a música “erudita” está mais perto do nosso cotidiano e da cultura pop do que muitos imaginam e que, é claro, a obra de Erik Satie é atemporal. Nestes seus 150 anos, ouvi-lo é estar numa ilha de sensibilidade e leveza. Em filmes, ou no que for, importa é que ele continue entre nós. Excêntrico, cruel, meticuloso e delicado.
PATTI SMITH O poder do sonho
De como a compositora, cantora, poeta, artista plástica e ativista norte-americana, que completa 70 anos neste mês, construiu o caminho que marcou a presença da mulher no rock TEXTO Débora Nascimento
“Aos 20 anos de idade, embarquei naquele ônibus. Estava com meu macacão de algodão, minha blusa de gola olímpica preta e a velha capa de chuva cinza que comprara em Camden. Minha pequena mala, de xadrez amarelo e vermelho, tinha alguns desenhos a lápis, um caderno, as Illuminations, algumas mudas de roupas e fotos dos meus irmãos. Eu era supersticiosa. Era uma segunda-feira; eu havia nascido em uma segunda. Era um bom dia para chegar a Nova York. Ninguém estava me esperando. Tudo esperava por mim”,
escreveu Patti Smith, na aclamada autobiografia Só garotos (2010). Em julho de 1967, Patricia Lee Smith saiu de Nova Jersey. Nada a prendia: havia largado a fábrica de triciclos e a faculdade de Pedagogia, não conseguia um emprego melhor, não tinha namorado, muito menos dinheiro. Ninguém a atava: os pais, os irmãos ou o filho que acabara de ter, fruto de uma relação fugaz com um rapaz de 17 anos. “Conforme minha gravidez avançava, tive que procurar refúgio em outro lugar. Vizinhos críticos dificultaram as coisas
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 79
1
para minha família, tratando-a como se estivesse abrigando uma criminosa.” Durante o período da gestação, recebeu a acolhida de um casal de artistas plásticos, que acabou adotando o bebê. À espera do parto, longe da família e sem rumo, buscava refúgio na arte: “Eu me deliciava com pequenos prazeres, enfiava uma moeda na jukebox e ficava ouvindo Strawberry fields três vezes seguidas. As palavras e a voz de John Lennon me davam força quando eu fraquejava”. O nascimento da criança, que ela não tinha condições de criar, foi entendido como o aviso para uma mudança. “Jurei a ela que seria alguém na vida.” Patti deixou Nova Jersey para viver o seu sonho. Apenas com a passagem de ida. Esperançosa e inexperiente, desembarcou em Nova York, como o personagem de Jon Voight em Midnight cowboy (1969). Era uma época em que a cidade ainda não vendia o metro quadrado mais caro do mundo. Havia muita violência, prostituição e lixo nas ruas. Mas começava a ser criado o ambiente sociocultural que conduziu o lugar ao que é hoje. Recém-chegada,
FOTOS: DIVULGAÇÃO
Página anterior 1 PATTI SMITH Após morte do marido, Fred Smith, artista voltou a escursionar para eventos musicais, literários e políticos Nestas páginas 2 EM NOVA YORK Patti com seu primeiro namorado, Robert Mapplethorpe, no período da colaboração mútua, financeira e artística
3 NO PALCO Guitarrista e clarinetista, ela faz um dos shows mais vigorosos do rock
Sonoras 2
tornou-se rapidamente a moça da emblemática canção de seu ídolo Bob Dylan, Like a rolling stone (1965): sem lar, uma completa desconhecida, uma pedra rolante. Mas, como dizia a canção Rolling stone, “pedra que rola não cria musgo”. Nessa jornada, perambulando por Nova York, faminta, dormindo ao relento, Patti finalmente conseguiu o emprego no lugar que buscava inicialmente, uma livraria. Seria, no entanto, para trabalhar na lojinha de suvenires e bijuterias. Assim como nas aulas durante a infância e adolescência, ficava distraída, talvez pensando nas histórias dos livros que devorava. Um dia, seus devaneios foram interrompidos por um cliente, um rapaz de cabelos cacheados e olhar ingênuo, que ela já tinha visto. Ele comprou o colar persa que ela contemplava no trabalho. Coincidentemente, esse mesmo jovem apareceu pela terceira e definitiva vez em sua frente, quando ela tentava se livrar de um assédio. Esse dia mudou para sempre a trajetória de Patti Smith e dele, sua alma gêmea, Robert Mapplethorpe. “Como se fosse a
3
coisa mais natural do mundo, ficamos juntos, só saindo do lado um do outro para trabalhar.” Nele, ela encontrou a pessoa que buscava desde os 16 anos, quando leu The fabulous life of Diego Rivera. “Eu me imaginava como Frida para Diego, musa e criadora. Sonhava em conhecer um artista para amar e apoiar e trabalhar lado a lado.” O sonho de Patti Smith começava a ser concretizado a partir do surgimento desse parceiro. Com a mesma idade e a ambição de serem artistas, passaram a ajudar um ao outro no crescimento profissional. Ambos desenhavam, trocavam ideias e, andróginos, vestiam-se de maneira peculiar. Um dia, num show do Doors, diante de Jim Morrison, Patti teve a certeza de que poderia fazer aquilo e, principalmente, que queria fazer aquilo – um ideal que contrastava com a antiga rotina familiar. “Eu via com pesar minha mãe desempenhando suas tarefas femininas. Eu sonhava em viajar. Em fugir e me alistar na Legião Estrangeira, mudar de patente e percorrer o deserto com meus homens.” No dia que, enfim, percebeu que
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 80
estava liderando um bando de rapazes, sentiu-se orgulhosa. Até então, não havia isso no rock. Integradas e encabeçadas por homens, eram raras as bandas que tivessem, ao menos, uma mulher em sua formação (Mutantes, Velvet Underground, Fleetwood Mac, Jefferson Airplane…). Quando, em 1975, lançou Horses, apontado pela crítica como o melhor disco de estreia de um artista, Patti Smith já havia estudado o rock como se fosse uma disciplina. Era, sobretudo, uma fã: assistiu várias vezes ao documentário Don’t look back (1967), de D.A. Pennebaker, para aprender o gestual de Bob Dylan; cortou o cabelo sozinha, diante de um espelho, usando como modelo uma foto de Keith Richards. Esse visual, inclusive, mudou a forma como as pessoas a enxergavam em Nova York. Com cabelos negros repicados e desgrenhados, magérrima como uma Karen Carpenter beatnik, pálida feito um vampiro, sem maquiagem, olhos arregalados, roupas rasgadas, sapatos velhos, muitos pensavam que vivia drogada.
INDICAÇÕES Patti entendia o papel da imagem. O fato de Horses começar com Gloria (In excelsis deo) era uma amostra de duas fortes características de sua carreira musical que apenas começava, as versões de músicas e o talento para criar versos. Ela transformou a canção de Van Morrison, elaborou uma nova letra, que inicia com uma frase que se tornou clássica: “Jesus died for somebody’s sins but not mine”. Dentre os seus mais diversos covers, estão Real good time together (Lou Reed), So you want to be a rock’n’roll star (Byrds), Smells like teen spirit (Nirvana), When doves cry (Prince) e Stay, hit de Rihanna. Em cada uma, Patti Smith imprime o seu estilo, muda a canção, torna sua: uma das maiores intérpretes da música, possivelmente a maior vocalista viva do rock. Primeiro disco da geração do CBGB (bar onde o punk despontou), Horses é um marco. Gravado no Eletric Ladyland, de seu amigo Jimi Hendrix, e produzido por John Cale, no pós-Velvet Underground, como um episódio na grande narrativa do rock, a produção é bastante sofisticada em comparação ao primeiro dos Ramones, lançado no ano seguinte e que marcaria definitivamente o punk. Curiosamente, ele antecipa a mistura do reggae com rock (Redondo beach) de London Calling (1979), do Clash. Apesar de Robert ser o autor da icônica capa, em que Patti aparece vestida com seus trajes típicos, roupas masculinas, de preferência em branco e preto, eles já estavam separados. Ele havia descoberto sua homossexualidade e vivia com o curador Sam Wagstaff,
seu mecenas. Patti namoraria o poeta Jim Carroll, o guitarrista Tom Verlaine e, finalmente, o guitarrista Fred “Sonic” Smith, com quem ficaria casada por 15 anos e teria dois filhos. Um dos sonhos de Robert, um sucesso comercial de Patti, aconteceu em 1978, com Because the night (parceria com Bruce Springsteen), que ficaria em 13º lugar das paradas. Após Wave (1979), ela passou quase 10 anos para gravar outro disco, Dream of life (1988). Ficou mais dedicada ao marido, aos filhos, às artes plásticas e à literatura. Voltou à música após a morte de Fred e de seu irmão Todd, no mesmo 1994. A partir de então, passou a lançar discos com mais regularidade e a viajar o mundo – muitas vezes, acompanhada do filho Jackson (nascido em 1982) e da filha Jesse (de 1987), com a qual lançou, em setembro deste ano, seu mais recente trabalho, Killer road, em que declama os poemas de Nico, também uma das primeiras garotas a cantar numa banda de rock, no Velvet Underground. Às vezes, em suas viagens, para realizar shows ou participar de eventos políticos, Patti resolve levar consigo, como um amuleto, as cinzas de Robert, vítima da Aids, em 1989, no auge de sua carreira como fotógrafo. Na última carta que escreveu para ele, lembrou: “Você me tirou do período mais escuro da minha juventude”. Em 1988, debilitado, Robert tirou uma última foto de sua musa, com a filha Jesse nos braços. Naquele ano, Patti lançou People have the power, em que dizia acordar de um sonho, mas que seu sonho continuava: as pessoas têm o poder de mudar o mundo.
PB
ALVARO LANCELLOTTI Canto de Marajó
DIVERSOS
O cantor e compositor carioca Alvaro Lancellotti dispõe duas músicas cativantes na abertura do seu terceiro trabalho solo, Balé e canto de Marajó, que intitula o disco. Nelas, ele conta ao ouvinte sobre o que virá: canções ritmadas pelo som de cordas e percussão, herdeiras das sonoridades do samba e de toques de terreiro. As letras trazem a simplicidade e o apuro impressos na execução dos instrumentos, tudo tranquilo e fluido. As 11 músicas que compõem o disco são de autoria de Lancellotti.
Deveria ser o 14º álbum de estúdio de Leonard Cohen, mas, com menos de um mês de lançamento, os fãs logo confirmaram que o teor das letras era para valer: seria mesmo seu último trabalho. As canções falam com franqueza e beleza sobre morte, despedida, resignação, relação com o divino e amor. Se, musicalmente, as composições servem como um pano de fundo para a declamação dessas letras (algumas delas até sussurradas), a faixa de encerramento é uma belíssima sinfonia de despedida.
RAP
R&B
Independente
Columbia
Independente
SABOTAGE Sabotage Em 13 de janeiro de 2003, a música brasileira perdia um grande letrista: Mauro Mateus dos Santos. Aos 29 anos, morreu vítima de quatro tiros na favela do Canão, onde morava em São Paulo. Deixou dois filhos e dois discos: um, a premiada trilha sonora do filme O invasor (2002); outro, Rap é compromisso (2001), clássico do rap nacional. Quando foi assassinado, Sabotage começava a trabalhar no seu segundo disco solo. Agora, 13 anos depois, esse trabalho tomou forma definitiva e faixas como País da fome comprovam o talento do artista e a perda irreparável.
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 81
LEONARD COHEN You want it darker Columbia/Sony
SOLANGE A seat at the table Em abril, Beyoncé causou furor, mais uma vez, ao lançar o conceitual Lemonade, seu sexto disco. Em setembro, foi a vez da sua irmã, mas sem estardalhaço. Solange lançou seu terceiro álbum mais preocupada com texturas sonoras. Imenso, com 21 faixas, a maioria composta pela artista, produzidas por vários nomes, A seat at the table é uma prova de que a cantora, embora tenha o trabalho ofuscado pela apoteótica parente, está fazendo música bem mais interessante, sem maneirismo vocais – uma dispensável marca dessa geração de cantoras.
José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
ONDE FICOU MEU CORAÇÃO
Eu digo ao dia: “Nasça, que eu quero pintar”. Só pinto com luz do dia. Vejo, ainda na cama, um leve clareamento no alto da parede do quarto oposta à varanda, a luz começando a entrar pelos vidros do alto das duas portas, o sol prestes a nascer. Aí digo ao sol: “Nasça, que eu quero descer”, porque em minha casa os quartos ficam em cima e o atelier, como o resto da casa, embaixo no térreo. (Continuo grafando “atelier”, como no Atelier Coletivo, onde comecei, da S.A.M.R., Sociedade de Arte Moderna do Recife. E também porque não é “ateliê” que ouço essa palavra, assim dicionarizada hoje em português, tanto no Houaiss como no Aurélio. Embora nunca pronunciemos esse erre final das palavras aqui no Nordeste, não dizemos propriamente “ê” e sim, no caso, algo que indique “er”, como bem assinalou uma linguista francesa, cujo nome me escapa, mulher do pintor espanhol Julio Alvar, amigo de Hermilo Borba Filho, Lêda de Hermilo deve se lembrar, casal que hospedei em minha casa em Rio Doce, Olinda, década de 1970, época em que pintei
o retrato de Hermilo e Lêda. Eu, que não sou linguista nem tenho ouvido tão afiado, no entanto chocou-me essa redução drástica de “atelier” para “ateliê”, fica aqui o registro. O comentário serve para as terminações em erre com todas as vogais.) Meu atelier é cheio de janelinhas no alto da parede de pé direito de dois andares, o que permite uma iluminação natural perfeita o dia todo, como vi em Antuérpia no atelier de Rubens, conservado intacto até hoje, um dos dois motivos pelos quais considero os belgas uma raça superior. O outro motivo é uma história que não me canso de contar. Vou contar mais uma vez, porque acho bonita e para provar o que digo. Madame Morin, pronuncia-se morrán, como do célebre cônsul francês Marcel Morin, apaixonado pelo bloco Inocentes do Rosarinho: “O cônsul Morin está contente/E vai à França levar o Inocentes/Em Paris, cidade de glória/Inocentes vai contar a sua história”. Aliás eu estava em Paris quando soube de duas coisas ao mesmo tempo: 1) estava havendo
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 82
uma grande exposição, a Expo 58, em Bruxelas, quando construíram o grande átomo que até hoje virou símbolo da cidade, ocasião única de ver 50 anos de Arte Moderna da Bélgica, com uma grande retrospectiva de James Ensor, inclusive o quadro A Entrada de Cristo em Bruxelas que sempre sonhara ver; 50 anos de Arte Moderna, do mundo todo, tendo até um quadro de Portinari; a maior exposição já feita de Jerônimo Bosch, trazendo quadros do mundo inteiro; idem de Salvador Dali; além de maravilhas da tecnologia (como uma máquina que falava, respondendo de viva voz a qualquer pergunta em qualquer língua: à pergunta em russo do general Voroshílov “Qual o maior acontecimento mundial do ano de 1917” a máquina respondeu em russo sem titubeio “A Revolução Russa”); 2) que perto de Bruxelas, na cidade de Louvain (ninguém usa, mas em português é Lovaina), uma casa do estudante oferecia gratuitamente hospedagem a estudantes estrangeiros durante o tempo de férias, justamente esse da Expo. Imediatamente me candidatei e cheguei lá num domingo
REPRODUÇÃO
1 JAMES ENSOR Entrada de Cristo A
em Bruxelas, 258x431 cm, 1888, Museu Real de Belas Artes, Antuérpia
1
no finzinho da tarde mas ainda dia claro, que no verão por lá tem sol até 10 horas da noite. Toquei na campainha e veio um rapaz me receber, assim do meu tope, moreno. Quando eu disse meu nome, ele, que já devia ter lido minha ficha, deu um pulo e me abraçou louco de felicidade. Ante minha surpresa, declarou em espanhol: “Viemos mostrar a esses europeus o quanto valem nossos índios!” Continuei sem entender. Gritou, como para me acordar: “O Brasil acaba de ganhar a Copa do Mundo!” Tinha sido momentos antes, naquela mesma tarde. 1958. Me levou à Madame Morin, uma senhora casada e sem filhos que resolveu fazer alguma coisa pelos filhos dos outros e criou aquela casa para abrigar estudantes estrangeiros pobres. Era branca, magra, alta, de trajes caseiros. Naquela época minha base era Paris, onde morava em casa de brasileiros de férias, e tinha facilidade de entender francês. Lembro que perguntou qual a preferência de línguas para companheiro de quarto, dois em cada quarto. De preferência
Quando eu disse meu nome, ele, que já devia ter lido minha ficha, deu um pulo e me abraçou louco de felicidade que falasse português ou italiano, que tinha passado um ano na Itália. Ou espanhol, ou mesmo francês ou em último caso inglês. O mexicano me levou por um corredor e bateu na porta de um quarto. Apareceu um hindu. “Meu Deus”, pensei comigo, “em que língua vou falar com esse cidadão?” Ele estendeu a mão e disse “Muito pr’zer” em português de Portugal. Era de Goa, alfabetizado em inglês, falava português corretíssimo, única língua em que falava com sua mãe mas em que não sabia escrever uma palavra. Madame Morrin gostava de pintura. Tinha dois Utrillo. Quis saber o que queria ver na Bélgica. Disse-lhe algumas coisas, como o atelier de Rubens e o Políptico do Cordeiro Místico
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 83
na catedral de Gent, a obra-prima dos irmãos Van Eyck, inventores da pintura a óleo. Disse que um grande poeta brasileiro, Murilo Mendes, me intimara a ver o que ele achava o mais belo quadro que já fora pintado, A Virgem com o Menino de Jean Fouquet, do Museu de Antuérpia. Todo dia, de manhã cedinho, eu pegava bigu com o seu marido químico, que trabalhava em Bruxelas e me deixava na Expo. No último dia, estava eu como de costume no carro, dessa vez para pegar o trem para Paris, quando ela fez sinal que esperássemos. O marido olhava para o relógio resmungando: “Mas essa mulher não sabe que tenho horário!” Até que ela se aproximou e me entregou um envelope com uma inacreditável maçaroca de dólares, disse “Para você conhecer um pouco mais da Bélgica”, virou as costas enquanto o marido arrancava com o carro não me dando tempo de agradecer. Enquanto estive lá, escrevi uma poesiazinha que dizia: “Minha mãe, quando eu morrer/Me enterre em Louvain/No Drève des Celestins/ Debaixo dos arvoredos”.
RICARDO MACIEL/DIVULGAÇÃO
Palco
1
NEGRO O apagamento de uma representação
A história das encenações teatrais reflete a exclusão dos afrodescendentes de lugares de protagonismo, inclusive em espaços vistos como tolerantes à diversidade CRÉDITO Márcio Bastos
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 84
1 LUZIR É NEGRO Solo de Marconi Bispo discute o racismo institucionalizado
o racismo institucionalizado fez com que, mesmo após o fim da escravidão, o apagamento da representação negra e a exclusão dos afrodescendentes de lugares de protagonismo persistissem. Esse quadro se configura em outras esferas, como as do cinema e da televisão. No livro A história do negro no teatro brasileiro, o pesquisador Joel Rufino dos Santos aponta que, durante os primeiros séculos da colonização, os negros apareciam nas encenações (quando apareciam) por um viés objetificado, quase como parte do cenário, sendo-lhes negado o direito de estar em cena. Como aponta o professor da UFMG Eduardo de Assis Andrade, Rufino diferencia teatro de drama para ressaltar a ausência do negro no teatro, apontado por ele como um local burguês, já que, na produção dramática considerada popular e executada em ambientes públicos, os afrodescendentes estavam muito presentes. Nesse sentido, pode-se falar de experiências marcantes a partir de 1926, quando De Chocolat criou, no
Por um longo período, quando os negros apareciam nas peças era sempre por um viés objetificado, como parte do cenário “Quando você percebeu que era
negro?”, pergunta Marconi Bispo em determinado momento do espetáculo Luzir é negro. O questionamento é emblemático e revela uma situação cruel: a consciência da negritude, em geral, vem acompanhada de um processo de dor, exclusão; o reconhecer-se como o Outro em meio a uma sociedade racista e dominada por brancos. A sensação de pertencimento e representatividade é ainda cerceada aos negros e limita seus lugares de fala e protagonismo, inclusive em espaços que deveriam ser de tolerância e diversidade, como o teatro. Traçar a história dos negros no teatro nacional não é uma tarefa simples. Além dos parcos registros,
Rio de Janeiro, a Companhia Negra de Revista. Inspirada no teatro de revista – gênero de sucesso, na época, que se aproximava do teatro musicado e popular –, a companhia inovou ao colocar em cena apenas atores, músicos, compositores e dançarinos negros, como Jandira Aimoré, Alice Gonçalves, Waldemar Palmier, Rosa Negra, Dalva Espíndola, Oswaldo Viana, Pixinguinha, Sebastião Cirino, Donga e Grande Otelo. Com espetáculos como Tudo preto, Preto e branco e Na penumbra, o grupo circulou por estados como São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Pernambuco, durante o curto período de um ano em que atuou. Para Rufino, no entanto, a história do teatro negro no Brasil tem o ponto
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 85
de virada com Abdias Nascimento e o Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944, no Rio de Janeiro. A inquietação de montar a companhia surgiu após uma viagem ao Peru, em 1941. Acompanhado de um grupo de amigos, Abdias assistiu à encenação de Imperador Jones, peça escrita por Eugene O’Neill. Apesar do personagem da história ser negro, o ator que o interpretava era branco, com o corpo pintado de preto para encenar. A situação era semelhante no Brasil, o que motivou Nascimento a se engajar para mudar o quadro. A companhia nasceu com a proposta de levar aos palcos a pluralidade das identidades afrodescendentes a partir de um processo de formação e empoderamento dos artistas e da plateia. O trabalho artístico estava intrinsecamente ligado à preocupação com a educação e o grupo elaborou um trabalho paralelo voltado para a alfabetização (muitos dos atores do grupo não eram profissionais e não tiveram acesso à educação formal) e introdução cultural. Entre suas atividades de âmbito de conscientização, o grupo lançou a revista Quilombo, participou e promoveu encontros sobre a conscientização da comunidade negra. Os espetáculos do coletivo levavam para o centro da encenação a vivência dos afrodescendentes, que assumiam lugar de protagonismo em espetáculos como Aruanda, de Joaquim Ribeiro, Filhos de santo, de José Moraes Pinho, estes dois últimos abordando as religiões de matriz africana, preconceito racial e desigualdade social. O grupo, que revelou talentos como Ruth de Souza, Haroldo Costa, Léa Garcia e José Maria Monteiro, manteve suas atividades até o exílio de Abdias, na década de 1960, em decorrência da perseguição dos militares após a instauração do golpe. A partir do TEN, outros coletivos surgiram, como o Teatro Folclórico Brasileiro, o Balé Brasiliana; o Teatro Popular Brasileiro e o Balé Folclórico Mercedes Baptista.
RACISMO
Apesar de avanços e de experiências potentes como o Teatro Experimental do Negro, a representatividade
FOTOS: DIVULGAÇÃO
Palco de afrodescendentes nos palcos permaneceu escassa nas décadas seguintes e ainda estava impregnada pelo racismo. Para a pesquisadora Evani Tavares Lima, pensar teatro negro é, necessariamente, pensar em um movimento de resistência. No artigo Teatro Negro, existência por resistência: Problemáticas de um teatro brasileiro, ela aponta os danos causados pela ausência de atores, autores, diretores, textos e personagens negras não estereotipadas. Foi a partir dessa percepção, e de como o racismo institucionalizado afeta os mais variados aspectos da sua vida e a dos negros em geral, que Marconi Bispo concebeu o solo Luzir é negro. Formado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Pernambuco, ele afirma que a falta de referenciais negros nas artes cênicas e em outras esferas teve efeito direto sobre sua trajetória. “Para mim, foi um processo muito doloroso perceber que não tive referenciais de artistas negros para me espelhar. Acho que, de alguma forma, nossa história nos é negada e é uma forma de apagamento. Durante minha trajetória na universidade, por exemplo, não tive contato com a história dos negros no teatro. Quando estava no processo de construção da peça, fiquei muito envergonhado por não conhecer obras como Arena contra Zumbi, do Teatro de Arena, Os negros, de Jean Genet, ou Imperador Jones, de Eugene O’Neil, que deu origem ao Teatro Experimental do Negro. Uma coisa muito básica nos é negada: representatividade”, enfatiza o ator. Marconi Bispo ressalta que, em alguns momentos de sua carreira, chegou a receber menos do que colegas brancos para executar exatamente a mesma função, pelo mesmo período de tempo. Os papéis para os quais era escalado, em geral, também eram marcados por estereótipos. Para ele, infelizmente, o processo de empoderamento dos negros ainda é permeado pela dor. Prova disso são as respostas à
2
3
pergunta que abre esta reportagem, feita durante o espetáculo. “São relatos que nos fazem lembrar que a construção da identidade negra é marcada pela dor, pela negação. Você compreende que é negro a partir de uma experiência de rejeição. Então, a experiência do artista negro é carregada, também, dessa dor. O teatro, que deveria ser o lugar de liberdade e igualdade por excelência, não está imune às consequências do racismo. Por isso, acho muito simbólico que a plateia, por 90 minutos, encare um homem negro como protagonista, tanto para que negros se vejam ali como para que brancos ouçam questões que os privilégios deles
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 86
ignoram. Isso não deixa de ser uma política de reafirmação.” A inquietação com a falta de representatividade e indignação diante da perpetuação do racismo e da discriminação também serviram de base para a criação do solo Negro de estimação, do ator, bailarino e diretor pernambucano Kleber Lourenço, atualmente radicado em São Paulo. A obra estreou em 2007, mas continua a fazer parte do repertório do caruaruense, e adapta para os palcos o livro Contos negreiros, de Marcelino Freire, dissecando a objetificação e exclusão dos negros na sociedade brasileira. Com ela, Kleber já circulou por países como Portugal,Espanha, Cabo Verde e Moçambique.
THAÍS LIMA/DIVULGAÇÃO
2-3 TEN Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias Nascimento, nasceu com a proposta de levar aos palcos a pluralidade das identidades afrodescendentes 4 OMBELA No espetáculo, o grupo O Poste Soluções Luminosas discute vários aspectos da negritude
4
PESQUISA
Em Pernambuco, o grupo O Poste Soluções Luminosas é referência na construção de um trabalho que traz a poética e a vivência negra como bases. Formado por Naná Sodré, Agrinez Melo e Samuel Santos, o coletivo iniciou suas pesquisas ao perceber que seus filhos, ainda crianças, estavam passando por um processo de não aceitação de sua negritude em decorrência do racismo. “Ao percebermos que nossos filhos, que em casa já recebiam toda uma criação voltada para a conscientização, estavam nesse processo de não se reconhecerem, passamos a também nos questionar enquanto trabalhadores da arte. Que
tipo de teatro queremos fazer? O que queremos representar?”, lembra Naná. A partir daí, o grupo se debruçou sobre as pesquisas em torno da cultura afro-brasileira. Naná e Samuel, adeptos do candomblé, e Agrinez da umbanda, resolveram também trabalhar as questões voltadas à religiosidade, já que dificilmente as viam levadas para a encenação. “Sabe por que muitos movimentos sociais não se identificam com o teatro? Porque eles não se enxergam ali, porque as religiões de matriz africana ainda sofrem preconceito, inclusive nos palcos. Quando encenamos Anjo negro, de Nelson Rodrigues, percebemos que não tinha negros na plateia. Ora, onde eles
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 87
estão? Longe do teatro, claro, porque eles não se sentem representados. E para quem nós estamos falando, então? Foi aí que começamos a traçar nossa identidade. Somos um grupo que trabalha com matriz africana e nossa questão é a negritude. Pelo nosso enraizamento”, enfatiza a atriz. Em espetáculos como A receita, que põe no centro a história de uma mulher negra, e principalmente Ombela, adaptação do poema épico do angolano Manuel Rui, o grupo mergulha em uma poética que aborda a negritude sob aspectos variados. “Considero Ombela o ápice do nosso trabalho, até então. Na obra de Manuel, não somos tratados como diferentes, com ‘o outro’. Não é um texto que fala sobre o racismo. É um outro viés da experiência da negritude, que passa longe da visão eurocêntrica. Parte dele é interpretada em umbundo, língua falada principalmente em áreas rurais da Angola, e a outra, em português. É um texto que nos aproxima da nossa ancestralidade”, reforça. Samuel Santos, diretor dos espetáculos do Poste, aponta ainda sentir uma cena muito incipiente no que diz respeito a um teatro feito por negros e voltado para eles em Pernambuco. No entanto, percebe uma mudança positiva em estados como o do Rio de Janeiro, São Paulo e da Bahia e acha que é um movimento que tende a crescer. “Mas é um trabalho que precisa ser aprofundado e focado. Nós, do Poste, temos o objetivo de formar um público, de convidar os negros a conhecerem nosso espaço, dialogar com nossos espetáculos. Queremos explorar outras dramaturgias, outras formas de os negros estarem em cena, outros papéis. É um trabalho gradativo e que vai demorar, mas acredito que é possível”, afirma.
CON TI NEN TE
Criaturas
Steven Spielberg por Fraga
Quem é Steven Spielberg: o jovem realizador que impressionou o mundo com Tubarão (1975); o diretor que arejou a ficção científica em Contatos imediatos do terceiro grau (1977) e Minority Report (2002); o artesão da guerra em A lista de Schindler (1993) e O resgate do soldado Ryan (1998); ou o idealizador das aventuras Indiana Jones e Jurassic Park? Aos 70 anos, o múltiplo cineasta norte-americano habita o panteão de mitos da Sétima Arte.
CONTINENTE DEZEMBRO 2016 | 88
www.revistacontinente.com.br
FRANCISCO
# 192
BRENNAND DIÁRIO REVELA SUA VIDA E SUAS IMPRESSÕES SOBRE O MUNDO
#192 ano XVI • dez/16 • R$ 13,00
CONTINENTE
ESPECIAL
GONZAGÃO EM QUADRINHOS E MAIS
ERICK SATIE MANOEL DE BARROS PATTI SMITH TODO DURO E HOLYFIELD
DEZ 16