Continente #196 - Indigenas

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INDÍGENAS

PELO DIREITO DE EXISTIR

# 196

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#196 ano XVII • abr/17 • R$ 13,00

CONTINENTE ABR 17

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E MAIS: JOÃO MOREIRA SALLES ALLEN GINSBERG ELLA FITZGERALD MARCELO GOMES

NESTA EDIÇÃO, PARA COMEMORAR OS 80 ANOS DE JOMARD MUNIZ DE BRITTO, OFERECEMOS COMO BRINDE O DVD JMB, O FAMIGERADO




Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:

PROGRAMAÇÃO

março e abril

Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco

2017

Nos meses de março e abril, a programação do Ouvindo e Fazendo Música no MEPE, Museu do Estado de Pernambuco, segue efervescente.

DOUGLAS GERMANO 11/03 • SÁBADO • 17h

JAM DA SILVA 18/03 • SÁBADO • 17h

TATADIOS 25/03 • SÁBADO • 17h

DUO SENSÍVEL 01/04 • SÁBADO • 17h

REVEREND KM WILLIAMS 08/04 • SÁBADO • 17h

IARA RENNÓ 22/04 • SÁBADO • 17h

DUO RAFAEL MARQUES E JOHANN BREHMER 29/04 • SÁBADO • 17h

29/04 • SÁBADO • 14h OFICINA COM RAFAEL MARQUES – O BANDOLIM DE 10 CORDAS NO FREVO DE RUA. PATROCÍNIO

PRODUÇÃO

SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE

APOIO

Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.

MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sáb e dom 14h as 17h

REALIZAÇÃO

SECRETARIA DE CULTURA

MINISTÉRIO DA CULTURA


ABRIL 2017

CLAUDIA ANDUJAR/COLEÇÃO DA ARTISTA E CORTESIA GALERIA VERMELHO

aos leitores

Em 20 de abril de 1997, o índio Galdino Jesus dos Santos dormia em uma parada de ônibus da capital federal, 24 horas depois de ter participado das manifestações do Dia do Índio, quando quatro rapazes brancos decidiram queimá-lo vivo. Passaram-se 20 anos desse ato cruel, e os povos indígenas no Brasil seguem sendo vítimas das mais diversas violências – uma situação que perdura desde a chegada dos colonizadores a terras brasileiras. Neste mês, nossa reportagem de capa lança seu olhar sobre a situação dessa população, que se distribui em cerca de 305 povos distintos em todo território nacional. Já nas primeiras conversas, tínhamos convicção de que não gostaríamos de tomar o lugar de fala dos indígenas, que buscaríamos trazê-los como colaboradores para dentro da revista. Ao avançar nas pesquisas, encontramos eco em algumas leituras e na fala de alguns pesquisadores. O antropólogo Eduardo Viveiros de Casto, no prefácio que escreveu para o livro A queda do céu, do xamã Yanomami Davi Kopenawa e de Bruce Albert, dizia: “Recusar aos índios uma interlocução estética e filosófica radicalmente ‘horizontal’ com nossa sociedade, relegando-os ao papel de objetos de assistencialismo terceirizado, de clientes de um ativismo branco esclarecido, ou de vítimas de um denuncismo desesperado,

é recusar a eles a sua contemporaneidade absoluta. Nosso tempo é o tempo do outro, para glosarmos, e invertermos, a bandeira que Johannes Fabian agitava em 1983. Pois os tempos são outros. E o outro, mais ainda”. Não queríamos recusar aos indígenas essa “contemporaneidade absoluta”, por isso, ainda que o especial traga textos de apoio escritos por não índios, era uma prerrogativa fundamental – sem ela, a matéria não seria publicada – que tivéssemos o depoimento e a voz de indígenas em nossas páginas como protagonistas das suas narrativas. Nessa busca, encontramos Ailton Krenak, Dorinha Pankará, Naine Terena e Vera Tupã Popygua Timotéo da Silva, indígenas de etnias distintas, de regiões variadas, que nos contam um pouco da saga dos seus povos e de como é ser, hoje, um indígena no Brasil. Além desse tema tão urgente, não era possível deixar passar em branco os 80 anos do poeta, cineasta e crítico cultural Jomard Muniz de Britto, comemorados neste mês de abril. O perfil, assinado por Aristides Oliveira, nos conta um pouco da sua trajetória, marcada pelo inconformismo e pela iconoclastia. Nessa celebração, presenteamos você, leitor, com o documentário-ensaio JMB, o famigerado (2011), da cineasta Luci Alcantâra, que segue encartado nesta edição.


sumário Entrevista

João Moreira Salles 6 Colaboradores +

Continente Online

74

7 Cartas +

Expediente

20

64

Balaio

Jack Nicholson Afastado das telas desde 2010, ator vai atuar no remake da comédia alemã Toni Erdmann

68

Leitura

72

Entremez

Pesquisa Professora Jane Pinheiro documenta a cena artística contemporânea do Recife nos anos 1990

82

Matéria corrida

84

Sonoras

88

Criaturas

Palco

Trilha sonora Nem sempre percebida pelo público, é um signo importante para a narrativa cênica

Visuais

Cineasta fala sobre si, seu o filme No intenso agora, que estreia este mês no festival É tudo verdade, e também sobre sua incursão no jornalismo, com a Piauí

8

José Cláudio De Atahualpa a Petribú

Ella Fitzgerald Há 100 anos nascia a intérprete que influenciou gerações

Iggy Pop Por Zenival

Allen Ginsberg Há duas décadas, morria um dos ícones da beat generation

Ronaldo Correia de Brito Recife eclético, conversinha fiada!

Perfil

Jomard Muniz de Britto O artista completa 80 anos neste mês, com a mesma verve transgressora e iconoclasta, e é celebrado com obras em sua homenagem

46 CAPA FOTO CLAUDIA ANDUJAR - DA SÉRIE MARCADOS/COLEÇÃO DA ARTISTA E CORTESIA GALERIA VERMELHO

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Portfólio

Capa

Artista gaúcha cria imagens que falam do divino, do sagrado e da integração das pessoas com a natureza, sobretudo a partir de figuras femininas

Vinte anos depois de um índio Pataxó ser queimado vivo em Brasília, lideranças falam da situação de seus povos no Brasil, ponderando os avanços e os retrocessos

Cardápio

Claquete

Ingrediente controverso, condenado por alguns e amado por outros, é elemento fundamental de uma série de receitas em diferentes tradições culinárias

Em seu novo filme, que estreia agora no Brasil, Marcelo Gomes desconstrói o mito de Tiradentes, contando a história do homem antes do herói

Ieve Holthausen

14

Berinjela

54

Indígenas

22

Joaquim

60

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Abr’ 17


colaboradores

Aristides Oliveira

Fabiano Calixto

Gianni Paula de Melo

Mariana Morisawa

Professor de História da UFPI, autor do livro Jomard Muniz de Britto e o palhaço degolado, entre outros

Poeta, publicou os livros Algum, Música possível e Nominata morfina, entre outros

Jornalista, mestranda em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater em Hollywood e cobre festivais

E MAIS

Hélia Scheppa, fotógrafa. José Ribamar Bessa Freire, jornalista e professor da Faculdade de Educação da UERJ. É coordenador desde 1992 do Programa de Estudos dos Povos Indígenas. Lia Beltrão, jornalista. Trabalha com edição de livros budistas. Pedro Zenival, pintor, ilustrador e desenhista de história em quadrinhos.

POVOS INDÍGENAS

ENTREVISTA

Para complementar a matéria de capa, trazemos um artigo da advogada e professora de Direito dos Povos Indígenas Liana Amin Lima da Silva sobre as leis que regulam essa questão. Oferecemos os depoimentos da escritora e professora indígena Shirley Krenak e do cineasta indígena Zezinho Yube ( ambos em áudio), além das falas de Claudia Andujar, Vincent Carelli e Paulo Nazareth – todos com obras e projetos ligados aos indígenas. Também resgatamos a matéria de capa da edição #101, de maio de 2009, que trata da luta dos Fulniôs para preservação de sua língua, o yaathe.

Assista a um trecho do filme No intenso agora, de João Moreira Salles, que estreia este mês no É tudo verdade, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

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SONORAS Confira um documentário em inglês sobre a cantora Ella Fitzgerald, personagem fundamental na história da música norte-americana.


cartas

EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO GOVERNADOR

REPRODUÇÃO

Meu Deus, é tão gostoso ler a história do nosso estado! Maior orgulho e melhor matéria. AMANDA MEDEIROS RECIFE – PE

SÉRGIO SALLES RECIFE – PE

Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO

FREVO

Meus parabéns a toda equipe da Continente pelo excelente especial sobre a Revolução de 1817. O bicentenário deste importante marco histórico certamente será trabalhado nas provas ao longo deste ano. Como professor de História, já estou recomendando a edição 195 e usando o material. É muito bom poder ampliar o horizonte dos estudantes com leituras como esta reportagem de capa, indo além dos livros didáticos e oferecendo outras perspectivas.

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL

Ricardo Leitão

VIA FACEBOOK

REVOLUÇÃO DE 1817

Paulo Henrique Saraiva Câmara

Ricardo Melo

Pura verdade o que aparece na matéria da edição 194, mas os principais culpados são os músicos de Pernambuco. Hoje, muitas orquestras de rua só têm no repertório, quando tem, uns 10 a 15 frevos e maltocados. Lamentável. Futuramente, como será? Na minha época, ensaiávamos muitos frevos. Graças a Deus tenho repertório decorado de frevos de rua, de baile, frevo de bloco, entre outros, graças aos grandes mestres do passado, como Merinho e maestro Nunes. E olha que antigamente cada região tinha seu repertório específico, como os do Recife e de Olinda, em que predominavam os autores locais, sem falar no repertório do interior do estado.

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses

Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Maria Helena Pôrto (revisão) Olívia Mindêlo (Continente Online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação) Agelson Soares Santana (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) Eduardo Montenegro, Erika Muniz, Maria Júlia Moreira e Sofia Lucchesi (estagiários)

HELENO GOMES

Esta espada está exposta no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, que fica na Rua do Hospício, centro do Recife. Não foi do Ipiranga, nem de Dom Pedro o “grito” de Independência… Nada disso. Foi do capitão José de Barros Lima, o “Leão Coroado”, o golpe de espada no quarto do Pátio do Paraíso. Foi no Recife que nasceu a pátria independente. Com luta e com sangue!

OLINDA/PIRASSUNUNGA – SP

CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783

Bela matéria! É este tipo de debate que reflete a real situação da música e do músico pernambucano. SÉRGIO SOARES

redacao@revistacontinente.com.br MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br

CAMARAGIBE – PE ATENDIMENTO AO ASSINANTE

Parabéns pela entrevista com André Freitas! Excelente contribuição!

RICARDO OLIVEIRA

LUCIANA MOURA

RECIFE – PE

0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br

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JOÃO MOREIRA SALLES

“Sou um cineasta muito relutante”

Após uma década sem filmar, documentarista lança No intenso agora, no qual estuda a natureza da imagem a partir de registros históricos feitos por sua mãe nos anos 1960 TEXTO Mariane Morisawa

CON TI NEN TE

Entrevista

Quando estava trabalhando em Santiago (2007), João Moreira Salles topou com imagens desconhecidas, feitas por sua mãe numa viagem à China em plena Revolução Cultural, em 1966. Levou uma década e o trabalho de dois montadores – Laís Lifschitz e Eduardo Escorel – para que elas tomassem a forma de um filme, o primeiro do diretor desde Santiago, que falava da sua impossibilidade de fazer um filme sobre o mordomo da casa da família na Gávea, que hoje abriga o Instituto Moreira Salles. No intenso agora, que foi exibido na mostra Panorama no Festival de Berlim e estreia no Brasil no É Tudo Verdade, neste mês, no Rio de Janeiro e em São Paulo, combina o material obtido por Elisinha Moreira Salles com registros de arquivo do Maio de 1968, na França, do fim da Primavera de Praga, também em 1968, e do funeral do estudante Edson Luís, no Rio, naquele mesmo ano. O longa-metragem investiga a natureza das imagens, e, principalmente, o que acontece quando o momento extraordinário vai embora – muitos dos participantes daquele Maio de 1968 perderam-se com o fim do movimento e

terminaram suas vidas de maneira triste, como Elisinha. Nesses 10 anos sem lançar filme, João Moreira Salles, que começou sua carreira “por acidente”, a convite do irmão Walter Salles, esteve bastante ocupado com sua revista, a Piauí, além de finalizar o documentário inacabado de Eduardo Coutinho (1933–2014), Últimas conversas, de 2015. Neste encontro por Skype, ele conversou com a Continente sobre cinema e jornalismo. CONTINENTE No intenso agora é dedicado a Eduardo Coutinho, e você já disse que o filme é inspirado pelas conversas que tinha com ele. O que eram essas conversas? JOÃO MOREIRA SALLES Eu convivi com Coutinho de 1999 em diante. Tenho a impressão de que, embora o cinema que eu faço seja muito diferente do cinema que ele fazia, tem uma coisa que é comum aos dois, que é a ideia de que o documentário fala certamente das outras pessoas e do mundo, mas também de si mesmo. Um documentário é interessante quando ele explora as possibilidades do cinema não ficcional, o que não significa necessariamente

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cair na metalinguagem. Toda vez que, na história do documentário, alguma coisa importante aconteceu, foi porque alguém inventou uma nova maneira de narrar. Coutinho dizia isso a respeito dos personagens dele: conta menos o que é dito e mais como é dito. Acho que isso vale também para o próprio diretor que está contando alguma coisa com o filme que faz. Deixaram de me interessar aqueles documentários que até falavam de temas extraordinários, mas com linguagens já cansadas. Me interessa sobretudo o cinema como o de Coutinho, que fala do cotidiano, sem necessariamente grandes feitos. Mas fala de uma maneira potentíssima, porque está preocupado em reinventar a forma. Para mim, esse é o sentido da obra de Coutinho. Eu entendo que o seu cinema fez a seguinte pergunta: qual é o mínimo necessário para que um filme continue a ser filme? À medida que ele vai avançando, a cada filme que faz, vai eliminando os elementos mais comuns na caixinha do cineasta. Ele elimina a ação, a trilha sonora, roteiro, cenário, locação. Chega ao ponto, em Moscou, de eliminar a direção, porque


ANNA LUIZA MULLER/PRIMEIRO PLANO/DIVULGAÇÃO

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a concede a outra pessoa. E, no fim da vida, faz um cinema em que a câmera não se move, então elimina também o movimento de câmera. E chega a uma síntese, talvez a mais econômica, do que o cinema pode ser. Se tirar mais um pouco, o filme se desfaz. Acho que a obra de Coutinho é maior do que cada filme dele individualmente. Há filmes extraordinários, mas acho que a obra é maior, porque propõe um raciocínio sobre o cinema. Nesse sentido, ele me influenciou muito. E eu não tenho mais desejo de fazer um filme porque

pessoas que estão encantadas filmam? De que maneira as pessoas que estão assustadas filmam? De que maneira as pessoas que têm medo filmam? De que maneira as pessoas que não têm medo filmam? Isso tudo começou a me interessar, e aí já há um raciocínio sobre a natureza das imagens. E o processo foi correndo por aí. Mas isso tudo é um pouco retrospectivo, sabe? Estou te falando isso depois do filme pronto. Não tenho um programa tão explícito assim na hora em que eu começo a fazer o filme. O filme nasceu na ilha de edição

Entrevista

VIDEOFILMES/DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

ficou na minha cabeça. Não sabia bem o que fazer com ele. E, com o tempo, fui me interessando não só pelo que ela tinha filmado, mas também descobri o que ela escreveu sobre aquela viagem – está no filme. E percebi ali um momento de encantamento na vida dela. E essa ideia da intensidade, do encantamento, me levou naturalmente para 1968, porque Maio de 1968 foi muito influenciado pela Revolução Cultural. Acho que só a França tinha maoistas além da China. Percebi nas memórias das pessoas de 1968, de todas aquelas

me ocorreu um tema. Tenho desejo de fazer um filme porque quero explorar as maneiras de narrar esse tema. Acho que isso começa a acontecer no Entreatos, segue pelo Nelson Freire e se torna bastante explícito em Santiago, que é um filme que fala do próprio processo de fazer o filme, e está presente também em No intenso agora, que é uma investigação sobre a natureza das imagens. CONTINENTE Você já tinha descoberto as imagens feitas por sua mãe numa viagem à China nos anos 1960, fazia algum tempo. Como elas entraram nessa reflexão? JOÃO MOREIRA SALLES O filme se organizou em torno dessas imagens. No final do processo de Santiago, eu encontrei esse material. Não usei lá, mas

que falam de 1968, essa mesma sensação de “nunca foi tão bom”, sabe? É uma coisa que senti no que mamãe escreveu sobre aquele momento. E as coisas naturalmente foram se relacionando: a China de 1966, Maio de 1968, e o fim disso tudo, o que acontece quando tudo isso passa – e que, na verdade, chega de maneira muito dramática com o fim da Primavera de Praga, em 1968, em agosto. Agora, essa ideia de indagar as imagens é um pouco posterior à descoberta do material da minha mãe. O que me levou a querer fazer o filme num primeiro momento foi entender por que ela tinha filmado a China daquele jeito. E eu percebi que ela tinha filmado a China dessa forma porque estava encantada pela China. Então, de que maneira as

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e, portanto, ele é meu, mas, de maneira bastante concreta e não retórica, pertence também às duas pessoas que me ajudaram a montá-lo, que são a Laís Lifschitz e o Eduardo Escorel. CONTINENTE Você disse que não faz um cinema que pretende atuar no mundo. Não faz esse cinema porque não acredita nesse tipo de cinema ou simplesmente não é o cinema que faz? JOÃO MOREIRA SALLES É uma boa pergunta, acho que é um pouco as duas coisas. E acima dessas duas coisas tem uma terceira: a ideia de que o cinema muda o mundo, principalmente na não ficção, torna o diretor onipotente e, portanto, relativamente irresponsável. No sentido em que ele acha que as potências do filme são tão grandes, que


pode se dar o direito de passar por cima das pessoas e dos personagens, porque o resultado final justifica tudo o que ele possa fazer com a câmera. E, então, são os filmes em que se têm pessoas filmadas nos momentos de suas maiores dores ou pessoas filmadas em seus momentos de maior miséria humana, doentes, sofrendo, porque se está, no fundo, a serviço de uma boa causa. Eu morro de medo das pessoas a serviço de boas causas nos documentários porque, em geral, os documentários têm pouca capacidade de mudar o mundo e uma capacidade extraordinária de mudar a vida do próprio documentarista, que acaba indo para Berlim, ou San Sebastián, para onde for, ganhar prêmios, ser celebrado, falado, dar entrevistas. E as pessoas filmadas e expostas nos seus momentos de maior dor, essas continuarão onde sempre estiveram. Então, acho que é um bom princípio – no mínimo, para você não cometer equívocos dessa natureza, que são os mais graves que pode cometer num documentário – é que você tenha consciência da sua própria impotência. E, na hora de tomar a decisão de filmar alguém sofrendo, pergunte se realmente tinha o direito de fazer isso. Além disso, eu não acredito que os filmes são capazes de mudar o mundo. Acho que os filmes são capazes de mudar o próprio cinema, e acho que isso é mais importante. É importante na medida em que muda a perspectiva, aumenta a possibilidade de narrar. Pegue um filme como Acossado, de Godard, que é um exemplo da ficção. Qual é o impacto de Godard? É monumental. Em quê? No próprio cinema. E por isso o filme é importante. Enfim, ninguém passou a olhar para os gângsteres de outra maneira, por causa do Acossado. A gente passou a olhar para o cinema de outra maneira. Essa é uma maneira de mudar o ponto de vista, uma maneira de fazer você olhar de outra maneira. E isso é profundamente político. CONTINENTE Como os dois últimos filmes têm muita coisa pessoal, eles são terapêuticos de alguma maneira? JOÃO MOREIRA SALLES (risos) Eles são. Certamente, Santiago nasceu para isso. Eu estava atravessando um momento complicado na minha vida, difícil, sem saber direito para onde ir,

com dúvidas profissionais e também da vida, e o que propus para o Escorel era voltar a esse material, que eu achava que era fadado a fracassar, porque tinha tentado montar e não tinha conseguido, por achar que tinha um erro fundamental na filmagem. Portanto, não tinha nenhuma ideia de que dali pudesse nascer um filme. Mas achei que fosse me fazer bem, porque eram as questões que estavam me afligindo na época, a minha relação com a minha família, com a passagem do tempo, com a casa em que cresci,

“E eu não tenho mais desejo de fazer um filme porque me ocorreu um tema. Tenho desejo de fazer um filme porque quero explorar as maneiras de narrar esse tema. No intenso agora é uma investigação sobre a natureza das imagens”

com a minha infância. E tratar disso, por alguma razão, achei que me faria bem. Dali surgiu um filme, mas ele não foi pensado inicialmente para isso. No caso de No intenso agora, menos talvez, porque eu estava bem, a Piauí vai bem, eu estava feliz na revista. Mas a relação difícil com minha mãe… A coisa ficou um pouco no terreno da incógnita, de por que ela terminou a vida dela de maneira tão triste, isso tudo era uma coisa na minha cabeça, sabe? Como o filme nasce desse núcleo, que é o único material pessoal de No intenso agora, é claro que havia também uma tentativa de investigar um pouco mais a fundo a natureza da tristeza dela e conseguir poder pensar nela como filho. E isso tem um componente

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extrafilme. Nesse sentido, acho que os dois filmes são assemelhados, você tem razão de fazer a pergunta. CONTINENTE Uma das questões suscitadas pelo filme é a necessidade de encontrar razões para viver. As suas passam pelo profissional também? JOÃO MOREIRA SALLES Vou dizer aqui uma banalidade, mas estou convencido de que uma das coisas que salvam a gente é o trabalho. Claro que amor, relações afetivas, mas acho que só elas não bastam. A gente é o trabalho que faz. E eu sou um cineasta muito relutante. Ao contrário do Waltinho, meu irmão, para quem o cinema é central. Acho que, assim que ele descobriu o cinema, nunca teve dúvidas de que aí residia a sua alegria. Para mim, nunca foi assim e continua, na verdade, não sendo. Mas é uma coisa que fiz por boa parte da minha vida profissional, quase como acidente. Ele fazia, me convidou para ajudá-lo a montar a série sobre o Japão. E aí, no ano seguinte, estava nesse mundo e não tive a determinação de sair do mundo para fazer alguma coisa mais próxima da minha sensibilidade. Com o tempo, fui aprendendo a gostar, em nenhum momento eu quero passar a impressão de que é uma coisa que eu não aprecie. Mas tive de aprender a gostar, não era uma coisa natural. E eu gosto talvez daquilo que não é necessariamente o cinema. Para mim foi essencial ter sido amigo de Coutinho, foi um encontro que definiu a minha vida. Ser amigo de Escorel. Ser amigo das pessoas que montam os filmes comigo, da minha equipe, isso tudo tem um valor inestimável. Mas o cinema, em si, não é uma coisa que me pareça importante. Então, estou sempre flertando com esse perigo, o que de certa maneira também é o que está na raiz do filme. Como diz Coutinho, no início do último filme dele, Últimas conversas: eu perdi a fé. Eu perdi a fé e recuperar a fé é muito difícil. E eu perdi o sentido. Estou de certa maneira sempre perto desse lugar. E voltar a trabalhar com Escorel numa ilha de edição durante o período de feitura do filme, eu não tenho dúvida nenhuma de que era ali que queria estar, aquilo que estou fazendo está sendo feito com empenho, sem preguiça, tentando fazer o melhor possível, esforçando-se ao máximo. Isso sustenta. Mas, quando termina, é pouco. Tenho certeza de que criei a Piauí um pouco para responder a essa angústia.


Criar alguma coisa que me parecia mais relevante do que fazer cinema. Estar na Piauí, trabalhar na Piauí, ajudar a Piauí todo mês a chegar às bancas é uma coisa que me tira muito esse risco da perda do sentido. Invejo muito as pessoas que têm uma vocação clara, que não têm dúvida daquilo que fazem. Eu não tenho. Então eu tenho de ficar inventando.

cineasta um pouco bissexto também. Não sei direito. É mais fácil os outros me definirem do que eu. CONTINENTE Você pode não se considerar jornalista, mas é editor, publisher de revista, num momento em que elas estão definhando e morrendo. Por que continuar publicando? JOÃO MOREIRA SALLES Ah! A primeira resposta, a mais imediata, é: talvez por causa disso. É uma resistência a esse movimento quase inexorável, estrutural, da indústria, de se tornar cada vez mais difícil você poder ter publicações com

ISKRA/DIVULGAÇÃO

CONTINENTE Mas você não se considera cineasta? JOÃO MOREIRA SALLES Não. CONTINENTE Então se considera o quê?

bem que têm, porque são felizes fazendo aquilo que gostam de fazer. Eu não acho que tenha o direito de fazer parte da turma porque não considero o cinema vital. Para mim, certamente não é. Eu não sou cinéfilo. Não conheço tão bem a história do cinema. Acho que conheço bem a história do documentário, porque até como uma estratégia para aprender a gostar do que eu me meti a fazer, eu decidi dar aula sobre documentário. Há muito tempo sou professor. E isso me obrigou a mergulhar na literatura, ver todos os filmes. Você aprende a

CON TI NEN TE

Entrevista JOÃO MOREIRA SALLES Não posso me considerar um jornalista, né? Porque não sou um jornalista. Acho que tenho direito de dizer que sou documentarista, porque fiz documentários. Mas, quando digo que não me sinto um documentarista, que não me sinto um cineasta, é uma questão muito mais interna do que externa. Como eu sei que isso não é aquilo que me preenche plenamente, que me dá a posição absoluta de que é o que deveria estar fazendo, me sinto um pouco um penetra numa festa para qual não fui muito convidado. Sou muito amigo de algumas pessoas que fazem cinema. Mas não sou da tropa do cinema. Não sei corresponder à intensidade que eles têm em relação ao que fazem, e ainda

achar bacana fazer parte da tradição, aprende a gostar um pouco mais. Mas ainda assim alcança isso por meio de um percurso um pouco intelectual. Não é imediato, não é intuitivo. Não sei se me considero um cineasta, porque é difícil se considerar uma coisa cujo objeto não é central para sua vida. Eu me sinto muito mais próximo dos jornalistas. Me sinto mais próximo da redação da Piauí e do que o pessoal da Piauí faz do que propriamente fazem os cineastas, mas também não acho que tenho interesse de me chamar de jornalista. Porque fico vendo os repórteres da redação, e eles cultivam fontes, passam o dia no telefone. Eu não tenho isso. Sou um jornalista muito ocasional, quando faço perfis para a Piauí, assim como sou um

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as características da Piauí. Eu quero resistir a isso. Acho que tudo fica muito mais pobre se você não tem a Piauí, se não tem qualquer revista que esteja na banca. A segunda razão é aquela que eu dei há pouco tempo: a Piauí foi criada por uma necessidade quase que existencial minha. Eu queria poder conviver com essa gente que admiro, que são os jornalistas e repórteres. Eu queria ter uma redação. Queria poder tratar do Brasil de uma maneira que não via o Brasil ser tratado pelo resto da imprensa, não porque somos melhores ou piores, mas porque fazemos de uma maneira um pouco diferente. E o modelo Piauí tinha desaparecido no Brasil. Desde a Realidade, não havia nada parecido no mercado brasileiro. E


imaginei que houvesse pessoas, o que chamo de orfanato, que queriam uma revista assim. Restava saber o tamanho do orfanato, se ele era pequeno ou se era grande. E essa gente continua a existir. Não são muitos, são 100 mil, 150 mil pessoas, mas estão aí. Além de tudo isso que falei, acho que, principalmente nas circunstâncias atuais, de um Fla x Flu eterno de pessoas que são de campos opostos e não encontram um meio termo, e já não concordam nem em relação aos fatos, resistir é importante. Não é por outra razão que, com a eleição do Trump, as assinaturas do New York Times cresceram, do Guardian, do Washington Post, da New Yorker. São pessoas que julgam fundamental que a boa imprensa continue a existir. Eu acho que isso é vital para o Brasil também. E se eu puder contribuir para que a revista que eu criei não desapareça e continue a atuar no país, participando do debate nacional, fortalecendo a democracia, continuarei fazendo isso. Acho que a Piauí hoje é mais importante do que quando ela foi criada. Porque, naquela época, o modelo de negócios ainda não estava tão em risco. E em 2025 será mais importante ainda. E a Piauí continuará a existir. CONTINENTE A casa da sua família virou o Instituto Moreira Salles, que preserva a memória num país que costuma se esquecer do passado. Qual o sentido do Instituto? JOÃO MOREIRA SALLES O Instituto foi criado antes de ter uma vocação, pelo meu pai. Ele achava que era importante ter uma atuação no campo da cultura no Brasil e virou um esforço da família. Mas ele nasceu sem ter um objeto claro. Aí, no seu quarto ou quinto ano, não me lembro, a gente identificou a fotografia como uma área da produção brasileira que reunia algumas características que se tornavam centrais para o instituto. A primeira delas é que a fotografia brasileira, ainda hoje, mas na origem, no século XIX, era de extraordinária qualidade. Em segundo lugar, essa produção estava sob ameaça de deixar o Brasil. Como não havia nenhuma instituição que prezasse a fotografia, que se dedicasse exclusivamente a ela, havia museus fora do Brasil, dedicados à fotografia, muito interessados em levar essas coleções para lá. Então, tornou-se claro para a gente, que

queria ter uma atuação importante no campo da cultura no Brasil, não adiantava entrar na bibliofilia, porque a gente jamais montaria uma biblioteca tão importante quanto a do Mindlin. Não adiantava entrar na pinacoteca, porque ela não seria tão importante quanto a do Gilberto Chateaubriand. A fotografia estava desamparada. Assim, foi muito natural que a gente tomasse a decisão de se dedicar à fotografia. Foi uma decisão tomada a partir de critérios muito objetivos. Acho que, com isso, a gente conseguiu, além de

“Não sei se me considero um cineasta, porque é difícil se considerar uma coisa cujo objeto não é central para sua vida. Eu me sinto muito mais próximo dos jornalistas. Me sinto mais próximo da redação da Piauí”

manter as grandes coleções no Brasil, dar peso e relevância à fotografia, que hoje em dia é vista como manifestação do espírito brasileiro como a música e o futebol. Num segundo momento, a gente resolveu se dedicar à música popular brasileira. Acho que essa é a importância do IMS. É nossa contribuição civilizatória, digamos assim. Agora, a gente está inaugurando uma unidade em São Paulo. E a ideia é circular na maior metrópole do Brasil. É também nosso propósito que a fotografia brasileira converse com a fotografia internacional. É nossa ideia trazer para cá exposições de grandes nomes da fotografia mundial. Para que a gente se alimente deles, e eles também se alimentem da gente.

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CONTINENTE Só para voltar um pouco ao filme, ele também fala do que acontece quando a euforia, os momentos extraordinários, passam. Acha que tem relação com o que ocorreu no Brasil recentemente? JOÃO MOREIRA SALLES Ah, tem. Embora o filme não tenha sido pensado por isso, porque comecei a montar em 2012, quando o céu ainda era de brigadeiro. Mas a realidade brasileira se encontrou com o filme, ou o filme se encontrou com a realidade brasileira. Foi muito curioso estar montando No intenso agora quando eclode junho de 2013, e aquela intensidade que via na minha tela de edição, eu verificava nas ruas, com um certo sentimento de que o movimento era semelhante, de que aquilo era intenso e provavelmente fugaz. E as pessoas teriam de lidar com o que viria depois. O que veio depois é o que a gente está vivendo agora. O filme não dá muita resposta sobre como fazer isso, quer dizer, como lidar com o que vem depois. Enfim, eu mostro exemplos de pessoas que não souberam lidar com o que vem depois. Toda aquela desesperança que veio depois, e que levou uma porção de pessoas a se desencaminhar na vida, a não conseguir mais tomar pé nela, encontrar outras razões para seguir adiante, e algumas até se mataram, o que evidentemente não é uma resposta. É uma derrota. É uma impossibilidade de se reinventar. Acho plenamente possível se reinventar, mas, para isso, essencialmente você tem de largar da nostalgia de querer reviver aquilo. Precisa entender que a vida não se passa na intensidade e, sim, no cotidiano. E encontrar razões para conseguir sentido no cotidiano, na banalidade do cotidiano. E isso não é fácil. Que é, para terminar onde a gente começou, um pouco a beleza do cinema de Coutinho. São pessoas que não tiveram vidas extraordinárias, mas falam delas com uma intensidade, um afeto, que é comovente. Mostrando que, na verdade, você não precisa ter tomado o Palácio de Inverno nem se juntado a milhões de pessoas na Paulista para achar que a vida vale a pena. A vida vale a pena nos momentos de baixa intensidade. E isso talvez mereça outro filme, quem sabe.


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Portfólio

Ieve Holthausen

UMA CELEBRAÇÃO DO SAGRADO TEXTO Gianni Paula de Melo

Ieve Holthausen batiza o seu trabalho como devocional panteísta de coração: imagens que falam do divino e exaltam o sagrado. Aliado à espiritualidade, em primeiro plano, aparece a integração do humano com a natureza, sobretudo a partir de figuras femininas. Uma estética que começou a ser gestada em 2005, quando a gaúcha se deu conta de que seu universo se expressava melhor de forma imagética do que verbal, mas que hoje é compreendida pela fotógrafa como algo conectado à sua experiência metafísica. “Trabalho servindo como uma flauta oca em que o divino sopra e faz lembrar o sagrado, o amor, os nossos infinitos universos internos, a nossa luz e nossa sombra, o poder do autoconhecimento, a presença, a meditação, a contemplação, e sobre como é uma sagrada oportunidade estarmos vivos aqui e agora”, afirma. Uma “testemunha silenciosa” ora a carregar uma Pentax, ora uma Nikon, ambas câmeras analógicas, que maneja junto a filtros com prismas que multiplicam as imagens ou fracionam a luz. Seus filmes fotográficos são, muitas vezes, alterados quimicamente a partir de ácidos naturais como limão, vinho ou urina. “Essas químicas afetam as cores do filme e causam manchas coloridas imprevisíveis, de forma que nunca sei como será o resultado na foto. Gosto da participação do acaso, de dissolver o mérito da foto, da surpresa. Isso CONTINENTE ABRIL 2017 | 16


3 Página anterior 1 EXPERIÊNCIAS

O poder do autoconhecimento, a presença, a meditação, a contemplação são questões relevantes para Ieve Holthausen

Nestas páginas 2 SOBREPOSIÇÃO

Fotografia integra mais de um registro na película

3-4 ÁCIDOS NATURAIS A artista utiliza vários produtos em alterações químicas, tais como bicarbonato e sabão

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Portfólio

trabalha muito o desapego, pois perco muitas fotos com essa brincadeira. Alegro-me muito fazendo isso.” A sobreposição, aspecto que chama atenção nos seus registros, também é feita diretamente no filme, sequência de cliques sobre a mesma película. Embora o conceito de seu trabalho chegue até nós de forma bem orquestrada, exibindo grande organicidade, ele é fruto de um amálgama de influências artísticas diversas. Formam o seu olhar grande parte da obra de Win Wenders, os documentários de natureza narrados por David Attenborough, as animações de Hayo Miyazaki, a série Cosmos de Carl Sagan, o cancioneiro de Almir Sater, a música cigana e a música de rezo, as composições de Bach, as ilustrações de Betsy Walton e de Phoebe Wahl. Todos ressoam em suas imagens, mas talvez seja com as fotógrafas Sally Mann e, sobretudo, Aëla Labbé que alguns diálogos fiquem mais evidentes. Ieve ainda aproxima a sua lente de experiências que escapam à esfera do belo produzido por outros artistas. “É importante, na minha realização, o estudo pessoal que faço da ayahuasca, que é para a mente o que um telescópio hubble é para o espaço. Meu trabalho é muito inspirado pelos entendimentos e visões que tenho quando consagro essa medicina”. Somam-se, ainda, como práticas que contaminam sua fotografia, as danças circulares, a ioga,

o estudo do Bhagavad Gita e os ensinamentos de Sri Prem Baba. Mas, acima de qualquer filosofia, uma vivência é decisiva: “o contato cada vez mais e mais profundo com a natureza: plantando, colhendo, trilhando e aprendendo”. Residente em Porto Alegre, é nos municípios de Maquiné e Caraá, no interior do Rio Grande do Sul, no sítio de amigos e dos pais, respectivamente, que ela experimenta essa aproximação mais sistemática com o ambiente natural. Grande parte de suas fotos, aliás, foi tirada em Maquiné, local onde plantou muitas árvores, ervas e legumes. Outras são na região do Itaimbezinho, no mesmo estado, e algumas pelo Brasil afora, como nas chapadas dos Veadeiros e Diamantina. O compromisso com o acaso, da forma como é travado, torna o planejamento de ensaios um grande desafio. O que Ieve sabe sobre os seus projetos é que quer aprofundar o tema do sagrado feminino ou do que poderia ser chamado de sagrado feminismo. “Fotos que falam da potência de ser mulher, da potência de amar, do poder do sangue menstrual, do poder dos círculos de mulheres. Também tenho no coração o desejo de criar uma série sobre os orixás e círculos de mulheres negras. E, por último, um sonho de criar um tarô, retratar outros arquétipos e mitos.” Mais imagens em www.ieve.org

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5-6 GÊNERO As figuras femininas são constantes nos seus trabalhos

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7-8 INTEGRAÇÃO Ela também trabalha com a conciliação e o embate do humano com a natureza


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FOTOS: DIVULGAÇÃO

TOUR NO MASP

De volta ao ninho Em 1969, estreava um dos filmes mais cultuados do cinema norte-americano, Easy rider. Protagonizado por Dennis Hopper e Peter Fonda, um coadjuvante praticamente roubou a cena, Jack Nicholson. Naquele ano, o ator não era exatamente um novato, já contabilizava quase 30 participações em séries de TV e filmes B, mas ainda não havia emplacado seu nome. No entanto, no road movie dirigido por Hopper, Nicholson entrou para a história do cinema e construiu uma das mais impressionantes carreiras em Hollywood. Uma mostra de seu talento e de sua versatilidade está no fato de que uma boa dezena dos papéis interpretados por ele está na lista dos maiores personagens de todos os tempos do cinema. Como esquecer, por exemplo, do Joker (Batman), de Jack Torrance (O iluminado), R.P. McMurphy (Estranho do Ninho), Garrett Breedlove (Laços de Ternura) e Melvin Udall (Melhor é impossível)? Desde 2010, Jack Nicholson está afastado das telas, o que vem gerando muita especulação sobre o seu estado de saúde – já foi até noticiado que ele estaria com Alzheimer. Um anúncio, no entanto, vem desmentir a boataria: voltará a atuar. Vai interpretar Winfried, o pai inconveniente de uma executiva no remake da comédia alemã Toni Erdmann, que concorreu à Palma de Ouro em 2016. Alguma dúvida de que ele novamente, em plenos 80 anos, que completa neste mês, vai roubar todas as cenas? DÉBORA NASCIMENTO

CON TI NEN TE

A FRASE

“O mundo começou sem o homem, e terminará sem ele.” Claude Lévi-Strauss (1908-2009), antropólogo e etnólogo belga CONTINENTE ABRIL 2017 | 20

Que tal um tour de realidade virtual entre obras de artistas como Renoir (acima) e Modigliani pelos cavaletes de cristal criados por Lina Bo Bardi? A exposição Acervo em transformação, atualmente no segundo andar do Masp, agora está disponível no Google Arts & Culture. A plataforma, criada em 2011, reúne mais de 6 milhões de imagens – entre pinturas, esculturas e fotografias – de instituições culturais do mundo inteiro. Do acervo do museu paulistano, outras quase mil peças também podem ser visualizadas, inclusive, aproximando-as com zoom. Entre as exposições, estão: Arte da Itália: de Rafael e Ticiano, León Ferrari: entre ditaturas e História da loucura: desenhos de Juquery. (Erica Muniz)

Balaio 100 ANOS SEM RODIN No final de outubro de 2000, quem circulava pela Rua da Aurora, na altura do número 265, se impressionava com a grande fila formada pela via. Alguns poderiam pensar que se tratava da chegada de uma celebridade da cultura pop ou mesmo de uma boa oferta de vagas de trabalho. Mas, não, tratava-se da exposição do escultor francês Auguste Rodin, que ocupava os salões do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães. A visitação da mostra, à época, chamou a atenção. Ninguém esperava tamanha afluência. Neste 2017, comemora-se o centenário da morte do escultor, considerado o pai da escultura moderna, numa grande exposição que reúne mais de 200 obras, em cartaz no Grand Palais, em Paris. Além dos seus trabalhos, são exibidas obras de nomes como Henri Matisse e Pablo Picasso, os quais foram influenciados por ele. No Recife, neste ano, seguimos na torcida para que novas filas se formem na frente dos nossos museus e galerias... (Mariana Oliveira)


ARQUIVO

DIRE STRAITS... COVER No dia 21 do mês passado, o Classic Hall convocou uma coletiva para anunciar o “show de um grande nome do rock internacional”. Após o suspense, foi revelado que seria do Dire Straits...Legacy. O grupo, formado por músicos que fizeram parte da primeira formação, que ingressaram depois ou que fizeram alguma participação especial em shows ou discos, é uma espécie de luxuoso cover do Dire Straits – cuja turnê, que comemora os 40 anos de surgimento do original, vai passar, além do Recife (13 de maio), por São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Curitiba e Belo Horizonte. Logo após o anúncio, criou-se o burburinho de que o Dire Straits tocaria na capital pernambucana. No entanto, há um detalhe: Mark Knopfler (acima), o principal compositor, cantor e guitarrista não vai participar. O vocalista dessa empreitada, o italiano Marco Caviglia, tenta emular o jeito de Knopfler cantar e tocar, mas evidentemente não é a mesma coisa que ver o próprio. Só Knopfler consegue ser Knopfler. Ou imitar Bob Dylan. (DN)

Há 80 anos, o quadro do luto Uma antiga lenda conta que, certa vez, um soldado alemão perguntou a Picasso se fora ele o pintor responsável por Guernica (1937), seu mais famoso quadro. A réplica: “Não, foram vocês.” Em 2017, a pintura comemora 80 anos de elaboração, permitindo uma revisão do horror da guerra e da soberba humana. Pintado em tons sombrios, numa predominância do preto, branco e cinza, também considerada uma obra do Cubismo, o quadro surgiu quando um bombardeio causado pela Alemanha destruiu uma aldeia basca chamada Guernica. A pintura representa, em personagens, a dor, a angústia e o desespero, como uma mulher segurando um filho morto nos braços, uma tenebrosa Pietà do século passado. Na época, estourava a Guerra Civil espanhola, e a Luftwaffe (Força Área Alemã) encontrou no ataque uma oportunidade de testar as armas que, futuramente, ceifariam os inimigos do Terceiro Reich na Segunda Guerra Mundial. É uma obra que, pelas palavras de Picasso, “não foi inventada para decorar casas. É um instrumento de guerra para atacarmos e para nos defendermos do inimigo.” EDUARDO MONTENEGRO

QUALQUER COISA HALL A ELETRICIDADE DE DONATO

Desde junho de 2015, o Classic Hall, que, passou 11 anos sendo chamado de Chevrolet Hall, voltou ao seu nome original. Boa parte do público, no entanto, ainda se confunde ao referir-se à casa de shows situada na divisa entre o Recife e Olinda. Desde que empresas passaram a patrocinar grandes espaços de eventos, as trocas são constantes e o cliente, muitas vezes, prefere o nome original, como é o caso do Metropolitan. A casa de eventos, inaugurada no Rio de Janeiro em 1994, já foi rebatizada de ATL Hall, Claro Hall e Citibank Hall. Agora vai se chamar KM de Vantagens Hall. O nome esdrúxulo vem do programa de fidelidade dos Postos Ipiranga, novo patrocinador que comprou o direito de nome do lugar. A única desvantagem vai ser a dificuldade de encontrar alguém que diga esse nome com naturalidade. (DN)

Brasil, Estados Unidos, Cuba, Caribe… As viagens sonoras do brasileiro João Donato ganharão homenagem no Rock in Rio deste ano. Consagrado internacionalmente por sua musicalidade diversa, misturando jazz, samba e ritmos latinos, o compositor, nascido no Acre, é um dos pais da bossa nova, embora não seja associado diretamente ao movimento. O músico subirá no Palco Sunset acompanhado das cantoras Emanuelle Araújo, Lucy Alves, Mariana Aydar e Tiê. No ano passado, em parceria com jovens instrumentistas – como os integrantes da banda Bixiga 70 –, lançou seu sexto álbum solo, o animado Donato Elétrico. (Sofia Lucchesi)

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FÁBIO NASCIMENTO/MOBILIZAÇÃO NACIONAL INDÍGENA/CORTESIA

RESISTÊNCIA

DE COMO A AMBIÇÃO MASSACRA UM POVO CON TI NEN TE

CAPA

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Desde a chegada dos europeus, população nativa do país luta para manter seu direito originário à terra tradicional, que vem sendo ameaçado de modo constante e violento TEXTO Débora Nascimento

“…um povo que sempre viveu à revelia de todas as riquezas, um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como povo que é inimigo dos interesses do Brasil, inimigo dos interesses da nação e que coloca em risco qualquer desenvolvimento.” (Ailton Krenak, na Assembleia Nacional Constituinte, em 4 de setembro de 1987) Na manhã do dia 8 de março, Valtenir Lopes saiu de sua terra Kurusu Ambá, para ir ao centro urbano do município de Coronel Sapucaia (MS). Levava, num automóvel, uma geladeira velha. Na metade do trajeto de 30 quilômetros, policiais o abordaram e o prenderam, sob a suspeita de que havia roubado o eletrodoméstico. Atiraram contra a sua perna, que saiu ilesa devido ao rápido reflexo. Na delegacia, Valtenir jurava que não havia furtado o objeto, estava levando para trocar o gás. Foi agredido. Horas depois, após sua família convencer os oficiais de que o produto, comprado há 12 anos pela sogra, não era fruto de um crime, o liberaram. Na realidade, o crime estava sendo cometido, naquele momento, não pelo suspeito, que insistiu em fazer o exame de corpo delito, para provar as agressões sofridas. Os mesmos policiais o conduziram ao hospital para realizar o procedimento. No percurso,

o ameaçaram, caso contasse o que realmente acontecera. Valtenir é um Guarani-Kaiowá que mora em uma área de retomada – expressão usada pelos indígenas para a ocupação de uma terra que pertenceu aos seus ancestrais. O tekoa – o lugar do modo de ser guarani – Kurusu Ambá é um dos territórios ocupados pelos Guarani-Kaiowá na luta cinquentenária pela demarcação de suas terras e está localizado numa região fronteiriça do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, onde os ataques cometidos por jagunços são frequentes, acobertados, ignorados e impunes. Em 2007, duas lideranças foram mortas. Entre 2009 e 2015, mais duas. E, em 2016, como numa cena típica de faroeste americano, um dos três acampamentos, incendiado. Ao escapar com vida da prisão arbitrária, Valtenir livrou-se do mesmo destino de Samuel Pataxó, da Aldeia Coroa Vermelha (Santa Cruz Cabrália, BA), que, em julho de 2014, foi vender artesanato em Belo Horizonte e acabou alvejado por vários tiros, com apenas 19 anos; de Genilson Lima dos Santos Pataxó, morto, aos 39 anos, com um tiro à queima-roupa por um policial, também na capital mineira, em março de 2015; de Marinalva Manoel, líder Kaiowá, morta a facadas, aos 27 anos, em Dourados (MS), em novembro de

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2014, 17 dias depois de voltar de um protesto em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília; e do Índio Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo, aos 44 anos, por quatro rapazes brancos, enquanto dormia num ponto de ônibus na capital federal, em 20 de abril de 1997, 24 horas após participar de uma manifestação no Dia do índio. Exatos 20 anos após o cruel assassinato do líder Pataxó, os povos indígenas continuam sendo vítimas de agressões, ataques, assassinatos, tramoias, usurpações de seus direitos, sendo um deles o direito à terra – mais antigo motivador de toda a violência desde que os europeus, em busca de ouro, chegaram a este território na América do Sul, imaginando terem aportado na Índia. De acordo com números da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, 137 indígenas foram assassinados em 2015; 138, em 2014, e, 53, em 2013. Desde 2003, quando o relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), passou a ser realizado, foram registrados 891 homicídios, sendo a maioria no Mato Grosso do Sul, onde se situa o povo Guarani-Kaiowá. No estado, em 2015, ocorreram 36 casos de homicídios, e a cidade com maior número de registros é


CON CAPA TI NEN TE MATIAS BENNO/CORTESIA

Dourados – onde foi morta a citada líder Kaiowá Marinalva Manoel, deixando dois filhos órfãos. Outro dado alarmante é o número de mortes de crianças indígenas com até cinco anos de idade. Em 2015, foram registrados 599 óbitos – 100 deles no Mato Grosso do Sul. A explicação, segundo o relatório, é a falta de atendimento médico nas áreas, as precárias condições de vida e/ou envenenamento por agrotóxicos usados na região. Além disso, também aconteceram, naquele ano, 87 suicídios de indígenas no país.

DIZIMAÇÃO

Hoje é mais fácil contabilizar e divulgar números como esses, mas precisar o quantitativo dos indígenas que existiam e dos que foram mortos desde a colonização no Brasil é improvável. A população nativa no século XVI, segundo alguns autores, era estimada entre 2 e 4 milhões de pessoas distribuídas em 1 mil povos diferentes. Segundo Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro (1995), só na primeira metade do século XX, a população total teria diminuído de 1 milhão para 200 mil pessoas, sendo dizimados mais de 80 povos indígenas. Tal como uma fantasiosa chegada de extraterrestres trazendo consigo embates linguísticos, corporais e doenças, a vinda do europeu foi um evento terrível do qual a população indígena até hoje sofre as consequências. Darcy relatou, em seu estudo, as séries de enfermidades que acometeram os nativos. “A branquitude trazia da cárie dental à bexiga, à coqueluche, à tuberculose e ao sarampo. Desencadeia-se, ali, desde a primeira hora, uma guerra biológica implacável. De um lado, povos peneirados, nos séculos e milênios, por pestes a que sobreviveram e para as quais desenvolveram resistência. Do outro lado, povos indenes, indefesos, que começavam a morrer aos magotes. Assim é que a civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia de pestes mortais. Depois, pela dizimação através de guerras de extermínio e da escravização. Entretanto, esses eram tão só os passos iniciais de uma escalada do calvário das dores inenarráveis do extermínio genocida e etnocida.” O princípio do etnocídio é descrito pelo antropólogo: “As crônicas coloniais

registram copiosamente essa guerra sem quartel de europeus armados de canhões e arcabuzes contra indígenas que contavam unicamente com tacapes, zarabatanas, arcos e flechas. Ainda assim, os cronistas destacam com gosto e orgulho o heroísmo lusitano. Esse é o caso das loas do padre Anchieta a Mem de Sá, subjugador das populações aborígenes para escravizá-las ou colocá-las em mãos dos missionários. Sem embargo, mais ainda que as espadas e os arcabuzes, as grandes armas da conquista, responsáveis principais pela depopulação do Brasil, foram as enfermidades desconhecidas dos índios com que os invasores os contaminaram. A magnitude desse fator letal pode ser avaliada pelo registro dos efeitos da primeira epidemia que atingiu a Bahia. Cerca de 40 mil índios reunidos insensatamente pelos jesuítas nas aldeias do Recôncavo, em meados do século XVI, atacados de varíola,

“A civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia, depois, através de guerras e escravização” Darcy Ribeiro morreram quase todos, deixando os 3 mil sobreviventes tão enfraquecidos, que foi impossível reconstituir a missão”. Em Os sertões, Euclides da Cunha relata o quanto a população indígena, mesmo assim, ainda estava em vantagem, no início da colonização, e toma como exemplo a Bahia: “Quando alguns anos mais tarde se povoou melhor a Bahia, a desproporção entre o elemento europeu e os dois outros continuou desfavorável, em progressão aritmética perfeita. Segundo Fernão Cardim, ali existiam 2 mil brancos, 4 mil negros e 6 mil índios. É visível durante muito tempo a predominância do elemento autóctone”. Embora o Brasil fosse a terra do “em se plantando, tudo dá”, os colonizadores logo perceberam que poderiam não apenas viver da agricultura, como enriquecer bastante a partir dela, mas não da agricultura diversificada que encontraram nas terras indígenas (TIs), e, sim, da monocultura em latifúndio.

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Com a instalação do primeiro engenho de cana-de-açúcar, em 1533, na capitania de São Vicente, o agronegócio dava seus primeiros passos. “Já antes da invasão holandesa (1624), do Rio Grande do Norte à Bahia havia 160 engenhos. E esta exploração, em dilatada escala, progrediu depois em rápido crescendo. O elemento africano de algum modo estacou nos vastos canaviais da costa, agrilhoado à terra e determinando cruzamento de todo diverso do que se fazia no recesso das capitanias. Aí campeava, livre, o indígena inapto ao trabalho e rebelde sempre, ou maltolhido nos aldeamentos pela tenacidade dos missionários”, destaca Euclides. A rebeldia à qual se referia o autor de Os sertões pode ser comprovada ainda hoje nos vários movimentos encampados pelos povos indígenas em busca de seu direito à terra. À beira de completar, em 2018, 30 anos de promulgação da Constituição, que garantia esse bem e


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Em protesto, indígenas exigem cumprimento de direitos garantidos pela Constituição

Nestas páginas 2 KURUSU AMBÁ

I ndígenas GuaraniKaiowá em sua teoka, à espera de demarcação

que estabelecia, inclusive, um prazo de cinco anos para o cumprimento dos preceitos da lei, os indígenas continuam sendo vítimas da ambição dos não índios, mas, por outro lado, permanecem dispostos a resistir.

RELATÓRIO FIGUEIREDO

As violências cometidas contra os indígenas no século XX, entre 1946 e 1988, foram apuradas na Comissão Nacional da Verdade Indígena (2014), que recebeu denúncias de diversas violações, muitas delas cometidas pelo Serviço de Proteção aos Índios (19101967), órgão cuja extinção deu lugar à Fundação Nacional do Índio (Funai), em 5 de dezembro de 1967. Alguns dos dados da comissão foram obtidos no Relatório Figueiredo – documento de mais de 7 mil páginas, realizado pelo procurador Jáder Figueiredo Correia e que esteve desaparecido durante quatro décadas, sendo encontrado no

Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em abril de 2013, lançando luz à parte obscura da história do país. O documento relata atrocidades, como “caçadas” com metralhadoras, dinamites atiradas de aviões, inoculações de varíola e doações de açúcar com veneno. Várias tribos sofreram baixas consideráveis, como os Rikbaktsa, que vivem no estado do Mato Grosso. Da década de 1950 até o início de 1960, foram vítimas de fazendeiros, seringalistas, madeireiros e mineradores, resultando na morte de 75% da sua população. A comissão revelou que, na época da ditadura militar, oito mil índios foram assassinados durante a construção de quatro rodovias pertencentes ao Plano Nacional de Integração (PIN), do governo Médici: a BR-174 (Manaus a Boa Vista); a BR-210, Perimetral Norte; a BR 163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA), e a BR-230, a Transamazônica.

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Obra grandiosa, a construção da Transamazônica, entre 1968 e 1974, vitimou 29 grupos indígenas, dentre eles, 11 viviam completamente isolados. Houve extermínio quase total dos Jiahui e dos Tenharim. Durante as obras da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, aconteceu o massacre dos Paracanã, e da rodovia Perimetral Norte ocorreu a morte de, pelo menos, dois mil Yanomamis. “O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos 8 milhões de quilômetros quadrados do Brasil. Os senhores são testemunhas disso”, denunciou Ailton Krenak, em sua fala histórica no dia 4 de setembro de 1987, no plenário da Assembleia Nacional Constituinte. O discurso aos parlamentares constituintes foi fundamental para a aprovação dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, que formam a primeira e mais clara legislação em favor dos indígenas.


CON CAPA TI NEN TE KAMIKIA KISEDJE/APIB/CORTESIA

A Carta Magna quebrava a ideia integralista do Estatuto do Índio, de 1973, reflexo ainda das expedições do Marechal Rondon, no início do século XX, que tratava os nativos como seres que precisavam ser adestrados. “Antes da Constituição, a maior parte das políticas queria transformar esse índio numa mão de obra assalariada, deixando de lado sua identidade, tentando atingir uma identidade homogênea de povo brasileiro. Eram políticas equívocas e falhas, porque a identidade é um algo muito forte”, avalia a advogada do Instituto Socioambiental, Juliana de Paula Batista.

RETROCESSOS

No entanto, a Constituição e outras conquistas dos indígenas no campo jurídico estão ameaçadas por possíveis retrocessos, como a Proposta de Emenda à Constituição 215. Apresentada em 2000, a PEC pretende transferir ao Congresso Nacional a aprovação definitiva das demarcações. “Com essa proposta danosa, a questão deixa de ser baseada em critério técnico e passa a ser orientada pelo critério político, analisada por um congresso, cuja maioria é composta pela bancada ruralista, não comprometida com os direitos das minorias vulneráveis. Já temos projetos de lei que querem retirar direitos e um executivo extremamente moroso – há comunidades aguardando há 20, 30 anos pela demarcação efetiva, o que gera muitos conflitos”, analisa Juliana. Dentre os projetos de leis que estão contra os direitos indígenas, os que se referem à mineração (1610/1996), à construção de rodovias, ferrovias e hidrovias em TIs (273/2008) e à revisão da demarcação de terras em processo de retomada (349/2013). No Judiciário, a causa indígena sofreu um baque com o julgamento sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009. Embora tenha julgado favorável à demarcação, o Supremo Tribunal Federal utilizou a tese do “marco temporal” – segundo a teoria, só poderiam ser consideradas terras tradicionais aquelas que estivessem sob posse dos indígenas no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. “Trata-se de um contrassenso, pois muitos povos indígenas foram obrigados a saírem de

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suas terras para fugir de perseguições e mortes”, critica Juliana de Paula Batista. Utilizado como jurisprudência, o marco temporal interferiu, por exemplo, na decisão que afetou os Guarani-Kaiowá, no final de 2016. A área, com 12.196 hectares, no Mato Grosso do Sul, já havia sido identificada como terra indígena pela Funai, em 2011. As terras indígenas vêm sofrendo, na última década, uma queda no número das demarcações e homologações – estas dependem da assinatura da Presidência da República. De 1985 até março de 1990, o governo Sarney homologou 67 demarcações; o governo Fernando Collor, 112; Itamar Franco, 16, em dois anos de mandato; Fernando Henrique Cardoso, 145, no total dos dois mandatos; Lula, 87, na soma dos dois mandatos; Dilma, 26 (demarcadas) e 22 (homologadas), nos dois mandatos até o impeachment. “Esses números apontam que cresceu a pressão política dos setores interessados em não demarcar terras. Legislação há, mas foram criadas formas para não cumprila”, lamenta Juliana. Das 705 TIs no país e em diferentes fases do processo

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demarcatório, somente 480 foram homologadas e reservadas. Em paralelo a isso, os diversos governos não vêm conseguindo equilibrar o investimento em obras de infraestrutura e as demandas indígenas e ambientais. Dentre os casos recentes, Belo Monte. Em 2013, o antropólogo Guilherme Heurich, do Museu Nacional (RJ), apresentou um texto à Procuradoria-Geral da República, em que diz: “O que a Norte Energia fez, durante o Plano Emergencial, foi fornecer um fluxo constante de mercadorias em direção às aldeias. A Norte Energia se colocou como o grande doador, universal e infinito, de produtos não indígenas, tendo como intermediárias entre ela e os índios apenas as listas”. Durante dois anos, a empresa ofereceu mensalmente R$ 30 mil reais em mercadorias para cada aldeia. Indígenas deixaram de plantar e passaram a comer produtos industrializados, resultando em casos de desnutrição, anemia e diarreia. Além de o Rio Xingu ter sido alterado pelo barramento, afetando a sobrevivência dos indígenas, o governo


3 SONIA GUAJAJARA Indígena é uma das maiores lideranças hoje no cenário nacional

o cargo de presidente do órgão o dentista e pastor evangélico Antonio Fernandes Toninho Costa. Enfraquecida, a instituição, que hoje deveria ter 6 mil funcionários em todo o país, possui apenas 2,6 mil. O orçamento, que já foi de R$ 200 milhões, está reduzido à metade. O novo gestor disse, em recente entrevista: “O momento da Funai assistencialista não cabe mais, temos que produzir sustentabilidade, ensinar a pescar”. Metáfora inadequada. Outro contrassenso foi a indicação do relator da PEC 215, o deputado Osmar Serraglio, para o cargo de Ministro da Justiça. Ele ocupa agora o posto que pertenceu ao advogado Alexandre de Moraes, autor da portaria 68, que, devido à grita das entidades indígenas, foi revogada, teve seu texto alterado e se transformou na portaria nº 80, cujo maior perigo reside no único artigo, que estabelece a criação de um Grupo Técnico Especializado (GTE) para avaliar o trabalho da Funai. Para indígenas, indigenistas e juristas especializados, o do Pará aprovou, em 2 de fevereiro, a licença para outro projeto: a instalação da empresa canadense Belo Sun, ao lado de Belo Monte, para extrair ouro. Segundo a Funai, seriam necessários seis anos para medir a viabilidade do novo empreendimento. A mineradora prevê a extração de 600 toneladas de ouro. Para se ter uma ideia, em Serra Pelada (PA), foram extraídas 40 toneladas. A história recente comprova que o progresso a qualquer custo pode realmente custar muito caro aos povos e ao meio ambiente. Quando a barragem da Samarco, instalada em 1977 em Mariana (MG), estourou no dia 5 de novembro de 2015, o alagamento com a lama tóxica (arsênico, zinco, cobre, mercúrio, antimônio) matou 19 pessoas, destruiu casas e os 663 quilômetros do Rio Doce e seus afluentes, afetando muitos moradores da redondeza, inclusive os povos Tupiniquim e Guarani, no Espírito Santo, e os Krenak, em Minas Gerais. Enquanto as vítimas ainda aguardam indenização, a Funai passa por um período de transição. Com o impeachment de Dilma Rousseff, foi indicado para

“Os números apontam que cresceu a pressão política dos setores interessados em não demarcar terras” Juliana de Paula Batista recurso cria mais uma dispensável etapa com o intuito de alongar e até frear os processos de demarcação. O Instituto Socioambiental (ISA) prevê que 153 terras indígenas em fase de estudos serão diretamente afetadas. Dessas, 37 já estão à espera de parecer do ministro da Justiça há três anos. “Num cenário político tão conturbado e especialmente negativo para os povos indígenas, quilombolas, tradicionais e do campo, a portaria nº 80 representa mais uma insegurança. Primeiro, porque não é transparente e clara quanto ao seu propósito, mas coaduna com intuitos anticonstitucionais. Segundo, porque revela o enfraquecimento institucional que se impõe à Funai, e a fragilidade dos atos públicos (pouco transparentes,

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não dialogados, publicados e revogados ao gosto da autoridade, acumulando contradições). Por exemplo, na contramão da posição da Funai em seguir com as demarcações planejadas ou quando estabelece uma composição de GT, que tampouco se sustenta, porque exacerba suas competências”, esclarece Erika Yamada, doutora em Direito e Política Indígena pela Universidade do Arizona e perita da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Direitos dos Povos Indígenas. Em meio a retrocessos e tragédias, a boa notícia é que, apesar das mortes, a partir dos anos 1980 houve uma reversão da curva demográfica. “A população indígena no país tem crescido de forma constante, indicando uma retomada demográfica por parte da maioria desses povos, embora povos específicos tenham diminuído demograficamente e alguns estejam até ameaçados de extinção”, diz o estudo. A presença indígena nas áreas urbanas surgiu desde a inclusão da opção “indígena” no censo de 1991. Os dados de 2010 mostram uma queda na permanência em áreas rurais. No país, 61% reside nessas áreas. Os menores índices estão no Nordeste e Sudeste, 49% e 19%; e os maiores no Norte e Centro-Oeste, 79% e 73%, e no sul, 54%. Dos nove bilhões de pessoas no mundo, estima-se que 370 milhões são indígenas (segundo dados de 2015 da ONG International Work Group for Indigenous Affairs), distribuídos em 5 mil povos – desses, o Brasil possui 305, que falam mais de 150 línguas diferentes, somando, segundo o Censo IBGE 2010, 896.917 pessoas – 0,47% da população total do país, 0,47% de muita resistência. Uma resistência milenar: segundo estudo publicado em março, na revista Science Advances, duas ondas migratórias vieram da Ásia entre 20 mil e 15 mil anos atrás, no Pleistoceno (entre 1,8 milhão e 11 mil anos), e entre 12 mil e 10 mil anos atrás, no Holoceno, e se estabeleceu na região dando origem aos povos do Novo Mundo “descobertos” pelos europeus. O desafio do indígena hoje é manter-se no Antropoceno – termo empregado pelo Nobel de Química de 1995, o holandês Paul Crutzen, para definir a era de impacto ambiental provocado pelo homem e que significa “época da dominação humana”.


CON CAPA TI NEN TE

DEPOIMENTO Ailton Krenak

Uma grande extensão de serras e

vales, cobertos por florestas e ricas campinas. Com caça abundante e fartura de peixes nas águas de córregos e rios caudalosos: assim foi a paisagem avistada pelo naturalista príncipe Wied-Neuwied, quando de sua viagem científica ao Brasil. Ele descreve a exuberância e beleza do lugar onde vive o povo Krenak hoje, que ficou registrado na imagem que mostra uma embarcação vencendo as cachoeiras, em trecho do Rio Doce cercado por um verdadeiro jardim tropical. Paraíso dos antigos Botocudos. Nação de índios guerreiros que, durante séculos, teve essas serras e vales como seu território, mesmo depois da ocupação do litoral pelos colonos portugueses. Durante todo o ciclo do ouro e diamante das Gerais, ainda assim os Krenak seguiram ocupando a vasta região entre os rios São Mateus e Doce, só mais tarde aberta à colonização portuguesa. A corte conivente usava as muralhas do sertão como defesa contra a prática de roubo e desvio de riquezas da Coroa portuguesa, estas eram retiradas pelo caminho do ouro ou estrada real que cortava a crista das serras na região central, deixando a parte leste das florestas do rio Doce sem rotas para penetração. Para maior segurança, ainda difundiram por todos os meios que essa região era ocupada pelos bravos e arredios Botocudos, descritos

como temíveis canibais. Assim foi justificada a guerra que moveu a Coroa portuguesa contra os povos que formavam a nação dos “Botocudos”, guerra justa decretada por D. João VI quando chegou com a corte para se estabelecer no Rio de Janeiro em 1808. A vida desses povos nunca mais foi a mesma, com a implantação de quartéis nos afluentes do Rio Doce, São Mateus e Jequitinhonha, formando aldeamentos, postos de controle da movimentação dos índios, que mesmo nas matas eram perseguidos e arregimentados para o trabalho forçado nas novas colônias que avançavam sobre a região. Na segunda metade do séc. XIX, a maioria dessa população nativa já estava encurralada, sofrendo perseguição dos militares e colonos, que a todo pretexto faziam caçadas de índios, com a paciente aceitação dos inspetores nomeados pelo governo central, que ficava nas províncias, em Minas Gerais, apoiando as frentes de colonização do Rio Doce. Como no grande empreendimento feito pelos irmãos Ottoni, com a Cia. de Colonização do Rio Doce, moderno e ativo sistema de trazer colonos da Europa, em especial da Alemanha, para ocupar as terras indígenas, agora abertas à colonização. Apesar de frustrado, esse projeto deu impulso à abertura de quase todas as atuais vilas e cidades que prosperaram na consolidação do que são hoje centros comerciais urbanos na região.

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SÉCULO XX

Já na segunda década do séc. XX, a última expedição científica europeia, no começo da nossa vida republicana, sobe o Rio Doce a partir do litoral do Espírito Santo, conduzida pelo russo H.H. Manizer (1911-1914). Chegando aonde está a terra indígena Krenak, encontrou os índios cercados por colonos em disputa de terras, e decidiu tomar a defesa dos indígenas ante a total conivência das autoridades com a prática de assassinatos e roubos feitos pelos brancos. O médio Rio Doce foi o último refúgio dessas famílias indígenas, escorraçadas de suas aldeias de origem, perseguidas e massacradas por seus vizinhos, onde o Serviço de Proteção ao Índio – SPI, precursor da atual Funai, estabeleceu o aldeamento definitivo para os indígenas que restaram nas regiões vizinhas de Minas e Espírito Santo, antigos territórios indígenas no Rio Doce. Em 1920, o governo da província de Minas Gerais decidiu criar uma colônia tomando toda essa região do médio Rio Doce e aceitou, então, retirar 3.983,07 hectares para os Krenak, onde o SPI instalou o Posto Indígena Guido Marliére, terra indígena Krenak ocupada hoje por uma população de aproximadamente 130 famílias. Parte dessas 130 famílias teve que passar por despejos e deslocamentos forçados, com graves sequelas para os sobreviventes. Desde a primeira transferência, feita na década de 1950, foram liberadas terras


GUIDO MORETO/AGÊNCIA O GLOBO

aos colonos da região, com a tentativa de fixação dessas famílias Krenak em outra terra indígena no Vale do Rio Mucuri entre os Maxakali, povo indígena aldeado à mesma época que os Krenak, e que também era hostilizado por seus vizinhos fazendeiros de gado. As famílias não conseguiram permanecer, devido à grande carência e desestruturação desse posto indígena Maxakali, administrado pelo Serviço de Proteção Indígena – SPI. “Eu lutei para entrar nessa terra Krenak, andando pra lá e pra cá. Doente, não pude voltar lá do Vanuire, em São Paulo, depois de quatro anos fora da nossa terra. Os fazendeiros estavam dentro, nós tinha sido levado para outro lugar, para morar no Maxakali, mas não deu pra gente ficar lá, morreu crianças. Eu vim do Maxakalis a pé,

Por mais de 15 anos, as famílias despejadas da terra indígena Krenak perambularam por diversas regiões do Brasil era menina e meus pés soltaram a sola, tudo machucado”, relata dona Laurita Krenak, 82 anos. Os Krenak não puderam ficar nas terras Maxakali, tentaram voltar para sua terra de origem, ocupada por posseiros, com a conivência do órgão indigenista que mantinha arrendamentos com os colonos. Foram esses arrendamentos que deram base à reivindicação dos colonos arrendatários para tomar definitivamente a terra indígena, em ação na justiça que durou 19 anos, impedindo a volta das famílias indígenas, que, mesmo assim, nunca desistiram de sua terra. Por mais de 15 anos, as famílias despejadas da terra indígena Krenak perambularam por diversas regiões do Brasil, quando muitos se perderam de seus familiares, adoeceram e sofreram muita privação, sendo considerados extintos pela administração do governo. A barganha da terra indígena Krenak, na margem esquerda do Rio Doce, que foi demarcada em 1920, por uma propriedade da corregedoria da Polícia Militar de Minas Gerais, foi pretexto

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CON CAPA TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO

à extinção da aldeia Krenak na barra do Córrego do Eme, e a condução das famílias que estavam dispersas por muitas regiões de Minas e de outros estados como Goiás, Mato Grosso, Espírito Santo e São Paulo para a fazenda Guarani, onde foi implantado o Reformatório Krenak. Somente na última década, essa triste página da história de abusos e violência institucional do Estado brasileiro contra os índios Krenak foi trazido a público pela Comissão da Verdade. Relata dona Laurita Krenak: “Os chefes de Posto, funcionários do governo, tiravam os índios, despachavam pra longe… Fomos pra São Paulo, pois eu tava doente, e diziam que em São Paulo tinha mais recurso. Me deixaram lá em Tupã, para tratamento de saúde. O chefe de Posto, do SPI, me deixou lá e disse: ‘Se essa menina morrer, sarar, não me avisa’. Não deixou endereço, nada. Fiquei quatro anos lá no sanatório”.

REFORMATÓRIO

Esses crimes foram acobertados por visar à tomada das terras ocupadas tradicionalmente pelos antigos Botocudos, estendida a indígenas de dezenas de outras etnias, que foram jogados nessa área do Reformatório Krenak, com a criação de uma Guarda Rural Indígena – GRIN. Uma absurda experiência de reeducação de indígenas, para a qual, por qualquer desentendimento com as autoridades administrativas do Serviço de Proteção aos Índios – SPI, eram conduzidos a essa unidade mantida pela Polícia Militar de Minas Gerais, com a forte presença dos órgãos federais, notadamente das autoridades militares. Foi a oportunidade que o estado de exceção, implantado com o golpe militar, deu aos antigos inimigos dos povos indígenas em Minas Gerais, a ocasião de acabar com os direitos indígenas, justificando o esbulho das terras indígenas por seus vizinhos, agora associados à ditadura, transformando os sobreviventes em pacientes de centros reformatórios, na condição de indigentes. Não só os Krenak conheceram a “cadeia”, como eles se referem ao reformatório. Pelo menos 94 indígenas de 15 etnias levados de 11

estados passaram por lá, segundo dois inquéritos do Ministério Público Federal (MPF) em Minas, que investigam essa passagem dos anos de chumbo. “Botaram nós na cadeia. Sofremos demais aqui. Batiam, machucavam os índios”, aponta Manoel Vieira das Graças, Pankararu de Pernambuco. Enquanto isso, a terra indígena era ocupada mesmo pelos colonos, com os indígenas tendo que se refugiar junto a outras aldeias ou buscar trabalho nas fazendas da região. Sem direitos e jogados pelas estradas, os Krenak foram acolhidos por parentes em outros estados, como São Paulo, Goiás e Mato Grosso, sempre lutando para retomar sua terra na margem esquerda do Watu, o mesmo Rio Doce que dá nome a Cia. Vale do Doce, operadora de três desastres na vida desse povo indígena, sendo o primeiro a estrada de

A aldeia Krenak e toda a Bacia do Rio Doce agora são reféns da lama da mineração, o bezerro de ouro da economia mineira ferro Vitória–Minas, que cortou a terra indígena durante mais de 70 anos, sem nunca ter feito nenhuma compensação ao povo indígena, até que, em 2005, teve a sua passagem interrompida pelos Krenak, que fecharam a ferrovia, obrigando a Vale e a Cemig – Cia. de Energia de Minas Gerais a negociar a compensação por impactos da UHE – Aymorés, com barramento do rio cerca de 30 km à jusante da terra indígena. “Meu pai e minha mãe andavam com os filhos, sem rumo, jogados de um lado pro outro, com nossa terra ocupada pelo fazendeiro. Os índios foram levados para a Fazenda Guarani, onde ninguém aguentou tanto sofrimento e os primeiros que foi de volta para terra Krenak foi eu com meus filhos, minha mãe e outras duas famílias de lá. Só esses é que entraram para ficar na terra, até os outros da fazenda Guarani juntar todo mundo espalhado e vir também, juntando mais gente. Eu entrei… Eu aqui andei muito. Todos os chefes

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de posto tiravam a gente, nós fomos mandados para São Paulo. Eu sei tudo, o princípio e fim, estou falando”, conta Dona Laurita Krenak. 82 anos.

IMPACTOS

A desestruturação da vida socioeconômica e cultural desse povo, degradação ambiental e abandono pelas agências de assistência estatal levaram a uma situação de constante conflito com a Vale e seus parceiros nos empreendimentos que impactam a vida do povo Krenak. Com isso, o MPF em Minas Gerais deu entrada em ações contra os empreendedores Vale/ Cemig e governo do estado de MG, identificando os diversos impactos desta forma: 1) impactos sobre o Rio Doce; 2) impactos sobre o território indígena; 3) impactos de ordem periférica; 4) impactos sobre a saúde indígena; 5) impactos sobre a fauna; 6) impactos sobre o patrimônio arqueológico. Nessa ação do MPF, que concluiu pela responsabilização do consórcio


1 LUTA Ailton Krenak em seu discurso na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987

da UHE–Aymorés, ficou estabelecida a obrigação da Vale/Cemig e governo de Minas Gerais pela recuperação ambiental da T.I. Krenak; estruturação e manutenção dos serviços de saúde específicos dentro da T.I.; monitoramento da qualidade da água do Rio Doce; desenvolvimento de projetos e atividades voltados para a sustentabilidade econômica das famílias Krenak. Sendo também definida uma indenização paga a cada família pelas perdas causadas por essa lista de impactos identificados. Em 2006, algumas das condicionantes para operação da UHE– Aymorés começaram a ser contratadas pelo consórcio Vale/Cemig e aplicadas dentro da T.I. Krenak. Mesmo com descontinuidade, vinham avançando até o desastre da Barragem de Mariana, como foi conhecido o grave crime ambiental que colocou o Rio Doce em coma no dia 5 de novembro de 2015. Mais uma vez, a vida dessa pequena comunidade é assaltada pelo

insuportável abraço do progresso. Agora, entregue pela mão de ferro da mineração, atividade econômica que move a economia mineira desde a colônia, quando o caminho do ouro e estrada real já justificaram uma verdadeira guerra de extermínio contra os nativos desses vales e serras mineiras. Samarco e Vale do Rio Doce aparecem ao lado da BHP australiana como as responsáveis pela barragem de contenção de detritos da lavagem de minérios, que, no dia 5 de novembro de 2015, invade a vida de milhões de brasileiros, desde a pequena Bento Rodrigues, coberta pela lama tóxica da Samarco, até as tartarugas marinhas no litoral capixaba. A aldeia Krenak e toda a bacia do Rio Doce agora são reféns da lama da mineração, o bezerro de ouro da economia mineira. Uma pá de lama desce o rio, matando todo a ictiofauna. “Minha roupa eu lavava na beira do rio, nas lajes onde ficava sentada

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batendo roupa, banhando e vendo a vida do Watu – nosso avô, que é o Rio Doce para os brancos. Antes da lama descer o rio, passando na minha aldeia, senti o barulho que vinha na frente fazendo uma arrepio das águas, como se o rio estivesse correndo ao contrário, subindo contra a corrente. Antes dessa água acontecer eu sonhei naquelas águas sujas. Eu pensei: agora acabou tudo. Não tem peixe, não tem nada. Dizendo ‘corre gente, a água está chegando’, falei. Isso aí que fizeram com nós, eu e os mais velhos que ainda estão lá, tem Maria Sonia, Eva e Euclides…”, lamenta Vó Laurita, como é chamada a velha senhora que por mais de 70 anos luta para viver na sua terra Krenak, à margem esquerda desse rio. Para as novas gerações de Krenak, resta lutar contra a histórica guerra de ocupação desse lugar que vem desaparecendo sob seus pés, resistindo teimosamente contra o insustentável abraço do progresso.


CON CAPA TI NEN TE

ERIC GOMES

DEPOIMENTO Dorinha Pankará

Acredito que ser indígena no Brasil

é ter sua cultura, sua tradição, é a minha identificação com a indígena que sou. Não precisa que eu tenha necessariamente cabelos lisos, olhos puxados ou que eu ande nua. Antes dos portugueses chegarem, realmente existia o índio puro no Brasil. E, ao longo dos mais de 500 anos de misturas, mudamos muito nossa fisionomia. Perdemos um pouco do nosso idioma, mas não perdemos nossa tradição, nossa cultura. Aqui perto, temos o povo do quilombo Tiririca dos Crioulos. E, diferente de outros lugares em Pernambuco, índio casa com não índio. Por isso houve essa mistura. Não tem mais índio puro, mas tem índio de cultura, de tradição e de luta. O que diz ser índio é o sangue, não é o cabelo, o olho. Tenho as ascendências que meus antepassados deixaram cravadas com sua história aqui, na Aldeia Cacaria. Esse nome vem desde a época em que os índios eram espancados e, muitas vezes, mortos. Eles eram enterrados em jarras (urna funerária) e hoje existem muitos cacos dessas jarras. Antigamente, os índios eram mais isolados, não existia internet, celular. Eles se comunicavam pelos assovios, pelo canto dos pássaros: onde tinha um movimento de indígena, os pássaros avisavam. Hoje evoluiu e a gente tem que acompanhar a evolução da tecnologia: tenho que usar celular, internet, carro… Isso não tira minha identidade. Posso mudar meu jeito de ser, mas minha cultura não se tira. Porque nasci com ela. Uma vez, eu estava em Serra Talhada (cidade próxima) e uma mulher perguntou: “Oh, mulher, você é índia? Usando celular?! Você anda nua?! Você come gente?! Onde você mora?!”. Eu disse: “Sou índia, uso celular, você não me ensinou?! Não como gente, mas se

for pra comer, eu como; eu moro numa casa”. Ela: “E pode?!”. É cada uma… E eu não sou gente não? Sou bicho?! Para esse povo, é pra gente andar nu, comer gente e morar no mato. Essa é a visão de algumas pessoas. Aqui em Pernambuco, somos quatro mulheres-cacique: eu, dona Ilda, dona Lurdes e Lucélia, em Itacuruba. Como sempre digo, ser cacique não é querer, é nascer. É uma escolha feita pela natureza e, quando fui escolhida, muita gente disse assim: “No povo Pankará num tem homem não? Por que uma mulher-cacique?”. Não é fácil, é uma luta muito pesada, principalmente para a mulher, por causa do machismo. Sinto muita dificuldade. Por exemplo, quando é para reivindicar um direito do meu povo, percebo que sou vista com outro olhar, do homem para a mulher. Também tem a perseguição por parte dos não índios. Para eles, a gente cria índio. Eles não entendem que índio não se cria, índio nasce. Eles acham que a gente virou índio a partir de 2003 (ano de reconhecimento étnico oficial pela Funai), mas toda a vida meu povo esteve aqui. Claro que eu não estava, mas antes de meu avô, do meu bisavô, já havia outros indígenas aqui. Já tivemos a identificação e delimitação da terra. Há uns três meses, o pessoal (da Funai) veio identificar quem são os não índios e o moído foi grande. Chamei as lideranças de cada aldeia para que cada uma dissesse quem é o dono das terras. Acho que os donos de 80% das terras do território Pankará moram em Floresta–PE (cidade vizinha ao território indígena) e os índios que trabalham nelas têm que pagar renda. Quando a lista saiu, os donos de terra vieram pra cima: “Cumé?… você quer tomar terra da gente, é? Sabe quanto é que custa minha terra?”. Não quero tomar terras nem quero saber quanto custa, não sou eu quem vai pagar.

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Em 2012, fui eleita vereadora em Carnaubeira da Penha–PE (cidade à qual pertence o território Pankará). No ano passado, tive mais votos que na eleição anterior. Mas não consegui me reeleger por causa de legenda do novo partido. Graças a Deus não consegui ser eleita: não sei fazer a política desse povo. Muitos pensam que cacique é um cargo. Não! Para mim é uma missão que eu trouxe dos meus antepassados. Nasci com ela e tenho um contato muito grande com a natureza, com a força encantada. E, graças a Deus, sempre venci todas as batalhas. Tem gente que quer declaração para estudar (documento reconhecido pelo Estado que atesta pertencimento ao povo Pankará e que permite concorrer dentro das cotas sociais). Para ter direito, a pessoa precisa participar, conhecer sua história, aprender a se identificar. Mas aparece


até quem não sabe dizer a que aldeia pertence. “Sou da (aldeia) Pankará. Né na serra? Ah… num sou obrigada a saber não! Não quero saber de aldeia não, quero saber que tenho direito!” A declaração para estudo não é direito, é uma conquista muito árdua para o povo Pankará, não foi porque o governo é bonzinho e deu. A gente lutou muito. Aí, eu vou dar uma declaração a uma pessoa que não sabe nem se identificar?! Hoje, chegando numa universidade, vão perguntar “como é o povo, a organização?” Se não souber, a declaração tem validade nenhuma. Não é um papel que vai dizer se sou indígena ou não. O que vai dizer se sou indígena é minha cultura, é minha autoidentificação. Ninguém vai me identificar indígena, quem tem que me identificar sou eu, não tenho nenhum papel dizendo que sou índia. Meu cabelo, oh, duro; não tenho olho puxado nem ando nua (risos).

Muitos pensam que cacique é um cargo. Não! Para mim é uma missão que eu trouxe dos meus antepassados A coisa que mais prezo hoje é o nome do meu povo. Não é meu nome, Dorinha. Não! Minha assinatura identifica o meu povo, não a mim. Eu sou cacique porque tenho um povo. Então, tenho que respeitar e fazer valer o direito e a dignidade dele. “Ah… é só uma assinatura, mulher!…”. Sim, só uma assinatura que, pra você, significa nada, mas para o meu povo significa. E tem pessoas que vêm me perguntar “Ô fia, você sabe onde Dorinha mora? Num é Dorinha que assina uns papel aí pruns índios? Dizem que ela é

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enfermeira”. Se não sabe quem sou eu, eu vou dizer? Digo nada. Eu respondo: “Quem é Dorinha? Rapaz, num sei não”. Tem quem diga “Você sabia que eu tenho direito”. Tem dever. Primeira coisa que vejo é o dever que tem que ter, o dever de conhecer sua história, sua cultura e sua tradição. Depois disso, vem o direito. Por enquanto, vejo direito nenhum. Quem gosta desse negócio é papai (Pajé Pedro Limeira, 86, Aldeia Cacaria): “Dar declaração para quem não é daqui?!”. “Ah… porque sou nascente, eu nasci lá, tenho terra”. “Não! Mas de jeito nenhum!”. Nasci índia e vou ser índia até o fim dos meus dias de vida. Continuo nessa luta muito difícil, muito perseguida, mas vou até o final, até o dia que Deus determinar. É uma missão que tenho e vou ter que cumprir. Depoimento registrado por Eric Gomes na Aldeia Cacaria, Território Pankará, em março de 2017


CON CAPA TI NEN TE

DEPOIMENTO Naine Terena

Penso que a questão é como “ser” em 2017. Estamos todos pautados em um pertencer a um sistema maior, quase unificador de pensamentos e ações. Esse sistema diz quem devemos ser e tenta enquadrar todos nós. Isso tem sufocado cada dia mais as pessoas. Ser indígena (indígena é o termo adequado, pois somos indígenas, povos indígenas; “índio” resume demais os 305 povos existentes no país), nesse contexto, baseia-se em manter vivos outros sistemas que contêm outros conhecimentos, conhecimentos esses que sobrevivem ao longo desses 516 anos: estruturas de pensamentos, de ações, de conhecimentos, de vida. E isso é um problema, principalmente porque essa estrutura de pensamento teima em se propagar e defender o vínculo que se tem com a terra onde os antepassados viveram e as comunidades pretendem continuar vivendo. Imagine, em pleno século XXI, viver em comunidade? (Mas, veja, essa parece ser uma “novidade” que vem surgindo, não? Vemos cada vez mais as ecovilas se espalhando.)

Indígena é o termo adequado, pois somos povos indígenas; “índio” resume demais os 305 povos existentes no país A lógica da coisa não seria essa. Deveríamos todos esquecer esse modelo e abrir espaço para os megaempreendimentos, para o agronegócio, para as hidrelétricas. O poder da resistência indígena está justamente em ser! Eu moro e sempre morei na cidade. Porém, nunca deixei de ir à aldeia dos meus avós, porque minha mãe nunca se esqueceu de onde veio. O código dela para manter a identidade é a fala. Ela repassa seu conhecimento, faz as comparações. Meu pai era indigenista. Daqueles que enfrentavam fazendeiro, político, autoridades. Como não militar, quando se tem duas figuras dessas dentro de casa? Como não manter

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viva uma história tão bonita como essa? De geração para geração, assim é que acontece. Parece que muitas pessoas no mundo não índio não têm memória. A nuclearidade familiar anula os que se foram. O que se foi. O futuro domina a todo instante o pensamento, fazendo as pessoas esquecerem os caminhos pelos quais chegaram até aqui. Costumo dizer o seguinte: Manuela Carneiro da Cunha, lá pela década de 1980, falou de alguns momentos dos povos indígenas: um que se pensou em exterminar física e culturalmente; outro tentou fazer o indígena se envergonhar de ser indígena. Todo mundo deveria ser caboclo, bugre e esquecer essa história de “índio”. Depois, houve um levante, de onde os povos emergiram com cantos, rituais, conhecimentos para defender sua vida e a terra. Eu digo que estamos no quarto momento: muito além do levante, os indígenas têm sede de se apropriar de tudo que antes lhe foi oferecido visando à destruição cultural, mas, agora, aprendem a dominar (inclusive as


TÉO DE MIRANDA/EDITORA SUSTENTÁVEL

TIC) e utilizam em prol da militância e direitos. Considero isso espetacular. Por isso temos tantos indígenas nas universidades. Tantos indígenas atuando em diferentes áreas de conhecimento. E quem não gostar vai ter que se acostumar. Porque tem indígenas na internet, nas redes sociais, no escritório de advocacia, no serviço público. Sem deixar de ser. Acredito que o Terena é um dos povos com maior número de mestres e doutores. Chegar até esse percentual não é fácil. Exige muito sacrifício. Exige articulação. Penso que, por isso, continuo a vida acadêmica. Penso o quanto é interessante dominar outros códigos e dizer através deles o que se precisa dizer.

Quando decidi ser pesquisadora, já tinha em mente que não seria fácil. O que é pesquisa no Brasil, não é mesmo? Sempre tive forte apreço pelas artes e pela comunicação. Cada vez mais as integro, quando preciso falar algo. Fiz o mestrado em Artes porque queria muito voltar a fazer teatro (fiz teatro por muitos anos, antes da graduação). Mas tudo sempre caminhava para o contexto indígena. E na pesquisa foquei uma dança Terena. Uma dança com quase 13 movimentos. Quase uma encenação. E aí eu parei para pensar: não preciso estudar as artes ocidentais, quando tenho lá, no nosso povo, uma dança que tem movimentos que levam o corpo ao esgotamento físico, com

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movimentos que envolvem todo o corpo, produz sons que englobam os instrumentos musicais, instrumentos da dança e o próprio dançarino. A poesia do corpo está ali. E, a partir daí, comecei a produzir minhas obras. Agora tenho focado mais: arte-educação, literatura, artes visuais, audiovisual. Organizo eventos, faço assessoria de imprensa, pesquiso, dou aula. Fiz trabalhos com economia criativa e povos indígenas. Tem muito a se explorar ainda nesse campo. Os povos indígenas estão aí, se virando para sobreviver a partir de sua própria cultura. O que a experiência que tenho tido me permite dizer é que não estou apenas no campo de atuação profissional indígena, e isso é muito bom. Porque um estigma comum de se ver é que parece que o indígena só pode (ou deve) trabalhar com a temática indígena. No meu caso, procuro sempre me envolver em trabalhos artísticos. Já teve casos de eu ir para algum evento e as pessoas pensarem que a ‘Naine’ era outra pessoa, e não eu, porque não imaginavam que eu poderia falar de determinado tema que não o indígena. A arte é um instrumento forte de socialização. Nos últimos anos, tenho mapeado o audiovisual indígena, o impacto dele nas comunidades e no público. Como tudo, tem pontos positivos e negativos. Mas quando vemos o As hipermulheres, um filme Xinguano no catálogo do Netflix, já é um pontinho a mais para o audiovisual indígena. Tenho uma página que anda meio parada no Facebook. Chama-se Notícias indígenas. Tenho fiéis acessos, principalmente de comunicadores. Muitas postagens dali já viraram pautas. Pessoas, personagens. Mantenho a página como um clipping e, quando tenho tempo, produzo meu material. Essa página me diz sempre: alguém quer saber o que você quer falar. A repercussão dos vídeos indígenas nos diz: alguém quer saber o que os indígenas querem falar. As hipermulheres no Netflix diz: alguém acha interessante o que os Xinguanos estão falando. Daí a gente percebe que nem tudo está perdido.


CON CAPA TI NEN TE

DEPOIMENTO Verá Tupã Popygua Timóteo da Silva

Guarani Nhande’i va’e GUERREIROS DA MATA ATLÂNTICA No princípio não havia nada, era um lugar sombrio. Havia somente o oceano primitivo, lava. Não havia vidas sequer. Ainda não existia a terra, nem o sol, nem a lua, nem as estrelas, permanece a noite originária. Uma luz infinita surge através da noite originária, nasce o Nhanderu Tenondegua, nosso pai divino com sabedoria infinita e com amor infinito. Desde então, nós seres humanos nascemos com vida, palavras e amor e usufruímos da natureza e respiramos o ar, bebemos as águas que Nhanderu criou, somos partículas da natureza.

Peço licença dos Mais Velhos e da própria Natureza, para falar sobre o conhecimento verdadeiro dos Guarani Nhande’i va’e (conhecidos como Mbya Guarani pelos não indígenas) sobre a Mata Atlântica, terra onde milenarmente vivemos. O Guarani tem uma visão totalmente ampla. Para nós, quando Nhanderu criou a terra, criou o mundo, criou o Universo, ele gerou uma porção de terra que nós nhande’iva’e chamamos Yvy Mbyte “o meio do mundo” – o centro de uma grande espiral criada por Nhanderu com seu bastão sagrado, que deu a origem ao cosmos. Desde essa origem, os Guarani Nhande’iva’e vivem em círculos,

Nós amamos a natureza em silêncio, através de sentimentos poéticos e da espiritualidade que ama a natureza orientando-se através dos ciclos da Natureza, tendo a consciência de que nosso planeta é redondo. E que o universo é expandido em anéis pelo infinito. Sabemos também que foi no ponto central da terra onde Nhanderu apoiou os pés pela primeira vez. E, ao dar um passo, ele viu que uma árvore crescia, e que a terra tinha vida, respirava, ela tinha espírito. E é através desse espírito da terra que começam a brotar as florestas. Meu avô me contava que quando Nhanderu criou esse pedacinho inicial de terra criou-se oca embaixo e aí começou a nascer água, água doce. Os mais velhos sempre contam que em Yvy Mbyte existe muita água subterrânea. E que essas águas representariam a procedência do desdobrar da vida e que ali os Guarani deveriam se concentrar e circular, ocupando os lugares por onde elas se espalhassem. Então é por isso que na Yvy Mbyte ainda hoje existem muitas

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aldeias Guarani e que por onde correm as águas se formaram aldeias. Yvy Mbyte é hoje chamada pelos não indígenas de tríplice fronteira (Argentina, Paraguai e Brasil) e o reservatório de água subterrâneo de “Aquífero Guarani” (considerado um dos maiores reservatórios subterrâneos de água doce do mundo), que se estende até São Paulo, onde temos nossa aldeia e de onde estou contando a vocês essa história, que é da Mata Atlântica, mas que é também do desdobramento da cultura Guarani. Porque Yvy Mbyté e Mata Atlântica são o principal… que o povo Guarani vê como ponto de partida em busca da perfeição, de sua religiosidade, em busca de se fortalecer espiritualmente. Pois a Mata atlântica é uma floresta genuína que tem uma serenidade especial, no sentido de que quando buscamos espiritualmente um equilíbrio, um equilíbrio no pensamento até mesmo de habitat, de tekoa (aldeia, espaço para viver), tekó (modo de ser e viver), arandu (tempo sabedoria), encontramos uma harmonia com a essência dessa, que também fazemos parte. Para nós, a Serra do Mar é Jekupe, uma contenção do mar deixada por Nhanderu e este é um espaço sagrado. Assim, observando milenarmente o crescimento de bromélias,


EDU SIMÕES

árvores e diferentes tipos de plantas, observando as estrelas, as fases da lua e o desabrochar das flores alinhadas com o sol, é que extraímos nosso conhecimento. Vendo os rios, as nascentes, sentindo os ventos e as florestas, percebemos que todos eles são seres com vida completa, entidades que respiram, pensam, comunicamse, tal como a terra em seu princípio e como nós próprios. E é por isso que o modo de ser e de viver Guarani está intimamente ligado ao respeito à natureza. Ensinamos para nossas crianças esse respeito, pois, para nós, Nhanderu criou na terra espaços para cada um e para todos, existindo diferentes lugares para os animais, para os homens, para a floresta… e sabemos que é necessário considerarmos o direito de todos os seres de estarem em paz em seus habitats, construindo uma harmonia.

Nunca nós precisamos de “leis” dizendo que não podia cortar as árvores, nós sempre soubemos que é necessário preservar lugares que são espaços de vidas, porque eles e seus elementos são dotados de espíritos tais como nós. Porque a Mata Atlântica tem toda essa diversidade até hoje? Porque o Guarani teve, sim, dentro da sua cultura, um pensamento em relação à conservação da natureza. Quando plantamos ou caçamos, há uma lua certa e uma preocupação com o período certo e com os lugares certos, dentro dos circuitos naturais das espécies. Existindo lugares que são Ka-aguy poru ey de “matas sagradas” e “intocáveis”. Nós sempre cuidamos. Até mesmo quando vamos nos banhar em um rio, não vamos a qualquer lugar, existe um só espaço batizado pelos Xeramões (lideres espirituais) onde podemos ir, para não desrespeitar o espírito do rio. Cuidamos com carinho das nascentes porque

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elas possuem vida, elas têm espírito, e também nos dão saúde. Durante os últimos milênios, cuidamos e plantamos diversas espécies neste vasto território. Até hoje seguimos levando, trazendo e plantando diversas sementes para ensinar nossas crianças, que assim adquirem sabedoria vasta, milenar, sobre as florestas que formam a Mata Atlântica Yvyrupa, nosso território ancestral que devemos preservar. Nós somos os Guardiões da Mata Atlântica. Nós amamos a natureza em silêncio, através de poesias, de sentimentos poéticos e da espiritualidade que ama a natureza, porque a natureza é o início, o meio e o fim.

NOSSA LUTA

Em 1532, na Tekoa Paranapuã, chegaram homens vindos de ilhas distantes, eles estavam interessados em nossa floresta, nós os chamamos de Tupi, que na língua dos Nhande’iva’e significa destruidor.


CON CAPA TI NEN TE Tupi, para nós, não são os povos indígenas que ocupam o litoral do Brasil, são, ao contrário, os que nós hoje em dia chamamos de juruá, juru significa boca e á é cabelo, ou seja, os que possuem barba, os não indígenas. Foi através da ganância do Tupi que começou a destruição das florestas, trazendo o desequilíbrio da natureza. Os Nhande’iva’e, então, correram para sair dos seus lugares originais e deixaram espaços para trás na Mata Atlântica. Toda a Mata Atlântica é território ancestral dos Nhande’iva’e, pois circulávamos nele visitando e fundando aldeias. Mas, depois que chegaram os Tupi, foi só através de nosso poder espiritual e de muita luta que conseguimos fixar novamente nossas aldeias e muitas ainda hoje ainda não foram demarcadas. O ano de 1988 foi marcante para os povos originários do Brasil. Antes dos dispositivos legais da Constituição de 1988, as escolas eram integracionistas e não tínhamos terras demarcadas para o nosso povo. Foi a partir dessa data que tivemos avanços em relação à defesa de nossos direitos. Atualmente, os ruralistas estão atacando os direitos que estão na Carta Magna do país. Uma das mais cruéis é a PEC 215, o que é gravíssimo no Estado democrático! Em 2006, criamos a CGY – Comissão Guarani Yvyrupa para lutar por nossos direitos. Ela é uma organização social de todas as aldeias Guarani Mbya do Brasil (no Sul e Sudeste). Ela existe para defender a sagrada Mata Atlântica porque nós existimos, e resistiremos nela, sempre. Restam menos de 7% da cobertura original da Mata Atlântica no Brasil.

FUNDAÇÃO BIENAL SÃO PAULO/DIVULGAÇÃO

Nós sentimos muita pena dos Juruá que têm ambição de passar acima de qualquer um e da vida desta terra para ter o que quer. Nós não temos essa cultura. Mesmo sofrendo diversas ameaças de grandes empresas e de setores e instituições ligados ao governo que são contrários aos povos indígenas, os Nhande’iva’e conseguiram recuperar parte de seu território milenar e ter algumas de suas terras demarcadas. Mas ainda falta muito para termos o território que necessitamos para viver e para formar tekoas como antigamente.

O FUTURO DA TERRA

Nhanderu criou o grande tekoa onde acontece nosso modo de vida humana. O nosso planeta é o grande jardim de Nhanderu. Devemos cuidar dele, não destruir, para que o futuro possa existir e ser maravilhoso, sem preconceito, sem covardia, somente amor e fraternidade. Vidas têm essência, palavras têm dono, devemos ser solidários uns aos outros, assim podemos viver plenamente no jardim de Nhanderu, pois somos simplesmente transitórios. Precisamos deixar esse legado aos nossos filhos e netos, para que seja o mundo cheio de paz e harmonia entres todos os povos. Os Guarani Nhande’iva’e descobriram este lugar há milhares de anos. Todo este território pertence ao povo Nhande’iva’e. Nossa mitologia, nossa cosmovisão reafirma este fato. Portanto, queremos que nosso direito de ser e de viver nesta terra, de acordo com nossos costumes, princípios e tradições seja respeitado pela sociedade não indígena. Aguyjevete.

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ARTE Resistência e representatividade

Indígenas e não índios que lutam pela causa desses povos criam narrativas que trazem a força da ação e o desejo de justiça TEXTO Luciana Veras

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1 BENÉ FONTELES Na Bienal de 2016, o artista montou a “artivista” Ágora: OcaTaperaTerreiro

“A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor (…) Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar”. (Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu – Palavras de um xamã Yanomami)

Em 2015, cinco anos após sua

publicação na França, A queda do céu – Palavras de um xamã Yanomami chegava ao Brasil em edição da Companhia das Letras, numa poderosa coautoria entre um xamã yanomami e um etnólogo francês. Em suas mais de 700 páginas, o volume traz os registros de entrevistas e relatos concedidos por Davi Kopenawa a Bruce Albert entre 1989 e 2001; outorga, também, o valor simbólico e erudito de uma publicação à sabedoria do líder indígena, tornando-a perene e acessível aos que não tiveram,

como Albert, a chance de desfrutar do seu convívio e sua inteligência – cuja acuidade seria descrita pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro no prefácio como “um aviso, uma advertência, uma última palavra”. No mesmo 2015, a exposição A queda do céu foi aberta no Paço das Artes, em São Paulo, reunindo 17 artistas, pela curadoria de Moacir dos Anjos, a fim de espelhar a cosmogonia de Kopenawa. Na exposição, obras de Cildo Meirelles, Claudia Andujar e Miguel Rio Branco, entre outros, representavam os índios na arte contemporânea. Um questionamento norteava a curadoria do pesquisador e crítico pernambucano. “Quase todos os artistas e pensadores são não indígenas falando pelos indígenas, em uma situação talvez ainda necessária nesse ambiente onde eles são praticamente impedidos de falar ou não têm sua voz escutada. São pouquíssimos, por exemplo, os indígenas a participar

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do campo institucional das artes visuais, que os exclui quase totalmente. Assim, como fazer uma seleção e montar uma exposição em que essas questões aparecessem de forma potente? A ideia foi dar visibilidade, mapeando artistas que tenham questionado a vulnerabilidade dos povos indígenas”, recorda Moacir dos Anjos. Embora a mostra fosse “sabidamente limitada por não exibir a arte feita pelos indígenas”, segundo o curador, nela estavam evidentes a vulnerabilidade e a invisibilidade dos povos originários do Brasil. Em Zero real (2013), Cildo Meirelles atualizava um longevo projeto de circunscrição política em cédulas com a figura de um índio em uma nota fictícia. “O que vale mais?”, parecia inquirir a obra. Em Coleção produtos de genocídio (2015), Paulo Nazareth questionava a noção despudorada de apropriação – há times de futebol, por exemplo, chamados Tupi e Guarani. Em Dicionário Krenak/Português – Português/Krenak (20092010), Maria Thereza Alves, radicada na Alemanha, porém com foco contínuo no tratamento negligente que o Estado brasileiro reserva aos indígenas, traduzia um léxico originalmente composto em alemão, emoldurado de modo a não ser manuseado pelo observador. Tal obra foi idealizada para ser distribuída apenas entre os Krenak, propositalmente vedada ao “povo da mercadoria”, como Davi Kopenawa descreve os “homens brancos”. Nasceu do encontro entre a artista e dois irmãos da etnia, como revela à Continente a escritora e professora Shirley Krenak (leia depoimento dela na página 41). De uma certa forma, a postura de Maria Thereza Alves espelha a conduta de muitos artistas presentes em A queda do céu e em Adornos do Brasil indígena – Resistências contemporâneas, outra exposição com curadoria de Moacir dos Anjos, montada no Sesc Pinheiros em 2016 – dessa vez, propondo um diálogo entre obras de artistas como Carlos Vergara, Lygia Pape e Thiago Martins de Melo e utensílios fabricados por dezenas de povos autóctones. “Aquelas obras resvalavam entre si e criavam formas diferentes de ativar o imaginário indígena, com ênfase na resistência, não


CON CAPA TI NEN TE CLAUDIA ANDUJAR/COLEÇÃO DA ARTISTA E CORTESIA GALERIA VERMELHO

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no deslumbrante. Nosso olhar é treinado esteticamente para reconhecer o belo nos adornos feitos pelos índios, mas todos os artefatos tinham uma função de luta, de resistência – para resistir, em última instância, à queda do céu”, observa Moacir.

ANTIGAMENTE FOMOS MUITOS

O vislumbre de resiliência já assumira contornos míticos em Ymá Nhandehetama, vídeo do artista paraense Armando Queiroz exibido na 31ª Bienal de São Paulo, em 2014. Nele, um indígena da etnia Guarani, Almires Martins, discorria sobre a Amazônia à medida que escurecia sua face. “Sonhei com a imagem de um rosto que desaparecia na escuridão. Quando conversei com Almires, ele me disse que, na cultura dele, apagar o rosto é sinal de luto. Foi um encontro de sensibilidades. Jamais utilizaria apenas um ‘rosto’ indígena; a questão era arregimentar possibilidades de sua fala sem me prevalecer, ou seja, lidar com a invisibilidade do outro sem me aproveitar dela”, pondera o artista, que investiga os processos colonizatórios da Amazônia desde os anos 2000.

Muitas vezes olhamos os artefatos indígenas apenas por sua beleza, mas eles guardam sentidos de luta e resistência Ymá Nhandehetama – “antigamente fomos muitos”, em Guarani – foi gravado de uma só vez; o texto é invenção de Almires, num jogo entre ficção e registro documental. “Ele foi boia-fria no Mato Grosso do Sul, filho de uma liderança indígena assassinada, tem as marcas da brutalidade no corpo. Tudo isso ativou sua lembrança e reativou a história das ocupações das Américas. Por ser um militante da causa indígena, com voz garantida dentro do círculo em que atua, ele compreendeu que poderia alcançar outras sensibilidades. É aí que vejo a potência do simbólico e a força do encontro como possibilidade de levar a questão indígena a lugares onde não é discutida”, acrescenta Queiroz.

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Sob o mote Incerteza viva, a 32ª Bienal de São Paulo ocupou o pavilhão do Ibirapuera em 2016 e recebeu este debate. A obra Uma possível reversão de oportunidades perdidas, de Maria Thereza Alves, era composta de cartazes de conferências fictícias ministradas por especialistas e acadêmicos indígenas que, na realidade, nunca são protagonistas. Ao lado da Ágora: OcaTaperaTerreiro, de Bené Fonteles, denotava um posicionamento “artivista”, para usar o termo defendido por ele, autor da antológica performance/protesto de colocar, em 1996, um cocar na estátua da Justiça na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Não era sua estreia na luta indígena. Em Armadilhas indígenas (1989/1990), a partir de ardis colocados pelos índios contra os invasores na Reserva do Vale do Guapoé (RO), Fonteles conclamou artistas, entre eles Iberê Camargo, Tomie Ohtake e Siron Franco, a conceber suas próprias emboscadas, expostas no Masp. Paraense radicado em Brasília, o escritor, poeta e compositor busca ampliar a representatividade indígena. “Há uma carência que vem do próprio poder, sempre querendo manipular


ALESSANDRA HARO/PAÇO DAS ARTES/DIVULGAÇÃO

DIVULGAÇÃO

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ALESSANDRA HARO/PAÇO DAS ARTES/DIVULGAÇÃO

2 CLAUDIA ANDUJAR Desde a década de 1970, fotógrafa está envolvida com a causa indígena 3 CILDO MEIRELLES Em Zero real (2013), artista atualiza o projeto de inscrição em cédulas monetárias MARIA THEREZA 4 ALVES

O Dicionário Krenak/Português - Português/ Krenak foi criado para usufruto exclusivo do povo Krenak

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pessoas e situações consideradas frágeis. A obra de arte é livre, mas o cidadão/ artista não pode se omitir ao que acontece no nível politico. O ‘artivismo’ que comecei nos anos 1980 não podia me deixar omisso. Não podemos esquecer que, na palavra poética, assim como em estética, está embutida a força ética. Política, poética e ética são as armas brancas do artista/poeta”, explica Fonteles. Ele concebeu encontros na Ágora, erigida em taipa e palha no térreo do Pavilhão da Bienal em contraste com a arquitetura de Oscar Niemeyer. “Quis comer antropofagicamente o projeto modernista de Niemeyer. Era um espaço para as etnias culturais de indígenas, negros, mulatos, enfim, toda nossa mestiçagem, e para a

memória cultural e espiritual do Brasil verdadeiro, fortalecido nas ativações por convidados muito especiais, no que chamei Conversas para adiar o fim do mundo. Não podemos permitir um apagamento de uma memória ancestral”, pontua Fonteles. Uma das Conversas… trouxe Ailton Krenak, Davi Kopenawa e aquela que talvez seja a síntese dos artistas indigenistas brasileiros a congregar estética e ativismo: Claudia Andujar.

CLAUDIA ANDUJAR

São mais de quatro décadas de afeto e compromisso entre os povos Yanomamis e a fotógrafa húngara, que chegou ao Brasil na década de 1950. Um vínculo simbiótico que se exprime nas milhares de fotografias feitas por

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SHIRLEY KRENAK (MG), Escritora e professora

“Eu e meu irmão tínhamos uma cópia do dicionário alemão, que se referia ao nosso povo como ‘botocudo’, pois fomos descritos pelos colonizadores como bocudos, por causa dos adornos labiais grandes, e orelhudos, por causa dos alargadores. Perguntamos se Maria Thereza Alves poderia nos ajudar a traduzir, e ela foi uma mentora. Meu irmão fez o design da capa, um outro irmão, que é jornalista, escreveu um texto sobre a importância de passar para os jovens a história da nossa língua. O trabalho dela como artista é importante pelo olhar respeitoso, algo que muitos nunca tiveram. Queremos respeito. Não se pode tocar nem entrar no nosso território sem pedir licença. Querem usufruir da língua Krenak para ganhar dinheiro, mas esses terão que ver com os olhos e lamber com a testa, como dizemos. Muitos trabalhos são feitos sobre a cultura indígena, mas, às vezes, o próprio indígena não sabe do que se trata. Estamos cansados de outras pessoas fazerem por nós. Temos que ter abertura para o nosso próprio fazer e a autoridade para poder falar sobre a nossa cultura, mostrar nossas pinturas e trabalhos artísticos. Não falo que os artistas são aproveitadores. Mas acredito que a sociedade poderia nos olhar de outra maneira. Assim poderemos caminhar juntos.”


CON CAPA TI NEN TE FREDOX CARVALHO/DIVULGAÇÃO

FOTOS: VÍDEO NAS ALDEIAS/DIVULGAÇÃO

ZEZINHO YUBE (AC), Cineasta e atual assessor para Assuntos Indígenas do governo do Acre

“Sou Huni Kuin da terra indígena Alto Rio Jordão, no Acre. Kaxinawá é o nome dado pelos brancos, mas somos Huni Kuin, ‘gente verdadeira’. Quando tinha 17 anos, era um agente agroflorestal indígena e via os trabalhos realizados pelo Vídeo nas Aldeias. Tinha vontade de pegar na câmera e fazer o meu próprio filme. Em 2003, começamos a filmar; em 2005, teve a segunda oficina, já no Jordão, e eu era o único experiente da turma. A primeira coisa que mudou, quando virei um cineasta indígena, foi valorizar e fortalecer a cultura. Resgatamos a nossa própria história. Um dos meus filmes, Já me transformei em imagem, mostra como os brancos nos fizeram morar nos seringais. Outros vídeos resgataram as festas, as danças, as pinturas, os rituais – tradições que meu povo já não fazia mais – e reacenderam a nossa vibração espiritual. Voltamos a fazer os rituais. Se fosse um realizador branco, de fora, isso não aconteceria. Cada filme nasce com um olhar próprio e vira uma construção coletiva com as lideranças e os mais velhos durante a filmagem, a edição e a finalização. É muito importante, também, ver o filme dos outros realizadores e fazer um intercâmbio. A cultura é transformadora e traz unidade e espiritualidade. É o que define os povos.”

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ela desde 1971 (400 delas expostas na galeria que leva seu nome em Inhotim, aberta em novembro de 2015) e em um engajamento perene. Não à toa, Andujar, aos 85 anos, assim define essa iconografia: “Foi o trabalho mais importante que consegui fazer na vida, do ponto de vista de comunicação, através da fotografia”. Em conversa com a Continente, ela reconta o episódio-chave que catalisou sua relação criativa e afetiva: “Fui para lá em 1971. Na época, não tinha ainda ameaças contra os Yanomamis. Eles eram um povo isolado. Em 1974, o governo militar decidiu que tinha que ocupar a Amazônia, com medo que os americanos invadissem. Decidiuse construir uma rodovia que iria do Atlântico até o Pacífico. Uma parte dessa estrada, a Perimetral Norte, tinha que passar pela terra Yanomami. Foi a primeira invasão do território deles e foi terrível. Parte de uma região por onde passou essa estrada quase sumiu. As pessoas que moravam lá morreram de doenças trazidas pelos construtores da estrada. Eu estava lá e fiquei chocada. Vi uma tragédia terrível, que me lembrou o que aconteceu com os judeus na Hungria, que também morreram aos milhares. O que aconteceu aos Yanomamis, naquela época, me fez decidir lutar pela sobrevivência deles.

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Foi o que eu fiz durante muitos anos, até 1993, quando o governo brasileiro finalmente reconheceu e demarcou a sua terra. Fiquei numa luta contínua para não serem invadidos e morrerem”. Há dezenas de imagens pungentes, obtidas antes de Andujar ser expulsa do território Yanomami por agentes da Funai, sob a alegação de “ser uma espiã americana”. Registros do contato brutal com o progresso em marcha no Brasil do “Ame-o ou deixe-o” – a exemplo da fotografia Nego Yanomami com um capacete da Camargo Corrêa, empresa construtora da Perimetral Norte (BR 211), de 1974. Contudo, o conjunto de maior força política de sua trajetória é Marcados (1981-1983), retratos de crianças, jovens, mulheres e homens indígenas a portar tabuletas numeradas para fins de identificação. A partir daí, sua atuação passou a ser cada vez incisiva – ela foi, por exemplo, uma das fundadoras da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY). “Marcados realmente marcaram algo de muito especial dentro do meu trabalho. Quando eu fotografei, na verdade, não pensei na força que teria. O meu pensamento era todo dirigido em relação a tentar criar um projeto de saúde para os Yanomamis, que estavam morrendo. Essa importância de mostrar os Marcados aconteceu mais tarde. Me surpreendeu, mas já


5 MARTÍRIO Documentário de Vincent Carelli narra o genocídio dos Guarani-Kaiowá

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não estou mais surpresa e entendo perfeitamente que seja a parte do meu trabalho que realmente marcou. Porque não só envolve fotografia. As fotos são um esforço para ajudá-los a sobreviver. Na verdade, foi uma iniciativa minha de tentar introduzir um projeto de saúde nos Yanomamis. Eles foram marcados por razões práticas, para ter números que poderiam ser utilizados nas fichas. O que também me chamou a atenção, mas isso mais tarde, foi a importância dessas fotos ligadas ao meu próprio passado. Meu pai era judeu. Foi marcado com números para levarem-no ao campo de concentração, onde morreu. Lá, na minha infância, aconteceu o contrário: meus familiares foram todos marcados para serem mortos. Na minha história dos Marcados Yanomamis, foi para eles sobreviverem”, rememora a fotógrafa. No último 18 de março, Claudia Andujar assistiu à montagem do espetáculo Para que o céu não caia, da Lia Rodrigues Companhia de Dança. Ao seu lado, Davi Kopenawa, cujas profecias inspiraram a coreografia. “Foi uma performance de muita força. Todo mundo saiu de lá emocionado. A maioria das pessoas que foram lá eram jovens, mas, tudo bem, são os jovens que têm que levar em frente a política e entender o sentido da vida. Tem que realmente

É nas contranarrativas que a arte é capaz de gerar outras possibilidades de leitura sobre a realidade indígena pensar em uma expressão cultural para que a juventude de hoje entenda a agonia dos índios. Eles têm direitos que devem que ser respeitados. E são seres humanos, como você e eu”, vaticina.

CONTRANARRATIVAS

É nos jovens e nas contranarrativas que a arte e a cultura são capazes de gerar outras possibilidades de leitura; no que também aposta o documentarista franco-brasileiro Vincent Carelli, diretor de Corumbiara (2009) e Martírio (2016). “Os amantes dos índios formam uma tribo por toda parte, em vários estratos sociais, mas, ainda assim, pequena. O desafio é ampliar e transpor esses guetos. Trazer a questão indígena de maneira mais consistente para o ensino é aspecto-chave para o país. Todo movimento institucional do país é para apagar a História. Não pode. O país tem uma história e os jovens precisam conhecê-la”, diz o criador da

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6 HUNI KUIN História do povo do Acre foi recontada em filme dirigido por um deles

ONG Vídeo nas Aldeias, que, desde 1986, promove oficinas de vídeo em dezenas de territórios indígenas no país. Os números impressionam: são mais de 70 documentários no catálogo e dezenas de realizadores formados. Zezinho Yube, dos Huni Kuin do Acre, é um deles (leia depoimento dele na página 42). Martírio é um testemunho político e um didático exercício cinematográfico que narra o excruciante passo a passo do que Vincent, 63 anos de idade e 47 de convivência com os povos indígenas brasileiros, descreve como “o genocídio contemporâneo dos Guarani-Kaiowá”. “O filme começa em 1988, quando eu passei a filmar as rezas, o início de um movimento político, de retomada. Quando veio a tragédia, me afetou pessoalmente. O Vídeo nas Aldeias já estava em uma grave crise financeira, mas eu não poderia ficar em casa enquanto a matança ocorria lá. Saí feito louco, sem dinheiro, para reatar os contatos. Queria saber onde é que tinha dado merda. Fui atrás da memória oral deles e dos documentos oficiais do Mato Grosso do Sul. É importante para a militância entender a raiz de tudo; o filme demostra que o processo colonial não cessou para os índios”, aponta Vincent, que adoeceu após as filmagens. “Esse grito de revolta vinha das tripas”. O sonho do cineasta indigenista é investir em “sedução cultural”: “Através da arte, temos que povoar o imaginário brasileiro com a presença dos índios. Eles são nosso mito de origem. O Brasil, sem os índios, não será mais o Brasil”. Cada obra de arte, cada livro, filme, canção tocada na rádio Yandê (http:// radioyande.com) – primeira emissora indígena do país, cada volume da Coleção Tembetá – que a Azougue Editorial encampa desde 2016, enfim, tudo que está por vir há de propiciar um novo horizonte para os indígenas, tirando-os do patamar do folclore para ratificálos como sujeitos com voz e lugar de fato, seja na política, na televisão e nas exposições – oxalá em consonância com as energias dos xapiri, os espíritos da floresta, e a tempo de impedir o despencar do firmamento.


CON CAPA TI NEN TE

Artigo

JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE AS LÍNGUAS, OS ÍNDIOS E OS DIREITOS LINGUÍSTICOS “Teve um tempo que nós, para viver, precisamos nos calar. Hoje, nós, para viver, precisamos falar”. (Pajé Luiz Caboclo – índio Tremembé do Ceará)

A língua é como Deus, está em

todas as partes, mas ninguém a vê de tão naturalizada que é. É preciso ter muita fé para acreditar nela, inclusive como suporte – não o único, mas seguramente o principal – no qual se estabelecem as relações, organiza-se a luta pela sobrevivência e se preserva a memória. A língua é arquivo da história, é a canoa do tempo, responsável por guardar e levar os conhecimentos de uma geração à outra. No planeta Terra, são faladas cerca de 6.700 línguas, mais de 5 mil delas ameaçadas, moribundas umas, anêmicas outras. Quando uma língua é extinta, o que acontece com as experiências milenares que ela guardava e veiculava? A cada 15 dias – calcula o linguista David Crystal, que estudou o assunto –, morre uma língua no planeta, entre outras razões porque seus usuários foram forçados a deixar de falá-la. Essas línguas em perigo, denominadas de línguas minoritárias por terem poucos falantes, foram, na realidade, minorizadas no processo histórico. Se considerarmos a quantidade de línguas, podemos dizer que elas representam 95% das existentes no Atlas linguístico mundial. Por isso, quando se reivindicam os direitos linguísticos, eles se referem a uma minoria de falantes, mas à maioria das línguas existentes no mundo. Trata-se assim da luta pela manutenção da diversidade linguística.

No caso das línguas indígenas, o apagamento delas se deu de forma drástica. Como decorrência de políticas de línguas, ocorreu um processo de deslocamento e de extinção em que a escola parece ter dado uma contribuição decisiva. Quando as caravelas portuguesas aportaram no litoral, em 1500, no território que é hoje o Brasil, eram faladas mais de 1.300 línguas. Cinco séculos depois, o censo oficial do IBGE (2010) contabilizou, além das línguas dos imigrantes, 274 línguas indígenas, tendo como referência as denominações fornecidas pelos próprios falantes. Os linguistas identificaram pelo menos 180 línguas faladas hoje por uma parte dos 896.900 índios que vivem em 5.565 municípios do país. No entanto, o brasileiro não tem informação – quando a tem é de maneira fragmentada –

Os Fulni-ô (PE) são o único povo indígena do Nordeste que conseguiu preservar a língua materna – o yaathé sobre a diversidade e sobre a sua importância para o país e para a humanidade. No Brasil, o senso comum, dominante na escola, na mídia, no Judiciário, no Congresso Nacional e em qualquer instância de poder, fortalece a imagem de um país monolíngue em português, e isso já foi naturalizado por grande parte da população, tornando mais invisíveis ainda as línguas indígenas e a diversidade. Durante cinco séculos, essa diversidade, quando percebida, era vista como algo negativo, como ameaça à unidade nacional. As políticas públicas atropelaram o direito do uso da língua de identidade, procurando eliminar qualquer língua que não fosse o português, sob o argumento de que, com isso, permitiam a comunicação entre os brasileiros. A própria ideia de unidade e de identidade nacional

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passa sempre pela imagem de “uma só nação, uma só língua”. As línguas indígenas foram proibidas, discriminadas, perseguidas, sob o pretexto de serem “línguas atrasadas”, quando os critérios linguísticos indicam que nenhuma língua é melhor do que outra e que qualquer língua é capaz de expressar qualquer ideia, pensamento, sentimento. O padre João Daniel, jesuíta que viveu muitos anos no Pará, conta que, em 1750, um missionário espancou uma índia do Marajó com “bolos” de palmatória, dizendo: “Só paro de bater quando você disser ‘basta’, mas não na tua língua”. Ela calou. Suas mãos sangraram, mas ela não traiu a língua-mãe. Para viver, era necessário calar, viver na clandestinidade, cochichar, sussurrar. Banida e enxotada das escolas, quem falasse uma língua indígena era severamente castigado. Dessa forma é que cerca de 1.100 foram extintas na base da porrada e com elas desapareceram saberes milenares. Só muito recentemente, em 1988, a Constituição aprovada pela Assembleia Constituinte reconheceu aos índios o direito a usar suas línguas, aquela aprendida no colo da mãe, como língua de instrução nas escolas. Os Fulni-ô, que vivem em Pernambuco, constituem o único povo indígena do Nordeste que conseguiu preservar sua língua materna – o yaathé –, que convive com o português em situação conflitiva de bilinguismo. Dona Itaci, uma pajé Fulni-ô falecida em 2013, compara sua língua com o ritual do ouricuri: “A língua é sagrada, como o ouricuri, porque guarda o pensamento de um povo. Se eu falar em português, por exemplo, a palavra casa, você só vai lembrar o prédio, as paredes, mas se eu falo cetutxiá, aí você sabe que é, sobretudo, um lugar onde a gente encontra alegria, paz e serenidade”. É em busca de preservar o pensamento indígena que muitos povos estão reivindicando a revitalização de suas línguas, que são línguas de resistência. Elas eram faladas apenas nas aldeias, passaram a ser usadas em quase duas mil


ARMANDO QUEIROZ/COLEÇÃO DO ARTISTA

1 ARMANDO QUEIROZ Obra Reduções, da série homônima do artista paraense, questiona as subtrações culturais feitas pelos colonizadores

escolas indígenas – são mais de 2.700 escolas, segundo o censo escolar do INEP de 2010, mas em 787 delas só se usa o português. Agora, o movimento indígena quer ampliar o uso social dessas línguas com o apoio de novas tecnologias: rádio, telefone, gravador, filmadora, TV, computador e combinações de uns com os outros – fax-modem, base de dados, multimídia. Trata-se de fortalecer a língua e a tradição. Seguindo a reflexão do pajé Luiz Caboclo, índio Tremembé do Ceará: “Hoje, nós, para viver, precisamos falar, em vez de calar. Para isso, basta, trocar uma letra. Essa é uma questão de vida ou morte das línguas, mas também dos próprios índios”. O êxito dessa luta depende, em grande medida, da luta contra a ignorância e o preconceito glotocêntrico na sociedade nacional, canalizado contra as línguas indígenas e contra as variedades dialetais do português. Como disse José Saramago, “Existem várias línguas faladas em português”. A luta pela diversidade de línguas passa também pelo reconhecimento das diferentes formas de falar a língua portuguesa e os direitos dos diferentes povos e grupos sociais continuarem pensando, cantando, amando, narrando, trabalhando e negociando sua força de trabalho nas suas várias línguas.

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Perfil

HÉLIA SCHEPPA

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JOMARD MUNIZ DE BRITTO A cultura em trânsito

Aos 80 anos, poeta, cineasta e crítico cultural, cuja trajetória tem sido marcada pelo inconformismo e pela iconoclastia, é celebrado com obras em sua homenagem TEXTO Aristides Oliveira

“Meu esforço sempre foi estar

sintonizado com as linguagens contemporâneas.” É nesse sentido que o professor Jomard Muniz de Britto transita pelos espaços culturais no Brasil, em busca das pluralidades estéticas em movimento. Filho da pernambucana Maria Celeste Amorim Silva e do paraibano José Muniz de Britto, Jomard nasceu em 8 de abril de 1937, no Bairro de São José, Recife. Seu envolvimento com o universo artístico começou muito cedo, influenciado pelos professores Moacir de Albuquerque – ao apresentar Gregório de Matos – e Gláucio Veiga. O interesse do garoto pela literatura, especialmente pelos filósofos présocráticos e Ortega y Gasset, tornou a biblioteca da Faculdade de Direito um lugar de pesquisa na adolescência. Aos 14 anos, também demonstrou interesse pelo cinema, ao conhecer as atividades do Cineclube Vigilanti Cura. Ele queria aprofundar seu contato com a linguagem cinematográfica, ao tomar conhecimento de que o grupo – de orientação católica – desenvolvia uma série de atividades ligadas a sessões de

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filmes, seguidas de debates e palestras sobre o tema. As noites de sábado foram marcantes para Jomard nesse período, pois é a partir do cineclubismo que sua relação com a estética audiovisual será intensificada, tomando essa linguagem como ferramenta para compreender a conjuntura que o envolvia no grupo. Não podemos esquecer a presença do padre Daniel Lima – palestrante do Vigilanti Cura – que animou Jomard para ir além do papel de espectador, tornando-se um dos debatedores assíduos do cineclube. Aos poucos, Jomard foi conquistando espaço e confiança entre os membros do Vigilanti Cura. Sua disponibilidade e interesse o aproximou das freiras que frequentavam as sessões, convidando-o para ministrar aulas de cinema no Colégio São José e Colégio Damas. A partir daí, seu vínculo com os estudos cinematográficos desdobrou-se na prática política e pedagógica ao longo de toda a vida. Entre um debate e outro conduzido por Jomard, um jovem cineasta entra na sala e senta ao lado de José Luiz Libonati, presenteando-o com a revista


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Perfil Mapa. Era Glauber Rocha, que passava uma temporada no Recife buscando articular novos contatos na cidade. Libonati seria o ponto de conexão entre os dois. Glauber não foi ao cineclube por acaso, pois já conhecia o nome de Jomard como crítico de cinema fora do Recife, quando este colaborou para a Revista de Cinema de Minas Gerais. O encontro gerou uma amizade que rendeu várias colaborações intelectuais entre o cineasta e o professor. Uma delas foi o convite de Glauber para o amigo ir à Salvador acompanhar as filmagens de O pátio (1958), estreitando os laços com o diretor e sua mãe, Dona Lúcia. Foi na pensão dela que Jomard ficou hospedado durante o processo de criação do filme. Quando Glauber dirigiu a revista Mapa em 1958, convidou-o a publicar um artigo chamado De poesia. Nessa troca de afetos e leituras, Jomard retribuiu o convite, ao chamar Glauber para escrever o prefácio do livro Do modernismo

à bossa nova (1966), fase em que o professor estava dedicado a estudar os impactos desse movimento musical na cultura brasileira, escrevendo críticas dos discos MPB e organizando eventos sobre o gênero. A amizade não media distâncias e a saudade era exposta nas cartas que trocavam periodicamente, reforçando o carinho entre os dois: “tenho notícias: estou noivo (…). continua vivendo angustiado? (…) você é uma flor. lembranças a todos os outros. glauber”. O aprendizado dessa experiência impulsionou Jomard a descobrir novos caminhos na criação de sua obra cinematográfica em super-8 e na prática do escreviver. Apaixonado por Filosofia, a Universidade Federal de Pernambuco (antes, Universidade do Recife) foi seu novo laboratório de descobertas, quando inicia o curso na década de 1950. O primeiro desafio: ser aluno de Estética do dramaturgo Ariano Suassuna, que provocava em sala a ideia de que cinema não era arte. Para Jomard – que entra no mundo acadêmico com a bagagem cheia de

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referências cinematográficas –, o gesto de Ariano era incômodo, principalmente pelo fato de o professor armorial não ser questionado pelos alunos, talvez pelo temor em enfrentar o “cânone sagrado” da pernambucanidade… Não para ele, que usou o próprio cinema como espaço de confronto com seu antigo professor, anos mais tarde…

JUNTO DE PAULO FREIRE

O amadurecimento da carreira docente veio a partir da indicação feita pelo professor Luiz Costa Lima, para que Jomard fosse assistente de Maria do Carmo Miranda, na Escola de Belas Artes. A alegria de ensinar numa instituição importante contrastava com a tensão de uma época marcada pela instabilidade política que o Brasil vivia, com o enfraquecimento do governo Goulart, a partir do golpe militar em 1964. Nessa atmosfera de resistência intelectual e política, o professor conheceu Paulo Freire e participou ativamente do Serviço de Extensão Cultural (SEC), causando mal-estar na relação com a conservadora Maria


do Carmo Miranda: “A ligação com a Filosofia e a História da Educação me aproximou de Paulo Freire. Comecei a frequentar Paulo Freire e notava que Miranda não gostava do grupo dele, que ela acusava de ser sofístico. Sofisticado não, sofístico. O que era uma opinião crítica muito fina, sofisticadíssima. Num determinado momento, Miranda fez um ofício me dispensando (em 1963)”, revela no livro de Paulo Cunha, A imagem e seus labirintos. Ao ser integrado à equipe Paulo Freire, foi incumbido de trabalhar como presidente da Comissão Regional de Cultura Popular do MEC, visitando Brasília de dois em dois meses, para acompanhar as atividades do Círculo de Cultura instalado na capital do país. Foi aí que Jomard iniciou a escrita do primeiro livro: Contradições do homem brasileiro (lançado em 1964), com apoio e revisão de Paulo Freire. Marcius Cortez lembra que o livro foi recebido com muita empolgação pelos amigos educadores, que ajudavam a divulgar o trabalho e conquistar os leitores. Durante uma panfletagem que buscava espalhar a obra pela cidade,

Ao ser integrado à equipe de Paulo Freire, Jomard iniciou a escrita do seu primeiro livro, Contradições do homem brasileiro o carro de Miguel Arraes parou e levou uma cópia. Seria o primeiro leitor de Contradições do homem brasileiro? Pouco tempo depois, o governador foi deposto pelos golpistas. Os planos de cerceamento aos artistas e intelectuais de esquerda destruíram sistematicamente as “ameaças” à estabilidade do regime imposto, pulverizando o SEC e perseguindo os integrantes do grupo, o que levou Paulo Freire ao exílio e a captura do livro de Jomard, vista pelo regime autoritário como obra subversiva. Não bastava desarticular a equipe Paulo Freire, era preciso prender os professores ligados ao educador, para deixar a mensagem clara: os militares estão no poder. Jomard já imaginava

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que seria levado pela polícia, quando bateram à sua porta, à Rua Gervásio Pires. Para ele, foi previsível. Levado para o Forte das Cinco Pontas, sua mãe esteve acompanhando a rotina do filho, levando comida e exigindo dos militares bom tratamento na prisão. Quando tocamos nesse assunto, Jomard não poupa as palavras: “Minha mãe ia lá. Ficava indignada! Ela ia diariamente com uma irmã dela ao Forte das Cinco Pontas. Mas não estou me envaidecendo disso, porque tem pessoas cretinas que acham que quando eu falo nisso (…) estou querendo me autopromover! Isso é uma cretinice fantástica da pernambucanidade! Eu, nessa prisão, fiquei numa mesma cela com Gregório Bezerra e Joel Câmara. Então, isso não interessa mais a ninguém! Porque esse pessoal diz que eu estou me autopromovendo, quando digo que fiquei quase um mês na companhia deles! Então, esse pessoal que pensa dessa maneira vai para aquele lugar do qual eles nunca deviam ter saído, que é o fundo do poço!”. Após o resultado do Inquérito Policial Militar “concluir” que os


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integrantes da Equipe Paulo Freire eram considerados “perigosos”, Jomard perde o cargo de professor da UFPE aos 27 anos, com aval de Miranda, guiada pelo sentimento anticomunista de Gilberto Freyre, simpatizante do golpe militar, que denunciou nos jornais os “comunistas” que invadiram a SEC. Além de perder o cargo na UFPE nos anos 1960, Jomard sofrera o mesmo golpe na Paraíba, ao ser expulso da Universidade Federal da Paraíba pelo regime militar, no

auge do AI-5. Para manter suas contas em dia, trabalhou na Escola Superior de Relações Públicas (Esurp) até recuperar seu cargo nas duas instituições, com a abertura política nos anos 1980.

CÂMERA NA MÃO

Entre a experiência do golpe e a luta pela Educação, Jomard vivenciou a década de 1970 através dos impactos causados pelo Tropicalismo e o cinema super-8. Ao ser presenteado pela amiga Astrogilda de Carvalho

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com uma câmera 8 mm, sua ânsia criativa gerou mais de 40 produções audiovisuais, que transitaram do 8 mm ao VHS, entre 1974 e 2005. De crítico de cinema, Jomard transformou-se em explorador das paisagens urbanas do Recife, resultando na produção de vários experimentos audiovisuais em película super-8. A partir de junho de 1974, Jomard estreia os filmes Babalorixá Mário Miranda, Maria Aparecida no carnaval, Ensaios de androgenia e Infernolento. Ao lado do grupo de teatro Vivencial, produziu cerca de 13 filmes polêmicos na época – entre os quais destaco Vivencial I (1974), Toques (1975) e Inventário de um feudalismo cultural (1978) –, provocando as mentes conservadoras a partir de temas considerados tabu, como sexualidade, erotismo e crítica ao espírito provinciano em Pernambuco. Nas suas produções fílmicas, Jomard sempre buscou trilhar um caminho fora do circuito comercial, utilizando a película super-8 como espaço de crítica e debate sobre a conjuntura político-cultural do país na ditadura. Preocupado em promover a circulação dos seus filmes e debater com o público suas propostas estéticas, ele participava, como realizador e jurado, de festivais e mostras de cinema no Recife e em Salvador, a exemplo das Jornadas Baianas de curta-metragem. Sem dúvida, o filme mais comentado e aplaudido pelo público é O palhaço degolado (1977), que completa 40 anos este ano. O filme foi captado por Carlos Cordeiro, que lembra: “Não havia roteiro. Então, Jomard me dizia na hora o que ia fazer e até mudava o que tinha dito (…), na maioria das vezes, não se obedecia à técnica por conta da agilidade com que ele pensava e modificava sua maneira de se portar”. Mesmo com o risco de perseguição intelectual, Jomard toma O palhaço degolado como espaço para exercer sua crítica aos dois mestres (Freyre e Ariano), que resistiram em reconhecer a inserção da cultura de massa como referência na produção contemporânea, destronando-os da mitomania que imortaliza suas verdades. O palhaço tornou-se um personagem emblemático. Ao longo


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1 PERFORMANCES

Na sua atuação pública, o poeta e cineasta tem realizado vários "atentados poéticos"

2 O PALHAÇO DEGOLADO

Há 40 anos, Jomard lançou seu filme mais celebrizado, em que critica dois totens da cultura pernambucana

dos nove minutos de performance audiovisual, questiona a conjuntura vivenciada nos anos de chumbo, dominada pelas esferas conservadoras que ocupavam as cadeiras das Fundações e Conselhos de Cultura. Ao lembrar o processo de criação do filme, Jomard afirma que ele se coloca como contraponto à mistificação intelectual, principalmente no contexto em que a linha de pensamento que orientava a política cultural no Recife girava em torno de Ariano Suassuna e Gilberto Freyre. Contra folclorização do passado, O palhaço degolado faz, como afirma o próprio JMB, “um balanço dos problemas que nós estávamos vivendo, que é a década, não é 1977, é a década. Tudo isso começou no Tropicalismo, que se posicionava contra o provincianismo. Por isso que ficou o fetiche do Tropicalismo com O palhaço degolado. Eu tenho filmes muito melhores, mas ficou esse, porque é justamente o portavoz, é o pensamento tropicalista, isso é uma neoantropofagia”.

TROPICALISMOS

Foi através da parceria entre Jomard, o músico e compositor Aristides Guimarães e o jornalista e crítico de cinema Celso Marconi que o pensamento tropicalista ganhou fôlego no Recife. O clima era de rock and roll, rum e Coca-Cola à vontade na casa de Celso Marconi, onde se reuniam para traçar outras formas de vivência e leitura da cultura pernambucana, longe das solenidades oficiais. Entediados com o elitismo tradicionalista, que rejeitava o novo, os três amigos unem forças e elaboram o primeiro manifesto Porque somos e não somos tropicalistas (1968), sintonizados com os ruídos da guitarra, que eletrizava a monotonia da paisagem canavieira: “A vanguarda contra a retaguarda! A loucura contra a burrice! O impacto contra a mediocridade! O sexo contra os dogmas! A realidade

ESTUDOS BIOGRAFIA E PESQUISA SOBRE UM TRANSGRESSOR Biografar um antimemorialista seria um feito transgressor. Porém, se o biografado é Jomard Muniz de Britto, qualquer traço de transgressão, quando aproximado à vida desse artista, ganha suspensão. O Mau Velhinho – como ele costuma se autodenominar – aceitou, a seu modo, integrar o grupo de personalidades ligadas à cultura e política pernambucana que são homenageadas pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), na Coleção Memória. Em Jomard Muniz de Britto – Professor em transe (2017), escrito pela jornalista Fabiana Moraes e pelo historiador Aristides Oliveira, há logo a advertência: “Este não é um livro sobre Jomard”. É um dos livros possíveis sobre esse antiartista. Para uma figura como ele, que diversas vezes tensionou classificações tradicionais, as noções de biografia e de cronologia são questionadas, para que os pressupostos do biografado sejam mantidos. Com esta publicação, o leitor pode se aproximar das diferentes vertentes que fazem parte das produções artísticas de Jomard, como os trabalhos com câmera super 8, parte de sua vida na Fundação de Cultura do Recife, suas amizades. Além disso, o livro também apresenta questões de ordem histórico-política vivenciadas por ele no período da ditadura militar. “Talvez o livro traga com um pouco mais de força como ele sofreu com um tipo de perseguição política falsamente branda por nomes como Gilberto Freyre a Maria do Carmo Tavares de Miranda, que o expõem à ditadura. Torna mais clara essas relações com o grupo do Serviço de Extensão Cultural da Universidade, que era liderado por Paulo Freire”, afirma Moraes à Continente. Além da parceria com Fabiana Moraes para a realização na Coleção Memória, Aristides Oliveira – pesquisador piauiense da obra cinematográfica de Jomard Muniz de Britto e do cinema underground e marginal – lançou há pouco o livro Jomard Muniz de Britto e o palhaço degolado (Edufipi/Acrobata), que resulta de sua pesquisa de mestrado em História do Brasil pela UFPI. O livro levanta questões estéticas a partir do filme O palhaço degolado, que, para o historiador, podem abrir outros caminhos interpretativos das práticas sociais naquele contexto dos anos 1970. “A atualidade da metáfora do palhaço degolado está no sentido da não conformidade com as cenas oficiais, com o folclorização da cultura brasileira. Com esse filme, Jormard vem antecipando muitos gritos, muitas manifestações, como por exemplo, o posterior manguebeat. O que o movimento propunha, nos anos 1990, Jorge Mautner e Jomard já estavam fazendo nos anos 1970. É alimentar sempre esse espírito de combate ao provincianismo que ainda é muito forte no Nordeste”, afirma Oliveira. A partir da linha interpretativa estabelecida pelo piauiense, são apresentadas histórias que ilustram como artistas que estavam “fora das cartilhas dos planos nacionais de cultura” se expressavam e como faziam para sobreviver a tempos de repressão, utilizando-se de diferentes formas de guerrilha semântica dentro da imagem, da palavra ou do corpo. ERIKA MUNIZ

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ENCARTE PRESENTE AOS LEITORES: O DOC JMB, O FAMIGERADO Em um primeiro momento, o espectador de JMB, o famigerado (2011) pode questionar se o filme poderia se enquadrar nos modos de documentário clássico, mas é bem provável que surjam dúvidas sobre outras possibilidades de gênero que o perpassam. Entre ficção e realidade, a diretora Luci Alcântara sugere algumas pistas: “Não é nem uma biografia, nem um documentário tradicional. Algumas pessoas acham que, no documentário, é só verdade. Este é um documentário-ensaio, sem ter a obrigação de contar uma história”. A cineasta conta que conheceu seu “objeto fílmico” no início dos anos 1980, através do professor Antonio Cadengue, quando ainda se dedicava ao teatro. “Ele começou a me chamar de bisneta, acompanhou minha carreira de atriz o tempo inteiro. Na Livro 7, eu comprava livros de cinema, inclusive os dele. Ele fazia parte desses dois mundos, o do teatro e o do cinema; como eu frequentava os festivais de super 8, ele sempre fez parte da minha vida intelectual e cultural.” A ideia de fazer um documentário sobre Jomard surgiu em meados dos anos 2000, após a releitura dos livros dele e de uma das primeiras entrevistas formais que Luci fez com ele. Escreveu o roteiro e só depois lhe contou a ideia. “Eu sou pisciana e ele é ariano, daí, já viu, diz tudo na lata. Foi bem difícil fazer esse filme, era uma peleja. Mas ele sempre vinha de novo e me presenteava”, explica Luci. A proposta foi aprovada no II Edital do Audiovisual do Governo do Estado de Pernambuco. Como em outros trabalhos de Alcântara – entre eles, Quarto de empregada (1995) e Geração 65: aquela coisa toda (2008) –, em JMB, o famigerado, ela afirma seguir as ideias do cineasta Nagisa Ojima que diz: “Os fundamentos do cinema documental são o amor pelos personagens que filmamos e o tempo que dedicamos a eles durante as filmagens”. Por conta de alguns momentos de resistência de JMB, ela se deixou contagiar ainda mais desde os processos de filmagem aos de montagem. “Filmei Jomard de várias formas e o deixei opinar. Mas eu tinha liberdade de fazer o que queria. É uma relação de amor, mesmo, porque se você não ama seu objeto, você não consegue entrar”, explica. (EM)

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Em 1968, junto a Celso Marconi e Aristides Guimarães, Jomard escreveu o manifesto Porque somos e não somos tropicalistas

contra os suplementos! A radicalidade contra o comodismo!”. Como Celso Marconi trabalhava no Jornal do Commercio, ele publicou o manifesto na sua coluna e o trio o lançou na Galeria Varanda, em Olinda, na exposição do artista Marcos Silva (1968). Os diálogos tropicalistas com os baianos – principalmente Caetano Veloso e Gilberto Gil – estimularam a produção do segundo manifesto em julho do mesmo ano, chamado de Inventário do nosso feudalismo cultural, com adesão de artistas de vários estados, como Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Bahia, unindo tropicalistas e integrantes do poema-processo. Nem o primeiro nem o último da bossa-nova ou do Tropicalismo, mas sobrevivente de uma série de agitos estéticos e políticos. Jomard Muniz de Britto é um pensador da cultura, livre de categorizações ou rótulos. Caminhando pela cidade distribuindo corpo a corpo os

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3 JMB, O FAMIGERADO

Cena do documentário-ensaio, dirigido por Luci Alcântara

4-5 ESTUDOS

o modernismo à bossa nova e D Contradições do homem brasileiro integram a bibliografia de JMB

panfletos da Poeticidade, ou Atentados poéticos, ele exerce suas reflexões sobre o presente, atualizando sua crítica e suas sensações sobre o atual cenário artístico: “Os Atentados são o que eu penso, a minha produção literária, digamos assim… escritural naquele momento. E ainda hoje eu vivo os textos”. Antecipando o manguebeat, o professor já pensava e experimentava as conexões entre as raízes locais e a cultura global, estilhaçando as dicotomias entre o popular e o erudito. Jomard foi participante ativo no desmonte das cercas que demarcavam um regionalismo idealizado nos quintais da elite cultural pernambucana, à sombra de Gilberto Freyre e Ariano Suassuna. Ao valorizar a reinvenção do presente às margens dos emblemas e sagrações da brasilidade, Jomard segue em frente, atento às mudanças e disponível para mergulhar nas problematizações que fazem parte da complexa leitura da arte contemporânea no país.


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HÉLIA SCHEPPA

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Pela negação dos memorialismos, JMB chega aos 80 anos imerso no desejo constante pelo novo, o surpreendente. Despreocupado com as miudezas, datações históricas e com a morte: “Não tenho medo da morte, ela que tem medo de mim”. Afinal, para atravessar a Rua João Fernandes Vieira, no Bairro da Boa Vista, onde ele mora, é preciso ser e estar contemporâneo, requisito básico para cruzar as pontes que ligam o Capibaribe ao mundo.

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BERINJELA Do disfarce ao apreço

Receitas tradicionais revelam os segredos deste vegetal, um dos mais controversos ingredientes da cozinha, que provoca tanto rejeição quanto afeto TEXTO Lia Beltrão

Cardápio

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Deliciosa, medicinal, fácil de preparar; ou intragável, tóxica e contraintuitiva. A berinjela não desfruta de consenso. E em suas vestes de cor inusitadamente púrpura ela parece ter consciência de sua fama controversa e impõe esforço e persistência a quem decide lhe trazer à mesa. A depender de como sua recriação acontece na cozinha, ela pode se revelar um desastre borrachudo e amargo ou a mais fina iguaria. Os segredos de seu preparo e as mil faces que a berinjela pode manifestar são revelados em receitas tradicionais, que sobreviveram ao tempo graças à proteção do hábito e do afeto. Para o antropólogo Michel de Certeau, que, seguindo o rastro de Lévi-Strauss, adentrou esse invisível cotidiano da cozinha, “no espaço solitário da vida doméstica, faz-se assim porque sempre se fez assim, quase sempre a mesma coisa, cochicha a voz das cozinheiras; mas basta viajar, ir a outro lugar para constatar que acolá se faz de outro modo sem buscar muitas explicações”. Assim, cada receita, cada hábito alimentar nos oferecem o sabor complexo da poética de cada cultura e revelam, em si, “uma ordem do mundo”. TRADICIONAL, MAS NEM TANTO

“Esta receita me lembra o final do verão, quando o avô da minha melhor amiga retornava do campo com toda a uva recolhida durante a vendemmia e a família inteira e amigos próximos se reuniam para comemorar a colheita da uva e fazer o vinho, comendo e bebendo muito.” Nathália Espíndola viveu 15 dos seus 28 anos na Itália e aprendeu com a senhora Ofelia, avó de sua amiga Francesca, a fazer a talvez mais popular receita com berinjela da Itália – e curiosamente também do Brasil: a berinjela à parmegiana. Apesar de parecer a mais tradicional das receitas, a parmegiana é uma invenção recente na linha do tempo deste fruto milenar, que provavelmente chegou à Europa na Idade Média, mas que apenas se popularizou muito tempo depois. Na Itália daquele tempo, seu consumo esteve associado à loucura. Seu nome

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LIA BELTRÃO

Cardápio italiano, melanzana, é derivado de mela insana, ou seja, maçã louca. O nome arcaico da berinjela em inglês também é uma tradução direta disto: mad apple. Mesmo nos dias de hoje, alimentos da família das solanáceas, como é o caso da berinjela – e também dos tomates e batatas – são considerados ligeiramente tóxicos, e algumas linhas da medicina, como a medicina antroposófica, desaconselham a inclusão da berinjela em qualquer tipo de dieta. Sônia Hirsch, jornalista autora de inúmeros livros sobre alimentação no Brasil, reforça o conselho dos antroposóficos. Mas, como todos os ingredientes que sentam conosco à mesa, ela um dia foi apenas uma planta selvagem emaranhada na vegetação de alguma floresta – sem classificação, sem ser nomeada de solanácea, de tóxica, de legume ou mesmo de planta. Existia simplesmente. A localização da floresta onde nasceu a berinjela e onde foi deitado o primeiro olhar humano sobre ela não é um consenso. Apesar de estudos mostrarem que a planta já era cultivada na Índia há 4.000 anos, é na literatura chinesa antiga que se encontram as primeiras menções a ela. Esses textos, que datam de 500 d.C., fazem parte do vasto registro de experimentos sobre a domesticação de frutos empreendidos por agrônomos chineses. Naquele tempo, o legume imponente que conhecemos era um fruto pequeno, esverdeado e amargo, classificado como tóxico e nem um pouco palatável. Os chineses transformaram, ao longo do tempo, seu tamanho, sabor, cor e textura, fazendo-o maior, menos amargo, mais macio, e criando diferentes variedades em cores que multiplicaram seu verde original em branco, amarelo e nosso conhecido púrpura. As razões ou, como diz LéviStrauss, “a lógica das qualidades sensíveis” que levaram os antigos

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sábios agrônomos a domesticarem o fruto está associada às suas funções medicinais, mas por que eles insistiram tanto em transformá-la em um ingrediente culinário não parece estar muito claro. Tampouco resta dúvida de que eles sabiam o que estava fazendo: a China é atualmente o maior produtor mundial de berinjela e seu consumo no país é extremamente popular.

AMARGOR TRANSFORMADO

Para An Qi, uma grande amiga chinesa, apenas pensar em berinjela a faz salivar. A receita que mais preparam em sua família é chamada de hongshao qiezi, ou berinjela cozida em molho vermelho. Considerando

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a interminável lista de ingredientes da receita de hongshao qiezi, não há dúvidas de que os chineses dominavam com primor a capacidade única de absorção da berinjela e o fato de que ela pode resultar em pratos com sabores complexos, como que revelados em camadas. O molho vermelho nesta receita dispensa o sal – o único ingrediente que diminui esta capacidade de absorção – e inclui ingredientes tão diversos como açúcar mascavo, pasta apimentada de feijão chinesa, molho de soja, vinho chinês para cozinha, molho de peixe, óleo de gergelim apimentado, especiarias de todos os tipos e óleo, muito óleo. A receita familiar de An Qi


Receita

BERINJELA À PARMEGIANA

Receita de OFELIA TOSETTO, descrita por NATHÁLIA ESPÍNDOLA Você corta as berinjelas em fatias não muito grossas na vertical. Coloca em uma peneira apoiada em um recipiente, de forma a não tocar no fundo, permitindo que a água desça. Coloca sal por cima das berinjelas pra a água descer. Eu sempre faço isso de manhã cedo pra preparar o prato na hora do almoço. Depois, você empana as fatias passando-as por 1) uma gema de ovo misturada com um salzinho e pimenta do reino, só pra dar sabor; 2) farinha branca; 3) gema de ovo mais uma vez; 4) farinha de rosca. Em seguida, frita. Depois que estão empanadas, você vai colocar na forma um pouco de molho de tomate, uma camada de berinjela, azeite, um pouco de manjericão fresco, uma camada de queijo mozzarella de búfala (ou mozzarella comum mesmo, se não encontrar a outra) e parmesão (de boa qualidade, se não se perde o sabor do prato). Depois você faz mais umas duas camadas, colocando as berinjelas em um sentido diferente da primeira, como se fosse um xadrez, para estruturar o prato. Faz isso repetindo a ordem de berinjela, molho e queijo, e acaba com uma camada generosa de queijo parmesão. A mozzarella italiana é um queijo que não encontrei aqui. O mais próximo que eu já vi é a mozzarella de búfala. Para o molho de tomate, o melhor é um molho artesanal, feito em casa. Mas, às vezes, eu uso um molho pronto de boa marca, coloco azeite, sal e manjericão fresco e deixo no fogo para pegar o gosto e depois está pronto pra ser utilizado na receita.

1 À PARMEGIANA Na receita italiana, vegetal divide o protagonismo com a mozzarella

também indica que o trabalho que seus antepassados tiveram para retirar o sabor amargo da berinjela ainda não foi suficiente. Esse processo tem continuidade agora na cozinha, no famoso pré-preparo da berinjela. Tradições gastronômicas de diferentes culturas lidam com isso das formas mais diversas. A técnica chinesa usada na receita da família de An Qi inclui mergulhar os pedaços de berinjela em água, deixá-los de molho, depois secá-los, fritar em bastante óleo e depois imergir a berinjela já frita em água fervente. Nada muito intuitivo. Em outras receitas, como na caponata compartilhada pela paulistana Claudia Sangiorgi, pode-se ignorar por completo esta etapa. Sobre a caponata

A China é o maior produtor mundial da berinjela. No país, seu consumo é extremamente popular

simplesmente deliciosa. Nada de óleo em exagero, nem temperos especiais. Os ingredientes para esta receita encontram-se em qualquer mercado. Simples, para acompanhar basta pão e vinho. Ou caipirinha, gim e cana, como faz a família de Claudia nos verões paulistanos.

que prepara – uma receita tradicional de família que passou de sua avó paterna, filha de italianos, para sua mãe e depois para ela – Claudia diz que essa história de deixar a berinjela de molho é “uma grande bobagem” e nos oferece, para profundo alívio dos menos habilidosos com cozinha, uma receita extremamente prática e

A berinjela percorreu o longo caminho entre a China e a Europa através das mãos hábeis dos turcos e dos árabes. Com o minimalismo típico de quem vive em regiões desérticas e a genialidade gastronômica que os caracteriza, os árabes criaram a, talvez, mais célebre receita feita com ela: o babaganoush.

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SABOR DE FUMAÇA E HISTÓRIA


FOTOS: LIA BELTRÃO

Cardápio

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2 CAPONATA Para acompanhá-la, bastam pão e vinho

Receita

CAPONATA

Receita de CRISTINA SANGIORGI, descrita por CLAUDIA SANGIORGI 1 berinjela grande 2 abobrinhas italianas (ou uma quantidade equivalente à da berinjela) 1 pimentão vermelho ou outra cor 2 cebolas médias 4 dentes de alho Orégano a gosto Vinagre de maçã Sal a gosto Azeite Corte as berinjelas, abobrinhas, pimentões e cebolas em tiras; o alho, corte cada dente em quatro. Regue com 1/2 xícara de azeite, 1/4 de xícara de vinagre, sal e orégano. Misture bem. Coloque tudo em forma retangular e asse em forno a 200 graus sendo 1/2 hora com papel-alumínio e 1/2 hora sem papel-alumínio. Depois de morno, experimente e veja se falta sal, azeite ou vinagre. Com o passar do tempo, eu passei a fazer uma caponata mais light, com menos azeite (3 a 4 colheres) e a acrescentar outros ingredientes que trazem mais umidade ao prato, como uva-passa, cenoura e tomate. Também acrescento alguns temperos como pimenta do reino, folhas de louro e alecrim.

3 KIOPOLO O segredo da receita está em defumar a berinjela

A complexidade de sabores está lá, mas não há necessidade de dezenas de ingredientes como na hongshao qiezi. Basta um que se sobressaia: sabor de fumaça. A ele, são adicionados a adstringência exótica e oleosa do tahine e a acidez de vinagre ou limão. Nada mais é necessário em uma receita cujo mistério está mais no jeito com que se faz do que nos ingredientes em si. Os turcos também tinham o hábito de queimar nas chamas e na brasa a berinjela e depois

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temperá-la para comer com pão. Países que estiveram sob domínio do Império Turco- Otomano até hoje guardam a presença daquele tempo no forte cheiro de berinjela defumada nas cozinhas de suas casas. É o caso da Bulgária, onde a kiopolo, uma pasta de berinjela defumada, é um produto nacional. Dona Liliana Alkalai, imigrante búlgara que veio para o Brasil no pós-guerra, guarda na memória os dias de verão em que fazia piquenique nas montanhas nos arredores de Sófia, comendo pão com kiopolo. Foi seu neto, Rafael Alkalai, que, aos 15 anos, me ensinou os detalhes


Receita

KIOPOLO OU A BERINJELA

Receita de LILIANA ALKALAI, descrita por RAFAEL ALKALAI

da receita que ele sabe fazer com minúcia e que conhecia apenas como “a berinjela”. Deu dicas precisas de como queimar a berinjela no fogão, o ponto de parar, a quantidade de tempero que ele acha ideal. Sobre o que o cheiro e o sabor da berinjela lhe provocam, disse: “Na minha mente vêm a minha avó, meu pai e uma herança de uma guerra feia que fez muita gente sair de casa em busca de uma outra vida. Meus avós são imigrantes e com todo mundo pirando acerca de imigrantes e refugiados hoje, eu acho que comida tem muita história pra contar. Se tem algo que eu descobri é que comer a comida de quem vem de outro lugar é sentir dentro de si e se nutrir da cultura do outro”. Dona Liliana me ofereceu a receita da Kiopolo no dia de seu aniversário de 88 anos. A única diferença entre a receita dada por

ela e a de seu neto é uma pitada de açúcar que ela classificou como “segredo”. A afirmação de Certeau de que “cada hábito alimentar compõe um minúsculo cruzamento de histórias”, pelo menos quando se trata de berinjela, é a mais pura e deliciosa verdade. As receitas disponibilizadas nestas páginas seguem vivas nas famílias de imigrantes no Brasil: na casa de Nathália Espíndola, em João Pessoa, que foi imigrante brasileira na Itália e é casada com Fabio Visintin, que é hoje um imigrante italiano no Brasil; na casa de Claudia Sangiorgi, neta de imigrantes italianos que, fugindo da guerra e da miséria na Europa, estabeleceram-se em São Paulo; na casa de Liliana Alkalai, seus filhos e netos, que nasceu na Bulgária em um período entreguerras, foi enviada por ser judia a um campo de refugiados no recém-formado estado de Israel, e veio finalmente ao Brasil, onde pode se estabelecer com seu marido em 1954.

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Pegue a berinjela e, do jeitinho que ela está, coloque sobre a chama do seu fogão e deixe ela queimar. Com um garfo ou qualquer outro utensílio, rode-a para que cozinhe integralmente sobre o fogo. Ela vai soltar pele queimada, sim, e o fogão vai ficar uma sujeira só, por isso eu recomendo que faça tudo de uma vez e num dia livre pra poder limpar depois. Como saber se a sua berinjela está pronta: quando você enfiar um garfo e não sentir nenhuma – mas é NENHUMA mesmo – resistência na parte da berinjela, ela está boa. Se você estiver em dúvida, é porque não está boa. Depois disso, coloque todas as suas berinjelas numa vasilha, cubra com papel toalha e deixe-a esfriar. Quando estiverem mais fria (isto é, quando der pra tocar nelas sem queimar os dedos), tire as cascas e deposite as polpas em um escorredor. Salgue e deixe escorrer, quanto mais tempo você deixar escorrendo menos amargas elas ficam. Eu sempre deixo de uma hora a duas. Recomendo limpar o fogão enquanto espera. Depois que a berinjela soltar uma água feiosa e fedorenta, você joga a água fora e lava bem a polpa para tirar o resto do sal (lave bem, senão fica salgada). Agora, chegou a parte divertida: temperar. Você pode bater a polpa no liquidificador, processador ou, se for feroz mesmo, na mão. Tanto faz, a diferença vai ser a textura no final. Tempere a gosto com: sal, azeite de oliva extravirgem, vinagre branco (maçã, arroz ou vinho branco), salsinha e alho. O negócio é ir ajustando e batendo. É impossível descrever o sabor ideal, mas eu vou tentar: a berinjela tem um sabor defumado quase queimado; a textura tem que ser macia, mas, ainda assim, sentir as fibras dela; o alho tem ser bem-sentido pegando a sua língua de surpresa; a salsinha passa junto do alho, mas o azeite amacia o impacto no paladar; o vinagre vem pra balancear tudo, dando um frescor mais gelado e firme. Assim que você temperar, os sabores ficam bemressaltados, por isso eu recomendo meter num pote de vidro e guardar na geladeira por uns dois dias antes de comer. Assim, os temperos se ajeitam cada um no seu lugar e o sabor de conserva se acentua mais.


FOTOS: REC PRODUTORES E UKBAR FILMES/DIVULGAÇÃO

Claquete 1

JOAQUIM O homem antes do mito Tiradentes

Novo filme de Marcelo Gomes busca a desconstrução do herói, interessado no que pode ter, de fato, forjado o inconfidente mineiro TEXTO Mariane Morisawa, de Berlim

Joaquim José da Silva Xavier

frequentemente foi pintado como Jesus Cristo, com cabelos longos e barba grande. Mas isso era tudo o que Marcelo Gomes queria evitar em Joaquim, seu novo longa-metragem, exibido em competição no último Festival de Berlim e que estreia no Brasil agora. “Queria desconstruir esse herói”, disse o cineasta, sobre o homem que ganhou um feriado em seu nome. “Ninguém pede para ser herói, para ser mito de um país. São as circunstâncias que o transformam.” Então é, como o

título indica, apenas Joaquim quem aparece no filme: um alferes com suas ambições e seus amores, que se revolta contra a mesma Coroa portuguesa a que servia. Para Julio Machado, que vive o personagem, essa escolha do diretor foi fundamental para que tivesse liberdade. “Pudemos investigar o que é humano nesse personagem, para além das histórias que a gente conhece, das histórias que são contadas e recontadas e impostas, muitas vezes. Nisso, foi um exercício muito prazeroso que partiu da clareza conceitual de Marcelo, essa

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escolha de tentar entender como um brasileiro comum passa a questionar a Coroa a que servia. Interessava a Marcelo saber que coisinhas lá dentro dele se mexeram, moveram-se para que ele deixasse de ser um servidor fiel e passasse a questionar.” Marcelo Gomes leu muitos livros sobre o período colonial brasileiro, incluindo A história da vida privada, para descobrir o que comiam, como viajavam e se relacionavam, e Desclassificados do ouro, sobre como a riqueza das Minas Gerais no século XVIII também gerou uma enorme pobreza. Ambos foram escritos pela historiadora Laura de Mello e Souza, que foi consultora da produção. Pesquisou toda a documentação sobre os inconfidentes. E a verdade é que havia pouco, muito pouco, sobre o homem Joaquim José da Silva Xavier. Menos ainda sobre o que fez com que se transformasse num revolucionário. “Isso não está em nenhum livro de história. Não há registro. Então, eu inventei.” Para Marcelo Gomes, as motivações tinham de ser pessoais. Por exemplo, a promoção a tenente que nunca acontecia – isso está no Auto da Devassa da Inconfidência Mineira. Mas também, quem sabe, um amor impossível, quem sabe, por uma escrava.


“Uma coisa muito interessante que eu aprendi é que esse espírito de revolta e de revolução apareceu pela primeira vez na história do Brasil com os quilombos. Pensei que, se ele tinha tomado essa consciência revolucionária, tinha sido com quem realmente estava fazendo a revolução”, disse Gomes. Assim foi criada Preta (Isabel Zuáa), que vive empurrando Joaquim para agir, para se revoltar contra o estado das coisas. “Encontrei referências em mulheres que me inspiraram, como Nina Simone e Rosa Luxemburgo”, disse a atriz portuguesa. “Uma frase da Nina Simone que foi muito presente para mim era: ‘Liberdade é não ter medo’. E é uma frase que uso também no meu dia a dia. Para mim, a liberdade é não ter medo de fazer coisas que eu realmente quero fazer e dissociar o preconceito que as pessoas têm do meu corpo, de acharem que sou menos ou mais isto ou aquilo.” A pesquisa sobre o Brasil do século XVIII provocou no diretor e no elenco uma reflexão sobre o Brasil de 2017 – e são essas correspondências a real riqueza do filme. “O que mais me impressionou é como a gente não viveu um processo completo de descolonização”, disse Gomes. “A gente vive ainda decorrências da colonização

Nas pesquisas que precederam as filmagens, constatouse que havia pouco registro sobre aquele homem que, às vezes, são tão sutis, que a gente não percebe.” Por exemplo, os muitos edifícios com elevadores separados em “social” e “de serviço”, e apartamentos com duas portas, com a mesma divisão. “E a gente acha isso normal. É impressionante como a gente acha isso normal. A gente acha normal viver num país onde tem uma diferença imensa entre ricos e pobres.” Em Desclassificados do ouro, Laura de Mello e Souza relata como uma população imensa de mestiços e africanos vivia na mais completa miséria, enquanto poucos enriqueciam com as toneladas de ouro e diamantes retiradas das minas. “Então, o processo de colonização tem a ver com poder e privilégio de uma elite branca colonizadora que queria simplesmente sugar tudo da terra e viver na corte europeia. Hoje, as pessoas falam de corrupção, corrupção, corrupção, mas muitos empresários não pagam impostos. As pessoas falam

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1 ATORES Julio Machado e Isabel Zuaá protagonizam o longa

2 LOCAÇÃO As filmagens ocorreram no interior de Minas Gerais

de corrupção, corrupção, corrupção e cruzam sinal vermelho. E não querem pagar a multa.” Isabel Zuáa, que morou no Brasil, deparou-se com a situação do negro no país. “Sempre entendi que era negra. Mas vi no Rio que as pessoas não se consideravam negras pela baixa autoestima de serem negras. Porque ser negro no Brasil – no resto do mundo também, mas muito no Brasil – é muito difícil.” Joaquim aprende a navegar entre a corrupção sistêmica e o nepotismo que lhe rouba sua promoção. Dono de um escravo (Welket Bungué), não percebe que perpetua, ele mesmo, a manutenção do sistema. Marcelo Gomes espera que essa reflexão tenha frutos: “Quando você está em crise, deita no divã do psicanalista e fala do seu pai e da sua mãe para entender a crise. E acho que o Brasil Colonial é isso, é o pai e a mãe da nação. É o nascimento da nação. É a gente voltar para aquele país e dizer: ‘Nossa, vamos entender a crise a partir daqui’. Porque o passado está dentro do presente. Ele está mais vivo do que nunca”.


LETÍCIA SIMÕES/DIVULGAÇÃO

Claquete

Entrevista

MARCELO GOMES “ESTÁ NA HORA DE DISCUTIR POLÍTICA DE MANEIRA PROFUNDA E CONSISTENTE” CONTINENTE Como concebeu seu filme de época? MARCELO GOMES Queria falar do passado vivo. Então, primeiro, essa câmera tem de ser viva. Não pode ser aquela câmera clássica. O passado vivo era podre, sujo, condições de higiene nenhumas. As pessoas, às vezes, tinham uma roupa só. Os dentes eram sujos. Tudo é podre, porque o passado era terrível. Era cruel, desumano viver naquele Brasil Colonial. Então o que mais eu tenho de fazer para construir um filme-crônica, que mostre a poética do cotidiano, do dia a dia daquelas pessoas? Tenho de trazer atores negros que falam português de Portugal e um dialeto. Fui descobrir a Isabel Zuáa e o Welket Bungué em Portugal. Preciso de atores portugueses para fazer os portugueses, porque até o jeito de andar é diferente. Para fazer o índio, trouxe Karai Rya Pua, que é professor de guarani. Depois o Rômulo Braga,

esse ator mineiro maravilhoso, para fazer o mineirinho. E o Julio como essa mistura de tudo, com esse olhar kinskiano que ele tem, para Joaquim, aquele homem de ação, não de reflexão. CONTINENTE As motivações de Joaquim no seu filme são pessoais. MARCELO GOMES Nosso personagem, Joaquim, tinha de ser contemporâneo. E o que é a contemporaneidade? É a contradição. A gente é cheio de contradição. Quer ganhar dinheiro, ser feliz e casar com alguém que a gente ama. E era o que ele queria. E por isso ele trai. E por isso ele engana. Porque o ouro também traz isso, a ganância. Às vezes, as pessoas perguntam: “Esse filme é sobre Joaquim?”. É. “Mas como as pessoas no Festival de Berlim vão entender?” Gente, este filme é sobre traição, ganância e um amor impossível, as pessoas vão entender.

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CONTINENTE E é sobre a colonização, que os europeus deveriam entender. MARCELO GOMES Sim, porque todas as colonizações foram cruéis: a espanhola, a portuguesa, a inglesa, a francesa, a alemã. Todas foram cruéis. Nenhuma delas chegou a um país e falou: “Vamos entender a língua dessas pessoas. Vamos entender o jeito delas. E vamos construir uma junção de culturas”. Eles impuseram a cultura, a língua, a religião e exploraram a terra ao máximo. CONTINENTE O Recife teve outra colonização além da portuguesa – a holandesa –, da qual muita gente tem saudade. O que pensa disso? MARCELO GOMES Nossa, os holandeses saíram do Brasil e foram colonizar a África do Sul – e olha o que eles fizeram lá. Agora, quando uma pessoa fala: “Ah, os holandeses poderiam ser melhores que os portugueses”, ela está sendo colonizadora. Esse é o problema, a gente ainda não completou esse processo de descolonização. E isso está em Joaquim, quando ele fala: “Eu sou português também”, por ser filho de um. Vai ser um português de segunda classe sempre! CONTINENTE Um jornalista português veio me dizer que tinha achado o filme interessante, mas que não concordava com a visão de que Portugal era culpada pela corrupção do


INDICAÇÕES Brasil, porque corrupção é uma coisa humana. Ele não entendia que a corrupção sistêmica era, sim, culpa de Portugal. MARCELO GOMES Mas lógico, gente! É só ver a quantidade de escândalos de corrupção que tem em Portugal e na Espanha! É engraçado, porque pensei, em relação aos meus amigos portugueses que trabalham no filme: “Nossa, estou mostrando algo que acho que os cinemas português e brasileiro nunca mostraram, que é a crueldade da colonização”. Muita gente achou que não, que os portugueses não iam ligar. Na coletiva, veio um português dizer que o filme iria causar polêmica em Portugal porque eles acham que os portugueses foram bacanas no Brasil. Ninguém foi bacana, gente. O capitalismo não podia ser bacana. O capitalismo foi lá para explorar a riqueza. Vá às igrejas de Portugal e veja se foi bacana levar aquele ouro todo à custa de trabalho escravo. Então, estou muito feliz de causar uma polêmica grande em Portugal, porque é mais do que necessário. E eu espero causar outra no Brasil, porque acho que a gente tem de acabar com esse Fla x Flu que está se vivendo no Brasil. Está na hora de discutir política de uma forma profunda e consistente. Chega de discussões superficiais. Parece um bando de crianças. Vamos discutir questões primordiais do país, refletir sobre o presente compreendendo o passado e sinalizando o futuro. Senão não vai dar certo. CONTINENTE E achar pontos em comum, não? MARCELO GOMES Sim. Mas eu acho que também tem uma questão muito

dura: há pessoas no Brasil que não querem dividir seus privilégios. É de um egoísmo – e é um egoísmo que Joaquim tem. Ele planeja tudo para não dividir privilégios. E isso é cruel no Brasil. O brasileiro quer deixar os privilégios na mão de 35 milhões, mantendo 165 milhões desprovidos de privilégios. Isso não pode. Enquanto a gente tiver esse pensamento colonizador… CONTINENTE Por que você acha que o cinema brasileiro não olha tanto para o passado? MARCELO GOMES Fico pensando primeiro no orçamento. Segundo, a dificuldade de construir um filme histórico que fuja desse “drama da BBC”, com direção de arte magnífica, um figurino que não deixa a pessoa falar e aquele passado asséptico, limpo. Fizemos um filme na raça, com pouco orçamento. Neste momento de crises política, e também existencial, porque vêm juntas, ou seja, “quem somos nós?”, “que país é este?”, “que nação estamos construindo?”, temos de voltar para a história. O cinema tem uma responsabilidade muito grande de fazer filmes históricos. Fico feliz que Vazante, da Daniela Thomas, que se passa quase na mesma época de Joaquim, está aí, que a Laís Bodansky vai fazer filme sobre D. Pedro 1º. Acho que é muito sintomático, neste momento de crise, a gente voltar para o passado. MARIANE MORISAWA

COMÉDIA DRAMÁTICA

DRAMA

Dirigido por Luc Bondy Com Isabelle Huppert, Louis Garrel Supo Mungam Films

Dirigido por Pedro Severien Com Sabrina Greve, Sabrina Possani, Inquieta Filmes

AS FALSAS CONFIDÊNCIAS

TODAS AS CORES DA NOITE

Quem é Isabelle Huppert? Em mais uma prova cabal da sua versatilidade, no mesmo ano em que fez Elle e O que está por vir, a força da natureza rodou esse filme que entra em cartaz neste mês de abril. Louis Garrel interpreta Dorante, um rapaz pobre que é contratado para ser secretário particular de Araminte, personagem de madame Huppert, por quem se apaixona perdidamente. Baseado na peça homônima de Marivaux (1688-1763), um dos mais famosos dramaturgos franceses.

O primeiro longa-metragem de Pedro Severien aposta na potência do mistério para conduzir a narrativa. A violência urbana e seus efeitos psíquicos e sociais são os pontos iniciais da história. Iris (Sabrina Greve) mora sozinha num apartamento à beira-mar, local permanente de festa quando a noite cai. Sendo ela o ponto principal de todas as farras, o inesperado irrompe quando um corpo morto é achado na sala de estar. Quem é o cadáver? O que terá acontecido?

DRAMA

DRAMA/SUSPENSE

Dirigido por Jim Jarmusch Com Adam Driver, Golshifteh Farahan Fênix Filmes

Dirigido por João Pedro Rodrigues Com Paul Hamy, Han Wen Vitrine Filmes

PATERSON

Uma semana na vida de um motorista de ônibus que, nas horas vagas, gosta de passear com o cachorro, tomar uma cerveja e escrever poemas. Em resumo, Paterson é isso. Porém, é das pequenas ternuras que inundam nossas vidas no cotidiano que se ergue essa joia de Jim Jarmusch. Paterson, o protagonista (o melhor papel do ator Adam Driver no cinema até agora), parece encarnar os versos de John Lennon: “a vida é que acontece quando você está ocupado fazendo outros planos”.

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O ORNITÓLOGO

“É uma espécie de versão muito livre da vida do Santo Antônio de Lisboa. É um filme que se passa na atualidade, mas que reflete um pouco as mitologias portuguesas”, contou o diretor ao definir seu novo longa-metragem. Fernando (Paul Hamy) trabalha na ornitologia, um ramo biológico que estuda aves, e decide viajar seguindo o curso de um rio a bordo de um caiaque. Ao sofrer um acidente, o personagem enfrenta uma jornada misteriosa e perigosa da maneira mais rodriguiana de se fazer cinema.


TEATRO OFICINA/ DIVULGAÇÃO

Palco

TRILHA SONORA O som em cena

Embora muitas vezes despercebida, ou notada subliminarmente pela audiência, a trilha sonora é fator narrativo que integra a obra cênica TEXTO Erika Muniz

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Minutos antes de um espetáculo

teatral, é comum escutarmos as tradicionais três batidas indicando que o início da peça se aproxima. Esses sinais, provenientes do teatro do século XVII, foram a alternativa incorporada pelo dramaturgo e ator francês Molière para pedir o silêncio da plateia, pois o rei já teria chegado ao local. Desde aquela época, ou mesmo antes, o som era tido como premissa para a apresentação começar. Poderia ter sido um recurso visual, mas ele escolheu se comunicar com o público através de um código sonoro. Na linguagem teatral, o som, assim como a luz, o cenário, o figurino são signos, elementos cênicos. E a música, quando atrelada a uma montagem, é mais que ornamento,


1 A TERRA

Dirigida por Zé Celso Martinez, a peça é uma ópera de carnaval, um musical épico

início, de maneira bastante integrada pelos criadores Francisco Assis Lima, Ronaldo Correia de Brito e pelo músico Antônio Madureira. Nesse contexto, é possível considerar como original, também, uma releitura ou recriação musical e, até, a interpretação de uma música pelo espetáculo (isso, com o consentimento prévio do autor). Numa visão brechtiana, se o teatro é essa casa produtora de sonhos – em tempo e espaço reais –, “ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho”, para citar também o verso do poeta Murilo Mendes. “Qualquer trilha que eu fiz com o Galpão é original porque, em nossa apropriação e quando nós construímos o arranjo, recriamos aquele discurso musical, dando prioridade à forma singular e à sonoridade particular do grupo”, afirma Ernani Maletta, responsável pela concepção musical de várias encenações do Grupo Galpão, entre elas Um Molière imaginário (1997), Eclipse (2011) e Nós (2016).

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podendo tornar-se fundamental à construção de toda a dramaturgia. No teatro contemporâneo, o espetáculo não precisa necessariamente partir de um texto para ser concebido, por exemplo. Tão importante quanto ele pode ser a música, quando ela participa ativamente na criação da cena. Ao pensarmos em trilha sonora original, em um primeiro momento, podemos compreendê-la como composições criadas exclusivamente para determinado espetáculo. As músicas do Baile do Menino Deus (1983), Bandeira de São João (1988) e Arlequim (1990), da Trilogia das festas brasileiras, seriam exemplos. Nos três, textos e canções – com grande influência dos festejos populares – foram pensados e desenvolvidos, desde o

Em muitas encenações, a música contribui para as decisões da direção, inferindo diretamente nas narrativas Talvez por valorizar as peculiaridades, exista ainda a tendência desse e de outros grupos em preferirem que as “músicas cênicas” sejam executadas no aqui e agora. “A trilha gravada, às vezes, pode ter uma coisa de tentativa de naturalismo e realismo. Ao vivo, seria o pacto da magia, do não realismo”, considera Maletta. Mas o grupo mineiro também tem, em seu repertório musical, faixas feitas em estúdios, que seriam alternativas estético-funcionais. “O Galpão faz um teatro muito musical, a música é dramaturgia. A gente também tem trilhas gravadas, o que, às vezes, serve para facilitar e amplificar os efeitos de palco. Tem valsa, modinha e músicas que são criadas para os

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próprios espetáculos”, afirma o ator e diretor do Galpão, Eduardo Moreira, em entrevista à Continente.

ESCOLHA DE SONORIDADES

A história que vai ser contada também contribui para as decisões da direção musical. Quais instrumentos, timbres e melodias serão utilizados? E, no que se refere à textura do som, a trilha sonora será apresentada ao vivo ou será pré-gravada? Nas montagens de Ossos (2016), do Coletivo Angu de Teatro, de A peleja da mãe nas terras do senhor do açúcar (2011) e de A gloriosa vida e o triste fim de Zumba sem dente (2016), dirigidas por Carlos Carvalho, por exemplo, o pernambucano Juliano Holanda conta que os elementos narrativos o ajudaram a escolher as sonoridades. Em A peleja, ele optou por diferentes arranjos de viola com pedais, pois a história se passava na Zona da Mata Norte e “era importante que a trilha deixasse claro de que lugar se estava falando”. Já em Ossos, texto adaptado do romance do escritor Marcelino Freire, por ser ambientada em São Paulo e trazer referências das boates, Juliano definiu que as canções seriam gravadas e preservariam o marcante acento de oralidade e as frases curtas características da literatura de Freire. Sobre seu processo criativo no teatro, o músico conta: “Geralmente, eu recebo o texto, vou anotando ideias, palavras, frases, coisas que possam me ajudar, uma espécie de brainstorm. Carlos Carvalho tem uma coisa mais prática, do corpo a corpo; Ossos teve um processo planejado, iam montando e nós íamos discutindo como a trilha sonora entraria, se colaboraria com a cena, ou se as letras das canções entrariam na narrativa”. Cada equipe responsável pelos elementos cênicos – luz, cenário, figurino, direção, por exemplo – reserva sua maneira singular de trabalho. Desde as pesquisas à composição da cena no palco, cada estágio de preparação tem suas particularidades. O modus operandi da elaboração das sonoridades, melodias e harmonias para as músicas cênicas, sejam criações ou adaptações de composições já existentes, depende de cada trabalho, mas há etapas em comum. No caso dos músicos Leonardo Vila Nova, Juliano Muta e Tiago West,


OIGALÊ COOPERATIVA/ DIVULGAÇÃO

Palco

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que assinaram as trilhas de h(EU)stória – Tempo em transe (2014) – de autoria dos dois primeiros – e pa(IDEIA) – Pedagogia da libertação (2016), de Júnior Aguiar, as criações são permeadas pela presença constante do diretor. “Antes do espetáculo, ele apresenta o roteiro e deixa a gente à vontade para criar, mesmo que pontuando: ‘essa parte poderia ter uma música assim’ ou sugerindo um efeito. No pa(IDEIA), a gente pôde desenvolver ainda mais e aprofundar melhor que no Tempo em transe. Conseguimos trabalhar com camadas de músicas diferentes, por exemplo, tivemos sacadas de desenvolver efeitos e malhas sonoras que causam impactos”, afirma Vila Nova. Essa aproximação entre diretor e os responsáveis pela trilha sonora também acontece com o duo Pachka, formado por Tomás Brandão e Miguel Mendes. O primeiro mergulho dos dois nesse “entrelugar” da música desenvolvida para o teatro se deu a convite de Moacir Chaves para o espetáculo Duas mulheres em preto e branco (2012), e, em seguida, em Rei Lear (2014). “Podíamos ser

A criação da trilha sonora, em algumas peças, ocorre ao mesmo tempo que a elaboração da montagem músicos, mas éramos criadores na trilha. Ali, você é mais do que músico, é um agente dentro daquela cena que recebe luz e ressignifica. Dentro do teatro, a participação do músico ganha outra dimensão”, afirma Tomás Brandão. Além disso, depois de trabalharem com teatro, os dois músicos estenderam a percepção do palco como um espaço cênico para os seus trabalhos autorais e, em 2016, se uniram a Carlos Filho e ao iluminador Cleison Ramos para o espetáculo músico-sensorial Estesia. Para o diretor musical curitibano Gabriel Schwartz, cada espetáculo demanda nova pesquisa para que a trilha sonora seja desenvolvida. Em Oxigênio (2010), da Companhia Brasileira de Teatro, por exemplo, a ideia inicial do

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diretor Márcio Abreu era uma estética rock; enquanto que para Atman (2014), da Parabólica Oficina de Arte, partiu-se de pesquisas sobre jazz contemporâneo e free jazz. Em Tchekhov (2013), da Ave Lola Espaço de Criação, a elaboração sonora foi assinada pelo músico do Théâtre du Soleil, Jean-Jacques Lemètre. Além de composições do francês, as músicas do espetáculo transitavam entre o clássico e a inspiração cigana. “Para compor uma trilha nova, você sai praticamente do zero. Eu não imponho o que é o certo para aquela cena. O diretor dá as ideias e você percorre, vai se construindo junto com ele. Muitas vezes, a referência musical vem com a estética embutida, com a estética do contexto e o perfil do personagem”, comenta.

EXPRESSÃO DA CENA

Compondo a dramaturgia do espetáculo teatral, a música seria uma das alternativas de expressão em uma cena. Por se associar a outros elementos constitutivos da linguagem cênica – visuais e sensoriais –, torna-se uma espécie de gênero independente. “A música de cena concebe-se e atua num


ALEX SANTOS/ DIVULGAÇÃO

3

enclave de signos que caracterizam a encenação teatral”, pontua o compositor Lívio Tragtenberg, no livro Música de cena (1999). Nas encenações, quando os próprios atores tocam e cantam, há um efeito. Porém, as habilidades e limitações de cada um, tanto do ponto de vista técnico quanto cênico, são ponderadas. O conforto do intérprete durante a execução é um dos fatores relevantes desde o processo de feitura ou adaptação das sonoridades. “Os músicos vão propondo e a gente vai arriscando. É exaustivo, mas a canção que sai dali é apropriada por todos. Quando tem a mistura do músico e do ator, cada um se sente compositor e todo mundo tem muita propriedade de cantar aquilo. Você está vivendo seu corpo naquela música”, afirma Letícia Coura, atriz e preparadora do coro no espetáculo Os sertões (2002), do Teatro Oficina. Por se tratar de músicas para o teatro e não de uma apresentação musical, leva-se em conta mais do que a preparação das vozes. De uma maneira holística, todo o corpo deve estar presente. “Se o ator não consegue

fazer com o corpo dele, ele não vai entender”, explica Simone Rasslan, diretora musical da cooperativa gaúcha de artistas Oigalê, cujas encenações são, em grande parte, na rua. Refletir sobre o espaço no qual o espetáculo será encenado também faz parte das ideias iniciais, já que, diferentemente do palco, na rua, por exemplo, há os ruídos. Um carro pode passar, certos instrumentos acústicos podem ou não funcionar no ambiente… o músico ou ator precisa estar mais preparado para os fatores externos.“Tem uma parte do espetáculo Miséria, servidor de dois estancieiros (2008) que é sobre o que se teria para comer… Acabou que a colher e a panela viraram uma percussão. Fomos pensando: como é que a gente pode fazer isso aqui virar música? Às vezes, a criação escapa e, durante o processo, até o erro funciona na cena, o método é estar sempre aberto”, afirma a artista. A maioria das trilhas sonoras de espetáculos mais recentes do Oficina, Galpão, do Coletivo Angu, da Oigalê, entre outras, têm gravações em áudio ou vídeos das peças inteiras ou das

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2 MISÉRIA...

Encenada na rua, peça incorpora os possíveis ruídos ao redor

3 OXIGÊNIO

Estética rock permeia a criação da Companhia Brasileira de Teatro

trilhas sonoras. Algumas em CDs, outras disponibilizadas na internet através do Soundcloud ou do YouTube. Esses registros colaboram para a formação de um banco de dados, o fortalecimento da história do atual teatro brasileiro, além de firmar a circulação dessas obras. “No teatro, a música tem que ser teatro, não pode ser música somente”, afirma o ator e diretor musical Marco França, do Clowns de Shakespeare. O apuro das criações musicais que dialogam com a cena, desenvolvidas com exclusividade ou não para o espetáculo, e as adaptações sonoras para o palco potencializam o fenômeno cênico, quando colaboram para que uma experiência seja vivida. Uma maneira de expressão que não a de simplesmente mostrar, porque também no teatro, como diz Juliano Holanda, “às vezes, a música funciona para dizer coisas sem ser tão óbvio e jogar você para outros lugares”.


REPRODUÇÃO

ALLEN GINSBERG Duas décadas sem o poeta da beat generation

Junto com Jack Kerouak e William S. Bourroughs, ele formou a “divina trindade da literatura beat”, que contribuiu para a abertura das mentes de jovens de todo o mundo TEXTO Fabiano Calixto

Leitura

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“Eu vi as melhores cabeças da

minha geração destruídas pela loucura, famintos, histéricos, nus, se arrastando pelas quebradas da cidade na alta madrugada em busca de algum trago brutal.” Estes são os versos iniciais de um dos poemas mais populares do século XX: Uivo, de Allen Ginsberg, poeta norte-americano cuja morte completa duas décadas neste abril. Ginsberg foi um dos grandes expoentes da beat generation e da contracultura do século que passou. Seu livro Howl and other poems (1956) forma, junto com On the road (1957), de Jack Kerouac, e Naked lunch (1959), de William S. Burroughs, a divina trindade da literatura beat (à qual podemos também adicionar o disco The times they are a-changin’, clássico de Bob Dylan de 1964), obras que influenciariam rebeliões poéticoexistenciais da juventude por todo o planeta nas décadas de 1950, 1960 e 1970, principalmente. Sendo um dos momentos mais extraordinários da arte no século XX, a beat generation misturou, em seu grande drinque existencial, doses fortes do romantismo, do simbolismo, do surrealismo, de Whitman, de Rimbaud, da filosofia oriental, do jazz. Junto a esse repertório, injetou também na circulação sanguínea a experiência de expansão da mente através da fruição de drogas, a liberdade sexual, abrindo sendas luminosas para que a juventude rebelde e insatisfeita com os rumos do mundo capitalista propusesse novos modos de vida naqueles conturbados tempos de Guerra Fria. A contracultura era a floração bonita de uma arte explosiva e afetuosa, poética e política, momento mágico do horizonte utópico, quando a poesia se torna a vida. Integrante central do movimento e um dos maiores artistas do seu tempo, Ginsberg – poeta libertário, inquieto, experimental, cuja escrita, de alta voltagem, revolucionária no fundo e na forma, na qual o principal combustível era a vida – abriu lugares respiráveis no meio da imensa ruína que se tornou a civilização moderna. Suas preocupações políticas eram atentas e intensas – chegou a falar, numa entrevista de 1994, sobre os problemas da hipertecnologia que, já àquela época, estava consumindo o planeta e destruindo as possibilidades humanas.

O poeta nasceu em Newark, Nova Jersey, em 3 de junho de 1926, e morreu no dia 5 de abril de 1997, em Manhattan, Nova York. Deixou uma das bibliografias mais poderosas do século XX, além do já citado Howl and other poems (1956), publicou os essenciais Kaddish and other poems (1961), Reality sandwiches (1963), The fall of America – Poems of these states (1973), entre outros. Sob o influxo de Whitman, do jazz e da prosa bop de Kerouac, criou, com seus poemas, um fulcro de resistência, acendendo novas possibilidades de escrita inventiva, através de um ritmo alucinado e caminhos sintáticos enviesados que abriam grandes portais de dizeres diretos, como palavras de fogo em cartazes numa imensa manifestação, demonstrando a sua inabalável ética. Uma poesia de todo antípoda da poesia departamental em que imperava o beletrismo e seu vasto vestuário moral, poemas moralizantes travestidos de

Ginsberg foi um fenômeno editorial, um artista-símbolo das resistências e revoltas da segunda metade do século XX “formalmente bem-resolvidos” com suas burocracias ruminantes, flertes baratos e flores de plástico. A poesia, portanto, era o espelho daquela sociedade de plástico que se construíra sob os pilotis do american way of life. É nesse contexto que a poesia de Ginsberg surge. E surge assumindose publicamente homossexual e simpatizante do comunismo – a clássica figura das bruxas que o senador Joseph McCarthy adorava caçar –, gerando, claro, grande escândalo, o que levará, inclusive, a tentativas de censura e processo contra ele. Ainda assim, valente, será uma poesia de resistência e experiência do início ao fim. Uma escrita que estremecerá os alicerces do já apodrecido sonho americano e todo seu infinito arsenal de hipocrisia e mentira. Causando incômodos tanto à direita quanto à esquerda, sua poética libertária proporá caminhos que não se conciliam com a ideia – já bem

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velha e falha, aliás – de uma sociedade tutelada por um Estado. Podemos pensar no ideário místico de Ginsberg como propostas de combate político. Através da poesia, cultivar a mentalidade mágica, daí para aquilo que o autor de Uivo chamava de “Suprema Realidade”, através da qual se pode ver todo o Universo sobre os telhados das velhas fábricas abandonadas de subúrbios esquecidos pelo tempo, num imenso e portátil mirante cósmico. É a fusão do poeta e do xamã. Na busca de uma ancestralidade selvagem, orgiástica, libertária, que inaugure uma nova sociedade. Uma busca desesperada pelo ser natural, pela felicidade. Lido por gente como Bob Dylan, John Lennon, Patti Smith, Kurt Cobain, tornou-se um fenômeno editorial. Isso faria sua figura muito popular, colocando-o como um dos artistassímbolo das resistências e revoltas da segunda metade do século XX. Jamais, porém, foi devidamente reconhecido pela academia, pois, como diziam, era obsceno. Não ganhou Pulitzer, nem Nobel. Sem problemas. Era da rua que sua mente captava a frequência da moçada e a devolvia, num diálogo enriquecedor e luminoso. A escritura visionária e a ação revolucionária caminharam juntas até o fim. O poema como gesto afetivo-político.

DESTRUIÇÃO DE FRONTEIRAS

Apesar da qualidade de sua obra, sua força e novidade insultaram muita gente. Há um cordão de críticos que insiste em que a escrita beat é espontânea e inculta demais. Que o artesanato verbal falhou e a revolução comportamental não se sustentou no papel, ou seja, não deu em “alta literatura”, como tanto gostam os acadêmicos. Não entenderam nada, pois pensavam a poesia do século XX com o pensamento do século XVII e, claro, ficaram como cachorros dentro d’água no escuro daquela nova poética. Esses críticos jamais conseguiram entender, por conta da vaidade gritante desse tipo de ambiente, que o objetivo era justamente aquilo que tanto criticavam: a destruição das fronteiras entre vida e poesia. O poema, animal selvagem, não pode ser preso nas jaulas dos departamentos de literatura. A tentativa de domesticar a poesia sempre falha. A poética (forma)


REPRODUÇÃO

1 ALLEN GINSBERG

Fotografado por Joe Rosenthal, em 1959, para o San Francisco Chronicle

Leitura

2 BEAT GENERATION

Ginsberg e Jack Kerouac se tornaram exponentes da contracultura

e a política (fundo) são inseparáveis. Pelo menos na poesia que vale a pena ser lida. Os mecanismos de pensamento burocrático que estancam e se espalham feito praga pelos departamentos de literatura mundo afora acabou, como era de se esperar, ficando sem saber, ficando por fora. Não eram tempos para escrever sobre folhas de plátano caídas na neve enquanto, por exemplo, acontecia a Guerra do Vietnã e a América Latina estava coalhada de sangrentas ditaduras militares patrocinadas pelos EUA. Ao traduzir sua época em seus versos, Ginsberg operava uma revolução não só na poesia, mas na vida. Havia uma urgência de mudança de relação com o mundo, redimensionar a existência. Não à toa, a ideia de conexão com a natureza (ligada à ecologia política que ganharia muita força nos anos 1970) vai cruzar seus experimentos de elaboração poética. Essa dimensão corpórea, que faz com que seus versos quase sangrem, estará profundamente ligada à composição do poema. Ginsberg vai operar ritmos mais orgânicos para sua poesia, como dirá em uma entrevista de 1965: “Eu estava criando a partir dos meus próprios impulsos neurais, meus próprios impulsos de escrita. (…) a diferença está entre alguém que senta para escrever um poema de acordo com um padrão métrico predeterminado, e alguém escrevendo a partir de seus movimentos fisiológicos para chegar a um padrão e, talvez, mesmo chegando a esse padrão, que poderia mesmo vir a ter um nome, ou um uso clássico, mas chegando a isso de uma maneira muito mais orgânica que sintética”. Há várias maneiras de escrever poemas, como há muito tempo sabemos. Seguir regras de composição, como escreveu certa vez Roberto Bolaño, só serve para livros que serão cópias de outros livros. Isso não quer dizer, entretanto, que não se deva conhecer a tradição. Sem conhecer a

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INDICAÇÕES tradição não se pode criar nada realmente potente. Ginsberg conhecia, e muito bem. Assim pôde fazer múltipla e instigante sua voz. Da lendária leitura de Uivo na Six Gallery, em São Francisco, na noite de 13 de outubro de 1955 à contracultura e ao movimento punk, chegando aos nossos dias, Ginsberg (e toda trupe beat) continuaria munindo a moçada com um arsenal poderoso, que ajudaria a manter vivos as chamas utópicas e os ventos de mudança. Como escreveu um de seus tradutores no Brasil, Claudio Willer, em texto de apresentação de Uivo e outros poemas, Ginsberg “nunca se tornou um repetidor, um epígono de si mesmo. Não soará estranho, atualmente, afirmar que alguém como ele, um rebelde com um comportamento extravagante e desregrado, foi um exemplo de integridade, de uma elevada ética da poesia”. É justamente nessa ética (uma ética outsider, que rejeita a justiça seletiva do sistema e suas regras de opressão), força fundadora de sua poética, que se configuram

a obra e a persona de um dos maiores artistas dos últimos tempos. A cenografia imaginada pela mente alucinada de Ginsberg não está, trazendo à baila Vitor Ramil, à margem de uma história, mas no centro de outra. Outra história que vem sendo arquitetada no submundo, coletivamente. Quando Allen Ginsberg morreu, perguntaram ao grande poeta e editor da City Lights, Lawrence Ferlinghetti, o que dizer sobre a morte do amigo cujos livros editou por 30 anos, e ele respondeu: “Há um enorme buraco no céu, no mundo da poesia. Allen mudou a consciência da poesia para as gerações que se seguiram e em todas as regiões, na América do Norte, na América Latina, na Europa”. A transformação operada por Ginsberg na poesia foi realmente gigante, sua coragem contagiante, uma força da natureza mesmo. Foi um grande sol a nos iluminar e aquecer. “Como calcular o tamanho da escuridão?”, perguntou a poeta Diane Di Prima no dia em que homenagearam o poeta. A pergunta continua valendo.

CRÍTICA

JOSÉ RODRIGUES DE PAIVA Geração 65 – Cinquenta anos

POESIA

LUCI COLLIN A palavra algo Iluminuras

Este livro reúne artigos escritos pelo professor José Rodrigues de Paiva “no calor da hora”, ou seja, naqueles anos 1960, quando surgem Jaci Bezerra, Alberto Cunha Melo e Lucila Nogueria, entre outros autores cujas obras foram difundidas na imprensa pelo poeta César Leal.

“A poesia é metal precioso é metal nobre/ agarrado aos detalhes e ao insubmisso”, dizem os versos de Jim Said, um dos 47 poemas reunidos neste livro da poeta e ficcionista Luci Collin. Entre reflexões sobre o labor poético, metalinguagem, recepção e referências a Fernando Pessoa e Casimiro de Abreu, a poesia da curitibana volta a experimentar essas e outras temáticas.

CRÔNICA

BIOGRAFIA

Realejo Livros e Edições

É Realizações Editora

Edições Dédalo

POEMA TRADUZIDO

Sobre o trabalho de cavaloDADA O método deve ser carne tenríssima nada de mostarda simbólica visões reais & reais prisões tal qual é desde sempre. Prisões & visões mostradas com descrições cruas como aquelas do Carandiru e Pedrinhas. A brasa longa do haxixe é natural pra gente, Comemos sanduíches de realidade. Alegorias, porém, são alface demais. Não ocultem a loucura. TRADUÇÃO: FABIANO CALIXTO

XICO SÁ A pátria em sandálias da humildade São 11 anos de militância na crônica esportiva, o que reúne este livro. E, como toda boa crônica, comenta com graça os acontecimentos em curso, filtrados pela sensibilidade do autor. São mais de 100 exemplares selecionados, em que a verve de Sá se manifesta nas citações, paródias e sacadas poéticas no estilo malandragem cratense.

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RUSSEL KIRK Edmund Burke – Redescobrindo o gênio Dando prosseguimento ao seu projeto de divulgar o pensamento conservador, a É Realizações publica a biografia do estadista irlandês Edmund Burke (1729-1797), que não raro recebe o epíteto de “fundador do conservadorismo moderno”. A versão brasileira traz artigos extras, que orientam uma melhor percepção sobre o biografado.


Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

RECIFE ECLÉTICO, CONVERSINHA FIADA – Como vamos pensar em

recuperação de prédios, se as pessoas estão no maior abandono? Mereço a resposta. Atrevi-me a tecer comentários sobre patrimônio em plena terça-feira gorda, em meio ao barulho e ao calor, bebendo cerveja quente e ruim, três latas grandes por 10 reais. – Mas, para a reforma do Palácio da Alvorada não faltou recurso. Michel Temer arrancou 24 milhões dos contribuintes e deu uma mão de cal no invento de Niemeyer. Puro desperdício. A recatada não gostou e a família real continua no Jaburu. Nosso dinheirinho foi pro ralo. – Roda, roda, roda... estou de folga, cara. Sacou que é carnaval? Imaginei que funcionário do patrimônio histórico e arquitetônico dava plantão 24 horas. Eu não descanso. Levanto os olhos, vejo um prédio antigo ameaçando ruir e a tristeza desaba em cima de mim. Melhor se fosse uma viga de sucupira, madeira em extinção. Abria minha cabeça em duas, eu morria de vez e parava de pensar. Ou adquiria os poderes das três fadinhas de Disney – Fauna, Flora e Primavera – com que

sempre sonhei. Elas transformam o mundo no que querem, apenas mexendo a varinha de condão. Nem apelam à fórmula mágica das histórias que vovó contava: minha varinha de condão, com os poderes que Deus te deu... São contemporâneas, agem em tempo virtual, vapt, vupt. Viciei-me em ser fada desde que vim morar no Recife. Não podia olhar uma casa aos pandarecos, paredes com azulejos portugueses roubados, altares barrocos devorados pelos cupins, sem lançar mão dos meus poderes mágicos. Invocava gênios, bruxos e feiticeiros em vão. Não ia além do desejo. Fechava e abria os olhos, e tudo continuava em ruínas, no mesmo descaso e abandono. Mas, na imaginação, eu não tinha medidas. Draguei o Capibaribe e tornei-o navegável; despoluí as águas; saneei o Recife inteiro, os bairros mais distantes e esquecidos; contive o avanço do mar e as dentadas dos tubarões; aprovei a altura máxima de cinco andares para os prédios da cidade, restaurando a brisa marítima; estabeleci 200 metros de praia, sem construções, em toda

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orla de Pernambuco; descongestionei o centro, limpei a cidade de outdoors e placas... Tudo num passe de mágica, num abrir e fechar de olhos. Pensam que sou o único maluco? O único a sonhar ser fada? Salagadula mexegabula bibidi-bobidi-bu Junte isso tudo e teremos então... Quando fiz a curadoria das exposições de Guita Charifker e Gilvan Samico para a Pinacoteca do Estado de São Paulo, recebi a visita de seu diretor, Marcelo Araújo. Numa tarde em que contemplávamos as ruas convergindo para a praça do Marco Zero, se afunilando em prédios que dão o perfil ao lugar por onde a cidade começou, protagonizamos uma cena de fadas. – Que maravilha! Marcelo Araújo exclamou. Depois, cobrindo os olhos com a mão: – Que horror! Como permitiram uma coisa dessas? Sem descobrir os olhos, com a mão livre apontava o edifício sede da empresa Cimento Nassau, do grupo João Santos. – O que foi, Marcelo? eu perguntava aflito. Trata-se de um edifício moderno,


MARIA JÚLIA MOREIRA

fachada em vidro, de influência americana, erguido sobre a demolição do antigo Banco do Brasil, construção eclética das décadas de 1920 a 1930, que se harmonizava em estilo com os da Associação Comercial, Caixa Econômica e Bandepe. Na época da substituição, o IPHAN nacional não se interessava pela arquitetura eclética, tombando apenas os patrimônios do período neoclássico para trás. O Escritório destrói a escala em altura da paisagem do bairro, numa dissonância lamentável. – Se pelos menos se tratasse de uma intervenção como a pirâmide de vidro, no Louvre. Sempre que venho ao Recife e vejo essa coisa feia, desejo ser uma fada e com um toque mágico voltar ao prédio original. Como permitiram uma coisa dessas? A pergunta me fere. O mesmo que as torres gêmeas do bairro de São José, o projeto de novas torres no Cais José Estelita, o bairro de Boa Viagem transformando-se em concreto, a avenida Dantas Barreto erguida sobre ruas antigas e uma igreja, casarões deixados ao abandono até ruírem e virarem edifícios modernosos,

Minha mágica funciona ao contrário, afundo com o Recife ao invés de emergir. Quem manipula a perversa varinha de condão? a Boa Vista sucateada, as praças se transformando em lar de mendigos. Minha mágica funciona ao contrário, afundo com o Recife ao invés de emergir. Quem manipula a perversa varinha de condão? Não sou eu. Os artistas se esforçam, escrevem romances e novelas, rodam filmes, protestam nos festivais, puxam coros de vozes nos trios elétricos, publicam crônicas nos blogs, encenam espetáculos. A força da água mole na pedra dura. O condão de políticos e empreiteiros é de ferro e cimento. Até lembrei uma história acontecida nos Estados Unidos. Li-a narrada pelo jornalista Paulo Francis, que não tinha maior apreço pelos nordestinos. Se o relato for mentiroso, fica por conta dele.

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Antes de autorizar uma nova invasão do Vietnam, o presidente americano reúne intelectuais e artistas na Casa Branca para consultá-los sobre a decisão. Invadir ou não invadir? A pergunta provoca alvoroço geral, ninguém está acostumado a isso, todos se posicionam contra a guerra. O presidente agradece e informa que irá acatar a opinião. Um assessor entra na sala, o presidente pede licença e se ausenta por um momento. Volta em seguida e a confraternização se prolonga. Ao saírem à rua, os artistas e intelectuais são surpreendidos pelas manchetes dos jornais. No tempo em que saiu, o presidente americano autorizou o envio de novos contingentes de navios, aviões, soldados e armas ao Vietnam. O que nós achamos e queremos é pouco considerado. Mesmo assim, teimo em aporrinhar a arquiteta do patrimônio histórico. – E se investirmos nos prédios e nas pessoas? Mas, ela vai longe, arrastada por um caboclinho caindo aos pedaços. Bebe cerveja quente e barata, 10 reais três latas grandes.


PESQUISA O despertar da arte contemporânea

A professora e pesquisadora Jane Pinheiro publica, quase 20 anos depois da defesa, sua dissertação, que documenta a cena artística recifense dos anos 1990 TEXTO Mariana Oliveira

Visuais 1 MAMAM A mostra Arte Contemporânea (2000-1) Pernambuco reuniu, em 1999, muitos artistas da cena

No catálogo da exposição Pernambuco moderno (2006), o curador Paulo Herkenhoff assina o texto Do Recife para o mundo: o Pernambuco moderno antes do Modernismo. Nele, é feito um resgate de nomes que, antes mesmo da Semana de 22, já abriam os caminhos do projeto de modernismo brasileiro. Dizia ele: “É preciso começar a desconstruir a história montada no Sul para que Pernambuco possa sair do papel de espelho e volver à lente que foi. Essa é a tarefa da historiografia pernambucana da modernidade: tornar visível a diferença pernambucana. Todas as visões totalizadoras do Brasil são problemáticas. O país não se resume a um único modelo, dada sua complexidade. Foi assim com o moderno, o Modernismo e a experiência pernambucana. O paradoxo é que toda intencionalidade geopolítica modernista ou a sua historiografia que desfaça Pernambuco deve ser reavaliada”, escreve. O estado foi protagonista em muitos movimentos estéticos da história brasileira, mas, ao longo dos anos, sempre lhe faltou um aparato que pudesse dar visibilidade e amplitude

nacional a essas atividades no campo das artes. Foi só em meados da década de 1990 que começaram a surgir iniciativas e instituições que visavam incluir essa produção num contexto nacional. A citada exposição vem justamente na esteira dessas propostas. Essa década e sua importante contribuição para as artes visuais pernambucanas foi o ponto de partida para a pesquisa de mestrado da professora Jane Pinheiro, que ganhou publicação agora, quase 20 anos depois de sua defesa, em 1999. Arte contemporânea no Recife dos anos 1990 apresenta, num formato editorial bem particular, como se organizavam os artistas contemporâneos pernambucanos e como, a partir de ações que envolveram várias instituições, eles conseguiram ser vistos e reconhecidos para além do contexto local, outra vez desconstruindo ideias consagradas nos eixos centrais da arte sobre essa produção. Naquele momento, a arte pernambucana era inevitavelmente associada a obras regionalistas. Assim como, no passado, havia o desconhecimento do que produziam

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artistas como Vicente do Rego Monteiro e Lula Cardos Ayres, também não se vislumbrava uma produção contemporânea profícua, na qual os elementos regionais não eram relevantes. “A produção pernambucana sempre foi arrojada, mas havia um aprisionamento numa determinada caracterização. Vejo o final da década de 1990 como um momento em que o olhar para Pernambuco mudou e passou a ser mais acolhedor a essa produção contemporânea”, pontua Jane Pinheiro. Essa descoberta, esse novo olhar externo para a cena pernambucana, tem uma relação direta com uma série de iniciativas de instituições como a Fundaj, que passou a promover cursos na área; com a criação do Instituto de Arte Contemporânea (IAC), ligado à UFPE; a conceituação do Mamam como museu e a chegada de Marcos Lontra para coordená-lo. O próprio curador, convidado a escrever o prefácio do livro de Jane, destaca: “O Mamam estrutura-se a partir dessa necessidade de incluir a produção artística pernambucana no contexto artístico nacional dos anos 1990”.


JANE PINHEIRO/REPRODUÇÃO

Para a pesquisadora, a presença de Lontra foi algo fundamental, não só pelas mostras expressivas dessa geração produzidas por ele no Mamam, mas por sua grande interlocução com os mais diversos agentes do mundo da arte, colocando o Recife em diálogo com o mundo, trazendo artistas de fora para exibir na cidade, mas sem esquecer de abrir espaço para a produção local, convidando curadores para atividades diversas. À época, passaram por aqui nomes como Tadeu Chiarelli, Fernando Cocchiarale, que visitavam ateliês, faziam leituras de portfólios, e começavam a conhecer a produção local e atestar sua consistência. Esse período, documentado por Jane Pinheiro, foi determinante também para que artistas como Paulo Bruscky – que tinha uma trajetória bastante longa, iniciada por volta da década de 1970, e que já estava em contato com movimentos internacionais, mas que ainda não tinham espaço no território nacional – ganhassem visibilidade.

Na década de 1990, o olhar para Pernambuco passou a ser mais acolhedor para a produção contemporânea GRUPOS E FOTOGRAFIA

Na obra, a pesquisadora se detêm em artistas que compunham dois grupos: o Camelo e o Carga e Descarga, além da artista – hoje mais conhecida como gestora – Betânia Corrêa de Araújo. Segundo Jane Pinheiro, o recorte necessário para pesquisa usou como critério a seleção de nomes que estivessem trabalhando com as mais diversas formas de expressão. O grupo Camelo, formado por Ismael Portela, Jobalo, Marcelo Coutinho, Paulo Meira, Renata Pinheiro e Oriana Duarte, foi criado oficialmente em 1996. Os integrantes não buscavam uma produção conjunta, mas, sim, uma interlocução, uma conversa, uma discussão sobre a arte. Essa proposta – consagrada no

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projeto Camelo no IAC, que promoveu individuais ao longo do ano, com um vernissage seguido por uma mesa redonda – deu a eles uma imagem de grupo intelectualizado. “A proposta do Camelo, como grupo instituído, era de criar um corpo com possibilidades maiores de articulação com o sistema de legitimação de produção, com maiores condições de diálogo com a sociedade e de conquistar um espaço para os trabalhos que seus integrantes estavam desenvolvendo na cidade. Um trabalho que não estava diretamente voltado para questões regionais e que não se inseria na tradição pernambucana de pintura e escultura”, escreve a autora. Entre os diversos depoimentos transcritos no livro, chama a atenção um de Paulo Meira sobre sua primeira performance, realizada em 1997, na sua individual O sono turbulento, no IAC. Meira conta que faria sua estreia em performances sem nunca ter assistido a uma ao vivo. “Eu não sabia como era, eu nunca vi antes e até brinquei da minha condição, pois fiz a performance e continuo sem ter visto. Eu fiz e, por isso, não vi.” São falas como essa que,


JANE PINHEIRO/REPRODUÇÃO

Visuais

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lançadas ao longo do livro, vão recriando a cena das artes recifenses na década de 1990 e comprovando a importância do período para a consolidação da produção contemporânea, mas também para o resgate de boa parte da produção anterior que havia vivido um ostracismo de anos. O outro grupo que tem espaço na obra é o Carga e Descarga, formado por Flávio Emanuel, Maurício Silva, Márcio Almeida e Dantas Suassuna. Todos frequentavam o Bar Royal, no Bairro do Recife, e decidiram criar uma revista. A publicação nunca foi editada, mas um coletivo terminou se estruturando a partir dela. Diferentemente do Camelo, o Carga e Descarga realizava trabalhos em conjunto, tais como performances e ações em eventos na rua, numa guinada clara para a produção de uma arte pública. “A marca mais forte do Carga e Descarga é, para mim, o fato de eles insistirem em realizar criações coletivas. Os trabalhos do grupo são criados em conjunto. Eles se dispõem a lidar com todas as dificuldades que uma empreitada desse tipo requer, como a dificuldade de várias pessoas trabalhando juntas, uma interferindo no trabalho das outras.” Além de dar voz aos artistas selecionados, um espaço importante da obra trata da aproximação da

Além do espaço dedicado aos artistas e grupos, a autora trabalha a relevância da fotografia para a Antropologia Antropologia com a fotografia e a arte contemporânea. O peso dessa questão é tão forte, que um dos capítulos é dedicado exclusivamente às imagens, que surgem como protagonistas e não como acessórios de um texto, sem legendas e sem informações complementares à vista. “A imagem fotográfica fala de coisas que a imagem verbal não consegue falar, esse é o ponto. E esse é o ponto que, na minha maneira de perceber, possibilita que a utilize como forma de expressão, como texto, como metáfora, e não apenas como registro ou documento, num trabalho de cunho antropológico. Pela fotografia, pode-se fazer convergir ciência e arte num só trabalho: um ampliando o outro. A arte já se deu conta da riqueza do viés antropológico para seu território, as grandes exposições internacionais recentes dão mostra disso”, escreve a pesquisadora.

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Durante a banca do mestrado, foi em silêncio também que a autora apresentou essas fotos, apostando na potência das mesmas. “A fotografia era, na época, um modo de expressão muito relevante para mim. Talvez, dentro da Antropologia, a maior contribuição que eu tenha deixado seja justamente esse olhar sobre as relações entre a fotografia, a arte e a Antropologia”, diz, lembrando a atualidade da discussão.

APROXIMAÇÃO

Foi em 1993, quando Jane Pinheiro iniciou suas atividades como professora de artes no Colégio de Aplicação da UFPE, que ela passou a estabelecer um diálogo mais próximo com a cena artística contemporânea do Recife. A troca com os adolescentes levou-a a se questionar como se dava a aproximação deles com a arte contemporânea. Passou, então, a frequentar as exposições em busca de respostas sobre essa relação e foi com esse problema que iniciou sua pesquisa de mestrado em Antropologia. Ela se inseriu na cena e passou também a fazer parte dela. Não era uma pesquisadora que se colocava num ponto distanciado. Infiltrou-se nos grupos, fez amizades, criou intimidade, fez trabalhos em conjunto, fotografou algumas mostras e ações. Nesse


GABRIEL GARCIA/DIVULGAÇÃO

processo, a pesquisa passou a ganhar novos contornos. Afinal, ela havia presenciado, de um lugar privilegiado, ao longo de cerca de quatro anos, o momento em que a arte contemporânea pernambucana, que não trazia claramente elementos associados ao Nordeste e ao regionalismo, começava a ser reconhecida no circuito nacional como nunca antes. “Eu percebi que tinha esse material na minha mão. Uma pesquisa sobre a recepção da arte contemporânea qualquer outra pessoa poderia fazer. Mas eu tinha vivenciado um momento muito especial de uma posição muito privilegiada”, conta. O fato de estar muito próxima gerou nela uma angústia, afinal há um ponto ideal que deve ser alcançado pelo pesquisador, perfeito em distância e em proximidade. Foi dentro desse contexto e desses questionamentos que a autora decidiuse por construir uma dissertação pouco convencional, na qual sua presença e voz aparecem de modo direto, quase como um diário de bordo daquilo que ela havia acompanhado. Para sustentar teoricamente suas opções, buscou referências em Edgar Morin. “Encontrar Morin e os autores de complexidade foi como um conforto epistemológico. Com base neles, eu podia desenvolver aquilo em que acreditava, trazendo mais suavidade para a ciência, trazendo a arte para dentro da ciência.” Foi a partir da proposta de Morin – que o sujeito da pesquisa se repense a si próprio dentro do corpo da pesquisa –, que Jane Pinheiro optou por estar presente no texto através da narração de uma terceira pessoa.

EDIÇÃO

O livro é uma publicação na íntegra da dissertação, sem adaptações textuais. “Os textos guardam, portanto, o frescor dos escritos no calor da hora, de quando a autora artista vivenciava, com apaixonada imersão participante, a teoria da complexidade e a antropologia visual na cena contemporânea do Recife de 1990”, escreve a editora, Maria Alice Amorim, numa nota em que detalha o projeto. Há uma alternância de vozes na narrativa, bem marcada por elementos gráficos. Num texto central, a pesquisadora expõe sues

2 BASTIDORES A pesquisadora registrou e acompanhou montagens, como essa do artista Paulo Meira no Mamam 3 JANE PINHEIRO A professora se inseriu por completo na cena artística local para desenvolver seu trabalho

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questionamentos, aponta seus referenciais teóricos, dá voz aos artistas, explica suas escolhas, fala do seu problema, inclusive utilizando a primeira pessoa. Num segundo texto, que vai surgindo em meio ao discurso principal, uma terceira pessoa narra fatos e vivências muito particulares da vida da pesquisadora, num emaranhado de informações que dá ao texto um tom intimista de diário. “Minha vida não parou enquanto eu fazia o mestrado.” O projeto gráfico segue as referências utilizadas quando da defesa da tese, em 1999. As fontes tipográficas, a capa, a identidade visual, tudo estabelece uma conexão com essa primeira “montagem” do texto. Como se trata de uma edição bilíngue, entra agora o texto em inglês, lançado ao reverso, dando à obra duas capas, uma em cada língua, e se intricando no miolo do livro de modo não muito convencional, assim como a vida e a produção acadêmica da autora

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se conectam no texto. Um texto não convencional não poderia ter um projeto gráfico convencional. Dessa forma, a edição entra em sintonia com a proposta de mesclar arte, vida, ciência. Sua publicação, após quase 20 anos da defesa da dissertação, possibilita uma aproximação do público e também de outros pesquisadores com os acontecimentos que marcaram a cena artística pernambucana na década de 1990, os quais foram certamente fundamentais para a espécie de boom vivido nas artes visuais locais no início dos anos 2000. A autora e a editora Maria Alice Amorim veem a obra, na verdade, como um documento histórico não só sobre a produção de arte, mas também sobre a própria produção acadêmica. “Isso foi feito dessa forma dentro da academia”, diz a autora, cujo doutorado também em Antropologia trabalha, em linhas gerais, com uma mostra imaginária de cinema.


BRENO LAPROVÍTERA/DIVULGAÇÃO

Visuais 1

ARTE PÚBLICA Pontos de interesse nas ruas da cidade

Obras artísticas espalhadas pelo Recife são alvo de projeto de identificação e catalogação, através do qual é possível vislumbrar a relação arte-história TEXTO Eduardo Montenegro

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Certa vez, na casa de número 8 da Rua Aprazível, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, o artista Cícero Dias mergulhou em suas tintas para montar, durante três anos, uma de suas obras mais significativas e um dos expoentes do modernismo brasileiro: a pintura Eu vi o mundo… Ele começava no Recife, de 1930, que somente foi exposta na 8º Bienal de São Paulo, no ano de 1965. Hoje, quem anda pelo Marco Zero, no Bairro do Recife, ou já viu a famosa praça em fotos, encontra uma descendente dessa pintura. Rosa dos ventos, desenhada no piso do centro da praça, é obra de Cícero Dias e foi inspirada na tela. Uma simbologia plausível: se o mundo começava no Recife, deveria começar exatamente


1 MARCO ZERO Inspirado na sua tela Eu vi o mundo… Ele começava no Recife, Cícero Dias também criou Rosa dos ventos, desenhada no piso do centro da praça

cenário da arte pública recifense. Uma vez, também, o escultor Siah Armajani referiu-se a essas obras de arte como não sendo somente criadas a partir de uma construção artística, mas também de uma produção social e cultural, baseada em necessidades. “Cada obra traz uma memória da cidade, da história, das pessoas que viveram e vivem naquela época. É isso. É a arte da memória”, define também Lúcia Padilha, uma das organizadoras do Recife Arte Pública, projeto que pretende justamente mapear esse acervo disposto pelo Recife e que conta

O projeto Recife Arte Pública editou um livreto visual com as esculturas espalhadas no Recife, dispostas num mapa

onde nasce a cidade. Ao lado de vitrais, murais e esculturas, Rosa dos ventos compõe um Recife pouco notado: a “cidade-museu”, uma exposição permanente, em que ruas, becos e avenidas funcionam como uma galeria de arte livre à visitação. A esse conjunto de objetos artísticos dispostos em locais públicos dá-se o nome de arte pública. Quando José Guilherme Abreu, doutor em História da Arte Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, definiu esse tipo de arte como de caráter memorável, qualificadora do meio urbano e arquitetônico, além de se constituir em local de devoção, parecia retratar – em poucas palavras – o

com obras da autoria de Francisco Brennand, Abelardo da Hora, Lula Cardoso Ayres, Corbiniano Lins, entre outros artistas. A ideia do projeto partiu da escultura de um caranguejo em metal, erguida às margens do Rio Capibaribe, na Rua da Aurora. Idealizado pelo artista plástico Augusto Ferrer, executado por Eddy Polo e Lúcia Padilha, o monumento Carne da minha unha, homenagem a Chico Science e Josué de Castro, inspirou Padilha a observar a cidade sob o ponto de vista artístico, ou seja, da perspectiva de que existem obras como aquela “em cartaz” em várias partes do Recife. O mapeamento das obras começou “pelo centro, onde o Recife nasceu, o Marco Zero. Existem, lá, o Parque de Esculturas de Brennand, e o desenho de Cícero Dias no Marco Zero. A cidade já começa com duas obras bem significativas”, explica Padilha, em entrevista à Continente, que conta, neste projeto, com colaboradores como Janaína Cardoso, na produção, os educadores Niedja Santos e Hassan Santos e os fotógrafos Breno Laprovitera e Nando Chiapetta.

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Desde 2013, quando foi aprovado pelo Funcultura, o Recife Arte Pública publicou, gratuitamente, um livreto visual com as esculturas encontradas ao longo das zonas do Recife, dispostas num mapa. Ampliado desde então, o projeto conta com o site www. recifeartepublica.com.br, em que o primeiro livreto – com mais de 100 obras catalogadas – está disponível. Além deste, há pretensões de se produzir outras publicações dedicadas a vitrais e murais e, futuramente, juntá-las num único livro. “Essas obras de arte, vitrais e murais, além de serem arte, fazem parte da arquitetura. Não são obras de arte isoladas. Elas interagem com a arquitetura, em que estão inseridas”, destacou Lúcia Padilha, que é arquiteta e arte-educadora. Porém, mais do que estabelecerem um diálogo com a arquitetura, as obras de arte pública estabelecem um fio narrativo visual com as páginas dos livros de História, como uma reverberação do passado, discutido no presente, por meio de objetos em pedra, bronze, mármore, tinta e vidro.

COMO HISTÓRIA

“As obras de arte – quer se trate de monumentos, quer se trate de objetos móveis – ainda constituem o tecido ambiental da vida moderna. Se as conservamos, ou seja, se toleramos ou desejamos a sua presença, é porque ainda têm um significado. Não só isso: a tendência a desambientá-las, vendêlas, exportá-las, destruí-las, também implica, ainda que de modo negativo, o reconhecimento de um significado delas”, escreveu o historiador da arte do século XX, Giulo Carlo Argan, no livro História da arte como história da cidade (Martins Fontes). As ideias de Argan levam a uma reflexão sobre o papel documental da arte, uma vez que elas apresentam ligações diretas com certos períodos da história. Usemos, nesse sentido, o exemplo do monumento Tortura nunca mais, de Demetrio Albuquerque, um dos cartões-postais da cidade e o primeiro monumento no Brasil criado em honra dos mortos da ditadura militar. Durante os diversos protestos contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, também contra o atual


BRENO LAPROVÍTERA/DILVULGAÇÃO

Visuais 2 NANDO CHIAPPETTA/DIVULGAÇÃO

2 REVOLUÇÕES PERNAMBUCANAS Painel de Corbiniano Lins, no Bairro de Santo Amaro, traz referências aos períodos de rebeldia no estado 3 TORTURA NUNCA MAIS Monumento é sempre lembrado nas manifestações em prol da democracia 4 PRAÇA MACIEL PINHEIRO Clarice Lispector foi celebrada numa escultura, situada nas proximidades do sobrado onde morou

presidente Michel Temer, militantes ocuparam a base da escultura, como num gesto de luta pela democracia. Ou seja, pelas palavras de Argan, “a presença de obras de arte é sempre caracterizadora de um contexto cuja historicidade manifesta.” Reincide nas esculturas e nos murais recifenses a apreciação da história pernambucana. O busto de Frei Caneca, localizado próximo ao Forte das Cinco Pontas, não só remete a um dos heróis da Revolução de 1817, mas, também, ao próprio lugar onde o carmelita foi fuzilado devido aos seus ideais revolucionários. A parede atrás do busto – que, de certa forma, ajuda a compor o valor simbólico da estátua – foi onde o padre recebeu os tiros e o seu sangue se espalhou. O mural Revoluções pernambucanas, de Corbiniano Lins, mescla os períodos de rebeldia pernambucana de 1817, 1824 e 1948 num extenso e azulado mural. Ou

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NANDO CHIAPPETTA/ DIVULGAÇÃO

mesmo o mural A batalha dos Guararapes (1962), de Francisco Brennand, localizado no Bairro de Santo Antônio, mira o passado revolucionário dos “bravos guerreiros”, como está nos versos do hino pernambucano. Esses são, claro, alguns dos exemplos da arte pública da cidade.

RECURSO EDUCATIVO

Existe diferença em contemplar uma obra de arte instalada num local público e outra dentro do espaço de um museu? Segundo Ricardo Reis, mestre em Educação Artística pela Universidade de Lisboa, em sua pesquisa Arte pública como recurso criativo: contributos para a abordagem pedagógica de arte pública, “uma obra de arte colocada num determinado contexto altera-o. Um determinado contexto altera a percepção que o observador tem da obra”. Segundo esquema apresentado pelo pesquisador, formam-se três polos: o observador, o contexto e a obra. Esses dialogam entre si, justamente onde reside a diferença de se apreciar uma obra num museu, uma vez que – seguindo o pensamento de Reis – as pinturas e esculturas estão fora de seu local de nascença, não podendo estabelecer um contexto. Na arte pública, porém, “não é raro encontrar quem menospreze as obras

O lugar escolhido para a obra pode ter relação direta com ela, criando um contexto sigular para sua apreciação de arte colocadas em espaços urbanos, talvez por estas se encontrarem fora dos espaços de validação da arte, ou seja, fora dos museus e/ou galerias”, problematiza Reis. Observando ainda essa sincronia, ou interdependência entre esses três polos, o monumento em homenagem a Zumbi dos Palmares, criado por Abelardo da Hora e instalado no Pátio do Carmo, em frente à Basílica e ao Convento de Nossa Senhora do Carmo, no centro do Recife, ilustra essa ideia. Foi ali, sobre aquelas pedras antigas, na sombra da igreja, que o líder quilombola foi degolado, tendo sua cabeça exposta por dias, devido ao seu direito ao grito. Não menosprezando a importância do museu para a preservação das obras de arte, ter a estátua no local do assassinato carrega uma riqueza de contexto singular. O Circuito da Poesia também materializa essa forma de associar

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arte e acontecimentos, através da localização de 16 estátuas de escritores pernambucanos (ou ligados ao estado). Quando se anda pela Rua da Aurora, e se depara com o Teatro do Arraial, observa-se, no lado oposto, uma escultura, em tamanho real, de Ariano Suassuna, que fundou o local. Na Praça Maciel Pinheiro, onde está localizado o sobrado em que morou a família da ucraniana, no Bairro da Boa Vista, está eternizada a figura de Clarice Lispector, esculpida sentada numa poltrona, com um livro nas mãos. Para Ricardo Reis, a arte pública, com seu potencial educativo, é “quase sempre menosprezada”, mesmo com iniciativas como o Circuito da Poesia. “Como trabalho com arteeducação, vejo na arte pública uma grande oportunidade de transformar as mensagens que ela traz em conteúdo de conhecimento educativo”, afirma Lúcia Padilha. A ideia do projeto Recife Arte Pública é, além de valorização e catalogação dessas artes, militar dentro desse campo de arte. De certa forma, acaba sendo uma via de mão dupla, pois, apontando novamente para Reis, “conhecer os contextos históricos, culturais e sociais nos quais as obras foram criadas enriquece o nosso olhar e as nossas habilidades para pensar sobre arte”.


José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

DE ATAHUALPA A PETRIBÚ

Houve um tempo em que o último

imperador dos incas, Atahualpa, já prisioneiro dos espanhóis, se deu conta, e de fato por conta própria, de que a grande arma do invasor não eram nem cavalos nem o aço das espadas ou outros artefatos vistosos e sim uma invençãozinha intrigante que podia passar despercebida mas de importância fundamental: a escrita. A princípio o imperador até imaginou um atributo do branco, vindo de nascença. Para verificar isso, pediu a um espanhol que lhe escrevesse em cima de uma unha uma palavra e passou a exibila a todos os brancos um a um, para que lessem a tal palavra, até que viu que alguns não sabiam ler, concluindo ser uma questão de aprendizado. E baixou a lei de todos aprenderem a ler. Até hoje não apareceu um Atahualpa para fazer o mesmo no Brasil. Todo esse enfadonho nariz-decera para dizer que nós brasileiros até hoje permanecemos naquele primeiro momento da conquista quando não se sabia se escrever era

privilégio dos nascidos com a pele branca, talvez até porque aqui no Brasil a cor começou a mudar. Estendendo o caso à pintura, se não acreditamos totalmente nessa prerrogativa, ainda se busca entre nós, o que tem aumentado nas últimas décadas, um atestado de branquidade, a legitimar nosso “diploma” de pintor, não pelo verdadeiro, que é o quadro, mas por ter estudado na Beaux-Arts ou outra escola da Europa, em Berlim, em Roma ou não sei mais onde. Ultimamente há uma inflação de jovens que estudaram em Florença, ou não tão jovens, e, recém-chegados de volta à aldeia ancestral, estranham a ausência do reconhecimento imediato a que têm direito. Calma minha gente. Na vida nada se perde. Depois de assentado o pó, o que pode durar uma vida inteira, é certo, tudo será incorporado, tudo será digerido, todos receberão o seu quinhão de glória. Aqui na terra toda glória é pouca enquanto se vive. Às vezes, nas minhas altas lucubrações, concluo que o tempo para todos é igual, quer morramos

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idosos ou não, tanto faz viver um dia como um século: para cada um, a vida será sempre inteira, do ponto de vista de si próprio. Vocês podem pensar que digo isso de barriga cheia porque beirando os oitenta e cinco anos. Mas é que tive uma recaída depois de provar do fruto da árvore do bem e do mal lendo o livro de Carlos Cirne Lima, mandado por sua esposa, notável pintora ex-olindense, Maria Tomaselli, de Innsbruck (que segundo o amigo Fernando Dourado Filho significa “que passa por baixo da ponte”) Dialética para principiantes/ Depois de Hegel, estando adiantado no Diário de Francisco Brennand no fim do vol. III, com medo que se acabe. Agora me lembrei, quanto à pressa de nós brasileiros pela glória: quando Portinari fez cinquenta anos, e no Brasil todos esperavam pela opinião do grande crítico alemão, que veio para o Brasil fugindo da guerra, Otto Maria Carpeaux, justamente atrás desse “atestado de branquidade” a que me referi, o crítico surpreendeu a todos saudando-o como “uma grande promessa”. No mínimo esperavam


REPRODUÇÃO

1 VERBO I bra de Gabriel O

Petribú. 105cm x 105cm. Reprodução em papel. 2013

que Carpeaux dissesse que era o maior pintor do mundo. Que Picasso não lhe amarrava as chuteiras. No começo do século 20 houve uma reviravolta no mundo inteiro e se caiu no extremo oposto, uma recusa a qualquer aval do mundo europeu, uma volta à pureza dos valores nativos. Gauguin tinha-se mandado para o Taiti dizendo que a civilização era sua doença e a barbárie, cura. Na autobiografia de Orozco ele diz que nos seus começos só era confiável o analfabeto, não somente em arte, mas de não saber escrever nem ler, por não estar contaminado pela civilização. O pintor Rebolo Gonçalves até a morte falava errado em solidariedade aos analfabetos. Mesmo bem mais moço, também durante algum tempo cheguei a sentir repugnância pela ostentação desses vernizes europeus. Mas nós aqui no Recife, numa época que não existia televisão, sentíamos grande atração pela Bienal de São Paulo, até que cheguei a ela, e fui agraciado com um secundaríssimo prêmio de aquisição, mas nem tanto, pois recebi-o das

A jovem Alia Rachmanova conta que para não ser trucidada por ser filha de médico dizia ser filha do jardineiro

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mãos do presidente Juscelino (é mole, Arthur Carvalho?). Mesmo assim no ambiente paulista era humilhado porque não conhecia o Louvre, a Capela Sistina: como se pode falar de arte sem conhecer os quadros de Rafael e Leonardo da Vinci? Nos primeiros dias da revolução russa de 1917 a jovem Alia Rachmanova conta no seu Estudantes, Amor, Tscheka e Morte que para não ser trucidada por ser filha de médico dizia ser filha do jardineiro. O muralista Siqueiros perguntou a Diego Rivera se não tinha vergonha de, com o passado glorioso do México, ser mais um cubista em Paris. Essas ideias me assaltaram ao receber a visita do artista Gabriel

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Petribú (Recife, 1980) com um catálogo escrito em italiano, L’uomo al centro dei suoi linguaggi (o homem no centro das suas linguagens) confessando ter estudado em Florença. No primeiro instante pensei em ter de enfrentar uma grande maçada, recorrer às, se existentes, reservas de cavalheirismo. Olhando as reproduções, vi que não se tratava de um ingênuo aprendiz de belas-artes. Até comecei a me identificar com as peças ali reproduzidas. Fui levado aos tempos do poema-processo, aliás, atualmente sendo citado de vez em quando, Moacy Cirne e Álvaro de Sá já falecidos, Wladimir Dias Pino nos seus gloriosos noventa anos. Na minha vida, o poemaprocesso foi um episódio que ficou isolado na década de 1960. Sentime sinceramente rejuvenescido, uma parte de mim ressuscitada, e por isso confio que Gabriel Petribú tenha a persistência que não tive: sou de outra geração, comprometida com valores de que não abdico. Mas desejo de todo coração que nele esse fogo não se extinga.


HERMAN LEONARD/REPRODUÇÃO

Sonoras JAZZ Os 100 anos d’Ella

Neste mês, é lembrado o nascimento da PrimeiraDama da Canção, que ajudou a transformar o gênero em sofisticado produto cultural TEXTO Débora Nascimento

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O Festival de Jazz de Montreux

consolidou-se como evento, em sua terceira edição, quando a programação foi encerrada com a performance dos dois maiores cantores norteamericanos em atividade, Frank Sinatra, no Auditório Stravinski, e Ella Fitzgerald, no Cassino Kursaal. Numa surpreendente coincidência, ambos inseriram em seus repertórios músicas dos Beatles. Ele, Something, Ella, Hey, Jude. Àquela altura, em 1969, o rock já tinha deixado de ser encarado como um gênero menor ou uma moda passageira, e havia conquistado respeito, principalmente depois do lançamento da obra-prima Sgt. Pepper`s (1967). Enquanto Sinatra fez uma versão pomposa da composição de George

Harrisson, Ella – acompanhada de Tommy Flanagan (piano), Frank De La Rosa (baixo) e Ed Thigpen (bateria) – realizou uma vigorosa versão jazzística da canção de Paul McCartney e ainda interpretou um cover explosivo de Sunshine of your love, lançada naquele ano pelo power trio britânico Cream. Da metade para o final da interpretação, a cantora explora gritos rascantes, dois meses antes de Janis Joplin estremecer o Festival de Woodstock. Quando Ella pôs essas duas músicas dentro do festival que ela contribuiu para solidificar como templo do jazz, isso antes de o evento escalar grupos de rock, a artista já contava mais de 30 anos de profissão. A vitoriosa trajetória musical lhe dava segurança para ousar

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tantas vezes e manter-se afinada com os novos tempos. Era não somente a mais popular e renomada cantora de jazz, mas tinha se tornado a maior diva da música norte-americana, apontada como a Primeira-Dama da Canção. Aquele 1969, em Montreux, só atestava a brilhante primeira metade da sua carreira de inacreditáveis seis décadas – inacreditáveis, quando se leva em consideração que, nos anos 1950, grandes estrelas do jazz, como Charlie Parker (1920-1955) e Billie Holiday (1915-1959), já tinham abandonado a estrada. O cenário jazzístico, quando Ella começou, possuía algumas raras cantoras… e Billie Holiday. A interpretação de Lady Day, sua mais


1 DIVA A cantora manteve impressionantes

seis décadas de carreira ininterrupta, influenciando gerações de intérpretes

DESPERTAR PARA MÚSICA

Com sobrenome oriundo dos seus antepassados escravizados, herdado dos senhores escravocratas, Ella Jane Fitzgerald nasceu em Newport News, Virgínia, em 25 de abril de 1917. O pai, nunca conheceu. A mãe, Temperance Williams Fitzgerald, trabalhava numa lavanderia e casou-se com um português que vivia desempregado. Em plena Grande Depressão, Ella, aos 12 anos, conseguia algumas moedas como mensageira de uma casa de jogos. Sua função era avisar aos jogadores quando a polícia estivesse por perto. Chegou a ser

Ella constumava repertir para si mesma: “Um dia eu vou fazer alguma coisa importante de mim”. Conseguiu

forte concorrente no gênero, era mais introspectiva e sofrida, exalava um clima noturno e depressivo. Ella, com seu timbre, que muitas vezes se assemelhava ao de uma garota, esbanjava uma outra vibração, mais positiva e alegre, mesmo quando cantava sobre a infelicidade no amor. “A alegria é uma forma de sabedoria: toda alegria é sábia, mas nem toda sabedoria é alegre, e, se uma já é difícil, imagine-se a outra. Alegria e sabedoria se cruzam, imprevistamente, na voz dessa mulher, capaz de fazer qualquer um feliz, ou, pelo menos, mais feliz, se não mais sábio”, disse Arthur Nestrovski, em sua nota sobre Ella Fitzgerald publicada no livro Notas musicais: do barroco ao jazz (2000).

detida por isso. Com a morte precoce de sua mãe, em 1932, passou a morar com uma tia no Harlem, em Nova York. Foi lá, cercada por um ambiente de blues e jazz, que despertou para a música. Ella morou, por um breve período, num reformatório para garotas, onde os oficiais costumavam bater nas jovens. Mesmo com as intempéries, sempre teve o ideal de vencer na vida. “Um dia, eu vou fazer alguma coisa importante de mim”, dizia. Com o sonho de ser dançarina, participou, aos 17 anos, do concurso de talentos Harlem Amateur Hour, no mítico Teatro Apollo. Antes dela, duas irmãs se saíram muito bem numa coreografia. Ela, então, considerou que não conseguiria tantos aplausos. Preferiu cantar. Além de levar o prêmio de 10 dólares, conquistou um maior: foi assistida pelo baterista Chick Webb, que estava na plateia. Impressionado com o talento e carisma da jovem malvestida e desajeitada, e com a incrível recepção do público, o jazzista quis contratá-la. Reza a lenda, que ele a adotou para que ela, menor de idade e órfã, pudesse se apresentar em casas noturnas e

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também excursionar. Na orquestra de Webb, Ella passou a ter contato com a nata do jazz, incluindo músicos como Benny Carter, Dizzy Gillespie, Louis Armstrong, com alguns dos quais trabalharia ao longo de sua carreira. Entre 1935 e 1955, gravou para Decca Records. Dentre os registros, A-tisket A-tasket, que virou um hit e transformou Ella Fitzgerald, aos 21 anos, em nome nacional. A cantora vivia o auge do swing, das big bands. Em 1939, cinco anos depois de ingressar no grupo de Chick Webb, um choque, seu amigo falecia precocemente, aos 34 anos. Então, o conjunto passou a ser chamado Ella Fitzgerald and Her Famous Orchestra, até que, em 1941, resolveu seguir sozinha sua carreira. Em 1946, em turnê com a banda de Dizzy Gillespie, apaixonou-se pelo contrabaixista Ray Brown, com quem ficou casada entre 1948 e 1953 – um dos seus três breves casamentos. Foi através de Ray que conheceu Norman Granz, que se transformou em seu fiel empresário. Como agente, ele tinha o objetivo de transformá-la numa estrela internacional.

STATUS DE ARTE

Ao sair da Decca, Ella Fitzgerald foi a primeira contratada da Verve. Pela gravadora, fundada por Granz, lançou sofisticados discos que catapultaram sua fama, valorizaram o papel dos compositores, elevaram o status do jazz e enalteceram o álbum como produto artístico conceitual. A aclamada série Song books, lançada entre 1956 e 1964, teve tributos a Cole Porter, Rodgers and Hart, Duke Ellington, Irving Berlin, Harold Arlen, Jerome Kern e Johnny Mercer, George e Ira Gershwin. “Foi Fitzgerald quem, praticamente sozinha, elevou a canção popular americana ao status de arte, na tradição do bel canto italiano (técnica vocal originária da ópera) e do lieder alemão (cancioneiro romântico alemão). No processo, ajudou a definir o jazz como ‘a música clássica americana’. Ela foi o foco do orgulho de uma nação sobre sua arte nativa”, analisou Richard Harrington, crítico do Washington Post. “Nunca soube quão boas eram nossas canções, até que ouvi Ella Fitzgerald cantá-las”, observou Ira Gershwin. O compositor norte-americano estava


FRANÇOIS JACQUENOD/REPRODUÇÃO

Sonoras 2

se referindo a composições que eram clássicos da música norte-americana como The man I love, Embraceable you, Our love is here to stay, que, por si só, já poderiam colaborar para o sucesso das gravações. No entanto, independentemente da qualidade de uma canção, Ella sabia dar relevância, como fez com Flying home, que se transformou num clássico devido ao scat singing. Outro exemplo é o seu primeiro hit, A-tisket A-tasket, que possivelmente com outro intérprete não alcançaria a mesma repercussão. De sua extensa discografia, além da série Song books, destacam-se os álbuns Ella and Louis (Verve, 1956), Like someone in love (Verve, 1957), Mack the knife: The complete Ella in Berlin (Verve, 1960), The intimate Ella (Verve, 1960), Ella and Basie: on the sunny side of the street (Verve, 1963), Ella Fitzgerald: 75th-Birthday Celebration (Decca Jazz), Pure Ella (Decca Jazz, com gravações da década de 1950). O sucesso da artista no showbusiness e no mercado fonográfico, onde vendeu 40 milhões de discos, fez surgir uma torrente de diversas cantoras de jazz, fossem brancas ou negras. As gravadoras passaram a investir em intérpretes, como Betty Carter, Lena Horne, Shirley Horn, Abbey Lincoln, Lavern Baker, Helen Forrest, Vera Lynn, Helen Mirrell. Quando o bebop passou a ocupar o espaço do swing, das big bands, Ella, já experiente, fez uma transição na forma de cantar, mais ritmada e cheia de nuances, transformando-se numa acrobata vocal, com infinitas

2 MONTREUX, 1969

Ella contribuiu para consolidar o festival como o templo do jazz

improvisações melódicas. Com sua extensão vocal de quase três oitavas, podia soar, inclusive, como um sax, um clarinete ou um trompete. Sua imprevisível forma de interpretar passou a inspirar diversos cantores em seu país e ao redor do mundo. No Brasil, Elis Regina foi um bom exemplo – até houve um período em que pedia para ser chamada de Élis. No entanto, Ella chegou a ser apontada como uma intérprete sem a alma do blues – em outras palavras, sem a emoção provocada pelo sofrimento –, pois, de alguma forma, parecia não mergulhar fundo na tristeza, como se nunca tivesse sofrido na vida, embora uma de suas angústias fosse sua própria aparência. “Sempre tento pensar que eu vou ser feliz. Olho para mim e digo, Ella, ‘você pode se livrar desse peso e ser igual à fulana ou beltrana’, mas há vezes em que fico muito consciente, com muita vergonha e sinto pena de mim mesma. Sei que isso é errado”, revelou, certa vez. Os amigos, mesmo os mais próximos, diziam que ela não costumava reclamar das coisas ruins da vida. Ella parecia querer trazer sempre uma ponta de esperança a tudo que cantava, mesmo quando era algo como uma de suas interpretações magistrais, Something to live for, a primeira parceria entre Duke Ellington e Billy Strayhorn, cuja letra parecia ter sido escrita para ela. “I want

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something to live for/ Someone to make my life an adventurous dream/ Oh, what wouldn’t I give for/ Someone who’d take my life/ And make it seem gay as they say it ought to be.” (“Eu quero algo pelo que viver/ Alguém para fazer da minha vida um sonho aventureiro/ Oh, o que eu não daria por/ Alguém que pegasse minha vida/ E a fizesse alegre como dizem que deveria ser”). Embora o registro dessa música em disco seja sublime, a performance ao vivo, principalmente no show com Duke e sua orquestra, em 1966, em Estocolmo, é absolutamente irretocável e emocionante. Lançado apenas em 1984, esse registro mostra a versatilidade de sua performance, desde Wives and lovers ao balanço de Só danço samba, cantada em irresistível português macarrônico. A propósito, Antônio Carlos Jobim foi um dos compositores que mereceram um álbum inteiro na voz de Ella Fitzgerald. A artista sempre cantava suas músicas em shows e em outros discos, como O amor em paz (Once I loved), no álbum com o violonista Joe Pass, Take love easy, de 1983.

BRASIL

Dois anos antes do show da bossa nova no Carnegie Hall, Ella Fitzgerald veio ao Brasil pela primeira vez, em abril de 1960, e se apresentou com sua banda em São Paulo, no Teatro Record, e no Rio, no Copacabana Palace – na capital carioca ainda cantou em um show beneficente no Maracanãzinho, no dia 30, em prol das vítimas das enchentes do Nordeste. Após sua morte, em 1996, foi descoberta e divulgada sua secreta generosidade, ela fazia doações a orfanatos e financiou o estudo de várias crianças em seu país. Na segunda turnê no Brasil, em 1971, cantou em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. No repertório, Girl from Ipanema, O nosso amor, Tá chegando a hora, Água de beber e Mas que nada – a estrela ficou fascinada pelas músicas de Jorge Ben e Ivan Lins, e, em entrevista coletiva, elogiou os compositores. De volta aos Estados Unidos, gravou Madalena. Em 1981, lançou o álbum Ella abraça Jobim, com 19 versões em inglês de canções do pianista brasileiro. Sempre acompanhada pelos melhores músicos norte-americanos, Ella também era considerada um deles. “O melhor ouvido de qualquer cantor”, disse Mel Tormé sobre a vencedora de 13 Grammys


INDICAÇÕES de Melhor Performance Vocal entre 1958 e 1990. Numa entrevista a André Previn, Ella mencionou: “Bem, como você sabe, eu não sou instrumentista…”. Sentado em frente a ela, o pianista e compositor a interrompeu, erguendo suavemente a mão direita em sinal de “pare” e disse: “Você quer brigar comigo? Conheço algumas pessoas que trocariam de lugar com você”. Tanto seu célebre scat singing quanto os duetos com os músicos, em que desafiava repetir com a voz as notas que os instrumentistas de sopro tocavam de improviso, eram amostras de sua habilidade musical. Além, claro, das versões dos standards, como a já citada Wives and lovers, de Burt Bacharach e Hal David, que ela conseguiu transformar praticamente em outra canção.

TIMIDEZ

Quem via Ella Fitzgerald dominar qualquer plateia, não desconfiava que habitava nela um ser absolutamente tímido e avesso a holofotes, que evitava eventos sociais e entrevistas. Sua casa em Beverly Hills era frequentada apenas por familiares e poucos amigos – músicos que a acompanhavam e cantoras como Carmen McRae, Sarah Vaughan e Peggy Lee. “Não é fácil para mim ficar de frente a uma multidão. Isso costumava me incomodar muito, mas entendi que Deus me deu esse talento para usar. Então, simplesmente fico lá e canto”. Atrelada à timidez, Ella seguiu na contramão do estilo de vida de muitos jazzistas e celebridades, não bebia, não se drogava, não se envolvia em escândalos. Talvez por isso tenha conseguido manter sua carreira por quase 60 anos. Mesmo

idosa, perdeu pouco de sua capacidade vocal e, apesar dos problemas decorrentes da diabetes, continuou trabalhando. Em 1985, teve um edema pulmonar, e, no ano seguinte, implantou a primeira de cinco pontes de safena. Em 1991, realizou, sentada, seu último show. Foi, mais uma vez, ovacionada. “Ela ainda pode ser uma trombeta humana exuberante”, escreveu o crítico Jon Pareles, no New York Times. Por causa da doença, perdeu totalmente a visão e, dois anos depois, duas pernas abaixo do joelho. Em 15 de junho 1996, morria, aos 79 anos. Ella tinha um costume de usar sempre um lenço para enxugar o constante suor do rosto, estalar os dedos da mão esquerda para marcar o ritmo da música, deixar escapar uma risada sapeca no final das interpretações mais animadas e agradecer bastante os aplausos da plateia. “Thank you, ladies and gentlemen”, repetia com delicadeza. Seu senso de gratidão nunca a permitiu que deixasse de mencionar a importância de Chick Webb em sua vida. Uma artista única. “Ella é o miau do gato, o fino de cantora e mulher. Nos encanta há mais de meio século, com sua voz de garotinha atrevida, sua versatilidade musical, da balada tradicional, do jazz ao bebop. Ella Fitzgerald, Billie Holiday e Sarah Vaughan fizeram mais pelo bom conceito, a afeição, o talento e a humanidade dos negros do que mil Malcom Xs”, escreveu Paulo Francis, n’O Estado de São Paulo, em 6 de junho de 1993. O cantor Tony Bennett sentenciou: “Nunca houve alguém como Ella, não havia ninguém que chegasse perto dela”.

INDIE ROCK

INDIE FOLK

GRANDADDY Last place

LAURA MARLING Semper femina

Dez anos depois de ter anunciado o seu fim, a banda indie californiana surpreendeu com um disco novo. No período após o anúncio, o guitarrista, vocalista e compositor Jason Lytle lançou dois discos solo, criou o projeto Admiral Radley (que rendeu um disco), mas, em 2012, resolveu voltar com a antiga banda para realizar shows. Agora, com Last place, o grupo lança um ótimo álbum, mas ainda sem o mesmo impacto de The sophtware slump, de 2000.

Em seu sexto disco, a cantora e compositora britânica Laura Marling apresenta belas melodias e letras confessionais, embaladas por delicados canto e violão, que bebem da fonte de Joni Mitchell. O título, Semper femina, inspirado na frase tatuada que a artista carrega há um bom tempo, aponta o teor das letras, que observam com sutileza o mundo sob o ponto de vista feminino através de canções de amor, como o destaque do álbum, Nothing, not nearly.

ROCK ELETRÔNICO

POP ROCK

Independente

Hardly Art

30th Century Records

ALTERNADORES Wanderlust O trio paraibano de rock eletrônico Alternadores lança Wanderlust, seu terceiro trabalho. Produzido pelo próprio grupo, formada por Carlos Eduardo Batista (Bidu), Igor Gadelha (Pepeu Guzman) e Gustavo Pozzobon, que se revezam entre instrumentos orgânicos e sintetizadores, o disco traz, em quatro longas faixas, influências do Kraftwerk, Battles e Animal Collective. O EP foi inteiramente gravado nos estúdios caseiros dos integrantes.

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More Alarming Records

DUDE YORK Sincerely Enquanto ninguém mais parece ligar para o Weezer, bandas que surgiram no rastro do grupo de Rivers Cuomo lançam discos que despertam interesse, como o Dude York. Depois de dois discos caseiros, o trio de Seatle lançou um trabalho mais profissional, coproduzido por John Goodmanson (produtor do Bikini Kill) e apresenta boas músicas como Love is, Black Jack, Tonight, Something in the way. Os vocais divididos entre o guitarrista Peter Richards e a baixista Claire England fazem cada faixar soar como uma banda diferente.


CON TI NEN TE

Criaturas

Iggy Pop por Zenival

O passageiro Iggy Pop chega aos 70 anos. Naquele cenário da contracultura em que ele despontou, sua sensibilidade destoava da psicodelia predominante, expressando-se numa estética que depois seria denominada de proto-punk. Eram os precursores do movimento, como a Velvet Underground e The Stooges, banda da qual foi vocalista. Sempre de peito aberto, quer dizer, exposto, Iggy tem mostrado, desde então, muito Lust for life. Viva!

CONTINENTE ABRIL 2017 | 88



www.revistacontinente.com.br

INDÍGENAS

PELO DIREITO DE EXISTIR

# 196

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#196 ano XVII • abr/17 • R$ 13,00

CONTINENTE ABR 17

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E MAIS: JOÃO MOREIRA SALLES ALLEN GINSBERG ELLA FITZGERALD MARCELO GOMES

NESTA EDIÇÃO, PARA COMEMORAR OS 80 ANOS DE JOMARD MUNIZ DE BRITTO, OFERECEMOS COMO BRINDE O DVD JMB, O FAMIGERADO


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